XI SIMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais
Sumário
Sobre a significação simbólica em música
Ferreira Corrêa,Simbólica
Marise Gloria Barbosa
Sobre aAntenor
Significação
em Música
Antenor Ferreira Corrêa
Universidade de Brasília
[email protected]
Marise Gloria Barbosa
Universidade de Brasília
[email protected]
Resumo: apontamentos sobre os modos de construção de significação em música. Inicialmente,
consideram-se os significados incorporado e designativo (Meyer, 1956) que ocorrem na
dependência de estruturas musicais. São apresentadas duas proposições teóricas que buscaram
explicar esses mecanismos: emotivismo e cognitivismo. A seguir, analisa-se o significado
simbólico, discutido como tipo de significação essencialmente convencional que pode ocorrer
prescindindo-se das estruturas musicais.
Palavras-chave: significação musical, significado simbólico, significado incorporado, significado
designativo.
On the Symbolic Meaning in Music
Abstract: considerations about the process of meaning in music. First, I present the types of
meanings that depends on musical structures: embodied and designative meanings (Meyer, 1956).
Two theoretical proposals are also offered: emotivism and cognitivism. Following, I discuss about
symbolic meaning, here considered as essentially conventional meaning, which, therefore, can
occur independently of musical structures.
Key-words: musical meaning, symbolic meaning, embodied meaning, designative meaning.
Introdução
Significação musical tem sido um tema central para as disciplinas Estética e Filosofia
da Música – se é que estas podem ser consideradas em separado. Estes campos de reflexão,
por sua vez, normalmente buscam o auxílio de outras áreas do conhecimento, como física
acústica, psicologia, antropologia, sociologia e, desde cerca de 60 anos, das ciências da
cognição. Trabalhos pioneiros como os de Leonard Meyer e daqueles que viriam a formar o
campo da musicologia cognitiva, como Hugh C. Longuet-Higgins e Otto Laske, abriram a
possibilidade para o diálogo estreito e fundamentado entre estética e cognição musical
(estética compreendida em sua acepção mais ampla, envolvendo, assim, tudo o que se refere à
recepção da obra musical).
É possível observar que diversos estudos a respeito da compreensão e expressão
musical constituem-se, na verdade, como investigações sobre significação em música. Peter
Kivy, por exemplo, em The Corded Shell (1980) afirma que seu objetivo nesse livro é propor
uma teoria para a expressão musical. Não obstante, ao longo do texto, trabalha com questões
ligadas ao perfil de passagens musicais e dos mecanismos que possibilitam a percepção e a
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compreensão desses perfis, defendendo a teoria cognitivista para fundamentar suas ilações.
Porém, as considerações sobre a compreensão musical são direcionadas com intuito de extrair
o significado das músicas por ele analisadas (se sugerem tristeza ou alegria, por exemplo), o
que implica, portanto, tratar do processo de significação. Stephen Davies (1994), por sua vez,
parece abordar o assunto “compreensão musical” ao comentar que podemos, por vezes, ficar
perplexos frente a pessoas que não possuem o menor entendimento musical. Todavia, ao
longo de seu livro lida sobretudo com questões do tipo: “o que a música significa?” e “como
ela significa?”. Essas são algumas das situações que ilustram como muitas vezes o tópico
“significação” aparece envolto, contemplado, ou mesmo ocupando posição central, em
discussões aparentemente direcionadas a outros conteúdos.
A questão da significação em música tem sido considerada por duas vertentes que,
adotando a nomenclatura sugerida por Meyer (1956), podem ser denominadas como
significados incorporado e designativo. Outros autores propõem distintas terminologias para
estes tipos de significação. Lucy Green (2012), seguindo Meyer, usa os termos intrínseco e
delineado. Quando abordada em relação à posição dos elementos responsáveis por viabilizar a
significação, isto é, as estruturas internas ou externas à música, os pares opositores nas
referidas vertentes do significado podem ser: estrutural e conotativo, ou sintático e semântico.
Essas denominações acabam por evidenciar as estratégias investigativas por meio dos quais o
problema da significação em música tem sido acercado, a saber, a partir do sujeito
(psicológico, subjetivo) ou a partir das estruturas formais da música (analítica, da lógica
formal). Não obstante, permeando esta discussão, que parece refletir o embate entre as
posições formalista versus referencialista, há também toda a tradição da antropologia cultural
que afirma a precedência da cultura na construção do significado musical. Essa situação
poderia ser resumida na questão: a construção da significação em música ocorre em função
das estruturas sonoras postas em jogo no discurso musical ou é resultado de negociações
intersubjetivas nos diversos contextos culturais onde os indivíduos formaram seu
aprendizado?
Em termos favoráveis à compreensão do significado musical como constructo cultural,
o sociólogo Peter J. Martin aponta que “os significados da música não são inerentes nem
reconhecidos intuitivamente, mas emergem e tornam-se estabelecidos (ou transformados, ou
esquecidos) em consequência das atividades de grupos de pessoas nos contextos culturais
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particulares. O modo como ‘criamos sentido’ na música não é inato, mas depende da nossa
aquisição de senso comum, das ideias admitidas sobre como ela deve soar” (Martin, 1995, p.
57). A musicologia sistemática, por sua vez, legou toda a tradição metodológica por meio da
qual se pode entender que a percepção de determinadas emoções é facultada pelas
propriedades objetivas das estruturas musicais. Nesse sentido, perceber determinada
passagem musical como triste, alegre ou misteriosa, se dá somente porque ritmos, frases,
harmonias, texturas, andamento e tonalidade, entre outras, viabilizam o estabelecimento
dessas percepções. Justamente por conta dessa propriedade estrutural, uma passagem de
caráter heroico não será confundida como possuindo um caráter fúnebre. A primeira parte do
segundo movimento da sétima sinfonia de Beethoven poderá até ser entendida como
representando melancolia, perda de um amor, ou desolação, mas não será descrita como
expressiva de contentamento ou festividade. Todavia, há uma notável mudança de caráter na
segunda parte desse movimento, cujos sentimentos poderão ser percebidos como esperança ou
renovação, porém, é pouquíssimo provável que estes sejam interpretados como tenebroso ou
ameaçador.
No âmbito da psicologia cognitiva, duas escolas divergentes constituíram-se de modo a
intentar explicar o funcionamento da mente na construção do significado. O computacionismo
buscou essa compreensão postulando que o cérebro funcionaria como espécie de máquina,
constituída de um conjunto estabelecido de procedimentos para processar os estímulos
captados pelos sentidos. O culturalismo, por seu turno, afirma que a mente é constituída
culturalmente. Desse modo, estabeleceu-se um antagonismo histórico entre duas correntes
teóricas cuja principal diferença encontra-se na precedência que atribuem aos aspectos inatos
ou àqueles provenientes do aprendizado. Meyer referiu-se a essa questão nestes termos: “para
explicar porquê os seres humanos, em alguns contextos histórico-culturais reais, pensam,
respondem e escolhem como proceder, é necessário distinguir quais facetas do
comportamento humano são aprendidas e variáveis daquelas que são inatas e
universais” (Meyer, 1998, p.5).
No campo mais específico da música, duas teorias também têm sido, geralmente,
evocadas para explicar o processo de percepção e construção do significado, são elas a teoria
da excitação e a teoria cognitivista. A teoria da excitação (arousal theory), também
denominada de emotivismo, sugere que a percepção de determinado sentimento durante a
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audição musical se dá pelo fato da música excitar esses sentimentos no ouvinte. Ou seja, a
música já possui como característica aquele sentimento que estimula no fruidor. O
cognitivismo, por sua vez, lida com semelhanças e com recordações. Segundo essa teoria, a
música será percebida como possuidora de determinado sentimento (triste, alegre, sombrio,
etc.) se ela assemelhar-se, possuir o perfil ou relembrar situações que apresentem
similaridades com esses sentimentos. As imagens da Figura 1 exemplificam de modo direto
essa teoria. Pode-se facilmente identificar que a casa está sorrindo, enquanto a bandeira do
Brasil, na charge do cartunista Izânio, está chorando. Obviamente, objetos inanimados não
podem sorrir, chorar ou sentir, mas nos desenhos eles possuem traços característicos que nos
fazem recordar e associar os objetos a esses sentimentos. Isso se dá pelo hábito que temos em
antropomorfizar objetos, utensílios, animais e vegetais. Talvez por conta dessa característica
identifiquemos como música os sons do galo e dos pássaros, e percebamos tristeza nos ramos
do salgueiro.
Figura 1: imagens de objetos inanimados representando sentimentos (fonte: http://
izaniocharges.blogspot.com.br/)
Emotivismo e cognitivismo, ao fim, também acabam por incorporar o cerne da
discussão culturalismo versus inativismo ao postularem a maneira como, em tese, ocorreria a
construção do significado. No cognitivismo poder-se-ia inquirir se a percepção e o
reconhecimento dos traços indicativos dos atributos emotivos se dá na dependência da
capacidade cerebral (discriminamos e processamos somente em função do que está facultado
pela arquitetura do cérebro) ou se identificamos em razão daquilo que fomos instruídos pelo
grupo cultural a que pertencemos a reconhecer como emoções. No emotivismo questões
similares seriam: a música nos afeta porque somos biologicamente programados para ser
afetados ou porque somos condicionados pelo contexto social em que nosso aprendizado
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ocorreu? As mesmas questões valem para a divergência apresentada no início pelas posições
estruturalista e subjetivista. São as estruturas sonoras que promovem a percepção de
determinados significados ou é o sujeito que projeta seus próprios significados, frutos de
aprendizado cultural, na obra musical?
Essas teorias diferenciam-se, portanto, por explicarem o processo de significação como
sendo constituído culturalmente ou estruturalmente (intrínseco à sintaxe e às estruturas
sonoras da obra). Nicholas Cook (2001, p.177) usa a interessante metáfora de Cila e Caríbdis,
extraída da mitologia grega e perpetuada por Homero na Odisseia, para ilustrar essa situação
de embate existente no estudo da significação em música. Cila e Caríbdis eram monstros que
viviam nos extremos de um canal oceânico, de modo que os navegadores ao tentarem evitar
um destes, acabavam por ser devorados pelo outro. A figura de linguagem utilizada por Cook:
“entre Cila e Caríbdis”, significa, assim, "estar entre dois perigos" e não importa a escolha
feita para tentar superá-los, pois sempre implicará em danos. No entanto, Cook nota que “não
há, em princípio, qualquer razão pela qual o significado musical não possa ser ao mesmo
tempo culturalmente construído e condicionado por estruturas formais (idem, p.176). Outros
autores compartilham dessa posição, entendendo como inseparáveis essas esferas cognitivas,
pois características inatas são projetadas na cultura, que por sua vez, na medida em que se
desenvolvem, influenciam o pensamento individual. Jerome Bruner, por exemplo, afirma que
o fenômeno complexo que tão irrefletidamente chamamos de “cultura” parece
impor restrições sobre como a mente funciona e até mesmo sobre os tipos de
problemas que somos capazes de resolver. Mesmo um processo psicológico tão
primário quanto a generalização (...) é regulado por interpretações do
significado culturalmente apoiadas, e não pelo acionamento de um sistema
nervoso individual. (apud Correia, 2003, p.508).
Essa imbricação e/ou simbiose entre o cultural e o genético parece estar se
consolidando entre os teóricos modernos. Judith Becker (fundamentada em autores das
ciências cognitivas e sociais, como Maturana e Bordieu) propõe nova definição de cultura
como sendo um “fenômeno biológico supra individual, uma história transgeracional das
interações sociais que se tornaram incorporadas no individual e transmitidas através de ações
futuras” (Becker, 2001, p.154). A autora entende aspectos sociais no âmbito biológico porque
certos hábitos (como respostas emocionais a estímulos externos) são gerados, processados e
armazenados no cérebro. Dessa maneira, o cultural incorpora-se ao biológico e é transmitido
geneticamentei.
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Sumarizando as considerações anteriores sobre o significado em música, é possível
entender que tanto o significado incorporado quanto o designativo ocorrem na dependência
das estruturas musicais. O significado incorporado se dá por conta dos objetos musicais
presentes na composição e pela função que desempenham no discurso musical, que é regida
por uma sintaxe própria. Essas estruturas impingem e gerenciam possibilidades de construção
de sentidos (como comentado antes sobre a 7ª Sinfonia de Beethoven). O significado
designativo é viabilizado pelas homologias estruturais, pela possibilidade metafórica ou
conotativa que oferecem. Desse modo, os significados podem ser construídos socialmente,
porém, são suscitados e restritos pelas possibilidades oferecidas pelos objetos musicais. Há,
no entanto, um outro tipo de significação que pode ocorrer na independência das estruturas
musicais, trata-se do significado simbólico, discutido a seguir.
O Significado Simbólico
Um símbolo é essencialmente um constructo convencional. Lang esclarece que “o
significado simbólico resulta de um processo cognitivo por meio do qual um objeto adquire
uma conotação além de seu uso instrumental” (apud Nasar, 1989, p.238). A foice e o martelo
possuem um significado direto quando ligados a sua aplicação prática, ou seja, como
ferramentas de trabalho manual e, portanto, particulares. Justamente, por esta ligação ao uso
pessoal, foram adotadas como símbolos do comunismo, em oposição ao capitalismo
industrializado, onde fábricas e corporações tomam o lugar do trabalhador. Desse modo, foice
e martelo adquirem o símbolo dessa dicotomia entre as sociedades constituídas pela
individualidade do homem, com seus objetos e ferramentas pessoais, e as sociedades
capitalistas, na qual o trabalhador é subsumido, ou mesmo tende a desaparecer, no contexto
industrial da produção (e consumo) em massa. Outro significado simbólico que pode ser
inferido desses mesmos objetos é a união entre as esferas rurais (foice) e urbana (martelo)
estabelecendo um elo emblemático entre o operário das cidades e os camponeses. A mesma
foice é também o objeto associado à morte. Na mitologia grega, de acordo com a Teogonia de
Hesíodo, a morte é personificada por Thanatos, filho de Nyx (noite) e de Erebos (escuridão).
Thanatos é também irmão gêmeo de Hypnos (sono). Diversas culturas referem-se à existência
da figura do ceifador como o anjo da morte, o que fez com que a foice fosse o objeto
associado à morte. Nesses exemplos, tem-se o mesmo objeto, a foice, que possui um uso
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primeiramente pragmático, mas que é também ressignificado ao ser investido de outros
sentidos, como símbolo do trabalhador rural ou mesmo da morte. É fácil perceber que esses
significados não estão na ferramenta foice, mas são atribuídos pelas pessoas e passam a
integrar o objeto por meio dessa convenção social. Entretanto, é preciso notar que convenção
não implica em arbitrariedade, pois não é qualquer coisa que pode constituir-se como um
símbolo, pois o objeto deve possuir alguma característica que permita ser referenciada àquilo
que irá simbolizar. No caso da morte, compreende-se a associação óbvia com a foice, já que
esta ferramenta é usada para ceifar os vegetais, que, por sua vez, definham após serem
cortados de suas raízes.
No caso da música, há uma gama inumerável de diferentes significados simbólicos
atribuídos para as mais diversas situações. Os instrumentos musicais também se constituem
como objetos simbólicos. No âmbito da etnomusicologia, por exemplo, pesquisadores
notaram que o tambor é tido como espécie de mensageiro, com capacidade de comunicar-se
não só com pessoas, mas também com deidades supranaturais. Rodney Needham, após
pesquisa de campo em diversos contextos culturais, concluiu que “existe alguma conexão
universal entre percussão e transição na vida social” (apud Vogt, 1997, p.233). Outros autores
ao buscarem resposta para o quase ubíquo uso da percussão, sobretudo quando se trata de
culturas tradicionais, chegaram a sugerir uma hipótese neuro-fisiológica, como Neher que em
1962 apresentou evidências de experimentos conduzidos em laboratório comprovando que “a
percussão nos tambores, especialmente quando produzidas com um ritmo próximo da
frequência da onda cerebral [do tipo] alfa, ou seja, de sete a nove ciclos por segundo, possui
um forte efeito fisiológico sobre o cérebro humano e pode induzir aos contundentes estados
psicológicos notados em rituais xamânicos” (apud Vogt, 1997, p.233).
Vogt, em suas pesquisas de campo durante a festividade do povo Zinacanteco no
México, coletou resultados que corroboram a ideia de “transição”. Ele observou que “os
tambores e flautas tocam especialmente quando os ritualistas estão em procissão de um local
sacro para outro” (1997, p.239). Com esse procedimento, tem se a impressão de que os
tambores acompanham um tempo universal, e a procissão adquire um significado simbólico
ao representar a viagem do sol. Todos os demais procedimentos envolvidos nesta festa
possuem significados simbólicos. O tambor é carregado às costas do percussionista,
sustentado por um talabarte, “do mesmo modo que as antigas deidades Maias foram retratadas
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carregando o fardo do ano” (idem, p.239). O tambor sagrado usado nesta festa, denominado
T’ENT’EN, é exclusivo e possui um caráter divino, permanece guardado o ano todo, e
somente alguns têm acesso a ele, não sendo permitido fotografá-lo. Para Vogt, o fato deste
instrumento somente ser utilizado na Festa de San Sebastian, que ocorre depois do solstício de
inverno, seguido imediatamente pela cerimônia do primeiro dia do ano, sugere que o “tambor
incorpora, acima de tudo, o símbolo da chegada do Ano Novo. Consequentemente, poderia
ser aventado que os sons percussivos do T’ENT’EN estão claramente conectados com a
transição mais importante do ano em Zinacantan, como ocorre na cerimônia de San Sebastian,
que ajuda a persuadir o Sol a sair do sul e regressar ao norte” (Vogt, 1997, p.239).
O que há na organologia do tambor que permite essas associações simbólicas? Uma
aproximação poderia ser tentada pela similaridade indicial que o som do tambor apresenta
com o som do trovão. Todavia, no caso em questão, o tambor T’ENT’EN é um instrumento
pequeno, cujo som está muito distante (ou nada parecido) do som do trovão.
Há no Brasil a tradição associada ao catolicismo da celebração do Divino Espírito
Santo. Os Festejos do Divino no Maranhão têm muita notoriedade e atraem um grande
número de turistas. Neste estado, o culto é também realizado em terreiros de Candomblé,
Tambor de Mina e Umbanda, evidenciando a marca do sincretismo religioso brasileiro. As
comemorações do Divino são organizadas por pessoas chamadas de festeiros, que podem ser
pais de santo ou pessoas (re)conhecidas da comunidade e escolhidas por seus próprios
membros. As Caixeiras do Divino são convidadas pelos festeiros para conduzirem o culto
nessa festividade. A celebração é complexa e envolve uma série de etapas e ritos (sacros e
profanos), como levantamento do mastro, constituição do império, cerimônia de Passamento
das Posses, o ósculo na Pomba do Divino, Missa, entre outros. O culto ao Divino Espírito
Santo é realizado em outros estados do Brasil e também em outros países. Todavia, o aspecto
mais característico e diferencial dessa festa no Maranhão se apresenta no fato de que a
celebração é conduzida pelas Caixeiras do Divinoii, isto é, mulheres que cantam e tocam os
tambores (de fabricação artesanal) chamados de Caixas, e que por exercerem essa função
adquiriram o estatuto de Sacerdotizas.
É interessante identificar o que essas caixeiras pensam a respeito de seu papel nessa
celebração para se entender o porquê de certos significados atribuídos por elas e por membros
da comunidade a essa tradição. Os grupos de Caixeiras costumam se definir pelo conjunto que
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toca em uma festa, não sendo necessário, portanto, que possuam alguma relação de parentesco
ou amizade pretérita – por vezes, caixeiras viajam entre cidades para tocar nas festas. Porém,
o encontro durante as celebrações estabelece novas relações sociais, construindo intimidade,
companheirismo, amizade, criação de irmandades e, possivelmente, convites para atuarem em
outras festas. Não obstante, o grupo de Caixeiras é estruturado segundo algumas hierarquias,
uma dessas são as figuras da Caixeira Régia e da Caixeira-Mór, mulheres mais experientes
que conhecem profundamente não somente os toques e cantigas, mas também toda a exegese
da celebração e por isso são encarregadas da preservação e transmissão oral desse
conhecimento para as demais Caixeiras.
O tambor da Caixeira Régia é de certa forma exclusivo, ela não o empresta e somente
ela pode tocá-lo. Em Casas de Culto, as caixas passam por um ritual de preparação (benção)
antes de serem tocadas nas festas, todavia, esses rituais são restritos aos membros da Casa.
Costumeiramente, as Caixeiras estabelecem uma relação de identidade com o seu
instrumento. A pesquisadora Marise Barbosa relata ter presenciado uma cena que descreve o
estatuto atribuído por uma caixeira ao seu instrumento e, por conseguinte, ao modo como
entende sua função na celebração. Ao chegar a uma festa acompanhando a Caixeira Régia da
Casa, notaram que a porta principal do local estava fechada, pois estavam ainda preparando a
Tribuna e os Tronos para o festejo. A Caixeira, então, bateu à porta demandando: “abram esta
porta! Minha Caixa não entra pela porta dos fundos!”.
Diversos testemunhos de Caixeiras atestam a ancestralidade africana atribuída a essa
tradição. Observem-se, por exemplo, os depoimentos a seguir (Barbosa, 2006):
Repara que quando a gente canta Alvorada dentro daquele salão, aquilo faz um
silêncio! Aquilo é daquelas pretadas velhas, antigas, escravas! Isso é do tempo da
escravatura! E nesse tempo, era elas era quem mandava nessa festa. Era elas e os
home! Aqueles preto escravo, tudo era quem sabia tocar, era quem tirava esses
cântico, esses toque, eles era quem fazia. Por uma dessa, é que hoje em S. Luís não
tem um toque igual o nosso e nem o nosso é igual ao deles!
Olha, eu conheci bem umas 20 Caixeiras velhas, aquelas pretonas velhas, antigas
tocando Caixa! As roupas eram bem por aqui assim...(aponta para a metade da perna,
indicando que eram roupas compridas), aquelas saionas (amplia as mãos ao redor dos
quadris para mostrar amplidão)! Isto delas aqui, (aponta o próprio pescoço) era cheio
daquelas vorta, aqueles colarzão! As blusa era só aqueles rendão!
No primeiro relato, é claro o significado compreendido nas palavras da Caixeira de
Alcântara ao revelar a herança africana presente em sua prática, e assim, também entender-se
como detentora e perpetuadora dessa tradição. Na segunda descrição, feita por Dona
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Margarida, ela constrói a imagem de mulheres vestindo blusas com golas em rendas longas,
muitos colares e saias amplas e compridas, remetendo à imagem da preta mina, isto é,
mulheres negras vindas da Costa da Mina, região do Golfo do Benim no continente Africano.
Desse modo, atesta-se o pertencimento a essa linhagem afro, conferindo dignidade à sua
presença, pois Mina traduz uma descendência histórica presente no Maranhão. Essa é uma
compreensão derivada do fato de que uma grande quantidade de africanos e africanas
escravizados e levados para o Maranhão pertenciam a povos que viviam próximos ao litoral e
foram embarcados no porto de São Jorge da Mina, ou ainda que vivessem longe dali, foram
levados de seus territórios até os portos da Costa da Mina.
Não obstante esse tipo de testemunhos e entendimentos, uma análise da música
realizada pelas Caixeiras não irá mostrar características estruturais que permitam atestar essa
raiz africana. Exceto pelo fato de se tratar de uma música percussiva, acompanhada por
tambores, não se notam elementos típicos da música africana (Cf: Miller & Shahriari, 2006)
como polirritmias ou de padrões rítmicos de referência – também chamados de time line
pattern por Kubik (1981) ou mesmo clave. Paralelamente, os textos dos cantos seguem
métricas e quadratura convencionais de estrofes constituídas de 4 frases. O que permite,
portanto, às Caixeiras, e aos outros membros do contexto sociocultural que compartilham,
compreender sua tradição no âmbito dos legados africanos são negociações, acordos e
convenções, que por sua vez encarregam-se de engendrar os significados simbólicos atrelados
a essa prática. O significado simbólico gera, assim, um mecanismo de retroalimentação, ao
estabelecer um corpus de “entendimentos” que afetará o significado a ser construído sobre
essa tradição, perpetuada na oralidade popular e, posteriormente, reintegrada a esse corpus.
Referências
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2003000300018
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uma pesquisa atual em sala de aula. Tradução Flavia M. Narita. In: Revista da ABEM,
Vol. 20, N.28, Londrina, p.61-80.
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http://www.jstor.org/stable/pdfplus/10.2307/3630006.pdf?acceptTC=true
i
A transmissão genética de aspectos culturais já foi, inclusive, observada em grupos de macacos-prego (Cebus
apella libidinosus). Cf: Antonio Christian de Moura www.agencia.fapesp.br/boletim_dentro.php?id=6947
ii
Para uma descrição etnográfica detalhada sobre as festividades do Divino, bem como o papel das Caixeiras do
Divino no Maranhão ver: Barbosa, Marise (2006).
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