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Sobre a Significação Simbólica em Música

2015, Anais do XI Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais - SIMCAM 11

apontamentos sobre os modos de construção de significação em música. Inicialmente, consideram-se os significados incorporado e designativo (Meyer, 1956) que ocorrem na dependência de estruturas musicais. São apresentadas duas proposições teóricas que buscaram explicar esses mecanismos: emotivismo e cognitivismo. A seguir, analisa-se o significado simbólico, discutido como tipo de significação essencialmente convencional que pode ocorrer prescindindo-se das estruturas musicais.

XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário Sobre a significação simbólica em música Ferreira Corrêa,Simbólica Marise Gloria Barbosa Sobre aAntenor Significação em Música Antenor Ferreira Corrêa Universidade de Brasília [email protected] Marise Gloria Barbosa Universidade de Brasília [email protected] Resumo: apontamentos sobre os modos de construção de significação em música. Inicialmente, consideram-se os significados incorporado e designativo (Meyer, 1956) que ocorrem na dependência de estruturas musicais. São apresentadas duas proposições teóricas que buscaram explicar esses mecanismos: emotivismo e cognitivismo. A seguir, analisa-se o significado simbólico, discutido como tipo de significação essencialmente convencional que pode ocorrer prescindindo-se das estruturas musicais. Palavras-chave: significação musical, significado simbólico, significado incorporado, significado designativo. On the Symbolic Meaning in Music Abstract: considerations about the process of meaning in music. First, I present the types of meanings that depends on musical structures: embodied and designative meanings (Meyer, 1956). Two theoretical proposals are also offered: emotivism and cognitivism. Following, I discuss about symbolic meaning, here considered as essentially conventional meaning, which, therefore, can occur independently of musical structures. Key-words: musical meaning, symbolic meaning, embodied meaning, designative meaning. Introdução Significação musical tem sido um tema central para as disciplinas Estética e Filosofia da Música – se é que estas podem ser consideradas em separado. Estes campos de reflexão, por sua vez, normalmente buscam o auxílio de outras áreas do conhecimento, como física acústica, psicologia, antropologia, sociologia e, desde cerca de 60 anos, das ciências da cognição. Trabalhos pioneiros como os de Leonard Meyer e daqueles que viriam a formar o campo da musicologia cognitiva, como Hugh C. Longuet-Higgins e Otto Laske, abriram a possibilidade para o diálogo estreito e fundamentado entre estética e cognição musical (estética compreendida em sua acepção mais ampla, envolvendo, assim, tudo o que se refere à recepção da obra musical). É possível observar que diversos estudos a respeito da compreensão e expressão musical constituem-se, na verdade, como investigações sobre significação em música. Peter Kivy, por exemplo, em The Corded Shell (1980) afirma que seu objetivo nesse livro é propor uma teoria para a expressão musical. Não obstante, ao longo do texto, trabalha com questões ligadas ao perfil de passagens musicais e dos mecanismos que possibilitam a percepção e a Resumos das Comunicações de Pesquisa 399 XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário compreensão desses perfis, defendendo a teoria cognitivista para fundamentar suas ilações. Porém, as considerações sobre a compreensão musical são direcionadas com intuito de extrair o significado das músicas por ele analisadas (se sugerem tristeza ou alegria, por exemplo), o que implica, portanto, tratar do processo de significação. Stephen Davies (1994), por sua vez, parece abordar o assunto “compreensão musical” ao comentar que podemos, por vezes, ficar perplexos frente a pessoas que não possuem o menor entendimento musical. Todavia, ao longo de seu livro lida sobretudo com questões do tipo: “o que a música significa?” e “como ela significa?”. Essas são algumas das situações que ilustram como muitas vezes o tópico “significação” aparece envolto, contemplado, ou mesmo ocupando posição central, em discussões aparentemente direcionadas a outros conteúdos. A questão da significação em música tem sido considerada por duas vertentes que, adotando a nomenclatura sugerida por Meyer (1956), podem ser denominadas como significados incorporado e designativo. Outros autores propõem distintas terminologias para estes tipos de significação. Lucy Green (2012), seguindo Meyer, usa os termos intrínseco e delineado. Quando abordada em relação à posição dos elementos responsáveis por viabilizar a significação, isto é, as estruturas internas ou externas à música, os pares opositores nas referidas vertentes do significado podem ser: estrutural e conotativo, ou sintático e semântico. Essas denominações acabam por evidenciar as estratégias investigativas por meio dos quais o problema da significação em música tem sido acercado, a saber, a partir do sujeito (psicológico, subjetivo) ou a partir das estruturas formais da música (analítica, da lógica formal). Não obstante, permeando esta discussão, que parece refletir o embate entre as posições formalista versus referencialista, há também toda a tradição da antropologia cultural que afirma a precedência da cultura na construção do significado musical. Essa situação poderia ser resumida na questão: a construção da significação em música ocorre em função das estruturas sonoras postas em jogo no discurso musical ou é resultado de negociações intersubjetivas nos diversos contextos culturais onde os indivíduos formaram seu aprendizado? Em termos favoráveis à compreensão do significado musical como constructo cultural, o sociólogo Peter J. Martin aponta que “os significados da música não são inerentes nem reconhecidos intuitivamente, mas emergem e tornam-se estabelecidos (ou transformados, ou esquecidos) em consequência das atividades de grupos de pessoas nos contextos culturais Resumos das Comunicações de Pesquisa 400 XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário particulares. O modo como ‘criamos sentido’ na música não é inato, mas depende da nossa aquisição de senso comum, das ideias admitidas sobre como ela deve soar” (Martin, 1995, p. 57). A musicologia sistemática, por sua vez, legou toda a tradição metodológica por meio da qual se pode entender que a percepção de determinadas emoções é facultada pelas propriedades objetivas das estruturas musicais. Nesse sentido, perceber determinada passagem musical como triste, alegre ou misteriosa, se dá somente porque ritmos, frases, harmonias, texturas, andamento e tonalidade, entre outras, viabilizam o estabelecimento dessas percepções. Justamente por conta dessa propriedade estrutural, uma passagem de caráter heroico não será confundida como possuindo um caráter fúnebre. A primeira parte do segundo movimento da sétima sinfonia de Beethoven poderá até ser entendida como representando melancolia, perda de um amor, ou desolação, mas não será descrita como expressiva de contentamento ou festividade. Todavia, há uma notável mudança de caráter na segunda parte desse movimento, cujos sentimentos poderão ser percebidos como esperança ou renovação, porém, é pouquíssimo provável que estes sejam interpretados como tenebroso ou ameaçador. No âmbito da psicologia cognitiva, duas escolas divergentes constituíram-se de modo a intentar explicar o funcionamento da mente na construção do significado. O computacionismo buscou essa compreensão postulando que o cérebro funcionaria como espécie de máquina, constituída de um conjunto estabelecido de procedimentos para processar os estímulos captados pelos sentidos. O culturalismo, por seu turno, afirma que a mente é constituída culturalmente. Desse modo, estabeleceu-se um antagonismo histórico entre duas correntes teóricas cuja principal diferença encontra-se na precedência que atribuem aos aspectos inatos ou àqueles provenientes do aprendizado. Meyer referiu-se a essa questão nestes termos: “para explicar porquê os seres humanos, em alguns contextos histórico-culturais reais, pensam, respondem e escolhem como proceder, é necessário distinguir quais facetas do comportamento humano são aprendidas e variáveis daquelas que são inatas e universais” (Meyer, 1998, p.5). No campo mais específico da música, duas teorias também têm sido, geralmente, evocadas para explicar o processo de percepção e construção do significado, são elas a teoria da excitação e a teoria cognitivista. A teoria da excitação (arousal theory), também denominada de emotivismo, sugere que a percepção de determinado sentimento durante a Resumos das Comunicações de Pesquisa 401 XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário audição musical se dá pelo fato da música excitar esses sentimentos no ouvinte. Ou seja, a música já possui como característica aquele sentimento que estimula no fruidor. O cognitivismo, por sua vez, lida com semelhanças e com recordações. Segundo essa teoria, a música será percebida como possuidora de determinado sentimento (triste, alegre, sombrio, etc.) se ela assemelhar-se, possuir o perfil ou relembrar situações que apresentem similaridades com esses sentimentos. As imagens da Figura 1 exemplificam de modo direto essa teoria. Pode-se facilmente identificar que a casa está sorrindo, enquanto a bandeira do Brasil, na charge do cartunista Izânio, está chorando. Obviamente, objetos inanimados não podem sorrir, chorar ou sentir, mas nos desenhos eles possuem traços característicos que nos fazem recordar e associar os objetos a esses sentimentos. Isso se dá pelo hábito que temos em antropomorfizar objetos, utensílios, animais e vegetais. Talvez por conta dessa característica identifiquemos como música os sons do galo e dos pássaros, e percebamos tristeza nos ramos do salgueiro. Figura 1: imagens de objetos inanimados representando sentimentos (fonte: http:// izaniocharges.blogspot.com.br/) Emotivismo e cognitivismo, ao fim, também acabam por incorporar o cerne da discussão culturalismo versus inativismo ao postularem a maneira como, em tese, ocorreria a construção do significado. No cognitivismo poder-se-ia inquirir se a percepção e o reconhecimento dos traços indicativos dos atributos emotivos se dá na dependência da capacidade cerebral (discriminamos e processamos somente em função do que está facultado pela arquitetura do cérebro) ou se identificamos em razão daquilo que fomos instruídos pelo grupo cultural a que pertencemos a reconhecer como emoções. No emotivismo questões similares seriam: a música nos afeta porque somos biologicamente programados para ser afetados ou porque somos condicionados pelo contexto social em que nosso aprendizado Resumos das Comunicações de Pesquisa 402 XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário ocorreu? As mesmas questões valem para a divergência apresentada no início pelas posições estruturalista e subjetivista. São as estruturas sonoras que promovem a percepção de determinados significados ou é o sujeito que projeta seus próprios significados, frutos de aprendizado cultural, na obra musical? Essas teorias diferenciam-se, portanto, por explicarem o processo de significação como sendo constituído culturalmente ou estruturalmente (intrínseco à sintaxe e às estruturas sonoras da obra). Nicholas Cook (2001, p.177) usa a interessante metáfora de Cila e Caríbdis, extraída da mitologia grega e perpetuada por Homero na Odisseia, para ilustrar essa situação de embate existente no estudo da significação em música. Cila e Caríbdis eram monstros que viviam nos extremos de um canal oceânico, de modo que os navegadores ao tentarem evitar um destes, acabavam por ser devorados pelo outro. A figura de linguagem utilizada por Cook: “entre Cila e Caríbdis”, significa, assim, "estar entre dois perigos" e não importa a escolha feita para tentar superá-los, pois sempre implicará em danos. No entanto, Cook nota que “não há, em princípio, qualquer razão pela qual o significado musical não possa ser ao mesmo tempo culturalmente construído e condicionado por estruturas formais (idem, p.176). Outros autores compartilham dessa posição, entendendo como inseparáveis essas esferas cognitivas, pois características inatas são projetadas na cultura, que por sua vez, na medida em que se desenvolvem, influenciam o pensamento individual. Jerome Bruner, por exemplo, afirma que o fenômeno complexo que tão irrefletidamente chamamos de “cultura” parece impor restrições sobre como a mente funciona e até mesmo sobre os tipos de problemas que somos capazes de resolver. Mesmo um processo psicológico tão primário quanto a generalização (...) é regulado por interpretações do significado culturalmente apoiadas, e não pelo acionamento de um sistema nervoso individual. (apud Correia, 2003, p.508). Essa imbricação e/ou simbiose entre o cultural e o genético parece estar se consolidando entre os teóricos modernos. Judith Becker (fundamentada em autores das ciências cognitivas e sociais, como Maturana e Bordieu) propõe nova definição de cultura como sendo um “fenômeno biológico supra individual, uma história transgeracional das interações sociais que se tornaram incorporadas no individual e transmitidas através de ações futuras” (Becker, 2001, p.154). A autora entende aspectos sociais no âmbito biológico porque certos hábitos (como respostas emocionais a estímulos externos) são gerados, processados e armazenados no cérebro. Dessa maneira, o cultural incorpora-se ao biológico e é transmitido geneticamentei. Resumos das Comunicações de Pesquisa 403 XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário Sumarizando as considerações anteriores sobre o significado em música, é possível entender que tanto o significado incorporado quanto o designativo ocorrem na dependência das estruturas musicais. O significado incorporado se dá por conta dos objetos musicais presentes na composição e pela função que desempenham no discurso musical, que é regida por uma sintaxe própria. Essas estruturas impingem e gerenciam possibilidades de construção de sentidos (como comentado antes sobre a 7ª Sinfonia de Beethoven). O significado designativo é viabilizado pelas homologias estruturais, pela possibilidade metafórica ou conotativa que oferecem. Desse modo, os significados podem ser construídos socialmente, porém, são suscitados e restritos pelas possibilidades oferecidas pelos objetos musicais. Há, no entanto, um outro tipo de significação que pode ocorrer na independência das estruturas musicais, trata-se do significado simbólico, discutido a seguir. O Significado Simbólico Um símbolo é essencialmente um constructo convencional. Lang esclarece que “o significado simbólico resulta de um processo cognitivo por meio do qual um objeto adquire uma conotação além de seu uso instrumental” (apud Nasar, 1989, p.238). A foice e o martelo possuem um significado direto quando ligados a sua aplicação prática, ou seja, como ferramentas de trabalho manual e, portanto, particulares. Justamente, por esta ligação ao uso pessoal, foram adotadas como símbolos do comunismo, em oposição ao capitalismo industrializado, onde fábricas e corporações tomam o lugar do trabalhador. Desse modo, foice e martelo adquirem o símbolo dessa dicotomia entre as sociedades constituídas pela individualidade do homem, com seus objetos e ferramentas pessoais, e as sociedades capitalistas, na qual o trabalhador é subsumido, ou mesmo tende a desaparecer, no contexto industrial da produção (e consumo) em massa. Outro significado simbólico que pode ser inferido desses mesmos objetos é a união entre as esferas rurais (foice) e urbana (martelo) estabelecendo um elo emblemático entre o operário das cidades e os camponeses. A mesma foice é também o objeto associado à morte. Na mitologia grega, de acordo com a Teogonia de Hesíodo, a morte é personificada por Thanatos, filho de Nyx (noite) e de Erebos (escuridão). Thanatos é também irmão gêmeo de Hypnos (sono). Diversas culturas referem-se à existência da figura do ceifador como o anjo da morte, o que fez com que a foice fosse o objeto associado à morte. Nesses exemplos, tem-se o mesmo objeto, a foice, que possui um uso Resumos das Comunicações de Pesquisa 404 XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário primeiramente pragmático, mas que é também ressignificado ao ser investido de outros sentidos, como símbolo do trabalhador rural ou mesmo da morte. É fácil perceber que esses significados não estão na ferramenta foice, mas são atribuídos pelas pessoas e passam a integrar o objeto por meio dessa convenção social. Entretanto, é preciso notar que convenção não implica em arbitrariedade, pois não é qualquer coisa que pode constituir-se como um símbolo, pois o objeto deve possuir alguma característica que permita ser referenciada àquilo que irá simbolizar. No caso da morte, compreende-se a associação óbvia com a foice, já que esta ferramenta é usada para ceifar os vegetais, que, por sua vez, definham após serem cortados de suas raízes. No caso da música, há uma gama inumerável de diferentes significados simbólicos atribuídos para as mais diversas situações. Os instrumentos musicais também se constituem como objetos simbólicos. No âmbito da etnomusicologia, por exemplo, pesquisadores notaram que o tambor é tido como espécie de mensageiro, com capacidade de comunicar-se não só com pessoas, mas também com deidades supranaturais. Rodney Needham, após pesquisa de campo em diversos contextos culturais, concluiu que “existe alguma conexão universal entre percussão e transição na vida social” (apud Vogt, 1997, p.233). Outros autores ao buscarem resposta para o quase ubíquo uso da percussão, sobretudo quando se trata de culturas tradicionais, chegaram a sugerir uma hipótese neuro-fisiológica, como Neher que em 1962 apresentou evidências de experimentos conduzidos em laboratório comprovando que “a percussão nos tambores, especialmente quando produzidas com um ritmo próximo da frequência da onda cerebral [do tipo] alfa, ou seja, de sete a nove ciclos por segundo, possui um forte efeito fisiológico sobre o cérebro humano e pode induzir aos contundentes estados psicológicos notados em rituais xamânicos” (apud Vogt, 1997, p.233). Vogt, em suas pesquisas de campo durante a festividade do povo Zinacanteco no México, coletou resultados que corroboram a ideia de “transição”. Ele observou que “os tambores e flautas tocam especialmente quando os ritualistas estão em procissão de um local sacro para outro” (1997, p.239). Com esse procedimento, tem se a impressão de que os tambores acompanham um tempo universal, e a procissão adquire um significado simbólico ao representar a viagem do sol. Todos os demais procedimentos envolvidos nesta festa possuem significados simbólicos. O tambor é carregado às costas do percussionista, sustentado por um talabarte, “do mesmo modo que as antigas deidades Maias foram retratadas Resumos das Comunicações de Pesquisa 405 XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário carregando o fardo do ano” (idem, p.239). O tambor sagrado usado nesta festa, denominado T’ENT’EN, é exclusivo e possui um caráter divino, permanece guardado o ano todo, e somente alguns têm acesso a ele, não sendo permitido fotografá-lo. Para Vogt, o fato deste instrumento somente ser utilizado na Festa de San Sebastian, que ocorre depois do solstício de inverno, seguido imediatamente pela cerimônia do primeiro dia do ano, sugere que o “tambor incorpora, acima de tudo, o símbolo da chegada do Ano Novo. Consequentemente, poderia ser aventado que os sons percussivos do T’ENT’EN estão claramente conectados com a transição mais importante do ano em Zinacantan, como ocorre na cerimônia de San Sebastian, que ajuda a persuadir o Sol a sair do sul e regressar ao norte” (Vogt, 1997, p.239). O que há na organologia do tambor que permite essas associações simbólicas? Uma aproximação poderia ser tentada pela similaridade indicial que o som do tambor apresenta com o som do trovão. Todavia, no caso em questão, o tambor T’ENT’EN é um instrumento pequeno, cujo som está muito distante (ou nada parecido) do som do trovão. Há no Brasil a tradição associada ao catolicismo da celebração do Divino Espírito Santo. Os Festejos do Divino no Maranhão têm muita notoriedade e atraem um grande número de turistas. Neste estado, o culto é também realizado em terreiros de Candomblé, Tambor de Mina e Umbanda, evidenciando a marca do sincretismo religioso brasileiro. As comemorações do Divino são organizadas por pessoas chamadas de festeiros, que podem ser pais de santo ou pessoas (re)conhecidas da comunidade e escolhidas por seus próprios membros. As Caixeiras do Divino são convidadas pelos festeiros para conduzirem o culto nessa festividade. A celebração é complexa e envolve uma série de etapas e ritos (sacros e profanos), como levantamento do mastro, constituição do império, cerimônia de Passamento das Posses, o ósculo na Pomba do Divino, Missa, entre outros. O culto ao Divino Espírito Santo é realizado em outros estados do Brasil e também em outros países. Todavia, o aspecto mais característico e diferencial dessa festa no Maranhão se apresenta no fato de que a celebração é conduzida pelas Caixeiras do Divinoii, isto é, mulheres que cantam e tocam os tambores (de fabricação artesanal) chamados de Caixas, e que por exercerem essa função adquiriram o estatuto de Sacerdotizas. É interessante identificar o que essas caixeiras pensam a respeito de seu papel nessa celebração para se entender o porquê de certos significados atribuídos por elas e por membros da comunidade a essa tradição. Os grupos de Caixeiras costumam se definir pelo conjunto que Resumos das Comunicações de Pesquisa 406 XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário toca em uma festa, não sendo necessário, portanto, que possuam alguma relação de parentesco ou amizade pretérita – por vezes, caixeiras viajam entre cidades para tocar nas festas. Porém, o encontro durante as celebrações estabelece novas relações sociais, construindo intimidade, companheirismo, amizade, criação de irmandades e, possivelmente, convites para atuarem em outras festas. Não obstante, o grupo de Caixeiras é estruturado segundo algumas hierarquias, uma dessas são as figuras da Caixeira Régia e da Caixeira-Mór, mulheres mais experientes que conhecem profundamente não somente os toques e cantigas, mas também toda a exegese da celebração e por isso são encarregadas da preservação e transmissão oral desse conhecimento para as demais Caixeiras. O tambor da Caixeira Régia é de certa forma exclusivo, ela não o empresta e somente ela pode tocá-lo. Em Casas de Culto, as caixas passam por um ritual de preparação (benção) antes de serem tocadas nas festas, todavia, esses rituais são restritos aos membros da Casa. Costumeiramente, as Caixeiras estabelecem uma relação de identidade com o seu instrumento. A pesquisadora Marise Barbosa relata ter presenciado uma cena que descreve o estatuto atribuído por uma caixeira ao seu instrumento e, por conseguinte, ao modo como entende sua função na celebração. Ao chegar a uma festa acompanhando a Caixeira Régia da Casa, notaram que a porta principal do local estava fechada, pois estavam ainda preparando a Tribuna e os Tronos para o festejo. A Caixeira, então, bateu à porta demandando: “abram esta porta! Minha Caixa não entra pela porta dos fundos!”. Diversos testemunhos de Caixeiras atestam a ancestralidade africana atribuída a essa tradição. Observem-se, por exemplo, os depoimentos a seguir (Barbosa, 2006): Repara que quando a gente canta Alvorada dentro daquele salão, aquilo faz um silêncio! Aquilo é daquelas pretadas velhas, antigas, escravas! Isso é do tempo da escravatura! E nesse tempo, era elas era quem mandava nessa festa. Era elas e os home! Aqueles preto escravo, tudo era quem sabia tocar, era quem tirava esses cântico, esses toque, eles era quem fazia. Por uma dessa, é que hoje em S. Luís não tem um toque igual o nosso e nem o nosso é igual ao deles! Olha, eu conheci bem umas 20 Caixeiras velhas, aquelas pretonas velhas, antigas tocando Caixa! As roupas eram bem por aqui assim...(aponta para a metade da perna, indicando que eram roupas compridas), aquelas saionas (amplia as mãos ao redor dos quadris para mostrar amplidão)! Isto delas aqui, (aponta o próprio pescoço) era cheio daquelas vorta, aqueles colarzão! As blusa era só aqueles rendão! No primeiro relato, é claro o significado compreendido nas palavras da Caixeira de Alcântara ao revelar a herança africana presente em sua prática, e assim, também entender-se como detentora e perpetuadora dessa tradição. Na segunda descrição, feita por Dona Resumos das Comunicações de Pesquisa 407 XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário Margarida, ela constrói a imagem de mulheres vestindo blusas com golas em rendas longas, muitos colares e saias amplas e compridas, remetendo à imagem da preta mina, isto é, mulheres negras vindas da Costa da Mina, região do Golfo do Benim no continente Africano. Desse modo, atesta-se o pertencimento a essa linhagem afro, conferindo dignidade à sua presença, pois Mina traduz uma descendência histórica presente no Maranhão. Essa é uma compreensão derivada do fato de que uma grande quantidade de africanos e africanas escravizados e levados para o Maranhão pertenciam a povos que viviam próximos ao litoral e foram embarcados no porto de São Jorge da Mina, ou ainda que vivessem longe dali, foram levados de seus territórios até os portos da Costa da Mina. Não obstante esse tipo de testemunhos e entendimentos, uma análise da música realizada pelas Caixeiras não irá mostrar características estruturais que permitam atestar essa raiz africana. Exceto pelo fato de se tratar de uma música percussiva, acompanhada por tambores, não se notam elementos típicos da música africana (Cf: Miller & Shahriari, 2006) como polirritmias ou de padrões rítmicos de referência – também chamados de time line pattern por Kubik (1981) ou mesmo clave. Paralelamente, os textos dos cantos seguem métricas e quadratura convencionais de estrofes constituídas de 4 frases. O que permite, portanto, às Caixeiras, e aos outros membros do contexto sociocultural que compartilham, compreender sua tradição no âmbito dos legados africanos são negociações, acordos e convenções, que por sua vez encarregam-se de engendrar os significados simbólicos atrelados a essa prática. O significado simbólico gera, assim, um mecanismo de retroalimentação, ao estabelecer um corpus de “entendimentos” que afetará o significado a ser construído sobre essa tradição, perpetuada na oralidade popular e, posteriormente, reintegrada a esse corpus. Referências Barbosa, Marise (2006). Umas Mulheres que Dão no Couro. São Paulo: Empório de Produções e Comunicação. Cook, Nicholas (2001). Theorizing Musical Meaning. Music Theory Spectrum, Vol. 23, No. 2, p.170-195. Extraído de www.jstor.org/stable/10.1525/mts.2001.23.2.170 Correia, Monica F. B. (2003). A constituição Social da Mente: (re)descobrindo Jerome Bruner e construção de significados. Estudos de Psicologia, Vol. 8, N.3. Natal. Extraído de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2003000300018 Davies, Stephen. (1994). Musical Meaning and Expression. Ithaca: Cornell University Press. Resumos das Comunicações de Pesquisa 408 XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais Sumário Green, Lucy (2012). Ensino da Música popular em si, para si mesma e para “outra” música: uma pesquisa atual em sala de aula. Tradução Flavia M. Narita. In: Revista da ABEM, Vol. 20, N.28, Londrina, p.61-80. Kivy, Peter (1980). The Corded Shell. Princeton: Princeton University Press. Kubik, Gerhard (1981). African Music. In: Cultural Atlas of Africa. Oxford: Oxford University Press, p. 90-93. Martin, P. J. (1995). Sounds and society. Themes in the sociology of music. Manchester: Manchester University. Meyer, Leonard (1956). Emotion and Meaning in Music. Chicago: University of Chicago Press. _______ (1998). A Universe of Universals. The Journal of Musicology, Vol. 16, No. 1, pp. 3-25. California: University of California Press. Extraído de: http://www.jstor.org/stable/ 764076 Miller, Terry E. & Shahriari, Andrew (2006). World Music: A Global Journey. New York, Routledge. Nasar, (1989). Symbolic Meaning of House Styles. In: Environment and Behavior, Vol, I, May, 1989, pp.235-257. Extraído de: http://facweb.knowlton.ohiostate.edu/jnasar/crpinfo/ research/Symbolic_MeaningLE&B_1989.pdf Vogt, Evon Z. (1997). On the Symbolic Meaning of Percussion in Zinacanteco Ritual. Journal Of Anthropological Research, Vol. 33 No. 3, p.231-244. Extraído de: http://www.jstor.org/stable/pdfplus/10.2307/3630006.pdf?acceptTC=true i A transmissão genética de aspectos culturais já foi, inclusive, observada em grupos de macacos-prego (Cebus apella libidinosus). Cf: Antonio Christian de Moura www.agencia.fapesp.br/boletim_dentro.php?id=6947 ii Para uma descrição etnográfica detalhada sobre as festividades do Divino, bem como o papel das Caixeiras do Divino no Maranhão ver: Barbosa, Marise (2006). Resumos das Comunicações de Pesquisa 409