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Pain behavior: functional analysis and some experimental data

2010, Temas Em Psicologia

A dor pode ser analisada sob diferentes perspectivas, a depender dos referenciais teóricos que embasam o seu estudo. O presente texto utiliza a perspectiva analítico-comportamental considerando a dor como um comportamento encoberto. São relatados alguns experimentos com animais que exemplificam como a dor pode ser função de aprendizagens operantes ou respondentes, além de determinantes filogenéticos. Conclui-se pela necessidade de maior interação entre as diferentes ciências que estudam a dor, dentre elas a Fisiologia, a Farmacologia e a Análise do Comportamento.

ISSN 1413-389X Temas em Psicologia - 2010, Vol. 18, no 2, 327 – 333 Comportamento de dor: análise funcional e alguns dados experimentais Maria Helena Leite Hunziker Universidade de São Paulo Resumo A dor pode ser analisada sob diferentes perspectivas, a depender dos referenciais teóricos que embasam o seu estudo. O presente texto utiliza a perspectiva analítico-comportamental considerando a dor como um comportamento encoberto. São relatados alguns experimentos com animais que exemplificam como a dor pode ser função de aprendizagens operantes ou respondentes, além de determinantes filogenéticos. Conclui-se pela necessidade de maior interação entre as diferentes ciências que estudam a dor, dentre elas a Fisiologia, a Farmacologia e a Análise do Comportamento. Palavras-chave: Dor, Comportamento, Análise funcional. Pain behavior: Functional analysis and some experimental data Abstract The pain analysis can be done from different perspectives, depending on the theorical basis for this study. The present paper is based on the behavioral analytic perspective, understanding pains as a covert behavior. We analyze some animal studies demonstrating that pain can be a function ontogenetic processes (operant or respondent learning) moreover the phylogenetics ones. We conclude that it is necessary more interaction among the different sciences interested on the pain study, like the Physiology, Pharmacology or Behavior Analysis. Keywords: Pain, Behavior, Functional analysis. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. (Caetano Veloso) O estudo da dor pode ser feito sob diferentes perspectivas. A começar pela delimitação do fenômeno em estudo, que pode ser restrito à dor decorrente da injúria física ou ampliado até chegar à dor existencial e outras não diretamente relacionadas a um evento físico desencadeador. Em qualquer dos casos, dor e sofrimento são dois termos que se misturam, sendo ora analisados como fenômenos distintos, ora como sinônimos. A distinção mais comum entre dor e sofrimento geralmente decorre da dicotomia físico/psicológico (também dita corpo/mente ou corpo/alma). Dicotomicamente, a dor seria própria da natureza física e o sofrimento próprio da natureza psicológica. Geralmente, a dor é tida como uma sensação desagradável produzida por injúria física ou moléstia. Por exemplo, fala-se em dor decorrente de uma lesão ou doença, em dor de cabeça ou dor de estômago. O sofrimento seria a dor mais generalizada: ele é sentido pelo indivíduo como um todo, e não pela sua cabeça ou estômago, nem pela parte do seu corpo que recebeu uma lesão. Por isso, sugere-se que ele ocorre em uma esfera diferente da meramente física, naquela denominada como “psicológica”. Nessa concepção, apenas poética ou metaforicamente fala-se em “dores da alma”: “Amor é fogo que arde sem se ver/ É ferida que dói, e não se sente, /É um contentamento descontente, /É dor que desatina sem doer” (Luís de Camões). Contudo, na perspectiva analíticocomportamental, essa dicotomia mente/corpo não é adotada, pois é pressuposto filosófico do behaviorismo radical que os seres, tanto _____________________________________ Endereço para correspondência: Maria Helena Leite Hunziker - Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia Experimental, Av. Prof. Mello Moares, 1721. CEP.: 05508-030. São Paulo, SP. E-mail: [email protected]. Apoio financeiro: CNPq, bolsa PQ (processo 306007/2006-1). 328 humanos como infra-humanos, têm uma única natureza, que é a corpórea (Skinner, 1989/1991). Nessa concepção monista, dor ou sofrimento são igualmente membros de uma grande classe de comportamentos denominados “sentimentos”, que têm como característica comum o fato de serem privados, ou seja, acessíveis apenas ao indivíduo que os sentem. Nessa concepção, o que sentimos são condições corporais que aprendemos a discriminar/nomear através do reforçamento da comunidade verbal (Skinner, 1989/1991). Porém, se é a comunidade verbal que nos ensina a discriminar (sentir) nossos diferentes estados fisiológicos (sentimentos), como esperar que isso se estabeleça com precisão se esses estados são inacessíveis aos membros dessa comunidade? De fato, as identificações e denominações dos sentimentos têm imprecisões próprias de todo comportamento privado: como saber se a dor que eu sinto é igual à sua? Embora dificultada por essa característica de inacessibilidade direta, inerente ao fenômeno em si, o “sentir” é parte relevante dos seres e, como tal, deve ser abarcado pelo estudo do comportamento: “Como as pessoas se sentem é frequentemente tão importante quanto o que elas fazem” (Skinner, 1989/1991, p. 13). O desenvolvimento desse texto será embasado nessa perspectiva monista, sendo a distinção dor/sofrimento considerada não relevante na análise que segue. O essencial, aqui, será a consideração de que dor é comportamento, e que esse comportamento não é diretamente acessível a outros indivíduos, o que dificulta, mas não impede, seu estudo. Conforme defendido por Skinner (1974), não há porque supor que os comportamentos encobertos obedeçam a leis diferentes daquelas que regem os comportamentos públicos. Assim, a dor pode ser analisada como parte de diferentes processos comportamentais, dentre eles os operantes e os respondentes (Rachlin, 1985), que interagem entre si continuamente (Donahoe & Palmer, 1994). Essa análise leva em conta que a dor é parte de uma cadeia comportamental onde cada elo pode ter funções múltiplas. Assim, uma resposta que é controlada pelo antecedente e pelo consequente pode também exercer funções de estímulo antecedente e consequente para outras respostas, bem como ser uma operação estabelecedora para reforçamento (Catania, 1998/1999; Michael, 2000). Por exemplo, Hunziker, M. H. L. enquanto parte de processos respondentes, a dor pode ser analisada como uma resposta eliciada por estímulos específicos, incondicionados ou condicionados. Nesses casos, a sua previsão e controle dependem da identificação e possibilidade de manipulação desses estímulos eliciadores. Em paralelo, ela pode também ter a função de estímulo eliciador para outras respostas. Como parte de processos operantes, a dor pode ser uma resposta cuja ocorrência modifica alguns aspectos do ambiente, e é por eles modificada, bem como pode ter funções de estímulo discriminativo, punitivo ou reforçador negativo. Nesse contexto, o estudo da dor ganha complexidade ao focar cadeias comportamentais e buscar identificar as suas múltiplas funções. Por exemplo, quando toco um objeto cortante, é possível a qualquer observador externo prever com alta probabilidade de acerto que retirarei rapidamente minha mão, interrompendo a continuidade da lesão sobre a minha pele. Nessa cadeia comportamental relativamente simples, temos diversos processos em curso: o corte na pele é um estímulo eliciador para a resposta de dor (que pode envolver contração muscular, liberação de agentes químicos endógenos, etc), que, por sua vez, é uma condição que estabelece que a resposta de afastar a mão do objeto seja negativamente reforçada. Um indivíduo com analgesia de qualquer origem (congênita, produzida por lesões ou fármacos) não terá a resposta de dor eliciada, o que mudará a previsão de ocorrência da etapa posterior da cadeia comportamental: ele possivelmente continuará tocando o objeto cortante e, consequentemente, terá lesão mais profunda na sua pele. Portanto, modificando-se a primeira resposta da cadeia, o comportamento que segue pode diferir totalmente dadas as mesmas condições de estímulo. Notar, contudo, que essa análise da dor como parte de uma cadeia não lhe confere o status de “causa” do comportamento: ela é uma resposta encoberta que interage com aspectos do ambiente (o objeto cortante, o corte na pele), da mesma forma que a resposta de largar o objeto, que é pública, ocorre dentro dessa interação. Para compreender a dor e os demais comportamentos da cadeia da qual essa resposta faz parte, temos que compreender essas relações entre cada resposta com e antecedentes /consequentes. Comportamento de dor A inacessibilidade direta é a característica que cria as maiores dificuldades para o estudo da dor, bem como para o estudo de todos os sentimentos: independente da perspectiva teórica na qual o estudioso se baseia, estudar um fenômeno ao qual não se tem acesso direto é estar, sempre, correndo o risco de imprecisão. No caso de sujeitos humanos, há os relatos verbais sobre dor (orais, gestuais, fisionômicos, etc.). Porém, por dependerem de aprendizagem verbal, serão sempre permeados pela cultura. Por isso, a relato da dor não pode ser considerado como o equivalente direto do comportamento privado, mas apenas uma suposta descrição dele. Em alguns contextos (por exemplo, terapêuticos), o relato é a única resposta acessível e por isso é ela a avaliada. Apesar de potencialmente útil, não se pode deixar de considerar que a verbalização sobre a dor pode estar sob controle de diferentes variáveis, e com isso a fidedignidade dessa avaliação será sempre relativa. Mesmo com essa limitação, a ciência vem buscando formas de compreender a dor, trazendo grandes contribuições para o bemestar de pessoas e animais. Por exemplo, a identificação de fármacos que diminuem a magnitude da dor (analgésicos e anestésicos) reduziu em grande parte o sofrimento de indivíduos submetidos a dores crônicas ou a cirurgias. Em paralelo à identificação dos processos neurofisiológicos, pesquisados pela fisiologia e farmacologia, os analistas do comportamento vêm demonstrando que a dor pode também ser fruto de aprendizagem, ou seja, de mudanças contínuas e cumulativas que se processam ao longo das interações entre o organismo e o seu ambiente. Como ponto de partida, considera-se que a dor está sujeita aos três níveis de determinação que afetam todo e qualquer comportamento: filogenético, ontogenético e cultural (Skinner, 1966, 1974). Portanto, a dor terá sempre algum componente histórico. Os processos históricos da espécie (filogenéticos) respondem pelas características do organismo que foram selecionadas ao longo da evolução, permitindo aos indivíduos sentirem dor ao terem contato com determinados condições do ambiente (eliciação por estímulos incondicionados). Ao longo da evolução, também foram selecionadas outras características do organismo que permitem ao indivíduo aprender com suas experiências particulares (história 329 ontogenéticas): dentre elas destacam-se a sensibilidade aos pareamentos temporais entre estímulos e a consequência das suas respostas no ambiente. Com isso, estímulos que originalmente não produziam a dor podem passar a eliciá-la, tornando-se estímulos condicionados em função do seu pareamento com outros que já exerciam essa função (incondicionados). Da mesma forma, a depender das suas consequências, a dor pode passar a ser mais ou menos frequente no futuro. Para exemplificarmos esses processos, podemos analisar o que ocorre quando alguém sente dor: num primeiro momento, o indivíduo tenta eliminar, e futuramente buscará evitar, a fonte geradora da dor. Essa aprendizagem de fuga ou esquiva é essencial para que os seres se adaptem ao mundo que os rodeia, aumentando suas chances de sobrevivência. Sem sentir dor, é praticamente impossível a qualquer indivíduo sobreviver: ele não aprenderá a evitar ou fugir dos aspectos daninhos do seu ambiente, sendo grandes as chances de se envolver em situações fatais. Assim, as diferentes formas de dor (que incluem medo, tristeza, entre outros sentimentos “dolorosos”) podem ser benéficas, e sua falta pode dificultar o bem-estar ou mesmo a sobrevivência do indivíduo. Porém, o contrário também é verdadeiro: há dores que podem colocar em risco a sobrevivência de quem a sente. Por exemplo, um tumor pode acarretar dores em magnitudes intensas que impossibilitam ao indivíduo emitir comportamentos tais como trabalhar ou se alimentar. Da mesma forma, a tristeza intensa (depressão) pode levar a pessoa ao suicídio. Portanto, a dor não é boa nem má em si: a depender da sua magnitude, cronicidade e das relações que ela propicia ao indivíduo, ela pode ser benéfica ou muito prejudicial. Um exemplo que ilustra as interações dos vários processos relacionados à dor pode ser retirado de relatos de guerra que descrevem que alguns soldados se ferem voluntariamente, produzindo grandes lesões no seu organismo. Embora a magnitude da dor autoimposta seja grande, esse ferimento terá como conseqüência produzir sua remoção da situação de combate. Assim, sua resposta de dor tem um componente respondente (eliciada pela lesão), mas também um forte componente operante que é eliminar a situação imediata da guerra (fuga) e evitar a probabilidade relativamente alta de morte em combate (esquiva). Na interação entre ambos, 330 predomina, nesse caso, a função reforçadora negativa da dor. Experimentalmente, a dor pode ser analisada no laboratório animal onde é possível isolarmos diversas variáveis que na vida cotidiana perturbam a identificação dos processos subjacentes a ela. Perone (2003) cita um experimento, realizado em 1895 por Scripture que, apesar da tecnologia rudimentar, mostra claramente a relevância da dor para a sobrevivência dos organismos. Numa primeira etapa, sapos foram colocados em vasilhas contendo água com diferentes temperaturas: quando tépida (temperatura ambiente), os sapos permaneciam na água; quando aquecidas, os sapos saltavam imediatamente para fora da vasilha. Esse comportamento de fuga tinha alto valor de sobrevivência uma vez que, dada a sua fisiologia, permanecer imerso em água com altas temperaturas produziria a morte do sapo. Numa segunda etapa do estudo, um sapo foi colocado em uma vasilha com água na temperatura ambiente, mas que tinha uma pequena chama que a aquecia lentamente. O aumento lento e gradual da temperatura da água permitiu ao sapo ir se habituando às condições do banho, de forma que permaneceu na vasilha mesmo quando a temperatura da água foi elevada a ponto de ser fatal. Nesse caso, o processo comportamental de habituação aboliu a função aversiva da alta temperatura da água, de forma que a resposta de fuga, normalmente previsível, não ocorreu. Isso equivale a dizer que esse indivíduo morreu por não ter apresentado a resposta de dor. Destaque-se que o importante desse estudo é a demonstração de que a ausência dessa resposta não se deu em função de manipulações farmacológicas ou neurológicas, mas sim de manipulações no ambiente, ou seja, pela gradação suave da mudança do estímulo térmico. Portanto, se, do ponto de vista fisiológico, diferentes estruturas neurais e agentes químicos devem ser considerados no estudo da dor, para o analista do comportamento o que mais interessa é desvendar os motivos pelos quais indivíduos com estruturas neurofisiológicas aparentemente semelhantes podem reagir de forma tão diferenciada frente aos eventos que causam dor. O estudo anteriormente citado sugere que não basta, para se compreender a dor, que sejam identificados o estímulo doloroso, a sua magnitude e as características do organismo que interage com ele: para se Hunziker, M. H. L. compreender a dor é preciso compreender como essa interação entre o organismo e o ambiente se dá, ou seja, qual é a contingência em vigor. De uma maneira geral, o estudo da dor está inserido no estudo do controle aversivo do comportamento: são analisadas as relações onde a ação do indivíduo produz a inserção de estímulos geradores de desconforto/sofrimento (punição positiva), outras onde sua ação pode evitar ou eliminar algo desagradável (esquiva e fuga, respectivamente) ou, ao contrário, gerar a perda de algo desejável (punição negativa). São também condições geradoras de sofrimento aquelas nas quais o indivíduo não atinge os critérios para reforçamento, outras onde ocorre a interrupção de ganhos ou de situações prazerosas que vinham sendo usufruídas (extinção), e aquelas onde o estímulo aversivo independe de qualquer ação do indivíduo (incontrolabilidade). Por fim, é crítico que aspectos do ambiente pareados a essas condições podem se tornar igualmente desagradáveis ou fontes de sofrimento, ou seja, podem se tornar novos aversivos para o indivíduo. Se todas essas condições podem ser fontes potenciais de dor, e se não há contingência que não envolva ao menos algum desses componentes aversivos (Perone, 2003), isso equivale a dizer que dor, nas suas diferentes nuances, é um sentimento inerente à vida: pode ser minimizada, mas não excluída; pode ser benéfica, necessária à sobrevivência, mas pode também se tornar um problema. O enfrentamento dessas contingências, que pode depender de haver ou não outras alternativas vigentes, vai determinar a qualidade de vida dos indivíduos a elas submetidos. Alguns estudos experimentais com animais mostram como a história individual e as contingências atuais podem mudar a ocorrência da dor. Por exemplo, uma forma de se estudar dor em animais é utilizando o “teste da placa quente”. Nele, avalia-se a latência da resposta de lamber a pata traseira, por ratos, quando são colocados sobre uma placa de metal aquecida a 50º C. A lógica desse teste baseia-se no fato de que essa temperatura de 50º C não é, num primeiro momento, aversiva para ratos: logo no início do contato com a placa quente, os animais farejam e exploram o ambiente onde foram colocados, um comportamento típico da espécie em situações não aversivas. Contudo, na medida em que suas patas ficam em contato com essa superfície aquecida, os animais Comportamento de dor mudam seu comportamento: depois de alguns segundos explorando normalmente o ambiente, eles subitamente emitem a resposta de lamber uma das patas traseiras. Se retirados da placa imediatamente após essa resposta, não sofrem qualquer ferimento ou dano, e a resposta de lamber a pata deixa de ocorrer. Se permanecerem na placa, passam a apresentar, na seqüência temporal, a resposta de lamber a pata com frequência crescente, seguida de saltos, vocalizações e tentativas de fuga desse ambiente (comportamentos típicos de condições aversivas crescentes). Mantidos nessa condição por mais de 90 segundos (tempo limite que se permite a permanência do rato na placa quente), eles sofreriam queimaduras nas patas. Manipulações farmacológicas permitem identificar que esse procedimento permite um acesso indireto à dor: animais que receberam injeção de morfina (substância analgésica) permanecem por longos períodos sobre a placa, explorando normalmente o ambiente, antes de lamber a pata. Esse aumento da latência da resposta é dose-dependente, ou seja, a latência é tanto maior quanto maior for a dose de morfina: os animais que recebem doses elevadas de morfina permanecem, se deixados muito tempo sobre a placa quente, sem lamber a pata ou emitir qualquer das demais respostas típicas desse teste. O que se diz é que, sob o efeito da morfina, os ratos “não sentem dor”. Na verdade, dizer isso não explica o comportamento, mas apenas descreve o fato de que, sob efeito da morfina, a alta temperatura não elicia a resposta de dor que seria o primeiro elo da cadeia comportamental de fuga nessa condição. Na prática, esse teste da placa quente indica que: (1) a temperatura alta sobre a pele é um estímulo aversivo para ratos; (2) a aversividade desse estímulo é cumulativa, dependente do tempo de contato com a pele do sujeito; (3) diferentes respostas de fuga são emitidas em uma sequência temporal, em correlação direta com a magnitude desse estímulo; (4) lamber a pata traseira é a resposta de fuga acessível ao observador externo que está diretamente relacionada ao menor grau de aversividade desse estímulo. Portanto, medir o tempo que o rato demora para lamber a pata é uma das formas que a ciência experimental encontrou para avaliar, em um contexto não verbal, a ocorrência do comportamento privado 331 de dor, possibilitando seu estudo com animais. Em outras palavras, a latência dessa resposta nos dá uma medida indireta do que chamamos de limiar de dor. Utilizando esse teste, Hunziker (1992) demonstrou que o limiar à dor pode ser alterado por uma história de impossibilidade de controle sobre aspectos aversivos do ambiente. Em uma primeira fase, quatro grupos de ratos (n=8) foram manipulados: os sujeitos de dois grupos foram expostos a choques elétricos de 1 mA, 10 segundos de duração fixa, ministrados a intervalos médios de 1 minuto; os demais sujeitos foram colocados na caixa experimental pelo tempo da sessão, porém sem receber choques. O relevante nesse estudo é que os choques (filogeneticamente aversivos para ratos na intensidade utilizada) eram liberados independentemente do comportamento dos animais. Dessa forma, nada do que os sujeitos fizessem poderia mudar a apresentação ou a remoção dos choques, que por isso eram denominados incontroláveis. Terminada a sessão, os animais foram reconduzidos às suas gaiolas viveiro e, 24 horas após, metade foi submetida ao teste de fuga e outra metade ao teste da placa quente. Na contingência de fuga, 30 choques foram liberados em uma caixa de dois compartimentos onde os animais podiam saltar para o compartimento oposto, desligando o choque (fuga). A cada choque era registrado o tempo que os animais demoravam para saltar (latência). A aprendizagem era avaliada pela redução sistemática dessas latências na medida em que os animais se expunham à contingência de reforçamento negativo. A outra metade dos sujeitos foi submetida ao teste da placa quente, sendo medida uma única latência da resposta de lamber a pata traseira. Os resultados mostraram que os animais submetidos aos choques incontroláveis apresentaram latências estatisticamente mais elevadas, tanto na fuga aos choques como na placa quente. Portanto, a história de incontrolabilidade não apenas dificultou a aprendizagem de fuga como também aumentou o limiar à dor. Na continuidade desse estudo, Hunziker (1992) também demonstrou que essa modificação do comportamento de dor estava relacionada a modificações no sistema de endorfinas (opiáceos endógenos) desses sujeitos, e que tais modificações neuroquímicas eram função da história de impossibilidade de controle sobre aspectos aversivos do ambiente. 332 Os dados mostraram que os animais injetados com salina ou naloxona (um bloqueador de receptor opiáceo) 1 hora antes do teste na placa quente, mostraram latências diferenciadas: dentre os animais expostos aos choques incontroláveis, os injetados com salina apresentaram o dobro de latência (cerca de 30 segundos) do que os do mesmo grupo tratados com naloxona, que mostram latências semelhantes aos dos animais não expostos previamente a choques (15 segundos, em média). Esses dados sugerem que uma história de incontrolabilidade sobre choques elétricos produz, no nível diretamente observável, tanto analgesia, como déficit de aprendizagem de fuga e, no nível encoberto, alterações no sistema opioide. Portanto, tais resultados fortalecem a proposta de que a dor se equipara a outros comportamentos diretamente observáveis no que diz respeito à sua dependência da ontogenia, em adição aos determinantes filogenéticos. Esse estudo soma-se a outros que demonstraram que a incontrolabilidade de estímulos aversivos produz muitas alterações nos organismos, sendo o déficit de aprendizagem operante, denominado “desamparo aprendido, o efeito mais difundido (Hunziker, 2005; Maier & Seligman, 1976). Se consideramos que o desamparo aprendido é um modelo animal de depressão (Seligman, 1975; Willner, 1984), teremos como possibilidade de análise o fato de que as dores convencionalmente separadas como “do corpo” ou “da alma” – tal como a dor eliciada pelo choque elétrico ou a decorrente da falta de reforço (depressão, segundo Ferster, 1973) podem ser frutos de processos comparáveis entre si: , a “dor da alma” é tão química quanto a produzida por um estímulo térmico, confirmando o pressuposto filosófico monista, próprio do behaviorismo radical (Skinner, 1974). Estudos com animais possibilitam também investigar a interação entre determinantes filo e ontogenéticos da dor. Por exemplo, Capelari, Franceschini e Hunziker (2006) manipularam choques elétricos e a temperatura na placa quente, analisando a aprendizagem de fuga e a analgesia como função de variáveis ontogenéticas (história de incontrolabilidade) e filogenéticas. Essas últimas envolveram ratos de diferentes linhagens (Wistar ou SpragueDawley) ou cepas (Wistar provenientes de Hunziker, M. H. L. diferentes biotérios, aqui denominados como A, B, C e D). Como nos trabalhos citados anteriormente, frente ao choque foi avaliada a aprendizagem de fuga, e no teste da placa quente, a latência da resposta de lamber a pata traseira. Os resultados mostraram diferenças significantes em função da linhagem, cepa e história de controle sobre os choques. Nos testes de fuga, todos os animais Wistar apresentaram o efeito típico de desamparo aprendido (déficit de aprendizagem de fuga se previamente expostos a choques incontroláveis), mas apenas os ratos do biotério C não aprenderam fuga sem terem história prévia de incontrolabilidade; diferentemente, todos os ratos Sprague-Dawley aprenderam fuga, mesmo aqueles previamente expostos a choques incontroláveis. No teste da placa quente, ratos de diferentes linhagens e cepas mostraram limiares diferenciados ao estímulo doloroso: mesmo sem exposição prévia a choques, os animais Spprague-Dawley tiveram latência média de 15 segundos para lamber a pata, os Wistar B demoraram 90 segundos, e os demais mostraram latências intermediárias. Apesar de não ser obtida nenhuma correlação entre aprendizagem de fuga e analgesia, esses dados confirmaram que a dor é determinada tanto por fatores filogenéticos, como ontogenéticos. Essa conclusão vale tanto para a dor convencionalmente considerada “física”, proveniente de um estímulo específico que causa injúria ao organismo, como para a dor tida como “psicológica”, tal como a proveniente da impossibilidade do indivíduo controlar aspectos aversivos do seu ambiente, condição apontada como crítica para alguns casos de depressão humana (Seligman, 1975). Resumindo, a dor é um fenômeno complexo, multideterminado, sendo necessária a junção de diferentes ciências para a sua compreensão mais ampla. Nesse intercâmbio científico, a Análise do Comportamento colabora destacando as diferentes relações que podem se estabelecer entre o organismo e o seu ambiente, o que pode gerar processos de aprendizagem que se relacionam diretamente com a resposta de dor. O estudo da dor como comportamento soma, portanto, variáveis de contingências ambientais, presentes ou históricas, às variáveis neufisiológicas que tradicionalmente são pesquisadas nesses estudos. Sugere-se que o intercâmbio entre profissionais de diferentes áreas da ciência, Comportamento de dor 333 interessados no tema, seja a estratégia necessária para novos avanços nessa área de conhecimento. Michael, J. (2000). Implications and refinements of the establishing operation concept. Journal of Applied Behavior Analysis, 33, 401-410 Referências Perone, M. (2003). Negative effects of positive reinforcement. The Behavior Analyst, 26, 114. Capelari, A., Franceschini, A. C. T., & Hunziker, M. H. L. (2006). O controle aversivo do comportamento como função da linhagem de ratos. Resumos da XXXVI Reunião Anual de Psicologia, da Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental (p. 87), Salvador (BA). Catania, A. C. (1999). Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição (4ª ed.). Porto Alegre: ARTMED. (Originalmente publicado em 1998). Donahoe, J. W., & Palmer, D. C. (1994). Learning and Complex Behavior. Boston: Allyn and Bacon. Ferster, C. B. (1973). A functional analysis of depression. American Psychologist, 28, 857870. Hunziker, M. H. L. (1992). Opioid nature of learned helplessness and stress-induced analgesia without reexposure to shock. Behavioural Pharmacology, 3, 117-121. Hunziker, M. H. L. (2005). O desamparo aprendido revisitado: estudos com animais. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(2), 131139. Maier, S. F., & Seligman. M. 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