ISSN: 2526-849X
ENTRE O IMPOSSÍVEL E O IMPROVÁVEL: A MORAL KANTIANA
PENSADA A PARTIR DE MAX HORKHEIMER E JEAN PIAGET
BETWEEN THE IMPOSSIBLE AND THE IMPROVABLE: THE KANTIAN MORAL
REASONED FROM MAX HORKHEIMER AND JEAN PIAGET
Rafael Petta Daud1
Luiz A. Calmon Nabuco Lastória2
Resumo
O presente estudo teórico apresenta uma incursão nas relações de antagonismo derivadas a
partir da análise de comparação levada a cabo com base em dois textos que, sobre o tema da
moral, vieram a público praticamente à mesma época: O Juízo Moral da Criança, publicado
por Jean Piaget em 1932, e Materialismo e Moral, datado por 1933 e de autoria de Max
Horkheimer. Para isso, tomamos como referencial à comparação pretendida o modo com o
qual ambos autores indicam se posicionar acerca da possibilidade ou não da realização da
moral idealizada à luz dos imperativos categóricos de Immanuel Kant. Neste ínterim, após
situarmos algumas noções gerais sobre o psiquismo humano e as diagnoses sociais que
remetem, respectivamente, às concepções formuladas pelo pensador genebrino e pelo teórico
frankfurtiano, concluímos que a autonomia moral kantiana se apresenta como impossível –
conforme Horkheimer – ou como improvável – de acordo com Piaget.
Palavras-chave: Moral kantiana; Max Horkheimer; Jean Piaget; Autonomia moral;
referencial axiológico
Abstract
The present theoretical study presents an incursion into the relations of antagonism derived
from the analysis of comparison carried out based on two texts that, on the subject of
morality, came to the public almost at the same time: The Moral Judgment of the Child,
published by Jean Piaget in 1932, and Materialism and Morals, dated 1933 and authored by
Max Horkheimer. For this, we take as reference to the intended comparison the way in which
both authors indicate if they stand on the possibility or not of the realization of idealized
morality in the light of the categorical imperatives of Immanuel Kant. In the meantime, after
locating some general notions about the human psyche and the social diagnoses that refer,
respectively, to the conceptions formulated by the Geneva thinker and the Frankfurtian
theoretician, we conclude that kantian moral autonomy presents itself as impossible - as
Horkheimer - or as improbable - according to Piaget.
1
Doutorando em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLar). Email:
[email protected];
2
Professor Doutor Livre-Docente em Psicologia Social pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP/Departamento de Psicologia da Educação da FCLar). Email:
[email protected];
Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019.
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Keywords: kantian moral; Max Horkheimer; Jean Piaget.
Introdução
O presente estudo teórico propõe uma breve incursão nas relações de antagonismo que
podem ser derivadas por meio da análise de comparação levada a cabo principalmente a partir
de dois textos que, sobre o tema da moral3, vieram a público praticamente à mesma época: O
Juízo Moral da Criança, publicado por Jean Piaget em 1932, e Materialismo e Moral, datado
por 1933 e de autoria de Max Horkheimer. Para isso, toma-se como referencial à comparação
pretendida a forma com a qual ambos autores se posicionam acerca da possibilidade ou não
da realização da moral idealizada, na forma de lei objetiva que obrigatoriamente deve ser
dada à ação na vida prática, por Immanuel Kant. Aliás, é digno de observação o fato de que a
ênfase dada ao verbo dever quando conjugado no contexto do sistema moral kantiano não é
aleatória. Trata-se, na verdade, de um acento proposital necessário para situa-lo de acordo
com a posição que seu modo imperativo afirmativo assume no pensamento de Kant sobre a
moral, determinando-lhe como dever incondicional, decorrente de máximas4 dadas a priori5
que devem ser reconhecidas por todos através da faculdade apetitiva superior (razão) e cuja
necessária universalidade se dá, na renúncia a todo o interesse, pela adequação de suas ações
decorrentes às formulações do imperativo categórico, as quais: (1) “[...] age apenas segundo
aquela máxima pela qual tu possas querer que ela se torne uma lei universal” (KANT, 1980,
p. 51), (2) “[...] age de tal modo que uses a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa
de qualquer outro, sempre como um fim, nunca simplesmente como meio” (IBID, p. 59) e (3)
“[...] age diante de todos de tal modo como tu irias querer, a partir de qualquer pessoa, que os
outros agissem” (IBIDEM, p. 68).
Conforme o sistema filosófico de Kant, portanto, uma determinada ação só é detentora
de valor moral se pautada em um imperativo categórico e se motivada por dever – que, por
sinal, não precisa ser ensinado, mas reconhecido exclusivamente mediante o trabalho da razão
–, e não conforme o dever, como seria se caso a inclinação – ou faculdade apetitiva inferior –
3
Neste trabalho, a “moral” pode ser entendida como uma esfera que reivindica uma noção (ou um sentimento)
de obrigatoriedade e que, essencialmente, busca responder à questão: O que devo fazer? (LA TAILLE, 2010);
4
De acordo com Kant (2001), “[...] máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio objetivo (isto é o que
serviria também subjetivamente de princípio prático a todos os seres racionais, se a razão fosse inteiramente
senhora da faculdade de desejar) é a lei prática”. (p. 31);
5
A priori corresponde a um conhecimento cujo critério de verdade independe da experiência, pois em relação a
ela é anterior.
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exercesse qualquer influência na motivação para a ação. A título de ilustração, ao próprio
Kant dá-se a palavra:
[...] conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa
para que toda a gente tem inclinação imediata. Mas por isso mesmo é que o
cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedicam não tem
nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral.
Os homens conservam a sua vida conforme ao dever, sem dúvida, mas não
por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem
esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com
fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou abatido, deseja a
morte, e conserva, contudo, a vida sem a amar, não por inclinação ou medo,
mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral. (KANT, 1980,
p. 27)
De acordo com o filósofo de Königsberg, enfim, diante da tentação deve a coerência
lógica se sobrepor à paixão, à vaidade ou a qualquer interesse próprio, já que apenas a razão
seria capaz de efetuar as necessárias distinções entre bem e mal no que se refere à dimensão
teleológica da ação humana.
Embora em desacordo quanto à resolução da equação sobre a forma com a qual razão
e afeto (em Kant, inclinação) devem ou não se articular para que o homem, no âmbito do
dever enquanto imperativo moral, seja considerado um “bom homem”, é sob forte inspiração
na filosofia moral de Kant que Jean Piaget, posteriormente, irá oferecer na Psicologia a sua
contribuição à “ciência dos costumes”, tomando a universalidade do imperativo categórico
como principal referencial axiológico para o seu sujeito epistêmico, como veremos a seguir.
Kant como referencial axiológico ao objeto de Jean Piaget
Não obstante sua defesa segundo a qual a Filosofia exerce um papel imprescindível
para a formação completa do homem, Piaget (1969) a classifica como um saber de cunho
essencialmente metafísico e, advogado da necessidade da verificação empírica como forma de
atribuir legitimidade ao conhecimento, coloca em questão o seu estatuto de verdade. Fiel a
esta posição, se torna tributário de Levy-Bruhl ao assumir para si a hipótese na qual as
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questões morais também seriam passíveis de abordagens científicas e, partindo do pressuposto
de que o juízo moral é condição necessária, embora de não única, ao desenvolvimento da
moralidade, irá estuda-lo através de depoimentos fornecidos por crianças de escolas de
Genebra e Neuchâtel interrogadas a partir de temas relativos à representação de mundo, à
causalidade e a dilemas morais. Como resultado de suas investigações, publica, em 1932, o
Juízo Moral da Criança, obra a partir da qual faz conhecer a sua tese central, ou seja, a de que
há “(...) um desenvolvimento moral cujo vetor leva a uma determinada moral” (LA TAILLE,
2010, p. 107), sendo a força energética inerente a este vetor correspondente ao resultado da
articulação entre a razão e a afetividade no psiquismo.
Neste ínterim, Piaget (1994) concebe a existência de duas tendências morais, situandoas à luz da perspectiva de desenvolvimento que adota à sua compreensão sobre a moral: a
heteronomia – menos evoluída, sendo sua dimensão valorativa essencialmente condicionada à
enunciação de seu conteúdo pela autoridade, seja esta encarnada em pessoas ou em
dispositivos legais e/ou normativos – e a autonomia – mais evoluída, estando sua dimensão
valorativa equacionada pelo ideal de justiça por equidade e pela reciprocidade universal no
sentido kantiano, de modo não condicional à sua normatização.
Na heteronomia, também denominada por Piaget como a “moral do dever puro”, um
sujeito “acata” as regras enunciadas pela autoridade de modo independente de uma
necessidade por ele sentida, estando o bem estritamente associado com o que está de acordo
com estas regras e o mal, em contrapartida, com tudo o que não está. Já na autonomia, ou a
“moral do bem” (PIAGET, 1994), só há sentido em uma regra se houver uma necessidade que
abarque a si e ao outro, sendo este outro dado no sentido universal.
Amiúde, como na heteronomia piagetiana o investimento afetivo está canalizado mais
para o sujeito/autoridade da enunciação do que para o conteúdo da moral enunciada, a partir
do autor pode-se afirmar que na ausência da autoridade não é possível garantir a estabilidade
do conteúdo moral, pois neste caso o principal referencial para o seu desdobramento em ação
já não é capaz de cindir no sujeito a agir. Em outros termos, na heteronomia o sentimento de
dever é frágil, pois é exterior à consciência (LA TAILLE, 2010). Por outro lado, o contrário
pode-se afirmar com relação à autonomia. Como nesta tendência moral o investimento é
canalizado para a busca pelo bem a ser equalizado entre o si mesmo, o outro próximo e o
outro desconhecido (enfim, todos os que estão contidos no imperativo categórico kantiano),
seu conteúdo se torna estável, pois não depende de sua outorga ou não pelo referencial de
autoridade.
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Finalmente, a partir de sua Epistemologia Genética (de genèse) Piaget concebe a
moral como algo que, assim como a inteligência, se constrói por meio da interação. Assim
sendo, com base na qualidade desta interação afirma que a coação social e a cooperação não
chegam a resultados morais comparáveis, associando, teleologicamente, a coação com a
heteronomia moral e a cooperação com a autonomia. Isto porque, enquanto que a coação
obriga o indivíduo a se submeter a um sistema de regras e opiniões já completamente
organizado, impossibilitando-lhe de participar de qualquer discussão por não lhe restar outra
coisa que não seja o aceite ou a recusa – ou seja, fato social típico da heteronomia –, a
cooperação torna-se compatível com a autonomia à medida em que nela está implícita a
prática da discussão abstraída dos desvios de peso provocados pela presença autoridade,
condição possível apenas entre iguais (PIAGET, 1994).
Nesta linha, embora em termos morais considere a autonomia como mais evoluída do
que a heteronomia, Piaget entende que esta é de importância essencial ao desenvolvimento
humano. Para o autor, a moral pressupõe em sua gênese a presença de um poder ou uma
autoridade, ou seja, a própria heteronomia, sendo que a passagem desta para a autonomia será
sempre gradual. Se tomada do ponto de vista do desenvolvimento intelectual, tal observação
significa que o respeito da criança pelo adulto “[...] tem por efeito provocar o aparecimento de
uma concepção anunciadora de verdade: o pensamento deixa de afirmar simplesmente o que
lhe agrada para se conformar com a opinião do ambiente” (PIAGET, 1994, p. 298). Deste
modo, a heteronomia é, justamente, a condição para que a criança possa superar a anomia,
estado comum aos dois primeiros anos e demarcado pela ausência total de regras.
Posteriormente, porém, a própria evolução natural das relações iniciais de coação
adulta tenderá a aproximar as crianças da cooperação, já que elas crescem e, com isso, o
caráter “sagrado” que subjaz à autoridade adulta gradualmente se dilui. Neste caso, diante da
autoridade “[...] o elemento quase material do medo” (PIAGET, 1994, p. 284) desaparece e dá
lugar ao “[...] medo totalmente moral de decair aos olhos do sujeito respeitado” (IBIDEM).
Na obra de Piaget, tamanha é a centralidade da ideia de cooperação como
correspondente ao equilíbrio para o qual o vetor de desenvolvimento moral que mencionamos
anteriormente se tangencia que, em Estudos Sociológicos, ele conceberá a cooperação, e não a
coação, como o “ponto de equilíbrio” da própria sociedade. Em tom metafórico, afirma o
autor:
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[...] os edifícios totalitários mais rígidos não são sempre os mais sólidos e a
livre operação conduz a uma mobilidade cuja flexibilidade é frequentemente
garantia da maior resistência. É necessário, pois, distinguir entre os
equilíbrios verdadeiros ou estáveis, reconhecíveis por sua mobilidade e
reversibilidade, e os „falsos equilíbrios‟, como se diz em física, onde a
viscosidade, e as aderências múltiplas e os atritos asseguram uma
permanência, por assim dizer, exterior ao sistema, sem estabilidade interna.
(PIAGET, 1965, p. 188)
Portanto, a partir da posição epistemológica piagetiana, seja ela dada como
possibilidade para o entendimento empírico de seu sujeito epistêmico ou da própria sociedade
– objetos de investigação cuja relação se aplicaria e se explicaria pela dedução do segundo a
partir da natureza do primeiro –, se depreende como telos uma condição na qual os deveres
seriam deduzidos pelas leis da reciprocidade e, com isso, as pessoas passariam a se sentir
obrigadas a se posicionar umas em relação às outras, buscando por um certo equilíbrio cuja
medida, em cada uma delas, seria dada entre o bem a si e aos demais. Em outros termos, um
ideal no qual a consciência do dever se caracterizaria pela mesma universalização kantiana e,
com isso, o espírito da regra moral passaria a ser considerado à luz do princípio que determina
as ações do eu e do outro, colocando-os na mesma medida de valor (autonomia).
Demarcada tal posição, é possível afirmar que, diante dela, Max Horkheimer
certamente reagiria de modo menos otimista, conforme será mais detalhado a partir de agora.
Horkheimer como crítico de Kant
É de modo central à leitura que faz da moral a partir das condições materiais que são
estruturantes da sociedade burguesa que Max Horkheimer posiciona, em Materialismo e
Moral, a tese segundo a qual nesta sociedade o todo social, inevitavelmente, imprime e
naturaliza no aparelho psíquico de cada um o princípio fundamental que é responsável por sua
própria existência, ou seja, a busca pela propriedade individual como imperativo à vida que
deve transcorrer de modo coerente com sua ordem. Nesta, a assimilação dos homens pela
sociedade torna-se produtora da disposição humana em favorecer a vantagem individual,
sendo que “[...] nem o sentimento do indivíduo, nem a sua consciência, nem a forma de sua
felicidade nem sua ideia de Deus escapam a este princípio dominante de vida”
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(HORKHEIMER, 2011, p. 63). Aliás, vida cuja lei natural que lhe rege se traduz pela
prerrogativa econômica, sendo que “[...] onde quer que os homens sigam a lei que lhes é
natural nesta sociedade, cuidam imediatamente apenas dos assuntos do sujeito de interesse
que leva seu próprio nome” (IBIDEM, p. 65).
Diante deste fatal diagnóstico, o imperativo categórico kantiano teria a
impossibilidade de sua realização em sentido pleno como opositor que não se deixa vencer, já
que a absorção do indivíduo pela preocupação consigo mesmo e pelo que entende como seu
lhe impediria de distinguir totalmente para quem o seu trabalho significa a felicidade ou
produz a miséria. Sobretudo pelo fato de que o modo com o qual o sujeito individual
influencia a sociedade através de seu trabalho e, ao mesmo tempo, é por ela influenciado não
é nada claro, assim como não são claros os efeitos deletérios de seu agir egoísta.
Sob tal espectro, Horkheimer considera que Kant, ao propor a solução do problema
moral através da obediência a mandamentos rigidamente formulados e supostamente
ancorados em princípios reconhecíveis apenas por meio da razão pura, demonstra desprezo
pela realidade, assim como o faz quando sugere que a avaliação de uma ação deva ser
concebida apenas por aquilo que ela intenta, e não também pelo significado que é dado
conforme o respectivo momento histórico de sua realização. E complementa:
É importante não só a forma como os homens fazem algo, mas também o
que fazem; exatamente onde tudo está em jogo, isso depende menos dos
motivos daqueles que se esforçam por atingir a meta do que do fato de a
alcançarem. Certamente, objeto e situação não podem ser definidos fora do
íntimo dos homens atuantes, pois interior e exterior são, tanto na história
geral quanto na vida do indivíduo, elementos de processos dialéticos
múltiplos. Mas a tendência reinante na moral burguesa, de valorizar
exclusivamente a convicção prova ser, sobretudo na atualidade, uma posição
que freia o progresso. Não é pura e simplesmente a consciência do dever, do
entusiasmo e do sacrifício que, frente à miséria reinante, decide sobre o
destino da humanidade. Predisposição ao sacrifício pode, decerto, ser um
meio útil a serviço de cada poder, mesmo do mais atrasado; sobre a relação
em que se encontra seu conteúdo frente à evolução da sociedade total não é a
consciência que informa, mas a teoria correta. (HORKHEIMER, 2011, p.
67)
Para Horkheimer, nesta sociedade o fato de cada um agir de acordo com sua
consciência não eliminaria o caos nem a miséria, e a ideia kantiana sugestiva de que o mundo
estaria “em ordem” à medida que no espírito tudo esteja em ordem revelaria, apenas, uma fé
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primitiva na onipotência dos pensamentos, sendo que a conciliação dos interesses de todos os
indivíduos só pode ser compreendida, na utopia de Kant, como harmonia preestabelecida, ou
a crença em um milagre. Neste sentido, a harmonia entre os objetivos individuais apenas
deixaria de parecer um milagre quando a forma econômica burguesa – a qual, um dia, já teria
significado um progresso extraordinário, inclusive com a possibilidade de evolução rumo à
autoconsciência dada – fosse substituída por uma vida social onde a administração da
propriedade produtiva fosse realizada não somente a partir de boas intenções, mas
principalmente
sob
a
tutela
da
racionalidade
necessária
aos
interesses
gerais
(HORKHEIMER, 2011).
Portanto, a única possibilidade de que homens, ao mesmo tempo, desejem e realizem o
desejo de agir de modo que suas máximas sirvam de fundamento para a legislação universal
seria conquistada pela produção de um mundo onde esta lógica de ação não fosse tão
questionável. Caso contrário, o ajuste da vida de acordo com o imperativo categórico kantiano
jamais seria capaz de transcender o âmbito do subjetivismo abstrato.
Neste ínterim, Horkheimer apenas concebe como provável a anulação do viés utópico
da teoria moral de Kant através de uma concepção na qual se considera que os interesses dos
indivíduos, ao contrário da falsa hipótese pela qual seriam decorrentes de constituições
psicológicas independentes, fossem interpretados a partir das condições materiais e da real
situação global a que pertencem. Entretanto, ao levar a cabo a sua proposta Horkheimer
enterra, de uma vez por todas, qualquer traço da utopia kantiana que pudesse subsistir ao
contexto da sociedade burguesa de seu tempo. Isso porque, apesar de identificar um caráter
progressista na produção social mediante a apropriação privada no século de Kant, o filósofo
alemão considera que esta mesma produção social “evoluiu” de modo que seu uso para fins
de destruição passou a corresponder à sua maior força, assim como o ódio se tornou o
principal efeito colateral da hipocrisia responsável por esconder o fato de que a humanidade,
por sua riqueza e a despeito do interesse pela mais-valia, poderia existir sob objetivos dignos.
Para ele,
A necessidade de ocultar este fato que transparece em toda a parte determina
uma esfera de hipocrisia que não se estende apenas às relações
internacionais, mas insinua-se nas relações mais particulares, determina
também uma redução de esforços culturais, inclusive da ciência, um
embrutecimento da vida privada e pública, de tal forma que à miséria
material também se junta a miséria espiritual. Nunca a pobreza dos homens
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se viu num contraste mais gritante com a sua possível riqueza como nos dias
de hoje, nunca todas as forças estiveram mais cruelmente algemadas como
nestas gerações onde as crianças passam fome e as mãos dos pais fabricam
bombas. (HORKHEIMER, 2011, p. 77)
A partir dos desdobramentos destas considerações, Horkheimer concebe, inclusive de
modo anterior a Auschwitz e oposto a Piaget, um diagnóstico através do qual o mundo estaria
caminhando para um desastre comparável apenas com a decadência da Antiguidade, sendo a
barbárie aplicada como adjetivo exato à sua explicação. Nesta conjectura, a felicidade
mediante um valor passa a poder, ao mesmo tempo, significar a infelicidade, visto que cada
um se encontra à mercê do acaso cego e apartado da posição de sujeito de seu destino.
Portanto, em uma sociedade cuja barbárie corresponde ao conteúdo de sua própria profecia, a
moral de Kant teria a sua verdade circunscrita tão somente ao campo ideal, conforme nos
indica o teórico frankfurtiano.
Situadas as delimitações fundamentais à comparação pretendida por meio deste
estudo, a seguir são apresentadas as considerações finais.
Considerações finais
Ao considerar que os diversos interesses dos indivíduos se ancoram nas condições
materiais e na real situação global da sociedade a que pertencem, Horkheimer não conceberia
como possível a conquista da autonomia moral entendida pelo ideal da reciprocidade
universal em uma sociedade cujas bases que se naturalizam como princípio da própria
sobrevivência individual não possuem qualquer relação com o imperativo categórico
kantiano. Aliás, até mesmo Piaget, caso tivesse assumido um diagnóstico social menos
otimista do que o publicado principalmente em Estudos Sociológicos, provavelmente também
não. Ou seja, a distinção entre as concepções acerca da possibilidade ou não da “realização da
moral” tomada no sentido kantiano aparentemente se assenta menos no modo com o qual cada
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representante entende a natureza que concerne ao psiquismo humano6 do que na forma com a
qual ambos formulam suas respectivas diagnoses aceca da sociedade.
Portanto, é à luz das próprias contingências sociais contemporâneas percebidas por
cada um que a autonomia moral idealizada inicialmente por Immanuel Kant se apresenta
como impossível – conforme Horkheimer – ou como improvável – de acordo com Piaget.
Referências
HORKHEIMER, Max. Materialismo e Moral. In: HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica I.
São Paulo: Perspectiva, 1933/2011a. p. 59-88.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. de
Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
LA TAILLE, Yves de. Moral e Ética: Uma Leitura Psicológica. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, Brasília, 2010, Vol. 26 n. especial, pp. 105-114.
PIAGET, Jean. O juízo moral na Criança. São Paulo: Summus, 1932/1994.
PIAGET, Jean. Estudos Sociológicos. Rio de Janeiro: Forense, 1965.
PIAGET, Jean. Sabedoria e Ilusões da Filosofia. In: Os Pensadores (coleção). 2. Ed. São
Paulo: Abril Cultural, pp. 65-208, 1969.
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Em que pese a aparente concordância de ambos – Piaget e Horkheimer – frente ao princípio ético kantiano da
universalidade como telos para a realização da humanidade sob o prisma da razão, não se pode minimizar as
influências e de A. Schopenhauer e de S. Freud sobre o pensamento do segundo, sobretudo no que tange à
concepção do psiquismo e de sua particular dinâmica.
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