Ponto de vista
500 anos de
demografia brasileira:
uma resenha *
Massimo Livi Bacci
Em 1999, passei parte de meu sabático
no Centro de Desenvolvimento e
Planejamento Regional (Cedeplar) da
UFMG e no Núcleo de Estudos de
População (NEPO) da Unicamp. Durante o
período em que permaneci nestas duas
universidades brasileiras, ministrei cursos
nos seus programas de Doutorado e
dediquei parte do tempo disponível ao
levantamento de material sobre a história
da população brasileira. Retornando à Itália,
meu colega Carlo Corsini, diretor da revista
Popolalizone e Storia, solicitou-me a
elaboração de uma “resenha” da história
da demografia no Brasil. Realizei esta tarefa
com prazer, para dar conhecimento aos
estudiosos italianos das venturas e
desventuras de um país ao qual a Itália está
particularmente vinculada, inclusive
demograficamente. Para mim é uma honra
que este trabalho seja publicado nesta
Revista, graças à tradução da amiga Maria
Silvia C. B. Bassanezi – a qual devo
preciosas indicações. Gostaria também que
os estudiosos brasileiros soubessem qual
é a natureza deste escrito: trata-se do ponto
de vista de um estrangeiro, não especialista
na vida brasileira, mas profundamente
interessado pela mesma
1. Em 22 de abril de 1500, uma frota de
13 navios, capitaneada por Pedro Álvares
Cabral, aportou nas cercanias da atual
cidade de Porto Seguro, aproximadamente
no meio dos 8 mil quilômetros da costa
Atlântica do Brasil atual. Talvez este
desembarque tenha sido acidental: Cabral
navegava em direção às Índias e deveria
percorrer a rota traçada pelo navegador
Vasco da Gama, que regressara a Portugal
no ano anterior. Depois das ilhas de Cabo
Verde, no entanto, a frota se desviara de
sua rota, empurrada por ventos e correntes,
em direção ao Ocidente1. A permanência
no Novo Mundo durou apenas oito dias, o
suficiente para descanso e abastecimento
dos navios. No dia 1o de maio Cabral rumou
para as Índias, seu destino final. Entretanto,
o contato com a nova terra fora estabelecido, marcando o destino do moderno
Brasil, o quinto país do mundo em dimensão
geográfica (8,5 milhões de km 2 ) e
demográfica (170 milhões de habitantes em
2000).
Para os estudiosos das Ciências
Humanas e da Demografia, o Brasil
apresenta-se como um laboratório de
extraordinário interesse. A população
autóctone, tênue em números e dispersa
no enorme território, após o contato com os
europeus, chegou a estar próxima (e, em
muitas áreas, rapidamente) da extinção. Os
conquistadores e os colonos dessa terra,
que ocupa a metade do continente sulamericano, vinham de Portugal, um
pequeno país com uma população
modesta, mas que não obstante conseguiu
imprimir sua marca cultural e demográfica
no Brasil. O tráfico de escravos, que
alimentou a força de trabalho na Colônia
durante três séculos, introduziu no Brasil
dois quintos dos 10 milhões de africanos
trazidos à América pelos navios negreiros
(Curtin, 1969, p. 268). A emigração
européia, na segunda metade do século XIX
e primeiros 30 anos do século XX,
enriqueceu ainda mais a já complexa
sociedade brasileira. Por cinco séculos, os
processos de mestiçagem entre etnias
foram seguramente os mais intensos já
vistos em um grande país na época
moderna. Finalmente, na segunda metade
do século XX, a transição demográfica
– e em especial a da fecundidade –
Tradução de Maria Silvia C.B. Bassanezi do original italiano “500 anni di demografia brasiliana: una rassegna”, publicado na revista
Popolazione e Storia, n. 1, 2001, p. 13-34.
1
A historiografia brasileira recente tem questionado esta versão do descobrimento do Brasil. Baseando-se no contexto da época
e em evidências documentais, está mais propensa a aceitar a hipótese da intencionalidade do descobrimento. [N. do T.]
*
Livi-Bacci, M.L.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002
desenvolveu-se de um modo muito
particular, chegando, no novo milênio, a
uma reprodução próxima do nível de
reposição.
Não faltam, pois, razões para considerar a história demográfica do Brasil um
objeto fascinante de estudo.
2. Ao contrário da América Hispânica,
o Brasil é pobre em fontes documentais até
o final do período colonial (Marcílio, 1990)2.
As grandes linhas de desenvolvimento e
mudança podem ser intuídas, mas não
medidas, senão muito grosseiramente. Esta
carência pode ser imputada, de modo geral,
a duas grandes causas. A primeira é a falta
de uma sociedade autóctone altamente
organizada e estratificada – como aquela
existente na América Central ou na região
andina. Havia poucos milhões de habitantes à época do descobrimento, que se
transformaram em poucas centenas de
milhares dispersos no imenso território no
momento da Independência – uma realidade
pouco verificável pelos escassos grupos de
colonos instalados na faixa costeira. A
segunda razão são as ligações mais frouxas
dos colonos com a mãe pátria pequena e
longínqua, a qual não conseguiu estabelecer um estreito controle político,
administrativo e burocrático sobre sua
colônia (ao contrário do que ocorreu com a
Espanha e suas terras na América
Espanhola)3.
Mais que para o resto do continente
americano, as estimativas existentes para
o Brasil sobre o volume da população à
época do contato com os europeus são
conjecturas baseadas em notícias e
avaliação de colonos, religiosos ou viajantes. Tais estimativas contam com pouca
base na realidade, foram elaboradas em
épocas muito posteriores e descontam as
taxas presumidas de depopulação.
Todavia, vale a pena dar conta dos esforços
mais sérios, pelo menos para se ter uma
idéia do patrimônio demográfico do Brasil
no início de sua história moderna.
A população autóctone vivia principalmente da pesca, caça e coleta; em
algumas áreas era visível o cultivo de
culturas, sobretudo a da mandioca doce ou
amarga. A área com maior densidade de
povoamento era aquela restrita faixa de
planície de aluvião ao redor do rio
Amazonas e seus principais afluentes e a
faixa costeira ao sul do estuário amazônico,
zona rica em caça e pesca em particular.
Muito menor era o povoamento nas savanas
dos altiplanos e quase nulo aquele da
floresta amazônica, que ocupava a maior
parte da superfície do território brasileiro
(Denevan, 1992a, p. 206-208). Segundo
Denevan, que baseou sua estimativa sobre
valores de uma mínima densidade potencial
(com algum controle de valores mais
recentes, descontadas hipotéticas taxas de
depopulação), a população da “Grande
Amazônia” (9,6 milhões de km2, correspondentes ao atual território brasileiro do
norte do Trópico – excluídos os atuais
Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul –, somado à área amazônica
da Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e à da
bacia do Orinoco da Venezuela) era de 6,8
milhões de habitantes. Esta estimativa
representaria 12,6% de toda a população
do continente americano no momento do
contato com os europeus (53,9 milhões
segundo revisão coordenada pelo mesmo
Denevan) (cf. Denevan, 1992b, p. xxviii).
Quase quatro décimos da população
estavam concentrados na reduzida faixa
costeira e à margem amazônica – uma área
de 2% do território interno. Foi com esta
população que os portugueses primeiramente entraram em contato.
Entre outras estimativas “racionais” da
população por volta de 1500 encontra-se a
de Steward, autor e coordenador da
influente obra Handbook of South American
indians, que calcula em cerca de 2,6
Tal afirmação é mais válida para fontes de caráter demográfico. [N. do T.]
Segundo a historiadora Laima Mesgravis, as ligações de Portugal com o Brasil eram semelhantes às existentes entre Espanha
e suas colônias na América. O que diferenciava a colônia portuguesa das colônias espanholas era que a burocracia, nessas últimas,
era maior e havia um maior número de funcionários. No Brasil, boa parte da burocracia era executada de forma indireta, por
pessoas não assalariadas, que prestavam serviços gratuitamente. Por exemplo: as “milícias”, que executavam atividades policiais
e militares, os “agentes da Coroa” e as Câmaras Municipais, que exerciam atividades políticas e administrativas. [N. do T.]
2
3
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milhões o número de habitantes dessa área
(Stewart, 1949). Esta estimativa baseia-se
no recenseamento de numerosíssimos
grupos tribais, relacionado a estimativas
com diferentes graus de confiabilidade dos
séculos XVI e XVII (às quais se atribui, em
geral, pouco crédito). Hemming (1978), por
sua vez, estima 2,4 milhões, baseando-se
em uma resenha detalhada das fontes
existentes e em várias metodologias. Estas
cifras mais “aceitáveis” inserem-se em um
amplo leque de valores (de um mínimo de
0,5 a um máximo de 10 milhões) (Denevan,
1992a, p. 205), cuja amplitude decorre da
tomada de posições apriorísticas voltadas
a maximizar (ou a minimizar) a catástrofe
provocada pelo contato entre autóctones e
colonizadores.
Testemunhos de época dos primeiros
povoadores – particularmente jesuítas, a
partir da metade do século XVI – e de épocas
posteriores confirmam a opinião dos
estudiosos contemporâneos de que a
população indígena sofreu uma queda
extraordinária. As contagens gerais de
1798 deram um total de 252 mil índios
“pacificados”, ao passo que a contagem
de 1819, que inclui também os índios não
submissos, refere-se a 800 mil (Marcílio,
1990, p. 45). Com relação aos autóctones
brasileiros – como para outras populações
americanas –, os historiadores são
desafiados a compreender a causa da
depopulação indígena.
Na segunda metade do século XX
prevalece entre os estudiosos uma linha
revisionista, que, além de reavaliar a alta
estimativa da população autóctone à
época do contato, tem sustentado a
prevalência da epidemiologia como causa
da depopulação indígena – peculiar é a
estimativa de Dobyns (1966) de 113
milhões para todo o continente, contra a
estimativa anterior de Steward, Kroeber e
Rosenblat de entre 8 e 15 milhões
(Denevan, 1992b, p. 3).
A introdução da varíola, sarampo,
tuberculose, uma variedade de gripes e de
outras patologias na população isolada e
não imunizada estaria na raiz da catástrofe.
Sobre o impacto destruidor das epidemias
não restam dúvidas, e as evidências
documentais são muitas também para o
Brasil. A epidemia de varíola nos anos
1562-65 levou ao desaparecimento de 30
mil indígenas na zona da Bahia (Hemming,
1978, p. 144; Marcílio, 1990, p. 42; Cook,
1998, p. 115-116) e devastou toda a faixa
costeira, com perdas entre um terço e a
metade da população atingida (Johnson,
1990, p. 222). Um episódio análogo
verificou-se em 1597 e documentos de
várias naturezas atestam o contínuo
ressurgir dessas epidemias durante os
séculos XVII e XVIII (Marcílio, 1990, p.
44-45; Cook, 1998, p. 190-192). Em
particular, ocorreram crises extensas
ou pandêmicas em 1664-66, 1715-18 e
1774-79 (Alden e Miller, 1987). Dada a baixa
densidade da população, a varíola não era
endêmica, mas ocorria periodicamente
devido à importação de escravos da África,
onde, ali sim, era endêmica (Alden e Miller,
1987). O problema, todavia, tornava-se mais
complexo devido a outros fatores. Pelo
menos durante o primeiro século da
Colônia, a “fronteira” dos europeus era relativamente limitada a uma estreita faixa
costeira; no restante do imenso território –
onde havia baixa densidade – o contato foi
acontecendo gradualmente nos séculos
seguintes.
É presumível que o efeito negativo do
contato sobre a população autóctone tenha
tido cadências temporais muito diferenciadas, assim como tenham sido
diferenciadas quantitativamente, segundo
a zona, as perdas demográficas. Mas os
fatores determinantes da depopulação
indígena – além da difusa hostilidade
determinada pelo povoamento europeu e
das contínuas guerras e incursões de
“pacificação”, em geral bastante cruéis,
proporcionando muitas perdas – devem ser
buscados na contínua demanda de mãode-obra por parte dos europeus para
alimentar a atividade de produção e
serviços. Mesmo se as tribos pacíficas ou
pacificadas não pudessem se tornar
escravas, o regime da escravidão podia
aplicar-se às tribos hostis ou àquelas
suspeitas de canibalismo (Hemming, 1978).
A fome de mão-de-obra – satisfeita em parte
pelo crescente tráfico de escravos africanos
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– impulsionava a organização de expedições ao interior do território em busca do
único recurso de valor existente para os
europeus (pelo menos até a descoberta do
ouro no final do século XVII): homens e
mulheres reduzidos à escravidão. Este foi
o objetivo das bandeiras de apresamento –
expedições (compostas por mestiços com
sangue indígena) que partiam do altiplano
paulista em direção ao interior de Mato
Grosso, ao norte, na direção do rio São
Francisco, ou em direção ao sul. Este
também foi o objetivo dos “resgates” –
expedições fluviais em direção ao interior
para a escravização de populações
ribeirinhas4. Os efeitos diretos e indiretos
desse “saque” foram certamente enormes
mas, infelizmente, não são mensuráveis:
extermínio, separação, destruição de
muitas comunidades, deslocamento de
outras para o interior, em territórios hostis à
sobrevivência. Por outro lado, os índios
escravos ou colocados em escravidão
amiúde também não se reproduziam,
determinando, portanto, novas demandas;
o elemento feminino, especificamente,
muitas vezes era absorvido pela população
branca e sobretudo subtraído do pool
reprodutivo originário. Muitos religiosos –
sobretudo o jesuíta Antonio Vieira (uma
espécie de Las Casas brasileiro) –
denunciaram as conseqüências da
devastação, divulgando cifras hiperbólicas.
Nas áreas diretamente “pacificadas” e nas
quais se observou uma relativa convivência
pacífica as condições de vida foram
freqüentemente alteradas; pode-se pensar
também no processo de concentração dos
índios em grandes vilas (aldeias),
organizadas pelos jesuítas para facilitar
a doutrinação e a aculturação, que
certamente modificaram (e nem sempre
para melhor) as condições de vida
tradicionais. A epidemia de varíola de
1562-63 eliminou 5 das 11 vilas recémcriadas na época, o que leva a pensar que
os efeitos seriam menos desastrosos se
os índios tivessem permanecido dispersos
e continuado a praticar seu tradicional
seminomadismo.
Estamos diante de um modelo
demográfico muito complexo para o qual
concorreram numerosos componentes
negativos. Para sua compreensão, é preciso
considerar que o efeito desastroso das
novas patologias tende a atenuar-se com
o tempo, em função dos processos de
adaptação gradual e de seleção. O efeito
deslocamento – a ruptura da comunidade
tradicional, a subtração da mulher do pool
reprodutivo –, além de prejudicar a
sobrevivência, reprime a reprodução e
compromete a potencialidade de recuperação populacional. Portanto, atribuir a
depopulação exclusivamente às patologias
é uma simplificação que pode distorcer
gravemente a interpretação histórica da
catástrofe demográfica dos índios
brasileiros. Enfim, é preciso considerar
também que muitos indígenas terminaram
por adentrar na população “livre”, fundindose com a população portuguesa por meio
da mestiçagem, possível pela ausência de
uma estreita divisão entre castas (como
havia na América Espanhola). Por outro
lado, há casos freqüentes em que o
elemento indígena se incorporou à
população livre sem se mesclar com a
população branca: no Ceará, muitos
caciques de aldeamento (isto é, pertencentes a vilas fundadas pelos religiosos)
buscaram adquirir terras doadas
(sesmarias) e converteram-se em
fazendeiros. Dessa forma, uma parte da
população indígena, por meio da mestiçagem reprodutiva ou da assimilação
cultural, tornou-se indistinta daquela de
origem portuguesa.
3. O povoamento português no Brasil,
quase exclusivamente na faixa litorânea,
escasso em número, pelo menos durante
os séculos XVI e XVII, não representou pouco
se pensarmos na exigüidade da população
A partir de 1565 a escravização de índios foi proibida em terras brasileiras. A “solução” encontrada foi o “resgate” – “resgatar
almas”, isto é, libertar índios prisioneiros de outros índios em troca de seu trabalho (o que não deixa de ser uma forma de escravizar).
Houve resgate em várias áreas do território, mas com o tempo este termo ficou restrito à bacia Amazônica, o que não significa que
todo o resgate fosse feito através de expedição fluvial. [N. do T.]
4
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portuguesa no país de origem. Em Portugal,
em meados do século XVI, havia um milhão
e meio de habitantes; este país estava
empenhado também na colonização das
ilhas do Atlântico e em expandir-se por uma
área que ia da costa africana às Molucas.
Contudo, já no final do século XVI, no
Brasil, a população branca (a grande
maioria portuguesa, com algum aporte de
outras nacionalidades européias) havia
seguramente ultrapassado 30 mil indivíduos
(cerca de 21 mil em 1570 e 29 mil em 1585)
(Johnson, 1990, p. 227; Botelho, 1999),
subdividida em oito capitanias (foram
criadas 14 inicialmente, na metade do
século, do Equador ao sul do Trópico, mas
nem todas haviam prosperado) e com três
principais concentrações (Pernambuco,
Bahia e São Vicente).
Um verdadeiro, particular e sistemático
esforço de colonização decidido pela Coroa
Portuguesa começou nos anos 1530,
quando o modelo de estabelecimento
comercial de “feitorias” (para o comércio
de produtos nativos valiosos no mercado
internacional, inclusive escravos indígenas)
revelou-se incapaz de resistir às ameaças
e às tentativas de estabelecimento de
franceses no Brasil. Na metade do século
um governador assumiu a administração da
Colônia, trazendo consigo jesuítas
encarregados da evangelização. Isso tudo
contribuiu para o progresso do povoamento,
que se acelerou também em virtude do
sucesso da lavoura canavieira (Johnson,
1987, p. 13-19).
Durante o século XVII, o processo de
colonização continuou, com algum esforço
organizado para povoar o norte do país
(Maranhão e Pará), em reação a incursões
estrangeiras. Com a expulsão dos
holandeses de Pernambuco, onde
estiveram por 30 anos (1624-1654),
ocorreu uma retomada da imigração. Uma
testemunha ocular afirmou que, em
Salvador, cada navio vindo de Portugal
trazia uns oitenta camponeses oriundos da
Madeira, dos Açores e do Porto. Segundo
outro testemunho, nos anos 80, partiam de
Portugal 2 mil emigrantes ao ano para
Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro (Boxer,
1964, p. 10). No final do século, a população
branca aproximava-se a 100 mil pessoas
(Marcílio, 1990, p. 47).
Nos últimos anos do século XVII a
imigração aumentou em conseqüência da
descoberta do ouro em Minas Gerais e,
posteriormente, em Goiás e Mato Grosso.
O fluxo, mais ou menos espontâneo, de
imigrantes ocorreu sobretudo na primeira
metade do século XVIII, mas as estimativas
ainda são imprecisas: Furtado (1971)
avalia que, no decorrer do século XVIII,
imigraram entre 300 mil e 500 mil pessoas;
Marcílio (1990) apresenta uma cifra
intermediária, 400 mil; Rowland (1990)
indica cerca de 9 mil ao ano durante o século
XVIII. Segundo Boxer, citam-se dados
exagerados do fluxo imigratório, que, para
ele, seria da ordem de 3 mil a 4 mil pessoas
ao ano no período mais tumultuado do gold
rusch. Após 1720 a imigração não chegou
a superar 2 mil pessoas ao ano, em
conseqüência da introdução do passaporte
(Boxer, 1964, p. 49). No período de Pombal
(1750-77) aumentaram-se os esforços para
organizar e planificar a emigração,
principalmente aquela em direção ao Sul,
ameaçado pela expansão espanhola. A
atração pelas minas começou a diminuir
com o exaurir-se da produção aurífera.
O recenseamento de 1798 dá uma cifra
de 1,010 milhão para a população branca,
cerca de um terço da população total do
território e um múltiplo da população
indígena, absoluta em 1500 (Figura 1). Em
todo o Brasil, estava assegurado o domínio
europeu.
Pode ser interessante comparar – em
termos relativos – o esforço de povoamento
operado pelas quatro populações
européias às quais se deve o povoamento
americano: francesa, inglesa, espanhola e
portuguesa (Tabela 1). O estoque de
população (americana) branca recenseada
ou estimada em 1800 (col. 1) é relacionado
ao fluxo de imigração acumulado na mesma
data (col. 2), obtendo-se uma razão (col. 3)
indicadora do “sucesso” migratório; o
mesmo fluxo imigratório é relacionado à
população da nação européia de origem
(col. 4), obtendo-se um valor que exprime o
“esforço” migratório da mãe pátria
(col. 5). Enfim, a relação entre população
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FIGURA 1
A população do Brasil no final do século XVIII
TABELA 1
Populações americanas, populações européias e migração, 1800 (em 1000)
Nota: As populações de origem (col.4) são, na ordem: França, Reino Unido, Espanha e Portugal. Para as populações destes países,
cf. M. Livi Bacci (1999, p. 14-15).
Para Portugal: Perez Moreda e Rowland (1997).
Sobre as populações americanas, Rosenblat (1954), Charbonneau et al. (1987); Mc Evedy e Jones (1979).
Sobre migrações, para uma discussão ver Livi-Bacci (1998).
Todas as cifras, especialmente aquelas sobre imigração acumulada, têm natureza indicativa: objetivam ilustrar a dimensão do
problema.
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americana e população européia (col. 6)
fornece uma idéia resumida do equilíbrio
Europa/América no final do período
colonial. É óbvio que se tratam de grandezas
bastante aproximadas e, de todo,
conjecturas no que diz respeito ao fluxo
imigratório. Todavia, os resultados desse
exercício fornecem uma grade de
orientação interessante.
Do ponto de vista do sucesso migratório,
não resta dúvida de que os franceses do
Canadá obtiveram os melhores resultados:
seus descendentes, em 1800, eram sete
vezes mais numerosos na imigração
acumulada. Um discreto sucesso teve a
imigração anglo-saxônica (razão igual a 4),
seguida pela espanhola (razão igual a 3) e
pela portuguesa (cerca de 2). Naturalmente,
esta relação grosseira não considera, entre
outras coisas, a longevidade da imigração
naquela data. Esta foi mais remota para a
América Espanhola que para o Brasil (na
primeira, o fluxo em grande parte ocorreu
no primeiro século e meio de colônia; na
segunda, o maior fluxo teve lugar no século
XVIII). Todavia, a baixa performance da
imigração portuguesa é aparente, porque
não considera os descendentes mestiços,
que foram muitos. Na América Hispânica,
estes eram bem menos e na América do
Norte, menos ainda, pouquíssimos. No que
diz respeito ao perfil do esforço migratório,
Portugal situa-se nitidamente no primeiro
posto (fluxo acumulado igual a 1/5 da
população em 1800), seguido pela
Espanha e Inglaterra (cerca de 1/12) e, a
uma distância maior, pela França (menos
de 1/1.000). Em outros termos, a relação
entre população americana e população
européia de origem foi máxima para o
Brasil, seguido pelos Estados Unidos,
América Espanhola e, à distância, pelo
Canadá.
Estas cifras grosseiras, sujeitas a
revisão, indicam o possível percurso de
uma interessante linha de pesquisa. É
preciso, primeiro, defrontar-se com o
problema do sucesso migratório das
diversas populações, procurando compreender e decompor os mecanismos e
explicar as causas. Deixo assinalado aqui
a relevância da questão.
4. O povoamento do Brasil deve-se
principalmente – pelo menos até a grande
imigração européia da segunda metade do
século XIX – ao tráfico de escravos africanos.
Na época do primeiro recenseamento
moderno (1872), 58% dos quase 10
milhões de brasileiros eram de origem
africana, pura ou mestiça. Até a abolição
do tráfico negreiro (1850), 3,6 milhões de
escravos haviam sido transportados em
navios negreiros para o Brasil, o que
representava 38% de todo o tráfico
transatlântico.
Os temas do tráfico, da escravidão, da
mestiçagem, do acesso à liberdade têm um
enorme interesse histórico, social e cultural
para o qual a Demografia pode contribuir com
novos aportes. Tais temas estão, justamente,
no centro do debate histórico e político no
Brasil, devido à importância do elemento
africano na população atual e porque a marca
da abolição definitiva da escravidão – ocorrida
somente em 1888 – ainda se faz presente.
TABELA 2
Escravos trazidos para a América e população negra americana, 1800
(em 1000)
Nota: Os dados relativos à col. 1 - escravos trazidos da África - foram deduzidos, com algum ajustamento, de Curtin (1969). Para
a população negra da América em 1800, ver Rosenblat (1954) e Klein (1987: 295-96) e, para o Brasil, Merrick e Graham (1979:44).
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Considere-se a Tabela 2, construída
com intento semelhante àquele da Tabela 1.
Nela aproxima-se o fluxo acumulado da
importação de escravos até o início do
século XIX com o estoque de população
negra e de cor na mesma data. (Recordamos que estamos diante de estimativas
bastante corajosas, não só no que diz
respeito ao tráfico de escravos, mas
também quanto ao estoque da população
negra e de cor, que apenas para a América
do Norte possuem uma alta qualidade,
devido a um bom recenseamento
existente.)
O que interessa é a razão entre
estoque e fluxo, compreendida entre os
dois extremos – a da América do Norte
(razão igual a 3) e a do Caribe (razão igual
a 0,5), com a América Espanhola
Continental e o Brasil apresentando
valores intermediários (1,2 e 0,9), mas
bastante mais próximos do mínimo que do
máximo. Se considerarmos, em lugar de
1800, o ano de 1872 – data do primeiro
recenseamento –, a população com
ascendência africana (negros e mulatos)
era de 5,8 milhões e o fluxo acumulado,
de 3,6 milhões, com uma evidente
melhoria (razão 1,6). Nessa data, que
precede em poucos anos a abolição da
escravidão (1888), a população de origem
africana livre representava três quartos do
total, contra apenas um quinto no início do
século. Todavia, esta razão engana,
porque a adesão do Brasil à abolição do
tráfico já ocorrera, o fluxo já havia cessado
há vinte anos. A razão estoque/fluxo igual
a 0,5 do Caribe confirma o que já se sabe:
o sistema demográfico da escravidão
mantinha-se graças a uma contínua e
sustentada importação de novas levas que
substituía os enormes vazios abertos
por uma mortalidade elevadíssima,
compensada, em medida muito modesta,
pela baixa reprodutividade. O sistema
norte-americano, por outro lado, era muito
eficiente e o crescimento natural da
população negra foi fortemente positivo. O
caso brasileiro, como é evidente, se
parece mais com o modelo caribenho:
necessitava de uma contínua importação
para manter invariável o estoque existente.
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Colocam-se ainda questões que os
estudos até agora não clarificaram: quais
eram as causas da frágil e regressiva
demografia da população africana no
Brasil? A alta mortalidade, a baixa
nupcialidade, as uniões instáveis, a baixa
fecundidade, uma fertilidade comprometida
por novas patologias? Quais destes foi o
fator mais importante, ou em que medida e
intensidade eles se misturaram? Em que
medida a privação da liberdade, a carga
de trabalho, as patologias do continente,
os regimes alimentares eram, individualmente ou em conjunto, responsáveis
por esse estado de coisas?
Antes de olhar o que já sabemos do
sistema demográfico da escravidão,
colocam-se alguns elementos quantitativos
que ajudam a fixar o problema. As estimativas
do volume do tráfico (Figura 2) são
conjecturas até o final do século XVIII e
dependem mais de indicadores indiretos – o
tráfico marítimo, aquele dos navios negreiros,
testemunhos, opiniões dos contemporâneos
– que de indicadores diretos, como o número
dos embarcados nos portos negreiros (como
Nantes e Liverpool) ou dos desembarques
nos portos de entrada (Salvador e Rio de
Janeiro) (Curtin, 1969, p. 15-17). A partir do
século XVIII, os indicadores diretos
prevalecem e as estimativas são ancoradas
em uma farta documentação. A revisão
moderna operada por Curtin (1969) estima
em 560.000 no século XVI (42%), 1.891.000
de 1700 a 1810 (31%) e 1.145.000 (60%)
até a abolição geral do tráfico no Brasil
(1850). No total, 3,65 milhões (38% de todo
o tráfico) de homens, mulheres e crianças
foram transferidos para o Brasil em três
séculos e meio; os homens adultos
prevaleceram sobre as mulheres e crianças
(uma relação entre 3:2 e 2:1). Uma proporção
relevante de escravos – compreendida para
mais, entre os 5% e os 20%, e tanto mais alta
quanto mais longa era a duração da viagem
– não sobrevivia às condições da viagem
pelo Atlântico (Curtin, 1969, p. 275-286;
Klein, 1986, p. 139-147); uma proporção
ignorada não sobrevivia ao saque que, ao
longo da costa e no interior próximo à costa,
fazia afluir a mercadoria humana aos portos
de embarque.
Livi-Bacci, M.L.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002
FIGURA 2
Destino do tráfico Atlântico, 1701-1810
FIGURA 3
O tráfico de escravos para o Brasil, 1817-1843
Grande parte do tráfico foi absorvida nas
plantações, mas foi notável também a
presença de escravos nas artes e artesanato,
particularmente nas cidades. Durante o
século XVIII a busca do ouro e pedras
preciosas alocou uma consistente mão-deobra africana (Botelho, 2000). Na economia
de plantation dominava a lavoura da cana-
de-açúcar – quase a única mercadoria
exportada entre o século XVI e o final do
século XVII –, até quando se expandiu o café,
no século XIX. Na metade deste século, o
café dominou 4/10 dos valores da
exportação, com um quarto do açúcar
(Merrick e Graham, 1979, p. 12).
149
Livi-Bacci, M.L.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002
A maior parte dos escravos provinha
do Congo e sobretudo de Angola – sob a
administração portuguesa –, mas no início
do tráfico também foi importante o grupo
proveniente do Golfo da Guiné e, no final, o
moçambicano (Curtin, 1969; Klein, 1986 e
1987). Em fins do século XVII, o jesuíta
Antonio Vieira escrevia: “aqueles que dizem
açúcar, dizem Brasil e aqueles que dizem
Brasil dizem Angola” (apud Schwartz, 1986,
p. 38) – uma perfeita síntese da força que
tiveram os escravos na vida e no
crescimento da Colônia.
Até a segunda metade do século XVIII,
o porto de entrada principal do tráfico era
Salvador (capital da Colônia até 1763,
quando esta foi transferida para o Rio de
Janeiro). De 1780 até o término do tráfico,
quase dois terços dos africanos dirigemse para o sul da Bahia e o restante, em
partes iguais, para outras regiões da Bahia
ou ao norte desta província (Figura 3)
(Klein, 1987). No decorrer do século XIX,
com o desenvolvimento da cafeicultura em
São Paulo e a valorização econômica do
Sul, a migração interna assume importância. Segundo o recenseamento de
1819, um quinto da população escrava
residia nos estados do Norte (Maranhão,
Ceará, Pará); 28% na Bahia, Pernambuco
e Alagoas; 36% no Rio de Janeiro, Minas
Gerais e São Paulo (IBGE, 1987, p. 30). A
proporção dos escravos nestas três
últimas províncias, às vésperas da
abolição, crescera para 53%, testemunhando as mudanças no centro
econômico e demográfico do país.
5. O sistema demográfico da escravidão
era, como foi visto, um sistema de perene
déficit; a escravidão sobrevivia graças à
constante renovação do estoque por meio
do tráfico. Quanto a isto parece não haver
dúvidas. Todavia, os mecanismos deste
colossal e duradouro jogo perdido não são
de todo claros e a discussão sobre o
emaranhando de causas determinantes
continua em aberto.
Convém examinar brevemente o
estado do conhecimento que diz respeito
aos principais componentes do sistema,
com particular atenção à mortalidade, às
150
uniões e à mestiçagem entre etnias. Em uma
resenha como esta, que é somente um
esboço, é difícil prescindir de um
componente histórico e ideológico acerca
da natureza do sistema escravista, visto sob
a luz benigna da influência do livro de
Gilberto Freyre Casa-grande e senzala (1954
[1933]), questionada nos anos 50 e 60
(Ianni, 1962; Fernandes, 1969; Cardoso,
1977) e revista nos últimos vinte anos
(Mattoso, 1986; Vidal Luna e Klein, 1990;
Schwartz, 1996; Slenes, 1998). De fato, os
fenômenos demográficos, conseqüência
de comportamentos e constrangimentos,
prestam-se a testemunhar a favor ou contra
determinadas interpretações do regime
escravista.
Que os escravos tinham uma mortalidade muito alta é ponto pacífico, não
obstante o fato de que já tivessem sido submetidos a processos de seleção por parte
dos mercadores, primeiramente, e das
circunstâncias da viagem, depois. As testemunhas e as estimativas quantitativas
existentes deixam poucas dúvidas a este
propósito. É opinião corrente que a vida ativa
útil de um jovem escravo em uma plantação
compreendia entre 7 e 15 anos (Stein, 1957;
Viotti da Costa, 1982; Schwartz, 1986). Estes
números, contudo, adquiriram força mais
pela contínua repetição. É quase impossível
verificar a sua confiabilidade, pois na
equação entram muitas variáveis tais como:
a idade ao chegar ao Brasil; o término da
vida ativa pela invalidez e doença ou morte;
as alforrias; a fuga (muito freqüente); a
eventual perda de observação (por venda
ou fuga) etc. As cifras assumem relevâncias
diferentes quando um ou mais desses
elementos são esquecidos ou conforme são
avaliados.
Com base na distribuição por idade dos
escravos em 1872, e incluindo os efeitos
de uma população não fechada (pelo tráfico
e pela alforria), Evans e Mello estimaram
uma esperança de vida para os homens de
18,3 anos – contra 27 para o total da
população brasileira –, o que contrasta com
os 35 anos observados para os escravos
dos Estados Unidos na metade do século
XIX (Merrick e Graham, 1979, p. 53).
Deixando de lado as numerosas taxas de
Livi-Bacci, M.L.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002
mortalidade (e natalidade) calculadas para
várias áreas e épocas – todas gravemente
deficitárias devido à ausência de registro
dos eventos e às peculiaridades da
estrutura por idade e sexo –, o que se
observa é uma alta mortalidade, em
excesso em relação à natalidade. Em Rio
Claro (SP), a conservação de um registro
permitiu calcular em 36% a sobrevivência
de um grupo de escravos (cuja idade média
inicial era de 23 anos) entre 1822 e 1835,
um nível que implica uma mortalidade
desastrosa (Dean, 1977, p. 85). Entre 1838
e 1852 – período em que o tráfico
formalmente ilegal foi amplamente
praticado – observou-se a idade de 440
escravos embarcados em navios
capturados e sua idade ao morrer. Estes,
na captura (e liberação), tinham entre 15 e
25 anos em 4/5 dos casos; a sua
sobrevivência média foi de 14 anos para
os homens e 10 anos para as mulheres.
Valores compreendidos entre 7 e 15 anos
são usualmente citados, com uma forte
perda nos primeiros anos por causa de
problemas, presumíveis, de aclimatação
inicial (Karash, 1987, p. 32-34).
Se não restam dúvidas sobre a alta
mortalidade dos escravos – sensivelmente
superior àquela dos livres, que também já
era alta –, o debate sobre suas causas
específicas está ainda em aberto. A
patologia tropical e equatorial seguramente
não era benévola para a sobrevivência,
embora, muito provavelmente, os africanos
devessem se adaptar melhor que os
europeus. No hospital da Santa Casa de
Misericórdia do Rio de Janeiro, onde
durante o século XIX eram redigidos os
atestados de óbitos, as dez causas de morte
mais freqüentes eram tuberculose,
disenteria, diarréia, gastroenterite, pneumonia, varíola, hidropisia, hepatite, malária
e apoplexia, prevalecendo aquelas
doenças associadas ao baixo padrão de
vida (Karash, 1987, p. 183-184). Mas, quais
eram as condições de vida dos escravos,
particularmente nas grandes plantações,
onde se desenvolvia a vida da maioria
deles? No cultivo da cana e produção de
açúcar, que prevaleceu até o final do século
XVIII, Schwartz (1985) mostra um quadro
preciso do massacrante ciclo do trabalho,
sob rígido e forte controle, desde a
plantação, os cuidados com a lavoura, o
corte da cana, até o transporte da lenha de
grandes distâncias para alimentar as
caldeiras. O esforço cobria quase todo o
ano, com nove meses de produção, o que
implicava a contínua operação dos
engenhos e caldeiras, que empregavam
homens e mulheres do nascer ao pôr do
sol e, no período de pico, também à noite
(Viotti da Costa, 1982; Schwartz, 1985;
Mattoso, 1986). Sabendo que os senhores
não tinham interesse em esbanjar seu
precioso investimento, conclui-se que o
trabalho de 14-24 meses repunha o capital
investido na aquisição de um escravo; era
preciso extrair o máximo do trabalho escravo
em um número mínimo de anos para, ao
cabo de cinco anos, assegurar a duplicação
do investimento inicial (Schwartz, 1988,
p. 41-42).
O regime alimentar dos escravos era
baseado em alguns elementos fundamentais: milho, mandioca, feijão, carne
seca, açúcar e derivados e frutas; portanto,
a dieta podia ser variada e adequada. Por
outro lado, aos escravos era concedido
cultivar um terreno para uso pessoal
(Mattoso, 1986, p. 103; Viotti da Costa, 1982,
p. 213-268; Stein, 1957). A higiene na
senzala era seguramente péssima; o
cuidado com as doenças – se não a
preocupação com a cura – por parte dos
senhores era quase nenhum. A incidência,
a cada momento, de escravos enfermos
pela doença aguda ou crônica, cegueira,
deformidades, seqüelas de traumas e
acidentes – presumivelmente muito
freqüentes em um ambiente duro de
trabalho – era muito alta (Stein, 1957; Viotti
da Costa, 1982, p. 244). As condições de
vida podiam variar muito segundo a vontade
do proprietário – paternalmente benévolo,
cínico ou cruel –, mas era sobretudo o
mecanismo produtivo que as ditava (Boxer,
1964, p. 8-9). A mortalidade infantil e jovem
– em uma sociedade que, como veremos,
não encorajava a procriação e a família e
que obrigava a mulher ao trabalho pesado –
era, por dedução, altíssima. Mas faltam dados
confiáveis e testemunhos convincentes.
151
Livi-Bacci, M.L.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002
É preciso dizer que as novas pesquisas
tendem a colocar em relevo uma grande
variedade de condições de vida dos
escravos, que não se resumem em um
simples paradigma de generalizada
privação (Slenes, 1999).
Outros importantes elementos materiais
que constituem a causa direta da
mortalidade são de difícil verificação. Podese dizer que o regime de privação da
liberdade, que restringe e obriga os
comportamentos e que, no caso brasileiro,
desencorajava a solidariedade familiar e
comunitária e impedia os contatos entre
escravos de plantações diferentes, é um
regime institucional que priva o indivíduo e
a comunidade da capacidade de elaborar
e experimentar eficientes mecanismos de
defesa perante constrangimentos externos,
acrescentando vulnerabilidade. Com
certeza, é difícil incorporar esse plus de
vulnerabilidade em um modelo quantitativo
de sobrevivência – mas isto não significa
que deva ser ignorado.
6. A alta perda pela mortalidade não
era compensada pelo crescimento natural
da população. Testemunhos da época,
senhores de terras, viajantes, religiosos,
todos lamentavam a escassez de
nascimentos. Cremos que este tipo de
testemunho seja mais confiável que outros:
não é difícil comparar nascimentos e
descensos, ver o ativo ou o passivo. Difícil é
construir relações que implicam o
conhecimento numérico dos eventos e da
população. Uma explicação comumente
dada ao balanço natural negativo – e à
baixa natalidade – diz respeito ao
desequilíbrio entre os sexos, a favor dos
homens. Este desequilíbrio era tanto mais
alto quanto mais elevada era, em uma
plantação ou em uma comunidade, a
proporção de escravos nascidos na África,
selecionados já pelo tráfico, que introduzia
no Brasil mais homens que mulheres. Havia
também um desequilíbrio de sexo
moderado entre os nascidos no Brasil, em
cativeiro (crioulos) (Marcílio, 1990, p. 55).
Na Bahia, do século XVII ao início do XIX, a
razão de sexo na população escrava girava
em torno de 3:2 e 2:1 nas plantações de
152
cana (Schwartz, 1996, p. 41); a mesma
relação (2:1) observava-se nas plantações
de café paulista no início do século XIX
(Vidal Luna e Klein, 1990, p. 354). O
verdadeiro problema, porém, está na
presumida explicação: comunidades de
escravos constituídas há séculos deviam
sobreviver devido à força contínua da
alimentação do tráfico, mesmo porque havia alta mortalidade e baixa fecundidade. O
desequilíbrio de sexo é uma conseqüência
e não uma explicação. A experiência de
grupos não escravos imigrados, com
estrutura por sexo e idade semelhante à
dos escravos importados, tem se mostrado
oposta: não obstante o desequilíbrio dos
sexos, o seu saldo natural apresenta-se
fortemente positivo.
Não existindo registros confiáveis de
nascimentos, a medida da fecundidade ou
da reprodução, em geral, é obtida pela razão
entre crianças e mulheres em idade fecunda,
em que pese a limitação desta medida (a
influência ignota da mortalidade infantil e
jovem; erros e distorções da estrutura por
idade; saída e entrada na coletividade
estudada etc.). O recenseamento de 1890
(dois anos após a abolição) perguntou ao
casal – no Distrito Federal do Rio de Janeiro
– o número de filhos tidos e sobreviventes.
Os casais (não há distinção de idade) cujos
cônjuges eram ambos brancos haviam tido
3,53 filhos, dos quais 2,53 sobreviveram;
para os casais de mulatos foram encontradas
as cifras de 3,30 e 2,34, respectivamente;
para os casais de negros, 2,98 e 1,99 (Merrick
e Graham, 1979, p. 62). Segundo o Censo
de 1872, a relação entre crianças de 6-10
anos e mulheres de 16-40 anos era igual a
0,57 para os brancos, 0,50 para os livres de
cor e 0,35 para os escravos (Merrick e
Graham, 1979; Dean, 1977, p. 85). Para o
território de São Paulo ao redor de 1830,
Vidal Luna e Klein calcularam que a relação
crianças/mulheres “em média era menos da
metade da observada na população escrava
dos Estados Unidos em 1830”, onde se
verificou um elevado crescimento natural da
população escrava, impensável para a
região paulista examinada, assim como para
Minas Gerais (Vidal Luna e Klein, 1990,
p. 359). Uma baixa relação criança/mulher
Livi-Bacci, M.L.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002
também se observa na região da Bahia, nos
séculos XVII e XVIII, e uma baixíssima
fecundidade foi encontrada no Engenho
Santana, em Ilhéus, na primeira metade do
século XVIII. A hipótese avançada pelos
autores é a de que as mulheres amamentavam prolongadamente, seguindo hábito
da cultura de origem (Schwartz, 1986, p.
57, e 1988, p. 321-324). Cálculos de taxa
de natalidade devem ser vistos com
reservas (Viotti da Costa, 1982, p. 247;
Marcílio, 1990, p. 59).
Vale para a fecundidade – como para
outras manifestações da vida escrava – a
consideração da existência de situações
muito diferentes que não excluem casos
positivos. Estes exemplos – mesmo na sua
imparcialidade e imprecisão – confirmam a
opinião comum dos contemporâneos: os
nascimentos eram poucos, a mortalidade
infantil era alta, a nova geração não repunha
a velha. Mas, por quê?
7. Alguns senhores se opõem ao casamento
de escravos e escravas e não se opõem a
suas uniões ilícitas; abertamente dão o
consentimento e diretamente marcam o seu
início dizendo ‘tu, Caio, no tempo devido
esposará com Tizia’, e daí em diante os
deixam conversar entre si como se fossem
marido e mulher [...] Outros, depois que os
escravos estão casados, os separam de tal
maneira que, por anos, permanecem como
se fossem solteiros, coisa que é contra a
consciência.” (Antonil, 1922)
Estas são palavras de Giovanni Antonio
Andreoni, o jesuíta chamado Antonil, talvez
o observador mais arguto e atento do Brasil
do início do século XVIII. O problema, no
entanto, era que os senhores não
encorajavam ou procuravam colocar
obstáculo ao casamento; admitiam as
uniões livres ou ocasionais, mas não
favoreciam a estabilidade familiar. As razões
disso eram várias e complexas. Na opinião
de muitos, o peso econômico era muito forte.
Havia ampla disponibilidade de escravos no
mercado a preços baixos, o que tornava mais
conveniente adquiri-los no mercado, em
lugar de favorecer a reprodução e criação.
Estas comportavam custos diretos e,
sobretudo, indiretos: leis e costumes
impediam de vender escravos separandoos da família; a reprodução subtraía a mulher
do trabalho; os negros boçais (isto é,
chegados da África) eram trabalhadores
mais maleáveis que os crioulos (Viotti da
Costa, 1982; Mattoso, 1986; Schwartz, 1996).
Outros fatores ainda complicavam o quadro:
a intromissão do senhor na vida sexual das
escravas (o nascimento de numerosos
mulatos que permaneciam escravos) e a sua
“subtração” do pool matrimonial; a ausência
de contato entre escravos de senhores
diferentes, limitando a escolha matrimonial;
a própria a organização do trabalho. As
tradições africanas, igualmente, não
favoreciam a monogamia e encorajavam as
uniões temporárias (Slenes, 1976). Saint
Hilaire comentava:
[...] quando deu início no Brasil a campanha
da abolição da escravidão o Governo
ordenou aos proprietários de Campos que
casassem os próprios escravos; alguns
obedeceram, mas outros responderam que
era inútil casar as negras que não podiam
criar seus próprios filhos. Logo após o parto,
estas mulheres eram obrigadas a trabalhar
nas plantações de cana, sob um sol forte e
quando, depois de serem separadas de
suas criaturas parte do dia, era-lhes
permitido ficar junto a elas, seu leite era
insuficiente; como podiam as pobres
criaturas resistir à miséria cruel da qual a
avareza dos brancos circundava o seu
berço? (apud Gorender, 1978, p. 342)
Os dados disponíveis confirmam a
baixa nupcialidade dos escravos. O
recenseamento de 1872 dá notícia de casamentos (excluídas uniões consensuais)
segundo a raça e condição social. Mesmo
faltando o detalhe da idade, as diferenças
não deixam dúvidas: na população livre,
30% estavam casados (tanto homens como
mulheres), assim como 26% dos mulatos e
20% dos negros; na população escrava a
cota dos casados chegava apenas a 8%,
quer para os negros, quer para os mulatos.
Não podemos saber quantas foram as
uniões consensuais, mas certamente
devem ter sido muitas, e com variável grau
de estabilidade, dada a alta proporção de
nascimentos ilegítimos. No decorrer do
tempo, são numerosas as indicações de
baixa nupcialidade entre os escravos: na
Paraíba (1798) a proporção de casados
entre os escravos negros era metade ou
um terço daquela entre os brancos da
153
Livi-Bacci, M.L.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002
mesma idade (Marcílio, 1990, p. 54). Uma
situação semelhante de baixa nupcialidade
encontramos também na região de Campinas em 1801, 1829 e 1872 (Slenes, 1998).
Naturalmente, o quadro não era
uniforme. Por exemplo, foi demonstrado que
a nupcialidade era mais elevada nas
plantações com grande número de escravos
e menor em plantéis com pequeno número
de escravos; que, em geral, a nupcialidade
era mais elevada nas plantações que nas
áreas urbanas. Estes resultados derivam, em
parte, da dimensão demográfica do
“mercado matrimonial”, menos reduzido nas
plantações com alto número de escravos,
mas também de um maior interesse dos
proprietários de criar uma mão-de-obra mais
estável, mais confiável e controlada (Slenes,
1976). Elementos de maior estabilidade
também foram encontrados nas plantações
de café da área paulista e carioca no curso
do século XIX (Slenes, 1987 e 1998).
Estabilidade e crescimento natural caracterizavam as comunidades escravas do
Paraná, uma região de penetração recente,
no início do século XIX, e com uma economia
não orientada para a exportação (Gutiérrez,
1987). No século anterior, as prédicas
jesuíticas encorajavam um equilíbrio entre
homens e mulheres, a nupcialidade,
condições de estabilidade favoráveis à
natalidade. Tal política foi seguida com efeito
positivo pelos beneditinos que possuíam
grandes propriedades em Pernambuco,
Bahia e Rio de Janeiro (Schwartz, 1988, p.
53-54), nas quais a proporção de crioulos
era alta, a de africanos, baixa (Gorender,
1978, p. 345) e o crescimento natural positivo.
8. Vários fatores tornaram a população
brasileira uma rica e complexa mistura de
etnias, mais que uma sociedade com rígida
separação entre os grupos. Pode-se objetar
que o Brasil é um país de grandes contradições e diferenças sociais, e que isto
amiúde se identifica com subdivisão étnica.
154
Certamente, isto é verdade, mas também é
verdade que as diferenças de cor, de
condição, de língua ou de religião foram
barreiras frágeis para a mestiçagem entre
grupos. Sem dúvida, foram os fatores demográficos e de poder que deram grande
impulso à mestiçagem. Os imigrantes portugueses eram, na sua grande maioria,
homens dispostos a uniões com índias e,
mais tarde, quando o tráfico de escravos
começou a vigorar, com as africanas. Entre
os escravos importados prevaleciam os
homens sobre as mulheres e nas plantações
– nas quais os escravos nascidos na África
prevaleciam sobre os nascidos no Brasil –
este desequilíbrio se repunha, mesmo que
atenuado. Todavia, já dissemos: os
senhores eram pouco inclinados a fortalecer
o matrimônio ou a estabilizar as relações
entre os escravos. “A política dos senhores
era aquela de tornar a relação sexual difícil,
mas não impossível. A poligamia africana
abria a estrada a uma sucessão de relações
de duração breve” (Mattoso, 1986, p. 11).
Tanto entre os brancos, como entre os negros
ou indígenas, na população livre e na escrava, grande parte das uniões não era legalizada pelo matrimônio e a ilegitimidade era
altíssima. Dada a escassez do elemento indígena e ao fato de que muitas regiões estavam fora do controle direto dos portugueses,
os nascidos da união de brancos com índios
(caboclos) assumiam relevância sobretudo
nas áreas marginais (Marcílio, 1990, p. 550).
No final do período colonial, “quase dois
terços da população era de origem africana
(negra ou mulata) e na população livre havia
mais pessoas de cor que brancos [...] vários
estudos sugerem que, entre os livres de cor,
seis ou sete entre dez eram mulatos, o que
tornou esse grupo racial o de crescimento
mais veloz no Brasil” (Alden, 1987, p. 291).
Para a região da Paraíba, no nordeste
do país, uma estatística de 1798 dá uma idéia
do tipo de distribuição da população africana
(contam-se também 8.930 brancos).
Livi-Bacci, M.L.
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TABELA 3
População do Brasil por etnia e condição social
1798 e 1872 (em 1000)
Fonte: Merrick e Graham, 1979, p. 29
TABELA 4
Brasil, Argentina, México e Estados Unidos: população, 1800-2050
População (em 1000)
Fontes: Para 1800: Brasil (1798), Merrick e Graham (1979:23); Argentina (1797) e México (1803), Rosenblat (1954:182 e
205); Estados Unidos, Recenseamento. Para 1850 e 1900, Brasil, Argentina e México, Sanchez Albornoz (1994:143); Estados
Unidos: Recenseamento.
Para 1950, 2000 e 2050: United Nations (1999).
O estudo demográfico da mestiçagem
é muito difícil e, pelo que consta, não foi até
agora realizado com sucesso. Um primeiro
obstáculo é aquele definido pela tendência
do elemento misto a “entrar” em um grupo
socialmente superior, fazendo-se classificar
ou autoclassificando-se diferentemente.
Resolvido este problema, outros apareceriam. A coletividade negra, por
exemplo, alimentava-se do tráfico de
escravos e dos próprios nascimentos. A
coletividade dos mulatos alimentava-se dos
próprios nascimentos, mas também do
nascimento de crianças geradas por
elementos de outros grupos (branco e uma
negra pelo menos), e por esta razão era
mais dinâmica que as outras coletividades.
A dos escravos (seja preta ou mulata)
alimentava-se também através do tráfico e
do nascimento de escravos e perdia
elementos não só por morte, mas também
via alforria.
No Brasil, a alforria era obtida com
maior freqüência que em outra sociedade
155
Livi-Bacci, M.L.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002
escravista (por exemplo, os Estados Unidos)
e era mais seletiva, porque privilegiava as
mulheres (cerca de 2/3 das alforrias, embora
o número de mulheres fosse menor que o
de homens na população escrava), os
idosos e as crianças. Chegava-se à alforria
por uma série de razões (afeto; relações
uxóricas; para liberar-se de escravos
doentes, incapazes ou perigosos; por
compra). Enfim, a coletividade dos livres era
alimentada pelos próprios nascimentos,
pela imigração e pela alforria (mais
freqüente, como foi dito, para os mulatos
que para os negros). Levar em conta estes
elementos – e as particularidades
estruturais dos vários grupos – é uma tarefa
muito complexa e quase impossível de ser
realizada quando os dados à disposição
são inadequados.
A Tabela 3 mostra a variação da
população brasileira entre 1798 e 1872,
que aproximadamente triplicou nesses três
quartos de século. O mais forte incremento
(1,9% ao ano) ocorreu na população
européia, alimentada pela imigração que
foi ampliada com a transferência da Corte
portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808,
de início, e, a partir de meados do século,
pela grande onda européia moderna, e
favorecida pelas condições de vida
indubitavelmente privilegiadas. A população de origem africana (negra e mulata),
não obstante as condições de vida
nitidamente piores, cresceu a uma notável
taxa de 1,4%, reduzida a 1,1% se excluímos
os 1,35 milhão de escravos trazidos antes
de 1850. A população escrava permaneceu
estacionária, pois não foi mais alimentada
pelo tráfico após 1850 e presenciou uma
taxa natural negativa.
9. O Recenseamento Geral do Império
de 1872 colocou fim ao período préestatístico do Brasil. Este censo foi realizado um ano após a Lei do Ventre Livre
(1871), que libertou da escravidão os filhos
de escravas nascidos a partir da data da
promulgação da lei, e precedeu em 16 anos
a Lei Áurea (1888), que aboliu definitivamente a escravidão. Por essa ocasião,
156
havia se iniciado a grande imigração
européia (dominada pela italiana) e,
poderíamos dizer também, começava a
história do Brasil moderno. Convém
terminar nessa data, quando a população
brasileira chegava a 10 milhões de
habitantes, esta breve resenha dos fatos e
problemas.
Para concluir, seria interessante ainda
nos determos na Tabela 4, que traz uma
estimativa de população para intervalos de
50 anos, entre 1800 e 2000, e a previsão
para 2050, segundo a variante média
(United Nations, 1999), para os quatro
maiores países da América: Brasil,
Argentina, México e Estados Unidos. Desses
quatros países, apenas o México possuía
uma forte dotação demográfica no
momento do contato com os europeus (era
o mais populoso em 1800) e foi tocado de
modo marginal pela grande imigração
européia. No quarto de milênio considerado, a população argentina multiplicouse por um fator igual a 176, a dos Estados
Unidos, por 89, a brasileira, por 73, e a
mexicana por 25. Entre 1850 e 1950 –
período que inclui a grande imigração
européia (quase 5 milhões de imigrantes
no Brasil) – a população argentina (a que
mais cresceu pelo aporte imigratório)
multiplicou-se 16 vezes, contra cerca de 7
vezes a do Brasil e dos Estados Unidos e
menos de 4 a do México. Se considerarmos
o período 1950-2050 – durante o qual se
iniciou e deve ser concluída a moderna
transição demográfica nos países pobres –,
a população americana terá pouco mais que
duplicado, a argentina multiplicar-se-á por
3,2, a brasileira por 4,5 e a mexicana por 5,3.
Em 1500, a escassa população do atual
Brasil representava uma pequena cota da
população do continente ao sul do rio
Grande e dos Estados Unidos, dominada
pela demografia da América Central e
andina. Hoje, os 170 milhões de brasileiros
são um terço da população do continente e
constituem-se na sociedade etnicamente
mais complexa e mais dinâmica das
Américas.
Livi-Bacci, M.L.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002
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