O retrato
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Sobre este e-book
1995. A morte precoce de Amanda Byerly foi um golpe duro, que encheu de tristeza o coração de seu marido, Peter. Mais introspectivo do que nunca, ele decide deixar os Estados Unidos e se instalar na Inglaterra, onde passa a se dedicar à recuperação e à negociação de livros raros.
Em um de seus dias de pesquisa solitária, Peter se depara com o retrato de uma jovem muito parecida com sua amada esposa, guardado dentro de um livro. A semelhança impressiona, mas a aquarela foi pintada há muito, muito tempo. Trilhando um sinuoso caminho entre a era vitoriana e o final do século XX, Peter passa a investigar a origem do misterioso retrato. As pistas acabam por levá-lo a se envolver em um mistério histórico: uma obra perdida do dramaturgo William Shakespeare.
O RETRATO é uma fascinante mistura de suspense e paixão que nos convida a viajar no tempo, no rastro de histórias sobre livros.
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O retrato - Charlie Lovett
Sumário
Capa
Sumário
Folha de Rosto
Folha de Créditos
Hay-on-Wye, País de Gales, quarta-feira, 15 de fevereiro de 1995
Ridgefield, Carolina do Norte, 1983
Southwark, Londres, 1592
Kingham, sexta-feira, 17 de fevereiro de 1995
Ridgefield, 1984
Southwark, Londres, 1609
Londres, sexta-feira, 17 de fevereiro de 1995
Ridgefield, 1985
Kingham, sábado, 18 de fevereiro de 1995
Westminster, Londres, 1612
Ridgefield, 1985
Kingham, sábado, 18 de fevereiro de 1995
Ridgefield, 1985
Kingham, sábado, 18 de fevereiro de 1995
Wakefield, Yorkshire, Norte da Inglaterra, 1720
Ridgefield, 1985
Kingham, domingo, 19 de fevereiro de 1995
Londres, 1856
Hay-on-Wye, País de Gales, domingo, 19 de fevereiro de 1995
Ridgefield, 1985
Londres, 1875
Hounslow, Inglaterra, segunda-feira, 20 de fevereiro de 1995
Londres, 1875
Ridgefield, 1985
Cornualha, sudoeste da Inglaterra, segunda-feira, 20 de fevereiro de 1995
Ridgefield, 1985
Londres, 1875
Cornualha, oeste da Inglaterra, terça-feira, 21 de fevereiro de 1995
Ridgefield, 1986
Londres, 1876
Londres, terça-feira, 21 de fevereiro de 1995
Ridgefield, 1986
Kingham, 1876
Londres, terça-feira, 21 de fevereiro de 1995
Ridgefield, 1986
Kingham, 1876
Ridgefield, 1986
Londres, terça-feira, 21 de fevereiro de 1995
Londres, 1877
Ridgefield, 1987
Oxfordshire, Inglaterra, terça-feira, 21 de fevereiro de 1995
Cambridgeshire, Inglaterra, 1878
Ridgefield, 1988
Kingham, terça-feira, 21 de fevereiro de 1995
Kingham, 1878
Ridgefield, 1988
Kingham, terça-feira, 21 de fevereiro de 1995
Kingham, 1879
Ridgefield, 1994
Kingham, terça-feira, 21 de fevereiro de 1995
Kingham, 1879
Ridgefield, 1994
Kingham, 1879
Kingham, quarta-feira, 22 de fevereiro de 1995
Kingham, sexta-feira, 23 de junho de 1995
Agradecimentos
Nota do autor
Um romance de obsessão
Tradução
Bárbara Menezes
Título original: The bookman´s tale
Copyright © 2013 by Charlie Lovett
Copyright © 2014 Editora Novo Conceito
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia sem autorização por escrito da Editora.
Esta é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Versão digital — 2014
Produção Editorial:
Equipe Novo Conceito
Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lovett, Charlie
O Retrato / Charlie Lovett; tradução Bárbara Menezes. -- Ribeirão Preto, SP: Novo Conceito Editora, 2014.
Título original: The bookman’s tale.
ISBN 978-85-8163-400-5
1. Ficção norte-americana I. Título.
14-00227 | CDD-813
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura norte-americana 813
Rua Dr. Hugo Fortes, 1885 — Parque Industrial Lagoinha
14095-260 — Ribeirão Preto — SP
www.grupoeditorialnovoconceito.com.br
Hay-on-Wye, País de Gales, quarta-feira,
15 de fevereiro de 1995
OPaís de Gales às vezes era muito frio em fevereiro. Mesmo sem neve ou vento, o ar úmido do inverno permeava o sobretudo de Peter e se alojava em seus ossos enquanto ele permanecia parado do lado de fora de uma das dúzias de livrarias que lotavam as ruas estreitas de Hay. Apesar do brilho quente na vitrine que iluminava uma exposição tentadora de romances vitorianos, Peter não estava com pressa para abrir a porta. Fazia nove meses desde que ele entrara pela última vez em uma livraria; alguns minutos a mais não fariam diferença. Houvera um tempo em que tudo aquilo era muito familiar, muito seguro; quando entrar em uma loja de livros raros teria sido um momento de empolgação, encontrar outro apaixonado por livros teria sido parte de uma grande aventura.
Peter Byerly era, no final das contas, um vendedor de livros. Foi a profissão que o levou à Inglaterra repetidas vezes e a profissão que o levou a Hay-on-Wye, a famosa cidadezinha dos livros logo ao lado da fronteira do País de Gales, naquela lúgubre tarde. Ele visitara Hay muitas vezes no passado, mas, naquele dia, era a primeira vez que chegava sozinho.
Naquele momento, enquanto a dor causada pelo frio nas extremidades de seu corpo arrastava-se para dentro dele, Peter não via uma grande aventura, mas apenas um cenário desconfortável, um estranho e a probabilidade de a timidez e o nervosismo se transformarem em ansiedade e pânico. A expectativa o fez suar frio na nuca. Por que tinha ido até lá? Ele poderia estar seguro em sua sala de estar com uma xícara de chá naquele exato momento, em vez de estar parado em uma esquina fria com uma sensação de medo instalando-se no seu peito.
Antes de poder mudar de ideia, ele se forçou a agarrar a maçaneta da porta e, um segundo depois, estava entrando no que deveria ter sido um calor bem-vindo.
— Tarde — disse uma voz clara através de uma neblina de fumaça de cachimbo, que pairava sobre uma ampla escrivaninha.
Peter balbuciou algumas sílabas e, depois, deslizou por uma porta aberta até a sala dos fundos, onde livros forravam todas as paredes. Ele fechou os olhos por um momento, imaginando o casulo de livros protegendo-o de todos os perigos, inalando profundamente aquele aroma familiar de tecido e couro e poeira e palavras. Sua pulsação acelerada começou a diminuir e, quando abriu os olhos, ele os passou em um movimento rápido pelas estantes, procurando algo conhecido — um título, um autor, um design de capa empoeirado e gravado na memória —, qualquer coisa que pudesse colocar seus pés no chão do mundo que ele conhecia.
Um pouco acima do nível de seu olhar, achou uma encadernação de um lindo couro azul que lhe lembrou o couro de bezerro que usara para encadernar outro livro; poderia mesmo ter sido quase dez anos antes? Peter tirou o livro da estante, deliciando-se com o toque macio e luxuoso do couro. Ao olhar com mais atenção a impressão dourada na lombada, ele sorriu. Conhecia aquele livro. Se não era um velho amigo, com certeza era um conhecido, e a perspectiva de passar alguns minutos entre as capas dele acalmou seus nervos.
•••
An Inquiry into the Authenticity of Certain Miscellaneous Papers, de Edmond Malone, era um monumento de análise que desmascarava um dos maiores falsificadores de todos os tempos, William Henry Ireland. Ireland forjara documentos e cartas fingindo terem sido escritos por William Shakespeare, e até mesmo manuscritos originais
de Hamlet e Rei Lear. Peter virou as guardas estampadas até chegar à página de rosto: era um exemplar da primeira edição, de 1796. Ele adorava o toque do papel pesado do século 18 entre os dedos, a textura das depressões feitas pela impressão. Virou algumas páginas e leu:
Já foi dito que todos os indivíduos deste país, cujas mentes tenham sido desenvolvidas em algum grau, sentem orgulho de poder ostentar nosso grande poeta dramaturgo, Shakespeare, como conterrâneo: e proporcional ao nosso respeito e veneração por esse homem extraordinário deve ser nosso cuidado com sua fama e com aqueles escritos valiosos que ele nos deixou.
Peter sorriu ao lembrar de sua leitura daqueles escritos valiosos
de uma verdadeira edição do Primeiro Fólio, aquele pesado volume de 1623 das obras de Shakespeare, no qual muitas de suas peças foram impressas pela primeira vez. Peter estava mais calmo; toda a sensação de medo e pânico banida pelo simples ato de perder-se em um livro antigo. Ao lembrar-se de como aquele Primeiro Fólio, dada a oportunidade, sempre se abria no terceiro ato de Hamlet, ele abriu as capas do livro de Malone e deixou as páginas caírem onde quisessem. O livro se abriu na página 289, revelando um pedaço de papel de mais ou menos 26 cm². A mancha marrom nas páginas entre as quais o papel estivera apertado indicou a Peter que ele estivera lá por pelo menos um século. Mais por hábito do que por curiosidade, ele virou o papel.
A dor aguda que golpeou seu peito quase o fez derrubar o livro no chão empoeirado. Achou que havia escapado daquela dor, que podia fugir dela com distanciamento e distração, mas até mesmo no canto de uma livraria de Hay-on-Wye ela o encontrou. Com os joelhos repentinamente fracos, caiu no chão contra uma estante e observou, como se fosse um sonho, enquanto o papel flutuava até o chão. O rosto ainda estava ali; ele fechou os olhos de novo, querendo que o rosto e tudo que o acompanhava se retirassem, querendo que sua pulsação diminuísse mais uma vez e suas mãos parassem de tremer. Respirou fundo e abriu os olhos. Ela estava ali, olhando para ele, calma e serena, esperando. Era sua esposa. Era Amanda.
Mas Amanda estava morta; enterrada nove meses antes na terra vermelha da Carolina do Norte, a um oceano de distância. A uma vida de distância. E aquela pintura, tão mais velha que Amanda ou sua mãe, ou sua avó, não podia ser dela. Mas era.
Peter inclinou-se para pegar o papel do chão e examiná-lo com mais cuidado. Era uma aquarela excepcional, com a assinatura quase imperceptível das iniciais A.I.
. Olhou de novo para o livro do qual o papel caíra, esperando uma pista da origem da aquarela. Na guarda da frente havia um C.E.
entrelaçado feito a lápis, o monograma de algum dono há muito esquecido. A descrição impressa em um cartão do lado de dentro da capa não fazia menção à aquarela, apenas ao preço: 400 libras. Ele já vira exemplares catalogados por metade daquilo. Exemplares que não escondiam uma pintura com um século de idade de sua esposa morta.
Na prateleira à sua frente estava um exemplar em más condições do romance não terminado de Dickens, O mistério de Edwin Drood. A capa de tecido original estava gasta nos cantos e na lombada, as canaletas interiores tinham se soltado e algumas páginas estavam soltas, porém não faltava nada. Ele podia restaurá-lo com facilidade e valeria duas ou três vezes mais do que o preço pedido.
Peter olhou ao redor e viu que ainda estava sozinho na sala. Com a mão tremendo, ele colocou a aquarela dentro do Edwin Drood. Não podia deixar Amanda ali, tão longe de casa. Recolocou o Malone na estante e prendeu o Drood embaixo do braço. Vinte minutos depois, havia comprado uma pilha de livros, inclusive o de Dickens, e estava indo para o estacionamento nos arredores da cidade, duas sacolas pesadas balançando ao lado do corpo.
O caminho da fronteira do País de Gales até o chalé de Peter na vila de Kingham, em Oxfordshire, levou apenas um pouco mais de duas horas. O chalé ficava abaixo de uma viela estreita a partir do parque da vila e, como o restante do local, era construído com calcário de Cotswold. Ficava no meio de uma fileira de chalés com varanda, mas, mesmo depois de morar lá por cinco meses, Peter ainda não conhecia os vizinhos com quem dividia as grossas paredes de pedra.
Às 19 horas ele já tinha fogo na lareira, uma xícara de chá na mão e a aquarela apoiada na mesa de centro. Apesar do conselho do Dr. Strayer, ele encaixotara todas as fotos de Amanda e as deixara no sótão da casa em Ridgefield. Assim, como ela poderia estar ali, naquele que, de repente, parecia ser o chalé dela? Ela havia, afinal, escolhido o tecido Williams Morris do sofá e das cortinas. Ela supervisionara a reforma da cozinha e o acréscimo do jardim de inverno. Ela passara fins de semana na Portobello Road comprando os vasos da Pilkington que estavam em cada parapeito de janela e os pôsteres de Burne-Jones pendurados no hall do andar de cima. Ela fora a leilões de cidades pequenas para comprar os móveis e encontrara o carpinteiro que instalou as estantes do chão até o teto na sala de estar. As estantes foram seu presente para Peter, o sinal público e visível da paixão dela pela paixão dele; mas todo o resto do chalé era Amanda pura. Ela nunca passara uma noite ali, e o fato de Peter ter morado lá por cinco meses e realmente passar a ver o lugar como o seu chalé parecia bobo diante do que estava na mesa de centro olhando para ele.
A pintura mostrava uma mulher sentada em frente a um espelho, penteando um longo cacho de cabelo escuro. Seus ombros estavam expostos, o cabelo apenas cobria os seios. Os fios escuros e a pele clara eram de Amanda, assim como os ombros retos e até a maneira insistente como ela agarrava a escova, mas a similaridade mais marcante estava no semblante que olhava para fora do espelho: provocante e desafiador ao mesmo tempo. A semelhança era fantástica: o rosto fino, a testa alta e clara e, acima de tudo, os profundos olhos verdes que podiam rir e exigir serem levados a sério simultaneamente. Amanda podia fazer isso. É claro que o rosto não podia ser dela. Ela nascera em 1966; a aquarela com certeza era vitoriana. Ainda assim, Peter ficou sentado encarando os olhos de Amanda, perguntando-se de onde ela viera e desejando que ela nunca tivesse ido embora.
Ele se perdeu naqueles olhos, e no passado, por alguns minutos e, depois, ergueu-se, ficou em pé e começou a andar pela sala. Durante seus anos como vendedor de livros antigos, Peter solucionara sua cota de quebra-cabeças bibliográficos, mas fizera isso com o mesmo desapego emocional com que preenchia palavras cruzadas. Aquilo era diferente. O mistério da origem da aquarela parecia extremamente pessoal, e Peter já podia sentir a curiosidade e a tristeza se transformarem em obsessão. Ele tinha de saber de onde aquela pintura viera; como um retrato com mais de cem anos de sua esposa, que nascera apenas vinte e nove anos antes, acabara enfiado em um livro do século 18 sobre falsificações de Shakespeare?
O problema era como começar. Peter nunca trabalhara com pinturas antes. Passou mais uma hora encarando a imagem e andando pela sala até lembrar o que havia na estante do quarto extra do andar de cima. Ele não colocara os pés naquele quarto desde que se mudara para Kingham. A ideia era destiná-lo ao santuário de Amanda, e, embora ela nunca fosse passar as tardes sentada na poltrona ali lendo seus livros, ainda parecia um lugar inviolável. Naquele momento, ele abriu a porta devagar e olhou para o silêncio abandonado. A distância, ouviu o sino da igreja soar as nove e esperou até a última badalada se dissolver no ar frio do inverno antes de acender a luz.
Na estante ao lado da janela havia 65 volumes idênticos, o presente de casamento de Peter para Amanda. Como fora um catálogo da exposição da Academia Real que os unira, e como Amanda amava tanto suas pinturas vitorianas, Peter decidira lhe dar uma cópia do catálogo para cada ano do reinado da rainha Vitória; uma viagem ilustrada por sete décadas de arte inglesa. Levara um ano para encontrar todos os volumes, mas Amanda levara quase o mesmo tempo para planejar o casamento. Naquele momento, os livros estavam pacientemente nas estantes do quarto que ela nunca usaria.
Peter ficou parado à porta por vários minutos, lutando contra a sinistra sensação da presença de Amanda. Não era apenas por aquele ser o quarto de Amanda, decorado com seus livros e sua poltrona favorita e o abajur que ela escolhera em um antiquário de Stow-on-the-Wold. Peter estava acostumado a viver com o gosto de Amanda. Aquilo era diferente. Era a sensação de que Amanda poderia voltar a qualquer momento; não a Amanda evanescente que às vezes falava com ele, mas a Amanda real, de carne e osso. Era uma sensação que, havia muito tempo, Peter queria aceitar, contudo sabia que devia afastar. Sentiu o mesmo enjoo e a mesma tontura que sentira quando a conheceu e teve de se inclinar contra o batente da porta para se equilibrar.
— Tudo bem — disse Amanda. — Você pode entrar.
Ela ficou parada no final do corredor, e Peter levantou o olhar bem a tempo de vê-la desaparecer. No entanto, as palavras dela deram-lhe a coragem de que precisava, e ele entrou no quarto, cruzou-o até a estante, puxou o volume etiquetado com 1837
e sentou-se cuidadosamente na borda da poltrona. São apenas livros; são apenas coisas; é apenas um quarto; e foi apenas minha imaginação, ele disse a si mesmo. E, embora não acreditasse naquilo de verdade, abriu o livro e começou a olhar as pinturas.
Antes de Peter ter partido para a Inglaterra, o Dr. Strayer lhe dera uma lista datilografada do que ele precisava fazer para seguir em frente com a vida. O segundo item era: Estabeleça hábitos regulares de alimentação e sono
. Ele fizera progresso nesse quesito... Indo para a cama às 23 horas — onde, quando o sono chegava rápido, ele adormecia à uma hora — e dormindo até por volta das 10. Não era o ideal, mas se tornara regular.
Peter abrira o primeiro volume da Academia Real às 21 horas. Fechou o último às 19 horas do dia seguinte. Não tinha dormido nem comido. Naquele momento, estava sentado, de olhos cansados e exausto, em meio a pilhas de livros no chão de Amanda. Vira milhares de pintura, lera milhares de legendas. Não vira o rosto de Amanda; não vira as iniciais A.I. nem descobrira nenhum artista com essas iniciais.
Foi apenas quando já estava na porta olhando para trás na direção dos livros que deixara empilhados no chão que percebeu que a presença de Amanda, que ele sentira com tanta força ao entrar no quarto, fora embora. Após 22 horas de falta de sono, honestamente sentia que aquilo não passava de um quarto. Tentou ouvir a voz de Amanda lhe dizendo para não deixar seus livros no chão, mas não escutou nada. Desligou a luz, deixou a porta aberta e cambaleou escada abaixo.
•••
Nos primeiros dois meses, Peter saíra do chalé apenas para comprar comida na loja local. Ele se arriscara até Chipping Norton, ali perto, em algumas caminhadas sem destino antes do Natal, mas evitara a livraria, onde poderia ser reconhecido pelo proprietário. A excursão até Hay fora o início de sua tentativa de tratar do quarto item da lista do Dr. Strayer, Restabeleça sua carreira
, e ele tinha de admitir que não havia sido uma experiência desagradável por inteiro descobrir que o mundo dos livros ainda existia, que ele podia escapar do que o Dr. Strayer chamava de sua toca secreta
.
— O que quer dizer com isso? — Peter perguntara.
— Você passou a maior parte da sua vida escondido — disse o Dr. Strayer. — Sua toca secreta é o único lugar onde se sente seguro de verdade. Quando você era criança, era o seu quarto, onde se escondia para não ter de interagir com seus pais. Na faculdade, era a sala de livros raros; depois de casar com Amanda, era a sua sala de livros no porão. Você se enterra nesses lugares, Peter. Você evita a vida ali.
— Eu saía muito da minha toca com Amanda — Peter retrucou.
— Sim, com Amanda. Ela era sua assistente de confiança, a pessoa que tornava o mundo seguro para você. Seja honesto, Peter, o único lugar aonde você ia de verdade sem ela eram livrarias e bibliotecas; e, lá, você não precisava que Amanda interferisse porque podia colocar os livros entre você e qualquer contato humano significativo.
E, assim, ele começou o processo de emergir de sua toca secreta em Kingham com uma excursão a livrarias. E, exatamente como o Dr. Strayer previra, ele fizera de tudo para evitar qualquer conversa.
Ainda assim, o Dr. Strayer não ficaria feliz por Peter ter dado um pequeno passo para recomeçar sua carreira? Ele não olhara para seus próprios livros — a biblioteca de referências bibliográficas que montara ao longo de vários anos — desde que perdera Amanda. Mesmo quando os encaixotara para serem enviados para a Inglaterra, tinham sido apenas sólidos retangulares a serem colocados em caixas vazias; caixas então empilhadas no abrigo de pedra do jardim.
Ele pensou que devia ter um ou dois livros sobre ilustrações vitorianas e, assim, acendeu as luzes do pequenino jardim dos fundos, empurrou a porta do abrigo para abri-la e começou a carregar as caixas para a sala de estar. Duas horas depois, abrira todas e colocara os conteúdos sem cuidado nas estantes do chão até o teto. Na mesa de centro, deixou dois livros: A Treasury of the Great Children’s Book Illustrators e o importante estudo de Percy Muir, Victorian Illustrated Books. Sem saber ao certo se conseguiria aguentar outro esforço perdido sem dormir pelo menos um pouco, Peter deixou os livros onde estavam, pegou a aquarela e subiu para o quarto. Dormiu tranquilamente pelas 12 horas seguintes, sonhando com aqueles catálogos da Academia Real e com o prédio onde os viu pela primeira vez.
Ridgefield, Carolina do Norte, 1983
Quando foi aberta, em 1957, a Biblioteca Robert Ridgefield era o prédio mais alto da cidade; um gigante neoclássico de nove andares de granito e vidro, colunas e cornijas, com uma cúpula incompatível empoleirada desconfortavelmente no topo.
Os Ridgefield tinham se mudado da Escócia para a Carolina do Norte depois da revolução e passaram os dois séculos seguintes indo de sucesso em sucesso. Membros de uma família de comerciantes moderadamente rica do século 19, ficaram impressionantemente ricos com o tabaco e, depois, excessivamente ricos com tecidos e, por fim, obscenamente ricos com bancos. Ao longo do caminho, haviam transformado um seminário de dois anos, localizado em uma área isolada, na Universidade Ridgefield, de reconhecimento nacional.
A biblioteca foi construída sobre o ponto mais alto de Ridgefield: um morro no limite do campus que antes era um dos locais favoritos dos alunos para encontros românticos secretos. Dos andares superiores, podia-se ver o campo ao redor de Ridgefield por quilômetros; uma costura de retalhos de milho e tabaco, nuvens de poeira erguendo-se do horizonte conforme caminhonetes aceleravam pelas estradas de cascalho. No granito da Geórgia acima da entrada principal da biblioteca estavam entalhadas as palavras Aqueles que entrarem aqui busquem não apenas o conhecimento, mas a sabedoria
.
No momento em que Peter entrou na biblioteca pela primeira vez, passando do sol escaldante de um agosto na Carolina do Norte para o ambiente fresco e mal-iluminado dos seus corredores estreitos, seus quilômetros de prateleiras, seu milhão e meio de livros, sentiu-se em casa. Ele tinha 18 anos e vivera sempre naquela área de fazendas muito familiar visível do topo da biblioteca, um mundo em que sempre se sentira desconfortavelmente fora do lugar. Sua família administrara uma mercearia em uma cidade pequena a 13 quilômetros de Ridgefield até que a negligência do seu pai com o negócio levou-o à falência. Depois disso, seus pais pareciam mais interessados em beber e brigar do que em passar algum tempo com o filho. Com frequência, ele olhava para o estranho prédio azul no horizonte e sonhava com uma vida diferente, uma vida livre de todos os estorvos da família e da interação diária na escola com pessoas que não o compreendiam melhor do que ele as compreendia. Sonhava com uma vida protegida de tudo fora de si mesmo, mas protegida pelo que ele não podia imaginar.
Experimentou várias maneiras de se isolar ao longo dos anos. Quando criança, passava a maior parte do tempo livre no quarto com a coleção de selos, colando-os meticulosamente e tentando não pensar no mundo mais amplo do que aquele que pequenos retângulos de papel representavam. Durante o colegial, passou a se afastar dos outros no porão com um par de fones de ouvido e uma pilha de discos clássicos. Porém, independentemente de quão meticuloso ele era ao colar os selos, independentemente de quão alto ele tocava a música, nunca conseguia escapar da verdade. Uma parte dele sempre soube que o mundo ainda existia do lado de fora de sua porta e que, no final das contas, ele não podia evitá-lo.
Peter ganhara uma bolsa de estudos em Ridgefield, e a orientação aos calouros foi uma experiência muito dolorosa, focada em conhecer
pessoas. Peter não queria conhecer pessoas. O que ele queria era encontrar aquele mundo-dentro-do-mundo onde pudesse ser ele mesmo consigo mesmo. Depois da visita guiada pelo foyer da livraria e do depósito, suspeitou ter encontrado o seu lugar. Ao ficar para trás durante a visita e escorregar para o meio das fileiras de estantes que desapareciam na escuridão, Peter descobriu exatamente o que o protegeria: livros.
Levou apenas algumas semanas para conseguir um cargo de aluno-monitor na biblioteca. Era o nirvana. Peter passava quatro horas por dia recolocando livros nas prateleiras. Tecnicamente, ele fazia parte do departamento de circulação, mas trabalhava sozinho, empurrando o carrinho pelos corredores estreitos entre torres de livros, evitando com facilidade o contato com qualquer pessoa que pudesse estar procurando um exemplar.
Mesmo nas ocasiões em que tinha de empurrar o carrinho pelo salão principal de leitura, com suas grandes mesas de carvalho e vários gaveteiros com o catálogo em fichas, Peter permanecia invisível aos outros alunos. O carrinho deslizava quase em silêncio pelo chão liso de mármore, e as cabeças permaneciam baixadas sobre os livros; sua passagem não era mais marcante do que uma mudança na luz que entrava das altas janelas do clerestório conforme uma nuvem passava em frente ao sol.
Em um dia escuro e chuvoso de outubro do seu segundo ano — mais tarde ele saberia dizer a data exata, 14 de outubro —, Peter Byerly empurrou seu carrinho até o salão de leitura e pôs os olhos pela primeira vez na mulher com quem se casaria. Ela estava sentada sozinha a uma mesa, lendo com atenção uma biografia de William Morris. Ela se sentava muito ereta, o livro apoiado na mesa à sua frente, sua postura quase desafiando a obra a aproveitar o melhor dela, ao passo que, ao redor, os alunos afundavam-se com o peso das iminentes provas do meio do período. Ela vestia, no lugar do uniforme não oficial formado por jeans e camiseta, um impecável terninho sob medida, com calça de pregas e uma blusa muito branca. Nem uma mecha do seu cabelo negro que lhe chegava aos ombros estava fora do lugar.
Era magra, embora não tão magra quanto a maioria das universitárias aspirava a ser. Era alta, embora não tão alta quanto aquelas garotas cuja altura inspira inveja nas outras. Tanto sua silhueta quanto sua estatura eram realçadas por uma qualidade que estava completamente ausente na maioria das alunas, mas que ela tinha em abundância: porte.
Ele não viu logo que ela era bonita, apesar de que não levaria muito tempo para reparar. O que viu foi que ela era diferente, que ela parecia, como ele, habitar um mundo às margens da Universidade Ridgefield. Ela não se encaixava, e isso o deixou intrigado, fez com que quisesse gritar companheira!
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Peter deslizou em silêncio para uma cadeira no canto do salão e puxou um livro do carrinho. Nos trinta segundos seguintes, fingiu ler, enquanto a observava. Exceto por virar páginas, o que fazia com frequência, ela não se mexia. Às 18 horas, ela fechou o livro, colocou-o em uma pilha com outros, pegou a pilha e sua bolsa de couro vermelha e foi para a saída. Peter a seguiu. Quando ela devolveu vários dos livros ao balcão de circulação, ele os pegou assim que foram processados.
Dez minutos depois, ele estava afastado de todos no depósito, examinado os livros dela. Além da biografia de William Morris, havia um livro sobre o pintor pré-rafaelita Holman Hunt, um volume de obras impressas de Burne-Jones e dois volumes do catálogo da exposição anual da Academia Real de Artes de Londres: 1852 e 1853. Ele correu os olhos pelos volumes de arte e pela biografia de Holman Hunt antes de devolvê-los à prateleira. A biografia de Morris ele deixou cair para dentro da sua mala sem dar baixa. Não tinha certeza do que o fez agir assim; por algum motivo, sentia necessidade de possuir ilicitamente um livro que ela lera. Ele o devolveria à prateleira uma semana depois, com medo de que, se ela fosse tão complexa e multifacetada quanto Morris, estaria muito longe do seu alcance.
No mês seguinte, ele a observou por pelo menos meia hora todas as tardes. A programação dela era precisa: chegava à biblioteca todos os dias às 14 horas, gastava 15 minutos entre as estantes do depósito e lia no mesmo lugar do salão de leitura até às 18 horas. Nunca mudava sua postura; sempre usava roupas bonitas; fazia anotações com uma caneta fina em um diário preto.
Ela lia com voracidade... Biografias de artistas vitorianos e também poesia do período e um pouco de história. Ela avançava pelos catálogos da Academia Real na velocidade de um a cada dois ou três dias. Haviam se passado três semanas desde a primeira vez em que ele a vira quando reparou, ao guardar o volume de 1863, que a capa do volume de 1865 estava completamente solta. Não podia suportar a ideia de que ela o encontraria em tal condição e, assim, removeu com cuidado o livro e sua capa solta da prateleira e subiu seis lances de escada até uma porta robusta de madeira com a palavra Conservação.
A sala bem-iluminada na qual Peter entrou parecia-se com como ele achava que seria uma sala de autópsia; porém, em vez de cadáveres humanos, havia livros nos balcões em vários estados de desmontagem, perto de fileiras bem arrumadas de facas e pilhas de vários tipos de papel. Em uma prateleira à esquerda dele, havia mais ou menos uma dúzia de livros belamente decorados, alguns com encadernação em couro e decoração dourada. Aquela sala não era um necrotério, Peter pensou, mas uma UTI, da qual todos os pacientes um dia seriam liberados; se não curados por inteiro, pelo menos muito melhores. Um homem com um jaleco branco de laboratório estava curvado sobre um tipo estranho de morsa que segurava um livro desencadernado. Ele estava espalhando algo que parecia mingau de aveia frio na lombada exposta.
— Posso ajudá-lo? — ele perguntou, erguendo-se.
O homem olhou para Peter através dos óculos redondos de aros dourados. Parecia ter cerca da trinta anos e tinha cabelos loiros, quase brancos, alisados e arrumados com perfeição caindo até os ombros e uma barba igualmente clara lançando-se vários centímetros para fora do seu rosto. Sorriu através da barba, e o primeiro pensamento de Peter foi de que ele lembrava um Muppet. Peter não pôde deixar de sorrir de volta.
— Trouxe um livro que precisa de reparos — disse Peter.
— Precisa ser requisitado pelos funcionários da biblioteca — informou o homem, seu sorriso sumindo e seu tom de voz indicando que Peter não era a primeira pessoa a irromper pelo Departamento de Conservação sem ser convidado.
— Sou funcionário da biblioteca — Peter afirmou. — Trabalho na circulação.
— Coloque ali — disse o homem com um suspiro, acenando com a cabeça para uma pilha alta de livros danificados em uma mesa perto da porta e voltando a atenção para o seu trabalho.
— Quando acha que ele ficará pronto? — Peter perguntou.
— Estamos demorando seis meses atualmente, supondo que nada mais importante apareça das Coleções Especiais.
— Seis meses — repetiu Peter. — Mas eu tenho... Quero dizer, nós temos uma cliente... ahn, uma aluna que precisará deste livro daqui a alguns dias. Só precisa colar a capa.
Peter levantou o livro em uma das mãos e sua capa desobediente na outra. O homem com jaleco de laboratório virou-se para ele de novo e examinou tanto o livro quanto Peter por um instante. Sua expressão ficou mais suave e seu sorriso voltou.
— Vou dizer o que vou fazer — ele falou. — Vou colocá-lo na pilha das namoradas.
Ele pegou o livro e a capa de Peter.
— Pilha das namoradas?
— Geralmente, quando um cara entra aqui apressado para consertar alguma coisa é porque sua namorada precisa daquilo. O que posso dizer? Tenho um fraco por amor e cavalheirismo e tudo isso. Que tal eu prepará-lo para segunda-feira à tarde?
— Segunda-feira seria ótimo — Peter respondeu, e recuou devagar para fora da sala, vendo o jovem voltar para sua pasta de mingau.
De volta ao depósito, Peter não conseguia