ENTRE O PADÊ E O INEXPERIENCIÁVEL: EXPERIMENTUM
LINGUAE E A POESIA DE EDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA
BETWEEN PADÊ AND THE INEXPERIENCED: EXPERIMENTUM
LINGUAE AND THE POETRY OF EDIMILSON DE ALMEIDA
PEREIRA
Helano Ribeiro (UFPB)
[email protected]
https://orcid.org/0000-0003-0192-0397
Jeean Karlos Souza Gomes (FURG)
[email protected]
https://orcid.org/0000-0001-8588-0956
RESUMO: Esse artigo propõe discussões acerca da poesia de Edimilson de Almeida Pereira
estabelecendo um recorte de sua produção, que bebe da fonte das culturas banto e yorubá.
Nesse sentido, é uma poesia negra que se inspira na mitologia daqueles povos. Os livros de
onde vieram os poemas são: Poesia + (antologia poética 1985-2019) (2019), Poemas para ler
com palmas (2017) e Livro de fala (2008). Para lê-los, precisa-se, porém, acessar as
epistemologias vindas de África e as entrecruzadas aqui no Brasil. Dessa forma, a base teórica
referente à mitologia e a epistemologias negras partiu de Luz (1995), Oliveira (2003; 2007),
Ford (1999), Haddock-Lobo (2020), Freitas (2016) e Ribeiro (1996). Tais epistemologias
fogem da lógica ocidental, aí Derrida (2014) foi o fulcro teórico, além dos trabalhos de
Agamben (2005) e Deleuze e Guattari (2012). Como se trata de uma poesia contemporânea,
os trabalhos de Siscar (2010) contextualizaram os poemas de Pereira no aqui-e-agora. É,
portanto, na crise que os poemas negros emergem e fluem em um devir da linguagem, evocando
uma experiência do inexperienciável.
PALAVRAS-CHAVE:
encruzilhada; crise.
Edimilson
Pereira;
poesia
afro-brasileira;
epistemologias;
ABSTRACT: This article discusses the poetry of Edimilson de Almeida Pereira, establishing a
cut of his production, which has its source of the Bantu and Yoruba cultures. As such, it is a
black poetry that is inspired by the mythology of those peoples. The books from which the poems
came are: Poesia + (poetic anthology 1985-2019) (2019), Poemas para ler com palmas (2017)
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
339
and Livro de fala (2008). In order to read them, however, it is necessary to access the
epistemologies coming from Africa and those intertwined here in Brazil. Thus, the theoretical
basis regarding black mythology and epistemologies came from Luz (1995), Oliveira (2003;
2007), Ford (1999), Haddock-Lobo (2020), Freitas (2016), Ribeiro (1996). Such
epistemologies depart from Western logic, Derrida (2014) was the theoretical fulcrum, in
addition to the works of Agamben (2005) and Deleuze and Guattari (2012). As it is a
contemporary poetry, the works of Siscar (2010) contextualized Pereira's poems in the hereand-now. It is, therefore, in the crisis that black poems emerge and flow in a becoming-oflanguage, evoking an experience of the inexperienced.
KEYWORDS: Edimilson Pereira; Afro-Brazilian poetry; epistemologies; crossroads; crisis.
1 Padê
O padê é ofertado no início da festa/ritual. Ele, portanto, prepara o solo do por vir.
Contudo, outro significado nos interessa: o padê também evoca uma comunidade no sentido de
que “significa literalmente reunião ou o ato de se reunir” (SANTOS, 1986, p. 184); assim, é
possível enxergá-lo como poesia, pois ele também “cria comunidade” (SISCAR, 2010, p. 79).
Uma comunidade que não representa o mainstream, uma vez que os seus membros são
aqueles que se dão os meios de responder à sua estranheza, reivindicando ou
reinventando a herança da poesia. Por isso mesmo, uma “herança”, qualquer que
seja, não é um corpus fechado e disponível; ela está sempre na iminência da
“desaparição” (segundo a palavra de Um lance de dados) e exige continuamente a
reinvenção de sua urgência, de seu sentido como necessidade do presente (SISCAR,
2010, p. 79, itálicos do autor, negritos nossos).
A herança do padê, por sua vez, é ancestral, é “wifi / dos ancestrais / Livre acesso /
conexão / Direto da fonte” (REZA, 2021, n.p., grifo dos autores). Aqueles que o executam
reinventam e releem uma tradição na iminência de desaparecer. Neste padê, os ingredientes
também são simbólicos: a cachaça é a poesia, a farinha é o texto e o dendê é a sintaxe. Aqui,
portanto, arriamos nosso padê conceitual.
Para este trabalho, selecionamos poemas1 de Edimilson de Almeida Pereira, retirados
dos livros Poesia + (antologia poética 1985-2019) (2019), Poemas para ler com palmas (2017)
1
Na obra poética de Edimilson de Almeida Pereira, é possível fazer uma análise dos elementos principais que
serão destacados em nosso artigo: o padê, o axé, a gira, a síncopa, a sintaxe quebrada e o inexperenciável. Nesse
sentido, para se fazer qualquer leitura desses textos é preciso adentrar conceitos que intercruzam poesia, linguagem
e mitologias banto e yorubá.
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
340
e Livro de fala (2008). Não seguimos uma cronologia entre as obras. A ordem em que aparecem
os poemas, portanto, é de acordo com os argumentos ao longo do artigo.
2 Mitologia banto e yorubá na poesia
Os elementos que compõem a poesia de Pereira são entendidos a partir das
epistemologias africana e afro-brasileira. Elas destacam a potência do mito para entender o
universo. Oliveira argumenta que
o mito é um corpo (coletivo) em movimento. Parte-se do corpo como fonte e condição
do conhecimento porque não pode haver filosofia sem um corpo. E filosofar desde o
corpo é inverter a perspectiva hegemônica na filosofia, isto é, ao invés de um cérebro
que centraliza todo conhecimento e processa todas as sensações, temos milhões de
cérebros distribuídos por todo o corpo e cada qual faz sua própria revolução perceptiva
e cognitiva e, em conjunto, compõe a filosofia do corpo (OLIVEIRA, 2007, p. 214)
O corpo/mito, com seus milhões de cérebros espalhados, diga-se, rizomático,
descentraliza, portanto, o conhecimento. O cérebro (centro) é deslocado da estrutura centrada;
com isso, temos a desconstrução derridiana, nesse entre-lugar do pensamento. Derrida (2014,
p. 408) dirá que “é contraditoriamente coerente”. Portanto, a partir da proposta de abalo do
centro, a falibilidade do binarismo estrutural é exposta. Constitui-se, desse modo, a crítica ao
etnocentrismo, falocentrismo e logocentrismo. Embora o valor e a potência do mito sejam
rejeitados nos ambientes acadêmicos logocêntricos, ele tem um papel imprescindível na
filosofia negro-africana, sobretudo nos povos bantos e yorubás.
Na sociedade contemporânea, o encanto pelo mito se perdeu, e a pronúncia de tal palavra
remete à falsidade (FORD, 1999). Luz (1995, p. 19), no entanto, assinala a importância do mito
na produção de conhecimento: “Para nós, o mito, ao contrário do que falam na redoma
universitária, é o discurso básico do conhecimento de nossa gente”. Nesse sentido, o mito é
aceito como cerne epistemológico. Através dele, portanto, constitui-se uma a crítica ao logos
que, “devido às luzes do Esclarecimento e da razão” (RIBEIRO, 2019, p. 65), acaba ofuscando
outras formas de ler/compreender o mundo. A cultura negro-africana busca compreender o real
a partir da alteridade e da dinamicidade; isso destoa da cultura ocidental, que compreende a
realidade a partir da imutabilidade (OLIVEIRA, 2003). Essa imutabilidade está inserida na
desconstrução derridiana do centro já mencionada, pois lá “é proibida a permuta ou a
transformação dos elementos [...]” (DERRIDA, 2014, p. 408).
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
341
Sem espaço para o dinamismo e a alteridade, as epistemologias africanas e afrobrasileiras são relegadas às margens do conhecimento, e, como adverte Freitas, essa
discriminação resulta em pilhagens teóricas e epistêmicas:
Chamamos pilhagens epistemológicas uma das perversões do epistemicídio que
consiste na subtração ou apropriação de elementos constitutivos dos saberes
subalternos (aqueles que consistem as cosmogonias indígenas, africanas, negrobrasileiras ou as tecnologias sociais e linguísticas dos pobres) sem qualquer
agenciamento e muitas vezes mesmo referenciação dos sujeitos dessas gnoses. Nesse
sentido, é pilhagem, porque saqueia-se o outro naquilo que se reconhece como mais
valioso para incorporando em seu repertório como estratégia de projeção individual
ou de um grupo completamente diferente daquele que gestou os saberes em foco
(FREITAS, 2016, p. 39).
Reconhece-se a importância das epistemologias africanas e afro-brasileiras, que, aqui,
serão lentes para lermos e interpretarmos a poesia afro-brasileira. Dessa forma, a luz ofuscante
é afastada pelo(s) Exu(s), lançando o olhar para linguagem subjetiva da obra poética. Essa
linguagem, que é multimodal,2 é então contextualizada. Aliada à subversividade, ela é
explorada na poesia com uma musicalidade singular. Uma musicalidade única está presente nos
textos de Edimilson de Almeida Pereira. O autor resgata a sua ancestralidade e a transforma em
matéria prima para compor seus poemas. Os elementos da cosmovisão banto e yorubá são
ressignificados em seus versos. Contudo, nada é explícito: palavras, sinais de pontuação, versos
e ritmo oferecem várias direções e interpretações. Retornamos ao ritmo e à sua quebra. Como
já foi demonstrado, ele não é linear, assumindo sua característica sincopada. Se, por um lado, o
tambor “cria um ritmo sincopado que retém algo do que veio antes nas dobras do porvir [...]”
(ZULAR, 2019, p. 15), por outro, “a guitarra elétrica de Ogum” (PEREIRA, 2019, p. 232) cria
melodias síncopas, extraídas do lamento do blues3 com a sua blue note4 ou ghost note (nota
fantasma), característica do estilo afro-americano. Tais notas fracas e acentuadas nem sempre
são percebidas, perdem-se na encruzilhada e ressoam pelo Orun e Aiye5.
2
Os autores Luz (1995) e Freitas (2016) apontam para a estética-ética negra no Brasil, em que som, dança, ritmo,
rito etc. fazem parte das obras. Nesse caso, a linguagem multimodal estaria presente na literatura afro-brasileira.
3
Estilo musical surgido nos Estados Unidos, mais precisamente no estado de Mississipi. Era uma válvula de
escape de uma vida injusta ceifada ferozmente nos campos de plantação de algodão. Os escravizados catalisavam
suas angústias para transformar em blues. Os ecos de seus ancestrais e antepassados reverberavam nas canções.
4
Blue note ou ghost note é uma nota acrescentada na escala musical pentatônica, gerando um intervalo de quinta
bemol. Como se trata de uma nota outside, não possui um tom definido, fica entre um tom e outro, logo, não é
recomendável que o instrumentista repouse nesta nota para não causar uma dissonância indesejada. A blue note,
então, é uma nota de passagem.
5
Esses dois termos, segundo Beniste (2004, p. 49), são: “[...] as denominações que revelam os locais onde se
desenvolve todo o processo de existência: àiyé indica o mundo físico, habitado por todos os seres, a humanidade
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
342
Perdem-se, justamente, porque não estamos acostumados com o invisível, a matéria
escura, o fantasma e o inaudito. Com efeito, “na poesia o dito não é tão importante como na
ciência. A poesia ultrapassa o dito pela forma. Ultrapassa a forma pelo sentimento que desperta,
que afeta, que mobiliza” (OLIVEIRA, 2007, p. 163).
Para compreender a poesia de Pereira é preciso ler, ouvir e enxergar o que não está dado;
é preciso, portanto, evocando a metáfora proposta por Agamben, prestar atenção ao escuro e ao
invisível. Como o escuro abundante no céu à noite, fomos nos acostumando a não notá-lo. Da
mesma forma ocorreu na arte. A não prática de considerar aqueles elementos condicionou a
forma de compreender a arte durante séculos. Georges Didi-Huberman quebra esse paradigma
ao propor um olhar acurado ao vazio na pintura:
Para Didi-Huberman, o não saber da imagem obnubilado pelas luzes, seu próprio invisível, aquilo que não é dado à lei do lógos enquanto razão, nos coloca um problema
que é, sobretudo da ordem do inconsciente, ou seja, da linguagem. Um exemplo dessa
tese está em sua análise sobre o quadro de Fra Angelico, o afresco A Anunciação, em
que ele perscruta detalhes anteriormente ignorados na crítica da arte, como a brancura,
o vazio que o branco provoca e que pouco havia sido comentado na história da arte
até então (RIBEIRO, 2019, p. 65, grifos do autor).
Com esse movimento, o crítico de arte francês clama para o que antes era ignorado e
sem relevância, e que provaram, todavia, ser detalhes fundamentais para a interpretação da obra
de arte. Na poesia afro-brasileira, como ocorreu na pintura, é preciso inclinar atenção ao
invisível, ao vazio, ao dito e também ao inaudito. Dessa forma, o leitor se movimenta na
encruzilhada de sentidos múltiplos e entrecruzados. Na encruzilhada se “realiza o
experimentum linguae [...] arrisca-se em uma dimensão perfeitamente vazia [...]” (AGAMBEN,
2005, p. 13, grifo do autor). Ou seja, lá se realiza uma experiência do inconsciente por
intermédio da linguagem, e, no vazio, variadas leituras são possíveis. No entanto, na poesia de
Edimilson, é preciso reconhecer a ancestralidade e compreender o seu encantamento.
É na encruzilhada que Exu mora, ali ele manda e desmanda, ordena e desordena,
segundo Rufino (2019, n. p.):
A encruzilhada é a boca do mundo, é saber praticado nas margens por inúmeros seres
que fazem tecnologias e poéticas de espantar a escassez abrindo caminhos. Exu, como
dono da encruzilhada, é um primado ético que diz acerca de tudo que existe e pode
vir a ser. Ele nos ensina a buscar uma constante e inacabada reflexão sobre nossos
atos.
em geral, denominados ara àiyé; o órun, que é mundo sobrenatural, habitado pelas divindades. Os Òrìsà, ancestrais
e todas as formas de espíritos são denominados ara òrun.”
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
343
Portanto, é na encruza de Exu que trabalhamos; a partir dela lemos os poemas e trazemos
os conhecimentos ancestrais para o contemporâneo.
3 Contemporaneidade e crise, experiência e inexperienciável
Se estamos na contemporaneidade, por conseguinte, as incertezas aparecem, uma vez
que ela carrega o discurso da crise. Iniciada em Baudelaire e continuada por Mallarmé, a crise
poética se instaurou no modernismo e de algum modo ela continua na contemporaneidade.
(SISCAR, 2010). Dessa forma, refazemos a pergunta de Siscar: “Para que poesia, afinal, ‘em
tempos de pobreza’?” (SISCAR, 2010, p. 32). Diante da questão feita pelo autor, outras surgem:
por que ler poesia? E por que estudá-la, afinal? Pois, em tempos de pobreza, ela não tem lugar
para chamar de seu e não consegue impactar de forma subversiva. Ela, então, já “não é mais
[...] uma ameaça ou uma alternativa geral à centralidade do poder financeiro, à centralidade ou
ao poder de seu discurso” (SISCAR, 2010, p. 27). O que resta ao poeta, então? A sua única
notoriedade são prêmios, publicações em revistas e aparições em eventos; sem isso, cai num
limbo. Nos tempos de neoliberalismo, da lógica de mercado e do número (SISCAR, 2010), em
que o consumo desenfreado e o entretenimento rápido governam o modo de vida da sociedade,
como bem menciona Siscar (2010, p. 23): “o consumo é a ordem que rege as relações no
contemporâneo, um imediatismo que amortece o senso de justiça”. A poesia fica deslocada,
pois ela não compartilha dessas lógicas. Sem valor (lucro), ela é, nesse mundo, algo inútil... é a
crise! Muitos falam.
A crise, para Agamben (2005), é da experiência, e, entrando em consonância com Siscar
(2010), o autor italiano também aponta Baudelaire como um divisor de águas na poesia. O que
Siscar chama de crise pode ser lido em Agamben por expropriação da experiência. Em suas
palavras:
Em Baudelaire, um homem que foi expropriado da experiência se oferece sem
nenhuma proteção ao recebimento dos choques. À expropriação da experiência, a
poesia responde transformando esta expropriação em uma razão de sobrevivência e
fazendo o experienciável a sua condição normal. Nesta perspectiva, a busca do
<<novo>> não se apresenta como a procura de um novo objeto da experiência, mas
implica, ao contrário, uma elipse e uma suspensão da experiência. Novo é aquilo de
que não se pode fazer experiência, porque jaz <<no fundo do desconhecido>>: a coisa
em si kantiana, o inexperienciável como tal (AGAMBEN, 2005, p. 52).
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
344
O que Baudelaire deixou para os poetas é o não experimentado. Sendo assim, o poeta
moderno opera no inexperienciável. Na poesia de Edimilson Pereira, essa característica
apresenta-se a partir da cosmogonia banto e yorubá; através dessas cosmovisões, é possível
experimentar o inexperienciável, os ritos, presentes nesses universos, incluídos aqui o padê, o
transe, a dança, a gira etc. Em seu ensaio Sobre o programa da filosofia por vir, Benjamin
(2019, p. 17-19) revisa o pensamento de Kant, reconhecendo “quais elementos do pensamento
kantiano devem ser apreendidos e desenvolvidos, quais devem ser modificados e quais devem
ser rejeitados”. Os elementos que devem ser rejeitados são os “elementos primitivos de uma
metafísica infecunda que exclui qualquer outra” (BENJAMIN, 2019, p. 21). Através dos
domínios daquela metafísica, a experiência do inexperenciável é vista sob suspeita; a loucura,
o devaneio, o devir, portanto, são excluídos da epistemologia, ou seja, o subjetivo é posto para
fora do campo do conhecimento. Contudo, “a natureza subjetiva da consciência cognoscente
provém do fato de ter sido constituída analogicamente a respeito da consciência empírica, diante
da qual, com efeito, encontram-se os objetos” (BENJAMIN, 2019, p. 25). O filósofo alemão
considera, pois, o excluído do plano cartesiano como um dos fundamentos para entender essa
experiência do inesperienciável. Os elementos elencados acima se tornam fundamentos para ler
a poesia afro-brasileira.
Se há padê, Exu vem primeiro. De forma sutil, o padê ao orixá da encruzilhada é arriado
no início do livro, como, por exemplo, no poema “Visitação”, que abre o Livro de falas
(PEREIRA, 2008). O seu conteúdo trata de Exu e do transe. O poeta, então, oferece
primeiramente a Exu. O transe, no seu turno, fica explícito no verso cinco: “O cavalo sou eu e
também a sua negação” (PEREIRA, 2008, p. 16). O eu lírico assume, portanto, o papel de
cavalo e, dessa forma,
o possuído [cavalo] pode, com completa impunidade, expressar ideias que ele
hesitaria vociferar em seu estado normal. É frequentemente notado que o possuído faz
declarações ou comete atos agressivos que podem ser explicados apenas pelos
sentimentos escondidos (MÉTRAUX apud OLIVEIRA, 2008, p. 28).
Por isso, o poeta é o cavalo e a negação simultaneamente, isto é, ninguém quer ser
responsável por atos cometidos no processo de transe.
A dança é o próprio congado, o tambor, a capoeira. É na dança do poema que a gira vai
girando, textualmente, através da anáfora, conforme os versos seguintes do poema “Dança”:
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
345
No círculo que gira
gira
gira
um casal de mãos dadas
Gira o casal
na roda que gira
gira
gira.
A roda está girando.
O casal entra na roda
de mãos dadas
como rosa
em movimento.
Giram os olhos
dos amigos
O casal está girando.
Nessa roda
passa o tempo.
E o que passa está vivendo.
O círculo gira ligeiro
até a noite
virar o dia.
O casal está parado.
Mas gira
gira
a alegria (PEREIRA, 2017, p. 39).
A repetição da palavra “gira” – que ocorre na maioria das estrofes e versos – oferece a
sensação de vertigem. A roda gira, o casal gira. O seu significado, nesse contexto, pode ser
entendido assim:
A gira, o feminino do giro, sua feição mulher que, não apenas gira como o giro no
sentido de mudar, desviar, promover deslocamentos, mas que também gira como a
festa, a roda, o encontro que abre os caminhos e que é marcado pelo termo quimbundo
njira (HADDOCK-LOBO, 2020, p. 141, grifos do autor).
A roda é o contrário do plano cartesiano, não tem ponto fixo. É, pois, o fluxo da
encruzilhada de caminhos. O casal girando é a metáfora do giro dos encontros e dos caminhos.
O casal, então, protagoniza o inexperienciável. As estrofes são compostas por versos livres e
brancos, isto é, observa-se o movimento da dança na forma do poema, que ora aparece com
uma sílaba – por exemplo, no segundo verso, “gi / ra” – e ora aparece com seis sílabas, como
no verso quatro: “um / ca / sal / de / mãos / da/ das”.
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
346
Na segunda estrofe, o casal está envolvido pela roda que segue girando e se destaca com
seu verso isolado na estrofe seguinte. A vertigem, na segunda estrofe, sinalizada pelo verbo
“gira”, é colocada em destaque, abrindo e fechando essa estrofe. Na terceira estrofe, de apenas
um verso, o verbo “girar” aparece na forma nominal do gerúndio, uma ação que está
acontecendo no instante da leitura.
A comparação presente na quarta estrofe evoca o amor dos amantes na imagem de uma
rosa em movimento, simbolizando, então, o ciclo da vida. Nesse sentido, é a vida que gira, o
tempo que passa. Mas há um interstício, um hiato guiado pelo incessante vindouro. Isso fica
explícito na estrofe seguinte, sobretudo nos versos 17 a 19: “Nessa roda/ passa o tempo / E o
que passa está vivendo.” Vale notar que, ainda na estrofe quatro, a palavra-chave “gira” não
aparece; contudo, a gira/ginga das estrofes anteriores são suficientes para o movimento
continuar. Na próxima estrofe, o movimento da gira ressurge no gerúndio, no verso 16: “O casal
está girando”, preparando algo que virá num futuro aparente próximo, pois ali “passa o tempo”.
Na estrofe 6, a passagem de tempo fica evidente com a passagem da noite para o dia. Através
de um olhar macumbeiro, esse poema que, como ficou evidente, tem a gira/círculo em seu tema,
trata de uma parte das festas do candomblé, quando ocorre o transe e os espíritos baixam:
É por essa razão que uma gira macumbística só se dá através de um “empirismo
radical”, no qual é tamanha a hipérbole da noção de experiência, que os próprios
lugares de sujeito e objeto, de consciência e mundo, ou qualquer outro dualismo
epistemológico se encruzam de tal maneira que não podemos mais definir
precisamente os limites entre o dentro e o fora, apenas marcar o encontro no coração
da encruzilhada (HADDOCK-LOBO, 2020, p. 141-142).
Esse poema, portanto, representa o encontro no coração da encruzilhada; sua vertigem
se encarrega de nos expor os efeitos da encruza.
4 Síncopa e blue note
Outras características que destacamos são as melodias síncopas: os cortes, as ausências
fazem parte do texto poético de Pereira. Assim lemos:
IANSÃ
Quando sopra tempestade.
Quando fala tempestade.
Quando cobra
tempestade.
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
347
Porém,
quando tempestade, Iansã
é suave.
Em seus cabelos e braços
giram as cidades.
Umas rodeadas de sol
outras na tempestade (PEREIRA, 2017, p. 44).
Trata-se de um poema em homenagem à Iansã, orixá dos ventos e da tempestade, como
fica evidente nos três primeiros versos. Eles obedecem à métrica de redondilha maior, ou seja,
sete sílabas por verso. Além de seguirem a mesma métrica, as palavras “quando” e
“tempestade” funcionam como anáfora, repetindo-se uma no início e a outra no final. Elas
também garantem o ritmo constante dessa primeira estrofe: suas batidas, isto é, suas sílabas
tônicas aparecem nas mesmas posições nesses três versos, na primeira, terceira e sétima sílaba.
A palavra-chave, “tempestade”, é usada de forma denotativa, uma vez que facilmente se
percebe que se trata de ações da orixá da quarta-feira. Entretanto, na segunda estrofe, a carga
de significado de “tempestade” é deslocada, como logo veremos.
A partir do segundo verso, uma síncopa surge. A síncopa que observamos aqui se refere
ao ritmo, e não à grafia das palavras que utilizam apóstrofes. Trata-se do prolongamento do
verso evidenciado pelo espaçamento em excesso entre “fala” e “tempestade”. O mesmo ocorre
no verso seguinte: a última palavra se repete e a síncopa é prolongada, alterando o seu ritmo.
Os espaços em excesso também constroem uma tensão para, no quarto verso, relaxar. Sodré
define essa alteração desta forma: “A síncopa... é uma alteração rítmica que consiste no
prolongamento do som de um tempo fraco em um tempo forte” (SODRÉ, 1979, p. 24 apud
LUZ, 1995, p. 572). No quarto verso, portanto, a métrica é interrompida e a síncopa se torna
mais perceptível. Esse verso possui apenas duas sílabas, sua batida fica na segunda sílaba,
contrastando com o ritmo anterior. Aqui o poema segue um ritmo não linear, composto por
versos livres. A tensão da estrofe anterior relaxa na adversativa “porém”, quebrando não apenas
o ritmo, mas também desmontando a imagem da tempestade, tão anunciada desde o primeiro
verso. O relaxamento de ritmo prepara o ambiente para aparecer Iansã, destacada no verso
seguinte pelo encavalgamento. O verso seis, então, desloca o significado de tempestade na
forma de Iansã, sendo ela, portanto, “suave” - mesmo quando tempestade. A partir do verso
sete, a grandeza do movimento dos cabelos aos braços cria um movimento circular em que
“giram as cidades”. Essa e a próxima estrofe descrevem a grandeza da orixá que rodeia, o que
pode ser entendido como abraçar as cidades em sua forma suave, a tempestade.
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
348
Roberto Zular, no prefácio da antologia Poesia + (antologia 1985-2019), de Edimilson
de Almeida Pereira, faz uma leitura do poema “Tambores”, publicado pela primeira vez no livro
Árvore dos Arturos (1988). Zular identifica o ritmo sincopado e o invisível presente nos
seguintes versos do poema:
São três os tambores, como
os fogos. Nos antigos os meninos: são dois
e o terceiro tempo mordido.
o santana, o santaninha e o
são três os tambores sagrados (PEREIRA, 2019, p. 248).
Os versos acima, para Zular, evocam
um hiato no qual os antigos e os meninos, a ancestralidade e a infância, são dois, mas,
ao mesmo tempo, por uma síncopa no ritmo-pensamento, são também um terceiro
(como os tambores do Candombe: o Santana, o Santaninha e o… Jeremia, não
mencionado no poema). Esse terceiro implica em novas relações, produzindo um
hiato, um tempo mordido entre a memória e a imaginação, o passado e o futuro que
passa do micromovimento no poema para o movimento dos tambores e destes para os
movimentos sociais e cosmológicos. (ZULAR, 2019, p. 15)
Essa interpretação entra em consonância com as propostas de Didi-Huberman e
Agamben. Zular identifica, portanto, o invisível no poema, localizado de forma imprecisa
depois do artigo definido “o”. Caminhando um pouco no campo da morfologia, o que sucede
um artigo é um substantivo. Observa-se, então, a licença poética de Pereira, que subverte a regra
gramatical. Jeremia, o substantivo, está presente/ausente simultaneamente, ele é o dito e o
inaudito, é a representação do terceiro tambor, é um fantasma invisível para o signo da escrita.
Sua invisibilidade proporciona outras leituras dos versos. Em outras palavras, Jeremia é a nota
dissonante, é a blue note, aquela nota fantasma que o instrumentista e o poeta não devem
estacionar na melodia para não causar a dissonância indesejada. Por conta disso, o verso “o
santana, o santaninha e o” (PEREIRA, 2019, p. 248) não tem um ponto final, visto que não se
repousa na nota fantasma; ela é então sutilmente acrescentada ao poema, assim, “o próprio
imperceptível torna-se um necessariamente percebido, ao mesmo tempo em que a percepção
torna-se necessariamente molecular” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 80).
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
349
5 Tempos, outros tempos
“Princípio” foi publicado pela primeira vez no Livro de falas (2008) e também é
integrado à antologia poética de 2019. Esse poema remete ao tempo da criação do Aiyê e é
dividido em duas estrofes:
PRINCÍPIO
Oxalá “é o grande deus da brancura… Dele
dependem todos os seres do céu e da terra. Ele
é a brancura do indeterminado, o deus de
todos os começos e de todas as realizações. A
vida e a morte abrigam-se debaixo do seu pálio.”
As árvores presenciam a criação do mundo.
Sendo eu a respiração das aves, serei
novamente água e árvore. Nascerei após o
fogo, arderei antes de mim mesmo. Um raio
espera em meus pensamentos, sei a morte e
a vida, razão porque silêncio e canto. Sou a
face que não possuo, renasço sem mesmo
desaparecer (PEREIRA, 2019, p. 238).
Como se trata de um poema de O livro de falas, a primeira estrofe são as palavras de
Augras. No entanto, é uma epígrafe que funciona para além da forma do texto poético. O eu
lírico evoca o orixá da cor branca, pronunciando o seu nome, e logo as aspas aparecem. A
citação, portanto, funciona como uma voz coletiva. As aspas, então, demarcam o início e fim
dessa voz; ela se sobressai na estrofe. É entoada por aqueles que cultuam Oxalá e que,
entretanto, não partilham apenas da crença aos cultos dos orixás, mas também de uma
experiência coletiva.
Ao final de cada verso há encavalgamento. São eles: “Dele / dependem [...]”, “Ele / é a
brancura[...]”, “A / vida e a morte [...]” e “o deus de / todos os começos [...]”. Nos dois
primeiros, o destaque recai sobre o orixá da cor branca, pois, ao cortar o verso, faz com que o
verso seguinte ganhe sentido com o verso anterior. As palavras “dele” e “ele” ressoam até se
completarem com seus versos seguintes. No terceiro e quarto versos, o corte enaltece as
características de Oxalá, o deus do começo, detentor do domínio da vida e da morte.
Como ocorre na primeira estrofe, a segunda estrofe é permeada por encavalgamento: o
eu lírico, dessa vez, é o próprio Oxalá, que reafirma o que foi entoado na primeira parte. Assim,
além da forma do poema, os conteúdos das duas estrofes dialogam. Oxalá é o orixá mais
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
350
respeitado no panteão africano, o orixá da cor branca narra suas ações no tempo da criação. O
primeiro verso dessa estrofe contém uma prosopopeia: as árvores despertam atenção e, através
delas, segundo Oliveira (2007, p. 72), “podemos viajar no tempo na direção do passado e
encontrar ali nossos ancestrais”.
Apoiando-me nas filosofias banto e yorubá, busca-se a base para o entendimento desse
poema como possibilidades do tempo do encantamento. Nessas filosofias, há duas concepções
de tempo: sasa e zamani. Aquele, segundo Ribeiro,
[...] é o período mais significativo para um indivíduo, o lapso de tempo em que as
pessoas permanecem conscientes da própria existência, projetando a si mesmas no
curto futuro e, principalmente, no longo passado. Sasa constitui em si, uma dimensão
completa de tempo, incluindo futuro breve, presente dinâmico e passado já
experienciado (RIBEIRO, 1996, p. 24, grifo da autora).
E zamani,
por sua vez, não se restringe ao que chamamos "o passado". Inclui presente e futuro.
Em ampla escala, sasa mergulha em zamani. Porém, antes de serem os eventos
incorporados em zamani, precisam ocorrer em sasa. Uma vez ocorridos, movem-se
para trás, de sasa para zamani (RIBEIRO, 1996, p. 24-25, grifos da autora).
O poema, então, leva o leitor do sasa ao zamani para esse tempo fora da cronologia,
para o tempo mágico dos ancestrais e orixás. De alguma forma, esses versos quebram a esteira
em movimento da sociedade moderna, a qual sempre vive conectada ao futuro. Sob hipótese
alguma, essa esteira para, e muito menos realiza o movimento inverso. “Princípio” é a esteira
do movimento inverso. Nela, “o tempo move-se para trás mais do que para a frente” (RIBEIRO,
1996, p. 23). Aqui se forma um cruzo, devendo-se trazer Deleuze (2007) para a encruzilhada.
O cruzamento de textos de Pereira, Ribeiro e Deleuze permite tensionar os conceitos de tempo
e de linguagem. Enquanto Ribeiro utiliza o estudo de Mtibi (1969) em que o autor recorre aos
“vocábulos swahili – sasa e zamani” (RIBEIRO, 1996, p. 24) para compreender o tempo,
Deleuze recorre aos mitos gregos Cronos e Aion. Aquele é um titã e deus do tempo, enquanto
esse é o tempo ilimitado – sua característica contrasta com o titã do tempo. Deve-se observar
Aion, por enquanto.
O cruzo entre aion e zamani é inevitável. As esquinas formadas por ambos permitem
refletir sobre seus encantos. De acordo com Deleuze, o tempo aiônico é também o tempo da
linguagem: ela surge num tempo que extrapola a temporalidade como a conhecemos e daí nasce
o sentido, ou seja, surge a linguagem. De qualquer modo, “Aion se estende em linha reta,
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
351
ilimitada nos dois sentidos” (DELEUZE, 2007, p. 94). Zamani e aion, portanto, se cruzam em
suas características místicas, um complementa o outro.
Os tempos sasa e cronos fazem a mesma coisa, porém sem a misticidade, que é própria
daqueles tempos. Sasa é o tempo em que os seres vivos e as demais coisas habitam. Cronos
segue princípios parecidos. O poema dos tempos sasa e cronos é “Salvador”, publicado
originalmente no livro Ô lapassi & outros ritmos de ouvido (1990):
SALVADOR
sob os olhos divinos o mundo e sua carne se arranham
Em Salvador a manhã e uma oferenda ajuntam
os homens quando toda lei do mundo oculta
em cartões-postais o esqueleto do outro.
Com a manhã o mar se oferece ao chão e o
pensar dos muitos cresce cidade adentro
as letras de seus olhos gravando como se lessem
a verdade dos deuses. Em Salvador o tempo. (PEREIRA, 2019, p. 126).
Se o “Princípio” é uma porta para o passado, deslocando o leitor para fora do cronos, o
poema “Salvador” está contido no tempo sasa, os corpos presentes em cronos. A epígrafe
abaixo do título lembra a integração do homem com o restante. É uma síntese do processo
simbiótico, de acordo com a cosmovisão africana. Oliveira (2003, p. 42) menciona que
[...] o Homem está intimamente ligado a todos os elementos da natureza e ao seu
criador. Essa relação simbiótica com a natureza (mundo natural) e com o próprio Deus
(mundo sobrenatural) compõe a própria essência do Homem, que por sua vez divide
sua essência particular com a totalidade do universo. Dito de outra forma: o Homem
é a micro-síntese de todos os elementos que compõem o universo. Ele é um microcosmos.
Nesse processo, “o mundo e a carne se arranham”, interligam-se, formam-se um
coletivo. O homem, portanto, é inserido em uma totalidade, pois “a pessoa [...] não pode ser
compreendida como um ente individual. Com efeito, a pessoa é o resultado de uma ação
coletiva” (OLIVEIRA, 2003, p. 53). No primeiro verso do poema, a capital baiana é enunciada
como palco, em que os homens são “ajuntados” de manhã, realçando aquela totalidade. Os
versos seis e sete também mencionam a simbiose: “as letras de seus olhos gravando como se
lessem / a verdade dos deuses”. Para além da totalidade entre os humanos, trata-se da relação
do mundo natural com o mundo sobrenatural. O eu lírico projeta um tempo no presente; a
ocorrência da “manhã”, no primeiro e no quarto verso, exprime um presente que não se desloca
ao passado ou futuro. De acordo com Deleuze em seus escritos sobre Cronos, “só o presente
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
352
existe no tempo. Passado, presente e futuro não são três dimensões do tempo; só o presente
preenche o tempo, o passado e o futuro são duas dimensões relativas ao presente no tempo”
(DELEUZE, 2007, p. 167). À primeira vista, o tempo cronos parece inflexível como o titã
homônimo – e isso poderia justificar seu nome. Todavia, ao examiná-lo com mais atenção, a
sua inflexibilidade é diluída. Ainda de acordo com Deleuze: “Há sempre um mais vasto presente
que absorve o passado e o futuro. [...] O deus vive como presente o que é futuro ou passado
para mim, que vivo sobre presentes mais limitados.” (DELEUZE, 2007, p. 167). Nesse aspecto,
cronos aproxima-se de sasa. Retoma-se a citação de Ribeiro: “Sasa constitui em si, uma
dimensão completa de tempo, incluindo futuro breve, presente dinâmico e passado já
experienciado.” (RIBEIRO, 1996, p. 24). O último verso apenas diz “Em Salvador o tempo”.
O eu lírico não explicita qual é o tempo, entretanto pode-se inferir que esse tempo é resultado
do cruzo entre cronos e sasa, tempo do presente e do indivíduo consciente.
6 Encavalgamento exposto
Nota-se, até aqui, que os poemas de Pereira contêm muitos encavalgamentos
(enjambement), um recurso poético de nível sintático também chamado de encadeamento ou
cavalgamento. Goldstein (1985, p. 63) o define desta maneira: “é a construção sintática especial
que liga um verso ao seguinte, para completar o seu sentido”. De fato, é um recurso exclusivo
da poesia, bem como observa Agamben (1999) no livro Ideia da prosa. Esse livro é formado
por ensaios curtos em que o filósofo italiano discorre sobre vários temas, entre eles música,
amor, comunismo, prosa etc. A constituição curta de ensaios é associada à performance que o
autor pretende alcançar, ideias fragmentadas, assim como o encadeamento.
No ensaio homônimo do livro, o autor compara prosa e poesia, fazendo uma declaração
inicial:
É um facto sobre o qual nunca se reflectirá o suficiente que nenhuma definição do
verso é perfeitamente satisfatória, excepto aquela que assegura a sua identidade em
relação à prosa através da possibilidade do enjambement. Nem a quantidade, nem o
ritmo, nem o número de sílabas — todos eles elementos que podem também ocorrer
na prosa — fornecem, deste ponto de vista, uma distinção suficiente: mas é, sem mais,
poesia aquele discurso no qual é possível opor um limite métrico a um limite sintáctico
(todo o verso no qual o enjambement não está efectivamente presente será então um
verso de enjambement zero), e prosa aquele discurso no qual isto não é possível
(AGAMBEN, 1999, p. 30).
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
353
O encavalgamento se torna, portanto, um elemento que distingue a prosa da poesia. Ele
fragmenta o verso, atribuindo outro ritmo e sentido. O poeta mineiro, como ficou evidente,
utiliza o encadeamento na maioria de seus poemas, tornando sua linguagem fragmentária, como
é evidente em “A mão de Carolina”, cortada como aparece em “Tríptico” e “Princípio”.
Agamben cita que o poeta Caproni utiliza fortemente o encadeamento. Sendo assim, “o
enjambement devora o verso” (AGAMBEN, 1999, p. 30). Em Pereira, o encadeamento faz do
mesmo modo. A forma como o poeta o utiliza em cada texto sugere um novo sentido, tensiona
o nível sintático, vai para o nível da experiência, um experimentum linguae. O encavalgamento
denuncia, então, as fraturas causadas ainda na colônia. Mesmo com a mudança de tom,
desenvolvido no subcapítulo “Outro tom”, o encavalgamento continua ali, exposto.
Dessa forma, nomeia-se como “encavalgamento exposto” a técnica com que o poeta
traduz os traumas e fraturas do período colonial. Desde esse período, as marcas estão bem
expostas. Com efeito, isso verte na estética de sua obra, com uma linguagem fragmentada
permeada de fraturas.
O poema “A mão de Carolina” homenageia uma escritora excluída não apenas do
cânone mas também da sociedade:
A MÃO DE CAROLINA
fere a sintaxe. Tanto engenho
em sua arte mas livro após livro
insistem em falar sobre o lixo
e a coragem de uma estranha
que escreve, apesar do cânone.
Apesar da fome e dos bichos
que servem ao escritor-pose
para dizer
— “é o caos”.
Apesar da entrada de serviço,
do país e da sífilis. Apesar de
a mão contesta o esquecimento.
Quem a ler, leia sob o impacto
dos nervos, leia-se: preparado
para o desvio que faz os vivos.
— A mão que suporta o verbo
não deveria ceder ao comércio.
Espera-se dela, ontem e agora,
algo mais que receber prêmios.
A mão carolina
escreve em acusação sem volta. (PEREIRA, 2019, p. 98)
O poema foi publicado pela primeira vez no livro E (2017). O seu título, “A mão de
Carolina”, é uma metonímia de uma parte referente ao todo. Nesse caso, refere-se a Carolina
Maria de Jesus, Carolina de Jesus para os íntimos. A escritora ganhou visibilidade a partir do
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
354
lançamento de seu livro Quarto de Despejo: Diário de uma favelada (1960). No poema acima,
o eu lírico descreve a forma da escrita de Carolina e o ambiente hostil à sua volta. A mão da
escritora, pois, assume uma metonímia poderosa: através dela, é desenrolada a escrita, a arma
“que suporta o verbo”.
O primeiro verso é a continuação do título, pois nota-se que ele começa com a letra
minúscula; assim, a forma inicial do poema se refere à escrita de Carolina, que foge do padrão
sintático convencional e, consequentemente, “fere a sintaxe”. A sintaxe que prossegue até o
quinto verso é direta. O autor demonstra uma preocupação com a “mensagem”: apresentar e
descrever a situação da escritora. Além do mais, a sintaxe nessa forma se aproxima da
linguagem oral do cotidiano, a mesma forma da escrita de Carolina.
Segundo Arruda (2015, p. 35), “as características observadas em seus textos – a
linguagem oral, a sintaxe fragmentada e não padrão, a denúncia, a exposição do sujeito, entre
outras – performatizam a escrita da escritora mineira”. Se, por um lado, a sintaxe do poema se
aproxima da escritora, por outro, a forma também cumpre a mesma função. A maioria dos
versos possuem enjambement: são os cortes, os ferimentos deferidos na sintaxe convencional,
fraturando, consequentemente, o ritmo do poema, que é assimétrico, variando entre sete sílabas
— os menores versos — e doze sílabas — o maior verso. Seu ritmo, portanto, se aproxima da
linguagem de Carolina, igualmente fraturada, como aponta Sousa: “A linguagem fraturada de
Carolina deve ser entendida pelo que de fato é: a tentativa de uma pessoa das camadas
subalternas de dominar os códigos da cidade letrada” (SOUSA apud ARRUDA, 2015, p. 24).
A engenhosidade de Carolina de Jesus se revela em seus vários livros sobre os temas do
lixo e da vida da própria autora. Portanto, com a habilidade de Carolina de transformar lixo em
literatura: com a coragem de uma forasteira em terras que não lhe pertencem, seus livros
continuam sendo escritos, mesmo com a imposição do cânone, assinalada pelo advérbio
“apesar”, no quinto verso. O advérbio é incansável, visto que por mais três vezes ele se repetirá
ao longo do poema: “Apesar da fome e dos bichos / que servem ao escritor-pose / para dizer
— “é o caos”/ Apesar da entrada de serviço, / do país e da sífilis. Apesar de / a mão contesta o
esquecimento [...]”. Tal advérbio funciona como uma anáfora: ele se repete para transmitir o
fardo que a escritora carregou, enfrentando as diversidades. A palavra “apesar”, de certa forma,
deixa a leitura menos fluida e o ritmo mais arrastado, pois, além de sua repetição, a ordem da
sintaxe é quebrada, sem, no entanto, comprometer a “mensagem” inicial. “Apesar” cumpre,
pois, a função de sensibilizar o leitor para a condição da escritora. Além do mais, cada verso
com a presença daquele advérbio expõe suas adversidades. É nos versos seis, sete e oito que o
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
355
eu lírico critica o escritor distante da realidade cruel da pobreza, da fome e dos bichos. Para o
escritor-pose, são apenas temas de seus escritos. A partir deles, reafirma o que é escancarado:
“é o caos”. Para a autora do Quarto de despejo, esse caos já recai em sua vida antes da
contestação do “escritor-pose”. Assumindo apenas essa pose, o escritor não faz parte daquele
mundo.
O separatismo de classe é constante na vida da escritora. A partir do verso nove, essa
discriminação é expressa da seguinte forma: “Apesar da entrada de serviço / do país e da sífilis”.
A entrada de serviço a coloca em seu lugar. Sendo assim, a entrada principal não lhe pertence.
O verso dez é a continuação do verso anterior, continuação do advérbio “apesar”. Apesar do
país desigual e da doença, a escrita Carolina é resiliente; apesar dos pesares, a mão segue firme
escrevendo.
A partir do verso doze, o eu lírico adverte como se deve ler a obra impactante de
Carolina de Jesus, uma obra que está além de premiações e pode ser considerada subversiva.
7 O por vir incessante
A poesia de Edimilson de Almeida Pereira é iniciada no padê simbólico, não repousa na
blue note, sugere outros tempos – sasa e zamani, presentes na crise –, e se expande em sua
própria linguagem. Linguagem que, por sua vez, é multimodal, com suas peculiaridades:
fraturas e traumas é também mística e ritualistíca, com a ancestralidade inerente em sua
composição.
Os poemas de Pereira são, então, atos subversivos que fogem da lógica ocidental, isto
é, a sua leitura depende de saberes de outros povos e culturas, nesse caso, os povos banto e
yorubá. Seus textos, portanto, criam a necessidade de acessar as mitologias de matrizes
africanas e também as epistemes negras, africanas e afro-brasileiras. A partir disso, leituras são
possíveis, no plural, pois elas se chocam com as peças pregadas por Exu e se entrecruzam em
seus significantes em constante devir.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Ideias da prosa. Trad. João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999.
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história.
Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
356
ARRUDA, Aline Alves. Carolina Maria de Jesus [manuscrito]: projeto literário e edição
crítica de um romance inédito. 2015. 257 f. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras da Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Belo
Horizonte, 2015.
BENISTE, José. Òrun - Àiyé: o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagôyorubá entre o céu e a Terra. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
BENJAMIN, Walter. Sobre o programa da filosofia por vir. Trad. Helano Ribeiro. 1. ed. Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2019.
DELEUZE, Gilles.; GUATTARI,Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 4.
Tradução Suely Rolnik. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012.DELEUZE, Gilles. Lógica do
sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva,
Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2014.
FORD, Clyde W. O herói com rosto africano: mitos da África. Trad. Carlos Mendes Rosa.
São Paulo: Summus, 1999.
FREITAS, Henrique. O arco e a arkhé: ensaios sobre literatura e cultura. Salvador: Ogum’s
Toques Negros, 2016.
GOLDSTEIN, Normal Seltzer. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 1985.
HADDOCK-LOBO, Rafael. A gira macumbística. In: HADDOCK-LOBO, Rafael (org.). Os
fantasmas da colônia: Notas de desconstrução e filosofia popular brasileira. Rio de Janeiro:
Ape’Ku, 2020. p. 138-151.
LUZ, Marco Aurélio de Oliveira. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira.
Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA: Sociedade de Estudos da Cultura Negra no
Brasil, 1995.
MTIBI, John Samuel. African religions and philosophy. London: Heinemann, 1969.
OLIVEIRA, David Eduardo de. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia
afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003.
OLIVEIRA, David Eduardo de. Filosofia da ancestralidade: corpo de mito na filosofia da
educação brasileira. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2007.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. O afiador de palavras. Prefácio. In: PEREIRA, Edimilson
de Almeida. Livro de falas. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2008. p. 5-8
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Poemas para ler com palmas. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2017.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Poesia +. (antologia 1985-2019). São Paulo: Editora 34,
2019.
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
357
REZA forte. Interpretes: BaianaSystem e Bnegão. Compositores: PASSAPUSSO, Russo,
NEGÃO, B e SEKKOBASS. In: 1 ATO – navio pirata, Intéprete: BaianaSystem: Máquina de
louco, 2021. CD, faixa 1. (3:55).
RIBEIRO, Helano. Posfácio. In: BENJAMIN, Walter. Sobre o programa da filosofia por vir.
Trad. Helano Ribeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019. p. 63-70.
RIBEIRO, Ronilda Yakemi. Alma africana no Brasil. Os Iorubás. São Paulo: Oduduwa,
1996.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nàgos e a morte: pàde, àsèsè e o culto Égun na Bahia. Trad.
Universidade Federal da Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986.
SISCAR, Marcos. Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da
modernidades. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.
ZULAR, Roberto. Prefácio. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida. Poesia + (antologia 19852019). São Paulo: Editora 34, 2019. p. 7-24
Artigo submetido em: 30 jun. 2022
Aceito para publicação em: 21 nov. 2022
DOI: https://dx.doi.org/10.22456/2238-8915.125595
Organon, Porto Alegre, v. 37, n. 74, p. 339-358, jul/dez. 2022.
DOI: 10.22456/2238-8915.125595
358