Morris West Arlequim Grande
Morris West Arlequim Grande
Morris West Arlequim Grande
Arlequim
CRCULO DO LIVRO CIRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413 So Paulo, Brasil Edio integral Titulo do original: "Harlequin" Copyright 1974 by Compania Financiera Perlina S.A. Traduo: A. B. Pinheiro de Lemos Layout da capa: Yae Takeda e Cristiano Quirino Licena editorial para o Crculo do Livro por cortesia da Distribuidora Record de Servios de Imprensa S.A. Venda permitida apenas aos scios do Crculo Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado em oficinas prprias 2 4 6 8 10 9 7 5 3 1 84 86 87 85 83
Para Sheila
"Como se fssemos viles por necessidade, tolos por compulso divina." Shakespeare, Rei Lear, ato I, cena 2.
1 George Arlequim e eu somos amigos h mais de vinte anos. Contudo, devo confessar que ele o nico homem que realmente sempre invejei. Houve um tempo em que cheguei a pensar que o odiava, sendo curado de tal sentimento por sua virtude e esprito sadio. Ele tudo o que eu no sou. Sou alto, corpulento, desajeitado, quase como partes reunidas ao acaso, o desespero dos alfaiates. Ele esbelto, elegante, o cavaleiro clssico, um jogador de tnis que d gosto apreciar. Eu sou alfabetizado o suficiente em uma nica lngua. Arlequim poliglota, excepcional em meia dzia de idiomas. E mais do que isso: ele usa uma cultura prodigiosa, com o encanto espontneo de um corteso da Renascena. Eu sou seu antpoda, impaciente, impulsivo, predisposto a ser rigoroso ou simplista em meus julgamentos. Arlequim um europeu, frio, conciliatrio, sutil, paciente at mesmo com os imbecis. Ele nasceu para o dinheiro. Seu av fundou a Arlequim et Cie., Merchant Bankers, com sede em Genebra. O pai fez alianas internacionais e
abriu filiais em Paris, Londres e Nova York. Arlequim ampliou a rea de atuao e depois herdou a presidncia e a maior parte das aes com direito a voto. A tradio da casa era-lhe sagrada. O carter do cliente era mais importante que os outros fatores de garantia. O risco, uma vez assumido, no podia ser revogado. Jamais se esquivava ao cumprimento de um contrato por expedientes legais. Um simples aperto de mos encerrava as mesmas obrigaes de um documento formal. E se o cliente ou sua famlia atravessavam horas difceis, o lema do banco provava ser verdadeiro: Amicus certus in re incerta (Um amigo certo nas coisas incertas). Eu, por outro lado, comecei como um aventureiro, pura e simplesmente. Abri meu caminho por entre os mercados financeiros, ganhei muito dinheiro e perdi-o. Nos anos difceis que se seguiram, senti-me humilhado pela preocupao que Arlequim demonstrava por mim, incrdulo ante as somas considerveis que ele arriscava a uma simples palavra minha. Quando recuperei a fortuna, entreguei-lhe o dinheiro para investir, enquanto
fazia uma cura prolongada da lcera pptica que tambm adquirira e aprendia algumas das artes do prazer. Casei-me cedo e no deu certo. Arlequim divertiu-se at os trinta e cinco anos e ento casou-se de repente com Juliette Gerard, a quem ele conheceu em meu iate, quando eu ainda estava tentando persuadi-la a casar-se comigo. Depois disso, no nos encontramos durante trs anos. Permanecemos banqueiro e cliente, mas reticentes e constrangidos, at que o filho deles nasceu e deram-lhe o meu nome, Paul Desmond, convidando-me para padrinho. No mesmo dia Arlequim ofereceu-me um lugar no conselho diretor do banco. Num impulso emocional, aceitei imediatamente e tornei-me o embaixador itinerante de Arlequim et Cie. e o padrinho apaixonado de uma criaturinha loura, parecida demais com a me para servir-me de consolo. Preciso deixar claro: ramos amigos de corao, mas eu continuava a ter cimes de Arlequim. Ele era por demais o rbitro da elegncia, mas tambm judicioso o suficiente para que at os homens experientes do mundo
das altas finanas lhe prestassem um respeito como o que se presta a um rabino. Ele era afortunado demais, possua virtudes demais. Suponho que se possa dizer que ele era tambm, obviamente, feliz. Dirigia automveis, velejava, montava purossangues, colecionava quadros e porcelanas. Era cortejado por lindas mulheres e adorado por sua esposa. Ele era to impressionante em seus atributos que intimidava as pessoas de menor importncia. Em momentos de desnimo e abatimento, eu me perguntava por que ele se importava com um tipo confuso e difcil como eu. Sentia-me um bobo da corte, circulando em torno do mais requintado dos prncipes. No escrevo isso para depreci-lo. Deus me livre! Devo deixar claro que o bobo da corte adorava o prncipe e, para mal de seus pecados, continuava apaixonado pela princesa. E o que eu quero mostrar aqui o quo alto Arlequim estava, quo visvel e vulnervel, quo alheio aos perigos de ser ele prprio. Mesmo eu no via isso ento com muita nitidez. Juliette podia apenas adivinhar. Mas, sendo mulher, ela encarava o fato por outro ngulo.
... sinto-me to intil, Paul! No posso dar a ele nada seno a mim mesma na cama, e outro filho, quando ele o desejar. H pelo menos vinte mulheres que poderiam tomar o meu lugar amanh mesmo. No importa que George no o veja, pois eu vejo. No lhe sou necessria e um dia ele vai descobrir... No sou nenhum lago, se bem que algumas vezes tenha desejado s-lo. Disse-lhe a nica verdade que conhecia. Est casada com um homem venturoso, Julie. Seja feliz com ele. Para George, tudo alegria, sendo que voc a maior alegria de todas. Aceite isso e mande o futuro para o inferno. Arlequim chegou ento, exuberante e feliz, com uma nova tela debaixo do brao e um novo cliente em seu banco, com planos para um fim de semana em Gstaad, onde a neve estaria profunda e o tempo prometia ser bom e ensolarado para o prazer do beautiful people. Pouco depois chegou o ms de abril e Arlequim e eu fomos para Pequim, porque os chineses estavam querendo fazer negcios com a Europa, e Arlequim queria uma fatia para seu banco e para seus clientes. Fiquei
imaginando como ele, o mandarim dos mandarins, iria reagir diante dos padres espartanos da Repblica Popular. Mas, como sempre, subestimei-o. Ele imediatamente se sentiu em casa, inteiramente vontade. Falava fluentemente, era hbil na caligrafia. Sua cortesia era impecvel, a pacincia, ilimitada. Em um ms j mantinha os contatos mais tranqilos com os altos escales da hierarquia, sendo respeitado igualmente pelos polticos e pelos tecnocratas. Comprou muitas antigidades, peas de jade, tapetes. Discutiu projetos de fabricao de antibiticos, drogas sintticas e instrumentos de preciso. Fez amigos entre os estudiosos e os arquelogos. Aprendeu as sutilezas do humor oriental, mas jamais perdeu a dignidade, nem a alegria. Foi um desempenho impecvel, e nossos anfitries no fizeram segredo de sua plena aprovao. Mas nem tudo foi encantamento e alegria. Arlequim ficou profundamente comovido com a experincia. As mesmas coisas que me deprimiram, a imensido da terra, o vulto dos empreendimentos tribais,
despertaram nele o poeta e o sonhador. Ele passava uma hora inteira contemplando extasiado os vultos picos na paisagem: um barqueiro voltando para casa ao pr-do-sol, as mulheres acionando um moinho para irrigar os arrozais. Fazia ento um comentrio apaixonado, mas um pouco incoerente. ... Existe muito de insensatez em nossa existncia, Paul...Vivemos por fantasias e fragmentos de realidade. Destrumos os princpios tribais e nos condenamos solido das cidades. Esforamo-nos arduamente para conquistar coisas suprfluas e depois lanamo-nos a batalhas sangrentas para defender o de que no precisamos. Acumulamos dinheiro e depois depreciamos o que possumos. Afastamonos do Deus de nossos pais para freqentar as salas dos magos e dos charlates...Sabe que algumas vezes eu sinto medo? Vivo num jardim murado, bastante agradvel, com gramados e canteiros de flores. Mas, em pesadelos, me pergunto se no esse o vale dos assassinos... Depois de Pequim, fomos a Hong Kong e Tquio e em seguida ao
Hava e a Los Angeles, onde Arlequim caiu de sbito doente. O mdico determinou-lhe que se internasse imediatamente num hospital, onde as radiografias revelaram uma infeco macia em ambos os pulmes. A princpio os mdicos suspeitaram de tuberculose. Mas quando os testes se mostraram negativos, eles iniciaram toda uma srie de exames. Juliette veio de avio de Genebra e eu voltei para a Europa. Arlequim melhorou por alguns dias, mas logo teve uma recada. Examinaram-no para ver se estava com febre de Queensland, psitacose e outras enfermidades mais exticas. E um dia Juliette telefonou-me, com notcias inquietantes. Os mdicos suspeitavam de que Arlequim estivesse com cncer linftico, recomendando uma bipsia. Arlequim recusara. Mas por qu, Julie, por qu? Ele diz que se ressente da idia. Prefere esperar o que chama de veredicto da natureza. um direito dele e no pretendo convenc-lo do contrrio. Ele est deprimido?
Por mais estranho que possa parecer, no. Est at bastante calmo. Diz que chegou a um acordo com a experincia. E voc, como est? Estou terrivelmente preocupada. Mas ele precisa de mim, Paul. E pelo menos com isso estou satisfeita. Continue pensando assim, menina. D um abrao nele por mim. Diga-lhe que o menino est indo muito bem e que ainda estaremos no negcio quando ele voltar para casa... Tal promessa eu podia fazer com bastante convico. O que no podia era prometer livrar-me dos abutres que j estavam circulando sobre ns. Todos os dias alguns colegas prestimosos indagavam-me pelo telefone ou pelo telex a respeito da sade de Arlequim. Falava-se em alteraes de orientao poltica e na possibilidade de fuses no caso de morte ou incapacidade de Arlequim. Eu fui subitamente inundado de convites, para almoos, jantares, coquetis, conferncias particulares, em meia dzia de capitais. Mais de um amigo h muito desaparecido surgiu de repente com uma informao til
sobre o mercado ou um lote de aes a preo reduzido. O fato mais significativo, porm, foi a interveno pessoal de Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated. Seu telex de Nova York foi lacnico e objetivo: "Em Genebra amanh. Solicito conferncia particular s dez horas. Confirme, por favor. Yanko". claro que confirmei. Arlequim et Cie. havia subscrito todas as iniciativas da Creative Systems Incorporated e suas empresas afiliadas. Nossa participao em seu esquema acionrio equivalia a uma licena para imprimir dinheiro. Por recomendao deles, havamos conquistado uma dzia de contas da maior importncia. Basil Yanko poderia pedir-me que danasse um tango numa corda bamba e eu prontamente o atenderia. No que eu gostasse dele. Muito pelo contrrio. At mesmo sua aparncia me desagradava. Era um homem alto e esqueltico, desengonado, de pele cinzenta como a de um rato, a boca pequena e fina como um alapo, olhos pretos e pequenos, nos quais no havia absolutamente o menor indcio
de humor. Era arrogante, autoritrio, desprovido de quaisquer virtudes de convvio social. Mas, por outro lado, era universalmente reconhecido como o mais brilhante crebro em tecnologia de computador. Comeara como criador de sistemas difceis para a Honeywell, mas logo fundara a Creative Systems Incorporated e passara a projetar programas para grandes instituies, como rgos governamentais, corporaes internacionais, bancos, empresas areas e at para a polcia. Suas companhias mantinham atividades em todos os pases da Europa, Amrica do Sul, e Austrlia, Japo e Gr-Bretanha. Sua riqueza j se tornara legendria. Seus sistemas eram os fios que controlavam milhes de vidas-marionetes. Ns mesmos os utilizvamos. Basil Yanko, porm, fazia questo de deixar bem claro a todo mundo que eram os sistemas que nos usavam e no ns a eles. Mal comeramos a reunio quando ele jogou um envelope na minha frente. Leia isto. o relatrio mdico sobre George Arlequim. Fiquei furioso e demonstrei-lho. Esse um documento particular. Como diabo conseguiu obt-lo?
Foi fcil. O hospital em que ele est internado tambm um instituto de pesquisa, que aluga tempo de um de nossos computadores. Mas isso contra toda e qualquer tica! Mesmo assim, leia. Indica duas possibilidades. Ou Arlequim est com cncer linftico ou com infeco de um vrus extremamente raro. Se ele por acaso se recuperar, ter uma convalescena prolongada e ser obrigado a reduzir drasticamente suas atividades durante um longo perodo. E da? Se ele morrer, os herdeiros naturais so a esposa e um filho ainda pequeno. A direo de Arlequim et Cie. ser delegada aos atuais diretores e quaisquer talentos novos que eles possam descobrir. No muito fcil encontrar bons banqueiros. A conseqncia lgica uma reduo no valor das aes e nos lucros em potencial. Essa a sua lgica, Sr. Yanko. Estou disposto a apostar que essa a conseqncia inevitvel. Se Arlequim morrer, quero comprar as aes dele. Cobrirei qualquer proposta que seja feita.
Esse um problema que competir aos executores testamentrios. Dos quais voc o principal. Isso novidade para mim. Pode aceitar a informao como verdadeira. E se Arlequim viver, como eu no tenho a menor dvida de que acontecer? A mesma proposta continua de p. Solicito que a transmita a ele, assim que estiver em condies de examinla. Estou certo de que ele recusar. Como alternativa, estou preparado para comprar as aes de seus scios, muitos dos quais se mostram dispostos a vender. Pelos estatutos de Arlequim et Cie., George Arlequim tem opo para compr-las. Eu sei. Ele pode estar disposto a renunciar opo ou a vend-la. Duvido tambm que isso acontea. Est sendo muito positivo, Sr. Desmond. Deixe-me informar-lhe que se pode hoje computar, com uma preciso de setenta e cinco por cento, o comportamento futuro de pacientes nopsicticos.
E Arlequim um dos pacientes dos seus computadores? Um dos mais importantes. Ele ficar lisonjeado ao sab-lo. No o superestime, Desmond. E tambm no me subestime. Eu geralmente consigo tudo o que desejo. E por que est querendo Arlequim et Cie.? A boca pequena retorceu-se num arremedo de sorriso. Sabe de onde vem o nome Arlequim? O trisav dele era um truo que fazia o papel de Arlecchino na commedia dell'arte. Pode ter certeza de que a pura verdade. Conheo a fundo a histria da famlia. Houve uma transformao e tanto em quatro geraes. Mas, afinal, assim o papel, tradicionalmente. Arlequim transforma o mundo com um golpe do seu porrete de palhao, depois ri furtivamente de toda a aflio que provocou. Por falar nisso... Ele fez uma pausa e tirou da maleta uma pasta volumosa, acrescentando: Vocs nos pagam para efetuarmos uma verificao de segurana em
suas contas. Este o relatrio dos ltimos seis meses. Os computadores mostraram algumas anomalias curiosas. Descobrir que algumas esto a exigir ao imediata. Se precisar de mais algum esclarecimento ou ajuda, o meu pessoal est sua disposio. Ele levantou-se. A mo que me estendeu era frouxa e fria como um peixe morto. Obrigado por dispor do seu tempo. Por gentileza, apresente meus respeitos a Madame Arlequim e diga-lhe que espero uma recuperao rpida do seu marido. Bom dia, Sr. Desmond. Ao acompanh-lo at o elevador, senti um tnue calafrio, como se um vento gelado tivesse passado sobre a minha tumba. Os primeiros banqueiros foram sacerdotes e o dinheiro ainda possui uma linguagem ritual. Assim, quando se diz a um banqueiro que existem anomalias nas contas que ele opera, como apontar um osso em sua direo ou lanar uma praga mortal sobre sua cabea. Na teoria, claro, o computador deve proteger o banqueiro de tal desastre primitivo. O computador um crebro poderoso, que pode
acumular sculos de conhecimento, efetuar milagres de matemtica num piscar de olhos e fornecer respostas infalveis s mais intrincadas equaes. O computador seduz o homem a uma f cega por ele e depois o denuncia sua prpria idiotice. No podemos comprar o crebro. Alugamos o seu tempo. Contratamos analistas de sistemas e lhes explicamos as nossas necessidades. Recorremos a programadores para fornecer ao crebro os fatos e os nmeros. Baseamos decises de fundamental importncia nas respostas que nos foram proporcionadas pelo computador. Mas, porque vivamos atormentados pela possibilidade de os programadores cometerem erros ou serem subornados, utilizamos monitores para controlarem o crebro em busca do menor indcio de erro ou fraude. E assim acreditvamos, como homens religiosos o fariam, que o sistema era seguro e sagrado, prova de tolos e escroques. Havia apenas um nico problema: o crebro eletrnico, os programadores e os monitores eram todos membros da mesma famlia, a
que sonhava em ter-nos a todos sob o seu controle, ao comando do seu chefe, Basil Yanko. Quer gostssemos quer no, estvamos presos dentro de um crculo mgico, traado por um mago do sculo XX. O relatrio que estava em cima da minha mesa, esperando ser aberto, era um documento de magia, cheio de encantamentos e perigosos mistrios. Eu precisava reunir toda a minha coragem para abri-lo, precisava de silncio e tranqilidade para examin-lo. Disse a Suzanne que no me passasse nenhum telefonema, tranquei a porta e comecei a ler o relatrio. Duas horas depois eu enfrentava a brutal realidade: Arlequim et Cie. fora sangrada em quinze milhes de dlares. E quem a sangrara fora o prprio George Arlequim. Surgia-me agora uma questo das mais simples: como o rabino que falta sinagoga e vai jogar golfe no sab, acertando um buraco com uma s tacada, a quem eu poderia contar o fato? O ru ou a vtima estava a doze mil quilmetros de distncia, internado num hospital, esperando que um homem
de jaleco branco lhe dissesse se iria viver ou morrer. De qualquer forma, porm, eu precisava cobrir os quinze milhes antes que os auditores entrassem em ao. Mesmo que eu utilizasse todos os meus recursos, poderia cobrir cinco milhes, faltando ainda dez. A quem eu poderia explicar a necessidade? Quem poderia entrar com tanto dinheiro, em confiana? H poucos heris no mundo das altas finanas. Os banqueiros so sensveis como anmonas-do-mar. Basta encostar um dedo neles e se encolhem todos, tremendo com o ultraje, e de apreenso. Eu precisava tambm comprovar se o relatrio era falso ou no. Mas em quem poderia confiar para isso? O pessoal de computadores tambm fechado. Casam-se e promovem casamentos entre si, encontrando-se nos bailes do condado. Alm do mais, a informao dos computadores como sexo. Pode-se vend-la dez vezes e ainda se continua a possu-la. E quem pode sab-lo ou com isso se importar, desde que no se negocie a mercadoria diante dos olhos de um guarda que est passando? Um de nossos clientes
gastou vinte milhes de dlares em pesquisas de petrleo em plataforma continental, apenas para descobrir que seus rivais j estavam perfurando no local antes mesmo que os ltimos dados fossem gravados em fita. Era uma hora da tarde. uma e meia eu deveria almoar e falar no Clube Comercial de Genebra. Eu sabia que, se deixasse escapar a menor palavra de dvida ou desnimo, ela daria a volta ao mundo antes que a Bolsa de Nova York abrisse. Tranquei o relatrio em minha maleta, lavei-me no banheiro de Arlequim, destranquei a porta e chamei Suzanne. J que eu tinha de explicar-lhe alguma coisa, o melhor era faz-lo rapidamente. Suzanne a secretria de Arlequim. Est com quarenta anos de idade, mais um ou menos um, e ama Arlequim desde o dia em que entrou em seu escritrio, quinze anos atrs. Est ficando um pouco grisalha, mas ainda uma mulher bonita, com um bom corpo e uma mente brilhante, tendo uma atitude muito prtica em relao ao sexo e amizade. Por algum tempo fomos amantes por descuido, hoje somos amigos por opo. Eu poderia confiar-lhe
minha vida, mas no tinha o direito de fazer o mesmo com a de Arlequim. Por isso, contei-lhe apenas metade da verdade. E a medida do seu valor que ela aceitou sem fazer nenhuma pergunta, nem demonstrar o menor ressentimento. Suzy, estamos metidos numa enrascada, das grandes. Basil Yanko? Exatamente. Detesto esse homem. Eu tambm. Mas no tenho outro jeito seno tratar com ele. Tenho de agir depressa e ir para muito longe. Ningum, exceo de voc, deve saber onde estou, nem a quem fui procurar. Certo? Mais do que certo. Telefone para a Executive Charter e mande que preparem um avio para as trs horas da tarde. Chame tambm Karl Kruger, em Hamburgo. Ligue para o clube e diga que chegarei um pouco atrasado para os drinques, mas a tempo de fazer o discurso. Depois v ao meu apartamento, arrume algumas roupas para eu levar e apanhe-me depois do almoo para conduzirme
ao aeroporto. Quero tambm ditar um telegrama, a ser enviado em cdigo a todos os gerentes de filiais. Algum est manipulando nossos computadores. Estamos com uma diferena de caixa de quinze milhes de dlares. Oh, meu Deus! E George j sabe disso? No. Vai dizer-lhe? No, enquanto no soubermos o veredicto mdico. Ele est envolvido? At o pescoo. Voc ter que confiar em mim, Suzy. E pode ter certeza de que eu confio, Paul. Mas deve tambm confiar em mim. O que voc ignora, ajuda a todos ns. Por enquanto, vamos deixar a situao neste p. S quero que no se esquea, Paul, de que Arlequim muito mais resistente do que voc imagina. E vai precisar mesmo s-lo, Suzy... Agora seja uma boa menina e faa as ligaes que eu lhe pedi. Karl Kruger, presidente da Kruger & Co. AG, ainda estava em sua mesa de trabalho, tomando cerveja e comendo Knackwurst, enquanto seus diretores
almoavam com clientes nos melhores restaurantes. Eu podia imagin-lo, em seus sessenta e cinco anos, grisalho como um urso do Bltico, resmungando diante da minha intruso. Also! Em Genebra vocs se divertem com o dinheiro, aqui ns trabalhamos duro para ganh-lo. Que diabo voc est querendo? Jantar, cama e uma conversa esta noite. No h condio. Hilde est na cidade, e voc sabe perfeitamente o que isso significa. Ela a nica mulher com quem eu ainda consigo fazer alguma coisa. Ento conversaremos primeiro e depois ns dois a levaremos para jantar. Por favor, Karl! Voc parece preocupado, Paul. Algo errado? Tudo. Arlequim est num hospital da Califrnia e eu tenho um abacaxi a descascar. Preciso de voc, amigo velho! Ento aparea s seis horas em minha casa. E, se me atrasar, ter que dormir com Hilde. Wiedersehen. Wiedersehen. E obrigado, Karl. Estava na hora de eu partir para o almoo. Falei durante vinte minutos
sobre generalidades otimistas, o que daria meia coluna nos jornais da manh. s trs e quinze levantamos vo e faltavam cinco minutos para as seis horas quando bati na porta da fortaleza de Kruger, no Parque Alster. Se vocs conhecessem Karl Kruger, certamente no gostariam dele. So bem poucos os que simpatizam com ele. Os ingleses afirmam que ele um junker da velha escola, que integrava a camarilha de Hitler e subornou os americanos para que lhe dessem uma ficha limpa, empenhando-se a partir da na recuperao da sua fortuna na Bundesrepublik. Talvez seja verdade, talvez no. Eu simplesmente no sei. O que sei, porm, que Helli Anspacher jura que ele gastou milhes para salvar seu marido dos carrascos, depois da conspirao de Schellenberg, que Chaim Herzl, em Tel-Aviv, diz que lhe deve a vida, e que Jim Brandes escondeu-se em sua casa durante trs semanas, depois que seu avio foi derrubado durante um ataque a Lbeck. Mas tudo isso agora pertence ao passado, remoto demais para que se possa decifrar. Portanto, posso apenas falar sobre Karl Kruger neste ano do Senhor que ora
atravessamos, como o conheo agora. Ele to largo quanto alto, com uma basta cabeleira cinzenta, punhos gigantescos, um caminhar desengonado e o rosto salpicado de pintas vermelhas. Parece to avariado quanto um velho lutador de boxe, mas sua mente lcida e pelo menos metade mais rpida do que a de vocs ou a minha. Recebeu-me como a um irmo h muito desaparecido, passou o brao pelos meus ombros e empurrou-me, cambaleando, para junto do fogo. Ora essa, Paul, voc est plido como uma freira assustada! Vamos ter que pr um pouco de fogo nessa sua barriga. Disse a Hilde que voc estava vindo e ela declarou que guardaria todo o seu amor at encontrlo... Toma um scotch, no ?...Sabe, Paul, conheci Hilde quando ela fazia filmes especiais para Gregory em Munique. Isso foi h vinte anos, e Hilde continua linda. Portanto, vamos cuidar logo dos negcios. Sobre o que est querendo falar-me? Quinze milhes de dlares. O que est vendendo? Nada. Essa quantia o quanto est faltando em nossa caixa.
Sofremos um desfalque, Karl. E quem o deu? Os registros dizem que foi George Arlequim. E o que voc diz? Eu digo que no foi ele. J lhe perguntou? Ainda no, mas o farei assim que souber se ele vai viver ou morrer. Ento no foi George. Quem poderia ter sido? Algum que tivesse acesso ao nosso sistema de computadores. Quem? Digo que foi Basil Yanko. Por qu? Ele tem dinheiro que no acaba mais. Ele quer assumir o controle de nosso banco. Disse-me isso hoje, ao entregar-me o relatrio de segurana. E o que est querendo de mim, Paul? Que cubra dez milhes, imediatamente, deixando-nos a limpo, at que eu possa arrumar as contas e fazer as necessrias transferncias. E de onde viro os outros cinco milhes? Eu mesmo os porei. tudo o que eu tenho. Voc um tolo sentimental, Paul. Est procurando salvar Arlequim
de qualquer maneira. Mas no se esquea de que, mesmo que cubra, Yanko continuar a ter provas do desfalque. Se estivermos cobertos, ser mais difcil para ele usar as provas de que dispe. Se o fizer, isso tornar evidente sua cumplicidade. Talvez eu no tenha que usar os fundos de emergncia, Karl, pois, afinal de contas, somos slidos como Gibraltar. Mas tenho que ganhar tempo at conversar com Arlequim e receber autorizao para iniciar uma investigao independente. E por que procurou a mim e no a seus prprios acionistas? Yanko disse que os tem sob controle. Voc o nico homem em quem posso confiar, que tenho certeza de que nada dir, quer resolva ou no emprestar o dinheiro para cobrir o dficit. E quem vai realizar a sua investigao? Esse outro problema. Preciso de um tcnico internacional ou de uma firma de segurana bem conhecida. Mas o mercado bastante fechado e Yanko certamente saber assim que eu comear a procurar. E comprar imediatamente o homem que voc contratar.
Ou talvez faa pior ainda. Pessoas so mortas por muito menos nesse negcio, Karl. Quem foi que disse que o dinheiro no tinha cheiro? Voc est bastante abalado, meu jovem Paul. Sirva-se de outro usque. Tenho que pensar um pouco. Karl Kruger pensando era como uma britadeira triturando concreto. Andava de um lado para outro da imensa sala, ofegando e arrotando, murmurando para si mesmo. Abriu as cortinas, plantou o vulto corpulento diante da janela e ficou um longo tempo contemplando as luzes da velha cidade hansetica, to profundamente enraizada no dinheiro da burguesia e na lama do Bltico que sobrevivera at mesmo ao cataclismo do bombardeio macio e diviso do Reich no ps-guerra. Seus habitantes so banqueiros e comerciantes, armadores e marinheiros esfuziantes, ciumentos da sua cidade e das suas liberdades histricas. So espertos e fleumticos, amigos dedicados e inimigos obstinados. Se Karl Kruger resolvesse apoiar-me, eu poderia comear a lutar. Se ele recusasse, no entanto, seria como se eu ficasse nu em
meio mais terrvel tempestade. Finalmente ele virou-se para mim, o rosto srio. Conheci Basil Yanko e creio que o compreendo. Ele um gnio, mas s tem cabea e mais nada. Por isso dedica-se totalmente ao jogo do poder. O seu George Arlequim, por outro lado, o que ? Um playboy, um bufo, um amador? Dinheiro negcio de homem. Esta cidade prova disto. Mas o seu Arlequim se comporta como se isso fosse uma brincadeira de criana. Voc tambm sente inveja dele, Karl? Inveja? Oh, meu Deus, claro que no! Como posso sentir inveja de um homem que precisa de uma cobertura de quinze milhes porque no sabe vigiar suas prprias contas? Deixe disso, Karl! Voc sabe muito bem que qualquer sistema pode ser corrompido. Existe em Londres um tcnico de segurana que consegue seus clientes provando justamente isso. Se o contratar, ele demonstra sua habilidade desviando dinheiro durante seis meses a fio, sem que voc o perceba, depositando o que tirou num fundo de investimento. O que voc
est realmente querendo saber se vale a pena ou no salvar Arlequim. Eu digo que vale. No necessrio ser asceta para ser bom banqueiro. Pode-se s-lo levando uma vida como a de Arlequim. No seu tempo, voc fazia at mais do que ele. E capaz de liquid-lo s porque no aprecia seu estilo de vida? No esse o problema. Por que Yanko o escolheu? Por que no a mim ou a meia dzia de outros que ambos poderamos enumerar? Ele escolheu Arlequim porque h uma fraqueza no homem, assim como em seu sistema. E eu quero saber precisamente qual . Sou o homem errado para responder, Karl. Por qu? Porque ele meu amigo, sou padrinho de seu filho e estou apaixonado pela esposa dele. Deus Todo-Poderoso! E em vez de roubar-lhe a esposa, voc prefere ser o mrtir no altar da amizade? E muito mais tolo do que eu imaginava, Paul. Agora que j sabe, Karl, qual sua resposta?
Darei a cobertura, mas com uma condio. Qual? Quer esteja porta da morte quer no, Arlequim ter que saber de tudo. E quero a primeira opo sobre suas aes e seus direitos de preferncia em relao aos outros acionistas. Se ele no concordar, ento no h negcio. Est sendo muito exigente, Karl. Isto Hamburgo, irmozinho. Aqui no se d nada por nada. E quem no andar com a braguilha abotoada, pode pegar uma doena. Apresentarei a proposta a Arlequim. Est certo. Agora, quanto a seu investigador...No pode realmente procurar algum no campo dos computadores, pois Yanko iria antecipar-se a todos os seus atos. Concorda? Concordo. Poderia recorrer polcia. Operamos em muitos pases e em todos eles haveria um escndalo se agssemos dessa forma. Pode usar investigadores particulares. Mesmo assim, ainda precisaramos de um tcnico em computao para verificar todo o sistema.
Acho que precisa muito mais do que isso. No estou entendendo... Yanko tem de tudo sua disposio: dinheiro, informao, influncia. Tem, em suma, o poder. Pode criar uma mentira e impingi-la da noite para o dia metade do mundo. No momento em que comearem a enfrent-lo, devero procurar arruin-lo, antes que ele os destrua. Foi por isso que eu quis saber se George Arlequim um homem de coragem. Se no for, melhor vender o que tem agora, enquanto ainda encontra quem compre. Eu tambm lhe direi isso, Karl. Se ele est disposto a lutar, ento h um homem cm Nova York que poder ajud-lo. Usa diversos nomes, mas o verdadeiro Aaron Bogdanovich. Ele tambm uma espcie de gnio, mas seu maior mrito o de no se deixar comprar. O que ele faz? Ele organiza o terror. Naquele momento samos da velha manso do parque Alster e mergulhamos dois mil anos no passado. Estvamos de volta floresta escura, conhecida como Hamma, as fogueiras acesas, os guerreiros embriagados e
entregues luxria, depois da matana. Compreendi ento qual era o verdadeiro nome do nosso ofcio, uma batalha sangrenta por dinheiro e poder, com os lobos espreita, esperando pelo que os guerreiros deixariam atrs de si. Karl Kruger deixou-se cair pesadamente numa cadeira, ps um pouco de usque no copo e esvaziou-o de um s gole. Depois lanou-me um olhar sardnico e perguntou: Acha que estou brincando, no mesmo? No. Quer fazer alguma pergunta? Quero. Como veio a conhecer esse Aaron Bogdanovich? Eu sou o agente dos banqueiros dele. Quem o emprega? O Estado de Israel. E por que ele aceitaria um servio particular? Porque tem para comigo uma dvida pessoal. Tirei seu irmo e sua irm de Latvia. E o que ele poderia fazer por ns? Acho que quase tudo. O terror um negcio bastante flexvel. O pblico v apenas seu lado mais tosco, como o assassinato de um agente ou o
seqestro de um avio. Mas, na verdade, todos ns vivemos sob a presso da chantagem. Os especuladores desvalorizam a moeda, os rabes cortam o fornecimento de petrleo. Nessa base, o relatrio que Yanko lhe apresentou tambm um ato terrorista. E como posso entrar em contato com esse Aaron Bogdanovich? Ele tem uma loja de flores na Third Avenue, entre as ruas 49,h e 50lh. Basta voc entrar e apresentar-lhe meu bilhete. E melhor escrev-lo agora mesmo. Hilde deve estar chegando e teremos uma noite movimentada. Eu estava mais do que disposto. Era um homem livre e h muito que j passara da idade de precisar de consentimento. Se Karl e Hilde queriam divertir-se a noite inteira na cidade, iria acompanh-los. Jantamos em casa, porque Karl possui o melhor cozinheiro de todo Scheswig-Holstein. Hilde, que gorducha, agradvel e de voz estridente, como uma franguinha, tocou Wirtin para ns. Depois, Karl, entusiasmado e afoito, decidiu invadir Saint Pauli. No pude dissuadi-lo e Hilde nem tentou. E assim, entre meia-noite e
quatro horas da madrugada, percorremos a Reeperbahn: bares particulares, shows de sexo, boates de lsbicas e clubes de invertidos, indo tambm a antros de marinheiros, onde Karl tocou acordeo e sapateou no cho coberto de serragem. Eu esperava que a qualquer momento ele desabasse com um ataque de apoplexia. Em vez disso, contudo, ele encerrou a noite com um floreio de ator. Enquanto Hilde lhe desabotoava a camisa e eu lhe tirava as meias, ele abriu um olho e declamou: Sabe, meu jovem Paul, se no se pode combat-los, ento melhor fazer a outra coisa. Mas, se no pode fazer nenhuma das duas, s resta deitar e morrer. Era um sentimento encorajador para encerrar uma noitada alegre. Mas eu duvidava que pudesse torn-lo apetecvel a George Arlequim, o menos combativo e o mais civilizado dos homens. Trinta e seis horas depois estava em Los Angeles, passeando pelos jardins do Bel-Air Hotel em companhia de Juliette, partilhando sua alegria diante da notcia de que George fora salvo da sentena de morte, que
receberia alta do hospital dentro de uma semana e dentro de um ms estaria pronto para recomear a trabalhar, moderadamente. Juliette relatava-me os planos que tinham feito. ... Decidimos ir para Acapulco. Lola Frank emprestou-nos a villa que possui l. Teremos toda uma equipe para cuidar de ns. A casa tem uma lancha e...Oh, Paul, ser como uma segunda lua-de-mel! Mal posso esperar o momento de seguirmos para Acapulco. As ltimas semanas foram terrveis. Cada vez que o telefone tocava, eu pulava sobressaltada. George parecia-me completamente estranho, de to calmo e distante. Era como se ele estivesse procurando conservar todas as suas foras para o dia do veredicto final. Ele jamais se queixou. Mostrava-se extremamente cuidadoso para comigo, bastante atencioso, mas vivia em seu prprio mundo. Mesmo quando lhe deram a boa notcia, ele mostrou-se to reservado que foi quase sobrenatural. Sorriu e agradeceu ao mdico por seus cuidados. Quando ficamos a ss, ele abraou-me e chorou um pouco. Depois disse uma coisa estranha: "Agora eu
sei o nome do anjo". Quando lhe perguntei o que aquilo significava, disse que era algo que preferia no explicar... Quando posso visit-lo? Esta tarde. Por que no vai sozinho fazerlhe uma surpresa? Se acha que... No h o menor problema. Isso me dar uma oportunidade de ir a um cabeleireiro e fazer algumas compras. Mas no o deixe falar de negcios, est certo? Prometo que no o deixarei alongar-se muito no assunto. Ele ficar na maior alegria em v-lo! Oh, Paul, no est fazendo um dia maravilhoso? Eu achava que o dia era infernal e repugnante. Compreendia agora por que, nos velhos tempos, mandavam cortar a garganta dos portadores de ms notcias. Ao seguir para o centro da cidade a fim de visitar Arlequim, tinha vontade de cortar minha prpria garganta. Pensei em reter as notcias por mais algum tempo, mas sabia que no poderia faz-lo. Sem o consentimento de Arlequim, no tinha poderes para entrar em ao.
Meu corao contraiu-se quando o vi. Estava sentado numa poltrona, usando um pijama de seda e roupo, parecendo transparente de to plido. Quando lhe apertei a mo, verifiquei que estava seca e encarquilhada. Apenas seu sorriso permanecia o mesmo, luminoso, grave, com a eterna expresso de malcia. Ele no procurou atrair a ateno para si mesmo, como os doentes costumam fazer. Afastou minhas perguntas sobre a doena com um sacudir de ombros. J passou, Paul. Tive muita sorte e estou contente por Julie. Agora quero sair daqui o mais depressa possvel. Disseram-me que a convalescena ser demorada. Pode defender o forte por mais algum tempo? Claro. Mas vou precisar importun-lo com o exame de alguns negcios. Acha que agenta? No h problema. Pode falar. So ms notcias, George. Ele sorriu e sacudiu os ombros. Pode contar-me o pior e mesmo assim continuarei a sentir-me um homem de sorte. Contei-lhe tudo. Ele ouviu-me em silncio, de olhos fechados, a cabea
cada de encontro ao peito, as mos placidamente no colo. Quando acabei, ele perguntou calmamente: Como foi que aconteceu, Paul? Est tudo no relatrio. Precisaremos de um tcnico para verificar os detalhes, porque h uma ampla srie de transaes implcitas. O mtodo, porm, essencialmente simples. Subornase um programador para fornecer informaes fraudulentas ao computador. A menos que elas sejam canceladas, o computador a partir da desenvolve todos os seus clculos tendo-as por base, at o juzo final...Sabe como operamos no mercado. Compramos e vendemos em bloco para grupos de clientes, separando depois as aes de cada um, os lucros e as despesas. Nosso computador foi programado para apresentar despesas falsas nas transaes, o lucro da proveniente sendo depositado numa conta numerada do Union Bank, de Zurique. E essa conta est em sem nome. Mas eu nunca tive, em toda a minha vida, nenhuma conta no Union Bank! O relatrio declara que sua a assinatura na abertura da conta e nos
cheques. Est dizendo que a conta tem sido operada? Retiraram todo o dinheiro. Mas ento falsificaram o meu nome! Teremos de prov-lo e descobrir tambm quem o fez. Teremos tambm que descobrir quem forneceu informaes falsas ao computador, em todas as nossas filiais, e quem pagou para que isso fosse feito. Por que ns mesmos no descobrimos a diferena? Porque consideramos o computador como coisa garantida. Enquanto as transaes dirias se ajustam, nem mesmo questionamos os seus resultados. E temos uma to ampla variedade de operaes que somente os contadores e os auditores preocupam-se com os nmeros finais. Mas isso uma loucura, Paul! Fazer com que parea que eu estou roubando minha prpria empresa...No estou entendendo nada. Algum quer faz-lo de alvo, e creio que esse algum se chama Basil Yanko. Se isso verdade, podemos nos livrar dele e contratar os servios de
outros. O diabo que podemos! J se esqueceu quanto tempo demora para instalar e treinar operadores num determinado sistema? Alm disso, o que est acontecendo apenas um aviso, um primeiro bilhete de chantagista. Mesmo assim, um ato criminoso. Se pudermos prov-lo. E temos tambm que cobrir os fundos que esto faltando. Preciso de instrues suas quanto a isso. No momento, Karl Kruger e eu estamos dando as garantias necessrias, mas Karl quer muita coisa em troca. No tem importncia, Paul. Neste caso, precisarei de uma procurao plena, para poder movimentar todos os seus bens, pelo menos enquanto no for capaz de viajar e agir por si mesmo. Sei que isso um risco muito grande e no me incomodarei se voc no quiser assumi-lo. Tenho que confiar em algum, Paul. E se no puder confiar em voc, quem mais me restar? Ento vamos enfrentar Basil Yanko. Eu no disse isso.
Engasguei, incrdulo. Arlequim sorriu, um sorriso lvido e desalentado. No fique to chocado, Paul! Acabei de caminhar at a beira da morte e voltei. Sei agora de quo pouca bagagem um homem realmente necessita. Devo confessar-lhe que no tenho muita certeza se desejo manter Arlequim et Cie. No gostaria de que ela ficasse com Basil Yanko, mas no me recusaria a vend-la para Karl Kruger. uma tima soluo, pois assim Julie e o menino no teriam que se preocupar com mais nada e eu estaria de fora da corrida de ratos. Se vender agora, ser uma atitude tomada sob coao. Esse apenas um dos lados da moeda. Ento eu lhe direi qual o outro. Se ceder agora, os miserveis ganham. E se ganharem agora, tentaro novamente. E no pode esquecer-se de que nem todas as vtimas conseguiro escapar com a mesma sorte que George Arlequim. Subitamente ele ficou nervoso e comeou a suar. Eu me sentia um criminoso por pression-lo tanto. Ajudei-o a ir para a cama, molhei-lhe o
rosto e esperei at que lhe voltasse um pouco de cor. As nicas palavras que encontrei para dizer eram banais e lamentveis. Sei que exagerei, George. Desculpe. O que quer que decida, continuaremos amigos. Ele ps a mo fraca sobre o meu pulso. Vou contar-lhe um segredo, Paul. muito difcil enfrentar o anjo da morte, porque ele no quer que a gente lute. Tudo o que nos pede que descansemos, durmamos um pouco. E muito tentador fechar os olhos e esquecer tudo o mais. No fique to revoltado comigo, Paul! D-me um pouco mais de tempo... que no temos muito tempo, George. , Eu sei. Quer que eu conte tudo a Julie? Ainda no. Ultimamente temos tido alguns problemas pessoais. Quer que eu fique mais um pouco? No, obrigado. Estou muito cansado. Venha verme amanh, com Julie. Ainda era cedo. Eu no queria voltar para o hotel, com suas starlets artificiais e os agentes de cabelos grisalhos. Queria ser annimo, livre para
conversar sobre coisas superficiais, como o preo de um bife, a dor de barriga de um cavalo de corridas e o fato de as garotas de hoje no serem mais como as de antigamente. Gosto desse tipo de vida modesta. mais simples de viver e se tem mais amigos para partilh-la. Parei num bar na Strip, escuro e quase deserto. Pedi um bourbon, paguei uma cerveja para a casa e durante meia hora empenhei-me num lamento lacnico com o barman. Acabramos de sair do Oriente Mdio e estvamos comeando a falar sobre os escndalos da Administrao quando o telefone tocou. O barman atendeu e depois virou-se para mim. Seu nome Paul Desmond? Isso mesmo. Nova York est ao telefone. Nova York? Foi o que o homem disse. Vai atender? Ele empurrou o telefone na minha direo. Peguei o fone e disse estupidamente: Al... Sr. Desmond? Aqui Basil Yanko. Liguei para dar-lhe as boasvindas aos Estados Unidos.
Como soube onde encontrar-me? Temos uma organizao muito eficiente, Sr. Desmond. J tem alguma novidade para mim? Um conselho, Sr. Yanko: no invada minha vida particular. Ele riu, sem a menor alegria. H algum servio que lhe possamos oferecer durante sua estada? Nenhum. Ento divirta-se bastante durante sua permanncia aqui, Sr. Desmond. Continuaremos em contato. Au revoir. Desliguei e voltei a concentrar-me em meu bourbon. O barman fitou-me, os olhos espertos a sondarem minha reao. Ms notcias? Estou apostando num perdedor. Isso mau, mas a verdade que no se pode ganhar todas. Quer outra dose? Obrigado. Tomei a segunda dose lentamente, enquanto ele me contava, demoradamente e com todos os detalhes, como acertara o jackpot em Las Vegas na noite em que se divorciara e passara a melhor noite em vinte anos com uma corista desempregada.
Sua sorte reanimou-me tanto que decidi procurar meu amigo e cliente, Francis Xavier Mendoza, que vive em Brentwood. Ele um resqucio da Velha Califrnia, dos poos de alcatro, dos sinos das misses, das garrafas de Capistrano. um verdadeiro milagre em pequena escala: um cavalheiro de Castela no manchado pela vulgaridade da costa do Pacfico. Possui trs filhos e uma linda filha. Assiste missa nos domingos e dias santos, fabrica um dos melhores vinhos do Napa Valley e, nas horas vagas, empenha-se em traduzir para o ingls os poemas de Alonso Machado. Na poltica californiana, ele uma espcie de camaleo, sempre presente, sempre poderoso, mas nunca fcil de identificar. Quando lhe disse que precisava v-lo, deume as boas-vindas no velho estilo: Minha casa sua. Venha agora mesmo, se no puder vir antes. Quarenta minutos depois, descansando em seu jardim, apresentei-lhe a pergunta: O que sabe dizer-me sobre Basil Yanko e a Creative Systems Incorporated?
Ele fez uma expresso de repugnncia. um bruto, mas um bruto poderoso. Metade das empresas da costa usa os seus servios e lambe suas botas na hora de pagar a conta. Mas eu no tomaria banho no mesmo oceano que ele. O que h de errado com ele? Legalmente, nada. Ele fornece os melhores servios de computadores deste pas sistemas, programas, segurana, tudo enfim. o chamado garoto prodgio. Mas, uma vez entrando em algum lugar, no se consegue mais tir-lo de l. Ele controla todos os sistemas e fica sabendo de cada movimento de seus clientes. Ao menor indcio de fraqueza, ele se instala prontamente no gabinete do presidente. J fez assim com trs amigos meus e um inimigo, que bem o mereceu. Mas por que est perguntando, Paul? Ns tambm o usamos e achamos que adulterou nossos registros. Ay de mi! Mas isso terrvel! Ele j fez o mesmo com algum por aqui? H rumores de que sim, mas nenhuma prova. E, se procurarmos, no encontraremos as provas necessrias?
Na Califrnia de hoje? Perca as esperanas. O presidente est desacreditado, o Congresso est com medo, o povo desmoralizado. Duvido muito que eu consiga relacionar vinte pessoas nesta cidade que jamais tenham sido compradas por algum. Eu no poderia nem mesmo enumerar dez pessoas que pudessem enfrentar uma investigao pblica de seus negcios. uma triste concluso. Triste e sinistra. Posso descobrir-lhe um assassino muito mais depressa do que um homem honesto ou um homem corajoso. Ele fez uma pausa, abrindo os braos num gesto de desespero. Sei que estou exagerando um pouco, como sempre o fao. Mas que sou como Digenes, enfiado em sua barrica. No se pode negar, contudo, que assim so os tempos em que vivemos. Quando se vive do crdito, como ns, americanos, o fazemos, sempre se pode ser pressionado. medida que se sobe a escada das corporaes, fica-se com medo do homem que est acima e do que est abaixo. esse o poder que Yanko utiliza. Ele conhece os
segredos de todo mundo. O que ele no sabe, trata de inventar, alimentando com mentiras os seus computadores, e depois apresenta-as como um evangelho, no momento em que julga mais conveniente. E como ento se pode venc-lo? S h uma maneira: viver em seu mundo. preciso espreit-lo nas sombras, talvez durante anos, at o dia em que se possa for-lo a sair em campo aberto, derrotando-o ento. Mas para fazer tal coisa indispensvel ter nervos fortes. E quando sair para jantar num restaurante, no se pode esquecer de ficar de frente para a porta, as costas contra uma parede slida de tijolos. Estou lhe dando um bom conselho, Paul, jamais se esquea disso. Vou verificar por a. Se ouvir algo de til, eu lhe informarei imediatamente. Voc me surpreende, Francis, como um legtimo cavalheiro cristo. O mrito no meu. Tive uma me que Deus a tenha! que me puxou as orelhas e ensinou-me boas maneiras. Agora, deixe-me oferecerlhe um sherry. o melhor que tenho e sinto o maior orgulho dele.
Ele serviu-me a bebida e fez o brinde: sade, dinheiro, amor e tempo para gozar as trs coisas. Ao beber, experimentei a sensao sobrenatural de que Basil Yanko espreitava por cima do meu ombro, sorrindo da ironia. Anos atrs, quando eu estava em Tquio, negociando um minrio de ferro que ainda estava debaixo da terra e gastando a minha comisso antes mesmo de receb-la, fiz amizade com Kiyoshi Kawai, o decano dos gravadores japoneses. Ele j era um homem idoso ento, mas cheio de vitalidade e com uma extraordinria sagacidade. Sempre que eu me sentia infeliz, o que acontecia com freqncia, ia a seu estdio e l ficava sentado durante muitas horas, vendo-o cortar os blocos e misturar as cores, censurando os aprendizes se as definies no fossem absolutamente perfeitas. Quando Kiyoshi estava deprimido, um acontecimento raro mas cataclsmico, arrastava-me para um clube de travestis em Shinjuku, onde os rapazes se vestiam como gueixas e as poucas moas presentes pareciam os
sete samurais. Todos adejavam em torno do mestre, enquanto este os desenhava. Serviam-lhe interminveis copinhos de saque, enquanto Kiyoshi improvisava haiku e reproduzia-os em maravilhosas pinceladas. Eu achava a experincia enervante, porque, depois de uma longa sesso de saque e de cerveja Kirin, era difcil distinguir os rapazes das moas. Eu tinha sempre que levar o velho para casa, antes que ele comeasse a assinar promissrias e as distribusse, como souvenirs. E numa dessas excurses que ele me deu a receita para uma boa vida. Quando ficou sbrio, fiz com que a transcrevesse em caracteres kanji. Agora, aonde quer que eu v, sempre levo o pergaminho comigo. Diz o seguinte: "Nunca misture as cores quando o vento do oeste est soprando e jamais faa amor com uma mulher que tenha cara de raposa". difcil explicar o significado de tal inscrio, mas aqui a reproduzo como prlogo a um dia pssimo. Comeou com uma srie de pequenos desastres. Acordei cedo e fui dar um mergulho na piscina, escorreguei nos ladrilhos molhados e torci o
tornozelo. Logo depois baixou um nevoeiro intenso e em cinco minutos eu estava com os olhos turvos e espirrando. s oito horas, Suzanne telefonoume de Genebra. Transmiti-lhe a boa notcia da recuperao de Arlequim e ela reagiu com um despacho da frente domstica. Nossos gerentes de filiais tinham ficado extremamente nervosos com meu cabograma. Estavam subitamente preocupados com os interesses de seus clientes e com os prprios pescoos. Ser que eu poderia prestar alguns esclarecimentos sobre as instrues? Como eu nada poderia fazer sem a autorizao expressa de Arlequim em meu bolso, ditei uma mensagem tranqilizante, dizendo-lhes que o presidente estava passando bem e em recuperao, e em breve iria apertarlhes as mos. Novas instrues seriam transmitidas dentro de quarenta e oito horas. Pelo menos era o que eu esperava. Para coroar tudo, Juliette telefonou e pediu-me que fosse tomar o caf da manh em sua companhia. Achava-se bastante nervosa porque o pequeno Paul estava com catapora e a idiota da bab celebrara o acontecimento num telegrama de cem palavras, escrito em
alemo-suo e mutilado em trnsito. Tinha ainda outras preocupaes e escolheu-me para padre confessor. Somos amigos h bastante tempo, Paul. Entre ns, no existem segredos. Existem, minha cara, pois no podemos viver sem eles. Comece novamente. Est sendo detestvel agora, Paul. Ento estou de mau humor e com uma pssima disposio. Hoje no meu dia. Qual o prximo item? Estou preocupada com George. George e voc ou apenas George? Apenas George. Ontem voc me falava sobre uma segunda lua-de-mel. O que aconteceu para faz-la mudar assim? Ele disse-me ontem noite que estava pensando em vender a Arlequim et Cie. Ele lhe disse por que ou a quem? No. Achei que talvez voc soubesse. Olhe, Julie, vamos ser francos. Gosto muito de vocs dois, mas estou no negcio com seu marido e no vou dizer coisa alguma fora das salas de reunio. Isso quer dizer que ele j lhe falou.
Eu no disse isso. V para o inferno, Paul Desmond! J estou a caminho, minha querida... No, por favor, espere!...Desculpe. Sei que estou agindo como uma louca. Mas estou realmente preocupada. George mudou bastante e voc no faz idia do quanto.. . Ora, Julie, no se esquea de que ele passou muito tempo doente. Est distante e deprimido, mas isso normal. No se podia esperar que ele agora se pusesse a danar fandangos, no mesmo? Por que ele est querendo vender Arlequim et Cie.? Talvez ele queira pegar o dinheiro e investir, a fim de poder sair passeando pelo mundo tranqilamente. Por que no? O que ser dele sem o negcio? Um homem feliz? Ou mais um rico ocioso. Em todos estes anos de nossa amizade, jamais o vi na ociosidade. Seria ento um diletante, sem estar comprometido com coisa alguma. Ele est comprometido com voc.
Ser mesmo? s vezes, tenho minhas dvidas. Olhe, Julie, quanto a isso nada lhe posso dizer. Sou apenas um solteiro, que sente coceira nos ps. Eu o detesto quando voc se esquiva dessa maneira, Paul. O que quer que eu faa? Voc uma mulher adulta e casada. Conhece a letra e a msica, pode cantar para George. Eu cantaria fora do tom. No creio. Apenas voc no est querendo tomar uma deciso. Deciso sobre o qu? Se deve tentar reduzir George Arlequim s dimenses de um menino ou se voc mesma se torna uma mulher amadurecida. Sabe por que isso acontece? Nem quero saber. O problema seu e no meu...S-mais uma coisa: Arlequim quer ver-nos a ambos no hospital, esta tarde. Virei busc-la s trs horas. Deixei-a olhando para o seu caf j frio e fui passear no jardim. Estava furioso com ela, comigo mesmo, com Arlequim e com o mundo inteiro,
irremediavelmente indigesto. Eu precisava de uma crise conjugai tanto quanto precisava de uma terceira perna. Se no consegussemos traar uma orientao poltica nas prximas quarenta e oito horas, teramos uma revoluo palaciana em nossas mos. E o pior de tudo era que Arlequim, o homem equilibrado em todas as situaes, parecia estar desmoronando. Trs pessoas haviam sentido uma fraqueza nele e estavam empenhadas em explor-la: Basil Yanko, Karl Kruger e sua esposa. Eu era o nico que no a estava enxergando. Seria eu o prodgio de um olho s, rei numa terra de cegos, ou seria o estpido Paul, aparvalhado e aturdido com o esplendor de um falso prncipe? Tinha que descobri-lo, no mnimo para manter o respeito prprio. E porque estava furioso e porque me torno impetuoso e obstinado quando estou furioso, decidi iniciar minha prpria guerra particular. Liguei para o escritrio de Nova York da Creative Systems Incorporated e pedi para falar com Basil Yanko. Tive que identificar-me para quatro pessoas diferentes antes
que ele entrasse na linha, macio como manteiga. um prazer imenso, Sr. Desmond. Em que posso servi-lo? Irei a Nova York depois de amanh. Gostaria de conversar com o homem que preparou nosso relatrio. No um homem, Sr. Desmond, e sim uma mulher. O nome dela Valerie Hallstrom. Est certo, Eu gostaria de conhec-la. Depois, gostaria de conversar com o senhor. timo. No quer sugerir algum horrio? Ainda no fiz nenhuma reserva. No seria melhor eu telefonar-lhe assim que chegar a Nova York? Combinado. J transmitiu minha proposta ao Sr. Arlequim? J. Ele est pensando no assunto. Devo receber uma resposta no final desta tarde. timo. Como ele est? Bastante abatido, mas agora j est comeando a se recuperar. Fico satisfeito. Diga-lhe que desejo uma rpida recuperao. Certo. At nosso encontro... Eu no tinha a menor idia do que ia dizerlhe no dia marcado nem em
qualquer outro dia, mas pelo menos lhe pusera uma pulga atrs da orelha e esperava que ele ficasse a se cocar por algum tempo. Voltei para meu quarto e pedi que me providenciassem uma estenografa. Sentei-me junto com ela beira da piscina e ditei-lhe as procuraes que George Arlequim deveria assinar. Era uma tarefa longa e tediosa, mas teve o mrito de manter-me ocupado at meio-dia, quando fui para o bar a fim de tomar um coquetel antes do almoo. O barman cumprimentou-me pelo nome e apontou para um homem que estava sentado sozinho junto janela. Aquele cavalheiro chegou aqui um minuto atrs e perguntou pelo senhor. Ele era jovem, no tinha mais do que trinta anos, trajava um terno de corte italiano. Levantou-se quando me aproximei e apresentou-se respeitosamente: Sr. Desmond? Prazer em conhec-lo. Sou Alex Duggan, da Creative Systems Incorporated. Nosso escritrio de Nova York pediu-me que lhe entregasse uma mensagem urgente. Liguei para sua sute e, como no estava
l, calculei que poderia encontr-lo aqui no bar. No quer sentar-se? Sentei-me. O barman trouxe minha bebida para a mesa. S depois que perguntei: E qual a mensagem que tem para mim? um telex do gabinete de nosso presidente. Se tiver alguma resposta, ficarei feliz em transmiti-la para o senhor. A mensagem era um documento, formal e objetivo: "Tendo por base os dados atuais e uma projeo de trs anos, avaliamos Arlequim et Cie. razo de oitenta e cinco dlares por ao. Este comunicado constitui uma proposta formal de compra vista da totalidade das aes, razo de cem dlares cada uma. Solicitamos que transmita a proposta imediatamente ao Sr. George Arlequim e informe-o tambm de que estamos dispostos a negociar, em termos generosos, a venda ou renncia s opes existentes. Os outros acionistas j foram devidamente informados. Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated". Meti a mensagem no bolso do palet e rabisquei a resposta no
envelope: "Comunicao recebida. Paul Desmond". O jovem dobrou o envelope reverentemente e guardou-o na carteira. Mandarei sua resposta assim que voltar para o escritrio. Aceita beber alguma coisa, Sr. Duggan? No, obrigado. Nunca bebo quando estou trabalhando. essa a poltica da companhia. H quanto tempo trabalha para a Creative Systems, Sr. Duggan? H trs anos. E o que faz? Relaes com os clientes. E isso significa precisamente o qu? Tenho um setor exclusivo. Visito todos os clientes uma vez por ms, verifico as queixas, sugiro melhorias, fao projees para a ampliao dos nossos servios, que so projetados, claro, para crescerem com os negcios do cliente. E bem pago? Muito bem. Temos um sistema de gratificaes, opes para compras de aes e tudo o mais. de fato um excelente emprego, com boas perspectivas. E est sempre com o Sr. Basil Yanko?
Quase nunca. Mas a gente sabe que ele est presente. E como! Ele sabe o que cada um est fazendo, at o pessoal da limpeza. E quem no est preparado, no fica muito tempo na Creative Systems. Quer dizer ento que a movimentao da equipe muito grande? Nem tanto. Acho que s o bastante para nos manter alerta. Eles ainda dizem que os funcionrios que rejeitamos so melhores do que a maioria. Todos parecem encontrar emprego com bastante facilidade. Isso interessante. E onde eles vo procurar emprego? A maioria do pessoal mais experiente em computao registra-se em trs agncias de empregos de Nova York e duas aqui na costa do Pacfico. E a sua companhia tambm recorre a uma agncia de empregos? No, senhor. Treinamos e recrutamos pessoal apenas para ns mesmos e para nossos clientes. O Sr. Yanko inflexvel com relao a isso. Muito obrigado, Sr. Duggan. Agora no vou prend-lo por mais tempo.
Foi um prazer, senhor. Pode estar certo de que sua mensagem estar em Nova York dentro de meia hora. Ele era um jovem simptico, mas ingnuo demais para ser real. Aperteilhe a mo e acompanhei-o at a porta, voltando depois, pensativo e infeliz, para acabar minha bebida. Agora a pulga estava atrs da minha orelha. Yanko sabia de tudo a respeito do comportamento dependente de pessoas nopsicticas. Sabia mesmo! Uma proposta vaga deixa um homem inquieto, uma proposta concreta deixa-o ganancioso...e uma oferta dezoito por cento acima do mercado f-lo sair correndo para assinar os papis, antes mesmo que Papai Noel possa sair da chamin! Arlequim podia se recusar a vender. Mas a verdade absoluta que ele no poderia comprar todas as suas opes e ainda por cima cobrir um desfalque de quinze milhes de dlares. Karl Kruger poderia comprar a noventa dlares por ao, mas no daria um cent acima disso e eu no podia culp-lo por tal atitude. Arlequim poderia tentar travar uma batalha por procurao. Nesse caso, Yanko jogaria seu trunfo: a prova documentada de
fraude e apropriao indbita. Quando tal acontecesse, nossos amigos, clientes e aliados nos abandonariam em massa. Era realmente um quadro animador para se pintar num quarto de doente. Arlequim resumiu a situao com um sorriso triste: Estamos presos entre garras de caranguejo. H apenas um consolo nisso tudo: o preo justo. Juliette ficou furiosa, desafiando-o: Arlequim et Cie. foi-lhe entregue numa bandeja de ouro. E vai vend-la sem a menor preocupao s porque o preo justo? Estou envergonhada de voc, George. Ele corou, irritado, virando-se em seguida para mim. Qual o seu conselho, Paul? A razo diz para vender, o instinto diz para lutar. E podemos vencer? Podemos. Mas, mesmo que isso venha a acontecer, sairamos bastante abalados, no mesmo? Pelo amor de Deus, George! Juliette voltava a enfrent-lo, fria e com uma expresso de desprezo.
Pare de fazer rodeios e admita logo de uma vez! Voc nunca teve que lutar por coisa alguma em toda a sua vida. Recebeu tudo de presente, at mesmo o talento que possui. E agora estolhe propondo outro presente: quinze dlares a mais por ao para entregar a companhia que seu av fundou e que deveria, por direito, passar para seu filho. Arlequim ficou a fit-la por algum tempo, rgido como uma esttua de pedra. Eu sentia-me triste por ele e envergonhado por todos ns. Por fim, ele disse asperamente: Sente-se, Julie. Voc tambm, Paul. Sentamo-nos. Arlequim ficou de p, encostado na janela, o rosto mergulhado nas sombras, dominando a ns dois. Ento ele comeou a falar, lentamente, relutante, como se cada frase fosse arrancada com dificuldade de algum recesso secreto em seu interior. Parece que lhe falhei, Julie. No tinha conscincia disso. Sinto muito. Sei que voc tambm tem dvidas, Paul. Mas existem muitas razes e tentarei explic-las. H algum tempo que estou desiludido com esse nosso
negcio, onde cultivamos dinheiro como se fosse repolho e o negociamos como mascates no mercado internacional. Olho para os recursos que fluem pelas nossas mos e cada vez penso mais de onde eles provm: as transferncias da Flrida so dlares dos gngsteres, fato que sabemos perfeitamente, embora nunca o admitamos; o dinheiro do petrleo que vem dos emirados rabes, onde ainda se vendem escravos e os homens tm suas mos cortadas por uma simples cesta de tmaras; os fundos que fogem dos pases pobres; o saque dos ditadores e dos tiranos locais. Sei muito bem que quando esse dinheiro nos chega j est limpo e desinfetado, cheirando a gua de rosas. E vivemos como reis dos lucros que ganhamos. No sinto o menor orgulho disso e a cada dia que passa fico mais envergonhado. Enquanto eu estava deitado aqui, esperando que os mdicos viessem apresentar-me a sentena de morte, fiquei imaginando como poderia defender o meu comportamento na vida diante de um julgamento que talvez tivesse de enfrentar do outro lado...E quando tudo isso aconteceu, pareceu-me a melhor
sada transformar as minhas fichas em dinheiro, comprar tempo e lazer para tentar decifrar o enigma deste mundo e meu lugar dentro dele. Por outro lado, sei que sou um bom banqueiro e que homens honestos confiam no nome e na tradio de Arlequim et Cie. Mas aqui surge o dilema e voc o exps com bastante clareza, Paul: se resolver enfrentar Yanko, terei que lutar no mundo dele, em seus termos, com suas prprias armas. Tenho medo disso, Julie, mas no pelas razes que voc imagina. Sabe, Julie, gosto da luta, gosto do risco e da brutalidade, da crueldade sem lei e implacvel desse outro mundo. Creio que posso transformar-me no maior pirata entre todos, capaz de sorrir enquanto limpo o sangue de meu alfanje. Mas a questo fundamental se poderei viver comigo mesmo depois disso. Ser que continuarei a ser para voc o homem que admira, Julie? Ser que voc e Paul podero continuar a passear de iate em minha companhia, tomando vinho no tombadilho, conversando e rindo despreocupadamente? Ele sorriu e sacudiu os ombros, num gesto de zombaria.
Bem, essa foi a fala da defesa. Nunca mais tornarei a fazer nenhuma. Julie fitou-o, o rosto inexpressivo. Ainda est disposto a vender? No, meu amor. Voc uma mulher bastante persuasiva. Vou lutar. a nica maneira de eu saber se o jogo vale o que custa. Aquela declarao no pareceu a clarinada sonora de chamada s armas. Como tema musical para uma segunda luade-mel tambm no era dos mais propcios. E mesmo enquanto planejvamos a campanha, parecia mais uma conspirao do que a batalha dos justos contra os pecadores. Ao voltarmos para o hotel, o vento de Santa Ana soprava forte. Juliette ia sentada no carro ao meu lado, em silncio e distante. Eu ansiava por tomla em meus braos e faz-la sorrir novamente. Mas ela estava distante, na terra dos devaneios, onde os espritos das mulheres choram os amores que perderam ou os amantes que desdenharam. Gastei quatro horas e uma pequena fortuna em telefonemas. Quando acabei, fui pegar o avio da meianoite para Nova York. 2
Sinto-me inteiramente em casa em Nova York, um capitalista descarado a gozar os despojos da livre iniciativa. Tenho um apartamento, um criado japons, um bom clube e uma miscelnea de amigos, de ambos os sexos. Adoro a cidade por todas as suas loucuras e delrios. Regozijo-me com sua ostentao espalhafatosa, seu lacnico cinismo e suas bruscas e pssimas maneiras. E um lugar arriscado para se viver, um lugar muito fcil para se morrer. Mas sinto-me mais feliz em Nova York do que em qualquer outra cidade do mundo. Possuo tambm em Nova York um abenoado isolamento, porque o telefone no est no catlogo, na portaria do prdio consta o nome de outro homem e uso tambm o apartamento do banco, no Salvador, onde posso receber os importunos, evitando assim que eles ingressem em meu refgio. O arranjo possui suas vantagens diplomticas. O Salvador bastante pblico, onde todo mundo visto e se fica especulando sobre os negcios ali realizados. Lano as insinuaes que desejo num lugar e posso tranqilamente descansar em outro.
s oito horas da manh, amarrotado e sonolento, registrei-me no Salvador. s nove j estava em meu prprio apartamento. s dez, graas aos cuidados de Takeshi, estava barbeado, banhado, alimentado, novamente com uma forma humana. s dez e meia estava descendo a Third Avenue, a fim de entrar em contato com Aaron Bogdanovich, que negociava com o terror e com flores exticas e caras. O comrcio de flores era bastante prspero. Duas moas, armadas de tesouras grandes e arames, estavam fazendo arranjos de mesa. Um jovem extico estava arrumando um buqu numa caixa. Uma dama opulenta, com culos de ouro, uma tnica amarelo-limo e um sorriso voraz, indagou-me o que eu desejava e j estava me mostrando um catlogo de flores da primavera antes mesmo que eu tivesse tempo de respirar. Quando pedi para ver o proprietrio, o sorriso dela instantaneamente desapareceu, no mais queria saber o que me agradava e sim meu nome e ofcio. A informao no lhe proporcionou nenhuma satisfao visvel.
Quando lhe entreguei a carta de Karl Kruger, ela segurou-a cuidadosamente, quase como se fosse explosiva, colocando-a numa pequena bandeja e levandoa para uma sala nos fundos. Voltou momentos depois, dizendo que eu deveria atravessar a rua, at a Taverna Ginty's, e esperar por uma chamada no telefone pblico. Sa rapidamente, sentindo-me leproso e indesejvel. No Ginty's, tomei um suco de tomate e contei todas as garrafas nas prateleiras, at que o telefone tocou e uma voz me ordenou que seguisse at a Catedral de Saint Patrick e me ajoelhasse no primeiro confessionrio do lado direito. A essa altura j estava comeando a achar que toda aquela rotina era um absurdo total. E foi o que eu disse. A voz censurou-me asperamente: Quando precisamos de um banqueiro, vamos procur-lo. Em nosso negcio, somos os especialistas. Entendido? A coisa colocada naqueles termos, claro que estava entendido. A Catedral de Saint Patrick no ficava muito longe e uma pequena orao poderia ajudar contanto que eu me lembrasse das palavras certas. O
confessionrio estava escuro e com um cheiro de rano de muitos pecados. A grade que separava o penitente do confessor estava coberta por uma tela opaca. A voz que me falou atravs dela era annima, um murmrio suave: Voc Paul Desmond? Sou. Eu sou Aaron Bogdanovich. Possuo uma memria fotogrfica. Ir dizer-me os servios que deseja. Eu lhe direi se, aceito e em que termos poderemos aceit-los. Comece, por favor. Contei-lhe tudo, numa confisso montona. Foi um exerccio interessante, pois fez-me ver o quo vagamente eu definira minha prpria posio e quanta razo existia para as dvidas e hesitaes de Arlequim. Aaron Bogdanovich era um bom ouvinte e um hbil inquisidor. Fez-me algumas perguntas constrangedoras. Como classificaria suas necessidades em ordem de importncia? Evitar que assumam nosso negcio, investigar a operao fraudulenta e limpar nosso sistema, provar que Basil Yanko culpado de conspirao criminosa.
As duas primeiras operaes so defensivas. A terceira ofensiva. Por qu? Se empreendermos uma guerra defensiva, estaremos fadados a perder. J imaginou o custo possvel? Em dinheiro? No. Partimos do princpio de que poder ser bastante dispendioso. O dinheiro no o problema fundamental. E qual ento? Vida e morte. Quando se vai polcia ou a uma empresa de reconhecida segurana, contrata-se um homem com uma arma para defender a vida e a propriedade do cliente. A procurao que eles recebem limitada. So responsveis perante a lei por tudo o que fazem. O mesmo no acontece conosco, porque operamos fora da lei. Contudo, temos alguns princpios morais e no somos assassinos de aluguel. Pode compr-los, se quiser, num mercado que funciona abertamente. A taxa comea em vinte mil dlares por assassinato. No estamos querendo contratar assassinos.
Mas talvez haja alguma violncia implicada na operao e a morte a conseqncia inevitvel da violncia. Por isso ter que decidir primeiro e ns depois se o problema grave o suficiente para justificar um risco de morte. Temos que discutir isso? No agora. Gostaria que primeiro definisse vontade sua posio. Depois tornaremos a nos encontrar. Frente a frente? Por que quer saber? Falou em princpios morais. Precisamos saber quais so os que temos em comum. Nunca fiz contrato com um homem que no conhecesse. Jamais assinei um contrato em aberto. Portanto, a prxima reunio ter que ser frente a frente ou terminamos tudo agora mesmo. Concordo. Sugiro que seja em meu apartamento. Pode escolher o dia e a hora que mais lhe convierem. Esta noite, s onze e meia. Tem documentos que eu possa estudar? Esto aqui, em minha maleta. Deixe-a aberta a no cho, com seu endereo e telefone. Eu a
pegarei depois que sair. S mais uma coisa. Pois no? Sirvo antes de mais nada a um pas. Ajudo os seus amigos e os meus por concesso e corolrio. No posso pr meu trabalho em risco. Portanto, deve comprometer-se a manter sigilo absoluto. Est certo. Deve saber tambm qual a penalidade por qualquer violao. E qual ? A morte, Sr. Desmond. E no receber um segundo aviso. impressionante como um homem pensa lucidamente quando a sua prpria morte est em jogo. Ao percorrer a Fifth Avenue, abrindo caminho por entre a multido do meio-dia, avaliei minha prpria posio em relao de meu sinistro confessor. Aaron Bogdanovich tinha uma razo plausvel para seu ofcio. Uma morte ou uma centena de mortes eram cifras insignificantes diante dos seis milhes de assassinados no grande holocausto. Nenhuma vida era mais importante que a sobrevivncia de uma nao sitiada. Mas o que dizer de um banco? Ser que uma sociedade annima, dedicada
exclusivamente a ganhar dinheiro, tinha o direito de fazer um sacrifcio humano para preservar seus bens? Quem escolheria a vtima e por que critrio? E que direito tinha Paul Desmond, encastelado na segurana de sua propriedade e de sua riqueza, de designar-se juiz e jri e delegar atribuies ao carrasco? Quando parei para admirar os diamantes na vitrina da Cartier, um cego, com um cartaz pendurado no pescoo, sacudiu uma caneca de lata diante de mim. Eu no tinha moeda alguma e por isso peguei uma nota amarrotada no bolso. Ao coloc-la na caneca verifiquei, tarde demais, que era uma nota de dez dlares. Lamentei o fato to irracionalmente que aquela esmola absolutamente no representou uma absolvio. Tinha um almoo marcado no Salvador com nosso gerente de Nova York, Larry Oliver, um bostoniano de fina educao e um respeito quase fantico pela tradio. Ele seria o mais feliz dos mortais se pudesse aparelhar o escritrio com escriturrios encurvados, mesas altas e penas de escrever. Certa
ocasio Arlequim deixara-o no escritrio de Londres durante seis meses. Ele voltara chocado e profundamente desapontado com a deteriorao moral do sistema bancrio ingls. Os brbaros de Wall Street faziam piadas a seu respeito, mas o fato que nos fizera atravessar a crise de 1970 sem que nossa carteira sofresse nenhum abalo de maior vulto. A mais simples impreciso constitua para ele um tremendo antema. Um engano em nossas contas era um horror inimaginvel. Por tudo isso que eu esperava um almoo difcil. E, a dizer a verdade, foi um desastre total. Com uma expresso de infelicidade, Oliver mal provou sua comida, enquanto eu lhe explicava a situao, at o ponto em que ele precisava saber, fornecendo os detalhes referentes ao escritrio de Nova York. Ele no provou o caf, levantou-se e, com as mos nas costas, por baixo do palet, ficou andando de um lado para outro da sala, como um advogado a fazer uma preleo para um cliente difcil. Eu compreendo tudo, Paul. Pode ter certeza de que compreendo perfeitamente a gravidade da situao. Mas por que no me informaram antes?
Pelo amor de Deus, Larry, ns s soubemos do ocorrido quatro dias atrs! Passei imediatamente um cabo-grama para voc e para todos os outros gerentes. Levei dois dias conferenciando com George Arlequim e o resto -do tempo estive viajando. Seja razovel, meu caro! Estou tentando s-lo, Paul. Mas minha reputao est envolvida, o nome de minha famlia... Arlequim e eu jamais tivemos a menor dvida sequer a seu respeito, Larry. Mas assim que a histria transpirar... Isso nunca vai acontecer, Larry! O desfalque j est coberto. E vim a Nova York para tratar de uma ampla e minuciosa investigao do ocorrido. Mas atravs de uma agncia particular. Provavelmente mais de uma. Ele estacou bruscamente e sacudiu-me um dedo reprovador. Infelizmente isso no deixar tudo acertado, Paul. Como assim? A menos que eu esteja interpretando a lei de forma errada, creio que fomos vtimas de uma fraude. Certo? Em face da lei, est certo.
Ento um caso para o FBI. Por que eles no foram chamados? Porque, embora suspeitemos de fraude, ainda no tivemos tempo de conferir e analisar todas as provas. Alm disso, operamos em diversas jurisdies. Pode ser que o FBI no seja a principal agncia envolvida no caso. Mas terei uma reunio com o pessoal da Creative Systems para examinarmos juntos o relatrio e depois voltarei a encontrar-me com o Sr. George Arlequim, quando ento ser decidido se chamaremos ou no os agentes federais. Enquanto isso todo o nosso pessoal e eu prprio estamos sob suspeita. Acho tal situao intolervel. Compreendo, Larry. Mas peo-lhe que seja paciente. Temos que coordenar nossa ao com todas as demais filiais. Sei disso, Paul. Mas ser que muita coisa j no transpirou? Espero que isso no tenha acontecido. No tenho muita certeza. Ontem almocei no clube numa mesa de quatro pessoas. Fizeram-me algumas perguntas estranhas. Tais como...?
Se Arlequim estaria apto a um trabalho ativo novamente. Estar, muito em breve. Se eu sentia qualquer fraqueza em nossas operaes de Genebra. E voc assegurou-lhes que no havia nenhuma? Ao que eu soubesse...Nunca fao declaraes precipitadas. Eu sei, Larry, eu sei. Quais foram as outras perguntas? Se estvamos aceitando propostas para a transferncia de controle e se era verdade que j fora formulada uma. Eu respondi "no" a ambas. Novamente ao que voc soubesse... Claro. Depois me perguntaram se eu estaria propenso a uma mudana. Respondi que estava bastante satisfeito com Arlequim et Cie., e muito mais ainda com minhas relaes com o nosso presidente. Temos muitas coisas em comum, como o interesse pela pintura e o respeito aos antecedentes slidos. E, se assim posso diz-lo, somos ambos descendentes de famlias tradicionais. Fico satisfeito em ouvi-lo dizer isso, Larry. Arlequim est contando com seu apoio neste momento difcil.
Pois ento, por favor, assegure-lhe que pode contar comigo. Mas eu no seria honesto se no dissesse tambm que a menor sombra de suspeita sobre a reputao do banco ou sobre mim pode levar-me a reavaliar minha posio. Agradeo sua sinceridade, Larry. E tenho certeza de que Arlequim ir procur-lo assim que chegar a Nova York. At l, estarei em contato com voc diariamente. E, Larry... O que , Paul? Este o momento de todos mostrarem o que realmente so. Sabe disso, no ? Sei, Paul. E obrigado por sua confiana. Agora melhor eu voltar e cuidar dos negcios. Ele saiu da sala de cabea erguida, o rosto brilhando de dedicao, um bom bostoniano, no qual, como dizia Tom Appleton, o vento leste encontrava abrigo. A informao que ele me fornecera era desoladora. A notcia de nosso problema j transpirara. Haveria novos rumores a cada dia que surgisse. Os boatos dos bares iriam rapidamente espalhar-se pela cidade e
muito em breve uma proposta de cem dlares por ao pareceria um man no deserto. Eu estava precisando tomar um conhaque bem porte. Mas decidi no tom-lo, porque Valerie Hallstrom ficara de chegar s trs e meia e eu precisaria de toda a minha lucidez quando nos sentssemos para analisar o relatrio. Valerie Adele Hallstrom seu nome completo, conforme pude verificar no carto de visitas era realmente um fenmeno. Alta e loura, possua um desses rostos escandinavos francos e saudveis que os agentes de viagens usam para seduzir os incautos a um cruzeiro pelo Bltico em pleno inverno. O corpo era um incitamento ao motim. No que ela procurasse exibi-lo, muito pelo contrrio. A roupa que usava era um milagre de discrio. Os gestos eram comedidos, a voz de um contralto suave. Ela sabia o que pensava e tinha na ponta da lngua todas as palavras necessrias para expressar seus pensamentos. A princpio, deixou-me um pouco perturbado. Mas medida que analisamos o documento, item por item, o efeito que me causou foi apavorante.
Espero que compreenda, Sr. Desmond, que se resolver tomar medidas legais, este documento ter que valer como prova nos tribunais. No momento em que o assinei, o documento passou a contar com minha reputao profissional e a da corporao onde trabalho. Conclui ento, como o documento declara categoricamente, que as fraudes ocorreram dentro de nossa prpria organizao. No temos a menor dvida quanto a isso. Poderia explicar-me novamente qual o processo que pode ter sido utilizado? Tomemos como exemplo a matriz de vocs em Genebra. O sistema de computadores est localizado em Zurique. Vocs alugam tempo de uso, quatro horas por dia, cinco dias por semana. Usam duas linhas diretas para o computador central, comunicando-se atravs de um cdigo exclusivo. Quem quer que conhea esse cdigo, pode usar as linhas de vocs ou as de qualquer outro para fornecer informaes e instrues ao computador ou para retirar informaes.
Isso tudo est claro, mas h algumas brechas. Ou nossos operadores cometeram a fraude ou algum de fora o fez, usando nossa palavra-cdigo. A qual s poderiam obter com algum de dentro de sua organizao, no mesmo? Possivelmente...Segundo estou entendendo, no momento em que uma instruo fornecida ao computador, fica depositada no banco de memria e automaticamente executada. * Exatamente. E ningum sabe que a instruo existe, exceto a pessoa que a transmitiu ao banco de memria. Isso mesmo. E essa a base de todas as fraudes clssicas. Por exemplo: se a pessoa possui um limite de saque a descoberto de dois mil dlares, pode aument-lo para duzentos mil, apenas acrescentando dois zeros ao programa. Depois que tal dado foi includo no registro, o correntista pode operar tranqilamente dentro do falso limite, * sem que ningum o ponha em dvida a menos e at que algum v verificar a instruo original. Posso dar-lhe outro exemplo. Algum pode ordenar ao computador que registre um
saldo de cem mil dlares em sua conta num dia determinado, apagando a transao do banco de memria no dia seguinte. Retira o dinheiro da conta com um cheque marcado "saldo de conta" e sai tranqilamente do pas. A menos que possa ser provado que a pessoa foi quem deu a instruo ao computador para cometer a fraude, muito difcil provar que tal pessoa foi culpada de algum crime. Afinal, a pessoa no declarou ter um dinheiro a que no tinha direito. O erro foi cometido pelo computador, agindo e operando pelo banco. Gostaria, senhorita, de repassar o que aconteceu exatamente em nosso escritrio de Genebra. Algum, supostamente o prprio George Arlequim, abriu uma conta numerada no Union Bank. A conta foi aberta pelo correio, usando documentos assinados ou aparentemente assinados por George Arlequim. As assinaturas conferem. Arlequim, no entanto, nega ter qualquer conhecimento de tal conta. Portanto, podemos concluir que as assinaturas so falsificadas. Em seguida, algum, usando nosso cdigo, d
ordens ao computador para cobrar uma despesa de um por cento em cada transao, depositando os lucros, semanalmente, na suposta conta de Arlequim no Union Bank. Como as despesas bancrias esto ficando cada vez mais complicadas, uma decorrncia da ganncia cada vez maior dos banqueiros, tal despesa poderia facilmente passar despercebida at o momento de uma auditoria. Certo? Certo. Mas, por ocasio da auditoria, ela teria que ser justificada por uma instruo original. E ento, se fosse Arlequim que tivesse emitido tal instruo, ele estaria imediatamente sujeito a um processo criminal. Certo. Mas ele no estpido e no precisa desse dinheiro. Portanto, senhorita, qual sua concluso? Que seria imprprio para mim fazer qualquer comentrio, Sr. Desmond. Nosso contrato com vocs para descobrir anomalias e fraudes. Compete a vocs tirar as concluses apropriadas e tomar as iniciativas adequadas.
timo. Mas deixe-me formular a pergunta sob outro ngulo. Somos um homem e uma mulher sozinhos numa sute de hotel. No h testemunhas. Espero que no haja tambm microfones ocultos, a menos que a senhorita esteja carregando algum. Estaria disposta a expressar, sem o menor preconceito, uma opinio particular? No, Sr. Desmond. Mas tem alguma? Tenho: a de que devo ater-me exclusivamente ao relatrio que assinei. Mas esse um problema extra-relatrio. Um problema de opinio, Sr. Desmond, no de fato. Se deseja debat-lo com a Creative Systems Incorporated, deve procurar diretamente o Sr. Yanko, sob cuja orientao eu trabalho. Gostaria agora de analisar o que aconteceu nas filiais? No. As transaes variam, mas o mtodo praticamente o mesmo e o resultado idntico. George Arlequim supostamente cometeu uma fraude. Posso perguntar quais as medidas que j tomaram para evitar a continuao de tal situao?
Anulamos todas as instrues ao computador indicadas em seu relatrio. timo. E estamos iniciando uma investigao minuciosa para descobrir quem foi o autor da fraude. Seu relatrio afirma que no pode deixar de ser algum de dentro ou ligado a Arlequim et Cie. Mas no existe a menor meno possibilidade de ter sido algum da Creative Systems Incorporated. Pelo contrrio, Sr. Desmond. Na pgina 85, terceiro pargrafo, fazemos uma meno especfica a tal possibilidade. Aqui est: "Todos os funcionrios da Creative Systems ligados a essas operaes foram meticulosamente investigados e estamos convencidos de que nenhum deles, sob forma alguma, est envolvido nas operaes fraudulentas". E espera que aceitemos integralmente tal afirmativa? falta de provas em contrrio, precisamente o que esperamos. Srta. Hallstrom, gostaria de fazer-lhe um elogio. Faa-o ento, Sr. Desmond, por gentileza.
uma mulher muito bonita. Obrigada. Gostaria de que estivesse trabalhando para ns. Mas eu estou, Sr. Desmond. Espere at receber a conta. Meus servios tm um preo consideravelmente elevado. Costuma ter folgas? Freqentemente. Gostaria de retribuir-me o elogio e ir jantar comigo uma noite dessas, se eu prometer no falar de negcios? Seria um prazer. Para onde posso telefonar-lhe? Eu lhe darei meu carto. Telefone-me por volta das sete horas, no dia que lhe aprouver. Obrigado. Mais uma coisa: o Sr. Yanko pediu-me que lhe dissesse que amanh, entre dez horas e meio-dia, estar sua disposio. Diga-lhe que me espere s onze horas. Au revoir, Sr. Desmond. Foi um prazer conhec-lo. O prazer foi meu, Srta. Hallstrom. O diabo que foi! Achava-a uma cadela descarada, mas pelo menos tinha
agora seu telefone e endereo e um meio convite para intrometer-me em sua vida ntima. Era uma pequena vitria, mas no necessariamente uma frivolidade. Quando se enfrenta uma corporao gigantesca, preciso ter amigos dentro dela. Algumas companhias so mais poderosas que as naes nas quais operam. Elas ultrapassam as fronteiras e passam por cima das jurisdies locais. Utilizam os melhores crebros, compram os melhores servios jurdicos em cada pas. Muitos diplomatas e polticos esto a servio delas...Mas, quando se procura uma resposta objetiva para uma questo objetiva, pode-se levar dois anos para obtla, sendo necessria uma imensa biblioteca s para abrigar a correspondncia a respeito. Assim, o jantar com Valerie Hallstrom poderia no dar em nada. Por outro lado, porm, poderia ser a chave para a descoberta de importantes segredos, porque, quanto maior a corporao, mais diludas esto as lealdades e mais encarniada a luta travada pelas faces existentes nos escales superiores.
Eram seis horas da tarde. Subitamente eu me sentia cansado, deprimido e velho. Sa do Salvador e percorri dez quarteires at meu prprio apartamento, dormindo at Takeshi chamar-me, s onze horas. s onze e meia, pontual como o Juzo Final, Aaron Bogdanovich apareceu. Era um homem alto, esguio, bronzeado e musculoso. Parecia ter quarenta anos, mas poderia perfeitamente ter cinqenta. Era impossvel dizlo, sem uma certido de nascimento. Vestia-se de forma negligente, mas impecvel. Sorria com facilidade. O aperto de mo foi bastante firme. Depois de um olhar avaliador para o apartamento, ele disse: Temos um homem vigiando a porta do edifcio. H outro aqui no corredor. Gostaria de cham-lo para ele verificar se h microfones ocultos no apartamento. Faz alguma objeo? Absolutamente nenhuma. Seu agente entrou, um jovem silencioso que examinou todos os cmodos com um detector, sacudiu a cabea num gesto de satisfao e depois saiu do apartamento, sem dizer uma palavra sequer.
Bogdanovich relaxou visivelmente. Agora podemos conversar. Quer beber alguma coisa? Um suco de frutas, por gentileza. Takeshi serviu as bebidas e retirou-se. Aaron Bogdanovich sorriu-me por cima de seu copo. E ento, Sr. Desmond, o que decidiu? Estamos encurralados e vamos ter que lutar. Aceitamos a possibilidade de conseqncias drsticas. Seu superior concorda com tal deciso? Ele me deu carta branca. As despesas so as seguintes: ter que pr nossa disposio, imediatamente, duzentos e cinqenta mil dlares em dinheiro; manter de reserva uma quantia igual, para pr nossa disposio em qualquer moeda e na capital que indicarmos. O total de meio milho de dlares, podendo haver um acrscimo que no superar dez por cento. Ganhando ou perdendo? Exatamente. um ato de f. O outro lado da barganha que assumimos todos os nossos riscos e nunca, em quaisquer circunstncias, os transferimos para o cliente. Se houver sangue na operao, ns mesmos
trataremos de limp-lo. Pode comprometerse a nos pagar tal quantia? Posso. L'chaim, Sr. Desmond! Sade! Fizemos o brinde e fechamos o acordo. Sentamo-nos para jantar e Bogdanovich discorreu sobre a campanha, como se fosse um general a instruir seu estado-maior. Li o documento e concordo com suas concluses. A fraude est relacionada com a proposta de venda do controle acionrio da companhia. Yanko o provvel instigador. Para provlo, teremos que trabalhar dentro da organizao dele e tambm da sua. E podem faz-lo? Podemos. Vamos ter tambm que montar uma operao de cobertura, para desviar as atenes de nossas atividades. E como o faremos? Vocs devem solicitar os servios de uma organizao regular de segurana.-Sugerimos que usem a Lichtman Wells, que tem mbito internacional. Devero pedir que a operao seja dirigida pessoalmente pelo Sr. Saul Wells. Ele aceitar a incumbncia.
Por qu? Por ter certeza de que ele o far e designar os agentes adequados. Seus agentes, no mesmo? Eu no disse isso. E tambm no deveria perguntar...Espero que compreenda, Sr. Desmond, que no de todo impossvel que um dia seja pressionado para revelar o que sabe sobre esta operao. Considerando a sano sobre a qual j discutimos, no acha que melhor no ter nada para dizer? ... por acaso casado, Sr. Desmond? No. Tem parentes ou ligaes ntimas pelas quais possa ser chantageado? Uma amante, talvez? Ou ento um filho? No. Mas Arlequim tem esposa e um filho. Ento ele tambm deve ficar a par dos riscos. Tratarei de inform-lo. Quero tambm conhec-lo pessoalmente. Ele recebeu alta do hospital esta manh. Tencionava tirar umas frias e passar alguns dias em Acapulco com a esposa. Mas agora os dois viro para Nova York. Ficaro no apartamento do banco, no Salvador. J
providenciamos a superviso mdica necessria durante seu perodo de convalescena. uma medida sensata, pois bem possvel que ambos tenham de viajar bastante num futuro prximo. Como assim? O banco est em crise. Precisaro, evidentemente, visitar todas as filiais. Alm disso, para segurana de vocs e de nossas operaes, talvez seja necessrio mant-los em permanente movimento. Confesso que uma idia alarmante. Eu sei que . Mas pense no assunto, Sr. Desmond. A sua empresa um grande prmio e as corporaes no possuem princpios morais. muito fcil providenciarem-se acidentes fatais. Hoje em dia seqestram-se executivos e diplomatas por resgate. A tortura foi elevada categoria de cincia. Leia qualquer jornal dirio e ver que no estou exagerando. E o que no aparece nos jornais ainda mais sinistro. Neste momento, por exemplo, h um corpo flutuando no rio East. o corpo de um pistoleiro que foi contratado para assassinar esta noite um delegado rabe junto ONU. Ele deveria matar o
referido delegado s oito e meia, quando saltasse do carro para comparecer a um jantar em sua homenagem. E meu povo, obviamente, seria responsabilizado por sua morte...Espero estar sendo bastante claro, Sr. Desmond. Claro demais para que eu me sinta tranqilo. Dinheiro poder, Sr. Desmond. No h tranqilidade em nenhum dos dois. Quer dizer ento que Arlequim e eu talvez tenhamos que viajar bastante. O que mais? Aja o mais normalmente que puder. Yanko espera que entrem em negociaes com ele a propsito da venda das aes. Pois negociem. Ele espera que realizem uma investigao. Faam-na. E seus gerentes e executivos devem permanecer ignorando minhas atividades e prosseguir em seus negcios normais. Dever transmitir-nos imediatamente qualquer informao nova que venha a ter. De que jeito? Aqui em Nova York, pelo telefone, falando de uma cabine pblica.
Eu lhe darei dois nmeros que dever decorar. Dever identificar-se pelo nome de Weizman. Quando deixar Nova York, dever providenciar tudo atravs de uma agncia de viagens que lhe indicarei. Quando for pegar suas passagens, receber as indicaes sobre seus contatos nas cidades para onde for. Pois j tenho uma informao nova para lhe fornecer. Conversei esta tarde com uma mulher, Valerie Hallstrom. Ela trabalha para Yanko e foi quem preparou o relatrio. Ela lhe contou algo til? Pelo contrrio. Recusou-se a ir um passo alm do que j constava do relatrio. Mas convidei-a para jantar e ela no recusou. Deu-me um carto com seu endereo e telefone. Poderia mostrar-me, por gentileza? Ele olhou o carto por um momento e depois devolveu-me. No pude resistir pergunta: Possui realmente memria fotogrfica? Possuo. Devo encontrar-me com essa mulher? Ela bonita? Bastante. E acessvel?
o que gostaria de descobrir. Gostaria apenas de que me informasse de qualquer encontro que marcasse. O que provoca outra pergunta: como vai entrar em contato comigo? Eu me movimentarei bastante nos prximos dias. Aonde quer que v, Sr. Desmond, eu saberei. Nossos preos so elevados, mas proporcionamos atendimento vinte e quatro horas por dia...Por falar nisso, h quanto tempo esse empregado trabalha para o senhor? Seis anos. E evidente que confia nele. Mas o que sabe a respeito de suas origens? Quase nada. Ele trabalhou para um amigo meu durante cinco anos. Quando esse amigo partiu de Nova York, fiquei com seu apartamento e com Takeshi. H muitas coisas valiosas aqui dentro e, alm disso, ele quem cuida das despesas da casa. At agora, no tive a menor razo de queixa. uma boa ficha, mas mesmo assim iremos verific-lo. O senhor possui algum vcio, Sr. Desmond? uma pergunta difcil de responder!
Mas tenho que saber. Digamos que a resposta negativa. No jogo. Gosto de beber, mas h vinte anos que no fico embriagado. No compro sexo, gosto apenas de mulheres e no costumo dizer seus nomes no clube. Algum segredo culposo? Um casamento malsucedido. Dvidas? Nenhuma. Obrigado, Sr. Desmond. No momento, isso tudo de que preciso saber. Mais caf? No, obrigado. Queria fazer-lhe tambm uma pergunta, Sr. Bogdanovich. E qual ? Por que concordou em aceitar essa tarefa? No fundo, Sr. Desmond, o que est realmente querendo saber no por que no procurei quem me pagasse mais? No. Desejo saber exatamente o que perguntei. H duas respostas, Sr. Desmond. A primeira simples. O senhor foi
recomendado por um bom amigo, Karl Kruger, e est em condies de pagar pelos servios que lhe vamos prestar. A segunda um pouco mais complicada. Tenho muito pouca f na integridade dos seres humanos. Sei que cada homem tem seu preo e s morrer honrado se ningum o oferecer. Sei que cada homem tem um medo, atravs do qual pode ser destrudo. Deixei de acreditar em Deus porque vejo uma criao fundada numa luta destrutiva pela existncia. No entanto, sei que a ordem necessria para que a vida permanea pelo menos meio tolervel. Se um homem razoavelmente justo atacado por um arrogante, todos ns estamos sendo tambm atacados. E a nica maneira de deter um arrogante arrebentar-lhe todos os dentes. E se a pessoa atacada pequena demais para tanto, ento ela me contrata... Ele ofereceu-me aquele sorriso pronto e fcil e sacudiu os ombros. claro que se trata de um argumento capcioso. O senhor seria um tolo se o aceitasse por completo. Mas, mesmo em nossa selva, precisamos de um vestgio de razo para justificar o que fazemos. Agora, deixe-me dar-lhe os
telefones e o nome de nosso agente de viagens. Depois que ele se foi, Takeshi resumiu-o numa nica frase, um tanto assustadora: Tenho a impresso de que aquele homem dorme dentro de um tmulo, senhor. A sede da Creative Systems Incorporated ocupava seis andares de um reluzente edifcio de vidro e alumnio na Park Avenue. Havia trs andares repletos de mquinas, patrulhados por guardas armados, e dois de escritrios imaculados, por onde circulavam jovens de rosto grave, deslocando-se por entre uma multido de secretrias. O sexto andar era o domnio particular de Basil Yanko, um lugar sagrado revestido de lambris de madeiras exticas, silencioso por causa dos grossos tapetes, ornado com quadros e artefatos carssimos. A recepo era dominada por uma duquesa de meia-idade e dois guardas, um dos quais conduzia os visitantes atravs dos corredores silenciosos, enquanto o outro permanecia vigilante contra os intrusos. Quando cheguei, faltavam dois minutos para as onze horas. O guarda
verificou meu nome numa relao datilografada; a duquesa anunciou-o pelo aparelho de intercomunicao e depois pediu-me que me sentasse por um momento. s onze horas em ponto acendeuse uma luz vermelha no painel e a duquesa fez um sinal para o guarda, que me conduziu ao santo dos santos, uma sala imensa onde Basil Yanko estava sentado atrs de uma vasta mesa, sobre a qual no havia nenhum papel. O guarda retirou-se e a porta se fechou silenciosamente. Percorri quase meio quilmetro de tapete para apertar a mo fria do senhor daquele imprio. Ele se mostrou brusco como sempre, mas favoreceu-me com um sorriso e com uma preocupao rpida por meu bem-estar. Espero que esteja descansado, Sr. Desmond. Estou, sim, obrigado. E como est George Arlequim? J recebeu alta do hospital e deve chegar hoje a Nova York. No estou muito satisfeito com isso, mas ele insistiu. Dever continuar por algum tempo sob cuidados mdicos.
Lamento que isso ainda seja necessrio. Ele j chegou a alguma deciso com relao minha proposta? J. Pediu-me que lhe dissesse que est preparado para negociar, assim que estiver recuperado o suficiente para empenhar-se em discusses de negcios. E quando isso pode ser? Espero que muito em breve. Mas o mdico dele aqui em Nova York que poder dar a resposta definitiva. Compreendo. At l, ns dois podemos fixar as bases para as discusses, no mesmo? Arlequim deu-me uma diretiva a esse respeito. E qual ? Ele no est preparado para iniciar qualquer negociao enquanto estiver sob dificuldades. Determinou-me que iniciasse uma ampla investigao sobre as fraudes dos computadores, usando uma organizao independente. Escolhemos a Lichtman Wells. Terei meu primeiro encontro com eles esta tarde. uma excelente organizao. Seus agentes so muito bem treinados.
Foi o que me disseram. Estamos prontos, claro, a ajud-los, de todas as formas possveis. Obrigado. Mas no podemos esquecer que o elemento tempo muito importante para todos ns, Sr. Desmond. Sabemos disso perfeitamente. Acho, portanto, que devemos fixar um limite. Como assim? Nossa proposta de cem dlares por ao continua de p. Contudo, temos que fixar um limite para sua validade. Como sabe muito bem, o mercado de dinheiro hoje muito inconstante. No podemos manter indefinidamente o gio que oferecemos. E que prazo sugere? Trinta dias a partir de hoje. muito pouco, Sr. Yanko. Representa apenas vinte e dois dias teis. Provavelmente no conseguiremos concluir uma investigao internacional em perodo to exguo. Precisamos de noventa dias, no mnimo. Da maneira como o mercado anda atualmente? No h condio. Seu telex declarava que a proposta era formulada tendo por base
uma projeo de trs anos. A avaliao, no o gio. Mesmo assim, no podemos fazer por menos de trs meses. Sessenta dias, no mais do que isso. Esse detalhe no consta de minhas instrues. Terei que conversar com Arlequim. Faa-o ento, por favor. E quando posso contar com a resposta? Isso compete a ele. No entanto, sei que Arlequim um homem suscetvel cortesia. Coisa que s vezes me falta. Sei disso, Sr. Desmond. Vamos pr a coisa nos seguintes termos: se Arlequim desejar adiar sua resposta, estarei livre para reduzir meu limite de tempo por um perodo equivalente. No acha justo? Est sendo muito duro, mas transmitirei sua posio a Arlequim. Tambm um homem duro, Sr. Desmond. Mas respeito-o por isso. Se algum dia sentir vontade de mudar de ritmo ou de cenrio, ficarei feliz em poder oferecer-lhe condies das mais generosas. - E assim, ao melhor estilo de negcios, de forma sbria e legal, a
ameaa fora finalmente formulada. Se no pudssemos ser comprados nem enganados, seramos espremidos entre as pedras de um moinho. A habilidade sardnica do predador era uma afronta. Tive vontade de cuspir-lhe no olho. Em vez disso, porm, agradeci-lhe a cortesia e sa novamente para a loucura humana da Park Avenue. s trs horas da tarde compareci reunio na Lichtman Wells. A experincia no foi nada confortadora, j que o pessoal de segurana, assim como os corretores de seguros, vive da perspectiva de desastre. O scio mais velho, um ex-coronel da polcia militar, de cabelos brancos, leu-me uma lista aterrorizante de casos existentes em seus arquivos, nenhum dos quais teria acontecido se as vtimas tivessem usado os servios da Lichtman Wells. Saul Wells, o scio mais novo, ficou sentado pacientemente durante toda a reunio. Depois que o contrato foi assinado, reanimou-me com um caf em sua prpria sala. Era um homem pequeno e agitado, ruivo, que mastigava incessantemente um charuto apagado e pontuava sua fala com piscadelas e gestos.
No deixe que o velho o preocupe, Sr. Desmond. Ele o vendedor da organizao e precisa fazer um discurso. De minha parte ter ao, sem muita conversa. Gostaria de saber como operamos? Bem, internamente uma investigao direta. Nosso agente entra pela porta da frente, sem segredos, sem disfarces, verifica todos os procedimentos, interroga as pessoas, procura falhas e contradies. Externamente? ...Bem, a a coisa um pouco diferente. Procuramos descobrir quem dorme onde, quem gasta mais do que ganha, quem se entrega excessivamente ao sexo ou gosta de jogar nas corridas, coisas assim... como um quebra-cabea, sabe? Ao final, todas as peas tm que se ajustar. Se fica faltando uma pea, deve estar no bolso de algum ou fugiu pelo ralo. Lembro-me de uma vez... Ele lembrou e lembrou, quase interminavelmente, representando cada episdio como um comediante. De certa forma, porm, simpatizei com ele. E, ao final de duas horas, compreendi que sua dissertao sobre mtodo arrancara-me uma considervel massa de detalhes que, de outra forma, eu
jamais teria pensado em fornecer-lhe. Finalmente ele jogou a ponta apagada de charuto no cinzeiro e anunciou jovialmente: Agora j me conhece e eu o conheo. Creio que nos daremos muito bem. Portanto, podemos parar com a comdia. Ponha seus gerentes de sobreaviso, pois entraremos em ao imediatamente. No existe problema de lngua. Tenho at mesmo uma moa que fala esquim. S mais uma coisa, Sr. Desmond: daqui por diante, o negcio ser bastante duro. Se algum comear a pression-lo, procure no mesmo instante o nosso amigo mtuo. At ento tudo estava correndo bem. De um lado tnhamos Yanko. Sabamos exatamente o que ele queria e como pretendia agir para consegui-lo. De outro lado tnhamos promessas e mais promessas, um custo elevadssimo e uma srie de discursos sobre os perigos envolvidos e do quanto precisvamos de proteo. Atravessei a cidade em direo First Avenue, onde o meu amigo Gully Gordon dirige um bar sossegado e toca piano para os fregueses na hora dos
coquetis. Gully jamaicano e o nico preto que conheo com sotaque escocs. Ele tambm fala com sotaque irlands, crole, de Nebraska, e italiano, porque j foi ator. Costuma dizer freqentemente: Fiquei esperto, companheiro, e arrumei uma audincia cativa. Eu caminhava rapidamente pelo lado esquerdo da rua quando, de repente, fui violentamente empurrado e cambaleei na direo de um homem parado num portal. Ca de joelhos e, quando tentei levantar-me, recebi um golpe no pescoo. Devo ter perdido os sentidos momentaneamente, pois a coisa seguinte de que me lembro de estar encostado na parede, com um homem de aspecto miservel, usando blue jeans e uma suter esfarrapada, limpando a poeira de minha roupa. Instintivamente levei a mo ao bolso do palet. Ele sorriu e sacudiu a cabea. No, eles no levaram sua carteira. Tremendo, perguntei quem eram "eles". Assaltantes. Um o empurra e o outro tira a carteira. Teve sorte de eu estar bem atrs. Est bem agora?
Acho que sim. Obrigado. Gostaria de tomar um drinque comigo? Em alguma outra ocasio. Tome cuidado, Sr. Desmond. Ele deixou-me e desapareceu no meio da compacta multido. Eu ainda estava aturdido e abalado e nem mesmo me ocorreu perguntar-lhe como sabia meu nome. Estava dominado por um nico pensamento, assustador: como a violncia era simples, quo rpida e sbita, como no atraa a ateno da multido que passava! O segundo pensamento delineou-se lentamente, enquanto tomava meu drinque, encostado no piano, ouvindo a msica sonhadora de Gully. Eu pertencia quele mundo de viajantes solitrios e rudes aventureiros. No importava o quanto me tivesse afastado dele anos atrs, descansando agora sombra do dinheiro e do conforto. Sabia-o por dentro, pela inquietao permanente, pela atrao por prostitutas, pelo gosto amargo do sangue, pelos contatos furtivos, pelo dialeto empregado no mercado. Algumas vezes, desesperado e solitrio, eu voltava a esse mundo, vestindo o passado como um velho casaco mofado mas confortvel.
J meu amigo Arlequim pertencia a outro mundo. Era um erudito e um cavalheiro, criado dentro dos velhos princpios de decncia da Europa. Claro que ele podia representar meu papel e vinte outros diferentes, pois ainda era o Schauspieler, o ator, atuando atravs do entrecho, sem nenhum outro compromisso que no o de entreter a si mesmo e sua audincia. Pergunteime como ele se sairia sem um roteiro, sem um ponto, quando as lminas deixassem as bainhas e somente o vencedor voltasse para casa, aps o duelo. Gully Gordon levantou os olhos do teclado e disse suavemente: Est triste esta noite, companheiro. Os filhos da me acertaram-no de jeito? Foi mesmo, Gully. Est precisando de uma boa mulher. Tem toda a razo. H uma l no bar. Olhei e vi Valerie Hallstrom, sozinha, tomando um drinque e conversando com o barman. Virei-me antes que ela me visse. J a conheo, Gully. Fale-me mais a respeito dela.
solitria, pelo que sei. Costuma tomar dois drinques, que duram uma hora inteira. Portanto, no de se embriagar. Depois vai para casa. Pelo menos o que eu penso. Sozinha? Sabe como , companheiro. Este um bar de gente sozinha. As pessoas vm aqui procurar. Quando encontram o que esto querendo, passam a ficar em casa. E h muito tempo que ela est procurando? H uns seis meses. Mas disse que j a conhecia... Tenho negcios com o patro dela. Fico imaginando se a presena dela aqui no faz parte de algum plano. De jeito nenhum. Ela uma cliente constante. Gully dedilhou uma cadncia suave e comeou a cantarolar a melodia, murmurando-me por entre as frases musicais: Ela gosta disso, companheiro. Suave, suave, a gente vai atraindo a presa. Venha, menina, venha...Se voc perder essa chance, Paul, nunca mais vou perdolo...Boa noite, Srta.
Hallstrom. Tem algum pedido especial? Estvamos lado a lado, os copos quase encostando, antes que ela me reconhecesse. Ficou surpresa, mas pude sentir tambm que o fato no a desagradou. Mas que surpresa, Sr. Desmond! Como este mundo pequeno! Que Deus abenoe Gully Gordon! Ele sabia aproveitar habilmente a menor deixa. Ele um velho amigo, Srta. Hallstrom. S que no o vejo com muita freqncia, pois anda ocupado demais empilhando seu dinheiro. Est ficando cada vez mais difcil, Gully. Acho que estou envelhecendo. Vem aqui com freqncia, Srta. Hallstrom? Ela tambm uma velha amiga interveio Gully. O que gostaria que eu tocasse para voc, menina? Est indo muito bem, Gully. Continue apenas a tocar. Teve um dia agradvel, Sr. Desmond? Paul...E meu dia foi comprido e desagradvel. Ento fomos dois. Mas meu dia ainda no terminou. Se no fosse isso, eu a convidaria
para jantar. No h nenhum compromisso firmado. Mas importa-se de assinar um para amanh? Se quiser... Onde posso apanh-la? Em meu apartamento, s sete e meia. Contrato assinado e selado. Sabe, um homem bastante delicado... Eu sei. Meu irmo gmeo que o miservel. Mas esta noite ele est de folga. Era uma tirada antiga, mas arrancou um sorriso dela e uma piscadela de Gully, levando-nos at um reservado, onde nos sentamos com nossos copos, enquanto a msica se espalhava ao nosso redor. Depois de algum tempo, ela comentou: O bar de Gully um lugar muito especial para mim. Para mim tambm. Estive aqui na noite da inaugurao. Tudo o que eu possua ento era uma pilha de dvidas e o pouco dinheiro que tinha no bolso. E...? Ele deve ter-me dado sorte. No dia seguinte o mercado deu um pulo e tive um lucro considervel.
Talvez tenha sorte novamente. J tive: basta ver o que encontrei. Agora vai certamente perguntar o que uma moa como eu est fazendo num bar de gente desacompanhada. No, no vou. Acho que esta uma cidade solitria e bom ter um lugar aonde se possa ir, sem que ningum lhe pergunte quem e o que faz. melhor do que ser um nmero num computador de banco. Um filsofo ainda por cima! No, apenas um homem de meia-idade, que j viveu muita coisa. Pois acho que se conservou muito bem. No est muito gasto. E voc, minha jovem Valerie, no o est nem um pouco. No foi o que pensou ontem. No se esquea de que hoje estou um dia mais velho. Desculpe o momento difcil que o fiz passar ontem. seu comportamento usual? No. Ordens. E recebo setecentos e cinqenta dlares por semana, com benefcios adicionais, para fazer o que mandam.
Era uma isca que eu no pretendia morder. Se fosse uma indiscrio, bastava esperar, que outras se seguiriam. Decidi que estava na hora de partir. Detesto ter que retirar-me, Valerie, mas no h outro jeito. Meu presidente chegou a Nova York esta tarde. Tenho que mudar de roupa e ir jantar com ele, s oito horas. O que me deixa um pouco de tempo para acompanh-la sua casa, se quiser. Obrigada, mas vou ficar mais um pouco. Ento at amanh. Estarei sua espera. Boa noite, Paul. Tudo terminou com um sorriso e um aperto de mo. Paguei a conta e levei uma bebida para Gully no piano. Ele continuou tocando com a mo esquerda, erguendo o copo com a direita num brinde. Sade, companheiro. Quer dizer que vai agora aparecer mais vezes, no ? Vou, Gully. D uma olhada na moa por mim. Pode deixar, companheiro. Divirta-se. Quando cheguei ao Salvador para jantar, encontrei Arlequim e Julie relaxados e alegres. Arlequim dormira durante quase toda a viagem. J havia
um pouco de cor em seu rosto. Ele estava inquieto e ansioso por ouvir meu relatrio, mas Julie declarou com firmeza que no poderamos tratar de negcios durante o jantar. Depois, ela nos deixaria a ss, contanto que eu mandasse George para a cama antes da meia-noite. Achei a idia esplndida. No tinha a menor vontade de falar sobre Aaron Bogdanovich enquanto comia mos as costeletas francesa, e havia tambm alguns assuntos difceis sobre os quais eu precisava conversar com Arlequim. Apresentei o relatrio completo enquanto tomvamos caf. Arlequim ouviu em silncio e passou a interrogar-me minuciosamente. Temos ento duas investigaes paralelas; uma aos cuidados de Lichtman Wells, que seguir os padres convencionais, a outra a cargo de Aaron Bogdanovich, que poder envolver ilegalidade e violncia. isso mesmo? . E, enquanto duram as investigaes, temos uma equipe apreensiva, que devemos tentar manter satisfeita e leal, no mesmo?
Essa tarefa compete a voc, George. No pode ser feita por procurao. E, externamente, temos Yanko, que est pressionando para tomarmos uma deciso em sessenta dias. Talvez at menos. Ele est aguardando um encontro com voc, assim que estiver apto a tratar de negcios. J estou. Poderemos encontrar-nos dentro de um dia ou dois. Por que no o deixa esperar mais um pouco? Vamos faz-lo suar. S que ele no est suando, Paul. Ns que estamos. E no gosto disso. Conte-me agora o resto da estratgia. Primeiro vamos deixar clara a nossa posio. A Lichtman Wells est investigando as fraudes do computador. uma ao defensiva, para limpar o nome do banco e o seu. Aaron Bogdanovich est investigando Yanko. Isto ataque, para incrimin-lo e sua companhia como responsveis pelas fraudes, desacreditando-os. Mas isso ainda no suficiente, no mesmo? No. Representa apenas quarenta e oito horas de trabalho da minha
parte. Mas sou somente um procurador, no o diretor principal. Vamos a outra questo. Yanko quer comprar um banco. Por que escolheu o nosso? Por que no o de Herman Wolff ou o de Laszlo Horvath, j que ambos esto dispostos a vender? Arlequim et Cie. uma instituio mais antiga e mais tradicional. Temos mais filiais: Londres, Paris, Hamburgo, Nova York, Buenos Aires, Rio, Lisboa e Mxico. So boas razes, mas no justificam inteiramente a atitude dele. Usamos os sistemas dele. Portanto, somos mais vulnerveis. Continue. o mximo que pude pensar at agora, George. Ento eu lhe darei mais duas razes. Como subscritores, adquirimos e ainda conservamos blocos substanciais de aes da Creative Systems e de suas filiais internacionais. Portanto, representamos uma voz dissidente nos negcios da corporao. Eu no sabia que havia qualquer dissenso. Pode ter certeza de que h, Paul. Embora as divergncias ainda no
estejam formalizadas, so profundas e pessoais. Os maiores projetos da Creative Systems, nos quais Yanko est pessoalmente interessado, esto relacionados com dois setores: a documentao policial e o que chamado delicadamente de controle urbano. Na verdade, o que se procura a vigilncia, controle documental estratgico e a manipulao de amplas massas da populao, em todos os continentes do globo. Os instrumentos para isso j existem, o pessoal necessrio est sendo treinado, os sistemas esto sendo ampliados e melhorados. Tudo isso est sendo utilizado no apenas contra os criminosos, mas tambm contra os dissidentes polticos e para determinar o destino cotidiano das pessoas comuns. O resultado inevitvel o terrorismo, a represso, o contraterrorismo, as cmaras de tortura. A companhia que projeta tais sistemas est em situao privilegiada, de imenso poder, em todos os pases onde opera, at mesmo naqueles de sistemas e regimes opostos. E se tal companhia consegue entrar no mercado financeiro internacional, manipulando dinheiro e crdito, transformase num imprio, extravasando
alm das fronteiras geogrficas. H muito tempo que estou vendo tal situao se desenvolver. Falei sobre isso no ano passado, num jantar de banqueiros em Londres. Procurei fazer uma distino entre o uso legtimo das facilidades proporcionadas pelos computadores e aquelas que constituem uma ameaa para a liberdade da pessoa humana. Meu discurso foi amplamente divulgado. Mandei imprimi-lo e distribu-lo por entre amigos e conhecidos. Nem todos o receberam de boa vontade. Mandei uma cpia para Yanko, mas ele nunca acusou seu recebimento. Creio agora que foi nessa ocasio que ele traou sua atual estratgia contra mim e contra a companhia. Admito que isso bem possvel, George. Yanko um canalha sardnico. o tipo de piada que ele adoraria. Mas no vejo como isso pode alterar nossa atual situao. E no altera. Simplesmente serve para me indicar o caminho a seguir. Deixe-me repetir, George, que no podemos fazer coisa alguma sem provas. Precisamos de provas que inocentem voc e incriminem Yanko.
No concordo com voc, Paul. Tenho que dirigir um negcio e enfrentar abertamente uma situao pblica. No posso permitir que Yanko, voc ou quem quer que seja, determine o papel que devo representar. Mas j contratamos Bogdanovich. Voc concordou em que precisaramos dele. Acho que deveria conversar com ele e, pelo menos, procurar agir em coordenao. Arlequim ficou pensando no assunto por um momento, depois ofereceu-me seu sorriso malicioso, que desarmava qualquer um. As toupeiras se entocam debaixo dos muros, enquanto Arlequim representa em praa pblica, para distrair a ateno do populacho. Isso tem sentido. Marque a reunio com Bogdanovich o mais breve possvel. Na sada, parei numa cabine telefnica que havia no saguo e liguei para Bogdanovich. No sei por que talvez porque estivesse cansado e com disposio para conversar citei a observao de Arlequim sobre as toupeiras e os comediantes. Bogdanovich divertiu-se com o comentrio e rematou-o:
E somos mesmo comediantes! Morreremos todos rindo a valer. Vamos encontrar-nos amanh, s dez horas, junto jaula dos micos, no Central Park. Por mais estranho que possa parecer, o encontro daquelas duas personalidades to diferentes foi um sucesso. Por um longo momento, na presena dos micos agitados, eles se mediram um ao outro; depois sorriram, apertaram-se as mos e saram andando sob o sol da primavera. Eu seguia meio passo atrs enquanto os dois guardacostas, dois rapazes com a barba por fazer, vinham dez passos atrs, um em cada flanco. Arlequim e Bogdanovich caminhavam lentamente, como se o tempo no tivesse o menor significado para eles. A princpio foram reticentes, depois falaram fluentemente, mas sempre de maneira respeitosa, como se cada um tivesse necessidade da compreenso do outro. Arlequim, o eloqente, estava quieto e splice. Bogdanovich, o apologista da violncia, sentia necessidade de justificar a si mesmo e a seu ofcio. Espero que compreenda, Sr. Arlequim, que a violncia comea
quando a argumentao racional se torna impossvel. Sei disso. Mas no podemos esquecer o outro lado. Eu posso permanecer cego, saboreando meu conhaque, enquanto algum morre diante de minha porta, suplicando por um copo de gua. Entre ns dois fica o mordomo traidor, que assim procura agradar-me e o deixa morrer, s para ganhar algum dinheiro. Como resolvemos esse impasse? Eu o resolvo pela frmula antiga. Olho por olho, vida por vida. Sem questionar, sem piedade, sem sentimento de culpa. Enquanto eu quero a absolvio por tudo o que fao. Vou contarlhe um segredo: procuro refgio em meu nome, Arlequim, o bufo. O bufo sempre perdoado, porque at mesmo sua maldade arranca risadas da platia. Enquanto o carrasco pblico um homem sem nome, que vive por trs de uma mscara. Acha que seria capaz de matar um homem, Arlequim? Eu poderia ser levado a faz-lo. Mas acha que capaz de cometer o ato, o ato final e irrevogvel, o
dedo apertando o gatilho, o polegar segurando a lmina enquanto a mo sobe de baixo para cima, sim ou no? Como posso saber, antes de chegado o momento? Tem razo, no pode. S depois. Fica ento muito fcil: o estmulo, a reao, a racionalizao, o sono. Os assassinos, como os adlteros, sempre dormem muito bem. Mas basta uma simples migalha no colcho para deixlos quase loucos. O que acha que devo fazer, Sr. Bogdanovich? Seu amigo Desmond disse-me que se considera um comediante. Deve ento entreter a cidade, enquanto ns minamos as muralhas. Isso foi apenas uma fantasia, mas reconheo que h nela um pouco de verdade. Tenho encargos, obrigaes, um papel para representar. O papel acarreta uma obrigao? A obrigao o cria. Basil Yanko est no mesmo barco. Ele um gnio. Uma vez reconhecido, precisa justificar-se a todas as horas de todos os dias. como pensa ento tratar com Yanko, Sr. Arlequim?
Tenciono negociar, se for possvel, ganhar tempo para suas investigaes. Se no for possvel, irei desafi-lo e empenhar-me at o pescoo para cobrir a oferta dele. Espero que saiba que h muitos perigos implcitos no que estamos fazendo, Sr. Arlequim. Paul j me explicou. Tem uma esposa e um filho. Compreende que est arriscando a vida de ambos? Minha esposa aceita o risco, est disposta a corr-lo. Por qu? Porque algo que pode partilhar comigo plenamente. Foi difcil admitir tal coisa? Sabe perfeitamente que foi. Alguma coisa lhe difcil, Sr. Bogdanovich? Muitas. Quais? Por exemplo: passear ao sol e contemplar as moas, desejando-as; saber que, ao deitar-me com uma delas, acordarei gritando, por ter dormido com um cadver. Ver crianas e querer que fossem minhas, mas saber que no
posso atrever-me a ter filhos, pois os monstros ao final terminariam devorando-os. No nos devemos encontrar com muita freqncia, Sr. Arlequim. Tem razo. Compreendo os motivos. O Sr. Desmond funcionar como o elemento de ligao entre ns. Est certo. Quando for tratar com Basil Yanko, no se esquea de uma coisa: ele no compreende os palhaos e por isso os teme. Por qu? Ele nunca aprendeu a rir de si mesmo. E capaz de matar quem quer que ria dele. O que me faz sentir pena dele. Ele capaz de mat-lo por isso tambm. Fico satisfeito de t-lo conhecido, Sr. Arlequim. Lamento que o preo seja to elevado. apenas dinheiro. essa justamente a vergonha de tudo, Sr. Arlequim. O dinheiro a medida de um homem. Boa sorte. Obrigado, amigo. Eu que lhe agradeo. Mantenha-se em contato comigo, Sr. Desmond.
E ento ele se foi, um vulto alto e esguio, caminhando pela grama, com os dois sabujos a formarem o squito. George Arlequim ficou parado a observ-lo, em silncio, at que ele desapareceu alm de uma pequena elevao. Depois virou-se em minha direo e indagou: Como vamos contar a Julie, Paul? Acha que devemos faz-lo? Creio que sim. Eu estava presente quando ele contou. No o queria, mas ambos insistiram, como se eu fosse um intrprete, um dicionrio ao qual podiam recorrer para se explicarem um ao outro. Juliette fez poucas perguntas, no levantou nenhum protesto. Era como se ela compreendesse, pela primeira vez, todas as conseqncias de suas prprias atitudes agressivas. Arlequim, por outro lado, mostrou-se veemente e exaltado, como se tivesse experimentado uma revelao particular. Foi como se eu conversasse com um homem que voltou do outro lado, Julie, algum que compreendeu a continuidade das coisas, a terrvel repetio da maldade e da tragdia humanas. At hoje, voc e eu nunca
tivemos de enfrent-las. Agora somos obrigados a isso. E por algo intil, um banco, um simples repositrio de papis florins, francos, dlares. justamente isso o que eu desprezo, a coisa perecvel. Chegamos ao mundo sem ela e samos tambm sem ela. Mas compreendi tambm que se trata de algo com propriedades mgicas. Se a tiver nas mos, ter um gnio s suas ordens. isso o que homens como Yanko esto querendo: o gnio que pode extrair exrcitos dos dentes do drago. Mas ns dizemos que no! Somos os exorcistas do bem. Vamos dar trigo em vez de espadas. Vamos mesmo? o que estamos fazendo? No posso jur-lo. E, contudo, tambm no posso vender a lmpada e ficar de lado, observando os janzaros se erguerem do p. Mas por que no, Julie? Os janzaros guardaro a mim, a voc e ao menino. Por que nos deveremos importar com os outros, com os quais nunca nos importamos antes? Por qu, Paul? Eu estava muito cansado. Queria terminar logo aquela discusso e ir embora. Por que deveremos faz-lo? No sei muito bem. Porque ns...Por
Deus, isso mesmo! Porque um dia, antes de o sol se levantar, os canalhas estaro em minha porta, minha procura, porque tenho um nariz errado ou a pele errada, porque estou na lista errada e ningum sabe quem me ps nela. Quero ento ter amigos. Quero ter irmos e irms. Ponha-me no inferno e mais ainda hei de querer t-los! Acho que isso. Agora, vou embora, pois tenho muito trabalho a fazer. Encontro-o no banco depois do almoo, George. O garoto de Boston quer que voc segure a mo dele. Ao atravessar o saguo do Salvador, parei diante do telex, a fim de dar uma olhada nas cotaes. Entre os diversos nmeros, apareceu uma notcia: "Yanko faz proposta para compra de banco europeu. O Sr. Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated, anunciou esta manh que fez uma oferta de pagamento vista, na base de cem dlares por ao, para a compra da totalidade das aes de Arlequim et Cie., banco comercial sediado na Sua. A proposta, com um gio substancial, vlida por sessenta dias. O Sr. Yanko ressaltou que a estrutura de sua
organizao possibilita-lhe atender s exigncias da lei sua com relao s corporaes locais. O Sr. George Arlequim, presidente de Arlequim et Cie., acaba de receber alta do hospital, depois de uma grave doena, no estando disponvel para quaisquer comentrios. Outros acionistas confirmaram ter recebido a oferta, mas se recusaram a manifestar qualquer reao no atual estgio". Rasguei o pedao de papel, dobrei-o e entreguei-o a um porteiro, para que o levasse a George Arlequim. O servio custou-me um dlar. Mas, que diabo! O que era um dlar em comparao com todos aqueles janzaros brotandoem todos os quadrantes? Era meiodia e um lindo dia de primavera. Concentrei as minhas energias, ergui o queixo, endireitei os ombros e fui enfrentar nossos colegas no clube. Nos dez minutos iniciais, aps a minha chegada, ofereceram-me bebida suficiente para embalsamar um fara em lcool. Nos vinte minutos seguintes fui assediado por amigos, conhecidos e corpos sem nomes. Todos faziam as mesmas perguntas:
Esto vendendo? O gio existe mesmo? No a Yanko? Pelo amor de Deus, Paul, por que no nos procuram antes de tomarem qualquer atitude? Arlequim j est de p? A doena fatal? Ouvimos dizer... Eles tinham ouvido, imaginado, sonhado e continuariam a faz-lo, a cada novo boato que surgisse. Sabendo que no acreditariam, contei-lhes simplesmente a verdade: A oferta foi realmente feita. Existe de fato um gio. No, no vamos aceitar. E achamos que jogo sujo divulgar a oferta antes mesmo que ela seja discutida entre as partes interessadas. No, a doena no fatal. Arlequim j se recuperou e est lutando como um louco. Se no acreditam em mim, convidem-no para falar no prximo jantar dos associados. No sei o que me fez acrescentar a ltima frase, mas Herbert Bachmann ouviu-a e usou-a como pretexto para arrancar-me do meio da multido e levar-me para almoar em sua mesa. Herbert um lutador temvel, cujos antepassados andavam pelas ruas com as notas de cmbio enfiadas
dentro do chapu. Foi um negociador implacvel em seu tempo, mas nunca soube que tivesse cometido o menor deslize com quem quer que fosse. Eu preferia ter a garantia de seu aperto de mo do que as assinaturas, com firma reconhecida, da maioria de seus colegas mais novos. Suas perguntas foram contundentes, mas sua preocupao era genuna. Eu estava disposto a ser to sincero quanto me fosse possvel. O que acha desse tal de Basil Yanko, Paul? Ele um gnio. Mas tambm um homem perigoso e seu comportamento digno de uma pocilga. Mas talvez a me dele tenha visto algo de bom no filho, no ? Est bem, ele um porco. Arlequim subscreveu as aes de sua companhia e utiliza seus servios. Por qu? Porque, se no o fizesse, voc e os outros rapazes iriam roubar-lhe a conta. O que torna Arlequim um prostitudo como ns. A diferena que ele se prostitui com muito mais categoria, Herbert.
Eu entendo...A elegncia sua, a paixo pela preciso, igualzinho a um desses malditos relgios de cuco...Mas que histria essa que me contaram a respeito de um desfalque? No sei. O que foi que ouviu, Herbert? Vocs contrataram investigadores, no ? Onde foi que soube disso? Por a...No fique zangado, Paul. Sabe muito bem como so as coisas nesta cidade. Se voc der um belisco no traseiro de sua secretria, dez segundos depois a notcia j se espalhou. A situao est muito ruim? Este um almoo de negcios ou de prazer, Herbert? Para voc, Paul, pode ser de prazer. Para mim, de negcios. Vivo aqui. Participo de comits para tentar manter limpas as nossas atividades. muito difcil em certas ocasies, mas depois de Vesco e Cornfeld precisamos de Yanko assim como da peste bubnica. Seja franco comigo, Paul. Se Arlequim est precisando de ajuda, providenciarei para que ele a receba. Precisamos de sigilo, Herbert, de discrio absoluta. Pode estar certo de que de mim no ter outra coisa. A esta altura, j
deveria sab-lo. timo. O desfalque de quinze milhes de dlares. uma quantia considervel. Mas podemos dar um jeito. Quanto a isso, no h problema. A dificuldade que suspeitamos de que nossos computadores foram manobrados fraudulentamente. Isso bvio. Mas por quem? Os registros dizem que pelo prprio Arlequim. Achamos que foi Yanko. At que possam prov-lo, Paul, isso constitui um crime de injria. Eu sei. O fato que no mesmo dia em que me apresentou o relatrio sobre o desfalque, Yanko anunciou tambm que desejava comprar Arlequim et Cie. A proposta j foi formalizada: cem dlares por ao. E quanto vale realmente cada ao? Oitenta e cinco dlares...Talvez noventa, com um pouco de otimismo. A proposta no m. Nossos tcnicos calcularam o valor entre oitenta e trs e oitenta e sete dlares. Arlequim vai aceitar? No.
E os acionistas minoritrios? Alguns devem vender, por causa do gio. Outros vendero por terem ouvido o rumor de que algum deu um desfalque. Ento por que Arlequim no compra as partes dos acionistas minoritrios? Ele teria que se empenhar todo para fazlo. No pode pagar cem dlares por ao e ao mesmo tempo cobrir o desfalque de quinze milhes de dlares. E assim vocs tero Yanko no conselho... S por cima de nossos cadveres. At assim...Quais as providncias que Arlequim est pensando em tomar? Desculpe, Herbert, mas isto voc ter que perguntar diretamente a ele. o que farei. Diga-lhe que telefone esta noite para minha casa. Aqui est o nmero. Obrigado, Herbert. No me agradea, pois sou parte interessada. Tremo s de pensar em todo o poder e conhecimento armazenados dentro de uma mquina. No
se pode desencadear uma greve contra um computador, no se pode lev-lo ao banco dos rus. Mas um absurdo que um homem que voc nunca viu possa ler a qualquer momento informaes sobre o que voc costuma jantar e a maneira como faz amor com sua esposa. s vezes fico contente de ser um homem velho e poder assim evitar quase todas as conseqncias. Vamos pedir um conhaque, pois estou comeando a ficar mrbido. Passava um pouco das trs horas quando cheguei ao banco. Arlequim j estava l, despejando simpatia e ungentos no esprito contundido de Larry Oliver. Foi um desempenho admirvel, com lisonjas sutis, apelos tradio e ao cdigo dos cavalheiros, necessidade de resistir contra a invaso dos brbaros. Ao final, Larry ronronava como um gatinho, o leite pingando dos bigodes. L fora, na sala de reunies, Saul Wells orientava os trabalhos de dois aprendizes de gnio, que estavam comparando os impressos dos computadores com o relatrio de segurana.
Ele levou-me at a janela e, com melanclica admirao, disse: tudo to simples que at vergonha pegar o dinheiro. Foram trs instrues codificadas: a primeira, para fazer as dedues; a segunda, para que os lucros da provenientes ficassem numa conta suspensa; a terceira, para que fossem remetidos todas as segundas-feiras, por telex, para Zurique. As instrues originais foram transmitidas aos computadores no dia 1. de novembro do ano passado. J verificamos o livro de registros dirios da gerncia. O Sr. Oliver estava de frias na ocasio. Estava sendo substitudo pelo Sr. Standish, que no fez a menor referncia s instrues. Contudo, o Sr. Arlequim estava em Nova York nessa data. Esse o ponto nmero um. O nmero dois que a operadora do computador pediu demisso em janeiro, por motivos de sade. Temos o nome dela, Ella Deane, o nmero do seu registro no seguro social e seu ltimo endereo, em Queens. Vamos chec-la imediatamente. Agora, se eu pudesse conversar com o Sr. Arlequim... A conversa logo se transformou num interrogatrio cerrado, que
surpreendeu at a mim. Arlequim, no entanto, submeteu-se com uma resignao sorridente. Estivera realmente em Nova York na ocasio. Escrevera realmente memorandos e ditara cartas sobre diversos assuntos. Estavam todos arquivados, num arquivo trancado chave na casa-forte. Poderia mostr-los? Com prazer. Trouxeram o arquivo. Juntos, examinaram todos os documentos. Arlequim olhava cada um e depois o entregava a Wells, que o marcava com seu prprio cdigo. Todos versavam sobre problemas de orientao poltica de Arlequim et Cie. No havia nenhum que pudesse ser identificado ou mesmo interpretado como uma autorizao para a transmisso de instrues aas computadores. Saul Wells pediu ento que Arlequim escrevesse sua assinatura e sua rubrica meia dzia de vezes, em rpida sucesso. Mesmo quando escrita rapidamente, a letra era firme e arrojada, com um pequeno floreio de desafio ao final da ltima letra. Wells resmungou, com uma expresso infeliz. como atirar contra um celeiro a cinco metros de distncia...Eu
mesmo posso falsificar essa assinatura com cinco minutos de prtica. Vejam s! Durante cinco minutos, contados no relgio, ele praticou a assinatura de Arlequim, terminando por nos apresentar um fac-smile bastante aceitvel. Mesmo assim, ele ainda no estava satisfeito. Pediu o talo de cheques de Arlequim e preencheu e assinou um cheque de mil dlares. Levei-o para Larry Oliver e pedi que o rubricasse para ser descontado. Escrupuloso como sempre, Oliver verificou a data, a cifra, o nmero escrito em palavras, a assinatura. Depois rubricou o cheque e tocou uma campainha, chamando o chefe dos caixas. Tirei-lhe o cheque da mo. Desculpe, Larry, mas isto foi um teste. Este cheque falsificado. Tentamos a mesma coisa com o caixa, sendo o resultado idntico. Eu no pude resistir ao comentrio de que a reputao das melhores pessoas podia ser manchada sem que elas soubessem. Oliver teve pelo menos a delicadeza de assumir uma expresso de humildade. Wells estava se divertindo
com a situao. J Arlequim parecia profundamente infeliz. Mas este tipo de coisa pode acontecer a todo momento! Quantos milhares de assinaturas minhas no estaro rodando por a, em cartas, cheques e abonos de cartes de crdito? Isso um pesadelo terrvel! Mas bastante instrutivo. Saul Wells ficou subitamente pensativo. A assinatura muito fcil de falsificar. Por que ser ento que eles no puseram um memorando incriminador no arquivo, s para completar o quadro? Tenho a resposta para isso declarou Arlequim, enftico e recuperando um pouco de sua segurana. Todos sabem que eu jamais assinaria tal memorando. Seria passar por cima do gerente, coisa que eu nunca fao. Alm disso, a fraude foi repetida em outras filiais. No havia garantias de que eu fosse, por exemplo, a Buenos Aires. O melhor era deixar alguma confuso na fonte e fabricar uma certeza absoluta no local onde o dinheiro era recebido, o Union Bank, de Zurique. Saul Wells meteu um charuto novo no canto da boca e deixou-se
envolver por uma nuvem de fumaa. , deve ter sido isso mesmo. Mas assim a promotoria tambm tem uma explicao. algo, alis, em que temos de pensar, Sr. Arlequim. At agora j verificamos que pelo menos seis milhes de dlares foram desviados somente de Nova York. Cada um de seus clientes foi atingido pela cobrana de taxas ilegais. Qualquer um deles pode mover-lhe um processo aqui em Nova York. As acusaes podem ser derrubadas no tribunal, mas sero terrivelmente embaraosas. 3 Eram cinco e meia quando voltei ao meu apartamento. Havia trs recados minha espera: a Srta. Hallstrom pedia-me que me encontrasse com ela s oito horas em vez de sete e meia; o Sr. Francis Xavier Mendoza telefonara da costa do Pacfico; o Sr. Basil Yanko pedia-me que telefonasse para seu escritrio, antes das sete horas. Decidi que era melhor receber primeiro as boas notcias se que havia alguma , e por isso liguei para Mendoza. Ele se mostrou um pouco misterioso, mas animador:
sobre nosso conhecido comum...Eu lhe disse que trs amigos meus haviam-se queimado. Um deles um homem muito obstinado. Passou dois anos compilando um dossi. J o li. O material fascinante, embora nem tudo possa ser admitido como prova pela lei. Convenci-o a tirar duas cpias fotostticas, trancando uma num cofre e entregando-me a outra, que mandarei para voc por um portador de confiana. H pessoas na poltica e no Pentgono que adoram Yanko, enquanto outras o detestam como um veneno mortal. Fiz uma lista, que tambm lhe remeterei. Lembre-se de que eu lhe dei um aviso. Ao ler o documento, compreender o motivo. Como esto indo as coisas a em Nova York? Estamos sendo bastante pressionados. Era o que eu calculava. Acabei de ler a notcia. Se precisar de ajuda aqui na costa do Pacfico, pode contar comigo. Vaya con Dios! Desliguei, abenoando-o pela decncia que demonstrava num mundo co. Liguei ento para Basil Yanko. Por uns poucos momentos, pelo menos, ele mostrou-se quase humano.
Obrigado por telefonar-me, Sr. Desmond. Estou aguardando ansiosamente uma notcia do Sr. Arlequim. Ele trabalhou pouco hoje, mas est exausto agora. Isso natural. Pensei em telefonar-lhe, para apresentar-lhe meus respeitos. Sugiro que espere at amanh de manh. Claro. Madame Arlequim, est passando bem? Est sim, obrigado. Leu a notcia que distribumos imprensa? Li. Algum comentrio? Nenhum. Meu superior j assumiu o controle da situao. O que o correto. Mas hoje o senhor fez alguns comentrios imprprios em seu clube. O que eu disse em meu clube, Sr. Yanko, no de sua conta. Posso reproduzir literalmente suas palavras, Sr. Desmond: "No vamos aceitar. E achamos que jogo sujo divulgar a oferta antes que ela seja discutida entre as partes interessadas". A oferta foi discutida com o senhor, na
qualidade de diretor de Arlequim et Cie. Sua declarao pode ser considerada como passvel de ao judicial, Sr. Desmond. Na base do que ouviu de um informante? Duvido muito. Mas, se quiser dar-me o nome dele, ficarei feliz em confront-lo com o comit diretor do clube. Mais alguma coisa, Sr. Yanko? Tenho um compromisso para o jantar. S mais um pequeno problema, Sr. Desmond. Arlequim et Cie. aplicou uma parte de nossos fundos para investimentos. E creio que bem lucrativamente. verdade. Mas as transaes referentes a esses fundos foram oneradas por comisses fraudulentas. Nossos advogados afirmaram que existem bases para aes civil e criminal. Ento no tenho a menor dvida de que discutir o assunto amanh com o Sr. Arlequim. Boa noite, Sr. Yanko. Bati o telefone e amaldioei-o. Estava furioso comigo mesmo. Eu, um veterano de mais de uma centena de incurses no mercado, com cicatrizes nas costas e lucros no banco, saltando
como o co de Pvlov quando Yanko apertava o boto de choque. Era a mais simples de todas as tcnicas de terror: o informante onipresente, a advertncia imediata, a ameaa de destruio ao virar a esquina. Subitamente ca na risada, andando rapidamente pelo apartamento como um estudante, a jogar almofadas para o ar e a gritar para Takeshi que me trouxesse uma bebida, preparasse um banho, arrumasse meu melhor terno, reservasse uma mesa no Cote Basque, pedisse uma limusine na Colby Cadillac e mandasse entregar rosas Srta. Valerie Hallstrom, antes das oito horas. Aquilo era completamente errado, num mundo faminto. Mas, se eu poupasse o dinheiro e o aplicasse atravs dos computadores de Yanko, haveria um gro a mais no prato de arroz de um indiano? Sabia que no haveria. Disse a mim que no estava preocupado. Mas, l no fundo, havia a convico de que, se um homem ao telefone podia fazer-me procurar refgio, assustado, na cama, ento estava na hora de largar as cartas em cima da mesa e ir estourar os miolos no primeiro beco disponvel.
Estava me barbeando quando me lembrei de que tinha de ligar para Bogdanovich. Por um momento senti-me tentado a deixar isso de lado, mas depois pensei melhor e mudei de idia. Disquei o nmero que me fora dado, apresentando-me como Weizman. Um momento depois, Bogdanovich estava ao telefone. De onde est chamando? De meu apartamento. Foi avisado de que deveria usar um telefone pblico. Eu sei. Mas muito tarde e tinha me esquecido de telefonar. Desta vez est com sorte, pois eu j ia entrar em contato com o senhor. H um homem vigiando a porta de seu prdio. Agente seu? H um meu e um outro. Ele est estacionado do lado esquerdo da rua, num Corvette verde. Isso um embarao, pois vou jantar com a dama sobre a qual conversamos. Qual o programa? s sete e quarenta e cinco uma limusine estar diante de meu
edifcio. Fiquei de apanh-la s oito horas. Vamos ao Cote Basque. Mude a ordem. Telefone para ela e diga que vai se atrasar um pouco. Mande a limusine apanh-la e lev-la ao Cote Basque. Quanto ao senhor, dever caminhar at o Saint Regis e entrar no King Cole Bar, onde receber uma mensagem. Depois poder seguir para o Cote Basque. Entendido? Perfeito. Mas o que me diz de lev-la para casa? Em que casa est pensando? No apartamento dela, espero. Se houver algum problema, ns o avisaremos. Seno, aja normalmente. uma instruo bastante objetiva. Nem tanto assim. O apartamento dela territrio inimigo, at termos a oportunidade de examin-lo centmetro por centmetro. Com espelhos de duas faces e microfones ocultos nas azeitonas dos martnis, no ? Fico contente ao verificar que ainda pode rir. Por isso vou contarlhe uma piada. O homem que est no Corvette verde Bernie Koonig. Ele j
matou dois homens e uma mulher. Divirtase, Sr. Desmond. A medida da loucura da Amrica foi o fato de que a notcia me deixou consideravelmente assustado, mas no me causou realmente nenhuma surpresa. Quando um socilogo respeitado escreve com o maior desembarao sobre "nveis aceitveis de violncia", quando um astro da televiso pode entrevistar um homem mascarado que alega ter matado trinta e oito pessoas, sob contrato e na maior impunidade, no restam muitas surpresas, apenas a difuso do terror, como se as paliadas tivessem sido derrubadas e as bestas selvagens rondassem livremente pelo enclave humano. Por isso, fiz exatamente o que me mandaram. Ao sair do edifcio, vi que o Corvette verde estava bloqueado junto ao meio-fio por uma radiopatrulha. Dois guardas tinham obrigado o motorista a se debruar em cima do capo. Eu, macaco velho, nada vi, nada ouvi. Caminhei at o Saint Regis e sentei-me no King Cole Bar, esperando at que um recmchegado empurrasse o pratinho de amendoins na minha direo e
murmurasse o aviso de que eu j estava livre para seguir em frente. Quando cheguei ao restaurante, Valerie Hallstrom j estava acomodada, com um coquetel sua frente e conversando com o maltre. Deu-me um sorriso caloroso e um aperto de mo de boas-vindas. Agradeceu-me pelas flores e mostrou-se indulgente para com meu atraso. Conversamos sobre assuntos superficiais durante os coquetis e enquanto escolhamos os pratos. Quando a refeio foi servida, estvamos vontade. Eu repassava todo o repertrio das minhas histrias de viajante. Ela estava divertida e interessada, agradecida por aquela trgua nas invases convencionais de sua vida profissional. Depois de algum tempo, Paul, esta cidade comea a nos sufocar. tudo urgente, tudo impessoal, sem ter o menor sentido. Sou uma moa do interior. Meu pai ainda cria cavalos na Virgnia. No podia esperar o momento de sair de l e conquistar a cidade grande. Pois bem, eu o consegui, s que agora sonho cm voltar para casa. Mas isso no possvel, no acha? A casa da
gente no mudou, mas ns mudamos bastante. E voc, Paul? A minha casa onde penduro meu pergaminho kanji. Ainda no me contou essa histria. Contei ento. Falei da antiga lenda das mulheres que se transformavam em raposas, deixando seus amantes mutilados e desolados. Falei dos gravadores e dos ceramistas, dos maravilhosos artesos japoneses, da gente dos rios da Tailndia, do homem de Rangum que me ensinara a distinguir entre os rubis bons e os que no prestavam, da assombrosa beleza das selvas de Arnhem, com as pessoas de pele escura cantando ao redor das fogueiras. E quando terminei ela me perguntou: E o que voc agora? Um comerciante, um homem rico. Mas no apenas isso. Tem razo. Mas, se eu no tivesse comerciado, no teria viajado. E, se no tivesse viajado, no teria tudo isso. E como seu amigo Arlequim? George muito diferente de mim. Ele sabe das coisas. Possui a espcie de cultura pela qual eu daria meu brao. Conhece lnguas, histria,
pintura...Quando viajamos juntos, ele sempre est instantaneamente por dentro das coisas. Tenho que esforar-me ao mximo ou deixar que ele me leve. No ano passado, por exemplo, viajamos pelas ilhas gregas. Eu era o comandante do veleiro. Mas no momento em que tocvamos em terra, George imediatamente se punha a conversar com os pescadores, com o sacerdote local, com o antiqurio. Invejo-o por isso. Mas gosta dele? Como um irmo. E, no entanto, est sentado aqui, comigo. Como assim? Eu represento o inimigo, pois trabalho para Basil Yanko. O tempo inteiro? Quase. Mesmo quando vai ao bar de Gully Gordon? No, l no. E agora? Agora tambm no. Amanh, talvez. No sei. Yanko sabe que est jantando comigo? No. Se descobrisse, perderia meu emprego. Est brincando...
No, verdade. E jamais conseguiria outro emprego na rea. Aonde quer que eu fosse, ele continuaria atrs de mim. Tem uma ficha no sistema? Todos ns temos. assim que Yanko trabalha. Alis, creio que toda a grande indstria trabalha assim. A ficha segue-nos por toda parte, embora nunca a vejamos. E, enquanto ela existir, nunca se livre. Isso chantagem, tirania e escravido. Eu aceitei submeter-me. Para qu? Por setecentos e cinqenta dlares semanais e benefcios adicionais? Estou segura onde estou. Tem certeza? Esta noite havia um homem vigiando meu apartamento. Tenho razes para acreditar que foi contratado por Basil Yanko. A cor desapareceu do rosto dela. Deixou cair o garfo, estrepitosamente, e por um momento pensei que fosse desmaiar. Depois, com grande esforo, ela se recuperou. Isso verdade? . Oh, meu Deus!
Relaxe, mulher. No fui seguido at aqui e voc tambm no. Foi por isso que mudei um pouco o que havamos combinado. Temos tambm nosso prprio sistema de proteo, funcionando dia e noite. Vamos, agora tome seu vinho...Assim est melhor! O que quer que Yanko possa fazer contra voc, no pior do que esse terror permanente. Por favor, no quero mais conversar sobre esse assunto. Est certo. Mas agora podemos fazer um joguinho. Digo para voc: "Valerie Hallstrom, conte-me seu segredo sombrio e eu a libertarei e a protegerei". Voc ento diz para si mesma: "Est vendo? Ele quer apenas usar-me". Est mais segura com o diabo que j conhece. Ento eu tento persuadi-la. Voc recusa. E de manh, volta para o escritrio e conta tudo a titio Basil, que a pune um pouco, mas depois a consola e a manda de volta ao trabalho, penitente mas feliz, para escrever um relatrio confidencial para o crebro...Portanto, o melhor no fazermos esse joguinho, no acha? Vamos tomar caf e um calvados e em seguida eu a
levarei para casa na minha reluzente limusine, deixando-a segura e inocente em sua porta. Voc um miservel, Paul Desmond. No, Valerie, voc continua enganada. Aquele meu irmo gmeo. Mais uma vez a observao provocou um sorriso ligeiro e incerto. Ficamos sentados em silncio, de mos dadas, contemplando o torvelinho de garons em torno das mesas e tentando ler as expresses dos outros fregueses, antes de termos coragem para tentar novamente ler a expresso um do outro. Trouxeram-nos caf e o calvados. Enquanto tomvamos o licor forte, Valerie Hallstrom disse: Devo avis-lo, Paul, de que Basil Yanko um homem bastante perigoso. Eu j sabia disso. E George Arlequim uma obsesso para ele. Por qu? Acho que pelas mesmas razes pelas quais voc o admira. Arlequim j nasceu com sorte; um homem altamente civilizado e as pessoas sentem-se atradas por ele. Yanko teve que arrastar-se para fora de uma favela de
Chicago. Ele um gnio, um grande gnio, mas tambm rude e feio. Ele como um sapo com uma coroa de ouro na cabea c sabe disso. isso o que o torna perverso e cruel. A princpio eu sentia pena dele. Por algum tempo, cheguei a pensar que estivesse apaixonada por ele. No acha romntico? E a linda princesa beijou o sapo feio e ele transformou-se num belo rapaz... S que isso no aconteceu, no mesmo? No. E por isso que voc vai ao bar do Gully Gordon, noite aps noite? E no pode apaixonar-se porque o sapo-rei est sempre presente, rindo, porque sua vida est presa em seu crebro mecnico. Isso no nenhuma brincadeira, Paul. E por acaso est me ouvindo rir? Acho que est na hora de irmos embora. Se esta fosse uma histria de amor o que no ! , eu contaria agora como fomos at seu apartamento e ela convidou-me a entrar, como danamos ao som de msica suave e depois fizemos amor at que os pardais comeassem a cantar pela manh, como eu tinha todos os segredos de Basil
Yanko em minhas mos ao partir. A um quarteiro de seu apartamento, Valerie pediu que o motorista parasse o carro. Queria seguir a p o resto do caminho. Ofereci-me para acompanh-la. Ela recusou com um sorriso e com um comentrio enigmtico: Algumas vezes Deus gosta de saber como os seus filhos passam suas noites. Obrigada pelo jantar e boa noite, Paul. Ela beijou-me rapidamente no rosto e saiu do carro. Mandei que o motorista a seguisse lentamente at a casa, a fim de mant-la a salvo de assaltantes e viciados. Depois que a porta do prdio se fechou atrs dela, atravessei a cidade e fui at o bar do Gully Gordon, onde fiquei sentado entre os meus pares, ouvindo a msica triste e suave, at uma hora da madrugada. E nas horas frias da madrugada tive um sonho. Vi uma plancie imensa, circular, inteiramente vazia, iluminada por uma lua fria. E no centro dessa plancie, pequeno e solitrio, havia um vulto agachado. Eu no podia dizer se era humano ou animal. Sabia apenas que me sentia atrado por ele com um
anseio profundo, sendo porm contido por uma ameaa visvel. Em torno dos limites externos da plancie circular havia uma multido de cavaleiros, alguns negros, recortados contra a lua, outros brancos como fantasmas ao seu brilho. Ao lado de cada cavaleiro havia um co, completamente imvel. Estavam a uma distncia incomensurvel, mas eu podia v-los nitidamente, como se estivessem ao alcance de minha mo. Os cavaleiros no tinham rostos, apenas mscaras, vazias como cascas de ovos. Tentei distinguir as feies do vulto agachado, mas meus olhos pareciam comprimidos e eu no conseguia focaliz-los. Ento os cavaleiros e os ces comearam a se deslocar, lentamente, em ritmo de funeral, convergindo inexoravelmente para o vulto solitrio. Os cavaleiros estavam em silncio, os ces no latiam. No se ouvia o menor rudo dos arreios ou das batidas dos cascos. O vulto moveu-se, espreguiouse, levantou-se. Era uma mulher nua, que se virou lentamente, girando como um manequim num pedestal, at que seu rosto me ficasse visvel. Era Valerie
Hallstrom, sorridente, sedutora, indiferente ao perigo que corria. Senti-me dominado por um intenso desejo sexual. Chamei-a, mas nenhum som saiu de minha boca. Tentei alcan-la, mas fui contido por mos gigantescas. E ento os cavalos iniciaram um galope desabalado, com os ces pulando em seus flancos. Senti, mais do que ouvi, os gritos para aular os ces, os latidos, a terra tremendo sob os cascos dos cavalos, o tropel irresistvel para esmag-la... Eu estava iniciando os primeiros rituais do meu despertar quando Saul Wells telefonou. Ele estava excitado e loquaz. Quase podia ver-lhe o charuto no canto da boca, pois ouvia-o perfeitamente mastig-lo. E misteriosamente o cheiro impregnou meu quarto. O que h, Saul? Ella Deane. Quem? A tal moa do computador, a que deixou o emprego em janeiro, por motivo de sade. Ah, sim...O que h com ela, Saul? muito triste e muito ruim para ns: ela morreu.
Quando? Duas semanas atrs, num acidente. Foi atropelada e o carro fugiu. O que diz a polcia? A mesma coisa de sempre. As investigaes prosseguem. No acha que a morte dela foi bastante conveniente para algum? Como sempre acontece. Mais alguma coisa? S uma confirmao. Os nossos agentes comeam a agir em todas as outras filiais amanh. Est trabalhando rpido, Saul. Obrigado. E mais uma coisa: Ella Deane morreu rica. Quanto? Com trinta mil dlares, aproximadamente. Onde foi que ela os conseguiu? E quando? o que estamos procurando descobrir. O impossvel demora mais um dia. Ficarei em contato. Ciao. Pouco depois, enquanto limpava a gema de ovo que respingava em meu queixo, Aaron Bogdanovich chegou, vestido como entregador e com uma cesta de flores nas mos.
As flores acrescentam fragrncia vida, Sr. Desmond. No pensei que se importasse com tais coisas, Sr. Bogdanovich. Conte-me o que aconteceu na noite passada. A pergunta foi formulada bruscamente, como se ele esperasse surpreender-me e assim levar-me a alguma confisso inesperada. Nada aconteceu. Jantamos, conversamos. Ela me disse que perderia o emprego se Yanko soubesse que se encontrara comigo em particular. Disseme tambm que j esteve apaixonada por ele, mas o caso terminou mal. Avisou-me de que ele era um homem perigoso e obcecado com relao a George Arlequim. Depois pediu-me que a levasse para casa e insistiu em percorrer a p, sozinha, o ltimo quarteiro. Ns a seguimos na limusine. Depois fui ao bar de Gully Gordon, para tomar um ltimo drinque antes de dormir. E como foi que voltou para casa? Na limusine. A que horas? Uma e quinze. Pode prov-lo?
Claro. Assinei o registro do motorista. Takeshi ainda estava acordado quando cheguei. Tomei um banho de chuveiro, vesti o pijama e ele serviu-me uma xcara de ch antes que eu me deitasse. Mas por que todas essas perguntas? Valerie Hallstrom est morta. Foi assassinada logo depois que chegou a casa. Deus Todo-Poderoso! Espero que consiga assumir a mesma expresso chocada quando a polcia lhe transmitir a notcia. A polcia? No estou entendendo... Ns dois, Sr. Desmond, fomos as ltimas pessoas a v-la com vida. Sobrou um pouco de caf? Sirva-se vontade. Olhe, vai ter que voltar ao princpio. Estou inteiramente perdido... Ele deu-me aquele seu sorriso tpico, frio e sepulcral, servindo-se de caf, creme e acar. S depois que me disse: Enquanto vocs dois jantavam, fui casa de Valerie Hallstrom. J a viu, do lado de fora. um desses prdios cinzentos e antigos com um poro e
trs andares. Ela dona de todo o prdio e tudo l dentro muito caro. H um Matisse no quarto e um Armodio no salo. H muitas porcelanas de Dresden e muitas coisas do que acredito chamarem de bijouterie. O armrio est repleto de casacos de peles e vestidos de alta moda. Ela possui dois telefones, sendo que um no consta do catlogo. O que est no catlogo est sendo vigiado. O outro est escondido dentro do armrio, por trs das roupas, onde existe tambm um cofre de parede, que consegui abrir. Depois lhe direi o que encontrei l dentro. Demorei-me de oito e meia at as nove e meia nessa inspeo. s nove e meia o telefone do catlogo tocou. Esperei at que parasse e depois sa do prdio, pelo poro. Sentei-me em meu carro, estacionado do outro lado da rua, e fiquei esperando. Por volta das dez e meia um homem entrou na casa, levando um pequena valise. Usou uma chave e no saiu mais, nem acendeu qualquer luz. Esperei at que Valerie Hallstrom chegasse a casa. Vi-o passar na limusine, e logo se acenderam, dentro da casa, as luzes da sala de estar e do quarto. No pude ver o interior, porm, porque
as cortinas estavam fechadas. Cerca de dez minutos depois o homem saiu, carregando ainda a valise. Saiu caminhando para oeste e eu o segui. Fez ento sinal para um txi e embarcou. O txi avanou o sinal no primeiro cruzamento, por isso perdi-o de vista. Mas anotei o nmero da placa. Parei ento numa cabine telefnica e liguei para Valerie Hallstrom. Ningum atendeu. Voltei para a casa. As luzes continuavam acesas. Entrei e encontrei-a no cho da sala de estar. Levara um tiro na cabea. O eplogo bastante simples. Voltei cabine telefnica e avisei a polcia. Eles ainda estavam trabalhando quando passei por l esta manh. Fico imaginando o que teria acontecido se voc tivesse entrado na casa junto com ela. Quem era o homem? Reconheceu-o? No. Mas tenho certeza de que o reconheceria imediatamente, se o visse de novo. O que encontrou no cofre? Dinheiro. Cerca de vinte e cinco mil dlares. E tambm um arquivo de impressos de computador. Havia um caderninho com uma relao de
empresas e os respectivos cdigos de computador. Todas as filiais de Arlequim et Cie. esto relacionadas, com os seus prprios cdigos. Creio que todas as outras companhias relacionadas so tambm clientes da Creative Systems. Tirei o caderninho e deixei o resto. O senhor...O qu? preciso ter algo para se negociar, Sr. Desmond. No tnhamos nada antes. Agora temos, num cofre absolutamente seguro. Mas nada disso tem sentido. Pelo contrrio, Sr. Desmond, vai descobrir que tem muito sentido. Suponhamos que a Srta. Valerie Hallstrom estivesse agindo por conta prpria, extraindo informaes dos computadores e vendendo-as a gente de fora. Suponhamos que Yanko tenha descoberto. O que faria ele? Mandaria prend-la. E permitiria que fosse levada a julgamento, expondo publicamente a fraqueza de sua organizao? Isso seria um golpe terrvel para a Creative Systems e para o prprio Yanko. Ele levaria anos para recuperar-se. No, Sr. Desmond, existem precedentes, precedentes demais. Algumas empresas
chegaram at mesmo a subornar os empregados corruptveis e ofereceramlhes as melhores referncias para arrumarem outro emprego, preferindo agir assim a process-los e depois enfrentar prejuzos no valor de alguns milhes de dlares. Mas eu no creio que seja esse o caminho que Yanko escolheria. O que acha? Concordo com sua opinio. Portanto, ele deve livrar-se desses empregados pelo mtodo mais barato. O cofre foi encontrado vazio. A polcia pensa que a Srta. Hallstrom surpreendeu um intruso em sua casa e foi alvejada. Isso acontece todos os dias com mulheres ricas que vivem sozinhas. E o estilo de vida da Srta. Hallstrom contribui para reforar a histria. Mas ns sabemos... Eu sei, Sr. Desmond. Mas tudo o que lhe contei um conto de fadas, que ir esquecer no momento em que eu partir. Esse foi o nosso acordo, lembra-se? Mais tarde, quando encontrar o homem que matou a Srta. Hallstrom, veremos o que melhor. E acha que ir encontr-lo? Tenho certeza absoluta, Sr. Desmond. A profisso prima pela
discrio, mas os bons profissionais so todos bastante conhecidos. Eu o descobrirei. Ele saiu sorrindo, mas deixou atrs de si uma baforada de enxofre e uma amostra do que era o inferno. E, lentamente, vi-me forado ao mesmo dilema em que se encontrava George Arlequim. ramos banqueiros, limpvamos todo o dinheiro que passava por nossas mos. Mas no conseguamos fugir mancha que aparecia no dinheiro. Foi ento que George Arlequim telefonou, enrgico e objetivo, to diferente de sua personalidade habitual que nem eu mesmo pude adivinhar qual o papel que escolhera para desempenhar naquele dia. Paul? Importa-se de vir agora para o Salvador? Poderia chegar dentro de vinte minutos? Vou almoar com Herbert Bachmann e gostaria antes de conversar com voc. s trs horas Basil Yanko tambm vir aqui. Gostaria de que voc estivesse presente ao meu encontro com ele. At l, h outras pessoas que esto ansiosas por falarlhe... Meia hora? Tente chegar antes, se lhe for possvel. Oh, s mais uma coisa: importa-se de levar Juliette
para almoar? Ela est comeando a ficar cansada de minhas sucessivas reunies e no posso culp-la por isso. Obrigado, Paul. bientt. As pessoas que desejavam ver-me eram dois jovens e muito bemeducados detetives do Departamento de Polcia de Nova York. Explicaramme, em frases alternadas, que haviam ligado para o banco, sendo encaminhados ao Sr. Arlequim, que delicadamente consentira em chamar-me. Esperavam, sinceramente, que no representasse muita inconvenincia para mim. Assegurei-lhes que isso absolutamente no acontecia. Ser que o Sr. Arlequim no se importaria de deix-los a ss comigo por um momento? Arlequim se importava. E muito. Disse-o em frases extremamente diplomticas. Eu era seu amigo de longa data, diretor de absoluta confiana, representante de um banco internacional. Estvamos pisando uma propriedade do referido. E os dois estavam calcando tambm sua dignidade. A menos que eu, especificamente, expressasse o desejo de que ele se ausentasse, continuaria ali na sala. No foi uma argumentao muito longa,
mas proporcionou-me o tempo necessrio para equilibrar meu esprito aturdido e planejar um relato simples e objetivo. Deixei meu apartamento quando faltavam quinze minutos para as oito horas e caminhei at o Saint Regis. Por volta de oito e quinze segui para o Cote Basque, onde jantei com uma moa. Deixamos o restaurante de carro por volta das onze e meia. Deixei a moa em casa e o motorista levou-me para o bar de Gully Gordon, na First Avenue. Fiquei l at uma hora da madrugada, quando o motorista me levou para casa. Meu criado pode confirmar minha chegada, por volta de uma e quinze. Ele estava preparando um lanche para si e eu comi tambm...Agora posso saber qual o motivo para essas perguntas? Tenha um pouco mais de pacincia, Sr. Desmond, por favor...Disse que jantou com uma moa. Como se chama ela? Valerie Hallstrom. Conhece-a h muito tempo? Trs dias. A Srta. Hallstrom trabalha para a Creative Systems
Incorporated,
cujos sistemas utilizamos e da qual somos acionistas e banqueiros de investimentos. Ela preparou um relatrio sobre nossas operaes de computao e encontramo-nos para discutilo. Foi bastante prestimosa e deu todos os esclarecimentos necessrios. Convidei-a ento para jantar. Mas no foi busc-la em sua casa? ' No. Mandei o carro apanhla. Alguma razo para isso? Era mais simples e eu queria esticar um pouco as pernas, pois tinha passado quase o dia inteiro sentado. Disse que acompanhou a Srta. Hallstrom at a casa dela. Ela no o convidou para entrar? Muito pelo contrrio. Pediu-me que a deixasse a um quarteiro de sua casa. No achou isso estranho? Muito. Mas, por outro lado... O qu, Sr. Desmond? A Srta. Hallstrom uma conhecida de negcios. No tenho o menor conhecimento de sua...vida particular. Nova York uma cidade estranha, por isso achei melhor acatar seu capricho e no fazer pergunta alguma. Pedi ao
motorista que acompanhasse a Srta. Hallstrom at a porta de sua casa. S depois que a vimos entrar em segurana foi que nos afastamos. Tenho certeza de que poder confirmar tudo isso com a empresa onde aluguei o carro e com o motorista que o dirigia. Quais sero seus movimentos nos prximos dias, Sr. Desmond? Isso depende inteiramente do Sr. Arlequim. O que nos diz, Sr. Arlequim? impossvel definir qualquer coisa neste exato momento, senhores. Estamos empenhados em algumas negociaes internacionais, altamente delicadas. Podemos ficar aqui durante uma semana inteira. possvel tambm que, a qualquer momento, tenha que mandar o Sr. Desmond para a Europa ou para a Amrica do Sul. Um dos detetives tirou do bolso um envelope pardo, abriu-o e pegou l de dentro duas fotografias, entregando uma a Arlequim e outra a mim. Embora eu j estivesse preparado, senti um choque de repugnncia e horror. Valerie Hallstrom parecia uma boneca desengonada, estendida no
cho de sua sala de estar, o rosto, uma massa ensangentada. O detetive tirou a fotografia de minhas mos. Ela levou um tiro, Sr. Desmond. queima-roupa, com uma pistola de calibre 38. Eu...eu no entendo...Quando? Como? Estamos investigando. Importa-se, Sr. Desmond, se dermos um pulo a seu apartamento para conversarmos com seu criado e verificarmos seus pertences? Em absoluto. Mas certamente no esto pensando que... apenas rotina, Sr. Desmond. Ir ajudlo tambm. Tem razo. Esperem um momento, senhores! George Arlequim levantou-se, um homem de ferro, dominando a todos ns com sua presena. Sou testemunha desta entrevista. O Sr. Desmond respondeu livremente a todas as perguntas que lhe fizeram. Ofereceu-lhes tambm livre acesso a seu apartamento, sem um mandado judicial. Relatou-lhes os fatos e os meios de comprov-los. Agora, porm, estou precisando dos servios do
Sr. Desmond. Desejo que ele permanea aqui, para algumas reunies de negcios, que envolvem os interesses urgentes de clientes internacionais. Portanto, com toda a deferncia devida autoridade policial, gostaria de fazer uma sugesto: que o Sr. Desmond telefone para seu criado e o instrua para deix-los entrar no apartamento. Ele permanecer aqui, disposio, caso queiram interrog-lo novamente...E ento, senhores, o que me dizem? Eles pertenciam nova raa de policiais, cautelosa, educada e racional. Depois de uma rpida conferncia, terminaram concordando com a sugesto. Telefonei para Takeshi e entreguei as chaves do apartamento aos dois detetives, prometendo esperar no Salvador at que eles voltassem. Quando Arlequim e eu ficamos sozinhos, ele perguntou-me abruptamente: Voc deixou algo de fora, Paul. O que foi? Nada, George. Ele ficou magoado, mas procurou no demonstr-lo. Disse apenas, calmamente:
Lembre-se apenas de que no precisa comprometer-se por minha causa, Paul. No me estou comprometendo em nada, George. Vamos esquecer o assunto? Voc vai encontrar-se com Yanko esta tarde. O que pretende dizer-lhe? Vou recusar a oferta. E o que far ento? Vou exercer meus direitos de opo e comprar as partes dos acionistas minoritrios. Mas no tem condies de faz-lo. Herbert Bachmann acha que pode levantar os recursos necessrios. Vamos discutir o assunto durante o almoo. Mesmo que ele o consiga, voc ficar endividado durante dez anos. E com o custo elevado do dinheiro, como est atualmente, talvez demore ainda mais. Alm do mais, Yanko pode aumentar sua oferta. Sabe perfeitamente que isso possvel, se ele negociar com aes da Creative Systems em vez de dinheiro. H um limite para o que at mesmo Herbert Bachmann pode fazer em Wall Street, sem assustar o mercado.
Ento vamos descobrir que limite esse, Paul. E vamos procurar tambm determinar quanto tempo poderemos ganhar para nossas outras operaes. Creio que Bogdanovich poder surpreender-nos. H uma coisa que ele deixou bem claro, George: no quer que voc tenha uma confrontao com Yanko, pelo menos por enquanto. Arlequim ficou irritado. Sua resposta foi spera e categrica: Estamos pagando para receber informaes, ajuda e assistncia. Como usar tudo isso, eu que decido. Recuso-me a permitir que me manipulem. No vamos comear a discutir, George. O dinheiro seu. Mas no se esquea de que no estamos na Europa e que o cenrio americano est bastante turvo neste momento. Ento vamos ser bem claros, Paul: o risco meu, a deciso minha. Vai precisar de minha presena no encontro com Yanko? Vou. Eu lhe disse que voc estaria presente. Convidei-o a trazer tambm um dos seus diretores, se assim o desejasse. Ele disse que no
precisava da ajuda de ningum, mas que compreendia perfeitamente que eu ainda estava sob cuidados mdicos. Filho da me arrogante! Mas isso bem que ajuda, Paul. No posso mais curvar-me diante dele. Estou comprometido. Com tudo o que sou, com tudo o que tenho. Se homens como Yanko controlarem as mquinas, no restar a menor esperana para nenhum de ns. Como Julie est se sentindo? Estamos agora mais ligados do que nunca. Mas algumas vezes eu me pergunto se ela no seria mais feliz se tivesse casado com um homem mais simples... Aquele era um terreno perigoso e eu no queria pis-lo. Antes que tivesse tempo de formular um comentrio, o telefone tocou. George Arlequim fez-me um sinal para que atendesse. Era Basil Yanko. Sr. Arlequim? No. Paul Desmond quem est falando... Como vai, Sr. Desmond? Como sabe, temos uma reunio marcada para esta tarde. Infelizmente, porm, estou envolvido num acontecimento
trgico, relacionado com uma das minhas funcionrias. Ser que no poderamos transferir a reunio para amanh? Certamente. Falarei com o Sr. Arlequim. mesma hora, aqui no Salvador? Obrigado... Ele hesitou por um momento, mas logo continuou: Nas circunstncias, acho que melhor inform-lo de que a funcionria em questo a Srta. Valerie Hallstrom. Ela foi assassinada ontem noite. Eu j sabia. A polcia veio procurar-me. Vi at as fotografias. mesmo, Sr. Desmond? Ou ele era um magnfico ator ou ento estava realmente chocado. No estou entendendo... Jantei com a Srta. Hallstrom ontem noite. Aparentemente, fui a ltima pessoa a v-la com vida. Ela disse alguma coisa? Viu...? No, Sr. Yanko. A polcia j est de posse das poucas informaes que pude fornecer. Estou bastante deprimido. Gostaria de que houvesse algo
que eu pudesse dizer ou fazer...Bem, Sr. Yanko, at amanh. At amanh... A voz dele foi-se apagando num murmrio vago. Adeus, Sr. Desmond... Quando desliguei, Arlequim perguntou-me suavemente: Acha que agiu com sensatez? No pude evit-lo. Ele ficou perturbado? Acho que sim. Pelo menos o que eu espero. Creio que voc deveria entrar em contato com nosso amigo Bogdanovich. Prefiro esperar at que a polcia termine de revistar meu apartamento. Os dois detetives voltaram cinqenta minutos depois. Tinham revistado meu apartamento, falado com o motorista da limusine e conversado com Gully Gordon. Agradeceram-me a cooperao. Tudo de que precisavam agora era uma breve declarao assinada. Escrevia mo, em papel timbrado do Salvador, assinei-a e pedi a George Arlequim que assinasse tambm, como testemunha. Agradeceram-me novamente, declarando que esperavam no me
incomodar mais. Havia apenas mais um pequeno detalhe: eles desejavam saber por que eu no mencionara meu encontro com Valerie Hallstrom no bar de Gully Gordon. Contei-lhes um pouco de verdade e um pouco de mentira. O encontro fora acidental e sem o menor significado. Eles compreendiam, claro. O que eu no havia compreendido que moas que freqentam bares desacompanhadas encontram com freqncia companheiros de cama bem estranhos. Concordei em que isso era bem possvel, mas que esperava que no se estivessem referindo a mim. Claro que no. Mas mesmo o solteiro mais respeitvel dificilmente consegue provar que dormiu a noite inteira em sua prpria cama... George Arlequim zombou do meu embarao. Convenceu os dois detetives de que j estavam de folga e bem que podiam aceitar um aperitivo, antes do almoo. Eu no me sentia absolutamente animado, mas consegui ensaiar um sorriso de solteiro feliz, contando uma historinha escabrosa sobre os dias de minha juventude em Tquio. Quem nos ouvisse rir, no teria
imaginado que framos todos reunidos por um assassinato. Juliette voltou uma hora da tarde, corada e alegre, depois de uma manh inteira a correr Nova York como uma mocinha. Fora ao cabeleireiro, tomara caf com uma amiga e fizera compras. Ficou deliciada ao saber que eu a levaria para almoar no Fleur de Lys. Julie, quando est bem disposta, ainda capaz de fazer os homens virarem a cabea para admir-la. E a minha se vira mais facilmente ainda que a da maioria. Descemos pela Fifth Avenue, de braos dados. Paramos para ver as vitrinas da Bergdorfs, da Van Cleefs e da Harry Winston's. Brincamos de "Voc se lembra..." e "No seria maravilhoso se ..." Bebemos martnis imensos e analisamos o cardpio como se aquela fosse nossa ltima refeio. Enquanto comamos, fizemos planos para uma noitada no teatro e para um passeio de carro pelo campo no domingo. Conversamos sobre um coquetel para receber os amigos e os colegas e discutimos qual seria a melhor mulher para me fazer par. A conversa era agradvel e divertida e eu no me importava em aliment-la, se isso a deixava feliz.
Ela de nada sabia sobre o drama da manh e no seria eu quem iria inform-la. George Arlequim queria tomar suas prprias decises. E uma delas era determinar o quanto sua esposa deveria saber. Alm disso, eu estava comeando a ficar cansado do papel de padrinho, de amigo da famlia, de pauparatoda-obra. Meu dinheiro estava comprometido, a polcia estava se intrometendo em minha vida particular, havia pessoas respirando audivelmente em meu telefone. Enquanto isso, tudo o que eu queria era ser um homem sem compromissos, saindo francesa quando as mulheres eram muito feias ou quando a bebida se acabava. No era pedir muito. Ao final da refeio, descobri que absolutamente no podia compreender as mulheres. Na hora da sobremesa, Juliette cansou-se da conversa superficial e quis fazer-me uma confisso: Estou feliz, Paul, feliz como h muito tempo no me sentia. George est ficando mais forte a cada dia que passa e est gostando da batalha. Somos mais francos um com o outro. Agora, quando est cansado, ele fica irritado.
Houve um tempo em que ele se mostrava to suave e delicado que eu pensava que nem mesmo um furaco poderia aballo. Gosto mais dele assim. E tambm torna-se mais fcil conviver... Se estivesse na mesma situao que eu, o que diria voc? Que estava na maior satisfao, que tinha certeza, o tempo todo, de que as coisas iam terminar dando certo, que o casamento nem sempre um mar de rosas. Tudo isso e mais alguma coisa. claro, porm, que isso no era suficiente, pois a confisso mal comeara. Vou ser bastante franca, Paul... Quando uma mulher diz que vai ser franca, o homem deve imediatamente sair correndo e esconder-se na primeira moita. Mas nunca o que a gente faz. Continua-se sentado no mesmo lugar, paciente, sorridente. Afaga-se a mo dela e se murmura algo simptico, preparando-se para ouvir pela centsima vez o canto da sereia. Sinto um cime imenso de George. Sou por demais insegura. Eu o amo desesperadamente, mas s o fato de ser casada com um homem como ele constitui uma ameaa constante. Ele sabe demais, sempre v tudo com
extrema lucidez. Sinto que me est avaliando a todo momento e sempre fico aqum das suas necessidades. Esta crise reuniu-nos, mas pode tambm lev-lo para mais longe ainda de mim, a um ponto em que no poderia segui-lo. Se ele for batido, ento estarei a seu lado para levant-lo, tirar-lhe a poeira, am-lo. Mas, se ele vencer, ento ficar novamente a um milho de quilmetros de mim. Voc est me entendendo, Paul? Era uma pergunta tola. Por que mais eu estaria ali se no fosse para compreender e calar o que no se podia dizer? Que Julie Gerard casara-se com um homem abenoado, que podia no estar feliz mas tinha que continuar em frente, at descobrir se o marido era ou no capaz de descer ao inferno como o resto de ns. Mas no se pode dizer uma coisa dessas no Fleur de Lys. Eu no podia dizer a Julie que, se tivesse casado comigo, seria uma mulher caseira e feliz, com um garoto irrequieto agarrado s suas saias, sem sentir a menor falta do Czanne na sala de estar ou do Hieronymus Bosch no salo de banquetes. A nica coisa que eu podia fazer era sorrir e assentir, imaginando o
que aconteceria quando George Arlequim chegasse a casa com sangue nas mos e ferimentos na boca de poeta. L fora, o ar estava carregado e trovejava. Os nova-yorkinos continuavam em sua peregrinao ruidosa e ressentida para lugar nenhum. O ressentimento estava estampado nos rostos carrancudos e cautelosos. A convico que tinham era to ntida como se a manifestassem em cartazes: Manhattan era um lugar terrvel. E no havia condio de melhorar. Pelo contrrio, a tendncia era piorar. Era uma cidade enlouquecida, de gente faminta por dinheiro, faminta por homens, faminta por mulheres. Rosnava para cada um de seus habitantes em todos os minutos de todas as horas. Se no se rosnasse em resposta, a cidade tragaria o indivduo, corpo, alma, roupa e tudo. Entretanto, ela encerrava um desafio. Quem conseguisse vencer aquela cidade, poderia caminhar ereto como um rei em qualquer parte. Mas era preciso venc-la o dia inteiro, todos os dias do ano. Quem no o conseguisse, quem se sentisse enfraquecer e ficasse esperando por um sorriso, tinha que se
curvar, voltar ao rebanho submisso e l permanecer. No era necessrio um grande exrcito de lgica para se concluir que, ao final, todos acabavam sendo derrotados. A idade avanando inexoravelmente e os jovens bravos e ambiciosos sempre espreita para se alimentarem com nosso sangue. O dinheiro transformara-se num monstro enlouquecido, mastigando sua prpria cauda, devorando-se at a extino. A propriedade, em Nova York, era algo que se empenhava para se obter crdito, com o qual se comprava mais propriedade para se empenhar em novas compras, para por fim capitalizar, na esperana de que existisse ao final um porto seguro na rua sinuosa. Estvamos todos irremediavelmente condenados a rodar para sempre numa roda de moinho de tortura: algum despertar, um pouco de sono, a purificao pelo terror e pela piedade, algum amor, muita solido, dois banhos por dia para nos manter limpos, embora jamais o estejamos. E finalmente chegava o momento em que se comeava a imaginar se no se estava apenas matando o tempo, at que o tempo nos matasse.
O almoo de Arlequim com Herbert Bachmann resultou em esperanas bem modestas. Era possvel levantar o dinheiro necessrio para Arlequim cobrir o desfalque e comprar as aes dos acionistas minoritrios. Mas, mesmo a taxas mnimas, os juros seriam altssimos e os lucros do banco seriam drasticamente reduzidos por um longo perodo. O mais prejudicial, contudo, seria o fato de que uma ampla parcela dos negcios de subscrio de aes estaria perdida, tendo em vista que a operao se baseia na promessa de que, se todas as aes no forem vendidas no mercado, o prprio banco subscritor ficar com o resduo. No seria esse o nico prejuzo grave: os investidores tendem a se afastar de um banqueiro que precisa tomar dinheiro emprestado para se manter tona. Basil Yanko calculara tudo com a maior preciso. O gio era elevado o suficiente para atrair o vendedor ganancioso e para assustar o comprador prudente. No havia confuso suficiente para provocar um escndalo, mas o bastante para fazer com que os novos clientes fossem procurar outro
estabelecimento. George Arlequim podia vender e ficar rico ou ento lutar e sair pobre, com uma vitria estril. Arlequim via a situao com lucidez, definindo-a com mais preciso do que eu. Mas via tambm uma esperana, embora mnima, de melhorar sua posio. At agora, Paul, estamos pressupondo o pior: que todo acionista minoritrio vai querer vender. Baseamos todos os nossos clculos nessa suposio. Mas eu tenho opo. Minha idia procurar todos os acionistas, apresentar minha oferta e uma recomendao para no vender, em hiptese alguma, a quem quer que seja. Quero ter encontros pessoais sempre que for possvel, a fim de no deixar muita coisa no papel. J estou trabalhando nisto e claro que precisarei de sua ajuda. Telefonei para Suzanne em Genebra. Ns trs deveremos conseguir falar com todos os acionistas no prazo necessrio. Assim que eu tiver a relao dos acionistas, fixaremos um plano de operao. Mas continua decidido a rejeitar a oferta de Yanko imediatamente? Claro. Sinto-me insultado por esse homem e por suas tticas. Por
que est to hesitante, Paul? Porque, at que as investigaes estejam concludas e Bogdanovich nos fornea as informaes de que precisamos, estamos sem trunfo nenhum para jogar. Yanko repete sua oferta e voc lhe diz um "no" definitivo: isto encerra toda e qualquer discusso. Ficamos assim numa situao pior do que aquela em que estamos agora. Yanko rancoroso. Se voc o encostar na parede, ele ir enfrent-lo como um rato furioso. Tem que confiar em mim, Paul. Que assim seja, George. J disse o que penso. Ligarei para voc amanh de manh e estarei aqui s trs horas da tarde. O que est pensando em fazer agora? Vou at o clube tomar um banho a vapor. Depois telefonarei para Mandy Ducaine, descobrirei o que h de quente esta noite e irei at l. Estou ficando embotado, George. Preciso de uma pausa. At amanh, ento. D minhas lembranas a Mandy. Eu estava furioso quando o deixei. Sentia que ele me exclua, que meus
conselhos j no tinham a menor importncia. Sentia falta da velha urbanidade, da antiga sutileza, o senso cmico de propores. Arlequim estava agora brusco e inflexvel, no passava de mais um mercenrio numa cidade de mercenrios. Desejei, ardentemente, poder liberar-me do fardo da amizade e retornar s rotinas agradveis, se bem que inspidas, da vida de solteiro. Depois de uma hora no banho a vapor, eu me sentia menos irritado e mais bem disposto em relao humanidade. Liguei para Mandy, uma viva jovial com um corao to grande quanto sua fortuna e cujo nico medo ter uma data em branco em seu calendrio social. Ela ia pera. Mas, se eu quisesse, podia aparecer para a ceia. Iria encontrar Louise, Monty, aquela nova e maravilhosa soprano brasileira e uma dzia de outras pessoas. Disse-lhe que faria o possvel para comparecer; se no pudesse, contudo, mandava-lhe beijos e abraos at a prxima vez. E assim eu continuava sem ter com quem jantar e com a convico de que estava ficando velho demais para a dana de acasalamento das borboletas sociais. Desci at o salo de bilhar do clube e
ganhei dez dlares de Jack Winters, que nunca fez nada mais pesado em toda a sua vida do que podar roseiras e sempre evitou casar-se. Ele mais uma vez deixou-me assustado, como sempre acontecia. Nele podia ver-me dentro de dez ou quinze anos, o primeiro a chegar, o ltimo a partir, uma figura pattica, sempre ansioso por encontrar parceiros para o bridge ou companhia para o bar. Ao voltar para casa, atravs dos primeiros clares dos anncios luminosos e da ltima disparada de formigas pela cidade, estava oprimido por uma terrvel sensao de solido, um medo pnico da violncia e do desastre. O terreno da lei, no qual eu caminhara com tanta segurana durante anos, estava se rompendo sob meus ps, como um rio congelado num degelo sbito. Eu estava envolvido em roubo, conspirao e homicdio. Contratara gente para semear o terror, porque me sentia encurralado por um sistema alm do alcance da lei, um sistema que corrompia a lei, mantendo-a na impotncia e subservincia. Era uma mquina terrvel. Ela dizia: "Alerta amarelo"; e logo todas as
grandes potncias preparavam-se para a guerra. A mquina expelia um clculo astronmico e logo uma moeda era desvalorizada. Mesmo Deus capaz de perdoar nossos pecados, mas a mquina nos humilha com eles at o Juzo Final, o qual, alis, tambm vai acabar determinando ...E assim se criava a grande iluso de que o homem no deveria assumir nenhuma responsabilidade, j que no podia exercer nenhuma, de que deveria ser submisso porque seu destino j estava determinado e impresso, de que somente a mquina podia controlar as correntes csmicas. O que ningum dizia, porque todos se empenhavam laboriosamente em ocult-lo, que as mquinas so alimentadas por mecnicos humanos, to diablicos, bons, sensatos ou estpidos como o resto de ns. A mquina apenas multiplica os erros cometidos por tais mecnicos, numa matemtica enlouquecida, alm da qual no h recurso possvel...A menos, claro, que se ataque a mquina com machadinhas, bombas, foguetes e um desprezo mortal, o que constitui a prpria essncia do terror moderno, a essncia do desespero comum que hoje
existe. Surpreendi-me de repente refletido na vitrina de uma loja. O que eu via era um homem de meia-idade, sombrio e hostil, fechado a qualquer contato humano. Virei-me e abri caminho apressadamente por entre a multido, numa v tentativa de livrar-me do fantasma de mim mesmo. Quando cheguei a casa, todas as misrias do dia foram suplantadas pelas atribulaes domsticas. Takeshi estava num dos seus maus dias. Devo explicar agora que quando Takeshi est de bom humor um modelo a ser apreciado acima do vinho, das mulheres e das esmeraldas. Ele cozinha melhor do que Escoffier. Passa uma camisa de forma a que fique parecendo como uma segunda pele. Tira o p, lustra, d polimento, como se fosse o guardio do mais valioso tesouro imperial. Por outro lado, Takeshi de mau humor simplesmente intolervel. Ele arrasta os ps como um caso geritrico, amarra a cara como um demnio do templo, funga, geme e se lamria numa sinfonia de dores. Quando se digna abrir a boca, parece um idiota ou um
insubordinado. A nica soluo que j encontrei expuls-lo de casa e deixlo ir purificar-se com saque, pquer e uma visita mama-san que dirige um estabelecimento para cavalheiros japoneses na West 58th Street. "Reconheci imediatamente os sinais no momento em que entrei. Cinco minutos depois eu j expulsara Takeshi de casa. Meia hora mais tarde estava de banho tomado, barbeado e pelo menos parcialmente humano, refestelado num sof, com um copo ao meu lado e ouvindo Von Karajan reger a Pattica. Chegara o pacote despachado por Francis Xavier Mendoza, mas eu ainda no o abrira. H muito que s me movimentava de acordo com as engrenagens da mquina e achava que tinha direito agora a um pouco de descanso, entregue apenas a mim mesmo. Folheei uma revista de iatismo e deixei-me dominar pela fantasia de um longo cruzeiro. Iria da Europa para o Caribe, atravessaria o Panam, chegaria s Galpagos, Papeete, Tonga e Fidji. Podia faz-lo. Deveria faz-lo, ao invs de me debater no estreo do mercado. Poderia tirar um ano inteiro de folga.
At mesmo dois, se quisesse. Tripulao no era problema. Havia muitas alternativas para a escolha de companhia agradvel. Jenny Latham estava livre e ansiosa ...Talvez Paulette...Mas por que deveria prender-me a algum? Por que no me renovar em cada vez que aportasse em alguma terra? Despertei de meu devaneio com o toque insistente da campainha. Tropecei at a porta, ressentido, para atender. George Arlequim estava em p no capacho, com um sorriso de arrependimento. Estou passeando h uma hora e resolvi verificar se voc estava em casa. Se no o encontrasse, teria deixado um bilhete. Mas entre logo, George! Isto um absurdo! Simplesmente no se pode passear noite nesta cidade. Eu sei, mas precisava espairecer um pouco, para poder pensar direito. Discutimos hoje, Paul. Isso no deveria ter acontecido. Peo que me desculpe. Esquea, George. Ns dois andamos muito nervosos. Aceita um caf?
Quero sim, por favor. Voc acabou no saindo? Mandy foi pera. Sugeriu que fosse cear em sua companhia, mas eu no estava com a menor vontade. E ao chegar a casa ainda descobri que Takeshi est de veneta. Onde est Julie? Esperando por Suzanne. Ela dever chegar aqui de madrugada. Contou a Julie o que aconteceu? Contei. Ele deu-me seu sorriso infantil e malicioso, acrescentando: Julie ficou admirada de voc no lhe ter contado coisa alguma durante o almoo. Mas acho que, a esta altura, ela j deve t-lo perdoado. Espero que sim...Ali em cima do sof, George, h um pacote. um dossi completo sobre Basil Yanko, que Mendoza enviou-me l da Califrnia. Por que no o abre e d uma olhada, enquanto fao o caf? Fiquei pela cozinha durante dez minutos, satisfeito pelo fato d Arlequim ter aparecido, perturbado por ainda no lhe haver relatado minha conversa com Bogdanovich. No era o medo que me retinha, era
ressentimento e cime, o triunfo menor de possuir uma informao que at ento ele ignorava. No era fcil explicar, mas, envergonhado pela cortesia de seu pedido de desculpas, tive que faz-lo. Ele ficou chocado com os detalhes da morte de Valerie Hallstrom, mas recusou-se a permitir que eu me humilhasse. No, Paul! Deixei que voc suportasse coisas demais por muito tempo. Voc assumiu os riscos, enquanto eu bancava o crtico e o juiz. A partir de agora, trabalharemos juntos, sem segredos, sem discusses. Certo? Certo. Tive algumas notcias ruins esta noite. Larry Oliver foi procurar-me. Recebeu a oferta de outro emprego e apresentou seu pedido de demisso. E quando ele quer ir embora? No fim do ms. Tem direito a trs meses de licena por tempo de servio, o que cobre o perodo de aviso prvio. Mas que diabo! Isso nos prejudica bastante, George. Pedi a Standish que assumisse o comando. Ele ficou feliz, naturalmente.
Standish no tem muito peso, mas no h outro jeito. H uma coisa que me incomoda, Paul: legalmente nossa posio muito fraca. Antes de mais nada, existem fortes indcios de culpabilidade contra mim, como presidente. Contratando a Lichtman Wells, estamos ganhando tempo para responder a qualquer possvel acusao. Mas qualquer cliente que se considerar lesado poder apresentar uma queixa a qualquer momento, em qualquer uma das jurisdies em que operamos. Oliver sabe disso e foi o motivo pelo qual pediu demisso, pois no queria sujar suas mos imaculadas. A rigor, no se pode culp-lo. E estamos tambm empregando Bogdanovich, que opera fora da estrutura legal e na verdade o agente ilegal de uma potncia estrangeira. E voc, Paul, est agora na situao de reter provas num caso de homicdio. E como se isso no fosse suficiente, Basil Yanko telefonou-me hoje, dizendo que tinha um problema de tica profissional... Que coisa admirvel: Basil Yanko falar em tica profissional!
Foram as palavras dele. Disse-me que a Srta. Valerie Hallstrom tinha acesso a informaes altamente secretas, relacionadas com a segurana nacional. Em conseqncia, tinha sido obrigado a chamar o FBI. Inevitavelmente, eles solicitariam, e ele no poderia negar, um livre acesso a todos os arquivos, inclusive os de Arlequim et Cie. Ele esperava que eu no interpretasse tal atitude como um ato hostil de sua parte, como uma tentativa de exercer presso em nossas negociaes. O assunto estava fora de seu controle...Compreende agora por que eu estava precisando dar uma caminhada para espairecer? Compreendia muito mais do que isso. Via manchetes garrafais e um mercado abalado, batalhes de clientes a nos desertar, como se fosse a retirada de Mons. E ali, em primeiro plano, estava George Arlequim, a xcara de caf bem firme em sua mo, plcido como um mestre zen que acabasse de propor um enigma insolvel. Tentei, hesitante, formular uma resposta: Vamos falar primeiro sobre os aspectos legais. Voc e eu somos
ambos sditos estrangeiros. No existe nenhuma prova de que voc tenha cometido qualquer crime em Nova York. H apenas um indcio de que sua assinatura foi utilizada para colher os lucros de um crime na Sua...Eu sei de um homicdio apenas pelo que me contaram. Ningum sabe que estou a par de fatos concretos, exceo de voc e de Bogdanovich. Ningum sabe tambm que contratamos Bogdanovich, alm de ns e de Saul Wells, que trabalha em cooperao com ele. E mesmo que soubessem, seria muito difcil provar qualquer inteno criminosa de nossa parte. Temos toda a liberdade de contratar at um lixeiro, se assim o desejarmos, contanto que no conspiremos com ele para cometer algum crime. J com o FBI a situao diferente. Eles podem ter acesso a nossas transaes, legalmente ou no, se alegarem que a segurana nacional est envolvida. inevitvel que nos venham procurar. O que lhes diremos ento? A verdade, Paul. Estamos investigando uma fraude internacional. Eu estou envolvido, apesar de inocente. Uma antiga funcionria nossa, Ella
Deane, morreu subitamente num acidente, deixando uma quantia elevada, fato bastante suspeito. Acho que podemos ainda acrescentar que estamos relutantes em aceitar o relatrio que absolve a Creative Systems pela simples declarao de que seus funcionrios foram devidamente checados. Acha que uma medida sensata levantar tal questo? Acho que sim. No vamos formular acusaes, apenas expressar uma dvida razovel. Podemos at ir mais alm, ressaltando a coincidncia da proposta de Basil Yanko para comprar-nos. Isso nos compromete, George. Eu sei. Mas, inocente ou culpado, Yanko ficar preocupado. O FBI, a esta altura, tambm estar preocupado, porque Valerie Hallstrom tinha acesso a segredos governamentais e morreu violentamente. Assim que tudo isso estiver s claras, George, nossas atividades ficaro consideravelmente restringidas. Por qu, Paul? Ns agimos exclusivamente dentro da lei. Antes de falarmos o que quer que seja, acho que Bogdanovich deve ser informado.
Concordo. Por que no o chamamos agora? Tenho que usar um telefone pblico para entrar em contato com ele. Ainda cedo. Por que no se veste e me leva at o bar do Gully Gordon? Pode telefonar no caminho. Se Bogdanovich estiver livre, poderemos encontrar-nos esta noite. E o que me diz do relatrio de Mendoza? Vou lev-lo comigo e estud-lo. Quando no o estiver usando, eu o guardarei num cofre. No o tipo de coisa que se possa deixar mostra. Especialmente agora... No pude resistir a um sorriso e a uma pontada de ironia: Est aprendendo depressa, George! Para minha surpresa, ele levou o comentrio a srio. No, Paul, eu sempre soube. Mas tinha a vaidade pessoal de que poderia eternamente esquivar-me aos canalhas e trapaceiros, de que poderia insular-me contra a maldade atravs de urbanidade, de que poderia afastar a violncia com uma muralha de dinheiro e privilgio. Esta noite, andando pelas
ruas, compreendi que isso era uma iluso. O mal uma realidade e est sempre nossa espreita, de emboscada, pronto para invadir nossa casa. Mais cedo ou mais tarde tem-se que enfrent-lo, em luta corpo a corpo. Para mim, esse momento agora. E fico contente por sermos amigos novamente... Tomamos dois drinques e ouvimos meia hora do piano de Gully Gordon. Ao sairmos, uma limusine com motorista estava nos esperando junto ao meio-fio. Aaron Bogdanovich estava no banco de trs. Seguimos at Washington Square, no centro da cidade, voltando depois para os subrbios, lentamente, enquanto Bogdanovich absorvia as informaes que lhe prestramos e nos contava outras novidades. Concordo com o senhor: no se pode brincar com o FBI. Podem dar todas as informaes que eles puderem deduzir dos arquivos. E creio que no prejudicial expressar uma certa intranqilidade quanto s operaes da Creative Systems. Podem ter certeza de que o prprio FBI tambm est preocupado com isso. Mas lembrem-se de que so estrangeiros e de que no
compreendem perfeitamente as atitudes e procedimentos americanos. Isso ajuda bastante ao tratarem com rgos governamentais... A nica coisa que no podem mencionar a ligao comigo. Eles sabem que existo. A poltica do governo favorvel a Israel, por isso eles me deixam em paz, contanto que mantenha a maior discrio com relao a meus atos e distribua de vez em quando umas gratificaes generosas. Mas tenho certeza de que no permitiro que eu trabalhe para particulares. Ainda no tenho muitas novidades. Localizamos o txi. O motorista admitiu que pegou nosso passageiro. Levou-o para o terminal da TWA no Aeroporto Kennedy. Depois disso, claro, no pudemos seguir-lhe a pista. Ele pode ter apanhado um avio da prpria TWA, ter apanhado outro txi e voltado para o centro da cidade ou embarcado num avio de outra companhia. No h condies de sab-lo. Contudo, estamos investigando meticulosamente o mercado de assassinos de aluguel...Estamos tambm investigando os empregados pessoais de Yanko seu motorista, o mordomo, a criada, a secretria particular. A
polcia est investigando a vida particular da Srta. Hallstrom. Um amigo meu ir transmitir-me o que for descoberto, no momento conveniente. Ah, j ia me esquecendo de uma coisa, Sr. Desmond. O camarada que estava vigiando seu apartamento no Corvette verde... Bernie Koonig. O que h com ele? Meus rapazes o pegaram para uma conversinha. Ele disse que foi contratado por um amigo para segui-lo e informar todos os seus movimentos. E quem esse amigo? Um homem chamado Frank Lemmitz. o motorista de Yanko. Finalmente, a primeira falha. Podemos us-la? Estive pensando nisso. um risco, mas talvez valha a pena corr-lo. Por que no jogar o nome na cara de Yanko, quando o encontrarem? Confesso que ficaria deliciado em faz-lo. Deixe para mim pediu George Arlequim, ansiosamente. Pode ser uma tremenda surpresa. No dizem, no teatro, que em todas as piadas deve haver sempre duas risadas? Trs, Sr. Arlequim disse Aaron Bogdanovich. Mas deve
certificar-se de que a ltima no seja a seu respeito. Estvamos atrasados, mas no demais, para o jantar no Salvador. Suzanne estava presente e tomei-a nos braos e ali a mantive por mais tempo do que o usual, j que Arlequim no podia faz-lo e ela estava precisando, assim como eu, de mais amor do que tinha. O relatrio que ela nos trouxera de Genebra no era muito animador. O Union Bank mostrava-se cauteloso quanto a seus direitos e cioso de sua posio legal. A conta Arlequim fora aberta da forma apropriada. Todas as transaes tinham sido formalmente corretas. O dinheiro fora pago contra uma assinatura verificada. A responsabilidade do banco terminava a. Desde que tal posio fosse reconhecida, eles estavam dispostos a ajudar o honrado colega de todas as formas legais. A polcia sua tambm no pudera prestar muita ajuda. Haviam examinado a alegada falsificao, comparando-a com uma assinatura genuna. Admiraram bastante a habilidade do falsificador. Ressaltaram que era quase
impossvel seguir a pista do dinheiro sacado do banco, pois ele podia inclusive ser legalmente exportado da Sua. A posio de Arlequim era clara e difcil. As perdas estavam cobertas. E, a menos que alguma queixa formal fosse apresentada por uma terceira pessoa, no haveria acusaes contra ele. As notcias do mercado tambm eram sombrias. Na cidade do bom Calvino, o trabalho era coisa sagrada. O dinheiro era seu fruto santificado. E qualquer coisa que manchasse a santidade do dinheiro era um antema. George Arlequim ainda no fora excomungado e nem mesmo estava sob uma moo formal de censura. Mas na Associao dos Bancos Suos j havia gente sacudindo a cabea e os murmrios corriam livremente. Ainda no perdramos nenhum cliente, mas o fluxo de dinheiro para investimento diminura consideravelmente. Suzanne relatou tudo isso em seu estilo firme e prosaico, como se estivesse falando de artigos de uma mercearia e no de calamidades. Juliette ficou furiosa, cortando um nome depois do outro de sua lista de visitas.
Arlequim resumiu tudo com brevidade: Uma coisa clara: no podemos simplesmente ganhar e voltar mancando para casa. Vamos precisar de bandeiras e fanfarras, de arrastar nossos inimigos pela lama. Mas j tarde demais para retricas. Voltaremos a nos reunir s dez horas da manh, para um conselho de guerra...Durmam, crianas. Tenham lindos sonhos! Era um desejo agradvel, mas no encerrava nenhuma bno, pelo menos para mim. Assim que paguei o txi, diante da porta do edifcio onde morava, trs homens saram das sombras e convergiram em minha direo. Um deles disse-me: Temos um recado de Bernie para voc. Outro agrediu-me com um cassetete de borracha. Tentei reagir, mas eles eram por demais experientes para mim. Acordei em minha cama, com as costelas enfaixadas, uma dor terrvel nos rins, um mdico minha cabeceira e dois guardas esperando para tomarem meu depoimento. 4 O mdico foi encorajador. Eu tinha uma costela quebrada, escoriaes
generalizadas e um galo imenso na cabea. Ele achava que o resto de mim estava intacto, mas deveria cham-lo imediatamente, caso sentisse enjos, tivesse dificuldade em respirar ou constatasse a presena de sangue na urina. Deu-me algumas plulas e seu carto, apresentando tambm a conta pela consulta a domiclio, bem mais cara que a do consultrio. Recomendou-me que tirasse dois dias de repouso absoluto e foi-se embora, para retomar seu prprio repouso interrompido. Os guardas fizeram-me um rpido resumo das ltimas horas. Takeshi, voltando para casa de sua noite de folga, encontrara-me na porta, esparramado e desmaiado. Chamara a polcia e o mdico, e eles haviam me levado para a cama. Agora, se eu j estava me sentindo capaz, poderia prestar alguns esclarecimentos? A sensao que eu tinha era de ter sido atropelado por um tanque, mas mesmo assim procurei atend-los. Eles se referiram imediatamente ao nome de Bernie: eu conhecia algum com esse nome? No. Bernie Koonig significava alguma coisa para
mim? No. Deveria? que na noite anterior eles haviam apanhado um homem com esse nome bem em frente ao prdio. Alguma relao? Absolutamente nenhuma. Eu no teria sido confundido com outra pessoa? Provavelmente. Vinha constantemente a Nova York, mas no circulava nos meios do crime, como dezenas de amigos meus, todos respeitveis, poderiam confirmar. Poderia reconhecer os atacantes? Duvidava muito. Tudo acontecera muito depressa. Normalmente o que acontece. Poderia verificar a minha carteira? No estava faltando nada. Bem, eles registrariam a ocorrncia com esses dados. Se me lembrasse de mais alguma coisa, deveria telefonar para o sargento de planto na delegacia. E agora, Sr. Desmond, procure dormir; foi um schlamming e tanto! Takeshi acompanhou-os at a porta, serviume usque para tomar os analgsicos, trouxe o telefone para junto de minha cama, fez alguns rudos solcitos e finalmente deixou-me como J em seu monturo, sozinho com minhas misrias. Cochilei irrequieto at as sete horas da manh, quando me
esforcei para sair da cama, a fim de verificar os danos. No era uma viso das mais agradveis. Meu rosto estava todo machucado e inchado. O galo na cabea era do tamanho de um ovo. Os ns dos dedos estavam esfolados e as ataduras no peito faziam-me parecer um bife enrolado. Todos os msculos doam intensamente, mas pelo menos eu conseguia respirar com normalidade, no sentia enjo e no havia sangue. Depois que tomei um banho de esponja e me barbeei, fiquei convencido de que iria sobreviver, mas no sabia ao certo se o trabalho valeria a pena. Contudo, depois de uma xcara de caf e uma torrada, decidi fazer o esforo. Liguei para Aaron Bogdanovich e contei-lhe a saga de um schmuck chamado Paul Desmond. Ele disse que estaria em meu apartamento dentro de vinte minutos e desligou. Chegou sem flores e no expressou condolncias. Foi pura vingana. Meus rapazes trabalharam em Bernie Koonig. Ele culpou voc e resolveu retribuir o cumprimento. Mas por que ele haveria de responsabilizar-me?
E quem mais havia? No costumamos anunciar-nos a gngsteres, Sr. Desmond. Pensei que estivssemos pagando por proteo durante vinte e quatro horas por dia. E esto. Meu homem vinha logo atrs de seu txi. Quando o viu cado na porta, seguiu adiante. Foi um erro, pelo qual ele ser punido. Sinto muito. Ns estamos pagando meio milho de dlares. Levo uma tremenda surra e a nica coisa que voc diz que sente muito. Essa boa! Sugiro que tire algum proveito do ocorrido, Sr. Desmond. Como? Decidimos ontem que contaramos a Yanko que sabamos da existncia de Koonig e do homem que o contratara. Agora temos a prova. Foi vtima de um ataque criminoso, que pode ser investigado at se chegar a Yanko. Mas eu disse polcia que no conhecia Bernie Koonig. Yanko no sabe disso. Sabe apenas que o senhor reteve a
informao e que est preparado para us-la como um argumento nas negociaes. Isso pode acarretar-me coisas bem piores. possvel. Mas dever informar tambm a Yanko que existe um depoimento seu, com firma reconhecida, pronto para ser enviado polcia, caso algo lhe acontea. Gostaria de estar presente quando falasse com ele. Creio que tem gua gelada nas veias, Sr. Bogdanovich. Houve um tempo em que eu urinava sangue, Sr. Desmond. ento que a gente comea a ficar preocupado. Quero que me informe como foi a reunio. Mas s me telefone noite, pois terei um dia bastante atarefado. Com o negcio de flores, claro. No, Sr. Desmond. Desta vez o problema de msseis SAM. H trs soltos por a, nas mos dos terroristas da Setembro Negro. Sabemos que dois esto na Europa e achamos que o terceiro talvez esteja aqui em Nova York. Se no o encontrarmos, uma poro de pessoas pode acabar morrendo numa exploso.
Depois disso, evidentemente, nada mais havia para se dizer. Vesti-me penosamente, li os jornais matutinos e s dez horas apresentei-me no Salvador, sentindo-me como um palhao que perdera o trem do circo. Juliette j sara para passar o dia com amigas, poupando-me assim o embarao de ter que explicar-lhe meu estado. A Arlequim e Suzanne contei toda a histria e como Bogdanovich sugerira que a usssemos. Arlequim franziu o cenho por um momento e depois concordou bruscamente: Faamos assim! Vejamos se os nervos de Yanko so realmente fortes! E agora vamos tratar de nosso programa para esta manh. So trs horas da tarde na Europa, Suzy. Vamos telefonar para todas as pessoas que esto em sua lista. Falarei pessoalmente com cada uma. Paul, voc e eu vamos preparar um telegrama para todos os acionistas e a carta que o confirmar. Depois vamos elaborar duas declaraes: uma para Yanko e outra para a imprensa especializada em assuntos econmicos. O ponto principal de ambos
a recusa da oferta, com a recomendao de que os outros acionistas tambm no aceitem e a exposio dos motivos. Nossos advogados estaro aqui uma e meia, para analisar os rascunhos. Foi um trabalho lento e frustrante. Os ramais para a Europa estavam sobrecarregados. Das quinze pessoas da lista de Suzanne, conseguimos falar apenas com cinco. Trs estavam dispostas a vender e duas concordavam em esperar, se Arlequim pudesse apresentarlhes boas razes para tanto. E isso era a grande dificuldade: tnhamos muitas razes, mas no podamos apresent-las sem nos tornarmos passveis de processos de calnia. Podamos objetar ao controle americano de uma tradicional empresa europia. Podamos contestar a sabedoria de se entregar um banco ao controle de uma companhia que planejava sistemas de policiamento e vigilncia. Podamos demonstrar as tticas de polvo de Yanko. Mas, sem um forte conjunto de provas, no podamos pr em dvida o carter pessoal de Yanko. Era o velho adgio: o dinheiro faz o homem, torna-o mais puro que os anjos. Para se provar o
contrrio, preciso ter pelo menos tanto dinheiro quanto ele. Enchemos uma cesta de papel com tentativas. Mas quando os advogados chegaram, tnhamos certeza de haver concludo uma verdadeira obra-prima de meias verdades. Os advogados ficaram horrorizados. O que era razo pura em Genebra, no passava de horrenda difamao em Nova York. De jeito nenhum eles podiam permitir que divulgssemos aqueles documentos, que nem mesmo os transformssemos em cartas confidenciais. Em hiptese alguma! Levariam nossas minutas para o escritrio e iriam reescrev-las. Arlequim concordou, relutante, e disse-lhes: Por acaso j pararam para dar uma olhada no Sr. Desmond, cavalheiros? Eles ento examinaram-me atentamente, expressando em coro o pesar que sentiam. Abri a camisa. O coro silenciou. Arlequim continuou: O Sr. Desmond foi barbaramente espancado ontem noite. Podemos seguir a pista desse crime at Basil Yanko.
Como, Sr. Arlequim? Foi o motorista dele que contratou o homem que ordenou o espancamento. Pode prov-lo? Posso. Pode provar tambm que o motorista estava agindo por ordem de Yanko? Sabemos que essa a verdade, mas no podemos prov-la diante da lei. Ento no temos um caso contra ele, Sr. Arlequim. Exato. A lei impotente. O Sr. Desmond no pode obter uma reparao, a no ser contra um subalterno. Queremos o conselho que nos podem dar nesta emergncia, cavalheiros. Como podemos obter uma reparao e proteger o Sr. Desmond e a mim de novas agresses? J sei a resposta: no podem comprometer-se, recomendando um recurso ilegal. Mas os senhores no se limitam a isso, vo mais alm, recomendando-me que preserve a reputao de Yanko, a fim de no ser processado por difamao. Fao isso e ele nos agride ainda mais violentamente. Quando a lei impotente,
cavalheiros, como se pode fazer justia? Pensem nisso, por favor. E tragamme, por gentileza, os novos documentos at as seis horas da tarde. Eles saram, hesitantes e infelizes, abalados com o que lhes parecera uma diatribe intil. Suzanne no fez o menor segredo de seu desagrado. Mas que diabo, George, o que esperava que eles dissessem? Eles no podem desafiar a lei, pois so seus servidores. Voc sabe disso, sempre o soube. A resposta de Arlequim foi enrgica e imediata: No! Esse no o ponto fundamental, Suzy. A questo precisa ser respondida, porque o dilema universal. Os palestinos no podem voltar para casa, pois existe hoje um kibutz onde outrora era seu lar. Os judeus no podem render-se, pois sero mortos numa masmorra sria. O vietcongue na cadeia no pode falar porque lhe do urina para beber e cal viva para comer. Os famintos nos bairros miserveis transformam-se em bandidos porque no conseguem encontrar trabalho nem comida para seus filhos. E, enquanto tudo
isso acontece, os advogados balanam-se nos poleiros de papagaio das cmaras de torturas! Eu no tenho um caso .perante a lei! O que quer que acontea, viverei e morrerei rico, embora sem ter feito por merecer um s franco de minha fortuna. Mesmo assim, a lei impotente para defender meu direito mais simples, o direito a preservar meu bom nome. Este que o ponto fundamental e no qual me torno irmo dos fora-da-lei; talvez eu mesmo me transforme num fora-da-lei... Eu nunca vira Arlequim to veemente e desenfreado. Era como se uma fonte comeasse a jorrar dentro dele e ele simplesmente no a conseguisse reprimir. O desafio que lanava dirigia-se no apenas a ns, do seu grupo, como tambm a si prprio. Depois ele disse algo estranho e perturbador: Neste momento estou olhando para o cano da arma e posso at ver a bala na culatra. Fico imaginando o que irei sentir quando for eu o homem que estiver com o dedo no gatilho. Basil Yanko chegou vinte e cinco minutos depois das trs horas, tarde demais para justificar uma desculpa e apenas o suficiente para sugerir uma
descortesia deliberada. Ele pediu desculpas, claro, mas de forma to negligente que serviu apenas para acentuar o insulto. Esperava que pudssemos concluir a reunio com alguma rapidez, pois tinha um encontro em Pleasantville s seis horas da tarde e queria evitar o trfego da hora do rush. Seu carro estava estacionado na garagem subterrnea e queria que seu motorista fosse avisado pouco antes de terminar a reunio. Era tudo calculado para nos deixar irritados e fazer com que a reunio comeasse nervosamente. Fiquei furioso, mas Arlequim permaneceu tranqilo. S depois que nos ajeitamos em torno da mesa que Yanko fez uma referncia minha aparncia. O que aconteceu com seu rosto, Sr. Desmond? Um acidente. Tenho tambm uma costela quebrada. Mas o mdico disse que sobreviverei. Espero que esteja segurado. Estou, sim. Pois vamos logo tratar dos negcios. Acredito que j tenha pensado sobre minha oferta, Sr. Arlequim. J, Sr. Yanko.
Ento concorda que uma oferta generosa? Concordo. Isso quer dizer que vai aceit-la? No, Sr. Yanko. Eu a recuso. Est esperando que eu aumente a oferta? Pelo contrrio, espero que a retire. Por um instante uma sombra de surpresa surgiu em seu rosto, mas logo os lbios se contorceram num sorriso. E por que eu deveria faz-lo, Sr. Arlequim? Talvez venha a descobrir que essa a atitude mais prudente. Isso no uma ameaa, no mesmo, Sr. Arlequim? um conselho, Sr. Yanko. E, a esta altura, ainda amigvel. Basil Yanko recostou-se na cadeira, juntou as mos, dedo contra dedo, erguendo-as depois altura dos lbios descorados, os olhos velados. Tornou ento a sorrir e disse suavemente: Sei o que est pensando, Sr. Arlequim: que sou um homem ganancioso, vulgar e grosseiro, um colega nada adequado para um cavalheiro europeu como o senhor. Pensa em levantar dinheiro suficiente para confirmar
suas opes e comprar todas as aes minoritrias, mesmo que isso signifique um prejuzo irreparvel. Se assim agir, tenho duas alternativas. Posso elevar a oferta de forma a que lhe seja impossvel cobri-la. Ou posso tambm moverlhe uma srie de processos, civis e criminais, em todas as jurisdies onde opera. Processos por perdas e danos, por fraudes, por estelionato, enfim, por todos os crimes previstos na lei. E nem preciso ganhar os processos, Sr. Arlequim. No momento em que as queixas forem apresentadas diante de um tribunal, o senhor estar arruinado. O banco enfrentar uma crise de confiana. E, ao final, de qualquer maneira, eu terminarei me apoderando dele...No acha que melhor sermos razoveis, Sr. Arlequim? Era a mais arrogante exibio de poder, nua e crua, a que eu j assistira. Senti-me envergonhado, humilhado e furioso o bastante para cometer um assassinato. George Arlequim, no entanto, pareceu no se abalar. No havia o menor vestgio de tremor na mo ou na voz, o menor indcio de paixo em sua resposta:
Estou surpreso, Sr. Yanko. Parece que eu o respeito mais do que o senhor a si mesmo. um homem de inteligncia excepcional. Por isso, no posso compreender como pode empenharse numa ttica to grosseira. A menos, claro, que seja uma ttica de desespero... Basil Yanko riu. No era um som agradvel de se ouvir, mas um rudo dissonante e spero, cruel, de zombaria. Desespero nenhum! Arlequim, voc est meio sculo superado. Isto negcio! Ao estilo americano, da dcada de 70! No sou um gnomo suo a perder tempo com frivolidades no Clube dos Banqueiros! Voc no encontrar, em qualquer mercado do mundo, um negcio melhor do que o que estou lhe oferecendo. Se quer discuti-lo, muito bem! Estou aqui para ouvi-lo. Mas, se recusar a minha oferta, ento ter que agentar as conseqncias! D-me licena por um momento. Arlequim levantou-se e foi at a porta. Preciso tomar um copo de gua. Yanko virou-se para mim.
Pelo amor de Deus, Sr. Desmond! Ele seu amigo e o senhor conhece as regras do jogo. Veja se consegue fazer com que entre um pouco de juzo naquela cabea! De que maneira, Sr. Yanko? Possuo apenas uma participao nominal. Quando deixar de ser diretor, terei que devolv-la, pois est em usufruto. A idia foi sua, Sr. Yanko. Divirtase agora. Arlequim voltou logo depois, enxugando os lbios com um leno. Sentou-se, esticou as pernas por baixo da mesa e retomou a conversa: Onde estvamos? Ah, sim! No ponto em que eu teria de agentar as conseqncias caso recuse sua oferta. Mas antes que tome qualquer iniciativa precipitada, Sr. Yanko, permita-me que lhe enumere alguns fatos. Primeiro: tenho em meu poder um dossi completo sobre sua vida e suas atividades profissionais. Levaram dois anos compilando todos os fatos e devo dizer que nem tudo lhe faz crdito. Alguns detalhes apontam-no at como um colega altamente indesejvel. Segundo: sou, como bem sabe, um acionista substancial
da Creative Systems Incorporated e de suas subsidirias. Tenho direito a voto nas assemblias e certos direitos para proceder a investigaes legais nos negcios de suas companhias. Terceiro: a Creative Systems depende da confiana pblica tanto quanto a Arlequim et Cie. E depende muito mais da confiana poltica, para manter e executar vultosos contratos governamentais. Quarto: a confiana poltica ficaria profundamente abalada se eu provasse que os altos escales da Creative Systems ou at mesmo seu presidente esto ligados ou empenhados em atividades criminosas. Quinto: acredito que, se tais provas existem, meu dever, como acionista e como honrado homem de negcios, solicitar uma investigao por parte dos rgos governamentais. Sexto: e tais provas existem, Sr. Yanko, e esto minha disposio. Basil Yanko sacudiu os ombros e ergueu as mos, num gesto de desprezo. Ento cumpra seu dever, Sr. Arlequim. Use-as! Infelizmente no est acreditando em minhas palavras, Sr. Yanko. Para dizer a verdade, no.
Ento vou referir-me apenas a um pequeno assunto. O seu motorista est esperando l embaixo. Minha secretria acaba de telefonar-lhe, como havia pedido. O nome dele Frank Lemmitz. Agindo por ordens suas, ele contratou um criminoso conhecido, chamado Bernie Koonig, para vigiar o apartamento do Sr. Desmond. Ele assim o admitiu a investigadores particulares que trabalham para mim. Foi esse mesmo Bernie Koonig o responsvel pelo brbaro espancamento de que o Sr. Desmond foi vtima na noite passada. Temos depoimentos assinados sobre a ocorrncia, prontos para serem entregues polcia...Mas isto apenas a ponta do iceberg, Sr. Yanko. H muito mais por baixo da gua. Compreende agora por que lhe aconselhei prudncia? Que se d ao diabo o crdito que merece: Yanko absorveu o golpe muito melhor do que eu esperava. Conseguiu at ensaiar um sorriso dbil e gelado de aprovao. Suas primeiras palavras foram endereadas a mim: Lamento que se tenha machucado, Sr. Desmond. Pode estar certo
de que no tive nada a ver com isso. Tambm tenho que pedir-lhe desculpas, Sr. Arlequim. Parece que o subestimei. Isso sempre perigoso num mercado incerto como este em que operamos. Mas prometo que no tornar a acontecer. Aconselha a que retire minha oferta, no mesmo? Suponhamos que eu retire a ameaa e mantenha a oferta? Ento estaremos mantendo um relacionamento de negcios normal, contra o qual no h objeo na lei, nem na prtica usual. E de sua parte, Sr. Arlequim? Posso declarar que no necessrio que eu tome nenhuma iniciativa oficial, tendo em vista que a Creative Systems est sob investigao pelo FBI, e enquanto nosso relacionamento comercial permanecer normal. A informao minha disposio ser apenas, digamos assim, uma poltica de segurana. No gostaria de ced-la a um bom preo? No. Eu j sabia que ia recusar. Bom, vamos resumir a situao. Fiz-lhe uma oferta. Recusou-a; aconselhou seus acionistas a fazerem o mesmo. uma
pena que tenhamos chegado a este impasse, mas em sessenta dias muita coisa pode acontecer...Boa tarde, senhores. No havia tempo para comentrios, pois tnhamos que despachar os telegramas para os acionistas, as cartas de confirmao tinham de ser datilografadas e postas no correio. Os advogados chegaram, com uma declarao to fraca e lamuriosa que Arlequim amassou-a num gesto de desprezo. Resolvemos ficar com nosso segundo rascunho. Julie voltou no meio da confuso e pediu que lhe relatssemos os acontecimentos do dia. Queria saber tambm por que eu me parecia com um ferido em combate, o que trouxe baila, de forma final e definitiva, o problema do quanto lhe deveramos contar. A opinio de Arlequim era de que ela deveria saber de tudo. Aleguei que era um privilgio meu mant-la na ignorncia de certas coisas, porque fora minha cabea que se colocara no cepo e Aaron Bogdanovich no iria gostar. Julie argumentou, com bastante razo, que era muito difcil dormir com um homem se no pudesse conversar com ele; que, se havia riscos a correr, ela
deveria compreend-los; que, se ele podia confiar numa secretria, por que no numa esposa? Insisti num argumento que me provocou calafrios: quanto mais ela soubesse, mais vulnervel se tornaria; eu tinha at as cicatrizes para provar que no estvamos brincando. Ao que Julie respondeu, com extrema compostura, que ramos um pequeno grupo de amigos enfrentando um mundo hostil. Se a confiana no fosse partilhada, o grupo no conseguiria permanecer unido. Capitulei ento e Arlequim contou-lhe tudo. Julie ficou chocada ao ver quo profundamente estvamos comprometidos e o quo perto estvamos da selva impiedosa. Ficou tambm envergonhada por sua leviandade, furiosa por a termos deixado tanto tempo na ignorncia. Ela se recusava a ser novamente protegida e mimada. Arlequim ficou mais feliz. Podia agora raciocinar abertamente na assemblia familiar. Podia admitir suas necessidades, ao invs de escond-las por trs de uma mscara de sorrisos e polidez. At mesmo sua aparncia ficou diferente. A fala tornou-se mais vigorosa, os gestos, menos contidos. De certa
forma, mais simples e tambm mais singular, ele era como um monge que descobrira subitamente a chave para seu prprio corao. Jantamos espaguete e vinho no Bertolo's. O espaguete foi idia de Julie. Ela calculou que eu teria mais facilidade em mastigar espaguete do que um bife. Pedimos ao acordeonista que tocasse canes antigas e sentimentais. Demo-nos as mos e cantamos. Brindamos morte e perdio dos mpios, enquanto Arlequim entoava maldies em tantas lnguas quantas se podia lembrar, a fim de que Basil Yanko no pudesse escapar ileso. ramos como pessoas em tempo de peste, reunidas em torno da fogueira e da garrafa, cantando para expulsar o Demnio da nossa porta. Mas o Demnio estava presente e ns o sabamos perfeitamente: era a infeco de violncia e terror que se alastrava. No momento em que deixssemos o crculo mgico, seramos novamente presas dele. Ao voltarmos para o Salvador, de braos dados, as tenses do dia subitamente me dominaram e senti-me fraco e nauseado. Descansei por um
momento na sute de Arlequim, mas no melhorei. Suzanne declarou que iria levar-me de txi para casa e passaria a noite em meu apartamento. Protestei, mas fui firmemente vencido. Meia hora depois, estava acomodado em minha cama e dopado por sedativos, enquanto Suzanne e Takeshi preparavam ch na cozinha. No podia acontecer e sabia que jamais aconteceria, mas no pude deixar de pensar, sonolento, como seria ter uma mulher em minha casa todos os dias. Pela manh, cedo demais, recebi uma visita inesperada de Aaron Bogdanovich. Takeshi levou-o at meu quarto, onde ele se sentou na beira da cama com uma xcara de caf nas mos, comeando imediatamente a interrogar-me: No me telefonou ontem noite. Por qu? Estava passando mal. A secretria de Arlequim teve que trazer-me para casa. Ela est dormindo no quarto de hspedes. Se eu lhe disser para telefonar, no poder deixar de faz-lo. Meus esquemas dependem de informaes sistemticas. O que aconteceu ontem?
Contei tudo, item por item. Ele avaliou nossas atitudes e aprovou-as. timo. Eu estava querendo saber como Arlequim se iria comportar. O que vai acontecer em seguida? Vamos esperar as respostas dos acionistas. Vamos reunir fundos aqui em Nova York para comprar as aes dos hesitantes. E quais so as notcias que tem para ns? J sabemos quem matou Valerie Hallstrom. O nome dele Tony Tesoriero e est agora em Miami. Em breve estaremos conversando com ele. Como foi que o descobriram? Essa pergunta indevida, Sr. Desmond. Desculpe. No sou muito esperto a esta hora da manh. Saul Wells transmitiu-me todas as informaes que descobriu sobre Ella Deane. Ela fez trs grandes depsitos em dinheiro, em novembro, dezembro e janeiro. Durante esse perodo, manteve um relacionamento bastante cordial com Frank Lemmitz. Acho que est na hora de conversar com esse homem. Tentamos a noite passada, mas ele no foi para casa. E hoje de manh no se apresentou para o trabalho.
Provavelmente foi despedido logo depois da reunio que Yanko teve conosco. Na verdade, ele seguiu para Londres no vo especial da meia-noite. Amigos meus iro procur-lo l. Pode ser que ele continue voando pela Europa. A passagem dele era s de ida at Londres, classe econmica. E agora, Sr. Desmond, poderia dizer-me como esto seus nervos? Um pouco abalados. Por qu? Receber esta manh, entre sua correspondncia, um envelope pardo comum. Dentro encontrar o caderninho de anotaes de Valerie Hallstrom e um bilhete datilografado dizendo apenas "Com os cumprimentos de Valerie Hallstrom". Dever chamar imediatamente o Sr. Arlequim e seu investigador particular, Saul Wells. Este chamar a polcia, em seu nome. Entregar o caderninho polcia. O Sr. Arlequim telefonar para o Sr. Yanko e lhe transmitir a notcia. E ser ento que os problemas iro comear. A polcia e o FBI iro concentrar-se em mim.
Exatamente. E lhes dir a verdade, que encontrou o caderninho em sua caixa de correspondncia. Tanto o FBI como a polcia iro interrog-lo sobre sua breve associao com a Srta. Hallstrom. Durante esses interrogatrios, mas no logo no princpio, ir recordar-se da nica coisa que esqueceu de dizer polcia: o medo que a Srta. Hallstrom tinha de Basil Yanko. E como poderei explicar minha pssima memria? De forma bem simples: com um comentrio de que no queria lanar suspeitas sobre um homem inocente. Enquanto isso, estaremos conversando com nosso amigo Tony Tesoriero, em Miami. Qualquer informao que consigamos ser, de um modo ou de outro, transmitida ao FBI. Isso deve manter todo mundo ocupado por algum tempo. Detestaria ter que enfrent-lo, Sr. Bogdanovich. Tenho certeza de que isso jamais acontecer, Sr. Desmond. Quanto a essa secretria... uma velha e querida amiga.
timo. No haveria mal algum se ela o visse abrindo a correspondncia. O que acha de ela mesma ir apanh-la? Takeshi quem costuma faz-lo. Melhor ainda. Boa sorte, Sr. Desmond...Ah, sim! Em nossa prxima reunio, gostaria de receber cem mil dlares. No h problema. Quando devo chamlo? Dessa vez, eu o chamarei. Talvez passe um ou dois dias fora da cidade...Boa sorte! Eu aceitara a loucura e sabia disso, mas num mundo luntico os loucos esto mais seguros do que os sos. Eles se acostumam ao caos e esperam todas as monstruosidades: bombas na correspondncia, veneno na gua, crianas sem cabea nas ruas, assassinatos em massa. Eles sabem que se pode ser alvejado nos aeroportos, violentado nos elevadores, torturado por profissionais pagos com dinheiro pblico. normal os presidentes mentirem assim como os policiais cometerem perjrio, rotina companhias telefnicas patrocinarem revolues.
Dentro do contexto da insanidade de massa, Aaron Bogdanovich era o mais razovel dos homens. A matemtica fria pela qual ele trabalhava era o nico sistema vivel num mundo de princpios morais conflitantes e leis desacreditadas. Se Deus no existia ou se ausentava por um tempo longo demais, Aaron Bogdanovich e sua espcie eram os substitutos lgicos. Mesmo no inferno era necessrio manter a ordem, e o terror era o instrumento mais refinado para tal. No era preciso us-lo com muita freqncia, bastava apenas exibi-lo, numa constante ameaa e com alguns exemplos sangrentos ocasionais. O nico recurso contra isso era um terror ainda maior. Ao final, a humanidade acabaria por se render, pelo menos para poder viver em paz numa terra devastada. Era uma lgica de pesadelo. Mas, uma vez aceitas as premissas, no havia como escapar concluso inevitvel. Suzanne veio ver-me ento e, pelo menos por um momento, o pesadelo dissipou-se. Ela estava calma e carinhosa. Beijamo-nos e ficamos de mos dadas, recordando, sem qualquer arrependimento, um passado apaixonado.
Quando lhe perguntei, jovialmente, se no gostaria de reviv-lo, Suzanne sorriu e sacudiu a cabea. No, chri. Nossos coraes no estariam empenhados numa nova ligao e j no somos bastante jovens para mentir um ao outro. Ns dois perdemos o trem e estamos agora de p na estao, de mos dadas. Foi o que sonhei na noite passada. Fico contente por sua presena, Suzy. Obrigado. No h o que agradecer, Paul. Fiquei satisfeita por poder sair do hotel. Sorrio quando o vejo travando discusses de apaixonado com Juliette, mas quase esqueo que tenho de controlarme ao mximo toda vez que George aparece. Sob o mesmo teto, quase intolervel... Se quiser, pode vir morar aqui. Obrigada, Paul, mas no posso aceitar. Se precisar de companhia, virei sempre que me chamar. Que Deus a abenoe, mulher! Agora saia daqui e deixe que me vista. Temos um dia atarefado pela frente. Eu lhe falarei a respeito durante o caf. Felizmente para nossos propsitos, Takeshi era um escravo da rotina. A
mesa do caf estava posta, as torradas embrulhadas como um presente de casamento, a manteiga enrolada, o suco acondicionado em gelo picado. A correspondncia e o jornal da manh foram trazidos logo depois do bacon com ovos e antes da segunda xcara de caf. Takeshi rasgou os envelopes tirando os selos estrangeiros para seu sobrinho de San Francisco. Recolheu as contas domsticas a fim de pag-las com sua verba especial. Peguei o jornal e minha correspondncia pessoal, seguindo para a sala de estar, onde Takeshi serviu outro caf, em xcaras limpas. Depois ele saiu, para dedicar-se s suas tarefas domsticas. O envelope pardo era o ltimo da pilha. Takeshi tinha observado que ele no trazia selo nem carimbo postal. Fingi surpresa. Sopesei-o e entreguei-o a Takeshi, que voltara sala, para que o abrisse, observando que no tinha nenhum endereo de remetente. Certifiqueime de que ele lesse o bilhete e partilhasse minha surpresa pelo recebimento de uma correspondncia enviada por uma mulher morta. Pedi-lhe ento que ligasse para Arlequim, a quem eu
disse: Acaba de acontecer algo muito estranho, George. Precisamos tomar uma deciso urgente. Suzy e eu estaremos a dentro de trinta minutos. No, melhor no discutirmos o assunto por telefone. Creio que um problema para a polcia. E acho que vamos precisar tambm de Saul Wells... Saul Wells falava cem palavras por minuto, andando de um lado para outro, soltando baforadas e espalhando cinzas e frases esparsas de conselho. Ambos so estrangeiros. Esto me pagando para descobrir as coisas. Assim, quando o barulho comear, deixem que eu fale tudo...Tudo o que precisam dizer que o caderninho caiu na caixa de correspondncia como dinheiro chovendo do cu. claro que sabem o contedo dele. Eu tambm sei. Tenho cpias fotostticas de todas as pginas. Isso normal. Sou um agente de segurana, registrado e licenciado. Mas sou tambm um homem de negcios, procura de novos clientes. Entro em contato com as outras empresas relacionadas no caderninho, contatos de alto nvel, na base do mais
estrito sigilo, e com sua permisso, Sr. Arlequim. O senhor levou um golpe, o mesmo pode acontecer com as outras empresas. Os diretores ficam agradecidos...e tambm assustados. Assim que eu saio, eles telefonam para Basil Yanko. Ele fica preocupado...e exatamente isso o que estamos querendo. Enquanto isso, a polcia se apodera do caderninho e o FBI tambm toma conhecimento dele. A polcia est preocupada com um assassinato. O FBI est preocupado com a segurana nacional, fraude internacional e uma poro de grandes companhias a pressionlo. Ter que responder a duas perguntas embaraosas, Sr. Desmond: quem poderia ter-lhe enviado o caderninho e por qu? Eles tentaro descobrir as respostas por vinte caminhos diferentes, mas sempre voltaro a procur-lo. A resposta ser sempre a mesma: o senhor no tem a menor idia. Terei ento que mentir. Viu o envelope sendo entregue? No. Pode ler mentes? No.
Como poder ento estar mentindo? No se sinta culpado, amigo, pois isso fatal. No matou ningum, no roubou nada. um banqueiro estrangeiro, que contratou ajuda local e quer agir rigorosamente de conformidade com a lei...Agora a sua parte, Sr. Arlequim. Disse a Yanko que estava de posse de um dossi sobre ele. Mande copilo agora mesmo. Se o FBI lhe pedir o original, ter que entreg-lo... isso pressupondo que Yanko lhes fale a respeito. Ele seria tolo o bastante para isso? No seria uma tolice, Sr. Arlequim. Pelo contrrio, seria uma manobra bastante esperta. Yanko opera alguns contratos consideravelmente delicados e j foi investigado uma centena de vezes. Quando se trabalha para o governo, no necessrio ter uma ficha limpa, contanto que se faam confisses honestas nos interrogatrios. Est chocado? Meu caro Sr. Arlequim, quando se contrata um homem para projetar um sistema de msseis, compra-se o seu talento e esquecem-se seus pecados. Enquanto tais pecados
estiverem arquivados, o esquema seguro para os dois lados. Ter que responder tambm algumas perguntas embaraosas, Sr. Arlequim. Por exemplo: suspeita de que Yanko tenha cumplicidade nas fraudes? V alguma relao entre as fraudes e a morte da Srta. Hallstrom? Estou preocupado apenas com a coincidncia de sua oferta para comprar meu banco. timo. Essa precisamente a linha que dever seguir. O fato de ter chamado a polcia sua ajudar bastante. H outro problema, Sr. Wells. Disse a Yanko que minhas investigaes haviam constatado uma ligao entre Bernie Koonig e Frank Lemmitz. Os ferimentos do Sr. Desmond ainda so bastante evidentes. Provavelmente o problema ser levantado. Esse ponto est coberto, Sr. Arlequim. Tem um contrato escrito com a Lichtman Wells. Pode apresentar algum contrato com outro investigador? No. Ento relaxe. A impresso que tenho, Sr. Wells, de que estou vivendo em outro
planeta. Est enganado, Sr. Arlequim disse Saul Wells alegremente. a mesma velha Terra de sempre. O nico problema que o senhor no tem circulado o bastante. Agora respire fundo, pois vou chamar a polcia. Depois contaremos at dez e telefonar para o Sr. Yanko. S quero ver a cara dele quando chegar aqui! Esse prazer, no entanto, lhe foi negado. O Sr. Basil Yanko seguira para a Europa na noite anterior. Sua secretaria no sabia informar quando voltaria. A polcia mostrou-se grata, mas bastante vaga. Ouviram em silncio as explicaes eloqentes de Wells. Pediramme que as confirmasse. Tomaram anotaes. Examinaram o envelope, ficaram com o caderninho, assinaram um recibo por ele, agradeceram-nos pela ajuda prestada e partiram. Saul Wells ficou desconcertado e infeliz. Ns lhes entregamos dinamite e eles a trataram como se fosse fogo de artifcio! Yanko est mergulhado at o pescoo no fracasso e parte inesperadamente para a Europa! No estou gostando. Algo est me cheirando mal.
Arlequim recusou-se a ficar perturbado. Isso teatro, Sr. Wells. O silncio mais assustador que a fala. No podemos ficar hesitantes e temerosos. At agora, nossos depoimentos esto sendo integralmente confirmados. Por favor, mantenhamos a calma. Foi ento que o telefone tocou. Atendi. Karl Kruger estava na linha, falando de Hamburgo. Ol, meu jovem Paul! Como vo as coisas? Estamos lutando, Karl. E at agora estamos conseguindo resistir. A, talvez. Aqui acho que esto se precipitando rapidamente. Foi por isso que resolvi telefonar. Pediram-me que reunisse um grupo de subscritores para a emisso de um bnus municipal da Bundesrepublik. No nada grande, mas uma operao importante. Inclu o nome de Arlequim na relao, mas eles o cortaram. Por que motivos? E quem d as razes? Voc sabe perfeitamente como o mercado, Paul. E como o menino est se comportando? Maravilhosamente.
Ouvi dizer que ele pretende exercer as opes, a cem dlares por ao. Isso o transforma num idiota. Onde ele est? Aqui ao meu lado. Gostaria de falar com ele? Quero, sim. H uma reunio em Frankfurt amanh. Foi Yanko que a convocou. Alguns dos acionistas de vocs estaro presentes. So todos minoritrios. E no podemos esquecer tambm que Arlequim tem opo para comprar suas participaes. A segunda opo sua. O que eles podem fazer? Podem gritar que o peixe est podre e provocar uma reviravolta no mercado, s isso. Arlequim deve ser informado. Acho at que ele deveria vir participar da reunio. Diga-lhe isso. Diga-o voc mesmo. Vou chamlo...George, Karl Kruger quem est ao telefone. Arlequim pegou o telefone e iniciou uma conversa longa e animada, em alemo. Saul Wells levou-me para a antesala e fez-me uma preleo queixosa. Oua-me com ateno, Sr. Desmond! Conheo esta cidade.
Conheo a polcia e o FBI, sei como eles trabalham. Nos jornais, tivemos apenas uma notcia de meia coluna, depois mais nada. E da polcia, o que foi que tivemos? Muito obrigado pela informao, perguntas de rotina, tudo suave como o diabo! Daqui por diante, verifique seus telefones e no fale coisa alguma diante dos empregados. Vou mandar um homem verificar diariamente este apartamento e o seu, procura de microfones ocultos. Se quiser falar algo em particular, v para um parque ou at uma biblioteca. Est certo, Saul. Seguiremos seu conselho. Mas que diabo, ns no somos criminosos! Eu sei que no. Mas esto agora de posse de informaes da maior importncia. No conhecem todas as companhias relacionadas naquele caderninho, mas eu conheo. Pelo menos cinco delas so organizaes de alta segurana, trabalhando em projetos de defesa nacional. Portanto, mesmo sendo irmos de sangue do presidente, os telefones de vocs podero ser controlados. Ambos so estrangeiros, e ns temos medo dos estrangeiros, Sr.
Desmond. Preferimos proteger uma meretriz nascida aqui como Yanko a um par de virgens estrangeiras...No faz a menor idia de como fcil incriminar uma pessoa. J fizeram negcios com a Cortina de Ferro? J estiveram na China? Alguma vez j tiveram qualquer ligao com agentes de alguma potncia estrangeira? E como podem explicar as informaes de Yanko sobre o banco? No necessrio que sejam verdadeiras. Pode ser uma simples opinio, mas, uma vez impressa nos cartes de um computador, passa a ser encarada como um evangelho sagrado. Espero que me perdoe o comentrio, mas a verdade que basta uma simples palavra para transformar a Virgem Maria em Maria Madalena. O Sr. Arlequim talvez no compreenda tal situao e... Eu compreendo perfeitamente, Sr. Wells. Arlequim estava parado na porta, vermelho e indignado. Procuraro intimidar-nos at a rendio final. No quis ofend-lo, Sr. Arlequim. Est me pagando para prestar-lhe um servio completo, e precisamente isto o que estou tentando fazer.
Eu sei, Sr. Wells, e aprecio devidamente seus esforos. No estou zangado com o senhor. Estou afrontado por todo esse caso srdido, incluindo essa reunio em Frankfurt e o suborno de colegas meus. Prefiro padecer no inferno a ceder s presses de Basil Yanko. Quantas cpias fotostticas ns temos do caderninho de anotaes de Valerie Hallstrom? O senhor tem uma e eu tenho trs. D-me mais uma. O que pretende fazer? Sr. Wells, sou um suo extremamente bem considerado. Vou fazer uma visita a meu embaixador em Washington. Acho que devemos ir todos ns, Paul. A mudana de ares nos far bem. Tenho seu telefone, Sr. Wells. Pode deixar que o informarei onde poder encontrar-me. Quero avisar-lhe, Sr. Arlequim, que Basil Yanko tem muitos amigos em Washington. Eu sei. Mas ns temos tambm uma relao de seus inimigos. Experimente-os antes de lhes dizer qualquer coisa. Washington tem um clima engraado, a que algumas pessoas no se acostumam muito bem.
Desejo-lhe boa sorte. Dez minutos depois que ele se foi, o chefe da portaria ligou para a sute. Um cavalheiro desejava falar com o Sr. Arlequim. Suzanne desceu para encontr-lo e descobrir o que ele desejava. Poucos minutos depois ela apresentou-o pessoalmente: o Sr. Philip Lyndon, do FBI. Ele era jovem, bronzeado, bem-vestido. A princpio, suas maneiras foram impecveis. Ficou satisfeito ao encontrar-me tambm, dizendo que isso lhe pouparia tempo e repetio. Em primeiro lugar, queria deixar bem claro que aquela era uma reunio confidencial, de parte a parte. Estava relacionada com a Creative Systems Incorporated, com a qual Arlequim et Cie. mantinha ligaes como subscritora, acionista, banqueiro e cliente. Informara-se que a Creative Systems apresentara uma oferta para assumir o controle de Arlequim et Cie. O Sr. Arlequim era o presidente e o maior acionista, no ? E o Sr. Desmond, tambm presente... No suo, no , Sr. Desmond? No. Sou australiano. Tenho um visto de negcios.
Portanto, devem ter detalhes pessoais a meu respeito nos arquivos. Temos, sim. Qual sua posio em Arlequim et Cie.? Sou diretor executivo. Ele o meu colega de diretoria mais importante e um amigo de longa data. Obrigado, Sr. Arlequim. Agora vamos poupar tempo. Estamos cientes de suas dificuldades, Sr. Arlequim. Lemos o relatrio de suas operaes de computador. Sabemos que contratou a Lichtman Wells para investig-las. Tais operaes podem vir a ser investigadas tambm por outros aspectos. Talvez ainda no saiba, Sr. Lyndon, que a polcia sua j foi informada de todo o ocorrido e est trabalhando no caso. A operadora de Nova York implicada no caso, Srta. Ella Deane, est morta. Nossos advogados informaram-nos que no temos mais nenhum recurso legal nesta jurisdio, a menos e at que recebamos mais informaes de nossos investigadores. Compreendo. Tendo em vista que contratou investigadores
particulares, posso supor que no est satisfeito com o relatrio da Creative Systems? Eu no disse isso, Sr. Lyndon. O relatrio estava de acordo com o contrato, que estipula a verificao da segurana do sistema e a indicao de quaisquer anomalias no funcionamento do programa. Certo. Mas foram cometidas fraudes em todas as suas filiais, e at agora o senhor identificou apenas uma nica operadora. Os investigadores ainda esto trabalhando nas outras filiais. Est convencido de que a Creative Systems no est envolvida na fraude? difcil responder a essa pergunta sem criar uma falsa impresso. H dois pontos a destacar. Primeiro: o relatrio exime de culpa todos os funcionrios da Creative Systems, mas no apresenta nenhuma prova a corroborar tal afirmativa. Segundo: existe a curiosa coincidncia de se haver apresentado uma oferta para assumir o controle de Arlequim et Cie. logo depois da entrega do relatrio.
Isso pode ser, claro, apenas um ato de oportunismo empresarial, no* muito tico, verdade, mas tambm no criminoso. possvel. Suponho, Sr. Desmond, que tenha agido em todo este caso como procurador do Sr. Arlequim, no? Exatamente. Inclusive quando discutiu o relatrio com a Srta. Valerie Hallstrom? Inclusive. E inclusive quando se encontrou com ela em duas outras ocasies? A, no. O primeiro encontro foi puramente acidental, o segundo foi um encontro social. Depois do qual ela foi assassinada. Sobre isso, claro, estamos a par das investigaes da polcia. Sr. Desmond, pediu por acaso Srta. Hallstrom que explicasse ou comentasse o relatrio? Pedi. E ela o fez? Ela explicou-me o significado. Convideia a enunciar suas concluses, mas ela recusou, alegando que no tinha ordens para faz-lo. E pressionou-a? No.
Pediu ou induziu-a a fornecer quaisquer informaes sobre a Creative Systems? No. Ela sugeriu que estava disposta a faz-lo, sob determinadas condies? No. Por que procurou ter um encontro social com ela? Sou um homem solteiro. E ela ...era uma mulher atraente. Arlequim interveio suavemente: Acho que poderamos poupar um tempo precioso ao Sr. Lyndon, se o informssemos do que aconteceu esta manh. Agradeceria a informao, Sr. Arlequim. Esta manh o Sr. Desmond encontrou em sua caixa de correspondncia um envelope pardo comum, sem carimbo postal nem endereo do remetente. O envelope continha um caderninho preto e um bilhete com as palavras "Cumprimentos de Valerie Hallstrom". O caderninho continha os nomes de diversas empresas, entre as quais a nossa, com os respectivos cdigos de computador. O Sr. Desmond telefonou-me
imediatamente. Encontramo-nos aqui com o Sr. Wells e logo depois entregamos o caderninho polcia. Imaginamos que ele seria posteriormente encaminhado ao FBI. Mas suas perguntas ao Sr. Desmond parecem indicar que ainda no o receberam. Ainda no, Sr. Arlequim. O Sr. Philip Lyndon estava visivelmente abalado. Isso...isso algo inteiramente novo para mim. Tem certeza quanto ao contedo do caderninho? Tenho. Se me der licena por um minuto, irei buscar o recibo da polcia e uma cpia fotosttica dos registros. Sugeri ao Sr. Wells que se comunicasse com as companhias relacionadas, no caso de elas terem sofrido tambm uma quebra da segurana... Infelizmente tal atitude bastante irregular. Irregular! Arlequim, que j ia saindo da sala, estacou bruscamente. Irregular como, Sr. Lyndon? Os cdigos de computador so informao confidencial. Eu tambm pensava que fossem, Sr. Lyndon. E tal erro custou ao
meu banco quinze milhes de dlares...Pronto, aqui esto o recibo e a cpia fotosttica. Terei que ficar com eles. No, Sr. Lyndon. Por lei, esses documentos me pertencem. Mas pode perguntar, delicadamente, se permito que os leve. Peo desculpas. Poderia lev-los? Pode, Sr. Lyndon. Mas, naturalmente, ter que assinar um recibo. Ele fechou as pginas, franzindo o cenho e deixando escapar pequenos murmrios de aflio. Depois, virou-se para mim. Sr. Desmond, poderia informar-me, com detalhes, como esse caderninho chegou s suas mos? Ele queria detalhes e conseguiu-os. Falei sobre meus hbitos matutinos, a rotina de Takeshi, a coleo de selos de seu sobrinho e, para rematar, a presena de Suzanne. Ele ento formulou a pergunta que realmente importava: Quem lhe enviou o caderninho, Sr. Desmond? No sei. Mas deve ter pensado a esse respeito.
Que horas so, Sr. Lyndon? Meio-dia em ponto. Por qu? Recebi o caderninho durante o caf da manh, h quatro horas. Desde ento tenho estado numa roda-viva, com o Sr. Arlequim, com Saul Wells, com a polcia e agora com o senhor. No tive muito tempo para pensar. E, por favor, gostaria que considerasse todos os fatos. O que eu iria fazer com esse caderninho? Vend-lo? Com-lo? Tratase de uma prova material num caso de homicdio. Quis livrar-me dele o mais depressa possvel. No o comprou, por acaso? De quem, Sr. Lyndon? Talvez da prpria Srta. Hallstrom. E ela estava vendendo segredos? A possibilidade est sendo analisada. Mas por que haveria de querer comprlos? Talvez para desacreditar a Creative Systems. Li a declarao que distriburam imprensa esta manh. Suponho que no esto dispostos a vender. Mas ho de convir que o preo bastante atraente para alguns acionistas. Est fazendo uma pergunta ou uma afirmao, Sr. Lyndon?
apenas uma hiptese, Sr. Desmond, para estimular a discusso. No haver mais discusso alguma. As palavras de George Arlequim eram categricas. Ele levantou-se e foi ao telefone, ligando para a telefonista do hotel e pedindo uma ligao para o embaixador suo em Washington. O Sr. Philip Lyndon era um bom interrogador, mas perdeu a calma no ltimo instante. Por favor, Sr. Arlequim, espere um instante. Eu exagerei. Peo desculpas. Mas Arlequim estava inflexvel. Sinto muito, Sr. Lyndon. A reunio est encerrada. Ns lhe dissemos a verdade. Se no aceita tal fato, em nada mais podemos ajud-lo. Considero sua insinuao como extremamente ofensiva. Tenho razes para acreditar que talvez seja inspirada. Se assim , isso o desacredita inteiramente como funcionrio do governo...Al? Erich? Aqui George Arlequim. Estou em Nova York. Preciso falar-lhe sobre um problema diplomtico de alguma importncia. Mas melhor falarmos em nossa lngua.
Ele conversou durante cinco minutos em alemo-suo, desligando em seguida. Vamos para Washington, Paul. Sugiro que procure tambm sua embaixada assim que chegarmos l. E agora, Sr. Lyndon, vamos ser claros. Estamos e estaremos sempre dispostos a fornecer-lhe quaisquer fatos nossa disposio sobre assuntos relacionados com sua investigao, a qual, segundo o Sr. Yanko me informou, versa sobre problemas de segurana nacional. Por outro lado, porm, devo declarar-lhe que no nos iremos submeter a interrogatrios insolentes e trataremos de nos proteger, se necessrio atravs de interveno diplomtica. um direito seu, Sr. Arlequim. O Sr. Lyndon j recuperara suas boas maneiras e um pouco de sua coragem. Extra-oficialmente, no o culpo por isso. Usou a expresso "insinuao inspirada". No poderia explic-la? Vou defini-la, Sr. Lyndon: uma forma de assassinato, pela qual se sufoca um homem com insinuaes malvolas. Bom dia.
Nunca vira Arlequim to furioso. Estava totalmente branco e os olhos pareciam duros como pedra. Ficou andando de um lado para outro da sala, batendo com o punho fechado na palma da outra mo e despejando uma torrente de palavras iradas, enquanto Julie e Suzanne o contemplavam, chocadas e em silncio, paradas na porta. Estou simplesmente revoltado. Karl Kruger acha que devo ir a Frankfurt. Para qu? Para suplicar a homens a quem enriqueci...para provarlhes que no sou um vilo nem um idiota!... agora somos intimidados por burocratas e agentes, assustados como criancinhas a ouvirem sussurros na escurido!... No! No! No! Prefiro antes morrer numa fossa!...Julie, arrume nossas malas. Vamos partir para Washington. Suzanne, faa reservas para todos ns. Iremos de trem. Arrume acomodaes no... Espere um momento, George. Eu que fao as reservas. Isso parte de nosso acordo com Bogdanovich. Faa-as ento, Paul. Mas tem que ser agora mesmo. Suzy, ponha Herbert Bachmann ao telefone. Depois... George, por favor!
Julie plantou-se diante dele, pondo as mos em seus ombros, procurando acalm-lo. Agora voc quem est bancando o arrogante. Voc no assim, querido. Pare com isso! Passou-se um longo momento antes que Arlequim conseguisse dominar-se. O esforo que ele fez foi visivelmente doloroso. Quando finalmente falou, sua voz era spera e tensa: Lamento muito se estou parecendo agressivo. Vocs queriam que eu lutasse. Avisei que talvez no fossem gostar do homem que vive dentro de mim. Agora eu tenho que conviver com ele. Vocs tm outras alternativas. Juliette fitou-o por um instante, plida e assustada. Depois desatou a chorar e saiu correndo da sala. Suzanne lanou um olhar de censura para Arlequim e seguiu atrs dela. Eu enfrenteio, furioso tambm. Pelo amor de Deus, George! Por que tinha de dizer uma coisa to brutal? Ser que foi mesmo? Ao final de toda essa histria, Julie talvez pense que foi apenas um momento de delicadeza. E o mesmo talvez lhe
acontea tambm, Paul. A Agncia de Viagens Apex no era absolutamente um lugar em que algum pudesse esperar providenciar acomodaes de primeira classe numa viagem, muito menos conseguir sutes de luxo em Embassy Row. Era uma loja pequena e cheirando a mofo, na parte ainda no recuperada de Greenwich Village, com cartazes pregados com percevejos e folhetos dobrados. A recepcionista tinha cara de cigana, usava um vestido de brim e muitas contas. Mas quando eu enunciei meu nome e declarei que estava no negcio de flores, a loja pareceu subitamente adquirir vida. A cigana parecia dez anos mais moa, seu sorriso era a promessa de boa sorte. Washington era uma cidade permanentemente cheia, mas ela tinha certeza de que arrumaria alguma coisa. Dentro de uma hora as passagens de trem estariam no hotel. Haveria uma limusine nossa espera assim que chegssemos a Washington. As outras providncias demoraram um pouco mais para serem explicadas. Nosso contato em Washington seria um certo Kurt Saperstein,
que tambm estava no negcio de flores, com uma loja chamada Bernard's Blooms. Ao que parecia, suas atividades tinham mbito nacional. Portanto, as comunicaes no constituiriam problema. Assim que nos acomodssemos, eu deveria informar-lhe os nmeros de nossos quartos. Talvez houvesse um contato no prprio Embassy Row, mas Kurt me informaria a respeito no devido tempo. Ele seria o responsvel pela transmisso das informaes a Aaron Bogdanovich. Mas era preciso ser cauteloso. Washington era uma cidade muito sensvel, na qual os agentes secretos eram mais numerosos que a grama num gramado. As medidas de segurana eram rigorosas e compensava ser supercuidadoso. Entreguei os cartes de crdito cigana e voltei para meu apartamento. Takeshi ficou contente ao ver-me. Ele tambm fora visitado pelo Sr. Philip Lyndon, que o interrogara a respeito da correspondncia. Ouvira falar sobre a agresso e queria saber tambm a respeito disso. Mas aparentemente o que mais o interessava era saber os nomes e as descries de meus visitantes
mais recentes. Ele ficara furioso porque Takeshi o deixara de p no capacho, sem convid-lo para entrar a fim de poderem conversar mais vontade. Esse, claro, fora seu grande erro. Takeshi possui um orgulho desmedido de sua cidadania americana e uma sensibilidade japonesa com relao dignidade. Quando se sente insultado, descobre que lhe difcil compreender o ingls mais simples e muito mais difcil ainda fal-lo inteligivelmente. Recordar nomes e rostos torna-se ento uma impossibilidade absoluta. E assim o Sr. Lyndon partira mais infeliz do que chegara e sem saber de mais nada. Como eu ia partir, pareceume uma medida sensata despachar Takeshi numas pequenas frias, custa do banco. Seu sobrinho devia estar sentindo saudades. Takeshi confirmou que isso de fato acontecia. Fez minha mala e a sua tambm. Samos juntos do apartamento. A viagem para Washington foi uma lgubre peregrinao. George sentou-se numa extremidade do vago, ditando cartas para Suzanne, enquanto eu me sentava na outra extremidade, bebendo bourbon e jogando gin rummy
com Juliette. Ela estava calma, mas plida e distante como se vivesse no mundo da lua. Jogou com uma concentrao profissional, desencorajando qualquer conversa que no fosse sobre assuntos triviais. Fiquei satisfeito por no ter que envolver-me no que parecia ser uma crise conjugai de amplas propores. Eu ainda estava furioso com Arlequim. Ressentia-me de sua pressuposio que o fazia tratar-me como um simples servidor sempre s suas ordens, como um acompanhante eventual para sua esposa. Empenhara toda a minha fortuna para ajud-lo, assumira at mesmo riscos pessoais. No fazia parte da barganha ter que assumir o papel de substituto que sofria os dissabores no lugar dele. Alm disso, eu estava bastante preocupado com a sbita ruptura de seu autocontrole. Estvamos empenhados numa estratgia complicada e perigosa. At aquele momento, travramos apenas simples escaramuas. E se os nervos j comeavam a lhe faltar, ento corramos grave perigo. At mesmo Suzanne, a tolerante, a ponderada, estava preocupada. O cavalheiro galante, sorridente e sempre bem-humorado que ela
amara por tanto tempo era agora um homem de lbios cerrados e arrogante, no se apercebia mais da afeio que lhe dedicavam. Juliette estendeu a mo por cima da mesa e colocou-a sobre a minha. Estava extremamente fria. sua vez de jogar, Paul. Desculpe. Estava a muitos quilmetros de distncia. J se cansou de jogar? Se no se importa... Voc parece estar muito triste. No estamos seguindo exatamente para um piquenique, menina. Por favor, Paul, no culpe George. Fitei-a, perplexo. Aquela era outra Julie, grave como uma freira, fria, uma completa estranha. Ela continuou imediatamente, impassvel: Sei que difcil de entender, mas voc tem que procurar faz-lo. Para mim tambm muito difcil. Mas hoje fui obrigada a aceit-lo. Ns todos sempre consideramos George pelas aparncias. Ele to bom em todas as coisas que nunca perguntamos o que o fazia to bom. Eu, inclusive, menos do que qualquer outra pessoa. Voc ouviu o que eu lhe disse no hospital, que
tudo que ele tinha ganhara-o de presente, que nunca precisara lutar por nada. Mas no verdade...Quando ele faz algo, tem que ser perfeito, to perfeito que parece no ter exigido o menor esforo. E assim esquecemos o esforo que ele na realidade fez. Montar a cavalo, velejar, falar muitas lnguas, tudo a mesma coisa. Comecei a recordar uma poro de coisas. Muito antes de viajar para a China, George passou muitas noites acordado, praticando os ideogramas e entoando a fala cadenciada dos chineses, como se fosse um cantor de pera a exercitar-se. J o vi no lago, sozinho, amarrado num trapzio, em dias de muito vento, fazendo circuitos interminveis numa prancha de wind-surf. Quando o vemos nas corridas de cavalos, esquecemos que ele conhece de cor o stud-book. H muito que eu achava tudo isso normal. E, ao atac-lo, no me apercebi da ferida profunda que estava abrindo...George est fazendo a mesma coisa agora, e terrvel assistir a isso. Mas no podemos esquecer que ele nos avisou, chegou mesmo a dizer: "Creio que posso transformar-me no maior pirata entre todos, capaz de sorrir
enquanto limpo o sangue de meu alfanje". Ele inclusive est praticando tambm para isso. Est querendo afastarnos, porque o amor que sentimos por ele uma desvantagem. Est procurando tornar-se um homem impiedoso, para ser exatamente aquilo que mais detestava, que mais tinha medo de ser. Ele nos disse a verdade. Ns que estvamos cegos demais para enxerg-la...Era o discurso mais longo que j ouvira Julie fazer, e tambm o mais triste. Era uma confisso de fracasso pessoal e uma premonio de desastre, mais terrvel que a perda de um imprio financeiro. Expressava tambm uma solido alm de nossa experincia: a solido do exorcista que, ao esconjurar os demnios, est consciente de que ele prprio pode ser a qualquer momento possudo. ...Compreende, agora, Paul, por que no deve deix-lo? O que quer que ele diga, o que quer que faa, voc no pode deixar que ele se afaste. Voc o adora e ainda no o perdeu. Eu o amo, mas ele est agora muito longe de mim e no sei se algum dia poderei t-lo de volta. Ao final, possvel que
nosso filho volte a nos unir. Talvez mesmo Suzanne...No, no precisa sacudir a cabea. Eu sempre soube que ela estava apaixonada por George. Nunca compreendi por que ele jamais o viu. que ele estava apaixonado por voc, Julie. E ainda est. Paul, voc no est compreendendo! Ela estava agora desesperada. Sua mo era como um torno a apertar-me o pulso. Ele est rejeitando o amor! Est tentando arranc-lo de dentro de si mesmo, porque ingressou nesse mundo novo, onde no existe amor, apenas ganncia, inveja e terror. Mas voc um homem diferente, meu querido Paul. Usa a vida como se fosse um terno velho, com manchas e tudo. George no pode faz-lo, nunca o fez. Para ele, o paraso ou o inferno, sem nada entre os dois...Sei que voc me ama, Paul. E por isso que lhe suplico: fique com ele! Eu ainda estava procurando palavras para dizer quando o chefe do trem surgiu ao nosso lado e anunciou a chegada iminente Union Station. 5
Em Washington, descobri que a mulher com cara de cigana fora extremamente generosa comigo. Arlequim e Juliette ficaram alojados numa imensa sute do quinto andar, onde poderiam receber um regimento, se assim o desejassem. Suzanne e eu ganhamos dois quartos, com uma sala de estar comum, no andar inferior. A geografia era importante. Estvamos isolados do atrito domstico. Suzanne tinha um lugar para trabalhar. Poderamos ficar sozinhos ou fazer companhia um ao outro, conforme tivssemos vontade. A gerncia nos enviara chocolates e frutas e eu recebera tambm um extico arranjo de flores da Bernard's Blooms. O bilhete dizia: "Seja bem-vindo a Washington. Cumprimentos de Aaron". Eu acabara de desfazer as malas quando o telefone tocou, com um novo voto de boas-vindas. Sr. Desmond? Quem est falando Arnold, chefe da portaria. Estou telefonando para saber se recebeu as flores e o bilhete. Recebi, sim, obrigado. s ordens, senhor. Fazemos muitos negcios com Bernard e
gostamos de manter seus clientes sempre satisfeitos. Se precisar de alguma coisa, no hesite em chamar-me pessoalmente. Desejo que sua estada aqui seja a mais agradvel possvel. Esperava que fosse, mas estava propenso a duvidar. Um momento depois, Suzanne entrou em meu quarto, corada e irritada. Estava exausta da viagem, e Arlequim ainda queria que todas as cartas que ditara estivessem datilografadas e prontas para serem assinadas antes de ele partir para a embaixada, s dez horas da manh seguinte. Ela no se importava com o trabalho, mas por que ele tinha de ser to frio? Nunca fora assim antes e no tinha necessidade de s-lo agora. Fi-la sentar-se e abasteci-a de scotch e simpatia. E ento, distraidamente, ela contou-me que Arlequim estava se preparando para descarregar no mercado todas as aes que o banco possua da Creative Systems e de suas subsidirias. As nicas consideraes que ainda o retinham eram os interesses dos seus clientes e o fato de que possua tambm uma parcela considervel das referidas aes.
Fiquei furioso, porque ele no discutira o assunto comigo e porque tal operao to moral quanto um assassinato, muitas vezes at mais brutal que um assassinato. O princpio o mesmo, embora seja necessrio muito dinheiro e muito sangue-frio, muito mais que num assassinato. Quando se comea a vender grandes quantidades de aes de uma determinada empresa, imediatamente se desvaloriza a cotao. Se se continua a vender, provoca-se um pnico entre outros acionistas, que saem correndo para vender tambm. A cotao desce ento at o poro. Se se comea a comprar novamente, no mercado exato e com dinheiro suficiente para cobrir o mercado, pode-se terminar, seno com o controle, pelo menos com um lucro considervel e possivelmente com votos suficientes para se conquistar um lugar na diretoria da empresa. Isso timo para o autor da manobra, mas pode ser ruinoso para outras pessoas menos afortunadas, que vem as economias de toda uma vida liquidadas da noite para o dia, ou os seus limites de emprstimos
drasticamente reduzidos a uma simples penada de um banqueiro. Podia compreender o raciocnio de Arlequim. O banco possua uma grande quantidade de aes da Creative Systems. Muitos dos seus clientes tambm. Alguns haviam dado ao banco plena liberdade para movimentar seus investimentos, de forma que Arlequim podia vender as aes deles sem consult-los. Se todas essas aes fossem lanadas no mercado, haveria pnico. Basil Yanko ficaria alguns milhes mais pobre. Para evitar a dbcle, ele teria que comear a comprar e continuar comprando at que o mercado se estabilizasse novamente. Acrescentando-se a isso seus outros problemas uma investigao federal, uma lista de clientes cheios de suspeitas, problemas polticos em Washington , ter-se-ia uma reverso de sua ameaa a Arlequim, com a crise de confiana atingindo uma escala global. Eu j vira isso ser feito antes. Ouvira tambm as justificativas, cnicas como as explicaes dos exploradores de mulheres, a alegao de que era uma operao normal do mercado. Vira tambm algumas das conseqncias: um
amigo que pulara de uma janela do dcimo andar, outro to abalado que fugira para sempre realidade, enquanto alguns canalhas conhecidos tornavam-se to ricos quanto Midas. O fato de Arlequim poder sequer cogitar de tal ttica enchia-me de desgosto e desiluso. J estava me preparando para invadir sua sute e desafi-lo, mas Suzy me conteve. Por favor, Paul! Se ele souber que eu lhe contei, nunca mais confiar em mim. Alm disso, tenho certeza de que ele no tomaria essa iniciativa sem consult-lo primeiro. Sei que ele conversou com Herbert Bachmann a respeito e pediu-lhe que fizesse alguns clculos sobre os efeitos no mercado. Ainda no recebeu os clculos e no transmitiu quaisquer instrues aos nossos gerentes. uma operao grande e ele tem que prepar-la minuciosamente. Se ele fizer isso, Suzy, para mim acabou. Para sempre! E estou falando srio. No sei o que deu nele! Ela lanou-me um olhar demorado e inquisitivo e disse categoricamente: muito diferente do que voc mesmo est fazendo, Paul? S que
voc o est fazendo por procurao, atravs de Aaron Bogdanovich. E muito diferente do que Basil Yanko est fazendo, exceto pelo fato de ele estar querendo aumentar as cotaes ao invs de baix-las? muito diferente, Suzy. A nossa uma guerra particular. Yanko atacou-nos e estamos reagindo com suas prprias armas. Mas, se George iniciar essa operao, muitos espectadores inocentes acabaro sofrendo as conseqncias. Se eles jogam no mercado, sabem que esto correndo riscos. pirataria pura e simples. E George sabe disso. No mesmo instante Suzanne incendiou-se, com a ira dos justos. Por que voc est bancando Simo, o Puro, enquanto George transforma-se subitamente num monstro? Vou lhe dizer por qu! porque voc quer ver George nas alturas, empoleirado num pedestal, como o protetor dos fiis. Ele o faz sentir-se bom, mesmo que voc no o seja. Voc como Julie. Nenhum dos dois acredita que ele seja um homem. Querem que ele seja algo de que possam ao mesmo tempo orgulhar-se e sentir inveja. Querem
olhar pela janela e v-lo de p l fora, todos os dias o mesmo, faa sol ou chuva, com os pombos empoleirados em sua cabea. Para vocs, ele tem que ser como o cavaleiro de bronze do Capitlio. Enquanto ele estiver l, Roma estar segura. Mas George no de bronze nem de mrmore. Ele de carne e osso, com um sangue mais quente do que vocs jamais admitiram. Se ele quer lutar, deixem-no lutar! No lhe amarrem as mos. No quero que ele seja motivo de zombaria nesse antro de salteadores a que vocs chamam pomposamente de mercado. E no me importa que ele esteja certo ou errado! Eu o amo, entende? Eu o amo... De todos os idiotas do mundo, eu era certamente o maior. De todos os apaixonados do mundo, era certamente o mais cego. Tivera aquela mulher em meus braos, dia aps dia, ms aps ms, e nunca fora capaz de encontrar o talism que abriria a caverna do tesouro de seu amor. Pois bem, agora eu o tinha, s que, para mim, era a mesma coisa que t-lo no fundo do Potmac. Servi-nos de outra rodada e fiz um brinde secular: Ao crime!...At que ponto ns iremos?
At que ponto voc ir, Paul? Acho que at o ponto em que meus nervos agentarem. Ou sua conscincia. Pensa mesmo que tenho uma? Meio confusa, mas tem. Como assim? que ela sempre se interpe entre voc e George, entre voc e Julie...No, chri, no fique zangado. Voc e eu passamos muito tempo juntos. Foi bom, mas no foi o melhor. Ambos sabemos por qu. Ambos estamos vendo o que h de errado naquele casamento. Se ele terminar, voc provavelmente ficar com Julie. Eu no ficarei com George, pois sou apenas uma parte da moblia, para a qual ele nem olha mais. Alm disso, j estou muito velha para o jogo do amor. Por isso, prefiro v-lo feliz a infeliz. Prefiro ver ambos felizes. Julie conversou comigo no trem. Ela sabe que fez uma poro de coisas erradas. No sabe, porm, como desfaz-las. Acho que voc poderia ajudar. Suzanne lanou-me um olhar impiedoso, igual ao de todas as mulheres no pice de seu descontentamento. Sacudiu a cabea lentamente e disse-me
com frieza: No, Paul. Sou a querida e boa Suzy, mas no sou to boa assim. Se voc quer ser o galante cavaleiro servidor de Julie, eu baterei palmas para voc e o estimularei, e ajudarei a mont-lo na sela do fogoso corcel...Quanto ao resto...no! No! No!...Pelo menos sou uma cadela honesta, chri. E agora ser que voc poderia levar-me para jantar? George Arlequim chamou-me s oito horas da manh. Ia sair do hotel s nove e quarenta e cinco para fazer uma visita matutina ao embaixador. Ele gostaria de almoar comigo. Esperava que eu tivesse descansado bastante. Tinha, sim, obrigado. Recebera alguma notcia de Nova York? Nenhuma. Eu passaria a manh andando de um lado para outro e lhe informaria tudo ao meio-dia e meia, quando nos encontrssemos. No estava fazendo uma linda manh? Eu ainda no vira, mas ficava satisfeito por saber que pelo menos havia um pouco de sol em nossas vidas. At mais tarde... E se era tudo o que ele queria dizer-me, que fosse para o inferno!
No quarto ao lado, Suzanne estava datilografando as cartas, com o ritmo firme de uma boa mquina sua. Meti a cabea dentro do quarto para desejar-lhe bom-dia. Ela fez-me uma saudao distrada e continuou a bater mquina. Senti-me como o ltimo dos lanceiros na brigada dos esquecidos e sem amor. Desci rapidamente para o saguo, esperando travar conhecimento com Arnold, o homem que me telefonara na noite anterior. Mas deparei-me com um caos de hspedes de partida, todos gritando por suas contas, por quem lhes pegasse as malas, por quem lhes providenciasse txis. Sa ento para o sol, peguei um txi e segui para o Tidal Basin, to descansado quanto qualquer turista provinciano, a fim de encontrar-me com o velho Thomas Jefferson, em seu santurio entre as cerejeiras. Vou contar-lhes um segredo sentimental. Esse o lugar da Amrica que realmente amo. Esse o nico homem, de toda a turbulenta histria americana, que realmente me comove at a admirao e, de vez em quando, at a meditao. Fragmentos de sua sabedoria e de seu cdigo tolerante
perduram por mais tempo em minha memria que as vozes estridentes de nosso tempo. Ele detestava "a raiva mrbida da discusso". "Se eu no puder ir para o cu com meus amigos, ento no irei para l...Alguns homens encaram as Constituies com uma reverncia hipcrita e consideram-nas, como a Arca da Aliana, sagrada demais para ser tocada ..." Suponho que, mais jovem e mais aberto, eu teria encontrado nele a mesma coisa que encontrara e perdera em George Arlequim: uma largueza de esprito, a sagacidade, o bom humor e uma alma hospitaleira a toda a experincia da humanidade. Mesmo to cedo, j havia namorados e famlias nos gramados. Invejeios. Fiquei satisfeito ao descobrir que o santurio estava vazio, pois assim poderia meditar na solido do passado, que como a solido do mar, lava e cura todos os males. Era uma pena que o passado pertencesse tosomente queles que o tinham vivido. Jefferson tambm sabia disso. "...Conheo bem essa poca, pois pertenci a ela e em seu favor envidei todos os meus esforos. E ela fez jus a seu pas..." Eu,
Paul Desmond, pertencia minha poca, lucrava com ela e no fazia jus a coisa alguma. Daquele lugar partiria para um outro, onde se vendiam flores e cumprimentos por telegrama, onde homens recebiam um tiro ao abrir a porta para receber o telegrama. Outros tempos, outros costumes! Tom Jefferson tivera sorte em no ter vivido para v-los, pois teria ento perdido muitas de suas nobres iluses. O Sr. Kurt Saperstein, da Bernard's Blooms, no tinha a menor semelhana com o Thomas Jefferson do Condado de Albermale. Ele era baixo, gordo e maneiroso, a cabea calva, cercada de um tufo de cabelos negros. Usava um terno azul-escuro, gravata borboleta e culos grossos de mope. A mo rechonchuda era mida e o sorriso largo, como que recortado numa melancia. Falava com um sotaque forte e num ritmo cadenciado, como se estivesse entoando versos. Meu caro senhor!...Seja bem-vindo, seja bem-vindo! Espero que tenha gostado das flores. Foi um de nossos melhores trabalhos. Um dos melhores! Arnold lhe telefonou? timo! um bom elemento, muito bom
mesmo. E agora, meu caro senhor, posso sugerir-lhe uma caminhada? Est fazendo um dia maravilhoso... No momento em que saiu para a rua, ele mudou completamente. Caminhava rpido e falava com calma. Apesar de sua estranha aparncia, passava despercebido como um lagarto numa rocha. Juro que teria passado por ele sem v-lo. Suas instrues foram objetivas e lacnicas: As instrues primeiro, Sr. Desmond. No haver mais contatos entre ns dois. J o vi, j o conheo. Arnold me trar suas mensagens. Mandarei as minhas com flores. Podemos fazer quase tudo o que desejar: aluguel de carros, acompanhantes de confiana, um guarda-costas, caso venha a precisar. Temos amigos em quase todos os lugares: no Pentgono, nos rgos de segurana nacional, nas embaixadas. Somos muito bons em matria de documentos, mas lembre-se de que isso demora um pouco...Tenho algumas notcias. Aaron est viajando, mas Tony Tesoriero j foi localizado em Miami. No pode nem cuspir sem que algum o veja. O FBI esteve
conversando com Saul Wells. Ele est convencido de que em breve viro procur-lo aqui. Tambm deu os telefonemas que prometeu, e o gato neste momento est se divertindo entre os pombos. Ele acha que seu presidente dever receber alguns telefonemas de outros presidentes preocupados... tudo o que tenho a dizer-lhe at agora. Est precisando de alguma coisa neste exato momento? Conhece um bom jornalista que possa divulgar uma histria e esquecer a fonte onde a obteve? Claro. Esta cidade est fervilhando de jornalistas, bons e maus. Deixe-me pensar um pouco a respeito. Quando gostaria de v-lo? Esta noite, se possvel. Mas em particular, longe do hotel. Pode deixar comigo. Arnold lhe dar a informao sobre hora e local. Preciso de um homem que depois no saia falando por a. A observao ofendeu-o. Ele precisou dar dez passos para recuperar-se. Depois censurou-me um tanto asperamente. J esteve no Yad Vashem, Sr. Desmond? Nem mesmo sei o que .
Fica em Israel. um monumento a seis milhes de mortos. No queremos construir outro. Desculpe-me. Mas como poderia saber? Como algum que no cheirou a fumaa de um holocausto poder saber? Agora tenho que voltar para minhas queridas flores e para meus caros fregueses...So pessoas muito estranhas, Sr. Desmond! O teto do mundo pode estar desabando sobre suas cabeas que elas no ouvem absolutamente nada!... Shalom! Ainda me restava algum tempo, por isso continuei passeando e fui juntar-me pequena multido de ociosos e turistas nos limites da Casa Branca, onde o presidente vivia, sitiado, entre as runas de sua prpria reputao e as esperanas de um grande povo. Eu no tinha o direito de julglo, era um estranho, um flibusteiro de muito longe. Mas no consegui escapar assustadora reflexo de que aquele homem tambm procurara construir um aparato de terror. Recrutara uma equipe indigna, de delatores, espies,
chantagistas, ladres e perjuros, amparando-os com o manto do poder, que os cidados lhe haviam reverentemente colocado nos ombros no dia de sua posse. Ao final, o aparato se desmoronara e os lacaios haviam-no abandonado. O terror, porm, persistia. Se o prprio presidente escarnecia da lei, qual a ordem escrita que podia ser cumprida, qual o contrato que podia ser mantido? Se a autoridade estava desacreditada, os centuries mantinham o forte e os anarquistas estavam no comando das ruas. Se um homem no podia viver em sua intimidade, se no podia andar pelas ruas e morrer tranqilamente no tempo que o bom Deus lhe fixara, ento o mal era rei e os seus emissrios iriam assolar e devastar a terra impunemente...Era quase meio-dia. O gosto da infmia era ranoso em minha boca. Vireime e voltei rapidamente para o hotel. Precisava apresentar-me a Arnold. Mas, ao parar na portaria para pegar a chave do quarto, fui cumprimentado pelo Sr. Philip Lyndon, chegado de
Nova York, bancando a ama-seca do Sr. Milo Frohm, que se parecia com um banqueiro mais que a maioria de nossos colegas e falava como o Venerando Mdico numa consulta domiciliar de urgncia. O Sr. Frohm esperava que eu pudesse dispor de algum tempo. Disse-lhe que estaria livre at meio-dia e meia, quando deveria almoar com o Sr. Arlequim. Onde eu gostaria de conversar? No bar? Eles preferiam um lugar mais reservado. A minha sute? timo. Eles me agradeciam por tal. Ao subirmos no elevador, falei-lhes de minha visita matutina a Thomas Jefferson, descobrindo que o Sr. Frohm o apreciava tanto quanto eu. Fiquei deliciado ao encontrar uma alma irm, que sabia tudo sobre a vida, a liberdade e a busca da felicidade, que estudara os alicerces morais do organismo poltico. Suzy ainda estava trabalhando na sute, mas concordou em afastar-se para ceder lugar a ns quatro. Perguntei-lhe, incisivamente, se Arlequim j voltara de sua reunio com o embaixador. Ela compreendeu a deixa e respondeu que no, que o Sr. Arlequim previra um encontro demorado. E por
falar nisso, havia um recado para ligar para minha prpria embaixada. Depois ela perguntou-me se amos querer caf ou um coquetel, j que o almoo estava prximo. O Sr. Frohm e o Sr. Lyndon escolheram suco de tomate. Decidi-me por um bourbon com gua. O Sr. Frohm elogiou meu gosto pela boa bebida sulista. O Sr. Lyndon limitou-se a sorrir, sem nada dizer. Depois de fazermos um brinde, o Sr. Frohm iniciou a exposio do caso da Repblica. Antes de mais nada, Sr. Desmond, quero declarar que apreciamos sua franqueza na reunio anterior com o Sr. Lyndon. Lamentamos que a formulao de certas questes tenha causado uma ofensa involuntria ao senhor e a seu presidente. Em nosso trabalho, tratamos com tantas pessoas diferentes que alguma falta de tato inevitvel. Espero que compreenda, no mesmo? Claro que compreendo, Sr. Frohm. Nem o Sr. Arlequim nem eu temos qualquer ressentimento com relao ao Sr. Lyndon. Mas, como estrangeiros, ficamos algumas vezes chocados com os mtodos americanos.
Mas...o que posso fazer pelos senhores agora? Infelizmente ter de responder a mais algumas perguntas, Sr. Desmond. Posso fazer uma primeiro? Claro. Verificou as respostas que lhe dei em nosso primeiro encontro, Sr. Lyndon? Verifiquei, Sr. Desmond. E viu que eram todas corretas? Dessa vez o Sr. Frohm respondeu por ele: Em todos os aspectos, Sr. Desmond. Contudo, existem algumas lacunas na narrativa. Gostaramos de preench-las, se for possvel. Vamos voltar a seu jantar com Valerie Hallstrom. Foi um encontro puramente social? Foi. Poderia dizer-nos sobre o que conversaram? As banalidades usuais. Contei-lhe a histria de minha vida. Ela no me contou a sua, dizendo apenas que o pai criava cavalos na Virgnia e que muitas vezes ela se perguntava se setecentos e cinqenta dlares semanais valiam o desgaste de Nova York.
Ela ento lhe falou sobre dinheiro? Disse que ganhava setecentos e cinqenta dlares por semana e tinha benefcios adicionais. Ela especificou qual era o desgaste a que se referia? De certa forma, suponho que sim. De que forma, Sr. Desmond? Bem...Primeiro ela disse que, se seu empregador descobrisse que estava jantando comigo, perderia o emprego e jamais conseguiria outro igual. E no achou isso estranho? Bastante. Disse a ela que era chantagem, tirania e escravido. Por que chantagem, Sr. Desmond? Ela explicou-me que j estivera apaixonada por seu empregador e que o caso no terminara muito bem. Chamou-o...deixe ver se me lembro...de sapo com uma coroa de ouro na cabea. Avisou-me tambm que ele poderia transformar-se num homem perigoso. Mais alguma coisa? S mais uma. Quando ela saltou do carro a fim de seguir a p o resto do caminho at sua casa, disse-me: "Algumas vezes Deus gosta de saber como seus filhos passam suas noites".
Ela costumava dizer frases surpreendentes. mesmo, no ? Por que no as mencionou em seu primeiro depoimento para a polcia e no segundo que fez para o Sr. Lyndon? Vou explicar, Sr. Frohm. A polcia estava investigando um homicdio. Essas frases eram simples rumores. Embora inadmissveis como provas, poderiam lanar suspeitas sobre um homem inocente. A observao sobre Deus sugeria que era Basil Yanko quem a estava esperando no apartamento. No gosto do que ele faz em matria de negcios, mas no tenho o direito de insinuar que ele possa ser um assassino. Quer saber tambm por que no as mencionei para o Sr. Lyndon. A resposta bem fcil. A ltima pergunta que ele fez, aquela que provocou o fim de nossa reunio, implicava a suspeita de termos comprado o caderninho de anotaes de Valerie Hallstrom, para desacreditarmos um rival em negcios... O Sr. Frohm levou algum tempo meditando sobre minha declarao, mas finalmente pareceu aceit-la.
Est bem, Sr. Desmond. Agora, vamos falar sobre o caderninho. Aceitamos seu relato sobre a maneira como foi parar em suas mos. Na ausncia de provas em contrrio, temos que aceitar tambm que no sabe quem o enviou nem por qu. Contudo... Fez uma pausa deliberada, para deixar-me em suspense. Contudo, o fato que os senhores ou os investigadores que contrataram, agindo de acordo com ordens, esto, neste momento, tirando proveito dele. Proveito em que sentido, Sr. Frohm? O Sr. Saul Wells est divulgando o contedo do caderninho para as partes interessadas. Esta manh j fomos procurados por cinco grandes empresas, informando-nos de quebra em sua segurana. Tenho certeza de que haver outras. Tendo em vista as suas relaes com a Creative Systems e com Basil Yanko, isso no indica um esforo para assegurarem vantagens tticas? Representa uma tentativa, gratuita e no solicitada, de evitar que outras empresas respeitveis sofram o mesmo destino que ns.
No teria sido mais aconselhvel que o prprio Sr. Basil Yanko fizesse isso...ou mesmo nos solicitasse que o fizssemos? Temos algumas restries quanto tica profissional de Basil Yanko. No poderia especific-las? Neste momento, no. Vamos ento segunda parte da pergunta, Sr. Desmond: por que no ns? Sou um simples visitante em seu pas, Sr. Frohm. Prefiro no deixlo embaraado. E no deixar, Sr. Desmond. Por favor, seja to franco quanto o quiser. Serei ento o mais polido possvel: representam um organismo domstico americano, preocupado com muitos problemas, polticos e criminais. Ns somos de uma organizao europia, cujos interesses podem, em determinados pontos, conflitar com os seus. Em vez de solicitar a ajuda do FBI, achamos que era melhor exercer o nosso direito de livre comunicao. Esta a posio de meu presidente e a minha tambm.
Em outras palavras, Sr. Desmond: no confia em ns. Pelo que se v em seus comits e tribunais, Sr. Frohm, os senhores no confiam uns nos outros. Para minha surpresa, ele sorriu e sacudiu a cabea, numa concordncia relutante. Eu pedi por isso, no mesmo? uma excelente testemunha, Sr. Desmond. Tenho bastante prtica. Os kempeitais1 trabalharam em mim durante mais de um ms, em Cingapura. Espero que nos ache mais civilizados do que eles foram. Acho, sim. Obrigado. Agora vamos conversar sobre outra lacuna em seu relato. Foi agredido do lado de fora de seu apartamento. Disse polcia que no podia identificar os agressores. Isso verdade? Era verdade na ocasio. Fui posteriormente informado de que os agressores tinham sido contratados por um homem chamado Bernie Koonig, que por sua vez tinha sido contratado por um certo Frank Lemmitz.
Quem lhe deu essa informao, Sr. Desmond? Nossos investigadores. Suponho que j tenha conversado a respeito com o Sr. Saul Wells. J. Ento deve saber tanto quanto eu, possivelmente at mais. O que sabe exatamente, Sr. Desmond? Somente o que me informaram. Frank Lemmitz, que motorista do Sr. Yanko, contratou Bernie Koonig para vigiar-me. Nossos investigadores objetaram a isso e Koonig, em represlia, mandou que me espancassem. Mencionou o fato ao Sr. Yanko? O assunto foi abordado em nossa reunio com ele, no Salvador. E o que foi que ele disse? Que lamentava eu ter-me machucado e que nada tinha a ver com o espancamento. Mas admitiu que mandara vigi-lo? Digamos que se esquivou pergunta. Por que o senhor no o pressionou?
Corpo militar japons encarregado da manuteno da ordem nos pases ocupados ou anexados depois de 1910. (N. do E.)
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reservava o direito de apresentar uma queixa contra todas as pessoas envolvidas. Mas no apresentou queixa alguma. Por qu? Prefiro no expressar minhas razes para isso. Sr. Desmond, por que Basil Yanko mandou vigi-lo? No sei. Recordando os acontecimentos, parece-me que ele suspeitava de uma associao minha com Valerie Hallstrom. E por que ele suspeitaria disso? Foi o Sr. Lyndon quem me deu a idia. Disse que Valerie Hallstrom talvez estivesse vendendo material do banco de memria dos computadores. No verdade, Sr. Lyndon? O Sr. Lyndon ficou embaraado, mas enfrentou a situao com a galhardia de um escoteiro. Pode ter interpretado nesse sentido uma observao minha. O Sr. Frohm sorriu debilmente, e virou-se para mim. E ento, por extenso, Basil Yanko pensou que o senhor fosse um possvel comprador. Talvez.
Mas no era, no mesmo? Estou sendo interrogado oficialmente, Sr. Frohm. Nenhuma proposta foi apresentada, nenhuma solicitao foi feita. O que nos leva grande lacuna, Sr. Desmond: quem lhe mandou o caderninho e por qu? E sua resposta ter tambm carter oficial. Mas vamos tentar uma hiptese. Valerie Hallstrom lhe diz que tem medo de Basil Yanko. Age como se soubesse que havia algum espera dela no apartamento. Ela lhe entrega o caderninho para guardar. Sabe que um artigo quente e resolve ento encenar a pequena comdia de mand-lo a si mesmo, a fim de poder usar a informao legalmente...O que me diz, Sr. Desmond? S posso fazer um comentrio, Sr. Frohm: isso um absurdo total! E j que est falando em lacunas, acho que est deixando de lado a maior de todas: quem matou Valerie Hallstrom e por qu? Estamos investigando. A lacuna est ficando cada vez menor. Sabemos que dois homens entraram no apartamento dela naquela noite. Um
deles era, evidentemente, o assassino. O outro era o homem que telefonou para a polcia. Talvez tenha sido ele quem lhe enviou o caderninho...Se se recordar de algo, informe-nos imediatamente, por favor. Pode deixar que o farei, Sr. Frohm. Aceita outro suco de tomate? No, obrigado. Temos que ir agora. Ajudou-nos bastante, Sr. Desmond...Essas flores so muito bonitas. Onde as arranjou? Isso, Sr. Frohm, algo que nunca deveria perguntar. Agora assim, hein? Normalmente o homem quem tem de comprar as flores. Mas, afinal, possvel que o Women's lib signifique alguma coisa. Vamos, meu jovem Lyndon. Estamos entrando de folga. Vou lhe pagar um drinque e um hambrguer. Se isso foi uma insinuao, fingi que no entendi. Acompanhei-os at a porta, fechei-a e encostei-me nela, suando por todos os poros. Milo Frohm no era nenhum novio. Pelo contrrio, era bastante experiente em interrogatrios, astucioso e inteligente, a expresso sempre inabalvel. No
precisava de nenhuma bola de cristal para saber que muito em breve teria novamente notcias dele. Isso, porm, no me preocupava. Achara-o extremamente simptico. Usvamos o mesmo dicionrio e o mesmo manual de lgica elementar. O nico problema era que a lgica no funcionava mais. No podia dizer como nem por qu, mas sentia que a nossa premissa maior estava repleta de falhas e que a menor estava desaparecendo sem deixar vestgios. O que, claro, no era lgica absolutamente, mas puro instinto animal. Arlequim atrasou-se para o almoo. s doze e quarenta e cinco paguei um drinque para as meninas e depois despachei-as para a churrascaria do hotel. Passavam quinze minutos de uma hora da tarde quando Arlequim finalmente me telefonou, dizendo que pegasse um txi e fosse encontr-lo numa tra torta em Foggy Bottom. Quando lhe pedi uma explicao, ele disse que estava com vontade de comer spaghetti alia carbonara e cervelli ai burro, o que me fez pensar que era seu prprio crebro que estava amanteigado. Era
uma e quarenta quando nos sentamos a um canto do que devia ser o restaurante mais escuro e menos popular de todo o Distrito de Colmbia. O espaguete estava queimado, o vinho era vinagre puro. Mas isso no tinha a menor importncia. A partir do momento em que Arlequim comeou a falar, tudo o que eu podia sentir era o gosto de cinzas. Antes de partirmos de Nova York, Paul, liguei para Herbert Bachmann e pedi-lhe que procurasse delinear um panorama do que aconteceria se eu comeasse a despejar no mercado nossas aes da Creative Systems. Ele telefonou-me s sete horas da manh de hoje. Todo corretor da cidade tem uma lista de ordens de compra, todas grandes. Pelo que Herbert pde calcular, a soma vai a mais de dez milhes de dlares. No pude resistir. Disse-lhe o que pensava sobre aquela operao e sobre ele, por ter sequer cogitado de execut-la. Ele ouviu-me em silncio e depois continuou, inalterado: Essas ordens de compra so bastante significativas, Paul. E j vou
lhe explicar por qu. Esta manh passei trs horas na embaixada. Erich Reiman um velho amigo meu. Mostrou-se extremamente simptico, mas, a princpio, no estava muito prestativo. Sua atitude s mudou depois que lhe mostrei as cpias fotostticas do caderninho. Foi uma mudana completa, Paul, de cento e oitenta graus! Ele quis saber de tudo... Espero que no lhe tenha contado! No contei tudo, mas falei mais do que voc teria aprovado. Oh! Cus! Fiz uma troca com ele, Paul, item por item. No tinha outro jeito. Pois estava negociando com minha vida, George! Sei disso. E Erich agora sabe tambm. E como bom diplomata, ele esquecer tudo, enquanto isso lhe for conveniente. Eu nem mesmo sou suo. No passo de um joo-ningum dispensvel, l de baixo...Agora conte-me o que conseguiu descobrir com as trinta moedas de prata. Essa estocada atingiu o alvo. A haste do copo de vinho escorregou de seus dedos e o lquido derramou-se como sangue pela toalha branca. Um
instante depois ele estava me censurando, com palavras duras e uma argumentao irresistvel: Vai ter que me ouvir primeiro, Paul, e s julgar depois. Se ento quiser largar-me, pode faz-lo. O que soube esta manh torna todo o nosso raciocnio inteiramente incuo. Somos pees de um jogo global, que eu ainda no tinha comeado a compreender. Foi-me explicado esta manh por um amigo no to ntimo quanto voc, mas mesmo assim um amigo , e acreditei no que ele me contou, porque pago para saber e mora aqui, o lugar do mundo mais apropriado para se tomar conhecimento das coisas...Garom! Arlequim estalou os dedos imperiosamente e o garom veio correndo. Por favor, limpe essa sujeira e traga-me outro copo. Fiquei esperando que o garom cuspisse em sua cara e confesso que isso me deixaria na maior alegria. Em vez disso, porm, ele saiu correndo para buscar guardanapos limpos, colocando um em cima do outro, at que a mancha ficasse escondida. Trouxe depois um copo limpo e uma nova garrafa de
vinho, servindo com mais reverncia do que o necessrio. Devia ter chegado recentemente do Velho Mundo, pois inclinou-se e pediu desculpas antes de se retirar. Arlequim bebeu todo o vinho de seu copo de um s gole e limpou a borra dos lbios. Estava mais calmo agora, embora no menos insistente. Estamos assistindo este ano, sem que a maioria acredite, ao fim de um milnio. E termina onde comeou, na bacia do Mediterrneo...Oh, no, isto no uma mera preleo poltica. E a dura realidade. Os prncipes do deserto descobriram que podem parar o mundo, simplesmente fechando as bicas do petrleo. Os proscritos do Crescente Frtil descobriram que podem aterrorizar o mundo, com pistolas, granadas e explosivos plsticos. verdade e todos ns o sabemos. Todo aeroporto do mundo se transformou num acampamento fortemente armado. Temos que sofrer uma revista minuciosa para podermos ir visitar nossa me agonizante!... O outro fato essa besta fabulosa a que deram o nome de "crise de energia". O que isso significa exatamente? Significa que, se os mineiros ingleses pararem de trabalhar, a
nao inteira ir morrer de frio. Significa que o Japo precisa curvar-se em vassalagem aos xeques do petrleo, caso contrrio sua indstria ser paralisada e o horror se apossar das ruas de uma centena de cidades. Na frica e na Amrica do Sul, o progresso, lento e rduo, cessa por uma dcada ou mais. E o que acontece ento? Aqueles que aprenderam as lies de terror esto preparados para disseminar o pnico e a confuso. Aqueles que detm o poder tentaro recolocar o tufo dentro da garrafa e isso provocar tambm outro tipo de terror. Os exrcitos particulares de agentes de segurana iro transformar-se nos Block-Fhrers e nas forces de frappe2 de amanh...Sabe qual foi o nome que deram ao prximo ano no calendrio dos servios secretos? O Ano dos Assassinos! Diante disso tudo, meu amigo Paul, onde nos situamos, voc, eu e Arlequim et Cie.? Eu no sabia, por isso no podia dizer-lhe. Sua eloqncia silenciara minha lngua vulgar. Ele arrasara completamente minhas defesas, em seu acesso de paixo e convico. Nada podia fazer, a no ser sacudir os ombros e dizer:
Diga-me. Estou escutando. O preo do petrleo dobrou e triplicou. E o que acontece com o dinheiro? Os prncipes do deserto no so tolos. Eles j viram que o dinheiro o sonho de um louco, um pesadelo de papel. O que mais eles vo querer depois que seus arsenais estiverem cheios de armas, as estradas militares
Equipes de combate dotadas de armamento ullrasofisticado, capaz de exercer efeito dissuasivo sobre eventuais ameaas nucleares e de coibir qualquer ofensiva blica a partir de interveno imediata. (N. do E.)
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construdas e os aeroportos atulhados de caas a jato? Sua prpria indstria? Sua prpria tecnologia? Alguns vo querer exatamente isso. Mas a industrializao cria um proletariado e atrai uma fora de operrios nmades, que rapidamente aprendero as tcnicas do terror. O que os prncipes mais querem segurana, por isso preferem investir na Europa e na Amrica. Mas no querem apenas aes e bnus, simples papis. Querem assumir o controle! Provas? Os sauditas cortaram as vendas de petrleo aos holandeses. Agora esto negociando para construir uma refinaria saudita em solo
holands. O que est sendo discutido em segredo possui um significado ainda maior. Os italianos esto oferecendo vinte e cinco por cento de sua companhia nacional de petrleo em troca da garantia de fornecimento do petrleo bruto. Podem-se fazer todas as leis possveis e imaginrias para se exclurem os estrangeiros do controle das empresas domsticas, mas as leis no passam de drages de papel levados pelas ruas por homens venais e invisveis. O que nos leva imediatamente a Basil Yanko...Ele sabe, Paul! Ele est vendo o que acontece! Tem o mundo inteiro encerrado em seus bancos de memria. Ele me comprar com um gio e me vender pelo dobro aos rabes, usando o dinheiro deles. Vender tambm parte de si. Herbert Bachmann identificou algumas das ordens de compra. Elas vieram do Oriente Mdio, atravs de vias tortuosas. Yanko vai mais longe. Ele pode equilibrar-se entre os assassinos e os prncipes, porque, em todos os mercados, existem tambm ofertas da Lbia...Meu amigo Erich explicou-me o padro e vi que todos os detalhes se ajustam. Karl Kruger, por exemplo: por que ele mantm
um relacionamento to ntimo com os israelenses? Suas atividades bancrias o explicam apenas pela metade; o sentimento uma parte nfima. Hamburgo vive de navios. Os navios vivem de cargas. Uma Europa em depresso significa uma Hamburgo agonizante. Os israelenses so o ltimo posto avanado da Europa no Levante. Eles no escondem sua inteno de responder ao terror com o terror. Por que Aaron Bogdanovich se disps to prontamente a ajudar-nos? Por amizade? No! que nosso dinheiro lhe permite sobreviver. Ele alega que trabalha para ns, mas estamos tambm trabalhando para ele. Arlequim fez uma pausa e um arremedo de sorriso contorceu-lhe os cantos da boca. Estamos vivendo num mundo srdido, Paul. A nica moeda estvel a mentira poltica. Se isso o faz sentir-se um tolo, lembre-se de que no o nico. Eu tambm me senti um tolo, inclusive porque o FBI entrou em contato com Erich Reiman muito antes de eu procur-lo. Eles queriam saber o quanto eu sabia. Erich convenceu-os de que era muito pouco, mas at ele
ficou chocado com minha ignorncia total. Sabe o que ele me disse? "George, voc est no teatro errado. Isto no a commedia deli'arte. drama em seu ponto mximo. E voc no tem muito tempo para aprender o texto." Mas por que temos que continuar a ler as falas escritas por outras pessoas? Por que ns mesmos no escrevemos a pea que vamos representar? E como sugere que o faamos, Paul? Vamos deixar que a imprensa a escreva para ns. Foi preciso meia hora de argumentao para convenc-lo, mas, ao final, ele acabou consentindo. Poderamos estar cavando nossos prprios tmulos, mas pelo menos teramos um funeral vistoso. De volta ao hotel, tive meu primeiro encontro com Arnold, o chefe da portaria. Alto, triste, com cara de cavalo, o mesmo rosto inexpressivo dos comediantes do cinema mudo. Tinha dois recados para mim. O primeiro era um convite para um coquetel s sete horas da noite, num endereo em Arlington. Estava assinado por um certo L. Klein. No conhecia nenhum
Klein, Arnold tambm no. Mas o convite viera atravs da Bernard's Blooms e parecia que o melhor era aceit-lo. O segundo recado era simplesmente uma tira rasgada de telex. Era um telegrama da UPI, vindo de Londres, datado da ltima quinta-feira. O texto era curto mas informativo: "Um turista americano, identificado como Frank Lemmitz, da cidade de Nova York, foi encontrado morto esta manh, com um tiro, num elegante hotel do West End. A polcia londrina est tentando descobrir uma moa que acompanhou Lemmitz a dois conhecidos cassinos da capital e que provavelmente retornou ao hotel em sua companhia. Mais informaes..." Dessa vez, pelo menos, Aaron Bogdanovich contara a verdade. Rasguei a mensagem em pedacinhos e joguei-a no vaso. Sentia-me como um estudante solitrio, brincando de espio na enfermaria. Juliette apareceu nesse momento. Arlequim estava ditando correspondncia e ela queria companhia. Por que no? Eu tambm estava precisando de companhia. Ela tirou os sapatos e acomodou-se num sof. Liguei o rdio num programa de msicas antigas e
acomodei-me tambm, numa poltrona, de ps para cima e pronto para relaxar. A msica era suave, sem lgrimas, sem paixo, sem grandes profundidades. Era um passeio pelos escaninhos da memria, um ou outro toque ocasional nas cordas do corao. Juliette estava com um aspecto bem melhor, mais tranqila e menos perplexa. Sentia-me mais velho e devia aparent-lo, pois logo Juliette franziu o cenho e disse: Est parecendo cansado, Paul. H algo errado? No, no havia nada errado. Minhas costelas doam de vez em quando, ainda no podia mastigar um bife. Mas no restava a menor dvida de que eu estava prontinho, como dizia meu av, para casar com a Viva McGonigle. Achei que George tambm estava com um timo aspecto. E pensar que s duas semanas antes... Paul! O que , minha cara? Acho que em breve voltarei para casa. O que George acha disso? - Ele deixou a meu critrio. Desejaria que no o tivesse feito. Se quer um conselho do tio Paul, fique por aqui mais algum tempo. Razes especiais?
Algumas. A previso de hoje de tempo muito ruim. No sabia. Assim que voltou, George imediatamente chamou Suzanne e comeou a ditar cartas. Quando lhe perguntei o que acontecera na embaixada, disse que explicaria depois. Fiquei magoada, mas no procurei demonstr-lo. Foi por isso que desci para visit-lo. Est aprendendo, no , querida? No me esconda nada, Paul, por favor... Prometo que no o farei. George lhe contar todas as notcias. uma histria longa e leva tempo para explicar. Mas ele contou-lhe tudo. Contou. E eu disse que ele me vendera pelo dinheiro de Judas. Oh, Paul, isso no! Foi um erro, mas eu disse. Por isso no o culpe se ele estiver de mau humor...e no volte logo para casa. Paul, tenho que pensar no beb e... O beb ainda tem toda uma vida pela frente e um padrinho bastante viajado para ajud-lo. Oua, querida: se voc se vir na chuva e no tiver ningum para lev-la para casa, pode ter certeza de que estarei a seu lado. Mas
se Colombina ama Arlequim, melhor ela vestir-se e preparar-se para o momento em que a cortina se abrir. Caso contrrio... A substituta toma seu lugar, no ? Exatamente, Julie. E h muitas garotas maravilhosas esperando ansiosamente por isso. E agora por que voc no sobe e pede caf para dois, dizendo a George que quero tomar Suzanne emprestada por meia hora? Ele no deve monopoliz-la, mesmo sendo o presidente. Ela no se foi imediatamente. Veio sentar-se no brao de minha poltrona e pegou meu rosto entre as mos, beijando-me na testa, dizendo como eu era maravilhoso, gentil, bondoso, como era o melhor amigo que uma mulher podia ter. Mais trs palavras e estaramos embolados no tapete. No sou nenhum santo, pelo contrrio. Mas isso...no, muito obrigado! A menos que estivssemos dentro de uma cpsula a caminho da Lua, com passagem s de ida. Fiquei grato pelo beijo, agradeci-lhe os elogios e levei-a ajuizadamente at a porta, despachando-a para o andar de cima. Tentei sentir-me virtuoso,
mas no consegui. Sentia-me como um sacerdote Judas, rondando e resmungando diante dos portes do convento meia-noite. Isso devia estar estampado em meu rosto, porque, ao descer, Suzanne ficou parada com as mos nas cadeiras, como se eu fosse uma forma de vida muito rara e muito baixa. Depois deu-me seu sorriso suave e cmplice, dizendo meigamente: duro, no , chri? Se o sabe, no precisa perguntar. Eu sei, querido, eu sei. E acho que, quanto mais cedo voltarmos para casa, melhor ser. Pode demorar um mnimo de sessenta dias. E ser que voc agentar esse tempo todo? Duvido muito. E voc? No. Diga-me algo suave, Paul. Suzy, querida, por que no nos apaixonamos um pelo outro? Eu tentarei, se voc tentar tambm. E como comeamos? Voc me beijando. Depois disso, as regras foram flexveis. E embora no estivssemos
com muita prtica, foi um jogo agradvel para uma tarde quente em Washington, D.C. Se vocs se dispem a sorrir diante de duas pessoas, h muito j passadas da juventude, empenhando-se no jogo do amor no Embassy Row, ento apreciem a comdia integralmente e vejam se podem faz-lo melhor quando a solido tambm as dominar. s sete horas em ponto eu estava tocando a campainha de uma casa modesta mas at que bonita, em Arlington. A porta foi aberta por uma mulher plida, cujos culos lhe davam uma aparncia de coruja hostil. Disse-lhe meu nome, expliquei que tinha um encontro marcado com o Sr. Klein. Ela declarou que o encontro era com a Sra. Leah Klein e que era a dama em questo. Levou-me para uma pequena sala, atulhada de livros, revistas e arquivos desarrumados de recortes. A um canto havia uma escrivaninha coberta de papis, em outro havia um pequeno armrio com bebidas. Havia duas poltronas na sala, uma das quais estava ocupada por um gato. No vi nenhum cabo de vassoura, mas a Sra. Leah Klein parecia uma bruxa, imensa e
estranha, os dedos manchados de nicotina e uma voz profunda e spera. Ela preparou dois drinques, um bourbon para mim e uma dose de rum com cocacola para si mesma. Depois do primeiro gole, entrou direto nos negcios: Kurt Saperstein disse-me que deseja divulgar uma histria. Certo? Certo. Fato ou boato? Alguns fatos, um pouco de inferncias. Gostaria, se possvel, de que a histria parecesse oriunda de Londres. Por qu? Porque a situao poltica assim o exige. Pode ditar a histria? Posso fazer um esboo. tudo o de que preciso. Ela sentou-se diante da mquina de escrever, ps papel, acendeu um cigarro, pendurou-o no canto da boca e disse: Nenhum comentrio, apenas os fatos. Certo? Certo. A UPI despachou hoje de Londres um telegrama contando que um certo Frank Lemmitz, turista americano, foi encontrado morto num hotel do West End. A polcia est procura de uma moa que foi vista em sua
companhia em dois conhecidos cassinos londrinos. Aqui termina a histria que eles tinham para contar. Agora comea a minha. Frank Lemmitz era motorista de Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated. Ele era conhecido por possuir contatos no submundo do crime, especialmente um certo Bernie Koonig. Basil Yanko no momento est em Frankfurt, participando de uma reunio internacional de banqueiros. Est me acompanhando? Estou na sua frente. Continue falando. Uma funcionria da Creative Systems, a Srta. Valerie Hallstrom, foi assassinada em seu apartamento h trs dias. A notcia saiu nos jornais. Mas os seguintes fatos no foram divulgados: o FBI est investigando a divulgao de segredos dos bancos de memria da Creative Systems; diversas grandes empresas americanas esto envolvidas; os nomes delas so... Soletre, por favor. Soletrei os nomes de todas as companhias, uma por uma, inclusive a nossa. Ela batia mquina como se estivesse enfrentando um inimigo mortal.
Arlequim et Cie. foi lesada em uma soma considervel, pelo mau uso de seus servios de computadores, controlados pela Creative Systems e por suas subsidirias em outros pases. J se identificou a autora da fraude no terminal de Nova York. Seu nome era Ella Deane. Morreu h duas semanas, atropelada por um carro no identificado. Deixou um dinheiro considervel, quase todo depositado nos ltimos trs meses que passou no emprego. Um de seus namorados era Frank Lemitz. Por coincidncia, Basil Yanko est neste momento tentando assumir o controle de Arlequim et Cie. A oferta que ele fez j do conhecimento pblico. O acionista majoritrio recusa-se a vender. Os minoritrios ainda esto indecisos. At aqui, relatei fatos comprovveis. Pode verific-los pessoalmente. Daqui por diante, uma parte constituda de fatos e a outra de inferncias. E quais so os fatos? Todos os principais corretores de Nova York possuem inmeras ordens de compra das aes da Creative Systems. Algumas das ordens maiores so de clientes do Oriente Mdio... Dinheiro do petrleo!
Pode verificar. E alguns so lbios. E quais so as inferncias? Os rabes querem ter uma base em atividades bancrias e industriais, na Europa e nos Estados Unidos. Isso patente por tudo que tm falado e feito. E eles possuem dinheiro bastante para consegui-lo. Acreditamos que Basil Yanko os est ajudando. A pretenso legal, os meios que so escusos. Em nosso caso, so criminosos. Trouxe-lhe uma cpia de um dossi que preparamos sobre o passado de Yanko. Devem t-lo tambm em seus arquivos. E esse o final da histria. Diga-me agora, por que deseja v-la divulgada? Queremos atenuar a presso em cima de ns e aument-la sobre Yanko. Queremos v-lo totalmente desacreditado. Muitas outras pessoas esto querendo a mesma coisa. E essa histria suficiente para consegui-lo? No. Mas no resta a menor dvida de que ir agitar o formigueiro. Pode dizer-me mais alguma coisa a respeito da morte de Valerie Hallstrom?
Poderia, mas no vou faz-lo. Se quiser saber por qu, pergunte a Kurt Saperstein. Ela girou a cadeira para encarar-me. Deu uma tragada profunda no cigarro. A cinza caiu em seu colo e ela limpou-a distraidamente. por acaso judeu? No. Sou um goy. Essa histria, Sr. Desmond, muito quente. E poder ficar ainda mais quente para o senhor. Eu sei. Quando a histria ser publicada? Hoje sexta-feira. Com um pouco de sorte, t-la-ei preparado para sair nos jornais de domingo na Inglaterra. De l, ela se espalhar. Os servios telegrficos a mandaro de volta para c a tempo de sair nos jornais de segunda-feira. O mesmo acontecer na Europa. Ser como jogar merda no ventilador. Talvez fosse aconselhvel que o senhor tirasse um longo fim de semana. Obrigado pela sugesto. Vou pensar no assunto. Aceita outra dose? No, obrigado. Vou terminar esta e depois irei embora. Importa-se de me dizer uma coisa?
O qu? Parece que aceitou muita coisa em confiana. Por qu? Ela jogou a cabea para trs e riu, um riso spero, zombeteiro e sem o menor humor, um riso tpico de homem. Confiana? No confiaria nem em minha prpria irm num assunto deste...Se o senhor no tivesse sido meticulosamente checado, no teria chegado nem a dez quarteires desta casa. Antes de sua histria ser divulgada, ser devidamente examinada por peritos. Se no se ajustar aos fatos, est liquidado, Sr. Desmond. E, se no se ajustar nossa poltica, ento simplesmente no ser publicada. Ento eu a levarei para algum outro lugar. Para onde quer que a leve, precisar de algum que a reescreva e de um editor simptico. Em mim, encontrou ambas as coisas. No abuse de sua sorte. que tambm no gosto de que abusem de mim. Se no gosta de feijes, ento no abra a lata... Lchaim! Havia um recado para mim na portaria do hotel: Saul Wells acabara de
chegar de Nova York de trem e estava me esperando no bar. Empoleirado num tamborete alto, inclinado sobre seu drinque, ele se parecia mais do que nunca com um furo, rabugento, inquieto e combativo. Seu rosto se iluminou quando me viu. Fomos sentar-nos num canto escuro, longe dos ouvidos dos outros fregueses. Ele tirou o celofane de um charuto novo, enfiou-o no canto da boca e acendeu-o. Entre uma baforada e outra, cada uma formando nuvens de fumaa, foi-me dando as notcias: J recebi os primeiros relatrios de suas filiais. A operao em todas foi a mesma, com variaes locais. Nos pases em que vigoram restries exportao de recursos locais, somente as contas estrangeiras foram atingidas. Em trs casos, como a Cidade do Mxico, por exemplo, suas operadoras pediram demisso logo depois do acontecimento. Em outras duas filiais elas continuam no emprego, o que pode levar suposio de que a fraude foi efetuada no prprio sistema. Na Inglaterra, tivemos mais sorte. A operadora era uma mulher chamada Beverly Manners. Ela pediu demisso para casar-se.
Promoveram-lhe uma grande festa no escritrio e o gerente deu-lhe uma gratificao. Ela est viva e com sade, morando numa casa grande no Surrey. Segundo o relatrio, ela est grvida de cinco meses. E isso relevante, Saul? Creio que sim. No podemos pressionar uma mulher grvida. O mais importante, porm, que o marido dela trabalha para a subsidiria inglesa da Creative Systems. Isso um tanto estranho. As coisas so mais estranhas do que est pensando. A dama em questo e seu marido so quase vizinhos do seu gerente em Londres, e costumam jogar golfe com ele. As transaes fraudulentas foram justificadas por uma instruo de telex recebida de Genebra e assinada por George Arlequim. E j verificou nossos arquivos de telex em Genebra? J. No encontramos a menor pista. O telex foi despachado de outro terminal. O negcio mesmo uma conspirao... Se quiser descobrir mais alguma coisa, ter que recorrer polcia
britnica. Ainda no chegou o momento. Procure ir o mais longe que lhe for possvel sem a ajuda da polcia. No podemos nos dar ao luxo de perder mais funcionrios ou aumentar a publicidade sobre o caso. Como se saiu com o FBI? Eles me fizeram suar. E como foi o encontro deles com o senhor? A mesma coisa. Alguma novidade? Falei-lhe de minha conversa com a Sra. Leah Klein. Ele mordeu o charuto com fora e fitou-me com uma surpresa indisfarvel. Irmo, foi procurar sarna para se cocar! Circule por Washington e ir descobrir que todo mundo a chama de coveira, porque enterrou algumas figuras importantes e escreveu alguns obiturios espetaculares. Se ela est do seu lado, ento est com sorte. Caso contrrio, est na hora de sair da cidade. De qualquer forma, Saul, ela quer que deixemos mesmo a cidade. No mesmo instante ele ficou alerta e extremamente srio: Se ela disse isso, Sr. Desmond, melhor comprar
logo as passagens. Quando Leah comea a disparar da cintura, at mesmo o pessoal da Casa Branca sai correndo em busca de cobertura. Ela d apenas um nico aviso: o ltimo. Falarei com Arlequim a esse respeito. Uma sugesto, Sr. Desmond: h bons avies para a Cidade do Mxico. Tenho aqui as informaes sobre sua filial de l. um pretexto, se precisar de um. Eu o usarei, se for necessrio. Se no tem mais nada a dizer-me de urgente, poderemos encontrar-nos em minha sute para tomar o caf da manh e ento repassar os relatrios. melhor encontrarmo-nos no restaurante. Alguma razo especial? A melhor possvel. A Srta. Suzanne deixou-me dar uma olhada nos quartos que esto ocupando. Eles esto quentes como o interior de um reator nuclear. Mas a sute de Arlequim est limpa, o que bastante estranho. No to estranho assim. H sempre gente l, quase o dia inteiro. Saul sorriu e fez alguns movimentos cmicos com o charuto.
Se andou fazendo alguma coisa diferente l em cima, est agora tudo gravado e os monitores devem ter tido uma diverso maravilhosa. E quem sero os monitores, Saul? H duas alternativas, Sr. Desmond: o FBI ou o pessoal de Basil Yanko. D um palpite. Sou capaz de apostar que Yanko. Motivo: o FBI sabia que Arlequim ia visitar o seu embaixador e que o senhor tambm deveria encontrar-se com o seu. Nessa circunstncia, creio que eles agiriam de acordo com os regulamentos. O FBI entrevistou-me esta manh em meu quarto. Se eles voltarem, como provavelmente acontecer, fale-lhes sobre os microfones. H um dentro do telefone. O outro est debaixo da mesa, ao lado do sof. E por que no os arrancamos logo de uma vez? Porque fazem com que o senhor parea inocente, Sr. Desmond...mesmo que no o seja. Trabalhando com Aaron Bogdanovich e
Leah Klein, est jogando muito alto. Esse outro motivo pelo qual eu gostaria de v-lo fazendo uma viagem ao Mxico. E com essa observao confortadora nos separamos, Saul para passar a noite do Sabbath com os amigos e eu para transmitir a Arlequim o relato de minhas aes e tentar persuadi-lo de que o clima da Cidade do Mxico era muito mais saudvel que o de Washington. Ele concordou com o roteiro de minha histria, embora receasse que Leah Klein ou outra pessoa qualquer o alterasse. No queria tambm partir porque precisava ficar em contato com o mercado de Nova York. Talvez precisasse ter mais algumas conversas com Herbert Bachmann. Detestaria dar a Yanko a impresso de que estvamos fugindo. Argumentei que teramos de visitar a Cidade do Mxico de qualquer maneira. Por que ento no amos no fim de semana, quando todos os negcios estavam paralisados por dois dias? Estvamos pagando para receber os conselhos de peritos; por que no aceitlos? Julie acrescentou calmamente a sugesto de que poderia voar at
Acapulco e fazer uma visita a Lola Frank. Assim, se tivssemos que voltar a Nova York s pressas, no teramos de nos preocupar com ela. Finalmente Arlequim concordou e desci at a portaria para providenciar as reservas com Ar-nold. Quando fiz o pedido, um pouco de cor surgiu em seu rosto impassvel e ele disse: Como foi que recebeu o aviso, Sr. Desmond? Que aviso? Vamos fazer uma viagem de negcios, pois temos um escritrio na Cidade do Mxico. Ahn!... Algum problema, Arnold? Nenhum. que uma coincidncia. Acabei de saber que um amigo seu est a caminho do Mxico e queria que entrasse em contato com ele por l. Tenho o telefone dele aqui. Entregou-me um carto e comeou a folhear os horrios de vo, falando o tempo todo em tom montono: ...Creio que gostaro de ficar no Camino Real. O mesmo arranjo que aqui, certo? Ligarei para l assim que confirmar o vo. Ah, aqui est! A Braniff tem um vo que sai daqui s trs e quinze da tarde, faz escala em Dallas e San
Antnio e chega Cidade do Mxico s nove e meia. Primeira classe e uma limusine esperando no aeroporto? No, creio que seu prprio pessoal ir esper-lo. Quanto tempo pretendem ficar? Quatro, cinco dias? Vamos calcular uma semana. Sempre podero cancelar as reservas. Endereo para correspondncia? O escritrio de seu banco, est certo? Providenciarei para que seu amigo tome conhecimento das disposies. engraado como as coisas acontecem, no acha? Quanto mais eu pensava no caso, mais engraado achava: um humor fnebre, que fazia meus nervos formigarem e os cabelos da nuca arrepiarem. Estvamos de volta ao que George Arlequim chamava de jogos de fantasmas: sussurros no escuro, rangidos no revestimento de madeira, toda uma cabala de sinais e smbolos para confundir o jogador principiante. Ao seguir para o elevador, ouvi uma voz familiar chamandome. Virei-me para ver o Sr. Milo Frohm dois passos atrs de mim. Ele estendeu a mo em cumprimento e apertei-a distraidamente. Disse-me ento:
Ia subir para falar com o Sr. Arlequim. Eu tambm. Espero que no seja muito tarde. Mas . Amanh estaremos partindo para a Cidade do Mxico. mesmo? A porta do elevador se abriu e fizemos rapaps de mandarim para ver quem entrava primeiro. O Sr. Frohm era um homem muito bem-educado e deixou para insistir em suas perguntas diante de George Arlequim, que o recebeu com caf e conhaque e explicou a viagem sbita com sua habitual franqueza desarmante: No h mistrio algum em nossa viagem, Sr. Frohm. O Sr. Wells acaba de entregar seu relatrio sobre nossa filial na Cidade do Mxico. Precisamos conversar com o gerente e com os acionistas locais. Enquanto estivermos trabalhando, minha esposa visitar amigas em Acapulco. Isso me causa algum problema? Problema nenhum, Sr. Arlequim. Fico apenas preocupado. Fico contente em ouvi-lo. Depois de minha conversa com o embaixador esta manh, senti-me como se estivesse, por assim dizer, em
territrio inimigo. Neste momento, o seu Departamento de Estado no anda muito feliz com os europeus...Oh, Julie! Este o Sr. Frohm, do FBI. Sr. Frohm, minha esposa. Prazer em conhec-la, madame. Lamento muito vir aqui incomodar a uma hora to tardia. H algo errado, George? Ela estava de olhos arregalados numa expresso de inocncia. No, querida. Fique aqui conosco. Pode continuar, Sr. Frohm. Suponho, Sr. Arlequim, que seu embaixador se tenha referido s bases polticas do problema, no? Ele o fez. Referiu-se tambm, sem a menor dvida, a certos elementos de violncia na situao. Falou a respeito. Sr. Arlequim... Ele tossiu, hesitante, como se estivesse procura da frase certa. Eu...isto , ns...temos certas opinies...pode at chamar de posies...que no estou autorizado a divulgar. Contudo, quero declarar que os senhores no esto, como o disse, em territrio inimigo. Pode sentir, Sr.
Arlequim, com alguma razo, que tem um inimigo pessoal em Basil Yanko. Podemos achar, embora eu no afirme que isso acontea, que suas tticas em questes de negcios so rudes e at mesmo repreensveis, mas no podemos intervir. Temos dois assassinatos nas mos e uma situao poltica altamente tensa, aqui no pas e no exterior. Em nossa sociedade, a violncia endmica e pode tornar-se epidmica. O senhor pode tambm ser ameaado por ela, Sr. Arlequim. nosso dever avis-lo de que no poderemos proteg-lo em todos os momentos. E bom que Madame Arlequim tambm compreenda isso. Arlequim ficou em silncio por um momento, olhando para as costas de suas mos longas e delicadas. Disse ento, gravemente: No est generalizando demais, Sr. Frohm? Por quem estamos sendo ameaados? Pergunte a si mesmo, Sr. Arlequim, quem mais dever lucrar com sua morte. E pense tambm que, se o senhor, ou as pessoas que trabalham com o senhor, identificar-se com alguma faco de fanticos, ento estar
dobrando' seu risco pessoal. Sabe que Frank Lemmitz foi assassinado em Londres? Ouvimos falar. Quem o matou? O senhor mesmo. Matou-o com uma palavra intempestiva. Ele franziu o cenho e estendeu as mos num gesto de splica. exatamente isso o que estou tentando mostrar-lhe. um estranho nesta cidade, no fala o mesmo idioma. um suo, vem de um pas pequeno e bem-organizado, no qual se precisa de licena at mesmo para tossir, embora seja um homem de to boas maneiras que no costuma faz-lo...Posso perguntar-lhe se j providenciou proteo para seu filho? J solicitei a vigilncia da polcia. E estou certo de que adequada. Espero que sim. Perdoe-me, Sr. Arlequim, mas isto a Amrica no ltimo rolo do Sonho americano, que se transforma num pesadelo em tecnicolor. No sinto o menor prazer em estar aqui a pedir desculpas por meu pas e tambm por mim mesmo, mas estou preparado para faz-lo, desde que isso o faa ver a verdade. E qual a verdade, Sr. Frohm?
As leis so inadequadas. As "forcas da lei so mais inadequadas ainda. Algumas delas so corruptas, embora nem todas. A corrupo se dissemina medida que a confiana declina. Estou lhe pedindo que confie em mim, Sr. Arlequim. Peo-lhe a mesma coisa, Sr. Desmond. Era a minha vez. No ia deixar passar aquela oportunidade, no podia. Sr. Frohm? Pois no, Sr. Desmond. Acredito, porque quero acreditar, que um homem honesto. Responderia a duas perguntas? Se me for possvel, claro que sim. Tem ordens para escutar meu telefone e pr microfones em meu quarto? No. O senhor ou algum de seus agentes tomou ento essa iniciativa por conta prpria? Ao que eu saiba, no. Pois algum o fez, Sr. Frohm. O Sr. Wells descobriu os microfones no incio da noite. Ele verificou este quarto tambm? Verificou. Est inteiramente limpo.
Ele sacudiu a cabea lentamente. Fitou-me e depois a George Arlequim e a Julie. Levantou-se e foi ao telefone. Completada a ligao, disse lenta e raivosamente: Carl? ...Milo Frohm. Sabe onde estou. Traga Pete e sua caixa de ferramentas at aqui, o mais depressa possvel. Voltou a sentar-se. George Arlequim serviulhe uma dose de usque. Ele bebeu lentamente, colocando o copo em cima de uma mesinha, com extremo cuidado, quando acabou. Compreende agora nosso problema, Sr. Frohm? disse Arlequim gentilmente. Milo Frohm assentiu, sacudindo a cabea para cima e para baixo, repetidas vezes. Parecia uma dessas velhas estatuetas de Buda que os marinheiros costumam trazer de Xangai. Compreendo, Sr. Arlequim. Neste momento, no tenho certeza do que ns vamos fazer. Uma coisa, porm, certa: quando chegarem Cidade do Mxico, devem todos ter muito cuidado. Nossa partida de Washington nada teve de gloriosa. Chovia forte, o cu
estava cinzento, as nuvens, baixas. O xodo do fim de semana j comeara e ramos apenas mais quatro cordeiros sendo levados imerso de desinfetantes e despachados o mais rapidamente possvel. Nossa bagagem de mo foi revistada, tivemos que passar por um porto especial de deteco. Fomos apalpados e interrogados, levados para um curral, enquanto agentes de segurana revistavam o avio, procura de engenhos letais. Bons cordeiros que ramos, dissemo-nos uns aos outros que aprovvamos os cuidados que estavam sendo tomados para salvar nossas vidas. Deploramos a violncia que tornava a precauo necessria e nos entregamos, com f absoluta, aos cuidados de nossos guardies armados e annimos. Minha f se tornara mais frgil com o passar dos anos e, assim que levantamos vo, pedi minha rao de coquetis, mergulhando imediatamente na leitura do relatrio de Mendoza sobre a fabulosa carreira de Basil Yanko. A primeira parte era o folclore padro: filho de imigrantes pobres da Bomia, ele vendera jornais e fora entregador de mercadorias para custear os
estudos, enveredando, com muita coragem e inteligncia extraordinria, pela nova cincia da tecnologia de computao. Sua carreira nas grandes companhias fora rpida e imaculada. Era muito bem pago e economizava tudo o que podia. Sua parcimnia era, alis, a nica caracterstica notvel de sua vida particular. No tinha filiaes polticas e aparentemente quase no precisava de amizades. Submetia-se, sem qualquer queixa, disciplina das grandes corporaes. No pedia favores para si mesmo. No era indulgente com os subordinados. Recusava-se a participar das intrigas da companhia. Sua nica declarao registrada era um julgamento sumrio numa disputa entre executivos: "Ns fabricamos crebros e ensinamos as pessoas a us-los. Vamos ver se conseguimos usar tambm nossos prprios crebros". Tinha trinta e dois anos quando resolvera estabelecer-se por conta prpria. Tinha ento economizado um quarto de milho de dlares, comprando um tero de uma pequena organizao de processamento de
dados de Nova York. No mesmo ano casara-se com a filha do scio majoritrio. No ano seguinte, a esposa viajou para Nevada e divorciou-se dele. Ela tambm era citada no relatrio, com uma descrio um tanto histrica da personalidade do marido: "Ele no era cruel. Tambm no era um homem bom. Simplesmente no existia. Casei-me com ele com estrelas nos olhos, mas o que eu realmente estava vendo eram refletores a se acenderem e se apagarem, fitas de computadores a girarem...Quando o procurava, tudo o que encontrava e podia tocar era esmalte ressecado. No era um homem. Era um monstro mecnico". Seis meses antes do divrcio, Basil Yanko fundara uma pequena companhia, chamada Creative Systems Incorporated. Ela nada fazia, exceto existir. Seis meses depois do divrcio, seu scio mais velho morreu de uma dose excessiva de barbitricos. Houvera rumores de escndalo: fraude nas contas, espionagem industrial, vendas de informaes aos competidores dos clientes. O homem morto abdicara de sua defesa. Basil Yanko defendera-o to
vigorosamente que adquirira a imagem de homem justo e amigo leal, conseguindo manter a maioria dos clientes. A Creative Systems Incorporated comprara ento a outra companhia, por uma bagatela. Basil Yanko era agora o nico dono de uma companhia de processamento de dados. Podia oferecer os servios exclusivos de um gnio, sem estar preso submisso a espritos menores. As grandes corporaes comearam a mandar-lhe negcios. Ele expandiu-se, lentamente, mas com uma espcie de certeza inexorvel, comprando talentos, vendendo idias, oferecendo sempre mais do que estava estipulado no contrato. Seu modo de vida tambm mudou. Passou a viver mais luxuosamente, esbanjando ao receber, mas cercando-se, ao mesmo tempo, de uma aura de mistrio faustiano. Era uma atitude que atraa as crticas, pois sugeria charlatanismo. Mas essa atitude foi compensada, sem dvida, quando se comprovou que ele era realmente um mago dos computadores. Companhias poderosas passaram a basear-se em suas pesquisas. Homens nas mais altas
posies procuravam seus conselhos e ele, em troca, dotava-os com os instrumentos do poder. Casou-se novamente com a filha de um deles, uma mulher de trinta anos que tinha a fama de gostar de mocinhas, sendo rica o suficiente para se permitir essa excentricidade. Ela morreu ao dar a partida em sua lancha no lago Tahoe, tendo a gasolina explodido. Basil Yanko estava no momento em Nova York. Ele pegara um avio para ir prantear a esposa falecida junto ao seu tmulo, receber o seguro e ouvir a leitura de um testamento que tinha apenas trs meses e o deixava oito milhes de dlares mais rico. Passou a expandir-se mais rapidamente, devorando as pequenas companhias, despojando-as de seus bens, mantendo os melhores funcionrios e mandando o resto para seus rivais. Nos dias prsperos de meados da dcada de 60, quando todos os pequenos reis estavam pagando fortunas por roupas invisveis, Basil Yanko saiu em pblico e ganhou outra fortuna. Comprou outras companhias. Invadiu a Europa, comprando aes e propriedades
imobilirias, fazendo aliados e criando subsidirias. Havia rumores insidiosos de que ele estava tambm vendendo informaes, em troca de participao em empreendimentos europeus. O relatrio de Mendoza citava diversos casos, mas em nenhum havia provas irrefutveis. Num exemplo sinistro, um laboratrio europeu fora acusado de roubar segredos de concorrentes. Trs dias depois, um analista-chefe da Creative Systems morrera num acidente de automvel nas Dolomitas. De certa forma, era tudo conhecido, dj vu, uma reedio das histrias dos bares do tabaco, dos imperadores do petrleo, dos traficantes de armas. A gente sabia que tinha acontecido, mas seria necessrio uma fortuna e trs vidas para provar. E quando finalmente algum conseguisse provar, ningum lhe daria uma medalha, mesmo que ainda estivesse vivo para aceit-la...O que no importava, contanto que tivesse acontecido ontem e com outra pessoa qualquer. Mas, na verdade, estava acontecendo hoje e conosco. O pessoal do mercado sabia disso, mas enquanto os seus prprios bolsos no fossem
atingidos, eles dificilmente iam se importar. Se ganhssemos, talvez ficassem mesmo constrangidos. Se perdssemos, continuariam a jantar com Basil Yanko no Clube dos Banqueiros, esquecendo-nos com o epitfio que desculpava qualquer coisa: negcios so negcios. Acendeu-se o aviso para apertarmos os cintos. A aeromoa informou que estvamos descendo para aterrissar em Dallas, a cidade em que mataram John Kennedy e enterraram a verdade com o seu assassino, e todo mundo viveu em paz e felicidade depois disso. 6 Eu estava adormecido e sonhando quando atravessamos o rio Grande. Acordei para ver o pico do Popocatepetl, coberto de neve e sereno, recortado contra um cu cheio de estrelas. L embaixo havia montanhas menores e lagos de escurido, pontilhados pelas luzes de aldeias. frente e distncia podia-se distinguir a presena da Cidade do Mxico, um brilho dourado que se difundia por entre o nevoeiro e se erguia at a altura dos campos estrelados. Experimentei uma estranha sensao de libertao e alvio, como se tivesse
acabado de emergir de um longo tnel e encontrasse uma selva vasta mas cordial. Suzanne, a meu lado, irradiava tambm a mesma excitao e assombro sbitos. Segurou minha mo e comeou a conversar como uma criana, cheia de fantasias e histrias lembradas pela metade: a serpente emplumada, a cidade de ouro no lago, as pessoas para quem o tempo era um mistrio sagrado, Corts, que fora recebido como um deus e era humano demais para perceb-lo. George Arlequim veio partilhar aquele momento conosco. Estava obcecado pelas pequenas luzes nos grandes vales, tesouros de memria racial que jamais seriam registrados, pois aqueles que os detinham no sabiam ler nem escrever e a lngua que falavam morreria com eles. Falou sobre a estranha amnsia que aflige a raa humana, capaz de jogar ao vento, numa nica gerao, toda a sabedoria adquirida em uma era inteira. Pairando entre o cu e a terra, vimos fragmentos de vises, por um momento tivemos poeira de estrelas em nossas mos. Quando aterrissamos, as vises se dissolveram num nevoeiro acre, a
poeira de estrelas transformou-se em poeira da terra, spera em nossos dedos, seca em nossas bocas. Arrastamo-nos lentamente pelo controle de passaportes. Esperamos como pees pacientes que nossas bagagens fossem desembaraadas pela Alfndega. Depois fomos envolvidos por um mar agitado de homens, mulheres, crianas e animais domsticos diversos. Quando j estvamos prestes a nos entregar ao desespero, o mar se abriu e Jos Luis Miramn de Velasco deu-nos as boas-vindas na terra dos astecas. Pelos nossos registros, ele tinha trinta e cinco anos, era solteiro, formara-se pela Universidade Nacional Autnoma e pela Escola de Administrao de Negcios de Harvard, e pertencia a uma velha famlia gachupin o que significava que seus ancestrais usavam sapatos e falavam castelhano, enquanto o resto do pas andava descalo e falava nahua ou espanhol deturpado. Significava tambm que ele era rico de nascena, belo e orgulhoso como Lcifer, podendo caminhar de olhos fechados pelo labirinto da administrao mexicana.
Sua recepo foi a mais corts possvel. Apresentou-nos no hotel com uma pompa real. Colocou imediatamente nossa disposio a si mesmo, a seus servios, a sua casa. Percebi que as mulheres ficaram surpresas pelo fato de um homem to msculo e to bonito ter conseguido ficar tanto tempo solteiro. Antecipei-me em dizer que um rico gachupin, que dirigia um banco de investimentos na Cidade do Mxico, precisava de casamento tanto quanto precisava de pulque e tamales para o jantar. Antes de partir, solicitou o obsquio de uma conversa particular comigo e com Arlequim. Estava insultado com o que acontecera ao banco, no podia dormir em paz enquanto no fosse removida a ndoa em sua reputao. Conhecendo seu orgulho inabalvel, receei que estivssemos fadados a ter uma reedio em castelhano da arenga de Larry Oliver. Mas, pelo contrrio, sua preocupao imediata era para com George Arlequim. ...Esteve doente, meu amigo. monstruoso que tenha de se envolver to cedo nessa...nessa sofisteria! Mas assim que os negcios
funcionam com os ianques. Se algum no concorda em vender ao preo que eles fixam, comeam a assedi-lo por todos os meios possveis, assustam-no com processos e espies a escavarem sua vida privada. Mas aqui, pelo menos, conseguimos mant-los distncia. No h dvida de que fomos prejudicados. Quero que saiba disso antes de mais nada. Argumenta-se que um bom banqueiro pode cheirar uma fraude antes mesmo que acontea. Argumenta-se tambm que vendemos aes da Creative Systems, que contratamos seus servios; se agora estamos encontrando dificuldades, o erro foi nosso e no deles... Amanh, voc e Madame Arlequim esto convidados a almoar com Pedro Galvez e dois outros de seus acionistas mexicanos. Galvez o homem forte. Convena-o e conseguir sair das sombras, voltando aos negcios. Ele est querendo financiamento para a explorao de novas minas e a construo de novas estradas de acesso. Preferiria obtlo na Europa ou no Japo a ir busc-la ao norte da fronteira. Existem aqui algumas caractersticas difceis de
se perceber, mais difceis ainda de se interpretar. Nossas razes esto na Europa e na velha vida indgena deste pas. Nossas lealdades so apenas para conosco mesmos. Nossas inimizades remontam ao lamo. O prprio Hernn Cortes ainda no foi absolvido...Perdoe-me, no estou sabendo explicar-me muito bem. Tenho mais uma coisa a dizerlhe. Muito embaraosa, mas no posso calar... Ele parou de falar bruscamente, como se estivesse esperando o perdo antecipado, enquanto procurava pr em ordem uma declarao difcil. Finalmente falou: George, meu amigo, fui um idiota! Com um sorriso triste, Arlequim comentou: um lamento comum, Jos. Acontece a mesma coisa com todos ns. Mas desta vez, George, voc que est sofrendo as conseqncias. Nos ltimos dois dias estive trabalhando com seus investigadores no banco. Ficou evidente que a operadora que codificou as falsas instrues foi uma moa chamada Maria Guzmn, que nos deixou em janeiro. Disse a seus
investigadores que ela desaparecera de circulao e que seria muito difcil descobrir-lhe a pista...Mas isso foi uma mentira. Tenho certeza de que teve uma boa razo para diz-la, Jos. Deixarei isso para seu julgamento. Essa Maria era. .. uma mulher muito bonita. Por algum tempo eu...eu a namorei. Quando ela comeou a levar o caso muito a srio, tratei de deix-la. Isso aconteceu em setembro, outubro, do ano passado. claro que continuou conosco, pois era muito eficiente em seu trabalho. Ganhava muito bem. Em janeiro, anunciou-me que gostaria de sair do banco. Recebera uma oferta bem melhor na Petrleos Mexicanos. Dei-lhe uma recomendao de primeira e deixei-a ir. Para mim, o assunto estava encerrado, da melhor maneira possvel. No nada agradvel quando se tem que encontrar todas as manhs com uma antiga paixo. E Maria no fazia nada para facilitar a situao. Voc um idiota, Jos disse George Arlequim mansamente. Eu sei. Se assim quiser, eu lhe entregarei minha cabea numa
bandeja. Prefiro ter os fatos, Jos. Pois eu os tenho, George. Antes de transmiti-los, porm, queria pedir-lhe um favor. No tenho o direito de faz-lo, mas pedirei assim mesmo. A moa culpada, no h a menor dvida. Peo-lhe, contudo, que no a leve perante a lei. Se conhecesse o interior das prises mexicanas, compreenderia por que o estou pedindo. Empenharei tudo o que possuo para cobrir suas perdas. Mas eu lhe imploro... Ainda est apaixonado por ela, Jos? Claro que no! Acho que ela uma cadela estpida, mas a verdade que fui mais estpido do que ela. Est certo. No haver acusaes. E a ltima coisa que desejo seu dinheiro, Jos. Agora conte-me o que voc tem. Tenho uma confisso em espanhol, uma traduo inglesa e duas fotografias, tudo assinado e com firmas reconhecidas. Como as obteve? Preferiria que no me perguntasse, George. Tambm no sinto muito orgulho disso. Apenas leia o documento.
George Arlequim leu a confisso bem devagar, depois passou-a para mim. Era cristalina como uma lgrima. " ...Apaixonei-me por um homem que no estava apaixonado por mim. Quando ele me disse que nosso caso estava terminado, senti-me uma tola, magoada, furiosa. Mas continuei no emprego porque sabia que isso o constrangia, embora tampouco me fizesse bem algum. Um dia, um jovem visitou o banco para verificar o funcionamento de nossos sistemas de computao. Chamava-se Peter Firmin. Disse que ia passar um ms no Mxico, visitando clientes. Convidou-me para jantar. Depois disso, passamos a nos encontrar constantemente. Abri-lhe meu corao. Tornamo-nos amantes. Ele disse que queria casar-se comigo, mas teria primeiro que divorciar-se de sua esposa e que isso custaria muito dinheiro. Eu nada tinha, no podia ajud-lo. Ento ele me disse que, se eu fornecesse certas instrues ao nosso computador, receberia uma soma elevada: dez mil dlares. Disse que isso no seria um crime, que no estaria roubando coisa alguma. Quando a
histria fosse descoberta, seria uma terrvel pilhria contra Jos Luis, pois ele teria que assumir a responsabilidade pelo ocorrido. Concordei, mas no fiquei com o dinheiro. Entreguei-o a Peter, para que ele pudesse assim obter seu divrcio. Ele foi-se embora e nunca mais tornei a v-lo. Escrevi-lhe muitas vezes, para sua companhia e para o endereo que ele me dera na Califrnia. Minhas cartas foram devolvidas, com o carimbo de endereo ignorado. Ningum jamais ps em dvida as instrues que eu transmitira ao computador. Mas, em janeiro, resolvi deixar o banco. Tudo o que me restava de Peter Firmin eram algumas fotografias que tirara dele num domingo no parque Chapultepec. Afirmo e declaro que este depoimento verdadeiro e que o fiz por minha livre e espontnea vontade, na presena de..." Uma das fotografias mostrava um jovem, numa roupa esporte de vero, posando ao lado de um vendedor de bales. Na outra, estava agachado, diante de uma indiazinha, que lhe oferecia uma flor. Ele parecia jovial e simples, como qualquer prspero jovem executivo a passear com sua namorada numa
tarde de vero. Eu j vira dezenas iguais, em dezenas de cidades. E, no entanto...no entanto... Est reconhecendo-o, Paul? Creio que no. Mas ele tem algo que me parece familiar. Eu o conheo declarou de repente Jos Luis Miramn de Velasco. Deu-nos um sorriso embaraado e sacudiu os ombros, num gesto de desculpas. Eu prprio fiz algum trabalho de detetive. Ele assinou um contrato de um ms de aluguel desses apartamentos mobiliados, especiais para turistas e homens de negcios. Para faz-lo, tinha que apresentar o passaporte e dar uma referncia comercial. Seu verdadeiro nome Alexander Duggan e ele trabalha para a Creative Systems em Los Angeles, Califrnia. Disse que a garota era estpida. Ela prpria poderia ter descoberto essas mesmas informaes. Lembrei-me ento. Era o mesmo rapaz de aparncia ingnua que me encontrara no bar do Bel-Air Hotel, o camarada inocente que achava que o sol brilhava a cada movimento de Basil Yanko e pensava que gratificaes e
opes caam do cu para a compra de aes. Comecei a balbuciar excitado, mas Arlequim interrompeu-me no meio da frase: uma informao til, Paul, muito til mesmo, embora nem de longe seja conclusiva. Vamos pensar um pouco...Jos, eu lhe agradeo. Julie e eu vamos almoar com Galvez amanh e voltaremos a nos encontrar no banco, na manh de segunda-feira. E no diga uma palavra disso a ningum. Compreendido? Ele compreendia. Sentia-se punido, mas no podia esquecer a sua dignidade. Fez um discurso breve e sbrio de agradecimento e depois uma reverncia, como um corteso que acabara de ser salvo do carrasco. Assim que ele se retirou, George Arlequim recostou-se na cadeira e suspirou pesadamente. O que acha, Paul? Tenho a impresso de que, por muito tempo, Jos no se esquecer de sua leviandade. Isso no tem a menor importncia, George. O que importa que ele nos proporcionou a primeira prova slida contra Basil Yanko.
Correo. Temos apenas um depoimento sem outras provas a corroborarem-no, feito por uma mulher desapontada. Essa no, George! Basta pr Alexander Duggan no banco dos rus e confront-lo com a confisso de Maria. Vai causar a maior sensao. E como o levaremos ao banco dos rus, Paul? Mande prend-lo sob a acusao de conspirao para nos lesar. A conspirao foi cometida na Cidade do Mxico. No podemos extradit-lo sem provas do crime. E no podemos obt-las sem acusar Maria Guzmn, o que prometemos no fazer. No, Paul, a situao delicada. Nosso amigo Jos Lus um homem muito distinto. Ele tratou de limpar seu nome e incriminou uma moa, assegurandose antes de que no a chamaramos para depor. Deu-nos o nome de um homem que no podemos acusar oficialmente. O que isso lhe diz? Que devemos entrar em contato com Saul Wells, mandando-lhe uma cpia da confisso e as fotografias, para que ele comece a investigar Alexander Duggan.
Isso tudo? o melhor que posso imaginar, meianoite, depois de um dia extremamente cansativo. Ento eu lhe darei algumas coisas para meditar enquanto dorme, Paul. Um homem no entra num banco como se fosse um mecnico de telefone e diz que vai verificar o sistema do computador. Ele telefona primeiro, marcando um encontro. Apresenta-se ao gerente. Suas credenciais so verificadas na fonte e por seus documentos pessoais... Ento Maria Guzmn estava mentindo... No. Pelo que imagino, Jos Luis foi negligente. Ele recebeu um telefonema de um certo Sr. Peter Firmin, da Creative Systems, marcou uma reunio e, ao melhor estilo latino, no se preocupou em verificar as informaes, acreditando que o homem era tudo o que dizia ser. Ele pode ter participado tambm da conspirao. No, Paul. Jos Luis rico demais para precisar disso. Nesse caso, tambm rico demais para ns. Vamo-nos livrar dele o quanto antes, George.
Ainda no, Paul. Vamos deix-lo primeiro salvar as aparncias. Neste momento, precisamos disso tanto quanto ele. Este um pas diferente. A vida aqui no apenas feita de negcios. O estilo tambm muito importante. Ele provavelmente estava certo. De qualquer forma, eu estava cansado demais para discutir. Tudo o que pude dizer que se podia comprar estilo que no acabava mais por quinze milhes de dlares, e que um gerente que no conseguia manter as mos longe das funcionrias no era absolutamente meu estilo. O que, claro, era uma completa hipocrisia, pois ao voltar para minha sute encontrei Suzanne vestida para sair, querendo que eu lhe mostrasse como era a vida na Cidade do Mxico numa noite de sbado. Acordei exausto e arrependido, com a impresso de que a boca estava cheia de carves em brasa. Estava cego tambm, o que provavelmente era uma bno. Certamente no estava surdo, porque a campainha do telefone era um tormento em meus ouvidos. Encontrei-o finalmente e consegui emitir um grunhido subumano.
Quem me telefonava era um velho habitante do mundo das trevas. Bom dia, Sr. Desmond. Aqui Aaron. Oh... Fiquei esperando que me telefonasse a noite passada. Chegamos muito tarde... E divertiu-se at mais tarde ainda. Ela uma mulher muito bonita. Direi a ela. Quero v-lo hoje. Onde e a que horas? Conhece a Praa das Trs Culturas? Eu a encontrarei. s trs horas da tarde, do lado de fora do porto da igreja. Estarei l. Sozinho, Sr. Desmond. Seja como quiser. Conhece alguma cura infalvel para ressaca? A melhor de todas: no beba. E especialmente no beba tequila. Hasta luego, amigo! A nica cura para viver era morrer, por isso eu tive que agentar. Barbeei-me com as mos trmulas, tomei banho lentamente e vesti-me com dificuldade, procurando ignorar as exploses ensurdecedoras que ocorriam
dentro de minha caixa craniana. Quando finalmente consegui deslocar-me at a sala de estar, encontrei Suzanne milagrosamente viosa, vestida para sair, acabando de remover os guardanapos que cobriam os pratos do caf da manh. Ela emitiu alguns rudos de piedade, desculpou-se por manter-me acordado at to tarde e depois ficou parada a meu lado, como uma grgona, enquanto eu comia o que ela ficou satisfeita em classificar como um desjejum civilizado. E ento, quando comecei a sentir dentro de mim, ainda bastante dbeis, os primeiros impulsos de vida, Suzanne anunciou que eu estava era precisando de ar fresco e um pouco de exerccio. Protestei em vo, argumentando que o nico ar fresco que por ali havia era no prprio interior do hotel e que, a trs mil metros de altitude, at mesmo esse era rarefeito demais para proporcionar algum conforto. Consegui atrasar o ordlio por meia hora, enquanto telefonava para Saul Wells e informava-o a respeito de Alexander Duggan. Ganhei mais dez minutos com uma rpida visita a Arlequim e a Julie. Depois, ainda protestando, fui empurrado quase fora
para o esplendor dominical da Cidade do Mxico. Os mexicanos dizem que a sua capital infestada infestada de gente rica, de gente pobre, de monumentos, igrejas, histria, doenas, animais, crianas, cores, barulho, lendas, polcia, fantasmas, turistas e uma centena de lnguas diferentes. Tente absorver tudo de uma vez e ficar apenas aturdido e ofegante. V aprendendo as coisas lentamente, caminhe ao ritmo de domingo, com uma mulher participante pelo brao, e logo o mosaico comear a ter sentido. Os astecas ainda esto l, caminhando pelo asfalto que cobre sua antiga capital de Tenochtitln. Os conquistadores ainda esto l, dirigindo Mercedes e Fiats e vivendo como os senhores da criao, distncia de uma pedrada das favelas srdidas. A Virgem de Guadalupe ainda vela sobre a cidade catlica entre as catlicas, a serpente-deus ainda sobrevive, no fundo da memria popular. Entre num ptio cheio de sombras, sente-se num banco de pedra e ter a sensao de que est de volta velha Sevilha. Meta a cabea para dentro de uma porta de poro e ver certamente um amontoado de
vtimas, mais desesperanadas que todas as outras que ficavam esperando que seus coraes fossem arrancados no alto da pirmide sagrada. Preste ateno conversa dos estudantes e ouvir falar numa revoluo mais feroz que em qualquer outra parte do mundo. Sente-se numa sala de reunies com industriais e eles lhe diro que existem mais riquezas sob a terra do que Montezuma jamais sonhou. Compre um balo, jogue uma moeda para os mariachis a fim de que eles toquem longe de voc; procure acreditar que nunca houve e jamais poder haver nenhum lugar mais alegre para se passar um domingo. Chegou o momento em que at mesmo Suzanne se entregou, e sentamo-nos para tomar cerveja gelada num caf de cadeiras na calada, contemplando o desfile incessante e sentindo-nos agradavelmente distantes de tudo o mais. Subitamente, a propsito de nada, Suzanne disse: Paul, tenho a sensao de que estamos sendo vigiados. Claro que estamos. Somos estrangeiros, caras-plidas...
Estou falando srio, Paul. No olhe agora, mas h um homem parado ao lado de um carro vermelho, do outro lado da rua. J o vi em pelo menos quatro lugares diferentes esta manh. Como ele? bastante jovem, usa uma cala azul e camisa aberta no pescoo...Vem vindo uma camioneta. Quando passar por ele, eu aviso para voc se virar...Agora! Virei-me na cadeira e fiquei olhando diretamente para a rua. Assim que a camioneta passou, vi o rapaz encostado a um poste, fumando um cigarro. Poderia passar perfeitamente por um jovem ocioso num domingo, tentando conquistar as garotas que passavam se no fosse o fato de as garotas passarem pela calada s suas costas. Chamei o garom, paguei a conta e ns dois descemos rapidamente a rua, na direo do Paseo de la Reforma. O rapaz jogou o cigarro fora e atravessou a rua rapidamente. Paramos cinqenta metros adiante e fizemos sinal para um txi. Ele ainda estava atrs de ns. Ao nos afastarmos, pude v-lo procurando, frentico, outro txi. Suzanne estava
abalada. Tentei tranqiliz-la com uma conjetura. Aaron Bogdanovich est na cidade. Vou encontrar-me com ele hoje. Talvez o rapaz seja um dos agentes dele. E se no for? Ento contrataram um espio muito desajeitado. O que est acontecendo conosco, Paul? No reconheo mais ningum, nem mesmo a mim. Somos como personagens sados de Kafka, vivendo num mundo de insinuaes e aluses, de terrores desconhecidos. No temos que nos submeter a isso. Nenhum de ns, especialmente George. Por qu, Paul...por qu? Era uma pergunta difcil de responder num txi sacudindo-se todo e seguindo em alta velocidade pelo Paseo. Esperei at voltarmos ao hotel e subirmos para nosso pequeno refgio, tranqilo e temporrio. No posso dizer-lhe que tenha a resposta certa, Suzy, nem mesmo que tenha uma resposta. O melhor que posso fazer tentar raciocinar com voc, assim como estou tentando raciocinar comigo e assim como o prprio
George est tentando fazer. Pergunte-me se Arlequim et Cie. ou uma plantao de repolhos valem a vida de um homem e eu lhe responderei que no. Pergunte-se se temos o direito de ficar sentados calmamente aqui no Camino Real, enquanto l fora doze crianas esto amontoadas num poro e o pai no consegue encontrar trabalho para aliment-las, e eu lhe responderei que absolutamente no. Ns estamos errados. O sistema est completamente errado e desmoronado sob nossos ps. como esta cidade, que flutua sobre um lago de esgotos. Se as bombas quebrarem, as ruas ficaro inundadas de sujeira at a altura dos joelhos...Por isso tentamos fazer com que o inexeqvel se torne exeqvel. Procuramos manter o terror acuado, enquanto tentamos criar uma espcie de vida melhor para todos. H os que dizem que isso impossvel, que melhor explodir logo toda a confuso e recomear do nada. Essa uma iluso maior que a Utopia, porque, depois da exploso, os saqueadores tambm voltaro, assim como os exploradores e os tiranos. Esse o terrvel paradoxo: os humildes herdaro a Terra, mas os tiranos e os
assassinos que iro dirigi-la. Num certo sentido, eles so necessrios. A ao provoca a reao. E quando a gente luta, algum ou alguma coisa acaba morrendo. Uma morte acarreta uma vendeta. A maioria das pessoas acha-se confusa demais para ver o que est acontecendo debaixo de seus narizes. Vou contar-lhe algo que nunca disse a ningum, Suzy. Lutei na Guerra do Pacfico. Estvamos ocupando uma posio na encosta de uma colina na Nova Guin. H trs dias que os japoneses nos bombardeavam. No dia seguinte eles atacariam. Recebemos ordens para recuar, levando os feridos. Conseguimos tirar a maioria. Mas dois estavam to feridos que no podiam ser removidos. Estavam a poucas horas da morte. Se os levssemos, sofreriam uma agonia insuportvel por nada. Se os deixssemos, seriam chacinados logo na primeira investida. Imploraram para que os matssemos. E eu os matei, Suzy, dois amigos meus! Estava certo ou errado? Nunca o soube com certeza. Nunca ningum pde dizer-me, na ocasio nem depois. Chega um momento em que a razo desaparece e somente o corao pode comandar...Desculpe, menina,
mas isto o melhor que posso fazer. Ela no disse nada. Aproximou-se de mim, inclinou-se e beijou-me nos lbios, saindo depois do quarto. Olhei para o relgio. Eram duas e meia, tempo para arrumar-me e ir ao encontro de um homem que tinha todas as respostas, porque dormia num tmulo. A Praa das Trs Culturas foi apropriadamente denominada. Fica dentro dos limites da antiga Tlaltelolco, onde se realizou a carnificina final e sangrenta dos astecas. Uma placa de mrmore assinala o acontecimento e destaca a ironia de suas conseqncias: "No dia 13 de agosto de 1521, Tlaltelolco...caiu sob o poder de Hernn Corts. No foi um triunfo nem uma derrota, mas o doloroso nascimento de uma raa mista que o Mxico de hoje". O Mxico de hoje celebrado em quarteiro aps quarteiro de ao, concreto e vidro, construes iguais, impessoais, sem caractersticas definidas. A memria dos astecas est mantida numa grande pirmide mutilada, de pedras j gastas. Entre elas, mais alta que a pirmide e mais baixa que as construes de concreto, situa-se a Igreja de Santiago, com suas torres
desproporcionadas e suas muralhas com ameias, dando mais a impresso de uma fortaleza. A praa estava bastante tranqila quando cheguei. Os que podiam darse ao luxo de comer em restaurantes ainda estavam sentados mesa. Os que no podiam, estavam cochilando a siesta ou flertando sonolentamente nos gramados do parque Chapultepec, esperando a hora da tourada. Aaron Bogdanovich estava sentado, relaxado e melanclico, nos degraus da igreja mastigando um pedao de cana-de-acar. Tirei a poeira do degrau e senteime a seu lado. Cumprimentou-me rpido e foi direto aos negcios: Disseram que andou muito ocupado. Conte-me tudo. Relatei os acontecimentos, dia a dia, hora a hora. Bogdanovich interrompia-me de vez em quando, pedindo que repetisse uma frase ou interpretasse uma determinada atmosfera. Mas, quase o tempo todo, ele ficou sentado em silncio e com uma expresso impassvel, mastigando a cana-deacar e contemplando a pirmide asteca. Quando acabei, ele jogou fora o
pedao de cana, cuspiu a polpa na poeira e disse, sem a menor nfase: Aprovei a reportagem de Leah Klein. Saiu esta manh nos jornais de Londres, em meia pgina. As reaes foram intensas. Amanh sair em Nova York. Est satisfeito? A divulgao da reportagem ajuda-os...e para isso que estou sendo pago. Como Yanko ir reagir? Ele j comeou a reagir. Neste momento, deve estar voltando para Nova York. O FBI avisou-nos que deveramos esperar por problemas na Cidade do Mxico. E eles estavam certos. O quanto eles sabem? Sobre o qu, Sr. Desmond? Sobre Frank Lemmitz e Valerie Hallstrom, por exemplo. Menos do que eu, mais do que o senhor. Isso realmente responde minha pergunta! No fique zangado, Sr. Desmond, pois isso prejudica a capacidade de julgamento. O senhor disse que foi seguido esta manh. Descreva o homem novamente, por gentileza.
Descrevi. Bogdanovich franziu o cenho e sacudiu a cabea. novo para mim. Meu homem tambm no o reconheceu. Eu no vi seu homem. Se o tivesse visto, ele no estaria mais trabalhando para mim. melhor eu adverti-lo logo de uma vez: os problemas de vocs comearo realmente no momento em que Yanko chegar a Nova York. A partir de amanh, o senhor e Arlequim passaro a ter guarda-costas, dia e noite. E no aceito objees de nenhum dos dois. Se as mulheres sarem do hotel, juntas ou sozinhas, sero tambm acompanhadas. Se acha que assim melhor...Teve alguma notcia de Tony Tesoriero? Ns o trouxemos aqui para o Mxico. Quero que v visit-lo amanh, juntamente com Arlequim. A essa altura, ele j dever estar preparado. Por tudo o que eu imaginava, ele podia estar brincando comigo. Fitei-o, com uma expresso perplexa. Pela primeira vez, ele lanou-me um sorriso frio e outonal, explicando:
O contrato para matar Valerie Hallstrom foi fechado aqui na Cidade do Mxico. Muitos negcios semelhantes so feitos aqui. Atravs de amigos, comunicamos a Tony Tesoriero que havia outro contrato para ser discutido. Ns lhe mandamos uma passagem e o dinheiro para as despesas, indo depois busc-lo no aeroporto. Desde ento o guardamos numa hacienda no interior. E por que precisa de nossa presena? Faz parte da estratgia. Queria tambm lembrar-lhe que esto me devendo dinheiro. Gostaria de receber um quarto de milho amanh, em dlares. Tinha falado em cem mil. As despesas tm sido muito elevadas. Vamos precisar de vinte e quatro horas para providenciar. Certo. Vamos ento marcar para depois de amanh. s nove horas da manh, mandarei um carro apanh-los no hotel. uma viagem de oitenta quilmetros at a hacienda. Recebero as instrues quando chegarem l. Queria falar-lhe sobre Alex Duggan. Mandei que Saul Wells comeasse a investig-lo, mas no sei ao certo se o
suficiente. E por que no seria? Digamos que Saul apenas um investigador convencional. E ns temos mtodos diferentes? Algo parecido. Poderia indicar qualquer mtodo que julgue ser til em tal circunstncia? Bem...no. Espero que compreenda, Sr. Desmond, que preciso muito tempo para treinar gente para a espcie de trabalho que fazemos. E so bem poucas as pessoas que servem. Estava pensando em Frank Lemmitz, no mesmo? Eu lhe disse que meus homens iriam encontr-lo em Londres. E realmente o encontraram. A moa que a polcia londrina est procurando trabalhava para ns. Estamos procurando por ela tambm, mas achamos que est morta. Quando eles voltaram para o hotel, depois de fazerem a ronda dos cassinos, algum os esperava no quarto. Foi esse algum que matou Lemmitz e saiu com a moa do hotel, certamente apontando-lhe uma arma. E por que no a mataram tambm logo de uma vez?
Parece que foi melhor assim como fizeram. Alm do mais, nossa agente podia ser induzida a falar. Nada to simples como parece. Vocs compram petrleo da Lbia para fazer seus avies levantarem vo. Os lbios fornecem passaportes e asilo para as pessoas que explodem esses mesmos avies. Ns treinamos soldados para o x da Prsia e fanticos japoneses disparam contra a multido no Aeroporto de Lod... Em Israel, temos judeus que espionam a favor dos srios. Os ingleses recusam-se a nos enviar peas para nossos tanques, enquanto seus prprios soldados so mortos no Ulster por guerrilheiros treinados pelos rabes. Basil Yanko conspira como um don da Mfia e Tio Sam torna-o cada vez mais rico, com contratos de defesa. No tente ensinar-me meu negcio, Sr. Desmond. Eu prprio ainda o estou aprendendo. Quanto a Saul Wells, deixe-o fazer seu trabalho, sua prpria maneira. Entrarei em contato com ele, no momento oportuno, e lhe direi o que fazer com Alex Duggan, apenas para ter certeza de que ele continua vivo! Por uma frao de instante ele suavizou-se e vi ou pensei ver um
lampejo de humanidade em seus olhos, enquanto acrescentava sardonicamente: Encare a realidade, Sr. Desmond! A guerra continua, mesmo depois que as armas silenciaram. Vocs ganham vinte por cento sobre seu dinheiro, jamais o investem num orfanato. Pelo contrrio, investem-no nos homens que esto fabricando armas para manter os orfanatos sempre cheios. At terafeira de manh, s nove horas. E no se esquea de providenciar o dinheiro. Afastou-se e fiquei observando-o descer a rampa de concreto, passar pela pirmide asteca e encaminhar-se para o outro lado da praa. Levado por um impulso sbito, entrei na igreja. Estava frio l dentro, um ambiente turbulento de imagens e ornamentos barrocos, mas igualmente tranqilo, como se a paixo que criara tudo aquilo se tivesse esgotado e restasse apenas o mistrio, ainda sem soluo, para sempre insolvel. Eu no podia rezar. No havia nada no mundo que eu pudesse glorificar, muito menos a mim. Tambm no havia nada que eu pudesse pedir. Tinha tudo o que o dinheiro
podia comprar, mas no era o suficiente. Se Aaron Bogdanovich estava certo, no restava a menor esperana, apenas a de um adiamento do desastre final. A f existia, alguns homens morriam por ela, outros tambm matavam em seu nome. Amor?... O amor ainda existia, estranho, confuso, egosta, nobre ou perverso. Mas existia e era o ltimo ponto de apoio antes do salto irreversvel para o caos. Ajoelhei-me e enterrei o rosto nas mos, encerrando-me no mundo dos sonhos com o pouco de amor que ainda me restava. Ao cair da tarde, encontramo-nos na sute de Arlequim para tomar uns drinques. Durante vinte minutos Juliette ocupou o palco, com o relato de um almoo com os hidalgos da Nova Espanha. ... Eu juro, Suzy, que melhor a gente se entregar s mos de Deus do que cair nas mos das matronas mexicanas! Quantos filhos eu tinha? No pretendia ter mais nenhum? Meu marido era fiel? Como se reage em Genebra ao problema da amante? E o problema das filhas? Eu devia agradecer a Deus todos os dias por no ter uma filha. Com os meninos muito diferente.
Tendo um pai bom como Pedro, que compreende essas coisas, eles se arrumam sem grandes riscos. No comeo, uma mulher mais velha sempre melhor! Eu ainda no tinha um amante? Com um marido que viaja tanto, devia pelo menos considerar a idia de um amante. Ay de mim. Essas norteamericanas, com suas idias de libertao das mulheres! O que elas fazem seno se escravizar ao trabalho? Mas o meu Pedro...Vamos, George, contelhes sobre o nosso Pedro!... George Arlequim tambm tinha uma comdia a representar: os conflitos domsticos latentes, as ordens imperiosas, o formalismo dos cumprimentos, a lenta e indireta aproximao do assunto que motivara o almoo. ...O problema mais complexo do que parece, Paul. Nosso amigo Jos Luis no est muito nas boas graas das famlias tradicionais, que h dez anos vm tentando cas-lo com suas filhas. Dizem tambm que ele joga, o que novidade para mim e no das melhores, se for verdade. Pedro Galvez uma personagem sada diretamente de Caldern. Ele capaz de condenar o papa
ao inferno e ajoelhar-se em seu leito de morte para receber a extrema-uno. Despreza Yanko por ser um arrivista e trampista. Desprezar muito mais a mim se eu no puder trapacear melhor. Detesta computadores e de bom grado os dispensaria, se pudesse encontrar quem lhe fizesse uma contabilidade honesta. Quando lhe disse que estava empenhando tudo o que possua para exercer meus direitos de opo e comprar as aes, ele classificou-me de romntico do sculo XIX...mas, no obstante, fez um brinde minha deciso. Quando lhe falei em violncia, limitou-se a sacudir os ombros e dizer que se no se matasse a fera, no haveria carne para o jantar. Sua promessa tima. Manter suas aes at o ltimo momento e insistir para que seus colegas faam o mesmo. Se vencermos, ele nos entregar uma poro de negcios. Se perdermos, mandar rezar uma missa por nossas pobres almas. Estas so minhas notcias, Paul. Quais so as que voc tem? A histria foi publicada hoje em Londres. Amanh sair na Amrica. Basil Yanko est voltando para Nova York. A partir de amanh, teremos
guarda-costas. E na tera-feira teremos que entregar duzentos e cinqenta mil dlares em dinheiro. No quero saber de guarda-costas! Arlequim estava sendo categrico. Sou um homem civilizado e no quero saber de viajar cheio de capangas! Mas Bogdanovich insiste na necessidade da medida. Concordo com ele. Suzanne e eu fomos seguidos durante nosso passeio desta manh. Poderamos ter sido alvejados. Voc tem que concordar. Deve isso a todos ns...e tambm a seu prprio filho. A polcia est guardando o menino...Quer dizer ento que teremos guarda-costas? Amm! O que mais? No marque nada para tera-feira. Eu e voc teremos uma reunio no interior. Para qu? Para nos encontrarmos com o homem que matou Valerie Hallstrom. Com que objetivo, Paul? No sei. Bogdanovich no quis dizer-me. Mas o que somos ns, pelo amor de Deus? Simples marionetes?
Somos estrangeiros, George. Juliette interveio, censurando-o com firmeza. Somos estrangeiros numa estranha cidade. Voc mesmo disse isso, ao voltarmos para casa. E gostaria de lembrar-lhe, meu caro marido, que tudo o que vi at agora foi bastante sombrio! Esta noite ento, meu amor, iremos danar. No quer ir tambm, Paul? E voc, Suzanne? Ento estamos combinados. Paul, por que voc no liga para Jos Luis e o chama para ir conosco, levando a moa com quem esteja se distraindo neste momento? Jos Luis lamentava muito, mas naquela noite era de todo impossvel. Tinha que participar de uma reunio de famlia e amigos da famlia, reunio que se realizava periodicamente. Talvez, mais tarde...Nem que fosse apenas por uma hora. Disse-lhe que poderia encontrar-nos na San Angel Inn. Ele afirmou que era uma escolha esplndida: excelente msica, tima comida. Tornou a pedir desculpas e expressou seus votos de que nos divertssemos bastante. Fiz uma prece silenciosa a fim de ainda estar de p para apreciar a noite.
As mulheres se retiraram e Arlequim pediu que eu ficasse mais um pouco, para uma conversa em particular. Galvez entregara-lhe uma cpia da carta de Yanko aos acionistas minoritrios, um documento que deixava implcito muito mais do que dizia: "... O desenvolvimento de Arlequim et Cie. tem sido limitado pelas e para as aspiraes da famlia que a fundou. E existe apenas uma criana pequena na lista de sucesso. O prprio Sr. Arlequim tem-se mostrado um presidente capaz e at mesmo ousado, mas tem negligenciado o treinamento de um substituto que possa assumir o controle, na eventualidade de sua morte ou incapacidade. Seu colaborador mais chegado o Sr. Paul Desmond, que reuniu uma considervel fortuna particular atravs de negcios de especulao, mas que, provavelmente, jamais poderia indicar a si mesmo como uma pea central estvel de qualquer conselho diretor... Arlequim et Cie. possui uma base segura para desenvolver-se. Em seu presente estado, porm, no tem o mpeto necessrio para crescer, nem o
Seus sistemas de informaes e resgates esto superados. E, como ficou demonstrado numa recente experincia, no so seguros contra manipulaes fraudulentas. Numa nova estrutura da empresa, trataramos imediatamente de atualizar esses sistemas, numa escala de preo de naes favorecidas, operando-os com mais segurana e numa base mais lucrativa... A reputao de Arlequim et Cie. foi bastante prejudicada por recentes manipulaes fraudulentas por gente da prpria companhia, que ainda est sendo investigada. O preo de compra das aes est fixado com um gio, a fim de reparar tais prejuzos, restaurar a confiana do mercado e permitir nova administrao operar numa atmosfera de confiana, harmonia e desenvolvimento agressivo..." Havia mais coisas, tudo na mesma linha. O carrasco pblico no teria feito um servio mais limpo. Era um trabalho sem sangue, sem rancor, um assassinato extremamente profissional, sem nem ao menos um toque de
misericrdia. Dobrei a carta e devolvi-a a Arlequim. No acha que isso explica tudo? Os rumores, as dvidas, a queda dos negcios...Tudo o que nos falta agora um sino amarrado no pescoo. Acha que a reportagem de Leah Klein responder a todas as perguntas? S amanh que o saberemos, George...No, espere um pouco! Passe-me o catlogo! Para qu, Paul? Vamos descobrir quais so as agncias de notcias que possuem escritrio na Cidade do Mxico. Elas devem ter recebido a notcia pelo teletipo... E acha que a entregaro a voc? No custa tentar. E, se estiver difcil, vamos lanar uma pequena isca, a existncia de ameaas contra a vida de George Arlequim e tambm contra as de seus acompanhantes. Temos a autoridade do FBI por trs de ns... Lanamos a isca e conseguimos obter a histria, entregue por um plantonista ansioso, que anunciou para o mundo que o Sr. George Arlequim,
atualmente na Cidade do Mxico, fora alertado pelo FBI, antes de sair de Washington, que corria perigo fsico. Ele at mesmo contratara guarda-costas profissionais; recusara-se, porm, a fazer quaisquer comentrios sobre a fonte das ameaas ou se elas tinham alguma relao com a notcia divulgada em Londres. Assim que o jornalista partiu, comeamos a examinar os mtodos cirrgicos de Leah Klein. Para uma mulher to spera e rude, ela at que manejava o bisturi com extrema preciso. "... A polcia de Londres est investigando o assassinato de um certo Frank Lemmitz, encontrado morto por um tiro de revlver, em sua sute de hotel, na semana passada...Frank Lemmitz era um criminoso e estava intimamente ligado a criminosos. Foi condenado por assalto mo armada em Chicago, em 1960, cumprindo uma sentena de dois anos de priso. Em 1965, em Miami, foi condenado sob a acusao de assalto com arma letal. Essa condenao foi suspensa, depois de um apelo do ru, por erros processuais. Por ocasio de sua morte, Frank Lemmitz estava empregado
como motorista e guarda-costas do Sr. Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated, uma organizao internacional de computao, que manipula contratos de alta segurana para os Estados Unidos e para outros governos, alm de trabalhar tambm para empresas internacionais. Dois dias antes da morte de Frank Lemmitz, outra empregada do Sr. Basil Yanko foi assassinada em Nova York. Chamava-se Valerie Hallstrom, era analista de sistemas muito bem remunerada e durante algum tempo foi amiga ntima do Sr. Yanko. Ela foi morta com um tiro na cabea, em seu prprio apartamento. As circunstncias de sua morte esto sendo investigadas pela polcia de Nova York e pelo FBI. Um caderninho de anotaes, pertencentes Srta. Hallstrom e contendo os cdigos secretos de acesso aos computadores de diversos clientes, foi posteriormente entregue a um desses clientes, que imediatamente o entregou polcia. As empresas relacionadas no caderninho esto profundamente preocupadas com essa quebra de segurana. O governo dos Estados Unidos
est ainda mais preocupado, por causa da natureza delicada dos contratos manipulados pela Creative Systems. Inevitavelmente ser levantada a questo de se os negcios altamente lucrativos de Basil Yanko com governos estrangeiros e seu envolvimento com a poltica do petrleo no Oriente Mdio esto integralmente de acordo com seu papel de guardio dos segredos e projetista dos sistemas essenciais defesa dos Estados Unidos... O Sr. Yanko fez recentemente uma oferta espetacular para assumir o controle de uma tradicional organizao bancria europia, Arlequim et Cie. A oferta foi firmemente rejeitada pelo presidente, Sr. George Arlequim; mas com dois assassinatos dentro da sua prpria organizao, o Sr. Yanko ainda gasta tempo cortejando os acionistas minoritrios da referida empresa, em Frankfurt... A proposta do Sr. Yanko possui algumas caractersticas surpreendentes. A Creative Systems fornece servio de computador para Arlequim et Cie. Um relatrio de segurana, assinado pela Srta. Valerie Hallstrom, revelou que o
sistema fora fraudulentamente adulterado, resultando num prejuzo de quinze milhes de dlares para Arlequim et Cie. No dia em que o relatrio foi apresentado, o Sr. Yanko fez sua primeira proposta para comprar o banco. Essa ttica interessante para todos os que acompanharam a carreira desse homem brilhante e original. Aparentemente, o fato est tambm interessando ao FBI. Indagado por esta reprter sobre o que achava de todas essas coincidncias, um porta-voz do FBI declarou: 'Se as coisas coincidem, ento possvel que estejam relacionadas; estamos investigando todas as possibilidades'. A carreira de Basil Yanko, considerada..." O resto era uma colcha de retalhos de biografia padro e dos trechos mais maliciosos do relatrio de Mendoza. Arlequim soltou uma risada brusca e rpida. Se no fosse por todas aquelas ordens de compra, eu comearia a vender minhas aes da Creative Systems no momento em que a Bolsa abrisse... No primeiro impulso de jbilo, inclinei-me a concordar. Mas depois,
pensando melhor, no tive tanta certeza assim. Vamos examinar a realidade, George. Essa histria ajuda-nos bastante junto aos acionistas. Mas no se pode saber o que far por ns no mercado. Lembre-se de que ainda no existe um escndalo. Apenas cheira como tal. Depois de dois anos de Watergate, as pessoas andam muito cticas. Os polticos e os homens de negcios so como os atores: espera-se que sejam competentes, no castos. O nico pecado real a estupidez, e Basil Yanko no absolutamente estpido. Eu sei que no murmurou George Arlequim, pensativo. Mas ele incapaz de compreender os palhaos... Chega-se San Angel Inn como se fosse um peregrino a caminho do paraso, a p, por ruas estreitas de pedras e praas antigas, cheias de sombras. entrada, -se recebido num jardim cheio de flores. Depois, conduzido atravs de ptios calados, cheios de caramanches com trepadeiras em flor, -se introduzido cerimoniosamente no passado imperial. Nada ali novo,
exceto a comida, as pessoas e a msica mariachi. O resto venervel pela idade, as vigas esculpidas, as grades de ferro, as pratarias, os quadros, as mesas pesadas e as imensas cadeiras de couro, fabricadas para acomodar confortavelmente os traseiros dos fidalgos da Espanha. As luzes so abafadas e as cmaras cavernosas absorvem o som, de modo que as pessoas podem comer em paz e contar os segredos que desejarem. Se algum quiser msica, os mariachis tocaro para ele. Se quiser danar, eles o seguiro at o ptio, onde a mais vigilante das duenas teria dificuldades para controlar um apaixonado impetuoso. Depois da agitao da cidade, aquele era um osis bem-aventurado de cortesia e repouso. Foi ali que, pela primeira vez em muitos meses, vi George Arlequim completamente vontade. Em pouco tempo ele conhecia todos pelo nome, do garom ao chefe dos msicos. Logo mantinha longos colquios com o chef e fazia pilhrias pessoais com o barman. meia-noite, quando os msicos fizeram uma pausa, ele pegou uma guitarra emprestada e tocou durante dez
minutos algumas sevillanas passveis, ganhando uma salva de palmas da multido e uma rodada de drinques por conta da casa. Juliette estava deliciada. Quando danamos juntos, ela confessou-me: Eu j tinha esquecido o que era rir assim e dizer tolices despreocupadamente. quase como se ns estivssemos divididos em vrias partes e no consegussemos mais ajustar umas s outras. Estou quase desistindo de seguir para Acapulco... Suzanne tinha uma opinio mais ctica: Ele est representando, Paul. Tudo o que est fazendo cuidadosamente planejado. Julie vai embora e ele quer v-la feliz e contente. o mesmo erro que sempre cometeu. George assumir os riscos e ela saborear os primeiros frutos. E ela no ir agradecerlhe, porque George est lhe roubando a oportunidade de ser sua mulher. Deus, como que pessoas inteligentes podem ser to cegas? uma hora da madrugada Jos Luis ainda no aparecera e por isso decidimos partir, em meio a um coro de agradecimentos e bnos. Voltamos
lentamente para a rua principal, onde o carro estava nossa espera. Era um passeio agradvel e sossegado. As pequenas praas achavam-se agora desertas. As persianas estavam fechadas, as luzes eram fracas e esparsas. Os becos estavam imersos em silncio. Nossos passos ecoavam nas pedras do calamento e nossas vozes, nas paredes nuas. Suzanne e eu amos na frente, de braos dados, com Arlequim e Juliette seguindo poucos passos atrs de ns. Paramos entrada da ltima alia, debaixo de um lampio, para admirar a perspectiva estranha e secular: os balces de ferro, com seus padres intrincados e as plantas penduradas, os lampies balanando-se em seus suportes enferrujados, as poas de ouro reluzente nas pedras do calamento, os relevos esculpidos das arcadas, tudo convergindo para o poste com luz de neon que assinalava a entrada da rua principal. Num momento a alia estava deserta, no outro ali estava um homem, um vulto escuro contra a luz, uma arma na altura da cintura. Gritei e atirei-me
na direo das mulheres, tentando arrastlas para o cho comigo. Ouvi o matraquear dos disparos automticos, o zumbido das balas, a imprecao de um homem, um grito de mulher, passos correndo. E depois o silncio. Quando Arlequim e eu nos levantamos, a alia estava vazia. Suzanne estava ajoelhada ao lado de Julie, estendida no cho, gemendo, com sangue por todo o vestido. s seis horas da manh, no Hospital de Jesus Nazareno, o mdico deu seu diagnstico: Ela levou dois tiros, Sr. Arlequim: um na coxa e outro no abdome inferior. Felizmente no houve danos na espinha. Mas tudo o mais foi atingido: o tero, os intestinos e o tecido do peritnio. Fizemos o que era possvel no momento. Se no houver complicaes, esperamos pr tudo em ordem mais tarde. Infelizmente, contudo, ela nunca mais poder ter filhos...Perigo? Sim, Sr. Arlequim, h algum perigo. O choque profundo, o trauma, a hemorragia...Ficaremos observando-a atentamente pelos prximos dias. Se quiser, poder v-la por um momento. Ela, porm, no o
reconhecer... Arlequim entrou sozinho no quarto, enquanto eu e Suzanne ficamos esperando no corredor, com um guarda, um detetive e um par de reprteres. Ao sair, parecia um homem talhado em pedra, cinzento, sombrio e impiedoso. Quando os jornalistas insistiram em que fizesse uma declarao, ele recitou em tom montono: Creio que sabem que foi feita uma oferta para assumir o controle de minha organizao. Sabem tambm que um homem foi assassinado em Londres e uma mulher em Nova York e que ambas as mortes estavam relacionadas com a Creative Systems Incorporated. Declaro agora que a tentativa contra nossas vidas est relacionada com todos esses acontecimentos...Podem dizer que declarei ainda que no descansarei enquanto o homem e peolhes que destaquem a frase , enquanto o homem que a ordenou no for levado perante a justia. Neste momento, no tenho mais nenhum comentrio a fazer. O detetive apoderou-se dessas palavras e comeou a esmiu-las como
um co de caa faz com a presa. Arlequim interrompeu-o, com frieza e implacavelmente: Tenente! J lhe falamos durante quase trs horas. Dissemos-lhe para entrar em contato com a polcia sua e com o FBI. Aqui ter que procurar apenas por um assassino de aluguel. O verdadeiro culpado est fora de seu alcance. No direi agora quem , pois nada posso provar. Leve as declaraes para o hotel e ns as assinaremos. Fico-lhe agradecido por sua assistncia, mas, pelo amor de Deus, agora deixe-nos ir! De volta ao hotel, ordenou que fssemos tomar caf e depois o procurssemos para uma conferncia, dentro de uma hora. Eu argumentei, Suzanne suplicou: ele tinha que descansar um pouco. Mas George recusou. No nos deixaria descansar, enquanto certas coisas essenciais no fossem feitas. Se precisssemos de estimulantes para nos manter de p, chamaria um mdico para ministr-los. Parecia um homem possudo por um demnio do inverno, frio e obstinado, sem qualquer toque de compaixo. Quando voltamos a seu quarto, ele j estava trabalhando. Fiquei horrorizado com o
que nos pediu e que j comeara a executar. Suzanne, quero que despache imediatamente, com a mxima urgncia, o seguinte telegrama, para todas as nossas filiais, em meu cdigo pessoal. Abre aspas: Minha esposa em estado crtico depois tentativa de assassinato na Cidade do Mxico ponto Essa tentativa relacionada recentes atividades Creative Systems Incorporated ponto Ordeno que venda imediatamente todas repito todas as nossas aes e todas as aes de nossas contas discricionrias da Creative Systems e suas subsidirias ponto Continuar vendendo quaisquer que sejam os prejuzos envolvidos ponto Avisar os clientes no-discricionrios de nossas intenes ponto No cumprimento desta ordem por qualquer razo ou por qualquer conselho resultar em demisso imediata ponto Assinado: George Arlequim, presidente. No pude conter-me e explodi num protesto: Isso uma loucura, George! No pode fazer tal coisa! J fiz, Paul. Transmiti ordens verbais a Londres, Genebra, Paris e
Nova York. Informei tambm a Herbert Bachmann e a Karl Kruger, a fim de proporcionar-lhes a oportunidade de se protegerem. Com relao s suas aes, determinei a Genebra que as vendesse. Eu lhe cobrirei pessoalmente os prejuzos que porventura tiver. Pelo amor de Deus, George! Voc vai se arruinar! Talvez...Mas neste momento, Paul, no me importo. Compreenda isto: no me importo com nada! Suzanne, passe outro telegrama para os nossos acionistas minoritrios. As duas primeiras frases iguais: Minha esposa etc. etc. Depois continue. Abre aspas: Recomendo insistentemente rejeite oferta de Yanko ou pelo menos adie aceitao at resultado investigaes policiais ponto Impossvel no momento excluir possibilidade atividade criminosa por parte do comprador ponto Assinado: George Arlequim. Se esse telegrama for divulgado, George, o que inevitvel, Yanko poder process-lo por crime de calnia. Pois quero que ele me processe, Paul! Peo-lhe que telefone para Leah Klein e conte-lhe exatamente o que aconteceu e o que estamos fazendo.
Quando tiver acabado, ligue para Jos Luis. Ele ainda no soube do acontecido, pois caso contrrio j nos teria procurado. Diga-lhe para providenciar os dlares de que estamos precisando e vir encontrar-se aqui comigo ao meio-dia. Depois marque um encontro com Aaron Bogdanovich para o mais breve possvel. Era como contemplar um homem preparando-se para o seppuku, abrindo o tapete vermelho, colocando a espada curta sobre a mesinha, preparando-se com um ritual inflexvel para enfi-la na barriga. Eu seria o kaishaku, o amigo que lhe deceparia a cabea no momento em que a lmina lhe perfurasse a carne. S que eu no o faria. Fiz uma ltima e desesperada tentativa de traz-lo de volta razo: George, suplico que me oua! Devo-lhe muito, mas voc tambm me deve alguma coisa. E estou cobrando o pagamento agora. Quero que oua... - Suzanne, por favor, datilografe esses telegramas. E poderia tambm poupar-nos tempo, dando aquele telefonema para Jos Luis e outro para
Pedro Galvez. Conte-lhe o que aconteceu e pergunte se poderia fazer a fineza de vir ver-me agora. Assim que ela saiu do quarto, Arlequim iniciou um monlogo rpido e desordenado: Paul, voc no vai dizer nada! Eu j sei de tudo. Podemos discutir at o dia do Juzo Final e eu no mudarei sequer uma palavra, nenhum ato dos que me proponho fazer. Voc est pensando que estou desvairado, fora de mim pela dor que estou sentindo. Mas no estou. Se Julie morrer, tambm estarei morto. Eu a tenho amado de uma maneira que nem mesmo ela jamais compreendeu plenamente. Se ela viver, serei como Lzaro, a voltar do mundo dos mortos para descobrir que seu mundo mudou para sempre, embora nem um graveto ou uma simples pedrinha tenha mudado de lugar. Neste momento, nada posso fazer por Julie. Absolutamente nada! Os mdicos vo oper-la, as enfermeiras cuidaro dela. Ela nem mesmo poder saber agora o quanto eu a amo. Depois, se tivermos sorte, poderei segurar-lhe as mos e levar-lhe flores...E durante todo esse tempo Basil Yanko estar sentado em
Nova York, fazendo equaes financeiras da tragdia alheia. Mas no permitirei que seja assim. No permitirei que ele acredite por um s momento mais que poder continuar a agir impunemente. A melhor arma dele o segredo e o medo que o segredo engendra. No mais! Vou traz-lo para uma luta em campo aberto. certo que isso reduz minha vantagem. Mas, por outro lado, d-me outra vantagem. Posso suportar a luz da ateno pblica e ele no pode. No mercado, diro que sou um tolo, que sou um palhao. Pois que falem! Eu seria muito mais tolo se no pudesse me livrar das correntes com que querem prender-me: as posses, o prestgio e tudo o mais. Mais uma coisa, Paul, s mais uma, um aviso para voc: se Julie morrer, eu matarei Basil Yanko. E no vou querer que voc esteja por perto quando isso acontecer... Depois disso, no tinha mais nenhum lugar onde me apoiar, nenhum lugar onde cair, mais nada me restava dizer. Suzanne voltou com o telegrama. Fui para meu quarto, a fim de telefonar para Leah Klein e para Aaron Bogdanovich.
O desastre era um prato habitual para Leah Klein. Ela lamentou, embora fosse delicada o suficiente para no diz-lo, no termos um cadver. No entanto, os detalhes da operao tambm serviriam. A venda das aes daria tambm uma boa reportagem. Um amigo dela possua umas poucas aes e ficaria contente com a oportunidade de vender antes que o pnico comeasse. Ela faria o que fosse possvel para dissuadir compradores e para lanar o temor de Deus nos coraes dos corretores. Quando citei a frase de Arlequim sobre "atividade criminosa", ela deu uma risada gutu-ral e comentou: Ento ele est furioso a esse ponto? Diga-lhe que tem companhia aqui em Washington. Recebi tambm a visita de um amigo de vocs, Milo Frohm. Ele queria saber onde obtive minhas informaes. Nada lhe disse, claro. Continue em contato comigo, Sr. Desmond. Esto indo muito bem. E no se esquea de que uma reportagem exclusiva escrita por mim recebe mais espao nos jornais do que o proporcionado pelos rapazes das agncias
telegrficas. Por isso, se a moa morrer, avise-me em primeiro lugar... Aaron Bogdanovich j sabia do ocorrido. Manifestou seu pesar, mas sem nenhuma emoo. Um de meus agentes seguiu-os at o restaurante na noite passada. Enquanto vocs comiam, ele percorreu o caminho por duas vezes. Disse que em ambas no encontrou absolutamente ningum. Quando vocs saram, tornou a segui-los. Estava logo atrs quando o atentado ocorreu. No apareceu depois, porque seria apanhado como testemunha. Para ser franco, no esperava que surgissem problemas to cedo. Quando lhe relatei o que Arlequim estava fazendo, mostrou-se apenas ligeiramente interessado. Sua preocupao bsica era a segurana de sua prpria operao. Recusou-se a mudar o momento do encontro, pois o horrio era muito importante. Fiquei furioso e o disse. Ele recordou-me, friamente, que eu mesmo fixara as prioridades do contrato e que Arlequim as endossara. O carro estaria nossa espera s nove horas da manh seguinte, a
menos que, at l, Madame Arlequim morresse. Como consolo, deu-me apenas um aforismo conciso: Posso abrir portas, Sr. Desmond. Mas no posso garantir o que encontraro do outro lado. Tenho a certeza de que o Sr. Arlequim compreender isso. Essa foi a coisa mais prxima de um pedido de desculpas que jamais o ouvi dizer. Ao voltar para o quarto de Arlequim, encontrei-o em reunio com um homem que eu nunca vira antes. Ele era mais alto do que eu, corpulento como uma rvore, os cabelos brancos e as sobrancelhas hirsutas, o rosto da cor de madeira velha, enrugado e marcado pelo passar do tempo. As roupas eram de um estilo antiquado, mas cortadas por um alfaiate exmio. Usava um alfinete de gravata de esmeralda e no dedo tinha um anel de sinete asteca, de jade. De capacete e couraa, poderia perfeitamente passar por um lugartenente do prprio Hernn Corts. Arlequim apresentou-o como Pedro Galvez. Sentamo-nos todos e Galvez prosseguiu em seu discurso interrompido:
Como estava dizendo, esquea a polcia e esquea esse pistoleiro contratado. Podero encontr-lo ou no. at mais provvel que no. Numa cidade deste tamanho, com tantos imigrantes e tantos desempregados, pelo menos metade da populao masculina vive fora da lei. Confesso que ontem, quando almoamos, no me sentia muito confiante com relao a voc. Sempre me parecera muito suave, por demais civilizado. No digo que isso seja errado. Mas aqui, no Novo Mundo, no o suficiente. No se pode transformar um celerado num homem honesto pelo simples fato de se lhe dar um colarinho duro e uma gravata. por isso que agora o aprovo plenamente, quando me diz que vai lutar e como pretende faz-lo! Eu apoiarei, pelo menos aqui, onde o nome Galvez ainda significa alguma coisa. Diga-me agora do que est precisando. Depois lhe direi o que penso que est precisando. Quero que traga um homem de Los Angeles para a Cidade do Mxico. Quer que ele seja seqestrado? Quero que ele seja atrado at Tijuana, do outro lado da fronteira, e
de l trazido para a Cidade do Mxico. Se necessrio, estou preparado para mandar prend-lo no momento em que puser o p em solo mexicano, acusando-o de conspirao para lesar-me. Preferiria, no entanto, falar com ele antes que a polcia o agarrasse. Deixe-me pensar um pouco a respeito. Tudo possvel. O que deseja em seguida? Disse-me que nosso amigo Jos Luis anda jogando. Bem...Talvez eu tenha tido uma impresso errada. verdade que ele joga, nos cavalos e nas mesas, algumas vezes apostas bem elevadas, mas no enfrenta a menor dificuldade. O pai deixouo rico e ele continua rico. Mas a maneira como ele vive no a mais apropriada para um homem a quem se confiou o dinheiro de outras pessoas. Ele anda em companhias estranhas. Acho que conhece os tipos que so atrados por nossa cidade: organizadores de empresas, especuladores, intermedirios de dinheiro fcil. Ele os trata como prncipes. Costuma introduzi-los onde no deveria. Algumas vezes usa o nome do banco para tanto. Sei que o senhor no um homem dessa
espcie, nem eu tampouco. No aprovo esse comportamento. Posso apontarlhe pelo menos trs homens que lhe serviriam muito melhor. Preciso dele agora disse George Arlequim firmemente. Preciso dele leal e feliz, at poder confrontlo com Alex Duggan e obter, sem coao, um depoimento, na presena de testemunhas. Por que no lev-lo para a Califrnia e fazer l a acareao? Porque l no temos nenhum recurso legal contra Duggan e nenhuma maneira de for-lo a contar a verdade. Parece-me, meu amigo, que tem tantas dvidas a respeito de Jos Luis quanto eu. Dvidas sim, certezas no. Deixe-me ver ento se lhe posso descobrir algumas. At l, concordo em que o melhor mant-lo feliz e confiante. Quanto a esse Alex Duggan... Fez uma pausa, o rosto contrado se iluminando num sorriso astucioso e divertido. Certa vez um yanqui roubou-me em vinte mil dlares e voltou para a
Flrida para goz-los. Ns lhe mandamos cem gramas de herona pelo correio. Quando ele abriu o pacote para a inspeo do pessoal da Alfndega...he aqui! H muitas outras maneiras de se cozinhar um coelho, alm de reche-lo com pimentas vermelhas! Virou-se ento para mim, cordial e um tanto condescendente: No est falando muito, Sr. Desmond. Talvez esteja achando tudo isto um pouco fastidioso... verdade, Sr. Galvez. Estou um pouco aborrecido. Por qu? Ontem Jos Luis era um jogador. Hoje ele se cerca de companhias vulgares. uma mudana, se no uma contradio. um modo de dizer observou George Arlequim com aspereza. E eu o compreendo perfeitamente. Ento essa minha resposta. Desculpeme, Sr. Galvez. No h de qu, Sr. Desmond. Cada um de ns vtima de sua prpria histria. Ele levantou-se, alisando os vincos da roupa, e dirigiu-se a George Arlequim:
Vou comear a trabalhar imediatamente. Suplico-lhe, meu caro amigo, que procure descansar um pouco. Telefonei para o cardeal e pedi-lhe que providenciasse uma novena de missas pela recuperao de sua esposa. Sabe o que eles costumam dizer: "Deus cura e o mdico recebe o pagamento". Em breve receber notcias minhas... Ele acabara de sair do quarto quando Jos Luis telefonou do saguo. Arlequim estava quase dormindo em p e eu tambm. Suzy entrou, plida mas controlada. Ela acabara de telefonar para o hospital. Julie ainda estava na sala de recuperao. Tendo em vista a natureza do caso, seu estado era bastante satisfatrio. Concordamos em que, assim que tivssemos acabado de falar com Jos Luis, todos ns dormiramos um pouco. Ele entrou no quarto como um penitente, lamentando-se e flagelandose. Se ao menos nos tivesse acompanhado na noite anterior, se ao menos tivesse percebido toda a perversidade que havia naquela histria, se ao menos... Arlequim no estava com disposio para ouvir lamentaes.
J tem o dinheiro, Jos? Ele ser entregue esta tarde, pelo Banco Central. Precisarei t-lo comigo s nove e meia da manh. Passaremos para apanh-lo. Mantive minha promessa: a polcia nada sabe a respeito de Maria Guzmn. Contudo, devo saber todo o resto da histria. Encontrou-se pessoalmente com esse homem que disse chamar-se Peter Firmin e que alegou ter vindo verificar os computadores? No. Naquela semana eu estava de cama, fortemente gripado. Cristbal Enriques que estava no comando. E como foi que ele admitiu um homem com nome falso e documentos falsos? Os documentos estavam em ordem. Isso est no dirio. Cristbal ligou para o escritrio da Creative Systems. Eles confirmaram o nome e o nmero do documento. As fotografias combinavam. Temos uma cpia da carta de apresentao em nossos arquivos. Cristbal no lhe pediu o passaporte? As instrues de segurana no especificam que se deva pedir o
passaporte. Dizem que basta apenas a carteira funcional da companhia, com uma fotografia e o nmero, alm da carta de apresentao. Obrigado, Jos. Gostaria de que me providenciasse duas declaraes com testemunhas, uma sua e outra de Cristbal Enriques, enunciando esses fatos. Poderia tambm indagar Creative Systems como um homem que eles identicaram como Peter Firmin passou a chamar-se Alex Duggan ao voltar para a Califrnia? Intervim ento na conversa. Sugiro, George, que por enquanto fiquemos longe da Creative Systems. Ele hesitou por um momento, mas acabou concordando. Paul est certo, Jos. Providencie-me apenas as duas declaraes. Com prazer. Elas estaro prontas pela manh. Por favor, o que posso agora fazer por voc, por sua pobre esposa...? Talvez rezar. Ah, se ao menos eu acreditasse em oraes! Diga-me francamente, Jos: quem voc acha que poderia ter feito
uma coisa dessas? No sei, George. Por dinheiro, jias...Isso mesmo! Quando um homem est faminto o bastante ou ganancioso em demasia, o assassinato uma coisa muito simples. Por vingana, em conseqncia de uma desonra a si mesmo ou sua esposa, tambm se mata. Mas isso...No, no, no! Parece coisa de gngsteres. Creio que ter de procurar fora do Mxico. O que diz a polcia? Eles esto procurando um homem com uma arma. Uma agulha num palheiro! No h a menor condio de encontrlo! Tem amigos que possam ajudar? Por um momento ele pareceu desconcertado, mas logo sorriu, pesaroso, ao compreender a insinuao. Ah, minhas ms companhias! Tenho de fato uma inclinao por gente vulgar. Se tivesse vivido na minha famlia, talvez sentisse a mesma inclinao. Jogo com eles e choco os meus amigos com eles. Algumas vezes, porque eles so espertos e ousados, ganho dinheiro com eles. Mas no so gngsteres, George, meu amigo...Oh, no, isso nunca! Agora quero que seja
tambm franco comigo: quer que eu pea demisso? Posso pedir hoje mesmo ou mais tarde, quando melhor lhe aprouver. muito generoso de sua parte, Jos, mas preciso de voc. E agora mais do que nunca! Est me fazendo um elogio. Algum dia eu o retribuirei. Como se saiu com Pedro Galvez? Melhor do que eu esperava. Temos um pouco de tempo para respirar. Ele um homem estranho, um bom amigo, um inimigo implacvel. Se precisar de mim, estarei no banco. noite, estarei em casa. Ele deu um sorriso amargurado e acrescentou: E desta vez sozinho. Estou comeando a pensar que me curei dos pecadilhos da juventude. Agora procure descansar um pouco, por favor... Assim que ele saiu do quarto, Suzanne assumiu o comando. No haveria mais conversas, no receberamos mais nenhum visitante at as seis horas. Se houvesse algum telefonema do hospital, ela atenderia. Comprara sedativos na farmcia. Arlequim teria que tomar um e dormir at ser chamado.
Exausto, ele concordou, seguindo para a cama. Olhei para o relgio. Passava meia hora do meio-dia. Todos ns estvamos acordados h trinta horas. Ao descermos para nosso andar, Suzanne comeou a tremer incontrolavelmente. Apressei-me em lev-la para o apartamento, sentei-a numa poltrona e procurei reanim-la com um drinque. Ela engasgou ao primeiro gole, depois correu para seu quarto e bateu a porta. Fui para meu quarto, vesti o pijama e um roupo, servi-me de uma dose dupla e fui ver Suzanne. Encontrei-a deitada na cama, os cabelos em desalinho, o rosto contorcido e manchado de lgrimas. Sabia como ela estava se sentindo. Toda aquela histria era uma confuso cruel e sangrenta, com amostras de mentiras e brutalidade, um rosrio de esperanas perdidas. Julie estava alm de nossa ajuda. Arlequim recusara-a e retirara-se para a solido dos fanticos. Nem com todo o amor que existisse no mundo, algum poderia alcan-lo. Nada havia que eu pudesse dizer a Suzy, a no ser as palavras simples e suaves que se usam para com as crianas. Nada havia que eu pudesse fazer, a no ser
mostrar-me gentil com ela at que a dor e o pnico se dissipassem. Depois voltei para meu prprio quarto e dormi irrequieto at o anoitecer. noite Arlequim foi visitar Julie sozinho. Telefonou para dizer que ela estava consciente, embora bastante fraca e sentindo fortes dores, apesar das doses macias de sedativos. Haviam lhe oferecido uma cama para passar a noite no hospital, a fim de poder ficar perto dela. Pediu-me que lhe mandasse um pijama, os artigos de toalete e uma muda de roupa de baixo. Pela manh eu deveria apanhar o dinheiro no banco e depois ir busc-lo no hospital, a fim de irmos ao encontro marcado com Bogdanovich. Suzanne deveria ficar de viglia at que voltssemos. Se o estado de Julie piorasse, eu deveria ir ao encontro sozinho. Pouco depois, Saul Wells telefonou de Los Angeles. Localizara nosso amigo, Alex Duggan, que vivia um tanto luxuosamente num bloco de apartamentos no Olympic, com uma linda esposa e um filho. Havia um apartamento vago no mesmo edifcio, e Saul estava pensando em alug-lo
como base de operaes. Iria dedicar-se a manter Alex Duggan com uma sade perfeita. Tinha tambm outras notcias para mim. Os jornais vespertinos e os noticiosos da televiso haviam divulgado a tentativa de assassinato ocorrida na Cidade do Mxico. Os jornais matutinos iriam dar uma grande cobertura na manh seguinte. A tnica era a da histria de Leah Klein, falando em "Fuses e homicdios". Falava-se em Washington de uma investigao do Congresso sobre a segurana dos bancos de memria dos computadores. At aquele momento Basil Yanko recusara-se a fazer qualquer comentrio. Em Wall Street, o mercado estava em baixa e os corretores mostravam-se cautelosos. Esperavam para ver o que aconteceria na terafeira... At aquele momento, tudo estava indo muito bem. J se podiam ouvir as trovoadas, mas ainda no comeara a chover. Depois disso, tnhamos toda a noite para ns mesmos...e um desejo profundo de pass-la em segurana. Sentamo-nos no bar e ficamos bebendo margaritas, ouvindo a conversa dos turistas. Jantamos num canto distante e
tranqilo e conversamos sobre George e Juliette, sobre o futuro incerto que todos tnhamos pela frente. Suzy resumiu a situao com uma declarao melanclica: Est tudo mudado, Paul. Nenhum de ns jamais voltar a ser o mesmo. Se Julie ficar curada, minha querida, todos ns vamos melhorar rapidamente. E se ela morrer? No saberei como controlar George. Voc conseguir faz-lo? Houve uma ocasio em que sonhei que poderia consegui-lo. As palavras saram lentamente, arrancadas do fundo de um poo de tristeza. Agora, sei que impossvel. Nunca antes tinha visto esse lado sombrio de George. Julie o conhecia. E talvez fosse exatamente isso o que amava nele e queria acima de todo o resto...Engraado, sempre achei que ela era a mulher errada para George. Agora sei que eu que seria. Mesmo assim, continuo a am-lo. um inferno, no acha? Quando tudo isso tiver acabado,
acho que vou fazer uma mudana em minha vida, antes que seja tarde demais. Voc me dar uma boa referncia, Paul? Se quiser ir comigo, eu lhe darei inclusive um emprego, muito melhor do que o que tem agora. No est tambm pensando em deixar tudo, no ? No h nada para deixar, minha querida. Tenho apenas uma participao e uma boa retirada, da qual no preciso. Estou cansado do mundo dos negcios e dos miserveis que o infestam, inclusive eu. Mas no posso largar tudo enquanto George no tenha superado todas as dificuldades e volte outra vez a pastagens mais tranqilas... Se que conseguiremos ajud-lo a transpor as dificuldades... Voc confia em mim, Suzy? Sabe que sim. Voc nunca me magoou, Paul. Poderia faz-lo, mas nunca o fez. Por que pergunta? Um dia... e se esse dia chegar, ser muito em breve...posso pedir-lhe que me apie contra George. Estarei agindo assim no por mim, mas pelo prprio bem dele. Voc far o que eu pedir? Terei que saber primeiro qual o motivo.
Ele pode tentar matar Basil Yanko. Ela no demonstrou o menor sinal de choque ou surpresa. Ficou em silncio por um momento e depois disse calmamente: precisamente o que estava dizendo: nenhum de ns jamais voltar a ser o mesmo...Sim, Paul, farei qualquer coisa que me pedir. Agora, por favor, pague-me um conhaque e vamos mudar de assunto. O resto da conversa foi apenas bobagem, simples banalidades. Ficamos por l at tarde, bebemos muito e terminamos a noite estranhamente sbrios. Quando subimos e eu a abracei para um beijo de boa-noite, ela disse com a maior simplicidade: Por favor, Paul, fique comigo. No poderia agentar passar esta noite sozinha. O mais triste que eu queria ficar sozinho e no tive coragem de dizerlhe. Nosso amor foi afetuoso e ela no viu os fantasmas que assombravam os cantos escuros do quarto. Depois adormeceu em meu ombro. Puxei as cobertas para cima dela e ficamos enlaados a noite inteira, duas pessoas
solitrias, encolhidas como crianas num bosque escuro. 7 s nove horas da manh, pontual como a morte, a limusine parou diante do hotel. Suzanne e eu seguimos para o banco e recebemos uma sacola de lona, dentro da qual havia duzentos e cinqenta mil dlares em dinheiro. Chegamos ao hospital s nove e meia. George Arlequim estava esperando-nos na porta. As notcias que tinha no eram boas nem ms. Julie continuava na mesma. Havia uma infeco ps-operatria, mas os mdicos esperavam debel-la. O cirurgio que a operara no estava insatisfeito. Havia um quarto em que Suzanne poderia descansar e ler. Se Julie acordasse, ela poderia v-la por um momento. Afastamo-nos do hospital e mergulhamos no trfego tumultuado e feroz, seguindo para o norte, ao longo da Avenida dos Insurgentes. Nosso motorista era um sujeito idoso e taciturno, com o rosto moreno de ndio. Contudo, consentiu em dizer-nos que nosso destino era quinze quilmetros alm de Tula e que, no caminho, veramos alguns monumentos
antigos dos mais interessantes: as serpentes emplumadas de Tenayuca, a Pirmide de Santa Ceclia e a Procisso dos Jaguares. Tempo houvera em que Arlequim teria insistido em escalar a pirmide. Agora limitava-se a ficar sentado no canto, mudo e cego, querendo apenas que a viagem fosse a mais rpida possvel e que resolvssemos logo o assunto de que amos tratar. Procurei interess-lo na paisagem, mas ele no prestou a menor ateno. Quando lhe relatei minha conversa com Saul Wells, resmungou uma aprovao e caiu novamente no silncio. Somente quando lhe perguntei sobre Julie que demonstrou alguma animao. Ela parece plida e pequena, como uma boneca de cera. Quase no tenho coragem de toc-la. Eles esto alimentando-a com soro intravenoso, mas ela se queixa de que a boca est sempre seca...Perguntou por voc, Paul. Disse-lhe que iria visit-la assim que ela estivesse mais forte. Julie est preocupada tambm com o beb. Cheguei a pensar se no seria melhor trazlo para c de avio, junto com a bab. Mas o mdico aconselhou-me o
contrrio...O pessoal do hospital muito bom. De meia em meia hora algum ia v-la. Fiquei sentado ao lado dela quase a noite inteira. Senti-me inteiramente impotente, mas ela podia segurar minha mo ao acordar...Apareceu tambm um padre. Era muito jovem e queria dar uma bno a Julie. Eu lhe disse que ambos nascramos calvinistas. Ele respondeu que os homens que mantinham listas e faziam distines...Deixei-o pr as mos em Julie... algo bastante primitivo, mas a verdade que, depois, ela pareceu sentir menos dor... Deus! Por que a vida tem que ser tamanha blasfmia? Gostaria de poder explicar-lhe, mas faltavam-me a sabedoria e as palavras. O rosto dele endureceu-se e ele caiu num silncio meditativo. Depois de Tula, seguimos pela encosta de um penhasco escarpado e atravessamos um desfiladeiro alcantilado, que se abria num plat circular, a cratera de um vulco h muito extinto. No centro do plat havia um lago, cercado por um pntano cheio de juncos, a terra erguendo-se abruptamente
para pastos verdes e terraos de cultura de milho e outros cereais. A casa da hacienda ficava na orla mais distante da cratera, um prdio comprido e baixo, de pedras, com gramados e canteiros de flores na frente, com anexos nos dois lados, e logo depois as casas dos camponeses, os estbulos e os cercados para carneiros e bois. Parecia uma rica propriedade particular e feudal, como um ducado antigo que sobrevivera a muitas revolues e continuava a ignorar os democratas. Aaron Bogdanovich estava nos esperando entrada da casa. Disse-nos algumas palavras de saudao e perguntou por Julie. Depois levou-nos a uma sala ampla, com cho de cermica, uma lareira de pedras, tapetes coloridos e pesados mveis coloniais espanhis. Apontou para algumas peas toltecas muito raras e em seguida chamou um criado para nos trazer caf. Explicou vagamente que a hacienda era propriedade de amigos diplomatas. Observei, como j o fizera em Nova York, que se dirigia a Arlequim com deferncia e com a preocupao de ser respeitado. Depois que o caf foi servido, ficou de
p junto lareira e explicou-nos a misso daquele dia: Vocs vo conhecer um homem que, sob muitos aspectos, bem parecido comigo. Isto , faz do assassinato uma profisso. A diferena entre ns dois no muito grande. Tenho uma educao melhor. Ele um bruto inteligente. Eu alego em minha defesa que sou um patriota. Ele no alega coisa nenhuma, reconhece-se to somente um mercenrio. Quando conversarem com ele, acreditaro que perfeitamente lcido. No momento, ele est profundamente desorientado, por sedativos fortes, privaes sensoriais e mtodos de sugesto. No pode ainda distinguir entre a realidade e a iluso. O senhor ir confirmar-lhe, Sr. Arlequim, a iluso. Veio aqui contratar os servios dele para matar um homem em Nova York. Est disposto a dobrar o preo pedido, mas primeiro quer saber de todas as credenciais dele. Eu orientarei a conversa. O senhor intercalar algumas perguntas, sempre que lhe fizer sinal para isso. O Sr. Desmond permanecer em silncio, a menos que o convide a falar. Alguma pergunta, Sr. Arlequim?
Vamos encontrar-nos frente a frente com ele? Exatamente. E no perigoso? Deve aceitar minha palavra de que no h o menor risco. Falou em privao sensorial. Ele sabe o que lhe aconteceu? Apenas fragmentos... Vou explicar. Fomos encontr-lo no aeroporto, como amigos, e o trouxemos para c, a fim de aguardar esta reunio. Ele concordou. Foi narcotizado durante o jantar. Quando acordou, estava suspenso em pleno ar num poro, amarrado e com um capuz negro na cabea. No havia o menor rudo, nenhuma alterao da temperatura. Sempre que se mexia, girava no vazio. O resultado foi uma rpida desorientao. Foi narcotizado novamente e alimentado por soro intravenoso. Ao acordar, estava novamente suspenso na escurido, mas dessa vez sujeito a sons cacofnicos e notas de alta freqncia, entremeadas de vocbulos. O resultado foi uma alucinao profunda. Esta manh acordou em seu prprio quarto, assistido por uma linda enfermeira, que lhe explicou que fora atacado por uma
virulenta febre local. Ele acredita que esteve delirando, mas que poder, com a ajuda de estimulantes, encontrar-se com seus provveis clientes...Esse, em resumo, mas no em profundidade, o mtodo refinado da tortura moderna. Pode-se ser treinado para resistir a ele por um perodo muito limitado. Tony Tesoriero nunca teve tal treinamento. Acreditamos que ele esteja suficientemente preparado para esta reunio. Se tal no acontecer, talvez eu tenha que recorrer a outras medidas. Se sentirem algum escrpulo, lembremse de como ganha a vida muito boa, por sinal, como iro verificar. Esperem aqui um momento, por gentileza! Ele j sara da sala h uns dez minutos. George Arlequim continuava sentado, plcido e de rosto vazio, olhando para as achas na lareira. Fui at a porta e l fiquei parado, contemplando a terra verde a se estender at a orla da cratera, bastante escura e recortada contra o cu plido do meio-dia. Atrs de mim, Arlequim disse: No h necessidade de voc ficar, Paul. Isso tudo no me causa a menor impresso.
Causava em mim, mas era covarde o suficiente para mant-la para mim mesmo. Eu que o iniciara naquela jornada para o inferno. O mnimo que podia fazer agora era continuar a acompanh-lo e tentar traz-lo de volta ainda humano. Aquele era o verdadeiro terror do momento: estvamos, por consentimento mtuo e depois de uma deliberao racional, apoiando-nos no rompimento e fragmentao de outro ser humano. No importava o quo degradado e animalesco ele fosse, mesmo assim ainda era um ser humano, nascido de uma mulher, amamentado num seio, erguido um dia diante da tribo como a promessa de sua continuidade. Quando Tony Tesoriero entrou, apoiado no brao da enfermeira e acompanhado por Aaron Bogdanovich, no parecia absolutamente animalesco. Devia ter entre trinta e quarenta anos, era magro e pequeno, com a graa aquilina e morena que se encontra entre os albanesi de Puglia e da Siclia. Os olhos estavam inexpressivos e inchados, ele movia-se lentamente e a voz era engrolada, como se a lngua fosse grande demais para a boca. O
sotaque era do Brooklyn, de Little Italy. Ele afundou-se pesadamente numa poltrona. A enfermeira ficou parada atrs dele. Bogdanovich foi encostar-se no parapeito de pedra da lareira e ficou brincando com uma estatueta tolteca que representava um jaguar. Poderia perfeitamente passar pelo presidente de uma organizao de caridade, cuidando das ltimas providncias para uma feira beneficente no domingo. Tony, estes so os cavalheiros que desejam contrat-lo. Senhores, este Tony Tesoriero. Ele esteve doente nos ltimos dias, devido a mordidas de carrapatos. Encontramos picadas no brao dele, a confirmar que foi mordido por insetos. Contudo, dentro de dois ou trs dias ele j estar inteiramente recuperado. Agora, para comearmos, Tony, o dinheiro j est aqui... Quanto? Mostrem-lhe, por favor. Arlequim abriu a sacola de lona e derramou alguns maos de notas no cho de cermica. Depois, ele disse: E agora, Sr. Tesoriero, quero fazer-lhe algumas perguntas.
Chame-me de Tony. assim que todo mundo me trata. Quais so as perguntas? Quero matar um homem em Nova York. Pode faz-lo? Tony mostrou uma expresso indolente, tolerante e divertida. Voc paga e eu executo o servio. Esse o contrato. Garante os resultados? Esse meu trabalho. At agora cumpri vinte e trs contratos, todos sem o menor problema nem reclamaes dos clientes. Qual o preo? Comea em vinte mil dlares e sobe at cinqenta mil, mais as despesas. Ter tambm que pagar o seguro. O que significa isso? Se eu for apanhado, ter que pagar os advogados e trezentos dlares por semana minha garota, enquanto estiver preso... se que ficarei. E como posso ter certeza de que no ir dizer alguma coisa? Se falar, voc manda me matar; por isso eu no falo. Sabe disso, caso contrrio no me teria chamado, no mesmo?
Ele hesitou nas ltimas palavras e uma expresso desconcertada surgiulhe nos olhos apticos. Isso... isso o que gostaria de saber. Quem foi que me indicou? Aaron Bogdanovich sorriu pacientemente. Eu j lhe disse, Tony...O caso Hallstrom, aquela mulher em Nova York... Ah, sim...Uma loura alta. O contrato dela foi firmado na Cidade do Mxico...Como era mesmo o nome do cara? Basil Yanko. No, no...Era outra pessoa...Mexicano...Como que pode conheclo e no saber o nome? Ns sabemos, Tony disse Bogdanovich, a gentileza em pessoa. Estamos apenas tentando descobrir se voc to esperto quanto diz. Tony fitou-nos atordoado e hostil, como um lutador de boxe sonado. O que est querendo dizer? Aceitei o contrato e recebi trinta mil dlares. Fiz o servio. Ser que isso me torna estpido ou algo parecido? Pois acaba de provar que foi, Tony. O preo do contrato era de
cinqenta mil. Sei porque Basil Yanko me contou. Tenho a impresso de que voc foi roubado em vinte mil...E tenho certeza de que Yanko tambm no ficar muito satisfeito. Porca madonna! Depois de tantos anos, Tony Tesoriero foi passado para trs! Mas no h de ser nada. Assim que eu sair daqui, terei que fazer um acerto de contas particular. No, se quiser este trabalho, Tony. Bogdanovich comportava-se como um mestre-escola paciente, diante de um aluno por demais ansioso. Meus amigos precisam de um trabalho limpo, sem risco algum. Receber por ele sessenta mil. Mas fui enganado em vinte mil! Isso no direito! por isso que estamos querendo saber o que saiu errado, Tony. Foram despachados cinqenta mil de Nova York para um cara na Cidade do Mxico. Ns o conhecemos e sabemos que um intermedirio honesto. Mas talvez ele tenha passado o contrato por intermdio de outra pessoa, que ficou ento com uma parte do dinheiro... exatamente isso o que estamos procurando determinar.
Era doloroso assistir sua tentativa de recolher as lembranas e impresses dispersas em sua mente. Comeou a raciocinar lentamente, destacando os itens nas pontas dos dedos: Est certo, vamos comear do princpio. Um cara em Miami disseme que tinha um amigo na Cidade do Mxico que queria acertar um contrato comigo, exatamente como vocs mesmos fizeram. Encontrei-o. Aceitei o servio. Recebi o pagamento. No me encontrei com dois caras, apenas com um. Ele velho, parece um don, de cabelos brancos e um anelo verde no dedo...Ah, sim! Agora estou me lembrando tambm: tinha um alfinete de gravata com uma esmeralda do tamanho de uma noz. O nome do cara era Pedro Galvez, o mesmo que me deram em Miami. sobre esse sujeito que esto falando? Esse mesmo. No havia o menor vestgio de emoo na voz de Arlequim. Pedro Galvez... Ele amigo de vocs? No mais, Tony. Como posso ento recuperar meu dinheiro?
Aceite meu contrato disse Arlequim e eu o farei recuperar seu dinheiro. Est falando srio? Claro. Sessenta mil, mais as despesas e o seguro. Acertaremos os detalhes amanh, quando estiver melhor e mais alerta. Aqui est o dinheiro. Abaixou-se e contou alguns maos de notas, empurrando-os com o p sobre o cho de cermica. Quando voltar amanh, eu lhe trarei os vinte mil. Mas precisarei de um bilhete seu para receb-los. Que espcie de bilhete? Algo bem simples..."Para Pedro Galvez: Basil Yanko deu-lhe cinqenta mil dlares para pagar-me pelo contrato de Valerie Hallstrom. Ainda est me devendo vinte mil. Entregueos ao portador deste bilhete. Se no o fizer, eu mesmo irei receb-los..." Depois basta assinar. O que lhe parece? Perfeito. Aaron Bogdanovich ajudou-o a levantar-se e a ir at uma escrivaninha, ficando a seu lado enquanto ele escrevia o bilhete, bem devagar e com a caligrafia laboriosa de uma criana.
Quando acabou, Bogdanovich ps o bilhete dentro de um envelope e entregou-o a Arlequim, indagando em seguida: Est satisfeito com Tony? Inteiramente. No h mais nada que deseje saber dele? No. Tony, voc deve agora descansar um pouco. Esse trabalho dos grandes e amanh voc tem que estar completamente recuperado. Alm disso, est na hora de sua injeo, no mesmo? Mas que droga! Estou parecendo uma almofada de alfinetes! Mas esta ser a ltima injeo, Tony disse a enfermeira jovialmente. Est certo. Eu os verei amanh. Ele abaixou-se e pegou os maos de notas, enfiando-os na frente da camisa e fazendo piadas desconexas sobre como aquilo ia melhorar sua aparncia. Depois, rindo e balbuciando, apoiou-se no brao da enfermeira e saiu da sala. Arlequim virou-se para Bogdanovich e indagou: O que vai acontecer com ele agora?
Exatamente o que ouviu, meu amigo. Ele vai receber sua ltima injeo: uma bolha de ar na veia. Quando chegar ao corao, ele morrer. No pude conter uma exclamao de horror. Bogdanovich girou rapidamente em minha direo, desafiandome. Est chocado, Sr. Desmond? Ouviu-o dizer que j matou vinte e trs pessoas. E pensa que poderia ser condenado simplesmente pelo que ouviu dizer nesta sala? Nunca!.. . Alm disso, h algo que ainda no sabe. Valerie Hallstrom era minha agente. Treinei-a e plantei-a na organizao de Yanko. Tony Tesoriero matou-a. Uma vida por uma vida. Essa a lei. Sabia disso quando comeou. Fez uma pausa para respirar e virou-se para George Arlequim. Quem esse Pedro Galvez? Um amigo. tambm um de meus acionistas. E o quanto ele sabe sobre seu negcio? Bastante. Falei-lhe a respeito de Alex Duggan. M notcia... Minha esposa tambm uma das vtimas dele.
Podemos elimin-lo, mas assim perderemos um dos elos em nossa cadeia de provas. Deixe-me pensar um pouco sobre o melhor caminho a seguir. Eu gostaria de mandar-lhe um presente. Que espcie de presente, Sr. Arlequim? O corpo de Tony Tesoriero. Acha que poderia providenci-lo? Posso, mas no vou faz-lo. Bogdanovich foi categrico, acrescentando logo a seguir: Fale-me mais a respeito de Pedro Galvez... Uma famlia tradicional, muito rico pelas minas que possui e arrogante, pelo poder que detm... Mas no louco, nem estpido? No. Ento por que ele faz contratos com matadores profissionais...no para si mesmo e sim para Basil Yanko? Ele precisa de milhes de dlares para investimento em novos empreendimentos. Um dinheiro de risco e a longo prazo, duas coisas muito difceis de se conseguir hoje em dia. As taxas seriam elevadssimas. Eu calculo que Yanko lhe tenha oferecido dinheiro do petrleo, assim que nosso caso
estivesse encerrado... Mas isso ainda no explica, Sr. Arlequim, por que um velho aristocrata como Pedro Galvez iria negociar diretamente com Tony Tesoriero. Isso fcil de compreender. Arlequim fez uma pausa curta, o cenho enrugado numa expresso de autozombaria. A idia certamente o atrairia, como aconteceu comigo. H algo extico em se possuir um carrasco particular. .. um privilgio de rei. Ele mexeu na pilha de notas com a ponta do sapato e acrescentou: Uma pilha de papel compra a morte de um homem. O que ela no pode comprar-lhe observou Aaron Bogdanovich o adiamento de sua prpria morte. George Arlequim digeriu o pensamento lentamente. No havia o menor indcio pelo qual se pudesse determinar se o achava amargo ou doce. Depois de algum tempo, ele disse: Se foi Galvez, por que ele teria dado seu verdadeiro nome? Bogdanovich sorriu. Est esquecido, Sr. Arlequim, de que esse um relacionamento
profissional. Envolve, acima de tudo, segurana. E o contratado teria que saber se de fato existia o dinheiro para pagar a aplice do seguro. Existe um telefone nesta casa? indagou subitamente Arlequim. Gostaria de ligar para o hospital. Ali no canto. A linha no muito boa e talvez tenha que ter um pouco de pacincia. Enquanto ele telefonava, Bogdanovich e eu samos da casa e comeamos a passear juntos pelo ptio. Bogdanovich comentou: Galvez uma surpresa desagradvel. Ele constitui tambm uma ameaa para Alex Duggan, que se torna agora um homem muito importante. Temos que decidir o que fazer com ele. No creio que Arlequim esteja num estado apropriado para decidir o que quer que seja. Discordo, Sr. Desmond. Se falarmos em termos de princpios morais, evidente que ele est atuando dentro de um sistema de valores completamente novo. Se estamos falando sobre sua capacidade de planejar e executar uma estratgia, creio que no momento ela est consideravelmente
maior, porque agora no est limitada por consideraes morais. Evidentemente, isso o perturba. Seu problema, Sr. Desmond, que um homem confuso, desnorteado, meio acreditando, meio negando, a procurar eternamente um compromisso. Seu amigo Arlequim no absolutamente assim. Ele pega a vida ou a morte com as duas mos. Mas compreendo suas dvidas. Aceito ter que ser condenado inutilidade de tudo. Arlequim ir condenar-se a um propsito determinado. E quando o realizar e compreender sua inutilidade...O que acontecer ento? essa sua dvida, no mesmo? Suponho que sim. No tenho resposta para ela, Sr. Desmond. Tampouco -me exigido que tenha. Como Tony, eu aceito um contrato, executo-o e depois me preparo para o prximo trabalho...Ah, Sr. Arlequim! Conseguiu dar o telefonema? George Arlequim estava parado na porta, o rosto lvido, os olhos vidrados. Consegui. Julie morreu h quinze minutos. Eles disseram que foi uma embolia nas coronrias.
Aaron Bogdanovich cravou um punho de ferro em meu brao e murmurou: Leve-o de volta cidade. Eu lhe telefonarei mais tarde. No posso controlar um marido de luto. Vou contar-lhes agora que fui eu quem mais chorou. Ao lado da cama, chorei sem o menor constrangimento. Inclinei-me e beijei-lhe os lbios frios, disse-lhe adeus e murmurei um requiescat. Arlequim ficou parado ao meu lado, rgido, distante, sem lgrimas, esperando que eu estivesse pronto para sair. O que se passou entre eles depois, se ele esbravejou ou chorou, eu simplesmente no sei e, por algum tempo, nem me importei em saber. Foi tudo muito estranho. A morte de Julie era a grande morte. Eu sentia a pequena morte da separao, o pattico do nunca-mais, do jamais-apreciado, a esperana para sempre irrealizada. E, contudo como os mortos so felizes por jamais saberem-no! , eu me sentia aliviado. Ela no podia mais sofrer. Eu estava libertado de uma servido que carregava h tempo demais, uma tentao que se tornara mais aguda com o passar dos anos. Estava finalmente livre se
bem que num deserto frio e rido mas livre. Enquanto espervamos por Arlequim, Suzy e eu sentamo-nos juntos, mantendo a conversa vazia e rememorativa que se segue a cada morte. As lgrimas dela h muito que se haviam esgotado e, como todas as mulheres, em todos os funerais, precisava pensar nos cuidados da casa. Espero que George resolva enterr-la aqui mesmo. Do contrrio, a situao se arrastar por um tempo excessivo. Vamos precisar de um agente funerrio, Paul. Voc poderia cuidar disso? Pedi alguns sedativos ao mdico. George vai precisar deles esta noite. Voc passar a noite com ele na sute, no , Paul? Eu mesma passaria, de boa vontade, mas no muito apropriado...Talvez ele esteja disposto a terminar tudo agora, a esquecer toda essa histria srdida e voltar para casa. O vero est para comear. Voc poder lev-lo para fazer um cruzeiro em seu iate...Tenho que emalar tambm as roupas dela. Seria terrvel para George ter que faz-lo...Oh, Paul, sinto-me to triste por ele...
No podia sentir-me triste por ele porque, naquele momento, estava odiando-o. Senti-me tentado a dizer-lhe que agora tinha outro cadver para jogar diante da porta de Pedro Galvez. E por que no? Uma morte era bastante parecida com outra qualquer. As flores iriam desabrochar tanto da boca aberta de Tony Tesoriero quanto do ventre estraalhado de Juliette Gerard. E durante todo o tempo eu odiava a mim mesmo, porque era o bravo guerreiro com a trombeta de bronze que convocava os heris para a luta e depois soprava um toque de silncio sobre os corpos dos derrotados, afugentando os abutres para longe de seus cadveres. Suzanne segurou-me a mo direita e apertou-a entre as suas. Paul...por favor! No se culpe. Nem culpe George. Podemos apenas percorrer o caminho que avistamos diante dos nossos ps. Por favor, chri...! Muito tempo depois que Arlequim veio ao nosso encontro. Ele estava tranqilo agora, raso e vazio como um lago na Lua. Agradeceu-nos a ambos, por si mesmo e por Juliette. J tomara as primeiras decises necessrias:
Vamos enterr-la aqui mesmo. Paul, voc poderia por gentileza providenciar os melhores arranjos possveis? Ela deve ter uma missa. Devemos informar ao embaixador suo, a Jos Luis, a Pedro Galvez e sua famlia e aos funcionrios do banco. Suzy, por favor, telegrafe a todos os nossos escritrios e determine que fechem por um dia. Pea aos gerentes locais que mandem inserir um aviso fnebre nos jornais. J telefonei para os pais dela. Depois... Vamos falar sobre isso mais tarde, George. Como preferir, Paul. Vou chamar um txi disse Suzanne. Voltarei para o hotel a p. Ns iremos com voc. No, Paul, obrigado. Prefiro ficar sozinho por algum tempo. George, voc quer realmente que Galvez seja convidado para o enterro? Quero. Ele amigo nosso. Pediu ao cardeal que mandasse rezar missas pela recuperao de Julie. Se lhe for possvel fazer a escolha o que est ficando cada vez mais
difcil no ano dos assassinos , suplico que no opte por morrer violentamente numa cidade latina. Os documentos exigidos para consign-lo fora desta existncia so horrendos e ter que esperar no limbo at que todos eles estejam preenchidos. Fui obrigado a abdicar da tarefa de providenciar o funeral de Julie, deixando-a ao encargo de Jos Luis Miramn de Velasco, que a aceitou como um dever sagrado e como a menor das penas por seus pecados. Precisaria somente da assinatura de Arlequim. Quanto ao resto, providenciaria para madame uma cerimnia digna e um lugar tranqilo para repousar, perto do jazigo de sua prpria famlia... E ento o mundo voltou a invadir-nos uma vez mais. Havia uma pilha de telegramas e uma lista de telefonemas com um metro de comprimento. Nossos gerentes locais estavam em pnico. O mercado estava em estado de choque. A imprensa queria comentrios e esclarecimentos. Todo mundo queria saber se George Arlequim era um gnio ou se era um louco rematado e sem me. Enquanto Suzanne cuidava dos telegramas, batalhei com telefonistas
e diferenas de horrio, para responder aos telefonemas mais importantes. Em Nova York, era o fim da tarde. Em Londres, era a hora do jantar. Na Europa continental, era a hora do caf e do conhaque, das notcias do dia na televiso em cores, enquanto o custo de vida continuava a subir e as possibilidades de uma sobrevivncia decente continuavam a diminuir. Acabara de desligar o telefone pela dcima vez quando Suzanne entrou, com um telegrama na mo. Acho que deve tomar conhecimento deste telegrama. de Milo Frohm. Liguei para Aaron Bogdanovich e li o telegrama para ele. Seu comentrio foi seco como folhas mortas: Se precisar dele, chame-o. O problema saber o quanto dever contar-lhe. No tem mais nada a dizer? Vou voltar amanh para Nova York. H ainda negcios inacabados por aqui. Podero ser concludos em Nova York. Telefone-me assim que chegar l. O que deixava o problema de Milo Frohm ainda em aberto. Meu
primeiro pensamento foi adi-lo at que o prprio Arlequim estivesse preparado para resolv-lo pessoalmente. O segundo foi telefonar para Washington e verificar quais as bases em que Milo Frohm estava disposto a atuar. Se fossem flexveis, poderamos perfeitamente cooperar. Se ele quisesse apenas bancar o policial cordial da vizinhana, no haveria a menor condio. Eu no tinha o menor ressentimento contra os policiais, especialmente contra os que se mostrassem amigveis. O nico problema era que eles cuidavam de bem poucas coisas: a lei e a ordem e um sono tranqilo noite, deixando de lado muitas causas em disputa e toda uma fossa de injustia cheirando mal aos raios do sol. Milo Frohm ficou na maior satisfao ao receber meu telefonema. Agradeci-lhe o telegrama e ressaltei que era muito difcil falarmos de negcios numa linha aberta. Ele achava que, pelo que andara lendo nos jornais, eu exagerava a dificuldade. No poderamos ter sido mais abertos se tivssemos anunciado na televiso. Rumores de fontes de confiana diziam que
estvamos prestes a ser processados. Eu lhe afirmei que j espervamos isso, at mesmo queramos que acontecesse. Contei-lhe ento sobre a morte de Julie'. Por um longo momento ficou em silncio, depois disse: Como o Sr. Arlequim est aceitando o fato? Biblicamente. O Velho ou o Novo Testamento? O Velho... E quais so seus sentimentos, Sr. Desmond? Eu gostaria de continuar a agir de acordo com as regras. Mas receio que, se o fizermos, os corvos podero devorar-nos. Suponhamos que as regras fossem ligeiramente contornadas... Tem que ser mais do que um simples suponhamos... Ento asseguro que vamos contorn-las. Estamos sendo gravados? Desde o incio... Ento aqui vai a histria. Valerie Hallstrom foi morta por um matador profissional chamado Tony Tesoriero, que agora tambm est morto.
Ele foi pago por um homem chamado Pedro Galvez, uma figura muito importante aqui no Mxico, ligado nossa organizao e a Basil Yanko. Como prova, temos uma declarao assinada por Tony Tesoriero. No serve para um tribunal, mas acho que poder servirlhe. Estamos imaginando, sem provas, que Galvez foi tambm o responsvel pelo assassinato de Madame Arlequim. As fraudes em nosso banco na Cidade do Mxico foram cometidas por uma mulher, Maria Guzmn, paga por um certo Alexander Duggan, que trabalha para a Creative Systems em Los Angeles, Califrnia. Sobre isto temos depoimentos com testemunhas e fotografias que o identificam, tambm assinadas por testemunhas. Galvez foi informado de que conhecamos a existncia de Duggan. Saul Wells est neste momento vigiando Duggan. Seu endereo o seguinte... Quando acabei, Milo Frohm indagou: Contou toda essa histria s autoridades mexicanas? No. Por que no? Oferecemos imunidade a Maria Guzmn. Duggan est fora da
jurisdio mexicana e o resto confidencia de um homem morto. Obrigado pelas informaes, Sr. Desmond. Quando pretende voltar aos Estados Unidos? Isso vai depender de Arlequim. Provavelmente logo depois do enterro... Gostaria de ser informado do vo assim que fizerem a reserva. So pessoas por demais perigosas para se estar junto num avio e terei que tomar providncias para proteger os outros passageiros. Pensei que ele estivesse brincando e dei-lhe uma resposta irreverente. Mas estava profundamente srio. Poltica e dinheiro fazem uma mistura explosiva, Sr. Desmond. Acrescente-lhes petrleo e ter uma fogueira de grandes propores. Por favor, atenda meu pedido. Pelo menos ele estava sendo franco. Podia contornar as regras, mas no podia alterar os fatos fundamentais da vida naquele ano da graa duvidosa, em que nenhuma fortaleza era prova de dinheiro, em que um pouco de explosivo plstico podia estourar um avio nos cus, em que uns poucos
homens desesperados podiam manter uma nao como refm. O que nos levava em rpidas passadas de volta era do obscurantismo, da justia sumria e da lei de talio, do privilgio real do carrasco particular... Como se lesse meus pensamentos, Suzanne aproximou-se nesse momento e passou os braos ao redor do meu pescoo, encostando o rosto no meu. J chega, Paul...Voc tambm precisa de um pouco de tempo para dar vazo sua dor. engraado, mas no sei como faz-lo. Existe dentro de mim apenas um espao em branco, como se algum tivesse tirado um quadro da parede...George j voltou? J. Acabou de chegar. Liguei para o quarto dele. Est descansando e no quer ningum junto de si por enquanto. Mandei transferirem para c todas as ligaes para ele. Ele em breve vai estourar, Suzy. No, Paul. Ela sacudiu a cabea, enfaticamente. Lembrei-me de uma coisa que meu pai costumava dizer-me: Der
maior dio o silencioso. George agora um homem que odeia. Ele est perdido para ns, foi-se para sempre. Relaxe, amor. As pessoas ficam cansadas de odiar. O dio dura mais tempo que o amor, Paul. Um usque a ajudaria agora? bem possvel. Oh, chri! No me deixe. Estou muito assustada. Enquanto servia o usque, o pensamento ocorreu-me como um malho a cair com toda a fora sobre minha cabea. Outrora, num ontem j distante, sentramos medo do mago poderoso, Basil Yanko. Agora sentamos mais medo ainda de George Arlequim, que sucumbira ao seu encantamento e estava num quarto escuro com um estilhao de gelo enterrado no corao. E porque eu no podia enfrentar a verdade, procurei refgio nas banalidades. Estvamos no meio de um desses dilogos tolos e consoladores sobre amor e misericrdia e de como, se se compreender tudo, se pode perdoar quase tudo, quando o telefone tocou e a recepo anunciou que o Senor Pedro Galvez desejava ver o Sr. George Arlequim.
Suzanne que Deus abenoe suas sbrias maneiras suas! pediu-lhe que esperasse um momento, enquanto eu me comunicava com Arlequim pelo telefone do quarto. Esperava a raiva ou um desespero vago. Em vez disso, porm, foi-me dada ordem de receber o nosso hspede com toda a cortesia, oferecer-lhe um drinque e suplicar-lhe a fineza de esperar alguns momentos, enquanto Arlequim se preparava para receb-lo. Transmiti o recado. Suzanne desceu para o saguo. Arrumei a escrivaninha e providenciei copos limpos, imaginando o que diabo se podia dizer a um assassino, quando o corpo de sua vtima ainda nem estava frio. Eu no precisaria ter-me preocupado. George Arlequim j estava pronto e esperando quando Suzanne introduziu Pedro Galvez. A recepo que ofereceu ao mexicano foi aparatosa e emocional. Meu caro Pedro! Foi muita bondade sua ter vindo! No era necessrio, mas estou profundamente comovido! George, meu amigo, o que posso dizer? O que posso fazer?
Nada, Pedro! Sua presena j o suficiente! Aceita um drinque? Caf? No estranho como voltamos aos velhos costumes? Servimos comida e bebida aos pranteadores. Por favor, por favor, sente-se...Suzanne! Caf para o Senor Galvez! Pedro Galvez ajeitou-se numa poltrona, um rochedo de conforto num oceano de dor. Meu caro George! Estava plenamente convencido de que isso jamais poderia acontecer! Era o que todos ns pensvamos, Pedro. E os arranjos? Talvez eu possa... J est tudo providenciado. De qualquer forma, obrigado. Ela ser enterrada aqui mesmo, nesta sua linda cidade. Ela sempre a amou. George, isso assassinato. Temos que fazer alguma coisa! O qu, Pedro? No posso sair pelas ruas, gritando por sangue e vingana. Prefiro antes deix-la dormir em paz. Entendo, mas isso no o bastante. Deixe-me enterr-la primeiro. Claro, claro. Mas deve haver uma cerimnia, George, a coisa
apropriada. Tem aqui amigos e clientes. Eles vo querer apresentar-lhe seus votos de pesar. Posso traz-los? Se quiserem vir... Continuar por aqui depois do enterro? Acho que no muito. Solicitam minha presena em outros lugares. H pessoas que dependem de mim. Ainda estou sendo atacado e tenho que prosseguir na luta. Agora, at a luta alguma coisa. Tem alguma idia, George, uma suspeita que seja, de quem possa ter feito essa coisa terrvel? Se tem, diga-me. Prometo, por minha alma imortal, que o encontrarei. Aprecio sua boa vontade, Pedro, mas j sei quem o responsvel. E j contou polcia? No. Mas deve contar! essencial que eles saibam. Eu queria dizer-lhe primeiro, Pedro. Por que logo a mim? Voc tem amigos entre as altas autoridades. No deixaria que uma coisa destas ficasse enterrada nos arquivos. Nunca! Pedro, voc tem que saber como me estou sentindo. Voc ama sua
esposa, seu filho, suas filhas... Amo muito todos eles. Um dia eu terei que contar a meu filho que sua me morreu, alvejada por um assassino na Cidade do Mxico. Ele agora um beb, mas um dia ter que saber. E ento perguntar o que fiz com o homem que matou sua me. E o que lhe direi, Pedro? Por enquanto ainda no tem nada para dizer. Por enquanto. Arlequim meteu a mo no bolso do palet e tirou o envelope que continha o bilhete de Tony Tesoriero, entregando-o a Pedro Galvez. Leia isto, meu amigo, e depois diga-me o que devo fazer a respeito. Est colado, George. Foi um equvoco. Abra, por favor. Pedro Galvez enfiou o dedo sob a aba do envelope e rasgou-a. Desdobrou o bilhete e leu-o. No houve o menor indcio de emoo no rosto enrugado. Dobrou cuidadosamente o bilhete, colocou-o novamente dentro do envelope e devolveu-o a George Arlequim. Levantou-se, ajeitou o colete e abotoou o palet. Depois, sem o menor tremor, apresentou suas despedidas:
Senor Desmond, senorita, com licena...George, compreendo sua dor. Eu mesmo j a experimentei. Por isso, perdo-lhe esta brincadeira de mau gosto. Espere um momento antes de partir! George Arlequim estava parado diante da porta, uma das mos na maaneta e a outra erguida para det-lo. A brincadeira ainda no terminou. Aonde quer que v, a partir de agora, haver um homem a vigi-lo. Aonde quer que sua esposa v, seu filho ou suas filhas, haver tambm algum a vigi-los. Um dia, um deles ser morto. Mais algum tempo e chegar a vez de outro. Mas nunca voc, Pedro Galvez, nunca voc...Voc intocvel. Sabe perfeitamente que posso faz-lo, porque voc mesmo o fez e porque, hoje, assisti morte de Tony Tesoriero. E sabe que o farei, porque voc mesmo me ensinou que no h outro jeito. A menos que se mate a fera, no haver carne para o jantar...E da prxima vez em que telefonar para Basil Yanko, contelhe tudo o que acabei de dizer. Adias, amigo! Pedro Galvez estava rgido, vigoroso e firme como um velho carvalho
resistindo ao vento da tempestade. Posso oferecer-lhe um negcio melhor, George. Sei que pode. Sente-se e escreva. Suzanne, ligue para a portaria e pea que providenciem um tabelio. do conhecimento pblico que Pedro Galvez morreu em sua cama, entre a meia-noite e a madrugada do dia seguinte. fato sabido tambm, sendo confirmado por seu mdico, que ele h muito tempo sofria de sintomas cardacos agudos, agravados pelas tenses de uma vida ativa e produtiva. Foi sepultado, com uma pompa muito maior, no mesmo cemitrio e no mesmo dia que Juliette Arlequim. A nossa foi uma pequena e triste cerimnia, conduzida numa lngua estrangeira por um jovem e nervoso pastor da Igreja Luterana, o evangelho mais prximo do nosso que pudemos encontrar na cidade da Virgem de Guadalupe. Havia poucas pessoas presentes ao enterro. E todas elas, com exceo de ns mesmos, ali estavam por obrigao, intranqilas com o servio fnebre, sentindo-se ligeiramente culpadas por participarem da encomenda de
uma mulher a um Deus protestante. O elogio fnebre foi misericordiosamente breve, uma migalha insossa para aqueles que a amavam, um plido panegrico para aqueles que nunca a tinham conhecido. Arlequim ficou em p a um dos lados do tmulo, com Jos Luis, Suzanne e eu no outro. Arlequim estava extremamente plido, mas sereno, os olhos ocultos por trs de culos escuros. Suzanne chorava baixinho. Quando o caixo foi baixado, fechei os olhos, tentando conter as lgrimas. Ouvi os baques da terra caindo sobre a tampa do caixo, os passos dos presentes se afastando, o rangido das ps enquanto os coveiros enchiam a sepultura. Depois, de mos dadas com Suzanne, vireime. Arlequim j se fora. Estava parado junto aos carros, apertando as mos dos que haviam comparecido, expressando seus agradecimentos ao pastor luterano. Do cemitrio, seguimos direto para o aeroporto, onde um jato fretado estava esperando para levar-nos a Los Angeles. Milo Frohm fizera questo de que fossem tomadas todas as medidas de segurana. Arlequim aceitara, sem
levantar a menor objeo. No ramos mais pessoas comuns, o sinal da morte estava impresso nas palmas de nossas mos. Arlequim ficou trabalhando sozinho durante toda a viagem, incessantemente, cobrindo pgina aps pgina de anotaes mo. Ele estava agora totalmente distante de ns, misterioso e lacnico. No mais discutia suas decises, limitava-se a dar ordens. Recebia as informaes e recusava-se a coment-las ou sequer indicar como tencionava us-las. No dia anterior ao enterro, eu o acusara de falta de cortesia para comigo, como colega, e para com Suzanne, como uma funcionria dedicada. Respondera, com frieza, que lamentava a descortesia, mas no podia mais continuar a envolver-nos em atos pelos quais somente ele devia ser responsvel. Eu j estava sujeito a ser acusado de conspirar para obstruir a ao da justia e de ser um acessrio no assassinato de Tony Tesoriero. Ele no queria expor-me ainda mais. Para o futuro se que eu me importava agora em prever algum futuro deveria limitar-me s transaes comerciais normais da companhia.
Argumentei que eu j era o intermedirio com Aaron Bogdanovich, Saul Wells e Milo Frohm. Ele determinou ento que, dali por diante, trataria pessoalmente com Bogdanovich. Saul Wells fora contratado abertamente e Milo Frohm era um agente do governo: eu continuaria a tratar com ambos, sob sua orientao...Muito bem! Se era assim que ele queria...Era. Glria ao Senhor! Amm! Comecei a sonhar, ansiosamente, com as guas azuis e as velas brancas a se enfunarem enquanto velejvamos por mar aberto na direo do inferno. Suzanne achou-o mais fcil de tratar do que eu. Ela nada tinha para argumentar. Refugiou-se em formalismos europeus e renunciou at mesmo ao privilgio h muito adquirido de trat-lo por seu nome cristo de batismo. Arlequim no fez o menor comentrio sobre a mudana, embora eu notasse que se tornou um pouco menos autoritrio e mais delicado com relao a Suzanne. Forosamente lanados para a companhia um do outro, eu e Suzanne ficamos cada vez mais ntimos e unidos, mais receosos do desespero
frio que implacavelmente consumia nosso ex-amigo. J estava escuro quando aterrissamos em Los Angeles. Fomos recebidos na prpria pista por dois funcionrios da Imigrao e da Alfndega, que rapidamente registraram nossa entrada no pas com o mnimo de formalidades e depois entregaram-nos nas mos de Milo Frohm. Ele conduziu-nos em seu prprio carro at o Bel-Air Hotel e instalou-nos em bangals contguos, que afirmou estarem seguros, livres de quaisquer mecanismos eletrnicos. Estava grato por termos decidido cooperar. Seria to franco conosco quanto o permitiam as circunstncias peculiares do caso. Se no tivssemos nenhuma objeo, ele viria jantar conosco. Sugeriu tambm que seria uma boa poltica atrasar por algum tempo nossa reunio com Saul Wells. Talvez, enquanto tomssemos um banho e mudssemos de roupa, ele pudesse examinar os documentos que trouxramos do Mxico. Franziu o cenho primeiro e depois sorriu quando George Arlequim lhe entregou diversas
cpias fotos-tticas e disse que preferia guardar os originais em seu poder. Ele achou tambm que era melhor excluir Suzanne de nossas discusses. Mais tarde, enquanto tomvamos caf e comamos alguns sanduches, ele fez-nos uma pequena preleo: Em nosso primeiro encontro, falamos sobre um conflito de interesses: os nossos como uma agncia domstica e os dos senhores como uma corporao estrangeira. Creio que todos chegamos concluso de que nossos interesses convergem, mesmo que no sejam e jamais venham a ser idnticos. uma avaliao justa da situao? Concordamos em que era. Arlequim acrescentou que estava menos convencido do que eu. Milo Frohm anotou a observao e continuou: Nosso Departamento de Estado est em atrito com os europeus porque eles esto fazendo acordos de petrleo em separado com os rabes. Os israelenses esto irritados com os europeus porque os franceses e os noruegueses liquidaram com sua rede de espionagem e com o sistema de aviso
prvio contra os terroristas. Esto irritados tambm conosco, por acharem que cedemos demais nas negociaes de cessar-fogo. E dentro desse panorama que devem encarar a situao de vocs com relao a Basil Yanko. Politicamente, ele tem-nos sido til. Proporcionou-nos alguns pontos de apoio na Europa. Foi bem sucedido em atrair o dinheiro e a boa vontade dos rabes para nosso pas, ao invs da Europa. Isso alta poltica e comrcio implacvel. Significa tambm que uma certa quantidade de sujeira tem que ser varrida para debaixo do tapete. Sabemos disso. Lamentavelmente, aceitamos tudo se der certo e gritamos que um crime se no funcionar. Em termos polticos, ficaramos felizes se Yanko conseguisse assumir o controle de Arlequim et Cie. Na realidade, estamos terrivelmente chocados porque ele jogou duro demais e porque vocs esto agindo com muita habilidade e a cada dia que passa h uma nova pea de roupa suja no varal. Em suma, Sr. Arlequim, criou-nos um escndalo de primeira grandeza, no exato momento em que precisvamos disso como que de um buraco de bala na cabea...
Est por acaso tentando dizer, Sr. Frohm, que querem enterrar o assunto? o que gostaramos de fazer, porm no possvel. Basil Yanko tem agora duas alternativas: lutar contra o senhor at o fim ou cortar a prpria garganta. Pelas cotaes de hoje, as aes dele j sofreram uma queda de vinte e oito por cento. E cairo ainda mais. Ele vai process-lo por perdas e danos acima de vinte milhes de dlares, exigindo ainda pagamentos punitivos. O senhor apresentar esses documentos que trouxe do Mxico nos tribunais e a seus acionistas, alm de outros fatos que tenha descoberto e dos quais no me falou...E ento a administrao ter outro mar de lama pela frente, antes mesmo que esteja esquecido o escndalo Watergate. E isso algo que todos ns queremos evitar. E pode faz-lo, Sr. Frohm. Como? indagou Milo, ansiosamente. Devolva-me minha esposa. Desejaria poder faz-lo, Sr. Arlequim. Juro por Deus que desejaria... Como alternativa, Sr. Frohm, j que no pode fazer o impossvel,
prenda Basil Yanko por conspirao para homicdio e deixe-o trancado atrs das grades. Com base na confisso de Pedro Galvez? No h a menor possibilidade. um documento autntico. O homem que o assinou est morto. Era seu amigo, um acionista de sua companhia. Pode-se alegar que ele conspirou com o senhor para oferecerlhe essa confisso como um ltimo gesto de amizade. Pode-se alegar tambm que fez essa confisso sob ameaa. Alis, Sr. Arlequim, exatamente isso o que penso que aconteceu, embora no tenha os meios nem o desejo de provlo. Mas possui tambm um bilhete holgrafo de Tony Tesoriero, o qual tambm est morto. Estamos felizes por nos vermos livres dele, por isso no estamos perguntando quem o matou. Contudo, sabemos j h algum tempo que Valerie Hallstrom era uma agente israelense trabalhando para uma rede cuja existncia toleramos, tendo em vista nossos prprios propsitos...O que me lembra de uma coisa, Sr. Desmond. Mandou seu criado passar umas frias
em San Francisco. Determinamos que um de nossos homens fosse conversar com ele. Takeshi declarou que o patro gosta muito de flores, que lhe so normalmente enviadas por uma loja da Third Avenue... Ele suspirou e abriu os braos, num desespero momentneo, logo acrescentando: Como dizem meus colegas ingleses, uma confuso majesttica. Mas, de alguma forma e com o mximo de brevidade, teremos que resolver tudo. H uma maneira segura de faz-lo, Sr. Frohm. E pode perfeitamente us-la. No h a menor dvida quanto aos documentos que vinculam Alex Duggan s fraudes ocorridas no Mxico. Precisa apenas de mais um: a confisso dele de que agiu por sugesto ou determinao de Basil Yanko. Infelizmente tambm teremos um problema quanto a isso. Alex Duggan saiu de casa na manh de terafeira para visitar um cliente em San Diego. No chegou l e desde ento ningum sabe de seu paradeiro. A companhia onde trabalha e sua esposa j o incluram na relao de pessoas
desaparecidas. Voc me disse que Saul Wells estava vigiando-o, Paul! E estava. Ento como diabo isso pde acontecer? Foi muito simples explicou Milo Frohm, a voz cansada. Houve uma batida de vrios carros na estrada e Saul Wells meteu-se nela. o azar do jogo. Pobre Saul! Seu orgulho est mais amassado que seus pralamas. Eu teria ficado feliz se pudesse largar tudo naquele momento, encerrar o caso para sempre e voltar para casa. Arlequim, porm, era obstinado como uma mula numa trilha de montanha. Mandou-nos um telegrama, Sr. Frohm, com uma frase que posso citar de memria: "Creio que precisa de mim". Por sua insistncia e pela do Sr. Desmond, consenti em encontrar-me com o senhor. Se julgasse seus conselhos apropriados, iria segui-los. Mas o que me est aconselhando? A esquecer o assassinato de minha esposa? No o farei em hiptese alguma. A deixar que Basil Yanko me compre, integralmente, vendendo tudo em seguida para os xeques do petrleo? No! A cessar de hostiliz-lo pela imprensa, com
medo de que ele ganhe os processos de perdas e danos movidos contra mim? Se no puder provar a validade desses documentos nos tribunais, ento eu os levarei ao julgamento da opinio pblica. No cometi crime algum. Meus crimes morais so problemas que s a mim dizem respeito! Arlequim desferiu um soco violento na mesa antes de continuar. No serei dissuadido de jeito nenhum, Sr. Frohm! Se o senhor ou seu governo querem mover um processo contra Basil Yanko, ajudarei de todas as formas possveis. Mas se querem proteg-lo, eu os enfrentarei ferozmente e morrerei lutando, se necessrio for. Agora, pelo amor de Deus, exponha sua proposta...ou v embora! Minha proposta comea com um dilema, Sr. Arlequim. Nosso governo efetua contratos com Yanko porque ele um gnio e oferece os melhores servios do mercado. Nossa agncia est convencida de que Basil Yanko culpado de conspirao em muitas fraudes, homicdios e gangsterismo em alta escala. H uma loucura em nosso sistema pela qual
permitimos os vcios de um homem. No podemos provar sua culpabilidade porque no podemos contornar todas as leis. Se infringssemos as leis, estaramos derrotando nossas prprias finalidades. Queremos informaes. Se o senhor puder fornec-las, no perguntaremos onde nem como as conseguiu. No queremos inibir seu acesso a fontes que no podemos alcanar. No nos preocuparemos com o que fizer fora de nossa jurisdio. Mas, se infringir a lei nos Estados Unidos, ser por sua prpria conta e risco. Estou sendo bastante claro? At agora, sim. H tambm outros riscos, Sr. Arlequim. Gostaria de saber quais so. Avisei-o de que seria perigoso ligar-se a interesses guerrilheiros. Mas preferiu ignorar o conselho e aliou-se a Aaron Bogdanovich, um agente israelense, e a Leah Klein, uma conhecida, para no dizer notria, jornalista com simpatias sionistas. Est agora includo, juntamente com o Sr. Desmond, entre os alvos dos ataques terroristas. No abra nenhuma correspondncia
suspeita. No receba visitantes noidentificados. No ande sozinho noite. Uma pergunta, Sr. Frohm. Qual? Como fomos includos nessa lista de alvos? Foram computados, Sr. Arlequim, como simpatizantes sionistas. esse o tipo de informao que o Sr. Yanko fornece, a custos elevados, a assinantes selecionados. No maravilhoso o que se pode fazer com um banco de memria de computador? Pode-se at programar um genocdio...E agora, o que me diz: podem cooperar? Podemos. Vamos discutir os detalhes. Meia hora depois, assim que ele partiu, George Arlequim exps-me sua avaliao pessoal da situao: Milo Frohm como voc, Paul. Quer uma soluo, mas prefere a segurana. capaz de tolerar o crime, mas no de comet-lo. Esquecer tudo, se eu perdoar. Yanko vitorioso Yanko inocente. Ele no pode devolver-me minha esposa, mas quer que eu lhe fornea um remdio doce e cmodo para um inconveniente pblico. Encontra falhas em documentos embaraosos,
mas recusa-se a lev-los diante de um tribunal. O que tudo isso lhe diz? O mesmo que algum j disse muito melhor que eu, George: ele dotado de uma versatilidade prudente. Ao diabo com a versatilidade! Certo. Qual sua resposta ento? No tenho nenhuma, George. Voc est decidido a fazer o que quer. Pois ento faa-o. Quero ver Yanko morto. Pois ento mate-o. Ou ponha um contrato em cima dele. Sabe agora como se faz isso. Eu mesmo o farei, Paul. Poderia t-lo matado naquele momento. Era maior do que ele, mais corpulento e estava sentindo uma raiva como nunca experimentara antes em toda a minha vida. Empurrei-o e encostei-o na parede, com os dedos em sua garganta, lanando-lhe todas as maldies que conhecia. Agora oua, seu miservel! Eu amava Julie tanto quanto voc. Poderia t-la feito mais feliz do que voc. Seu filho poderia ter sido meu filho. Mas, pelo menos, agora sou responsvel tambm por ele neste mundo
nojento! A me dele est morta. Quer que o menino tenha tambm a desgraa de ter por pai um assassino? Quer? Voc est inteiramente podre, George! No mais um homem! apenas um miservel charlato! Tire a mscara e nada encontrar por baixo! No tem rosto, no tem corao, apenas dio, e isso menos que... Menos do que eu podia lembrar. Houve um intervalo de escurido e depois acordei em minha cama, com um saco de gelo na cabea e Suzanne a me esfregar as mos. George Arlequim estava parado ao p da cama, como Mefistfeles vindo reclamar o pagamento de sua conta. Eu perdera minha voz e, ao reencontr-la, descobri que estava reduzida a um sussurro rouco: Saia daqui! Ele no se mexeu. Talvez no me tivesse ouvido. Aproximou-se e sentou-se na beira da cama. Lamento, Paul. Mas voc poderia ter-me matado. Desejei t-lo feito e tentei dizer-lhe isso, mas minha voz estava presa na garganta como uma espinha de peixe. Tossi e engasguei, terminando por cuspir um pequeno
cogulo de sangue. Suzanne ficou plida. Arlequim sacudiu a cabea. Ele sobreviver, Suzy. Ainda lhe restam uma ou duas vidas. Lamento ter desperdiado esta com um canalha como voc, George. Inclinou a cabea de lado e fitou-me como a um espcime sob o microscpio, dizendo com um humor cido: Saul Wells estar aqui s nove horas da manh. A essa altura j dever ter-se recuperado. Trate-o bem, Suzy. Ele ainda est um pouco fraco... Conhecendo bem Saul Wells, eu no esperava que fosse muito longa a sesso do Muro das Lamentaes. Ele tinha o bolso cheio de provrbios para todos os eventos de morte e desastre. Madame Arlequim estava morta, ele lamentava mas no ficaria permanentemente marcado. Alex Duggan desaparecera, mas terminaria aparecendo assim que precisasse de dinheiro ou algo mais. Enquanto isso, Saul Wells, o superdetetive, prosseguia em suas incansveis investigaes. Alex Duggan, claro, pode estar morto. Eu digo que no est, porque Yanko no se pode dar ao luxo de ter outro cadver em seus
estbulos. Portanto, est vivo. Ento, onde se meteu? Quando o perdi de vista, ele seguia para o sul, em direo a San Diego. O Mxico ele nunca mais vai querer ver. Ter-se-ia metido em algum lugar do interior? O diabo que foi! Nosso Alex um garoto da cidade, adora os confortos domsticos e um drinquezinho ocasional com as garotas, antes de voltar para casa, para os braos da mamezinha. A qual, diga-se de passagem, um maravilhoso ornamento domstico. Minha impresso que ele se meteu em algum lugar da costa, junto com uma coelhinha das praias. Contudo, ele tem que comer, dormir e comprar gasolina, talvez mesmo alugar outro carro, porque sabe que conhecemos a placa do que est dirigindo...Temos tambm fotografias suas e cpias de uma descrio, alm da relao de todos os cartes de crdito que lhe foram entregues atravs da companhia. Tudo o que precisamos agora de um pouco de sorte... Gostaria de conversar com a esposa dele disse George Arlequim. Pessoalmente, Sr. Arlequim? Por que no? Sabe qual o telefone dela?
Sei de tudo a respeito dela, Sr. Arlequim, exceto o que usa na cama. E onde est seu marido acrescentou Arlequim secamente. Dme o nmero do telefone. Vou ligar agora mesmo para ela. Por que no vamos direto at a casa dela? Por favor, Sr. Wells! Sei o que estou fazendo!...Sra. Duggan? Meu nome George Arlequim. No me conhece, mas minha companhia usa os servios da Creative Systems. Seu marido fez alguns trabalhos para ns na Cidade do Mxico. Soube no escritrio dele que est desaparecido h dois dias. Tenho algumas informaes que talvez possam ajud-la...Se preferir, posso transmiti-las polcia ou companhia onde ele trabalha...Estou hospedado no Bel-Air. Posso mandar um carro ir busc-la? Esplndido. Digamos, dentro de meia hora... Saul Wells ainda estava em dvida e foi o que expressou em palavras rudes: Disse que sabia o que estava fazendo, Sr. Arlequim. Espero que esteja certo. Se errar agora, talvez perca Alex Duggan definitivamente. Eu assumo o risco, Sr. Wells.
Ele uma testemunha sua. Quer que eu esteja presente ao conversar com a esposa dele? Prefiro que no esteja. Seu trabalho descobrir Alex Duggan, e o mais depressa possvel. Saul Wells partiu com uma expresso de infelicidade, mastigando seu charuto. Arlequim folheou seu caderninho de anotaes e verificou um telefone. Pediu a ligao. Poucos momentos depois, ouvi-o dizer: George Arlequim quem est falando. Gostaria de falar com o Sr. Basil Yanko... mesmo? Obrigado. Telefonarei para l. Que diabo voc est fazendo, George? Ele fitou-me, com um sorriso onde no havia o menor indcio de humor: Estou ligando para Basil Yanko. Ele est aqui na costa do Pacfico. E o que pretende dizer a ele? Vou convid-lo para uma reunio. Acho que voc perdeu completamente o juzo. Quando eu telefonar, pegue a extenso e oua nossa conversa. Como sempre, demorou um longo tempo para se chegar ao grande
homem. Foi quase um choque ouvir novamente aquela voz seca e spera, na qual havia um tom ligeiro de desprezo. Ora, ora, Sr. Arlequim! uma surpresa e tanto. Por favor, aceite meus psames pelo falecimento prematuro de sua esposa. Obrigado. Estou hospedado no Bel-Air, juntamente com o Sr. Desmond. Chegamos ontem noite. Creio que seria oportuno que nos encontrssemos agora. Pelo contrrio, Sr. Arlequim. Creio que seria bastante inoportuno... a menos que seja na presena de meus advogados. No fao a menor objeo a isso. Se eles desejam apresentar-me alguma citao e creio que o desejam , talvez seja este tambm o momento oportuno. Contudo, se prefere no realizar a reunio, no h problema. D-me algum tempo para pensar no assunto? Claro. Estarei em Los Angeles at amanh noite. Pode procurarme no hotel a qualquer hora. Se eu por acaso tiver que sair, deixarei instrues
com minha secretria para marcar a reunio, a qual acho que deve realizar-se em territrio neutro. Eu preferia, Sr. Arlequim, que fosse em meu escritrio. mais seguro aqui. Meu bangal foi verificado pelo FBI. Eles asseguram que no existe nenhum tipo de dispositivo eletrnico. Depois de Washington, passamos a tomar certas precaues. Deixo a deciso a seu critrio, Sr. Yanko. Voltarei a procur-lo, Sr. Arlequim. Obrigado por telefonar-me. Foi um dilogo breve e estril, no vi nele a menor vantagem. Pelo contrrio, vi srios riscos numa confrontao com advogados, antes mesmo que chegssemos aos tribunais. Arlequim afastou as objees com um sacudir de ombros e um comentrio sibilino: Se no esperamos justia, os advogados no podem ajudar-nos nem prejudicar-nos. Este um pas de litgios legais, George. Qualquer coisa serve de arma nos tribunais. Pelo amor de Deus, voc j tem problemas demais. No comece a comprar mais barulho.
No estou comprando, Paul, estou criando...Avise-me assim que a Sra. Duggan chegar. Vou dar uma volta pelos jardins. Foi ento que mencionei a Suzanne a idia de que provavelmente iria deixar minha diretoria no banco, assim que voltssemos a Nova York. No era apenas por vaidade e ressentimento. Se ele no podia enterrar seus mortos, eu certamente queria enterrar os meus e deixar as margaridas desabrocharem sobre o tmulo. Se ele queria guardar segredo do que pretendia fazer, era um direito que lhe assistia. Eu estava velho demais para lutas corporais, muito desgastado para batalhas verbais. Suzanne revelou-me que tambm estava muito perto de uma deciso semelhante. No pedia para ser amada, mas no podia trabalhar para o estranho que vivia agora sob a pele de Arlequim. Ele no ficaria sem ajuda. Tinha incontveis funcionrios sua disposio. E talvez fosse exatamente disso que estivesse precisando: novos relacionamentos, no manchados pelas antigas recordaes. Concordamos em que eu deveria discutir o assunto com ele, explicar-lhe como nos sentamos e
dar-lhe bastante tempo para tomar as providncias necessrias. Ao final, a cirurgia da amputao poderia ser muito melhor que as constantes ventosas e sangrias. A Sra. Alexander Duggan parecia-se com todas as moas que aparecem nos comerciais de cozinha: bronzeada, ansiosa e apaixonada pelo mundo maravilhoso que a cercava, o qual, sem nenhum motivo, subitamente virar de pernas para o ar. At mesmo sua aflio tinha uma qualidade de admirao arregalada, como Cinderela depois da meianoite, esperando pelo retorno da boa fada madrinha. Arlequim foi gentil com ela, mas os documentos, os fatos e as fotografias constituram uma revelao brutal. Ela dissolveu-se em lgrimas e gritos impotentes de surpresa. Suzanne teve que lev-la para o quarto, a fim de acalm-la. Assim que ela voltou, comeou uma inquisio fria e impiedosa, com Arlequim inteiramente vontade no papel de Torquemada. Sra. Duggan, minha esposa est morta. Foi assassinada. Quatro outras pessoas envolvidas neste caso tambm morreram. Seu marido ser a
prxima vtima, a menos que o encontremos o mais depressa possvel. Mas eu no sei onde ele est! Tem que acreditar em mim! Sra. Duggan, deixe-me explicar-lhe uma coisa. A fraude foi cometida no Mxico. Seu marido no pode ser julgado por ela aqui. No farei acusaes contra ele no Mxico, contanto que obtenha dele uma declarao, dizendo quem lhe determinou que organizasse a fraude. Estou sendo claro? Est. Acredita em mim? Quero acreditar. Se no acredita, nada posso fazer. Essa visita ao cliente de San Diego foi rotina ou algo especial? Rotina. Ele tem uma relao de visitas mensais. San Diego era uma das regulares. timo. Ele estava fazendo algo normal. Antes de partir, aconteceu algo anormal? Ele estava aborrecido? Tirou dinheiro do banco? Qualquer coisa assim pode ser til... No houve nada de anormal. Ele levou alguma muda de roupa? Saiu apenas com a roupa do corpo. Era uma viagem de um dia.
Levou apenas um calo de banho e uma toalha. Sempre gostou de dar um mergulho na volta para casa. Onde costumava tomar banho de mar? Em La Tolla. H um motel l chamado Golfinho Azul. Tem uma piscina e uma praia. Mas a polcia j verificou. Ele no esteve l. E o que me diz de dinheiro? Pedi algum antes de ele partir. Tinha consigo cerca de cento e cinqenta dlares. Deu-me oitenta e ficou com o resto. E a conta no banco? Tem apenas as retiradas normais. Mas eu j contei tudo isso polcia. E o que me diz de outras mulheres, Sra. Duggan? Oh, isso... Ela conseguiu dar um sorriso dbil e choroso. Ele no precisaria fugir para encontrar-se com outras mulheres. Somos pessoas muito liberais. E se ficasse assustado, ele fugiria? Fugiria. Ele estava assustado, Sra. Duggan? Se estava, no o percebi. J vasculhou os papis dele?
Nunca guardava nenhum documento em casa. Era supersticioso em relao a isso. Dizia que sua casa era um lugar para espairecer. Ficava furioso se tinha que trabalhar em casa. E o que me diz de cartas, cartes-postais, contas...esse tipo de coisas? Ns as lamos, respondamos e depois destruamos. As contas eu guardo numa pasta que tenho na cozinha. E o que me diz de documentos como ttulos de propriedade, aes ou bnus? Guardamos tudo isso num cofre que temos no banco. E quem tem acesso a esse cofre? Ns dois. Quem ficava com a chave? Eu tenho uma e Alex guardava a outra em seu chaveiro. Ele levava o chaveiro quando saiu de casa? Claro. Ele o usa preso numa corrente de ouro que lhe dei de presente de aniversrio. Sra. Duggan, como Alex estava indo nos negcios? Maravilhosamente. No prximo ms deveria ser promovido a
superintendente de rea. A promoo foi determinada por um memorando assinado pelo prprio Sr. Yanko. Tem algum problema financeiro? Nenhum. Vivemos muito bem, temos inclusive dinheiro guardado no banco e no devemos nada a ningum. Ento no tm problemas financeiros, no existem problemas conjugais e ele est indo muito bem no emprego. Mas seu marido cometeu um ato criminoso no Mxico. Por que haveria de faz-lo? Algum deve ter-lhe pedido que o fizesse. O que isso significa? Bem, algum na companhia... Quem? No sei. Essa era outra das supersties de Alex. Ele dizia que falar de negcios em casa provocava lceras e enfarte. O que aconteceu com os dez mil dlares que ele recebeu de Maria Guzmn? Nunca soube da existncia desse dinheiro. Ele comeou a gastar mais dinheiro do que o normal depois que voltou do Mxico? No.
H quanto tempo no abre o cofre que tm no banco, Sra. Duggan? Eu? H um ano ou mais. Se precisamos de alguma coisa, Alex quem normalmente vai buscar. Sra. Duggan, no tenho o direito de pedir-lhe isso. Se quiser, tem todo o direito de recusar. Mas no concordaria em abrir o cofre agora, comigo? O que est esperando encontrar? No sei, Sra. Duggan. Neste momento, tudo o que posso fazer so conjeturas. Mas aposto que ambos estamos tentando adivinhar a mesma coisa: se seu marido est vivo ou morto. No sei...Suponho que no haja problemas... O cofre seu, tem acesso legal a ele. Se acha que precisa de proteo, posso pedir a um agente do FBI que nos acompanhe. No! Isso no necessrio. Eu o levarei at o banco agora mesmo. Obrigado, Sra. Duggan...Suzanne, se Yanko telefonar, marque a hora que ele sugerir, contanto que nos encontremos aqui. Paul, entre em contato com Milo Frohm e pea-lhe para encontrar-se comigo, para
almoarmos, no Verita's, em Santa Mnica. Diga-lhe que muito importante. Liguei para Milo Frohm, que ficou feliz com o convite para almoar. Basil Yanko telefonou para informar que estaria no hotel, juntamente com seus advogados, s seis horas da tarde. Era um triste desperdcio da hora dos coquetis de antes do jantar, mas tivemos que concordar. Depois Suzy e eu bancamos os ociosos. Fomos para a piscina, nadamos, tomamos Bloody Marys e comemos sanduches, cochilando sob as flores vermelhas das buganvlias. Antes que o percebssemos, j eram quatro horas da tarde. Fomos correndo mudar de roupa. George Arlequim ainda no voltara. Eram cinco horas da tarde quando ele telefonou para dizer que j estava de volta. s cinco e meia Suzy foi convocada para preparar a reunio, providenciando canetas e blocos e pedindo drinques e canaps. Cinco minutos depois das seis horas, barbeado, sbrio e razoavelmente equilibrado, apresentei-me para a reunio com Basil Yanko e seus advogados. Formavam um trio curioso: Basil Yanko, um sbio de cabelos grisalhos
e terno de seda e um advogado jnior de cabelos cacheados, com o rosto magro e um ar de misteriosa malcia. Suzanne estava sentada parte, o lpis suspenso sobre um bloco de anotaes e uma pasta de documentos no cho, a seus ps. George Arlequim, vestindo uma camisa de seda e cala esporte, presidia a reunio como se fosse um diretor de uma casa de modas extremamente elegante. Basil Yanko abriu a reunio com uma exigncia impertinente: E ento, Sr. Arlequim, qual a ordem dos negcios? Primeiro, Sr. Yanko, no quer apresentarme nenhuma citao? Neste momento, no. Preferimos faz-lo em Nova York, se lhe for mais conveniente. No h problema. Se eu no estiver presente, o Sr. Desmond poder aceitar a citao, pois ele tem uma procurao minha. A procurao ainda vlida, no , Paul? Ainda tem dois meses de validade, George. timo. um arranjo satisfatrio, senhores? Cabelos-grisalhos e
jnior concordaram em que era. Hesitante, George Arlequim perguntou: Prejuzos e indenizaes? Est somando as duas coisas, Sr. Yanko? No. Mas o faremos, Sr. Arlequim, se for necessrio. Agora poderia informar-nos qual o propsito desta reunio? Presumo que vai querer um registro dela, no mesmo? Se no for incmodo. Suzanne vai taquigrafar tudo o que acertarmos e passar mquina antes de partirem. Podemos ento concordar com todos os termos e assinar. Isso aceitvel? Era aceitvel para Basil Yanko, e seus sequazes compulsoriamente concordaram. George Arlequim recostou-se na cadeira, esticou as pernas, construiu uma pirmide com as mos e sorriu por cima de seu cume. Sr. Yanko, declaro diante de testemunhas e subscrevo por escrito o seguinte: o senhor conspirou para lesar minha organizao em quinze milhes de dlares e, ao assim agir, desacreditar-me e assumir o controle da mesma
organizao; conspirou tambm para assassinar Frank Lemmitz em Londres, Valerie Hallstrom em Nova York e minha esposa na Cidade do Mxico. Proponho, nos prximos dias, tornar pblicas essas acusaes e apresent-las diante de um tribunal. Compreendo que, se no puder provar as acusaes, terei cometido o mais flagrante crime de calnia e estou pronto para aceitar todas as penalidades em que possa incorrer. Este o fim de minha declarao. Ficarei satisfeito em ouvir seus comentrios, oficiais ou no. Falarei oficialmente, para ser registrado disse Basil Yanko friamente. Acho que um louco criminoso. Tambm para ser registrado. O advogado mais velho avaliou suas palavras cuidadosamente. Poderia dizer-nos por que escolheu fazer essa declarao extraordinria neste momento e desta maneira? Fui informado hoje, pelo FBI, de que o Sr. Desmond e eu podemos ser alvo de ataques terroristas, como simpatizantes sionistas. Fomos assim classificados num documento emanado dos servios de computao do Sr.
Yanko. Meu filho foi colocado sob a proteo da polcia, em Genebra. Queria que o Sr. Yanko soubesse, caso alguma coisa venha a nos acontecer, que ele no ficar imune ao da lei, pois eu j tenho provas que apiam essas acusaes. O advogado jnior agitou-se de sbito e disse suavemente: claro que as provas so insuficientes, caso contrrio o Sr. Yanko estaria agora preso, como em breve dever acontecer-lhe, Sr. Arlequim. Com toda a deferncia a meu colega, sugiro que, luz das recentes informaes passadas para a imprensa, estamos assistindo aqui a uma tentativa um tanto tosca de chantagem e coao. Concordo com a parte referente coao disse George Arlequim tranqilamente. Estou tentando impedir o assassinato de Alex Duggan. Encontrei-me com a esposa dele esta manh. Ela foi bastante prestativa...De nada lhe adiantaria mat-lo agora, Sr. Yanko. Yanko fez um gesto de repdio. Repito: perdeu inteiramente o juzo. Vamos embora, senhores. Com todo o respeito, Sr. Yanko...
O advogado mais velho hesitou por um momento, mas logo acrescentou: ...por que no esperamos que a declarao seja datilografada e assinada? No sempre que um homem oferece a prpria corda com que ser enforcado. Ento esperem vocs disse Basil Yanko. Eu tenho mais o que fazer! Ele partiu intempestivamente, deixando os dois advogados, constrangidos, a esperarem durante dez minutos, enquanto Suzanne datilografava suas anotaes taquigrficas. Arlequim sorriu. Por favor, senhores, permitam que lhes oferea um drinque. uma pena que seu cliente esteja com tanta pressa. Tenho um documento para mostrar-lhes...somente para demonstrar que no sou to tolo quanto posso parecer. Ele abriu sua maleta e entregou a cada um uma cpia fotosttica da confisso de Pedro Galvez. Eles a leram com os rostos impassveis. O advogado mais velho finalmente perguntou:
Podemos ficar com isto? Infelizmente no. Relutantes, devolveram as cpias fotostticas. Ficaram subitamente mais ansiosos pelos drinques e singularmente ansiosos pelo que classificaram de uma "serena troca de opinies". Estavam num terrvel dilema e sabiam disso. Tinham que insistir na total inocncia de seu cliente. Mas estavam tambm perturbados pelos aspectos agora sinistros do desaparecimento de Alex Duggan, sobre os quais tinham sido avisados, na presena de testemunhas. Comearam a falar em "mediao e acerto amigvel das disputas pendentes". Arlequim deixou-os falar e depois perguntou o irrespondvel: E como se pode chegar a uma mediao com o assassinato, senhores? Como se pode oferecer uma reparao aos mortos? Eles partiram s sete horas, dois homens perplexos, cada um com uma cpia datilografada e assinada da declarao de Arlequim e com idias muito confusas sobre o que fazer com aquele documento. Assim que eles saram,
Arlequim pediu a Suzanne que arrumasse sua mala. Milo Frohm ia telefonarlhe s oito e meia e os dois voariam juntos para Londres. Aquela notcia era surpreendente e ele tratou de explic-la: Frohm estava certo, Paul. Basil Yanko providenciou muitas cercas ao seu redor, para proteger-se. Todas as investigaes vo terminar num intermedirio: Galvez, To-ny Tesoriero, Alex Duggan e quem quer que tenha matado Frank Lemmitz em Londres. essa a maneira pela qual Yanko sempre trabalha. Ele delega poder e ab-roga a responsabilidade, sempre que isso lhe convm. Contudo, Alex Duggan no estava preocupado com homicdios, apenas com sua carreira. Recebeu ordens para efetuar a fraude na Cidade do Mxico, mas foi esperto o bastante para tomar algumas precaues. Deixou um relato assinado do caso em seu cofre no banco, demonstrando que estava trabalhando sob as ordens da Creative Systems. Isso no o ajudaria num tribunal, mas protegeria sua carreira na companhia. Tinha tambm no cofre uma grande reserva de dinheiro, provavelmente o mesmo que recebeu
para pagar a cooperao de Maria Guzmn e que ela lhe entregou. Os registros do banco mostram que, pouco antes de seu desaparecimento, ele abriu o cofre, evidentemente para pegar um dinheiro cuja origem no poderia ser identificada. Achamos que, depois que Galvez telefonou para Yanko, Duggan foi aconselhado a esconder-se. Foi o que ele fez, sabendo que o documento que deixara no banco iria garantir sua segurana. Sua esposa no poderia entreg-lo, porque ignorava sua existncia. Tambm no pode faz-lo agora, porque temos o documento em nosso poder. H um guarda protegendo permanentemente a Sra. Duggan e seu filho e Yanko recebeu a advertncia que acaba de ouvir. Saul Wells continua procurando por Duggan. Milo Frohm e eu vamos para Londres, a fim de pegarmos o homem que serviu de intermedirio entre Duggan e Yanko. Se ele falar, teremos as provas de que precisamos. As provas da fraude, no dos assassinatos. O que significa que voc acaba de apor seu nome ao crime de calnia do sculo. Concordo com Yanko.
Voc perdeu completamente o juzo, George. Mas quem esse tal camarada de Londres? O mesmo que se casou com Beverly Manners, nossa antiga operadora do computador. Ela est esperando um beb lembra-se? e o marido joga golfe em Surrey com nosso gerente de Londres. Vamos torcer para que ele no decida tirar umas frias antes de vocs chegarem l. No poder faz-lo. Frohm entrou em contato com a Scotland Yard e eles o detiveram para interrogatrio sobre a morte de Frank Lemmitz. Isso o manter ocupado at nossa chegada. O que voc quer que ns faamos? Os dois podem ir para Nova York. Tirem dois ou trs dias de folga no caminho, se assim o desejarem. Fiquem l at eu voltar. Nada mais? Nada mais, Paul. Procure divertir-se um pouco. Proporcione a Suzanne umas pequenas frias. Nada mudar at eu voltar. E melhor que voc no se envolva nas intrigas. Parecia tudo muito simples, mas eu sabia que no era bem assim. Era
uma soluo por demais fcil para tudo aquilo que ele estava arriscando. Ele ainda no revogara seu voto de matar Basil Yanko. Estava simplesmente preparando o cenrio para a execuo. 8 Era fcil dispensar-nos da amizade e do dever. No era possvel remover a memria de acontecimentos recentes e o medo constante do desastre iminente. Era um insulto sacudir um basto de palhao e declarar: Muito bem, muito bem...O mundo est transformado. Por que no vo se divertir entre as flores? O que iramos fazer? Comer, beber, ver as lojas, assistir aos espetculos, pegar um nibus de turistas para conhecer as manses das estrelas? Ns vramos a parte de baixo do tapete, com toda a sujeira do mundo presa aos fios emaranhados. Agora ramos convidados a admirar a beleza do padro, ajoelhar-nos nele para rezar, deitarnos sobre ele para fazer amor. Estava to furioso com George Arlequim que mal pude suportar acenar-lhe em despedida. Suzanne estava tambm ressentida com ele e muito triste, o que
me deixou mais furioso ainda e estragou um excelente jantar que poderamos ter apreciado. Ao final, ela estava decidida a no pr os ps em Nova York. Sentir-se-ia mais feliz em voar de volta a Genebra, arrumar sua mesa, pedir demisso e passar o vero descala, na Sardenha. Sentados ali, sombrios e infelizes, tomando caf, pensei em Francis Xavier Mendoza e, antes que a graa me fosse retirada, tratei de telefonar-lhe. Ele lera as notcias publicadas pelos jornais. Toda a histria era um prato ptrido. Como sempre, seu corao e sua casa estavam minha disposio. Pela manh voaria at seus vinhedos. Por que no amos juntos, passando um dia e uma noite na fazenda, bebendo um bom vinho e conversando sobre banalidades? Cumulei-o de bnos e disse que ficaramos deliciados. Suzanne sentiu-se feliz como se tivesse sido convidada a visitar um cemitrio. Meus amigos eram meus. Sua vida dizia respeito apenas a si mesma. Ela preferia passar sozinha o resto da noite. No se mostrou spera, apenas polida e determinada. Deu-me um leve beijo na testa e partiu, deixando-me sozinho
para ir reunir-me aos outros rejeitados masculinos que estavam no bar. Por volta da meia-noite Saul Wells apareceu minha procura. Disse que estava exausto e realmente o aparentava. Instalou-se num tamborete no bar, pediu uma dose dupla de vodca com gelo e esvaziou a metade num nico gole. Contou-me ento as notcias que tinha. Encontrara Alex Duggan. Onde, pelo amor de Deus? Voc acreditaria se eu lhe dissesse que foi num hospital? Ele estava internado numa luxuosa clnica particular de San Diego. O que h com ele? Nada. No estou entendendo. Ele prprio pediu para ser internado. Disse que queria fazer um checkup mdico completo e ter duas semanas de repouso, aps uma exaustiva viagem de vendas. Est num quarto particular, cercado de livros e de enfermeiras maravilhadas. E como diabo conseguiu descobri-lo? Rotina e um pouco de sorte. Normalmente procuramos apenas os hospitais que cuidam de acidentados. Mas depois me lembrei de um caso que
tive no ano passado, quando um cara conseguiu manter-se escondido durante seis meses, passando de uma clnica particular para outra. Elas oferecem as camas, se a pessoa tem o dinheiro. Proporcionam exames primrios, secundrios e tercirios, exames do clon, dietas especiais, testes de esterilidade, tudo enfim que o cliente quiser e puder pagar. Conheo uma romancista que costuma internar-se num hospital para escrever seus livros. Ela diz que a melhor coisa do mundo. No tem que cuidar da casa, no precisa preocupar-se com as criadas, pode usar todas as suas camisolas e eles at penduram na porta um cartaz de "Visitas proibidas" quando seu namorado vai v-la. De qualquer maneira, encurtando a histria, comecei a ligar para todas as clnicas particulares e encontrei-o na quarta tentativa. J falou com ele? No. Quero primeiro receber instrues a respeito. O Sr. Arlequim deixou-me com uma pulga atrs da orelha essa manh. A partir de agora, s vou agir de acordo com o que me mandarem. Deixei trs agentes vigiando a
clnica... Acho que pode imaginar o quanto isso lhes est custando, no ? Quando lhe contei o que acontecera durante sua ausncia, deixou escapar um assovio da mais pura alegria. Que diabo! Aquele rapaz est quente como molho de chili e no sabe disso. Agora, vamos analisar a situao de acordo com a lei. No podemos tir-lo l de dentro, pois isso seria seqestro. Se ele partir por sua prpria iniciativa, poderemos segui-lo...e podemos perder-lhe a pista novamente. Creio que s temos uma coisa a fazer: ligar para o FBI e descobrir quem est substituindo Milo Frohm, passando-lhe ento o problema. Pea-me outra vodca enquanto vou dar o telefonema. Se Duggan escapar desta vez, eu que vou me internar, mas numa clnica psiquitrica! Ele voltou esfregando as mos de contentamento e com um sorriso amplo estampado em seu rosto. Grande, grande! prioridade nmero um. Eles assumiram plena responsabilidade pelo caso e vo mandar um aviso a Frohm no avio. Os agentes do FBI vo tomar o lugar de meus homens o mais breve possvel. E
agora, Sr. Desmond, ns dois podemos entregar-nos tranqilamente ao feio vcio da bebida. E o que me diz da esposa de Duggan? O que h com ela? Algum no deveria inform-la? Algum deve mesmo. E acredito que, ao final, algum se lembrar de faz-lo. Mas no seremos ns. No, senhor! O que ela no sabe, no pode prejudic-la e tambm no pode prejudicarnos...Mas posso dizer-lhe uma coisa: na Califrnia j encerrei meu trabalho, no Mxico no tenho mais nada a fazer... Mas ainda tem que descobrir respostas sobre o caso Ella Deane, em Nova York. um beco sem sada, Sr. Desmond. Com Lemmitz morto, duvido muito que consigamos descobrir alguma coisa. J pensou em Bernie Koonig? O que lhe d essa idia? Minhas costelas ainda esto doendo. E todo mundo fala em Lemmitz-Koonig-Lemmitz. O que tem a perder, exceto nosso dinheiro? Como acabou de dizer, o que tenho a perder? Talvez agora
estejamos na trilha da vitria, no mesmo? Comece logo a beber, Sr. Desmond, pois j estou na sua frente. J era muito tarde quando fui deitar-me. De manh bem cedo Suzanne subiu em minha cama para dizer-me que o sol j raiara, os passarinhos estavam cantando e no havia nada que ela mais gostaria de fazer agora do que passar um dia inteiro entre fabricantes de vinho. Bem, quase nada... Francis Xavier Mendoza declarou ao ver-me que eu estava inapto para o convvio humano. Admirava-se de como alguma mulher, em seu juzo perfeito, podia sequer admitir a idia de ser vista em companhia daquele equvoco gentico, em cujo rosto estavam gravados todos os males do mundo. Eu precisava de sol, ar fresco, uma absolvio ampla e geral, antes de chegar a um quilmetro de seus preciosos vinhedos. A Suzanne ele receberia com tapetes vermelhos e flores. A mim...Ah, se ele no acalentasse uma dbil esperana pela minha salvao, iria consignar-me, impenitente, s trevas exteriores! Era bom estar com ele. Ele conseguia extrair o que de bom havia na
gente, assim como extraa a fertilidade do solo e o buqu dos vinhos, com amor e muita pacincia. As videiras j estavam com muitas folhas e as primeiras uvas comeavam a intumescer lentamente. Ele conduziu-nos pelos terraos plantados e atravs das adegas, mostrou-me os laboratrios asspticos e reluzentes, falando durante o tempo todo sobre o ritual que levava finalmente ao momento sacramentai em que se obtinha um excelente vinho. Recitou seus nomes como uma litania: Cabernet, Chardonnay e Chenin Blanc, Sauvignon, Semillon e Zinfandel, que o Coronel Agoston Haraszthy trouxera da Hungria em 1857 e que continuava ainda nico na Califrnia. Falou de Robert Louis Stevenson, que bebera Souverain e Schamsberg e fizera o elogio de ambos, para vergonha dos esnobes da Europa. Como uma repreenso a mim, citou Tom Jefferson: Nenhuma nao se embriaga quando o vinho barato; nenhuma nao sbria quando um vinho caro faz com que seja substitudo como bebida comum por outras mais ardentes. Arrancou uma risada de Suzanne ao recitar o brinde do velho Matthias
Claudius: Wer liebt nicht Weiben, Wein und Gesang... Quem no ama as mulheres, o vinho e as canes, permanece um tolo ao longo de toda a sua vida. Antes que se passasse metade do dia, ele a encantara mais do que se possa imaginar e me arrancara da depresso que h muito me envolvia, como um nevoeiro ftido. Depois do almoo, deixando Suzanne a cochilar no ptio, levou-me a um passeio sob um dossel de rvores, ao fim do qual havia uma pequena imagem jovial do Povenelli, conversando com um par de pombos empoleirados em suas mos estendidas. Contei a Mendoza tudo o que acontecera em Nova York e no Mxico. Nada daquilo deixou-o chocado, tudo o entristeceu. Paul, meu amigo, somos como camponeses vivendo numa zona conflagrada. A morte est ao nosso redor e nossos sentimentos se endureceram por sua presena constante. Nem mesmo procuramos ignor-la. Pelo contrrio, fazemos dela nosso divertimento principal. Achamos que os romanos eram selvagens, porque encenavam jogos mortais na arena. Agora
ns os simulamos para nossos filhos na televiso e nos filmes...Milhes de pessoas entram em fila para assistir a uma criana se masturbar com um crucifixo...Uma grande companhia mandou assassinar pessoas? Mas claro que isso acontece...Acredito em tudo o que me contou. Estou apenas surpreso por no ter ocorrido mais violncia... Mas poder haver mais. George Arlequim jurou matar Basil Yanko. Depois de todo o resto, ser que isso ainda o surpreende? No deveria...O assassinato, como a peste, epidmico. O freio legal est mais fraco do que nunca. E como poderia ser de outra maneira? Depois de cada revoluo, da direita ou da esquerda, os assassinos fazem as leis e os torturadores obrigam ao seu cumprimento. Somente as peias morais que ainda nos seguram, que ainda resistem, o conceito de coisa sagrada que tem a vida, o homem. Se abdicarmos disso, se o abandonarmos em desespero, como Arlequim o fez, ento o assassinato o recurso natural...Mas voc no pode permitir que isso acontea, Paul. No posso det-lo. Ele isolou-se de mim. Como no quero
participar, vou deix-lo. E Suzanne vai fazer a mesma coisa. Francis Xavier Mendoza estacou bruscamente. Ps as mos em meus ombros e fez-me virar para encar-lo. Estava sombrio como o velho Moiss a despedaar as tbuas. Paul, eu mal conheo esse homem. Ele seu amigo, no meu. Mas eu juro que, se voc o deixar agora, se no ficar com ele at o ltimo momento e tentar evitar essa coisa terrvel, voc nunca mais por os ps em minha casa...Jamais! Voc tem um dever a cumprir! Voc tem que ter amor dentro de seu peito! Se ele estivesse morrendo de fome, voc lhe recusaria uma migalha de po? Agora ele est mergulhado no mais profundo desespero. Vai repeli-lo e deixar que se afunde em sua loucura suprema? No pode fazlo! Voc no o far! O que devo fazer, Francis? O que posso dizer-lhe? Qualquer coisa, tudo, nada! Mas fique com ele! No permita que ele o afaste de si. Engula todos os insultos, mas fique com ele. Se isso algum dia acontecesse comigo e sei que possvel, pois sou um homem passional e
meu av matou muitos homens nessas colinas , desejaria que algum amigo me impedisse de cometer esse terrvel ato final. Ele segurou meu brao e recomeamos a andar, lentamente. Fale-me sobre Suzanne, Paul. Gostei muito dela. No h muito o que contar. Houve um tempo em que fomos amantes. Permanecemos sempre amigos. Agora, por causa de tudo o que est acontecendo, voltamos a ser amantes. No sei por quanto tempo isso vai durar. E por que no deveria durar? O dia j est chegando ao fim, meu querido amigo Francis. Mais razo ainda para ser cuidadoso e procurar preservar as coisas boas. Apaixonar-se coisa de crianas. Mas amar como saborear o melhor vinho...deix-lo decantar lentamente, segur-lo gentilmente, saborear gole por gole. No se cultiva uma grande vindima. preciso cri-la...Vejo a maneira como ela olha para voc. Vejo como voc se apia nela. Daria um bom casamento.
Meu primeiro casamento foi um desastre. No quero ter de enfrentar outro fracasso. E por que tem de ser um fracasso? Vocs dois tiveram tempo para aprender. O que quer que os antigos telogos tenham ensinado, no se faz um sacramento com a simples pronncia de palavras. Fazemo-lo pelo exerccio do sacramento e pelo amor. Voc meu amigo e detesto v-lo solitrio nos melhores anos de sua vida. Pense nisso...E pare de pensar em Arlequim. Isso est acertado, no ? Se acha que o melhor, amigo. timo. Agora vamos desejar um bom dia ao Poverello e eu lhe servirei um vinho que o faria descer de seu pedestal, se ao menos pudesse persuadi-lo a experimentar. noite, quando o frio do deserto avanou pela terra, jantamos luz de velas, contemplando a face escura do vale, os picos negros e a lua se erguendo acima deles. Ouvimos Segvia e Casais e depois Mendoza leu-nos algumas de suas tradues. Era uma noite de sereno encantamento, e Suzanne expressou o que ambos estvamos sentindo:
uma pena que George no esteja aqui. Ele teria apreciado intensamente este dia maravilhoso. Mas ele est aqui disse Mendoza gravemente. Ele est no corao de vocs e agora tambm no meu. O que estamos fazendo um ato de amor e ningum est excludo dele. Antes que se v, Suzanne, eu lhe darei um vinho ao qual dou imenso valor. S restam seis garrafas dele. Eu lhe darei uma, mas s poder beb-la quando vocs trs estiverem juntos para partilhla. Paul prometeu que ficar com Arlequim. Acho que voc tambm deveria ficar. E quando essa praga acabar, creio que voc e Paul deveriam casar-se. Sei que se preocupa com os outros disse Suzanne gentilmente. Mas por que demonstra tanto interesse por estranhos como George e eu? Vou explicar. Sou o mais afortunado dos homens. Deus fez as videiras. Eu fao o vinho. Voc o bebe e ele se transforma em voc. uma verdade maravilhosa. Quando eu a analiso em todo o esplendor de seu significado, fico to feliz que tenho vontade de chorar...Esta a comunho
que nos mantm sos e humanos. Rejeite-a e seremos apenas solitrios e acossados. Derrame o vinho da vida e para sempre estar condenada como Caim solido...Mas estou falando demais. J chega! Durmam bem, meus amigos. Eu no deveria aprovar, mas o fao. Espero que se amem em plena felicidade sob meu teto... No dia seguinte estvamos em outro mundo. Havia um boato de bomba no aeroporto de San Francisco e todos os vos foram atrasados em uma hora. Fomos revistados, engaiolados, exigiram que identificssemos nossa bagagem antes de ser embarcada. O ambiente era de tenso e hostilidade. As vozes se alteavam com facilidade, quando funcionrios atormentados tentavam controlar os passageiros cujos nervos estavam tensos a ponto de uma exploso. Quando finalmente levantamos vo, Suzanne enterrou-se numa revista de modas, enquanto eu tentava pr-me em dia com as notcias. Nenhuma delas era boa: havia crise na Inglaterra, com uma greve dos mineiros de carvo e eleies gerais; os japoneses estavam trocando terroristas pelas vidas do
pessoal de sua embaixada no Kuwait; os italianos tinham cercado o Quirinal de tanques e os vietnamitas tentavam reclamar seus direitos explorao do petrleo das ilhas Paracel, de que ningum tinha ouvido falar at o momento em que os chineses afundaram uma canhoneira em suas guas. O presidente estava cinco passos mais prximo do impeachment. O mercado de aes estava em baixa. A queda das aes da Creative Systems j era de trinta por cento. No havia a menor meno ao nosso caso. A ameaa de um processo de calnia tornara os editores cautelosos. Alm disso, com tal excesso de desastres, o pblico estava saciado e precisava de novos estmulos a cada dia. Estava se praticando agora um novo jogo em San Francisco. Dizia-se bom-dia a um desconhecido, disparava-se um tiro em seu corao e saa-se andando tranqilamente, assoviando. Eu estava folheando as pginas de notcias financeiras, para verificar o quanto estava mais pobre, quando deparei com uma pequena notcia que atraiu minha ateno. O Sr. Karl Kruger, da Kruger & Co. AG, estava em
Nova York, hospedado no Regency. Mostrei a notcia a Suzanne, que concordou em que deveramos convid-lo para jantar. Ela gostava daquele urso velho e podia tambm tolerar Hilde a menos, claro, que Karl tivesse decidido experimentar os talentos de Nova York. Eu s esperava que ele no resolvesse divertir-se pela Broadway afora e acabasse por se meter na mesma trapalhada que seu compatriota famoso. Takeshi estava em casa e de bom humor, embora ligeiramente deprimido por ter falado demais em San Francisco. Contudo, depois que lhe assegurei que seu prestgio e minha situao legal no tinham sido afetadas, tornou-se extremamente animado e pairou em torno de nosso jantar como um esprito guardio. Suzanne esticou-se voluptuosamente no sof, oferecendo-me um sorriso suave e demorado. Voc no pode renunciar a tudo isto, no ? Renunciar a qu? A ter tudo isto e a liberdade tambm! Isso por acaso uma proposta? No, chri, apenas uma questo acadmica.
Gostaria de debat-la agora? Esta noite no. Estou confortvel demais. E poderia responder-me a uma pergunta? Se no for muito difcil. Quer casar-se comigo, Suzy? O sorriso desapareceu imediatamente. Ela ficou imvel, olhando alm de mim, para as sombras l fora. Eu nunca fixei um preo, Paul. Sei disso. Desde mocinha que sou apaixonada por George Arlequim. Sei disso tambm. Portanto, voc no far um grande negcio. E foi o que eu pedi? No...Mas por qu, Paul? Por que eu? Por que agora? Estou aqui e feliz por estar aqui. Voc no tem rivais, embora eu desejasse que tivesse pelo menos um...No, por favor, fique onde est! Poderia derreter-me em seus braos e dizer sim, arrependendo-me de manh...Diga-me, Paul, por qu? Por vinte razes diferentes, Suzy. Mas s uma realmente vlida: no h nada nem ningum no mundo que eu ame tanto quanto voc...Pode no ser suficiente. Como lhe posso explicar? Vivi muito tempo e aprendi muito
pouco. De qualquer forma, como se diz no mercado, uma oferta firme. E normalmente no se acrescenta tambm para pegar ou largar? Acrescenta-se, mas no o que estou fazendo. Quando tudo isto acabar, Suzy querida, sairei para sempre do mercado, sacudindo a mo, na despedida do marinheiro que vai para muito longe. No h pressa. Pense bastante. Tenho pensado muito sobre isso, Paul. Tenho pensado quando estou sozinha e quando estou em seus braos, feliz por assim estar. E sei apenas de uma coisa: gosto muito de voc para oferecer-lhe um corao dividido. Quero esperar at que tudo isto acabe, no para ganhar George, pois estou certa de que isto jamais acontecer, mas para ter certeza de que estou curada dele, de que estou curada de meus sonhos de adolescente, pronta para ser uma mulher adulta para um homem adulto...Voc muito melhor do que se imagina, Paul. Gostaria que sentisse o maior orgulho da mulher com quem se casar. Por favor, vamos esperar mais um pouco.
Ela sorriu, um pouco radiante demais, estendendo-me os braos. E, quem sabe, voc pode-se cansar de mim muito antes de chegar a hora da deciso... Bom, no era a Lua, mas pelo menos eu tinha os seis vintns em meu bolso. Estava aprendendo a sentir-me agradecido pelas pequenas ddivas e, talvez, estivesse to aliviado quanto ela por adiar o momento da deciso final. Dessa forma no havia fantasmas com que lutar, apenas um homem possudo por um demnio sombrio, frio, sem amor e implacvel. Pela manh fomos comprar flores na Third Avenue. Desta vez no fomos mal recebidos. Compramos alguns botes e um verdadeiro jardim num vaso imenso, para ser entregue no apartamento. No vimos Aaron Bogdanovich. Ele tirara a manh de folga. Algumas vezes a senhora sorriu por trs dos culos de aros de ouro ele gosta de sentar-se nos jardins do Museu de Arte Moderna e admirar as esculturas, passando horas a pensar simplesmente. Se no o encontrssemos l, ela de qualquer forma daria nosso recado.
Ele no estava l, por isto samos a passear pelas lojas, seguindo depois para o Buccellati, na Fifth Avenue, onde, para meu gosto, ainda se podem comprar os melhores trabalhos de ourivesaria do mundo, peas maravilhosas como as que os velhos mestres costumam fazer na Ponte Vecchio e em suas cavernas de Aladim, no Lungarno. Uma hora depois, curvei-me aos protestos de Suzanne e sa de mos vazias, mas com um anel, brincos e um bracelete guardados em segurana no cofre-forte, s minhas ordens. Ao sairmos para a rua, Aaron Bogdanovich comeou a caminhar ao nosso lado e disse: Sute 66 do Saint Regis. Esto sendo esperados para o almoo. A anfitri a Sra. Larkin. Telefonem do saguo. Um momento depois ele desapareceu no meio da multido. Continuamos em frente e fomos at a Madison. Depois fizemos a volta e seguimos direto para o Saint Regis. Quando liguei para a sute 66, do saguo, uma voz de mulher atendeu: Sute da Sra. Larkin.
O Sr. Weizman e uma amiga. Fomos convidados para almoar. Subam, por favor. Fomos recebidos na porta por uma matrona de cabelos grisalhos, que nos levou pequena sala de estar onde estava Aaron Bogdanovich sentado numa poltrona, alerta e srio. Quando comecei a apresentar-lhe Suzanne, ele interrompeu-me bruscamente: Sei quem ela . A Sra. Larkin a levar para almoar no restaurante. Ensaiou um arremedo de sorriso e acrescentou: No fique ofendida, mademoiselle. Isto necessrio. Alm disso, o almoo por minha conta. Aprecie-o devidamente. O Sr. Desmond ir encontr-la l embaixo assim que tivermos acabado. O nosso almoo, meu e dele, foi caf e sanduches, a conversa girando exclusivamente sobre negcios. Primeira pergunta, Sr. Desmond: o quanto exatamente contou a Milo Frohm a meu respeito? Nada. Ele que me contou. O que precisamente? Que eu tinha comprado flores na Third Avenue.
E como foi que soube disso? Mandou um homem conversar com Takeshi em San Francisco. Mais alguma coisa? Que ns, Arlequim e eu, nos aliramos a um agente israelense e a Leah Klein. Que sabia que Valerie Hallstrom era uma agente israelense. Que Arlequim e eu somos agora alvos terroristas. E o que foi que vocs lhe disseram? Nem que sim, nem que no. Nada. E ele aceitou isso? Era o trato. Sua agncia quer agarrar Yanko. Se pudermos fornecerlhes as provas necessrias, ele no perguntar como nem onde as obtivemos. Neste momento est viajando para Londres, com George Arlequim. E o FBI j pegou Alex Duggan, em San Diego. Eu j sabia. E sabe do resto tambm? Quero ouvi-lo do senhor. Com um pouco de sorte, podero agora incriminar Yanko por conspirao. Conspirao nas fraudes, mas no cumplicidade nos assassinatos. No seja muito ganancioso, Sr. Desmond. Eu no estou sendo. George Arlequim que quer mat-lo.
Para isso, ele precisa permanecer vivo. Ambos so homens marcados. No sabemos qual dos dois eles atacaro primeiro. E quem so "eles"? Uma combinao formidvel, Sr. Desmond: a Frente Popular para a Libertao da Palestina e o Exrcito Vermelho do Japo. O primeiro creio que conhece bastante. O segundo talvez no lhe seja to familiar. chamado de Rengo Sekigun. Se est lembrado, foram eles que mataram vinte e sete pessoas no Aeroporto de Lod. Seqestraram um avio de passageiros que voava de Tquio e o levaram para a Coria do Norte. Torturaram e mataram doze de seus prprios dissidentes, no Japo. So totalmente dedicados ao niilismo e violncia...Tem um criado japons, Sr. Desmond... Takeshi? Ora, faa-me o favor... Eu lhe disse que iramos verificar. Foi o que fizemos. O FBI tambm o fez, pois eles no esto na verdade interessados no lugar onde comprou flores. Takeshi tem um sobrinho que voltou recentemente do Japo, onde manteve contatos com membros conhecidos do Rengo Sekigun...Ser
que isso no lhe sugere nada, Sr. Desmond? Que devo sair correndo? Tem agora uma mulher vivendo em sua companhia. Algum muito ntimo do senhor e de George Arlequim. Espere um instante! Mostre-me a lgica de seu raciocnio. Est certo. Yanko est relacionado com os xeques do petrleo e com a Lbia. A Lbia financia o terror. Vocs atacam Yanko e esto a um passo de derrot-lo. Subitamente ambos aparecem numa lista de alvos para ataques terroristas. Pode ter certeza de que a lgica irrefutvel, Sr. Desmond. E o que devemos fazer ento? Sirva-se de mais um pouco de caf, pois isso pode demorar algum tempo...O terror uma forma de cirurgia social, na qual se utiliza uma ampla variedade de tcnicas. Neste caso, h duas que podem ser consideradas: podero ser assassinados, para provocar o medo e o pnico, ou podero ser seqestrados, para se arrancar um resgate. No creio que sejam assassinados pura e simplesmente. No so judeus e, portanto, no tm muita utilidade como propaganda. Contudo, so muito ricos e proeminentes, bastante
apropriados para uma tentativa de resgate: suas vidas contra um monte de dinheiro e a libertao de prisioneiros polticos neste ou em outros pases. Se o resgate no for pago, evidentemente sero mortos. Evidentemente... Agora vamos examinar como devemos agir. Vou ser bastante claro: estou metido nesse jogo e sou bom nele, muito bom mesmo. No h sistema no mundo que no possa ser batido por um grupo de homens e mulheres determinados, que no se importam em viver ou morrer. Posso colocar homens para vigi-lo vinte e quatro horas por dia. Neste momento, o que est acontecendo. Posso tranc-lo em completo isolamento. Posso fornecerlhe uma pistola e uma caneta-tinteiro cheia de um gs letal. Posso trein-lo em jud e carat. Tudo isso ajuda, mas no constitui uma aplice infalvel para garantir sua vida. Minhas possibilidades so muito maiores do que as suas, porque no tenho quaisquer cdigos que me possam frear. Sou condicionado para matar e sobreviver. Minhas reaes so totalmente diferentes. Mesmo
assim, nunca estou seguro. Sua melhor proteo reconhecer o risco, aceit-lo calmamente e adotar algumas medidas simples de precauo. Se for seqestrado, no resista, fique calmo e espere que as negociaes cheguem a bom termo. No tente escapar, pois isso seria suicdio...No tenho dvida de que Milo Frohm deu as mesmas instrues a George Arlequim. E o que me diz de Suzanne? Uma pergunta apenas, Sr. Desmond: se ela fosse vtima de um seqestro, os senhores iriam pagar resgate por ela? Claro que sim. Eis sua resposta. Ela corre os mesmos riscos que ambos. Explique a ela. Deixe-a tomar sua prpria deciso. Ela pode sentir-se mais confortvel em Genebra ou em Elba, mas no estar mais segura, em nenhum lugar. Vamos falar sobre Takeshi. No h o que falar. Ele um bom criado, continue com ele. o sobrinho que nos incomoda. Continuaremos examinando essa situao. Deu-me seu habitual sorriso frio e sem humor e acrescentou:
Temos outro quarto de milho de dlares para receber dos senhores, em prazo indeterminado...Estamos fazendo o melhor possvel por merec-lo. Outra coisa: j pensaram no que Yanko far enquanto esto se preparando para incrimin-lo, com base nos testemunhos de Alex Duggan e do cmplice l de Londres? Tenho pensado nisso. difcil ver o que ele pode fazer, exceto livrar-se das testemunhas, o que tornaria excessiva a enxurrada de cadveres. E, mesmo assim, ainda teramos os documentos. O que faria no lugar dele? Deixe-me pensar...Primeiro, eu venderia o mximo de bens que pudesse, no mais curto prazo possvel. Depositaria o dinheiro, com toda a segurana, num banco suo. Depois descobriria um refgio qualquer, numa praia maravilhosa, que no tivesse tratado de extradio, investiria algum dinheiro junto s autoridades locais e riria na cara de Tio Sam...Nos ltimos anos, algumas figuras bastante conhecidas no mundo do crime fizeram exatamente isso.
No m idia. Mas no posso ver Basil Yanko como um fugitivo sorrateiro. No seu estilo. Alm disso, a lei um animal arisco e ele sabe, melhor do que ningum, como cavalg-la. Minha suposio que ele tentar livrar-se das dificuldades na base do suborno. E a quem ele poder subornar? Se George Arlequim retirar as acusaes, o governo e o mercado ficaro felizes em esquecer todo o assunto. Yanko conhece segredos demais. Essa no! Ele deve saber que Arlequim quer v-lo morto, quaisquer que sejam as conseqncias que possam advir para si prprio. Ele deve pensar que possvel negociar. Sabe que Arlequim est no limite mximo de suas foras. Sabe tambm que possuem documentos perigosos. Foi por isso que ele pediu a Karl Kruger que viesse a Nova York, para mediar um acordo. Ele est completamente louco! No. Ele computou todas as possibilidades e verificou que elas o favorecem. Se algo acontecer ao senhor, ou a Arlequim, ou quela sua linda
mulher, as chances dele numa negociao ficam ainda maiores...Nesse sentido, Arlequim est absolutamente certo. Se no querem negociar, a nica alternativa matar Basil Yanko. Pense nisso, Sr. Desmond. Converse com Karl Kruger e converse tambm com Arlequim, se ele voltar so e salvo... Karl Kruger estava dando uma festa. Era uma festa grande, uma festa importante. Comearia s sete horas e se prolongaria at s dez ou onze horas. Depois de termos embriagado todos os convidados, poderamos conversar em seu quarto. Mas claro que eu deveria levar Suzanne. Que espcie de festa estava pensando que era? No, Hilde no estaria presente, ela no era feita para esse tipo de coisa. Ele tinha algum para conhecermos, uma inglesa dessa vez, muito elegante, que acabara de se divorciar de um lorde, que era muito rico mas no podia saldar suas dvidas conjugais. E continuou falando incessantemente durante mais cinco minutos, at obter minha rendio. Depois resmungou sua maneira spera: No suficiente estar com a razo, Paul. No mercado, preciso
tambm ser popular...o que no acontece neste momento com Arlequim et Cie. Por isso, vista suas melhores roupas e sorria sem parar...E, se Basil Yanko estiver presente tambm, no lhe v cuspir no rosto. Faa isso por mim, pelo amor de Deus! E no tome qualquer deciso enquanto no tivermos conversado... Parecia odioso. Mas, como meu bisav me aconselhava, se tiver que comer corvo, certifique-se de que seja cozido num bom molho de vinho...Por isso, telefonei para a Buccellati e mandei que entregassem as jias, ordenando depois a Suzanne, sob pena de punio, que comprasse o melhor vestido que combinasse com elas. Fui ento a um salo de barbeiro. O tratamento custoume vinte dlares, mas disseram-me que era garantido para fazer-me parecer dez anos mais moo. Eles estavam mentindo, o que no era nenhuma surpresa, mas pelo menos fizeram com que me sentisse mais apto para a companhia de meus semelhantes, tirandome um pouco a sensao de um conspirador de terceira classe com o machado do carrasco suspenso sobre a
cabea. Pedi que uma limusine da Colby fosse apanhar-nos e depois liguei para George Arlequim em Londres. Era meia-noite l, e ele estava se preparando para ir para a cama. Fiz-lhe um resumo cauteloso de minha conversa com Bogdanovich e depois faleilhe sobre a festa de Karl Kruger. Para minha surpresa, disse: Deixe todas as opes em aberto, Paul. Talvez precisemos delas. Problemas, George? Sim. O rapaz muito esperto. Ns lhe apresentamos os documentos, mas ele recebeu bons conselhos legais e recusou-se a admitir o que quer que fosse. No temos nada para lig-lo s fraudes em Londres, exceto sua esposa, mas ela est coberta por um memorando forjado. A declarao de Alex Duggan liga-o apenas a uma conspirao na Califrnia para cometer uma fraude no Mxico e no existe, claro, nenhuma queixa na polcia mexicana. A polcia de Londres est cooperando ao mximo e eles esto examinando com Milo Frohm todas as possibilidades. Nossos advogados em Londres avisaram que podemos ter muito trabalho para obter
uma ordem de extradio. O FBI prendeu Alex Duggan e ele est sendo mantido em custdia, a seu prprio pedido. Mas ele pode descobrir que uma proteo muito duvidosa. tudo muito incmodo, Paul. Temos uma srie de provas, mas podemos ser derrotados por artifcios tcnicos legais, no que diz respeito a Yanko. Amanh vou conversar novamente com Frohm, os advogados e a polcia. Depois de amanh voarei para Genebra, a fim de ver o beb e encontrar-me com a polcia e com os diretores do banco. Eu lhe telefonarei de l. D lembranas a Suzanne. Au revoir! As notcias eram desencorajadoras, outra amostra da fragilidade da lei e do poder daqueles que tinham dinheiro e conhecimento bastante para manipul-la a fim de atingir seus prprios objetivos. Cinco pessoas tinham morrido. Havia documentos que ligavam Basil Yanko a cada uma das mortes, mas que no serviam como provas para os tribunais. E assim Yanko iria a uma festa no Regency, muitos homens lhe apertariam a mo, as mulheres iriam cortej-lo. E ele sairia de l desprezando a todos.
Por outro lado, havia em tudo aquilo um mnimo de consolo. Se George Arlequim resolvesse negociar e abdicasse de sua ameaa, todos ns poderamos voltar a viver em paz...talvez. Existiam agora outras ameaas. E, ao sairmos para a rua e entrarmos na limusine, descobri que fungava e cheirava o ar, como uma raposa a procurar os sinais de perigo trazidos pelo vento. Quando chegamos, a festa estava animada e Karl Kruger dominava-a, como um antigo caudilho. Suas boas-vindas foram afetuosas e vociferantes. Ele contemplou Suzanne e deixou escapar um rugido de aprovao, arrancando-a de mim e levando-a a circular em sua companhia, como um novo trofu de batalha. Providenciei um drinque e comecei a circular tambm, lenta e cautelosamente. Logo encontrei Herbert Bachmann, que me apertou a mo cordialmente e expressou sua simpatia sincera. Pobre George...Fiquei chocado com o acontecimento. Diga-lhe que sentimos muito. Voc tambm deve ter tido momentos muito difceis. Tive mesmo, Herbert.
E a situao agora ainda est pior. A venda macia das aes prejudicou uma poro de gente. O dinheiro como uma rosa, no se pode machucar as ptalas. Mas at agora conseguimos manter nosso grupo unido. Os recursos esto disposio de George, para quando ele precisar. Digame... Ele arrastou-me para longe da multido. O que h de verdade nessa histria que os jornais esto falando a respeito de homicdios? tudo verdade, Herbert. Temos documentos para provar. O que ento Yanko est fazendo na lista de convidados? que os documentos ainda no so suficientes para incrimin-lo, Herbert. Ento a situao pode se deteriorar ainda mais? possvel. Kruger veio a Nova York para servir como mediador, a pedido de Yanko. Isso ainda segredo. Obrigado por contar-me. Seria uma boa coisa. No a melhor, mas necessria... Yanko j chegou? Eu ainda no o vi. E, Paul, quando ele chegar, tenha calma, est
bem? Claro...Falarei com voc mais tarde. Nem todos os cumprimentos foram cordiais como o de Herbert Bachmann e alguns foram gelados como os martinis que os haviam induzido. Pelo amor de Deus, Paul, voc poderia pelo menos ter-nos dado um aviso, at mesmo uma simples insinuao...Olhe, companheiro, uma guerrinha particular no tem problema algum, mas no desse modo!...Sabe o quanto baixamos naquela quarta-feira?...As pginas financeiras, est certo, so o nosso frum, mas as colunas policiais so coisa para a Mfia...Francamente, meu caro, gostamos muito de George e no simpatizamos com Yanko, mas... De alguma forma, consegui avanar, passar por cima, contornar, at que Suzanne veio em minha salvao, com palavras gentis e um cumprimento para cada um. Foi ento, no momento preciso em que as conversas atingiam o auge e o lcool jorrava copiosamente, que Basil Yanko chegou. Entrou sozinho, sem a menor pompa. Apertou a mo de Karl Kruger e conversou
com ele por um momento, logo desaparecendo no meio da multido, sorrateiro como um gato. Lentamente, Suzanne e eu fomos abrindo caminho por entre a multido, em direo a ele. At que finalmente o encontramos, conversando em voz baixa com Herbert Bach-mann. Herbert viu-nos primeiro e acenou para que nos aproximssemos. Sr. Yanko, creio que j conhece esses dois... Conheo de fato. Mademoiselle, Sr. Desmond...Ele fez uma pequena mesura, mas no nos estendeu a mo. O Sr. Arlequim no veio? Foi Suzanne quem respondeu, cerimoniosamente: No. Ele est em Londres, Sr. Yanko. Ela ps a mo no brao de Herbert e pediulhe: Acha que poderia arrumar-me um outro drinque, Sr. Bachmann? Com prazer. Com licena, senhores. Assim que os dois se afastaram, Basil Yanko ergueu seu copo. uma mulher muito bonita, Sr. Desmond. Meus parabns.
De nada, Sr. Yanko...como dizem no Mxico. Est uma festa muito animada. Karl um excelente anfitrio. E tambm um banqueiro muito esperto. Tem razo. Sr. Desmond, gostaria de dar-lhe uma opinio oportuna. Em negcios, ganha-se alguma coisa e espera-se perder um pouco menos do que se ganhou. Neste momento, todos ns estamos perdendo demais. Est na hora de transformarmos os prejuzos em lucro. Lucro sempre uma palavra bem-vinda. Eu ficaria agradecido se transmitisse essa opinio a George Arlequim. Eu o farei. Outra boa palavra compromisso. Tambm direi a ele. A vida de uma variedade infinita. Podese substituir qualquer coisa, menos a si mesmo. Tudo menos a si mesmo...Gosto disso. Algumas vezes as personalidades se chocam, as ambies tambm. Um mediador pode ser muito til. Karl Kruger um homem que eu respeito. Ns tambm o respeitamos.
Ento vamos parar por aqui, est certo?...Com licena, Sr. Desmond... Ele se afastou, desgracioso como sempre. Suzanne voltou com Herbert Bachmann. Ele fitou-me longamente com uma expresso inquisitiva. Espero que tenha sido delicado com ele, Paul. Acima e alm do estritamente necessrio. Algum deveria dar-me uma medalha. Em vez disso, eu lhe darei um beijo disse Suzanne. Posso dizer-lhe uma coisa? Acho que j tivemos o bastante desta festa. Mas Karl disse... Alterei a combinao. Vocs vo se encontrar aqui amanh, s onze horas. Vamos embora, chri. Ela a mais sensata de todos ns comentou Herbert Bachmann. Faa o que ela est dizendo, Paul. s onze horas da manh, Karl Kruger estava de olhos avermelhados, com dor de cabea e era um autocrata. Arrotou e resmungou, ficou andando para um lado e outro da sala, vociferando para mim como se fosse o Chanceler de Ferro.
Realidades, Paul! sobre isso o que temos de falar: realidades! Na guerra, perdi uma esposa durante os bombardeios e um filho na frente russa. Agora fao negcios com as pessoas que os mataram. Realidade! Se no chegarmos a um meio-termo e no cooperarmos, o mundo se acaba numa grande exibio de fogos de artifcio. Ponha todos os assassinos no cadafalso e no haver no mundo corda suficiente para enforc-los. Realidade novamente! Arlequim tem que compreender. E voc deve ajud-lo a compreender... Karl! A esposa dele ainda nem esfriou no tmulo! Por isso ele no pode raciocinar e no vai faz-lo. Mas voc pode! Posso raciocinar at ficar roxo de tanto pensar que isso no ir alterar absolutamente nada. Ento trate de agir. Acho que voc no entendeu o que eu disse, Karl. Oua, Dummkopf! Pelo amor de Deus, oua!...Se voc, Paul Desmond, pudesse assumir agora o controle da situao, o que faria? Pense
nisso. Voc ouviu o que disseram na festa onde noite. Eles no do a menor importncia a princpios morais, s querem saber de dinheiro. E havia muito poder l...Voc conversou com Yanko. Ele est abalado e vocs podero abal-lo ainda mais, mas no conseguiro destru-lo. E ele est disposto a um acordo. Agora me diga: se pudesse, qual seria o acordo que iria propor? Se pudesse...Primeiro ponto: ele teria que retirar sua oferta para nos comprar. Segundo ponto: teria que cobrir os quinze milhes e todas as despesas decorrentes. Terceiro ponto: pagaria o custo de instalar um novo sistema de computadores e de treinar os operadores, mas no ficaria com o contrato. Quarto ponto: retiraramos as queixas contra seus funcionrios e esqueceramos os documentos que temos, mas somente depois que os outros itens fossem cumpridos. Isso o mnimo. D-me algum tempo e poderia pensar em mais alguma coisa. Agora, meu amigo, est comeando a ser sensato. Mas de nada adianta, sem o consentimento de Arlequim.
Nem tanto. Voc tem uma procurao dele que ainda vlida. Yanko sabe disso, eu tambm. Disse-me que Arlequim deseja que mantenha todas as opes em aberto. E essa a melhor maneira de faz-lo. Feche as sadas para o problema e teremos apenas uma carnificina, com prejuzos para todo mundo. Eu sei disso, Karl. Mas d-me um s argumento para convencer um homem cuja esposa foi assassinada. Voc me disse que tambm a amava. E amava mesmo. E o que est fazendo agora? Um escultor mexicano ainda est fazendo a lpide e voc j est na cama com Suzanne. O que a melhor coisa que j fez na vida. No estou zombando, Paul. Pelo contrrio, estou na maior satisfao. Arlequim tambm acabar fazendo o mesmo. E melhor que no demore muito. E ento, Paul, o que me diz? Voc um velho schlem, Karl...mas tentarei. timo. Finalmente algum est sendo um pouco sensato. Eu o procurarei assim que tiver sondado Yanko sobre os termos. Deus, minha cabea parece que vai estourar!
Telefonou-me s trs horas da tarde. Yanko estava pronto para iniciar as conversaes. Convidava-me para jantar em sua casa. Eu tambm estava disposto a conversar, mas no via motivo para comer o po e beber a gua do desgraado. Karl Kruger resmungou, furioso: Se voc mineiro de carvo, inevitvel que entre poeira na sua marmita. Que importncia isso pode ter? Por falar nisso, black-tie. Nesse momento Suzanne arrancou-me o telefone das mos e disse calmamente: Ele estar presente, Karl. Cuidarei disso. Ela desligou e virou-se para mim. Paul, chri, se voc no for e tudo sair errado, nunca mais se perdoar a si mesmo. Por favor... E assim, s oito horas em ponto, com meu orgulho no bolso e a raiva reduzida a umas poucas brasas ainda fumegantes, fui jantar com Basil Yanko. No sei muito bem o que esperava encontrar: profuso, certamente, o mesmo ar de grandiosidade que caracterizava seu escritrio, talvez algumas
engenhocas, inevitavelmente tudo em excesso. Confesso que tive uma das maiores surpresas de minha vida. O apartamento era muito bonito, mas sobriamente bonito, com uma espcie de perfeio matemtica que era ao mesmo tempo austera e repousante. Basil Yanko no era um colecionador. Escolhia as coisas e colocava-as no lugar em que falassem por si mesmas; um catlogo no traria a menor referncia, a no ser para dizer que havia dinheiro nas paredes e nenhuma mancha de sangue. No podia compreender como um homem to inquieto e sinistro como Basil Yanko tinha conseguido uma atmosfera de tanta serenidade. Fui recebido por uma criada negra. Um mordomo filipino serviu-me um drinque e logo me deixou sozinho. Basil Yanko apareceu logo depois. O dinner jacket fazia-o parecer mais anguloso e cadavrico do que nunca, mas seu aperto de mo era menos frouxo e sorriu-me sem esforo aparente. Fiz-lhe um elogio pela casa e ele recebeu-o com uma farpa de ironia. Surpreso, Sr. Desmond? Fascinado, Sr. Yanko.
Colecionar pode ser uma mania. Mas a verdadeira arte da apreciao est na seleo...o que implica, claro, julgamento, erro e rejeio, at se chegar a um relacionamento estvel. Est interessado nos quadros, Sr. Desmond? Eu estava interessado em qualquer coisa que pudesse ajudar-me a atravessar a abertura e ir direto pera, por isso falei-lhe do meu gosto por artefatos e peas de ourivesaria, a mstica das pedras coloridas. Era um bom ouvinte e mais corts do que eu jamais acreditaria que fosse possvel, embora, quando lhe chamava a ateno para algo, suas perguntas continuassem a ter um tom firme e peremptrio. Ao jantar, ele comeu parcimoniosamente e bebeu apenas um copo de vinho, mas mostrou-se orgulhoso de seu cozinheiro e exigiu um servio meticuloso. S ento ps-se a falar sobre poltica: H um sonho no exterior, Sr. Desmond, de que podemos voltar ao tempo do barril de bolachas e da bomba paroquial, das pequenas comunidades auto-suficientes. uma linda iluso, mas no h maneira de
convert-la em realidade. Somos agora, compulsoriamente, um mundo s, mutuamente dependente de complexos padres comerciais e da distribuio dos recursos naturais em rpido decrscimo. Portanto, temos que racionalizar e controlar uma multido de variveis. O computador pode faz-lo. O homem, sem ajuda alguma, no pode... O que nos levou, por etapas e sutilezas, ao caf e ao problema em questo, que ele exps com a maior simplicidade : Cometi um erro, Sr. Desmond. Escolhi o alvo errado. Usei os meios errados. As premissas sendo erradas, os erros se acumularam. Por isso temos que apagar todo o sistema e comear tudo de novo, sendo esse o propsito deste nosso encontro. Mais caf? No, obrigado. Um conhaque? No... Bem, ento...Karl Kruger sugeriu uma estrutura dentro da qual podemos negociar. Serei franco: no pretendo discutir os detalhes financeiros, insignificantes. Uma avaliao dos prejuzos e dos custos coisa bastante
simples. Para mim, o ponto fundamental saber o que me podem oferecer como garantia de imunidade para o futuro. Diria que uma enunciao justa de nossa posio? Creio que precisa ser esclarecida, Sr. Yanko. Est querendo imunidade contra o qu? Contra qualquer acusao no tribunal. Acusao contra o qu? Por fraude e conspirao para assassinato. o que esto neste momento tentando provar contra mim, embora eu tenha ouvido dizer que esto encontrando certas dificuldades. A desfaatez dele deixou-me, por um momento, sem fala. Ele sacudiu a cabea, pesaroso. Sr. Desmond, estamos sozinhos. No h testemunhas, ningum nos est escutando. Aqui posso admitir tudo e o fao. Est chocado, eu sei. Como possvel que eu, um respeitvel homem de negcios, conspire e consinta em assassinatos? Sr. Desmond, os contribuintes deste pas financiaram um gigantesco e desnecessrio holocausto no Vietnam. Alguns protestaram. Muitos aprovaram, ainda o aprovam e continuaro a faz-lo. Calley foi para a
cadeia, mas os generais continuam em liberdade. No tenho o menor respeito pelas pessoas, Sr. Desmond. Elas simplesmente vivem e morrem. Algumas vezes, para fazer uma equao social funcionar, precisam ser removidas. Ns dois poderamos debater o problema at o dia do Juzo Final e no conseguiria convencer-me. Portanto, concordemos na divergncia e voltemos questo que nos interessa: o que podem oferecer como garantia? Podemos concordar em no indici-lo nem a seus funcionrios por fraude e conspirao para fraudar. Quanto questo dos assassinatos, no podemos negociar. O problema est fora de nossas mos. O FBI j est de posse de todos os documentos. Que so altamente prejudiciais, mas no conclusivos. Mas que permanecero num arquivo em aberto, j que no existe proscrio legal para o crime de homicdio. Certo, Sr. Desmond. Mas vamos analisar a situao caso por caso. Valerie Hallstrom uma batata quente poltica e ningum vai querer segur-la. Ella Deane? Assunto encerrado. No h problema.
E Frank Lemmitz? O caso da jurisdio inglesa e provavelmente no se ir estender por muito tempo... O que nos deixa apenas com o problema de Madame Arlequim, que morreu no Mxico. Vamos ento examinar esse caso e verificar onde podemos concordar. Meus advogados viram, embora eu pessoalmente no tenha visto, uma confisso de Pedro Galvez, incriminando-me. Poderiam levar-me a ser julgado tendo por base esse documento, mas certamente no obteriam uma condenao. Eu inegavelmente iria sofrer, mas acabaria recuperando-me. O Sr. Arlequim no ficaria em melhor situao do que est agora, com um imenso nus financeiro e um mercado a se retrair para ele. Mas, se se abstiverem de qualquer ao legal, divulgao de fatos e rumores e investigaes adicionais, podero recuperar tudo, sem nenhuma discusso quanto aos detalhes. Pode garantir-me isso, Sr. Desmond? Arlequim pode, eu no. Por que no? Ele pode retirar-me a procurao a qualquer momento. E...?
Posso e tentarei persuadi-lo a concordar. Contudo, mesmo que Arlequim consinta, isso no lhe garantir imunidade diante da polcia e do FBI... Ora, Sr. Desmond! Estava sendo paciente e bondoso diante de minha ignorncia. Se h alguma coisa que conheo a fundo o que a imprensa gosta de chamar de "a conscincia da Amrica". Posso resolver esses problemas e garantir-me toda a segurana necessria. O que nos leva a outro item das negociaes, Sr. Yanko. Isso arranhou um pouco seu verniz. O sorriso desapareceu instantaneamente e ele sacudiu a cabea como um lagarto surpreendido. Creio que j falamos de todos os itens mencionados por Karl Kruger. E falamos. Mas esse ltimo eu preferi deixar para debater em particular. Num documento oriundo de seus computadores, George Arlequim e eu fomos relacionados como alvos em perspectiva de ataques terroristas. O documento em questo, Sr. Desmond, um relatrio particular
de informaes confidenciais, preparado por tcnicos, que circula exclusivamente entre uns poucos assinantes. Mas, como todos os relatrios, contm especulaes destinadas a provocar aes, as quais, quando ocorrem, o senhor certamente alega que as tinha previsto. Em termos objetivos, o senhor disse que os mais novos alvos dos ataques terroristas so Paul Desmond e George Arlequim. A FPLP e o Rengo Sekigun nunca ouviram falar em ns. Ento perguntam: "Quem so eles?" E l estamos ns, embrulhados em papel de seda, prontos para entrega... por isso, Sr. Yanko, que tambm precisamos de uma clusula de imunidade no contrato. Pode garantir-nos isso? Posso transmitir uma solicitao direo executiva da FPLP. Atravs de amigos, claro. E teria uma resposta? Normalmente, sim. E quanto tempo demoraria at receb-la? Cerca de trs dias. Ento deixemos as respostas para daqui a trs dias. timo! E, se at l tiver algum ponto sobre o qual deseje
esclarecimentos, telefone por favor para meu escritrio ou para este nmero. Se estiver em casa, atenderei. Foi at a escrivaninha, escreveu um nmero de telefone num carto e entregou-me. Levantei-me para partir. Sr. Yanko, obrigado por um excelente jantar e por uma conversa construtiva. O prazer foi meu, Sr. Desmond. Meu motorista ir lev-lo para casa. No se sinta ofendido se ele no lhe dirigir a palavra. O pobre rapaz mudo.' Estamos cooperando com o programa de emprego dos deficientes fsicos. Boa noite, Sr. Desmond. Eu levava ao sair um lindo ramo de oliveira, envolto em celofane e amarrado com uma fita rosa, entregue por pombos a arrulharem. Se no o aceitssemos, ele o empunharia como uma lana e o cravaria em nossas entranhas, enterrando-nos sob sete palmos do asfalto de Wall Street. Que Deus os tenha em paz, alegres cavalheiros e que os mantenha em segurana atravs das horas sombrias! No voltei para casa. Pedi ao motorista que me deixasse no Regency,
onde Suzanne estava jantando com Karl Kruger. Sua rosa inglesa provara ser to cheia de espinhos que ele a despachara de volta para Londres, embrulhada num bracelete de diamantes, e agora suspirava por Hilde. Ficou feliz ao saber que o acordo era possvel. Ficou infeliz ao saber, pela primeira vez, que ns framos apontados como alvos para ataques terroristas. Consentira em efetuar uma diplomacia pessoal, no em se imiscuir numa situao poltica que tanto afetava seu prprio pas. Viu tambm um mrito na deciso de Arlequim de eliminar Yanko. Sugeriu mesmo, gravemente, que talvez Aaron Bogdanovich estivesse disposto a assassin-lo. Mas eu tinha certeza de que Bogdanovich no poria em risco sua organizao com o ataque a um preeminente industrial americano. Suzanne ficou ouvindo em silncio, chocada. Depois atacou-nos a ambos, furiosamente. Chega! No quero ouvir nem mais uma palavra! Esto falando como se vocs prprios tambm fossem assassinos! Se o acordo puder ser feito, faam-no logo de uma vez. Do contrrio, no haver um ponto final em toda
essa insanidade. Karl Kruger murmurou um pedido de desculpas. Eu sei, eu sei...No vai acontecer novamente, liebchen. Mas uma espinha atravessada em nossa garganta o fato de Yanko ficar sentado tranqilamente ditando termos para pessoas decentes. Mas o que temos que nos perguntar agora o que vai acontecer caso Arlequim recuse o acordo. Que horas so, Karl? Uma hora da madrugada. J tempo de pensarmos em ir para a cama... Em Londres, so seis horas da manh. Paul, telefone para George e vamos acabar logo com isso. Suzy, querida, ele vai precisar de tempo para pensar... Neste caso, quanto mais tempo tiver, melhor ser. Vamos, telefone para ele! Poucos momentos depois a ligao para Londres era concluda e George Arlequim estava ao telefone. Parecia ter acabado de acordar. Pedi desculpas por estar incomodando-o to cedo. Perguntou-me ento:
Eles j entraram em contato com voc tambm, Paul? No sei do que voc est falando, George. uma hora da madrugada aqui. Acabei de jantar com Basil Yanko e agora estou ceando com Suzanne e Karl Kruger... Ento quer dizer que voc ainda no sabe... No sei de nada, George. O que aconteceu? O pequeno Paul e a bab foram seqestrados. Antes que eu tivesse tempo de dizer qualquer coisa, Milo Frohm entrou na linha. Sr. Desmond, oua com ateno e faa exatamente o que eu disser. A notcia ainda no foi divulgada. No sabemos o que isso significa exatamente, embora possamos imaginar. Estamos esperando as exigncias que sero feitas. Volte para seu apartamento e ligue para nosso escritrio de Nova York, mandando chamar Philip Lyndon. Ele lhe dar as instrues necessrias. Quando soubermos de mais alguma coisa, voltaremos a lhe telefonar, para sua casa. Agora, por favor, poderia desligar? Precisamos manter a linha aberta.
Fizemos exatamente o que fora determinado. Uma hora depois, estvamos em meu apartamento, com o Sr. Philip Lyndon gravando o relato da interveno de Karl Kruger e da minha conversa ao jantar com Basil Yanko. O relato que Lyndon fez do seqestro foi rpido, pois havia muito pouca coisa a contar. s trs horas da tarde a bab saiu com o menino para um passeio no parque junto ao lago de Genebra. Como sempre, o detetive acompanhava-os. Durante o passeio, duas mulheres e um homem haviam-nos abordado, desarmando o detetive e obrigando a bab e o menino, sob a mira de revlveres, a entrarem num carro que estava esperando. meia-noite, algum em Londres telefonara para Arlequim e informara-o de que o menino e a bab estavam em mos da Frente Popular para a Libertao da Palestina. Ele deveria aguardar em Londres que entrassem novamente em contato. A interveno da polcia seria intil e perigosa para a criana e para a mulher. Era simples, formal e ameaador como uma espada desembainhada.
O que poderamos fazer? Nada, disse o Sr. Lyndon firmemente; nada seno esperar, permanecer em silncio e fazer tudo o que fosse ordenado. Pensei em telefonar para Yanko e transmitirlhe a notcia. O Sr. Lyndon debateu a idia por um momento e depois sugeriu que eu esperasse at as sete horas da manh, quando traria um tcnico para instalar um dispositivo para gravar a conversa. s quatro horas da madrugada ele ofereceu-se para levar Karl Kruger de volta ao hotel em seu automvel. Suzanne e eu ficamos sozinhos, contemplando o amanhecer de um dia sem esperanas. O Sr. Philip Lyndon voltou s seis horas, trazendo o tcnico. s sete eu estava ligando para Basil Yanko. Ele ficou surpreso ao ouvir-me to cedo. bastante diligente, Sr. Desmond. J falou com o Sr. Arlequim? J E como ele reagiu s minhas sugestes? No pude transmiti-las. Alguma razo em especial? Sim. O filho do Sr. Arlequim, juntamente com a bab, foi seqestrado a noite passada, em Genebra.
O ofego foi genuno. Nenhum ator do mundo poderia ter representado o choque ou veemncia da obscenidade: Oh, que merda! Os seqestradores identificaram-se como sendo da FPLP. Arlequim recebeu instrues para permanecer em Londres, at um contato posterior. Isso tudo o que sei. Por favor, transmita minha solidariedade ao Sr. Arlequim e acrescente que estou pronto a ajudar por todos os meios ao meu alcance. Sabe onde pode encontrar-me. Tendo em vista nossa conversa de ontem noite, pensei... Pelo que eu me lembre, Sr. Desmond, discutimos negcios e no poltica de terror. ...pensei que, com seu conhecimento do mundo rabe, poderia sugerir um meio de se chegar a uma soluo desse problema trgico. Pensarei imediatamente no assunto. Contudo, devo ressaltar que mantenho relaes to somente com governos legalmente constitudos e com empresas. Mas, de boa vontade, pedirei conselhos a meus amigos, nesta emergncia.
Era o que eu esperava do senhor. Obrigado por telefonar. Entrarei em contato com o senhor posteriormente. O Sr. Philip Lyndon deixou escapar um esgar amargurado de admirao. Ele no se deixou abalar! Parece feito de ao inoxidvel! Acha que foi ele quem organizou o seqestro? No. Creio que ele armou uma situao para uso futuro e a FPLP antecipou-se. Agora a situao est fora do controle de Yanko. Ele ajudar, se isso lhe convier. Caso contrrio, cruzar os braos e no far absolutamente nada. E o que me diz de meu testemunho e do de Karl Kruger? Karl Kruger conversou apenas sobre um acordo de negcios. Suas declaraes confirmam isso. A parte sobre assassinato e terror conta apenas com sua palavra. a mesma histria de sempre! O senhor deveria fazer meu trabalho por algum tempo, Sr. Desmond. Se no existe Deus e nenhum julgamento final, eu serei um homem
bastante desapontado. Se receber algum telefonema de Londres, avise-me imediatamente. Farei o mesmo e lhe informarei tudo o que souber...Deixe o gravador ligado ao telefone. Vou colocar agora uma fita nova...E por que no aproveita para descansar um pouco? Havia mais uma coisa que eu tinha de fazer antes de poder descansar. Sa e fui at um telefone pblico, liguei para Aaron Bogdanovich e contei-lhe toda a histria. Ele ficou apenas ligeiramente surpreso e nem um pouco comovido. Londres e Genebra...Interessante... Isso tudo o que tem a dizer? No momento . Se precisa de algo mais, ligue para Pea-UmaOrao-Pelo-Telefone. Algumas pessoas acham que isso ajuda bastante. No h nada de divertido. Ento experimente um velho provrbio chins: quando estiver esperando a visita do carrasco imperial, aconselhvel tomar grandes quantidades de vinho de arroz...Relaxe, Sr. Desmond. Essa espcie de coisa sempre leva tempo para ser resolvida. Esperamos o dia inteiro, cochilando de vez em quando, assistindo
televiso, aguardando que o telefone tocasse. Nada. Telefonamos para Philip Lyndon meia dzia de vezes. Ele tambm no sabia de nada e suplicou que no ocupssemos sua linha. Karl Kruger apareceu s seis horas da tarde para tomar um drinque e ficou para o jantar de Takeshi, sombrio como uma festa fnebre. s dez horas as notcias de ltima hora, em cima da hora! vimos o fato na televiso: um apartamento de quinto andar perto do aeroporto de Genebra, com a bab segurando o beb diante da janela, tendo a seu lado um jovem rabe com uma metralhadora. O comentrio foi uma narrativa no estilo enftico e emocionado dos locutores americanos: "Hoje, em Genebra, o menino Paul Arlequim, de trs anos, e sua bab, Hlne Huguet, de trinta anos, foram seqestrados e esto sendo mantidos como refns por dois homens da Frente Popular para a Libertao da Palestina e um casal de japoneses, membros do Rengo Sekigun, organizao terrorista japonesa. Os terroristas esto exigindo a libertao de dois prisioneiros rabes, um na Inglaterra e outro na Itlia, condenados
recentemente por acusaes de seqestro, posse ilegal de armas e outros crimes. As exigncias dos terroristas foram apresentadas esta tarde. Querem tambm um avio para lev-los a um Estado rabe amigo, uma soma de dois milhes de dlares e imunidade contra ataques ou priso. Eles fixaram um prazo de quarenta e oito horas. Se as exigncias no forem atendidas, mataro primeiro a bab e, vinte e quatro horas depois, a criana. Paul Arlequim filho do banqueiro George Arlequim, que recentemente figurou..." Karl Kruger estendeu a mo e desligou a televiso. Pronto! Agora j sabemos. O dinheiro fcil de conseguir. Dobrar os governos no to fcil assim. Os ingleses so pescoos-duros. Os italianos talvez demorem um pouco, mas acabaro concordando. Deus meu, mas que mundo! Suzanne chorava baixinho. Ele envolveu-a num abrao de urso e censurou-a gentilmente: Liebchen, liebchen! Eles no vo matar uma criana. So espertos demais para isso. Tambm precisam de simpatia. 0 beb quem menos corre
perigo. Se eles lhe fizerem algo, a multido enfurecida ir estraalh-los. Ele ainda estava consolando-a quando o telefone tocou. Liguei o gravador e atendi. Era Basil Yanko. Sr. Desmond, arranquei meus banqueiros da cama. Liguei para a UPI, que transmitir a notcia imediatamente. Haver dois milhes de dlares disposio, no Union Bank de Genebra, amanh de manh. Um presente, um presente sem qualquer compromisso. Estou fazendo todos os esforos possveis, no terreno diplomtico, para evitar essa tragdia... Enquanto eu ainda procurava decidir se devia amaldio-lo ou agradecer, ele desligou. Karl Kruger comeou a andar pela sala, explodindo de raiva. O filho de uma meretriz! Ele faz tudo, ele desfaz tudo! E ainda quer se transformar em heri! Suzanne gritou-lhe: Eu no me importo! Isso no tem nenhuma importncia! Pelo menos ele est fazendo alguma coisa, enquanto ns ficamos apenas sentados aqui...
Novamente o telefone tocou. Era Milo Frohm, de Londres. A voz soava exausta, mas polida como sempre. Desculpe no ter telefonado antes. Estivemos ocupados, como pode perfeitamente imaginar. So trs horas da madrugada aqui. Arlequim est em Genebra. Seu gerente de Londres e eu passamos o dia inteiro em negociaes com o secretrio do Interior. Achamos que ele vai terminar cedendo, mas o negcio est duro. Os italianos vo concordar...pelo menos o que esperamos... Eu lhe falei da oferta de Yanko. Sua risada foi como o chocalhar da morte. Santo Deus! Mas que artista! No posso esperar pelo momento de pregar-lhe uma medalha no peito. No meio de tudo isso, s tenho uma notcia boa: o amigo de Alex Duggan est comeando a ceder. Sua esposa est grvida e est apavorada com que algo possa acontecer ao filho de Arlequim. Continuem rezando e de boca fechada. Sr. Frohm, recebeu o relatrio sobre meu jantar? Recebi. E qual a instruo a respeito?
Mantenha o negcio em aberto e procure tambm manter o Sr. Kruger em Nova York. Como est George? No muito mal, considerando tudo. - Gostaria que eu fosse para a ou mandasse Suzanne? No. Fiquem ambos onde esto. Quanto mais difcil for, mais Arlequim vai resistir. E espero tambm agentar. Sabe o que me aconteceu esta noite? O subsecretrio convidou-me para jantar em seu clube, dizendo que l se fazia o melhor lombo de carneiro de Londres. Lombo de carneiro, meu Deus! Mas, como diz a Bblia, estamos todos trabalhando numa vindima. Boa noite ou bom dia, conforme for o caso a. Pelo menos ele ainda conseguia rir. Tentei transmitir seu humor a Suzanne e Karl. No foi uma boa transmisso, mas pelo menos arrancou um sorriso espectral de Suzanne e um resmungo de Karl. Lombo de carneiro! E o melhor clarete do clube, senhor! Como eu me lembro disso! Por que ele quer que eu fique em Nova York?
Ele no disse, Karl. Mas a deciso compete a voc. Terei que mandar Hilde vir para c. Tenho pesadelos se passar duas noites sozinho na cama. Vou telefonar agora mesmo para Munique. Ora, Karl! Em Munique so agora quatro horas da madrugada! E da? Se ela estiver sozinha, ficar contente em ouvir-me. Se no estiver, ento no merece estar dormindo. Vamos, passe-me o telefone! Suzanne desatou numa risada frouxa. No pode, Karl! Todas as conversas esto sendo gravadas. Em alemo vai soar maravilhosamente...Ei, tenho uma idia! Por que voc no fala com ela primeiro? Digalhe que est na cama comigo e... Era uma brincadeira tola, mas ns continuamos nela com um fervor histrico e, depois que acabou, recordamola durante todo o jantar, at extrairmos a ltima gota. Karl acabou desmaiando no quarto de hspedes, e Suzy e eu nos abraamos num esquecimento misericordioso. O drama do seqestro transformou-se numa pea importante do teatro
poltico. Se voc for um cnico, pode em uma hora ditar toda a seqncia. O que no pode imaginar, a menos que esteja pessoalmente envolvido, a angstia insuportvel da vtima e dos parentes, as tenses cruciantes tanto dos negociadores como dos seqestradores. Os seqestradores so os comandos de um grupo poltico, totalmente comprometidos, cuidadosamente instrudos, plenamente conscientes dos riscos pessoais. Se fracassarem, no podem esperar misericrdia. Sero estraalhados por uma turba enfurecida, metralhados pela polcia ou encerrados numa priso pelo resto da vida. A sano sob a qual vivem, como a ameaa que impem, absoluta. Se suas exigncias forem recusadas, eles mataro, porque a morte torna-se ento inconseqente para eles, mas consideravelmente conseqente para o movimento que representam. O problema que o ato de execuo deve sempre ser levado a cabo a sanguefrio, mas a tenso que o precede pode tornar-se insuportvel... por isso que a presena de assassinos japoneses um sinistro fenmeno. Os japoneses
possuem uma filosofia da vida muito confusa, mas possuem uma filosofia da morte tradicional e extremamente objetiva. Os negociadores esto sempre em desvantagem, j que no so, e nem podem ser, absolutamente decididos ou resolutos. Todos concordam em que a vtima ou as vtimas devem ser salvas. O dinheiro uma considerao de menor importncia. Mas os dilemas envolvidos formam uma legio. Um governo no pode ceder a gngsteres polticos, mas no pode tambm concordar com a chacina de inocentes. Se os culpados forem escoltados para fora do pas como diplomatas, a lei torna-se objeto de escrnio e novos ataques sero feitos. Se se impede a polcia de agir, destri-se sua lealdade e, ao final, acaba-se por corromp-la. Se se fabricam mrtires, esto-se semeando dentes de drago. Se se defendem os direitos das minorias oprimidas, no se pode sufocar pela fora bruta a expresso de suas queixas. Para as vtimas propriamente ditas, no h recurso possvel. Seus captores podem ser delicados. Mas so tambm implacveis. Os libertadores
parecem impotentes. A salvao depende exclusivamente de um sentimento de decncia, que eles viram ser abdicado. Aaron Bogdanovich no estava brincando quando dissera que se podia ligar para pedir uma orao ou ento embriagar-se. Ele estava sendo piedoso ao ignorar a alternativa que restava: ficar sentado quieto e esperar que o carrasco tivesse a mo firme. Estvamos a mais de seis mil quilmetros de distncia, mas Suzanne e eu acompanhamos intensamente todos os atos do drama. A televiso ficava ligada o dia inteiro e metade da noite. Compramos todos os jornais e lemos todas as linhas das notcias que se escreveram a respeito, em alemo, ingls, francs e italiano. Um de ns estava sempre no apartamento. Quando Suzanne saa, Takeshi a acompanhava. Philip Lyndon telefonava quatro vezes por dia, com um sumrio das notcias que recebera pelo telex. Karl Kruger entrava e saa a toda hora do apartamento. Hilde chegaria dentro em breve. Milo Frohm estava ocupado e era impossvel entrar em contato com ele. Tudo o que soubemos de George Arlequim foram as palavras que ele disse aos
reprteres. Ele mais parecia um fantasma ambulante, mas comportava-se com dignidade e falava quase sempre com moderao e extremo autocontrole. Ofereceu-se como refm em lugar da criana e da bab. A oferta foi recusada. medida que se aproximava o trmino do primeiro prazo fatal, a espera tornou-se uma angstia terrvel. Novas personagens apareceram em cena, delegados das embaixadas rabes, diplomatas japoneses, emissrios da Inglaterra e da Itlia. Suplicaram mais algum tempo. Mostraram o dinheiro do resgate e enviaram-no para o apartamento, o portador trajando apenas um calo, a fim de que os seqestradores pudessem ver que ele estava desarmado. Enquanto subia, o japons pendurou o menino para fora da janela, ameaando larg-lo ao primeiro sinal de traio. No ltimo momento, o prazo fatal foi estendido por mais vinte e quatro horas. Foi entregue leite fresco para a criana. Uma tripulao sua apresentou-se como voluntria para o avio que levaria os seqestradores a lugar seguro. Os italianos atravessaram a fronteira com seu prisioneiro e
mostraram-no, sorridente e triunfante, para os seqestradores. O prisioneiro ingls ainda no chegara, e o secretrio do Interior sempre se recusando a fazer qualquer comentrio. Finalmente ele chegou tambm. George Arlequim e seu gerente suo ofereceram-se novamente como refns substitutos. Dessa vez a oferta foi aceita. Eles desapareceram no interior do prdio. Houve cenas histricas quando, longos minutos depois, a bab e a criana saram, sendo apressadamente levadas para um carro da polcia e retiradas do local. E ento, finalmente, o ordlio terminou. Os seqestradores e seus refns, sob a mira das armas, emergiram do prdio e seguiram para o aeroporto. Entraram juntos no avio. Os prisioneiros foram trazidos para o p da escada. Riram e acenaram, fizeram sinais de vitria. E logo o avio decolou. Os refns seriam devolvidos quando o avio voltasse. Suzanne finalmente desmoronou e chorou incontrolavelmente por mais de uma hora. Liguei para um mdico e pedi que lhe desse um sedativo. Enquanto ela dormia, sa de casa e fui sentar-me no ltimo banco da Catedral
de Saint Patrick. No rezei. Parecia no ter o menor sentido dizer que eu lamentava ou estava grato. Era apenas um lugar limpo e sossegado para estar, num mundo srdido e turbulento. 9 Dez dias depois George Arlequim voltou para Nova York. Veio com uma comitiva: os pais de Julie, uma nova bab, o beb e trs jovens, todos suos, muito quietos, sempre vigilantes, nada comunicativos. O apartamento no Salvador no podia acomodar todo mundo, por isso alugamos as sutes adjacentes, e Saul Wells recrutou outra equipe de segurana, para guardar todos os acessos e verificar os visitantes e os empregados do hotel. Suzanne deixou meu apartamento e foi instalar-se junto da famlia. Arlequim queria que eu me mudasse tambm. Disse-lhe que no havia necessidade e, alm disso, fazia questo de manter minha independncia. Pediu-me que o informasse do que acontecera durante sua ausncia. Ouviu atentamente, tomou anotaes, elogiou meus atos e encerrou o assunto. No era o momento de pression-lo para decises. Quando ele estivesse pronto, eu
estaria sua disposio. Ele estava profundamente mudado. As tmporas estavam grisalhas, a pele do rosto repuxada por cima dos ossos. Os olhos tinham uma expresso contemplativa. Falava pouco, serenamente, ponderadamente, como algum que tivesse passado muito tempo isolado de seus semelhantes. Seus movimentos tambm estavam diferentes, no eram mais elsticos e impacientes como nos velhos tempos, mas calculados, deliberados, quase furtivos. Recusava todos os contatos sociais. Durante o dia, trabalhava no Salvador, pedindo que as pessoas fossem vlo. O que, claro, todos faziam, quando mais no fosse, em ateno a suas aflies recentes. noite jantava com os pais de Julie e brincava com o beb. Eram as nicas ocasies em que eu o via sorrir, um sorriso terno, mas terrivelmente triste, como se ele sentisse vergonha de ter trazido uma criana para um mundo to brutal. S ficava zangado quando encontrava alguma falha nas complexas medidas de segurana. Ento punia o responsvel com palavras frias e cortantes. Tratava
Suzanne com muita delicadeza, mas com cerimnia. Comigo ele no podia ser formal, mas deixou patente que queria manter uma certa distncia. Trs dias se passaram antes que ele me telefonasse e pedisse que fosse encontr-lo, para tratar do que classificou de "assuntos pessoais". Quando cheguei, imploroume que ouvisse sem nenhum comentrio o que tinha a dizer. Paul, voc j fez bastante por mim, mais do que qualquer homem tem o direito de pedir a outro. Sei que voc amava Julie e apoiou-a no momento em que ela careceu de meu prprio apoio. No sinto cimes por isso. Pelo contrrio, sou-lhe grato. Fico contente por meu filho ter o tio Paul. E fico contente tambm por t-lo como meu maior amigo. E quero manter nossa amizade. Mas do jeito que as coisas esto atualmente, receio que possa vir a perd-la. Por isso, gostaria que renunciasse ao cargo de diretor da Arlequim et Cie. A qualquer hora, George. Hoje mesmo, se voc quiser. Hoje ento. Mandarei Suzanne datilografar o pedido de demisso.
Poder assin-lo antes de ir embora. Vou tambm cancelar sua procurao. Ter uma indenizao integral pelo perodo em que exerceu o cargo de diretor. Voc e Karl Kruger cobriram-me em quinze milhes de dlares. J substitu essa cobertura e creditei-lhe o dinheiro, inclusive os juros correspondentes. No meu caso, George, isso no era necessrio. Mas era apropriado, Paul. Creditei-lhe tambm a soma correspondente aos prejuzos que sofreu com a venda de suas aes na Creative Systems. Assim que acabarmos nosso trabalho aqui em Nova York, vou aposentar Suzanne, com o que penso ser um prmio generoso por sua dedicao. Acho que ela precisa ter liberdade, tem suas prprias decises a tomar... E aonde tudo isso o leva, George? Onde estou no momento, com um filho para criar e um negcio para reconstruir. Posso perguntar-lhe como se prope a faz-lo? Claro. Vou entrar num acordo com Basil Yanko.
Est querendo dizer que pretende vender-lhe Arlequim et Cie.? No. Vou apenas fazer um acordo com ele. Voc e Karl Kruger j discutiram os termos fundamentais do acordo. Posso melhor-los um pouco, numa negociao pessoal. Tudo depender, em parte, do sucesso que Milo Frohm obtiver em Londres e do compromisso que puder estabelecer entre a administrao e sua agncia. Essa parte, porm, est fora de meu controle. Ele estava sendo deliberadamente vago, mas eu no estava com disposio para pression-lo. Queria afastarme de qualquer maneira. Ele estava me proporcionando a oportunidade de faz-lo com dignidade. Poderamos continuar amigos, mas a amizade nunca mais seria a mesma, porque ele mudara e eu no podia faz-lo. O melhor era esperar que as coisas se acomodassem. Eu lhe disse ento: J sabe que pedi a Suzy para casar-se comigo? No, ainda no sabia. Mas fico contente. Acho que uma excelente idia. Mas ela ainda no aceitou. Por que no?
que ainda est apaixonada por voc. Sempre esteve. Ele fitou-me com uma ligeira expresso de surpresa, como se eu estivesse falando sobre o preo dos tomates. Mas no estou apaixonado por ela. Era tudo o que eu queria saber. Obrigado, George. Esperarei em Nova York at que ela termine seu servio e depois a levarei para longe...E agora vamos tratar dos documentos, est certo? Nos dias que se seguiram, senti-me estranhamente desamparado e sem objetivo. Terminara toda uma era de minha vida. Eu no sabia como, nem por onde iniciar outra. Fiquei longe do mercado financeiro e do clube, porque no queria responder a perguntas sobre meus planos, nem participar de conversas sobre Arlequim. No lia os jornais, porque as notcias eram todas ruins e o mercado estava em baixa. Quanto menos eu operasse, melhor seria. Para preencher as horas vagas, fiz a ronda dos arquitetos navais e dos estaleiros, conversando sobre um velho sonho: um veleiro a motor que pudesse levar-me atravs do Pacfico. Percorria tambm as docas procura de
barcos esquecidos ou negligenciados que me pudessem servir. noite, ia para o Salvador, tomava um drinque com Arlequim, brincava com meu afilhado e depois levava Suzanne para o bar de Gully Gordon. Ela tambm estava aturdida e constrangida. Seu trabalho agora era temporrio. No podamos partilh-lo. A decncia exigia que eu no me imiscusse em assuntos confidenciais dos quais fora formalmente excludo. Nosso relacionamento tornou-se tenso e irritadio. Houve algumas trocas de palavras speras. Senti que ela estava se afastando de mim. Ela acusou-me de pression-la, de no lhe dar tempo para tomar uma deciso livremente, conforme prometera. Uma noite, depois de um jantar ligeiramente turbulento com Karl Kruger, e Hilde, ela prorrompeu em lgrimas e disse que era melhor passar alguns dias sem me ver. Entrei num turbilho de festas com Mandy Ducaine e seus amigos, que me deixaram exausto, com dor de cabea e mais solitrio do que nunca. Ao chegar a casa s trs horas de uma madrugada, encontrei um bilhete enfiado debaixo da porta. "Chri, desculpe-me. Preciso
v-lo. Suzy." Telefonei-lhe na hora do caf e conversamos durante meia hora, marcando um jantar em minha casa para aquela noite. Naquela mesma manh, por vontade de ter algo melhor para fazer, caminhei at a loja de flores da Third Avenue e pedi para falar com Aaron Bogdanovich. Dessa vez fui convidado a passar para uma sala nos fundos, atravancada, onde o mestre do terror estava empenhado na tarefa prosaica de calcular suas contas. Ele acenou para que me sentasse, escreveu mais alguns nmeros e depois recostou-se na cadeira, contemplando-me com uma expresso sardnica. E ento, Sr. Desmond, qual a sensao de estar desempregado? Estou comeando a me acostumar. E como se sente, Sr. Bogdanovich? Os agentes funerrios e os floristas tm sempre trabalho. Alm disso, continuo na folha de pagamento de Arlequim et Cie. Isso surpresa para mim. Imaginava que seria. Por que deixou a companhia?
Pediram-me que me demitisse. Sabe por qu? Foram-me dadas algumas razes. E elas o satisfizeram? No. Por que ainda continua em Nova York? Estou esperando para casar-me com Suzanne. Pelo menos, o que espero. Ela uma tima escolha. Obrigado. Por que veio at aqui? Gostaria de pagar-lhe um almoo. Obrigado, mas eu nunca almoo. Como est aqui, no entanto, vou lhe dar alguns conselhos. Quais? No tenho amigos, Sr. Desmond. No posso dar-me ao luxo de tlos. H poucas pessoas que respeito. Seu amigo Arlequim uma delas. Ele o tipo de homem que eu gostaria de ter sido, se as circunstncias fossem diferentes. Por outro lado, no est preparado para ser o homem que eu sou... Continue. Ele pediu-lhe que renunciasse para que no fosse acusado de cumplicidade em seu plano. Que ...?
O que sempre foi: matar Basil Yanko! No acredito! No posso acreditar! Ele me disse... Que ia fazer um acordo com Yanko. E vai. Depois ele o matar. Nenhuma outra coisa poder satisfaz-lo. Depois, claro, descobrir que nada foi resolvido. Pediu-me que o ajudasse. Eu o farei, porque minha gente quer que Yanko seja eliminado. Posso agora imaginar, como no o conseguia antes, um meio de faz-lo. No poder impedi-lo. Seria intil tentar. Mas sugiro que fique por perto, para recolher os restos de George Arlequim ou pelo menos cuidar de seu filho. Ter-me-ia contado tudo isso se eu no tivesse aparecido aqui esta manh? Teria. S ontem noite que soube o que ele se prope fazer. Isso engraado, realmente engraado... O qu, Sr. Desmond? Arlequim me desobriga de qualquer compromisso, e agora o senhor torna a me vincular, Sr. Bogdanovich. E exatamente isso o que nunca desejou, Sr. Desmond! Quer ambas as extremidades e o meio da salsicha. Quer a respeitabilidade sem a
virtude, a posse sem a ameaa, o prazer sem o pagamento. Quer mercenrios para executar suas mortes e cegos para enterrar seus mortos. No possvel, isso no mais possvel no mundo de hoje. Mrtir ou matador, eis as nicas alternativas! A menos que queira juntar-se legio dos acorrentados, que se arrastam do nascimento morte, chorando pelo Messias que nunca vem! Se ele no tivesse sido to veemente, no o teria percebido. Se ele no tivesse sido to positivo, eu teria ignorado a dvida importuna que h muito se alojara no fundo de minha mente. Era uma dvida to tnue que tive de procurar as palavras para express-la: Acho...acho, Sr. Bogdanovich, que o senhor est nos usando, a mim e a Arlequim. No houve o menor indcio de emoo em seu rosto taciturno. Os olhos eram janelas vazias para uma alma vazia. O que est querendo dizer com isso, Sr. Desmond? Valerie Hallstrom... O que h com ela? Vamos voltar seqncia dos acontecimentos. Revistou o
apartamento dela. Saiu. Viu um homem entrar. Viu-a chegar a casa. Viu o homem sair. Voltou e encontrou-a morta. Foi isso o que me contou. Exatamente. Mas ela era sua agente. Enquanto ela estava sendo assassinada, o senhor ficou esperando do lado de fora... E da? Sabia o que estava acontecendo e deixou que acontecesse. Tem razo. Por qu, Sr. Bogdanovich? Valerie tinha chegado ao fim. Andava bebendo no bar de Gully Gordon e falando demais, como fez com o senhor. Sua identidade tinha sido descoberta. Yanko mandou mat-la. Deixei que acontecesse, como o disse. Agora estou acertando as contas. Yanko morrer muito em breve. Arlequim e eu j acertamos todos os detalhes. Ser uma soluo perfeita para todos ns. Creio que compreender que fizemos jus aos nossos honorrios. Ainda acho que est nos usando... Est me insultando, Sr. Desmond. Alm do mais, esquece nosso contrato: se houver sangue no tapete, eu limpo depois; por outro lado, ambos
se comprometeram ao silncio. Se no tem estmago para o que est acontecendo, volte para casa. um privilgio que ainda lhe resta. Vou falar com Arlequim. Pode faz-lo. Mas no se esquea de que no era sua a esposa assassinada na Cidade do Mxico, no seu o filho que foi pendurado para fora da janela de um quinto andar em Genebra. Ele no estava zangado, nem mesmo estava enftico. Poderia estar lendo uma cartilha de criana. Ao levantarme para partir, fez um gesto para que ficasse mais um instante e murmurou com uma ironia estranha e condescendente: Eu estava falando a srio, Sr. Desmond. O menino vai precisar de seu apoio. E talvez o senhor tenha que recolher o que restar de seu amigo. Fique por perto. No ser to ruim quanto est pensando. A morte um acontecimento muito banal. Deixei-o calculando os custos e os lucros da loja de flores e caminhei durante uma hora atravs do tumulto de Nova York na hora do almoo. No
havia ningum pedindo minha companhia, no havia lugar algum que ficasse vazio sem minha presena. Olhei as vitrinas e vi apenas um amontoado de objetos sem significado. Olhei para os rostos e vi apenas mscaras de atores. Senti o cheiro de comida e no me apeteceu. Lambi os lbios e desejei beber, mas sabia que engasgaria ao primeiro gole. Queria companhia, mas fugiria primeira palavra de cumprimento. No estava com medo, no me sentia envergonhado. Estava apenas vazio e descrente. Minha frgil filosofia estava em frangalhos, meu cdigo irracional estava to cheio de buracos quanto um queijo suo. Aaron Bogdanovich abalarame at a alma, mas eu no pudera demov-lo um centmetro sequer da firme convico de que a vida era uma inconseqncia, mais fcil terminada do que consertada. Depois de algum tempo, minha cabea latejava e os ps doam, e por isso voltei para casa. Takeshi preparou-me um caf. Eu no queria pensar em mais nada. Peguei um livro na estante ao acaso e, sem olhar para o ttulo, comecei a ler a primeira pgina que abri:
"... No sei quem ou o que fez com que a pergunta fosse formulada. No sei quando ela se formulou. Nem mesmo me lembro de t-la respondido. Mas, em algum momento, respondi sim a algum ou a alguma coisa. E a partir desse momento tive certeza de que a vida tinha um sentido e que, em conseqncia, minha vida em submisso.. . tinha um objetivo..." Olhei para o ttulo da pgina. O livro era Anotaes, os apontamentos pessoais do homem estranho e complexo que foi Dag Hammarskjld. Continuei a ler: "... Daquele momento em diante, soube o que significa no olhar para trs e no pensar no amanh. Segui...atravs do labirinto da vida, chegando a um tempo e um lugar em que compreendi que o caminho leva a um triunfo que uma catstrofe, que a nica elevao possvel ao homem encontra-se nas profundezas da humilhao..." No compreendi muito bem, mas fiquei estranhamente comovido. Senti a necessidade de copi-la nas folhas de rascunho de minha agenda de bolso, onde no poderia deixar de ver aquela idia todos os dias. Tinha
acabado de faz-lo quando Takeshi entrou, tossiu delicadamente, assoviou baixinho, fez uma mesura e suplicou um momento de meu valioso tempo. Pois no, Takeshi. O que ? Tenho algo para dizer-lhe, senhor. No muito fcil. Sente-se ento e disponha do tempo de que precisar. No, senhor, obrigado. As coisas que aconteceram ao senhor e a seus amigos... As coisas que aconteceram...sim? Na televiso. No dia em que eles penduraram o beb pela janela... Continue, Takeshi. O homem que estava segurando o beb era meu sobrinho, aquele para quem sempre mando os selos de suas cartas. Voc sabia antes que ele pertencia ao Rengo Sekigun? S tive certeza quando o FBI veio fazerme perguntas. Antes no sabia. Por que no lhes disse? Tenho famlia na Califrnia e no Hava. So todos boas pessoas. Bons japoneses, bons americanos. Durante a guerra, foram colocados em
campos de prisioneiros, como se fossem inimigos. Por que no me contou? O senhor estava no Mxico, na ocasio. Mas depois? Aqueles homens poderiam ter-me apanhado ou Srta. Suzanne. Fomos alertados de que isso era possvel. Se meu sobrinho tivesse vindo aqui, eu o teria matado. Ele o teria matado primeiro, Takeshi. A gente sabe dessas coisas, senhor, mas no acredita nelas. Agora, quando j tarde demais, que eu acredito que seja possvel. Deveria ter-me contado antes. Tem razo, senhor, mas eu me sentia por demais envergonhado. Se lhe for conveniente, senhor, partirei pela manh. Takeshi... Senhor? Por que quer ir embora? Meu sobrinho me desonra, eu desonro o senhor. A honra como um canio, Takeshi, que se verga quando nos apoiamos nele. Em que ento nos podemos apoiar, senhor?
Sente-se, Takeshi, pelo amor de Deus! Fico cansado de estar olhando para cima para v-lo...Lembra-se do homem que dorme num tmulo? Lembro-me, senhor. Ele me disse hoje que no h meio-termo para viver. A gente tem que morrer por uma verdade ou matar por ela. Devo acreditar nele? exatamente isso o que meu sobrinho diz. E o que voc acha, Takeshi? No se corta uma flor para faz-la desabrochar. E de que adianta a verdade para um homem morto...Por acaso, o senhor sente vergonha por no dormir tambm num tmulo? No...porque no tenho coragem para faz-lo. Durante a guerra, quando lamos sobre as cargas banzai e os pilotos kamikaze, meu pai costumava sacudir a cabea e comentar que um sbio covarde era melhor que um idiota heri. Acho que ele estava certo. Voc precisa mesmo ir embora, Takeshi? Tem um emprego melhor em vista? No, senhor.
Ento fique mais um pouco e vamos nos apoiar um no outro. Ele no se iria rebaixar a demonstrar prazer, mas fez trs reverncias e assentiu. Depois indagou se me faltava f em suas habilidades culinrias ou em seus cuidados domsticos. Se tal no acontecia, por que a Srta. Suzanne no ficava no apartamento, ao invs de se meter em algum hotel apinhado? Era bom senso puro, se eu ao menos pudesse persuadi-la a perceb-lo. s cinco horas da tarde Saul Wells veio visitar-me. Ele estava apresentando relatrios regularmente a George Arlequim. Tinha a impresso de que seus servios no eram mais de grande valia. No fazia idia dos motivos que me tinham levado a renunciar. Estava ganhando um bom dinheiro, mas estava se formando uma situao que ele simplesmente no entendia. No queria continuar na ignorncia e esperava que eu pudesse esclarec-lo. Contei-lhe metade da verdade. Arlequim era um homem cheio de cicatrizes, tinha que se manter ocupado, precisava estar no controle absoluto
de tudo. Eu no queria que nossa amizade fosse prejudicada por conflitos de orientao poltica. Saul aceitou com alguma reserva. E perguntei-lhe a respeito de Bernie Koonig. Ele instantaneamente se animou. A histria de Koonig muito estranha. Ele um malfeitor de pouca monta e costuma alugar seus msculos para os rapazes dos jogos de azar e para os agiotas. Frank Lemmitz costumava us-lo, coisa que j sabamos. Mas o que no sabamos, e levei todo este tempo para descobrir, que ele antes trabalhava na Califrnia para Basil Yanko, casado ento com sua segunda esposa, aquela que morreu quando sua lancha explodiu. Koonig tinha o mesmo emprego que Lemmitz aqui em Nova York: era motorista, guardacostas, tudo o que imaginar. Depois do acidente, ele deixou a Califrnia e veio para o leste. Tinha dinheiro ento, muito dinheiro, mas esbanjou tudo e comeou a trabalhar para os gngsteres. Desde que Lemmitz morreu ele anda apavorado. Falou com ele? No, mas Bogdanovich falou.
Estive com ele esta manh. No me disse nada. Saul Wells lanoume um olhar estranho, desembrulhou outro charuto, demorou bastante para cortar a ponta e acend-lo. Finalmente, um tanto embaraado, disse-me: Sou um rapaz judeu muito simples, Sr. Desmond. Mando dinheiro para Israel e freqento a sinagoga. Aaron nada tem de simples e faz coisas diferentes. Como ele as faz ou por que as faz so coisas que nunca lhe perguntei. E, mesmo que ele me contasse, eu saberia que era apenas uma parte da verdade. Ele como um mgico, que pe uma bala de hortel na boca e tira limonada do cotovelo. um truque. A gente fica esperando,encontrar uma relao entre os dois fatos, mas no existe nenhuma. Com Aaron, porm, sempre h uma relao. Como a que existe entre uma moa que vai para a cama com um sujeito em Paris, o homem que compra uma passagem de avio em Lima, Peru, e o cadver que aparece flutuando no rio Delaware quatro dias depois...Ento Bogdanovich conversou com Bernie Koonig e no lhe disse nada. Pois bem: deixe por isso mesmo! O que mais pode dizer-me, Saul?
Basil Yanko entrou em contato comigo. Mas que diabo! O que ele quer? Ele quer que a Lichtman Wells trate dos problemas de segurana da Creative Systems. um contrato muito grande. Voc seria um tolo se o recusasse, Saul. No mesmo? Ele tambm me ofereceu uma gratificao pessoal de cem mil dlares. Para qu? Para receber cpias de todos os meus relatrios para Arlequim et Cie. e todos os demais documentos de que eu me puder apossar. Disse-lhe que iria pensar a respeito e depois falei com Aaron. E o que foi que ele disse? Achou que era uma boa idia, contanto que pudesse adulterar os documentos antes de eu entreg-los a Yanko. Arlequim j sabe disso? Claro. E parece que no se importou. Se Aaron o aconselhava, ele concordava. Por que ento veio contar-me, Saul? Porque acho que estamos no mesmo barco, Sr. Desmond, subindo contra a correnteza e sem nenhum remo. Arlequim assumiu seu lugar, Aaron
assumiu o meu. Eles formam uma dupla terrvel. No gostaria de ser apanhado nas garras de ambos. Quando conversei com Aaron, ele me disse: "Receba seu dinheiro em espcie, Saul. No se pode assinar cheques na cadeia e, quando a pessoa morre, o banco suspende os pagamentos". Perguntou-lhe o que isso significava? Acho que no me entendeu, Sr. Desmond. Com Aaron, se no se compreende as palavras, simplesmente no se merece sab-las. Eu ainda estava tentando engolir essa espinha atravessada em minha garganta quando Karl Kruger e Hilde chegaram, ofegantes, de uma surtida s lojas da Fifth Avenue. Hilde tinha os ps doendo, trs vestidos novos e um broche de diamantes. Karl tinha um rombo na carteira e uma sede violenta. Saul Wells esbugalhou os olhos diante dos fartos encantos de Hilde. Quando ela se acomodou no sof, ele sentou-se o mais perto que pde e comeou a falar pelos cotovelos, enquanto Hilde tomava seu drinque e sorria sonhadora ao longo do monlogo. Sou mico de circo se ela entendeu uma palavra em
cada dez, mas Saul era um homem, e Hilde no pediria mais nada at o momento em que ele o fizesse e ento Saul precisaria recorrer at ao ltimo cent de seus cem mil dlares. Karl Kruger espalhou seu vasto corpo numa poltrona, engoliu uma garrafa de cerveja em tempo recorde, arrotou alegremente e depois exigiu um usque para acalmar os nervos. Declarou solenemente que as mulheres eram as mais esplndidas criaturas de Deus, contanto que no se tivesse nada a fazer com elas seno depois do escurecer. Fazer compras era um passatempo para cretinos, entre os quais ele era o menos inteligente. Quando lhe perguntei como iam as coisas entre Arlequim e Basil Yanko, ele resmungou, irritado. E por que tem que perguntar a mim, hem? Eu disse a George que ele era um idiota por deix-lo ir...As coisas esto progredindo. Os dois j elaboraram um esboo de acordo e recomendaram a seus advogados que preparassem o contrato formal. Falo com George, falo com Yanko. Durante todo o tempo fico me perguntando por que a polcia e o FBI no intervm. O homem, afinal, um criminoso.
No , no, Karl, enquanto eles no o provarem. E ser que eles querem mesmo prov-lo, hem? Eu nunca tinha ouvido falar, em toda a minha vida, em leis to "complicadas. Se a gente rica o suficiente neste pas, pode praticamente reescrever o cdigo com a ajuda das autoridades. Somente quando isso lhes convm, Karl...que precisamente o que acontece nas atuais circunstncias. Como est George? Eu lhe disse um dia que havia uma fraqueza nele. Pois no existe mais! Ele est duro como granito. Ouve. Medita. Decide. Depois disso, nada mais consegue demov-lo. 'Yanko est arrependido de sequer t-lo conhecido. Mas eles vo chegar a um acordo? Vo. Mas devem faz-lo com decoro. Arlequim precisa disso, se que deseja recuperar seu lugar no mercado. No suficiente ganhar, precisa tambm ganhar com generosidade. Foi o que lhe disse. Herbert Bachmann tambm. E Arlequim concordou? Concordou. Ele me disse: "Karl, sou um excelente ator. As pessoas
acreditaro no que pensarem que esto vendo. Todo mundo ficar satisfeito, exceto eu mesmo". Hilde saiu do sof, atravessou a sala de ps descalos, enlaou-me pelo pescoo e sussurrou: Pelo amor de Deus, Paul, salve-me daquele Klumpen! Saul Wells seguiu-a, apenas para ser agarrado por Karl Kruger, que lhe segurou o pulso com a mo imensa e lhe disse: Quero falar-lhe, Sr. Wells! Ouvi dizer que um homem muito esperto em questes de segurana. O que significa isso, meu amigo? Segurana para qu e contra quem? Hilde encurralou-me a um canto do bar, segurou minha mo e exigiu que eu lhe contasse tudo. Paul, o que est pensando em fazer com relao a Suzanne? Ela est encarcerada como uma freira naquele maldito hotel. Martela o dia inteiro na mquina de escrever. Olha para George Arlequim com aqueles seus olhos de cora mansa e diz: Sim, senhor! No, senhor! Ele no perceberia se ela estivesse falando snscrito! Deus do cu, que desperdcio! No gosto de
mulheres, mas ela uma das boas. Oua, schatz! Todos ns ficamos azedos e cheios de rugas. No desperdice os melhores anos de sua vida. E tambm no desperdice os dela! Hilde, querida, eu j a pedi em casamento. Ela disse que precisa de tempo para pensar. Paul, voc um Klumpen maior do que aquele ali! Nenhuma mulher precisa de tempo. Sem um homem, ela no sabe o que fazer com o tempo de que dispe. Olhe s para Karl. gordo, muito velho e um dia cair morto a caminho do escritrio...mas eu o amo! Quando ele se for, irei definhar como uma macieira no inverno! Hilde, eu a amo, mas voc est completamente embriagada. Eu o amo, schatz, mas voc est sbrio demais para seu prprio bem. Quando voc ver Suzy de novo? Esta noite... se conseguir tirar todos vocs daqui a tempo. Ento diga a ela! No pergunte, apenas diga: "agora ou nunca". E, se ela quiser argumentar, mande-a para casa e chame-me. Karl! Vamos, de p! Paul tem visitas. Levante-se tambm, Sr. Wells. Fora...fora...E quanto a voc,
meu Paul, assim que tudo estiver resolvido, telefone-me imediatamente, d-me sua carteira e eu lhe trarei de volta a mais linda noiva que j viu em toda a sua vida... Deus, como os homens so estpidos! Sr. Wells, traga meus sapatos. Karl, seu grande tolo, vamos indo. Agora! Eles saram, numa agitao de despedidas, numa nuvem de fumaa de charuto e exalaes de usque. Rapidamente tomei um banho, barbeei-me e vesti-me, enquanto Takeshi, murmurando irritado, arejava e arrumava a sala. Quarenta minutos depois ela estava fresca e tranqila como o jardim de um templo. A mesa estava posta, os coquetis misturados, as velas acesas e Oistrakh tocava Beethoven, mas Suzanne ainda no chegara. Chegou atrasada uma hora, nervosa e beira das lgrimas. No mudara de roupa. O cabelo estava desarrumado. Trouxera roupas e objetos de maquilagem numa valise. Precisava de outra hora para tomar banho e mudar de roupa. Takeshi, nobre filho dos samurais, assegurou-lhe que o jantar poderia ser servido meia-noite, se assim o desejasse. Servi-lhe dois drinques,
exultando secretamente enquanto ela se livrava das atribulaes de um dia horrvel. A manh fora preenchida por negcios do banco: o afastamento de Larry Oliver, uma longa conferncia com Standish, telegramas de Genebra e das filiais estrangeiras, informaes do mercado, problemas dos clientes, movimentos financeiros, telefonemas frenticos para colocar ordens e aceitar comisses na Europa. tarde chegara Milo Frohm, vindo de Londres, o que queria dizer que ela ficara na ociosidade enquanto George Arlequim e ele se trancavam, incomunicveis, durante duas horas. O beb estava com elicas, o que implicava caar um mdico e acalmar dois avs franceses extremamente preocupados. E ento, s cinco e meia certamente no havia outro pas to pouco civilizado no mundo inteiro! houvera uma conferncia entre Arlequim e Yanko, com a presena dos advogados de ambos, e ela tivera que esperar at que chegassem s concluses, para anot-las em taquigrafia, depois passar o esboo mquina, tornando a datilograf-lo depois de meia hora de
emendas e correes...E, ao final de tudo, George se fora sem uma palavra sequer de agradecimento ou desculpas. Era demais. Ela mal podia esperar at...at... No perguntei o que aconteceria ento. Tranquei-a no quarto e deixei que reparasse os estragos do dia, enquanto lia mais algumas anotaes de Dag Hammarskjld e Takeshi cantava, desafinado, junto s suas panelas e frigideiras. O jantar foi fcil. Comer, beber, ouvir msica, fazer um elogio a Takeshi sempre que ele metia a cabea pela porta. No conversamos muito, porque as palavras se interpunham no caminho da harmonia. Era mais simples sorrir, tocar as mos e olhar um para o outro, sorrir novamente, erguer o copo e beber o vinho seco, num contentamento fugaz. Depois, quando Takeshi se retirou, acomodados confortavelmente, como gatos em semi-escurido, perguntei: Vai passar a noite aqui? Vim preparada para isso...se no se importa. esse o problema, querida: no tem que ir para casa.
Eu o magoei, chri. Sinto muito. E eu perdi a cabea. Desculpe-me tambm. Paul, voc costuma pensar em Julie? Durante o dia, no. Mas, noite, algumas vezes tenho pesadelos, vejo-a cada no cho, no hospital, eu amarrado, sem conseguir chegar at ela. Por que pergunta? Na noite que passamos na casa de Francis Mendoza fizemos amor e depois voc adormeceu. Fiquei acordada durante muito tempo. Voc falou no sono, chamando o nome dela, no o meu. Fiquei assustada...Quando George me pediu para ficar no Salvador, exultei. Tive uma poro de fantasias infantis: ele iria acordar durante a noite, solitrio, e viria minha procura; eu o ouviria, inquieto e murmurando desesperado, depois iria para ele...Nas primeiras noites fiquei acordada durante horas, esperando, cheia de esperanas...Nada aconteceu. Foi por isso que discuti com voc. Na noite seguinte sonhei com ele, como voc deve ter sonhado com Julie. Ele estava l, mas eu no podia alcan-lo. De repente eu estava livre, mas ele j se
fora...Quando acordei, estava tudo acabado pata sempre. Vim aqui na noite seguinte, bem tarde, mas voc tinha sado. Deixei um bilhete debaixo de sua porta. Isso um absurdo, no acha? Ns sonhamos com outras pessoas e no conseguimos ficar afastados um do outro! Querida, j vivemos muitas experincias, eu mais do que voc. No podemos apag-las. Nem mesmo devemos tentar. precisamente isso o que nos torna ricos para ns mesmos e para as outras pessoas. Quem est interessado num livro cheio de pginas em branco? Todos temos amantes fantasmas. Todos temos sonhos dourados e tenebrosos tambm. Mas, nos sonhos, somos sombras a perseguir sombras. Quando acordamos... isso o que me preocupa, chri. O que acontece quando despertamos? Procuramos pelo rosto conhecido, pelo sorriso familiar. Tocamos o corpo conhecido, cheiramo-lo, experimentamo-lo, confortamo-nos um ao outro. O conhecimento indispensvel para o amor. Sem ele, no sabemos ao
certo nem se somos ns mesmos. Sonhamos com coisas que poderiam ter sido, mas voltamos agradecidos ao que e a quem . No nos podemos unir a fantasmas. No h substncia neles e absolutamente nenhum calor...Mas que diabo! Eu estou falando como um filsofo de algibeira! Como eu gostaria de que voc tivesse dito tudo isso muito tempo atrs! Eu no sabia antes...Ou talvez soubesse e fosse orgulhoso demais para dizer. Suzy, querida, no vamos esperar mais. Diga-me sim e vamos comear logo a ter uma vida prpria, juntos. Estamos desperdiando o tempo e a ns tambm. S mais uma pergunta, Paul. Prometo que ser a ltima. Podemos ficar junto de George at que tudo isso esteja terminado? Podemos e ficaremos. Ento, sim, meu amor...Sim! chri, to bom estar em casa! Foi estranho: no houve absolutamente o menor drama no momento. Foi simples, calmo, fcil, como ficar em terra, ao abrigo do vento, do mar
tumultuado. Ainda podamos ouvir a tempestade, ainda podamos ver as nuvens escuras amontoando-se no alto das colinas. Mas estvamos seguros em nosso refgio e capazes, finalmente, de dizer uma prece pelos outros pobres marinheiros. Pela manh fomos juntos para o Salvador e contamos a George Arlequim. Disse que se sentia feliz por ns dois e agradecido por Suzy esperar at que todos os seus negcios em Nova York estivessem acertados. Perguntou onde e quando nos amos casar. Dissemos-lhe que esperaramos at que todos estivssemos de volta a Genebra, a fim de podermos comemorar juntos o acontecimento. Ele demonstrou alguma dvida, pois ainda no fizera planos. Deveramos acertar tudo sem contar com ele. Se pudesse estar conosco, ficaria encantado, claro. Ao lhe perguntar quando estava pensando em fechar o acordo com Yanko, mostrou-se deliberadamente vago. Muito breve, dentro de uma semana, talvez mais. Ainda tinha assuntos a acertar com Milo Frohm. No
disse quais eram, tambm no perguntei. Mas decidi que eu tinha o direito de perguntar a Milo Frohm. Liguei para ele do telefone pblico do saguo. Disse que poderia dispor de uma hora inteira, antes do almoo, e estaria preparado, se no feliz, para encontrar-se comigo em meu apartamento. O prembulo foi mais constrangedor do que eu imaginava. Sr. Frohm, encontro-me numa situao muito difcil. Como j sabe, no tenho mais nenhuma posio legal em Arlequim et Cie. Minha posio pessoal tambm se alterou. Arlequim deixou claro que no deseja que eu me envolva ainda mais. Contudo, continuo seu amigo e estou preocupado com ele. Gostaria de falar-lhe, portanto, em particular. Tem alguma objeo? Nenhuma. Contanto que compreenda que tenho de reter certas informaes. Compreendo e aceito. Qual seu problema, Sr. Desmond? Se eu tentar defini-lo, certamente no o farei com muita clareza. Vamos comear pelo fato de que George perdeu a esposa e passou por uma experincia brutal com o filho. Fechou-se dentro de si mesmo, numa espcie
de inferno particular... E o senhor gostaria de tir-lo de l. Tenho receio pelo que ele possa fazer enquanto estiver dentro desse inferno. Continue, Sr. Desmond. Sei que est sendo discutido um acordo com Basil Yanko. Fui eu que fixei os termos iniciais para as negociaes. E...? Agora no vejo como poder dar certo. Temo que possa ser o preldio para uma tragdia pior do que qualquer uma a que j assistimos. Milo Frohm analisou lentamente a sugesto, mas no a rejeitou. Comeou uma explicao cautelosa e indireta: Vamos conversar sobre o acordo, que na verdade no um acordo e sim um negcio delicado...A idia no me agrada, mas estou sendo pressionado a torn-la realidade. Arlequim tambm no se sente muito feliz, mas est sob uma presso muito maior...Nenhum de ns tem a menor dvida de que Yanko est por trs de tudo o que aconteceu. Algumas coisas podemos
provar, outras no. E o que podemos provar exigir longas investigaes e provavelmente terminar em aes legais abortivas. Todas as coisas de que sabemos tm conseqncias polticas agudas...A justia a menor de nossas preocupaes, porque simplesmente impossvel dispens-la. No podemos trazer os mortos de volta. Portanto, o que tentamos alcanar uma iluso de que a justia foi feita, atravs de um compromisso mtuo, fora dos tribunais. Mas eu acho que isso est errado, pois desacredita a lei. Enfraquece tambm a ordem pblica, que, neste momento, repousa num aparato muito frgil de coao. Contudo, sou um homem que obedece a ordens. Investigo, relato, aconselho. No posso determinar uma ao. De fato, sou forado a curvar-me a opinies contrrias, que dizem que, se no se pode fazer com que uma acusao seja mantida, ento o melhor nem apresent-la, que melhor tolerar um criminoso nas altas esferas do que demonstrar, publicamente, que se impotente contra ele. A teoria de que melhor desgastar seu poder do que lan-lo num confronto direto...A conseqncia que isso completa o
divrcio entre a poltica e a moral e ao final se pagar um preo infernal por isso. Mas assim tambm no desvirtua a lei, Sr. Frohm? No bem assim, Sr. Desmond. Seria melhor dizer que se usa a lei de forma incorreta. Um exemplo disso a confisso de Pedro Galvez. um documento autntico. Leve-o aos tribunais e a defesa ir atacar sua credibilidade. Em nossa posio, tudo o que precisamos dizer que achamos que essa prova no resistir nos tribunais. No h nada de ilegal nisso. Arlequim e a Repblica so os autores da queixa. Eles tm liberdade de escolha das provas que desejarem apresentar, mesmo num caso de homicdio. No estamos dizendo que Yanko ficar imune a um julgamento, agora ou mais tarde. Estamos simplesmente negando o valor de nossas prprias provas... Contra um vultoso acordo financeiro com Yanko, o que vem a ser suborno. Seria mesmo, se fosse considerado como tal. Na realidade, est
sendo expresso como uma reparao voluntria dos danos... Causados por conspirao criminosa... ...por parte de empregados, os quais o Sr. Arlequim, generosamente, declina de processar. E isso o fim de tudo? Sabe perfeitamente que no, Sr. Desmond. Mas, para que seja vivel, tudo depende de uma combinao de atitudes polticas, presses do mercado e manobras legais. preciso uma conspirao de silncio para atingirmos os objetivos desejados. Ou seja: um crime de omisso. O que uma coisa muito difcil de provar. Tentei uma vez e nada consegui...No, Sr. Desmond, se o acordo for feito, ter que ser mantido. Mas no o ser. Ficar em aberto de ambos os lados. Yanko consegue uma suspenso da ameaa, mas no uma impunidade total. E George Arlequim recebe dinheiro por uma esposa morta. No acredito que nenhum dos dois possa ou v satisfazer-se com tal situao. Yanko est sob a mira de uma arma. Ele aceitar.
E George Arlequim aceitar tambm, mas... Mas o qu, Sr. Desmond? A partir desse ponto, eu estaria pisando em ovos, e ambos sabamos disso. Cuidadosamente, disse: Estou sugerindo, sonhando ou inventando o prximo passo: outro acordo, pelo qual Yanko seja eliminado e George Arlequim obtenha a impunidade. Novamente o pensamento era-lhe familiar. Foi mais direto: E isso o deixaria preocupado, Sr. Desmond? Destruiria o homem que meu amigo h vinte anos. Mas, segundo sua inveno, ele ficaria impune. No de si mesmo, Sr. Frohm...Agora estamos sozinhos e conversando em particular. Acha que esse sonho pode transformar-se em realidade? Pode. E, como agente da lei, concordaria com isso? No. Eu disse apenas que poderia acontecer.
Se Arlequim fosse seu amigo... Ele , Sr. Desmond. Tornamo-nos muito ligados. Tenho a maior admirao por ele. J tentou dissuadi-lo desse prximo passo? Apontei-lhe os riscos existentes. E...? Concordamos num princpio. Foi enunciado por um certo George Mason, delegado da Virgnia na elaborao da Constituio dos Estados Unidos: "Deve algum homem ficar acima da justia? Deve algum homem ficar de tal modo acima da justia que possa cometer a mais ampla injustia...?" George Arlequim falou em assassinato. No para mim disse Milo Frohm calmamente. E se lhe falou, como parece que aconteceu, foi em particular e num acesso de emoo... O senhor foi muito franco comigo e aceito esse fato como um elogio. Irei retribuir: transmitirei sua preocupao a George Arlequim. preciso muito cuidado, Sr. Frohm. Sou um homem cuidadoso, Sr. Desmond. Tenho que ser, pois ando numa corda bamba. Gosto de ser um instrumento de justia. Sou pago como
agente da lei, o que no absolutamente a mesma coisa... Ele deixou-me desconcertado com esse enigma, procurando em vo por alguma pista para resolv-lo. Em Nova York era meio-dia, na Califrnia deveriam ser nove horas da manh. Liguei para Francis Xavier Mendoza e deilhe a boa notcia de meu prximo casamento com Suzanne. Ele ficou na maior alegria. Estaria em Nova York no sbado e promoveria um jantar para celebrar nossos esponsais. Ri diante daquela palavra antiquada. Ele disse que talvez at fizesse uma cano a propsito, para ser cantada durante o jantar. Telefonaria para seu distribuidor em Nova York, a fim de que reservasse os vinhos imediatamente. O cardpio ele escolheria pessoalmente, com o maior prazer. ...E como estava o meu amigo? Ele vira todo o horror do seqestro. Rezara todas as noites para que houvesse uma soluo misericordiosa. Compreendia meus atuais temores. Talvez, quando viesse a Nova York, pudesse encontrar-se com George Arlequim. Achei que seria uma idia
proveitosa...J esgotara toda a minha estratgia e no restava graa nenhuma para emprestar ou gastar. Mendoza censurou-me, dizendo que eu era o mais abenoado dos homens. Deveria ficar perto de Arlequim e continuar a fazerlhe perguntas. Deveria guardar Suzanne como uma jia preciosa e no fazer absolutamente pergunta alguma...Ele estava certo de que, em breve, iramos partilhar aquela preciosa garrafa de vinho que dera de presente a Suzanne. Desejei ter um pouco que fosse de sua f. Estava plenamente convencido de que George Arlequim estava condenado ao inferno e autodestruio. Na quarta-feira daquela semana Basil Yanko emitiu uma declarao que foi publicada integralmente pela imprensa financeira. "... A oferta feita pela Creative Systems Incorporated para a compra de Arlequim et Cie. foi agora retirada. Recentes comentrios da imprensa e uma srie de acontecimentos trgicos, envolvendo o Sr. George Arlequim e sua famlia, criaram um clima desfavorvel para a proposta fuso, afetando os
interesses de ambas as partes. Investigaes realizadas, em diversos pases, revelaram graves falhas na segurana dos servios de computadores fornecidos pela Creative Systems a Arlequim et Cie. Essas falhas foram agora remediadas e a Creative Systems aceitou a responsabilidade pelas perdas e danos sofridos por seus estimados clientes. Um acordo para reparar essa responsabilidade, mediante um substancial pagamento em dinheiro, ser assinado ao final desta semana pelos senhores Basil Yanko e George Arlequim. O acordo encerrar todos os litgios pendentes entre as duas partes." A declarao era seguida por um cauteloso comentrio editorial. Elogiava o bom senso dos dois homens e a moderao com que haviam conduzido uma negociao difcil. Ressaltava a "franqueza com que os erros tinham sido reconhecidos e a presteza com que reclamaes legtimas tinham chegado a bom termo". Acentuava o valor da "cooperao entre os organismos encarregados do cumprimento das leis e todos aqueles
preocupados com a integridade da prtica dos negcios". Previa "uma alta imediata na cotao das aes da Creative Systems e um novo respeito por Arlequim et Cie. no campo dos investimentos internacionais". Nas entrelinhas, a declarao representava um profundo suspiro de alvio e uma splica para no se abalar ainda mais o mercado. Naquela noite fiz uma rpida visita ao clube e fui recebido como um irmo h muito desaparecido. Todo mundo tinha lido a declarao. A maioria reconheceu que era uma hbil pea de confisso. Ningum lamentava que terminasse assim, inocuamente, um episdio srdido. Era bom ver Basil Yanko humilhar-se um pouco para variar. Seria melhor ainda para quem tivesse comprado aes da Creative Systems no fechamento do mercado, pois teria um lucro substancial na tarde seguinte. Ningum queria falar em assassinatos, seqestros ou fraudes. Naqueles dias, havia uma opinio corrente de que a melhor coisa era baixar a cabea e guardar para si as opinies polticas. Arlequim sara-se muito bem. Aquele rapaz tinha muita classe! O
toque europeu, hem? Por que no o trazia para tomar alguns drinques no clube uma noite qualquer? Parti uma hora depois, banhado na glria refletida de um operador esperto que conseguira bater o mercado. Na volta para casa, passei pelo Salvador, a fim de apanhar Suzanne. Ela ainda estava trabalhando e George Arlequim queria falar comigo. Amanh ser o fim de tudo, Paul. Yanko j reservou o dinheiro no banco. Ele nos ser entregue assim que os documentos forem assinados, s cinco horas da tarde. Eu ficaria agradecido se voc pudesse vir. Karl Kruger e Herbert Bachmann tambm estaro presentes. E Basil Yanko? Claro que sim. Por que a festa? No uma festa. uma condio do acordo. Yanko concordou em emitir a declarao para a imprensa. Ns prometemos providenciar a documentao fotogrfica da reconciliao. Karl Kruger representa os europeus. Herbert representa Wall Street. Voc o mundo flutuante. J
contratei o fotgrafo. Sei que uma concesso lamentvel, mas era o mnimo que Yanko podia exigir e o mximo que eu podia tolerar. Est certo, estarei presente. Quanto Yanko est pagando? Somando tudo, vinte e cinco milhes de dlares. E quanto estamos lucrando? Depois de cobertos os prejuzos da venda de aes, ainda nos sobram cerca de dois milhes. Ento o assunto est encerrado e podemos todos ir para casa. Exatamente. Eu sigo na segunda-feira, de navio. Os pais de Julie tm medo de avio. Eu tambm tenho um pouco, depois de tudo o que aconteceu...Seu amigo Mendoza telefonoume, convidando-me para jantar com voc e Suzanne no sbado, comemorando o noivado. Eu lhe disse que ficaria imensamente feliz em poder comparecer. Eu prprio gostaria de poder oferecer o jantar, mas isso agora no possvel. E poder comparecer ao casamento em Genebra? Espero que sim.
George, Milo Frohm relatou-lhe a conversa que teve comigo? Contou, Paul. Agradeo sua preocupao, mas no h motivo para ela. Fico satisfeito em ouvi-lo dizer isso, George. Mas h outra coisa que me est perturbando. Aaron Bogdanovich disse... ...que ns lhe estamos devendo mais dinheiro. Isso j est providenciado. Tambm no tem que se preocupar. Eu no estava pensando no dinheiro, George. Ele me disse que vocs dois combinaram matar Basil Yanko. E combinamos mesmo, Paul. Fitei-o, olhos arregalados, a boca aberta. Ele sorriu, tolerantemente. No estava pensando que eu tinha esquecido, no mesmo? Mas George, isso loucura! No lhe trar Julie de volta, no ir mudar nada do que aconteceu. apenas uma insanidade sangrenta! mais do que isso, muito mais... Pelo amor de Deus, oua-me! Fui eu que o iniciei nessa estrada. Sou responsvel por tudo o que aconteceu. Viverei com esse conhecimento at
meu ltimo alento. Mas estou lhe dizendo, implorando para que compreenda que isso uma horrvel inutilidade: uma vida por uma vida por uma vida...E para qu? H vinte anos, George, que o admiro e o amo como a um irmo. Se minha vida pudesse trazer Julie de volta, eu a daria alegremente. Mas no pode nem cem ou um milho de vidas! O nico pagamento que lhe posso fazer... Eu sou o credor disse George Arlequim friamente. Eu estipulo os termos. Esteja aqui amanh, s cinco horas da tarde. Depois, todas as dvidas estaro liquidadas! Eu estava batido e ambos o sabamos. No podia acus-lo, porque no tinha testemunhas. No podia impedi-lo, porque seria sutil demais e Aaron Bogdanovich conhecia a fundo seu ofcio. No podia persuadi-lo, porque ele se afastara do sistema humano e ingressara na anarquia dos destruidores. Sua prpria vida ou a de um outro qualquer no tinha agora mais valor algum. Deixei-o de p no meio da sala, surdo e cego, destitudo do ltimo vestgio de piedade.
Naquela noite discuti durante uma hora com Suzanne. Eu no queria ter mais nada a ver com George Arlequim. Ela tambm no, tinha que pedir demisso imediatamente. No precisava de salrio ou penso, no precisava do dinheiro manchado de sangue dele. Arlequim estava alm de qualquer compaixo, alm de argumentos, alm da razo. Realizara sua prpria profecia, como sabia e prometera que aconteceria, desde o primeiro momento. Adorava a conspirao, estava feliz por se juntar s hostes dos assassinos. Pois que fosse! Suzanne enfrentou-me passo a passo. Est certo, ele jurara matar. Mas poderia voltar atrs. Podia ser impedido, at o ltimo momento. Era um homem complexo demais para ser repudiado como algum privado da razo. Ela trabalhara com ele durante muitos anos. verdade que ele podia conspirar, mas ser que meu julgamento no estava sendo rigoroso em demasia? O que quer que ele prprio acreditasse, ela no julgava que ele fosse capaz de cometer um assassinato. De qualquer forma e apesar de tudo, ela
trabalharia para ele at o ltimo dia do contrato. Eu tinha a obrigao de atender ao pagamento que ele me exigira, comparecendo reunio. Achava que ele estava tentando envolver-me? No, nunca dissera isso. Ento eu deveria comparecer. Se no fosse, ela nunca mais poderia confiar em qualquer coisa que eu prometesse. Disse que tinha feito tudo o que prometera. No, no fizera. Ambos havamos jurado acompanhar George at o ltimo passo do ltimo quilmetro. E esse ltimo passo ainda estava para ser dado...E assim por diante, at que todas as nossas palavras se esgotaram e ficamos sentados em silncio, teimosos e hostis, cada um esperando que o outro se rendesse. Como sempre, Suzanne deu a ltima palavra: Nada pode acontecer na reunio, Paul. A sala estar cheia de testemunhas. Voc ser uma delas. Quando a reunio terminar, pedir a Yanko para esperar em minha sala. Depois conversar em particular com George. Dir a ele que, a menos que lhe prometa solenemente que Yanko nada sofrer, ir alert-lo antes que saia do hotel. Voc se ver ento eximido
de toda e qualquer responsabilidade. E eu tambm. Isso lhe parece razovel? H uma falha em seu raciocnio: se George est preparado para matar, ento est tambm preparado para mentir. Nesse caso, se voc tiver a menor dvida, alertar a Yanko e dir a George que vai faz-lo. Se eu alguma vez for levado a julgamento, querida, espero t-la em minha defesa. Depois que me apanhar, chri, ter que me aturar para sempre. Se quer escapar, a ocasio esta. Fomos pacificamente para a cama. Mas eu acordei num momento qualquer entre a meia-noite e a madrugada, assaltado por um novo e aterrorizante pensamento. E se a reunio no se realizasse? Os documentos estavam prontos, a inteno era clara, pela declarao distribuda aos jornais, o dinheiro j estava reservado. Se Yanko no chegasse, se a morte o surpreendesse no caminho, o acordo podia e provavelmente seria assinado pelo novo presidente da Creative Systems. Nesse caso, o triunfo seria completo,
com Yanko morto e o dinheiro seguro no bolso de Arlequim. Aaron Bogdanovich e George Arlequim tinham ambos uma inclinao pelas ironias. E essa era tentadora demais para seus paladares sensveis. 10 Cheguei ao Salvador s dez para as cinco. Fiquei alguns momentos com Suzanne e depois fui juntar-me a Arlequim, que estava conferindo alguns documentos com seus advogados. Pontualmente s cinco horas, chegaram Karl Kruger e Herbert Bachmann. Logo atrs deles apareceu um jovem moreno e barbado, com duas mquinas fotogrficas penduradas no pescoo. Cinco minutos depois chegaram os advogados de Yanko e comearam a conferir os documentos com seus colegas. Passaram-se dez minutos e Yanko ainda no aparecera. George Arlequim fez um comentrio cido sobre os hbitos impontuais dos gnios. s cinco e quinze, ele ainda no tendo aparecido, seus advogados comearam a ficar embaraados. Um deles telefonou para o escritrio de Yanko, onde lhe informaram que ele j partira. Murmurou um pedido de desculpas e voltou a
mergulhar nos documentos. s cinco e vinte Arlequim estava andando de um lado para outro da sala, vermelho e irritado. Karl Kruger ansiava desesperadamente por um drinque. Herbert Bachmann e eu tentvamos conversar sobre assuntos superficiais, numa das janelas. s cinco e vinte e cinco Basil Yanko entrou na sala, improvisando uma desculpa sobre o trfego congestionado do centro da cidade. Arlequim retrucou: Nosso tempo valioso tambm, Sr. Yanko. Yanko mostrou-se imperturbvel. Esta visitinha est me custando vinte e cinco milhes de dlares. Agora, por favor, posso ver os documentos? Ele j os vira uma dezena de vezes antes, mas aprazia-lhe analis-los novamente, o que fez durante uns dez minutos, antes de anunciar que estava pronto para assin-los. George Arlequim insistiu ento para que os advogados de Yanko enunciassem verbalmente os principais itens do acordo. "As duas partes se comprometem a no estabelecer qualquer condio que seja uma infrao lei...
"Nos itens em que as duas partes se abstenham de ao legal no se inclui nenhuma omisso criminosa... "Nenhuma das partes fica imune ou garante imunidade outra de ao legal por parte de terceiros... "A responsabilidade admitida pela Creative Systems Incorporated fica estritamente limitada aos termos do presente acordo. Os prejuzos concordados e ora pagos so aceitos como tendo ressarcimento total... "Arlequim et Cie. e o Sr. George Arlequim pessoalmente concordam em no formular acusaes de fraude ou conspirao para fraudar contra qualquer funcionrio da Creative Systems Incorporated. As acusaes j apresentadas sero retiradas... "As investigaes determinadas por Arlequim et Cie. e realizadas sob sua conta sero imediatamente encerradas... "As partes concordam em no divulgar, sob qualquer forma, comentrios, especulativos ou no, que possam ser considerados prejudiciais ou controversos pela outra..." Havia muitos outros itens. Depois da leitura interminvel, os dois
homens finalmente sentaram-se mesa, tendo seus advogados ao lado. O fotgrafo indagou se poderiam mudar de posio. Yanko recusou, irritado. No era a assinatura do acordo que era importante e sim o grupo, a ser fotografado depois: cinco respeitveis homens de negcios, com drinques nas mos, parecendo felizes por seu dinheiro. A assinatura resolvia um conflito. Os drinques e os sorrisos diziam tudo o que o mercado precisava saber que existia agora: confiana, segurana, amor fraternal, respeito mtuo. Arlequim sacudiu os ombros, concordando. Karl Kruger observou que era uma maneira muito elegante de dispor de tanto Geld. Herbert Bachmann comentou, gravemente, que o Geld era muito menos importante que a boa vontade. Quando a desprezvel cerimnia acabou, os advogados de Yanko entregaram um cheque visado no valor de vinte e cinco milhes de dlares. Arlequim dobrou-o e meteu-o na carteira, com a mesma indiferena que teria para com um carto de estacionamento. O que levou Yanko a fazer o comentrio azedo de que era melhor no perd-lo, pois no receberia outro.
Os advogados arrumaram suas pastas e saram juntos. Arlequim acompanhou-os at o elevador e voltou com um de seus agentes de segurana suos, que iria recolher os pedidos de drinques. Todos ns pedimos usque, exceo de Yanko, irritante como sempre, que exigiu um suco de tomate, com uma pitada de Tabasco, uma gota de limo, nenhum sal e um raminho de hortel. O suo saiu da sala. O fotgrafo comeou a se movimentar de um lado para outro, verificando a luz e os diversos ngulos. Houve um intervalo constrangedor e logo a bab apareceu com o pequeno Paul, que acabara de tomar banho e estava pronto para jantar. Arlequim pegou o menino nos braos, beijou-o, brincou um pouco e depois levou-o para dizer boa-noite a todos os presentes. Quando chegou a vez de Basil Yanko, ele perguntou: Tem algum filho, Sr. Yanko? No, Sr. Arlequim. Nunca fui to afortunado. uma linda criana. Ele bem parecido com a me. Nunca tive o prazer de conhecer Madame Arlequim.
E meu filho tambm no o ter, Sr. Yanko...Pronto, bab, pode lev-lo. Boa noite, querido. Depois vou at seu quarto para contar uma histria. Karl Kruger resmungou, infeliz. Herbert Bachmann assoou o nariz ruidosamente. Virei-me para ocultar o dio expresso em meus olhos. Arlequim virou-se para o fotgrafo. Pode comear assim que os drinques forem servidos. De quanto tempo vai precisar? Dez minutos. Basta que o senhor e seus amigos ignorem minha presena e ajam normalmente. Eu ficarei batendo as fotos. Poucos momentos depois que o agente suo entrou com uma bandeja de drinques e uns pratos de canaps, Arlequim ordenou-lhe: No recebo telefonemas nem visitantes, at terminarmos aqui. Herbert Bachmann levantou seu copo num brinde: Ao fim de uma dissenso, senhores! Arlequim fez a segunda saudao. Meus agradecimentos, Karl, por seus esforos.
Eu tambm beberei a isso disse Basil Yanko. E a voc tambm, Herbert. Obrigado por terem vindo aqui hoje. Eu vim por George disse Herbert Bachmann secamente. Alm disso, porque tenho tambm algumas obrigaes para com meus colegas do mercado. Basil Yanko mostrou-se tolerante, mas magoado. Meu caro Herbert, sou o nico homem do mundo a quem voc no pode fazer cara feia. A minha ser sempre mais feia que a sua. Sou feio demais, desde criana. Mas j me acostumei a isso. Quanto ao resto, sei o que sou e o que fao. Quantos de seus respeitveis colegas podem dizer o mesmo? Pensei disse George Arlequim mansamente que deveramos parecer felizes. Basil Yanko fitou-o com desprezo. Receio que eu seja o pesadelo de sua festa, Sr. Arlequim. Se me der licena, eu me retirarei. O fotgrafo protestou: Por favor, senhor, s mais algumas chapas!
Dispensarei alegremente as fotografias disse George Arlequim. A idia foi sua, no minha. Basil Yanko tornou a levantar o copo. Esperarei...Diga-me, Sr. Desmond, quanto tempo ainda pretende demorar-se em Nova York? Talvez mais uma semana. No mais do que isso. Ouvi dizer que est para se casar. verdade. Voc um homem de sorte, Paul comentou Herbert Bachmann. Espero que saiba disso. Eu sei, Herbert. Quando o conheci disse Karl Kruger , ele no tinha juzo suficiente sequer para sair da chuva. E agora est se retirando de Arlequim et Cie. disse Basil Yanko, quase cordialmente. Gostaria de lembrarlhe que minha oferta ainda est de p. Eu a recuso, Sr. Yanko. George Arlequim fez um comentrio spero. Creio que est sendo sensato, Paul. um emprego perigoso. Yanko ficou vermelho de raiva. Suas palavras so controversas, Sr. Arlequim. Devo recordar-lhe que
constituem uma infrao ao acordo que acabamos de assinar? No ouvi nada disse Karl Kruger. Voc ouviu, Herbert? No, Karl. Na verdade, minha audio anda meio deficiente. Basil Yanko esvaziou o resto do suco de tomate de um s gole e ps o copo em cima de uma mesinha. Estou muito velho para brincadeiras de crianas, senhores. Devo ir agora. Se se mexer disse o fotgrafo jovialmente , um homem morto. Ele estava apontando a maior das duas mquinas fotogrficas para a cabea de Yanko. Esta uma arma letal. Dispara seis balas de cianureto. Que diabo isso significa? indagou-lhe George Arlequim. Por favor! O fotgrafo acenou-lhe a mo, impaciente. Sentem-se todos mesa e ponham as mos em cima dela. Um andar cheio de agentes de segurana e isso tinha que acontecer murmurou Yanko, irritado. O que voc est querendo? Dinheiro?
Sente-se! Sentamo-nos num semicrculo ao redor da mesa, com as mos sobre a superfcie envernizada. O fotgrafo sentouse nossa frente, a mquina sobre a mesa, seu dedo sempre no disparador. Ele explicou descaradamente: Se algum se mexer ou gritar, leva imediatamente um tiro. Se formos interrompidos, Sr. Arlequim, dispensar o visitante. Estamos em conferncia e no podemos ser interrompidos. Eu j dei essa ordem. Talvez tenha que repeti-la. E agora querem saber quem sou eu? O Senhor Ningum. Querem saber o que estou fazendo aqui? Ele tirou do bolso um papel datilografado e dobrado, juntamente com uma caneta, colocando-os sobre a mesa, sua frente. Estou aqui para esperar, como todos esto tambm...Sr. Yanko, acaba de beber um simples copo de suco de tomate. Lamento inform-lo de que estava envenenado. Houve um momento em que todos ficaram paralisados de surpresa, seguida por um suspiro geral de horror.
Somente Basil Yanko ficou indiferente, uma expresso de desprezo no rosto. No acredito em voc. No estou pedindo que acredite disse o fotgrafo calmamente. Estou simplesmente enunciando um fato. Muito em breve ir sentir-se dormente e sonolento. Depois perder todo o controle muscular. Vai ento dormir e em seguida morrer. No vai demorar muito. Mais quinze minutos e estar inconsciente. No pode fazer isso! disse George Arlequim. Voc no pode ficar sentado a, vendo um homem morrer! Correo, Sr. Arlequim: ns todos vamos ficar vendo-o morrer! No ficaremos! Karl Kruger ergueu o punho imenso. O fotgrafo apontou-lhe a mquina. O punho baixou. Mas por que Yanko? Por que no um de ns? Por isto... O fotgrafo levantou o papel dobrado que estava sobre a mesa. Isto aqui a lista dos mortos. H seis nomes nela, com um relato de
como morreu cada um. Lerei os nomes: Sra. Basil Yanko, morta na exploso de uma lancha; Srta. Ella Deane, atropelada por um carro; Srta. Valerie Hallstrom, morta por um tiro; Sr. Frank Lemmitz, tambm alvejado; Srta. Audrey Levy, seqestrada em Londres, presumivelmente morta; Sra. George Arlequim, alvejada...Todas essas mortes foram planejadas e financiadas por Basil Yanko. Basil Yanko ficou rgido na cadeira. Soltou uma risada estridente e sem humor, sacudindo a cabea. Oh, no! O mais velho dos truques! Organizou tudo isso, Sr. Arlequim? Ou ter sido o Sr. Desmond? Nunca antes vi esse homem declarou George Arlequim. Nunca troquei uma palavra sequer com ele, at esta noite. verdade, Sr. Yanko. Valerie Hallstrom era uma colega minha. Audrey Levy, incumbida de vigiar Frank Lemmitz em Londres, tambm...Faz uma poltica implacvel, Sr. Yanko. Ns tambm. No pode provar absolutamente nada e sabe disso!
Somente a polcia precisa provar as coisas. Ns no. Como se sente? Um pouco dormente? Isto normal...No, Sr. Yanko! Se tentar levantar-se, eu atirarei e isso ser bastante doloroso...At agora est sendo mais privilegiado do que qualquer uma das pessoas que matou. Est morrendo, mas est morrendo serenamente, sem dor, sem tumulto...Est suando, Sr. Yanko. Isso significa que est procurando resistir. No vai adiantar coisa alguma. Relaxe. Que diabo est querendo de mim? Nada. Foi interessante o que aconteceu com sua esposa. Bernie Koonig contou-nos tudo. O senhor estava em Nova York. Ele derramou gasolina no arranque da lancha. Quando ela apertou o boto...BUM! Ficamos admirados de no t-lo liquidado, como fez com Frank Lemmitz. Provavelmente era mais frouxo naquele tempo...ou menos experiente. Como se sente? Flexione os dedos. As reaes so um pouco lentas. Est resistindo muito bem... Ele empurrou o papel e a caneta por cima da mesa.
Deveria ler isso, enquanto ainda pode focalizar...O veneno que usamos bastante curioso, senhores. Poderamos extra-lo a qualquer momento dos prximos quinze minutos e ele se restabeleceria completamente. Se no o fizermos, ele est liquidado. Como est vendo, Sr. Yanko, o documento em forma de confisso. No gostaria de assin-lo? Prefiro v-lo no inferno! Isso no acontecer, Sr. Yanko. Ns que ficaremos aqui a assistir sua ida para l. Pelo amor de Deus, homem! disse Herbert Bach-mann, a voz trmula. Isso tortura! Eu sei, senhor. O fotgrafo estava sendo o mais razovel possvel. Mas o Sr. Yanko impermevel ao sofrimento. Madame Arlequim morreu com uma bala no ventre. O filho dela foi pendurado para fora de uma janela do quinto andar...a mesma criana que viram aqui esta noite. Audrey Levy provavelmente foi torturada antes de morrer...Contudo, se o Sr. Yanko deseja acabar com o sofrimento para os senhores e para si mesmo, precisa
apenas assinar a confisso. Eu partirei ento e ainda tero tempo de chamarlhe um mdico. Yanko ainda tinha foras para lutar. A voz estava en-grolada, mas a zombaria era objetiva: Eu no lhe disse que era uma armadilha? E se no assinar, Sr. Yanko, a armadilha ser fechada. Cair por um buraco sem fundo para lugar nenhum e no me importo qual seja a direo que tome. Sua voz est ficando engrolada. Provavelmente est comeando tambm a perder a sensibilidade nas pontas dos dedos. Assine, homem! disse Herbert Bachmann, j desesperado. sua nica chance! sua vida disse Karl Kruger. Deixe-o fazer o que lhe aprouver com o documento. Sem a menor malcia, George Arlequim comentou: O que quer que eu diga, no me acreditar. Houve um longo momento de silncio, enquanto observvamos Basil Yanko tentar controlar os msculos frouxos, segurar a caneta e assinar seu nome ao p da pgina.
Devolva-me o documento, por favor pediu o fotgrafo. Ele dobrou-o cuidadosamente e guardou-o no bolso. Depois, disse: Sr. Yanko, poder alegar que assinou essa confisso sob coao. Portanto, no ainda o suficiente para salvar-lhe a vida. Em torno desta mesa esto quatro testemunhas. Excluo a mim mesmo, porque irei desaparecer assim como apareci. Responda a uma pergunta com uma nica palavra. Planejou as mortes dessas pessoas? Sim ou no? Mas voc disse...prometeu... Desta vez, manterei a promessa. Sim ou no? Sim. Obrigado, Sr. Yanko...No! No se mexam, senhores! Ele estar morto dentro de cinco minutos! Mas voc prometeu... Eu no podia agentar mais. Empurrei minha cadeira para trs, levantei-me e caminhei na direo de Yanko. Ouvi o clique do disparador da mquina fotogrfica sendo puxado para trs e a voz do fotgrafo, cortante e fria: Sente-se, Sr. Desmond.
A cmara estava apontada para meu peito. Voltei lentamente para a cadeira e sentei-me. Basil Yanko estava afundando na cadeira, de lngua para fora, murmurando como um homem embriagado. Ficamos observando, num silncio impotente, at que ele desmaiou, caindo de cara no tampo da mesa. Pelo amor de Deus! gritou Herbert Bachmann. J tem o que queria! Agora deixe-nos chamar um mdico! O fotgrafo sorriu e sacudiu a cabea. Ele no precisa de um mdico. Basta que durma e tudo passar. Ele tomou apenas uma variante moderna do velho Mickey Finn...um narctico misturado na bebida para dormir. A propsito, senhores, melhor darem uma olhada nisso, caso sejam chamados a testemunhar. Ele abriu a mquina fotogrfica e entregou-nos. Como podem ver, uma cmara fotogrfica comum. Nada tem de letal. Podem querer diz-lo a Yanko, quando ele acordar. Herbert Bachmann olhou de um para outro, chocado e furioso. Quem foi que organizou esse...esse horror?
Eu disse o fotgrafo. No nada agradvel de se assistir, no acha? Mas um mtodo bastante normal, se bem que um pouco tosco, de interrogatrio. Ensinam-no nas escolas de polcia e nas foras armadas. Paga por isso, Sr. Bachmann. E tambm subvenciona as pessoas que o ensinam a seus aliados, alguns dos quais nem precisam de lies. Ele tirou a confisso assinada do bolso e entregou-a a George Arlequim. Isto deve ir para as mos de Milo Frohm. Obrigado. Eu a entregarei. Diga a Aaron que entrarei em contato com ele. Quem Aaron? indagou Herbert Bachmann. Ningum de quem jamais tenha ouvido falar, senhor disse o fotgrafo. Shalom! Karl Kruger pegou a mo flcida de Yanko, sentiu o pulso e depois tornou a deix-la cair em cima da mesa, com um baque surdo. O que vo fazer com ele? Meus rapazes iro lev-lo l para baixo. O motorista dele o levar
para casa e o por na cama. Gostaria de poder estar presente quando ele acordasse, a fim de conversar com ele. Todo mundo estava fazendo perguntas, mas eu senti que era meu o direito de fazer a ltima: J tem o dinheiro dele, George. Tem uma confisso, que no resistir como prova nos tribunais, mas ir desacredit-lo para sempre. O que lhe resta para dizer a ele? Ele morreu esta noite disse George Arlequim sombriamente. Sempre tive curiosidade de saber o que Lzaro deve ter sentido ao sair de seu tmulo. Pois eu posso dizer-lhe o que ele sentiu, George. Olhou o que as pessoas estavam fazendo umas s outras e implorou para voltar. Foi um grito de desespero, uma expresso de extrema desolao. Muito tempo depois de Herbert e Karl terem partido e de Yanko ter sido removido, as palavras ainda pairavam na sala como a blasfmia final, para a qual no h perdo. O crculo de minha prpria condenao estava completo. Eu insistira na violncia. Eu cooperara para a violncia. Eu vira a vida sendo destruda. E
terminara por negar a tudo, como uma obscenidade. Quando olhei para o relgio, esperava descobrir que o tempo tinha parado. Fiquei chocado ao verificar que ainda eram sete horas da noite, que Suzanne estava batendo mquina, que George Arlequim estava contando histrias de fadas a uma criana de olhos arregalados, que as pessoas estavam voltando para casa para jantar. Eu no podia suportar a espera. Sa da sala, passei pelos agentes de segurana e atravessei a cidade s cegas, para ir juntarme a outras almas penadas no bar de Gully Gordon. Podia ter-se passado uma hora, talvez duas, era impossvel dizer, porque o bar se encontrava quase vazio, Gully estava jantando fora e eu me achava isolado a um canto, mrbido, quando George Arlequim entrou, acompanhado por Suzanne. Sentaram-se, um de cada lado, de forma que eu no podia escapar. Suzanne segurou minha mo frouxa e disse: George quer falar com voc, chri. O que h para dizer? Est tudo acabado. Vamos tratar de esquecer.
Precisamos tambm de perdo, chri. No o merecemos, mulher. Somos to assassinos quanto Basil Yanko...No voc, mas George e eu. No verdade, George? Quanto a mim, sim. Mas no voc, Paul. Voc tentou impedir-me, mas no poderia consegui-lo. E continuou tentando at o ltimo momento. O que voc agora, George, um padre confessor? No. Estou tentando ser um penitente. No to fcil como parece. E esperava que fosse fcil? Possvel, pelo menos. George, esgotei todas as minhas absolvies e indulgncias. No as tenho nem mesmo para mim. Pois eu tenho disse Suzanne gravemente. Amo a ambos...Este o ltimo passo, Paul. D-o por mim. E quanto mais voc vai querer? Tudo, Paul. isso o que significa o amor. Deus...! George Arlequim ficou sentado um longo tempo a olhar para o copo. Depois, lentamente, penosamente, comeou a fazer sua confisso.
Eu queria v-lo morto...Queria v-lo despojado e trmulo, esperando pela execuo. Falei com Aaron Bogdanovich. Ele ofereceu-me uma dzia de alternativas. Nunca tinha imaginado quantas maneiras simples e engenhosas existiam para se matar um homem: uma baforada de fumaa no rosto enquanto ele desce a escada, a picada de uma caneta envenenada, uma bomba no carro, uma carta que lhe explodir nas mos, uma bala de um atirador de tocaia, uma cultura de vrus no drinque...senti prazer em examinlas, em imaginar as seqncias, como num jogo de xadrez. Esse o smbolo, claro: o jogo de xadrez. As peas so inanimadas, simples pedaos de madeira, metal ou marfim. Possuem nomes, mas no tm vida, nem alma...Pode-se analisar seu destino como um exerccio intelectual. Os argumentos apresentados tinham muito sentido, e Aaron Bogdanovich esmiuou cada um. A lei no pode reparar a injustia; portanto, tem-se que trabalhar fora da lei. O sistema poltico est alm de qualquer reforma; portanto, preciso destru-lo antes de se poder construir outro melhor. No se pode alcanar o ideal;
portanto, preciso contentar-se com o conveniente. O torturador triunfante; portanto, preciso elimin-lo. O assaltante ri sobre seus despojos; portanto, deve-se sufoc-lo com o ouro que roubou. A democracia uma fraude, porque o povo logrado em seu voto e enganado por polticas que no compreende. Todos os homens so traidores e todas as mulheres so prostitutas, contanto que se chegue ao preo certo...No h respostas para esses argumentos, exceto um ato de f, que eu no mais podia fazer... estranho! Voc, Suzy, e voc, Paul, fizeramno por mim. Vocs acreditaram que eu era melhor do que eu desejava ser. No puderam convencer-me, pois h muito estavam na minha intimidade. Pude engan-los e enganar a mim mesmo, construir iluses...Mas no pude enganar a Aaron Bogdanovich e ele no permitiria que eu me enganasse a mim mesmo...Chegou o dia em que a deciso tinha que ser tomada. Fui v-lo na loja de flores. Ele estava brincando com um gatinho desgarrado, que passava pela rua e resolvera entrar na loja. Pediu-me que declarasse exatamente o que queria. Eu disse-lhe: meu dinheiro
de volta e a vida de Yanko pela vida de Julie. Ele no contestou a deciso. Simplesmente quebrou o pescoo do gatinho e colocou o corpo sobre a mesa, na minha frente. Depois disse: " isto o que est querendo fazer, Sr. Arlequim. capaz?..." Eu soube que no era. Mal podia tocar no corpo... Mas pde assistir a todas as agonias de um homem morrendo... Pude. E a vergonha maior. Pude e o fiz, e pensei estar vendo a justia ser feita. Ainda acredita nisso? No. Vi o terror sendo esmagado pelo terror...Bem, isso tudo! Nada mudou. Mas pensei que voc tinha o direito de saber, Paul. Ele tentou levantar-se, mas estava preso no reservado apinhado. Segurei-lhe o brao e o retive. Fique, George...Peo desculpas. Eu tambm no me sinto orgulhoso. Bogdanovich julgou-me tambm. Disse que eu queria a respeitabilidade sem virtude, a posse sem a ameaa, o prazer sem pagamento...Um cidado comum, conivente com todos os horrores do
mundo, contanto que isso no lhe perturbe o descanso, nem o' jantar. No formamos uma bela dupla? Pois tenho algo a dizer para vocs dois disse Suzanne gravemente. Tentam prescindir da lei e, no entanto, ficam sentados aqui, humilhados pelo julgamento de um assassino. Acho que esto precisando de uma mudana de companhia... E paramos nesse comentrio amargo, porque Gully Gordon voltou, deu-nos as boas-vindas e indagou qual a msica que desejaramos ouvir. As prximas quarenta e oito horas foram um limbo de noacontecimentos. Suzanne estava ocupada, pondo em ordem os negcios de Arlequim antes de ele embarcar para a Europa. Eu vagueava pelo apartamento esbarrando a todo momento em Takeshi, pegando livros e largando-os depois de ler apenas uma pgina, atordoando-me com planos e projetos para um futuro que era agora to vago quanto o tempo que fizera no ano anterior. Lia os jornais e admirava-me por no encontrar nenhuma notcia sobre a priso de Yanko. Tocava msica e no ouvia um nico acorde dela. Eu era como o
rapaz do conto de fadas, que perdera a alma e no podia viver feliz enquanto no a encontrasse. Eu perdera mais do que uma sombra. Perdera pequena parte de mim mesmo que permanecera intacta ao longo de muitos anos de andanas e de batalhas inconclusas. Perdera um amigo, um dos poucos a que eu me entregara com uma confiana total. Encontrara uma mulher para amar, mas liquidara o respeito, sem o qual o amor no pode durar. E agora eu tinha que enfrentar o ordlio de um jantar oferecido por um homem a quem no poderia magoar por nada neste mundo, para comemorar uma promessa que eu duvidava de que algum dia viesse a se concretizar. Por trs vezes peguei o telefone para cancelar o jantar. Mas em todas elas perdi a coragem e outro fragmento do respeito por mim mesmo. Suzanne mostrava-se amorosa e solcita, mas, mesmo quando respondia, eu sentia que estava representando o falso apaixonado, de mos e corao vazios, receoso demais para confess-lo. No era apenas meu mundo particular que desmoronara. O mundo l
fora era tambm hostil. Nunca mais poderia enfrent-lo inocente e desarmado. Para sempre eu teria que carregar os grilhes do cptico, a adaga e as pistolas do viajante cauteloso. Deveria morder cada moeda antes de aceitla, obrigar cada homem a seu contrato com uma ameaa, no confiar em mulher nenhuma e olhar duas vezes para o espelho para ter certeza de que ainda era eu mesmo. E foi nesse estado de esprito adequado para um homem de minha idade, mas imprprio para algum que ia comparecer sua festa de esponsais que parti com Suzanne para o jantar em companhia de Francis Xavier Mendoza e George Arlequim. Nossa reunio foi num desses velhos cantos de Nova York ainda preservados da investida dos brbaros um poro da First Avenue, com prateleiras do cho ao teto repletas de vinhos selecionados, com uma mesa grande de refeies, servido por um nico chef, dois garons e um encarregado dos vinhos, todos dedicados proposio de que o comer e beber um rito sagrado, o primeiro e o ltimo de nossa peregrinao mortal. Arlequim j
estava presente, ouvindo Mendoza, reverente como um discpulo com seu guru. Mendoza recebeu-nos como mrtires salvos dos lees. Beijou Suzanne nas duas faces, apertou-me a mo efusivamente, olhou-me de cima a baixo e anunciou: Nada mau! Pelo menos voc sobreviveu! Arlequim j me contou a histria. Admiro-me de que ambos ainda estejam inteiros. Agora deixe-me mostrar-lhes o que preparamos ...Para comear, um canap de roquefort e castanhas, acompanhado de meu Palomino e por uma conversa tranqila. Suzanne, querida, eu sei que eles conseguiram lev-la lona! J abriu minha garrafa? Ainda no, Francis. Eles ainda no esto preparados para ela. Ay de mi! E eu que pensava que eles fossem homens civilizados. Mas no se preocupe. Eu e voc iremos domlos. George, eu sei que Paul um visigodo, mas esperava mais de voc. Eu sou um tolo disse George Arlequim. E leva tempo para desaprender.
Tempo e vinho: temos as duas coisas em quantidade. Agora, vou falar sobre a entrada: uma mousse de salmo com um Pinot, muito seco, uma safra da qual muito me orgulho...George, voc nunca pensou que o islamismo uma f muito sbia? Suas promessas so as que compreendemos, guas cristalinas, flores, vinho e mulheres generosas...Ns, cristos, prometemos harpas, que ningum pode tocar, e uma viso de beatitude, que ningum consegue compreender. Mas ansiamos por isso, Francis. O conhecimento mais simples, o prazer mais simples... Ah! Agora voc est compreendendo, George! Simplicidade... harmonia. Esse o segredo que levamos a vida inteira para aprender. E sempre deixamos de compreender. Suzanne, por que as mulheres so mais simples que os homens? So mesmo, Francis? Em toda parte e em todos os tempos. Ns, homens, somos estpidos e complicados. Acordamos no seio de uma mulher. Morremos, se temos sorte, num abrao semelhante. Caminhamos um milho de quilmetros
para voltar ao ponto de partida. Paul, o que voc me diz? um excelente Palomino, Francis. timo. No h melhor, at voc conseguir o Jerez de Ia Frontera e at l difcil encontr-lo...Em seguida, meus amigos, teremos um filet de beuf en crote com um sauce Prgueux, acompanhado pelo meu Cabernet de 65...um ano maravilhoso, sem geadas, a chuva certa, o sonho de um fabricante de vinhos! Vamos beb-lo agora, oito anos depois, um tempo certo para todos ns. Meus amigos, no importa o que tenha acontecido, no importa o que possa acontecer amanh, somos felizes felizes por sabermos, felizes por apreciarmos, felizes por podermos agradecer. Gostariam de se juntar a mim numa ao de graas? Levantamo-nos, demo-nos as mos, baixamos as cabeas, enquanto ele dizia: Ns comemos enquanto outros esto famintos. Ns rimos enquanto outros esto tristes. Por tudo o que temos, ns somos gratos. Permita-nos sempre lembrar o que os outros no tm, para que procuremos
reparar isso sempre que nos for possvel. Em nome do Pai, do Filho e do Esprito Santo. Amm! Ele indicou-nos a disposio certa que queria que tivssemos mesa: Suzanne sua direita, Arlequim esquerda, eu sua frente. Depois disse: Nunca sei qual a ao de graas que devo dizer. Jamais entendi por que o Todo-Poderoso to desigual em suas ddivas. Talvez Ele seja cego disse eu, irreverentemente. Ou talvez ns que sejamos disse Suzanne. Ou talvez estejamos usando as medidas erradas disse George Arlequim. o mais provvel disse Mendoza. Bom apetite, meus amigos! Comemos, bebemos, falamos de frivolidades, felizes por um momento, na presena de um homem bom, que era como a sombra de uma imensa rvore numa terra crestada. Contamos piadas tolas, rimos como h muito nos esquecramos de rir. E ento, cedo demais para mim, chegou o momento dos brindes, os quais, declarou Francis Xavier Mendoza, deviam ser feitos no
com o vinho de um pas novo e sim com o vinho de um pas antigo, um Porto velho, suave, a cor dos melhores rubis. ramos um pequeno grupo, mas ele se levantou para a cerimnia. Para George Arlequim, o poliglota, ele falou primeiro em espanhol, depois em francs para Suzanne e finalmente para mim em ingls: Caros amigos! Este um momento de promessa, de compromisso, o compromisso assumido entre Suzanne e Paul, que aprenderam tarde a amarse um ao outro, entre todos ns que tanto precisamos uns dos outros. Se eu no pudesse partilhar este vinho com vocs, seria o homem mais solitrio do mundo e o vinho morreria, sem ser provado, dentro de sua garrafa. Se no puderem partilhar uns com os outros a dor que sofreram e o perdo de que todos necessitam, ento tambm vivero solitrios e o vinho da vida lhes ser para sempre amargo. Eu os abenoei quando chegaram. Peo que me abenoem quando se forem, amigos, juntos... Que assim seja disse Suzanne. Eu no tinha palavras para dizer. George Arlequim ficou sentado em
silncio por um longo tempo e ento se levantou lentamente. Ele tambm falou primeiro em espanhol e em seguida em ingls: Francis, fomos honrados sua mesa e abenoados com sua companhia. Ns lhe agradecemos, todos ns. Agradeo a meus amigos, que ficaram comigo numa hora sombria e partilharam minha dor, viram-me praticar o mal sob o sol e mesmo assim ainda continuaram a meu lado e me perdoaram. Com sua permisso, gostaria de oferecer um presente a Paul e a Suzanne. Ofereo-o com o lema de meu ancestral que era um bufo: "Se vocs rirem, eu comerei. Se vocs chorarem, que Deus nos ajude a todos!" Tirou um envelope do bolso e entregou-mo, por cima da mesa. Segureio, avaliei-o, rezei para que no fosse o que parecia: um ttulo de propriedade, uma dotao financeira. Se ele tentasse comprar-me agora, eu o odiaria por toda a eternidade. Abra-o, Paul! Francis Xavier Mendoza entregou-me a faca de queijo. Cortei o envelope e entreguei-o a Suzanne. Ela olhou-o por um momento e ento
despejou o contedo em seu prato. Era um segundo envelope, cheio de pedaos de papel, rasgados at parecerem quase confete. Olhamos para Arlequim. E pela primeira vez, num milnio, reencontramos seu sorriso zombeteiro. Algum tinha que formular a pergunta. E esse algum tinha que ser Paul Desmond. O que isso, George? No capaz de adivinhar? Eu adivinho disse Suzanne. Disse ao leitor, no comeo, que era um pateta rematado. Esquecera por completo que George Arlequim era um palhao e ilusionista. No entendi a piada seno no momento em que Suzanne empilhou os pedaos de papel num prato e Francis Xavier Mendoza despejou em cima seu melhor conhaque, ateando fogo em seguida e transformando em cinzas a confisso de Basil Yanko. O AUTOR E SUA OBRA Morris West um profeta? A leitura de alguns de seus ttulos mais famosos faz crer que, se no o , certamente possui certos poderes premonitrios. Em 1963, publicou o romance "As sandlias do pescador"
lanado pelo Crculo do Livro , onde falava de um arcebispo de pas socialista que se tornava cardeal e depois papa. Anos mais tarde, Joo Paulo II tornava realidade essa trama ficcional. Em 1965, escreveu "O embaixador", onde descrevia o crescente envolvimento dos Estados Unidos no Vietnam e os fatos comprovaram mais uma vez o que West previra. Em "A Torre de Babel", referia-se a uma guerra rabeisraelense, antes que ela tivesse acontecido. O prprio autor se curva evidncia: " muito perigoso ser classificado de profeta. Falo com conhecimento de causa. H muito, apreensivo, venho usando o rtulo, e eu e minha famlia temos nos exposto a riscos por causa disso. No estou assumindo uma atitude. Estou s anunciando um fato, que provoca indagaes das mais complexas". Mas para ele o poder da premonio parte da intuio e se junta a outros fatores, como o passado tribal e pessoal acumulado no subconsciente, at sua formulao final: "Acostumei-me a responder s perguntas a esse respeito (sobre a
profecia), descrevendo-a como simples extenso do processo intuitivo. Descoberta uma parte do mosaico, pode-se projetar o resto com relativa preciso, pois o nmero de opes limitado. Mas sempre tive certeza de que no caso h algo mais do que lgica". Profeta ou no, a verdade que esse australiano de Melbourne, onde nasceu em 26 de abril de 1916, tem construdo, a exemplo de George Bernanos e Graham Greene, seus melhores romances ao redor da temtica catlica, dos conflitos ntimos de conscincia e da problemtica sacerdotal. Preocupaes de quem passou doze anos de sua vida num convento, procurando abraar o ideal religioso, Isso no aconteceu ele afirmaria que o tempo passado no convento foi o "suficiente para conhecer alguns dos mtodos usados na lavagem cerebral" , e ento ele se dedicou ao magistrio, como professor de lnguas modernas e matemtica na Nova Gales do Sul e na Tasmnia. Na Segunda Guerra Mundial, era soldado do exrcito australiano. Mas no apenas nas armas pensava o soldado West, pensava tambm numa espcie
de catarse que publicaria sob pseudnimo e que posteriormente renegaria, dada a sua concepo extraliterria. Moon in my pocket discorre sobre sua experincia monstica, e a temtica religiosa no mais se separaria de sua carreira como escritor. Aps a guerra, Morris West foi publicitrio, autor de novelas radiofnicas, jornalista da BBC e correspondente do jornal London Daily Mail no Vaticano. Essa ltima funo teria reflexos em alguns de seus romances mais bem-sucedidos, como "O advogado do Diabo", "As sandlias do pescador" e o recente "Os fantoches de Deus", onde se preocupa com a exacerbao dos sentimentos no mundo atual, com o sopro de fanatismo que varre o Isl. Morris West tornou-se escritor profissional depois dos quarenta anos, quando seu inegvel xito literrio, que gerou livros como "O navegante", "A segunda vitria", "Proteu" j publicados pelo Crculo do Livro , "O herege" e "Os palhaos de Deus", traduziuse em milhares de dlares, o que permitiu ao autor a realizao de um de seus sonhos, viajar. De cada viagem,
West tira um novo livro, como "O embaixador" (Vietnam), "A Torre de Babel" (Oriente Mdio) e "O vero do lobo vermelho" (Irlanda). Recentemente, depois de tantas viagens e livros, ele se confessou cansado e pronto para retornar s origens, voltar Austrlia, onde espera morrer bem velho.
Este livro distribudo GRATUITAMENTE pela equipe DIGITAL SOURCE e VICIADOS EM LIVROS com a inteno de facilitar o acesso ao conhecimento a quem no pode pagar e tambm proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de apreciar mais uma manifestao do pensamento humano. Se voc tirar algum proveito desta obra, considere seriamente a possibilidade de adquirir o original. Incentive o autor e a publicao de novas obras! Se quiser outros ttulos nos procure. Ser um prazer receblo em nosso grupo. http://groups.google.com/group/Viciados_em_Li vros http://groups beta.google.com/group/digitalsource