Dou a palavra ao Miguel Sousa Tavares: "A insuportável futilidade da política"
"Perguntava às tantas ao ministro João Galamba o deputado do PSD Paulo Rios de Oliveira, após fazer uma excitada e demagógica descrição dos acontecimentos vividos no gabinete do ministro, e na ausência dele, na noite de 26 de Abril: “E quem é o responsável político por isto?” Imaginei a mesma pergunta feita ao deputado, se o PSD tem despedido um assessor do seu grupo parlamentar e este, 15 minutos volvidos, tem entrado pelo gabinete do grupo adentro e, após confrontos físicos de responsabilidade por determinar, tem fugido com o computador do partido, queixando-se depois de ter sido “sequestrado” por ter sido pedido ao segurança que lhe barrasse a fuga com o computador. De quem seria a “responsabilidade política”: do líder do grupo parlamentar, do presidente do partido ou das “desvairadas” assessoras, para usar a elegante expressão do deputado Rios de Oliveira?
Convocado para assistir ao momento político mais importante dos últimos seis meses, o país mediático-lisboeta-parasita lá se instalou diante das televisões durante dois dias (e eu também, por dever de ofício e alguma curiosidade antropológica). Do alto da sua coluna no “Público”, o nosso comissário para a Repressão do Vício e Promoção da Virtude, João Miguel Tavares, chegou mesmo a fornecer aos leitores o horário das inquirições da CPI, para que pudessem partilhar com ele os orgasmos múltiplos que já antecipava. E o que vi eu? Nada que não esperasse e que não tivesse já previsto aqui. O professor de andebol e adjunto Pinheiro, cerimoniosamente tratado por “Sr. Dr.” o tempo todo, apresentou-se como o herói do dia, disposto a gozar até ao último minuto a sua tarde de glória e a fazer abalar sozinho o regular funcionamento das instituições democráticas. Acompanhado por um advogado criminal, de Código Penal em punho (não percebi se porque achou que lhe dava status, se porque temia poder auto-incriminar-se), o herói começou por ler um relambório de 40 minutos de auto-elogio, onde se apresentou como homem íntegro, servidor público exemplar, técnico absolutamente indispensável à reestruturação da TAP e, porém, despedido sem causa, ameaçado com dois “socos” pelo ministro (não murros, como toda a gente diz, mas sim “socos” — talvez um uppercut e um “gancho” de esquerda), “empurrado” e “pressionado” por quatro mulheres e obrigado a fugir, ele, um atleta, depois sequestrado, ameaçado pelo SIS e ofendido e caluniado pelo ministro e pelo PM, contra os quais iria interpor as respectivas acções de reparação do seu bom nome (todavia, após 48 horas de ponderação, já só cogitadas). Anos de tribunal no meu longínquo passado fizeram com que, após ouvir o sofrido depoimento do adjunto Pinheiro, tivesse comentado para mim mesmo: “Mas que grandessíssimo vendedor de tapetes!” Mas também aprendi que há que esperar sempre pela outra versão da mesma história.
Porém, não foi o que sucedeu. Mal o adjunto Pinheiro tinha acabado de falar e todos — todos — os jornalistas e comentadores de serviço, sem sequer ouvirem os outros intervenientes, sem nenhum interesse no contraditório ou no que não convinha à versão dele, adoptaram-na de imediato como verdade única e inquestionável. Os “socos” que o ministro lhe terá oferecido e de que ele não tinha prova alguma, antes pelo contrário, ficaram de tal forma estabelecidos que Ana Sá Lopes pôde titular no “Público”: “João Dois Socos Galamba”; a demissão por telefone foi unanimemente tida como ilegítima, como se a demissão de um cargo de confiança política e pessoal pudesse esperar pela publicação em “Diário da República” — que, neste caso, demorou 14 dias; as queixas das agressões do adjunto a quatro mulheres, que teriam sido um escândalo se tivessem sido ao contrário, foram abafadas pelo invocado “crime de sequestro” do alegado agressor e apesar de este ter ficado manifestamente perturbado quando se sugeriu que as filmagens das câmaras de vigilância do Ministério fossem enviadas à CPI; o dito “crime de sequestro” deu-se por consumado apenas porque alguém tentou impedir, trancando as portas e chamando a polícia, que ele fugisse com o computador do Ministério; e a “ameaça” do SIS, objecto de nova anunciada CPI, consistiu em um agente ir a casa de Pinheiro pedir-lhe que entregasse o computador a bem para evitar mais chatices. Mas ninguém estranhou que nem um daqueles inquisidores da CPI, tão obstinados em outros pormenores, se tivesse lembrado de perguntar ao “Dr. Pinheiro” o essencial: porque não acatou a ordem recebida do ministro de não voltar ao Ministério e o fez logo 15 minutos depois? Se queria reaver as suas coisas, como disse, porque não combinou a entrega delas com a chefe de gabinete, como seria adequado? Que outras coisas suas reouve nessa incursão? Considerava o computador coisa sua? Ao fugir com ele, não considerou que o estava a roubar? Que continha o computador de tão importante para justificar tamanha urgência e tamanho desespero em ir buscá-lo? O que fez durante o tempo em que esteve com o computador — apagou ficheiros ou notas ou acrescentou outras?
Nada disto interessou aos senhores deputados da CPI, aos jornalistas e aos comentadores. O juízo já estava feito, e mesmo a desilusão que tiveram ao não obterem a esperada execução sumária do ministro Galamba os fez mudar de opinião. Galamba enfrentou cinco horas de perguntas repetidas até à exaustão e, perante a complacência de quem dirigia os trabalhos, encaixou o interrogatório mal-educado e ao estilo KGB do deputado do BE (substituindo uma Mariana Mortágua que, tendo exigido esta CPI, achou mais importante depois abandoná-la para se dedicar à sua eleição interna), encaixou a pseudo-ironia, apenas provocatória, do deputado Rios e esteve 20 minutos a ouvir o deputado André Ventura a querer que ele entregasse o seu telemóvel para, através dele, tentar saber o que se tinha passado no telemóvel do adjunto Pinheiro, numa pura tentativa de devassa pessoal sem qualquer sentido. E, obviamente, com a única excepção do deputado Bruno Dias, do PCP, em nada lhes interessou saber da TAP, mas sim eternizar o folhetim do gabinete, usando ainda o truque da sessão de perguntas ao primeiro-ministro em plenário para a transformar numa extensão da CPI.
De tudo isto resta uma forma de fazer política e de fazer oposição que parece que excita muito toda a gente que pensa, que causa muito ruído e muito escândalo mediático, mas que nada tem a ver com política, nada tem a ver com jornalismo e nada tem a ver com o exercício parlamentar de fiscalização da actividade governativa. Eu compreendo e subscrevo que muita gente esteja zangada com a governação e que queira coisas diferentes. Mas isso começa por fazer as coisas e a política de forma diferente. Esta CPI e esta forma de fazer oposição talvez desgaste o Governo, mas desgasta por igual a democracia e a oposição. E não é também porque, nos intervalos do frenesim criado artificialmente, o Presidente da República, na angústia para o jantar de que falava Sttau Monteiro e que Helena Matos tão bem analisou, sai do palácio e vem à rua à procura de jornalistas junto de quem fazer prova de vida que as coisas passam a adquirir uma importância que não possuem.
Como também não é porque, sazonalmente, Cavaco Silva precisa de destilar a sua dose de veneno para fazer prova de vida que nós ou as instituições devemos estremecer de medo. Sobretudo quando ele, ex-Presidente de todos os portugueses, dispara sempre ao abrigo do estrito círculo partidário de onde veio e, acusando o Governo de viver na mentira, nos prega três solenes mentiras: que o PSD tem causas, que tem propostas alternativas e que Montenegro está preparadíssimo para governar. Quais? Quem? Como?"
(Obviamente que subscrevo, na íntegra)
(Texto e imagem in Expresso, edição impressa - Caderno principal - Hoje)