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Entre O Impossível e O Improvável

Devir Educação

O presente estudo teórico apresenta uma incursão nas relações de antagonismo derivadas a partir da análise de comparação levada a cabo com base em dois textos que, sobre o tema da moral, vieram a público praticamente à mesma época: O Juízo Moral da Criança, publicado por Jean Piaget em 1932, e Materialismo e Moral, datado por 1933 e de autoria de Max Horkheimer. Para isso, tomamos como referencial à comparação pretendida o modo com o qual ambos autores indicam se posicionar acerca da possibilidade ou não da realização da moral idealizada à luz dos imperativos categóricos de Immanuel Kant. Neste ínterim, após situarmos algumas noções gerais sobre o psiquismo humano e as diagnoses sociais que remetem, respectivamente, às concepções formuladas pelo pensador genebrino e pelo teórico frankfurtiano, concluímos que a autonomia moral kantiana se apresenta como impossível – conforme Horkheimer – ou como improvável – de acordo com Piaget.

ISSN: 2526-849X ENTRE O IMPOSSÍVEL E O IMPROVÁVEL: A MORAL KANTIANA PENSADA A PARTIR DE MAX HORKHEIMER E JEAN PIAGET BETWEEN THE IMPOSSIBLE AND THE IMPROVABLE: THE KANTIAN MORAL REASONED FROM MAX HORKHEIMER AND JEAN PIAGET Rafael Petta Daud1 Luiz A. Calmon Nabuco Lastória2 Resumo O presente estudo teórico apresenta uma incursão nas relações de antagonismo derivadas a partir da análise de comparação levada a cabo com base em dois textos que, sobre o tema da moral, vieram a público praticamente à mesma época: O Juízo Moral da Criança, publicado por Jean Piaget em 1932, e Materialismo e Moral, datado por 1933 e de autoria de Max Horkheimer. Para isso, tomamos como referencial à comparação pretendida o modo com o qual ambos autores indicam se posicionar acerca da possibilidade ou não da realização da moral idealizada à luz dos imperativos categóricos de Immanuel Kant. Neste ínterim, após situarmos algumas noções gerais sobre o psiquismo humano e as diagnoses sociais que remetem, respectivamente, às concepções formuladas pelo pensador genebrino e pelo teórico frankfurtiano, concluímos que a autonomia moral kantiana se apresenta como impossível – conforme Horkheimer – ou como improvável – de acordo com Piaget. Palavras-chave: Moral kantiana; Max Horkheimer; Jean Piaget; Autonomia moral; referencial axiológico Abstract The present theoretical study presents an incursion into the relations of antagonism derived from the analysis of comparison carried out based on two texts that, on the subject of morality, came to the public almost at the same time: The Moral Judgment of the Child, published by Jean Piaget in 1932, and Materialism and Morals, dated 1933 and authored by Max Horkheimer. For this, we take as reference to the intended comparison the way in which both authors indicate if they stand on the possibility or not of the realization of idealized morality in the light of the categorical imperatives of Immanuel Kant. In the meantime, after locating some general notions about the human psyche and the social diagnoses that refer, respectively, to the conceptions formulated by the Geneva thinker and the Frankfurtian theoretician, we conclude that kantian moral autonomy presents itself as impossible - as Horkheimer - or as improbable - according to Piaget. 1 Doutorando em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLar). Email: [email protected]; 2 Professor Doutor Livre-Docente em Psicologia Social pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Departamento de Psicologia da Educação da FCLar). Email: [email protected]; Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019. 40 ISSN: 2526-849X Keywords: kantian moral; Max Horkheimer; Jean Piaget. Introdução O presente estudo teórico propõe uma breve incursão nas relações de antagonismo que podem ser derivadas por meio da análise de comparação levada a cabo principalmente a partir de dois textos que, sobre o tema da moral3, vieram a público praticamente à mesma época: O Juízo Moral da Criança, publicado por Jean Piaget em 1932, e Materialismo e Moral, datado por 1933 e de autoria de Max Horkheimer. Para isso, toma-se como referencial à comparação pretendida a forma com a qual ambos autores se posicionam acerca da possibilidade ou não da realização da moral idealizada, na forma de lei objetiva que obrigatoriamente deve ser dada à ação na vida prática, por Immanuel Kant. Aliás, é digno de observação o fato de que a ênfase dada ao verbo dever quando conjugado no contexto do sistema moral kantiano não é aleatória. Trata-se, na verdade, de um acento proposital necessário para situa-lo de acordo com a posição que seu modo imperativo afirmativo assume no pensamento de Kant sobre a moral, determinando-lhe como dever incondicional, decorrente de máximas4 dadas a priori5 que devem ser reconhecidas por todos através da faculdade apetitiva superior (razão) e cuja necessária universalidade se dá, na renúncia a todo o interesse, pela adequação de suas ações decorrentes às formulações do imperativo categórico, as quais: (1) “[...] age apenas segundo aquela máxima pela qual tu possas querer que ela se torne uma lei universal” (KANT, 1980, p. 51), (2) “[...] age de tal modo que uses a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim, nunca simplesmente como meio” (IBID, p. 59) e (3) “[...] age diante de todos de tal modo como tu irias querer, a partir de qualquer pessoa, que os outros agissem” (IBIDEM, p. 68). Conforme o sistema filosófico de Kant, portanto, uma determinada ação só é detentora de valor moral se pautada em um imperativo categórico e se motivada por dever – que, por sinal, não precisa ser ensinado, mas reconhecido exclusivamente mediante o trabalho da razão –, e não conforme o dever, como seria se caso a inclinação – ou faculdade apetitiva inferior – 3 Neste trabalho, a “moral” pode ser entendida como uma esfera que reivindica uma noção (ou um sentimento) de obrigatoriedade e que, essencialmente, busca responder à questão: O que devo fazer? (LA TAILLE, 2010); 4 De acordo com Kant (2001), “[...] máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio objetivo (isto é o que serviria também subjetivamente de princípio prático a todos os seres racionais, se a razão fosse inteiramente senhora da faculdade de desejar) é a lei prática”. (p. 31); 5 A priori corresponde a um conhecimento cujo critério de verdade independe da experiência, pois em relação a ela é anterior. Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019. 41 ISSN: 2526-849X exercesse qualquer influência na motivação para a ação. A título de ilustração, ao próprio Kant dá-se a palavra: [...] conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação imediata. Mas por isso mesmo é que o cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens conservam a sua vida conforme ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva, contudo, a vida sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral. (KANT, 1980, p. 27) De acordo com o filósofo de Königsberg, enfim, diante da tentação deve a coerência lógica se sobrepor à paixão, à vaidade ou a qualquer interesse próprio, já que apenas a razão seria capaz de efetuar as necessárias distinções entre bem e mal no que se refere à dimensão teleológica da ação humana. Embora em desacordo quanto à resolução da equação sobre a forma com a qual razão e afeto (em Kant, inclinação) devem ou não se articular para que o homem, no âmbito do dever enquanto imperativo moral, seja considerado um “bom homem”, é sob forte inspiração na filosofia moral de Kant que Jean Piaget, posteriormente, irá oferecer na Psicologia a sua contribuição à “ciência dos costumes”, tomando a universalidade do imperativo categórico como principal referencial axiológico para o seu sujeito epistêmico, como veremos a seguir. Kant como referencial axiológico ao objeto de Jean Piaget Não obstante sua defesa segundo a qual a Filosofia exerce um papel imprescindível para a formação completa do homem, Piaget (1969) a classifica como um saber de cunho essencialmente metafísico e, advogado da necessidade da verificação empírica como forma de atribuir legitimidade ao conhecimento, coloca em questão o seu estatuto de verdade. Fiel a esta posição, se torna tributário de Levy-Bruhl ao assumir para si a hipótese na qual as Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019. 42 ISSN: 2526-849X questões morais também seriam passíveis de abordagens científicas e, partindo do pressuposto de que o juízo moral é condição necessária, embora de não única, ao desenvolvimento da moralidade, irá estuda-lo através de depoimentos fornecidos por crianças de escolas de Genebra e Neuchâtel interrogadas a partir de temas relativos à representação de mundo, à causalidade e a dilemas morais. Como resultado de suas investigações, publica, em 1932, o Juízo Moral da Criança, obra a partir da qual faz conhecer a sua tese central, ou seja, a de que há “(...) um desenvolvimento moral cujo vetor leva a uma determinada moral” (LA TAILLE, 2010, p. 107), sendo a força energética inerente a este vetor correspondente ao resultado da articulação entre a razão e a afetividade no psiquismo. Neste ínterim, Piaget (1994) concebe a existência de duas tendências morais, situandoas à luz da perspectiva de desenvolvimento que adota à sua compreensão sobre a moral: a heteronomia – menos evoluída, sendo sua dimensão valorativa essencialmente condicionada à enunciação de seu conteúdo pela autoridade, seja esta encarnada em pessoas ou em dispositivos legais e/ou normativos – e a autonomia – mais evoluída, estando sua dimensão valorativa equacionada pelo ideal de justiça por equidade e pela reciprocidade universal no sentido kantiano, de modo não condicional à sua normatização. Na heteronomia, também denominada por Piaget como a “moral do dever puro”, um sujeito “acata” as regras enunciadas pela autoridade de modo independente de uma necessidade por ele sentida, estando o bem estritamente associado com o que está de acordo com estas regras e o mal, em contrapartida, com tudo o que não está. Já na autonomia, ou a “moral do bem” (PIAGET, 1994), só há sentido em uma regra se houver uma necessidade que abarque a si e ao outro, sendo este outro dado no sentido universal. Amiúde, como na heteronomia piagetiana o investimento afetivo está canalizado mais para o sujeito/autoridade da enunciação do que para o conteúdo da moral enunciada, a partir do autor pode-se afirmar que na ausência da autoridade não é possível garantir a estabilidade do conteúdo moral, pois neste caso o principal referencial para o seu desdobramento em ação já não é capaz de cindir no sujeito a agir. Em outros termos, na heteronomia o sentimento de dever é frágil, pois é exterior à consciência (LA TAILLE, 2010). Por outro lado, o contrário pode-se afirmar com relação à autonomia. Como nesta tendência moral o investimento é canalizado para a busca pelo bem a ser equalizado entre o si mesmo, o outro próximo e o outro desconhecido (enfim, todos os que estão contidos no imperativo categórico kantiano), seu conteúdo se torna estável, pois não depende de sua outorga ou não pelo referencial de autoridade. Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019. 43 ISSN: 2526-849X Finalmente, a partir de sua Epistemologia Genética (de genèse) Piaget concebe a moral como algo que, assim como a inteligência, se constrói por meio da interação. Assim sendo, com base na qualidade desta interação afirma que a coação social e a cooperação não chegam a resultados morais comparáveis, associando, teleologicamente, a coação com a heteronomia moral e a cooperação com a autonomia. Isto porque, enquanto que a coação obriga o indivíduo a se submeter a um sistema de regras e opiniões já completamente organizado, impossibilitando-lhe de participar de qualquer discussão por não lhe restar outra coisa que não seja o aceite ou a recusa – ou seja, fato social típico da heteronomia –, a cooperação torna-se compatível com a autonomia à medida em que nela está implícita a prática da discussão abstraída dos desvios de peso provocados pela presença autoridade, condição possível apenas entre iguais (PIAGET, 1994). Nesta linha, embora em termos morais considere a autonomia como mais evoluída do que a heteronomia, Piaget entende que esta é de importância essencial ao desenvolvimento humano. Para o autor, a moral pressupõe em sua gênese a presença de um poder ou uma autoridade, ou seja, a própria heteronomia, sendo que a passagem desta para a autonomia será sempre gradual. Se tomada do ponto de vista do desenvolvimento intelectual, tal observação significa que o respeito da criança pelo adulto “[...] tem por efeito provocar o aparecimento de uma concepção anunciadora de verdade: o pensamento deixa de afirmar simplesmente o que lhe agrada para se conformar com a opinião do ambiente” (PIAGET, 1994, p. 298). Deste modo, a heteronomia é, justamente, a condição para que a criança possa superar a anomia, estado comum aos dois primeiros anos e demarcado pela ausência total de regras. Posteriormente, porém, a própria evolução natural das relações iniciais de coação adulta tenderá a aproximar as crianças da cooperação, já que elas crescem e, com isso, o caráter “sagrado” que subjaz à autoridade adulta gradualmente se dilui. Neste caso, diante da autoridade “[...] o elemento quase material do medo” (PIAGET, 1994, p. 284) desaparece e dá lugar ao “[...] medo totalmente moral de decair aos olhos do sujeito respeitado” (IBIDEM). Na obra de Piaget, tamanha é a centralidade da ideia de cooperação como correspondente ao equilíbrio para o qual o vetor de desenvolvimento moral que mencionamos anteriormente se tangencia que, em Estudos Sociológicos, ele conceberá a cooperação, e não a coação, como o “ponto de equilíbrio” da própria sociedade. Em tom metafórico, afirma o autor: Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019. 44 ISSN: 2526-849X [...] os edifícios totalitários mais rígidos não são sempre os mais sólidos e a livre operação conduz a uma mobilidade cuja flexibilidade é frequentemente garantia da maior resistência. É necessário, pois, distinguir entre os equilíbrios verdadeiros ou estáveis, reconhecíveis por sua mobilidade e reversibilidade, e os „falsos equilíbrios‟, como se diz em física, onde a viscosidade, e as aderências múltiplas e os atritos asseguram uma permanência, por assim dizer, exterior ao sistema, sem estabilidade interna. (PIAGET, 1965, p. 188) Portanto, a partir da posição epistemológica piagetiana, seja ela dada como possibilidade para o entendimento empírico de seu sujeito epistêmico ou da própria sociedade – objetos de investigação cuja relação se aplicaria e se explicaria pela dedução do segundo a partir da natureza do primeiro –, se depreende como telos uma condição na qual os deveres seriam deduzidos pelas leis da reciprocidade e, com isso, as pessoas passariam a se sentir obrigadas a se posicionar umas em relação às outras, buscando por um certo equilíbrio cuja medida, em cada uma delas, seria dada entre o bem a si e aos demais. Em outros termos, um ideal no qual a consciência do dever se caracterizaria pela mesma universalização kantiana e, com isso, o espírito da regra moral passaria a ser considerado à luz do princípio que determina as ações do eu e do outro, colocando-os na mesma medida de valor (autonomia). Demarcada tal posição, é possível afirmar que, diante dela, Max Horkheimer certamente reagiria de modo menos otimista, conforme será mais detalhado a partir de agora. Horkheimer como crítico de Kant É de modo central à leitura que faz da moral a partir das condições materiais que são estruturantes da sociedade burguesa que Max Horkheimer posiciona, em Materialismo e Moral, a tese segundo a qual nesta sociedade o todo social, inevitavelmente, imprime e naturaliza no aparelho psíquico de cada um o princípio fundamental que é responsável por sua própria existência, ou seja, a busca pela propriedade individual como imperativo à vida que deve transcorrer de modo coerente com sua ordem. Nesta, a assimilação dos homens pela sociedade torna-se produtora da disposição humana em favorecer a vantagem individual, sendo que “[...] nem o sentimento do indivíduo, nem a sua consciência, nem a forma de sua felicidade nem sua ideia de Deus escapam a este princípio dominante de vida” Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019. 45 ISSN: 2526-849X (HORKHEIMER, 2011, p. 63). Aliás, vida cuja lei natural que lhe rege se traduz pela prerrogativa econômica, sendo que “[...] onde quer que os homens sigam a lei que lhes é natural nesta sociedade, cuidam imediatamente apenas dos assuntos do sujeito de interesse que leva seu próprio nome” (IBIDEM, p. 65). Diante deste fatal diagnóstico, o imperativo categórico kantiano teria a impossibilidade de sua realização em sentido pleno como opositor que não se deixa vencer, já que a absorção do indivíduo pela preocupação consigo mesmo e pelo que entende como seu lhe impediria de distinguir totalmente para quem o seu trabalho significa a felicidade ou produz a miséria. Sobretudo pelo fato de que o modo com o qual o sujeito individual influencia a sociedade através de seu trabalho e, ao mesmo tempo, é por ela influenciado não é nada claro, assim como não são claros os efeitos deletérios de seu agir egoísta. Sob tal espectro, Horkheimer considera que Kant, ao propor a solução do problema moral através da obediência a mandamentos rigidamente formulados e supostamente ancorados em princípios reconhecíveis apenas por meio da razão pura, demonstra desprezo pela realidade, assim como o faz quando sugere que a avaliação de uma ação deva ser concebida apenas por aquilo que ela intenta, e não também pelo significado que é dado conforme o respectivo momento histórico de sua realização. E complementa: É importante não só a forma como os homens fazem algo, mas também o que fazem; exatamente onde tudo está em jogo, isso depende menos dos motivos daqueles que se esforçam por atingir a meta do que do fato de a alcançarem. Certamente, objeto e situação não podem ser definidos fora do íntimo dos homens atuantes, pois interior e exterior são, tanto na história geral quanto na vida do indivíduo, elementos de processos dialéticos múltiplos. Mas a tendência reinante na moral burguesa, de valorizar exclusivamente a convicção prova ser, sobretudo na atualidade, uma posição que freia o progresso. Não é pura e simplesmente a consciência do dever, do entusiasmo e do sacrifício que, frente à miséria reinante, decide sobre o destino da humanidade. Predisposição ao sacrifício pode, decerto, ser um meio útil a serviço de cada poder, mesmo do mais atrasado; sobre a relação em que se encontra seu conteúdo frente à evolução da sociedade total não é a consciência que informa, mas a teoria correta. (HORKHEIMER, 2011, p. 67) Para Horkheimer, nesta sociedade o fato de cada um agir de acordo com sua consciência não eliminaria o caos nem a miséria, e a ideia kantiana sugestiva de que o mundo estaria “em ordem” à medida que no espírito tudo esteja em ordem revelaria, apenas, uma fé Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019. 46 ISSN: 2526-849X primitiva na onipotência dos pensamentos, sendo que a conciliação dos interesses de todos os indivíduos só pode ser compreendida, na utopia de Kant, como harmonia preestabelecida, ou a crença em um milagre. Neste sentido, a harmonia entre os objetivos individuais apenas deixaria de parecer um milagre quando a forma econômica burguesa – a qual, um dia, já teria significado um progresso extraordinário, inclusive com a possibilidade de evolução rumo à autoconsciência dada – fosse substituída por uma vida social onde a administração da propriedade produtiva fosse realizada não somente a partir de boas intenções, mas principalmente sob a tutela da racionalidade necessária aos interesses gerais (HORKHEIMER, 2011). Portanto, a única possibilidade de que homens, ao mesmo tempo, desejem e realizem o desejo de agir de modo que suas máximas sirvam de fundamento para a legislação universal seria conquistada pela produção de um mundo onde esta lógica de ação não fosse tão questionável. Caso contrário, o ajuste da vida de acordo com o imperativo categórico kantiano jamais seria capaz de transcender o âmbito do subjetivismo abstrato. Neste ínterim, Horkheimer apenas concebe como provável a anulação do viés utópico da teoria moral de Kant através de uma concepção na qual se considera que os interesses dos indivíduos, ao contrário da falsa hipótese pela qual seriam decorrentes de constituições psicológicas independentes, fossem interpretados a partir das condições materiais e da real situação global a que pertencem. Entretanto, ao levar a cabo a sua proposta Horkheimer enterra, de uma vez por todas, qualquer traço da utopia kantiana que pudesse subsistir ao contexto da sociedade burguesa de seu tempo. Isso porque, apesar de identificar um caráter progressista na produção social mediante a apropriação privada no século de Kant, o filósofo alemão considera que esta mesma produção social “evoluiu” de modo que seu uso para fins de destruição passou a corresponder à sua maior força, assim como o ódio se tornou o principal efeito colateral da hipocrisia responsável por esconder o fato de que a humanidade, por sua riqueza e a despeito do interesse pela mais-valia, poderia existir sob objetivos dignos. Para ele, A necessidade de ocultar este fato que transparece em toda a parte determina uma esfera de hipocrisia que não se estende apenas às relações internacionais, mas insinua-se nas relações mais particulares, determina também uma redução de esforços culturais, inclusive da ciência, um embrutecimento da vida privada e pública, de tal forma que à miséria material também se junta a miséria espiritual. Nunca a pobreza dos homens Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019. 47 ISSN: 2526-849X se viu num contraste mais gritante com a sua possível riqueza como nos dias de hoje, nunca todas as forças estiveram mais cruelmente algemadas como nestas gerações onde as crianças passam fome e as mãos dos pais fabricam bombas. (HORKHEIMER, 2011, p. 77) A partir dos desdobramentos destas considerações, Horkheimer concebe, inclusive de modo anterior a Auschwitz e oposto a Piaget, um diagnóstico através do qual o mundo estaria caminhando para um desastre comparável apenas com a decadência da Antiguidade, sendo a barbárie aplicada como adjetivo exato à sua explicação. Nesta conjectura, a felicidade mediante um valor passa a poder, ao mesmo tempo, significar a infelicidade, visto que cada um se encontra à mercê do acaso cego e apartado da posição de sujeito de seu destino. Portanto, em uma sociedade cuja barbárie corresponde ao conteúdo de sua própria profecia, a moral de Kant teria a sua verdade circunscrita tão somente ao campo ideal, conforme nos indica o teórico frankfurtiano. Situadas as delimitações fundamentais à comparação pretendida por meio deste estudo, a seguir são apresentadas as considerações finais. Considerações finais Ao considerar que os diversos interesses dos indivíduos se ancoram nas condições materiais e na real situação global da sociedade a que pertencem, Horkheimer não conceberia como possível a conquista da autonomia moral entendida pelo ideal da reciprocidade universal em uma sociedade cujas bases que se naturalizam como princípio da própria sobrevivência individual não possuem qualquer relação com o imperativo categórico kantiano. Aliás, até mesmo Piaget, caso tivesse assumido um diagnóstico social menos otimista do que o publicado principalmente em Estudos Sociológicos, provavelmente também não. Ou seja, a distinção entre as concepções acerca da possibilidade ou não da “realização da moral” tomada no sentido kantiano aparentemente se assenta menos no modo com o qual cada Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019. 48 ISSN: 2526-849X representante entende a natureza que concerne ao psiquismo humano6 do que na forma com a qual ambos formulam suas respectivas diagnoses aceca da sociedade. Portanto, é à luz das próprias contingências sociais contemporâneas percebidas por cada um que a autonomia moral idealizada inicialmente por Immanuel Kant se apresenta como impossível – conforme Horkheimer – ou como improvável – de acordo com Piaget. Referências HORKHEIMER, Max. Materialismo e Moral. In: HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica I. São Paulo: Perspectiva, 1933/2011a. p. 59-88. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. LA TAILLE, Yves de. Moral e Ética: Uma Leitura Psicológica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, 2010, Vol. 26 n. especial, pp. 105-114. PIAGET, Jean. O juízo moral na Criança. São Paulo: Summus, 1932/1994. PIAGET, Jean. Estudos Sociológicos. Rio de Janeiro: Forense, 1965. PIAGET, Jean. Sabedoria e Ilusões da Filosofia. In: Os Pensadores (coleção). 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, pp. 65-208, 1969. 6 Em que pese a aparente concordância de ambos – Piaget e Horkheimer – frente ao princípio ético kantiano da universalidade como telos para a realização da humanidade sob o prisma da razão, não se pode minimizar as influências e de A. Schopenhauer e de S. Freud sobre o pensamento do segundo, sobretudo no que tange à concepção do psiquismo e de sua particular dinâmica. Revista Devir Educação, Lavras, vol.3, n.1, p.40-49 jan./jun., 2019. 49