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500 Anos De Demografia Brasileira: Uma Resenha

2002, Revista Brasileira de Estudos de População

1 A historiografia brasileira recente tem questionado esta versão do descobrimento do Brasil. Baseando-se no contexto da época e em evidências documentais, está mais propensa a aceitar a hipótese da intencionalidade do descobrimento. [N. do T.]

Ponto de vista 500 anos de demografia brasileira: uma resenha * Massimo Livi Bacci Em 1999, passei parte de meu sabático no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG e no Núcleo de Estudos de População (NEPO) da Unicamp. Durante o período em que permaneci nestas duas universidades brasileiras, ministrei cursos nos seus programas de Doutorado e dediquei parte do tempo disponível ao levantamento de material sobre a história da população brasileira. Retornando à Itália, meu colega Carlo Corsini, diretor da revista Popolalizone e Storia, solicitou-me a elaboração de uma “resenha” da história da demografia no Brasil. Realizei esta tarefa com prazer, para dar conhecimento aos estudiosos italianos das venturas e desventuras de um país ao qual a Itália está particularmente vinculada, inclusive demograficamente. Para mim é uma honra que este trabalho seja publicado nesta Revista, graças à tradução da amiga Maria Silvia C. B. Bassanezi – a qual devo preciosas indicações. Gostaria também que os estudiosos brasileiros soubessem qual é a natureza deste escrito: trata-se do ponto de vista de um estrangeiro, não especialista na vida brasileira, mas profundamente interessado pela mesma 1. Em 22 de abril de 1500, uma frota de 13 navios, capitaneada por Pedro Álvares Cabral, aportou nas cercanias da atual cidade de Porto Seguro, aproximadamente no meio dos 8 mil quilômetros da costa Atlântica do Brasil atual. Talvez este desembarque tenha sido acidental: Cabral navegava em direção às Índias e deveria percorrer a rota traçada pelo navegador Vasco da Gama, que regressara a Portugal no ano anterior. Depois das ilhas de Cabo Verde, no entanto, a frota se desviara de sua rota, empurrada por ventos e correntes, em direção ao Ocidente1. A permanência no Novo Mundo durou apenas oito dias, o suficiente para descanso e abastecimento dos navios. No dia 1o de maio Cabral rumou para as Índias, seu destino final. Entretanto, o contato com a nova terra fora estabelecido, marcando o destino do moderno Brasil, o quinto país do mundo em dimensão geográfica (8,5 milhões de km 2 ) e demográfica (170 milhões de habitantes em 2000). Para os estudiosos das Ciências Humanas e da Demografia, o Brasil apresenta-se como um laboratório de extraordinário interesse. A população autóctone, tênue em números e dispersa no enorme território, após o contato com os europeus, chegou a estar próxima (e, em muitas áreas, rapidamente) da extinção. Os conquistadores e os colonos dessa terra, que ocupa a metade do continente sulamericano, vinham de Portugal, um pequeno país com uma população modesta, mas que não obstante conseguiu imprimir sua marca cultural e demográfica no Brasil. O tráfico de escravos, que alimentou a força de trabalho na Colônia durante três séculos, introduziu no Brasil dois quintos dos 10 milhões de africanos trazidos à América pelos navios negreiros (Curtin, 1969, p. 268). A emigração européia, na segunda metade do século XIX e primeiros 30 anos do século XX, enriqueceu ainda mais a já complexa sociedade brasileira. Por cinco séculos, os processos de mestiçagem entre etnias foram seguramente os mais intensos já vistos em um grande país na época moderna. Finalmente, na segunda metade do século XX, a transição demográfica – e em especial a da fecundidade – Tradução de Maria Silvia C.B. Bassanezi do original italiano “500 anni di demografia brasiliana: una rassegna”, publicado na revista Popolazione e Storia, n. 1, 2001, p. 13-34. 1 A historiografia brasileira recente tem questionado esta versão do descobrimento do Brasil. Baseando-se no contexto da época e em evidências documentais, está mais propensa a aceitar a hipótese da intencionalidade do descobrimento. [N. do T.] * Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 desenvolveu-se de um modo muito particular, chegando, no novo milênio, a uma reprodução próxima do nível de reposição. Não faltam, pois, razões para considerar a história demográfica do Brasil um objeto fascinante de estudo. 2. Ao contrário da América Hispânica, o Brasil é pobre em fontes documentais até o final do período colonial (Marcílio, 1990)2. As grandes linhas de desenvolvimento e mudança podem ser intuídas, mas não medidas, senão muito grosseiramente. Esta carência pode ser imputada, de modo geral, a duas grandes causas. A primeira é a falta de uma sociedade autóctone altamente organizada e estratificada – como aquela existente na América Central ou na região andina. Havia poucos milhões de habitantes à época do descobrimento, que se transformaram em poucas centenas de milhares dispersos no imenso território no momento da Independência – uma realidade pouco verificável pelos escassos grupos de colonos instalados na faixa costeira. A segunda razão são as ligações mais frouxas dos colonos com a mãe pátria pequena e longínqua, a qual não conseguiu estabelecer um estreito controle político, administrativo e burocrático sobre sua colônia (ao contrário do que ocorreu com a Espanha e suas terras na América Espanhola)3. Mais que para o resto do continente americano, as estimativas existentes para o Brasil sobre o volume da população à época do contato com os europeus são conjecturas baseadas em notícias e avaliação de colonos, religiosos ou viajantes. Tais estimativas contam com pouca base na realidade, foram elaboradas em épocas muito posteriores e descontam as taxas presumidas de depopulação. Todavia, vale a pena dar conta dos esforços mais sérios, pelo menos para se ter uma idéia do patrimônio demográfico do Brasil no início de sua história moderna. A população autóctone vivia principalmente da pesca, caça e coleta; em algumas áreas era visível o cultivo de culturas, sobretudo a da mandioca doce ou amarga. A área com maior densidade de povoamento era aquela restrita faixa de planície de aluvião ao redor do rio Amazonas e seus principais afluentes e a faixa costeira ao sul do estuário amazônico, zona rica em caça e pesca em particular. Muito menor era o povoamento nas savanas dos altiplanos e quase nulo aquele da floresta amazônica, que ocupava a maior parte da superfície do território brasileiro (Denevan, 1992a, p. 206-208). Segundo Denevan, que baseou sua estimativa sobre valores de uma mínima densidade potencial (com algum controle de valores mais recentes, descontadas hipotéticas taxas de depopulação), a população da “Grande Amazônia” (9,6 milhões de km2, correspondentes ao atual território brasileiro do norte do Trópico – excluídos os atuais Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul –, somado à área amazônica da Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e à da bacia do Orinoco da Venezuela) era de 6,8 milhões de habitantes. Esta estimativa representaria 12,6% de toda a população do continente americano no momento do contato com os europeus (53,9 milhões segundo revisão coordenada pelo mesmo Denevan) (cf. Denevan, 1992b, p. xxviii). Quase quatro décimos da população estavam concentrados na reduzida faixa costeira e à margem amazônica – uma área de 2% do território interno. Foi com esta população que os portugueses primeiramente entraram em contato. Entre outras estimativas “racionais” da população por volta de 1500 encontra-se a de Steward, autor e coordenador da influente obra Handbook of South American indians, que calcula em cerca de 2,6 Tal afirmação é mais válida para fontes de caráter demográfico. [N. do T.] Segundo a historiadora Laima Mesgravis, as ligações de Portugal com o Brasil eram semelhantes às existentes entre Espanha e suas colônias na América. O que diferenciava a colônia portuguesa das colônias espanholas era que a burocracia, nessas últimas, era maior e havia um maior número de funcionários. No Brasil, boa parte da burocracia era executada de forma indireta, por pessoas não assalariadas, que prestavam serviços gratuitamente. Por exemplo: as “milícias”, que executavam atividades policiais e militares, os “agentes da Coroa” e as Câmaras Municipais, que exerciam atividades políticas e administrativas. [N. do T.] 2 3 142 Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 milhões o número de habitantes dessa área (Stewart, 1949). Esta estimativa baseia-se no recenseamento de numerosíssimos grupos tribais, relacionado a estimativas com diferentes graus de confiabilidade dos séculos XVI e XVII (às quais se atribui, em geral, pouco crédito). Hemming (1978), por sua vez, estima 2,4 milhões, baseando-se em uma resenha detalhada das fontes existentes e em várias metodologias. Estas cifras mais “aceitáveis” inserem-se em um amplo leque de valores (de um mínimo de 0,5 a um máximo de 10 milhões) (Denevan, 1992a, p. 205), cuja amplitude decorre da tomada de posições apriorísticas voltadas a maximizar (ou a minimizar) a catástrofe provocada pelo contato entre autóctones e colonizadores. Testemunhos de época dos primeiros povoadores – particularmente jesuítas, a partir da metade do século XVI – e de épocas posteriores confirmam a opinião dos estudiosos contemporâneos de que a população indígena sofreu uma queda extraordinária. As contagens gerais de 1798 deram um total de 252 mil índios “pacificados”, ao passo que a contagem de 1819, que inclui também os índios não submissos, refere-se a 800 mil (Marcílio, 1990, p. 45). Com relação aos autóctones brasileiros – como para outras populações americanas –, os historiadores são desafiados a compreender a causa da depopulação indígena. Na segunda metade do século XX prevalece entre os estudiosos uma linha revisionista, que, além de reavaliar a alta estimativa da população autóctone à época do contato, tem sustentado a prevalência da epidemiologia como causa da depopulação indígena – peculiar é a estimativa de Dobyns (1966) de 113 milhões para todo o continente, contra a estimativa anterior de Steward, Kroeber e Rosenblat de entre 8 e 15 milhões (Denevan, 1992b, p. 3). A introdução da varíola, sarampo, tuberculose, uma variedade de gripes e de outras patologias na população isolada e não imunizada estaria na raiz da catástrofe. Sobre o impacto destruidor das epidemias não restam dúvidas, e as evidências documentais são muitas também para o Brasil. A epidemia de varíola nos anos 1562-65 levou ao desaparecimento de 30 mil indígenas na zona da Bahia (Hemming, 1978, p. 144; Marcílio, 1990, p. 42; Cook, 1998, p. 115-116) e devastou toda a faixa costeira, com perdas entre um terço e a metade da população atingida (Johnson, 1990, p. 222). Um episódio análogo verificou-se em 1597 e documentos de várias naturezas atestam o contínuo ressurgir dessas epidemias durante os séculos XVII e XVIII (Marcílio, 1990, p. 44-45; Cook, 1998, p. 190-192). Em particular, ocorreram crises extensas ou pandêmicas em 1664-66, 1715-18 e 1774-79 (Alden e Miller, 1987). Dada a baixa densidade da população, a varíola não era endêmica, mas ocorria periodicamente devido à importação de escravos da África, onde, ali sim, era endêmica (Alden e Miller, 1987). O problema, todavia, tornava-se mais complexo devido a outros fatores. Pelo menos durante o primeiro século da Colônia, a “fronteira” dos europeus era relativamente limitada a uma estreita faixa costeira; no restante do imenso território – onde havia baixa densidade – o contato foi acontecendo gradualmente nos séculos seguintes. É presumível que o efeito negativo do contato sobre a população autóctone tenha tido cadências temporais muito diferenciadas, assim como tenham sido diferenciadas quantitativamente, segundo a zona, as perdas demográficas. Mas os fatores determinantes da depopulação indígena – além da difusa hostilidade determinada pelo povoamento europeu e das contínuas guerras e incursões de “pacificação”, em geral bastante cruéis, proporcionando muitas perdas – devem ser buscados na contínua demanda de mãode-obra por parte dos europeus para alimentar a atividade de produção e serviços. Mesmo se as tribos pacíficas ou pacificadas não pudessem se tornar escravas, o regime da escravidão podia aplicar-se às tribos hostis ou àquelas suspeitas de canibalismo (Hemming, 1978). A fome de mão-de-obra – satisfeita em parte pelo crescente tráfico de escravos africanos 143 Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 – impulsionava a organização de expedições ao interior do território em busca do único recurso de valor existente para os europeus (pelo menos até a descoberta do ouro no final do século XVII): homens e mulheres reduzidos à escravidão. Este foi o objetivo das bandeiras de apresamento – expedições (compostas por mestiços com sangue indígena) que partiam do altiplano paulista em direção ao interior de Mato Grosso, ao norte, na direção do rio São Francisco, ou em direção ao sul. Este também foi o objetivo dos “resgates” – expedições fluviais em direção ao interior para a escravização de populações ribeirinhas4. Os efeitos diretos e indiretos desse “saque” foram certamente enormes mas, infelizmente, não são mensuráveis: extermínio, separação, destruição de muitas comunidades, deslocamento de outras para o interior, em territórios hostis à sobrevivência. Por outro lado, os índios escravos ou colocados em escravidão amiúde também não se reproduziam, determinando, portanto, novas demandas; o elemento feminino, especificamente, muitas vezes era absorvido pela população branca e sobretudo subtraído do pool reprodutivo originário. Muitos religiosos – sobretudo o jesuíta Antonio Vieira (uma espécie de Las Casas brasileiro) – denunciaram as conseqüências da devastação, divulgando cifras hiperbólicas. Nas áreas diretamente “pacificadas” e nas quais se observou uma relativa convivência pacífica as condições de vida foram freqüentemente alteradas; pode-se pensar também no processo de concentração dos índios em grandes vilas (aldeias), organizadas pelos jesuítas para facilitar a doutrinação e a aculturação, que certamente modificaram (e nem sempre para melhor) as condições de vida tradicionais. A epidemia de varíola de 1562-63 eliminou 5 das 11 vilas recémcriadas na época, o que leva a pensar que os efeitos seriam menos desastrosos se os índios tivessem permanecido dispersos e continuado a praticar seu tradicional seminomadismo. Estamos diante de um modelo demográfico muito complexo para o qual concorreram numerosos componentes negativos. Para sua compreensão, é preciso considerar que o efeito desastroso das novas patologias tende a atenuar-se com o tempo, em função dos processos de adaptação gradual e de seleção. O efeito deslocamento – a ruptura da comunidade tradicional, a subtração da mulher do pool reprodutivo –, além de prejudicar a sobrevivência, reprime a reprodução e compromete a potencialidade de recuperação populacional. Portanto, atribuir a depopulação exclusivamente às patologias é uma simplificação que pode distorcer gravemente a interpretação histórica da catástrofe demográfica dos índios brasileiros. Enfim, é preciso considerar também que muitos indígenas terminaram por adentrar na população “livre”, fundindose com a população portuguesa por meio da mestiçagem, possível pela ausência de uma estreita divisão entre castas (como havia na América Espanhola). Por outro lado, há casos freqüentes em que o elemento indígena se incorporou à população livre sem se mesclar com a população branca: no Ceará, muitos caciques de aldeamento (isto é, pertencentes a vilas fundadas pelos religiosos) buscaram adquirir terras doadas (sesmarias) e converteram-se em fazendeiros. Dessa forma, uma parte da população indígena, por meio da mestiçagem reprodutiva ou da assimilação cultural, tornou-se indistinta daquela de origem portuguesa. 3. O povoamento português no Brasil, quase exclusivamente na faixa litorânea, escasso em número, pelo menos durante os séculos XVI e XVII, não representou pouco se pensarmos na exigüidade da população A partir de 1565 a escravização de índios foi proibida em terras brasileiras. A “solução” encontrada foi o “resgate” – “resgatar almas”, isto é, libertar índios prisioneiros de outros índios em troca de seu trabalho (o que não deixa de ser uma forma de escravizar). Houve resgate em várias áreas do território, mas com o tempo este termo ficou restrito à bacia Amazônica, o que não significa que todo o resgate fosse feito através de expedição fluvial. [N. do T.] 4 144 Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 portuguesa no país de origem. Em Portugal, em meados do século XVI, havia um milhão e meio de habitantes; este país estava empenhado também na colonização das ilhas do Atlântico e em expandir-se por uma área que ia da costa africana às Molucas. Contudo, já no final do século XVI, no Brasil, a população branca (a grande maioria portuguesa, com algum aporte de outras nacionalidades européias) havia seguramente ultrapassado 30 mil indivíduos (cerca de 21 mil em 1570 e 29 mil em 1585) (Johnson, 1990, p. 227; Botelho, 1999), subdividida em oito capitanias (foram criadas 14 inicialmente, na metade do século, do Equador ao sul do Trópico, mas nem todas haviam prosperado) e com três principais concentrações (Pernambuco, Bahia e São Vicente). Um verdadeiro, particular e sistemático esforço de colonização decidido pela Coroa Portuguesa começou nos anos 1530, quando o modelo de estabelecimento comercial de “feitorias” (para o comércio de produtos nativos valiosos no mercado internacional, inclusive escravos indígenas) revelou-se incapaz de resistir às ameaças e às tentativas de estabelecimento de franceses no Brasil. Na metade do século um governador assumiu a administração da Colônia, trazendo consigo jesuítas encarregados da evangelização. Isso tudo contribuiu para o progresso do povoamento, que se acelerou também em virtude do sucesso da lavoura canavieira (Johnson, 1987, p. 13-19). Durante o século XVII, o processo de colonização continuou, com algum esforço organizado para povoar o norte do país (Maranhão e Pará), em reação a incursões estrangeiras. Com a expulsão dos holandeses de Pernambuco, onde estiveram por 30 anos (1624-1654), ocorreu uma retomada da imigração. Uma testemunha ocular afirmou que, em Salvador, cada navio vindo de Portugal trazia uns oitenta camponeses oriundos da Madeira, dos Açores e do Porto. Segundo outro testemunho, nos anos 80, partiam de Portugal 2 mil emigrantes ao ano para Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro (Boxer, 1964, p. 10). No final do século, a população branca aproximava-se a 100 mil pessoas (Marcílio, 1990, p. 47). Nos últimos anos do século XVII a imigração aumentou em conseqüência da descoberta do ouro em Minas Gerais e, posteriormente, em Goiás e Mato Grosso. O fluxo, mais ou menos espontâneo, de imigrantes ocorreu sobretudo na primeira metade do século XVIII, mas as estimativas ainda são imprecisas: Furtado (1971) avalia que, no decorrer do século XVIII, imigraram entre 300 mil e 500 mil pessoas; Marcílio (1990) apresenta uma cifra intermediária, 400 mil; Rowland (1990) indica cerca de 9 mil ao ano durante o século XVIII. Segundo Boxer, citam-se dados exagerados do fluxo imigratório, que, para ele, seria da ordem de 3 mil a 4 mil pessoas ao ano no período mais tumultuado do gold rusch. Após 1720 a imigração não chegou a superar 2 mil pessoas ao ano, em conseqüência da introdução do passaporte (Boxer, 1964, p. 49). No período de Pombal (1750-77) aumentaram-se os esforços para organizar e planificar a emigração, principalmente aquela em direção ao Sul, ameaçado pela expansão espanhola. A atração pelas minas começou a diminuir com o exaurir-se da produção aurífera. O recenseamento de 1798 dá uma cifra de 1,010 milhão para a população branca, cerca de um terço da população total do território e um múltiplo da população indígena, absoluta em 1500 (Figura 1). Em todo o Brasil, estava assegurado o domínio europeu. Pode ser interessante comparar – em termos relativos – o esforço de povoamento operado pelas quatro populações européias às quais se deve o povoamento americano: francesa, inglesa, espanhola e portuguesa (Tabela 1). O estoque de população (americana) branca recenseada ou estimada em 1800 (col. 1) é relacionado ao fluxo de imigração acumulado na mesma data (col. 2), obtendo-se uma razão (col. 3) indicadora do “sucesso” migratório; o mesmo fluxo imigratório é relacionado à população da nação européia de origem (col. 4), obtendo-se um valor que exprime o “esforço” migratório da mãe pátria (col. 5). Enfim, a relação entre população 145 Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 FIGURA 1 A população do Brasil no final do século XVIII TABELA 1 Populações americanas, populações européias e migração, 1800 (em 1000) Nota: As populações de origem (col.4) são, na ordem: França, Reino Unido, Espanha e Portugal. Para as populações destes países, cf. M. Livi Bacci (1999, p. 14-15). Para Portugal: Perez Moreda e Rowland (1997). Sobre as populações americanas, Rosenblat (1954), Charbonneau et al. (1987); Mc Evedy e Jones (1979). Sobre migrações, para uma discussão ver Livi-Bacci (1998). Todas as cifras, especialmente aquelas sobre imigração acumulada, têm natureza indicativa: objetivam ilustrar a dimensão do problema. 146 Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 americana e população européia (col. 6) fornece uma idéia resumida do equilíbrio Europa/América no final do período colonial. É óbvio que se tratam de grandezas bastante aproximadas e, de todo, conjecturas no que diz respeito ao fluxo imigratório. Todavia, os resultados desse exercício fornecem uma grade de orientação interessante. Do ponto de vista do sucesso migratório, não resta dúvida de que os franceses do Canadá obtiveram os melhores resultados: seus descendentes, em 1800, eram sete vezes mais numerosos na imigração acumulada. Um discreto sucesso teve a imigração anglo-saxônica (razão igual a 4), seguida pela espanhola (razão igual a 3) e pela portuguesa (cerca de 2). Naturalmente, esta relação grosseira não considera, entre outras coisas, a longevidade da imigração naquela data. Esta foi mais remota para a América Espanhola que para o Brasil (na primeira, o fluxo em grande parte ocorreu no primeiro século e meio de colônia; na segunda, o maior fluxo teve lugar no século XVIII). Todavia, a baixa performance da imigração portuguesa é aparente, porque não considera os descendentes mestiços, que foram muitos. Na América Hispânica, estes eram bem menos e na América do Norte, menos ainda, pouquíssimos. No que diz respeito ao perfil do esforço migratório, Portugal situa-se nitidamente no primeiro posto (fluxo acumulado igual a 1/5 da população em 1800), seguido pela Espanha e Inglaterra (cerca de 1/12) e, a uma distância maior, pela França (menos de 1/1.000). Em outros termos, a relação entre população americana e população européia de origem foi máxima para o Brasil, seguido pelos Estados Unidos, América Espanhola e, à distância, pelo Canadá. Estas cifras grosseiras, sujeitas a revisão, indicam o possível percurso de uma interessante linha de pesquisa. É preciso, primeiro, defrontar-se com o problema do sucesso migratório das diversas populações, procurando compreender e decompor os mecanismos e explicar as causas. Deixo assinalado aqui a relevância da questão. 4. O povoamento do Brasil deve-se principalmente – pelo menos até a grande imigração européia da segunda metade do século XIX – ao tráfico de escravos africanos. Na época do primeiro recenseamento moderno (1872), 58% dos quase 10 milhões de brasileiros eram de origem africana, pura ou mestiça. Até a abolição do tráfico negreiro (1850), 3,6 milhões de escravos haviam sido transportados em navios negreiros para o Brasil, o que representava 38% de todo o tráfico transatlântico. Os temas do tráfico, da escravidão, da mestiçagem, do acesso à liberdade têm um enorme interesse histórico, social e cultural para o qual a Demografia pode contribuir com novos aportes. Tais temas estão, justamente, no centro do debate histórico e político no Brasil, devido à importância do elemento africano na população atual e porque a marca da abolição definitiva da escravidão – ocorrida somente em 1888 – ainda se faz presente. TABELA 2 Escravos trazidos para a América e população negra americana, 1800 (em 1000) Nota: Os dados relativos à col. 1 - escravos trazidos da África - foram deduzidos, com algum ajustamento, de Curtin (1969). Para a população negra da América em 1800, ver Rosenblat (1954) e Klein (1987: 295-96) e, para o Brasil, Merrick e Graham (1979:44). 147 Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 Considere-se a Tabela 2, construída com intento semelhante àquele da Tabela 1. Nela aproxima-se o fluxo acumulado da importação de escravos até o início do século XIX com o estoque de população negra e de cor na mesma data. (Recordamos que estamos diante de estimativas bastante corajosas, não só no que diz respeito ao tráfico de escravos, mas também quanto ao estoque da população negra e de cor, que apenas para a América do Norte possuem uma alta qualidade, devido a um bom recenseamento existente.) O que interessa é a razão entre estoque e fluxo, compreendida entre os dois extremos – a da América do Norte (razão igual a 3) e a do Caribe (razão igual a 0,5), com a América Espanhola Continental e o Brasil apresentando valores intermediários (1,2 e 0,9), mas bastante mais próximos do mínimo que do máximo. Se considerarmos, em lugar de 1800, o ano de 1872 – data do primeiro recenseamento –, a população com ascendência africana (negros e mulatos) era de 5,8 milhões e o fluxo acumulado, de 3,6 milhões, com uma evidente melhoria (razão 1,6). Nessa data, que precede em poucos anos a abolição da escravidão (1888), a população de origem africana livre representava três quartos do total, contra apenas um quinto no início do século. Todavia, esta razão engana, porque a adesão do Brasil à abolição do tráfico já ocorrera, o fluxo já havia cessado há vinte anos. A razão estoque/fluxo igual a 0,5 do Caribe confirma o que já se sabe: o sistema demográfico da escravidão mantinha-se graças a uma contínua e sustentada importação de novas levas que substituía os enormes vazios abertos por uma mortalidade elevadíssima, compensada, em medida muito modesta, pela baixa reprodutividade. O sistema norte-americano, por outro lado, era muito eficiente e o crescimento natural da população negra foi fortemente positivo. O caso brasileiro, como é evidente, se parece mais com o modelo caribenho: necessitava de uma contínua importação para manter invariável o estoque existente. 148 Colocam-se ainda questões que os estudos até agora não clarificaram: quais eram as causas da frágil e regressiva demografia da população africana no Brasil? A alta mortalidade, a baixa nupcialidade, as uniões instáveis, a baixa fecundidade, uma fertilidade comprometida por novas patologias? Quais destes foi o fator mais importante, ou em que medida e intensidade eles se misturaram? Em que medida a privação da liberdade, a carga de trabalho, as patologias do continente, os regimes alimentares eram, individualmente ou em conjunto, responsáveis por esse estado de coisas? Antes de olhar o que já sabemos do sistema demográfico da escravidão, colocam-se alguns elementos quantitativos que ajudam a fixar o problema. As estimativas do volume do tráfico (Figura 2) são conjecturas até o final do século XVIII e dependem mais de indicadores indiretos – o tráfico marítimo, aquele dos navios negreiros, testemunhos, opiniões dos contemporâneos – que de indicadores diretos, como o número dos embarcados nos portos negreiros (como Nantes e Liverpool) ou dos desembarques nos portos de entrada (Salvador e Rio de Janeiro) (Curtin, 1969, p. 15-17). A partir do século XVIII, os indicadores diretos prevalecem e as estimativas são ancoradas em uma farta documentação. A revisão moderna operada por Curtin (1969) estima em 560.000 no século XVI (42%), 1.891.000 de 1700 a 1810 (31%) e 1.145.000 (60%) até a abolição geral do tráfico no Brasil (1850). No total, 3,65 milhões (38% de todo o tráfico) de homens, mulheres e crianças foram transferidos para o Brasil em três séculos e meio; os homens adultos prevaleceram sobre as mulheres e crianças (uma relação entre 3:2 e 2:1). Uma proporção relevante de escravos – compreendida para mais, entre os 5% e os 20%, e tanto mais alta quanto mais longa era a duração da viagem – não sobrevivia às condições da viagem pelo Atlântico (Curtin, 1969, p. 275-286; Klein, 1986, p. 139-147); uma proporção ignorada não sobrevivia ao saque que, ao longo da costa e no interior próximo à costa, fazia afluir a mercadoria humana aos portos de embarque. Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 FIGURA 2 Destino do tráfico Atlântico, 1701-1810 FIGURA 3 O tráfico de escravos para o Brasil, 1817-1843 Grande parte do tráfico foi absorvida nas plantações, mas foi notável também a presença de escravos nas artes e artesanato, particularmente nas cidades. Durante o século XVIII a busca do ouro e pedras preciosas alocou uma consistente mão-deobra africana (Botelho, 2000). Na economia de plantation dominava a lavoura da cana- de-açúcar – quase a única mercadoria exportada entre o século XVI e o final do século XVII –, até quando se expandiu o café, no século XIX. Na metade deste século, o café dominou 4/10 dos valores da exportação, com um quarto do açúcar (Merrick e Graham, 1979, p. 12). 149 Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 A maior parte dos escravos provinha do Congo e sobretudo de Angola – sob a administração portuguesa –, mas no início do tráfico também foi importante o grupo proveniente do Golfo da Guiné e, no final, o moçambicano (Curtin, 1969; Klein, 1986 e 1987). Em fins do século XVII, o jesuíta Antonio Vieira escrevia: “aqueles que dizem açúcar, dizem Brasil e aqueles que dizem Brasil dizem Angola” (apud Schwartz, 1986, p. 38) – uma perfeita síntese da força que tiveram os escravos na vida e no crescimento da Colônia. Até a segunda metade do século XVIII, o porto de entrada principal do tráfico era Salvador (capital da Colônia até 1763, quando esta foi transferida para o Rio de Janeiro). De 1780 até o término do tráfico, quase dois terços dos africanos dirigemse para o sul da Bahia e o restante, em partes iguais, para outras regiões da Bahia ou ao norte desta província (Figura 3) (Klein, 1987). No decorrer do século XIX, com o desenvolvimento da cafeicultura em São Paulo e a valorização econômica do Sul, a migração interna assume importância. Segundo o recenseamento de 1819, um quinto da população escrava residia nos estados do Norte (Maranhão, Ceará, Pará); 28% na Bahia, Pernambuco e Alagoas; 36% no Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo (IBGE, 1987, p. 30). A proporção dos escravos nestas três últimas províncias, às vésperas da abolição, crescera para 53%, testemunhando as mudanças no centro econômico e demográfico do país. 5. O sistema demográfico da escravidão era, como foi visto, um sistema de perene déficit; a escravidão sobrevivia graças à constante renovação do estoque por meio do tráfico. Quanto a isto parece não haver dúvidas. Todavia, os mecanismos deste colossal e duradouro jogo perdido não são de todo claros e a discussão sobre o emaranhando de causas determinantes continua em aberto. Convém examinar brevemente o estado do conhecimento que diz respeito aos principais componentes do sistema, com particular atenção à mortalidade, às 150 uniões e à mestiçagem entre etnias. Em uma resenha como esta, que é somente um esboço, é difícil prescindir de um componente histórico e ideológico acerca da natureza do sistema escravista, visto sob a luz benigna da influência do livro de Gilberto Freyre Casa-grande e senzala (1954 [1933]), questionada nos anos 50 e 60 (Ianni, 1962; Fernandes, 1969; Cardoso, 1977) e revista nos últimos vinte anos (Mattoso, 1986; Vidal Luna e Klein, 1990; Schwartz, 1996; Slenes, 1998). De fato, os fenômenos demográficos, conseqüência de comportamentos e constrangimentos, prestam-se a testemunhar a favor ou contra determinadas interpretações do regime escravista. Que os escravos tinham uma mortalidade muito alta é ponto pacífico, não obstante o fato de que já tivessem sido submetidos a processos de seleção por parte dos mercadores, primeiramente, e das circunstâncias da viagem, depois. As testemunhas e as estimativas quantitativas existentes deixam poucas dúvidas a este propósito. É opinião corrente que a vida ativa útil de um jovem escravo em uma plantação compreendia entre 7 e 15 anos (Stein, 1957; Viotti da Costa, 1982; Schwartz, 1986). Estes números, contudo, adquiriram força mais pela contínua repetição. É quase impossível verificar a sua confiabilidade, pois na equação entram muitas variáveis tais como: a idade ao chegar ao Brasil; o término da vida ativa pela invalidez e doença ou morte; as alforrias; a fuga (muito freqüente); a eventual perda de observação (por venda ou fuga) etc. As cifras assumem relevâncias diferentes quando um ou mais desses elementos são esquecidos ou conforme são avaliados. Com base na distribuição por idade dos escravos em 1872, e incluindo os efeitos de uma população não fechada (pelo tráfico e pela alforria), Evans e Mello estimaram uma esperança de vida para os homens de 18,3 anos – contra 27 para o total da população brasileira –, o que contrasta com os 35 anos observados para os escravos dos Estados Unidos na metade do século XIX (Merrick e Graham, 1979, p. 53). Deixando de lado as numerosas taxas de Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 mortalidade (e natalidade) calculadas para várias áreas e épocas – todas gravemente deficitárias devido à ausência de registro dos eventos e às peculiaridades da estrutura por idade e sexo –, o que se observa é uma alta mortalidade, em excesso em relação à natalidade. Em Rio Claro (SP), a conservação de um registro permitiu calcular em 36% a sobrevivência de um grupo de escravos (cuja idade média inicial era de 23 anos) entre 1822 e 1835, um nível que implica uma mortalidade desastrosa (Dean, 1977, p. 85). Entre 1838 e 1852 – período em que o tráfico formalmente ilegal foi amplamente praticado – observou-se a idade de 440 escravos embarcados em navios capturados e sua idade ao morrer. Estes, na captura (e liberação), tinham entre 15 e 25 anos em 4/5 dos casos; a sua sobrevivência média foi de 14 anos para os homens e 10 anos para as mulheres. Valores compreendidos entre 7 e 15 anos são usualmente citados, com uma forte perda nos primeiros anos por causa de problemas, presumíveis, de aclimatação inicial (Karash, 1987, p. 32-34). Se não restam dúvidas sobre a alta mortalidade dos escravos – sensivelmente superior àquela dos livres, que também já era alta –, o debate sobre suas causas específicas está ainda em aberto. A patologia tropical e equatorial seguramente não era benévola para a sobrevivência, embora, muito provavelmente, os africanos devessem se adaptar melhor que os europeus. No hospital da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, onde durante o século XIX eram redigidos os atestados de óbitos, as dez causas de morte mais freqüentes eram tuberculose, disenteria, diarréia, gastroenterite, pneumonia, varíola, hidropisia, hepatite, malária e apoplexia, prevalecendo aquelas doenças associadas ao baixo padrão de vida (Karash, 1987, p. 183-184). Mas, quais eram as condições de vida dos escravos, particularmente nas grandes plantações, onde se desenvolvia a vida da maioria deles? No cultivo da cana e produção de açúcar, que prevaleceu até o final do século XVIII, Schwartz (1985) mostra um quadro preciso do massacrante ciclo do trabalho, sob rígido e forte controle, desde a plantação, os cuidados com a lavoura, o corte da cana, até o transporte da lenha de grandes distâncias para alimentar as caldeiras. O esforço cobria quase todo o ano, com nove meses de produção, o que implicava a contínua operação dos engenhos e caldeiras, que empregavam homens e mulheres do nascer ao pôr do sol e, no período de pico, também à noite (Viotti da Costa, 1982; Schwartz, 1985; Mattoso, 1986). Sabendo que os senhores não tinham interesse em esbanjar seu precioso investimento, conclui-se que o trabalho de 14-24 meses repunha o capital investido na aquisição de um escravo; era preciso extrair o máximo do trabalho escravo em um número mínimo de anos para, ao cabo de cinco anos, assegurar a duplicação do investimento inicial (Schwartz, 1988, p. 41-42). O regime alimentar dos escravos era baseado em alguns elementos fundamentais: milho, mandioca, feijão, carne seca, açúcar e derivados e frutas; portanto, a dieta podia ser variada e adequada. Por outro lado, aos escravos era concedido cultivar um terreno para uso pessoal (Mattoso, 1986, p. 103; Viotti da Costa, 1982, p. 213-268; Stein, 1957). A higiene na senzala era seguramente péssima; o cuidado com as doenças – se não a preocupação com a cura – por parte dos senhores era quase nenhum. A incidência, a cada momento, de escravos enfermos pela doença aguda ou crônica, cegueira, deformidades, seqüelas de traumas e acidentes – presumivelmente muito freqüentes em um ambiente duro de trabalho – era muito alta (Stein, 1957; Viotti da Costa, 1982, p. 244). As condições de vida podiam variar muito segundo a vontade do proprietário – paternalmente benévolo, cínico ou cruel –, mas era sobretudo o mecanismo produtivo que as ditava (Boxer, 1964, p. 8-9). A mortalidade infantil e jovem – em uma sociedade que, como veremos, não encorajava a procriação e a família e que obrigava a mulher ao trabalho pesado – era, por dedução, altíssima. Mas faltam dados confiáveis e testemunhos convincentes. 151 Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 É preciso dizer que as novas pesquisas tendem a colocar em relevo uma grande variedade de condições de vida dos escravos, que não se resumem em um simples paradigma de generalizada privação (Slenes, 1999). Outros importantes elementos materiais que constituem a causa direta da mortalidade são de difícil verificação. Podese dizer que o regime de privação da liberdade, que restringe e obriga os comportamentos e que, no caso brasileiro, desencorajava a solidariedade familiar e comunitária e impedia os contatos entre escravos de plantações diferentes, é um regime institucional que priva o indivíduo e a comunidade da capacidade de elaborar e experimentar eficientes mecanismos de defesa perante constrangimentos externos, acrescentando vulnerabilidade. Com certeza, é difícil incorporar esse plus de vulnerabilidade em um modelo quantitativo de sobrevivência – mas isto não significa que deva ser ignorado. 6. A alta perda pela mortalidade não era compensada pelo crescimento natural da população. Testemunhos da época, senhores de terras, viajantes, religiosos, todos lamentavam a escassez de nascimentos. Cremos que este tipo de testemunho seja mais confiável que outros: não é difícil comparar nascimentos e descensos, ver o ativo ou o passivo. Difícil é construir relações que implicam o conhecimento numérico dos eventos e da população. Uma explicação comumente dada ao balanço natural negativo – e à baixa natalidade – diz respeito ao desequilíbrio entre os sexos, a favor dos homens. Este desequilíbrio era tanto mais alto quanto mais elevada era, em uma plantação ou em uma comunidade, a proporção de escravos nascidos na África, selecionados já pelo tráfico, que introduzia no Brasil mais homens que mulheres. Havia também um desequilíbrio de sexo moderado entre os nascidos no Brasil, em cativeiro (crioulos) (Marcílio, 1990, p. 55). Na Bahia, do século XVII ao início do XIX, a razão de sexo na população escrava girava em torno de 3:2 e 2:1 nas plantações de 152 cana (Schwartz, 1996, p. 41); a mesma relação (2:1) observava-se nas plantações de café paulista no início do século XIX (Vidal Luna e Klein, 1990, p. 354). O verdadeiro problema, porém, está na presumida explicação: comunidades de escravos constituídas há séculos deviam sobreviver devido à força contínua da alimentação do tráfico, mesmo porque havia alta mortalidade e baixa fecundidade. O desequilíbrio de sexo é uma conseqüência e não uma explicação. A experiência de grupos não escravos imigrados, com estrutura por sexo e idade semelhante à dos escravos importados, tem se mostrado oposta: não obstante o desequilíbrio dos sexos, o seu saldo natural apresenta-se fortemente positivo. Não existindo registros confiáveis de nascimentos, a medida da fecundidade ou da reprodução, em geral, é obtida pela razão entre crianças e mulheres em idade fecunda, em que pese a limitação desta medida (a influência ignota da mortalidade infantil e jovem; erros e distorções da estrutura por idade; saída e entrada na coletividade estudada etc.). O recenseamento de 1890 (dois anos após a abolição) perguntou ao casal – no Distrito Federal do Rio de Janeiro – o número de filhos tidos e sobreviventes. Os casais (não há distinção de idade) cujos cônjuges eram ambos brancos haviam tido 3,53 filhos, dos quais 2,53 sobreviveram; para os casais de mulatos foram encontradas as cifras de 3,30 e 2,34, respectivamente; para os casais de negros, 2,98 e 1,99 (Merrick e Graham, 1979, p. 62). Segundo o Censo de 1872, a relação entre crianças de 6-10 anos e mulheres de 16-40 anos era igual a 0,57 para os brancos, 0,50 para os livres de cor e 0,35 para os escravos (Merrick e Graham, 1979; Dean, 1977, p. 85). Para o território de São Paulo ao redor de 1830, Vidal Luna e Klein calcularam que a relação crianças/mulheres “em média era menos da metade da observada na população escrava dos Estados Unidos em 1830”, onde se verificou um elevado crescimento natural da população escrava, impensável para a região paulista examinada, assim como para Minas Gerais (Vidal Luna e Klein, 1990, p. 359). Uma baixa relação criança/mulher Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 também se observa na região da Bahia, nos séculos XVII e XVIII, e uma baixíssima fecundidade foi encontrada no Engenho Santana, em Ilhéus, na primeira metade do século XVIII. A hipótese avançada pelos autores é a de que as mulheres amamentavam prolongadamente, seguindo hábito da cultura de origem (Schwartz, 1986, p. 57, e 1988, p. 321-324). Cálculos de taxa de natalidade devem ser vistos com reservas (Viotti da Costa, 1982, p. 247; Marcílio, 1990, p. 59). Vale para a fecundidade – como para outras manifestações da vida escrava – a consideração da existência de situações muito diferentes que não excluem casos positivos. Estes exemplos – mesmo na sua imparcialidade e imprecisão – confirmam a opinião comum dos contemporâneos: os nascimentos eram poucos, a mortalidade infantil era alta, a nova geração não repunha a velha. Mas, por quê? 7. Alguns senhores se opõem ao casamento de escravos e escravas e não se opõem a suas uniões ilícitas; abertamente dão o consentimento e diretamente marcam o seu início dizendo ‘tu, Caio, no tempo devido esposará com Tizia’, e daí em diante os deixam conversar entre si como se fossem marido e mulher [...] Outros, depois que os escravos estão casados, os separam de tal maneira que, por anos, permanecem como se fossem solteiros, coisa que é contra a consciência.” (Antonil, 1922) Estas são palavras de Giovanni Antonio Andreoni, o jesuíta chamado Antonil, talvez o observador mais arguto e atento do Brasil do início do século XVIII. O problema, no entanto, era que os senhores não encorajavam ou procuravam colocar obstáculo ao casamento; admitiam as uniões livres ou ocasionais, mas não favoreciam a estabilidade familiar. As razões disso eram várias e complexas. Na opinião de muitos, o peso econômico era muito forte. Havia ampla disponibilidade de escravos no mercado a preços baixos, o que tornava mais conveniente adquiri-los no mercado, em lugar de favorecer a reprodução e criação. Estas comportavam custos diretos e, sobretudo, indiretos: leis e costumes impediam de vender escravos separandoos da família; a reprodução subtraía a mulher do trabalho; os negros boçais (isto é, chegados da África) eram trabalhadores mais maleáveis que os crioulos (Viotti da Costa, 1982; Mattoso, 1986; Schwartz, 1996). Outros fatores ainda complicavam o quadro: a intromissão do senhor na vida sexual das escravas (o nascimento de numerosos mulatos que permaneciam escravos) e a sua “subtração” do pool matrimonial; a ausência de contato entre escravos de senhores diferentes, limitando a escolha matrimonial; a própria a organização do trabalho. As tradições africanas, igualmente, não favoreciam a monogamia e encorajavam as uniões temporárias (Slenes, 1976). Saint Hilaire comentava: [...] quando deu início no Brasil a campanha da abolição da escravidão o Governo ordenou aos proprietários de Campos que casassem os próprios escravos; alguns obedeceram, mas outros responderam que era inútil casar as negras que não podiam criar seus próprios filhos. Logo após o parto, estas mulheres eram obrigadas a trabalhar nas plantações de cana, sob um sol forte e quando, depois de serem separadas de suas criaturas parte do dia, era-lhes permitido ficar junto a elas, seu leite era insuficiente; como podiam as pobres criaturas resistir à miséria cruel da qual a avareza dos brancos circundava o seu berço? (apud Gorender, 1978, p. 342) Os dados disponíveis confirmam a baixa nupcialidade dos escravos. O recenseamento de 1872 dá notícia de casamentos (excluídas uniões consensuais) segundo a raça e condição social. Mesmo faltando o detalhe da idade, as diferenças não deixam dúvidas: na população livre, 30% estavam casados (tanto homens como mulheres), assim como 26% dos mulatos e 20% dos negros; na população escrava a cota dos casados chegava apenas a 8%, quer para os negros, quer para os mulatos. Não podemos saber quantas foram as uniões consensuais, mas certamente devem ter sido muitas, e com variável grau de estabilidade, dada a alta proporção de nascimentos ilegítimos. No decorrer do tempo, são numerosas as indicações de baixa nupcialidade entre os escravos: na Paraíba (1798) a proporção de casados entre os escravos negros era metade ou um terço daquela entre os brancos da 153 Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 mesma idade (Marcílio, 1990, p. 54). Uma situação semelhante de baixa nupcialidade encontramos também na região de Campinas em 1801, 1829 e 1872 (Slenes, 1998). Naturalmente, o quadro não era uniforme. Por exemplo, foi demonstrado que a nupcialidade era mais elevada nas plantações com grande número de escravos e menor em plantéis com pequeno número de escravos; que, em geral, a nupcialidade era mais elevada nas plantações que nas áreas urbanas. Estes resultados derivam, em parte, da dimensão demográfica do “mercado matrimonial”, menos reduzido nas plantações com alto número de escravos, mas também de um maior interesse dos proprietários de criar uma mão-de-obra mais estável, mais confiável e controlada (Slenes, 1976). Elementos de maior estabilidade também foram encontrados nas plantações de café da área paulista e carioca no curso do século XIX (Slenes, 1987 e 1998). Estabilidade e crescimento natural caracterizavam as comunidades escravas do Paraná, uma região de penetração recente, no início do século XIX, e com uma economia não orientada para a exportação (Gutiérrez, 1987). No século anterior, as prédicas jesuíticas encorajavam um equilíbrio entre homens e mulheres, a nupcialidade, condições de estabilidade favoráveis à natalidade. Tal política foi seguida com efeito positivo pelos beneditinos que possuíam grandes propriedades em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro (Schwartz, 1988, p. 53-54), nas quais a proporção de crioulos era alta, a de africanos, baixa (Gorender, 1978, p. 345) e o crescimento natural positivo. 8. Vários fatores tornaram a população brasileira uma rica e complexa mistura de etnias, mais que uma sociedade com rígida separação entre os grupos. Pode-se objetar que o Brasil é um país de grandes contradições e diferenças sociais, e que isto amiúde se identifica com subdivisão étnica. 154 Certamente, isto é verdade, mas também é verdade que as diferenças de cor, de condição, de língua ou de religião foram barreiras frágeis para a mestiçagem entre grupos. Sem dúvida, foram os fatores demográficos e de poder que deram grande impulso à mestiçagem. Os imigrantes portugueses eram, na sua grande maioria, homens dispostos a uniões com índias e, mais tarde, quando o tráfico de escravos começou a vigorar, com as africanas. Entre os escravos importados prevaleciam os homens sobre as mulheres e nas plantações – nas quais os escravos nascidos na África prevaleciam sobre os nascidos no Brasil – este desequilíbrio se repunha, mesmo que atenuado. Todavia, já dissemos: os senhores eram pouco inclinados a fortalecer o matrimônio ou a estabilizar as relações entre os escravos. “A política dos senhores era aquela de tornar a relação sexual difícil, mas não impossível. A poligamia africana abria a estrada a uma sucessão de relações de duração breve” (Mattoso, 1986, p. 11). Tanto entre os brancos, como entre os negros ou indígenas, na população livre e na escrava, grande parte das uniões não era legalizada pelo matrimônio e a ilegitimidade era altíssima. Dada a escassez do elemento indígena e ao fato de que muitas regiões estavam fora do controle direto dos portugueses, os nascidos da união de brancos com índios (caboclos) assumiam relevância sobretudo nas áreas marginais (Marcílio, 1990, p. 550). No final do período colonial, “quase dois terços da população era de origem africana (negra ou mulata) e na população livre havia mais pessoas de cor que brancos [...] vários estudos sugerem que, entre os livres de cor, seis ou sete entre dez eram mulatos, o que tornou esse grupo racial o de crescimento mais veloz no Brasil” (Alden, 1987, p. 291). Para a região da Paraíba, no nordeste do país, uma estatística de 1798 dá uma idéia do tipo de distribuição da população africana (contam-se também 8.930 brancos). Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 TABELA 3 População do Brasil por etnia e condição social 1798 e 1872 (em 1000) Fonte: Merrick e Graham, 1979, p. 29 TABELA 4 Brasil, Argentina, México e Estados Unidos: população, 1800-2050 População (em 1000) Fontes: Para 1800: Brasil (1798), Merrick e Graham (1979:23); Argentina (1797) e México (1803), Rosenblat (1954:182 e 205); Estados Unidos, Recenseamento. Para 1850 e 1900, Brasil, Argentina e México, Sanchez Albornoz (1994:143); Estados Unidos: Recenseamento. Para 1950, 2000 e 2050: United Nations (1999). O estudo demográfico da mestiçagem é muito difícil e, pelo que consta, não foi até agora realizado com sucesso. Um primeiro obstáculo é aquele definido pela tendência do elemento misto a “entrar” em um grupo socialmente superior, fazendo-se classificar ou autoclassificando-se diferentemente. Resolvido este problema, outros apareceriam. A coletividade negra, por exemplo, alimentava-se do tráfico de escravos e dos próprios nascimentos. A coletividade dos mulatos alimentava-se dos próprios nascimentos, mas também do nascimento de crianças geradas por elementos de outros grupos (branco e uma negra pelo menos), e por esta razão era mais dinâmica que as outras coletividades. A dos escravos (seja preta ou mulata) alimentava-se também através do tráfico e do nascimento de escravos e perdia elementos não só por morte, mas também via alforria. No Brasil, a alforria era obtida com maior freqüência que em outra sociedade 155 Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 escravista (por exemplo, os Estados Unidos) e era mais seletiva, porque privilegiava as mulheres (cerca de 2/3 das alforrias, embora o número de mulheres fosse menor que o de homens na população escrava), os idosos e as crianças. Chegava-se à alforria por uma série de razões (afeto; relações uxóricas; para liberar-se de escravos doentes, incapazes ou perigosos; por compra). Enfim, a coletividade dos livres era alimentada pelos próprios nascimentos, pela imigração e pela alforria (mais freqüente, como foi dito, para os mulatos que para os negros). Levar em conta estes elementos – e as particularidades estruturais dos vários grupos – é uma tarefa muito complexa e quase impossível de ser realizada quando os dados à disposição são inadequados. A Tabela 3 mostra a variação da população brasileira entre 1798 e 1872, que aproximadamente triplicou nesses três quartos de século. O mais forte incremento (1,9% ao ano) ocorreu na população européia, alimentada pela imigração que foi ampliada com a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, de início, e, a partir de meados do século, pela grande onda européia moderna, e favorecida pelas condições de vida indubitavelmente privilegiadas. A população de origem africana (negra e mulata), não obstante as condições de vida nitidamente piores, cresceu a uma notável taxa de 1,4%, reduzida a 1,1% se excluímos os 1,35 milhão de escravos trazidos antes de 1850. A população escrava permaneceu estacionária, pois não foi mais alimentada pelo tráfico após 1850 e presenciou uma taxa natural negativa. 9. O Recenseamento Geral do Império de 1872 colocou fim ao período préestatístico do Brasil. Este censo foi realizado um ano após a Lei do Ventre Livre (1871), que libertou da escravidão os filhos de escravas nascidos a partir da data da promulgação da lei, e precedeu em 16 anos a Lei Áurea (1888), que aboliu definitivamente a escravidão. Por essa ocasião, 156 havia se iniciado a grande imigração européia (dominada pela italiana) e, poderíamos dizer também, começava a história do Brasil moderno. Convém terminar nessa data, quando a população brasileira chegava a 10 milhões de habitantes, esta breve resenha dos fatos e problemas. Para concluir, seria interessante ainda nos determos na Tabela 4, que traz uma estimativa de população para intervalos de 50 anos, entre 1800 e 2000, e a previsão para 2050, segundo a variante média (United Nations, 1999), para os quatro maiores países da América: Brasil, Argentina, México e Estados Unidos. Desses quatros países, apenas o México possuía uma forte dotação demográfica no momento do contato com os europeus (era o mais populoso em 1800) e foi tocado de modo marginal pela grande imigração européia. No quarto de milênio considerado, a população argentina multiplicouse por um fator igual a 176, a dos Estados Unidos, por 89, a brasileira, por 73, e a mexicana por 25. Entre 1850 e 1950 – período que inclui a grande imigração européia (quase 5 milhões de imigrantes no Brasil) – a população argentina (a que mais cresceu pelo aporte imigratório) multiplicou-se 16 vezes, contra cerca de 7 vezes a do Brasil e dos Estados Unidos e menos de 4 a do México. Se considerarmos o período 1950-2050 – durante o qual se iniciou e deve ser concluída a moderna transição demográfica nos países pobres –, a população americana terá pouco mais que duplicado, a argentina multiplicar-se-á por 3,2, a brasileira por 4,5 e a mexicana por 5,3. Em 1500, a escassa população do atual Brasil representava uma pequena cota da população do continente ao sul do rio Grande e dos Estados Unidos, dominada pela demografia da América Central e andina. Hoje, os 170 milhões de brasileiros são um terço da população do continente e constituem-se na sociedade etnicamente mais complexa e mais dinâmica das Américas. Livi-Bacci, M.L. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.1, jan./jun. 2002 Referências bibliográficas ALDEN, Dauril. The population of Brazil in the late eighteenth century; a preliminary study. Hispanic American Historical Review, vol. 43, n. 2, 1987. ALDEN, Dauril e MILLER, Joseph C. 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