sábado, 25 de agosto de 2007

a ver o mar


onde o pai foi menino.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

o amor (já não) nos tempos de cólera

Lá nos princípios tinha mais ou menos decidido que não ortografava por aqui as más memórias que me enegreceram a biografia. Mas há dias reencontrei-me com os sublinhados no livro da Susanna que o meu amor graúdo me ofereceu nos anos e inteirei-me da já desimportância da coisa. Os agastamentos perderam-se pelos caminhos. Só restaram as notícias. Agora é o futuro.

dizem que

"Quem são os nossos pais, o que há por detrás dos rostos que nos geraram? De entre os biliões de pessoas, apenas duas, de entre centenas de milhares de espermatozóides, apenas um. Antes de sermos filhos da nossa mãe e do nosso pai, somos o resultado de biliões de combinações e de escolhas - feitas e não feitas - que ninguém é capaz de esclarecer. Porquê aquele espermatozóide e não o outro, um pouco mais à direita? Porque é que só aquele contém as características que dão vida à pessoa de quem se sente necessidade? Esse nascituro pode ser um Leonardo, um canalizador, ou mesmo um cruel assassino. Mas necessidade de quem? Necessidade para quê? Para que servem todas essas vidas?
E se, na verdade, já está tudo predisposto, como no menu de um restaurante, se um Leonardo só pode vir a ser um Leonardo, e o mesmo se passa com o assassino e o canalizador, que sentido tem toda a nossa existência? Será mesmo verdade que somos feitos com as peças de uma caixa de montagem: em cada caixa, um número que determina o projecto?
Será que, lá em cima, no céu, há alguém que decide, como uma dona de casa afadigada: "Hoje, quatrocentos canalizadores, uns oitenta assassinos, e quarenta e dois cientistas?"
Ou então, o céu está vazio, como muitos dizem, e as coisas avançam devido a uma espécie de movimento perpétuo: a matéria começou a agregar-se em tempos remotos e já não pode parar, vai gerando formas cada vez mais complexas. E foi justamente essa complexidade que gerou a grande ficção, aquela que nos quer fazer acreditar em alguém que está acima de nós.
Porquê aquele espermatozóide e porquê aquele homem? Porquê aquela rapariga e não a da carteira ao lado? Porque será que, graças a um evento que não dura mais do que alguns minutos, duas pessoas que, poucas horas antes, talvez não se conhecessem, passam a ser os nossos pais? Estaremos destinados a ser metade de um e metade do outro, mesmo que nunca os tenhamos conhecido, mesmo que o acaso nos envie para adopção para o outro extremo do mundo?
Seja como for, somos eles.
Eles e os seus pais e os pais dos seus pais e recuando ainda mais no tempo, até os ramos da árvore genealógica ficarem cobertos - a paixão pelos insectos do avô, o gosto pelo canto da bisavó, o interesse pelos negócios do trisavô, o alcoolismo do outro avô, a vontade de mandar tudo para as urtigas dos vários primos, o instinto suicida de dois tios, a mania do espiritismo de uma tia-avó - está tudo metido dentro de nós como numa bomba de relógio: não somos nós que regulamos o timer, já está regulado de início, sem nós sabermos. A única sabedoria é saber que é assim, ter consciência de que, de um momento para o outro, algo que não controlamos pode deflagrar dentro de nós.
Assim, um homem e uma mulher - no meio de biliões de pessoas iguais a eles - encontram-se a certa altura da sua vida e, após um tempo que pode variar entre alguns minutos e uma dezena de anos, repetem-se numa outra forma de vida."

Escuta a minha voz, Susanna Tamaro, Editorial Presença

terça-feira, 21 de agosto de 2007

calo-me

Acho que a única coisa que por enquanto lhe omito é que a avó Cecília morreu quando o papá tinha só oito anos. Vou habilmente conduzindo os diálogos por outras ruas e preterindo a data para um jardim mais à frente.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

semente

Nem sequer se pode dizer que tenha sido uma concordância planeada nos meses de barriga ou nos primeiros choros no mundo cá de fora. Foi muito anterior a isso, uma revolta a crescer ao mesmo ritmo da progressiva compreensão do mundo, um dedo apontado acho que ainda antes da rebeldia dos anos adolescentes, Se um dia tiver filhos nunca ficam com vocês que não os quero a passar pelo que eu passo. Promessa feita, promessa cumprida. Não imaginava era outro lado igualmente labiríntico.

Por isso o miúdo sabe toda a verdade. Ou pelo menos sabe as meias-verdades que as ainda diminutas consciências dos quatro anos lhe permitem conhecer. Sabe da avó Cecília e do avô Francisco, pais do pai Mário. Que a avó Cecília morreu de amor, que o cancro não foi causa mas foi efeito, no dia de anos do marido para o castigar. Que o avô Francisco existiu a não viver desde aí e acabou por morrer, numa morte muito feia e inesperada, ainda antes de ele me começar a dar (valentes) pontapés na barriga. E sabe vagamente da bisavó Hermínia, empenhada em destruir os afectos familiares; da tia-avó Noémia, em abortos sucessivos obrigados pelo marido e que morreu com o desgosto de não ter filhos e a mesma doença da irmã dois anos certinhos antes dela; do tio-avô-falso Francisco, auto-intitulado um homem dos cemitérios, duas vezes por semana a pôr flores e a falar com a campa da mulher que ajudou a morrer, acompanhado da mulher actual, uma Isabel semi-esquizofrenada por "lambisomens" e visitações; do tio, diferente do pai em tudo menos no nome, tão estranho e psicótico que chegámos a diagnosticar cá para connosco Asperger e outras perturbações similares. São (imensos) mortos dramáticos que foram vivos genuínamente bizarros, que isto assim escrito soa a fantasiado mas até está resumido.

E depois sabe da avó Augusta e do avô Augusto, pais da mãe, pais infelizmente meus, que deve ter visto não mais do que cinco ou seis vezes só aos dois anos e tais e que lhe suscitavam choros lancinantes e despropositados, como se em intuições das minhas mágoas, que eu cá tenho a certeza que os filhos não nos herdam só o ondulado do cabelo e o feitio dos pés. Chama-lhes avós bruxos e pergunta, feito João e Maria, Ela não me vai comer?, e eu afianço-lhe que não, claro, que eu não deixo, e ai de infantário ou educadora que venha cá querer perceber estes desenredos familiares ou enumerar maravilhas das convivências com avós. Deste lado há menos de uma mão cheia de gente e os mortos estão de fora, provocados pelas maldades de dentro. É isso que há a mais, o mal. O mal mesmo mau, profundo, que ainda me deixa aterrorizada nestes anos de adulta, e que não nos deixa outra opção senão a distância geográfica e emocional, tal como fugimos e esquecemos os anos num campo de concentração para podermos construir uma vida com as matérias-primas que temos à mão.

Eu podia atalhar-lhe as origens com um resumido Uns já morreram e os outros estão longe e são muito velhinhos, que eu ludibrio-lhe tanta pequeneza (Sim, o papá está quase a chegar, hoje é terça, falta muito pouco para sábado; Não, não dói nada, o sangue seca num instantinho e amanhã já está curado; É da cebola, querido, não estou nada triste...) que também lhe podia corderosar as grandezas. Mas esta é a família dele. Tem direito a sabê-la. Tem direito a perceber os porquês de deixarmos lá as outras raízes, apodrecidas e estéreis, a secar ao longe e os de querermos plantar, com ele, novas raízes.

Semeamos. Crescemos árvore.

domingo, 19 de agosto de 2007

dizem que

"Concordámos que os pais deviam ser, acima de tudo, honestos com os filhos, tanto no que dizia respeito aos factos mais sombrios, como aos mais agradáveis."

Uma casa no fim do mundo, Michael Cunningham, Gradiva

sábado, 18 de agosto de 2007

pais & filhos

Devemos ter entretido uma hora e muitos, quase duas em jogos e livros e carrinhos. O nosso grupo era às dezassete, os meninos do último coloriam estórias em acetatos para projectar na lua e as prateleirinhas com brincadeiras seduziram-no mais que a sombra das oliveiras na relva e os bolos na esplanada. Então, rapaz, como te chamas?, perguntou-lhe às tantas a menina depois de lhe ter elogiado os sossegos e os bons-comportamentos (sossegado e bem-comportado, sorri-me eu, como os momentos iludem o todo...). Simão de quatro anos, os dedos esticados, apresenta-se sempre assim, nome e idade, às vezes mais os três sobrenomes e a morada. E tens irmãos? Não... E amigos, aposto que tens muitos amigos? Preparo-me para atalhar que ainda cá moramos há pouco tempo mas ele antecipa-se. Não, somos só nós. Eu, a mãe e o pai. Somos uma família pequena. Mais a Boba e a gata e as três tartarugas. Somos só nós.

O que me doeu, o só nós. O eu, a mãe e o pai. Só nós. Tudo o que eventualmente lhe possa falhar nesta vida de menino (mais brinquedos, uma escola diferente, uma casa maior, ...) soa-me a quase nulidade comparado com o grande vácuo de não ter avós, tios e primos para lhe fornecer. Uma família grande.

Somos mesmo só nós. Uma família pequena.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

filhos & pais

No meio do parque infantil do comboio e do escorrega gigante paralisa as apanhadas com um Carlos bilingue a um dia de receber os parabéns pelos cinco anos e arrasta-o pela mão. Anda cá, tenho uma coisa muito impotante para te dizer. Este é o meu pai Mário e esta é a minha mãe Ângela. É isto, uma coisa muito impotante. Enterneço-me com as considerações. Terei, teremos direito a iguais daqui a dez anos? Vai apresentar-nos aos amigos ou esconder-se envergonhado das nossas estranhezas de adultos? A adolescência deve ser um território muito agreste...

Afasto-me das pressas. Aconchego-me nas doçuras.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

ou o ovo primeiro?

Mamã, já posso acordar? Todas as manhãs assim, acordar em vez de levantar, como se os despertares só se dessem de pés no chão. Salta-me para a cama, pinotes e rebolanços e puxões no rabo da gata, ele e o barco grande e o regador que o pai finalmente se lembrou de fazer viajar para cá. Vamos à praia? Ou vamos à piscina? Diz lá, responde! Preguiço-lhe huns e vagos sins ainda de olhos fechados, a logorreia Mãe, mãe! Acorda! Já é dia! MÃE!, ineficaz a desentorpecer-me. Atira-me o regador à cabeça. Com força. O plástico amarelo e verde, rijo. Salto, irada, o regador na mão, o impulso descontrolado de o atirar. À parede, ao chão, à cabeça dele. Os olhos retraídos param-me. Mas... tu és a mãe, as mamãs não se irritam...

Pede-me desculpa. Peço-lhe desculpa. Damos beijinhos e regamos a salsa.

a galinha primeiro...

Exige-me no sofá para vermos juntos O Pequeno Ursinho, desenhos muito gostados e muitas vezes revisitados pelos dois. Eu às voltas com o frango para o jantar e ele ansioso para partilhar as fantasias do ursinho, as doçuras da mamã ursa, as bonomias do papá urso. A família no seu melhor. Vês, ele nunca se irrita. Pois é, e não atira com os brinquedos nem grita nem faz birras, sai-me automaticamente. Monocórdica. Chata. Isto agora era desnecessário, repreendo-me silenciosamente ainda antes do ponto final. Os olhos, irreverenciosos, admoestam-me. O papá urso! O papá urso é que nunca se irrita!

Emudeço.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

out


Na parede um jardim de papoilas ao vento com uma borboleta voadora e um céu entre o azul e o povoado de nuvens.

in


Dentro da máquina circunferências de cartolina vermelha penduradas com cordas, lâmpadas tapadas com celofanes azuis, uma ventoinha, madeiras e arames, uma borboleta...

heureuses lueurs

São colheres quase inutilizadas pelo cimento, estilhaços de espelhos, tábuas que em tempos andaimaram obras, cafeteiras enferrujadas, torneiras desusadas, despertadores desponteirados, lâmpadas cheias de água. Restos enlixados pelos outros. Caixas de música, motores de varinhas mágicas, imagens recortadas, celofanes azulados, cordas e muitos arames. E as essenciais lentes "barrigudas" que nos põem de pernas para o ar quase sem nos estontearmos. E, claro, as luzes, que quando se acendem transformam os desperdícios em imagens e contos. Misturas inusitadas a que Flop Lefebvre chamou Máquinas de poesia e luz e que estiveram no Centro de Pedagogia e Animação do CCB até hoje. O miúdo concerteza se tivesse mais uns quatro ou cinco somados aos quatro que tem não se distraía metade do que se abstractou e fantasiava noutro percebimento (o outro pequeno do grupo, com os mesmos anos e um nome também terminado em ão, acabou por fugir para a rua na terceira sala e fazer uma birra; o de nove? dez? participou entusiasticamente nas experiências com lanternas e nas invenções dos enredos) mas mesmo assim decifrou as imagens e gostou das estórias. Escusava-se era tanto gatinhamento à cão pelo chão e tanta excitação. Eu cá fiquei encantada.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

lisboa bike tour


segunda-feira, 13 de agosto de 2007

full-mum

Não me custa ser mãe. Às vezes custa-me é só ser mãe. Mas só às vezes.

domingo, 12 de agosto de 2007

oferece-se

E depois penso no curriculum vitae que é suposto ter elaboradinho, bonitinho e prontinho para remeter a quem procura desocupados com precisão de se ocuparem. Como é que preencho o vácuo laboral dos últimos quatro anos? Mãe a full-time, será que devo redigir assim? Especializada em ranhos, tosses, cocós, estórias e cantilenas, legos e carrinhos, birras, beijinhos mágicos para curar dóidóis, palmadas e estratagemas para fazer comer a sopa? Experienciada em ementar os dias, evaporar os pós, não deixar o cesto da roupa suja transbordar, não deixar o frigorífico esvaziar? Será que abona alguma coisa a meu favor, a cronologia preenchida? Duvido muito...

procura-se

Talvez uma centena de dias depois de ter esmiudado as letrinhas minúsculas em perseguições de assoalhadas e em ensaios para o que vou ter que fazer (já?) a menos de um mês, pesquiso as colunas dos precisam-se. Desoriento-me. Num dos mundos sinto-me estrangeira em país desconhecido, desentendida no léxico local. Operadores e assistentes de call-center, inbound e outbound, telemarketing, backoffice, telesales, helpdesk, licenciados em gestão, licenciados em marketing, especializados em Amadeus (?), entendidos em TOC (?), conhecedores de SAP (?)... Haverá dicionários de profissões? No outro, percepciono os significantes mas distancio-me dos significados, não me revejo em (des)ocupações de distribuir publicidade, entregar pizzas até desoras, lavar escadas, madeixar brancos, guardar tijolos, servir cafés e meias de leite, conduzir camiões...

Não há mais mundos?...

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

O que me custa não escrever aqui todos os dias...