Hazel Smith - Orgulho Selvagem

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Hazel Smith Orgulho Selvagem Clssicos da Lit.

Romntica
Projeto Revisora 1

(Hazel Smith)
Ttulo original: A Savage Pride


Do alto da colina, Melody avistou Windhaven, a estranha casa onde viveria com
Paul Savage, o homem que a comprara num leilo de escravos nos Estados
Unidos... Por um instante, rememorou o destino que a trouxera at aquela regio
selvagem, no corao da Nova Zelndia.
Assassina para defender a prpria honra, marcada pelo estigma da escravido...
Seria o recomeo do pesadelo? Ansiosa, voltou os olhos para Paul, silencioso ao
seu lado, ao mesmo tempo fascinante e assustador. Era seu dono agora. O que
exigiria dela esse enigmtico aventureiro, que, apesar de resgat-la da sanha de
homens sanguinrios, recusava-se a conceder-lhe a liberdade? Que preo
precisaria ainda pagar pelo direito de amar e ser feliz?
Hazel Smith Orgulho Selvagem Clssicos da Lit. Romntica
Projeto Revisora 2


Disponibilizao do livro: Nutri.Rosangela
Digitalizao: Polyana
Reviso: Ndia


A Autora e sua obra
Hazel Smith, apaixonada por Histria e Literatura, encontrou no romance
histrico a frmula ideal para exercitar sua criatividade e imaginao. Autora de
muitos bestsellers, consagrou-se junto ao pblico por suas histrias envolventes,
densas na trama, perfeitas na reconstituio de vrias pocas.
Ainda muito jovem morou nos Estados Unidos, percorrendo o pas inteiro e
trabalhando em cidades como San Francisco, Houston, Los Angeles, Las Vegas e
Miami. Desse perodo guarda recordaes inesquecveis, que muitas vezes
aparecem em cenas de suas obras.
Atualmente Hazel Smith vive com o marido e um filho de quinze anos ao sul
de Londres, Inglaterra, dividindo o tempo entre as tarefas de casa, o trabalho
como contadora e o ofcio de escritora.

Copyright: Hazel Smith
Publicado originalmente em 1987 pela World wide Romance, Toronto, Canad
Traduo: Dulce de Andrade
Copyright para a lngua portuguesa: 1989
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Av, Brigadeiro Faria Lima, 2000 3 andar
CEP 01452 So Paulo SP Brasil
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda. e impresso na Cia. Lithogrphica Ypiranga





Hazel Smith Orgulho Selvagem Clssicos da Lit. Romntica
Projeto Revisora 3

PRLOGO
Gotas de suor cobriram a testa lisa de lady Arabella Fortesque-Savage
quando as dores do parto atingiram o ponto mximo. Quase com indiferena, ela
refletiu que, como acontecer em todos os grandes fatos de seu casamento, seu
marido estava ausente. Sentia-se alm de qualquer dor. Trinta e seis horas antes,
mordera o lbio at feri-lo, mas agora esperava, tranqila, a morte. Dava-lhe
algum conforto saber que a linda mulata, a quem chamava Nanny uma plida
substituta do anjo gorducho e sorridente de sua infncia, continuava a seu lado,
apesar de ter uma filha tambm dando luz, no alojamento dos escravos.
L embaixo, houve uma sbita comoo e o barulho de madeira se
quebrando, quando a porta da frente cedeu. Gritos ressoaram pelo pavimento
inferior, e, no mundo de paz que Arabella havia atingido muito acima da cama
onde lhe parecia ser outra a mulher que se retorcia, sem esperanas , ela
registrou o som.
Minha gente...
...est livre Nanny completou, baixinho. a vez deles e a sua de
lutar pelo que est para acontecer. Deus os ajude, pois a hora deles ser mais
demorada que a sua. Calma, agora, menina. No deve falar. Respire fundo. Expire.
Mais depressa. Estamos quase l. Estou sentindo. Respire mais depressa.
Empurre, agora. De novo.
A dor dilacerou Arabella por dentro, arrancando um grito abafado de seus
lbios de lady inglesa, que se recusava a dar sinais de fraqueza. Quando sua
carne foi rasgada, ainda assim ela lutou contra a agonia e a escurido que se
aproximavam, enquanto a mulata amparava a criana e a colocava em seus braos.
...
Uma menina adorvel, miss Arabella.
Nesse instante, ouviram o som de madeira despedaada, enquanto os
negros pilhavam a casa l embaixo, destruindo as lindas portas entalhadas e as
delicadas cadeiras em estilo Lus XV, que Arabella trouxera da Inglaterra e das
quais tanto gostava. Foi quando a dona de St. Clare tomou conscincia de que
aqueles gritos bestiais de dio a teriam avisado de seu fim, se o beb arrancado
de seu corpo esbelto j no lhe estivesse causando a morte.
Os escravos haviam finalmente se livrado de seus grilhes, encorajados
pelos seguidores do pastor negro Nat Turner, cuja revolta, oito anos atrs, em
1831, levara morte mais de sessenta brancos e incontveis negros inocentes.
Desde aquela poca, vrios focos de rebelio tinham explodido em violncia, no
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Projeto Revisora 4

sul do pas. Mesmo agora, o marido de Arabella e um grupo de vigilantes
vasculhavam as matas, a procura dos negros que haviam matado a famlia de um
plantador, a oeste dali.
Era realmente irnico, Arabella pensou, que ele estivesse naquela misso,
percorrendo as colinas verdejantes da Carolina do Norte, enquanto seu prprio
lar era destrudo.
medida que as sombras abenoadas a envolviam, a lady inglesa pensava no
que fora sua vida com o homem forte e imponente com quem se casara. Um
homem que se revelara um bruto em seu territrio natal. Ela ficara horrorizada
com a crueldade com que ele tratava os escravos, chicoteando-os diariamente
pelas menores ofensas, arrancando crianas dos braos das mes para vend-las
a outros plantadores, e, principalmente, satisfazendo sua luxria insacivel com
qualquer menina que lhe despertasse o desejo.
Arabella tentara dialogar com ele uma vez, dizendo que estava acostumada
a ser tratada com amor e respeito. Ele rira, retrucando que a respeitava tanto
quanto aos outros objetos lindos de sua propriedade, e que, se o que ela queria
era amor... Ele a possura ento, brutalmente, no hall em que estavam. Arabella
nunca mais tocara nesse assunto, suportando-lhe os toques repugnantes e
alegrando-se. Quando o interesse dele se focalizava em outros assuntos.
Ah, se pelo menos...
Brilhante como a aurora, veio-lhe lembrana o jovem ingls, Alexander
Davenport, um conhecido de sua juventude, que, por incrvel que pudesse parecer,
apaixonara-se por uma selvagem com um oitavo de sangue negro, em vez de por
ela. Lgrimas encheram-lhe os olhos, quando pensou no fruto ilegtimo daquela
unio chocante, que devia estar nascendo agora, num leito de palha, no interior de
uma cabana de madeira.
"Devia ter sido meu", pensou. "Devia ter sido meu. um menino, na certa.
O filho de um lorde ingls e uma lady."
Nesse ponto, ela se lembrou do primeiro filho a que dera luz. O garoto
que tanto desapontara seu marido, devido delicadeza e beleza frgil.
E Brett? indagou mulher que lavava as mos na bacia de loua,
decorada com flores.
Eu o levarei comigo.
Ele s tem sete anos. Vai sentir medo.
Ele estar seguro.
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Arabella assentiu fracamente, j quase sem foras. O chorinho da criana
em seus braos chegou-lhe aos ouvidos, e ela sentiu o corao apertar-se ao
perceber que nem teria tempo de amament-la. Ergueu a mo, num gesto sem
vivacidade, e de imediato Nanny aproximou-se, inclinando-se sobre a cama. Olhos
azuis encontraram-se com olhos castanhos.
Salve-a Arabella murmurou, lutando contra as sombras por um
momento mais. No me importa como, mas... salve-a!
Reconfortada pelo gesto rpido de assentimento, Arabella se deixou
envolver, afinal, pelo manto da escurido eterna. Inclinando-se, a mulata beijou-a
na testa.
Nunca pude fazer isso quando a senhora estava viva, patroinha. Adeus.
Que Nosso Senhor a tenha a salvo.
Os olhos aveludados estavam midos quando ela pegou a criana,
embrulhou-a num pano limpo e caminhou para a escada, levando-a nos braos.
Mister Brett! Onde que voc est, menino? chamou, aflita, bem
baixinho, para que os invasores no a ouvissem.
Rudo de garrafas estilhaadas, misturado a risos e palavres ocasionais,
quando os cacos de vidro feriam um p nu, indicaram-lhe que eles tinham
encontrado a adega. Sua busca tornou-se mais apressada. No sentia nada alm
de desprezo pelos intrusos, mas sabia que, uma vez bbados, nem os lderes
conseguiriam control-los.
Brett! Venha c, menino! E depressa, porque eu tenho de tirar este beb
daqui.
Nenhuma resposta. Nanny j se virava para procurar-nos outros cmodos,
quando uma figurinha animada saiu de trs das cortinas, no fundo do corredor, e
correu para o quarto da me.
Mame! Mame! ele sussurrou, os cachos dourados brilhando luz das
velas. Nanny est com o beb de que voc me falou, e h uns homens maus na
adega. Estou com medo, mame! Ao chegar junto cama, ele se interrompeu,
arregalando os olhos azuis apavorado. Mame?
Ela parecia dormir tranquilamente, mas havia um cheiro estranho e
desagradvel no quarto, e sangue nos lenis. Dava medo toc-la. Mas o som da
voz de Nanny, baixinho, do lado de fora, fez com que ele escorregasse depressa
para debaixo da cama. Nanny sempre representara a segurana, protegendo-o da
zanga do pai e dos amigos dele, que viam sua delicadeza como fraqueza, mas
desta vez estava decidido a ser firme. No abandonaria a me nas mos daqueles
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homens maus, por nada no mundo!
A mulata realizou mais uma busca rpida pelo quarto, e em seguida tomou
uma deciso: proteger, em primeiro lugar, o beb. O garoto estaria a salvo,
enquanto permanecesse em silncio e no lugar onde se escondera. Levaria o beb
de miss Arabella para mamar em sua filha e depois, quando o saque acabasse,
voltaria procura de mister Brett. Conhecia seu povo: eles estavam interessados
apenas em saquear e descarregar a raiva num punhado de mveis, antes de fugir
para o norte; Os negros de St, Clare no eram assassinos, embora muitos, se
tivessem oportunidade, matariam Locke Savage, o Touro Selvagem, com alegria e
fariam sofrer a mulher branca.
Eles no vo pr fogo na casa, o Sr. Savage estar de volta, assim que
Cato o encontrar a mulata disse para si mesma.
Rapidamente-, ela desceu a escada e saiu pela porta dos fundos,
atravessou a. rea da cozinha e correu pelos campos, em direo ao alojamento
dos escravos.
Nem todos os negros tinham se juntado aos revoltosos. Um ou dois
permaneciam, num silncio desconfortvel, junto cabana de sua filha. Eram
homens velhos para lutar, e com muito medo ou cansados demais para procurar a
Estrada da Liberdade. Um deles foi ao encontro de Nanny.
Ela no deixa a gente entrar.. Teve-o filho agora a pouco, mas no quer
ningum l, s voc.
Nanny sorriu-lhe com simpatia.
Est bem, Rufus. Espere aqui. Talvez possa ajud-la, depois.
Ela no gritou como a minha Bessie, quando teve o nosso Josiah o
homem informou, preocupado.
Nanny apertou os lbios, antes de dizer:
Ela uma coramantin. No demonstra a dor.
E nesse aspecto, a mulata refletiu, havia pouca diferena entre sua linda
filha-e a aristocrtica lady inglesa, que acabava de deixar. Ambas agentariam
com estica indiferena toda a dor que a vida lhes mandasse.
No quarto minsculo, Ereanora dera luz com facilidade e sozinha. Sua
me viera num dos carregamentos ilegais de escravos, contrabandeados para o
interior do pas, desde que a lei de 1808 acabara com o comrcio de escravos
africanos. Ereanora era forte, orgulhosa e, aos dezesseis anos, estava no auge de
sua mocidade, mas apanhar algodo o dia inteiro causara problemas em sua
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coluna.
Ela mordeu o lbio, recusando-se a reconhecer as dores estranhas, que no
eram como a me dissera. Mas logo tudo acabou, restando apenas a vontade de
dormir. Como num sonho, viu a me entrar com um embrulho nos braos-
Fracamente, indicou a criana mal coberta, a seu lado, que no queria sugar seus
seios.
Ela...-no quer... mamar...
Um olhar,.e os lbios de sua.me se apertaram. Os olhos aveludados
fecharam-se por um instante, como se ela estivesse sofrendo.
Vai dar tudo certo ela tranqilizou a filha num tom educado, copiado
da patroa. V? Vou acord-la. Ela s est cansada, depois desse trabalho duro.
Os bebs fazem uma longa viagem para entrar no mundo, e depois s querem
dormir. Como voc.
Ereanora permitiu que a me pegasse a criana, e ouviu um vagido. Um grito
sadio, faminto. O recm-nascido foi colocado em seu seio e sugou, com fora. Ela
sorriu, erguendo os olhos marejados para a me.
Tive uma garotinha bonita e sadia. Eu lhe disse que seria fcil para mim,
quando voc teve de ajudar a patroa,. Eu lhe disse que teria um beb bonito e
sadio!
, sim, minha filha a mulata murmurou, com um n na garganta. -
Voc estava certa. Ela um bebe lindo! Saiu-se muito bem, mulher guerreira! E
no podia ser de outro modo; Voc uma coramantin, e nunca se esquea disso.
Os mais cobiados escravos da Costa do Ouro, os de maior coragem, os melhores
no trabalho. No recebemos as chicotadas do homem branco com gritos e choro.
Ns o encaramos nos olhos, como encaramos a vida.
Ereanora sorriu e cerrou as plpebras, aceitando as palavras da me. S
ento, com o n na garganta ameaando sufoc-la, Nanny olhou para a filha de
lady Arabella, que mamava com voracidade. Seu olhar voou para a prpria filha,
que agora sorria, feliz.
Eu volto logo falou. Tenho mais uma coisinha a fazer.
Inclinando-se, ela pegou o corpinho sem vida que estava sobre o cho de
terra e, sem deixar que a filha o visse, saiu.
A Casa Grande encontrava-se em silncio, com os invasores saciados de sua
sede de vinho e vandalismo. Chegando ao quarto da senhora, a mulata envolveu a
criana num pedao de seda, encontrada numa das gavetas destrudas.
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Nada de enterro escravo para voc, pequenina. Voc uma lady, agora.
O rosto molhado de lgrimas, Nanny rezou aos deuses de seus ancestrais,
na lngua que aprendera com eles. Em seguida, endireitou o corpo e respirou
fundo. Havia um futuro a planejar. Por mais forte que fosse seu amor pela linda
senhora que sempre a tratara com bondade e respeito, maior era seu dio pelo
senhor.
Ele no a ter murmurou, pensando na criana que dormia nos braos
de sua filha. Antes ser uma escrava que filha de Touro Selvagem. Vou tir-la
daqui. Lev-la a um dos "condutores" da Rede.
A Rede. Composta de homens e mulheres corajosos, negros e brancos,
sulistas e nortistas, que ajudavam os escravos foragidos a alcanar a liberdade.
O caminho era longo e cheio de perigo, mas todos os anos milhares conseguiam
chegar ao norte, e Nanny estava decidida a fazer com que sua filha e a criana
tambm conseguissem.
Seu corao apertou-se por um momento, quando pensou na outra criana,
Brett, o menino de sete anos e cabelos dourados como os da me, que jamais
poderia passar por negro e ser levado para longe do pai. Ele s aumentaria o risco
para os outros. O beb, no entanto, tinha os cabelos negros e a pele dourada do
pai.
Ela se salva a mulata murmurou, assentindo para si mesma. Alm
disso, o sr. Alex volta logo. Talvez ele tenha alguma idia. Ele pode ser branco,
mas amava a minha Ereanora como um cavalheiro. Sempre foi gentil com ela e
nunca a forou a na-.da, como Touro Selvagem fez uma vez.
Nanny sorriu, lembrando-se do modo como o amor atingira os dois, em seu
primeiro encontro. A orgulhosa mestia, que trabalhava no campo, e o jovem
lorde ingls, que cavalgava por l.
Deus, seria uma criana digna de se ver! murmurou, j comeando a se
movimentar. Tinha muito trabalho pela frente.
Dois cavalos corriam na noite. O primeiro, um mustang, levava um rapaz
claro, que o guiava apenas com palavras; o segundo, um baio, carregava um homem
moreno, que o castigava com esporas e chicote.
O mustang parou diante de uma cabana de madeira, onde aipins negros logo
se adiantaram para segur-lo, ansiosos por prestar um pequeno favor a Ereanora
e ao jovem lorde, que tinham aprendido a amar e respeitar, A sela foi retirada, e
plo do animal, escovado com cuidado, antes que o fizessem andar em crculos
pelo ptio, o tempo todo elogiando-lhe a fora e a bravura.
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O baio quase caiu ao cho quando seu dono saltou, esquecendo-o para subir
os degraus da varanda de dois em dois enquanto gritava aos cus a raiva que o
dominava. Sem um nico olhar para a moblia destroada na casa agora vazia,
lanou-se pela escada, abriu com violncia a porta do quarto e berrou, mal
olhando o corpo coberto da esposa:
Onde est ele? Onde est o meu filho?
Nanny encarou-o com olhos zangados, pois sabia que ele no se referia ao
menino que continuava escondido.
Foi uma filha, senhor, mas tanto ela quanto a sua senhora... Sinto muito,
senhor.
O grito dele alcanou os cus.
Maldita! Maldita seja ela por no ter me dado um filho! Maldita seja por
ser to fraca!
Os olhos castanhos da mulata no tinham a menor expresso, quando ela
continuou:
Mister Brett est escondido na casa, senhor. No tive tempo de
procurar em todos os lugares, e minha filha Ereanora precisa de mim, agora. Ela
acaba de ter a criana do mister Davenport e...
Est bem... est bem. D o fora daqui. Que ela apodrea no inferno! No
podia ter me dado um filho? Eu lamentaria a morte de um filho, mas de uma
filha... uma coisinha chorosa, parecida com a me... Ah!
O calor era sufocante na cabana onde o jovem ingls apertava a mulher
amada de encontro ao peito.
Nunca vou me separar de voc! Nunca!
preciso, Alex Ereanora replicou, com firmeza. Olhe para a sua
filha. Veja os olhos dela.
Mesmo sem entender, ele puxou o pano que cobria o rosto da criana.
Contente e bem alimentada, a garotinha ergueu as plpebras de longos clios.
Seus olhos eram de um azul brilhante, cor de safira.
Todos os bebs tm olhos azuis. Ele sorriu. Vamos cham-la de
Melody, pela linda harmonia com que a fizemos.
Ela no uma criana negra. Nem uma mulata quase branca. No com
esses olhos Ereanora declarou. Ela branca. Como voc.
a nossa filha. Com os meus olhos e a sua linda pele dourada.
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No! Ereanora agarrou o brao dele. Leve-a daqui. No diga nada a
ningum. Fale que a me dela morreu, no ataque Casa Grande. Leve-a com voc,
meu amor! Faa dela uma branca. Fraca e detestando-se por isso, Ereanora
deixou-se cair sobre o colcho de palha e fechou os olhos. Por favor!
Nanny entrou nesse momento, vinda da noite escura.
Leve-a, senhor. Encontre uma boa mulher branca. Est tudo calmo, e os
homens se foram, mas os problemas vo acontecer muitas vezes ainda, at todos
os escravos conseguirem a liberdade. Muitos morrero, brancos e negros. O
senhor da Inglaterra, onde no existem escravos. Pode fazer dela uma branca,
uma lady inglesa, como mis Arabella. Olhe para ela. a sua filha! Tem coragem de
deix-la aqui para ser uma escrava? Para ser forada a se casar com um negro
caado no Congo... ou ser vendida como prostituta a algum como o senhor desta
plantao?
Agoniado, Alex virou-se para a moa sobre a cama, que tambm fora
tratada como uma prostituta e violentada, aos; treze anos, pelo homem que h
vrios meses o hospedava.
No sei... Ah, minha querida, claro que eu poderia levar a nossa filha
para a Inglaterra. Poderia dar-lhe uma vida feliz, segura e faz-la passar por
branca, sem que ningum jamais desconfiasse. Mas que eu amo voc!
Ento faa isso por amor. Eu sou uma escrava. Se minha filha ficar aqui,
tambm ser. Mas ela pode ser livre... uma lady inglesa. Ereanora tornou a
agarr-lo pelo brao. No diga nada ao senhor! V! V agora! Leve-a com voc!
Com lgrimas nos olhos, Alex foi obrigado a ceder. Pela ltima vez, tomou a
moa nos braos.
Nunca mais vou amar outra mulher murmurou, com voz entrecortada.
Um dia ela saber. E, quando chegar a hora certa, ns voltaremos e a
acharemos. Eu juro!
Ento, segurando o beb junto ao peito, ele correu cegamente pura fora e
montou no mustang. Encontraria algum que pudesse amament-la, na cidade mais
prxima. E na Inglaterra havia Charity, agora viva e com um filho pequeno, livre
dos grilhes de um casamento por convenincia e esperando por ele, como fazia
desde que tinham catorze anos de idade. Por amor, ela aceitaria a criana e a
chamaria de sua.
Na Casa Grande, um homem enraivecido esmurrava uma das colunas da
cama da esposa.
Maldita! A famlia Savage deve ser amaldioada por Deus. por isso que
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Projeto Revisora 11

no conseguimos filhos que cresam e se tornem homens. Eu gerei dois
natimortos e um garoto pattico, frgil como porcelana, enquanto meu irmo teve
de adotar o nico homem da famlia!
Um movimento, ao lado da cama, trouxe mais um palavro a seus lbios.
Puxando a cortina com violncia, ele viu o rostinho amedrontado do filho Brett, a
criaturinha meiga e delicada que tanto lembrava sua frgil esposa inglesa.
Por qu? Por que voc? gritou.
Lgrimas inundaram os olhos grandes, de um azul bem claro, quando a
criana gaguejou:
Eu... eu... tentei fi-ficar com ela, papai. E tentei atacar os homens!
A mancha arroxeada na face ansiosa era a prova do desprezo dos invasores
pela coragem de um garoto de sete anos, mas a pai, em sua raiva, nada viu.
Atacar os homens? ele gritou. Voc, que no presta para nada?
Com uma imprecao, o senhor da plantao girou nos calcanhares e
afastou-se, sendo seguido pelos assustados olhos azuis.
Ao chegar varanda, Luke Savage viu seu hspede, Alex, desaparecendo na
estrada que levava ao norte, como se todos os ces do inferno o perseguissem.
Eles haviam se dado bem, no primeiro ms que o rapaz passara ali. Tinham
tomado alguns tragos juntos e passado vrias noites jogando nos sales de
Raleigh, a capital do Estado. Alex fizera amizade com sua esposa, mas ele, Luke
Savage, pusera um fim quilo. Notara logo de incio as conversinhas ntimas e os
olhares de peixe morto trocados pelos dois, mas j sabia que tipo de homem era
o ingls e achara fcil manobr-lo. Pelo menos at ele conhecer a bela mulata do
alojamento dos escravos. O rapaz apaixonara-se por ela como se fosse uma
mulher branca, embora soubesse que ela no era mais virgem e j fora iniciada
como companheira de cama.
Os lbios grossos de Luke curvaram-se num sorriso. Ainda se lembrava de
quando a possura. Como ela lutara! Mas ele no recebera o apelido de "Touro"
por nada, e muito se orgulhava disso. Rasgara-a de tal modo que ela ficara de
cama por mais de uma semana. Quando Nanny fora busc-la em seu quarto,
olhara-o duramente, com aqueles--olhos castanhos, antes de predizer:
O senhor no ter um bom fim. Sua morte ser cruel e violenta, como o
senhor.
Naturalmente ele a chicoteara pela insolncia, ms a praga o atormentara
durante muitos meses, e de vez em quando ainda voltava para assombr-lo.
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Depois disso, arranjara outra negra mais dcil e mandara a menina para o campo.
Mas seu sangue fervia cada vez que a surpreendia com seu hspede. A opinio dos
vizinhos, para no falar nas enormes somas de dinheiro que ganhava do rapaz, no
pquer, faziam com que agentasse a situao. Entretanto no ficaria triste
quando aquele caso chegasse ao fim.
Alex Davenport at quisera comprar a escrava, chegando a oferecer muito
mais do que ela valia. Mas Touro Selvagem no pretendia ver a "cadelinha" que o
rejeitara sendo tratada como uma Rainha de Sab pela sociedade londrina.
Ele s a venderia quando tivesse lhe dado uma boa lio. Com sua pele
quase branca, ela alcanaria um timo preo em Nova Orleans. A criana, ele
daria a uma das mulheres mandngo, para criar. Ereanora contava apenas com um
oitavo de sangue negro, por isso teria de vend-la na Carolina do Norte mesmo,
quando chegasse a hora. Era um absurdo que os outros Estados americanos
considerassem negras as escravas com um oitavo de sangue negro, mas
considerassem brancos seus filhos, caso fossem gerados por um homem branco.
O mau humor de Luke Savage cresceu novamente quando ele se lembrou da
esposa e da fria indiferena que ela manifestava por suas carcias. Uma vez, ele a
forara a assistir, enquanto tomava uma das criadas, mas ela nada dissera,
limitando-se a fit-lo com um desprezo que o atingira como uma punhalada.
Esquea essa mulher! ele disse a si mesmo. Esquea! Comece tudo
de novo. V cidade. Beba at cair. Esquea-se de todos esses malditos!
Fitou a poeira que assentava na estrada. Ele e Alex haviam sado com a
vingana em mente. Quando receberam a notcia da rebelio em St. Clare,
voltaram de imediato, e o baio conseguira chegar antes do mustang. Uma vitria
que havia cobrado seu preo, pois agora s o mustang continuava a salvo.
Eu preciso sair daqui. Depois eu penso no que vou fazer.
A carruagem no fora tocada pelos invasores. Depressa, Luke pegou a gua
velha e doente, que se recuperava nos estbulos, e atrelou-a ao veculo. Da
varanda uma vozinha suplicante elevou-se, quando ele j subia a bordo.
No me deixe de novo, papai!
O garotinho desceu correndo os degraus e embarcou na carruagem,
quando, sem ligar para ele, o homem j chicoteava brutalmente o animal.
Eles teriam conseguido. J avistavam as luzes da cidade, da segurana e da
liberdade... das bebidas e do esquecimento. Teriam conseguido, no fosse pela
armadilha preparada pelos escravos, em sua caminhada rumo liberdade. Uma
caminhada que havia acabado a poucos metros dali, quando foram apanhados pelos
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vigilantes com quem Luke e Alex haviam cavalgado, na noite anterior. Ainda assim,
tiveram tempo para esticar uma corda de um lado ao outro da estrada. Uma
corda que atingiu a gua que corria cegamente, apavorada, e jogou-a ao cho.
Quase em cmara lenta, a carruagem virou. O homem e a criana, como
bonecos desconjuntados, foram lanados ao ar. Naquele momento, o homem ainda
teve tempo de refletir no quanto fora tolo: suas feies se contorciam de
remorsos, quando bateu no tronco enorme do carvalho, quebrando o pescoo
instantaneamente. O menino, no entanto, ainda vagava pela estrada, na direo de
casa, quando a mulata Nanny o encontrou, ao nascer do dia.
Gentilmente ela o abraou.
Vai dar tudo certo, mister Brett.
A criana deixou escapar um soluo de medo, logo corajosamente abafado.
Est escuro, Nanny. No consigo enxergar nada. J parou de doer, mas
eu no consigo enxergar!
Eu estou aqui, agora. Ningum mais vai machucar voc. Nenhum de vocs.
Ela no explicou o que queria dizer com isso, e o garoto de sete anos nada
perguntou... naquele momento.

CAPITULO I

A chuva, que caa h dias em Londres, acentuava o melanclico estado de
esprito da moa ao piano e as notas tristes do Noturno de Chopin. A luz dos
candelabros criava reflexos azulados nos cabelos negros e fazia brilhar a seda
escura do vestido que usava, mas eram seus olhos que chamavam a ateno. Eram
azuis, da cor da safira, com clios longos e escuros. Olhos que, no momento,
estavam cheios de lgrimas.
A moa enrijeceu ao ouvir a porta da sala de msica abrir-se, mas no se
voltou.
Um pouco pesado, no acha, Melody?
Era uma das peas favoritas de Hugh.
Seu marido est morto h mais de trs meses, minha querida. No
saudvel que continue ansiando por sua ressurreio.
Essa msica me consola.
Pois eu prefiro que voc esquea.
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Ela tirou as mos do teclado, apertando-as no colo e lutando contra a
vontade de fugir dali.
Esquecer? Depois de apenas trs meses, Luther? Luther Hogge
aproximou-se, segurando-a pelos ombros comas mos de dedos grossos. Melody
estremeceu, e mesmo assim ele no as retirou. Tinha unhas espatuladas, sempre
muito bem-feitas, e no terceiro dedo da mo esquerda usava um anel com uma
esmeralda quadrada, enorme, lindo o bastante para ornamentar uma mulher. No
entanto, Melody j vira aquele anel cortar o rosto de um criado at o osso,
porque ele se atrevera a responder ao amo.
No! ela exclamou, repelindo a sugesto de Luther.
Continue se consolando, ento, mas no com o Noturno. Toque uma das
valsas de Chopin.
Rgida da cabea aos ps, Melody meneou a cabea. Queria gritar-lhe que a
soltasse, mas o medo era maior que a repulsa que sentia por aquele contato. Ele
era um homem enorme, com um apetite voraz e as faces avermelhadas de quem
gostava muito de uma garrafa de brandy. De repente, sentiu a banqueta girar e
ele descer as mos por seus braos, obrigando-a a se levantar.
Melody...
A voz era sedosa, o sorriso, gentil, mas os olhos, negros como carvo,
espelhavam um desejo intenso enquanto examinavam o rosto delicado, que ela
mantinha virado para o lado. Quando a puxou para junto de si, no entanto, ela no
conseguiu mais esconder a repulsa e libertou-se com um gesto brusco.
No, Luther. No vou aceitar seu consolo nem qualquer outra coisa que
me oferea. Voc j devia saber disso!
Melody fechou o piano, para dar nfase negativa, e foi arrumar a pilha de
partituras, colocando uma certa distncia entre eles.
O sorriso de Luther sumiu, e havia um tom de ameaa em sua voz, quando
disse:
Eu nunca lhe neguei nada, desde que herdei de seu falecido irmo esta
casa e tudo que havia nela.
Ela o fitou por alguns instantes, antes de comentar:
s vezes fico imaginando se voc, quando o convenceu a assinar aquele
documento, deixando-lhe tudo que tinha j sabia que ele ia se juntar s foras de
sir Hugh Rose, na ndia, e morrer atacando.
Os olhos negros brilharam diante da acusao, mas o sorriso feroz voltou.
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Projeto Revisora 15

Se o garoto estava mesmo decidido a cumprir seu dever patritico numa
terra distante, era justo que deixasse um testamento indicando uma pessoa
responsvel para proteger e cuidar de sua irm. E quem poderia ser melhor que
um velho amigo de seu pai?
Voc no era mais que um scio nos negcios de meu pai. E um mau scio,
por sinal. verdade que papai nunca teria feito uma fortuna, pois gostava mais de
lidar com cavalos do que com aes, mas ns vivamos bem. Depois que voc
apareceu, no entanto, todos os investimentos dele comearam a dar errado. Papai
sempre foi um sonhador. Vivia falando em me levar para a Amrica, para
conhecer alguns amigos, mas nunca foi nervoso e inseguro como ficou depois que
o conheceu. Ele jamais havia procurado o conselho de ningum, ento por que
procurar o seu? Que poder tinha voc, Luther, para arruin-lo como fez?
Sufocada pelas lgrimas, Melody lembrou-se da noite em que Alexander
Davenport deixara aquela casa, plido e abatido, dizendo que precisava resolver
alguns problemas. Ele no voltara mais, e quase uma semana depois seu corpo fora
encontrado boiando no rio.
Atingido pelas palavras de Melody, Luther forou-se a relaxar, fitando-lhe
as feies adorveis. Seu olhar demorou-se um instante nos lbios dela, antes de
descer para os seios, revelados pelo ligeiro decote do vestido. Sua respirao
alterou-se, e foi com voz rouca que ele censurou:
Est sendo cruel, Melody, e eu sempre a tratei com bondade. Desde o...
falecimento de seu pai, assumi todas as despesas e responsabilidades dele, certo
de que logo voc me veria como o senhor desta casa. Comprei-lhe vestidos, que
voc nunca usou, jias que nem foram tiradas das caixas...
Nada disso prprio para uma viva ainda de luto ela o interrompeu.
E voc j devia saber que no posso aceitar presentes de um homem que no
pertence minha famlia
Ah, foi exatamente sobre isso que vim lhe falar. Mas vamos para a sala
de estar, que mais confortvel. Mandei acenderem a lareira l, pois estamos
tendo um tpico vero ingls, e a luz do fogo ideal para o que tenho a lhe dizer.
Melody arrepiou-se, fitando-o como dominada por um malfico sortilgio.
Movendo-se com uma agilidade incrvel para um homem de seu tamanho, Luther
aproximou-se e tomou-lhe uma das mos.
Venha, minha querida.
Ela sentia repulsa por ele desde a noite fatdica em que recebera a notcia
da morte do pai. Luther Hogge s mostrara preocupao e simpatia, mas Melody
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Projeto Revisora 16

detestara o momento em que ele a abraara; murmurando palavras de
condolncias.
Tudo mudara da em diante, mas to devagar que nenhum deles pudera
definir exatamente como. Os investimentos que haviam arruinado seu pai
comearam a prosperar, graas a Luther, que, a essa altura dos acontecimentos,
j se considerava parte da famlia. Isso no impedira, no entanto, que a casa
fosse ficando cada vez mais silenciosa, e o riso se tornasse parte do passado.
A me de Melody jamais discutia as decises de Luther, limitando-se a
andar de um cmodo para o outro como uma sonmbula, com uma expresso febril
no olhar. Mas o pior fora entrar um dia na saleta e encontr-la nos braos de
Luther. Sua me tinha um olhar vago e nem se dera ao trabalho de se afastar
dele, enquanto ela murmurava um pedido de desculpas. Luther, no entanto, fora
rapidamente at onde ela havia estacado, na porta, e dissera, num tom suave mas
cheio de ameaa:
De agora em diante, voc vai bater nas portas antes de entrar. E no
deve censurar, nem mesmo com um olhar, o que eu fao. Estamos entendidos?
Apavorada, ainda sem entender direito o que era a maldade, ela fugira.
Desde esse dia, no entanto, passara a evitar Luther Hogge o mximo possvel.
Sua me ficara doente. De tristeza, diziam todos que a conheciam e
sabiam o quanto amara o marido. Nessa poca chegara a irm de seu pai, lady
Beatrice Davenport. Com uma personalidade alegre, conseguira mudar o ambiente
na velha casa. At sua me se animara por algum tempo, mas sua alma e seu corpo
j estavam envenenados pelos "medicamentos" que Luther lhe fornecia, e na
Pscoa ela se fora.
Voc est sonhando de novo comentou a voz detestvel, fazendo-a
voltar ao presente.
Acho que uma conversa sria... e pelo seu tom j vi que sria... deve
esperar at que tia Bia possa estar presente.
O modo como Luther franziu a testa mostrou-lhe que, ao falar da tia, ela
tocara num assunto que ele no considerava muito agradvel.
Ah, sim, sua tia Bia... Uma pena que um simples resfriado a tenha
abatido tanto. Fico pensando se no h mais alguma coisa por trs disso.
Melody gelou, lembrando-se de que ele recomendara uma infuso de ervas,
logo no incio da gripe de sua tia. Como tambm recomendara a sua me uma
infuso de sementes de papoula, "para reconfort-la na dor e trazer o sono".
Com um sorriso amigvel, Luther continuou:
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Projeto Revisora 17

Se sua tia continuar assim, vamos ter de chamar o mdico. Por enquanto
no vejo necessidade de perturb-la. O que tenho a dizer melhor que seja s
entre ns dois, pois, apesar da sua tia s querer o seu bem, acho um pouco difcil
agentar aquele jeito autoritrio dela. Sem dvida, Bia uma excelente
companhia. E ter sorte de eu ser um homem tolerante e generoso, j que no
possui renda prpria nem ningum que a sustente. Mas at a minha tolerncia tem
limites.
Voc no tem escolha, Luther Melody replicou, zangada. Sem
dvida um homem rico e poderoso, mas tia Bia pertence a um crculo social
muito superior ao seu. Um crculo que pode vir a fazer perguntas sobre a morte
de meu pai... e de meu irmo.
Melody encolheu-se ao v-lo erguer a mo. Antes de atingi-ia, no entanto,
Luther conseguiu dominar-se e sorriu.
Perdoe o meu gesto. No pretendia assust-la. Mas devo lembr-la de
que sua tia vive sob o meu teto e muito bem tratada. Sei que ela j foi uma das
mulheres mais lindas de Londres, mas agora est quase obesa e faria bem em
comer um pouco menos. Uma mulher com o peso e a idade dela deve tomar alguns
cuidados. A escada muito mal-iluminada, nesta casa, e fcil tropear num
objeto esquecido num dos degraus, por um criado descuidado... Ele fez uma
ligeira pausa, antes de continuar: Mas no disso que quero lhe falar. Voc
levantou a possibilidade de ser mal-interpretada a minha presena, numa casa
cujo dono q seu filho morreram em acidentes infelizes.
Melody gelou. Luther acabava de dizer que tia Bia s estava viva graas a
seu esprito generoso, mas havia uma ameaa inconfundvel em suas palavras. Uma
ameaa que no transparecia no olhar, quando a fitou.
Puxa, Melody, voc est to plida! Venha sentar-se um pouco. Vou pedir
que lhe tragam um clice de vinho da Madeira.
Sem reagir, ela se deixou levar para o sof diante da lareira. Logo depois
entrou a criada, uma criatura de ar traioeiro, que nunca vira antes.
Onde est Jessie?
Tive de mand-la embora, minha querida. Ela foi muito grosseira com o
cozinheiro.
Em seu ntimo, Melody sentiu a raiva renascer.
Mas Jessie estava conosco desde que eu era criana! Nunca vi uma
pessoa to meiga! A culpa s pode ser do novo cozinheiro. O antigo se dava muito
bem com ela. Todos os nossos criados se davam bem. E Jessie era a ltima que
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Projeto Revisora 18

restava, a no ser por Simpson... Gente que conheci minha vida inteira, e que voc
substituiu pelos seus... fantoches!
Ignorando essa ltima frase, Luther serviu-a de vinho e encheu um clice
para si.
Um bom mordomo difcil de achar, Mas os outros eram totalmente
ineficientes. Agora o servio corre melhor e nada acontece sem que eu saiba.
Melody tomou um gole da bebida, lutando para dominar a prpria fria,
enquanto ele continuava:
Mas eu no a trouxe aqui para falar de criados. Meu assunto muito
mais pessoal. Esvaziando seu clice de um s gole, Luther serviu-se de mais.
uma dose e foi sentar-se ao lado de Melody. Querida, voc sabe... por que eu
tenho sido to generoso com vocs, no sabe? Por que tenho feito o possvel para
diminuir a sua dor... Sinto, no entanto, que j hora de voc retribuir... No;
melhor dizer "aceitar" as minhas pequenas gentilezas. No possvel que tenha
deixado de perceber os meus sentimentos por voc e...
Ela se levantou de um salto, enojada com o desejo que via nos olhos dele.
Eu nunca lhe pedi nada, muito menos os seus presentes, que jamais
aceitei. Ciente do olhar masculino fixo em seu corpo, Melody foi at a janela,
onde se ps a olhar a chuva. No sou criana para ser comprada com presentes,
Luther.
Luther ergueu-se, o olhar sombrio, a pacincia quase no fim. No entanto,
sua voz no se elevou. Ele nunca levantava a voz, enganando os inimigos com seu
tom pseudo-educado e suportando-lhes o desprezo, enquanto esperava o
momento de faz-los pagar mil vezes pelo pouco-caso com que o tratavam.
Naquele instante, diante do maior desafio de sua vida, ele decidiu provar seu
poder de uma vez por todas. Melody e a tia estavam sozinhas e quase sem
dinheiro numa casa que era dele, totalmente dependentes de sua caridade.
Parecia-lhe impossvel que pudessem enfrentar sua vontade.
Voc no entende, minha querida. No estou simplesmente lhe pedindo
para se casar comigo. Estou lhe oferecendo tambm uma posio respeitvel na
sociedade, entre pessoas que a olharo com respeito, at mesmo com inveja, por
ser minha esposa. Eu lhe comprarei vestidos e jias como nunca sonhou. Iremos a
soires elegantes e receberemos a nata da sociedade em nossa casa. Ele se
aproximou um pouco, pois no queria assust-la; s defender seu ponto de vista.
Voc no pode me rejeitar, Melody. Esperei tanto tempo. No imagina como foi
difcil trat-la como a uma criana, no ano passado. E depois voc ainda teve a
coragem de fugir com aquele inspido holandeznho! O filho de um professor de
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Projeto Revisora 19

piano! Mas pelo menos mostrou que j estava pronta para o casamento e eu no
precisava mais esperar. No havia mais nada que pudesse nos separar.
A no ser o meu marido!
Voc no o amava. Estava apaixonada pelo amor, entusiasmada com as
lindas palavras de carinho ditas num sotaque estrangeiro.
Nem vou me dar ao trabalho de responder retrucou Melody, sabendo,
no fundo, que no podia mesmo. Hugh a tratara com a gentileza e o carinho que
faltavam em sua vida, mas no conseguira despertar a paixo em seu sangue.
Foi por sua causa, Luther, que Hugh e eu resolvemos fugir para nos casar.
Sabiamos que voc no concordaria com nossos planos e faria o possvel para nos
impedir de realiz-los.
Sua tia e os pais dele tambm no gostaram dos seus planos!
Eles logo mudariam de idia, quando vissem o quanto ramos felizes
juntos. Mas com voc seria diferente. Voc nunca nos deixaria em paz. Eu sei
disso! Agora Hugh est morto, e eu me culpo pelo que lhe aconteceu. Se ele no
tivesse sado, no teria morrido. Os olhos de Melody encheram-se de lgrimas.
Era uma hospedaria to bonita!
Era um lugar srdido, isso sim! Luther rosnou. E aquela capelinha
miservel era ainda pior...
Luther interrompeu-se repentinamente, mas Melody j o fitava, tremula e
incrdula.
Voc... esteve l?!
O rapaz era um pianista sem dinheiro, recm-sado de um conservatrio
de Viena, um perfeito desconhecido. Logo voc o esquecer, quando nos
casarmos. Eu lhe garanto!
Ele foi tomado por uma pontinha de remorso, ao ver a expresso de horror
nos olhos dela.
Um assalto, eles disseram... E Hugh foi morto pelas costas!
Ainda seguro de seu poder, Luther estendeu a mo e segurou-a pelo brao.
Melody, querida! Foi uma pena voc descobrir, mas o garoto tinha de ser
eliminado.
Sem se dar conta da presso dos dedos em seu brao, momentaneamente
entorpecida pelo horror, ela murmurou:
Voc matou Hugh. Voc o matou!
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Projeto Revisora 20

Luther amparou-a antes que atingisse o cho. Desmaiada, com a cabea
jogada para trs, exibindo o colo, o pescoo e o incio dos seios, ela era uma forte
tentao. Ele ainda tentou se controlar, mas depois, com um gemido, cobriu-a de
beijos. Ardia de desejo, e percebeu que jamais teria condies de deix-la
partir.
Por ela, matara uma vez e no permitiria que ningum ningum! os
separasse. Quase louco, enfiou a mo pelo decote do vestido, fechando os dedos
sobre o seio macio e sedoso... para retir-los no instante em que ela gemeu
baixinho.
Luther suava profusamente e sentia o corpo queimar como se estivesse no
inferno, mas seu tom foi suave e conciliatrio, ao dizer:
Minha querida Melody! Foi um choque, sem dvida alguma. Pena que isso
tivesse de vir tona agora, mas melhor assim. Nenhum segredo manchar nossa
unio.
Eu vou polcia! Melody gritou, completamente recuperada e lutando
para se afastar dele. Voc ser enforcado!
No creio. Sendo minha esposa, no poder testemunhar contra mira. E,
mesmo que algum policial venha a se interessar pelo caso, nada acontecer
comigo. Sou amigo de muita gente influente.
Sua esposa?! Depois disso?! Ela abafou um grito de angstia. Voc.
poderia t-lo pago para ir embora. Ele era to pobre que provavelmente no
resistiria. Voc no precisava mat-lo!
Luther concordou, mas sem arrependimento.
Cheguei a pensar nisso, mas fiquei com medo de que recusasse. O tolo na
certa pediria uma noite para pensar a respeito... a sua noite de npcias! No sei
se percebeu, mas o seu casamento virou meu mundo de cabea para baixo. Eu
estava to certo de que a teria! claro que tinha notado as conversas
sussurradas e os olhares que vocs trocavam, mas pensei que fosse apenas uma
paixonite de adolescente. At Beatrice se enganou! Se bem que ela no ficou to
chocada quanto deveria, ao ler sua carta, pedindo compreenso e perdo pela
fuga. Eu ao contrrio, tive a impresso de que me arrancavam o corao do peito.
No pude impedir o casamento, mas mandei um recado a seu marido, quando voc
estava se trocando. Disse-lhe que a me dele fora atropelada por uma carruagem
e estava muito mal. Naturalmente, o tolo no poderia deixar de ir at l.
Ele prometeu voltar naquela mesma noite Melody murmurou. E eu
esperei e esperei...
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Projeto Revisora 21

Luther foi tomado pela vontade de abra-la e beijar-lhe os lbios
trmulos, para afastar-lhe da mente a lembrana daquele rapaz esbelto e de
cabelos claros. S de pensar nele sentia raiva.
Voc esperou at de madrugada, andando de um lado para o outro do
quarto, aborrecida demais para se lembrar de fechar as cortinas. E eu esperei
com voc, sem ligar para o frio e a chuva. Havia calculado tudo direitinho, j que
ladres no faltavam naquela rua. A morte de outro passante infeliz nem causaria
surpresa.
Voc calculou bem demais, matando-o pelas costas!
Os olhos de Luther brilharam ao notar o desprezo na sua voz. Mesmo
assim, ele continuou, num tom tranqilo:
Quando nos casarmos, ter de aprender a no falar mais desse modo.
melhor se convencer, minha querida, de que ningum poder se colocar entre ns.
Ningum a possuir antes de mim. Voc nada saber do amor, alm do que eu lhe
ensinar. Garanto que me achar um professor experiente, um doador generoso.
Voc ser inteiramente minha, com sua inocncia de virgem, sua beleza e sua
extraordinria inteligncia, que foi a nica coisa decente que seu pai lhe deu. E
depois, com o tempo, terei tambm o seu amor, O tom de Luther mudou
sutilmente: Sabe que existem mulheres, em nossa sociedade, que so
prisioneiras em suas prprias casas? Ouvi homens que freqentam clubes
respeitveis, como o White's, confessarem que mantm moas como voc
prisioneiras em quartos dos fundos, para satisfazerem seus desejos mais
estranhos. Para vestir, elas no tm mais que um roupo de seda, e a sociedade
chega a esquecer que existem, com o passar do tempo...
Tremendo incontrolavelmente, Melody gritou:
Antes prefiro morrer!
Ah, no, minha querida! Se um homem desses a possusse, voc estaria
agora amarrada a sua cama, aprendendo a satisfaz-lo de todas as maneiras
imaginveis. E quando isso acontecesse... morrer nem passaria pela sua cabea.
Luther aproximou-se. Mas eu sou muito diferente deles, s quero am-la e
proteg-la.
Melody sentiu-lhe a respirao no rosto e fechou os olhos, lutando contra
a nusea. De repente, no entanto, Luther foi se servir de outro clice de
Madeira, comentando num tom gentil, como se no tivesse feito nenhuma ameaa
velada:
Sei que meu pedido foi meio precipitado, Melody, mas bom que voc
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Projeto Revisora 22

possa pensar nele, sem haver nenhum segredo entre ns. Mais tarde entender a
extenso do meu amor. Talvez at se sinta orgulhosa de ter um homem capaz de
matar por voc. Por enquanto, natural que se sinta um pouco confusa.
Um pouco confusa! Ela o fitou, o rosto expressando medo e repulsa.
Prefiro me tornar freira a me casar com voc!
Os olhos de Luther se estreitaram.
Voc est cansada e no sabe o que diz, minha querida. O choque foi
grande, mas amanh j o ter superado. S lhe peo que pense bem a respeito e
no saia de casa. Tenho uma reunio de negcios na cidade e ficaria muito
aborrecido se tivesse de |j interromp-la para sair a sua procura. Ele fez uma
pequena pausa, depois acrescentou: Tem de pensar no que melhor para voc e
sua tia, minha querida.
At casar-me com um assassino?
Isso bobagem. Se Van der Veer no tivesse aparecido, voc j teria se
casado comigo.
Nem em um milho de anos! Antes eu no gostava de voc, mas agora o
odeio. Ela ergueu a cabea, lutando para controlar o medo. Se me forar a
esse casamento, juro que me mato. O dio me dar foras para isso!
Abrindo a pesada porta, Melody fugiu pelo corredor, indiferente ordem
para que voltasse. Respirando pesadamente, subiu ao quarto da tia, procurando o
conforto que a ajudara a atravessar os ltimos meses. Antes de entrar, no
entanto, deteve os passos.
No! No posso!
No podia revelar tia o crime hediondo de Luther, pois nada impediria a
corajosa senhora de deixar seu leito de doente e enfrent-lo. Estava quase certa
de que Luther fora responsvel tambm pela morte de seus outros familiares.
Agora tinha de proteger a tia.
Mas eu preciso tanto dela! murmurou baixinho, levantando a mo
trmula para abrir a porta. Tia Bia, temos de sair desta casa, e o mais
depressa possvel!
Plida, com enormes olheiras, Beatrice Davenport jazia sobre a cama, sob
vrios cobertores.
Calma, minha filha disse ela, no tom prtico de sempre. Em seguida,
vendo o rosto molhado de lgrimas da sobrinha, indagou: O que foi? Hogge
aborreceu-a de novo? Sei que ele um grosseiro, mas, graas ao tolo do seu
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Projeto Revisora 23

irmo, agora dependemos dele. Ah, por que no me casei com um dos vrios
milionrios que pediram a minha mo?
Um soluo escapou dos lbios de Melody.
Ah, tia, no fale em casamento! Com mais um soluo, ela se jogou nos
braos da boa senhora. Hogge quer se casar comigo. Mas eu no posso aceit-
lo! No posso!
Beatrice apertou os lbios.
Claro que no pode! impossvel! Voc tem pelo menos mais nove meses
de luto. Eu contava com esse tempo para pensar numa soluo, mas devia ter
desconfiado de que no ia dar. Luther ficou louco de raiva quando descobriu que
voc tinha fugido com aquele rapaz. E tenho visto o modo como a devora com o
olhar, quando voc toca piano para ns. Eu no sabia por que ele a tinha
encorajado a tocar novamente, quando a msica s fazia com que voc se
lembrasse,de Hugh, mas depois entendi. Enquanto a ouvia, o miservel s pensava
em uma coisa... e no era na msica. Com um lencinho de rendas, Beatrice
enxugou o rosto da sobrinha e forou-a a endireitar o corpo. No tenha medo,
querida, ns vamos encontrar uma sada. No passei metade da minha vida
evitando os homens de quem eu no gostava, sem aprender alguma coisa. Um
sorriso confiante entreabriu-lhe os lbios. Agora, o melhor ir dormir e des-
cansar. Amanh outro dia, e tenho certeza de que ser diferente. V! V
descansar.
Com um sorriso aflito, Melody beijou a tia e passou para o seu quarto, que
se comunicava com aquele. Beatrice insistira nisso depois da morte da me de
Melody, dizendo a Luther:
Como madrinha e nica parenta viva de Melody, sinto-me responsvel
pelo bem-estar moral da menina. O senhor agora vive nesta casa, e no ficaria
bem que ocupasse o aposento junto ao de minha sobrinha.
Ele fora forado a concordar, escondendo a raiva com um sorriso frio.
O amanhecer trouxe uma melhora no tempo, mas no melhorou a disposio
de Melody. Ela no dormira, entregando-se alternadamente a momentos de raiva
e de choro, e se levantara para correr ao quarto da tia, rezando para que a
bondosa senhora tivesse encontrado uma sada para seus problemas.
Encolhida sob os cobertores, Beatrice no conteve um gemido quando a
sobrinha abriu as cortinas da janela. Espirrando, ergueu para ela os olhos
avermelhados e o rosto plido.
No estou boa, no ? comentou, encontrando o olhar preocupado de
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Projeto Revisora 24

Melody.
Vou chamar o Dr. Goodhew agora mesmo. Luther j deve ter sado, e
Simpson de confiana.
Melody desceu a escada correndo e, ao passar pela sala de jantar, teve a
desagradvel surpresa de avistar Luther sentado mesa do caf. Prendeu a
respirao, rezando para que ele no a visse, mas logo ouviu-o chamar seu nome.
Sentiu vontade de fingir que no escutara e continuar seu caminho, mas no se
atreveu. Hogge a seguiria, e a situao ficaria pior. Por isso, com um suspiro,
entrou na sala.
Luther se levantara e agora limpava a boca com um guardanapo de linho,
observando-a. Ela dormira mal. Tinha um ar abatido, e havia olheira em torno de
seus olhos adorveis.
Melody! um raro prazer encontr-la a esta hora. Estou contente por
ter dormido demais. Geralmente, voc s desce depois que vou embora. Aonde ia
com tanta pressa?
A urgncia de sua misso levou-a a se adiantar um passo.
por causa de tia Bia. Ela est pior esta manh e eu quero que Sirapson
v atrs do mdico.
Luther passeou o olhar pelo vestido negro, de mangas longas e gola alta,
que Melody usava e franziu a testa.
Esse vestido saiu de moda h mais de cinco anos. Quando eu voltar, esta
noite, quero que esteja usando um dos que lhe comprei. Quanto a mandar Simpson
atrs do mdico, isso no tarefa para um mordomo. Assim que eu chegar ao
escritrio, vou mandar um dos meus homens a Harley Street, chamar um dos
especialistas de l.
Desesperada, Melody argumentou:
Mas o dr. Goodhew o nosso mdico de famlia e... No pde continuar,
diante da expresso que surgiu nos olhos sinistros.
Esta noite, tenho certeza de que voc concordar em se tornar parte da
minha famlia. Uma parte muito querida e preciosa, que aceitar a minha opinio
em tudo. Vou mandar um dos garotos chamar o meu prprio mdico, que muito
mais qualificado do que aquele tolo do Goodhew. Luther semicerrou os olhos,
embora sua voz continuasse suave. No quero ter o desprazer de descobrir
que voc no levou em conta a minha vontade e chamou outro mdico. Seu bem-
estar e o de sua tia so a minha maior preocupao, minha querida, mas voc
precisa aprender a dominar esses seus laivos de independncia.
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Projeto Revisora 25

Melody nada mais podia fazer, a no ser fugir dali e voltar correndo para o
quarto da tia.
O mdico no demorou a chegar. Era um homenzinho gordo, to cheio de si
e convencido dos prprios conhecimentos que mal olhou para a mulher na cama.
Num tom pomposo, declarou que a doente deveria continuar no leito por mais
duas semanas, com as janelas do quarto fechadas para evitar a entrada dos
fluidos malignos do ar de Londres, tomando trs vezes ao dia o remdio que ele
trouxera.
Assim que ele saiu, Beatrice cheirou o medicamento e mandou que Melody o
jogasse fora, declarando:
Isso pior que os ares londrinos. Eu mesma vou me tratar. Mande o
cozinheiro ferver uma galinha at metade da gua desaparecer, depois cort-la
em pedaos, ferver mais um pouco e trazer um prato para mim. Tenho de suar e
expulsar este resfriado, e no se atreva a me dizer que damas no suam. Se deu
certo com os cavalos de seu pai, vai dar certo comigo! Traga-me um copo de vinho
quente, tambm, com bastante canela. Pretendo estar de p cm dois tempos.
Temos planos a traar.
No, tia Bia, a senhora no pode sair desta cama. Vou lhe trazer o vinho
e o caldo de galinha, mas nem pense em se levantar. Melody suspirou. Pelo
menos uma vez na vida, vou resolver meus prprios problemas. Eu sempre dependi
da senhora, mas acho que est na hora de amadurecer.
No entanto, medida que o dia passava, mais difcil parecia seu problema.
S uma coisa era certa: jamais poderia casar-se com Luther Hogge. De ouvir a
conversa das criadas e ver o garanho pertencente a seu pai cobrindo uma das
guas, sabia o que se passava entre um homem e uma mulher, e enchia-se de
horror ao pensar que pudesse lhe suceder o mesmo, com Hogge. Uma reao bem
diferente da que tivera nos braos de Hugh Van der Veer, embora, na poca, o
visse mais como um amigo do que como um amante.
Os olhos de Melody brilharam ao se lembrar dos avanos tmidos e olhares
de adorao de Hugh, nas raras ocasies em que se encontravam secretamente,
depois de suas aulas com o pai de-!e. Hugh levara quase um ano criando coragem
para lhe dizer o que sentia, com medo de uma rejeio. Mas uma noite, com a
ajuda de uma garrafa de vinho, conseguira se abrir, tomando-a nos braos e
beijando-a ardorosamente nos lbios. Logo em seguida, desculpara-se
profusamente, declarando que se mataria se ela no se casasse com de. Saudosa
dos pais, solitria e com medo das atenes cada vez mais intensas de Luther, ela
concordara, convencida de que o amor viria com o tempo.
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Projeto Revisora 26

Poderia ter sido to diferente... Melody sussurrou para si mesma, as
lgrimas comeando a escorrer pelo rosto.
No vai lhe fazer bem chorar disse a voz odiada, da porta. Logo em
seguida Luther entrou, com o sorriso complacente de costume. Vai ficar com
os olhos vermelhos e o rosto inchado. Agora, o que acha de irmos jantar fora?
Dei a noite de folga aos criados, para que no sejamos perturbados, ao voltar, ou
interrompidos, se resolvermos ficar.
Eu... eu no estou com fome.
Melody j estava arrependida de ter se acovardado e colocado um dos
vestidos que Luther lhe comprara. Mas na hora achara que no lhe custaria
tentar agrad-lo e, com isso, ganhar algum | tempo. A seda cinza fazia-a parecer
frgil e delicada, e a ruminosidade das prolas, que trazia junto ao pescoo,
realava a beleza de sua pele.
Encantado com o que via, Luther sentiu um aperto na garganta e foi com
dificuldade que pronunciou:
Melody... Quer deixar para jantar depois? Podemos conversar, agora.
Sem lhe dar tempo para protestar, ele a empurrou em direo ao escritrio.
Vamos falar de negcios... ou de prazer? Nosso casamento ser um campo de
batalhas... ou a rendio lenta, se bem que de boa vontade, de uma donzela de
gelo?
Por alguns instantes, Melody tentou se livrar da mo que a segurava pelo
cotovelo. No conseguindo, atacou:
Eu jamais me renderia a voc, Luther. Se me forar a um casamento,
ser duplamente assassino.
O sorriso que ele vinha mantendo nos lbios tornou-se menos natural.
Duvido. H muitos meios de for-la a comer, e posso evitar que entre
em contato com qualquer objeto que possa ser usado como arma. Se por acaso
fugir, sabe que eu a seguirei at o fim do mundo, se for preciso. E, quando a
encontrar, vai se arrepender de ter fugido. A voz dele tornou-se dura. Voc
me provocou demais, fingindo-se de inocente. No mais criana, Melody, e est
na hora de eu lhe ensinar a ser uma mulher de verdade.
Antes que ela pudesse adivinhar-lhe a inteno, Luther forou-a a se virar,
puxando-a de encontro ao peito. Dedos implacveis agarraram seus cabelos, e seu
grito foi abafado por lbios grossos e agressivos. Quase sem sentidos, lutando
com desespero, ela ergueu as mos e atacou-o, deixando oito profundos
arranhes no rosto odiado.
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Projeto Revisora 27

Com um palavro, Luther empurrou-a para longe de si com tanta violncia
que ela foi bater na escrivaninha.
Sua vagabunda! Eu a ensino a no me tratar assim!
A dor trouxe terror e pnico, como ela nunca sentira. Tropeando, deu a
volta escrivaninha, abriu a primeira gaveta e agarrou a pistola escura e sinistra
que seu pai sempre mantivera l.
Vendo a arma em suas mos trmulas, Luther hesitou.
Sua tola! D-me isso!
Eu nunca atirei Melody confessou , mas sei o que fazer. No vou me
casar com voc, Luther, e, se no sair daqui agora, juro que o mato. Prefiro isso
ao pesadelo de ser sua esposa!
Tranqilizado pela confisso de que ela nunca atirara, Luther dominou o
medo que o assolara, fazendo-o suar frio. Deus, como a queria! Mantendo um tom
despreocupado, disse:
Esse brinquedo no limpo h mais de um ano. Est velho e com certeza
vai explodir na sua mo, se puxar o gatilho. Deixe de bobagem e me d essa
pistola. Voc tem coragem, e eu a admiro por isso, mas agora melhor
conversarmos sensatamente sobre o nosso casamento. Reconheo que me deixei
levar pela sua beleza e fui um pouco duro, mas vou mudar. No devia ter tentado
for-la, mas nunca conheci uma mulher como voc e...
Ele havia se aproximado, sempre observando os olhos dela, e de repente
atacou. Houve uma exploso, e uma exclamao de choque escapou-lhe dos lbios
quando a primeira bala atingiu-o de raspo no rosto. Enlouquecido pela raiva e
pela dor, avanou novamente, agarrando-a com mos brutais. Ia possu-la! Ali,
naquele momento!
Esquecido da pistola, baixou o rosto ensangentado em direo aos seios
sedutores, que j desnudara rasgando-lhe a frente do vestido. Foi quando outra
exploso encheu o ar e mais uma bala o atingiu, desta vez na poro lateral do
corpo, jogando-o para trs. Agoniado, incrdulo, por um instante ele ficou onde
estava, as mos apertando o ferimento do qual o sangue jorrava.
No! Melody murmurou. No! Ento, inacreditavelmente, Luther
endireitou-se. Os braos enormes ergueram-se... e, aterrorizada, ela atirou
novamente. A bala o fez ir de encontro a uma cadeira, antes de cair ao cho. Por
um instante ele ainda se mexeu, depois imobilizou-se, o sangue tingindo o tapete.
Melody cambaleou, a cabea latejando com o barulho da exploso e a
horrenda conseqncia de seu gesto. Deu um passo para a frente, soltando a
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Projeto Revisora 28

pistola. Tinha de procurar ajuda, fazer alguma coisa. Um passo, depois outro, e
estava junto ao corpo estendido sobre o cho. Havia tanto sangue! Dominando a
nusea, abaixou-se e tocou-lhe o pulso. Nada. Gemeu baixinho, enquanto a sala
parecia girar loucamente em torno de seu corpo.
Ele est morto. Meu Deus, o que foi que eu fiz?!
Momentos depois, Beatrice Davenport, que se levantara da cama ao ouvir
os tiros, encontrou a sobrinha junto a sua porta com o vestido rasgado at a
cintura e os cabelos caindo-lhe pelas costas.
Tia Bia... eu preciso... ir embora... agora! No sei como nem para onde,
mas preciso ir. Preciso!
Melody, querida! O que foi que aconteceu?!
Acabo de matar Luther Hogge Melody anunciou E escorregou para o
cho, perdendo os sentidos.

CAPTULO II

Quando voltou conscincia e realidade, Melody abriu os olhos e deu um
soluo, nos braos de tia Bia.
Vai dar tudo certo, meu bem. Vamos, levante-se. Devagarzinho.
Levada at o lavatrio, no quarto, Melody banhou o rosto, o pescoo e os
arranhes que Luther lhe causara no colo, ao rasgar seu vestido.
Precisamos nos vestir para viajar Beatrice declarou, No podemos
levar nada, a no ser o que for de maior necessidade e o que possumos.em jias e
dinheiro. Temos de sair antes que os criados o encontrem.
Ela cambaleou, ao se virar para o armrio, e Melody segurou-a pelo brao,
A senhora no pode viajar. Deveria estar na cama, E no quero que v
comigo. No posso pedir a ningum que d abrigo a uma... uma assassina. Preciso.,.,
desaparecer. Ah, tia Bia, a senhora no sabe de nada! Ele matou Hugh. E teve
prazer em me contar! Nunca odiei tanta algum. Acho que ele causou a morte de
papai, tambm, para que pudesse nos controlar. E deve ter convencido o coitado
do Harry a ir at a ndia, deixando tudo para ele. Eu j estava desconfiada disso,
mas tinha medo de dizer. Pensei que pudesse escapar com Hisgh, E... e quando
Luther me tocou... e tentou... tentou... Fiquei apavorada e naquele momento, quis
que ele morresse! Oh Deus, o que vem fazer? No h nenhum lugar..
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Projeto Revisora 29

Beatrice sacudiu a.jovem com firmeza, Naquele instante, apesar de sua
doena, era a mais forte das duas.
Hogge merecia morrer, e existe um lugar para onde podemos ir. Mas
s por algum tempo, pois o nome do dono no pode ser associado ao meu.
Depressa, v se arrumar que depois eu explico. No h tempo a perder!
Melody respirou fundo.
Eu... eu preciso pensar. Se h um lugar, mesmo que seja s por esta
noite... Quase no tenho dinheiro... Seus olhos caram sobre a caixa de jias
que Luther lhe comprara. No, no vou levar nada que seja dele! Nada! E,
voltando-se para a tia, que esvaziava um enorme ba, exclamou: Mas isto eu
vou levar... a valise que foi de papai.
H anos ningum mexe nela. Tem s lembranas das viagens dele. Meu
irmo era um grande sentimental.
Mais um motivo para eu lev-la. No posso deixar aqui coisas que tanto
significaram para ele. E h as jias de mame, tambm, embora no sejam de
muito valor. Melody se jogou sobre a cama, escondendo o rosto nas mos.
Ah, papai... por que o senhor foi confiar nesse homem? Que poder ele tinha sobre
o senhor?
No vai ajudar em nada pensar nisso agora, minha querida. Temos muita
coisa a fazer, e pouco tempo. Venha, tire esse vestido e coloque outro. Depressa!
Menos de meia hora depois, elas desciam de uma carruagem, na frente de
uma linda casa, na Eaton Square. Um mordomo de libr atendeu-as, erguendo as
sobrancelhas quando lady Davenport mandou-o pagar o cocheiro e passou por ele,
entrando na casa como se tivesse todo o direito de ali estar.
Embaraada e insegura, Melody seguiu-a, quando ela abriu uma porta de
madeira esculpida e anunciou:
John, preciso de sua ajuda!
O nico ocupante do cmodo levantou-se de uma poltrona larga, soltando
uma exclamao abafada.
Mas que droga, Beatrice! Voc precisa quase me matar de susto, cada
vez que nos encontramos?
Quando Melody reconheceu o aristocrata alto, de cabelos brancos, sentiu
um frio na boca do estmago. Tia Bia no podia contar com a ajuda dele!
O homem cruzou o cmodo e passou um dos braos pela cintura de
Beatrice, levando-a at uma cadeira.
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Projeto Revisora 30

Minha querida, voc est com um aspecto horrvel. Ento, com uma
expresso bondosa nos olhos castanhos, voltou-se para Melody. Voc deve ser
a sra. Van der Veer. De tanto ouvir Beatrice falar em voc, tenho a impresso de
j conhec-la.
Por favor, aceite meus sentimentos pela morte de seu marido. Uma pena!
Nossas ruas precisam ser mais bem patrulhadas. Aceita um cherry, enquanto
converso com sua tia e descubro a razo desta visita intempestiva?
No, obrigada. Quanto razo desta visita... sou eu... ou melhor, a razo
Luther Hogge. Ele...
Sufocada pelas lgrimas, Melody no pde continuar e deu-lhe as costas,
cobrindo o rosto com as mos. De imediato, foi conduzida a um sof e, segundos
depois, um clice lhe foi oferecido.
Beba isso, criana. Vai lhe fazer bem. Beatrice, o que foi que aconteceu?
Melody tossiu quando a bebida forte lhe queimou a garganta, mas logo
comeou a sentir-se melhor.
Em rpidas palavras, Beatrice relatou os acontecimentos da noite. Quando
chegou ao fim, o homem praguejou baixinho, pondo-se a andar de um lado para
outro.
No conheci o seu marido, sra. Van der Veer, mas conheci muito bem o
seu pai. por isso que me parece inconcebvel que, na noite de sua morte, ele
estivesse andando junta ao rio.
Melody ergueu o rosto, confusa.
Como assim?
Ele odiava o rio. Costumava cham-lo de esgoto de Londres. O cheiro que
vem de l to ruim, que j chegaram a pensar em mudar o Parlamento para
outro lugar, bem longe do Tamisa. Por livre e espontnea vontade, seu pai jamais
passaria por l.
Melody sentiu o corao apertar-se.
O senhor acha que...
Se voc no tivesse... executado Luther Hogge, eu faria o possvel para
v-lo enforcado por um duplo assassinato!
Quer dizer que ele no se suicidou. Graas a Deus! murmurou
Beatrice.
S ento Melody percebeu a vergonha que o suposto suicdio de seu pai
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Projeto Revisora 31

lanara sobre a famlia. Para ela, aquela morte fora uma tragdia, mas para sua
tia significara mais do que isso.
Segurando as mos de Melody num gesto de conforto, o homem voltou os
olhos brilhantes para Beatrice. . Voc fez bem em vir para c. Considero uma
honra que tenha procurado por mim. Soltando as mos de Melody, ele foi at
Beatrice e,.com a maior naturalidade, empurrou para trs os fios de cabelo que
lhe caam sobre a testa. Agora, no entanto, gostaria que aceitasse as atenes
da minha governanta e do meu mdico.
Antes, porm, que ele pudesse chamar pela governanta, Beatrice exclamou:
H mais uma coisa que eu preciso lhe contar, John. A voc e a Melody.
Depois, enquanto resolve corno nos tirar disso, farei o que voc quiser. Mas
absolutamente necessrio que Melody e eu deixemos a Inglaterra.
No! Melody gritou. A senhora no! No justo. Todos os seus
interesses esto aqui...
Ela foi interrompida por um gesto firme e um sorriso amoroso.
- Uma mulher como eu se adapta a qualquer circunstncia, desde que
esteja com as pessoas que ama. Agora... Beatrice tomou as mos de Melody
entre as suas. Meu bem, sei que vai ser um choque, mas voc precisa saber.
Seu pai... meu irmo Alexandre... foi um rapaz alegre e despreocupado. Gostava
de festas e/viagens, e nossa famlia tinha condies de lhe satisfazer as
vontades. Lembra-se de como ele sempre insistia para que, um dia, voc fosse
Amrica? Um ano antes do seu nascimento, ele esteve l a convite de uma amiga
inglesa, a filha de lorde Fortesque, que havia se casado com um plantador de
algodo da Carolina. Durante essa visita, seu pai se apaixonou por uma moa
chamada Ereanora. Ele nunca disse nada a respeito dessa moa, a no ser o
quanto era bonita, mas ns achamos que devia ser parenta prxima do dono da
plantao, pois vivia l desde a infncia.
Beatrice interrompeu-se por um momento, embaraada, antes de
continuar:
Para infelicidade dos dois, Ereanora ficou grvida e morreu ao dar luz,
o que o deixou inconsolvel.
Melody sentiu o sangue fugir do rosto, ao entender o que a tia queria
dizer.
Meu irmo trouxe o beb para a Inglaterra, com uma ama de leite que
havia contratado. Naturalmente, ele no podia criar uma recm-nascida sozinho
nem queria a ajuda da famlia, que tinha recebido muito mal a criana. Foi quando
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Projeto Revisora 32

resolveu se casar com Charity, a filha de nosso vizinho, na poca viva, com um
filho pequeno. Como era apaixonada por seu pai, ela o aceitou, criando voc como
se a tivesse gerado. Em troca, Alex adorou o filho dela, Harry, e mais tarde fez
um testamento, deixando para o menino tudo o que possua. O que, em parte,
razo de estarmos nesta situao.
Beatrice suspirou, observando o rosto da sobrinha. Depois prosseguiu:
O que estou querendo lhe dizer, Melody, que voc tem parentes na
Carolina do Norte. Pela vaga descrio de Alex, so pessoas importantes e
hospitaleiras, que na certa a acolhero, quando souberem da morte de seus pais e
de seu marido. Mesmo que seu pai tenha sado de l s pressas e vinte anos
tenham se passado, sangue sangue. Alm disso, voc a filha de um lorde
ingls, o que deve valer alguma coisa num pas que no tem nenhum nobre!
Completamente imvel, Melody mal ouvia as palavras da tia. A mulher que
tanto adorara jamais fora sua me. Mesmo assim... mesmo assim essa mulher a
amara, mantendo a famlia unida e nem por um instante deixando-a desconfiar de
que no era a mais querida das filhas.
Em voz alta, Melody comentou:
Mas ela me amava.
Muito. E foi feliz com seu pai, a quem amava desde a infncia. S se
casou com outro por imposio da famlia. Os Fortesque e os Davenport queriam
aumentar suas fortunas, e George Stapleton era um homem muito... agradvel. Eu
mesma cheguei a pensar em me casar com ele, mas desisti porque, com sessenta e
sete anos, o coitado no sobreviveria a uma nica polca! Beatrice sorriu.
Agora, melhor cuidarmos de nossa vida. Voc tem uma famlia a quem pode
pedir ajuda, e isso que vamos fazer.
Ela se levantou e, de imediato, o anfitrio se aproximou, envolvendo-lhe a
cintura com um dos braos.
Sei que voc uma mulher independente, Beatrice Davenport, mas agora
vai permitir que eu assuma o comando da situao.
Um suspiro escapou dos lbios de Beatrice.
Est bem. Estou mesmo um pouco cansada e com dor de cabea. Pode
chamar a sua governanta, se quiser. Ficando com voc, Melody no poderia estar
em melhor companhia.
Minutos depois, o homem voltou-se para Melody, Os dois j se encontravam
sozinhos.
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Projeto Revisora 33

Precisamos conversar, e ser mais fcil se me chamar de John Brown,
como faz sua tia. Tenho muita influncia neste pais, sra. Van der Veer, e, se
resolver ficar, posso ajud-la. preciso que entenda, no entanto, que no estou
acima da lei, embora muitos julguem o contrrio. Ficando, a senhora ter de ir a
julga-la morte de Luther Hogge.
Melody estremeceu. No duvidava do poder daquele homem, mas tambm
no subestimava a influncia dos amigos de Luther.
Como que adivinhando seu temor, John Brown disse:
Naturalmente, meus advogados alegaro autodefesa, mas a promotoria
sem dvida a acusar de provocao e uma dzia de outras coisas desagradveis.
Mas no verdade!
Sei que no, contudo p dever deles ganhar o caso, e muito pode
depender do estado de esprito do juiz. Conheci Luther Hogge e sei que alguns de
nossos juizes foram subornados por ele. John tomou-lhe a mo esquerda entre
as suas, pensativo, examinou-lhe a palma. Acredito um pouco em quiromancia. A
sua linha da vida longa. No entanto...
Melody no conteve uma exclamao de surpresa.
Que estranho! Eu j tinha at esquecido. No ano passado, tia Bia me
levou a Brighton, e uma cigana leu minha sorte. Ela disse que eu teria de cruzar
dois grandes mares...
Ela tambm no lhe disse que conheceria um homem alto, moreno e
simptico?
Dois. Um, claro como o dia, e o outro, escuro como a noite. Na poca, eu
j conhecia Hugh e achei que ele era o claro. Melody sorriu, um tanto
embaraada por ter revelado aquela tolice. Mas isso tudo bobagem. O que eu
preciso ir embora, e depressa. O problema tia Bia. Ela no pode viajar, doente
como est. O senhor no conhece uma famlia que possa receb-la, pelo menos
at que fique melhor?
Conheo, mas no creio que ela concorde. Nunca vi Beatrice mudar de
idia depois de ter tomado uma deciso. Se ela a acompanhou at aqui, foi porque
achou que voc precisava dela.
Eu sei, mas acho muito egosmo querer que ela me acompanhe nesta
viagem. Tia Bia tem sido uma verdadeira me para mim, desde que a minha...
desde que Charity morreu, e eu a amo demais para lhe pedir isso.
John Brown examinou-lhe as feies, abatidas mas cheias de fora de
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Projeto Revisora 34

carter.
Vou providenciar tudo a fim de que possam embarcar para Nova York no
primeiro navio que sair. L, tenho amigos que podero receb-las e acompanh-las
at o sul. Agora, melhor voc tomar um copo de leite e descansar um pouco.
Melody hesitou por um momento, depois arriscou:
Minha tia veio sua procura instintivamente, sem parar para pensar ou
levar em considerao.,.
Ela sabe que pode contar comigo. John sorriu e ento comeou a
contar: Eu estava voltando de uma viagem de negcios ao Japo quando conheci
a sua tia. Minha esposa tinha morrido um ano antes, durante uma epidemia de
clera. Eu senti muito, mas a verdade que no se pode ficar de luto para
sempre. A vida continua, e eu havia chegado ao ponto em que precisava voltar ao
convvio com a humanidade. Resolvi comear acompanhando uma dessas mulheres
bonitas, mas de cabea oca, pera. No fao idia do que ouvimos; s sei que,
durante o intervalo, houve uma comoo junto ao nosso camarote, a porta abriu-
se de repente, e Beatrice... uma Beatrice bem mais jovem, mas to dinmica
quanto agora... entrou brandindo uma adaga. Eu me levantei de imediato. Minha
companheira estava to apavorada que nem conseguiu gritar. "Voc um
cavalheiro?", a incrvel apario perguntou. E, antes que eu pudesse responder,
prosseguiu: "Se , poderia ensinar este rapaz a ser um, tambm"? Com isso, ela
puxou para dentro do nosso camarote um jovem lorde. Ao que parece, ele a
acompanhara pera e no conseguira dominar o cime quando um conhecido de
sua tia se aproximou para conversar. Puxara da adaga, mas neste ponto Beatrice,
em vez de desmaiar, desarmara-o e correra para o meu camarote. Para encurtar
a histria, eu deixei o jovem lorde sendo consolado pela minha companheira e
levei sua tia para casa. Da em diante, minha vida mudou.
Ele fez uma pausa, meneando a cabea, como se ainda no pudesse
acreditar.
Cada vez que eu via aquele furaco em forma de mulher, ficava sabendo
de uma novidade. Beatrice conhecia mais boatos polticos que qualquer um dos
meus assessores. Ela abalou minhas crenas e demoliu minha pompa.
Naturalmente, nosso relacionamento tambm teve horas sossegadas. Beatrice
parecia entender, por instinto, quando eu precisava de descanso. Eu ia atrs dela,
sem nunca saber quando a encontraria sozinha. Uma vez reclamei, e Beatrice me
disse que a melhor coisa da vida era a liberdade de esprito. Ela sempre foi
independente. Nunca pediu a ningum o que essa pessoa no pudesse dar, e exigia
o mesmo respeito.
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Projeto Revisora 35

Observando a emoo nas feies masculinas, Melody perguntou:
O senhor a amava... ainda a ama?
Outro sorriso surgiu nos lbios de John Brown.
Claro. Era impossvel no am-la. Mas s como se ama uma estrela, no
cu. Mulheres como Beatrice nunca envelhecem, e nunca se velho ao lado delas.
Quando passam por sua vida, causam o efeito de milhares de fogos de artifcio
explodindo ao mesmo tempo. Vou sentir muita falta dela quando vocs se forem,
mas talvez continuemos em contato.
Ao ouvir falar em sua viagem, Melody no controlou um estremecimento.
No devo tomar mais no seu tempo... sr. Brown. J foi muito bom
conosco.
Aprendi que a bondade como uma onda num lago, espalhando-se desde
o seu ponto de origem e tocando outros, outros e outros. Fale com sua tia
amanh. Agora voc precisa descansar.
Melody foi para o quarto que lhe indicaram e trocou de roupas, colocando a
camisola que a sra. Fullerton, a governanta, havia conseguido com uma das
ajudantes de cozinha. Cansada e confusa, procurou dormir, mas as sombras que a
lua lanava sobre sua janela, atravs dos galhos das rvores, pareciam danar a
valsa da morte. Enterrando o rosto no travesseiro, ela chorou de medo do que
viria em seguida, at que, exausta, adormeceis.
A manh no trouxe paz, s o fim dos pesadelos que a tinham atormentado
a noite inteira, impedindo-a de dormir tranqila. Plida, com olheiras em torno
dos olhos azuis, ela desceu para o caf da manh. Sua tia e John Brown j
estavam mesa, conversando num tom baixo e ansioso.
A senhora no devia esta de p, tia Bia.
Estou me sentindo bem, querida. Voc, sim, que est abatida. melhor
comer alguma coisa, antes de resolvermos o que temos a resolver.
No estou com fome. S quero uma xcara de ch. Dormi to pouco que
nem estou conseguindo pensar direito.
John e Beatrice trocaram um rpido olhar. Mas foi Beatrice quem disse:
No tem importncia, querida. Voc no precisa pensar em nada, por
enquanto. Vamos para a Carolina do Norte. John j providenciou tudo.
Melody fitou John Brown, que fez um.gesto de assentimento.
Tambm mandei um dos meus homens de mais confiana sua casa, sra.
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Van der Veer. Luther Hogge no estava l mas no creio que tenha conseguido
sobreviver, Meu empregado disse que o mordomo mostrava-se agitado, mas no
demais e foi muito evasivo.
Um soluo de alvio escapou dos lbios de Melody.
O mordomo Simpson. J trabalhava para meu pai e deve ter escondido
o corpo de Luther para me proteger. Na certa adivinhou o que aconteceu. Ele
odiava Hogge, e eu deixei o revlver para trs. O senhor acha que temos mais
tempo agora?
Infelizmente, no. Muita gente devia estar espera de Hogge hoje, e
far perguntas quando ele no aparecer. Afinal, Luther Hogge era um homem de
negcios influente. Quanto mais cedo voc sair daqui, melhor.
Melody foi tomada por um arrepio de medo.
Se mais algum descobrir que fui eu que... Ser que eles... Acha possvel
que eles me encontrem, mesmo numa plantao na Amrica? Essa gente que vai
procurar por ele... Ser que vo usar detetives ou avisar a polcia, logo de incio?
No se preocupe com isso, minha filha. Se o seu desaparecimento causar
estranheza, darei um jeito de espalhar que foi a Paris comprar algumas roupas.
Voc tem muitos amigos em Paris, no teria Beatrice? Podemos dizer que esto
hospedadas na casa de um deles.
Beatrice sorriu, com um brilho estranho no olhar.
Tenho muitos amigos, mas nenhum do tipo que eu apresentaria a Melody.
melhor voc dizer que fomos para a Itlia. Eu me lembro de um conde falido
que conheci l e que achou que eu era uma milionria. Naturalmente, ele estava
reformando sua villa...
John sorriu, lanando-lhe um olhar cheio de compreenso.
Mesmo assim, acho que Paris melhor.
Por qu? No gostou do meu conde italiano?
Eu no gosto de homens jovens e belos.
Uma coisa certa; nenhum deles tem a sua compreenso e me dedicou
tantos anos de amizade,
Obrigado. Sem dvida, prefiro ser a realidade de hoje que o sonho de
ontem. Assim, posso ajud-la a recomear. E mesmo num lugar como a Carolina
deve existir um ou dois milionrios!
Os olhos bondosos voltaram-se ento para Melody, que fitava as prprias
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Projeto Revisora 37

mos.
Sra, Van der Deer...
Nenhuma resposta. Perdida em seu pesadelo, Melody revivia o horrvel
momento em que arranhara o rosto de Luther Hogge.
Melody!
A voz que fazia muitas grandes personalidades do governo tremerem
ressoou peia sala, ela ergueu os olhos, assustada.
Desculpe, eu... O que foi que o senhor disse? A expresso dele mudou,
tornando-se mais firme.
H um navio que sai amanh cedo para Nova York. Vocs partiro nele, e
eu quero que faa o possvel para cortar todos os laos que a unem Inglaterra.
Como vou espalhar o boato de que voc s vai at Paris, no deve se despedir de
nenhum amigo. Em todo caso, se achar que deve deixar bilhetes para algum, a
fim de no despertar suspeitas...
Est bem. Animando-se um pouquinho, Melody sorriu. Foi uma pena
no termos nos conhecido antes. Eu gosto quando me chama de Melody.
Ento, daqui para a frente, seremos John e Melody. E no tenha medo,
pois pretendo me manter em contato com vocs. Inclinando-se para o cho, ele
pegou uma valise e esvaziou-a sobre a mesa. Sua tia andou examinando o
contedo da valise de seu pai, mas no encontrou nada que seja de muita ajuda.
Beatrice suspirou.
Quase tudo muito antigo. Alex era romntico e sentimental, e eu
esperava que tivesse guardado um retrato ou qualquer outra coisa assim, que nos
desse uma pista.
Melody correu os olhos pela pilha de lembranas.
Uma conta, presa a um pedao de couro... Um brinquedo de criana, com
um "Para o tio A-, com amor de B."... Quem ser B.? Um dos membros da famlia?
Uma criana, na poca, mas agora um pouco mais velho do que eu? Olhem que
coisa estranha! Parece a pgina arrancada de um dirio. "Tudo acabado. Soube
que a venderam. Preciso ir. No posso. Nunca mais. Tenho de dizer a Melody para
no..." Me dizer o qu? E o que que foi vendido?
Isso uma velha histria e no deve nos incomodar, minha querida.
Vamos ver o resto.
O resto era composto de vrios objetos sem valor, entre os quais uma faca
de cabo de osso, um pente de marfim e uma velha boneca, que Melody descartara
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Projeto Revisora 38

ao passar da primeira infncia.
No fique se martirizando com isso disse John Brown, de repente.
Voc no sabe o que vai encontrar n futuro, mas no tenha medo das sombras do
passado. E eu j lhe prometi me manter em contato.
O que muito me consola. No sou aventureira por natureza, e ser bom
ter algo que me ligue Inglaterra. Agora, se me do licena, vou escrever alguns
bilhetes. Melody se levantou, com um sorriso dirigido ao casal. O senhor e tia
Bia devem ter muita coisa para conversar.
Temos mesmo, John? Beatrice perguntou, assim que ficaram a ss.
Ele ergueu a cabea, e ela acariciou-lhe levemente o rosto, num gesto de carinho.
No, minha querida. Adeus s uma palavra. Ele se levantou,
erguendo-a junto. Mas existem muitos jeitos de se dizer adeus, no mesmo?
Beatrice arqueou as sobrancelhas, fingindo surpresa.
Voc no deveria estar me sugerindo um adeus muito prolongado.
Resfriada como estou, o que preciso de cama.
Exatamente a minha opinio, minha querida!
Melody passou o resto do dia no quarto. Incapaz de comer, aceitou apenas
uma fatia de presunto e um pedao de po, na hora do jantar. Nesse meio tempo,
descobriu que tinha poucos bilhetes a escrever. Durante o ltimo ano, perdera o
contato com as amigas, graas interferncia de Hogge.
Quando escureceu, Beatrice foi lhe desejar boa noite. Estava mais
animada, com o rosto corado e os olhos brilhantes. Achando que isso era devido
doena, Melody sentiu-se ainda mais culpada.
A segunda noite no lhe proporcionou mais descanso que a anterior, e,
quando ela desceu, John fitou-a com ar preocupado.
Precisa esquecer o que aconteceu, Melody. Vai acabar doente, se no
comer e no dormir. Venha, quero que se alimente bem antes de partir.
Vou tentar, mas estou completamente sem fome. O que me preocupa o
senhor. No quero que ningum o associe a mim, pois isso poderia estragar a sua
carreira.
Ele sorriu, dando-lhe um tapinha amigvel no rosto.
Muita gente j quis arruinar minha carreira, mas at agora ningum
conseguiu. Tenho bons amigos, que sempre me protegem dos inimigos. Agora
sente-se, que vou fazer o seu prato. Meu cozinheiro ficar mortalmente ofendido
se no provar pelo menos um pouco de presunto e ovos.
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Projeto Revisora 39

Surpresa, Melody descobriu que estava com muita fome e comeu tudo que
ele colocou em seu prato.
Beatrice j havia se alimentado e feito as malas. Era pouca coisa, alm de
algumas jias e as cinco mil libras que John insistira em lhe dar emprestadas.
Apesar de conhec-lo h poucas horas, Melody achou natural beij-lo no rosto
hora da partida.
Os olhos bondosos brilharam.
Um gesto desses j provocou muitos duelos, minha querida, por isso
melhor ter cuidado com sua generosidade.
John voltou-se para Beatrice, e seus olhares se encontraram. No houve
palavras nem contato fsico, s um sorriso breve, antes que ele a ajudasse a subir
na carruagem.
Ele se arriscou muito para nos ajudar Melody comentou, quando
seguiam para o cais.
Beatrice sorriu.
H anos venho impedindo que ele se torne um velho. Um risco ocasional,
at mesmo um raro encontro com o perigo, fazem parte da "outra vida", que
partilhamos. No se preocupe com John, querida. Ele deve ter adorado cada
minutinho que passamos aqui. E os olhos da tia brilharam. Ou alguns deles,
pelo menos!

CAPITULO III

O Cunarder fez uma viagem relativamente tranqila at Nova York. Mesmo
assim, Beatrice enjoou e foi obrigada a passar a maior parte do tempo deitada,
na cabine. Para Melody, no entanto, tudo foi motivo de admirao e
contentamento. Quando era permitido, passeava pelo convs e jogava pedacinhos
de po s gaivotas, sempre famintas. John Brown lhes reservara uma cabine de
primeira classe, recomendando-as ao capito e ao imediato, de modo que elas
eram sempre alvo de uma gentileza especial.
O dinheiro e os papis fornecidos por John tambm lhes abriram as portas
da alfndega, e minutos depois de chegar a Nova York as duas se viram em meio
multido que transitava pelo cais.
Foi bom no termos trazido mais do que duas valises -Melody comentou.
No sei por qu, mas no confio nestes carregadores. No vejo a hora de
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Projeto Revisora 40

chegarmos ao hotel e colocarmos o pouco que temos num cofre. Alm disso, vai
ser bom trocarmos estas roupas por outras, mais ao nosso gosto.
Seus olhos percorreram o vestido cinza-escuro, que a irm de John lhe
dera juntamente com mais dois, do mesmo estilo. No eram feios, mas tinham
sido feitos para uma mulher com o dobro da sua idade. Em pior situao, no
entanto, estava Beatrice, pois a nica pessoa de confiana que haviam
encontrado, com o corpo dela, fora a governanta de John. De qualquer maneira,
tinha sido melhor isso do que se arriscar a voltar casa de Luther Hogge, atrs
de seus pertences.
Abrindo caminho entre a multido, empurrada por jornalistas ansiosos por
notcias e pessoas espera de amigos e parentes, Melody procurava uma
carruagem que as levasse ao Hotel Brevort, na esquina da Rua Oito com a Quinta
Avenida, que John lhes recomendara.
Com licena, senhoras.
Ambas se voltaram para o rapaz de sorriso largo, revelando dois dentes de
ouro, que as abordara.
Estou vendo que so estranhas na cidade, e devem estar se sentindo um
pouco perdidas. difcil arranjar uma carruagem aqui, mas se quiserem me
acompanhar por uma pequena distncia, posso lev-las a um ponto onde h muitas.
Melody examinou-o, desconfiada. Afinal, por que uma carruagem de aluguel
estaria parada a uma pequena distncia dali, quando os fregueses em perspectiva
encontravam-se todos no cais?
Obrigada, senhor, mas s vamos at o Hotel Brevort, que perto daqui.
No estamos com pressa e podemos esperar que uma carruagem aparea.
O sorriso largo tornou a aparecer.
Ah, mas isso seria desperdiar o seu dinheiro! Conheo o Hotel Brevort
muito bem. Um Lugar esplndido, a poucos metros, se tomarmos um atalho que
conheo. Por favor, aceitem minha companhia at l. Uma carruagem faria uma
volta de pelo menos dez quarteires, para depois deix-las a um quarteiro daqui.
Esto vendo aquelas luzes, entre esses edifcios? So do Brevort.
Melody ainda hesitou, mas depois, vendo o ar abatido da tia, acabou se
decidindo.
Est bem, se assim, ns aceitamos.
Sem dificuldade, o rapaz pegou suas malas e ps-se a caminhar. Trocando
um rpido olhar, as duas o seguiram. Ele entrou por uma ruazinha estreita,
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Projeto Revisora 41

falando continuamente sobre a beleza da cidade e as peas em cartaz nos vrios
teatros. No meio do quarteiro, no entanto, silenciou, detendo-se diante de uma
porta sem nenhuma iluminao.
O que foi? perguntou Beatrice, tomada por um medo repentino.
Este no o Hotel Brevort!
No, no o rapaz respondeu, numa voz rude e ameaadora,
completamente diferente da que vinha usando.
Ao mesmo tempo, vrias sombras se destacaram da escurido, adiantando-
se at formar um crculo em torno delas. Doente de medo, Melody percebeu que
eram marinheiros, mestios da pior espcie, com as feies deformadas por
cicatrizes obtidas em brigas de bar e de rua, e sorrisos revelando dentes
escuros e quebrados.
Agora, minhas senhoras, meus amigos vo ajud-las a se livrar da
bagagem, do dinheiro e das jias que trouxeram.
Beatrice reagiu de imediato, dando uma bolsa da na cabea do rapaz. Ele,
ento, arrancou-lhe a bolsa da mo e jogou-a para os amigos.
No seja estpida, sua velha! S queremos o que tm de valor. Depois,
podem ir embora. Ns nunca machucamos as pessoas que trazemos at aqui.
Deixe que eles fiquem com as malas, tia Bia Melody interferiu.
melhor do que sairmos machucadas.
Ela mesma estava fazendo o possvel para dominar a vontade de avanar
nos ladres, pois sabia que a tia ainda estava fraca e poderia sofrer muito, se
eles perdessem a pacincia. Assim sendo, entregou a bolsa de dinheiro que trazia
presa cintura, rezando para que a aceitassem e fossem embora.
Tomem! Tudo que temos est aqui e nas malas.
Um hlito ftido atingiu-lhe o rosto, quando o mais alto dos marinheiros
aproximou-se, sorrindo largamente.
Pode ser que esteja, mocinha, mas eu vou verificar. Afinal, quem me
garante que no esteja carregando uma fortuna debaixo dessas roupas?
Quando ele enfiou a mo no decote de Melody, ela no agentou mais.
No! gritou, descontrolada, revivendo o pesadelo de sua luta com
Hogge.
Os homens estacaram, e naquele instante ela ergueu as mos, unhando seu
agressor. Ele recuou com um palavro, depois tornou a avanar, indiferente a
tudo que no fosse sua presa, a gatinha que se transformara numa leoa. Mas,
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antes que desse dois passos, sua cabea explodiu sob um golpe terrvel, que o
jogou ao cho, de joelhos. Logo em seguida, com incrvel velocidade, os outros
dois marinheiros foram agredidos da mesma forma, indo parar na sarjeta.
A figura gigantesca, que se aproximara sem ser notada, voltou-se ento
para o rapaz que as levara at ali, agarrando-o pelas lapelas do casaco.
Estou cansado de andar atrs de voc, seu rato! J no lhe disse para
no fazer mais isso?
J... J! Duas vezes! E eu prometo no fazer mais!
Muito bem, garoto. Porque, se fizer, ningum mais ser capaz de olhar
para voc sem estremecer de horror!
Com um gesto quase casual, o gigante esmurrou o rosto do rapaz,
quebrando-lhe o nariz e vrios dentes, alm de cortar uma das bochechas com o
anel que usava. Xingando e soluando, o marginai afastou-se aos tropees,
obviamente amedrontado.
O gigante voltou-se para elas, ento, e Melody viu que se tratava de um
homem de meia idades com cabelos grisalhos e espessos emoldurando um rosto
to marcado quanto o dos assaltantes. Seus olhos azuis brilhavam com a alegria
da vitria
Afastando-se da parede onde se apoiava, Beatrice endireitou-se e tentou
arrumar o vestido rasgado.
Quem o senhor? Gostaria de saber seu nome, para lhe agradecer
apropriadamente pelo que fez por ns.
Sou um itinerante, minha senhora. Uma espcie de nmade profissional.
Ele se curvou numa mesura. Patrick OShaughnessy, a seu dispor.
Um sorriso surgiu nos lbios de Beatrice.
Sou-lhe grata por ter-nos salvado, mas no poderia ter feito isso sem
demolir a oposio por completo? Aquele rapaz nunca mais ser o mesmo.
o que espero. E!e fitou os marinheiros, estendidos no cho, e chutou
um deles, que tentava se levantar, J fiz muita coisa errada em minha vida,
mas nunca me aproveitei de velhos, mulheres e crianas, o que parece ser a
especialidade desses vagabundos. Agora, se me do licena, vou lev-las at onde
iam.
No preciso, sr. O'Shaughnessy Beatrice declarou, levantando sua
mala com dificuldade. J lhe devemos muito por ter nos salvado. -Podemos
fazer o resto do caminho sozinhas.
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Ignorando-a, o homem fixou o olhar brilhante em Melody.
Ela sempre to auto-suficiente?
Melody, que perdera o medo, sentia-se inexplicavelmente atrada pelo
desconhecido.
Sempre! confirmou.
Ele ergueu uma das sobrancelhas, depois, murmurando "timo!", tirou o
casaco e colocou-o sobre os ombros de Beatrice.
Nem uma palavra ordenou, Voc no est em condies de ser vista
na rua, e eu me recuso a acompanhar urna mulher com um vestido rasgado, a
.menos que eu tenha feito o estrago!
- Espere a! Beatrice protestou, quando de j seguia pela rua,
carregando as malas.
O gigante se deteve, olhando, por cima da cabea dela, para Melody.
Quer me fazer o favor de dizer a sua irm que ela tem uma linda boca,
que fica ainda mais bonita quando est fechada?
Irm! explodiu Beatrice, enquanto Melody abafava o riso. Fique
sabendo meu senhor, que sou lady Beatrice Davenport, e que esta aqui minha
sobrinha, a sra. Van der Veer.
Qualquer pessoa com olhos na cara pode ver que sou muito velha para ser
irm dela!
S ento ele virou-se para ela, examinando-a de alto a baixo com um olhar
malicioso.
No seja to modesta, minha senhora. E ficar inda mais bela luz da
aurora, quando estiver contemplando nossa cidade. Um passeio a que pretendo
lev-la.
Pretende coisa nenhuma! O senhor um estranho, atrevido e insolente!
Sou mesmo ele concordou, pegando as malas e voltando a andar.
Melody surpreendeu um leve sorriso nos lbios da tia. Um sorriso que logo
desapareceu, quando Beatrice tambm se ps a andar, resmungando:
Vagabundo!
Patrick arrumou uma carruagem e escoltou-as at o hotel, indicando vrios
pontos de atrao da cidade durante o caminho e ignorando totalmente Beatrice.
Ao chegarem, foi at a recepo e pediu dois quartos, com ar autoritrio de
comando. Mesmo vendo as roupas gastas que usava, o recepcionista obedeceu sem
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hesitar. Tomando as chaves, ele verificou os nmeros e entregou-as a elas, com
uma mesura.
O seu casaco, senhor Beatrice disse, fazendo um gesto para tir-lo.
Foi impedida por um gesto rpido e firme.
Eu o pego amanh, depois do caf, milady. No quero que ande pelo hotel
com um vestido rasgado.
Mas quer que eu ande exibindo o seu casaco, o que vai causar a mesma
onda de falatrio!
Falatrio que no lhe far mal, madame. Mesmo assim ela sentiu
necessidade de protestar.
Estamos a caminho do sul. Pode ser que no nos encontre mais aqui
amanh.
Melody viu os olhos dele perderem o brilho e, num impulso, adiantou-se;
Ainda temos de mandar notcia da nossa chegada e arrumar tudo para a
viagem. Isso vai levar o dia todo, e com as compras e um passeio turstico pela
cidade...
Ele lhe lanou um sorriso grato, revelando dentes brancos e perfeitos.
Passeio turstico, ? Nisso eu posso ajud-las. Faz quase um ano que
estou nesta cidade, providenciando minha ida para as minas de ouro de Nevada,
onde pretendo fazer fortuna.
O senhor persistente, sr. O'Shaughnessy Beatrice interferiu ,
mas agora estamos mais interessadas num banho e numa cama que no balance.
Um ar de culpa surgiu no rosto dele.
Desculpe o meu egosmo e falta de considerao, milady. Volto amanh,
s nove e meia, para lev-las a um passeio por Nova York.
Com mais uma mesura e uma piscadela atrevida, ele se foi.
Mas que sujeito... Beatrice interrompeu-se, sem palavras para
expressar sua indignao.
Melody aproveitou para comentar:
Ele bem velho para o tipo de vida que est levando,.no ?
Abruptamente, Beatrice virou-se e comeou a seguir o garoto da bagagem.
A idade nem sempre uma questo de anos, minha querida. No quanto
voc vive que conta, mas como voc vive.
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Ento, no h dvida de que o sr. O'Shaughnessy tem vivido muito!
Com uma exclamao abafada que podia significar tudo, Beatrice recusou-
se a continuar com aquela conversa.
No dia seguinte, quando Melody e Beatrice saram da sala de caf do hotel,
encontraram Patrick O'Shaughnessy espera. Antes que qualquer uma delas
pudesse abrir a boca, ele dirigiu-se a Beatrice:
Tem toda razo, milady. Com essa luz, no pode passar por irm da sra.
Van der Veer. Seus cabelos tm a cor de ouro velho, enquanto os dela so
completamente negros. bvio que tiveram pais diferentes.
Sr. OShaughnessy!
A seu dispor, madame. O que deseja fazer primeiro? Mandar um
telegrama ou visitar algumas lojas?
Seja l o que for, tenho certeza de que o pessoal do hotel pode me
ajudar.
Ele se voltou para Melody.
Quer fazer o favor de dizer a essa mulher teimosa que ela no
conseguir se livrar de mim, a menos que me mande enviar o telegrama que
deseja?
Eu posso ouvir ela falar por mim mesma, sr. OShaughnessy. Quanto ao
telegrama, acha mesmo que eu revelaria nossos planos de viagem a um completo
estranho, principalmente quando tudo o que quero que ele nos deixe em paz?
Havia irritao nessas palavras, e Patrick, um tanto desconcertado,
recuou:
Est sendo cruel, milady, mas farei o que me pede. Irei embora, assim
que lhe arrumar um mensageiro. Girando nos calcanhares, foi at a recepo e
voltou com um rapaz a reboque. Mocinho, quero que v imediatamente
agncia de correios mais prxima e passe este telegrama. Tomou o papel que a
surpresa Beatrice tinha nas mos, correu os olhos pelo que l estava escrito e
entregou-o ao garoto, com uma moeda. Vou deix-las em paz por hoje, j que
esse o seu desejo, mas aconselho-as a tomar cuidado, se sarem. Evitem os
atalhos e andem sempre nas ruas principais. At logo mais.
Estupefatas, as duas o viram fazer a habitual mesura e afastar-se. Melody
foi a primeira a falar, lutando para sufocar o riso.
Ah, tia Bia, se a senhora visse a sua cara!
Esse... esse cafajeste! Ele viu o endereo de St. Clare e sabe para onde
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vamos!
Achou mesmo que seria capaz de se esconder dele? O sujeito simpatizou
com a senhora, tia Bia, e do tipo que no desiste facilmente.
Ele do tipo pesadelo, isso sim! Um itinerante declarado, um vagabundo,
um homem que vive dos punhos e negcios de momento. Se ele se atrever a
aparecer em St. Clare, juro que mando os criados jogarem-no na rua!
Melody no discutiu, embora conclusse que seria preciso muito mais que
um mordomo irado para jogar Patrick OShaughnessy na rua.
No pense mais nisso, tia. O que acha de darmos uma volta? Graas
generosidade de John, podemos comprar um guarda-roupa inteiramente novo e
dar aos nossos parentes a impresso de que no precisamos de caridade, s
hospitalidade.
Logo se tornou evidente que a combinao do dinheiro de John com o ttulo
de Beatrice era irresistvel. As balconistas e gerentes de loja fizeram o possvel
para bem servi-las, mostrando artigos que no eram acessveis ao comprador
comum. Quando notaram que Melody estava de luto, comearam a mostrar
tambm vestidos em preto e azul-noite.
Ao fim da tarde, as duas no queriam nada alm de um quarto silencioso e a
chance de se deitarem por uma ou duas horas. Providenciando que as compras
fossem entregues por mensageiros, voltaram para o hotel.
Amanh acertaremos tudo para nossa viagem declarou Beatrice,
quando se viram no quarto.
No melhor esperar que respondam ao nosso telegrama, tia?
No, pois iremos de qualquer jeito. Se nos receberem bem, poderemos
passar um bom tempo l. Nunca se sabe, o arranjo pode at se tornar
permanente. Seu pai ficou um ano em St. Clare. Se eles no nos quiserem,
arranjaro um modo educado de se livrar de ns. Ento, passaremos um ou dois
dias na plantao e depois iremos embora.
Para onde?
John arranjar um lugar, no se preocupe.
Eles jantaram tarde, e depois Melody sugeriu que se recolhessem
imediatamente. A viagem e a tenso do dia da chegada tinham abalado Beatrice,
que exibia enormes manchas escuras sob os olhos cinzentos.
Quando a aurora introduzia plidos reflexos por entre as cortinas, uma
batida suave acordou Melody.
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Sra. Van der Veer, a sua criada. H um senhor l embaixo, com uma
carruagem, dizendo que veio buscar a senhora e lady Davenport para um passeio.
Os lbios de Melody se abriram num sorriso incrdulo.
No possvel! Ele no se atreveria! Tia Bia vai acabar com ele
murmurou. E depois, mais alto para que a criada ouvisse: Est bem, ns vamos
descer.
Desta vez, a roupa gasta de Patrick fora substituda por um terno
impecvel e uma linda camisa de linho, mas o leno vermelho, que ele usava em
torno do pescoo desde a primeira vez em que o tinham visto, no fora
descartado. O rosto masculino mantinha-se inexpressivo, mas um brilho maroto
surgiu nos olhos azuis quando Beatrice Davenport abriu caminho entre os outros
hspedes do hotel. Notou que, apesar do semblante carregado, ela estava vestida
para sair, assim como a sobrinha, que a acompanhava fazendo fora para no rir.
O senhor sempre usa esse leno abominvel, sr. OShaughnessy?
Beatrice perguntou, assim que chegou perto dele. Por acaso tem algum valor
sentimental?
Ele sorriu.
No, madame, s que ele tem a cor certa para enxugar o sangue que
costuma espirrar quando algum encara o meu tamanho como um desafio,
O senhor um homem muito violento, sr. OShaughnessy.
Ah, no, madame, sou um homem de paz. S me enfureo quando no
acreditam nisso. Isto aqui ele levou a mo ao leno um smbolo, a minha
marca. Gosto de ser conhecido, e esse leno ajuda a se lembrarem de mim. No
fundo, sou um homem vaidoso.
No h dvida alguma de que o senhor foi abenoado com uma grande
dose dessa... qualidade. Isso, sem falar no atrevimento!
Nesse ponto, Melody. adiantou-se e estendeu a mo para cumpriment-lo.
Para sua surpresa, o aperto de mo que recebeu foi extremamente gentil.
Vai nos levar para conhecer a cidade, sr. OShaughnessy?
Com grande prazer, madame.
Mas... to cedo?
Vamos ao Heights, de onde os mercadores milionrios observam a
chegada de seus navios. Eles chamam o lugar de Clover Hiu, mas eu prefiro
Ilpetonga, que como os ndios canairse o denominavam antes de vend-lo, em
1630. A palavra significa "banco alto de areia, e eles viviam l em casas
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comunitrias, s vezes at com quatrocentos metros de comprimento. um local
lindo ao amanhecer, quando os raios de sol penetram por entre a neblina e o mar
parece veludo escuro.
As suas palavras que tm a maciez do veludo Beatrice comentou,
irritada. Estou vendo que possui uma grande dose de conhecimentos inteis.
Ele a fitou, com um sorriso que o remoava dez anos.
Uma dose enorme, milady. Costumo passar meu tempo livre entre a
biblioteca e a taverna de Sam Fraunces, na Pearl Street. Eu tinha quinze anos
quando um comerciante judeu me ensinou a ler, em troca de trabalho, e sempre
achei que levei vantagem. Agora, minhas senhoras, se esto prontas para partir...
Melody guardou mais lembranas das pequenas coisas que aconteceram
aquele dia do que da paisagem da cidade. Nunca se esqueceu dos pezinhos
quentes e recheados com gelia, acompanhados de caf forte, que ele trouxera
para o desjejum. Depois, o incrvel aglomerado de gente no East Village, onde
predominavam poloneses, alemes, italianos e judeus, embora tambm pudessem
ser encontrados ucranianos, russos e representantes de vrias outras
nacionalidades. Estiveram no Castelo Chaton, o forte construdo para rechaar os
ingleses cinqenta anos antes e, no momento, usado para receber imigrantes do
mundo inteiro.
Melody comoveu-se ao pensar nas milhares de pessoas que haviam deixado
sua terra natal devido perseguio religiosa ou fome que devastara a Irlanda
durante trs anos, desde 1846. Todos vinham com a esperana de uma vida nova,
mas essa esperana acabava tios guetos horrveis de Lower East Sides onde, se
no fosse por John e Beatrice, ela tambm poderia ter vindo pagar por seu
crime.
Ela nunca se esqueceria do modo como O'Shaughnessy as protegeu das
piores vises, embora no se limitasse a mostrar-lhes apenas os palacetes da
aristocracia, junto Washington Square, criando assim uma imagem falsa da
cidade. Tinha uma histria para cada ocasio, com uma linguagem gil e
inteligente, que logo conquistou Beatrice. Levou-as tambm para jantar, no no
Delmonico, onde se pagava para ver e ser visto, mas num hotel da Fulton Street.
A cozinha era simples mas deliciosa, e at Beatrice, depois de uma garfada
cautelosa de sufl de caranguejo, no escondeu a admirao.
O senhor tem timo gosto, sr. OShaughnessy ela o cumprimentou, no
fim da refeio.
Um sorriso largo iluminou o rosto de Patrick.
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Sou um homem simples, que aprecia comida simples. Na minha opinio,
uma lagosta deve ter aparncia e gosto de lagosta, no ser transformada em algo
que nem de longe lembre o que ela foi. . Ele fez uma ligeira pausa, antes de
prosseguir: O que preferem para esta noite? Visitar alguns antros de perdio
ou ir a um concerto na Academia de Msica?
Beatrice meneou a cabea, com ar firme.
J fez muito por ns, sr. O'Shaughnessy. Apesar da minha reserva
inicial, sou obrigada a reconhecer que o senhor foi um guia excelente, alm de um
perfeito cavalheiro. Mas agora precisamos voltar para o hotel. Temos de
providenciar nossa viagem, e ser bom descansarmos um pouco. Vamos para longe,
e nem sei por quem ou como seremos recebidas.
Quer dizer que no conhecem os donos do lugar para onde vo?
S sabemos que podem ser parentes da sra. Van der Veer. Isso, se a
plantao no foi vendida, durante os ltimos vinte anos. Neste caso, nossa
viagem ter sido em vo.
Ele ficou srio.
Se me perdoa a intromisso, milady, acho melhor esperar que respondam
o seu telegrama. Estamos vivendo tempos de muita inquietao. O norte quer
emancipar os escravos do sul, enquanto o sul s pensa, em manter o estilo de vida
que conhece. Muitos homens arriscam suas vidas para ajudar escravos fugitivos a
alcanar a duvidosa liberdade do norte, e h inmeros oportunistas nas estradas
fazendo-se passar por quem no so. Em resumo, madame, duas senhoras
desacompanhadas so vulnerveis a todo tipo de perigo... como vocs j devem
ter descoberto.
Ajudando Beatrice a colocar o casaco, ele hesitou, depois sugeriu:
Se quiserem aguardar alguns dias, posso acompanh-las... No, no
recuse sem pensar um pouco! Espero resolver dentro de uma semana um negcio
que me dar um bom dinheiro, do qual muito preciso. Por isso no posso partir
antes.
Melody notou a dvida e o ligeiro sorriso de Beatrice, antes que ela
recusasse.
No queremos ser um peso para o senhor, sr. OShaughnessy.
Chegaremos bem, sozinhas. Em todo caso, muito obrigada pela ateno.
J no hotel, Beatrice encarou-o e disse, com um sorriso caloroso:
No posso permitir que nos acompanhe, mas gostaria muito de ver um
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rosto familiar na nossa despedida. Seria horrvel no ter ningum para quem
acenar, quando o trem partir.
Ser um prazer. Tenho certeza de que todos na estao sentiro pena
de mim, por deix-la partir, mas tambm me invejaro, por t-la conhecido.
Que bobagem! protestou Beatrice. Mas estava sorrindo ao entrar no
hotel.
Fiel sua palavra, ele apareceu com uma carruagem para lev-las
estao, na manh seguinte. Como seria de esperar numa cidade grande, o local
era pura confuso, com pessoas se movimentando sem descanso, carregadores
aos berros, vapor sibilante saindo da locomotiva e fumaa negra espalhando-se
pelo ar. Era impossvel conversar, a no ser aos gritos, e logo chegou a hora da
partida.
No sou muito de escrever... Beatrice ele falou, tmido.
Nem eu... Patrick. Adeus e muito obrigada.
Eu nunca paro num lugar. Pode ser que ainda nos encontremos por a.
Virando-se para Melody, ele acrescentou: Cuide-se, menina. E cuide desta
mulher impossvel, tambm.
No se preocupe com isso. S espero que nos encontremos de novo.
Finalmente elas se acomodaram em seus lugares para a primeira parte da
viagem.
Tomara que o negcio dele d certo murmurou Melody. Patrick no
deve ser rico, mas nos tratou muito bem, ontem.
Beatrice sorriu, com um certo ar de mistrio.
Ele no sair lesado. Quando estvamos nos despedindo, dei um jeito de
enfiar uma nota de cem dlares no bolso dele. Aquele irlands louco orgulhoso e
vai querer me matar, quando descobrir, mas no sou mulher de tomar os ltimos
dlares de um homem, quando tenho mais do que o suficiente para ns duas.
Melody riu, incrdula.
A senhora incrvel, tia Bia! bom mesmo estarmos longe, quando ele
descobrir. No sei por qu, mas acho que ele tem um gnio fortssimo.
Bem... tenho coisas mais importantes em que pensar do que em um
vagabundo irlands.
No entanto, fitando a tia, Melody percebeu que Patrick OShaughnessy no
seria to facilmente esquecido.
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CAPITULO IV

St.Clare foi uma grande decepo para Melody, embora Beatrice
declarasse, caridosamente, que o local tinha um ar de "nobre decadncia". Os
campos de algodo prometiam uma colheita minguada, apesar de j ser setembro.
Os escravos trabalhavam sem entusiasmo, e o capataz, a cavalo, dava a mesma
impresso.
Imagine s o que Simpson faria, se visse essa gente! Beatrice
exclamou. Na certa daria um jeito neles em dois tempos. Voc se lembra
daquela criada horrvel que tivemos, que no fazia nada alm do estritamente
necessrio. Ah, minha querida, desculpe! Eu no devia ter falado nisso...
Melody sorriu, segurando-se quando a carruagem passou por outro buraco
na estrada.
No tem importncia, tia Bia. No podemos passar o resto da vida sem
falar de casa. Quanto a este lugar no to ruim assim. verdade que as cercas
precisam de conserto, a pintura da casa est descascando e o jardim parece
mato, mas d para se ver que j foram bem-cuidados. Veja aquele prtico, como
grande!
Assim que a carruagem parou diante da residncia a porta da frente se
abriu e uma enorme negra apareceu, seguida por um negrinho que tomou as
rdeas dos cavalos. Um homem, desceu os degraus da varanda, movimentando-se
com a mesma indolncia dos trabalhadores dos campos de algodo. Sua expresso
era de total indiferena, embora usasse um tom polido ao se aproximar da
carruagem,
Lady Davenport? Sra. Van der Veer? Faz dois dias que esperamos a sua
chegada. Por aqui, faz favor. Mister Brett est na sala de estar.
As duas mulheres trocaram um olhar. Que tipo de fazendeiro podia tolerar
aquela apatia, quase uma preguia descarada, em seus trabalhadores e mordomo?
Ambas tinham ouvido muitas histrias de escravos sendo chicoteados por
capatazes, ao menor sinal de indolncia, mas os dali pareciam fazer o que bem
entendiam.
Tia e sobrinha seguiram o negro at um cmodo mal iluminado, direita do
enorme saguo de entrada, e desta vez Beatrice no conteve uma exclamao de
surpresa. Embora aquecida por um belo fogo, a sala praticamente no tinha
mveis. Duas poltronas e um sof achavam-se agrupados junto lareira, a poucos
passos de uma mesa vazia, perto da janela, e de uma pequena escrivaninha, cheia
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de papis, cuidadosamente posicionados.
Enquanto elas notavam tudo isso, o mordomo anunciou-as e um homem se
levantou de uma das poltronas, voltando-se com um sorriso de boas-vindas.
Segurava uma bengala branca, de ponta de metal, que estendeu diante de si, ao
se encaminhar para elas.
Melody prendeu a respirao. Nunca vira um homem to atraente quanto
aquele. Quase chegava a ser lindo. Alm do queixo firme, tinha a testa larga,
sobre a qual caam cabelos castanhos e encaracolados, nariz reto e lbios cheios,
expressando sensibilidade. Os olhos tambm eram belssimos, grandes, de clios
longos e de um azul intenso... s que inexpressivos, sem o menor sinal de vida.
Melody fitou a tia, notando-a to chocada quanto ela. Uma onda de piedade
assolou-a. O rapaz era de uma magreza extrema, acentuada pelas calas pretas,
justas, que usava, mas no dava a impresso de fraqueza ao se mover confiante
pela sala, at parar diante delas.
um grande prazer conhec-la, sra. Van der Veer. Bem-vinda a St.Clare.
Melody colocou a mo na que o rapaz lhe estendia e ele levou-a aos lbios,
num gesto galante e delicado. As dvidas que a incomodavam se dissiparam.
Aquele no era um anfitrio hipcrita, pronunciando falsas palavras de boas-
vindas, mas um jovem Adnis que, por infelicidade, era cego. Por um instante,
lamentou que aquele homem fosse um parente, e foi s com muito esforo que
conseguiu dizer, fingindo naturalidade:
Como soube que eu era a sra. Van der .Veer e no lady Davenport?
Ele riu, soltando-lhe a mo com relutncia. Minha me desafiou a lei,
ensinando uma criada a ler e escrever. Essa mulher ainda est comigo e costuma
ler a minha correspondncia, respondendo as cartas mais simples. Lady
Davenport mencionou, no telegrama, que era sua tia. Quando vocs cruzaram o
saguo, notei um passo leve, longo, e outro mais curto e pesado, indicando pelo
menos uma diferena em suas alturas. Depois, quando segurei sua mo, senti os
dedos longos, de ossatura fina. Alm disso, sua tia mencionou que a senhora
estava de luto e precisando de repouso. Uma mulher de luto no usa os saiotes de
cetim que fazem um barulho delicioso, como a sua tia est usando. Respondi a sua
pergunta? Melody sorriu, impressionada.
Completamente!
Fico contente, Mas vocs devem estar cansadas da viagem, e, apesar de
querer muito conhec-las melhor, entendo que prefiram ir para seus quartos. Vou
chamar Celine para lhes mostrar o caminho. Geralmente, quem cuida da casa
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Projeto Revisora 53

Nanny, mas ela est fora e deixou a neta encarregada disso. Celine inexperien-
te, mas parece ter vontade de aprender.
Incrdula, Melody perguntou:
O senhor ainda tem uma nanny!
Ele riu.
Ela no a tpica bab inglesa, mas sempre a chamamos assim. Foi criada
de minha me e, desde que me conheo por gente, tem sido tambm enfermeira,
confidente, parteira e governanta desta casa.
O rapaz tocou o sino que chamava os criados, e imediatamente as portas
duplas da sala se abriram, dando passagem a uma moa. Ela era um ou dois anos
mais nova que Melody e quase branca, com cabelos negros, presos no alto da
cabea, e olhos escuros, grandes e aveludados.
Pelo olhar que.lanou tia, Melody percebeu que ambas estavam pensando
a mesma coisa. A garota era linda, sem dvida, mas, para uma escrava da casa,
exibia essa beleza de um jeito muito bvio. De repente, Melody entendeu. O
perfume pesado, as anguas de cetim e os brincos tilintantes seriam demais para
um senhor normal, mas no para um homem cego, que dependia tanto de sons,
cheiros e toques... Ela assentiu para si mesma, interpretando corretamente o
olhar lnguido que estava fixo no rosto do senhor da plantao.
Brett no se voltou para a garota, limitando-se a fazer um gesto na
direo das recm chegadas.
Celine, estas so lady Davenport e a sra. Van der Veer. Sero minhas
hspedes pelo tempo que quiseram e eu puder mant-las aqui. Leve-as para os
quartos da ala leste... o nascer do sol adorvel, nesta poca do ano... e ajude-as
a desfazer as malas. Providencie para que tenham tudo de que precisem, pois so
bem-vindas a esta casa. Entendeu?
Celine fez uma mesura profunda, quase at o cho.
Pois no, mister Brett. Vou tratar as duas como se fossem grandes
damas.
Melody esperou, em vo, que a tia reagisse a essa ofensa. Mas Beatrice
estava muito chocada e limitou-se a murmurar algumas palavras de
agradecimento ao anfitrio, antes de seguir a garota pela escada recurvada.
Havia marcas profundas na madeira polida, e Melody olhou para a tia, com ar
interrogativo. Beatrice indicou marcas semelhantes nas paredes, que ostentavam
tambm retngulos claros, de onde quadros haviam sido retirados.
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Projeto Revisora 54

No patamar superior, Celine virou esquerda e abriu uma porta que, peia
aparncia da madeira, parecia ter sido colocada h menos tempo que as outras.
Este quarto melhor para lady "Da'enpaw". maior! anunciou a
garota, com um sorriso insolente, antes de se adiantar mais um pouco pelo
corredor, E este para missis "Van der". Um quarto mais escuro, para
combinar com os vestidos pretos e a tristeza,
Beatrice no conseguiu mais se conter.
Sua atrevida! Se no mudar de atitude, vou contar o que fez a seu
senhor e exigir que ele a mande de volta ao buraco de onde veio! Pea desculpas,
imediatamente, sra. Van der Veer.
A garota empalideceu e baixou os olhos, embora no abandonasse o ar
rebelde. Melody pensou que ela fosse desobedecer, mas depois ouviu-a
murmurar, num tom quase inaudvel:
Desculpe, missis.
Est desculpada. Mas voc tambm deve um pedido de desculpas lady
Davenport, no acha?
A garota lanou-lhe um olhar de puro dio, antes de se virar e repetir o
pedido de desculpas, na direo de Beatrice.
Posso ir agora?
o mais depressa possvel concordou Beatrice. Mande-nos uma
criada mais educada, com a gua. Outra coisa; se no pretende mudar de atitude,
melhor que fique bem longe de ns. Est entendido?
T, sim. Celine recuou rapidamente, quase dando um encontro no
mordomo, que chegava ao topo da escada com uma parte da bagagem. Seu
negro desajeitado! exclamou, passando por ele.
Voc tambm negra, menina ele rebateu. Pode se fazer de
branca, mas no passa de uma negra e vai ser vendida como todos ns, quando
este lugar for entregue.
Eu nunca vou ser vendida! Mister Brett vai ficar comigo! Ele nunca,
nunca vai vender Celine!
Com isso, ela terminou de descer a escada correndo e desapareceu por
urna das portas que davam para o saguo, batendo-a atrs de si. O mordomo
meneou a cabea, virando-se para as duas mulheres que testemunhavam a cena,
espantadas.
Esta Celine orgulhosa, mas nada vai fazer com que seja branca. Mesmo
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Projeto Revisora 55

que a lei mude, nenhum homem branco vai querer se casar com uma garota negra.
Ainda meneando a cabea, ele levou a bagagem para o primeiro quarto e
tornou a descer, para pegar o resto.
Eu no acredito! exclamou Beatrice. Simplesmente no acredito!
Melody no conteve o riso.
Eu estaria furiosa, se a situao no fosse to estranha. Onde que ns
viemos nos meter, tia Bia?
No fao idia, querida, mas pretendo tirar o melhor partido disso. Pelo
que vi, meu quarto agradvel, embora tenha poucos mveis, e nosso anfitrio
adorvel. Agora, o melhor nos arrumarmos para jantar com ele. O tempo aqui
est mais quente e voc pode usar o vestido de seda glac. Ele faz barulhinho,
com o movimento.
Melody sorriu.
No tenho a menor inteno de competir com uma criada.. E, se Brett
um primo distante, tambm no tenho a menor necessidade.
No sei, no... Beatrice murmurou, dirigindo-se a seu quarto.
Melody descobriu que o aposento que lhe fora destinado era quadrado, com
um tamanho que acentuava a falta de mveis, e foi tomada por uma certa
depresso. As cortinas da cama j tinham sido de um estampado em tons ricos de
amarelo e azul, combinando com as cortinas das janelas, mas agora mostravam-se
feias e desbotadas.
Por qu? ela se perguntou em voz alta. Ser que St.Clare no
mais uma plantao lucrativa? E onde est a famlia? O que o mordomo quis dizer,
quando mencionou que Brett ter de vender os escravos?
Uma batida na porta precedeu a entrada de uma negra enorme, carregando
uma jarra. Em silncio, ela transferiu a gua para uma bacia de loua e saiu. Nem
por um momento ergueu os olhos para Melody, que sentiu a indignao voltar.
Pobre Brett! Que infeliz devia ser, rodeado por tanto mau humor. Mas
talvez ele no percebesse. Se s tinha contato com Celine, que obviamente o
amava, e a av dela, que parecia ter as qualidades de todos os santos, nem devia
saber como eram tocadas a casa e a plantao.
Depois de arrumar-se rapidamente, Melody desceu. Estava ansiosa para
saber mais sobre seu anfitrio e os estranhos criados que o serviam.
Como no havia ningum no saguo, foi para a mesma sala em que estivera
ao chegar. Como antes, Brett levantou-se de uma das poltronas junto ao fogo.
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Projeto Revisora 56

Minha tia leva mais tempo se arrumando do que eu ela se desculpou.
A vantagem que ela no fica completamente perdida sem uma criada, como
acontece com muitas mulheres de sua gerao.
Estendendo-lhe a mo com um sorriso cordial, ele a guiou para a poltrona
junto dele.
Vou mandar uma das criadas ajud-la.
Brett tocou o sino e, como antes, Celine apareceu, hesitando, preocupada,
ao ver Melody.
Chamou, mister Brett?
Celine, v ajudar lady Davenport a se vestir. Quero que ajude nossas
hospedes em tudo que precisarem, enquanto ficarem aqui.
Uma expresso de alvio surgiu nos olhos escuros, quando Celine percebeu
que Melody no mencionara o que havia acontecido l em cima. Alvio que logo foi
substitudo por hostilidade, idia de servir as duas mulheres.
T bem murmurou, no momento em que Beatrice entrava na sala. E
saiu, sem esconder sua alegria por no ter de comear a nova tarefa de imediato.
Sensvel s vibraes no ar, Brett dirigiu s duas mulheres um leve sorriso.
Celine tem sido muito mimada porque neta de Nanny. Vai lhe fazer
bem ter de obedecer a uma senhora.
No h... Esta casa no tem dona? Melody arriscou-se a perguntar,
mesmo sabendo que estava sendo indiscreta.
No sou casado, sra. Van der Veer, nem tenho parentes do sexo
feminino, para manter a garota na linha. Pondo a bengala de lado, ele estendeu
o brao na direo de Beatrice. Por favor, permitam-me que as leve at a sala
de jantar. Enquanto comemos, terei o maior prazer em lhes falar de St. Clare e
de minha famlia.
Quando ele lhe estendeu o outro brao, Melody tomou-o encontrando,
surpresa, msculos rijos sob o casaco negro. Cuidadosamente, o trio atravessou o
saguo e entrou em outro cmodo brilhantemente iluminado, mas tambm com
poucos mveis. Alm de uma mesa grande, de carvalho escuro, continha apenas
seis cadeiras de encosto alto e um aparador, sobre o qual se achavam alguns
objetos de cristal e porcelana. As paredes estavam completamente nuas, e no
havia tapetes sobre o cho.
Sentem-se, por favor Brett pediu s duas, deixando que o mordomo
negro o conduzisse cabeceira da mesa. No disse mais nada at uma sopa
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Projeto Revisora 57

marrom, de origem indeterminada, ser servida. Ento explicou, com um sorriso
embaraado: Sinto no poder lhes oferecer uma verdadeira sumon
mayonnaise, pois minha situao no das melhores.
Com seu jeito franco, mas gentil, Beatrice declarou:
Voc no tem dinheiro.
Com um sorriso de alvio pela compreenso, ele concordou.
No uma coisa que se costume confessar num primeiro encontro, mas,
como somos aparentados, achei que deveria ser honesto com vocs.
Melody encheu-se de ternura por seu anfitrio. Ele fazia com que se
lembrasse de Hugh, e, num gesto impulsivo, tocou-lhe a mo com a ponta dos
dedos.
Por favor, no pense em ns como estranhas. Meu pai gostava muito de
St. Clare e ficou aqui durante um ano. Talvez se lembre dele... Alexander
Davenport... Entre as lembranas que deixou, achamos um brinquedo, com a inicial
"B".
Os olhos de Brett se iluminaram.
Claro! Tio Alex! Eu lhe dei um cavalinho de madeira. Ele sempre me
levava para passear e falava comigo como se eu fosse grande. No me lembro da
partida dele... Deve ter sido um pouco antes da morte de meus pais.
O sorriso morreu nos incrveis olhos azuis. Quase distraidamente, ele levou
uma colher de sopa boca. Ento, como que ciente de que Beatrice j fizera o
mesmo, primeira colherada empurrou o prato para longe de si.
Uma criada substituiu os pratos praticamente intocados por outros, com
fatias de carne de porco, batatas cozidas e torresmo. O aspecto era to ruim
que Beatrice no conteve uma careta de desgosto.
A carne de Brett j viera cortada, e ele se ps a brincar com os pedaos,
aparentemente sem apetite. Observando-o, Melody achou que no era de admirar
que fosse to magro, com aquela comida. A causa seria falta de dinheiro ou
simples indiferena da parte dos escravos pelo bem-estar de seu amo?
Durante vrios minutos Brett permaneceu como estava, depois declarou,
virando-se na direo de Beatrice:
Como a senhora resumiu to bem, lady Davenport, eu no tenho dinheiro.
St. Clare est afundada sob uma montanha de dvidas. Meus pais morreram
quando eu tinha sete anos: minha me, dando luz uma filha morta, e meu pai, no
mesmo acidente de carruagem que me deixou cego. O irmo de meu pai, James
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Savage veio de Atlanta com a esposa, Brbara, e o filho adotivo, Paul, para
assumir a plantao e a minha tutela. Mas eram gente da cidade, sem
conhecimento do campo, e logo nos enchemos de | dvidas. Como a terra era boa,
lanaram mo de um emprstimo, no para pagar as hipotecas que j tnhamos,
mas para comprar mais escravos. Naquele ano, no entanto, houve uma geada feia,
e a colheita se perdeu. Eles haviam esperado demais para come-la. Em seguida
veio uma epidemia de clera, e eles no s no trataram as pessoas doentes,
como ainda as deixaram com as respectivas famlias. Metade dos escravos
morreu, e eles fizeram um novo emprstimo, para comprar outros. E assim foi.
Erro em cima de erro, geada, doena, maus capatazes e uma tremenda ignorncia
da parte deles. Resumindo, quando atingi a maioridade e recebi St. Clare de volta,
s tinha dvidas.
Melody e Beatrice se fitaram, mas continuaram em silncio.
No tive outra escolha a no ser procurar outro emprstimo para pagar
os credores mais antigos, que j estavam a fim de ver o meu sangue. O homem
que me emprestou dinheiro exigiu St. Clare como garantia e me deu um ano para
pagar a dvida. Tenho usado uma pequena parte dos lucros para viver, e o resto
tenho mandado ao sr. Willdnson, mas ultimamente isso nem tem dado para pagar
os juros. Dentro de algumas semanas preciso saldar o restante da dvida ou
entregar-lhe St. Clare com tudo que contm: mercadorias, mveis e escravos.
Mas isso o deixar sem dinheiro e sem lar! Melody exclamou
horrorizada. O que vai fazer, ento?
--- Ainda no resolvi. De qualquer modo, no h sada para mim. No posso
continuar plantando algodo e no tenho tempo para mudar para o tabaco, como
alguns de meus vizinhos fizeram. No fim do ms terei de enfrentar Wilkinson,
que vem avaliar a situao.
No h ningum que possa ajud-lo? Esses tios de que falou ou mesmo o
filho deles?
Um sorriso sem alegria surgiu nos lbios de Brett.
Meus tios no esto muito melhor do que eu, mas Paul talvez possa me
ajudar. Ficamos muito amigos, nos trs anos que ele passou aqui. Acho que ele
odiava os pais, que o haviam adotado para "salvar as aparncias", como dizia. Ali
no havia afeto de nenhum dos lados. No comeo, acho que Paul tambm no
gostava de mim. Ele oito anos mais velho e costumava me tratar como se eu
fosse um bebe. No que provavelmente estava certo, j que eu tinha dez anos
quando ele se foi.
Esse seu primo parece ter sado na hora certa Melody comentou, com
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uma certa secura.
De imediato Brett meneou a cabea, num gesto defensivo.
Quando foi embora Paul no sabia da minha situao financeira. Ele e
meu tio tinham tido,uma briga feia, por causa de um negro que ia ser chicoteado.
Paul simpatizava com os abolicionistas, embora tivesse nascido e crescido no sul.
Uma tolice da parte dele, claro.
Mesmo sem vontade de ofender seu anfitrio, Beatrice no resistiu a um
comentrio:
Cada um de ns tem opinio prpria a esse respeito, sr. Savage. Eu, por
exemplo, orgulho-me em saber que meu pas aboliu a escravido nas colnias
cinqenta anos atrs.
Brett, no entanto, no se ofendeu.
A senhora viu Celine. No acha que ela est melhor aqui do que numa
cabana enlameada,na frica? L tambm h escravos, e muitas vezes sofrem
mais do que aqui. Esse povo nasceu para ser escravo.
O que no justifica a escravido Melody interferiu.
O que eles fariam se os libertssemos? A maioria morreria de fome. O
prprio Thomas Jefferson disse que so uma raa inferior, com urna imaginao
pobre e anmala. Ele tambm era senhor de escravos, como George Washington e
muitos outros presidentes que tivemos. Nossa economia est baseada na
escravatura. Escravos no sentem o calor dos campos nem precisam de tanto
descanso quanto ns, por isso podem trabalhar de sol a sol, se necessrio.
Ele parou de falar quando a criada negra entrou para tirar a mesa,
continuando quando ela saiu:
claro que no cometo o erro de muitos de meus vizinhos, que tratam os
criados da casa como se no existissem, falando abertamente diante deles.
Conhecer intimamente a vida da famlia d-lhes um poder de controle que nenhum
branco, por mais insensato que seja, deveria permitir. Houve uma rebelio aqui,
na poca em que minha me morreu, e muito do que eles fizeram foi devido ao
fato de saberem que o senhor da casa estava fora. No me lembro de quase nada,
mas eles estragaram muito a casa. De certo modo, fico at contente por no
poder v-la. Mas agora chega desse assunto. O que acham de passarmos sala de
estar? L mais confortvel que aqui.
Melody aproveitou a mudana de ambiente para abordar outro assunto.
E o seu primo, Paul?
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No sei o que aconteceu com ele, depois que saiu daqui. Simplesmente
desapareceu por vrios anos, at que recebemos uma carta dele, contando que
estava comprando terras e ia se estabelecer na Nova Zelndia. Isso foi h dez
anos. No ano seguinte, ele veio para os Estados Unidos, comprar rifles, explosivos
e equipamento agrcola. Parece que estavam tendo problemas com os nativos de
l, alguma coisa a ver com um tratado que os brancos haviam rompido. Paul estava
do lado dos nativos, mas isso j era de esperar. Por mais que tentssemos, no
conseguimos faz-lo entender que era justo que os colonos brancos tomassem a
terra para cultiv-la, j que os nativos no estavam dispostos a fazer isso. Os
brancos teriam dado emprego a todos os nativos, mas Paul achava que era mais
importante que eles conservassem suas terras, mesmo sem cultiv-las.
A mesma negra que servira o jantar entrou nesse momento, com xcaras de
um caf fumegante, forte e doce. Beatrice e Melody tomaram os seus, embora
preferissem caf mais fraco.
Logo em seguida, Brett continuou:
Nossa diferena de idade j no parecia mais to grande. Paul estava
com vinte e seis anos, e eu, com dezoito, mas ele havia mudado muito. Nanny me
disse que tinha uma enorme cicatriz no rosto, provocada por uma faca ou algo
semelhante, mas essa no era a nica mudana. A voz dele, que antes tinha uma
entonao pura e clara, havia se tornado spera e seca, e ele no sabia mais rir.
No entanto, apesar de nossas diferenas ideolgicas, ns nos apegamos tanto um
ao outro que se tornou difcil dizer adeus. Foi por isso que pedi a Paul para voltar,
quando descobri que no podia confiar em ningum a meu redor. Ele chegou h
trs semanas e me aconselhou a entregar St. Clare a Wilkinson e recomear a
vida em outro lugar. No entanto eu sempre vivi em St. Clare e acho difcil fazer
isso. Paul foi a Raleigh, levantar dinheiro, mas nem tive coragem de lhe perguntar
como conseguir. Ele no homem de aceitar interrogatrios. do tipo calado,
que transmite segurana, e, com Wilkinson porta, essa uma coisa de que eu
preciso muito. Ele sorriu, aliviando as linhas de tenso que tinham surgido em
volta de sua boca, enquanto falava. Como vem, nossa convivncia tem o tempo
contado. Por isso gostaria que ficassem o mximo possvel. Agora fale-me a seu
respeito... Melody. Posso cham-la assim, no ? Um nome to raro e bonito!
Sabendo das adversidades que ele j havia enfrentado e das que ainda
teria de superar, Melody sentiu-se ainda mais atrada por Brett. Estava certa de
que a opinio dele sobre escravagismo era conseqncia de uma educao errnea
e perdoou-o por isso, prometendo a si mesma fazer o possvel para esclarec-lo
melhor.
Ser um prazer... Brett. Agora, deixe-me ver... Evitando cuidadosamente
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tocar nos terrveis acontecimentos
que haviam precedido sua partida, ela falou de sua vida at a morte da
me. E terminou:
Depois disso, Luther Hogge se apossou de tudo. Ele achava que a casa e
tudo que continha, inclusive eu, ramos dele. Nunca vi um homem to duro e cruel.
Para ele, cometi um verdadeiro crime ao fugir com o filho do meu professor de
piano.
Melody interrompeu o relato, incapaz de continuar. Em voz baixa e triste,
Beatrice assumiu a narrativa:
- O rapaz... Hugh Van der Veer... morreu... assassinado, na noite de seu
casamento. Hogge no esperou nem trs meses antes de se declarar a Melody,
pedindo-a em casamento com tantas ameaas que fomos foradas a fugir. Por
isso aqui estamos, pedindo apenas alguns dias de calma para pensar no que fazer
de nossas vidas.
Que situao terrvel!
Estendendo a mo, Brett tocou o brao de Melody, num gesto de simpatia.
Quando a retirou, ela foi tomada por uma estranha sensao de perda.
Beatrice, que observava os dois com ateno, perguntou:
No h chance de voc ir morar com esse seu primo, na Nova Zelndia?
Brett sorriu, voltando a cabea para o lugar onde ela estava. Seu
movimento foi to perfeito que Melody achou difcil acreditar que ele realmente
fosse cego.
Tenho meu orgulho, lady Davenport. No posso depender de um parente,
principalmente sabendo que esse parente lutou com unhas e dentes para
construir uma nova vida, num pas totalmente selvagem. Eu no poderia ser da
menor utilidade para Paul, e isso acabaria afetando nosso relacionamento.
Beatrice olhou para Melody. "Isso era o que amos fazer", seus olhos
pareciam dizer, e a garota corou. Levantando-se, Beatrice declarou:
Desculpe, mas agora eu gostaria de descansar um pouco. A viagem foi
longa, e preciso escrever uma carta para a Inglaterra, avisando que chegamos
bem.
Melody tambm se ergueu, acompanhando-a at a porta.
Voc no pode, tia! murmurou, bem baixinho. John j fez muito por
ns.
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No somos, da menor utilidade aqui, meu anjo. John nos arrumar outro
refgio, onde no seremos um peso para ningum. Ele possui muitos amigos em
Nova York, que tero prazer em ajud-lo. No fique com essa cara, meu bem. No
estou sendo dura, s prtica.
A senhora pode fazer que achar melhor, mas eu vou ficar enquanto
puder. Vendo a surpresa da tia, Melody acrescentou: Vamos ficar s mais
alguns dias, est bem? Depois partiremos para Nova York. E, se for preciso,
posso at arrumar um emprego. No sei muita coisa, mas talvez possa trabalhar
como governanta.
Est bem. Minha carta deve levar duas semanas e meia para chegar a
John, e a resposta na certa levar o mesmo tempo para vir. Uma semana depois
disso, St. Clare ser vendida. No h jeito, rainha querida. Ningum pode se
recuperar de uma situao como esta.
Melody virou o rosto na direo das poltronas diante do fogo. No pde
ver a cabea de cabelos brilhantes e dourados, mas era como se tivesse Brett
diante dos olhos. Um fato bastante estranho, j que o conhecera h poucas
horas. Porm as feies dele estavam gravadas em sua mente, parecia-lhe t-lo
conhecido a vida inteira.
No podemos ir embora j reafirmou. Temos de ficar, nem que seja
para mostrar que h algum que se importa com ele...
Beatrice observou a sobrinha voltar para a poltrona junto de Brett e
inclinar-se para ele, dizendo algo que provocou um riso divertido no rapaz. Talvez
cinco semanas fossem demais. Melody e Brett estavam numa situao que os
tornava totalmente vulnerveis. Duas almas perdidas, lindas e brilhantes, que
naturalmente se sentiriam atradas uma pela outra.
Apertando os lbios de leve, Beatrice decidiu escrever imediatamente para
John.

CAPITULO V

Naquele dia, Melody se dedicou a conhecer a velha manso de Brett.
Olhe vontade ele lhe disse.
A princpio com timidez, depois com ousadia, ela se ps a examinar cada
canto. Brett lhe falara da rebelio dos negros sem dio, mostrando pelo bando
que mudara sua vida a calma tolerncia de um pai por um filho indisciplinado. No
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entanto, examinando as marcas deixadas por aquelas "crianas", Melody
comparou-as a verdadeiras feras e estremeceu, com uma repulsa instintiva por
aquele tipo de violncia completamente sem sentido.
Encontrou o quarto de Brett no andar trreo, s identificando-o ao abrir a
porta. As cortinas estavam fechadas, e seus olhos levaram algum tempo para se
adaptar penumbra.
Celine? chamou, as narinas captando o cheiro forte da mulata.
Ningum respondeu, e ela cruzou o cmodo para abrir as cortinas.
Celine? repetiu. Eu sei que voc est aqui. S no sei se o sr.
Savage est ciente de que vem para o quarto dele quando deveria estar
trabalhando em outro lugar.
O aposento era to espartano quanto os outros cmodos da casa, embora
as cortinas e as roupas de cama fossem ricamente bordadas, com as letras, "BS"
entrelaadas numa dzia de formas diferentes, nas beiradas das fronhas. Um
trabalho delicado e executado com a pacincia que s o amor proporcionava.
Enquanto o examinava, fascinada, um dos cantos da cortina mexeu-se e a criada
apareceu, o corpo rgido em sinal de defensiva.
Durante alguns segundos as duas se fitaram, e Melody foi dominada por
uma antipatia estranha e inexplicvel.
Estou limpando declarou Celine, com ar de desafio.
D para se ver Melody respondeu, com um sarcasmo que a assustou.
Era um absurdo estar ali, disputando direitos territoriais com uma escrava.
Por favor, no pare por minha causa. Se quiser, posso at chamar algum para
ajud-la... e trazer o material de limpeza!
Os olhos de Celine faiscaram de dio.
No precisa, eu j acabei.
Balanando os quadris, ela saiu. Melody teve de apertar os dentes para
dominar a vontade de dar um bom pontap naquele traseiro.
Com a disposio para explorar acabada, ela fechou as cortinas e voltou
para o prprio quarto. Naquela tarde e no outro dia, aventurou-se pelos campos
em volta da casa, encontrando olhares de censura por toda parte.
Ser que eles acham que vou ficar com St. Clare e obrig-los a
trabalhar? perguntou a Beatrice, na terceira noite. O lugar bem que est
precisando disso. No fazem nada alm do absolutamente necessrio, e aquele
capataz to preguioso quanto eles. Se no est em cima do cavalo, dizendo
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gracejos s garotas mais novas, est deitado na sombra de uma rvore, coando a
barriga. A senhora acha que Brett sabe o que est se passando? Ele parece
preocupado com as dvidas e o declnio de St. Clare, no entanto no se deu ao
trabalho de arrumar outro capataz.
Nesse momento, Brett apareceu na porta da sala, e a conversa morreu.
Mesmo assim, Melody continuou inquieta. Inquietao que o rapaz sentiu, pois,
assim que Beatrice subiu, perguntou:
Voc no est feliz aqui, no ?
Estou, sim! ela garantiu, virando-se da janela, onde estivera
observando o jardim malcuidado.
Brett estendeu a mo para toc-la no brao, adiantando-se um pouco, mas
tropeou num tamborete que ela trouxera da outra sala e esquecera de levar de
volta. Teria cado, se no fosse pela rpida reao de Melody, que o agarrou pelas
mos.
Desculpe ambos disseram simultaneamente. E logo em seguida riram,
recuando um passo.
No Brett murmurou, ainda sorrindo. No vou pedir desculpas.
Tomou as mos dela entre as suas, quentes e fortes. No podemos... agir como
se fssemos parentes? Porque, se formos mesmo parentes distantes, podemos
nos dar as mos sem ferir as regras da sociedade. A no ser que voc no queira,
claro... Mas voc quer, no , Melody?
Claro que quero Melody retrucou, tremula e um pouco ofegante.
O riso dele foi repentino, leve e alegre, como se todas as preocupaes que
o atormentavam tivessem desaparecido com aquela afirmao.
timo. Ento, de agora em diante, vou pegar a sua mo quantas vezes
quiser. E vou aproveitar para lhe pedir uma coisa que no teria coragem de pedir,
se ainda fssemos estranhos. Se bem que nunca senti que fssemos estranhos...
Engraado, eu tambm no. Vai ver que j nos conhecamos... de outra
vida.
Eu teria visto voc, ento. E posso v-la agora, tambm. No com os
olhos, mas com as mos. Num cego, o tato se torna muito desenvolvido. Posso?
O corao batendo descompassado, ela fechou os olhos enquanto os dedos
gentis moviam-se por seu rosto, tocando testa, nariz, queixo, plpebras e
sobrancelhas, antes de descer para os lbios ligeiramente entreabertos. Um leve
tremor sacudiu as mos masculinas, e ambos respiravam mais depressa, quando
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ele recuou um passo, murmurando:
Nunca pensei que voc fosse to bonita! Um sorriso incerto iluminou-
lhe o rosto. . No sei se desejo que Nanny volte ou no. Se somos parentes, no
quero mais saber. Mas se no somos... quero saber logo.
Melody respirou fundo, lutando para recuperar a compostura.
Tia Bia no dorme enquanto no me ouve subir. Tenho de ir.
S mais uma pergunta, depois voc vai.
Ela o fitou, deliciando-se com a simetria perfeita das feies masculinas.
O que ?
Voc tambm quer que no sejamos primos? .E, com um sorriso
devastador: Responda, seno ficaremos aqui a-.noite inteira. E olhe que est
frio!
Ela sorriu, respondendo com. toda a sinceridade:
Quero.
E correu para a porta, aferrado-a a tempo de ver Celine dar um passo para
o lado, as saias fazendo o barulhinho caracterstico da seda.
Vim ver se mister Brett quer chocolate quente ou brandy, antes de ir
para a cama. Passou rapidamente por Brett, indo ronronar junto ao amo: Vai
querer que Celine lhe leve alguma coisa, mister Brett? No vai me querer para ...
outras coisas?
No, pode ir para a cama ele disse, sorrindo na direo de Melody,
que continuava na porta. Boa noite, Melody. Levante cedo, para podermos
passar muitas horas juntos.
Levanto, sim ela prometeu, retribuindo o olhar zangado da mulata com
um sorriso cheio de doura.
O incidente se repetiu muitas vezes durante os dias que se seguiram, com
Celine atrs de todas as portas e uma desculpa pronta nos lbios. Melody se viu
preparando armadilhas ridculas para a garota, como entrar num local em que
Brett estava, comear uma conversa e voltar para a porta, abrindo-a de supeto.
Celine encontrava-.se sempre l, e, incapaz de agentar aquilo por mais tempo,
Melody falou com Brett.
Eu sei que ela gosta muito de voc e acha que deve cuidar do seu bem-
estar, j que Nanny est fora, mas...
Celine tem aborrecido voc e sua tia? Se tem, ser punida por isso.
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Projeto Revisora 66

Ah, no! No quero que a castigue. Talvez uma palavrinha...
Mas ele j tocava o sino, e, com um suspiro, Melody foi abrir a porta para
que Celine entrasse.
A garota manteve-se rgida,.durante todo o sermo do amo. Brett falou
num tom baixo e suave, que, por isso mesmo, amedrontou-a ainda mais.
E, se voc der mais um nico motivo para que minhas hspedes se
aborream ele terminou , juro que a mando de volta ao campo!
Celine jogou-se ao cho, agarrando os joelhos dele.
Por favor, mister! Isso no! No pode fazer isso comigo! Tenho sido to
boa para o senhor! To boa!
O rosto plido de Brett tornou-se duro, os olhos azuis brilhando como
diamantes. Mesmo assim.seu Com no mudou, e Melody percebeu, pela primeira
vez, que seria perigoso desgostar de um homem como ele.
Voc me serviu como qualquer negra que eu tirasse do campo deveria me
servir. Voc faz o que lhe mandam. No momento em que me desagradar, volta
para o campo at ser vendida rio abaixo. Est entendido?
Mister Brett!
Foi um grito to agoniado que Melody sentiu o corao se apertar pela
mulata. Ela chorava abertamente, as lgrimas de angstia escorrendo pelo rosto
cor de bano.
Brett, ela no fez por mal. Provavelmente s estava tentando servi-lo da
melhor maneira possvel...
As feies do rapaz perderam a dureza, e um leve sorriso surgiu-lhe nos
lbios.
Voc no est acostumada com escravos, Melody. Se tiver pena deles,
vo achar que podem controlar a casa, que podem pensar por si mesmos, e isso
seria prejudicial plantao. De um ponto de vista, so como crianas; de outro,
parecem gado.
Brett mexeu-se, e Celine afastou-se dos ps dele, permanecendo de
joelhos enquanto ele caminhava para Melody.
Mas, j que voc no quer, Melody, no a punirei. Por cima do ombro,
ele comunicou mulata: Pode voltar para o seu trabalho, Celine. Eu a chamo, se
precisar, mas de agora em diante quero que fique em seu alojamento quando no
estiver limpando a casa. Outra coisa: a limpeza de meu quarto e dos quartos de
minhas hspedes no so mais de sua responsabilidade, e voc deve ficar longe
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Projeto Revisora 67

deles. Entendeu?
Entendi, mister Brett. Muito obrigada. Vagarosamente, plida e de olhos
baixos, Celine se levantou e saiu da sala.
Aborrecida e embaraada, Melody esperou que a porta se fechasse. A
atitude de Brett com os escravos era terrvel. Os criados de sua casa, antes de
Luther substitu-los, tinham sido amigos da famlia, ainda que num nvel social
diferente. Quando criana, ela costumava se sentar na cozinha e passar horas
junto deles. Muitas vezes, vira o pai pousar a mo no ombro de um trabalhador,
em agradecimento por tarefas realizadas acima do dever, e conversar com
outros, de igual para igual. A crena de Brett, de que os escravos eram uma raa
inferior, mostrava uma diferena fundamental e chocante entre eles.
Venha, pegue o meu brao, que eu a levo para o seu quarto Brett
ofereceu, sorrindo daquele jeito devastador que tanto mexia com o corao dela.
Quero que seja feliz aqui, Melody. Temos to pouco tempo juntos que no
devemos desperdi-lo com uma criada.
Ela acedeu, ainda infeliz.
Eu entendo que uma plantao precisa de trabalhadores, mas mesmo
necessrio que sejam escravos? Por que negros, em vez de brancos? Voc disse
que eles agentam melhor o calor, mas tia Bia e eu vimos muitos brancos
labutando em lavouras pauprrimas, a caminho daqui. Aposto que eles ficariam
contentes em trabalhar para outra pessoa, em troca de um salrio. O sorriso
morreu nos lbios dele.
Aquela gente o que chamamos de "lixo branco", Melody. No querem
trabalhar. Alm disso, mesmo que eu encontrasse um ou dois homens honestos
entre eles, teria de lhes pagar um salrio. E eles jamais conseguiriam trabalhar
tanto quanto os negros. Um negro de primeira capaz de colher vinte e cinco
quilos de algodo por dia... o dobro at, se guiado por um bom capataz. Em
pagamento, recebem casa, roupa e comida, o que mais do que conseguiriam em
sua terra de origem.
Mas muitos deles nunca estiveram na frica. Nasceram escravos, num
pas onde todos os homens so considerados iguais.
Pela expresso dele, Melody viu que Brett encarava o assunto abaixo da
capacidade dela de entender.
Os negros no so homens, so mercadoria. Sempre foi assim, e no vejo
motivos para mudar. Por favor, minha querida, aceite o que no pode
compreender. Voc nova neste pas e no sabe nada da nossa poltica,
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Projeto Revisora 68

crescimento econmico e povo, para julgar de outra forma que no seja com o
corao.
Percebendo que a cegueira dele ia alm dos olhos, Melody teve pena e
mudou de assunto. Na porta de seu quarto, parou e voltou-se para fit-lo.
No fique brava comigo, Melody ele disse, segurando-a pelos ombros.
uma pena que eu no seja um homem de verdade. Seno, poderia lev-la para
jantar na cidade e faz-la esquecer St. Clare e todas as Celines do sul.
Eu no estou zangada, Brett. De verdade! Nossos modos de pensar so
diferentes, s isso. Quanto a voc no ser um homem de verdade, h muitos por
a, com todos os sentidos, que jamais seriam capazes de enfrentar com tanta
coragem os problemas que voc tem. Ir jantar fora no importante, mas ama-
nh, se voc quiser, podemos sair para um passeio de carruagem pela plantao, e
eu lhe descrevo tudo que estiver acontecendo. Quer? Ele apertou os lbios por
um instante, depois concordou:
Quero, sim.
Combinado! Boa noite, Brett.
Brett caminhou para a escada, e Melody virou-se para entrar no quarto.
Mas no instante seguinte ouviu um grito e girou nos calcanhares, a tempo de v-lo
rolar at o fim dos degraus, onde ficou cado, completamente imvel. Chamando
por ele, desceu tambm. Portas se abriram, e Beatrice e Celine alcanaram-no ao
mesmo tempo.
No mexa nele berrou Beatrice, ajoelhando-se ao lado do rapaz
inconsciente.
Foi minha culpa! Melody choramingou. Ele quis me trazer at o
quarto e depois eu no verifiquei se tinha conseguido se apoiar no corrimo.
Estvamos falando de um passeio de carruagem e...
Mister Brett nunca sobe a escada Celine sibilou, mas recuou diante do
olhar zangado de Beatrice.
Rapidamente, Beatrice examinou a figura imvel, procura de ossos
quebrados. No encontrando nenhum, mandou:
Celine, v buscar dois homens fortes para levar o sr. Savage para o
quarto dele. Melody, acho que no foi nada grave, mas ele est com um corte feio
na testa. Traga gua e panos da cozinha. E acrescentou com um sorriso, ao
levantar os olhos e ver a expresso abatida da sobrinha: V logo, querida. Ele
vai ficar bom.
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Projeto Revisora 69

Antes mesmo que Celine voltasse com os homens, Brett soltou um gemido e
abriu os olhos.
Est tudo bem, sr. Savage Beatrice tranquilizou-o, de imediato. Foi
uma queda feia, mas no sofreu nada alm de um corte na testa. Celine foi atrs
de algum para ajud-lo a ir at o quarto, e Melody foi buscar gua para banhar o
corte. Celine disse que o senhor nunca sobe a escada. Eu aplaudo a sua. galanteria
em acompanhar a minha sobrinha, mas no acha que foi tolice fazer algo a que no
est acostumado?
Brett assentiu, estremecendo quando o movimento fez a dor explodir em
sua cabea.
Foi uma grande tolice. Agora no vou mais poder passear de carruagem
com ela, amanh.
De jeito nenhum. Mas a esto Celine e Melody. Relaxe e deixe que esses
homens o levem at seu quarto.
Melody passou os dois dias seguintes cuidando de Brett. Sentia-se culpada,
embora ele lhe afirmasse, a todo momento que no tinha o menor motivo para
isso. Como lhe fora ordenado, Celine permaneceu em seu alojamento, e Beatrice
foi a nica a identificar os soluos abafados que vinham do quartinho do poro,
durante a noite.
No terceiro dia, Nanny chegou e imediatamente assumiu o comando de
tudo. Continuava uma negra esbelta e bonita, apesar dos setenta anos. Devido ao
problema de Brett, foi Beatrice quem a recebeu no saguo, um ou dois segundos
antes de Celine.
Sou lady Davenport apresentou-se, com um sorriso social. E voc
deve ser a Nanny, de quem o sr. Savage tanto fala. Minha sobrinha, a sra. Van der
Veer, e eu chegamos a semana passada para uma breve visita, como j deve
saber.
A mulher colocou no cho a enorme valise que tinha nas mos e inclinou a
cabea.
Li o seu telegrama e fico contente em v-la, lady Davenport. Espero que
a senhora e sua sobrinha tenham sido bem tratadas durante a minha ausncia.
Beatrice ergueu uma das sobrancelhas, surpresa com o tom de voz
educado. Celine falava corretamente, mas no tinha aquela entonao.
Temos, sim, obrigada. O sr. Savage sofreu um acidente h trs dias, mas
no foi nada grave. Caiu da escada e desde ento est na cama, sob os cuidados
de minha sobrinha.
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Projeto Revisora 70

Os olhos escuros mudaram de expresso, e, sem nada dizer, a mulher
passou por Beatrice e apressou-se para o quarto de Brett, onde Melody lia, junto
cama. Beatrice seguiu-a, chegando a tempo de ouvir a acolhida alegre do rapaz:
Nanny! Voc voltou!
Nanny lanou um rpido olhar na direo de Melody.
um prazer conhec-la, sra. Van der Veer. E para Brett: Mister
Brett, foi uma falta de juzo subir aquela escada, fosse qual fosse o motivo!
A culpa foi minha interferiu Melody. Eu deveria ter visto se ele
havia achado o corrimo.
Na porta, Beatrice meneou a cabea. Havia algo diferente naquela mulher
que simplesmente assumia o comando, fazendo com que todos se sentissem como
crianas levadas.
Um sorriso forado entreabriu os lbios da negra, quando ela notou a mo
de Brett procurar a de Melody.
Estou vendo que o senhor foi bem cuidado, mas a sra. Van der Veer deve
estar precisando de um descanso. Celine ficar no seu lugar, madame, enquanto
toma uma xcara de ch e comer alguma coisa. No, Nanny Brett declarou com
firmeza. Celine tem trabalho a fazer.
Ela hesitou por um momento, estudando o rosto do rapaz, depois
concordou.
Est bem, mister Brett. Quer que eu mande o ch de sra. Van der Veer
para c, ento?
Ah, no! Melody protestou. Eu vou tom-lo na copa. Voc no se
importa de ficar sozinho por alguns momentos, no , Brett? Volto logo.
Ele passou o polegar pela palma da mo delicada, fazendo-a estremecer.
Voc tem sido to boa para mim que no posso dizer "no". Mas no
demore muito, est bem? St. Clare fica to vazia quando voc no est perto de
mim...
Melody corou, lanando um olhar para a negra impassvel que as precedia a
caminho da porta.
O que a senhora achou dela? perguntou tia, quando j se
encontravam na copa e Nanny fora para a cozinha. Essa mulher me causa
arrepios!
Ela uma bab antiga, que se ressente de qualquer pessoa que chegue
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Projeto Revisora 71

muito perto de seu protegido. No se esquea, meu anjo, de que ela cuida dele
desde pequeno. Ficou bastante surpresa por Brett no aceitar sua sugesto de
trazer Celine. No deve estar acostumada com esse tipo de comportamento.
J tempo de essa mulher compreender que crianas crescem.
Naturalmente, agora Brett precisa de ateno e cuidados. A queda foi feia e...
Beatrice no agentou.
Melody, querida, Brett no sofreu nada alm de um corte: na testa com
esse tombo. Se ele fica na cama, por causa do carinho e da ateno que voc
tem lhe dado. :
Que isso, tia Bia? Como pode dizer uma coisa dessas? Est sendo
injusta?
Se estou, peo desculpas, mas acho que aquele rapaz poderia sair da
cama agora mesmo, se quisesse. No concorda comigo, Nanny?
A negra, que colocava a bandeja de ch sobre a mesa, ergueu os olhos para
ela, hesitou, depois acabou assentindo.
Mister Brett sempre gostou de ateno, e se a senhora diz que o tombo
no foi grave, pode muito bem se levantar para o jantar- Eu vou falar com ele.
Ela caminhou at a porta e parou, voltando-se. A minha neta, madame... Ela lhe
deu motivos para queixa? No a vi mais, depois que cheguei, e recomendei tanto a
essa menina que cuidasse de Brett...
Com medo do que a tia ia dizer, Melody adiantou-se:
Celine cuidou tanto dele que tirou nossa privacidade, e o sr. Savage foi
obrigado a falar com ela a esse respeito. Ela no est acostumada com hspedes
e no sabia que no precisava ficar junto de ns o tempo todo.
Nanny examinou por um instante a garota, reparando nos cabelos negros,
brilhantes, nos olhos cor de safira e no corpo bem-feito, que nem o vestido de
luto podia enfeiar. Com absoluta compreenso, murmurou:
Peo desculpas por minha neta, sra. Van der Veer. senhora tambm,
lady Davenport. Eu vou falar com ela.
Assim que pde, Nanny foi atrs de Celine, no quarto dela, comeando sem
rodeios:
Voc uma idiota, menina! Quer Brett, mas age como lixo branco. D
uma olhada em voc mesma! Acha que roupa de segunda mo, mesmo sendo de
seda, e perfume barato vo conquist-lo? Acha que se comportando como uma
cadela no cio vai consegui-lo?
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Projeto Revisora 72

Celine recuou alguns passos, emburrada.
Bem-vinda, vov disse. E no conteve uma exclamao de dor, quando
dedos de ferro agarraram-lhe o pulso.
Preste ateno no que vou dizer, menina!
Ai! Eu estou prestando!
Ento oua, e oua com ateno: voc vai se agradvel com aquelas
mulheres. To agradvel que elas deixaro que as sirva de novo.
Mas eu no quero isso!
Quer, sim. Aquela moa pensa que parente de mister Brett, mas no se
comporta como se fosse. Eu sei que mister Brett no tem parentes vivos. H
alguma coisa errada nesta histria, e eu pretendo descobrir o que . Se voc
puder entrar nos quartos delas e revistar a bagagem, talvez descubra quem
realmente so e o que querem aqui.
Celine assentiu vagarosamente, enfrentando o olhar da av.
A senhora acha que eu ainda posso conseguir que mister Brett case
comigo, apesar daquela fulana? Acha que ele ainda pode me levar para o norte e
me dar a liberdade?
Em primeiro lugar, sua tola, aquela "fulana", como voc diz, uma dama,
por nascimento e criao. Em segundo, mister Brett no vai se casar com uma
escrava, se puder achar mais uma dzia de escravas iguais. Ele tem de amar voc,
e a tal ponto que no se importe mais com a sua cor. Ele j depende de ns em
muitas coisas, mas tem de depender mais ainda, para que nem consiga pensar em
nos vender, quando St, Clare for entregue quele sujeito. Tenho sido a famlia de
mister Brett desde antes de voc nascer. Se essas mulheres forem embora, ele
ter de se apoiar era ns. A garota branca muito bonita, e a mulher esperta.
Voc precisa ser mais bonita ainda, e eu, mais esperta. Entendeu, menina? Celine
assentiu, mais animada.
Vou ser to doce que aquelas duas vo ficar embasbacadas. E vou vigi-
las com toda a ateno.
A av sorriu.
Isso mesmo. Agora, quero que prenda seus cabelos num coque baixo,
como o da sra. Van der Veer. Mister Brett vai levar mais tempo para solt-los
quando precisar de voc, e um pouco de espera no faz mal a nenhum homem.
Voc ainda lhe d prazer, menina?
Celine esfregou os ps no cho, sem responder.
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D?
Dou... s vezes...
Muito?
Celine manteve-se em silncio.
Olhe aqui, menina, eu no a coloquei nesta casa por nada. No fiz mister
Brett examinar voc pessoalmente, centmetro por centmetro, como ele faria
com qualquer escrava de cama num leilo, por nada. Eles no fazem isso com as
mulheres frias com que se casam, to brancas que sua pele parece barriga de
peixe: morto. Agora, voc a.escrava de cama de mister Brett, mas, se ns
agirmos direitinho, poder ser a esposa dele. Mas tem de fazer como eu digo.
Est bem, vov. Vou fazer exatamente como diz. Serei boa, meiga e
agradvel. E vou manter os olhos bem abertos.
A av avaliou-a com um olhar, examinando o vestido vulgar e as jias
baratas e excessivas. No entanto, no havia nada de errado com o corpo esbelto,
os lbioscheios e os olhos aveludados, e um suspiro escapou de seus lbios.
Nunca vou entender como a minha patroazinha conseguiu ter um filho
to bonito quanto mister Brett, com aquele cafajeste do Touro Selvagem. E
tambm nunca vou saber como sua me conseguiu uma filha to linda como voc,
dormindo com aquele traste daquele fazendeiro branco, para quem o Touro a
emprestou. O que eu sei que vocs, os filhos, foram feitos para ficar juntos.
Agora, lave o rosto e coloque um dos seus vestidos de algodo, de gola alta, para
comearmos nossa campanha. Entendeu, menina?
Os olhos aveludados de Celine tinham agora uma expresso sonhadora.
Sim, senhora ela murmurou. Satisfeita, Nanny deu-lhe as costas e
voltou para seus afazeres.

CAPTULO VI

Quando Celine apareceu, na manh seguinte, Beatrice fitou-a, incrdula. A
garota usava um vestido discreto, os cabelos estavam presos num coque e ela
mantinha os olhos fixos no cho, numa atitude de inegvel respeito.
Sim, Celine, o que foi? Beatrice perguntou depois de alguns
momentos, escondendo a surpresa.
Posso tomar um minuto do seu valioso tempo, lady Davenport?
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Apesar da desconfiana, o tom de Beatrice foi gentil.
Claro. H alguma coisa que eu possa fazer por voc? Finalmente os olhos
aveludados ergueram-se do cho.
Minha av disse que vai me dar uma surra de chicote se eu no pedir
desculpas senhora. Eu fui muito ruim, mas acabou, eu juro! Os lbios cheios
comearam a tremer. No sei o que me deu para achar que era importante
nesta casa. No passo de uma criada sem valor. Se a senhora achar que devo ser
chicoteada pelo que fiz, no vou achar ruim.
Deus do cu! Beatrice exclamou, tomada por uma mistura de horror e
divertimento. claro que no quero que voc seja chicoteada, Celine.
No? A senhora me perdoa, ento? E vai deixar que eu a sirva?
Isso j ir longe demais.
Por favor, lady. Eu sei passar bem e posso passar todas as suas roupas,
mesmo que no me queira por perto...
Capitulando diante da expresso suplicante de Celine, Beatrice assentiu.
Est bem, pode passar minhas roupas e dependur-las no armrio. Mas
s isso, entendeu?
Sim, senhora. Muito obrigada! Com um sorriso radiante, a garota saiu.
Minha nossa! exclamou Beatrice, falando consigo mesma. Que ser
que houve? Milagres j no acontecem h muito tempo. Essa menina deve estar
tramando alguma coisa...
No corredor, a "menina" se encostou a uma parede, os olhos brilhantes, o
sorriso triunfante.
Peguei voc! murmurou, antes de voltar para o prprio quarto, os
quadris balanando no ritmo sensual de sempre.
Beatrice ainda refletia sobre a atitude da mulata quando Melody entrou
correndo, excitadssima.
Tia Bia, ele vai se levantar! No maravilhoso? Acho que eu teria um
ataque se tivesse de ler mais um poema! No tenho fora de vontade suficiente
para tratar de uma pessoa doente por muito tempo.
Voc no imagina as coisas que podemos fazer quando necessrio, meu
anjo. Mas j estava mesmo na hora de Brett sair daquela cama. Agora, que tal
descermos para o caf da manh?
Quando elas chegaram sala de jantar, viram Brett saindo do quarto.
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Como sempre, os ouvidos dele detectaram a presena de ambas.
Melody! E lady Davenport! No imaginam o quanto bom estar em p de
novo. Ele aproximou-se delas. Senti sua falta ontem tarde, Melody.
Com toda a naturalidade, Brett estendeu o brao e passou-o pelos ombros
de Melody. Ela reagiu com um gesto de ternura, segurando-o pela cintura e
levando-o para a sala de jantar.
Observando-os, Beatrice franziu a testa. Aqueles dois precisavam ser
separados, e estava comeando a ficar com medo de que a carta de John no
chegasse a tempo. Sentia que havia algo errado ali, e seu instinto lhe dizia para
pegar a sobrinha e ir embora, o mais rpido possvel.
V como estou bem? Brett exclamou, envolvendo Melody nos braos e
girando com ela pela sala. E ficarei ainda melhor depois de alguns passeios.
Lady Davenport, acha que ficaria bem eu dar uma volta com Melody pelos
arredores da casa, depois do caf? Beatrice no pde conter um sorriso.
No me pergunte, rapaz! Melody uma mulher independente, capaz de
tomar as prprias decises. S acho que, se vocs forem mesmo passear, devem
ir de huggy. Afinal, voc acaba de se levantar depois de uma queda feia.
tima idia! Melody disse, sem reparar no enrijecimento de Brett.
Logo em seguida, no entanto, ele sorriu e concordou.
Claro! Vou mandar Sanso atrelar os dois baios. So to fceis de
controlar que voc nem vai precisar de luvas. Quer vir conosco, lady Davenport?
No, obrigada. Melody deve estar querendo ter voc s para da, agora
que est bom de novo. Se me der licena, vou dar uma olhada na sua biblioteca.
Ansiosa para sair, Melody terminou rapidamente seu caf e puxou Brett
para fora. Ajudada pelo impassvel Sanso, acomodou-se no banco ao buggy,
forrado de couro marrom.
Um passeio calmo e tranqilo pela plantao? perguntou, sorrindo, ao
tomar as rdeas:
- Por mim, est timo -Brett murmurou, mas havia uma certa tenso em
seu tom.
Melody fitou-o, lembrando-se, ento, de que ele perdera o pai e a viso
num acidente de carruagem.
Ah, Brett, eu me esqueci! Desculpe! Quer cancelar o passeio? Podemos
sair a p...
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Projeto Revisora 76

No! Ele fez um esforo visvel para dominar o medo.- Faz tento
tempo que aquilo aconteceu... ridculo que eu me sinta assim. V em frente. Pelo
que ouvi dizer, as estradas de St. Clare so boas, e voc poder ir me
descrevendo o estado das lavouras. Tenho de estar a par de tudo, para poder
enfrentar Wilkinson. Se estou... um pouco tenso, porque nunca mais subi num
veculo depois do acidente.
Seus tios nunca...
Eu no os ajudava em nada, e eles no eram to amigveis e pacientes
quanto voc. Se eu saa de casa, era para ir s at a varanda. S h pouco tempo
descobri que podia sentir o caminho com a bengala e ser mais ou menos
independente. claro que levei semanas dando encontres por todo lado, mas
acabei aprendendo a andar pelo ptio. Brett sorriu. Em frente, vamos!
Havia uma nota de falsa animao em sua voz, mas, ansiosa para se afastar
da atmosfera pesada da casa, Melody preferiu ignor-la. Estalou a lngua e,
imediatamente, os cavalos saram, Brett agarrou-se com fora ao banco, mas
depois, quando o buggy assumiu um ritmo suave, comeou a se descontrair.
H um velho carvalho sua esquerda Melody anunciou.
Tem longa rachadura no tronco, provavelmente causada por um raio.
Vocs tm muitas tempestades por aqui? E depois:
Estamos chegando ponte sobre o rio. Parece segura, mas precisa de
algum cuidado, melhor falar com o seu capataz. O mato tambm precisa ser
cortado, aqui. Est comeando a fechar a estrada. Olhe! Ah, desculpe... Alguns
coelhos esto brincando ali adiante...
Com o barulho do buggy, o coelho maior assustou-se e correu para o meio
da estrada, Os cavalos estacaram, e um deles entrou em pnico, saindo de lado e
puxando o outro com ele. O coelho girou, correndo de volta para o lugar de onde
viera... e foi pego pelas patas que sapateavam: O cavalo, amedrontado, sentiu o
obstculo peludo, ouviu o guincho do animalzinho ferido e disparou. Contagiado
pelo pavor do companheiro, o outro cavalo acompanhou-o.
A reao de Melody foi imediata; firmando os ps, ela segurou as rdeas
com mais fora. No era a primeira vez que lidava com cavalos em pnico, e seu
pai a ensinara bem. Calmamente, chamou os animais, tranquilizando-os num tom de
voz que no traa o menor medo, s uma certa excitao e tolerncia pela atitude
deles. Sentindo isso, a parelha foi se acalmando, at parar, Melody, ento, desceu
e foi acariciar-lhe os focinhos trmulos, censurando e elogiando num tons doce,
que os fez abaixar as cabeas e soprar-lhe a saia.
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Est bem! Ela riu. Mas, de agora em diante, comportem-se.
Melody virou-se para trs, e o sorriso morreu em seus lbios. Brett estava
ajoelhado na poeira da estrada, com as mos sobre o rosto e tremendo
incontrolavelmente.
Brett! Brett! Correu para ele, ajoelhando-se tambm para abra-lo.
Ah, meu amor, eu sinto tanto!
Ela o aninhou de encontro a si, beijando-lhe os cabelos e sofrendo
terrivelmente com os soluos silenciosos que o sacudiam, sem dvida
conseqncia de um terror infantil. Mas, aos poucos, embalado em seus braos,
ele comeou a vencer a batalha e enlaou-a, absorvendo o conforto que ela lhe
oferecia. Quando, afinal, levantou e cabea, tinha um sorriso envergonhado nos,
lbios.
Como sou tolo -- declarou, envolvendo o rosto dela com as mos.
Perdoe-me.
No diga isso. Voc bom, gentil e corajoso, No de admirar que depois do
que passou... A culpa foi minha... Eu devia ter visto..
Foi quando ele a beijou, delicadamente a princpio, os lbios movendo-se de
leve sobre os dela. Logo, no entanto, com um gemido, apertou-a de encontro ao
peito, explorando-lhe a boca com uma paixo que nunca pensara existir.
Por um momento Melody cedeu, retribuindo o beijo com todo o ardor de
que era capaz, mas a dura realidade no tardou a interferir.
No, Brett! No devemos!
Empurrou-o, mesmo desejando ficar como estava pelo resto da vida. Com
um estremecimento, ele a soltou,
Melody...
Precisamos voltar.
Ele baixou a cabea, lutando contra o desejo que ameaava domin-lo,
depois concordou.
verdade, temos de voltar, E falar com Nanny. Isto no pode mais ser
adiado. Ergueu a cabea, fitando-a como se seus olhos sem vida pudessem ver.
Se o que sinto proibido, Deus me ajude, pois ser impossvel mudar! Mas, se
no somos do mesmo sangue, nunca mais a deixarei partir!
O modo como ele falara intensificou a chama que j queimava dentro dela,
fazendo-a murmurar, com as mos trmulas emoldurando o rosto dele:
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Projeto Revisora 78

Ento... pelo que for... certo ou errado... Beijou-o novamente, com
todo o ardor de sua juventude, antes de se levantar e ajud-lo a fazer o mesmo.
Venha. Vamos descobrir a verdade... seja ela qual for.
Pouca coisa foi dita na volta. Brett passou o brao pela cintura de Melody,
e seu silncio deu a ela oportunidade de refletir sobre as prprias emoes.
Estava confusa. O que sentia por ele era mais profundo do que o que sentira por
Hugh. No podia negar que o beijo de Brett a excitara mais do que os do marido,
no entanto... aquela paixo no lhe parecia suficiente.
Melody censurou-se por ser to tola e romntica. A culpa era dos romances
que andara lendo. Sem dvida, como suas amigas tinham lhe dito, mulheres no
eram capazes de sentir paixo, s amor pelos filhos e respeito e afeto pelo
marido, tolerando com pacincia e resignao o lado mais difcil do casamento. O
que sentia por Brett devia ser amor, j que era mais forte do que o que sentira
por Hugh, e seu instinto protetor na certa fazia parte desse sentimento. Mesmo
assim...
Chegamos! Brett exclamou cora alvio, cobrindo-lhe a mo com a sua.
A casa estava silenciosa, e, com um estranho pressentimento, Melody
chamou pela tia. Beatrice logo apareceu, dizendo a Brett:
Nanny e Celine foram a Whitewalls, com a minha permisso. Achei que
voc no se importaria, j que elas foram para o enterro da filha de Nanny, a me
de Celine.
Coitadas! Melody exclamou. Deve ser horrvel para uma famlia,
viver separada!
Brett franziu a testa.
, Sem dvida, mas meu tio deve ter tido uma boa razo para vender a
filha de Nanny. Gente como ela costuma dar trabalho, e meu pai deve ter deixado
alguma instruo escrita. Ele passou a mo pelos cabelos, franzindo ainda mais
a testa. Nanny no precisava levar Celine. Afinal, ela mal conhecia a me.
Nanny convenceu meu tio de que a menina ficaria melhor aqui, j que na poca a
me no estava com os Halliday; era Whitewalls, mas emprestada a um plantador
de tabaco, rio abaixo. s vezes lamento que Celine no tenha sido vendida para os
Halliday, com a me. Ela quase intil aqui.
Beatrice no se conteve.
Pois ento no h do que se queixar. Voc conseguir se arranjar sem ela
por alguns dias. E, se nos der licena, Melody e eu cuidaremos da superviso da
casa, comeando pela cozinha.
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Projeto Revisora 79

No quero lhes dar trabalho... Melody, ns precisamos conversar.
Depois, Brett. Melody estava decepcionada com a atitude fria do
rapaz em relao aos sentimentos de duas pessoas que o serviam h tanto tempo,
embora soubesse que ele as encarava como seres inferiores, incapazes de
qualquer emoo. Agora preciso ajudar tia Bia. Conversaremos depois do
almoo.
Ele forou um sorriso.
Est bem. Voc tem razo, claro. que normalmente no penso muito
em comida. O gosto nunca dos melhores.
Hoje vai ser Beatrice prometeu. Venha, Melody. Vamos ver o que
podemos fazer.
Como j era de esperar, a cozinheira estava preparando um ensopado
inspido. Num canto da mesa havia milho, batatas e um pernil de porco, ao lado de
uma galinha recentemente abatida. No foi preciso muita imaginao para
perceber quem era mais bem alimentado, se o amo ou os escravos.
Com uma expresso gelada, Beatice correu os olhos por tudo, depois fixou-
os nas duas mulheres que esperavam, ansiosas, junto ao fogo.
Estou vendo que esto preparando seu almoo. A quantidade grande,
portanto suponho que vo alimentar outros criados da casa, tambm. De qualquer
maneira, no foi para questionar a generosidade de seu amo que vim at aqui. Com
Nanny fora, o sr. Savage sugeriu que eu assumisse a direo da casa. E vamos
comear com o almoo dele. Tragam-me banha, farinha e um pouco daqueles
temperos. Vamos ter creme de milho, batatas cozidas com hortel, ervilhas e
pernil de porco. Voc, menina! Comece a descascar as batatas. Melody, em algum
lugar por a deve haver algumas garrafas de vinho. Veja se as encontra. Ah,
tambm precisamos de mas para uma torta!
Dominando a vontade de rir da cara. da cozinheira e de sua assistente,
Melody ps-se em ao.
Foi assim que Brett e suas hspedes se sentaram para saborear a melhor
refeio que St, Clare j.vira em muitos anos. Recebendo seus elogios
encantados, Beatrice prometeu:
Espere s at o jantar!
Ele abriu a boca para dizer, alguma coisa, mas foi interrompido por uma
sbita agitao no saguo, e a voz de Sanso, erguida num protesto. Logo em
seguida as portas da sala de jantar se abriram, e o infeliz mordomo foi
empurrado para dentro do cmodo, enquanto algum berrava:
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Projeto Revisora 80

Esse atrevido teve a coragem de me mandar esperar! Eu! Patrick
Aloysius OShaughnessy, que no espera por nenhum homem!
Brett levantou-se de um salto, mas Melody segurou-o pela manga,
explicando:
Est tudo bem, Brett, um velho amigo nosso. No se assuste, que ele
sempre assim. Como vai, sr. OShaughnessy? Engraado s, eu sempre achei que o
veramos de novo.
Desculpe, sra. Van der Veer. E o senhor tambm. Peco-lhe desculpas por
ter praticamente atacado o seu criado, mas ele mereceu. -- Patrick avanou como
um anjo vingador e tomou a mo que Brett agora lhe estendia, enquanto as
apresentaes eram feitas. Fitando os olhos do rapaz,, ele acrescentou: - Peco-
lhe desculpas duplamente, senhor, pois no havia percebido seu problema. No o
incomodarei mais. Eu vim atrs de sua outra hspede, a tia da. sra. Van der Veer,
uma dama que venho seguindo desde Nova York, custa, de malta despesa e
sacrifcio.
Beatrice, que depois do primeiro momento de surpresa no havia se
mexido, tomou, delibera demente, um gole de seu vinho.
Voc uma mulher cheia de orgulho e teimosia, Beatrice, mas desta vez
encontrou algum capaz de lhe fazer frente. Com essas palavras. Patrick
Jogou sobre a mesa, diante dela, uma nota de cem dlares.
Um sorriso sem graa apareceu nos lbios de Beatrice.
Voc acha mesmo,. Patrick OShaughnessy?
Tenho certeza ele replicou, com firmeza. S preciso de algum
tempo para lhe mostrar.
Pelo modo como Brett inclinou a cabea, Melody percebeu que ele tambm
sentira as vibraes entre aqueles dois desde o primeiro momento.
Para qu? Beatrice perguntou.
Porque eu quero!
Voc no passa de um tolo.
Concordo, mas valeu a pena vir at aqui para ouvir isso dos seus lbios.
Sr. O'Shaughnessy Brett interferiu, voltando a se sentar , J que o
senhor e lady Davenport parecem ter alguns pontos de vista a discutir, o que
acha de almoar conosco?
Obrigado, senhor, mas sou .obrigado a recusar. Seria delicioso comer ao
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Projeto Revisora 81

lado dessa mulher Patrick piscou para Beatrice, ao ver-lhe a expresso
zangada. , mas j almocei. Em todo caso, aceito um caf.
No prefere algo mais forte?
J que me oferece...
Melody, quer pegar o brandy que est na parte de baixo do aparador? A
chave fica no terceiro pote da direita, o que tem a tampa lascada.
Melody levantou-se, surpresa. No-sabia que Brett bebia. No entanto, ao
abrir o aparador, encontrou vrias garrafas, algumas cheias, outras no; Pegando
uma de Armaguac, levou-a para a mesa, cora dois copos,
Voc tambm quer, Brett?
No, obrigado, Melody. Paul que costumava tomar brandy. Mas ele
bebia por prazer, no para afogar a dor que vem de viver sozinho num mundo
cheio de escurido. Um sorriso triste surgiu-lhe nos lbios. - Desculpem a
minha amargura. A bebida pode no resolver os problemas, mas ajuda muito. Em
todo caso, faz tempo que no preciso dela. Voltou-se na direo de Patrick-.
-Sirva-se, por favor, enquanto terminamos este delicioso almoo.
muita gentileza sua, senhor, j que cheguei a sua casa com a
delicadeza de um bfalo em disparada. Patrick encheu o copo e ergueu-o.
sua sade! E s suas, senhoras. Que o vento sempre esteja s suas costas e o
sol as aquea!
Um brinde prprio de um homem de vida errante Beatrice comentou.
Prefiro a palavra 'nmade'. Faz com que nos lembremos do campo.
Voc um homem do campo, Patrick? Melody perguntou,
arrependendo-se de imediato ao ver a mudana na expresso dele.
J fui, mas depois descobri que h mais oportunidades numa cidade
grande. No se tem chances numa fazenda solitria, quando os senhores da terra
aparecem.
Est falando dos ingleses, na Irlanda?
Estou, mas no esquente a sua cabecinha com isso. No tenho nada
contra os ingleses, de um modo geral, s contra alguns de seus representantes.
No entanto, quando eles formaram o Reino Unido da Gr-Bretanha, em 1801,
prometeram a emancipao da Irlanda, e o campons de Ulster nunca foi
consultado sobre se queria ou no ser dominado.
Dominado? Acha que essa uma palavra adequada, quando tanto bem foi
feito pela Unio?
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Projeto Revisora 82

Aposto que Ricardo Corao de Leo disse o mesmo durante as
Cruzadas, mas v perguntar aos maometanos se eles gostaram! Com a Irlanda
dividida, s podia haver barulho entre protestantes e catlicos. Os protestantes
acabaram ficando com todas as vantagens, e muitos catlicos preferiram
abandonar a terra de seus pas. Eu fui um deles. Sa atrs de um maravilhoso
mundo novo... e encontrei os guetos de Nova York! Em todo caso, no me
arrependo. A Irlanda catlica continua se rebelando, mas os ingleses a dominam
com facilidade... principalmente por estarem lutando contra um povo que j quase
mataram de fome.
Voc no pode nos culpar por isso! Melody replicou, zangada.
Completamente, no, mas vocs tambm no fizeram nada para ajudar.
Se vemos uma criana morrendo de fome, podemos lhe dar as costas, alegando
que no somos culpados. No entanto, se no a ajudamos, somos culpados de um
crime maior ainda.
Voc deve odiar os ingleses, se acha mesmo que eles podiam ter ajudado
os irlandeses e impedido que muitos morressem de fome.
No, Melody. Sendo um homem capaz de pensar, eu no poderia fazer
isso. Patrick virou-se para Beatrice, sorrindo abertamente. As mulheres
inglesas so lindas demais para serem odiadas, por isso deve haver algo de bom
naquele pas.
Mais lindas que as mulheres irlandesas ou s diferentes?
Bem, isso... Ele fingiu refletir. Na minha humilde opinio, todas as
mulheres tm uma certa beleza. E no adianta insistir, no vou dizer mais que
isso!
Brett riu.
Bravo, sr. OShaughnessy! Um verdadeiro diplomata, pelo que vejo. Mas
o que acha de continuarmos esta conversa fascinante na sala de estar? Sendo
amigo de minhas hspedes, pode me contar muito sobre elas.
No creio que o sr. OShaughnessy possa ser chamado de nosso amigo
Beatrice falou, levantando-se da mesa com os outros. Nosso relacionamento
no tem mais que algumas horas.
Por cima da cabea dela, o gigante sorriu para Melody.
Voc no diria isso, no ? Eu salvei a sua honra, para no falar da sua
vida, levei-as para jantar e conhecer a cidade. Cheguei at a me oferecer para vir
com vocs para c, e proteg-las durante a viagem. So ou no so atitudes de um
amigo? Ele fez uma pausa, depois acrescentou: E, quando essa tirana ado-
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Projeto Revisora 83

rvel aqui me insultou, enfiando uma nota de cem dlares no meu bolso, o que foi
que eu fiz? Uma longa e cansativa viagem para estar ao lado dela e lhe dizer que
sou agora um homem temporariamente rico e no necessito da generosidade dela.
Os brilhantes olhos azuis voltaram-se para Beatrice, que mordia o lbio
para no acompanhar o riso dos outros.
Se ns no somos amigos, Beatrice, minha querida, ento o que somos?
Companheiros da briga ela replicou. Voc faia bonito, Patrick, mas
no vou concordar com nada s para agrad-lo. Vejo que ainda est usando esse
leno horroroso, e no duvido que o tenha usado durante toda a viagem para c.
Uma mulher como eu nem poderia pensar em ser amiga de um sujeito como voc.
Ela tomou-o pelo brao, ento, dirigindo-lhe um sorriso to brilhante que
at Melody se surpreendeu. Corado at a raiz dos cabelos, o irlands escoltou-a
at a sala de estar, ajudando-a a se sentar numa poltrona e acomodando-se num
banquinho, aos ps dela.
No... Beatrice comeou a protestar, mas depois desistiu. Voc
um homem difcil de se ignorar, Patrick !
Impossvel ele corrigiu.
Brett foi para sua poltrona favorita, e Melody acomodou-se no sof,
desejando que ele tivesse se sentado ao seu lado. Seria gostoso t-lo junto de si,
enquanto ouviam as histrias absurdas que o irlands contava sobre a viagem que
fizera.
medida que as horas passavam, a conversa foi se tornando mais sria e
passou a girar sobre a guerra.
Foi terrvel' Patrick comentou. E depois prosseguiu, lutando para no
se deixar dominar pelas lembranas deprimentes: Conheci um sujeito que bem
pode ser seu parente, sr. Savage. Seu sobrenome no comum. Um tal de Paul
Savage.,. "Beau" Savage, como o chamavam, entre outros nomes menos elogiosos.
Se bem que depois daquela luta de faca, ele perdeu muito da beleza.
Brett inclinou-se para a frente, excitadssimo.
Paul meu primo adotivo. O pai dele e o meu eram irmos, e eles vieram
morar em St. Clare, quando fiquei rfo. Pau! foi embora um pouco antes da
minha maioridade a desapareceu, durante anos.,Quando deu notcias, revelou que
havia se estabelecido na Nova Zelndia. O senhor o conheceu bem? Chegaram a
ser amigos?
O irlands riu com prazer.
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Projeto Revisora 84

Se o conheci? O homem salvou a minha vida, mas quase me matou,
durante o salvamento. Fizemos amizade, sim, mas s depois de algum tempo.
Ento ele foi para a Nova Zelndia...
Patrick fez uma ligeira pausa, antes de revelar: Quando o conheci, ele
era um sujeito de vinte e poucos anos, silencioso, com ombros muito largos. O
tipo de homem que no deixa os outros vontade. Eu no sou contra uma boa
briga de vez em quando, mas notei que homens maiores e mais duros do que eu
evitavam chegar perto dele, por isso achei melhor fazer o mesmo, at descobrir
por qu.
- Essa briga de faca, onde foi? perguntou Melody, cheia de curiosidade.
Em Cherubusco, no Mxico. Mas eu o conheci antes disso, quando samos
de Vera Cruz, numa marcha planejada pelo prprio diabo, para conquistar a
Cidade do Mxico.
A Guerra Mexicana! Brett exclamou. Ento foi por isso que ele
mudou tanto?
Patrick concordou.
Foi uma guerra capaz de mudar qualquer um. Polk mandou um exrcito de
voluntrios, de Nova Orleans para Vera Cruz, sob o comando do general Winfield
Scott. Aqueles homens podiam ser tudo, menos soldados: Indisciplinados, sujos,
cheios de piolhos, passavam a metade do tempo bbados... Foi um horror aquela
marcha de mais de mil e quinhentos quilmetros, por uma terra esquecida por
Deus, vivendo do que encontrvamos e combatendo tanto o inimigo quanto a febre
amarela. Achvamos-nos um pouco alm de Cerro Gordo quando encontrei o seu
primo, sr. Savage. Ele estava to cansado quanto eu dos pretensos "cavalheiros"
sulistas. Eram verdadeiros brbaros, considerando qualquer mexicano um inimigo,
independente do sexo e da idade. No sei se o senhor sabe, mas seu primo nunca
ligou para a cor de ningum. Para ele, um homem ou era digno de respeito, ou no.
"Podemos matar o inimigo", Savage costumava dizer, "seria odi-lo ou fazer
guerra contra sua mulher e filhos."
Foram as idias abolicionistas de Paul que o levaram a se afastar da
famlia Brett comentou.. Ele nunca entendeu ou aceitou a necessidade de se,
ter escravos.
Patrick lanou um olhar para Beatrice, que apertava os lbios com fora.
Com todo respeito, senhor, uma vez que sou hspede em sua casa, eu
tambm no concordo com isso.
Melody levou um susto quando Brett bateu com o punho fechado no brao
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Projeto Revisora 85

da cadeira, aborrecido com o fato de ter outro abolicionista sob seu teto.
O sul tem um corao ele declarou, exaltado , e os abolicionistas
esto a ponto de cravar um punhal neste corao. O mesmo punhal que j dividiu
tantas famlias, alm da nossa. At meu vizinho mais prximo perdeu um filho,
que resolveu ir para o oeste, onde no existem escravos. Para uma terra de
todos, onde um homem procura ouro at cair de cansao, fazendo o trabalho que
seus escravos poderiam estar fazendo. E tudo por uma ou duas pepitas de ouro!
No bem assim. Muitos conseguem ficar ricos, e, mesmo os que no
conseguem, achar que vale a pena fugir de um passado intolervel.
Ainda no nos contou como conheceu Paul, Sr. Shaughnessy Melody
interferiu, tentando acalmar os nimos.
Patrick aceitou a mudana de assunto, relatando sua permanncia num
acampamento no caminho da Cidade do Mxico, aonde um rapaz plido, com olhos
gelados, vindo de 'Luisiana, o havia encarado por cima de uma mo de cartas.
Eu no deveria ter entrado no jogo de pquer comeou , mas quando
se est doente de ver corpos cobertos de moscas e sentir o cheiro de sangue,
suor e medo, qualquer distrao bem-vinda. Aquele garoto com olhos de velho
tinha vindo diretamente de uma casa de jogatina de Nova Orleans, mas possua
todo o dinheiro de uma famlia antiga e aristocrtica atrs de si. At suas roupas
pareciam no se sujar, e eu o odiei primeira vista. Costumava passar as minhas
noites observando-o jogar e aprendendo, para quando chegasse a minha vez. E,
quando chegou, havia uma verdadeira multido observando o jogo, sob as
estrelas, sentada sobre rvores cadas, pedras e at no cho. Eu j bebera o
bastante para afetar meu raciocnio e concentrao, e quando sobramos s ns
dois, agi precipitadamente, sem pensar, e ele me venceu com a maior facilidade.
Louco de raiva, acusei-o de trapaa. Logo ele, que crescera com um baralho na
mo!
Patrick fez uma pausa, apertando os dentes com fora, antes de
prosseguir:
A princpio o rapaz no se ofendeu, limitando-se a rir de mim. "No me
importo de tomar dinheiro de gente toa", murmurou, "s no gosto de vocs
serem to maus perdedores." Aquilo foi como sacudir um pano vermelho diante de
um touro. Eu me levantei de um salto, xingando-o dos piores nomes que conhecia
e ameaando faz-lo em pedaos. Foi quando aquele homem silencioso destacou-
se da multido. "Pare com isso, irlands", ele disse. A multido havia recuado,
quando eu tinha me levantado, e s ficramos ns trs. Eu, um irlands " toa", e
dois sulistas altivos, que tinham se unido para me humilhar. Com um rugido,
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avancei para o jogador, decidido a arrebent-lo antes de passar para o
grandalho. Aconteceram, ento, duas coisas que eu no esperava: na mo do
jogador apareceu um desses brinquedinhos feios, prprios para damas, apontado
diretamente pra minha testa, e logo em seguida algo explodiu na parte de trs da
minha cabea.
OShaughnessy riu de si mesmo, sem alegria e com ar de menosprezo.
Descobri, mais tarde, que Paul Savage havia me atingido com um pedao
de madeira. Quando recuperei a conscincia, ele me fazia um curativo e fitou-me
sorrindo, sem o menor sinal de arrependimento. "Voc podia ter me matado!", eu
exclamei. "Pode ser", ele concordou, "mas, se eu no o acertasse, o mocinho com
certeza o mataria." Depois disso, comecei a ser mais cauteloso nos meus
relacionamentos. Por vergonha, mantive-me afastado de Paul por algum tempo,
mas depois da batalha de Chapultepec, a caminho de Cherebusco, comeamos a
nos encontrar cada vez mais, e era sempre um conforto saber que ele estava a
meu lado, durante os confrontos com o inimigo.
No foi neste lugar que houve a tal briga de faca? indagou Melody.
Na verdade, no chegou a ser uma briga. Naquela bando havia de tudo:
cavalheiros, patriotas, aventureiros e at mesmo aquele tipo de crpula que se
excita com o cheiro de sangue. A "Besta Negra" era um desses. Caador de
crocodilos, vinha dos pntanos de Nova Orleans e era to feio e malcheiroso
quanto as feras que caava. Quando estava sbrio era ruim, mas bbado tornava-
se uni matador. J havia assassinado ou aleijado muita gente, com a faca que
usava para esfolar crocodilos. Daquela vez pegou um garoto, um rapazinho bonito,
que estava sempre falando das terras e dos escravos que a famlia possua. Todos
sabem como as crianas gostam de impressionar os outros, principalmente quando
se encontram numa situao com a qual no sabem lidar, e ns preferamos
ignor-lo, com exceo de Paul. Ele tinha posto na cabea que ainda faria do
rapazinho um abolicionista e costumava passar horas e horas durante a noite
procurando faz-lo mudar de opinio. Depois de algum tempo, a "Besta" comeou
a insinuar que seu primo e o garoto no se limitavam a conversar... O menino
ouviu, achou ruim e pulou em cima dele.
Mas o que poderiam fazer alm de conversar? Melody murmurou,
franzindo a testa.
Patrick interrompeu-se, embaraado, mas Beatrice salvou a situao,
dizendo sobrinha:
Algum dia voc vai saber. Continue, Patrick.
Bem, quando a luta terminou, o garoto estava praticamente morto e nem
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Projeto Revisora 87

a me dele seria capaz de olh-lo sem se sentir mal. Na hora, seu primo estava de
guarda, mas quando voltou e descobriu o que tinha acontecido, foi at onde a
"Besta" dormia, agarrou-o pelo colarinho e mandou-o longe, com um belo direto no
queixo. Repetiu a dose um segundo depois, mas o bruto conseguiu reagir. Os dois
rolaram pelo cho, se atacando como dois animais selvagens. Paul conseguiu ficar
em p e, quando a "Besta" avanou, jogou-o no cho com um daqueles golpes
estranhos, que tinha aprendido com um chins durante uma de suas muitas
viagens. O sujeito ficou estendido, enquanto ns gritvamos, encorajando Paul a
terminar com ele. Beau Savage, porm, deu um daqueles meios sorrisos divertidos
e estendeu a mo
para ajudar o maldito a se levantar. Foi quando a "Besta" tirou uma faca da
bota e cortou o rosto de seu primo at o osso.
Patrick fez mais uma pausa, rememorando o passado, depois terminou:
O que aconteceu em seguida no foi nada bonito. S vou lhes dizer que a
"Besta" morreu dois dias depois, e nenhum de nos lamentou sua morte.
Houve um momento de silencio, enquanto todos rejeitavam, em
pensamento, a incrvel violncia dos homens que Patrick havia descrito. Homens
endurecidos pela guerra, que dela haviam sado treinados para matar e dispostos
a tudo para fazer valer suas vontades.
Seguindo essa linha de raciocnio, Melody perguntou:
O que aconteceu com vocs dois depois da guerra? Patrick sorriu, sem
alegria.
A guerra no o melhor lugar para se fazer amizade, e Paul e eu ramos
muito diferentes para manter a nossa. Quando o tratado de.paz foi assinado, em
fevereiro de 48, resolvi voltar para o norte. Estava cansado daquela vida dura e
ansioso por lenis limpos, mulheres loiras e champanhe.
Um brilho maroto surgiu nos olhos de Beatrice.
E conseguiu, Patrick?
Ainda no, mas estou fazendo o possvel. Ultimamente, at cheguei a
pensar em desistir das loiras...
Beatrice corou, mudando rapidamente de assunto.
E trabalho, Patrick? Encontrou logo?
Ele meneou a cabea, espalmando as mos e fitando-as por um momento,
antes de responder;
- Na poca, eu estava em boa forma fsica e podia realizar muitas tarefas,
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mas logo descobri que ser irlands era uma faca de dois gumes. Para muitos, os
irlandeses no passavam de ladres e ignorantes, para outros, ramos apenas
mo-de-obra barata. Fui pulando de um emprego para outro, geralmente pouco
agradveis e nem sempre legais, mas que me impediam de morrer de fome. Minha
grande vantagem era ter estado ria guerra e saber usar uma grande quantidade
de armas, incapaz de se conter, Beatrice indagou:
Voc nunca questionou a validade do que fazia? Nunca pensou naquele
ditado, que diz que quem vive pela espada, morro pela espada?
Patrick riu.
No era uma espada que eu usava, e sim um porrete.
Ura... o qu?!
Ura porrete. Um basto de carvalho, capaz de arrebentar um crnio
como se fosse casca de ovo, se me perdoam a indelicadeza da comparao.
Muito interessante Beatrice comentou, com uma certa frieza. Mas
no um emprego de futuro esse de... arrebentar crnios, ?
No sei. Uma vez trabalhei como protetor de uma dama do mais alto
nvel e influncia, que sugeriu um relacionamento mais permanente, depois da
viagem que fizemos de Washington a Nova York.
Ela era bonita? Beatrice perguntou. E arrependeu-se em seguida,
quando os olhos dele, extraordinariamente brilhantes, fixaram-se nela,
Como eu j lhe disse antes, madame, todas as mulheres tm uma certa
dose de beleza. Essa tinha s mos mais lindas que j vi... numa mulher de setenta
e poucos anos!
Melody estourou numa gargalhada ao ver a cara da tia. Riu tanto que mal
conseguia respirar e levou vrios segundos para voltar ao normal.
Patrick acompanhou seus esforos com um olhar sorridente.
Poucas vezes ouvi um som to delicioso. Voc gosta tanto desse tipo de
ironia quanto eu. Tenho a impresso de que vamos ser grandes amigos.
Melody enxugou os olhos, parando de rir, mas, ao ver a expresso da tia,
teve de cobrir a boca com a mo, para dominar a vontade de recomear.
Foi a vez de Beatrice sorrir.
- Eu seria capaz de deixar esse sujeito falar o dia inteiro, s para-ter o
prazer de ouvir o seu riso novamente, querida. Mas, como temos outras coisas a
fazer, acho que devemos sair c deixar os homens sozinhos, para que se conheam
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melhor.
Sentindo-se mais animada do que nunca, Melody seguia a tia para fora da
sala.
.gostoso ter Patrick com a gente - comenteis, quando estavam no
saguo.
Ele anima qualquer ambiente. Beatrice voltou-se para a sobrinha.
Pessoas como ele so agradveis e difceis de esquecer, mas multo mais difceis
de se conviver, por isso pode k tirando asse sorrisinho do rosto.
Est bem, tia Bia.
- No tenho a menor inteno de encorajar uma amizade com o sr.
OShaughnessy, por mais que ele pense o contrrio.
Claro que no, tia Bia.
E, quanto mais cedo nos livrarmos dele, melhor'
Sem duvida, tia Bia.
Melody...
Sim, tia Bia?
Quer fazer o favor de tirar esse sorriso do rosto?
Pois no, tia Bia.

CAPITULO VII

Durante a semana que se seguiu, Melody comeou a ter a impresso de que
o que acontecera em Londres no fora com ela. Comeou a perceber, tambm, que
estava se apaixonando pelo homem que podia ser seu primo. A vulnerabilidade
dele dava-lhe centenas de oportunidades de toc-lo, de estarem perto um do
outro, o que favorecia ainda mais o desenvolvimento dos sentimentos de ambos.
Beatrice preocupava-se com eles e achava que Melody devia ser avisada,
mas no sabia como lhe dizer sem usar palavras que pudessem mago-la. Uma vez,
tentou abordar os pontos de vista diferentes que ambos mantinham sobre a
escravido, perguntando sobrinha se seria capaz de ser feliz num local que,
para prosperar, dependia da vida de pessoas que podiam ser compradas e
vendidas como gado.
O modo de pensar de um homem pode mudar Melody replicou, fitando
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Projeto Revisora 90

o ar com uma expresso sonhadora.
Tome cuidado, meu anjo Beatrice aconselhou, trazendo-a de volta
realidade. Ele muito parecido com Hugh, at mais atraente, e voc est
muito vulnervel depois de tudo por que passou.
Melody corou, com a impresso de que a tia podia ler seus pensamentos
mais ntimos.
No se preocupe, tia Bia, no vou me deixar levar pela emoo... Pelo
menos, at saber se somos ou no parentes.
Mas ela sabia que estava mentindo, que seu corao j planejava um futuro
que talvez nunca se realizasse.
E depois? Beatrice insistiu. Acha que poder enfrentar um destino
meeiro, ao lodo de um homem cego e empobrecido?
No tenho medo disso. Mesmo uma vida simples, ao lado de um marido
gentil e amoroso, deve valer a pena. O trabalho no me assusta, e eu posso
aprender as coisas que no seis como costurar e cozinhar. Graas a papai, tenho
um bom conhecimento sobre cavalos.
E sobre o gado? E abater galinhas? Matar porcos? Plantar, verduras,
arrancar ervas daninhas? E partir lenha, construir cercas, tirar gua do poo...
coisas que seu marido faria. se pudesse ver? Porque essa a vida dos brancos
pobres, que no tm dinheiro para pagar criados ou comprar escravos. Voc s
ter folga quando der luz, e isso vai continuar at seu corpo e sua mente
estarem gastos e cansados demais para se importar com qualquer coisa. E sempre
haver outra criana para tomar conta, uma criana linda desamparada e cega.
Por mais que ele a ame, jamais poder lhe ser de alguma utilidade.
Tia Bia a senhora est sendo cruel!
No, meu bem, estou sendo realista. Algum precisa estourar essa bolha
de iluso em que voc vem vivendo nos ltimos
Melody baixou a cabea, quase chorando, pois sabia que a tia tinha razo.
- Ser que eu o amo o bastante para isso? perguntou ai! si mesma.
Ser que voc o ama? Beatrice corrigiu. Ou est cega pela beleza e
o gnio bom desse rapaz? Eu tambm o acho maravilhoso, minha querida, mas
jamais o escolheria como marido.
Porque ele no tem uma fortuna conveniente? Melody rebateu,
zangada. Mas fogo em seguida se arrependeu. Desculpe tia! .No queria dizer
isso! Desculpe!
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Projeto Revisora 91

A expresso de Beatrice, que havia endurecido, suavizou-se novamente.
Est desculpada. E no tem razo ao pensar que s me importo com
dinheiro num casamento. Se fosse assim, eu no esta ria aqui agora. Na certa vou
passar o resto dos meus dias com uma solteirona irascvel e sem amor, s porque
j desisti de encontrar num homem aquilo que quero.
Mas dzia? de homens j a pediram em casamento! Nenhum deles mexeu
com seu corao?
Um brilho triste surgiu nos olhos de Beatrice, para logo em seguida
desaparecer.
Ns muitas vezes somos tolos, quando jovens. Encaramos o perigo como
um jogo, certos de que jamais seremos atingidos.
Houve um homem que me amou... Eu tambm o amei, mas ele tinha idias
polticas que muita gente considerava erradas, e foi morto por causa delas.
Desde ento, eu nunca,....
De repente, o barulho de botas no assoalho interrompeu-a, e Patrick
entrou de supeto na sala. Tinha os olhos brilhantes e o rosto corado do passeio
ao ar livre, e a expresso de Beatrice iluminou-se, ao v-lo. Sua voz, no entanto,
continuou custica como sempre.
Voc est sempre andando peia casa como um touro bravo, Patrick! Ns
estvamos nos deliciando com a paz que suas sadas nos do, e voc tem o
atrevimento de voltar horas antes do previsto!
Um brilho divertido surgiu nos olhos dele.
- No me importo de ser comparado com um touro, pois essa a minha
natureza. Tambm no vou me desculpar por perturbar, a sua paz, pois foi para
isso mesmo que vim para o sul. seriedade voltou ao rosto masculino. Desta
vez, notando, no foi para isso que cheguei mais cedo. Foi porque ouvi seu nome
ser citado num saloon da cidade vizinha, Beatrice.
As duas o fitaram, espantadas e Melody sentiu uni arrepio de medo
percorrer-lhe a espinha. Ele prosseguiu:
Por dois homens, do tipo que passa completamente despercebido numa
multido. Falavam muita baixo, de modo que s peguei uma ou outra palavra, mas
parece que eles tm contatos em Londres,, os quais esto procurando por voc.
Tem certeza de que foi de tia Bia que falaram, -e no de mim? -
Melody quis saber.
Absoluta. Se mencionaram seu nome, Melody, eu no ouvi. So nortistas,
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Projeto Revisora 92

e se no pertencerem agncia de Pinkcrton, seu nome no Patrick
OShaughnessy. Essa agncia de detetives como um polvo, com tentculos por
toda a Amrica, A maioria de seus homens dedicada e implacvel, e se
estiverem sua procura, milady, s uma questo de tempo, antes que a
encontrem. Se bem que, agora, esse tempo pode ter-se alongado um pouco.
Como assim, Patrick?
Esses dois agentes no eram dos mais espertos ? Pinkerton, e eu tive
uma conversinha com eles a seu respeito. Disse que tinha... estado com uma
criada sua, uma semana atrs, em Nova Orleans.
Beatrice no conteve o riso.
Ah, Patrick, voc ainda no est perdido de todo! Quando eles
terminarem de vasculhar uma cidade do tamanho daquela, ns j estaremos longe
daqui.
Melody pousou a mo sobre a dele, fazendo-o corar.
Muito obrigada, Patrick. Quem encomendou essa investigao no vai
desistir, mas ns temos de ficar at Nanny voltar e esclarecer o que quero
saber. Com o que fez, voc nos deu tempo para isso. Ela se voltou para a tia.
Vou subir e me trocar para o jantar. Usarei o vestido de tafet para comemorar
a sua vitria sobre os detetives, Patrick.
Em seu quarto, no entanto, Melody sentou-se na cama e cobriu o rosto com
as mos.
O passado nunca morreria? O poder de Luther Hogge continuaria a
atorment-la, mesmo depois da morte dele?
Ah, volte logo, Nanny! No posso comear uma vida nova sem saber quem
sou... Uma vida que ser completamente vazia se sua resposta me afastar de
Brett.
Dois dias depois, Melody obteve a resposta que queria. Uma resposta que
mudou sua vida, de um modo como jamais sonhara.
Ela e a tia encontravam-se na varanda, tomando sol, quando viram uma
carruagem se aproximando.
Uma carruagem! Beatrice comentou. Ser uma visita ou Nanny, com
aquela menina insuportvel?
O corao de Melody disparou.
Tomara que seja Nanny. J no agento mais essa incerteza. Ela fixou
o olhar, tentando enxergar melhor. Nanny! Vou dizer a Brett.
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Projeto Revisora 93

Assim que o veculo parou, Celine recebeu ordens de ir para o alojamento,
mas Nanny foi chamada sala por um impaciente Brett, que, depois de lhe dar
rpidas condolncias pela morte da filha, disse:
H uma questo em que voc pode nos ajudar, Nanny. Uma questo da
maior importncia para mim e para a sra. Van der Veer.
Ela inclinou a cabea, esperando, impassvel, ainda sentida com a morte da
filha que trabalhara sem queixas at no poder mais ficar em p e sua doena no
ter mais cura, simplesmente porque as pessoas que a possuam eram boas e a
tratavam com respeito.
Sem saber como comear, Brett ordenou:
Sirva-me uma dose de brandy, antes. E algo mais leve para as damas, se
elas quiserem.
Ouvi algum falar em bebida? Patrick perguntou da porta, chegando
de sua cavalgada diria pelos arredores. Mas logo em seguida percebeu a
atmosfera e se retraiu. Desculpem.. Interrompi alguma coisa? Vou tomar meu
drinque na biblioteca.
No, por favor, fique Melody pediu. Como nosso amigo querido, voc
tem o direito de saber. No mesmo, Brett?
Depois de uma hesitao quase imperceptvel, Brett concordou.
Claro. Ns resolvemos falar com Nanny sobre os pais de Melody. Se
algum nesta casa sabe a respeito deles, s pode ser ela.
Patrick virou-se para a escrava, que esperava junto ao armrio de bebidas.
Um bourbon para mim, Nanny pediu. E, assim que o recebeu, foi se
acomodar ao lado de Beatrice, junto janela.
Brett respirou fundo, forando-se a relaxar.
Nanny... H uma possibilidade de a sra. Van der Veer e eu sermos
parentes, por parte da me dela. O pai dela, o irmo da lady Davenport, passou
algum tempo em St. Clare, anos atrs. Eu o chamava de "tio Alex" e, se no me
engano, ele partiu na poca do meu acidente. O rapaz, forou uma risada. A
histria dele bem romntica. Ao que parece, apaixonou-se por uma moa que
vivia aqui, provavelmente uma prima ou hspede da casa, embora eu no me
lembre de ningum assim vivendo conosco... Talvez tenha sido uma das amigas de
mame.
Tudo o que sabemos Melody informou, ansiosa que minha me
tinha um nome pouco comum: Ereanora. Voc a conheceu?
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Projeto Revisora 94

Ela estava observando Nanny com ateno, mas nada poderia t-la
preparado para a mudana que suas palavras provocaram no rosto da escrava. Os
olhos castanhos se arregalaram, e uma mistura de choque, incredulidade e... dor...
dominou-a, deixando-a de uma palidez acinzentada, doentia.
Ento voc voltou! ela murmurou, agarrando-se ao espaldar da cadeira
mais prxima.
O silncio que dominou a sala foi to intenso que era possvel ouvir at o
barulho das velas queimando, no enorme lustre de cristal. Beatrice foi a primeira
a romp-la, perguntando com gentileza:
Quem era Ereanora, Nanny?
A escrava manteve os olhos fixos em Melody, avaliando, decidindo e
pensando nas conseqncias do que ia dizer. Depois, apertando os lbios de leve,
respondeu com voz firme:
Ereanora era minha filha.
Por um instante o tempo parou. Depois, com a compreenso, algo explodiu
dentro da cabea de Melody. Relmpagos pareciam riscar a atmosfera, por trs
de suas plpebras fechadas. Ela no ouviu as exclamaes nem viu os gestos de
incredulidade dos outros. Sabia que estava meneando a cabea, mas nenhum som,
nenhum grito de repdio saiu de seus lbios, embora, no ntimo, todas as fibras
de seu ser repelissem a terrvel realidade.
Breu, plido como uni mono, demonstrou sua rejeio da verdade jogando a
bengala na direo da escrava.
No! - gritou. Voc est mentindo. Eu jamais poderia me apaixonar
por uma negra. Eu teria percebido. Teria!
Essas foram as ltimas palavras que Melody ouviu, antes de mergulhar na
escurido abenoada da inconscincia.
Seu tolo! Patrick murmurou, avanando para tomar a moa desmaiada
nos braos. Eu a levo para o quarto. Beatrice, ela vai precisar de voc.
Chocadssima, Beatrice lutava contra as lgrimas.
Mais do que nunca ela concordou. E, lanando um olhar para Brett, que
depois da exploso de fria cara sobre a poltrona, dominado pela dor,
acrescentou; Ele tambm vai precisar de ajuda, apesar de s ter perdido um
sonho.
Abrindo a porta para que Patrick pudesse passar com Melody, Beatrice
teve a impresso de ver um vulto desaparecer na sala ao lado, mas estava muito
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Projeto Revisora 95

preocupada com a sobrinha para dar ateno ao fato.
Teria sido melhor para ela enfrentar a acusao de assassinato num
tribunal, ao lado de um bom advogado de defesa, do que vir para c e passar por
isso.
Assassinato? repetiu Patrick, mas gentilmente, sem censura.
Beatrice fitou-o, enquanto de se encaminhava para a escada. Ento,
decidindo-se contou-lhe a histria toda.
- Pobrezinha! Patrick comentou, colocando Melody sobre a cama- Eu o
teria matado com as prprias mos se estivesse l! O que ela deve ter passado...
E agora isso!
Melody gemeu baixinho, soluando, ao recuperar a conscincia. Os
adorveis olhos cor de safira eram a imagem da dor e ela estendeu a mo para a
tia, que a segurou com firmeza.
Voc vai ficar bem Patrick assegurou-lhe, meio sem jeito, Melody
sorria, sem a menor alegria,
No precisa ficar aqui, sr. O'Sbaughnessy murmurou. com uma
dignidade de cortar o corao. Eu entendo se preferir me ignorar, de agora em
diante.
O qu?! Acha mesmo que eu faria uma coisa dessas? Melody baixou os
olhos, apertando convulsivamente a mo da tia.
Oua bem o que vou dizer Patrick pediu, com extrema gentileza- -
Conheci muitas mulheres em minha vida, mas nenhuma era to bonita, inteligente
ou educada como voc Se isso for resultado da mistura de raas, acho uma pena
que o mundo inteiro no seja assim. No mesmo, Beatrice?
Voltou-se para ela... e estacou, maravilhado com a estranha luz nos olhos
cinzentos geralmente to trios.
Claro que , Patrick, Beatrice fitou a sobrinha, Voc continua a
mesma, meu bem, e ns tambm. Isso tudo o que importa.
No , no, tia. Eu sou diferente, e para outras pessoas isso
importante. Lembrando-se da reao de Brett, Melody sentiu de novo vontade
de chorar. Erguendo a cabea, encontrou o olhar penalizado do irlands. Uma
vez o senhor se ofereceu para ser nosso acompanhante. A oferta ainda est de
p?
Voc sabe que est. E no vai se livrar de mim com tanta facilidade
desta vez. No tenho nenhum outro compromisso, por isso ficarei com vocs at
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Projeto Revisora 96

que me mandem embora.
Tia Bia, ns temos dinheiro suficiente para alugar um quarto em Nova
York? Patrick conhece bem a cidade, e, at tomarmos uma deciso sobre o
futuro, talvez seja o melhor lugar para ficarmos, L eles no se importam com o
fato de uma pessoa ser... negra.
Pare com isso! Beatrice ordenou. Sua me tinha um oitavo de
sangue negro. Nos outros Estados, voc nem considerada negra, Se quer, vamos
para Nova York. De l eu escrevo para John. Ele no precisa ficar sabendo de
detalhes, s que no deu certo por aqui. Ele arrumar outra sada.
John? Patrick indagou, com fingida indiferena.
Um amigo. Um velho e querido amigo, digno de toda a minha confiana.
Ele apertou os maxilares, mas reagiu com dignidade.
Bons amigos so uma bno de Deus, Ele deve ser uns homem e tanto
para merecer, o seu carinho,
De novo a estranha luz iluminou os olhos de Beatrice, mas da logo voltou a
ateno para a sobrinha.
Est em condies de descer de novo, querida?
Eu tenho de descer, no ? No podemos ir embora sem agradecer ao
nosso anfitrio...
Incapaz de dizer mais, ela deixou que Beatrice a ajudasse a se levantar.
Em silncio, os trs desceram a escada. Os dois mais velhos, conscientes
apenas da garota entre eles, e Melody, reunindo toda a dignidade que possua
para enfrentar Breu. No rosto dele, tinha certeza de que s veria repulsa.
Na porta ele saa, ela parou e disse com firmeza:
- Preciso v-lo sozinha, tia Bia,
De jeito nenhum! Se...
Eu preciso, tia. Brett deve estar to arrasado quanto eu. A diferena
que tenho duas pessoas maravilhosas para me apoiarem, enquanto ele no tem
ningum. Vou falar com ele... se quiser me ouvir... depois podemos arrumar tudo
para ir embora.
Brett estava em p junto lareira, os maxilares apertados, o corpo rgido.
Nanny? perguntou, ao ouvir a porta se abrir. No quero que me
perturbem, agora... principalmente voc. J fez mais do que o suficiente.
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Projeto Revisora 97

No Nanny. Mas eu vou embora, se quiser...
Melody!
Uma mistura de medo, alegria e desespero cruzou o rosto dele. O corao
de Melody disparou, e ela teve vontade de correr at ele e abra-lo como fizera
depois do passeio de carruagem, Lembrando-se, no entanto, do.modo como fora
rejeitada naquela mesma sala, retraiu-se.
S vim me despedir. Partimos amanh para Nova York. Sei que tambm
vai achar que o melhor.
No!
Ele avanou aos tropees, a mo estendida diante de si, at que ela no
pde mais agentar e encontrou-o a meio caminho.
Ali, Melody! Perdo, querida. Perdo!
Foi um grito sado do corao. Emocionadssimo, Brett abraou-a com
fora, puxando-a para junto de si. Melody ergueu olhos para o rosto dele... e
sentiu-se perdida. No resistiu e erguendo uma das mos, procurou-lhe os
cabelos, afagando-os com carinho.
Diga que no vai embora! Nunca tive carinho em minha vida, at voc
chegar. Prometa que no vai embora!
Eu.., eu prometo... Ela fez uma ligeira pausa, prosseguindo depois, num
tom mais firme: Ningum precisa saber. como se eu no fosse... Pareo
branca, Brett! I
Ah, querida! Voc pode ser to branca quanto eu, mas os livros no levam
isso em conta.
Que livros?
Os livros com a relao de escravos de St. Clare. Voc deve estar
relacionada como filha de Ereanora, uma escrava nascida de uma escrava e,
portanto, propriedade de...
De repente, o rosto de Brett perdeu a cor, assumindo uma expresso de
medo to grande que Melody se assustou.
Brett? O que foi, Brett? Eu no perteno a ningum! Sou inglesa. Meu
pai era um lorde ingls!
Devagarzinho, como num sonho, ele meneou a cabea.
Seus pais no eram casados. No poderiam ser, aqui. De acordo com a
lei, voc tem o status de sua me.
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Mas isso errado! Desse jeito, Celine e eu... No, no pode ser! Brett,
eu preciso ir embora. Voc no pode me pedir para ficar. No agora!
Celine no sabe, e eu posso fazer com que Nanny guarde segredo. No
posso deixar que v embora, Melody. Tem sido to bom ter voc...
Melody fechou os olhos, um instante antes da boca de Brett encontrar a
sua. Com um soluo, agarrou-se a ele.
No era ali que sempre quisera estar? No sonhara tanto em ser abraada
e beijada por ele? Ento, por que seu corao no estava batendo forte? Por que
no estava em fogo, ardendo por algo mais, alm daquilo?
Brett ergueu a cabea, parecendo confuso.
Voc me ama mesmo, Melody? Sentindo-se culpada, ela o beijou de leve.
O que aconteceu foi demais para mim. claro que eu o amo.
Com o rosto iluminado pela alegria, ele tentou pux-la para junto de si, mas
ela se afastou.
Preciso de um pouco de tempo, meu querido. Tenho de falar com Patrick
e tia Bia para dizer a eles que ns vamos ficar.
Claro. Voc precisa ser corajosa, Melody, e ter pacincia. As coisas no
mudaram tanto assim. No incio eu fiquei chocado, mas quem no ficaria? Estava
pensando em me casar com uma jovem e linda aristocrata inglesa, e acabo
descobrindo que ela ... Mas isso no tem importncia. Eu queria faz-la minha, e
descobri que voc j minha.
Brett, por favor! Um arrepio percorreu-a. Preciso ver minha tia.
Depois eu volto.
Beatrice e Patrick mostravam-se totalmente contrrios deciso de
Melody, mas nada do que disseram fez com que ela mudasse de idia.
Eu no vou embora, e no adianta vocs insistirem ela declarou com
firmeza. Brett pediu desculpas pelo que disse, levou um choque muito grande
e... Ah, tia Bia, eu acho que ele me ama mesmo! No posso deix-lo agora.
O irlands fitou-a com desaprovao.
Espero que esse rapaz saiba a sorte que tem. Mas, se isso mesmo que
voc quer, a primeira coisa que temos a fazer dar um fim aos registros que a
ligam a St. Clare.
Brett falou num livro, com a relao de todos os escrava nascidos aqui,
Devo pedi-lo a ele?
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-No, pequena. Apesar de sua confiana no rapaz, ele continua sendo um
sulista, Eu encontro o livro sozinho, O tal de Wilkinson ainda vai levar uns dias
para chegar, de modo que tenho tempo para virar a casa de ponta-cabea, se for
preciso.
O destino, no entanto, muitas vezes podia ser cruel e caprichoso. Ao
entardecer do dia seguinte, Patrick ainda no havia encontrado o livro, e, em meio
a uma nuvem de fumaa de um caro charuto de Havana, Eliott Wilkinson chegou a
St, Clare, bem mais cedo do que se esperava.
Wilkinson cumprimentou Brett expansivamente, mas seu olhar percorreu o
cmodo com um brilho avaliador, indo se deter em Melody e iluminando-se com
genuna admirao.
No vai nos apresentar, si. Savage? Brett acedeu.
A sra. Van der Veer... e a tia dela, lady Davenport da Inglaterra. O sr.
OShaughnessy amigo e acompanhante das duas. As damas so
minhas...hspedes,
Beatrice percebeu o espanto, avanou um passo, com um riso
perfeitamente natural.
Brett, assim voc vai dai uma impresso completam ente errada ao sr.
Wilkinson! A culpa de estarmos aqui minha, sr. Wilkinson. Meu querido irmo, j
falecido pai da sra. Van der Veer, era muito amigo da me de Brett e passou
algum tempo aqui, anos atrs. Ele gostou tanto que sempre tive vontade de vir
tambm. Recentemente, tive a oportunidade de conhecera Amrica e resolvi
passar por St. Clare. Eu no sabia que o sr. Savage tinha morrido, seno jamais
teria vindo. De qualquer maneira, Brett me recebeu muito bem. Ele e a
verdadeira imagem da to famosa hospitalidade sulista!
Patrick levou a mo ao rosto, disfarando um sorriso, e Melody baixou os
olhos para o bordado que tinha nas mos. Wilkinson estava inegavelmente
fascinado. . Espero que sua visita seja to agradvel quanto a de seu irmo,
lady Davenport. Eu vim devido a negcios que tenho com o sr. Savage, mas agora
minha visita ser de prazer, tambm. Por um instante, os olhos dele pousaram
em Melody.
O senhor to gentil! exclamou Beatrice. Mas agora vamos deixar
o senhor e Brett entregues a seus... negcios, Que tal um jogo de gamo, Melody?
Patrick pode observar. No jogo mais com ele, depois do que me fez da ltima
vez. No foi nem um pouco cavalheiresco. At o jantar, sr. Wilkinson.
No momento em que a porta se fechou atrs deles, Beatrice abandonou o
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ar de futilidade e apertou os lbios.
A biblioteca. Temos de encontrar o tal livro. No tenho tanta confiana
em Nanny quanto Brett.
Por que no perguntamos a ela se sabe onde o livro est? sugeriu
Melody. Nanny parece saber de tudo que acontece por aqui.
Beatrice hesitou, mas Patrick achou a idia boa.
Precisamos da ajuda dessa mulher. Se Melody mesmo neta dela, Nanny
na certa far o possvel para proteg-la. De qualquer maneira, precisamos ir
embora amanh..Por isso, se me do licena, vou at cidade tomar as
providncias necessrias.
Est bem disse Beatrice, cortando o protesto de Melody. Pela
segunda vez em sua vida, experimentava uma sensao de perigo iminente. Da
primeira, as conseqncias tinham sido trgicas...
Na biblioteca, ela tocou o sino, chamando Nanny. A mulher veio, bem
devagar, o que muito a irritou.
A senhora chamou?
Nanny parou logo ao entrar, o rosto completamente inexpressivo. Beatrice
respirou fundo, mas foi Melody quem avanou alguns passos.
Nanny, eu preciso da sua ajuda.
Os olhos escuros encontraram os cor de safira, suavizando-se um pouco.
Voc precisa ir embora daqui.
Ns vamos, mas antes eu preciso de uma prova de que sou... quem voc
diz que sou. Existe um livro, com o nome de todos os escravos. Tenho de saber se
meu nome est l. o meu futuro que se encontra em jogo, por isso no posso
aceitar s a sua palavra. Voc precisa entender, Nanny!
Quase com tristeza, Nanny assentiu.
Ele a chamou de Melody. Lady Melody. Porque a relao deles era
perfeita, harmoniosa como uma cano, e dela surgiu voc. Eu estava l. E disse a
ele para levar voc embora. Nunca soube o nome dele. Era "mister Alex", para
todos. No se portava como um lorde... mas era um cavalheiro. Eu lhe disse para
fazer de voc uma branca. E vi quando ele subiu no cavalo, com voc embaixo do
casaco, e foi embora. Voc tinha os cabelos bem pretos e os olhos mais azuis que
j havia visto. Era bonita, desde pequenina.
Melody sentiu as lgrimas chegando, mas insistiu.
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O sr. Wilkinson est aqui. Ele vai verificar os livros. Se Paul Savage no
conseguir levantar o dinheiro para salvar St. Clare, a propriedade ter de ser
vendida. Brett ficar sem ter para onde ir, e, se ningum souber quem eu sou,
posso ajud-lo... ficar com ele.
As narinas da escrava fremiram.
Eu vou ficar com ele, como sempre! Eu vou tomar conta dele. Eu e a
minha Celine... como sempre! melhor voc ir embora. Alm disso... Nanny
virou-se para a porta. O sr. Wilkinson levou os livros, da ltima vez em que
veio. J tem uma lista de tudo que ser vendido. Mas Celine e eu ficaremos. Voc
vai ver.
Melody sentiu um arrepio quando Nanny sua av saiu, fechando a
porta atrs de si. Beatrice abraou-a, e ela disse, com um sorriso sem esperana:
Eu tentei.
Claro, mas em todas as guerras h uma ocasio em que uma retirada faz
parte da estratgia. Acho melhor ficarmos em nossos quartos at o jantar ser
servido. Ouvindo um barulho no saguo, Beatrice foi investigar. Ao voltar,
estava com uma expresso bastante preocupada. Eram alguns amigos do sr.
Wilkinson, se que podemos cham-los assim. Pelo que vi, ambos usavam armas
por baixo dos casacos.
Foi com alvio que Melody encontrou apenas Brett e Elliott Wilkinson na
sala, ao descer para o jantar. Os dois se levantaram, sorrindo, e ela notou o
quanto Brett estava tenso. Penalizada, foi at ele e segurou-lhe a mo,
apertando-a com ternura.
Vejo que vocs se tornaram grandes amigos. Wilkinson sorriu, mas foi
um sorriso que no lhe chegou aos olhos.
verdade Melody admitiu, com uma dignidade que impedia qualquer
tipo de comentrio malicioso. Chegou mais gente, Brett? Ouvi vozes, no
saguo...
Wilkinson riu.
So meus homens. H um bando de escravos descendo o rio, para o
leilo.
Leilo?
. Normalmente, depois de caminhar alguns quilmetros,, os escravos
no nos do mais trabalho, mas desta vez estou pensando em comprar uns negros
mais fortes para a lavoura, e eles so sempre rebeldes. Mas Isso todo vai
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Projeto Revisora 102

depender de como as coisas correrem amanh, aqui em St. Clare.
Como assim? Brett protestou. Voc me deu at o fins da semana!
Dei, mas para a casa e os cinco acres que a rodeiam. O senhor j me
assegurou, em contrato, os escravos e o resto das terras. Essa parte eu j
verifiquei, s me falta examinar os criados da casa. Se o seu primo no chegar
com o dinheiro, vou juntar essa gente ao bando que ser leiloado. Eu lhe
emprestei uma boa quantia de dinheiro e preciso de!e, sr. Savage. No estou
sendo injusto, pois o que combinamos foi cumprido. Agora, a sua vez de honrar
sua palavra. Os escravos j so meus, e, se o senhor no puder me pagar o resto,
aceitarei a casa e o resto. Wilkinson olhou para Melody, e imediatamente deu
um passo na direo dela. Est se sentindo bem, madame? Ficou to plida, de
repente!^
Estou... que... Toda essa conversa de comprar e vender pessoas...
Ah, eles no so como a gente! No passam de negros, e ns, sulistas,
temos o direito divino de fazer comrcio com eles. As prprias tribos deles
fazem isso, o tempo inteiro. Essa gente no tem sentimentos como os outros
povos. Acho que o sol afetou a cabea deles, l na frica, e agora no tem mais
jeito.
Salva de responder pela chegada de Beatrice, Melody sentou-se a mesa e
procurou dominar a raiva,
O seu... amigo no vai jantar conosco? Wilkinson quis saber,
Esta noite, no. Beatrice sorriu para ele, como se no o desprezasse
profundamente. Patrick, como o senhor disse, apenas um amigo, que tem
outros amigos, alm de ns. Esta noite vai jantar com uma amiga que tem sotaque
de Luisiana e um pai muito influente. Uma combinao letal, o senhor no acha, sr.
Wilkinson?
Melody nunca soube como conseguiu enfrentar o jantar e o resto da noite.
Ao ouvir Patrick voltar, um pouco antes do amanhecer, suspirou de alvio. S o
fato de ele ser to grande j serviria para diminuir os problemas que pudesse
encontrar com Wilkinson e os homens dele.
O caf da manh foi tomado em silncio, com Patrick tendo apenas tempo
para lhes dizer, baixinho, que havia uma carruagem espera deles, na fazenda
vizinha.
Os donos dessa plantao j alforriaram todos os seus escravos e fazem
parte da associao que ajuda os fugitivos a chegarem ao norte. Se voc no
puder r como sra. Van der Veer.
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Melody, ir como escrava fugitiva, e ns estaremos a seu lado, cada passo
do caminho!
Wilkinson desapareceu logo aps o caf da manh, para inspecionar a casa
e os criados, sem o menor respeito pela privacidade de Brett. Na sala de estar, a
conversa tornou-se tensa, at que Melody se viu obrigada a perguntar:
Brett... h alguma chance de que seu primo volte antes do fim da semana
e com dinheiro suficiente para saldar a divida de St. Clare?
Brett suspirou, tirando uma carta do bolso. Naquela manh, parecia ter
muito mais que seus vinte e sete anos.
Esta carta chegou ontem. Geralmente peo a Nanny para ler minha
correspondncia, mas, devido situao, desta vez no consegui.
Com dedos trmulos, Melody pegou a carta e abriu-a. Nela, viu apenas
quatro frases, escritas com uma letra forte e inclinada:
"Nenhum dos mtodos legais deu certo. Parece que voc tem poucos
amigos. Ainda falta uma jogada, e creio que tenho um royalflusch. De qualquer
maneira, volto no sbado. At l, prometa a Wilkinson o que ele quiser."
No estava nem assinada.
Melody ergueu os olhos para os rostos em tomo de si, e seu corao
apertou-se. Deixar Brett entregue quilo, permitir que ele encarasse sozinho
aquele monstro insensvel!
No podemos fazer nada Beatrice declarou de imediato, percebendo
o que ia pela cabea da sobrinha. Alm disso, h um certo perigo, aqui. Melody
passaria por um mau pedao se esse homem descobrisse o parentesco dela com
Nanny.
Mas ele no vai descobrir Brett insistiu. Ningum sabe. Mesmo que
Nanny diga alguma coisa, ser a palavra de uma negra contra a de quatro brancos.
Trs brancos Melody corrigiu, baixinho.
Eu no vou permitir que vocs partam...
Esto pensando em ir embora? perguntou Wilkinson, da porta.
Assim, vou acabar pensando que minha chegada teve algo a ver com essa deciso.
Ele avanou, com um enorme livro sob o brao. Seu modo de andar e a
silhueta corpulenta, um pouco gorda, fizeram as duas mulheres se lembrarem de
Luther Hogge.
Tenho alguns negcios a tratar em Nova York Patrick improvisou , e
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as damas concordaram em me dar a honra de sua companhia, j que pretendiam
mesmo partir logo. E os seus negcios com o sr. Savage, terminaram? Encontrou o
que estava procurando? Eu andei cavalgando pelos arredores e posso dizer que
tenho algum conhecimento das terras de St. Clare. Se puder ajud-lo de alguma
maneira... Wilkinson forou um sorriso.
Obrigado, mas no preciso, senhor. Ele se voltou para Brett. Seus
criados da casa so quase to inteis quanto os do campo. No valem nada, a no
ser por aquele rapaz, Sanso, e a mulata, Celine. Ela deve alcanar um bom preo.
No! Brett ergueu-se de um salto, derrubando a mesinha que ficava
ao lado de sua poltrona. Voc no pode vender Celine! Nem Nanny. Elas so
tudo o que eu tenho! Empalidecendo ainda mais, ele virou a cabea na direo
de Melody. Voc no disse que ia embora?
O olhar arguto de Wilkinson notou o modo como o sangue fugiu do rosto de
Melody, tornando ainda mais evidente a expresso de sofrimento da moa, diante
da traio de Brett.
No ligue para as palavras do sr. Savage, sra. Van der Veer ele disse,
sem esconder o desprezo por um homem que, aparentemente, no estava fazendo
nada para reter aquela linda moa ao seu lado. Todos os escravos sero
vendidos, at a mulata Celine. Sou um homem de negcios, no um membro de uma
sociedade filantrpica!
Nesse momento, a porta da saa de abriu de supeto, e Celine entrou,
gritando:
Eu no vou ser vendida! Ouvi atrs da porta. O senhor no vai me vender.
Diga a eles, mister Brett! Diga que jamais vender a sua Celine!
Houve um instante de silncio chocado, enquanto a mulata os enfrentava,
magnfica em seu medo e raiva, resplandecente em seu vestido de cetim
vermelho, com os seios quase totalmente expostos pelo decote profundo.
Wilkinson passou a lngua pelos lbios, depois seu olhar endureceu.
Voc no pertence ao sr. Savage, mocinha. Nunca pertenceu. Ele
entregou todos os escravos relacionados neste livro como garantia de seu ltimo
emprstimo. Com a sua venda, vou ganhar o bastante para iniciar a plantao de
algodo do ano que vem e at construir um ou dois celeiros.
Eu no vou! Celine soluou. E ergueu os olhos para Melody, exibindo
toda a fora de seu dio e cime por ela. Mas, se assim, quanto acha que vai
conseguir por essa mulata? Quantos celeiros o senhor acha que ela vale?
Trs pessoas falaram ao mesmo tempo, mas os olhos de Wilkinson apenas
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Projeto Revisora 105

se estreitaram, escondendo o choque que havia levado.
Cuidado com o que diz, menina ele avisou, baixinho. Voc j fez por
merecer uma surra.
Eu no estou mentindo! Essa "branca" orgulhosa minha meia-irm. No
ouviu mister Brett? Se ele no a tiver na cama, voltar para mim. tudo igual.
Uma negra branca igual a uma branca de verdade, a nica diferena que
sabemos mais truques. Pergunte a ela o nome da me dela. Ereanora, como a
minha. Nanny a nossa av. Pode ver!
Ofegante, cheia de dio, Celine fitou Melody.
Eu estava atrs da porta quando voc descobriu que era negra. Agora,
se conseguir ir embora, vai ser apenas outra escrava fugitiva. Voc estava
querendo tirar mister Brett de mim, com a sua fala macia e o seu jeito de mulher
educada, mas agora eu quero ver!
As feies de Brett se contraram.
Eu devia ter vendido voc rio abaixo h muito tempo, Celine! Deus me
ajude, mas, se os seus novos donos no a matarem, eu mato!
Vagarosamente, Wilkinson foi at o aparador e abriu o livro. Cega pelo
pnico, Melody quase fugiu, mas a tia abraou-a, segurando-a com firmeza.
No possvel Melody sussurrou. Isso no pode estar acontecendo!
Wilkinson voltou-se, e sua expresso era to repulsiva que Celine deu um
passo atrs.
Vocs quase conseguiram me enganar. Escondendo o melhor do lote, no
? O que isso? Algum tipo de conspirao? Algo que vocs planejaram antes
mesmo de eu chegar?
Espere a! Beatrice protestou, dando um passo em frente.
Espere voc! Este livro diz: "Melody. Fmea. Nascida de Ereanora", E
todos ns sabemos o que essa Ereanora era. Em outro lugar, eu perderia esse
negcio porque aqui diz que sua me tinha um oitavo de sangue negro, mas na
Carolina do Norte voc negra e vai me dar um lucro extraordinrio.
S se for por cima do meu cadver! Patrick berrou, avanando.
Mas a um grito de Wilkinson, a porta se escancarou e entraram dois
homens armados.
O irlands girou, cego pela zanga, mas Melody jogou-se na frente dele.
No, Patrick! Por favor, no faa isso por mim. Eles vo mat-lo!
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Projeto Revisora 106

Uma garota sensata Wilkinson comentou. E para seus homens:
Levem-no para o celeiro e amarrem-no. Quero que, fique l, at este negcio
estar terminado.
Patrick tentou reagir novamente, mas Melody tornou a implorar:
No, Patrick. Voc mais do que um amigo, e no quero que se machuque
por minha causa. Poder me ajudar mais, assim. Por favor, v com eles.
No gosto disso! No concordo em deixar voc nas mos desses
nojentos, vendedores de carne humana! Ainda vou livr-la deles.
Mas os olhos de Melody imploravam, e, meneando a cabea, ele permitiu
que o levassem.
Agora... Wilkinson soltou o colarinho. Os outros vo para leilo,
amanh. Devem estar alimentados e descansados. Olhou para Brett, que, junto
lareira, estava completamente paralisado. O sr. Savage deve estar querendo
que eu saia daqui, mas, se eu fizer isso, a garota vai passaria noite com os outros
escravos, no celeiro. Se eu ficar, no entanto, ela poder dormir no quarto dela.
Sob a minha guarda, claro. A outra garota tambm poder ficar na casa, sob a
guarda de um dos meus homens. A escolha sua, senhor.
Brett levantou o rosto vagarosamente, e at Melody, apesar de sua agonia,
sentiu o corao se apertar por ele. O rosto dele era a imagem do sofrimento.
Se o senhor ou os seus homens derem sra. Van der Veer motivo de
queixa, esta noite, farei com que se arrependam pelo resto da vida, Com um
punho fechado ele bateu na palma da outra mo. No h nada que eu tenho,
capaz de interess-lo? Os lustres... livros... faa um preo, para libertar Melody.
Est vendo? Nem menciono Celine e Nanny, e Nanny tem sido os meus olhos, h
vinte anos. No h nada, mesmo? No posso nem apelar para a sua honra?
No incio, Wilkinson no escondeu a raiva contra a ameaa de Brett.
Depois, no entanto, seu olhar suavizou-se e foi num tom quase de tristeza que
admitiu:
Sr. Savage, no existe nada, nesta plantao, que tenha mais valor do
que esta garota. Quase tudo que era seu j passou para as minhas mos, e o resto
mal dar o suficiente para saldar suas dvidas atuais. Ele se virou para
Beatrice. Madame, se quer se poupar de um embarao ainda maior, aconselho-a
a voltar imediatamente para a Inglaterra.
Embarao?! Beatrice explodiu. Sr. Wilkinson, o que eu sinto nojo
do senhor e de todas as pessoas do seu tipo, gente que encara seres humanos
como simples mercadoria! E sinto raiva, tambm! Raiva de mim mesma, por no
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Projeto Revisora 107

poder fazer nada para acabar com o horror que minha sobrinha est vivendo.
Agora, com a sua licena, a sra. Van der Veer e eu vamos para o quarto dela, onde
no teremos de suportar a sua presena.
Sem esperar resposta, Beatrice passou o brao pela cintura de Melody e
levou-a para fora da sala. Junto porta, os guardas, que tinham voltado do
celeiro, avanaram para det-las, mas diante do olhar faiscante da dama,
hesitaram.
Deixem que elas passem Wilkinson ordenou, de imediato. ~~ Mas no
permitam que saiam do quarto.
Os dois homens foram com elas para cima, postando-se de cada lado da
porta do aposento de Melody.
No certo tratar uma moa educada desse jeito um deles comentou.
O que a senhora fez para o patro? Geralmente, ele mole com moas bonitas.
No, quando a moa escrava e pode lhe dar lucro Melody respondeu
com amargura, passando por ele antes que as lgrimas comeassem a correr
novamente. Tem de haver um jeito! Tem de haver! Isto no pode estar
acontecendo! Estamos no sculo XIX, e sou Melody Van der Veer. Tem de haver
uma sada!
Temos vinte e quatro horas murmurou Beatrice , e ainda no fomos
vencidas.
Fitando os olhos cinzentos da tia olhos que a tinham visto passar pelas
mortes do pai e da me, peio assassinato de Hugh e pelas atenes repulsivas de
Luther Hogge, para no mencionar a morte dele, por suas prprias mos ,
Melody foi tomada por uma forte determinao.
No possvel que eu no possa fugir! exclamou. Tem de haver um
jeito, tia!
Sem ajuda, ser impossvel. Em primeiro lugar, precisamos achar um
meio de libertar Patrick. Em seguida, livrar-nos de Wilkinson e seus homens, que
esto muito bem armados. H uma outra alternativa, no entanto. Voc se lembra
do endereo na carta que o primo de Brett mandou?
No, mas a carta est comigo. Eu a coloquei no bolso, quando Wilkinson
entrou.
Beatrice examinou rapidamente a missiva.
Wilkinson no sabe das tentativas de Paul Savage para salvar St, Clare,
por isso no est esperando nada desse lado. Voc e Patrick so prisioneiros, mas
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Projeto Revisora 108

eu, no. Para ele, no passo de uma mulher fraca e desamparada, sem a menor
chance contra trs homens fortemente armados. Portanto, se eu fingir uma certa
histeria e quiser dar um passeio de carruagem, para acalmar meus nervos
abalados... no creio que ele me negue permisso.
Mas a cidade de Raleigh no perto daqui, e viajar sozinha perigoso!
Nada nos aconteceu a caminho de St. Clare, e o tal Paul Savage
praticamente garantiu que conseguiria,o dinheiro. O nico problema que no sei
se Brett a ama o suficiente para usar esse dinheiro com voc.
Um brilho de esperana surgiu nos olhos de Melody.
A senhora mesma o ouviu oferecer a Wilkinson tudo o que tinha para me
salvar. Creio que ele me ama, tia Bia.
Bem, s h um meio de descobrir. Aproximando-se da garota,
Beatrice abraou-a rapidamente. Eu estarei de volta com tempo de sobra. Se
Paul no tiver o dinheiro, darei um jeito de soltar aquele irlands. A, sim, vamos
ver a confuso! Ainda no estamos vencidas, minha querida. Somos inglesas. J
enfrentamos toda sorte de inimigos, neste mundo, e um insignificante
escravagista no ser obstculo para ns. Voc vai ver!
Melody riu, sem alegria.
O que a Inglaterra e eu faramos sem a senhora!
Com. um sorriso encorajador, Beatrice deu-lhe as costas e foi at a porta,
exigindo que a levassem at Wilkinson. Foi atendida imediatamente e, algum
tempo depois, da janela do quarto, Melody viu-a passar, dirigindo uma carruagem
leve, puxada por um velho pangar. Aparentemente, Wilkinson no queria se
arriscar, pois naquele veculo seria impossvel algum ir longe.
Ao chegar encruzilhada, em vez de tomar o caminho para o norte,
Beatrice tornou o do sul. Lembrando-se do que Patrick lhes dissera, sobre a
carruagem esperando na plantao vizinha, Melody sentiu o corao disparar.
Por favor, meu Deus, faa com que ela consiga! pediu baixinho. Por
favor!
Durante as vinte e quatro horas seguintes, Melody viu suas esperanas
morrerem e encheu-se de desespero. Recusou-se a sair do quarto, mesmo depois
que seu "dono" deu-lhe permisso para tomar as refeies na companhia deles.
At Brett subiu para lhe dizer que seria tratada como uma dama, ganhando, com
isso, o desprezo dos guardas, que j sabiam que ela no passava de uma "negra
branca".
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Projeto Revisora 109

Afinal, quando a noite caiu, suas lgrimas secaram e ela tomou uma amarga
deciso: se fosse vendida como escrava, tiraria a prpria vida antes de se
submeter a um homem. Iria para o leilo de cabea erguida e mostraria a todos
que estavam diante de uma dama inglesa, no de uma pobre coitada para ser
usada e maltratada.
Assim, j meio atordoada pela fome, dominou o pnico em seu ntimo. E
quando, afinal, sem Beatrice, foi chamada por Wilkinson, desceu para o saguo
com a mesma dignidade com que Maria Stuart, rainha da Esccia, tinha seguido
para o cadafalso.
Observando-a descer a escada, Wilkinson se perguntou, pela centsima
vez, se no estaria enganado. Mas tinha a prova no livro e no juramento de Celine.
E Brett, mesmo implorando pela liberdade dela, jamais negara que no fosse
branca. No entanto, vendo a graa e a dignidade da jovem, ele no podia deixar
de se questionar.
Melody no olhou para ele. Na verdade, parecia olhar atravs dele, e
Wilkinson sentiu-se inquieto, pois no sabia que ela j entrara num outro mundo.
Um mundo onde no podia ser atingida, onde escutava vozes, mas no entendia as
palavras, via rostos mas no enxergava emoes. Naquela manh, ela se vestira de
luto, mas depois percebera a hipocrisia que seria usar a lembrana de Hugh para
diminuir sua beleza.
Sinto muito, querido, havia murmurado, acabando com aquela falsidade
de uma vez por todas. Eu queria tanto ter amado voc!
Melody colocara seus vestidos na mala, junto com os de Beatrice. Dali em
diante, usaria as roupas que seu novo dono escolhesse, provavelmente em cetim
vermelho ou verde, que pareciam ser as cores preferidas pelos homens sulistas
para suas concubinas. Talvez ele seja bom para mim pensara. Talvez at
me liberte, quando souber da minha histria.
Mas sabia que essa era uma esperana intil, que qualquer homem que
pagasse uma grande quantia por uma escrava, moa e bonita, s podia ter um
objetivo em mente.
A velha e gasta valise de seu pai tambm fora embalada com as coisas de
Beatrice. Ela abraara a boneca por um momento, antes de tornar a guard-la no
fundo da valise, enterrando junto sua inocncia infantil. A folha do dirio, onde
estava escrito "Tudo acabado. Fiquei sabendo que ela foi vendida. Preciso dizer a
Melody para no...", tambm fora relida. E sua mensagem se tornara, finalmente,
clara.
Se pelo menos o pai tivesse lhe dito para no voltar terra de seu
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Projeto Revisora 110

nascimento... Se pelo menos ele tivesse lhe contado a verdade, quando ainda se
achava no seio de uma famlia amorosa...
Se pelo menos... Refletindo que era possvel perder o mundo, lamentando o
que poderia ter sido, Melody tocara o colar de contas que encontrara na valise e
que devia ter pertencido a sua me.
Eu gostaria de saber como voc era, Ereanora, para que meu pai a
amasse tanto...
Algo que ouvira Nanny dizer, quando Sanso lhe dera os psames pela
morte da filha, voltara-lhe mente:
Minha Ereanora nunca vai morrer. Ela est sempre comigo. O bem e o
mal so capazes de nos procurar e alcanar. Ereanora sempre ser capaz de me
encontrar.
Seria verdade? Seria mesmo possvel que o mal... que Luther Hogge...
No! Melody gritara, nesse ponto. No vou pensar em nada que
possa me angustiar! Vou me concentrar num campo... na primavera... com a relva
balanando sob a brisa... meu pai e eu cavalgando... rindo... Fechara os olhos.
Assim melhor. Aqui, ningum pode me atingir.
No fim, ela havia colocado um vestido preto, de veludo, com prolas
espalhadas pela saia, como estrelas no cu noturno. Um colar de prolas realava
a luminosidade de sua pele, revelada pelo decote baixo, e um pente enfeitado com
prolas prendia-lhe os cabelos. Um manto negro completava a toalete, dando-lhe
um ar principesco e distante, o que reavivou as dvidas de Wilkinson, quando ele a
viu descendo a escada.
Aquela criatura no podia ser do mesmo sangue de Celine, que acabava de
ser jogada no carro dos escravos, gritando, xingando e esperneando. Nanny veio-
lhe a mente, ento, e foi essa lembrana que afastou suas dvidas. Nanny
portara-se com inegvel dignidade, preocupando-se o tempo todo com a neta
inglesa e o amo cego. Fora isso que fizera Wilkinson se lembrar da prpria bab,
uma negra enorme e carinhosa, que multas vezes o consolara, na infncia. No fim,
no resistira e concordara em deixar Nanny para trs. Afinal, ele era um
cavalheiro e podia se dar ao luxo de um gesto desses com Brett Savage, que nem
uma vez tentara usar a terrvel deficincia fsica para chantage-lo e convenc-
lo a libertar Melody.
E agora, algo na postura da moa parada diante dele levou-o a ceder ainda
mais.
Estava na minha carruagem disse aos outros. Esperava um gesto ou
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mesmo um olhar de gratido, mas a jovem parecia esculpida em pedra. Nada
manifestou, a no ser quando Brett saiu aos tropees da sala de estar, jurando:
Eu vou trazer voc de volta, Melody! Ainda no sei como, mas vou
conseguir a sua liberdade. Vou pensar em alguma coisa!
Ela se voltou ento, dizendo com uma calma assustadora: bom pensar
depressa, Brett, porque eu lhe garanto uma coisa no vou viver um nico dia
depois do leilo. Todos se arrepiaram, vendo-a virar-se e, de cabea erguida,
caminhar para a porta.

CAPTULO IX

Os leiles de North Fork no eram dos maiores, mas atraam compradores
at de fora do Estado, por oferecerem preos melhores do que os das outras,
cidades. Com a alta do algodo, no ano anterior, um escravo de primeira linha,
para trabalhar na lavoura, podia custar at mil e quinhentos dlares, enquanto
crianas entre dez e catorze anos podiam alcanar a metade desse preo. Os
escravos de St. Clare foram separados e arrumados de acordo com sua categoria.
Os mais fortes tiveram os corpos cobertos de leo, os dentes esfregados com
um graveto e os cabelos penteados. Os homens receberam calas novas, e as
mulheres, um vestido de algodo engomado, com ordens de sorrirem o tempo
todo. Os mais fracos foram simplesmente vestidos com as roupas que j tinham e
avisados para no causarem problemas, se no quisessem sentir o gosto do
chicote.
Dentro da redoma em que fechara sua mente, Melody no viu nem ouviu a
degradao que ocorria em torno de si, como os escravos, principalmente as
mulheres mais atraentes, sendo despidos e examinados minuciosamente, como se
no passassem de animais. Os gritos das crianas pequenas, sendo separadas das
mes, no a alcanaram, embora isso ocorresse inmeras vezes, pois a Carolina do
Norte no era como os outros Estados, que no permitiam que uma criana de
menos de dez anos fosse tirada da me.
Wilkinson manteve-se na carruagem at o ltimo momento. Enquanto ela
esperava, ele conseguiu um timo lucro com Celine. A mulata lutou o quanto pde
para escapar do palanque de vendas, mas no fim, com o vestido rasgado at a
cintura, foi dominada e amarrada a um poste de madeira. Assim que viram seus
seios bem feitos, os compradores se entusiasmaram, subindo as ofertas at cinco
mil dlares. Gritando e esperneando, ela foi levada para a carruagem fechada de
um homem da Carolina do Sul, que ainda no sabia como convenceria a esposa de
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Projeto Revisora 112

que precisavam de outra criada para a casa. A mulher era conhecida por sua
crueldade com os escravos, e at os homens de corao mais empedernido, ali,
sentiram pena da garota.
Wilkinson voltou-se ento para Melody, e de novo as dvidas o assaltaram.
Ela no dissera nada, desde a sada de St. Clare, e parecia totalmente
inconsciente do que ocorria em torno.
Sua vez, menina ele disse baixinho, escondendo o desconforto. Quase
contra a vontade, adiantou-se e ajudou-a a descer dia carruagem, conduzindo-a
por entre os bancos onde se sentavam os plantadores.
Um murmrio se elevou da multido, e quando Melody registrou o tom
baixo bestial, um brilho diferente surgiu em seus olhos cor de safira. Mesmo
assim, manteve a dignidade.
Para cima Wilkinson mandou, colocando-a sobre o palanque.
O murmrio cresceu, pois cada homem, ali, estava sendo tomado pela
mesma dvida de Elliot Wilkinson. Melody deu um passo para a frente, o manto
apertado em torno de si, os cabelos esvoaando levemente sob a brisa, o olhar
distante vendo apenas o campo onde costumava cavalgar com o pai.
Sentindo o mal-estar da multido, o leiloeiro apressou-se em gritar:
Uma beleza rara, cavalheiros! Um prmio, sem dvida! Algo que,
provavelmente, nunca mais vero: uma negra de olhos azuis! De acordo com os
livros de seu proprietrio, essa beleza filha de um homem branco com uma
mulata de um oitavo de sangue negro. A tatarav dela era uma princesa de Guin.
O pai, segundo dizem, era um lorde ingls. Que ela tem sangue nobre qualquer um
pode ver, s de olhar. E no foi maravilhosa a natureza, criando uma negra branca
de olhos azuis? Sorte nossa, que a temos hoje aqui! Ele fez uma ligeira pausa,
antes de acrescentar: Creio que podemos poupar tempo e comear com um
lance de dois mil dlares. Quem d mais?
Os lances subiram, em segundos, a quatro mil dlares. Ento, o leiloeiro
arrancou a capa dos ombros de Melody, despedaando a redoma em que ela se
encontrava e fazendo-a encarar o horror que vivia, enquanto os lances subiam
cada vez mais.
No! ela gritou, erguendo as mos.
Uma ordem rpida, e dois homens pularam para a frente, agarrando seus
pulsos e prendendo-os nas costas, com grilhes de ferro. Obviamente, o leiloeiro
no queria se arriscar a nada. Os angustiados olhos cor de safira percorreram a
multido, conscientes, afinal, do desejo brutal expresso nos rostos voltados na
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Projeto Revisora 113

sua direo.
Tem certeza de que ela negra? perguntou um dos homens.
Enojada, Melody virou a cabea na direo dele... e viu Beatrice Davenport.
No! rebelou-se, ao notar os olhos lacrimejantes da tia. No quero
que voc veja isso!
Mas ningum a ouviu. Todos estavam atentos s palavras do leiloeiro.
H dois modos de ver se uma mulher negra ele explicava.
Geralmente elas tm uma linha azul na base das unhas, mas, quando o sangue
to diludo quanto o desta moa, h um jeito melhor de verificar. Vocs viram a
irm dela, agora h pouco. Viram os seios, lindos, com as pontas de um marrom
bem escuro. Numa negra, as pontas so sempre assim, por mais brancas que elas
paream.
Melody tinha os olhos fixos no rosto plido da tia, pois sabia que, se
perdesse aquele trao de unio com a sanidade, acabaria se descontrolando. Logo
viu Beatrice virar-se e falar, aflita, com o homem ao lado dela.
Muito bem, estou vendo que no ficaro satisfeitos at eu provar que
ela negra! o leiloeiro gritou. Cavalheiros...
Dedos duros comearam a puxar os ombros do vestido. Foi quando uma voz
ressoou:
Isso no ser necessrio!
Melody voltou o olhar para o homem ao lado de tia Bia e oscilou nos
prprios ps, to cega peia intuio instantnea quanto se tivesse sido atingida
por um relmpago. Vagamente, ouviu o urro feio de protesto da multido, privada
de seu prmio. No minuto seguinte, Paul Savage pois s podia ser ele o homem
alto, arrogante e com uma cicatriz marcando o rosto altivo adiantou-se.
Com um ar quase negligente, ele segurava, numa das mos, uma espingarda
de dois canos serrada, e, na outra, uma bolsa de couro bastante grande. Um Colt
Walker estava preso sua cintura e os que olharam para baixo notaram o cabo de
uma faca de lmina longa, aparecendo de uma de suas botas altas. A multido se
abriu para deix-lo passar, os homens deslizando ao longo dos bancos para dar-
lhe mais espao, embora ele no olhasse para os lados ao se aproximar. Seu olhar
percorreu Melody da cabea aos ps, e uma ruga surgiu entre suas sobrancelhas
escuras.
Dez mil dlares devem satisfazer o seu cliente disse ao leiloeiro, com
firmeza.
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Sim... sim, senhor o homem balbuciou. Em toda sua vida, nunca vira
tanto dinheiro ser dado em troca de uma escrava.
Solte-a, ento!
Em segundos, Melody foi libertada. O estranho inclinou-se para pegar seu
manto, enfiando-o em suas mos trmulas, e nesse instante seu olhar encontrou-
se com o dele. Paul Savage tinha a pele queimada de sol, quase da cor de mogno,
os cabelos escuros e longos o bastante para cobrir-lhe o colarinho, mas foram os
olhos dele que tiraram o flego de Melody; castanho-escuros, quase negros, eles
expressavam uma raiva intensa.
Cubra-se ele ordenou. A carruagem est l. E virou-se, os
ombros largos abrindo caminho entre a multido.
Prestes a romper em lgrimas, Beatrice correu para ajudar a sobrinha a
colocar o manto, murmurando palavras de conforto e assegurando que o pesadelo
chegara ao fim.
Ns s chegamos agora h pouco, porque tivemos de ir a St. Clare antes.
Brett estava completamente fora de si, insistindo para que o primo a comprasse
a qualquer custo, mesmo que isso o deixasse sem dinheiro. Mas agora, venha, meu
bem. Vamos sair daqui.
Elas j caminhavam para a carruagem, quando um homem vestido
inteiramente de negro, com um chapu de abas largas sombreando suas feies
cavernosas, colocou-se diante de Melody e perguntou:
Por acaso a sra. Vau der Veer?
Havia urna estranha maldade nos tons sibilantes, e Melody recuou um
passo.
Sou, sim. E o senhor? Posso saber quem ? O homem sorriu de leve.
O meu nome no interessa, por isso melhor esquecer que me viu... por
enquanto.
Com um gesto de cabea e um olhar arrepiante, ele se voltou e
desapareceu na multido.
Melody foi tomada por um mau pressentimento. Quem seria ele? E o que
poderia querer com ela? Tremendo continuou em direo carruagem, amparada
pela tia. No olhou para o homem que a comprara, mas sentiu a mo dele sob o
cotovelo ajudando-a a subir.
Vejo vocs em St. Clare ele disse ao cocheiro.
Logo em seguida, Melody ouviu o barulho dos cascos de u cavalo a galope,
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Projeto Revisora 115

sumindo na distncia.
Na viagem, o estranho sinistro do leilo foi esquecido, com Beatrice
contando-lhe como conseguira chegar a seu salvador. Ele no estava no endereo
da carta nem era esperado de volta antes de vinte e quatro horas. Tomada pelo
desespero, Beatrice o procurara em bancos e bares, abordando cavalheiros e
bandidos.
Ah, tia Bia! Melody exclamou, em certo ponto da narrativa. O que a
senhora no deve ter sofrido!
O meu sofrimento no foi nada, comparado com o seu. Ainda bem que
est tudo acabado. Paul Savage conseguiu levantar cinco mil dlares... nem
sempre de forma legal, pelo que entendi... e juntou-os aos oito mil que j tinha,
trazidos da Nova Zelndia. Naturalmente, a lealdade dele era para com Brett e
St. Clare, mas Brett jurou que preferia perder tudo que possua a permitir que
voc fosse vendida como escrava. Ele se culpa por tudo que aconteceu e no pra
de se amaldioar pela prpria covardia.
Ento, agora, eu perteno a Paul Savage.
No! No vai ser assim. Ele um homem estranho e silencioso, mas, na
minha opinio, muito bom. Todos sabem o que pensa da escravido. Vai dar tudo
certo, voc vai ver. Beatrice olhou pela janela da carruagem. Chegamos.
Vamos esclarecer logo este negcio para ficarmos em paz.
Assim que a carruagem parou, a porta foi aberta com um safano e Melody
se viu nos braos de Patrick OShaughnessy.
Graas a Deus voc est salva! No sabe quantas vezes eu me xinguei
por no ter enfrentado aqueles sujeitos, com ou sem armas!
Gentilmente, Melody tocou-lhe o rosto.
Eles o teriam matado, e isso eu no haveria de querer, por nada no
mundo. Brett est l dentro?
Patrick concordou, soltando-a. E, enquanto ela corria para interior da casa,
ajudou Beatrice a descer.
Voc est cansada e coberta de poeira das suas viagens Quando que
vai parar de passear de um lado para o outro se acompanhante, mulher?
Seus olhares se encontraram, e Beatrice sorriu.
Eu s fao isso para amolar voc, Patrick.
Mas que mulher irritante! Ser que vai ser sempre assim? Sua mo
cobriu a dela por completo, revelando, sem palavras, a angstia que ele havia
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suportado.
Sempre muito tempo, mas eu continuarei a ser como sou at algum me
mudar.
Com um sorrisinho enigmtico, Beatrice soltou a mo e entrou na casa. Na
porta da sala de estar, deteve-se abruptamente, sentindo a tenso no ar. Brett
estava em sua poltrona, enquanto Paul dava as costas para as janelas meio
fechadas, o corpo forte delineado pela luz fraca do entardecer. Melody
encontrava-se ao lado de Brett, mas correu para a tia assim que a viu.
Pensei que voc tivesse dito que este... este sr. Savage era um
abolicionista! explodiu, num tom tempestuoso.
Nunca tive escravos na minha vida esclareceu com aspereza o homem
junto janela. Mas tambm no acho certo doar oito mil dlares meus a
qualquer estranha que precise deles. Meu primo pode fazer o que quiser com o
dinheiro que levantei em Raleigh, porque dele. Voc, no entanto, me pertence
legalmente. Mulata ou dama inglesa, para mim tudo a mesma coisa. Pode pagar
sua divida agora, em dinheiro, ou sald-la com trabalho, nos campos da minha
fazenda ou na minha cama. A escolha sua.
Como se atreve! Melody gritou, os olhos faiscando, enquanto Brett se
levantava da poltrona.
Se eu pudesse ver, faria com que voc engolisse essas palavras!
O homem junto janela explodiu, avanando para eles com as passadas
geis de um tigre.
No me tentem, vocs dois! Francamente, sempre dei mais valor
experincia que ao entusiasmo, em ambas as situaes, e a sra. Van der Veer
parece no ter nem uma, nem outro. Eu admito a necessidade de viajar milhares
de quilmetros, hipotecar minhas propriedades at o toco e fazer negcio com
homens dos quais, normalmente, no me aproximaria de jeito algum, para salvar o
seu lar, Brett, mas no vou desperdiar o meu dinheiro comprando-lhe um
brinquedo bonito!
Brett apertou a bengala, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa
Melody enfrentou seu inimigo, exibindo uma fria to grande quanto a dele.
Voc no pode falar assim...
Uma exclamao abafada escapou de sua garganta, quando dedos de ferro
agarraram um de seus pulsos. Brutalmente, o homem ergueu-lhe a mo e forou-a
a abri-la.
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Esta no a mo de uma enfermeira acostumada a usar lixvia todos os
dias. Ele escorregou a mo para o brao. E no h, aqui, os msculos de uma
escrava do campo ou da casa. Que trabalho voc andou fazendo, ento? Tambm
no professora, mesmo supondo que meu brilhante primo precisasse de uma.
Melody comeou a lutar para se libertar... e percebeu, ao mesmo tempo que
ele, que seus corpos haviam se encostado durante o conflito. E agora ali estavam,
veludo contra ao, seu corao disparado de encontro ao peito masculino, e a
respirao dele, alterada pela zanga, banhando seu rosto. O tempo parou quando
seus olhares tempestuosos se encontraram, e relmpagos brilharam entre eles.
Voc no vai me contrariar ele murmurou, num tom enrouquecido. E
soltou-a, dando-lhe as costas. J tomei minha deciso, e no h mais nada a ser
dito.
H, sim! Beatrice retrucou. Ns lhe devolveremos o dinheiro. Uma
carta leva um ms para ir Inglaterra e voltar. Se puder nos agentar por esse
tempo, ter seus oito mil dlares de volta, mais os juros que quiser.
No, tia Bia Melody disse, de imediato. John j fez muito por ns,
para lhe pedirmos mais isso. Eu... eu estou crescendo depressa, tia Bia, e esta a
minha vida. Se saiu da Inglaterra e est nesta situao, a culpa minha. Eu sou...
Ela quase engasgou, nesse ponto, mas continuou: Se souberem que sou uma
negra, em... em casa, o nome Davenport estar desonrado. Foi por isso que meu
pai nunca contou a ningum. No sei se lembra, tia Bia, mas alguns dias atrs eu
estava pronta a trabalhar nos campos, por outra causa. Quando deixei a
Inglaterra, deixei tambm para trs tudo o que me era querido, menos a senhora.
Agora, parece que vou ter de perd-la, e nada pode ser pior que isso. Nem mesmo
viajar para o outro lado do mundo!
Beatrice fitou-a com angstia, enquanto Paul a examinava com ar
especulativo, E foi a ele que Melody se dirigiu, em seguida.
O senhor diz que no acredita em escravagismo, sr. Savage, mas acaba
de comprar uma escrava. Como me deixou escolher, prefiro trabalhar nos campos.
Vou trabalhar at meus dedos sangrarem, se for preciso, e pagarei o que lhe
devo muito antes do que imagina. Apesar de ser um abolicionista, sr. Savage, o
senhor agora dono de uma negra branca. Entenda-se com a sua conscincia... se
que tem uma!
Ela teve a impresso de ver um brilho de respeito surgir nos olhos escuros,
mas logo Paul virou-se para o lado sorrindo sem alegria.
Pode deixar, eu me entendo com a minha conscincia. No h dvida de
que voc tem coragem... para uma mulher que se diz escrava.
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Projeto Revisora 118

De novo Beatrice interferiu, quase em lgrimas diante da aparente
indiferena do comprador de sua sobrinha.
Voc... voc no pretende destru-la por causa disso, no ?
No tenho vontade nem necessidade de fazer isso, lady Davenport, mas,
se no houver ao debaixo dessa'pele sedosa, meu pas far isso por mim.
Seu pas no destruiu o senhor Melody murmurou e no vai me
destruir. Vou aprender a capinar, arar e semear, tirar leite de vacas, apanhar
algodo ou seja l o que for que vocs plantam, naquela terra esquecida de Deus.
Virou-se para a tia. Muitas vezes duvidei da minha fora, mas agora no
duvido mais. Vou sobreviver, e depois, com a ajuda de Deus, irei ao seu encontro
e comearemos tudo de novo.
Paul, voc no pode fazer isso! Brett gritou de repente, a voz cheia
de emoo. Melody no vai agentar! Mesmo tendo se acostumado com os
trabalhadores nativos e perdido a noo do que uma dama, no pode submet-la
a isso!
Chega! Paul rosnou. No vou permitir que se rebaixe deste modo
por uma mulher, mesmo sendo linda. Pela aparncia fsica da sra. Vau der Veer,
posso lhe garantir que ela no est a ponto de morrer. Ela vai comigo para a Nova
Zelndia, e a vida que tiver depender, em grande parte dela. Nunca perdi um dos
meus trabalhadores por maus tratos, mas Windhaven no lugar para mulheres
choronas e fracas. Coisa da qual voc tambm no precisa, para sermos francos!
Melody sentiu uma vontade enorme de esbofetear e arranhar aquele rosto
arrogante, deixando outras cicatrizes sobre a pele morena. Mas limitou-se a
murmurar, numa voz trmula de indignao:
- At hoje, eu no sabia o que odiar uma pessoa! Nesse momento, a porta
da sala abriu-se bruscamente e Patrick entrou.
Graas a Deus o pior j passou. Como est se sentindo, Melody? Est
bem mais corada. Voc e Brett vo para a Nova Zelndia, no , Paul? E ns,
minhas senhoras? Quais so nossos planos?
To zangada quanto a sobrinha, Beatrice respondeu:
No temos muita escolha. Melody ir para a fazenda do sr. Savage,
como... como escrava do campo, uma vez que, no momento, ela pertence a ele. Eu,
naturalmente, irei junto. Tenho jias suficientes para pagar minha passagem e
alojamento.
O irlands fitou-a por um instante, depois explodiu:
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Projeto Revisora 119

Vai, coisa nenhuma! Pensei que voc fosse um homem de honra, Paul
Savage!
Tambm sou um homem de negcios e no gosto de desperdiar o meu
dinheiro, ganho custa de muito suor. A sra. Van der Veer ser tratada como um
investimento caro e com todo o respeito que desejar, o que mais do que
merece. Tenho dois mil e quinhentos dlares, que sero quase todos gastos nas
passagens dela e de Brett.
No tenho inteno de ir com voc Brett anunciou, zangado. Prefiro
me arrumar sozinho a ver uma dama tratada como voc pretende tratar Melody!
Voc? Sozinho? Desprezo e uma certa dose de preocupao cruzaram
o rosto de Paul. Voc no tem dinheiro nem cabea para isso, Brett.
Ele pode ficar Patrick decidiu de repente, enfrentando o olhar de
Paul. Ns lhe devemos oito mil dlares, certo?
- A dvida minha, Patrick Melody corrigiu.
Seus problemas passaram a ser meus tambm, desde a primeira vez em
que nos vimos. Ele sorriu da determinao nos olhos dela. Voc mesma disse
que ns trs somos mais do que amigos, e eu vou assumir uma parte dessa dvida,
mesmo que a teimosa da sua tia no queira.
Ento, voltando-se para Paul, ambos veteranos de guerra em todo o sentido
da palavra, Patrick acrescentou:
Pagarei os seus oito mil dlares, e voc no me perguntar de onde os
tirei. Combinado?
Combinado.
Enquanto isso Brett fica comigo. Tenho amigos... No so do tipo que eu
apresentaria a um cavalheiro, mas tomaro conta dele, sem indagaes. Alm
disso, Nanny pode ir junto.
Paul fitou-o, adivinhando a inteno do irlands, antes mesmo que ele
falasse.
Eu lhe dou minha palavra, Paul Savage, de que ele ser bem cuidado... to
bem cuidado quanto as minhas duas damas.
A ameaa estava implcita, e Paul apertou os lbios, mas foi num tom
despreocupado que concordou:
Est bem. Mas eu gostaria de conhecer esses seus amigos, se no faz
objees.
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Projeto Revisora 120

Eles vivem em Natchez. Fora do seu caminho, se pretende tomar o
barco.
Posso dar uma volta. Quanto a esses seus amigos... deduzo que moram na
parte baixa da cidade, Under-the-Hill.
No fao amizade com gente que mora na parte alta, On -the-Bluff.
Melody aproximou-se de Patrick, segurando-o pelo brao.
Eu posso imaginar a diferena, mesmo sem conhecer a cidade. Apesar de
tudo que aconteceu, no quero que Brett...
Brett?
Sim, Patrick?
Voc me confiaria sua vida, garoto?
Brett sorriu,
Se est querendo me tomar como refm, para que Melody e lady
Davenport sejam bem tratadas, pode contar comigo. Em todo caso, acho que est
enganado com meu primo. Apesar do modo como ele se comporta, creio que um
homem de palavra.
No preciso de suas referncias, Brett Paul disse, com aspereza.
Patrick, as cartas esto sobre a mesa. Pode levar Brett para Natchez. Mas
primeiro, como eu j disse, quero conhecer esses seus amigos.
Melody fitou os dois homens, ciente da fora e da raiva contida de ambos.
Sabia que Patrick no faria mal a Brett e no deixaria que outros fizessem, mas
no estava to certa quanto a sua prpria segurana. Lutando para esconder o
medo, perguntou a Paul:
Agora que no tem mais de pagar a passagem de Brett, vai pagar a de tia
Bia Ou ela deve ir cidade cora Patrick para vender algumas jias?
O olhar de Paul percorreu o vestido de veludo que ela usava, detendo-se
por um instante nas rendas do corpete, que lhe escondiam os seios.
Eu pago a passagem dela. Mas voc vai precisar de outro tipo de roupas,
para a fazenda. Pode compr-las em Wellington, que uma das nossas maiores
cidades. Mas no se descarte das roupas que tem. Meu pas no totalmente
incivilizado.
Curvando-se ligeiramente diante de Beatrice, ele girou nos calcanhares e
saiu.
O pas dele! Melody explodiu. A terra dele!
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Projeto Revisora 121

Uma terra selvagem, sem dvida Patrick concordou. Mas eu tiro
vocs de l antes de um ano. E vou lev-las para um pas de paz, tranqilidade e
rara beleza. Isso eu juro!
Mas nem mesmo o experiente OShaughnessy poderia prever que, na
terrvel primavera que viria, aquela terra de rara beleza seria destruda para
sempre, em conseqncia de um tiro que ressoaria por todo o mundo. Um tiro
dirigido a uma insignificante pilha de pedras, chamada Fort Sumter.

CAPTULO X

No dia seguinte ao do leilo, Paul encontrou Melody na biblioteca, lendo um
livro de sonetos de Shakespeare. Ela se levantou imediatamente, pondo o volume
de lado.
Desculpe. Eu j sei que uma escrava no tem permisso para ler.
Um msculo contraiu-se no queixo forte.
Voc... Oua, quero que me entenda... No tenho escravos e no os teria,
mesmo que a escravido no tivesse sido abolida nas colnias, em 33. Voc uma
empregada e, quando chegarmos Nova Zelndia, ter direito a um salrio, que
ficar comigo at sua dvida estar paga. Vou mandar fazer um contrato nesse
sentido.
No que me diz respeito, no faz a menor diferena. Voc me comprou
num leilo de escravos. Eu lhe perteno, neste pas, e serei sua criada, no outro.
Pode usar as palavras que quiser para acalmar sua conscincia. Eu continuo sendo
uma escrava.
Os olhos dele se ensombreceram. Ento, as regras do jogo tinham sido
definidas. Pois que assim fosse.
Eu no tenho conscincia, quando contrato criados. Quanto ao livro,
pode ler vontade. Na verdade, vrios deles foram meus, no passado, e iro
comigo para a Nova Zelndia, como o que est lendo.
Paul adiantou-se para pegar o exemplar, e instintivamente Melody recuou.
No precisa ter medo de mim, sra. Van der Veer. Se quiser, repito o que
disse antes: voc e sua tia sero to bem tratadas quanto quiserem. Por
enquanto, aceito o fato de que est de luto e no quer a minha companhia. No
precisa saltar como um animalzinho assustado cada vez que eu chegar a menos de
dois metros de voc.
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Projeto Revisora 122

E quando estivermos em Windhaven? Tambm vai ser assim? Melody
perguntou, odiando o medo que fazia sua voz tremer.
Voc fez sua escolha, e s se mudar de idia eu mudarei minha atitude.
Enquanto isso... ele abriu o livro numa determinada pgina ... j que faz tanta
questo de se considerar escrava, aqui esto algumas regras que pode seguir... A
nmero cinqenta e sete comea assim: "Sendo sua escrava, que mais poderia
fazer seno cuidar..."
O medo de Melody dissolveu-se em raiva, e s quando pegou o livro,
jogando-o sobre a cadeira, percebeu que Paul estava, deliberadamente, caoando
dela.
Voc fica ainda mais linda quando est zangada, mas a zanga uma
emoo difcil de se manter por,muito tempo. Cansa demais.
Depois disso ele saiu, deixando-a louca de raiva.
Foi a raiva que a sustentou, durante o jantar. Uma refeio pobre, j que
todos os escravos tinham ido embora e, antes de sair, cheios de desespero,
haviam jogado fora a maior parte da comida. Foi naquela noite, tambm, que ela
teve o primeiro dos pesadelos que a atormentariam durante muitos anos.
Assim que o jantar terminou, Melody pediu licena a Paul para se retirar.
Claro ele respondeu. Temos mesmo uma longa jornada pela frente.
Exausta fsica e mentalmente, ela se deitou logo, caindo num sono inquieto.
Virou e revirou na cama, gemendo baixinho quando, em seu sono, os pesadelos
comearam a se misturar com a horrvel realidade de seu passado.
Estava novamente sendo leiloada, diante daquele mar de rostos masculinos,
s que desta vez com o corpo coberto apenas pelos cabelos negros, que lhe caam
at a cintura. De repente, do meio da multido saiu Luther Hogge, uma figura
sombria e marcada por cicatrizes, to apavorante na morte quanto fora em vida.
Ela no conseguia se mover, vtima de uma fora alm de sua compreenso.
Tentou gritar, mas nenhum som saiu de sua garganta. Ele subiu no palanque e,
sorrindo, comunicou-lhe que no estava morto e viera para lev-la como escrava.
Ela sentiu as mos dele pousarem em seu corpo, fazendo coisas depravantes que
nunca imaginara pudessem existir. Enojada, gritou novamente, um grito agudo e
animalesco que cortou a escurido...
Na sala de estar, o grito inumano e agoniado fez com que todos se
levantassem.
Meu Deus! Brett exclamou. O que foi isso?
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Projeto Revisora 123

Paul j se dirigia porta, mas Beatrice o deteve com uma exclamao
sbita:
No! Voc a ltima pessoa que tem direito de entrar naquele quarto,
apesar de ser dono dela. Melody est tendo um pesadelo, e Deus sabe que ela j
passou por horrores suficientes para justificar isso.
Assim dizendo, ela empurrou Paul para o lado e correu para a escada. Ele
seguiu-a com um olhar especulativo. Sem dvida, havia ali problemas mais graves
do que imaginara. Em sua mente, reviu a garota sendo leiloada e sentiu de novo a
emoo esmagadora que o assolara, tornando-o presa de um desejo to bestial
quanto o dos outros homens l presentes. Ele tambm quisera ver o corpo bem-
feito revelado. Mas as mos de Beatrice Davenport, agarradas a seu brao,
tinham-no trazido de volta realidade, e ele dera um passo para a frente,
voltando ao mundo civilizado.
Respirando fundo, Paul comentou:
Pelo menos, eles no levaram o brandy. Quer outra dose, primo?
No quarto acima deles, Beatrice abraou Melody, enquanto ela contava,
entre soluos, seu horrvel pesadelo. Nada podia fazer pela sobrinha, a no ser
ouvir, pois uma situao daquelas estava alm de qualquer consolo e s acabaria
com o tempo.
Durante os dias seguintes, quando iniciaram a longa viagem a Natchez,
Melody foi se recuperando. Ajudada pela fora de Patrick e o humor custico de
Beatrice, conseguiu preservar a sanidade e ignorar a presena de Paul Savage.
Ele mesmo ajudou-a nisto, cavalgando frente da carruagem, sempre que
possvel, e sentindo-se parte quando paravam para dormir, as feies sombrias
e satnicas luz da fogueira.
De vez em quando, ele e Patrick conversavam em voz baixa sobre o
passado, e o irlands foi perdendo a raiva que demonstrara em St. Clare. Brett,
no entanto, no conseguia se adaptar, bebendo cada vez mais para afastar a
depresso e sorrindo apenas quando Melody o tocava.
Ao se aproximarem da Natchez Trace, eles encontraram o Mississipi, um
rio largo e vagaroso, que carregava metade da lama da Amrica e brilhava como
ouro, luz do sol. E depois veio Natchez, onde centenas de barcos flutuavam ao
lado de navios a vapor e palcios de jogatina, que cruzavam de Nova Orleans a
muito alm de Louisville.
Acima do porto, erguia-se a colina de terra vermelha, coroada por
carvalhos gigantescos, em meio aos quais ficavam as manses da aristocracia
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Projeto Revisora 124

local. Mas todos eles sabiam que aquele no era seu destino. Seu caminho ficava
longe daquele esplendor aparatoso, principalmente pela tremenda diferena
social que havia entre o Bluff, no alto da colina, e Natchez Under-the-Hill, junto
ao cais.
melhor vocs andarem perto de ns e cobrirem o rosto com os
chapus o mximo possvel. Patrick aconselhou, colocando-se entre as duas
mulheres. S h um tipo de mulher nessas ruas, e eu no quero que sejam
vtimas de ateno... indesejada.
Melody tomou o brao de Brett, e Paul colocou-se do outro lado do primo.
Depois de um olhar para as pessoas na rua, ele desistira da espingarda de cano
cortado em favor de um longo chicote. Uma multido ignorante e embrutecida
podia enfrentar uma arma de fogo de um ou dois tiros, irias geralmente pensava
duas vezes quando se via diante de uni chicote de quase trs metros de
comprimento, com gros de ao nas pontas.
O senhor acha mesmo que vai precisar dessa coisa, sr. Savage?
Beatrice perguntou.
Com o chicote enrolado numa das mos e o Colt e a faca, que sempre usava,
mostra, Paul causava uma impresso de inegvel poder.
No mas poderia precisar, se no a deixasse to vista. At os lees
tomam cuidado com os chacais.
Namy, impassvel, mas sem perder nada, caminhava atrs de seu amo.
Desde que tinham sado de St. Clare, ela s falava quando absolutamente
necessrio. No por tristeza, mas por indiferena a seu destino. Com Ereanora
morta, Celine vendida e Brett cheio de culpa pelo que acontecera a Melody,
ningum mais tinha necessidade dela. Mas seu dia ainda chegaria. Dentro de
poucas horas, aqueles estranhos iriam embora,e ela e Brett ficariam sozinhos.
Nesse momento, as portas de vaivm de uma taverna, frente deles,
abriu-se bruscamente e meia dzia de bagunceiros emergiu, tropeando,
vacilando rindo e amaldioando a prpria bebedeira. Assim que viram os recm-
chegados, estacaram, os rostos sujos e barbados abrindo-se num sorriso.
Mulheres! exclamou um deles.
um mocinho lindo... Esse meu. Melody apertou com mais fora o
brao de Brett, pronta a correr com ele para uma alia ou defend-lo at o fim
de suas foras, lutando como uma tigresa pelos filhotes. Mas Paul j passara
adiante, e s os homens encarando-o podiam ver o estranho brilho em seu olhar.
O riso e a voz de Patrick, no entanto, fizeram-no parar.
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Projeto Revisora 125

Vamos deixar o divertimento para outra hora, companheiro. Agora,
temos de pensar nas damas e no seu primo. Eu falo com eles, Conheo bem o tipo.
Sem esperar resposta, Patrick deu um passo frente e deteve-se, as
pernas separadas e os braos na cintura.
Meu nome O'Shaughnessy. Fui criado por uma cascavel texana e
mamei numa pantera. Posso acabar com seis homens dessa cidade antes do caf
da manh e terminar com o resto antes do jantar, mas agora estou acompanhando
essas damas at a casa de meu bom amigo, 'Gator McAlister'. Se pretendem nos
deter, melhor comearem agora. E os que sobrarem tero de prestar contas a
ele e aos filhos, depois. Como ? O que vai ser? A transformao nos rostos dos
homens foi inacreditvel. Sorrisos amigveis apareceram, e um dos sujeitos
gritou, guardando a faca que havia desembainhado diante do desafio silencioso de
Paul:
Ei! Ele um dos nossos, apesar das roupas finas.
Outro concordou, com uma gargalhada.
At fala a nossa gria! Se voc amigo de 'Gator', nenhum homem nesta
cidade ter coragem de ficar no seu caminho. Vamos, garotos! Vamos ver o que a
Colhei Engordurada tem para nos oferecer, hoje. Com passos vacilantes, os
bagunceiros se encaminharam para outra taverna, no fim da rua. Patrick virou-se
para Paul.
Acho melhor irmos embora, antes que eles mudem de idia.
De acordo, Paul?
Voc no mudou nada, hein? Paul comentou. E, fitando o rosto tenso
da jovem atrs de si, encontrou uma mistura de coragem e medo. Como ? Est
pronta para continuar ou pretende ficar aqui, protegendo meu primo como uma
leoa, a tarde inteira?
Sem se dignar a responder, Melody seguiu os outros por uma viela estreita,
que os afastou da rua principal. Sua vontade era gritar que protegeria Brett at
com a prpria vida, se fosse preciso, mas sabia que aquele homem duro, que quase
pulara ao encontro do perigo, jamais a entenderia.
Dentro de minutos, chegaram a um sobrado de madeira, to desconjuntado
que ningum o chamaria de casa. J devia ser velho quando Natchez fora
fundada, e seus alicerces de madeira haviam adquirido a solidez de pedra,
aoitados peio tempo e as tempestades. Algum tentara acrescentar uma
varanda, mas agora as tbuas cadas espalhavam-se pelo cho, cobertas por mato
e trepadeiras.
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Projeto Revisora 126

O'Shaughnessy fez um gesto para que os outros esperassem. Depois, com
as mos em torno da boca, gritou:
de casa! No a que mora aquele urso bbado e fanfarro?
Imediatamente uma figura incrvel emergiu do sobrado. Era alta como
Patrick e quase to larga, com uma cabeleira espessa e uma barba enorme, no
meio da qual s o nariz, quebrado inmeras vezes, e dois olhos coruscantes
podiam ser vistos.
Quem se atreve a insultar 'Gator McAlister'? a figura berrou, os
braos estendidos para a frente, prontos a agarrar o atrevido. Minha me era
uma ursa, e meu pai, um crocodilo. Sou capaz de acabar com qualquer homem,
pedao por pedao!
Rindo, Patrick avanou alguns passos.
OShaughnessy o meu nome, e eu devoro ursos no caf da manh e uso
couro de crocodilos para minhas botas!
O sujeito riu tambm, diminuindo o espao entre eles.
Ora, se no o Pat Irlands! O nico homem capaz de fazer isso,
claro!
Os dois se abraaram, dando-se tapas tremendos nas costas, e Melody
recuou um passo, amedrontada, apesar de tudo. No instante seguinte, dedos
fortes envolveram seu cotovelo, enquanto uma voz profunda perguntava:
Voc no tem medo de barulho, tem? Porque nisso que tudo se resume:
o reencontro de dois amigos e muito barulho. assim que as coisas so feitas por
aqui, e a linguagem que eles usam para mostrar camaradagem.
Melody enrijeceu, ressentida com o divertimento no tom de Paul.
O senhor pode estar acostumado com esse tipo de companhia, sr.
Savage, mas eu no estou. No encontramos criaturas assim na Regent Street.
Mas elas podem ser encontradas no Regent Park Beatrice comentou,
rindo. Na parte destinada ao Jardim Zoolgico.
No tem medo dele, lady Davenport? Paul quis saber.
Seja ele o que for, sr. Savage, um macho, e h muito tempo perdi o
medo dessa espcie. Mas que tal nos apresentarmos ao nosso anfitrio?
Antes que eles pudessem se adiantar um passo, no entanto, uma garota
saiu correndo do sobrado, com uma colher de pau na mo, que usou para bater,
com toda fora, no brao do homenzarro,
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Projeto Revisora 127

Comporte-se, 'Gator'! No est vendo que essa gente diferente dos
ratos com quem voc costuma andar? Ela ergueu a cabea para fitar Patrick, j
que mal chegava ao peito do irlands. Peo desculpas pelo meu pai, senhor. Se
bem que o senhor o insultou primeiro!
A garota era magra como um palito, com as mas do rosto salientes e
sardas sobre o nariz. Seu cabelo cor de milho, curto, tinha um corte irregular,
obviamente feito com a faca que ela trazia no cinto, e sua aparncia de garoto
era enfatizada pela camisa e cala de sarja desbotada que usava.
Reconheo a minha culpa, senhorita O'Shaughnessy admitiu. Mas
seu pai e eu somos amigos de longa data. Conheo seus irmos, Setli e Jake, mas
no me lembro de uma menina... E olhe que jamais me esqueceria de algum como
voc! Ela examinou o rosto dele, mas, no encontrando nenhum trao de
sarcasmo, sorriu.
Eu s vim para c seis anos atrs, quando minha me morreu. Ela tinha
me levado embora. Queria que eu fosse uma dama. Um sonho, claro, pois sou
magra como uma cascavel e tenho um gnio igual. Ainda sorrindo, ela desviou os
olhos castanhos para os outros... e estacou, pasma, diante de Brett. Deus do
cu! Voc mais bonito que um cachorrinho novo! Qual o seu nome e por quanto
tempo pode ficar aqui?
Brett corou at a raiz dos cabelos. Junto dele, Melody teve de lutar para
no rir. No fim, foi Paul quem fez as apresentaes, terminando:
E voc a filha de 'Gator'...
Mae Beth, mas quase todo mundo me chama de Midge. Um grito ressoou
dentro do sobrado, e ela convidou:
Vamos entrar, antes que meus irmos quebrem a casa toda. Acabei de
preparar um assado de peixe e po de milho. Vocs esto com fome?
Uma expresso suplicante surgiu nos olhos castanhos, e, depois de um
rpido olhar para os companheiros, Melody sorriu.
Ns adoraramos aceitar a sua hospitalidade, mas no queremos
atrapalhar.
Atrapalhar?! De jeito nenhum! E temos comida suficiente para um
batalho, j que meus irmos no fazem nada, alm de pescar e caar. Com um
gesto totalmente natural, a garota tomou o brao de Melody e perguntou: Eu
posso encostar a mo nele ou ele vai desaparecer numa nuvem de fumaa, se eu
fizer isso? Brett riu, pela primeira vez, desde aquele dia terrvel em St. Clare.
No vou desaparecer, se voc me tocar, Midge, mas sou capaz de acabar
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sumindo, de pura fome!
Est resolvido, ento! Com a mo livre, a garota tomou o brao dele.
Vocs comem conosco.
No sobrado, Melody teve outra surpresa agradvel. A porta da frente
abria-se para um cmodo grande e quadrado, mistura de sala de jantar e cozinha,
bastante parecido com a cozinha de sua casa, na Inglaterra. Mais dois trogloditas
estavam sentados mesa de pinho, grandes e to barbados quanto o pai. Eles se
levantaram para as apresentaes, obviamente embaraados, mas logo se
recuperaram com as brincadeiras de Patrick e as atenes bem-humoradas de
Beatrice.
Sentados ao longo da mesa, os recm-chegados foram servidos de peixe
assado, po de milho e milho cozido na manteiga. Estava tudo delicioso, e, quando
achavam que no seriam capazes de comer mais nada, foi-lhes oferecida uma
magnfica torta de ma.
S um pequeno incidente ameaou estragar a refeio. Nanny recusou-se a
sentar com eles, mesmo depois que 'Gator' esmurrou a mesa, declarando:
Se no comer agora, conosco, no come mais. No tenho escravos. No
s porque no tenho dinheiro para isso, como tambm porque podemos fazer o
trabalho mais depressa e melhor.
Com todo o respeito, senhor, no direito Nanny insistiu, encarando-
o de frente. mister Brett no gostaria, e os outros tambm no. Se sobrar um
prato, eu como depois.
Nada demoveu-a disso, e ela foi para a mesa quando os outros se
levantaram, passando para o cmodo ao lado.
'Gator'... Patrick comeou, aceitando uma caneca de usque de milho,
feito em casa e quase letal -...o motivo da minha visita que meu amigo Brett e
eu precisamos de um lugar para ficar durante uns tempos.
Pois j tm! Brett espantou-se.
Mas voc nem me conhece!
Voc amigo de Pat e est com problemas. O que mais eu preciso saber?
Mas eu vou ficar muito mais que um fim-de-semana. E no posso pagar
nem fazer nada, em troca.
Ns temos comida e quartos. - Um sorriso apareceu em meio barba
cerrada. Voc fala como se pertencesse ao Bluff, por isso pode pagar a sua
estada ensinando um pouco a minha Midge, aqui.
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Projeto Revisora 129

Isso mesmo a garota concordou, mais do que depressa.
Ele pode me ensinar o tempo que quiser. E como eu sou praticamente
uma causa perdida... ela lanou um olhar maroto para Patrick ... isso pode
levar semanas, at meses!
Melody sentiu um aperto no corao. Estava com cime daquela garota
selvagem, que tomaria conta de Brett. O seu Brett! A adorao era evidente nos
olhos castanhos de Midge, e Brett, na situao vulnervel em que se achava, seria
incapaz de resistir. Ns vamos embora logo, ento? ela perguntou,
recebendo um olhar de surpresa de seu anfitrio, e outro inquisitivo, da parte de
Paul.
No vo conseguir um vapor, agora 'Gator' disse. H um Hotel na
cidade, mas vocs poderia ficar aqui, se quiserem. Nossos quartos no so muito
bons, mas esto limpos. Midge tima dona-de-casa. Percebendo que suas
palavras tinham sido tomadas como ofensa, Melody tentou consertar:
No foi isso que eu... s que...
Ns no queramos dar trabalho Paul completou. Mas, se vocs
podem nos hospedar por esta noite, aceitamos com prazer.
Ento, est resolvido afirmou 'Gator'. Mais usque?
Paul estendeu a caneca com um sorriso resignado, apesar de preferir
brandy francs e outras bebidas afins,
Sabe, eu logo vi que voc um bom garoto, apesar dos seus
companheiros 'Gator' prosseguiu. Foi s bater os olhos no modo como usa
esse Colt, baixo e preso perna.
Nesse ponto, ele mandou Midge buscar mais usque, e Patrick se ps a
contar histrias dos tempos que haviam passado Juntos. O interesse de todos
era inegvel, e, num dado momento, Melody perguntou:
Mas por que seu nome 'Gator'?
O homem estudou as mos enormes, e ela j estava com medo de t-lo
ofendido novamente, quando Seth, o filho mais velho, comeou;
Meu pai no tem orgulho de contar isso, mas ns temos.
Foi h quatro anos, quando tnhamos outro irmo, Skeeter. Um crocodilo
pegou Skeeter, quando ele e meu pai estavam caando. Meu pai trouxe Skeeter
de volta, mas ele morreu no caminho. Ento... ele lanou ao pai um olhar cheio
de orgulho e admirao ... meu pai voltou ao pntano, parecendo um urso ferido,
e matou oito dos brutamontes, s com as mos e uma faca! A veio para c de
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Projeto Revisora 130

novo, ficou bbado como um gamb e arrebentou duas das piores tavernas do
cais. E, antes que conseguissem amarr-lo e traz-lo para casa, ainda botou mais
de dez sujeitos fora de ao por uma semana. por isso que, agora, ele
chamado de 'Gator', que quer dizer "crocodilo".
O garoto era um bom menino murmurou 'Gator', como se isso
explicasse tudo.
Mais tarde, Melody conseguiu alguns minutos a ss com o irlands e
perguntou:
O que que voc vai fazer aqui, Patrick? Acha que conseguir um
emprego?
- Os rios e eu sempre nos demos muito bem, menina. Neles, consigo
trabalho honesto em horas, e trabalho no to honesto, mas mais lucrativo, em
questo de dias. Quanto a Brett... Midge vai tomar conta dele como se fosse uma
irm caula. E isso que ela vai ser para ele, menina: uma irm caula.
Como pode saber? Um ano muito tempo...
Com o meu conhecimento desses rios, no vamos deixar vocs l por um
ano. Alm do mais, existem mulheres que em minutos entram no nosso sangue e
no podemos mais esquecer. Para estar ao lado delas, somos capazes de ir at o
fim do mundo... O que me faz lembrar de uma coisa: preciso salvar aqueles
garotinhos do charme da sua tia.
Melody riu.
Tem certeza de que no o contrrio?
Absoluta! Eles j devem estar comendo da mo dela, mas no quero que
se envolvam demais. Seria horrvel ter de tomar uma atitude mais sria contra os
filhos de um velho amigo.
Patrick caminhou em direo ao halo dourado lanado pelas velas de
fabricao caseira, e Melody ficou sozinha. No dia seguinte, teria de enfrentar
um futuro do qual nada sabia. Era uma negra, uma escrava! Por menos tempo que
ficasse nessa situao, seria tempo demais...
Na manh seguinte, Melody levantou-se plida e quieta. Pouco falou
durante o caf da manh, limitando-se a comer o que lhe ofereciam, indiferente
ao olhar observador de Paul.
Vamos de vapor a Nova Orleans ele declarou, e de l seguiremos para
Charleston, onde tomaremos o navio para a Nova Zelndia.
Vamos ficar muito tempo em Nova Orleans? perguntou Melody, com
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Projeto Revisora 131

um rpido olhar para a tia.
Por qu? Est pensando em fazer turismo?
No! que... eu... eu quero... chegar logo Nova Zelndia, para comear
minha nova vida...
"Mesmo que seja uma verdadeira morte em vida", seu corao gritou.
Ao se despedirem, Melody e Brett nada disseram, mas ele levou a mo ao
rosto dela, que a cobriu com a sua por um momento. Gestos que falaram mais que
quaisquer palavras.
Ento, tudo acabou. Ela se virou, encontrando o olhar enigmtico de Paul
Savage, e agradeceu a seus anfitries, antes de preceder os outros, na descida
para o cais.
No vai demorar muito Patrick prometeu a Beatrice, sem toc-la.
Vai, sim ela respondeu. E sorriu, desmentindo o brilho excessivo de
seu olhar. Sr. Savage? Paul tirou os olhos da figura solitria, que caminhava
alguns passos frente.
O senhor tem uma nota de cem dlares?
Intrigado, ele deu-lhe uma. E viu-a coloc-la no bolso do irlands, antes de
sair, apressada, atrs da sobrinha.

CAPTULO XI

Para Beatrice, a longa viagem de Gfaarleston a Wellington foi mais
debilitante do que a travessia de Londres a Nova York, embora tivessem tomado
um dos veleiros de Donald Mackay, conhecidos por sua velocidade. Mesmo com
ventos fortssimos podiam continuar com todas as velas abertas, devido ao
mastro mais grosso e forte que o habitual.
E encontraram mesmo ventos fortes, ao passar junto zona dos icebergs,
onde Melody se viu rezando para alcanar terra. Qualquer terra!
Esses homens no so mortais ela comentou com a tia depois de ver o
modo como os marinheiros andavam pelo convs, sem dar muita ateno prpria
segurana.
Nesse ponto, Beatrice j estava alm de qualquer capacidade de raciocnio
e respondeu com um gemido abafado.
Melody ficou surpresa ao saber que no dariam a volta ao cabo Horn nem
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Projeto Revisora 132

viajariam pelo Pacfico, e Paul explicou:
quase impossvel. Antes mesmo de se chegar ao cabo Horn, entra-se
num cinturo de ventos fortssimos, que sopram entre 40 e 50 graus sul.
Estaramos navegando contra o vento e a correnteza. Mas um caminho que pode
ser usado por quem volta da Nova Zelndia para a Amrica, embora seja
inegavelmente perigoso.
Uma viagem que mal posso esperar para fazer.
Ele franziu a testa, mas no respondeu provocao, limitando-se a dizer:
V-se logo que voc no faz idia do que est falando. Em toda travessia
h o perigo de se encontrar uma tempestade, mas o contorno do cabo Horn um
verdadeiro inferno. Voc deveria ler Dois anos ao p do mastro, de Richard Dane,
Graas a esse livro, antes de viajar, eu tinha idia do que iria encontrar, mas logo
descobri que a descrio do autor no chega perto da realidade.
No tenho medo de mau tempo, sr. Savage. Sou uma boa marinheira.
Mas a tempestade que encontraram mandou at Melody para a cabine. O
vento era to forte que quebrava o topo das ondas, jogando-as umas sobre as
outras, mas o capito portou-se com ousadia e, em vinte e quatro horas, eles
cobriram mais de quinhentos quilmetros. Incrivelmente, o veleiro pouco sofreu,
e, depois da ilha de Amsterdam, o mar acalmou-se e uma boa brisa carregou-os
em direo s costas da Austrlia.
Ao contrrio da viagem anterior, Melody estava muito triste e confusa com
seus sentimentos para aproveitar a travessia. Em vo ela tentava dominar o medo
do futuro. medida que os dias se passavam, foi ficando cada vez mais
desesperada, a ponto de no conseguir sequer sorrir das acrobacias dos golfinhos
que seguiam o navio.
Pela primeira vez em sua vida, Melody no tinha para quem se voltar, e
quando atingiram as guas mais calmas do oceano ndico, tomou conscincia de
que estavam no ltimo trecho da viagem.
Ah, tia Bia! sussurrou uma noite para a mulher que dormia no beliche
em frente. A senhora estaria bem melhor se tivesse ficado na Inglaterra, em
vez de me acompanhar. Por causa de seu amor e lealdade, veja s onde veio parar.
Cansada, mas incapaz de dormir, nauseada com o cheiro de vomito que
pairava no ar, apesar do uso de inmeros desinfetantes, ela resolveu subir ao
convs.
A que ponto chegara! Assassina... mulata escrava... Que mais lhe reservava
o futuro? Profundamente deprimida, debruou-se no gradil do convs,
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Projeto Revisora 133

indiferente brisa noturna, o olhar fixo nas guas escuras, l embaixo. E tia Bia?
O que seria dela? Uma estranha num ambiente estranha, arrancada do seio da
famlia e dos amigos... teria ela condies de um dia voltar vida antiga?
"Sim", uma vozinha em seu ntimo respondeu. Se ela estiver sozinha.
Paul Savage a ajudaria. Ele se oferecera para fazer isso em uma ou duas
ocasies, mas Beatrice no aceitara. Mas ele a ajudaria, se precisasse. Afinal, a
dvida no era dela. Sem a sobrinha, Beatrice estaria livre...
As ondas, batendo de encontro ao casco do navio, pareciam murmurar
convites sedutores, difceis de rejeitar. Sozinha, Beatrice estaria livre...
Sozinha, Beatrice poderia voltar vida de antes...
Nesse momento, Paul saiu para o convs e sobressaltou-se ao ver Melody
inclinada sobre a amurada. De imediato censurou-se por no ter percebido a
tristeza e a vergonha da moa, por no ter reconhecido a mudana no estado de
esprito dela, quase um ms atrs, quando a raiva fora substituda por uma
aceitao resignada do que lhe acontecera.
Silenciosamente, aproximou-se dela e, com todo o cuidado para no
assust-la, disse:
Boa noite, sra. Van der Veer.
Melody girou nos calcanhares com uma exclamao abafada, e nos olhos
dela Paul reconheceu um grau de desespero que s vira durante a guerra, depois
de uma longa e desmoralizante campanha.
Eu no estava esperando voc.
Acredito. A noite est muito fria.
Nem notei.
Voc deveria estar agasalhada. Vou mandar um dos garotos a sua cabine,
buscar um xale.
No... no preciso. Eu vou descer. Minha tia deve estar precisando de
mim.
Sua tia j deve estar dormindo. A sua ateno seria mais apreciada em
outros lugares.
Melody sentiu um frio na boca do estmago. Ele no podia estar querendo...
Voc... voc quer que eu... eu o sirva... de alguma maneira?
Paul foi dominado pela raiva ao ver o modo como ela apertava a amurada do
navio com uma das mos. O que esperava que ele fizesse? Que a violentasse ali
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Projeto Revisora 134

mesmo?
Respirando fundo, respondeu:
Quero, sim. E quero que comece parando de ter medo de mim, da minha
terra e do seu futuro.
Eu... eu, eu no posso! Sou sua escrava, e por isso sempre vou odiar e
temer voc. Voc me comprou e me obrigou a vir para c. Tenho de obedec-lo,
no entanto voc um estranho para mim.
Melody viu a cicatriz embranquecer no rosto dele, mas no conseguiu
analisar a expresso que surgiu nas feies frias e duras,
Muito bem. Voc diz que minha escrava e tem de me obedecer. Quero
que me beije, ento.
Ela fitou-o, incrdula. Aquilo no podia estar acontecendo!
Vamos, eu estou mandando!
Voc... no pode!
Algo brilhou nos olhos escuros.
Isso um desafio?
No... mas no seria direito. Voc disse...
Est negando que minha escrava e que posso mudar de idia? Negando
que tenho o poder de lhe dar ordens?
S muito depois ela tomou conscincia de que ele no dissera que tinha o
"direito" de lhe dar ordens. No momento, com o corao batendo forte,
atordoada, foi forada a admitir, num sussurro:
No.
Um sorriso surgiu na boca mscula,
Ento, sra. Van der Veer, vou lhe dar uma ordem: quero que minha
escrava passe os braos pelo meu pescoo e me beije!
Melody comeou a tremer, e foi preciso um esforo supremo para que
erguesse as mos e enlaasse o pescoo dele, sentindo os cabelos negros sob os
dedos e sabendo que nunca mais seria a mesma. Sob o olhar profundo e
enigmtico de Paul, sentiu-se ainda mais embaraada e virou um pouco o rosto,
passando a ponta da lngua pelos lbios secos.
Como ?
Mas a vergonha era grande demais, e em desespero ela jogou a cabea
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Projeto Revisora 135

para trs, os olhos brilhando como duas estrelas.
No posso!
No mesmo instante os lbios de Paul aproximaram-se, e ela fechou os olhos
com uma exclamao abafada, temerosa do que ia acontecer, para logo em
seguida prender a respirao, quando o beijo brutal, que esperava, no aconteceu.
Em vez disso, os lbios dele moveram-se gentilmente sobre os seus, frios do ar
da noite, ligeiramente salgados dos borrifos das ondas, explorando, procurando,
entreabrindo sua boca com a lngua, O beijo intensificou-se, tornou-se
possessivo, agitando suas emoes de tal modo que ela precisou agarrar-se aos
ombros musculosos para no cair.
Ele envolveu-a com mais fora, amparando-a. Um ardor, como nunca
pensara poder sentir de novo, espalhou-se por seu corpo, trazendo junto uma
paixo atordoante, que quase o fez perder o controle de si mesmo, e por que no?
At alcanarem terra firme, ela lhe pertencia. Podia fazer o que mais lhe
agradasse: possu-la ali, sobre o convs, ou lev-la para baixo, para sua cabine.
Outros homens a tinham possudo: o marido, provavelmente Brett, considerando-
se a ansiedade que mostrara para t-la de volta, e, sem dvida, muitos mais. Uma
mulher to linda no podia evitar de ter amantes. Havia nela uma paixo enorme,
e no entanto os lbios sob os seus pareciam inocentes, inexperientes...
Um gemido baixo escapou dos lbios de Melody, e ele voltou realidade,
percebendo que a mantinha cativa com um brao forte demais. De imediato,
soltou-a. Ambos respiravam pesadamente, abalados pela experincia, e seus
olhares se encontraram, expressando um estranho encantamento.
Zangada consigo mesma por estar to abalada, Melody acabou por
exclamar:
assim que trata todos os seus escravos, sr. Savage?
Eu j lhe disse que no tenho escravos. Uma sensao de triunfo
dominou-o, ao ver um brilho de fria surgir nos olhos azuis. Em todo caso... no
posso negar que estou pronto a aprender, com o material que tenho mo.
No, enquanto eu tiver foras para lutar contra voc! Ele no agentou e
sorriu.
Eu sabia que conseguiria fazer esse seu gnio vir tona! J estava
sentindo falta dele.
Maldito! Voc um... um... selvagem!
Melody voltou correndo para a cabine que partilhava com a tia, mas...
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Projeto Revisora 136

No seja injusta Beatrice disse na manh seguinte, depois de ouvir a
sobrinha contar o quer acontecera e fazer algumas perguntas. Se voc est
nesta situao, meu bem, no por culpa dele.
Como no? Ele poderia ter me libertado... me dado os meus papis de
alforria, como eles dizem.
E perdido oito mil dlares? Assim, ele sabe que ser pago, ou por meio
do seu trabalho, ou dos... negcios de Patrick. Beatrice sorriu gentilmente,
embora no ntimo morresse de pena da sobrinha. Encare a realidade, querida.
At agora, voc a nica a insistir em que no passa de uma escrava. Precisa
reconhecer, tambm, que a no ser pelo incidente de ontem noite...
Incidente?!
... ele tem nos tratado muito bem. Melody meneou a cabea, zangada.
No sei como a senhora consegue ser educada com ele! Paul Savage
arrogante e autoritrio, um monstro sem sentimentos. Mal falou com o coitado do
Brett, quando partimos. Aposto que nem se preocupa com o que possa acontecer
ao primo...
Melody interrompeu-se, com um n na garganta. Brett fizera o possvel
para tornar inesquecveis seus ltimos momentos juntos, mas a tristeza fora
grande demais. Na noite anterior partida, algum batera porta de seu quarto,
e ela fora abrir, pensando que fosse a tia. Mas...
Brett!
Eu tinha de vir, Melody. No fique zangada comigo. Ele usava um roupo
de seda sobre as roupas de dormir e estava sem sapatos, com os ps gelados de
frio.
Meu querido! Ela o fizera entrar depressa, para que os outros no
ouvissem. Sente-se na minha cama. Vou enrolar o cobertor nos seus ps e..,
Pare com isso! Melody, voc tem de me ouvir!
O rosto dele expressava uma tremenda emoo, e ela se assustara.
O que foi, Brett? Pode me dizer.
Ele a abraara os olhos sem vida parecendo queimar no rosto plido.
Melody, eu daria a minha vida para no t-la conhecido... e a alma para
que fosse minha, em todos os sentidos. S nos restam umas poucas horas... uma
noite! Com os lbios, ele tocara seus olhos, a tmpora. Meu amor, eu preciso
tanto de voc! Voc corno um fogo dentro de mim. D-me uma lembrana pela
qual eu possa viver. D-me esta noite, Melody!
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Projeto Revisora 137

Com o corao disparado, ela sentira as mos dele deslizarem por suas
costas, uma indo envolver seus seios, antes que a beijasse coro a ansiedade de um
homem a ponto de morrer de desejo. Ela tentara se entregar ao beijo, sentir
prazer nas carcias... e no conseguira! De um modo gentil, mas firme, afastara-
se, ento, murmurando:
Sinto muito, meu querido mas... assim no... assim, eu no consigo...
Voc no me ama!
Com as lgrimas escorrendo pelo rosto, Melody colocara os lbios sobre os
dele, beijando-o numa doce agonia.
Eu o amo, acredite em mim. S no sei como... ou quanto. Sempre vou
am-lo, Brett, mas agora voc precisa ir embora... Como eu tenho de ir amanh,
apesar de toda a dor que vou sentir.
Eu preciso de voc, Melody.
Ela acabaria cedendo, se ele no tivesse se levantado e sado.
Relembrando aquele momento, Melody se perguntou se no deveria ter
cedido e dado a ambos uma noite para guardar na memria... Talvez nunca mais
visse Brett.
Ento, veio-lhe mente a lembrana de outro beijo, que a marcara como
ferro em brasa, e uma onda de culpa envolveu-a.
No vou mais ao convs enquanto no chegarmos a Wellington jurou.
Vou evit-lo a todo custo, e s vou falar com ele se me der ordens para isso!
Sabia que seria uma deciso quase impossvel de manter, mas estava
morrendo de vergonha daquele momento em que se entregara, nos braos dele, e
isso endureceu-a. Teria sido to fcil chegar s conseqncias finais! Pertencia a
ele, e ambos tinham conscincia disso. Era at esperado.. Se naquele instante no
tivesse se lembrado de Celine, no teria reagido.
Celine, sua meia-irm, vendida como concubina. Com ela, Melody, no
aconteceria o mesmo. No seria uma dessas escravas que entregavam at a alma
a qualquer homem. Urna resoluo que, de imediato, os lbios sobre os seus havia
desmentido. Um gemido de impotncia escapara de sua garganta, e, para sua sur-
presa, Paul a soltara. Ela usara, ento, a zanga para esconder o quanto estava
abalada.
Ah, meu Deus, quando que esta viagem horrvel vai terminar?
Melody quase gritou. Qualquer coisa melhor do que esta priso flutuante!
Mas quase trs semanas se passaram, antes que um marinheiro apontasse
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para o horizonte e berrasse:
Terra vista!
Depois disso, veio a subida difcil pelo estreito de Bass e o longo da costa,
at Sidnei. Em guas mais calmas, passaram para outro veleiro, que os levaria a
Wellington. O navio em que tinham vindo voltaria para a Amrica, carregado de l
e outros passageiros, e Melody foi tomada pela tentao de esconder-se a bordo,
voltando com eles. Mas logo desistiu de idia, ao pensar em tia Bia.
Dias depois, Paul chamou-a ao convs do novo veleiro.
Quero que veja o fim da sua viagem explicou, dirigindo-se a ela pela
primeira vez, desde aquela noite.
Agora? Mas ainda nem amanheceu!
Foi por isso que a chamei. No uma ordem, mas eu gostaria que desse
uma olhada no horizonte.
Dominada pela curiosidade, ela obedeceu. O cu estava limpo e claro, com
apenas algumas nuvens esparsas junto gua, e a esfera dourada do sol emergia
de detrs de uma montanha colossal, cujo pico, coberto de neve, brilhava
avermelhado no horizonte.
Que lindo!
o monte Egmont. Seu verdadeiro nome Taranaki, e ele uma das
trs grandes montanhas que viviam, antes de as primeiras canoas aqui chegarem.
Viviam? Como assim?
Melody virou-se para Paul, mas ele tinha os olhos fixos no gigante
adormecido.
Tudo vive... Para uma borboleta, o tempo de vida uma semana, para ns,
em torno de setenta anos. As rochas e montanhas tambm vivem, s que numa
marcha mais vagarosa. Ele baixou os olhos para o rostinho delicado como um
camafeu, no momento animado pela curiosidade e um certo grau de entusiasmo.
Dizem que, para encontrar a paz de esprito, preciso aprender a observar as
rochas crescerem.
Melody percebeu que ele estava tentando lhe dizer alguma coisa, mas
resistiu vontade de pedir "Ensine-me!"
E as outras montanhas? limitou-se a dizer. Voc mencionou trs,
no foi?
Ele apertou os lbios, como se tivesse lido a mente de Melody.
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Projeto Revisora 139

Ah, sim... Seus nomes eram Taranaki, Tongariro e Pihanga. Pihanga era a
esposa de Tongariro, e aparentemente eles viviam muito bem no centro da ilha
North, at Taranaki ter a idia de cortejar Pihanga. Os dois rivais discutiam
violentamente, o que algo digno de se ver, entre montanhas, pois lava e bolas de
fogo so jogadas de um lado para outro. No fim, Taranaki se rendeu e foi banido
da ilha. Foi para o oeste, o mais longe possvel, mas mesmo assim Tongariro no
ficou contente. por isso que, de vez em quando, num acesso de cimes, ainda
joga fogo e cinza de sua cratera, Ngauruhoe. Taranaki no se incomoda, porque
sabe que mais bonito, com seu manto verde e chapu branco, cheio de plumas...
L... Est vendo?
Melody virou-se para fitar as trilhas que desciam pelos lados da montanha,
e Paul pde observar a emoo que, de repente, animou as feies dela. Uma
estranha sensao nasceu em seu peito, uma ansiedade que quase o sufocou.
Maldita! Por que ela tinha de ser to linda, com um ar to inocente... quando
ele sabia que era tudo mentira?
Olhando por cima do ombro, para fazer uma pergunta, Melody levou um
susto ao ver a raiva nos olhos escuros de Paul, que h segundos brilhavam, cheios
de humor.
Daqui a pouco entraremos no estreito de Cook , ele murmurou, num tom
brusco. um trecho difcil, por isso melhor que voc desa e se prepare para
enfrentar tempo ruim.
Claro... Est bem. Obrigada por me trazer at aqui e... e me contar sobre
a montanha.
Paul encarou-a como se fosse dizer alguma coisa, mas depois voltou a
contemplar o cenrio, carrancudo.
Tomara que ele caia no mar Melody murmurou, vingativa, quando
voltava para baixo. Tomara que um vagalho o atinja e o leve para o inferno!
A idia sustentou-a at muito depois de passarem polo estreito Cook. As
serras das ilhas North e South foravam o vento passar pelo canal formado pelo
estreito, fazendo de Wellington uma das cidades mais ventosas do mundo, mas
daquela vez o destino foi bondoso, e apenas um vento de cinco ns carregou o
veleiro at o porto.
Enquanto o navio descarregava a carga e recebia outra, Paul chamou
Melody a sua cabine. Receosa, ela foi, e estacou abruptamente ao entrar e dar
com outro homem l. Paul estava em p, naquela pose que ela odiava, com as mos
nos quadris, as pernas ligeiramente separadas e o queixo erguido. Ele apresentou
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Projeto Revisora 140

o estranho como Martin Weldonf um advogado de Nova Orleans. O homenzinho
examinou-a com ar estranho, e ela no pode deixar de imaginar o que Paul teria
lhe dito a seu respeito.
Sobre a mesa havia um mao de papis, que Paul apontou, dizendo:
Como eu lhe prometi antes, voc estar livre no momento em que pisar
terra firme. Estes so os seus papis de alforria, que a libertam legalmente. E
este ele continuou, num tom mais duro um contrato, no qual voc
reconhece que me deve oito mil dlares e assegura que os pagar trabalhando
para mim em 154 Windhaven. Seu salrio ficar entre cem e trezentos dlares
por ano, dependendo do trabalho que realizar, mais casa, comida e roupas.
Uma remunerao muito generosa! aparteou o advogado.
E se eu no quiser assinar? Melody perguntou, embora soubesse que
assinaria, pois sua honra exigia que saldasse o dbito. Como uma mulher livre, o
que pode me impedir de procurar outro emprego em Wellington?
Os olhos escuros brilharam.
Eu. Se no assinar este contrato agora, voltar para a Amrica neste
mesmo navio. E escrava, como saiu de l.
Vendo o rosto dela perder a cor, ele quase se arrependeu de ter dito
aquilo. Mas queria aquela mulher ligada a ele de qualquer maneira, e, sem uma
palavra, estendeu-lhe os preciosos papis de alforria.
Melody tomou-os e jogou num canto da cabine, passando por Paul para
pegar a caneta e assinar o odioso contrato.
Continuo to escrava quanto antes murmurou, lutando para no deixar
a voz tremer. E o senhor continuar a ser um senhor de escravos, sr. Savage,
at este documento ser rasgado. Girando nos calcanhares, com os olhos
brilhantes de lgrimas, ela correu para fora. O advogado fitou Paul.
O senhor est ciente de que, se ela apelar para um tribunal britnico,
este contrato ser anulado?
Vendo Paul assentir, ele ainda acrescentou:
Ela assim to importante para o senhor?
Paul enrijeceu, mas seu olhar continuou claro e frio.
Obrigado por seus servios, sr. Weldon. Basta assinar como testemunha,
agora, e estar livre de mim.
O homem assinou, recebendo um pagamento mais do que generoso. Ainda
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Projeto Revisora 141

assim, insistiu:
Se quer um conselho...
Se eu precisar de um, mando cham-lo Paul interrompeu, abrindo a
porta para que ele sasse, Tenha um bom dia.

CAPTULO XII

Como Beatrice comentou, Wellington no era Londres, mas a cidade foi
uma agradvel surpresa para elas. Devido ao porto, era mais movimentada que
Auckland, a capital, e possua uma enorme quantidade de lojas, escritrios,
bancos e hotis.
Ao desembarcarem, Beatrice ainda estava muito abatida pela viagem, e
Melody ouviu, com espanto, o "monstro insensvel" a seu lado declarar que
ficariam hospedados na casa de amigos dele, at lady Davenport se recuperar o
bastante para continuar a viagem.
S se no for de navio Beatrice gemeu. Prefiro morrer a passar por
aquilo de novo!
de navio, mas a vapor. E depois, iremos a cavalo. Esta ltima parte a
pior, e a senhora precisa estar preparada. Os Reid, meus amigos, so ingleses
como vocs e vieram para c com o primeiro fluxo de imigrantes, vinte anos
atrs. Vo ficar contentes por ter notcias da Inglaterra.
Tem certeza de que eles no vo achar ruim receber duas estranhas
assim, de repente, sem terem sido avisados antes? Melody perguntou.
No, depois que eu explicar quem so vocs. Melody no pde evitar um
comentrio sarcstico.
Quer dizer que eles mandariam embora duas inglesas sozinhas, mas
aceitaro a sua escrava negra e a tia dela?
As feies de Paul se ensombreceram.
Como qualquer pessoa civilizada, os Reid so contra a escravido, e eu
no quero lhes dar aborrecimentos. Pensei em apresentar vocs como minhas
hspedes, mas eles a receberiam do mesmo jeito se eu lhes dissesse a verdade. A
prova disso que tm uma nora maori, de quem gostam muito. Em todo o caso, se
achar que deve lhes falar do seu sangue, pode falar. Deliberadamente, ele se
virou para Beatrice. Lady Davenport, eu s sugeri que ficassem com os Reid
porque achei que seria mais bem cuidada, na casa deles. Se preferir um hotel,
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posso lev-la a um.
Beatrice sorriu, e Paul percebeu que, apesar da idade e de tudo que
sofrera durante a viagem, ela ainda era uma mulher muito atraente.
Obrigada, sr. Savage, Ser um prazer ficar com seus amigos. Sou-lhe
muito grata pela bondade e considerao.
Paul voltou-se para Melody, e ela teve a impresso de ver um brilho de
triunfo no olhar dele. Corou, dominada pela raiva, e s com muito esforo
conseguiu ficar calada.
Paul, naturalmente, notou, pois j a vira zangada inmeras vezes. Preferiu
no entanto nada comentar, dirigindo-se imediatamente casa dos amigos.
Amy Reid era uma mulher simptica e gorducha, e seu marido, George, um
homem bastante corpulento.
Amy, George Paul apresentou , esta a sra. Van der Veer...
Criada do sr. Savage Melody interrompeu-o. Mas logo em seguida
horrorizou-se com a prpria grosseria.
Paul, contudo, continuou como se ningum tivesse falado:
- ...e a tia dela, lady Davenport. Estamos chegando da casa de meu primo,
na Amrica, e a viagem foi muito difcil. Como precisamos de alguns dias de
descanso, antes de seguirmos para Windhaven...
Voc resolveu nos dar o prazer da sua visita. E fez muito bem
declarou Amy, com um sorriso aberto. Ela no mostrara o menor sinal de choque,
ao ouvir as palavras de Melody.
Melody, no entanto, irritada com a prpria falta de educao, tentou
consertar a situao.
muita bondade sua nos receber, sra. Reid. Somos muito gratas por sua
hospitalidade.
Os inteligentes olhos castanhos da mulher examinaram o penteado e o
vestido elegante de Melody. Amy Reid no era tola e j vira muitos criados antes.
Nenhum deles falava naquele tom melodioso, tinha uma tia nobre ou usava com
tanta naturalidade roupas que teriam custado trs meses de trabalho a seu
marido. Havia alguma coisa muito estranha ali.
Sem demonstrar curiosidade, no entanto, ela tomou a moa pela mo e
levou-a para dentro.
Se so amigas de Paul, so minhas tambm. E virando-se para
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Projeto Revisora 143

Beatrice, que apesar de abatida mantinha-se ereta, fez outro de seus
julgamentos instintivos. Lady ou no, aquela mulher era uma das suas. A
senhora precisa ir para a cama e tomar um chocolate quente. E no proteste, por
favor!
Beatrice, que tambm simpatizara.com a anfitri, dirigiu-lhe um daqueles
sorrisos radiantes, que tantos coraes j conquistara.
Sra. Reid, nada poderia me dar mais prazer do que o que acaba de
propor. Aceito, e com todo o gosto!
Amy estendeu a mo para uma^campainha de lato, sobre um aparador.
Geralmente eu grito confessou , mas hoje, em considerao a vocs,
vou tocar a campainha:
Quase que de imediato a porta de abriu, e uma linda menina maori entrou.
Ao ver Paul, seus aveludados olhos castanhos se iluminaram, e ela correu, ao
encontro dele.
Mister Paul! O senhor voltou: Faz tanto tempo... Espantada, Melody viu a
fisionomia de Paul Savage se transformar, abrindo-se num sorriso franco e cheio
de prazer.
Kia ora, kumara ele disse, e a garota bateu os ps no cho, fingindo
zanga.
Voc no veio! ela reclamou.
Amy, que seguia a cena com ar indulgente, percebeu o espanto de Melody.
Kia ora um cumprimento informal, do tipo "al". Para cumprimentar um
estranho, o certo dizer tena koa. Ani est achando ruim porque Paul a chamou
de kumara, que uma espcie de batata-doce. Ela estava com cinco anos quando
Paul a encontrou, escondida num buraco de kumara, depois que uma tribo rival
atacou a dela e matou todo mundo. Desde ento, ele a chama de kumara. S que
agora ela anda protestando contra isso, pois j uma mocinha de doze anos.
Melody sorriu polidamente, enquanto Paul adiantava-se com a menina.
Estas senhoras vo ficar algum tempo conosco, Ani Amy explicou,
devagar e com clareza. Esta lady Davenport, Ela est cansada e quer se
deitar. E esta a sra. Van der Veer. Ela quer tomar um banho, antes do jantar.
A criana ouviu com ateno e, ao entender, sorriu abertamente.
Est bem, mihi Rid. Venham comigo, mihi Lady e mihi Van. Vou mostrar
seu quarto.
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Ns s temos um quarto de hspedes Amy explicou. Mas bem
grande, pelos padres de Wellington, e acho que no tero falta de conforto.
Est timo. Melody sorriu. Ns lhe agradecemos muito.
Amy correspondeu ao sorriso, gostando de ver sua hspede perder o ar de
defesa.
Esse nosso costume, de receber com alegria um estranho, chamado
pelos maori de manuhiritanga. Numa terra to nova quanto esta, um hbito
agradvel e muitas vezes necessrio. Estamos vivendo uma poca dura, sra. Van
der Veer, e precisamos cultivar a amizade com outros de nossa raa e com os
nativos que se mostram leais. Mas vamos deixar a conversa para depois. Assim
que Ani descer, eu a mando levar sua gua e o chocolate de sua tia. Ela ainda no
sabe muita coisa, mas quer aprender, e uma alegria ensin-la.
A menina completamente mimada Paul comentou com indulgncia.
Eu vou ter de sair para arrumar acomodao, Amy, mas volto para o jantar e com
uma pequena contribuio para a mesa.
George Reid, que at aquele momento permanecera caiado, manifestou-se
esperanoso:
No v me dizer que uma daquelas "guas" que voc costuma
contrabandear!
, sim. Mas no insulte um Arrnagnac, chamando-o de "gua"! O
sorriso que Paul dirigia ao amigo sumiu, quando ele se virou para Melody. Sra.
Van der Veer, quer fazer o favor de me acompanhar at a carruagem?
Seu tom era imperioso, e depois de um rpido olhar para a tia, Melody
obedeceu. A alguns passos da casa, ele parou e segurou- a pelos braos.
Os Reid so meus amigos declarou, baixo e sem rodeios.
So pessoas simples, que no tm iluses de grandeza nem gosto pelo
drama. A sua cena de dama bem-nascida, rebaixada a criada, foi embaraante
para eles, e eu no quero que se repita. Quando chegarmos, a Windhaven, pode
andar descala e cora roupa feita de saco que no me importo. S no esquea
que, se fizer isso, melhor assumir completamente o papel de criada, obe-
decendo e baixando a cabea cada vez que eu me dirigir a voc.
Melody lutou para se soltar, mas ele aumentou a presso das mos, e uma
dor aguda espalhou-se por seus braos.
Vendo-a empalidecer, Paul deu-se conta de que a estava machucando e
sentiu-se mal. Em toda sua vida, nunca agredira propositalmente uma mulher, mas
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Projeto Revisora 145

com Melody experimentava um desejo irracional de causar dor, de subjug-la e
apagar o brilho de desafio dos fascinantes olhos azuis. E o pior era que ela
precisaria desse esprito rebelde e obstinado para agentar a vida que a faria
levar.
Desgostoso com a prpria atitude, soltou-a e deu-lhe as costas.
Eu volto para o jantar. Se no tem amor-prprio suficiente para agir
com discrio, pense na sua tia, que mesmo descala e com roupas de saco
continuaria a ser uma dama.
Por muito tempo, depois que ele se foi, Melody continuou onde estava,
lutando contra as lgrimas de raiva e auto - piedade.
Tomara que a sua carruagem vire e voc quebre o pescoo!
amaldioou, em voz alta.
Um casal de transeuntes fitou-a, boquiaberto, mas ela retribuiu o olhar
com tanta raiva que eles foram embora depressa.
Eu detesto voc! E detesto o seu pas! Melody acrescentou, com total
falta de lgica, j que mal conhecia um ou outro.
A injustia da declarao diminuiu um pouco sua zanga, e ela enxugou os
olhos com as costas da mo, jurando:
De qualquer maneira, voc no vai me vencer! Voltando para dentro,
Melody ouviu Ani e Amy na cozinha.
As duas riam enquanto trabalhavam, com a mesma camaradagem que ela
costumava observar em sua casa, antes da chegada de Luther Hogge. Sentindo-
se mais sozinha do que nunca, indagou-se se seria capaz, algum dia, de aprender a
rir novamente.
Ao entrar na sala dos Reid, ela notara, num canto, um lindo piano. Uma idia
lhe ocorreu, mas logo se lembrou de que criados no tinham o direito de tocar
num instrumento daqueles, a no ser para limpar. Triste, aproximou-se dele,
ergueu a tampa e, certificando-se de que no havia ningum por perto, correu os
dedos pelas teclas. Estava afinadssimo. Ser que... teria coragem?
A tentao foi grande demais. Sentando-se na banqueta, Melody comeou
a tocar, bem baixinho. Como em Londres, a msica lhe trouxe paz, e logo ela
passou para uma pea mais complicada, uma linda mazurca. Executou-a com um
sorriso nos lbios, e no conteve um suspiro, ao chegar ao final.
Que lindo, sra. Van der Veer!
Melody se virou, encontrando os olhos sorridentes de Amy e o rostinho
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Projeto Revisora 146

fascinado de Ani.
Desculpe. Eu no pretendia ser inconveniente...
Amy riu.
Eu que vou ser inconveniente, pedindo-lhe para continuar. George
comprou este piano de uma famlia que estava voltando para Londres, mas eu no
toco. Se Wellington tivesse mais professores, eu j estaria aprendendo, mas o
nico que conhecemos no tem mais horas vagas.
Eu poderia lhe dar... Melody interrompeu-se, embaraada. Acho que
impossvel. A fazenda do sr. Savage longe daqui, no ?
Infelizmente, . De qualquer maneira, obrigada por oferecer. E, se
puder tocar um pouco para ns, enquanto estiver aqui...
Claro! E posso comear agora, com uma msica em homenagem a Ani e
seu vestido verde. Sorrindo para a menina, que se aproximara do piano, Melody
estendeu a mo e puxou-a para junto de si. Uma vez, um rei da Inglaterra se
apaixonou por uma linda garota, com cabelos escuros como os seus. Como voc,
ela usava um vestido verde, e ele comps uma cano para ela. Quer ouvir?
Maravilhada, Ani assentiu.
Aps um rpido abrao na criana, Melody comeou a tocar e a cantar
Green-sleeves. Sua voz era baixa, com um tom rouco que acrescentava uma
enorme sensualidade s palavras da cano. Meio sculo depois, esse tom rouco
seria a alma dos blues, mas naquele momento s expressava saudade e solido, e
foi isso que Paul Savage ouviu, ao entrar.
Em silncio, ele contemplou a cena. A mulher e a garotinha sorriam uma
para a outra, com uma ternura que estava alm de qualquer credo e raa.
Harmonizando instintivamente sua vozinha com a de Melody, Ani se ps a cantar
tambm, dando s palavras um leve sotaque Maori.
Quando a ltima nota morreu no ar, Paul avanou. Melody enrijeceu de
imediato, voltando: a envergar a mscara de polidez que sempre ostentava na
presena dele. Mas a criana correu para ele, tomando-lhe as mos.
Isso foi para mim contou. Mihi Van faz uma linda msica, no acha?
Linda ele concordou, fitando as feies coradas de Melody. uma
pena que eu no tenha um piano em Windhaven.
Amy riu.
J imaginou, levar um daqui at l? Se bem que voc, quando quer,
capaz de tudo!
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Paul foi at o piano e disse baixo, de modo que s Melody o ouvisse:
Qualquer coisa possvel, com incentivo suficiente.
Confusa como sempre, que se encontrava to perto dele, Melody desviou o
olhar, passando-b pelos ombros largos, o casaco de seda cinza, os quadris
estreitos e... virou-se rapidamente para o outro lado, o corao batendo
descompassado. No podia negar o magnetismo daquele homem, mas rejeitou o
efeito que nela causava, murmurando:
No consigo pensar em nenhum incentivo grande o bastante para isso,
sr. Savage.
pena. Podia ter sido bem interessante.
Ele se afastou alguns passos, e Melody levantou-se, indo para o quarto.
No vou me render! murmurou, enquanto se trocava com todo o
cuidado para no acordar a tia. Ele pode ser dono do meu corpo, mas nunca
ser dono de mais nada! Com uma careta para o espelho, colocou seu vestido
mais fechado e prendeu os cabelos num coque sem atrativos. Agora posso
enfrent-lo!
O jantar foi mais fcil do que ela esperava, apesar da ausncia da tia.
Exausta da viagem e ajudada pelo chocolate quente, Beatrice ainda dormia.
Ela pode comer mais tarde, se tiver fome Amy disse. Por enquanto,
o sono o melhor remdio para ela. Sente-se aqui, sra. Van der Veer. Paul, sente-
se na frente dela. E pode tirar o casaco, que j estamos acostumados a v-lo em
manga de camisa.
Com um sorriso, Paul obedeceu, revelando uma camisa de seda branca,
finssima, que realava a beleza de seu trax largo. Estendeu a mo para o vinho,
e seu olhar encontrou-se com o de Melody. De imediato ela baixou a cabea,
zangada consigo mesma por sentir o que sentia.
"Cuidado, Melody!", ela se aconselhou em pensamento. S porque ele no
como os outros homens que voc conhece, no quer dizer que no seja um
brbaro... Um homem cruel, arrogante e insensvel, que toma o que quer e manda
o resto ao diabo.
Mas sua mente traioeira lembrou-a do modo corno ele cumprimentara Ani,
da ateno com que tratara sua tia e da boa vontade que mostrara ao hipotecar o
prprio lar para ajudar o primo adotivo. Mais uma vez, encontrou os olhos dele e
percebeu que eram castanho-escuros, com pontos dourados que refletiam a luz
das velas. Perturbada, virou-se para o lado e puxou conversa com Amy Reid.
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Projeto Revisora 148

Falaram de amenidades e, quando a anfitri perguntou-lhe se gostara do
jantar, Melody elogiou cada prato, confessando, entre risos, sua ineficincia na
cozinha.
Mas tia Bia capaz de fazer o melhor po de milho do mundo. Eu nem
sabia disso, mas quando estvamos em St. Clare, com meu... com Brett...
Ela vacilou, sem saber se estava sendo indiscreta, e Amy interferiu,
preenchendo o vazio como se nada tivesse notado de estranho.
Ah, eu adoraria que sua tia fizesse alguns para ns, quando se levantar.
Mas voc pretende ir embora assim que ela estiver melhor, no , Paul? Ele
concordou.
Preciso ir. Em todo caso, elas vo precisar de um dia para fazer
compras. Nenhuma das duas tem roupas que sirvam para Windhaven, e eu pensei
que voc poderia ajud-las.
Claro, Mas Windhaven vai mudar muito com a presena de damas por l,
por isso no vou deixar que comprem apenas saias soltas e bluses sem forma,
como a sua Martha gosta tanto de usar.
Melody sentiu um inexplicvel aperto no corao ao ouvir tais palavras.
Seria possvel que Paul fosse casado? isso explicaria a insistncia dele para
apresent-la como criada ou mesmo como hspede de Windhaven, em vez de
como escrava. Sem falar nas outras atitudes. Como fora tola achando, que ele
tinha outros motivos para traz-la para a Austrlia, alm dos que alegara!
Vai ser muito bom se puder nos ajudar disse a Amy, sorrindo para
encobrir a estranha frustrao que experimentava. Minha tia e eu fizemos
compras em Nova York, antes de ir para St. Clare, e na poca nem nos passou
pela cabea que pudssemos vir para a Nova Zelndia.
De novo ela teve a impresso de ter se aberto demais, mas logo se
tranqilizou. Afinal, por que no deveriam aquelas pessoas saber como era na
realidade seu precioso Paul? Ele a comprara como escrava e a obrigara a vir
morar naquela terra estranha, do outro lado do mundo...
De repente, Melody lembrou-se da neve que devia estar caindo na
Inglaterra, dos lagos gelados, onde todos iam patinar, e dos passeios de
carruagem aberta pelos parques. Tudo isso se fora. Como tinham ido seu pai, sua
me e Hugh, que cometera o erro de am-la...
Ah, sra. Van der Veer!
Melody voltou ao presente, s. ento percebendo que as lgrimas
escorriam por seu rosto.
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Eu... Desculpe, sra. Reid... Eu... Sei que ridculo...
A Senhora no tem de pedir desculpas por nada.
A preocupao na voz de Amy era sincera, e Melody baixou a cabea,
embaraada.
De repente, eu percebi que faltam s alguns dias para o Natal... Meu pai
morreu h um ano, e minha me, na Pscoa. Meu marido foi assassinado no comeo
deste ano, e este ser meu primeiro Natal sozinha. claro que preciso me
acostumar com isso e entender que tia Bia no pode ficar ao meu lado para
sempre, mas... Desculpe, eu no tinha inteno de deix-la preocupada ou de
estragar sua noite. melhor eu subir. Foi um dia cansativo.
Claro, meu bem.
Amy no pde deixar de reparar na angstia que havia nos olhos azuis,
quando Melody ergueu a cabea. O que a jovem dissera explicava o vestido preto,
mas havia mais alguma coisa ali. E ela descobriria o que era, para resolver o
problema e trazer de volta a cor quele lindo rostinho. Paul Savage podia falar o
que quisesse, mas no a faria voltar atrs em sua deciso!
Voltando o olhar para ele, Amy notou que Paul observava Melody com a
mais estranha das expresses. J a moa parecia estar cora medo dele, quando
perguntou, de olhos fixos no cho:
Posso subir... senhor?
De novo o ar encheu-se de tenso, e Amy estremeceu ao ver Paul
responder, num tom frio como gelo:
Claro.
Agradecendo e desculpando-se mais um., vez, Melody foi para o quarto,
onde se jogou na cama e deu vazo as lgrimas, mordendo o travesseiro para no
fazer barulho e acordar a tia, que continuava entregue ao sono da exausto.


CAPTULO XIII

Como j era de prever depois da confisso de Melody, Amy Reid convidou
seus hspedes para passar o Natal em Wellington.
Voc no prefere passar o Natal em casa, com sua famlia?
Melody arriscou-se a perguntar a Paul, num momento em que ambos
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estavam sozinhos na sala.
Pela janela, ele fitou a baa e as colinas, mais alm.
Eu sempre quero voltar para Windhaven, no importa a poca do ano.
Havia algo na voz dele que fez o corao de Melody se apertar. A tal...
Martha devia ser muito bonita, embora tivesse roupas horrorosas. Ele dissera
que tia Bia continuaria a ser uma dama, mesmo em roupas de saco. Talvez a
esposa dele possusse o mesmo tipo de personalidade, sendo uma dessas pessoas
para quem os trajes no passavam de um ornamento secundrio.
Incapaz de resistir curiosidade, Melody perguntou:
Acha que... Martha passar bem o Natal, sozinha?
Ela est acostumada a dirigir a casa, com ou sem mim. Na verdade, at
acho que ela prefere quando no estou por perto. Mas por que quer saber?
que pensei que... com o Natal sendo... uma data prpria para reunies
de famlia...
Ns no somos parentes dos Red no entanto eles esto contentes por
nos terem aqui.
Melody aproveitou a deixa para abordar um assunto menos perigoso.
Por falar nisso, o que posso dar a eles de presente? Tenho algumas jias,
se bem que nada de grande valor, mas daria uma sra. Reid com prazer, .se
achasse que ela ia aproveitar. O problema que, aqui, ela nunca ter
oportunidade de usar algo assim...
Paul deu as costas janela, sorrindo sem alegria.
Voc deve achar que vivemos mesmo num pas de brbaros! Mas,
acredite ou no, temos bailes quase civilizados, na residncia do governador, e
almoos que so motivo para homens e mulheres se enfeitarem como borboletas.
At o exrcito faz questo de se apresentar bem, e muitas apostas so feitas
quanto ao boto mais brilhante, a bota mais engraxada e o efeito que exercero
sobre as damas da cidade.
Eu vi alguns soldados na rua. H muitos regimentos por aqui? Costuma
haver problemas em Wellington?
H sempre barulho por aqui, desde que os brancos resolveram quebrar o
Tratado de Waitangi, estabelecido em 1840 e que d aos chefes maori o direito
de escolher se querem ou no vender suas terras. O antigo governador, Charles
Grey, sempre respeitou o tratado e providenciou para que os nativos no fossem
enganados. Mas Gore-Brown, o atual governador, no pensa do mesmo modo, e a
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inquietude cresce, de ano a ano. Logo haver uma exploso. Os maori no querem
mais os pakeha, como nos chamam, na Nova Zelndia, e vo pilhar, torturar e ma-
tar para conseguir o que querem. Os membros de seu povo que confraternizam
com os brancos sero tratados pior ainda. para cont-los que a milcia est aqui.
Quanto ao nosso assunto original... o Natal com os Reid... voc tem razo em
achar que Amy no vai usar uma jia. Ela uma mulher caseira, que prefere a
companhia da famlia a uma noite fora. Ficar mais contente com uma echarpe ou
algo assim. Se voc precisar de dinheiro para os presentes, s me dizer que
eu...
- No! Melody protestou, com aspereza. Mas logo em seguida desculpou-
se, embora no estivesse arrependida: Perdo, mas no posso aceitar mais
dinheiro de suas mos. Eu dou um jeito.
Tenho certeza que sim. Mas voc j me deve tanto, mais algumas libras
no faro diferena.
Engano seu, pois elas significariam pelo menos mais um dia de trabalho
nesta terra.
Paul zangou-se, mas foi impedido de responder pela volta dos outros.
Na manh de Natal, no entanto, todos os ressentimentos tinham sido
dispersados pela atmosfera festiva e a insistncia de Amy para que a ajudassem
a decorar a rvore. Mesmo estranhando o clima, pois se encontravam no auge do
vero, Melody foi tomada pela velha excitao. Ela e a tia haviam percorrido as
ruas de Wellington, atrs de presentes. Beatrice vendera um pingente de
brilhantes pela metade do valor, depois que ficara sabendo da recusa de Melody
em aceitar o dinheiro de Paul.
O homem praticamente meu dono Melody se queixara. Eu o
detesto e no quero dever-lhe mais nada!
Aps surpreender algumas trocas de olhares, quando eles pensavam que
no havia ningum observando, Beatrice adquirira idias prprias a respeito do
assunto. Assim sendo, considerava a venda da jia um pequeno sacrifcio e
tambm um prazer, pois poderia expressar sua gratido e simpatia pelos Reid
alm de um respeito cada vez maior por Paul Savage. Em sua opinio, ali estava
um homem de verdade.
Melody, por sua vez, gostaria de jamais ter ouvido falar ou posto os olhos
em Paul Savage. No quarto, aonde fora para se trocar, ela parou diante do
espelho, apenas de anguas, e suspirou. O leiloeiro dissera que uma negra sempre
tinha uma linha azulada sob as unhas, e mamilos escuros. Mas suas unhas eram
brancas, e seus mamilos, rosados, apesar de o maldito livro identific-la como
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negra.
No-pode ser! murmurou, agoniada com a idia.
Melody, no demore! Beatrice chamou, do corredor, fazendo-a vestir-
se apressada.
Na sala, havia um casal desconhecido, que Amy apresentou:
Tarati Reid, minha nora, e nosso filho Henry.
um prazer conhec-la Tarati declarou num ingls cuidadoso. Ela era
dona de um lindo sorriso e olhos maravilhosos, de um castanho aveludado.
Alm de Ani, que era bem morena, Melody nunca vira uma maori to de
perto. Sempre acreditara que os nativos da Nova Zelndia possussem cabelos
crespos e pele negra, como as raas negrides, ou ento cabelos lisos e pele
escura, como os indianos e chineses, mas aquela garota tinha a pele s um pouco
mais morena que a sua e cabelos pretos, ondulados, que iam at a cintura.
Mas voc linda! exclamou, sem pensar. E logo corou, embaraada,
enquanto Tarati explodia numa risada.
bom encontrar algum capaz de apreciar meu tesouro Henry
comentou, sorrindo.
Henare, comporte-se! a moa disse, usando o equivalente maori do
nome dele. A sra. Van der Veer j est embaraada, embora no tenha
motivos, pois muito mais bonita do que eu. Mais corada ainda, Melody
murmurou:
Acho melhor mudarmos de assunto.
O grupo se desfez, e as festividades comearam. A rvore de Natal dos
Reid era bastante incomum, com folhas escuras e lindos botes vermelhos.
uma phutukaw Paul explicou , um tipo de rvore que s d na ilha
Noth e floresce nesta poca do ano.
linda, quase extica... como Tarati. Melody sorriu.
E voc ele replicou, mas sem retribuir o sorriso. Esses olhos azuis
no combinam com seus cabelos.
Paul virou-se abruptamente, ento, deixando Melody confusa e aborrecida.
Naturalmente, ele tinha razo. Uma negra de olhos azuis era praticamente
impossvel... e tambm a Paul essa idia muitas vezes ocorrera, levando-o a
desconfiar de que o registro no livro de St. Clare fosse falso.
Fora essa suspeita inexplicvel e sinistra, que o fizera apressar sua
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partida da Amrica, embora tivesse vontade de dar a lady Davenport o ms que
ela pedira para saldar a dvida da sobrinha. Isso e o fato de O'Shaughnessy ter
comentado que as duas mulheres estavam sendo seguidas. Ele fizera alguma
investigao a respeito, mas nada encontrara alm de rumores sobre um estranho
enlouquecido, assassinato e milhares de dlares sendo gastos numa caada
humana.
Deixando seu olhar sombrio pousar no perfil encantador diante de si, Paul
refletiu: "Um dia eu vou saber, Melody Van der Veer".
Melody procurou evit-lo, depois do que ele lhe dissera, mas, na hora de
abrir os presentes, Amy acomodou-a no sof, diante da lareira, e sentou-se ao
lado, convidando:
Sente-se aqui, Paul, seno no vai dar. Temos poucos mveis e menos
espao ainda.
Paul sentou-se entre elas, enquanto Melody tentava s afastar dele o
mximo possvel. A sala dos Reid tinha realmente poucos mveis, com apenas um
sof e trs poltronas, que j estavam ocupadas por George, Beatrice e Henry,
com Tarati no colo.
A criana, Ani, foi chamada para participar e entregar os presentes, que
eles haviam amontoado num canto. Excitada, ela os levava de um em um a Amy,
que lia o nome do destinatrio. Em seguida, corria para entreg-lo, quase
tropeando nos prprios ps, em sua ansiedade. Quando os pacotes se acabaram,
ela olhou em torno de si e gritou:
Vamos!
Apressada, a menina comeou a desembrulhar os presentes que recebera,
arrancando risos deliciados dos adultos.
Melody no abriu logo os seus. Estava envergonhada de ter forado um
convite para passar o Natal com aquelas pessoas maravilhosas. Eles no eram
ricos, mas mesmo assim tinham se dado ao trabalho de lhe dar uma lembrana.
Vamos, sra. Van der Veer disse Amy, num tom gentil e encorajador.
No pode ver os seus presentes atravs do papel.
Melody corou.
Ento, vou abrir primeiro. Mas vocs no deviam ter se incomodado. J
foi um presente maravilhoso poder participar do seu Natal.
Deparou-se com um delicado pente para prender o cabelo, decorado com
conchinhas, e sua exclamao de prazer trouxe um sorriso feliz aos lbios de
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Amy.
No novo ela explicou a Melody , mas nunca foi usado. Ganhei logo
depois que chegamos Nova Zelndia... de um rapaz tolo, que ainda no tinha um.
meio de vida.
Amy trocou um sorriso com o marido, que completou:
Mas que tinha um gosto impecvel, em matria de mulher.
Melody deu a Amy um vidro de colnia, e Beatrice, um pacotinho de agulhas
e linhas, algo muito apreciado, na Nova Zelndia. No fim, Melody acabou perdendo
o fio da meada de quem dava o qu e a quem. S sabia que no queria abrir o
pacotinho retangular que recebera de Paul. Ele estava muito quieto, desde que
abrira seu presente e o de Beatrice, embora tivesse se mostrado feliz com a
faca de caa que Beatrice lhe dera. Fora menos expansivo, no entanto, ao abrir o
presente de Melody: uma linda caixa de couro, contendo sete navalhas com cabo
de marfim, uma para cada dia da semana.
O presente de Paul fora o mais caro, e Beatrice chegara a aconselhar
Melody a no compr-lo.
No fica bem e voc sabe disso, querida. No presente que deva dar a
um homem que mal conhece.
No presente que uma criada deva dar a seu patro Melody
replicara, sem saber o que a atrara para aquele conjunto de navalhas. S sabia
que o queria para Paul.
Nesse ponto, Beatrice no contivera um suspiro.
Pare de lutar contra voc mesma, Melody. O que est querendo provar?
Que uma mulher independente, que por acaso est sem dinheiro mido?
Convena-se de que somos pobres, minha querida. Muito pobres, apesar das
aparncias. Minhas jias no vo durar para sempre, e nossos vestidos acabaro
sendo reformados inmeras vezes. Ainda bem que por aqui as mulheres no usam
saias muito rodadas. A verdade que a aristocracia no coloniza um pas, s o
toma depois, quando o trabalho pesado foi feito. Mas, se voc faz questo de dar
este presente ao sr. Savage, ento d.
Talvez ele corte a garganta com essas navalhas Melody havia
murmurado, num tom rancoroso. Mas comprara as navalhas. Depois, vendo Paul
apertar os lbios ao abrir o embrulho, quase se arrependera. Porm era tarde
demais.
Ao lado de Melody, uma voz a sobressaltou:
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Vai ficar esquisito se voc no abrir o meu presente, embora eu entenda
sua vontade de jog-lo fora.
Sem jeito, ela voltou realidade e assentiu, evitando olhar para Paul. Sob o
papel estava uma caixinha recoberta de madreprola, que refletia a luz das velas
com uma maravilhosa translucncia.
Foi feita com conchas paua Paul explicou. Os nativos tambm usam
essas conchas para decorar suas lanas e esttuas.
Maravilhada, Melody abriu a caixinha e no conteve uma exclamao ao ver
o pingente de jade verde-escuro, preso a uma corrente de ouro, que ela continha.
Os nativos chamam o jade de "pedra verde" ele murmurou, contente
com a reao dela, apesar dos pensamentos que ainda o atormentavam.!
lindo. Como a caixa. Nunca vi nada assim. Obrigada. Ela o fitou com
um sorriso rpido, meio tmido.
Pot que ele lhe dera um presente to bonito? O que diria a esposa dele,
Martha? No era um presente prprio para uma criada.
Os outros estavam conversando e passando bombons e drinques. George
acabava de abrir a garrafa de bourbon, que recebera de Paul, e Ani passeava pela
sala, carregando a boneca que Melody lhe dera,
Aproveitando o fato de a ateno dos outros no estar neles, Paul disse a
Melody:
No acha que seria agradvel tomarmos um pouco de ar, sra. Van der
Veer?
Melody pensou em recusar, mas, fitando-lhe os olhos escuros, desistiu.
Com um n na garganta, levantou-se e acompanhou-o para os fundos, onde os Reid
cultivavam uma mistura de jardim com pomar. Mas no teve oportunidade de
apreciar a paz e a beleza do lugar, pois Paul disse bruscamente:
Os presentes que voc e sua tia me deram, principalmente o seu,
custaram mais do que vocs tinham quando chegaram. Quero saber de onde veio
esse dinheiro.
Melody corou, sentindo a raiva tomar conta de si.
O dinheiro era de tia Bia, e no da sua conta onde ela o conseguiu.
Como se atreve a fazer uma pergunta dessas? O senhor pode ser meu dono, sr.
Savage, mas no dono de minha tia!
Ela se virou para entrar, mas foi impedida por dedos de ferro, que se
fecharam em torno de seu pulso.
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Se sua tia tem dinheiro, por que deixa que ela o gaste com estranhos,
quando poderia ter comprado a sua liberdade?
Porque eu no tenho tanto dinheiro assim uma voz incisiva respondeu,
atrs deles.
Paul soltou Melody quando viu Beatrice. Com um olhar frio como gelo, ela se
dignou a explicar:
O dinheiro que possuo est na forma de jias, algumas herana de
famlia, pertencentes coleo dos Davenport. Se fosse suficiente, eu teria
comprado com o maior prazer a liberdade da minha sobrinha. Vendi algumas peas
para comprar alimento, em St. Clare, e outras para ter dinheiro para gorjetas,
quando no o encontrei no seu hotel, em Raleigh, e no podia esperar que
voltasse.
Vendeu?! Mas devem ter lhe dado muito menos do que essas jias valiam!
Era uma emergncia, e eu seria muito tola se desse mais importncia a
uma pedra do que a uma vida humana. Quanto aos presentes de Natal, ficaram
por conta de um insignificante pingente de diamantes, com o qual um
insignificante duque russo achou que podia me comprar. Uma bagatela em
Comparao com a hospitalidade dos Reid e a alegria no rostinho de Ani. Est
satisfeito, sr. Savage?
E envergonhado Paul admitiu, com um sorriso embaraado. Minhas
sinceras desculpas, lady Davenport... e sra. Van der Veer. Tambm temos agiotas
em Wellington... e fiquei zangado com a possibilidade de a sra. Van der Veer ter
aceitado a ajuda deles, quando eu j havia lhe oferecido a minha.
Beatrice observou o jogo de emoes nas feies msculas, e seu olhar se
suavizou.
Duvido que tenha sido zanga o que o senhor sentiu, sr. Savage
murmurou. E, antes que ele pudesse responder, voltou para dentro da casa.
Por um longo momento o silncio imperou no jardim, depois Melody virou-se
para tambm entrar. No havia esprito natalino, ali, s recriminaes e
acusaes, frieza e desconfiana.
Sra. Van der Veer...
Os dedos em seu brao mostraram-se gentis, desta vez, mas ela no se
virou para fit-lo.
um presente muito bonito, e eu lhe sou grato.
Ento, ele agora queria ajeitar tudo! Estava com o orgulho satisfeito e
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Projeto Revisora 157

pronto a aceitar o presente. Ela quase disse: "Espero que corte a sua garganta
com ele!", mas decidiu que era melhor no hostiliz-lo.
No foi nada murmurou formalmente. O senhor tambm foi
generoso com seu presente.
Ele se colocou diante dela, bloqueando o caminho, forando-a a fit-lo e
lendo a verdade nos olhos azuis e tempestuosos.
Mas no era o que voc gostaria que eu lhe desse, era?
uma linda pea. Melody desviou o olhar.
Mas...
Um dedo firme curvou-se sob o queixo delicado, forando-a a erguer os
olhos novamente.
Onde vou us-lo, trabalhando numa fazenda perdida no meio do mato?
Realmente, no o que eu teria pedido.
O que voc teria pedido, ento?
Nos olhos dele, ela viu que Paul j sabia.
A minha liberdade... Voc poderia ter me dado a minha liberdade!
Por um instante, ele examinou o rosto delicado.
No posso murmurou, num tom enrouquecido. Por enquanto, no.
Um soluo angustiado escapou dos lbios de Melody. Com um safano, ela
se livrou dele e correu para dentro.
No dia seguinte, partiram para Wanganui, percorrendo a primeira etapa de
sua viagem. Melody estava muito quieta e no mostrou interesse quando Paul lhe
apontou duas fortalezas gmeas, na entrada da pequena cidade. Respondeu
polidamente, mas no mudou de atitude quando ele continuou a lhe fornecer
informaes, contando que a cidade tinha o mesmo nome do rio, que em maori
significava "uma grande extenso de gua".
De Wanganui seguiram viagem para vila de Pipiriki, passando por campos
verdejantes, penhascos rochosos e colinas floridas.
No tem interesse em botnica? Paul perguntou, tentando quebrar a
barreira que a jovem erguera entre eles, desde sua partida da casa dos Reid.
Tenho... ela respondeu, distrada, mal vendo a beleza selvagem em
torno de si.
Esporadicamente, encontravam pequenos grupos de nativos margem do
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Projeto Revisora 158

rio e vislumbravam um acampamento fortificado, que Paul chamava de pa. Ao
contrrio dos maori de Wellington e Wanganui, que estavam sempre sorrindo,
aqueles mostravam rostos tristes e silenciosos. Paul explicou que se ressentiam
da perda gradual de suas terras, em favor dos brancos.
Eles no se importam com o fato de suas terras no estarem sendo
utilizadas. Alegam que so herana de seus filhos e netos, que pelo menos
podero escolher entre cultiv-las ou no. Os fazendeiros, por sua vez, esto
limitados a poucos hectares e se ressentem de ver as reas vizinhas s suas sem
cultivo. Para eles, essas terras esto sendo desperdiadas.
Melody e$a a favor do ponto de vista maori, mas ficou quieta, porque no
queria concordar com nada que Paul apoiasse. Viu que os rostos dos nativos, ali,
eram cobertos por tatuagens azuladas, algumas de desenho muito bonito. Usavam
apenas uma espcie de tanga, e no comeo ela virava o rosto, embaraada, mas
logo sua mente se adaptou novidade e aceitou aquele povo aterrorizante, porm
barbaramente lindo. Como Tarati, eles eram mais claros do que havia imaginado,
com mas do rosto salientes e nariz aquilino, que lembravam a raa rabe.
Contemplando a aparncia feroz dos nativos, Melody no resistiu e acabou
perguntando a Paul:
A milcia estava na cidade para proteger o povo de um possvel ataque.
Mas quem protege os fazendeiros?
Desta vez, o leve sorriso que. Paul costumava exibir, quando a pergunta no
era sria, no apareceu.
Ns nos protegemos. E Windhaven no to vulnervel quanto as
fazendas que voc viu. De um modo geral, as propriedades mais distantes so
bem fortificadas. Dependemos disso e de bons vizinhos, para no mencionar uma
aliana com maoris amigveis, que tm se mostrado incrivelmente leais.
Percebendo o que se passava por trs das feies cuidadosamente controladas de
Melody, ele acrescentou: Eu mentiria se lhe dissesse que Windhaven nunca foi
atacada. J foi e ser novamente. por isso que nos mantemos to bem armados.
Faz dez anos que estamos l e pretendemos ficar muitos mais.
Voc no sente saudade da segurana e civilizao da cidade?
Desta vez, o meio sorriso apareceu nos lbios dele.
No. Comprei minhas terras por treze shillings o hectare, o que foi um
preo relativamente alto, na poca. Mas preferi me endividar a enganar os
nativos, dando-lhes alguns cobertores e outras quinquilharias. Agora, a fazenda
est quase paga e minha, legalmente. Os maori do sul so meus amigos. Eu limpei
Hazel Smith Orgulho Selvagem Clssicos da Lit. Romntica
Projeto Revisora 159

a rea e constru uma casa. Cheguei a manter trinta homens trabalhando l, e no
fim alguns dos mais jovens pediram para ficar. Hoje, sou auto-suficiente em
frutas, legumes e carne. No... eu no trocaria minha fazenda por um emprego e
uma casa na cidade, mesmo que fosse to aconchegante quanto a dos Reid.
Enquanto falava, Paul corria o olhar pelo corpo de Melody, cujas curvas
eram reveladas pelo corpete justo do vestido de seda. Seria ela capaz de se
adaptar quela vida dura, porm infinitamente satisfatria?
Os vestidos que vocs compraram em Wellingon... melhor colocar um
deles, antes de desembarcarmos em Pipiriki. A estrada para Windhaven pouco
mais que uma trilha, longa e montanhosa, e teremos de ir a cavalo.
Por acaso eu ouvi falar em cavalos? perguntou Beatrice, num tom
esperanoso, juntando-se a eles.
Ouviu, sim, lady Davenport. A senhora anda a cavalo?
E muito bem. Fui uma das melhores amazonas de Rotten Row. Beatrice
suspirou. ramos um grupo de mulheres ricas, corajosas, capazes de controlar
os cavalos mais bravios e obviamente no casadas, j que nenhum marido seria
capaz de suportar nosso temperamento. Naturalmente, havia entre ns algumas
que no poderiam ser consideradas perfeitas damas, j que viviam sob proteo
masculina. Uma delas, Catherine Walters, costumava causar um verdadeiro
rebulio no Hyde Park, quando aparecia com um garanho cinza, dificlimo de
controlar.
Beatrice sorriu, sendo correspondida por Paul. Melody, meio embaraada
com o passado da tia, protestou:
O sr. Savage no deve estar interessado nisso, tia.
Ao contrrio, estou muito interessado na vida de vocs, em Londres.
No sei como puderam renunciar a uma existncia to estimulante para irem
ficar com Brett, que, apesar de tima companhia, no poderia competir com o que
vocs tinham.
Olhem! Melody gritou. Que pssaro lindo! Como se chama, sr.
Savage?
Depois de fit-la por um instante, com um olhar que fez o corao dela
disparar, Paul respondeu:
Os nativos o chamam de kotare. um pssaro comum, neste trecho do
rio.
"Voc no me engana", ele pensou. "No quer que eu saiba de alguma coisa
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Projeto Revisora 160

que aconteceu em Londres, mas ainda vou descobrir o que ."
No demorou muito para que chegassem a Pipiriki e transferissem a
bagagem para uma longa fileira de mulas. Os maori daquela regio pareciam mais
hospitaleiros, muitos usando roupas europias, como em Wellington. Brancos de
vrias nacionalidades ingleses, alemes e franceses, aproximavam-se, ansiosos
por novidades.
Para decepo de Melody, Paul recusou um convite para jantar e passar a
noite na cidade. Liberando a tenso que crescera em seu ntimo durante a viagem,
ela exclamou:
No recuse por minha causa, sr. Savage! Prometo que no vou lhe dar o
trabalho de caar uma fugitiva.
Ele apertou os olhos, mas depois, com um gesto de desgosto, deu-lhe as
costas.
Olhe em torno de si, sra. Van der Veer falou, por cima do ombro.
Alm daquelas casas fica o serto, do qual a maior parte nunca foi percorrida por
um branco. H maori amigveis e hostis, l, e o mesmo pode-se dizer da vida
selvagem. parte isso, sou muito conhecido e respeitado na regio, o que reduz
suas chances de encontrar abrigo a quase zero. Se recusei o convite dos Collin,
foi porque quero que a sua preciosa bagagem chegue inteira a Windhaven e que as
minhas provises no sejam roubadas durante a noite por estes selvagens
sorridentes.
Ele virou-se novamente, chegando a ela com duas largas passadas.
Sra. Van der Veer prosseguiu, com as mos nos quadris e as pernas
ligeiramente separadas , a senhora anda fazendo o possvel para esgotar a
minha pacincia. s vezes, at me arrependo de ter dado ouvidos a meu primo. Eu
devia ter deixado que um daqueles fazendeiros suados a comprasse como compa-
nheira de cama!
Melody empalideceu, relembrando o pesadelo que fora aquele leilo.
Arrependido, Paul ergueu as mos para ampar-la quando ela vacilou, e o contato
entre eles trouxe-a de volta realidade. Com um gemido abafado e os olhos
cheios de lgrimas ela se soltou e correu para onde estavam as mulas, ocupando-
se em arrumar uma rdea para controlar o tremor das mos.
Selvagem! xingou por entre os dentes. Juro que voc no vai me
dobrar. Nem voc, nem a sua maldita terra!

CAPTULO XIV
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A viagem foi rpida demais para Melody. Em Windhaven, pensava,
comearia sua vida como escrava, com toda a degradao e humilhao que esta
palavra evocava. Vira os negros trabalhando na lavoura em St. Clare, e imaginava
muito bem o que seria passar o dia capinando, sob o sol quente da Nova Zelndia.
Mesmo assim, jamais poderia aceitar a alternativa oferecida por Paul. No
entendia como ele tivera a coragem de lhe propor que se tornassem amantes,
mesmo vivendo sob o mesmo teto que a coitada da esposa dele!
Apesar do turbilho emocional que a torturava, Melody no pde deixar de
notar a beleza dos lugares por onde passavam, com paredes de pedra cortando
os extensos vales, onde cresciam vrias espcies de rvores, formando um
verdadeiro paraso.
Paul, que por sua vez a observava, comeou a sentir uma pontinha de
esperana. Estaria enganado ou percebia mesmo nela o nascimento de um fascnio
por aquela terra, como acontecera com ele?
Horas depois de iniciarem a viagem, chegaram ao topo de uma colina, onde
a floresta era menos densa, e Windhaven surgiu l embaixo. Paul esporeou o
cavalo para a frente, sem esconder a ansiedade, e o olhar de Beatrice encontrou-
se com o da sobrinha.
Imagino que este seja o lugar que por algum tempo vamos chamar de
"lar" ela comentou. Notava-se que ali as terras cultivadas travavam uma
batalha constante contra a mata, enquanto seus donos estavam sempre na
defensiva contra as tribos maiori hostis. Reparando, porm, na expresso da
sobrinha, ela tornou a olhar, encontrando desta vez a beleza de uma regio
conquistada pelo homem.
A principio, Melody s viu a casa, e seu primeiro pensamento foi o de que
ali uma mulher poderia passar anos e anos de encantamento e prazer. Era uma
construo de madeira avermelhada, de um s andar, rodeada por uma varanda
larga, cujo teto era sustentado por pilares intricadamente esculpidos. Parecia ter
um ptio retangular central, para onde davam seis dormitrios, todos de formas
diferentes, como se tivessem sido idealizados por um arquiteto capaz de
experimentar vrios estados de esprito. Ela nunca vira algo igual, no entanto a
casa combinava perfeitamente com a paisagem e a rvore poa gigante que crescia
a seu lado.
Para o caso de ficarmos sem o poo externo, h outro no ptio Paul
explicou, voltando para o lado delas. Quanto rvore... eu costumava us-la
como abrigo, quando estava construindo minha primeira moradia. Ele apontou.
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Projeto Revisora 162

Aquele cmodo grande, debaixo dela. Eu espalhava visgo pelos galhos maiores
para pegar os pombos que vinham me ver trabalhar, e os ramos menores serviam
de lenha para o meu fogo. Tendo me dado abrigo, alimento e calor, achei que no
faria mal mudar um pouco meus planos para a casa, para incluir a poa.
Paul fez uma pausa, como se estivesse envergonhado de seu
sentimentalismo, depois prosseguiu, indicando urna paliada maior do que a que
rodeava a casa.
Ali moram os criados da casa e os que trabalham na lavoura. Aquelas
cabanas de bambu so chamadas whares. Os maori sempre esculpem e pintam o
batente das portas daquele modo. A construo maior, ao fundo, um lugar de
encontro, um ho-tonui. A cabana do chefe a que fica ao lado.
Em qual delas eu vou dormir? Melody perguntou. Sua voz traiu o medo
de morar entre aqueles selvagens tatuados.
Os olhos de Paul voaram para ela, expressando uma mistura de raiva e
incredulidade.
claro que voc e sua tia vo dormir na minha casa. Por Deus, garota!
Achou mesmo que eu ia jogar vocs duas numa cabana nativa?
Melody ergueu o queixo, dominando o terror que ele sempre lhe causava,
quando estava zangado.
Eu no sabia o que esperar. E ainda no sei. Nem sei por que me obrigou
a vir para este lugar! No sirvo para nada que voc possa ter em mente.
Nesse ponto, eles chegaram paliada, e as enormes portas de madeira
foram abertas. Dominando o aborrecimento para no impressionar mal os que
tinham corrido para receb-los, Paul desmontou e foi ajudar Melody.
Por enquanto ele ordenou baixinho , voc vai dobrar a lngua e
deixar de besteiras. Se depois disso ainda lhe sobrar alguma energia, pode
ajudar Martha na casa.
Envolvendo-a pela cintura, colocou-a no cho. Mas no a soltou de imediato,
enfrentando-lhe o olhar furioso com uma expresso exasperada.
Se voc pensa que est mal, agora, melhor olhar para trs. No sei o
que fez na Inglaterra, mas, cada vez que algum fala nisso, voc mude de assunto
com uma rapidez inacreditvel! Aqui, pode estar mal de finanas, mas mesmo na
Amrica, que a terra da oportunidade, teria dificuldade em ganhar a vida. A no
ser que preferisse alternativas mais bvias, claro. Estou lhe oferecendo, sem
fazer perguntas indiscretas, uma vida nova, com um mnimo de conforto e a
chance de um trabalho honesto.
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Projeto Revisora 163

Melody baixou a cabea, pois no queria que ele visse as lgrimas que
comeavam a nublar seus olhos.
Mas eu continuo escrava!
Voc uma criada com um salrio, capaz de comprar a sua liberdade.
No lute contra o meu pas, sra. Van der Veer.
Se Melody levantasse a cabea naquela hora, teria visto a expresso com
que Paul fitava seus cabelos sedosos, presos na nuca. Mas ela s ergueu os olhos
quando ele j se afastava com passos largos, para supervisionar o
descarregamento das mulas.
Sentindo-se perdida e confusa, Melody encaminhou-se para a casa. Estava
subindo os degraus da varanda, quando a porta da frente se abriu e uma maori
enorme apareceu. A mulher usava uma bata volumosa, que mais parecia uma
tenda, e sorriu abertamente ao v-la, revelando dentes fortes, de um tom
ligeiramente amarelado.
Tena koa, kui, Mita Paul mandou um homem de Wellington, antes do
Natal, por isso eu estava esperando vocs. Sou Maata.
Quando entendeu que Maata era a "Martha" que tanto lhe perturbara os
pensamentos, Melody levou um choque to grande que ficou sem flego. Mal ouviu
o que a mulher disse em seguida, e s quando ela a tocou no brao, fitando-a com
simpatia, foi que conseguiu recuperar o autocontrole.
Eu... eu sou a sra. Van der Veer.
Eu sei a outra replicou num ingls cuidadoso, aprendido com os
missionrios. E aquela lady Davenport. Eu andei praticando, para pronunciar
seus nomes da forma correta. No fcil para ns. Mas a senhora deve estar
cansada, depois de uma viagem to longa. Poderiam ter cortado caminho pelota
Operiki, mas a teriam de vir de canoa.
A confuso de Melody era completa. Parecia-lhe incrvel que estivesse de
p numa varanda no fim do mundo, conversando de viagens com uma gigante
sorridente, que falava um ingls perfeito.
De repente, sentiu algum segurar seu cotovelo, por trs, e foi tomada
pelo pnico. Virou-se abruptamente, encontrando o olhar divertido de Paul
Savage.
Voc est com a cara de quem viu um fantasma ele murmurou,
tentando imaginar a razo daquele medo. Mas como ningum confundiria Maata
com um, deixo a sua palidez por conta da viagem. Vamos entrar. Lady Davenport,
no acha que um clice de cherry cairia muito bem agora?
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Melody permitiu que ele a levasse para dentro, enquanto a mulher maori se
afastava por outra porta.
Maata pode no ser a mais extica das orqudeas Paul comentou ,
mas garanto que a melhor enfermeira, cozinheira, secretria e governanta da
ilha North.
Melody estacou.
Ela sua governanta?!
. Por qu?
Beatrice riu baixinho, pois sabia muito bem o que a sobrinha havia pensado.
Sr. Savage, estou louca para provar o seu cherry, E depois talvez
possamos discutir os papis que vamos assumir em sua casa.
Ele assentiu, levando-as para uma sala espaosa. Melody tinha a impresso
de que os dedos fortes queimavam sua pele, atravs da manga de seu traje de
montar, e foi obrigada a lutar contra a vontade de se aconchegar a Paul.
Libertando-se, olhou em torno de si, ainda ciente do estranho magnetismo que
dele emanava.
A sala era dominada por uma enorme janela, que dava para a frente da
residncia. Venezianas a protegiam do calor, no vero, e do frio, no inverno. Uma
porta com painis de vidro levava a uma estufa, e Melody abriu-a, cheia de
curiosidade. De imediato um calor mido entrou, trazendo junto o aroma
adocicado das plantas. Mais que depressa ela tornou a fechar a porta,
murmurando um pedido de desculpas.
Pode olhar Paul retrucou. Esta a sua casa, agora. Maata quem
cuida desta parte. Ela cultiva ervas medicinais e verduras, e sei que ficar
contente era lhe explicar tudo, se quiser.
Sentindo-se pouco vontade com a gentileza dele, Melody ps-se a
examinar o resto do cmodo, aproveitando para se afastar alguns passos. Era um
lugar bem masculino, com mveis slidos e grandes, alguns feitos a mo e
esculpidos. O sof e as cadeiras, cobertos por almofadas em tons de verde e
marrom, mostrava-se extremamente convidativos, A impresso geral era de calor
e aconchego, paz e tranqilidade.
Cherry!
O qu? Ah, sim... Obrigada.
Os olhos escuros brilharam, divertidos.
Sra. Van der Veer, precisa parar com essa histria de saltar como um
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Projeto Revisora 165

animalzinho assustado cada vez que lhe falo. Se vamos viver,em harmonia,
necessrio que domine essa sua tendncia de fugir ou brigar sempre que me
aproximo.
Melody tomou um gole do cherry para ganhar tempo, e deu graas por Paul
voltar-se para Beatrice.
Quanto a sua posio aqui, lady Davenport, claro que de hspede. E
uma espcie de dama de companhia de sua sobrinha, at achar que no h mais
necessidade disso,
Beatrice inclinou a cabea para o lado, fitando-o com uma argcia que s a
experincia permitia.
Honestamente, sr. Savage, no vejo a menor possibilidade de eu
abandonar esse papel. O senhor v?
Paul no conteve o riso, mas foi sincero.
No, lady Davenport, no vejo.
Quanto a minha posio de hspede, sou-lhe grata, mas no gosto de
ficar inativa. Por isso, gostaria que me dissesse no que posso ser til. Nesse
momento, Maata entrou e ele disse:
Se quiserem conhecer os seus quartos e descansar um pouco, antes do
jantar, s irem com Maata. Temos algumas crianas que ajudam na covinha e
que ficaro contentes de passar para o seu servio. No falam bem o ingls, mas
so corno Ani, ansiosas para aprender. s ter boa vontade com elas.
Melody estava a ponto de perguntar se essas crianas no achariam ruim
servir uma pessoa que estava no mesmo nvel social que elas, quando encontrou o
olhar da tia e desistiu.
Atravessando o ptio, Maata levou-as a quartos vizinhos, nos fundos da
casa.
No temos muitas damas por aqui ela se desculpou, indicando a
decorao simples , mas coloquei algumas flores, para lhes dar boas-vindas.
Melody respirou fundo, contemplando as delicadas florzinhas. No sabia o
que o futuro lhe reservava, mas o presente a trouxera a um lugar perfeito, onde
o ambiente era tranqilo, e as pessoas, amigveis. Tentaria viver um dia de cada
vez, esquecendo-se do passado e aceitando o que o amanh lhe trouxesse.
Ela se aproximou da cama de baldaquino, lindamente esculpida, com um
cortinado de musselina branca. Junto janela havia uma poltrona e um banquinho,
estofados em cores alegres. Mais alm ficava uma cmoda-penteadeira de
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Projeto Revisora 166

carvalho, vinda de muito longe e obviamente cuidada por mos carinhosas, pois
seu brilho s era suplantado pelos das tbuas do assoalho. Que diferena de St.
Clare, onde tudo era malcuidado!
Que quarto lindo, Maata! E as flores, tambm. Como... Como se diz
"obrigada", na sua lngua?
O rosto da mulher abriu-se num sorriso radiante.
Poucos pakeha, como chamamos os brancos, se do ao trabalho de
aprender a nossa lngua, embora achem que devemos saber a deles. Quando
queremos agradecer, dizemos ka pai.
Ka pai ento, Maata. Muito ka pai.
As duas riram da mistura, um som que pareceu estranho a Melody, pois
apenas as lgrimas e a amargura tinham se tornado comuns em sua vida.
Eu gostaria realmente de aprender a sua lngua, Maata. E acho que vou
ter muito tempo, mais do que suficiente para isso.
Pretende passar muito tempo por aqui, mihi Van der Veer?
Ento ele no dissera aos outros! O que deveria ela responder?
Censurando-se por sua covardia, Melody optou pela evasiva.
Vai depender do sr. Savage, Maata, mas acho que no vou embora logo.
timo! Faz tempo que mita Paul no tem uma moa bonita por aqui.
Por alguma razo estranha, essas palavras animaram Melody. Ela tirou a
roupa de montaria e deitou-se no leito macio, enquanto Maata ia cuidar do jantar.
O que significava uma escrava receber um quarto e ser tratada como uma
dama? Se Paul Savage estava tentando esconder o fato de que era ura senhor de
escravos, precisava de um lembrete. Afinal, no muito tempo atrs ele a tinha
censurado por fazer drama, assumindo seu papel de dama transformada em
escrava.
Nesse momento Beatrice bateu na porta e entrou, cheirosa e sorridente
num roupo de seda.
Cus, eu estava mesmo precisando de um banho! Ainda no tomou o seu?
Maata me disse que o jantar ser servido dentro de uma hora. O que vai vestir?
Eu pego para voc. Minhas roupas ento to amassadas que parecem pisoteadas,
mas uma das meninas se ofereceu para pass-las, e Maata disse que posso deixar.
Ela vai mandar outra menina para ajudar voc. O que quer que eu tire da mala?
Algo que aborrea bastante o sr. Savage.
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Ah, Melody! Por quanto tempo pretende continuar com isso?
At ele rasgar aquele contrato! Minha alforria no vale nada, j que foi
trocada por um papel que a mesma coisa que uma nota de venda. A venda de
Melody Van der Veer, ex-escrava, agora criada, cujo salrio est apenas num
papel, pois nunca ver esse dinheiro ou ser livre. Continuo to escrava quanto
antes, e ele no diferente daqueles animais no leilo. No fundo, to
escravagista quanto os homens que condena!
Meneando a cabea, Beatrice voltou para seu quarto. Melody tinha um
longo caminho a percorrer, e se ele seria pavimentado de cascalho ou brilhantes
ainda era um mistrio.
At ela, no entanto, ficou surpresa e um pouco chocada com o vestido que
Melody escolheu. E um rpido olhar para Paul Savage confirmou sua suspeita de
que ele no ia gostar. A jovem havia tirado o fichu de um de seus vestidos pretos,
assim como as anquinhas superiores das anguas, de modo que a saia s comeava
a se abrir na regio das coxas, acentuando-lhes os quadris esbeltos. Acima do
decote profundo, os seios erguiam-se como frutas de Tntalo, e seus cabelos
tinham sido arranjados em cachos soltos, dando uma impresso de beleza e leve
depravao, como o qu? Ou quem?
Beatrice s descobriu quando Melody aproximou-se da mesa, com um
sorriso excessivamente brilhante, e disse:
Eu no tinha certeza do que uma criada deve usar para o jantar...
Savage... mas me lembrei de minha irm Celine e arrumei isto aqui.
Pois ento sugiro que voc se troque novamente Beatrice falou
baixinho. Isto j foi longe demais!
Mas Paul ergueu a mo, num gesto negativo.
No. O jantar est para ser servido, e no quero fazer meu pessoal
esperar. Sente-se, sra. Van der Veer. Controlando a zanga, ele se voltou para
Beatrice. Se quiser conhecer a regio amanh, lady Davenport, temos vrios
cavalos na cocheira. No so do padro a que est acostumada, mas servem bem.
s falar com Maata ou comigo, que um dos rapazes providenciar tudo e lhe
far companhia.
A tenso no rosto de Paul desmentia seu tom despreocupado, e ele ignorou
Melody durante toda a refeio. Ela mal comeu o suculento pernil de porco,
acompanhado de legumes e milho, nem conseguiu tocar o pudim de caramelo. Seu
gesto de desafio aborrecera no s Paul, como tambm sua tia.
Ao final do jantar, eles passaram para a sala de estar, onde Paul se serviu
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de uma boa dose de brandy e tomou metade de um s gole, antes de se jogar
numa das poltronas.
Diga-me, lady Devenport, acha que os abolicionistas da Amrica
conseguiro vencer, no fim? Ou acredita,.como meu primo, que os sulistas tem o
direito divino de manter escravos... especialmente uma escrava to linda quanto a
minha?
Beatrice apertou os lbios.
Acho que sua pergunta de retrica e feita apenas em funo de minha
sobrinha, sr. Savage.
De jeito nenhum ele garantiu, com um sorriso letal. Acho o assunto
interessantssimo. O sul, fora os estaleiros de Nova Orleans e Norfolk, no tem
onde adquirir navios de guerra, caso as coisas cheguem s vias de fato.
Naturalmente, h muita gente capaz de liderar um ataque contra inmeras bocas
de canho, lutando at o amargo fim para no permitir que os negros alcancem a
liberdade. E, tendo Deus do lado deles, como poderiam perder? No, a escravido
parece ter vindo para ficar, e talvez seja melhor eu alterar meus pontos de vista.
Eu vou me trocar, enquanto vocs discutem este assunto Melody
murmurou, desesperada para se afastar de Paul, que estava num estado de
esprito estranho e aterrorizador.
Mas ele a deteve com um gesto.
Para qu? Eu preciso me acostumar, exatamente como meu primo Brett
se acostumou a ter Celine por perto, o tempo inteiro, Tome... Ele estendeu o
copo vazio. Pode me servir de outra dose de brandy. Est bem assim? Precisa
me desculpar, se eu de vez em quando me mostrar meio inexperiente neste jogo.
Beatrice, incapaz de agentar tanto sarcasmo, levantou-se de imediato.
Acho que est aprendendo rpido demais, sr. Savage. S espero que
voc no se esquea de que isto apenas um jogo. Um jogo desagradvel e
perigoso, na minha opinio. Agora, se me d licena, prefiro me retirar. Melody,
no demore muito.
No... no, eu vou logo.
Paul levantou-se quando Beatrice saiu, depois encarou Melody com um
sorriso nos lbios.
Gosto de sua tia. uma pena que ela no retribua o sentimento.
Ento, seu olhar se transformou e os lbios se apertaram. Ele . tornou a
estender o copo, desafiando-a a desobedecer.
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Com a boca seca, trmula, Melody deu-se coma de que estava realmente
com medo daquele homem. No podia desobedecer sem confessar que agira por
despeito, por isso, mordendo o lbio inferior, pegou o copo e serviu-o de outra
dose.
Ele agradeceu ao receber a bebida, examinando-lhe novamente o vestido,
que parecia aborrec-lo em vez de despertar qualquer outra emoo.
No quero que use esse vestido de novo. De maneira alguma! ordenou,
num tom duro. Na verdade, acho que nem deve usar preto. Vou mandar vir de
Wellington algumas peas de tecido. Vermelho uma cor bem apropriada. Alm
de verde, amarelo e azul-safira, claro. Vai ter de aprender a fazer vestidos,
madame, porque no est mais de luto. Voc fez dessa palavra uma brincadeira!
Melody sentiu-lhe o desprezo como um golpe e recuou, plida..
Como se atreve!
Com um gesto brusco, Paul terminou de beber o brandy, foi at a mesa e
colocou o copo sobre uma bandeja de prata. Quando se virou, seus olhos pareciam
flamejar.
Voc pode ter enganado Brett com esse ar de desamparo... a viva
inconsolvel, a rf sem recursos, a dama de alta linhagem necessitada de
proteo... mas eu no a vejo como uma frgil florzinha. A menos que seja uma
orqudea, .espera o caador. Foi por isso que alterou o vestido, sra. Van der
Veer? Pretende fazer de mim um escravos como Brett era um escravo dos
encantos de Celine?
Nesse ponto, o medo de Melody foi superado pela raiva, e ela caminhou
para a porta, declarando ao passar por ele;
No vou ficar aqui para ouvir isso!
Seu ombro foi agarrado por dedos impiedosos, que a puxaram para trs. Os
olhos de Paul brilhavam, e ela sentiu o aroma de brandy no hlito morno, quando
ele ergueu a outra mo e segurou-a pelo brao. Seus olhares se encontraram, e
uma emoo intensa faiscou entre eles.
Voc vai ouvir qualquer coisa que eu queira lhe dizer! E vai fazer tudo
que eu mandar! Voc perdeu o direito de escolher, esta noite, quando assumiu o
papel de concubina. Mas no serei to tolo quanto meu primo. No vou me
envolver emocionalmente com voc, de jeito nenhum. No entanto...
Sem aviso, ele desceu uma das mos para a cintura de Melody, puxando-a
com fora de encontro a si, enquanto usava a outra para segur-la pelo pescoo, o
polegar sob o queixo forando-a a levantar o rosto.
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Projeto Revisora 170

Se quer mesmo se tornar uma escrava de cama, est na hora de receber
algumas lies!
Sem delicadeza, Paul colou os lbios aos dela, punindo-a pela beleza, a
meiguice... e o interesse mercenrio que, acreditava, ela trazia no fundo do
corao.
Como se atrevera Melody Van der Veer a fazer o papel de ingnua, desde
que tinham deixado St. Clare, para agora se apresentar diante dele vestida como
uma concubina?
Sua inteno era insultar e humilhar com aquele beijo, depois deix-la de
lado. Mas os lbios dele eram macios e quentes, e o corpo, colado ao seu, dcil
demais. Sua raiva diminuiu, e o beijo, que comeara to brutal, tornou-se gentil,
quase terno. Seus braos mudaram de posio, trazendo-a ainda para mais perto,
e os seios arredondados pressionaram seu peito, enevoando-lhe a capacidade de
julgamento.
Melody viu-se abrindo a boca sob os lbios que exploravam os seus, sem
oferecer a menor resistncia. Sua mente rodopiou, sob o domnio de emoes
nunca antes sentidas, e um soluo escapou de sua garganta. Foi quando Paul a
soltou afastando-a com tanta violncia que ela quase caiu. Recuperando o
equilbrio por um instante, tocou os lbios inchados com as costas das mos,
fitando-o, trmula.
Respirando pesadamente, Paul escondeu as prprias emoes com a
mscara do desprezo e sorriu com ironia.
Muito bom, sra. Van der Veer. uma aluna e tanto. Sua cena de doce
inocncia muito estimulante!
O choque transformou-se em fria, e Melody esbofeteou-o com toda a
fora que tinha, antes de fugir para o seu quarto. No queria que ele visse as
lgrimas de raiva e humilhao que inundavam seus olhos e impediam que sentisse
a dor latejante no pulso. S quando j estava a salvo e despejava gua numa
bacia, para banhar o rosto e o pescoo, notou o mal-estar. Maldito! At
esbofetear aquele rosto selvagem me faz mal! A zanga tornou-a impaciente, e foi
com uma sensao de frustrao que tocou o sino chamando a garotinha maori
para que a ajudasse a se despir. Foi essa zanga, tambm, que a levou a ser spera
com a menina e jogar o vestido num canto, jurando nunca mais us-lo. Uma zanga
to forte... s podia ser isso... que a manteve acordada quase,a noite inteira,
revivendo o choque daquele beijo... um choque que se transformara, depressa
demais, num ardor por todo seu corpo...

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Projeto Revisora 171

CAPTULO XV

Na manh seguinte, plida e abatida depois de uma noite mal-dormida,
Melody levantou-se e chamou a garotinha maori para ajud-la a se vestir. A
criana entrou hesitante, cheia de temor, e Melody, penalizada, segurou-a pelos
ombros rgidos, pronunciando com cuidado:
Sinto muito. Muito, mesmo!
O medo no abandonou os olhos da menina. Sem saber o que fazer, Melody
colocou as mos entre as dela e inclinou a cabea, tocando os dedinhos trmulos
com a testa. O tremor cessou, e ela levantou os olhos, encontrando o olhar
sorridente da criana.
Na Inglaterra, Melody jamais pensaria em pedir desculpas a um
empregado, mas ali aquilo lhe parecia certo. As pessoas de Windhaven tinham
uma dignidade simples, que as colocava acima da categoria de criados, e foi com
uma nova percepo que ela observou a garotinha mover-se pelo quarto,
arrumando uma coisa e outra.
"Poderia ser to diferente", pensou, com tristeza. "Se ao menos eu
pudesse conhecer esse povo e sua terra sem o peso da subservincia nas costas,
talvez conseguisse deixar o passado para trs e encontrar a paz..."
A caminho da sala de jantar, Melody encontrou-se com Paul Savage.
Impassvel, ele esperou que ela se aproximasse.
Bom dia.
Bom dia ela respondeu, escondendo, inconscientemente, o pulso
inchado.
Voc machucou o pulso. Sinto muito.
Melody corou- de raiva e de vergonha.
Por eu ter me machucado ou por ter sido a causa?
Ele apertou os lbios, e ela lamentou o impulso que a fazia dizer todas as
coisas ofensivas que lhe vinham mente, cada vez que o via.
No vou me desculpar por nada do que fiz ontem noite, sra. Van der
Veer, j que no fui eu que instiguei o incidente.
Ento, no h mais nada a ser dito.
Melody fez meno de seguir seu caminho, mas Paul a deteve.
Espere! Se eu a tratei pior que a uma escrava, voc se comportou pior
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Projeto Revisora 172

que uma dama. O que acha de uma trgua temporria?
A proposta foi to inesperada que ela fitou-o era silncio, querendo
acreditar, mas cota.medo do que poderia haver por trs daquilo.
Um sorriso sem alegria surgiu nos lbios dele.
Tenho de visitar um amigo, depois do caf da manh. Se quiser conhecer
um pouco desta terra, pode ir junto.
Uma ponta de esperana envolveu Melody. Talvez no tivesse perdido
totalmente as chances de uma nova vida, com o que fizera na noite anterior.
Eu gostaria muito de conhecer sua terra, sr. Savage.
Minha terra... Acho que mesmo uma terra selvagem. Outro sorriso,
desta vez com um trao de humor. Mas aposto que sua tia seria capaz de
dom-la em pouco tempo. Na certa, em menos de um ano j teria rosas crescendo
junto porta.
Melody concordou. As Beatrice Davenport deste mundo encaravam a vida
de frente, moldando-a aos prprios desejos.
Meia hora depois, Melody encontrou-se com Paul na varanda. Usava uma
roupa de montaria comprada em Wellington, mas no sabia se era a mais
apropriada, por isso foi com alvio que o ouviu comentar;
Essa roupa est boa para o passeio que vamos fazer, mas para distncias
maiores voc deve usar algo mais leve.
Eles contornaram a paliada e desceram em direo ao rio, cujas margens
estavam cobertas de flores iguais s que Maata usaria para enfeitar os quartos.
Paul ia dando o nome da rvores, arbustos e flores, como um professor numa aula,
e a certa altura Melody atreveu-se a brincar;
Voc deveria ter me avisado para trazer lpis e papel.
O comentrio lhe valeu um sorriso embaraado da parte dele.
H uma pessoa que eu quero que voc conhea. Algum que personifica a
verdadeira Nova Zelndia.
Ele nada mais disse, at chegarem ao topo de um plat acima do rio. De l
ela viu um pa altamente fortificado, com o lado interno protegido pelo riacho
Operiki, que funcionava como se fosse um fosso. Detendo o cavalo, Paul sugeriu:
Espere at ver o meu amigo, para formar uma opinio. A saudao maori
pode lhe causar alguma surpresa, mas no v esbofetear o rosto dele! Por falar
nisso, como vai o seu pulso?
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Projeto Revisora 173

No posso levantar nada pesado, mas est bem.
Sem aviso, Paul segurou o pulso de Melody. Ela encolheu-se, e de imediato
ele deslizou a mo para um ponto mais alto, examinando a regio machucada com
todo cuidado.
preciso amarrar isto com uma tira de pano disse afinai, com uma
expresso enigmtica. Depois eu fao isso.
No preciso.
sim.
Ao entrarem na fortificao, viram-se imediatamente rodeados por
crianas sorridentes, que gritavam:
Kia ora, mita Savage!
Paul transformou-se. Descendo da sela, abraou os corpinhos morenos e
quase nus, sorrindo e conversando fluentemente na lngua deles, irradiando um
calor e um afeto que Melody s o vira exibir com Ani, na casa dos Reid.
Acreditando-se esquecida, ela comeou a desmontar, mas no mesmo instante Paul
estava a seu lado, colocando-a no cho.
Minha grande e barulhenta famlia! Ele sorriu, os olhos livres da
expresso cautelosa com que costumava fit-la. Mas venha conhecer os outros.
Melody no escondeu a surpresa ao ver o homem que se aproximava. No
era to alto quanto Paul, mas quase duas vezes mais corpulento, com ombros
pesados, acentuados pelo manto de penas multicoloridas que iam at o cho. Em
uma das mos trazia uma lana de madeira, enfeitada com penas semelhantes s
que exibia nos cabelos.
Este Te Whatitoaoraki Paul apresentou , um dos maiores chefes
guerreiros dos ukopri. Seu nome significa "Guerreiro Ferido do Norte". Ele o
recebeu em homenagem a um, antepassado, que foi trado e caado rio abaixo
pelo prprio irmo, at que, ferido e mareado por muitas batalhas, foi recolhido
pelos tukopri. Esse antepassado revelou-se um grande guerreiro, apesar das
pernas que nunca cicatrizaram direito, e tomou uma esposa. Tiveram trs filhos;
o mais velho recebeu o nome do pai e isso continuou a acontecer de gerao em
gerao. um pouco estranho para a mentalidade ocidental, mas no h do que
ter medo.
S ento Melody percebeu que tinha a mo na de Paul e apertava com fora
os dedos dele. Puxando-a junto, ele adiantou-se um passo e terminou a
apresentao:
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Projeto Revisora 174

E hoa, esta mihi Van der Veer, da Inglaterra.
O rosto inteiramente tatuado aproximou-se... e aproximou-se...
Tena koe, kui o guerreiro disse. E, sorrindo, pressionou o nariz ao de
Melody, que enrijeceu ao contato.
Muito... muito prazer, senhor. Paul no agentou, caindo na risada.
bom ver voc de novo, Paul. O chefe colocou a mo > enorme no
ombro do amigo. E melhor ainda ver voc numa companhia to linda.
Melody espantou-se com a pronncia educada do gigante e Paul explicou:
Te Whatitoaoraki um dos poucos chefes amigo dos pakeha. Aprendeu
ingls com os missionrios catlicos de Ranana, quando era criana, e foi batizado
de Atami Kateme, ou melhor, Adam Crter. Tem feito muito durante essa
rebelio e considerado um grande diplomata.
Que rebelio?!
Nada que nos preocupe. So s alguns nativos inquietos, sra. Van der
Veer Paul disse, depois de trocar um olhar com o neozelands. E procurando
em torno de si, acrescentou: Onde est Rawiri? No o vi quando cheguei, e no
prprio dele ficar longe da algazarra dos outros.
O chefe apontou com o queixo para uma cabana, um pouco maior que as
outras, no fundo do pa.
Meu sobrinho est em desgraa.
Por qu? Ele levado, mas nunca a esse extremo.
O sangue fala alto. O guerreiro sorriu. Ele brigou com o filho do
missionrio, porque o garoto o chamou de hwhe ke-he sujo.
Paul fitou a cabana por um longo momento, com uma inexplicvel tristeza
no olhar.
Ele errou... David nunca est sujo! Ento, sorriu. Quem venceu?
Rawiri, claro! O filho do missionrio tem s catorze anos e
totalmente branco.
Dizendo a Melody que logo estaria de volta, Paul foi at a cabana e
reapareceu com um garotinho maori agarrado a seu brao.
Melody franziu a testa.
O senhor no disse que o filho do missionrio tinha catorze anos? Esse
menino no tem mais do que oito ou nove!
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Projeto Revisora 175

O chefe sorriu, cheio de orgulho.
Rawiri tem quase oito anos, mas filho de seu pai e no conhece o
medo... ou a derrota.
Chegando junto deles, Paul apresentou:
Rawiri, esta a sra. Van der Veer. Est morando em Windhaven, por isso
espero que voc se comporte muito bem.
Voc tambm mora l? perguntou Melody. E, quando o garoto
assentiu, muito srio, continuou: Rawiri quer dizer David, em maori? Outro
gesto de assentimento. Voc entende ingls muito bem, David. Aprendeu com
os missionrios?
O rostinho do garoto, de feies mais finas que as do tio, se ensombreceu.
Eles me ensinam bastante. Palavras pakeha sobre o Deus pakeha.
Aprendi "ame o seu vizinho" e tambm "dente por dente". Mas o filho do
missionrio no acredita em amar um vizinho maori, muito menos um hwhe
kehe,
O que quer dizer isso, David?
O menino olhou para Paul, que traduziu:
Significa mestio, sra. Van der Veer.
Nem maori, nem pakeha David murmurou, dando de ombros. Mas
quem se importa? Eu aprendi bem as duas lies, por isso arranquei o dente dele,
antes que ele arrancasse o meu. Os olhinhos escuros viraram-se para o tio. E
ainda no estou arrependido!
Paul deu-lhe um tapinha na cabea.
Comporte-se! disse. E para o chefe: Eu no deveria ter ficado longe
por tanto tempo. Precisamos falar da segurana de nossas casas.
Posso ir? David perguntou, mas os homens j se afastavam e s
sobrou Melody para lhe estender a mo. Ele a fitou por um instante, depois, como
que tomando uma deciso, enlaou os dedinhos calejados nos dela, saindo atrs de
Paul e do tio.
De um dos lados do pa, uma trilha levava ao rio, e, embora os homens
conversassem como se estivessem sozinhos, Melody notou que dois guerreiros
fortemente armados os seguiam. Cada um carregava um patu, uma faca de caa
de madeira, alm de um velho mosqueto Brown Bess, do Exrcito Britnico.
Ao fim da trilha havia uma piscina escavada na rocha, onde vrias mulheres
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Projeto Revisora 176

lavavam roupa. Todas cumprimentaram Paul, que foi at elas e voltou com uma
tira de pano, fria e molhada. Melody corou, surpresa por ele ter se lembrado, e
deixou que pegasse seu pulso.
Um acidente? perguntou o chefe.
A sra. Van der Veer estava tentando remover um objeto irremovvel. -
Paul atou o pulso de Melody, depois tirou o leno do bolso e fez uma tipia curta.
Todo cuidado pouco.
Percebendo que ele ria dela, Melody recuou.
No preciso disso!
Mas ele a perseguiu, implacvel, agarrando-a pelo brao.
Eu decido o que precisa. O que voc quer outro assunto. Habilmente,
Paul levantou os cabelos dela e instalou a tipia, fazendo-a estremecer ao toc-la.
Voc est tremendo,
No... que a bandagem est fria.
Ah, quer dizer que a culpa s da bandagem!
Do que mais poderia ser?
Ele a fitou com ateno, mas no acreditou no que viu nos olhos cor de
safira, tomando inocncia por coqueteria.
Tem razo. Uma mulher casada e experiente no tremeria ao toque de
um homem.
Irritada, Melody puxou o brao.
Pode no ter sido um tremor, mas um arrepio. Se no se incomoda, eu
gostaria de voltar para casa o mais depressa possvel.
Ainda tenho alguns assuntos para discutir aqui. Pode ficar e ouvir, ou
passear pela redondeza. H uma cascata muito bonita, ali adiante, E flores, que
pode colher. No esse tipo de coisa que uma dama costuma fazer?
Sem responder, Melody foi se sentar numa rocha, ao lado do sorridente
chefe maori,
Prefiro ficar e ouvir, se no perturbar o senhor disse a ele.
A senhora sempre ser uma perturbao para os homens
o chefe respondeu galantemente, mostrando que aprendera mais do que
um excelente ingls com os missionrios. Como uma vela na noite, sua beleza
dar calor e luz ao nosso encontro.
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Projeto Revisora 177

Ele indicou a Paul que se sentasse do outro lado. E hoa. Vamos
conversar.
Durante a maior parte do tempo eles falaram em ingls, mas de vez em
quando passavam para o maori, deixando Melody perdida. Paul lhe falara do
Tratado de Waitang, assinado pela maioria dos chefes maori, em 1840. Com ele,
cediam rainha Vitria a soberania do pas e, no primeiro artigo, entregavam-lhe
a administrao de suas terras. No segundo, ficava estabelecido que os chefes e
suas famlias tinham o direito de usufruir das terras, at desejarem vend-las, o
que seria feito a um preo justo para ambas as partes. No terceiro, a rainha
estendia aos nativos da Nova Zelndia sua proteo, concedendo-lhe todos os
direitos e privilgios dos sditos britnicos.
Mais de quinhentos chefes tribais assinaram o tratado de boa f, mas ele
fora desrespeitado inmeras vezes, com a chegada de novos imigrantes. Muitas
terras tinham sido compradas por quase nada e revendidas a preos altssimos,
apesar ds esforos em contrrio do governador, sir George Grey. Depois, Gore-
Brown, um homem conhecido por suas idias anti-nativos, fora indicado para
substituir sir George, e a situao piorara.
Como j era de esperar, os nativos haviam protestado, mas com o auxlio da
Marinha britnica e do Exrcito, tinham sido subjugados com mais severidade do
que antes.
Eu sei que lanas de madeira nada podem contra rifles e tropas
treinadas o chefe comentou, com amargura , por isso decidi lutar em p de
igualdade com os pakeha. Ele voltou os olhos tristes para Melody. Pessoas
como Paul so raras, kui. A maioria cega e surda, e s v em mim um selvagem.
Sou um homem que caminha sozinho. Existem muitos, at mesmo em meu prprio
pa, que optariam por obrigar todos os pakeha a deixar a Nova Zelndia.
O chefe tornou a se dirigir a Paul, com uma expresso sombria no olhar.
Chegou a hora novamente, meu amigo. Posso sentir no ar. Se esta moa
no veio para ficar, melhor que v embora logo. Quando a velha religio suplanta
a nova, velhos dios so revividos e os jovens pintam seus corpos para danar em
volta da nui.
Voc recebeu alguma informao ou s impresso, toa Korohekl
Paul perguntou, chamando o chefe de e velho guerreiro.
Um pouco de cada.
Mas a ponto de nos preocupar? Paul insistiu. Chegaram mais trs
regimentos a New Plymouth, alm de muitos voluntrios. Wanganui est equipada
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Projeto Revisora 178

para rechaar qualquer ataque, e, se os maori do norte descerem, os colonos iro
para o sul, esperar l. Isso j aconteceu antes. Acha que devemos fortalecer
Windhaven, como j fizemos em outras ocasies? Operiki e Windhaven nunca
caram.
Melody fitou-o, notando a postura ereta e o brilho belicoso nos olhos
escuros. Paul parecia estar gostando da idia de lutar, o que a fez se lembrar do
modo como ele se adiantara para enfrentar os bandidos em Natchez, e as
histrias contadas por Patrick. Estudou-o com mais cuidado, examinando-lhe as
feies rgidas e a cicatriz esbranquiada. E chegou concluso de que, firme e
orgulhoso de ser o dono daquela terra, Paul Savage estava pronto para lutar at a
morte pelo que era seu.
H mais Te Whatitoaoraki continuou.
Melody percebeu que aquilo tambm fazia parte dos costumes da terra de
Paul, o fato de um amigo no poupar o outro da dor do conhecimento, como ela e
tia Bia tantas vezes tinham se poupado.
O que ? ela perguntou.
O maori sorriu-lhe com simpatia, pensando que ali no havia medo. No era
uma guerra dela, mas os incrveis olhos azuis mostravam uma fora que ele poucas
vezes vira em mulheres brancas. Eram pessoas como ela que aceitavam e se
tornavam uma parte da nova terra.
Percebeu, tambm, que Melody no tinha conscincia dos prprios
sentimentos e que sustentava uma batalha em seu ntimo, por alguma razo
particular. Nessa batalha, ela mostrava a mesma falta de medo com que encarava
a outra, e foi isso que o levou a ser absolutamente sincero.
Vai ficar pior. Os batedores trouxeram notcias de um louco, chamado
Te Ua Horopapera Haumena. Ele est tendo vises, nas quais v o povo maori
recebendo ajuda divina para expulsar os pakeha daqui. de uma aldeia chamada
Tataraimaka, ao sul de Nova Plymouth.
Paul fez um gesto brusco com a mo.
No ameaa. Os tohungas... os padres... sempre chamaram os velhos
deuses para intervir nas batalhas.
Te Ua chama o seu deus, kui, e tem comunicao direta com a Anahera
Kaperiera.
O anjo Gabriel Paul murmurou, perdendo um pouco a tranqilidade.
Se ele usa a velha religio e corrompe a nova, poder nos dar trabalho.
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verdade, uma guerra religiosa sempre pior. Os olhos do maori
voltaram-se para Melody. Estudei um pouco da sua histria, mihWm der Veer,
e sei que houve muitas guerras desse tipo, no seu pas. Eu apoio a rainha
"wikitoria", mas o seu pas j fez muito mal em nome da religio, e muitos de
meus ancestrais foram expulsos de suas terras por causa disso. Quando um povo
acredita que Deus est do seu lado, sua fora aumenta muito. Melody
empalideceu.
O senhor acha que isso vai acontecer com a Nova Zelndia? Vendo que
ele no respondia, ela sentiu o corao se apertar. No h jeito de impedir que
isso acontea?
Os jovens tm a cabea quente, e o tohunga fala bem. Ele incita o
nacionalismo com cantos e bebidas fortes. Virando-se para Paul, o maori
continuou: Mas ainda nos resta um pouco de tempo. Prepara o seu povo como
das ltimas vezes, e eu farei o mesmo. Gostaria que minha filha, que se casou na
famlia de Ngati-Tuwharetoa, viesse para c, com os filhos dela. Mas o lugar de
uma mulher ao lado de seu homem.
Aqui a segurana maior, realmente. Paul virou-se para o garoto, que
ouvira tudo, em silncio. Rawiri, voc vai ficar aqui.
No!
Foi um grito do fundo do corao, e os dois homens trocaram um olhar. Te
Whatitoaoraki assentiu.
Ele pode ficar. Os rebeldes no vo se atrever a atacar o pa Operiki.
Nossa fama j se espalhou por todo o pas.
O garoto levantou-se de um salto, colocando as mos nos quadris e
assumindo uma pose de desafio, que lembrava muito a de Paul.
"Como esses nativos devem am-lo", Melody refletiu. "At as crianas
imitam os modos dele!"
Eu fujo! Rawiri gritou.
Voc vai fazer o que lhe mandam! Paul exclamou, com dureza. Mas
depois, segurando os ombrinhos rgidos, ps-se a falar baixinho em maori.
Quando a criana abaixou a cabea, abraou-a rapidamente e levantou-se. Ele
estar melhor aqui.
Os dois homens trocaram um aperto de mos, e Paul ajudou Melody a se
levantar da rocha. Tinha os lbios apertados, quando a colocou sobre a sela,
batendo-lhe, sem perceber, no pulso machucado.
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Projeto Revisora 180

Melody nada disse, mas, durante todo o caminho de volta, lutou contra o
medo. Seria mais que uma simples rebelio. Havia maldade no ar, algo obscuro e
aliengena. Vinha sentindo isso h semanas, seno no teria se lembrado de
Luther Hogge.
Paul afastou-se assim que chegaram, indo se reunir a um grupo de maori do
lado de fora dos portes, e Melody correu para a casa, chamando pela tia.
Encontrou-a na sala de estar,.lendo um livro:
O que foi? Aconteceu alguma coisa, Melody? Voc est plida!
Resumindo o mximo possvel, Melody contou o que ouvira.
O chefe est certo de que vai haver problema, e o sr. Savage acredita
nele. Tanto que est com os homens agora, para comear o trabalho de
fortalecer a paliada. Vai haver luta, tia Bia, e Windhaven ser atacada.
Precisamos fazer alguma coisa!
Vendo o medo nos olhos da sobrinha, Beatrice tomou-lhe as mos, com
carinho.
Pelo que voc me disse^ isso j aconteceu antes e vai acontecer outras
vezes. Se h algum neste mundo capaz de nos proteger, esse algum Paul
Savage. Eu tambm estou com medo, querida, mas no pretendo morrer nas mos
de alguns fanticos religiosos, no auge da minha vida..Olhe em volta de voc. Este
lugar est firme h mais de dez anos. Foi feito para agentar tudo, menos um ato
divino....e Deus est do nosso lado!
Um leve sorriso surgiu nos lbios de Melody.
Tem certeza? Beatrice fingiu espanto.
Claro! Ns somos inglesas! Ah, assim est melhor... um sorriso! Agora,
vamos ver onde precisam de ns.
Durante os dias que se seguiram, Windhaven conheceu um furaco de
atividade. Cada centmetro da paliada foi examinado e fortalecido, as armas,
checadas e rechecadas, e os animais, trazidos para o seu interior. Paul movia-se
entre o povo com tranqila confiana, dando ordens e encorajando, e Melody se
viu, cada vez mais, a segui-lo com os olhos.
Entre Beatrice e Maata formara-se um lao forte, ainda que inexplicvel, e
naquele momento as duas estavam na cozinha, trocando receitas. Sentindo-se
intil e isolada, Melody ps-se a andar de um quarto para outro. Se pelo menos
tivesse algo para fazer... algum que precisasse dela... Mas era melhor no pensar
nisso...
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Projeto Revisora 181

Ah, quando ser que me verei livre? murmurou, afundando-se numa
das poltronas da sala e apoiando a cabea nas mos.
Quando eu permitir.
A voz suave soou atrs de si, e ela levantou-se de um salto, a tempo de ver
Paul Savage entrar. Ele usava calas justas e empoeiradas, camisa de linho, mida
de suor, e botas. A vestimenta realava-lhe o fsico soberbo, e ela foi tomada por
aquele tremor que sempre sentia na presena dele.
No pode me prender aqui para sempre!
Ele respondeu no mesmo tom suave, mas ela sentiu o quanto, era implacvel
Voc vai ficar, at eu permitir que v embora.
Uma sensao de irrealidade assolou-a. Aquilo no podia estar acontecendo
com ela, uma lady inglesa! O pesadelo parecia no ter mais fim...
Paul olhava pela janela, e ela estudou o rosto magro e queimado de sol, as
emoes num verdadeiro turbilho. Como podia aquele homem lhe causar tanto
medo e, ao mesmo tempo, exercer sobre ela tamanho fascnio? Nunca se sentira
to agitada, principalmente por passar o tempo lutando contra sentimentos que
no conseguia entender.
Paul virou-se, nesse momento, e viu o medo nos olhos azuis e nos lbios
levemente entreabertos. Mas viu outra coisa, tambm, que fez seu olhar se
ensombrecer: um desejo ainda no desperto, do qual ela parecia no ter a menor
conscincia.
Acha assim to intolervel a sua priso? perguntou, quase com
delicadeza.
Melody mordeu o lbio e desviou o olhar. Quando percebeu que no ia
responder, Paul colocou-se atrs dela, fitando os cabelos brilhantes, presos em
cachos bem arrumados, que lhe deixavam a nuca descoberta. Uma nuca to
vulnervel!
Melody enrijeceu ao sentir a mo dele, de dedos quentes e fortes, pousar
em sua nuca e comear a se mover. Queria se afastar, mas a massagem gentil, se
bem que firme, no encerrava ameaa ou paixo, e, lutando contra si mesma, ela
moveu a cabea, procurando melhor acomodar os dedos que a acariciavam.
Seu carcereiro to selvagem assim? Paul continuou. Mas havia em
sua voz uma certeza que a fez corar:
Girando o corpo, Melody levantou-se de um salto, a voz enrouquecida pela
raiva.
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Projeto Revisora 182

Sim... para as duas perguntas! Eu tolero a minha priso porque com
certeza encontraria a morte, se partisse. E tolero o seu toque porque meu corpo
lhe pertence. Mas, no que me diz respeito, sr. Savage, o senhor no dono de
mais nada. Nem nunca ser!
Erguendo a cabea com orgulho, ela passou por ele, quase colidindo com
Beatrice, que entrava.
Estou atrapalhando vocs? Desculpem!
A senhora no atrapalha em nada, lady Davenport. Mas as feies
rgidas de Paul desmentiam suas palavras.
Notando que os dois tinham brigado novamente, Beatrice achou melhor
abordar logo o assunto que a trouxera at ali.
H um garoto maori perguntando pelo senhor. Ele est com Maata e diz
que se chama David.
Com os olhos faiscando, Paul apertou os maxilares.
Droga, eu disse a ele para ficar no pa.
Ele sobrinho do chefe Te Whatitoaoraki Melody explicou tia.
Queria vir conosco, mas o sr. Savage achou que ficaria mais seguro l.
Ento o filho do demnio subiu o rio sozinho. Ah, se eu o pego! Paul
murmurou.
Melody sentiu uma pontada de medo pelo garoto.
Ele desobedeceu, mas mostrou muita coragem, chegando at aqui. Na
minha opinio, merece elogios, no um castigo.
O garoto na certa o encara como uma espcie de deus Beatrice
comentou. Como todos por aqui parecem fazer.
Paul sorriu, aborrecendo Melody ainda mais.
Menos a senhora, no , lady Davenport?
E eu! Melody explodiu. Os outros tambm no o veriam assim, se
conhecessem seu outro lado.
Paul e Beatrice voltaram-se para ela, surpresos com a fria que
demonstrava.
claro que a criana o ama! Eu vi o modo carinhoso como tratou todas
elas, no pa. O povo daqui o v como um ditador benevolente, forte, protetor,
distribuindo justia e sabedoria. Maata me disse que eles at o chamam
deKairahinui, "O Grande Lder". Mas eu sei que isso vai acabar, no dia em que um
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Projeto Revisora 183

deles o desobedecer. Ah, sim, o senhor combina s mil maravilhas com a Nova
Zelndia, sr. Savage! Est rodeado por uma terra que pode conquistar, selvagens
com quem pode guerrear, e nativos que pode dominar. No h amor em seu ntimo,
s paixo!
Melody girou nos calcanhares, com medo de que eles percebessem a
desolao e a auto piedade que suas palavras escondiam.
Vou mandar David para c. Talvez, antes que comece a apanhar, ele
consiga lhe dizer o quanto o ama, para se arriscar vindo at aqui sozinho.
Um silncio atnito envolveu os dois, que ficaram na sala. No fim, Beatrice
acabou dizendo:
No sempre que me desculpo por outra pessoa, mas...
E no deve comear agora.
A zanga dela no contra a sua pessoa, sr. Savage. Melody tem sofrido
tanto que se de vez em quando no explodir, acabar adoecendo. Sua vida virou
de cabea para baixo, e ainda h esse problema da cor.
Ela sabe o que eu penso a esse respeito.
Mesmo assim, uma coisa acreditar que todos os homens so iguais... e
outra, cair do alto da escada para o degrau mais baixo. Melody j foi branca,
livre, membro da aristocracia, e agora uma escrava, de sangue negro. difcil
de aceitar. Beatrice virou-se, quando a porta se abriu. E, falando em
membros da aristocracia, parece que aqui temos um.
Davi parou na soleira da porta, passando o peso de um p para o outro,
cheio de nervosismo.
No bata demais nele Beatrice brincou, pois, pela expresso de Paul,
sabia que isso jamais aconteceria.
Ser que voc nunca vai me obedecer? Paul disse para o menino,
estendendo os braos.
Beatrice saiu quando o garoto corria para se jogar nos braos fortes.
Em seu quarto, Melody fervia de raiva, xingando Paul, o pas, os nativos e
toda a situao. De repente, decidiu que no suportaria continuar ali, que
precisava sair um pouco, nem que fosse para uma curta caminhada. Tirando as
roupas, jogou longe o espartilho uma inveno masculina! e vestiu saia e
blusa.
Junto aos grandes portes havia uma pequena sada, usada para pessoas a
p ou um nico cavaleiro. Dois homens montavam guarda l, e no mostraram
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Projeto Revisora 184

sinais de querer abrir a passagem para Melody.
S vou colher umas flores ela explicou. E aqui em "volta, sem me
afastar mais que alguns metros.
Est bem, ento o mais velho cedeu. Mas no demore muito. Pode
acontecer alguma coisa.
Com o corao aos pulos, Melody saiu. Fiel a sua palavra, no se afastou
muito, curvando-se aqui e ali para colher flores. Insetos zumbiam de um lado para
outro, em meio ao verde, e a quietude do lugar trouxe-lhe uma paz que nem a
msica conseguia.
Uma touceira de minsculas flores azuis surgiu, alguns passos adiante, e
Melody avanou para peg-las. Suas roupas escuras misturaram-se com as
sombras, e ela percebeu que os guardas a tinham perdido de vista. Com um
sorriso nos lbios, saiu atrs de uma borboleta azul, que pousava e levantava vo,
como se estivesse brincando com ela. Pela primeira vez em muitas semanas,
sentia-se feliz e tranqila... at ouvir um barulho atrs de si.
Havia alguma coisa l. Estava sendo acuada, tinha certeza. Ao ouvir outro
barulho de folhas e galhos sendo esmagados, ela olhou em torno de si, a boca
seca, sem ver nada. Um rudo mais forte indicou um galho quebrado^do tipo que
s podia ser causado por um animal grande... ou um homem. S ento, em pnico,
percebeu que a borboleta a levara para o meio da floresta, longe dos guardas.
Tropeando nas razes e vegetao rasteira, correu na direo que achava ser a
da paliada. Houve um grito, e os passos de seu perseguidor ressoaram pelo
ambiente. Um galho bateu em seus cabelos, arrancando os pentes que o prendiam,
e outro rasgou sua blusa, mas ela s conseguia pensar em seu perseguidor. Outro
berro aterrorizou-a ainda mais, e ela gritou ao enfiar o p num buraco e cair.
Estendida no cho, soluando de horror, Melody virou-se, pronta para lutar
at a morte com seu perseguidor... e viu Paul Savage, os olhos negros de raiva, em
p junto dela. Seu soluo de alvio morreu antes mesmo de nascer, quando um
medo frio e terrvel dominou-a. Com as pernas ligeiramente entreabertas, as
mos nos quadris e a expresso mais hostil que a de um selvagem tatuado, Paul
parecia um animal atrs da presa.
Eu deveria lhe dar uma surra de arrancar o couro! ouviu-o trovejar.
O pnico dominou-a, quando percebeu que ele era bem capaz disso.
Por favor... V embora. Eu volto sozinha. s me dizer o caminho.
Erguendo a cabea para fit-lo, ela no fazia idia do quadro que
apresentava, com os cabelos espalhados pelas costas, os olhos arregalados de
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medo e os lbios entreabertos, deixando passar a respirao ofegante. Seu
pescoo e os seios rijos, parcialmente expostos pelo rasgo da blusa, provocavam,
chamando, convidando...
De repente, ela viu a expresso dele mudar. Um rpido olhar para baixo, e
suas mos subiram, tentando tampar, proteger. Mas no momento em que voltou a
fit-lo... No!
Paul inclinou-se, e dos lbios de Melody escapou um grito abafado. Sem se
importar, ele a ergueu nos braos, e ela tomou conscincia do quanto era
desejada. Mantendo-a colada ao corpo, beijou-a, obrigando-a a entreabrir a boca
e movendo a sua com uma sensualidade que a fez sentir o sangue latejando nas
veias.
Incapaz de resistir, Melody no conseguia ver, ouvir ou pensar em nada que
no fosse o homem junto de si, acariciando-a com mos cheias de erotismo. O
beijo tornou-se mais intenso, e ela correspondeu, pois no tinha outra escolha,
no podia fazer nada alm de obedecer ao corao.
Nesse mesmo instante, dedos quentes pousaram em seu rosto, e ela se viu
livre.
Achou mesmo que ia ser violentada? Paul perguntou, sem sorrir.
Confusa, trada pelas prprias emoes, Melody lutou contra a frustrao.
Por que no? No esse, em geral, o destino de uma criada negra? No
v me dizer que nunca tomou uma mulher contra a vontade dela, que s lutou
contra homens, naquela guerra mexicana! Talvez at tenha adquirido um certo
gosto por mulheres escuras, principalmente por uma negra branca, pela qual
pagou um altssimo preo!
Chega! a voz dele estalou como um chicote, implacvel e ameaadora.
Eu nunca violentei uma mulher... Mas no me provoque!
Selvagem!
Tomada por uma mistura de raiva e medo, completamente fora de si,
Melody avanou contra ele, chutando, mordendo e golpeando- E no minuto
seguinte viu-se colada ao peito largo, com os pulsos presos s costas. Abriu a
boca para gritar, mas foi impedida pelos lbios dele, que caram sobre os seus,
duros e brutais, punindo e ferindo.
Chutando, xingando, foi forada para trs at no agentar mais e cair,
com o corpo de Paul sobre o seu. Sem se dar por vencida, tonta de terror,
continuou a se debater.
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Aquilo no podia estar acontecendo! Ah, Deus, no daquele jeito! No podia
lutar, pois, se lutasse, ele a machucaria ainda mais. Lgrimas inundaram seus
olhos e com um soluo rendeu-se ao inevitvel.
De imediato, Paul ergueu a cabea.
Vai se entregar a mim, ento?
Com as lgrimas agora escorrendo pelo canto dos olhos, ela meneou a
cabea, negando.
Mas voc est nas minhas mos. No tem jeito de escapar. Melody no
deu ateno ao tom gentil, s ao seu prprio desespero.
Eu te odeio, Paul Savage! Inacreditavelmente, Paul riu.
Acho que eu seria capaz de fazer com que mudasse de idia, mas agora
no hora. Se bem que quem provoca seus superiores merece uma lio!
Antes que ela pudesse protestar, colocou a boca sua, no"com a
brutalidade anterior, mas com uma paixo sensual, que a fez perder o flego. Ao
mesmo tempo, envolveu com as mos seus seios expostos, acariciando-os
intensamente. Sem poder se conter, ela comeou a se mexer, e nesse momento se
viu solta.
Com um movimento rpido, Paul ergueu-se e, na sua pose caracterstica de
senhor, fitou-a.
Da prxima vez, domine o seu temperamento, ou no garanto que possa
me dominar! Da prxima vez, obedea as minhas ordens e no deixe a paliada, ou
no lhe garanto nem a sua prpria vida!
Melody sentiu-se degradada, humilhada e com medo dele, mas mesmo assim
corou, lembrando-se da sensao do corpo masculino sobre o seu. Incapaz de
encar-lo, inclinou a cabea e tentou juntar os pedaos da blusa.
A voz de Paul soou novamente, s que desta vez estranhamente suave.
Levante-se.
Tocou-a no ombro, mas ela se encolheu, como que apavorada.
No me toque! Por favor, no me toque... Houve um momento de silncio,
depois ele murmurou:
Segure a minha mo, ento. s estender a sua. Tremendo da cabea
aos ps, ela obedeceu, e foi erguida. Com
um gesto calmo, Paul tirou a camisa e colocou-a sobre os ombros delicados.
Vista isso. No quer que os outros a vejam assim, no ? E eu no
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pretendo partilhar tanta perfeio.
Atordoada, Melody permitiu que ele a vestisse e levasse de volta
paliada. Com os cabelos despenteados caindo pelas costas, caminhava de cabea
baixa, olhando para tudo, menos para o homem a seu lado. Ouviu-o explicar aos
outros que um animalzinho a assustara, mas nem assim levantou os olhos. Sua
vontade era morrer ou, pelo menos, desaparecer para sempre.
Na porta de seu quarto, Paul segurou-a pelos ombros e fez com que se
voltasse para ele.
O que que eu vou fazer com voc? perguntou. E depois prosseguiu,
to baixinho que ela achou que estava imaginando coisas: Mas o que que eu
faria sem voc?
J no quarto, Melody jogou-se sobre a cama, horrorizada com o que
poderia ter acontecido. Poderia ter sido torturada, violentada e morta aos
poucos, se um bando de selvagens a tivesse capturado. Se Paul Savage a atacara,
a culpa fora, em parte, sua. S uma vontade de ferro o impedira de possu-la,
levado por suas provocaes, de uma maneira to brutal quanto a que os nativos
teriam usado.
Lgrimas comearam a escorrer de seus olhos, lavando a dor, a vergonha e
o medo, deixando-a fraca e vulnervel. No futuro pensaria duas vezes antes de
exibir as garras.
Mais calma, Melody tomou um banho e penteou os cabelos, prendendo-os
num coque severo. Teria de v-lo na hora do jantar, mas no permitiria que ele
tivesse a menor noo do tremor que a assaltava cada vez que pensava no que
acontecera no bosque.
Plida, mas composta, Melody dirigiu-se sala de jantar. Beatrice j ficara
sabendo do acontecido, por Paul, que tambm a avisara para no deixar a paliada
em hiptese alguma. Insistira tanto nisso que realmente a assustara.
Agora, no entanto, Paul no mostrava mais a fria, resultante do medo, que
o fizera correr para o bosque, desarmado. Conversava de maneira natural,
dirigindo at alguns comentrios a Melody, que se limitava a mexer a comida no
prato e responder por monosslabos. S quando a sobremesa foi servida ela
comeou a se descontrair e teve coragem de erguer os olhos algumas vezes,
quando sabia que a ateno de Paul estava fixa em Beatrice.
Sentia-se infeliz e desorientada. Queria odi-lo, odi-lo intensamente!
Tomada por esse sentimento, ergueu os olhos... e deu com os de Paul. Tentou
desviar os seus, mas parecia paralisada. Mesmo assim, deve ter exprimido seu
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medo, pois ele murmurou, para que apenas ela ouvisse:
Nada teria acontecido l. Nada que pudesse mago-la.
Livrando-se daquela espcie de transe, ela baixou a cabea. Queria
acreditar nele, mas no conseguira se esquecer do modo com que a fitara no fim,
com a pose arrogante de um conquistador. Por isso, envolveu-se num manto de
frieza, que a protegeu durante o resto da longa noite.
Mais tarde, como j era de esperar, outro de seus pesadelos voltou para
atorment-la. Estava sendo leiloada novamente, mas ali, naquela casa. Conseguiu,
porm, escapar das sombras monstruosas que a perseguiam, embrenhando-se na
mata, cujas rvores pareciam vivas e estendiam os galhos fantasmagricos em
sua direo, procurando prend-la. E estava caindo. Caindo sem parar. Em meio
escurido, uma figura encapuzada surgiu. Uma caveira, desta vez. Sem rosto,
procurando agarraria com os dedos ensangentados, cheios de anis. Os dedos de
Luther Hogge. Com a mesma voz macia.
"Estou vivo, Melody. Vivo!".
Ela acordou banhada em suor e tremendo incontrolavelmente. Sabia que
era apenas um sonho, mesmo assim...
Deus do cu, ser que isso nunca mais vai acabar?

CAPTULO XVI

No fim da semana, um grupo de mercenrios chegou a Windhaven. Homens
duros, veteranos de guerra, que nada tinham a perder, a no ser as prprias
vidas. A princpio, Melody preferiu evit-los, mas Beatrice no era dessa opinio.
Certa de que homens eram todos iguais, movimentava-se entre eles com o charme
de sempre, que a todos cativava. Os mercenrios, lgico, no foram exceo.
Onde voc arranjou esse bando de assassinos? ela perguntou a Paul,
durante o jantar.
Em Wanganui. Em todo porto h um bando disposto a vender a prpria
alma, em troca de dinheiro. Entrei em contato com trs que j trabalharam
comigo e eles arrumaram os outros. Paul sorriu. So todos homens ferozes,
mas a senhora os tem na palma da mo, lady Davenport!
porque conheo bem o sexo oposto. J tive muitos homens na minha
vida.
A conversa continuou naturalmente, mas Melody sentia a tenso existente
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no ar. E no conseguia se esquecer do comentrio que ouvira um dos mercenrios
fazer, antes que percebesse sua presena:
Ser que eles vo cortar cabeas?
No o outro respondera. Esse um refinamento europeu.
Lera em algum lugar, que at a chegada do homem branco., os indgenas da
Amrica no degolavam seus inimigos. Durante os conflitos entre ingleses e
franceses, na poca da colonizao, os ingleses tinham oferecido recompensas
peias cabeas dos franceses, que os ndios passaram a trazer aos montes.
Achando, no entanto, repulsivas as pilhas de cabeas que se formavam, prin-
cipalmente no vero, os ingleses decidiram aceitar apenas os cabelos, afirmando
que o escalpelamento era uma prtica bem mais higinica do que a outra!
Melody no conteve um gemido de protesto, quando a mo em seu ombro
insistiu em acord-la.
Venha, mihi Melody. Est na hora.
O que foi, Maata? Ela abriu os olhos com dificuldade. Est na hora?
Eles chegaram?
Mita Paul disse para se levantar, depressa. A fumaa mostra que a casa
de mita Randolph j foi. Se ele teve sorte vai chegar logo com a famlia.
Eu j vou Melody garantiu. Notou, ento, a faca presa cintura da
criada. Maata... essa faca...
No se preocupe com isso. Faa o que mita Paul mandou.
Mas eu preciso saber, Maata! A outra mulher suspirou.
No vou lutar, mas h sete crianas na casa. Conversei com mita Paul, e
ele falou com Te Whatitoaoraki. Se os maori invadirem a casa, e no calor da
batalha os rifles no puderem ser usados... ou no houver mais balas... e tudo
estiver perdido... as crianas de Windhaven no sero usadas numa festa da
vitria, como nos velhos tempos.
No possvel! Melody sentiu nuseas.
Mas no vai acontecer, mihi Van der Veer Maata garantiu, virando-se
para sair.
Rezando a todos os deuses de que j ouvira falar, Melody vestiu-se,
esquecida de anguas, espartilhos e anquinhas. Sem isso, a saia do vestido
amontoou-se no cho. Sem hesitar, ela pegou uma tesoura e cortou alguns
centmetros da barra. Suas formas arredondadas revelavam-se completamente
sob o tecido leve, mas sua esperana era de que, na confuso, ningum notasse.
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Como j esperava, encontrou Beatrice de mangas arregaadas, ajudando a
fazer bandagens e caldeires de uma sopa grossa e quente.
Coma um pedao de po Melody ela instruiu, sorrindo. Ento reparou
na roupa da sobrinha. Deus do cu, o que foi que voc fez?! Mas muito mais
prtico! Acha que pode fazer o mesmo com a minha saia?
Melody sorriu, embaraada.
Tambm mais confortvel. Acha que algum dia vai ser moda?
Nem em cem anos! Imagine, uma moa mostrar tanto de seu corpo! Os
homens ficariam completamente incontrolveis!
Beatrice riu, divertida, antes de sugerir: No quer ajudar o sr.
Savage? Ele est l fora, reforando a defesa, mas vai gostar de uma xcara de
caf, adoado com mel.
Melody pegou um bule de caf no fogo, vrias canecas e um pote de mel.
Havia homens andando de um lado para outro com armas e pedaos de
madeira: Gritos e imprecaes ressoavam, intercalados com ocasionais exploses
de riso. Melody avistou Paul Savage de costas para ela, dirigindo tudo com ordens
concisas e gestos breves. Apertando o passo gritou o nome dele, e Paul virou- se,
de testa franzida.
O que est fazendo aqui?
Ao que parecia, no era bem-vinda. .
Tia Bia achou que vocs gostariam de uma xcara de caf com mel, j
que esto de p h muito tempo.
Ele assentiu, preocupado demais para sorrir ou notar o vestido dela.
S quero caf, sem mel. Aquele grupo ainda no comeu nada. Leve para
eles.
Frases curtas, tensas. Ordens. Mas ela entendeu e obedeceu, sem se
sentir magoada.
O grupo maori, de veteranos de muitas guerras, recebeu-a com alegria.
Dentro em pouco, haviam tomado todo o caf e Melody entrou para pegar mais,
voltando tambm com uma cesta de po. Logo, todos estavam alimentados e no
havia mais nada que ela pudesse fazer. O dia comeou a se arrastar, os minutos
parecendo horas.
Onde se encontravam os inimigos? Todos esperavam, e cada folha que caa
provocava um sobressalto. A postos, os homens seguravam os rifles com fingida
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displicncia. Com os nervos flor da pele, Melody estava to tensa que sentia
vontade de gritar,
De repente, um grito agudo cortou o ar. Ela girou nos calcanhares,
chocada. O grito viera do lado de fora da paliada, da escurido do bosque, e por
um instante todos ficaram imveis, horrorizados. Ento Paul Savage berrou algo
em maori, e os homens se prepararam, os que no tinham rifles dirigindo-se s
pilhas que haviam sido feitas, acompanhando a paliada.
Percebendo Beatrice a seu lado, Melody deu-lhe a mo, nervosa;
Comeou?
Acho que sim, querida. Vamos ver se o sr. Savage quer ajuda em alguma
coisa.
O silncio envolvia tudo novamente, quando Melody correu, com a tia, para
onde Paul estava. Ele franziu a testa, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa,
Beatrice adiantou-se;
Podemos recarregar os rifles ou ficar com os outros na casa. Em todo
caso, quero que saiba que atiro muito bem.
Paul fitou-as, por um momento.
Est bem, lady Davenport, pegue um rifle. A sra. Van der Veer pode
recarregar para ns. Acha que capaz?
A ltima frase foi dita num tom muito diferente das duas primeiras, e
Melody foi dominada por uma onda de raiva.
Vai ser difcil, mas dou um jeito!
Paul se afastou e, frustrada, ela ficou onde estava, at um segundo grito
cortar o ar. Um som quase inumano, que parecia arrancado de um corpo que sofria
as torturas do inferno,
Meu Deus, o que isso?! Paul surgiu ao lado delas.
sempre pior, da primeira vez. E est s comeando, Eles querem ser
ouvidos. Querem que saibamos o que vai nos acontecer; quando formos
derrotados. Trouxeram os prisioneiros que fizeram, em batalhas rio acima. Antes
de atacarem um pa ou um lugar bem defendido como este, torturam pobres-
diabos, para amedrontar o inimigo.
Outro grito chegou at eles. Um grito agoniado, que foi se tornando cada
vez mais agudo. Melody tapou os ouvidos, mas o som parecia reverberar em sua
cabea.
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Ento, das sombras, veio outro som, uma cano estranha, a qual Paul se
juntou, com uma expresso dura.
Riria! Riria! Patu! Patu! Lutem! Lutem! Matem! Matem! No liguem para
isso! Eles tm de ganhar coragem. Windhaven j se saiu bem em outras lutas, e a
prova so os irmos, pais e filhos mortos, que eles tm. Inclinando-se para
olhar por uma abertura na paliada, ele murmurou: No vai demorar, agora.
Vai ser brincadeira Beatrice comentou.
Melody virou-se para ela, incrdula... e viu a mistura de medo e coragem,
nos olhos cinzentos da tia.
No se preocupe, Melody. O sr. Savage vai nos tirar desta situao.
Melody ia responder, quando outro grito veio das rvores. Desta vez, um
agudo "Hape! Hape! Hau!"
Esto pedindo proteo contra as balas dos pakeha Paul explicou,
levantando o rifle.
O ataque, quando chegou, foi chocante em sua rapidez. Sombras, saindo de
sombras, emergiram de entre as rvores, transformando-se em matadores de
pele morena, que gritavam como demnios sados do inferno.
Fogo! berrou Paul, e o tiroteio que se seguiu ensurdeceu Melody.
Ela foi empurrada rudemente para o cho, aos ps dele, e da em diante
no houve mais tempo para pensamentos coerentes, medo ou conjeturas sobre o
que aconteceria, se o inimigo ultrapassasse a paliada. Seus gestos, a princpio
vacilantes, tornaram-se automticos medida que recarregava rifle atrs de
rifle, O ar estava cheio dos gritos dos selvagens, do som de tiros e do ocasional
gemido de um ferido, no interior da paliada. Mulheres maori saram da casa para
lutar ao lado de seus homens, empurrando-os para o lado quando caam, no para
chorar, mas para tomar o rifle e continuar atirando. Mais tarde teriam tempo
para lgrimas; agora, precisavam sobreviver.
Melody carregou e recarregou, procurando no ouvir os gritos de raiva e
de dor. Cada homem reagia a sua maneira. Alguns berravam desafios, enquanto
atiravam, jogavam o rifle descarregado no cho e pegavam outro, j pronto. Uns
poucos matavam calados, quase com frieza. Ela comeou a trabalhar sem pensar.
Os rifles esquentaram, ferindo a pele delicada de suas mos, mas ela nem sentiu.
Ento, de forma to repentina quanto havia comeado, o ataque cessou, e
os inimigos desapareceram nas sombras.
Graas a Deus, acabou! Melody gritou. Paul meneou a cabea.
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Eles esto s se reagrupando. Sabem que Te Whatitoaora-ki acha-se a
caminho e precisam nos liquidar antes que ele chegue. Os guerreiros de Te
Whatitoaoraki so conhecidos por sua ferocidade, e nenhuma tribo tem coragem
de enfrent-los. Estendendo a mo para Melody, ele ajudou-a a se levantar e
falou a Beatrice: Seria perda de tempo pedir-lhe para entrar, no , lady
Davenport?
Total perda de tempo, sr. Savage.
O prximo ataque ser pior, e os meus homens esto cansados, com
pouca munio.
Eu sei o que est querendo dizer, mas, tanto eu quanto minha sobrinha,
preferimos ficar aqui.
Paul virou-se novamente para Melody, tomando-lhe as mos e examinando
as palmas feridas.
Eu deveria lhe dizer para entrar e tratar dessas mos, mas preciso de
voc aqui. Acha que agenta?
Pelo tempo que precisar de mim.
Melody sentiu um n na garganta. No sabia mais se estava falando da
batalha, ou se seu corao respondera por ela. Algo em seu olhar encontrou eco
no dele, e, num tom muito diferente, Paul avisou: S vai lhe trazer mais
sofrimento.
Eu sei. E aceito.
O burburinho de vozes e a viso do campo de batalha desapareceram. S o
contato de suas mos e de seus olhares era real. Paul abriu a boca para dizer
algo... mas foi impedido por um grito demonaco do tohunga, incitando seus
guerreiros a matar.
O pesadelo recomeou. E recomeou o frentico recarregar de rifles, o
no pensar, o cheiro acre de plvora, suor e sangue, enquanto homens caam de
ambos os lados. medida que os defensores enfraqueciam, os atacantes
aproximavam-se da paliada, e alguns foram empurrados para o alto, para se
agarrarem ao topo. Uma cabea apareceu junto a Melody, pesadamente tatuada,
e um rifle atirou. Com o sangue jorrando do ferimento na testa, o selvagem foi
jogado para trs e atingiu o cho como um boneco de trapos.
Gritando seu dio, outro guerreiro saltou a paliada, caindo a menos de
trs metros deles. Sua faca apontou para a garganta de um jovem maor, mas um
grito alertou o rapaz e, desesperado, ele girou o corpo. A faca o atingiu no brao,
quando Paul j descarregava o rifle no peito do atacante. De imediato Beatrice
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Projeto Revisora 194

aproximou-se, aplicando um torniquete que parou a hemorragia em segundos.
Com a testa porejada de suor, o rapazinho sorriu, grato, e apontou para o
rifle, cado a poucos passos.
Nada disso, mocinho. melhor ficar com este Beatrice declarou,
tirando o revlver da cintura de Paul.
O garoto aceitou, mas s depois de receber um sinal afirmativo de seu
lder.
Lealdade e coragem. Seus homens so muito bons, sr. Savage.
Ele sorriu, envolvendo as duas mulheres com um olhar que causou, em
Melody, aquele estranho tremor.
Minhas mulheres tambm so timas lutadoras, lady Davenport.
Mais nativos fanticos conseguiram ultrapassar a paliada, e a luta
recrudesceu, com os homens brigando frente a frente. Dois nativos pularam
entre eles, gritando as preces de desafio morte costumeiras de sua tribo, mas
desta vez seu deus no os protegeu. Melody viu a cabea de um deles se
espatifar, atingida por um tiro de Beatrice. O outro avanou para Paul, de faca na
mo, o rosto contorcido pelo dio. Paul levantou o rifle, mas no ltimo momento
percebeu que estava descarregado e soltou-o. Com inacreditvel frieza, com as
mos ao lado do corpo, permaneceu como estava, s se movendo quando parecia
no haver mais tempo, para agarrar o atacante pelo brao armado e pux-lo em
direo ao cho. Ento, girando o corpo, caiu sobre o nativo, tirando a faca da
bota e enterrando-a nas costas do homem. O sangue esguichou, mas Paul, sem um
segundo olhar, levantou-se e limpou a lmina na perna da cala, que j estava
imunda.
Rifle!
Ainda chocada, Melody entregou-lhe uma arma carregada. A carnificina
parecia no ter fim, medida que um selvagem aps o outro ganhava o topo da
paliada. A maioria no passava desse ponto, caindo ali mesmo.
Melody jogou outro rifle para Paul. Ele mirou... atirou... e nada! Era o
descarregado, que ela acabava de lhe dar! Pnico! Um terror cego! Mas ento os
olhos dele, muito brilhantes, estreitaram-se num sorriso.
Calma, menina!
O mundo girou, e Melody sufocou um soluo, grata por aquele instante de
compreenso. Sem perder tempo com desculpas, passou-lhe outro rifle. E tudo
continuou.
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De repente, um corpo pintado ergueu-se acima da cabea de Paul. O grito
de Melody fundiu-se com o som do disparo e o gemido do homem, ao cair. Ela
virou-se e, sem acreditar, viu a lana enterrada na cintura de Paul. Gritos de dio
encheram o ar, obrgando-a a voltar a ateno para os atacantes. O rifle! Aban-
donando o homem cado, recarregou a arma, mirou-se num rosto pintado e...
descobriu que ele se transformara no rosto de Luther Hogge.
No! No!
Mirou de novo, mas no conseguiu controlar o horror e a nusea. Suas mos
tremiam, molhadas de suor, seu corao batia forte, e ela no conseguia mais
respirar.
No posso! Meu Deus, me ajude!
Paul gemeu e fez meno de se levantar. Cora uma das mos apertava o
ferimento, com a outra procurava a arma. No havia censura em. seu olhar. Mas
ento, com uma exclamao de desespero, caiu para trs, inconsciente.
Melody gritou por ele, antes de atirar, vencendo a barreira de terror que a
tinha paralisado. O estrondo foi seguido por uma dor aguda, quando o rifle recuou
de encontro a seu ombro. Ela atirou de novo. No em seres humanos, pois no
podia pensar neles assim, mas nos assassinos de Paul. . De muito longe, outro som
encheu o ar. Uma cantilena mortal, feroz, que sobrepujava o rudo da batalha: o
canto da guerra dos guerreiros de Te Whatitoaoraki. O tohunga, que liderava os
atacantes, o ouviu, e com um grito de raiva ordenou que seus homens recuassem.
Mas eles tambm j tinham ouvido o canto aterrorizaste e corriam para as
rvores, buscando proteo.
Do sul, como anjos vingadores, com o rosto pintado de azul e o corpo
brilhante de leo, vieram os ferozes guerreiros de Te Whatitoaoraki. Melody foi
tomada por uma onda de alegria, e junto com os outros defensores da paliada
deu-lhes vivas. Os portes foram abertos permitindo que eles entrassem. Seu
lder procurou Paul imediatamente, descendo do cavalo e ajoelhando-se ao lado do
amigo. Melody e Beatrice ainda no tinham se atrevido a toc-lo, embora ele
recuperasse a conscincia de tempos em tempos.
Para a casa o maori ordenou, chamando trs de seus homens para
ajudarem a carreg-lo numa maca improvisada.
Correndo ao lado, Melody perguntou:
Ele vai sarar, no vai? Por favor, diga que ele vai sarar!
O homem fitou-a, depois assentiu.
Paul um homem forte. A ferida feia, mas ele vai viver.
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Projeto Revisora 196

Paul foi colocado sobre uma das mesas da cozinha, que j mostrava
manchas de sangue de outros feridos. Maata ajudou o chefe maori a cortar-lhe a
camisa, enquanto Beatrice ia buscar bandagens e uma das garotas providenciava
gua quente. Um jovem guerreiro trouxe sua faca, cuja lmina tinha ficado, por
vrios minutos, entre as brasas do fogo.
Te Whatitoaoraki pegou-a, derramou sobre ela um pouco de aguardente e
disse a Melody:
Voc no tem de ficar.
Eu vou ficar.
Melody quase se arrependeu de sua deciso, quando o chefe abriu ainda
mais o corte e retirou a lana. Paul gritou, mas os homens o seguravam, e ele caiu
de novo na inconscincia. A perfurao ia de um lado ao outro, passando junto s
costelas e, nas costas, quase atingindo a coluna. Havia sangue por toda parte; a
camisa, a cala dele e a mesa estavam ensopadas.
Te Whatitoaoraki gritou uma ordem, e outro homem adiantou-se, com uma
segunda faca, vermelha de calor. Melody tapou a boca, lutando contra a nusea,
ao entender o que ia acontecer. Os guerreiros seguravam Paul, de novo com os
olhos abertos, com mais fora, e o chefe encostou a faca no ferimento. Houve um
barulho sibilante, depois um cheiro adocicado, repulsivo... e Paul gritou... uma
vez... antes de cair para trs. Imediatamente uma das mulheres cobriu a ferida
com uma mistura de ervas e mel. Por cima foi colocada uma bandagem, depois uma
camada de musgo e outra de algodo. Os guerreiros levantaram, no, o homem
inconsciente, e o chefe envolveu-lhe o trax com uma grossa bandagem.
Levantando a cabea. Te Whatitoaoraki encontrou o olhar chocado de
Melody.
Vou mandar um dos meus homens buscar o mdico pake-ha. Isso vai
estancar a hemorragia at ele chegar. Pode ser que demore dois ou trs dias.
Dois., ou trs... dias?!
Ele no vai morrer. Tem a fora de dez homens. Mas o curativo tem de
ser trocado todos os dias, e algum deve ficar ao lado dele.
Paul gemeu, agitado, lutando inconscientemente contra a dor. Sua agonia
era tanta que Melody no resistiu e tornou-lhe o rosto entre as mos
machucadas.
- Por favor, no se mexa! implorou. Fique quieto, Paul. Quietinho...
Calma... Calma,.. Isso! Devagarinho...
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Projeto Revisora 197

Vezes sem conta a voz hipnotizante repetiu a mesma coisa, tentando
atingir os recessos da mente de Pau!. De repente, ele estremeceu e a agitao
cessou. Melody estava to concentrada no que fazia que no ouviu o murmrio das
pessoas em volta.
Beatrice no conteve um sorriso ao notar o olhar atnito do chefe maori.
Eu a via fazer isso com o garanho doente do pai, quando ningum mais
tinha coragem de se aproximar dele. Ao que parece, todos os garanhes so
iguais.
O chefe retribuiu o sorriso, cheio de alvio.
Ela vai ficar com ele?
Desta vez, Melody ouviu. Sem desviar os olhos de Paul, confirmou:
Vou. Ele j pode sair daqui?
Ela seguiu os homens e, quando Paul j estava acomodado na cama, pediu
ao chefe:
D para os seus homens me trazerem uma das poltronas da sala de
estar?
D.
Voc precisa dormir na cama, de vez em quando Beatrice declarou.
Os trs trocaram um olhar de compreenso, e naquele momento formou-se
entre eles um lao que ia muito alm da amizade. Sorrindo, o chefe colocou a mo
sobre o ombro de Melody.
Precisamos de mais mulheres pakeha como voc, neste pas.
Por um instante ela teve vontade de lhe contar que viera contra a vontade,
mas no teve coragem de denunciar Paul como escravagista.
Elas viro, um dia. Muito... muito obrigada por tudo. Ns lhe devemos
nossas vidas.
Paul meu amigo, meu irmo e muito mais. justo que eu tome conta do
que dele. Como ele tomaria do que meu, se fosse preciso. Agora, preciso ir.
Em suas mos, sei que meu irmo estar bem cuidado.
Melody corou, emocionada.
S espero corresponder a sua confiana.
Ele saiu em silncio, levando os outros, e ela. ficou sozinha com o homem
ferido. sua mente, voltaram as palavras que ele tinha dito, no campo de batalha.
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Projeto Revisora 198

"Preciso de voc aqui. Acha que pode ficar?" Naquele momento, algo mudara em
seu ntimo, para nunca mais voltar a ser como antes. Mas ela aceitara a mudana,
e agora confirmava suas prprias palavras:
Pelo tempo que voc precisar de mim, Paul... Por todo o tempo que
precisar de mim...

CAPITULO XVII

Era quase meia-noite, e Melody cochilava na poltrona. Maata e Beatrice
tinham trocado as roupas sujas de Paul, tambm os lenis, e ela agora estava
sozinha com ele. De repente, um leve barulho acordou-a, levando-a para junto da
cama.
H horas Paul vinha tendo calafrios, debatendo-se entre a vida e a morte.
Suava sem parar, com as feies abatidas contorcidas pela dor, apesar de ainda
estar inconsciente. Compressas de gua fria conseguiam lhe trazer algum alvio, e
Melody pegou uma delas, inclinando-se para banhar-lhe gentilmente a testa, como
fizera inmeras vezes antes.
Vendo uma mancha de sangue no curativo, foi dominada pelo medo. O chefe
maori avisara que isso aconteceria, e que a mistura de ervas e mel, usada para
prevenir infeces, tinha de ser trocada diariamente. Talvez fosse melhor fazer
isso logo, em vez de esperar pela manh.
Ficou em dvida por alguns momentos, mas, como Paul se aquietara, achou
melhor no perturb-lo e voltou para a poltrona.
J era madrugada, quando Maata a acordou.
V comer, agora. Eu fico com ele. Melody sorriu, meneando a cabea.
No estou com fome, mas gostaria de me lavar um pouco. D para
levarem gua ao meu quarto?
Vou falar com as meninas. Depois, quer trocar o curativo de Paul?
Quero. Vou chamar minha tia, tambm. Melody hesitou por um
instante, depois perguntou: O que h neste preparado que foi colocado na
ferida dele?
Muitas coisas. Plantas que meu povo usava, muito antes de os pakeha
chegarem. Um dia eu lhe ensino. Minha me me ensinou. A sua no?
No, Eu nunca tive tempo para essas coisas, enquanto minha me era
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Projeto Revisora 199

viva. Morvamos na cidade, e comprvamos remdios em farmcias. Mas, se voc
puder me ensinar, eu quero aprender. Acho que vou precisar muito disso, num pas
duro como este. Vendo, ento, a expresso da outra mulher, Melody se
desculpou: No, no estou dizendo que seu pas ruim! Nada disso. Mas h
guerras constantes, os mdicos so poucos e demoram a chegar, o mato est
sempre tendo de ser contido, h animais selvagens e doenas que atacam a
colheita...
Exausta, infeliz, ela estava beira das lgrimas. Mas suas queixas no
tinham nada com a verdadeira razo de sua angstia, que comeara ao ver a lana
enterrada na carne de Paul.
Ah, Maata! Melody soluou, afinal, abraada enorme maori. Diga
que ele no vai morrer! Diga, por favor!
Psiu! Mita Paul vai ficar bom! Voc s est cansada e com medo.
Com dificuldade, Melody conseguiu se controlar.
Desculpe, Maata. Estou bem, agora. E claro que ele vai se recuperar. O
mdico no demora, e ns vamos manter a ferida limpa.
Mais tarde, no entanto, quando, com a ajuda de Beatrice, as duas tiraram o
curativo velho, Melody sentiu um aperto no corao. A cauterizao havia
transformado a pele numa crosta vermelho-escura, que se rachara nos locais por
onde o sangue ainda saa. No havia, porm, sinais de infeco, e a pele em torno
s estava um pouco quente,
timo Beatrice exclamou, ecoando a satisfao de Maata.
Mas ainda est sangrando Melody protestou. J no devia ter
parado?
Est bom Maata afirmou. Agora, vamos colocar outra bandagem.
Ignorando os gemidos do ferido, a maori recolocou a mistura de ervas e
mel. Depois, enquanto Beatrice e Melody o levantavam, envolveu-lhe o trax com
tiras largas de pano, feitas com pedaos de lenol.
Pronto! ela disse, no fim. Podem soltar esse grandalho.
Melody, que at aquele momento s estava preocupada com o curativo,
percebeu que abraava, com fora, o peito musculoso. O cheiro da poo de
ervas, misturado ao cheiro de Paul, chegou-lhe s narinas, e ela foi tomada por
uma vontade insana de lamber-lhe a pele suada. Beatrice, no entanto, j dava a
volta para ajud-la a acomodar Paul nos travesseiros.
Voc est precisando de um descanso, querida. O que acha de tomarmos
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Projeto Revisora 200

um pouco de ar l fora, agora?
No, obrigada, tia Bia. Estou bem aqui.
Beatrice lanou um olhar para o corpo bronzeado sobre a cama e assentiu
sabiamente.
... Na sua idade e na sua posio, eu tambm estaria. Vamos, Maata.
No somos mais necessrias aqui.
Mas minutos depois ela estava de volta, os olhos, normalmente serenos,
revelando uma expresso preocupada.
Melody, David desapareceu! A moa ergueu-se de um salto.
Tem certeza? J olharam em todos os lugares? A senhora sabe como
so as crianas. Ele pode estar se escondendo.
Faz mais de uma hora que todos esto procurando por ele. Ningum o
viu, desde a batalha... E depois, com o ferimento do sr. Savage, ningum pensou
nele. Maata disse que os mercenrios se ofereceram para procurar fora da
paliada, mas no esto em seu territrio e podem cair numa emboscada.
Doente de medo, Melody procurou se lembrar de quando vira o menino pela
ltima vez.
melhor falar com Te Whatitoaoraki decidiu, afinal. Ele tio de
David e conhece bem a regio.
Tem razo. Vamos mandar alguns homens atrs dele.
No, tia. A paliada no deve ficar desprotegida. Paul disse que os
selvagens podem voltar, e com Te Whatitoaoraki longe...
Antes que Melody dissesse o que pretendia, Beatrice comeou a protestar.
Mas ela insistiu:
Eu vou, tia. Vou com um dos homens, de canoa. Maata disse que esse
sempre o jeito mais rpido de se viajar.
Mas voc nunca pisou numa canoa!
E espero nunca mais ter de pisar ela retrucou, j correndo para a
cozinha.
E eu? O que que eu fao?
Era a primeira vez que Beatrice revelava insegurana, e Melody sorriu.
Fique com Paul... e reze para todos os deuses que conhece! A reao de
Maata foi igual de Beatrice, mas Melody tambm no lhe deu ouvidos, pedindo
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Projeto Revisora 201

dois cavalos para ir at o ancoradouro.
Se quer a companhia de um dos guerreiros, leve Henare. Ele forte
como um touro e digno de confiana numa emergncia Maata aconselhou
finalmente. Mas por que est fazendo isso por um garotinho hwhe kehel
Para mim, no faz diferena ele ser mestio, branco ou maori. Est
perdido, e o sr. Savage gosta muito dele. Onde encontro Henare? No quero
perder tempo.
Est bem. Kia tupato i koe... Kia ora koe. Tenha cuidado, e boa sorte.
Minutos depois, na companhia de Henare, Melody cavalgava em direo ao
rio. L, quase perdeu a coragem, pois a canoa, uma das trs escondidas debaixo
de um denso arbusto, parecia frgil demais para agentar seu peso, quanto mais o
ao gigantesco maori.
Percebendo seu medo, Henare levantou-a nos braos e colocou-a na
embarcao, seguindo-a com uma agilidade incrvel. Ela fechou os olhos,
agarrando-se com fora s laterais da canoa e s voltando a abri-los ao chegarem
ao pa Operiki.
Com sua corneta de concha, Henare tinha dado avisos repetidos de sua
chegada, durante a viagem, e Te Whatitoaoraki os esperava junto margem, com
Rawiri ao lado.
David! Graas a Deus voc est bem Melody gritou, descendo da
canoa e correndo para abraar o menino. Ficamos preocupadssimos! Nunca
mais repita isso! Primeiro, sobe o rio sozinho, depois desaparece, quando a regio
est cheia de inimigos! O que queria que pensssemos? Ainda segurando o
garoto pelo brao, ela se voltou para o chefe maori; Desculpe. Eu estava morta
de medo por ele, e a viagem de canoa...
Eu que lhe devo um pedido de desculpas. Um de meus homens trouxe
Rawiri de volta, sem saber que Paul estava ferido, mas certo de que o garoto
ficaria mais seguro aqui.
Ferido?! David gritou. Voc no me disse que ele tinha sido ferido!
Ele vai ficar bom, David Melody interferiu. Precisa de cuidados,
mas o mdico j est a caminho. melhor voc continuar com seu tio.
No! Eu vou voltar! S fico se vocs me amarrarem. E mesmo assim eu
dou um jeito de fugir!
Melody hesitou. David era bem capaz de fugir, mesmo. Aquela era uma
terra estranha e selvagem, que parecia desenvolver em seus filhos um esprito
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Projeto Revisora 202

rebelde.
Est bem decidiu, afinal. Mas prometa que no vai pr o p para
fora da paliada!
Te Whatitoaoraki no escondeu o alvio, quando o garoto prometeu.
Vou providenciar uma escolta para vocs. No creio que o inimigo ainda
esteja aqui, mas bom prevenir. Outra coisa: viajem depressa. Quanto mais
rpido chegarem a Windhaven, menor o risco. Ele fez um sinal, chamando
alguns homens. Estes so meus melhores guerreiros. A senhora uma mulher
extraordinria, sra. Van der Veer, e merece o melhor.
Melody baixou os olhos, agradavelmente surpresa. Os homens colocaram no
rio uma canoa mais longa que a de Henare e ajudaram-na a embarcar.
Henare vai atrs de vocs Te Whatitoaoraki avisou. Ele um bom
homem e um grande guerreiro.
Eu estou cercada por grandes guerreiros. Sinto-me como uma rainha
com seu corpo de guarda.
O chefe sorriu.
Uma rainha com o corao de um guerreiro. Haere ra. Assim que
chegaram a Windhaven, David correu para junto de Paul, sem se lembrar de
agradecer escolta ou cumprimentar Maata- Beatrice, indo ao encontro da
sobrinha, viu as linhas de tenso que lhe marcavam a boca e aconselhou:
V para a cama, querida. O sr. Savage est dormindo agora, e s lhe far
bem seguir o exemplo dele.
Depois. Primeiro, quero ter certeza de que ele vai ficar bom. Alm disso,
os outros feridos precisam da senhora e de Maata. Eu s vou me lavar e trocar
de roupa, e volto para ficar com ele.
Enquanto isso, vou ver se consigo tirar o garoto daqui. No quero que ele
perturbe o paciente.
Rapidamente, Melody tornou um banho e colocou roupas limpas. Seu
pescoo doa devido tenso, quando voltou para junto de Paul. O quarto estava
na penumbra, e ele dormia tranquilamente, exalando um hlito adocicado por
entre os lbios entreabertos. Obviamente, Maata tinha lhe dado alguma poo
para dormir.
Viva, Paul! Melody ordenou baixinho. Mas que droga, voc tem de
viver!
Lgrimas de exausto caram de seus olhos, mas ela as secou com um gesto
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Projeto Revisora 203

raivoso, sabendo que ainda tinham um longo caminho a percorrer.
Mais um dia e uma noite se passaram, antes que o mdico chegasse. Ele
examinou o ferido e conversou longamente com Maata, antes de admitir que
pouco tinha a fazer.
Gostaria que todos os meus pacientes tivessem amigas to sbias e
enfermeiras to devotadas. O que vocs esto pondo na ferida melhor que
qualquer coisa que eu possa receitar, embora muitos de meus colegas no
concordem comigo. Mas eles tratam queimaduras com gordura, que frita a carne
j queimada. E no me ouvem, quando tento transmitir a eles os conhecimentos
dos nativos. No entendem que preciso se adaptar ao meio ambiente e no lutar
contra ele, principalmente numa terra como esta. Um sorriso iluminou as
feies cansadas do mdico. Bem, agora preciso ir. O paciente s tem de
repousar. E a senhora tambm, sra. Van der Veer, a menos que deseje adoecer..
Ah, eu estou bem, doutor.
Como h vrios dias no se olhava no espelho, Melody no tinha idia do
quanto se achava abatida. Sua nica preocupao era Paul. S sairia do lado dele
quando estivesse completamente recuperado. Estava cansada, sim, mas lutaria
com todas as suas foras contra o cansao. Uma sensao bem diferente da que
tivera com Brett, quando cuidara dele. Por qu? Como pudera se sentir irritada,
at mesmo entediada, cuidando de um, e estar disposta a sacrificar sua aparncia
e sua sade para cuidar do outro?
Beatrice, no entanto, resolvera tomar uma atitude em relao sobrinha.
Assim que o mdico se foi, chamou Maata e entregou-lhe um vidrinho, dizendo:
Maata, quero que coloque uma colher disto no leite da sra. Van der Veer,
esta noite, e duas no do sr. Savage. Mas ela no pode saber, seno no vai tomar.
Maata concordou, aliviada. Mihi Melody estava mesmo precisando dormir. E
lady Bia tambm.
Lady Bia e ela eram iguais, Maata refletiu. Ambas tinham passado por
muitas coisas, amado muito, e nenhuma tinha filhos. Ela considerava isso uma
grande tristeza, mas lady Bia parecia no se importar, dando todo seu amor para
a sobrinha. Era evidente que as duas mulheres carregavam grandes pesos, que
no partilhavam com ningum, nem mesmo uma com a outra. Por qu? E o que
seria?
Maata vira o jeito com que mihi Melody muitas vezes se dirigia a mita Paul,
mas os olhos da moa exibiam outros sentimentos. Seria possvel que ela no
fosse to sbia quanto as garotas maori, que sabiam se queriam ou no um
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Projeto Revisora 204

guerreiro assim que o viam?
Naquela noite, Beatrice foi se deitar cedo, depois de tomar uma xcara do
delicioso chocolate de Maata. Melody tambm tomou uma xcara, que a deixou
logo sonolenta, e Paul ingeriu algumas colheradas. Quando a casa ficou em
silncio, Maata foi ao quarto do patro e no conteve um sorriso, ao ver a moa
dormindo a sono solto, na poltrona. Cuidadosamente, despiu-a, deixando-a apenas
com as roupas de baixo, e levou-a para a cama.
uma cama grande demais para um s murmurou, sem entender por
que aqueles dois nunca a tinham partilhado. No tm juzo, esses pakeha. Uma
moa bonita. Um homem atraente. Mas no fazem amor, no se fazem felizes, no
fazem bebs. No tm juzo!
Colocando um cobertor sobre os dois, Maata saiu, contente com o que tinha
feito.
O sol j ia alto, quando Melody acordou. Tinha a boca seca e as plpebras
pesadas, mas o canto dos pssaros persistia, l fora, e ela acabou abrindo os
olhos. Levou vrios segundos para descobrir que no estava na poltrona, e mais
alguns para perceber que estava na cama, ao lado de Paul. Seu corpo enrijeceu, e
uma exclamao horrorizada escapou-lhe dos lbios. Tinha os ombros nus, e o
cobertor escorregara durante a noite, revelando sua roupa de baixo... e o brao
forte sobre sua cintura!
Virando a cabea, devagarinho, Melody respirou, aliviada. Deitado de lado,
com o ferimento para baixo e as feies relaxadas, Paul dormia profundamente.
Durante alguns segundos ela permaneceu como estava, tomando conscincia de
que seu sono fora obtido por droga e de que Maata a despira, colocando-a na
cama. Mas s conseguiu sentir gratido pela mulher.
S que agora preciso me levantar e vestir, antes que algum entre... ou
Paul acorde!
Melody j sabia que a crise passara. Paul tinha a testa seca e um ar
descansado. A febre se fora, e a qualquer momento ele recuperaria a conscincia.
Murmurando uma orao de agradecimento, ela se levantou... e, com um gemido,
Paul protestou, segurando-a pelo ombro. Xingando o inimigo tatuado em sua
mente, ele se ps a lutar, ainda que de maneira fraca.
Fique quieto! A sua ferida... Por favor, fique quieto!
Melody sussurrou. Ento, deixando a inibio de lado, abraou o homem
adormecido, tranqilizando-o com meiguice at sentir os msculos tensos
relaxarem de encontro a seu corpo.
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Projeto Revisora 205

De imediato tentou se afastar, mas Paul virou a cabea, encostando a boca
curva de seus seios. Em um momento estaria acordado, mas ela no resistiu
tentao de ficar como estava. O calor dos lbios dele atingia sua pele como
fogo, espalhando-se por seu abdome e mais abaixo, de onde uma estranha sen-
sao ameaava tomar conta de todo seu ser. O que estava fazendo era contra
sua educao, contra todos os ensinamentos morais que recebera, mas mesmo
assim ela persistiu, fechando os olhos e arqueando-se ligeiramente de encontro
aos lbios firmes.
Ah, Paul! Se pelo menos eu fosse branca...
Lgrimas inundaram seus olhos, e com um suspiro ela se deslizou para longe
dele, preparando-se rapidamente para enfrentar o dia. J vestida, foi para a
cozinha.
Maata ergueu os olhos quando ela entrou, fitando-a com ar cauteloso.
Mihi Melody dormiu bem?
Muito bem, graas a voc. Mas no futuro, se no se importa, prefiro me
despir sozinha. Incapaz de agentar a expresso de culpa da maori, Melody
riu. Eu deveria estar zangada com voc. No fica bem uma moa acordar na
situao em que eu acordei. Graas a Deus o sr. Savage ainda est dormindo!
A mulher sorriu.
Me diga uma coisa: por que vocs no dormem juntos, o tempo todo? Iam
dormir muito melhor.
O sangue subiu ao rosto de Melody.
que... no ...
Est bem, eu sei. De qualquer maneira, voc est muito magra. No
mulher suficiente. Precisa se alimentar mais. E pode comear agora.
Examinando as curvas generosas da maori, a garota meneou a cabea.
Nunca serei to mulher quanto voc, Maata, por isso uma fatia de po e
uma fruta me bastam. Depois, vou levar um suco de frutas para o sr. Savage.
Lady Davenport j acordou?
Eu dei a lady Bia a mesma coisa que dei a voc e mita Paul. Ela me causa
medo, quando fica brava, e eu acho que vai ficar muito brava!
No se preocupe, direi uma palavrinha a seu favor. Depois de uma refeio
leve e vrias xcaras de caf, para clarear a mente, Melody voltou para junto de
Paul. Deixando o suco de frutas sobre a mesinha de cabeceira, ela abriu as
cortinas, para que o sol entrasse.
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Projeto Revisora 206

Paul acordaria sozinho? Ou ela se atreveria a cham-lo?
Aproximando-se da cama, Melody no conteve uma exclamao
horrorizada. Paul tinha virado de bruos, deixando mostra as costas riscadas
de cicatrizes. Cicatrizes antigas, esbranquiadas, mas de origem inconfundvel.
Paul Savage fora brutalmente chicoteado. No era de admirar que ele tivesse
mudado, como dissera Brett, e se esquecido de como rir.
Quase contra a vontade, Melody cedeu tentao de passar os dedos
pelas marcas mais fundas. E exclamou baixinho, cheia de sentimento:
Ah, Paul! Quem foi que lhe fez isso?
Cavalheiros sulistas, todos eles.
Melody saltou para trs, os olhos voando para o rosto dele. Com
dificuldade, Paul comeou a se virar, e ela, numa reao instintiva, correu para
ajud-lo.
Mas, como uma longa histria e nem um pouco agradvel ele
prosseguiu , no vou aborrec-la com isso.
No vai me aborrecer? Como acha que estou me sentindo, agora?
Paul sorriu, flexionando os msculos do abdome para test-los.
Provavelmente como uma enfermeira, cujo paciente recusou a
medicao. Essas feridas so antigas, Melody, e no creio que tenha cura para
elas.
Nenhum dos dois percebeu que ele a chamara pelo nome de batismo, e,
numa vozinha fraca, ela perguntou:
No quer me deixar tentar, pelo menos?
A expresso de Paul mudou sutilmente, dando a seu leve sorriso um ar de
ferocidade.
Muito bem, beije-me!
No! Melody recuou, assustada, tremendo, como sempre, na presena
dele. Sua ferida...
Implacvel, ele virou a cabea para o outro lado.
V embora, ento.
Mas ela no podia fazer nem uma coisa nem outra, e foi se sentar ao lado
dele, na cama.
Sua ferida repetiu, sem convico.
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Projeto Revisora 207

Ele a fitou, prendendo-lhe o olhar. Devagarinho, ergueu uma das mos e
segurou-a pelo ombro. Depois, subiu mais um pouco, removendo um dos grampos
que prendiam os cabelos negros.
Se meu brao continuar erguido assim, vai doer. Inesperadamente
Melody sorriu. Ergueu os braos, inconsciente da sensualidade de seu gesto, que
expunha a curva do pescoo e a beleza dos seios. E tirou, ento, o resto dos
grampos, permitindo que os fios escuros e sedosos lhe cassem sobre os ombros.
Pronto! Assim seu brao no di, no mesmo? Paul fitou-a, sentindo
algo se agitar em seu ntimo.
No respondeu, num tom enrouquecido. Meu brao no di.
Segurando uma mecha dos cabelos sedosos, Paul puxou-a para si. Melody
estremeceu, mas no protestou, e ele a beijou, de leve, nos lbios, nas faces, nas
tmporas, no queixo e, de novo, nos lbios.
A batida na porta fez com que Melody se sentasse abruptamente,
tentando arrumar os cabelos despenteados. Beatrice fitou-a, ao entrar, antes de
se voltar para Paul.
Estou vendo que decidiu voltar ao mundo dos vivos, sr. Savage. Como
est se sentindo?
Muito bem. Devo estar de p em um ou dois dias.
Graas ao seu amigo maori. Alis, graas a ele que estamos todos aqui.
Resumidamente, contou-lhe o que acontecera, desde que ele cara. No fim,
Paul limitou-se a perguntar, com um leve sorriso:
Quem foi que me despiu? Maata?
Melody corou, mas Beatrice no se mostrou nem um pouco embaraada.
Maata e eu revelou, com ar de malcia. Mas no precisa ficar com
medo de ter ferido meus pudores. Voc no o primeiro homem que ponho na
cama, nem ser o ltimo, graas a Deus.
Foi a vez de Paul se mostrar embaraado, mas ela continuou:
Eu vim at aqui para saber se pode receber David. O garoto est
impossvel, desde que o pusemos para fora do seu quarto.
melhor mand-lo entrar, ento. Quando ela saiu, Paul acrescentou:
Esse menino est precisando de disciplina.
Esse menino adora voc, embora s Deus saiba a razo! Melody
exclamou. E voc? No sente nada por ele? Pois deveria. David to selvagem
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Projeto Revisora 208

e teimoso quanto voc, com pouco respeito pela autoridade e a mesma
determinao de fazer valer a prpria vontade.
O que voc quer? Que sejamos fracos, os dois? Quer que eu seja como
Brett, o tempo todo dependendo de voc? Quer que David se torne como as
crianas educadas por missionrios, subserviente, temendo a prpria sombra e
fazendo tudo que lhe mandarem? Quer dominar tudo, como me de um e esposa
do outro? isso que quer? ?
Nem em um milho de anos! ela gritou. A doura de momentos atrs
se fora. Se eu quero alguma coisa, escapar de voc. Mas, se fosse sua
esposa, faria com que reconhecesse que tem um corao. Eu o foraria a me
respeitar e a admitir que ama o garoto!
Mas voc no minha esposa. No , nem nunca ser. Porque se fosse,
com esse temperamento explosivo, eu...
Voc o qu? Lgrimas de frustrao comearam a escorrer pelo rosto
dela. Me daria uma surra? Me poria na rua? Pois fique sabendo que eu no iria.
Ficaria aqui e...
Melody interrompeu-se, aborrecida por ter quase dito que "ficaria e o
cobriria de amor". Mas Paul j se sentia provocado e reagiu:
E o qu? Eu a amansaria, sua feiticeirazinha. Acabaria com esse seu mau
gnio, ou ento... De repente, ele a puxou para a cama, a seu lado, capturando-
lhe o rosto com as mos. E ps-se a acariciar-lhe a boca, entreaberta, at mur-
murar, com voz enlouquecida: ...ou ento... eu faria com que mudasse de idia...
E beijou-a, movendo os lbios sobre os dela com uma ternura incrvel,
provando-lhe a doura...
No! Ela interrompeu a carcia, ofegante. Voc no faria nada disso.
Porque eu nunca seria sua esposa. Nunca! Eu quero amor e compreenso, no
apenas paixo e ordens. Se eu fosse livre, talvez tudo se tornasse diferente
entre ns. Se eu fosse branca... e no uma escrava mulata... Assim, no pode
haver amor. Voc pode gostar do garoto, mesmo sendo mestio, porque ele
sobrinho do seu melhor amigo, mas aceit-lo... ou me aceitar... como seu sangue,
outra coisa.
Melody parou, diante do olhar de incredulidade no rosto dele.
Voc no sabe?! Maata no lhe contou? David meu sangue. Ele meu
filho!
Melody sentou-se abruptamente, com a impresso de ter levado um golpe.
Minha esposa era a irm de Te Whatitoaoraki, uma maori de sangue
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Projeto Revisora 209

puro, e para mim a mais linda criatura existente sobre a lace da Terra. Ela
morreu trs anos atrs, durante o ltimo ataque tribal a Windhaven.
Paul percebeu a emoo e a vergonha nos olhos de Melody, mas, antes que
pudesse dizer qualquer coisa, David entrou correndo. Fitando o menino com novos
olhos, ela se admirou de nunca ter notado a semelhana nas atitudes, nas feies
e na pele dourada, do mesmo tom que a de Paul.
Kia ora, David.
O menino sorriu, hesitante.
No est mais zangada comigo, mihi Van der Veer?
Zangada, por qu? Paul perguntou. O que foi que voc fez?
Nada Melody respondeu depressa. J passou, e eu no estou mais
zangada.
O menino aproximou-se dela.
Voc chorou. Ainda est preocupada? No precisa. Eu estou bem.
No, foi s... um cisco que entrou no meu olho.
Eu ainda estou esperando uma explicao, mocinho Paul interferiu.
O menino voltou-se para ele, os olhos brilhando.
Foi depois da batalha. Alguns guerreiros voltaram para o pa, e eu fui
com eles. S que... que me esqueci de avisar. Mihi Van der Veer e os outros...
ficaram sem saber onde eu estava. Eles... eles pensaram que o inimigo tinha me
capturado.
Paul explodiu numa exclamao zangada, que fez a criana empalidecer.
Eu... eu sinto muito. Sei que errei. Mihi Van der Veer no deixou os
homens sarem atrs de mim, com medo de os inimigos voltarem. Ela disse que
Windhaven tinha de ser protegida a qualquer custo, mas achou que o tio mandaria
alguns homens me procurar.
O olhar incrdulo de Paul desviou-se para Melody.
E dai?
Contente de no ser mais o alvo daquele olhar, David terminou:
Mihi Van der Veer e Henare desceram o rio numa canoa, e ela estava
muito zangada comigo... Pelo menos... eu acho que estava zangada... porque no
sabia se me abraava ou arrancava os meus cabelos! Quando voltamos para c,
mihi Van der Veer teve de trocar o vestido, que estava todo molhado, por isso eu
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Projeto Revisora 210

vi voc primeiro. Mas depois Maata me levou embora, dizendo que mihi Van der
Veer ia ficar brava com qualquer pessoa que entrasse, e que no adiantava eu
tentar entrar escondido, porque ela estava dormindo nesta cadeira, desde que
voc foi ferido, e ia saber.
Melody baixou a cabea, incapaz de enfrentar o olhar de Paul.
Ento voc foi a Operiki de canoa, apesar de saber que aqueles
demnios podiam no ter ido embora! A voz de Paul estava carregada de
emoo, e ele tossiu para disfarar. Meu Deus, e pensar que ainda tem a
coragem de nos acusar de teimosia e de s fazermos o que nos d vontade! Por
acaso j tinha andado: de canoa alguma vez, em sua Vida?
No. Eu... eu no sei nadar.
Deus do cu! O que vou fazer com voc?
Sentindo a zanga e a incredulidade de Paul, Melody ergueu os olhos cor de
safira, sorrindo tremulamente.
Mesmo sem saber que David era seu filho, achei que era a nica coisa a
fazer, na hora. Agora, considero minha deciso ainda mais certa. Ela se
levantou. Enquanto David lhe faz companhia vou aproveitar para falar com
Maata. At depois.
Melody...
Ambos notaram a mudana nos termos de tratamento.
O que ... Paul?
Obrigado. E... seu lugar na Nova Zelndia. Veja se consegue aceitar...
Ela ficou sem, saber se ele se referia quela terra linda e selvagem ou... a
si mesmo.
No sei... No sei se estou pronta, nem se tenho foras para isso.
Se h uma coisa da qual nunca duvidei da sua fora. Fechando a porta
atrs de si, Melody foi para o prprio quarto, absorta em pensamentos.
Seu lugar no era naquela terra. E tambm no era ao lado de Paul Savage,
a no ser como escrava. Ah, como gostaria de saber! s vezes ele a tratava como
a uma criana desobediente, s vezes, como hspede de honra. Ele a agredia... e
depois a tratava com uma ternura igual apenas que Brett costumava lhe
mostrar. Brett... Como estaria ele? Bem cuidado, por certo, mas teria mudado?
O'Shaughnessy prometera que tornariam a se ver, dentro de um ano, mas seria
ela capaz de agentar tanto tempo?
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Projeto Revisora 211

Melody aproximou-se do espelho, fitando a prpria imagem com uma careta
de desgosto.
No era mais Melody Van der Veer, a lady inglesa. Era Melody, a escrava.
Melody, a colonizadora. Essas seriam capazes de sobreviver.
Ela correu os olhos pelos vestidos que trouxera de Nova York, e pelos trs
que comprara em Wellington. A diferena era gritante.
Isto aqui no Nova York, e eu no sou mais a aristocrata mimada que
fugiu de l. Preciso encarar os fatos e assumir a aparncia certa!
Uma hora depois, Beatrice encontrou-a atacando os vestidos com uma
tesoura, cortando barras e fazendo recortes nas saias enormes.
Posso saber o que est acontecendo, menina?
Estou cansada de fazer papel de dama e resolvi assumir a realidade.
Joguei fora as anquinhas e estou subindo as barras dos vestidos. Ele no vai
notar, e Maata vai parar de me tratar como hspede. Parece mentira, mas ela
aceita a sua ajuda melhor do que a minha, e a senhora que a hspede!
Maata e eu combinamos bem, mas voc no tem de chegar a tais
extremos para ser aceita pelo que . As pessoas daqui so gente simples, que tm
uma civilizao mais antiga que a nossa e uma sabedoria e honestidade muito
maiores que as de nosso povo. Eu simplesmente fiz amizade com eles. Amigos
partilham suas vidas, ensinam e so ensinados. Se no se livrar da barreira que
construiu em volta de si mesma, no conseguir mais do que a destruio desses
vestidos. O olhar dela suavizou-se. Por outro lado, ficar bem mais
confortvel sem as anquinhas, e com uma aparncia bem mais atraente que a
atual.
Eu no quero ficar atraente. E, se vou conseguir alguma coisa destruindo
esses vestidos, ser mostrar que no combino mais com eles, social ou
economicamente.
Apesar de aborrecida com a atitude da sobrinha, Beatrice achou melhor
mudar de assunto. s vezes, tinha a ntida impresso de que a moa se adaptaria
muito bem vida em Windhaven, coisa que ela mesma jamais seria capaz de
fazer. Ento, Paul dizia qual- quer coisa de que Melody no gostasse, e toda
mgoa e ressentimento emergiam, pondo fim ao que fora conseguido.
A incapacidade de Melody de se ajustar situao piorou durante as
semanas seguintes, enquanto Paul se recuperava. A princpio, de cama, depois, se
movimentando vagarosamente pela casa, ele voltou a. controlar tudo. E recomeou
a exercitar os msculos, cada vez com mais freqncia, saindo com os guerreiros
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Projeto Revisora 212

que Te Whatitoaoraki escolhera para ficar em Windhaven, mesmo depois de
passado o perigo.
Ele nada comentou sobre a nova aparncia de Melody, embora ela o
surpreendesse muitas vezes a fit-la. Aos poucos, sua raiva pela aparente
indiferena dele aumentou.
Como se atrevia Paul a ignor-la, depois do comportamento que tivera?
Como se atrevia a beij-la... e depois agir como se ela fosse uma completa
estranha!
Em seu esforo para encontrar outros interesses, Melody comeou a
melhorar o ingls de David. O menino era inteligente e interessado em aprender,
ela passou a gostar cada vez mais dos perodos em que ficavam juntos. Um
profundo afeto nasceu entre ambos, mas no foi o suficiente. Ela ainda se sentia
uma estranha naquela casa que fervilhava de atividade e riso, e acabou
resolvendo ir falar com Paul.
Encontrou-o saindo para um passeio, como sempre com o menino ao lado.
Paul, preciso falar com voc. rpido. Ele hesitou, obviamente
impaciente.
Claro. David, mande selarem os cavalos. E quando o menino se afastou:
Fiquei sabendo que voc est dando aulas de ingls a David.
Temos passado algum tempo juntos... quando voc no o est ensinando a
atirar e caar. Ele muito inteligente.
E gosta muito de voc. No quero que pare com essas aulas.
Mas isso no suficiente, Paul. Tenho muito tempo livre e preciso fazer
alguma coisa de til.
Maata me disse que voc andou fazendo almofadas para o seu quarto. Se
o problema falta de material, chegou mais, ontem.
Melody baixou os olhos, lembrando-se muito bem da cena que o instigara a
mandar vir aqueles tecidos.
Eu... no quero usar aquelas cores, por enquanto. Ainda no estou
pronta...
Pois eu acho que voc est mais do que pronta para tirar o luto. No
tenho nada contra o fato de tornar seus vestidos mais v prticos. Na verdade,
acho que o estilo que adotou a deixa mais -* feminina, mas no concordo com essa
histria de preto, porque sei que falso. Se tem tanto tempo livre, pea a Maata
uma costureira para ajud-la a fazer alguns vestidos novos, com os tecidos que
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Projeto Revisora 213

encomendei. Alguma coisa de acordo com a sua posio aqui.
Ela agarrou-se a isso como um nufrago tbua de salvao.
E qual minha posio aqui? Fui comprada como escrava e trazida para
c para pagar minha dvida com trabalho. No entanto, desde que cheguei, no fiz
nada. Ningum me d trabalho nem parece esperar que eu faa alguma coisa.
Nenhum deles sabe como me tratar ou qual minha posio. E como podem, quan-
do nem eu mesma sei?
Voc insiste em se chamar de escrava, no ? Pois fique sabendo que eu
posso usar... ou no... uma escrava, da maneira que achar conveniente. E aqui
ningum tem a menor dvida sobre a sua posio, a no ser voc.
Melody arregalou os olhos quando ele se adiantou e parou junto dela,
segurando-a pelos ombros.
Diga que me entendeu ele mandou. Diga "Sim, Paul".
Sim... Paul ela obedeceu, com um murmrio rouco, certa de que jamais
perderia o medo que tinha dele.
Ento, sem aviso, o olhar de Paul se transformou. A irritao desapareceu,
substituda por um brilho intenso, quando ele se inclinou e beijou-a... na ponta do
nariz!
Pode ir... escrava... Por outro lado, se a sra. Van der Veer quiser ficar e
aproveitar a minha companhia... ou qualquer outra coisa que eu tenha a oferecer...
Com as emoes num verdadeiro turbilho, Melody usou a zanga para se
proteger.
No quero a sua companhia nem ser vtima do seu estranho senso de
humor. Eu vim aqui para trabalhar, sr. Savage. Para trabalhar! No v me dizer
que esqueceu.
Paul apertou os lbios e deu-lhe as costas, frustrado.
Muito bem. Se o que quer isso, vai ter. Algumas mulheres esto
preparando um terreno para plantio, a um quilmetro daqui. Diga a Maata para
mandar uma das garotas com voc. O que vai precisar j est l.
No era bem isso que Melody tinha em mente, mas Paul no esperou para
saber. Desejando nunca t-lo conhecido, ela colocou uma roupa que achou
apropriada para esse tipo de tarefa e foi atrs de Maata. A maori no gostou da
idia.
Isso no est certo. Mulheres pakeha no trabalham no campo. Nunca.-
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Projeto Revisora 214

que... eu no sou branca, Maata.
Pois parece!
Eu sei. Com os olhos ardendo devido vontade de chorar, Melody
contou o que lhe acontecera em St. Clare, terminando: O sr. Savage me
comprou como compraria qualquer outra escrava, e eu preciso trabalhar como tal.
Mita Savage nunca teve escravos. Ns somos todos livres, aqui.
Menos eu. E, se tem dvidas a esse respeito, s falar com ele. Fui
comprada e paga, por isso melhor eu ir para esse campo e mostrar como
trabalha uma escrava inglesa!
Mas a situao mostrou-se muito pior do que Melody esperava. O sol
queimava, e nem o leno grosso que Maata insistira para que usasse na cabea
conseguia proteg-la. Logo, ela se viu invejando as saias de algodo e as blusas
soltas, que as garotas maori usavam. A enxada era pesada e com o cabo longo
demais, e ela no conseguia participar da conversa e do riso das outras, por mais
que se esforasse.
medida que o sol subia, Melody foi perdendo a capacidade de raciocinar.
Exausta, tinha de respirar fundo a cada enxadada, para no cair. O mato parecia
criar razes mais fortes e longas a cada minuto que passava. Ela bebeu a gua
morna de um barril, numa das pontas do campo, como se fosse o melhor
champanhe, e jogou as ltimas gotas sobre o rosto e o pescoo, voltando para o
seu lugar, sem se queixar.
Voc mesma se colocou nesta situao, sra. Nariz Empinado murmurou
para si mesma , por isso melhor agentar. De repente, ela teve a impresso
de que o campo balanava e oscilou. Uma das garotas maori, que a estivera
observando, avanou para ajud-la, mas, com um sorriso e um gesto de cabea.
Melody recusou a ajuda. Sua viso, clareou e ela inclinou-se para pegar a enxada...
indo ao cho.
A terra estava macia, quente e gostosa, e absorveu sua exausto como o
deserto absorve a gua. De longe, veio o barulho de cascos de cavalo, de uma voz
spera, masculina, e de uma voz jovem, feminina, respondendo. Mas nada tinha
importncia., desde que pudesse continuar como estava. Vamos! Levante-se!
a voz spera ordenou. Vagamente, ela identificou o tom zangado com que Paul
Savage protestou, num tom pastoso: Hora do ch.
Decidida a no deixar que ele levasse a melhor, Melody se levantou,
fitando-o com os olhos brilhantes de cansao e o rosto vermelho e sujo de terra.
Mesmo assim, estava to linda que ele sentia um aperto na garganta.
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Projeto Revisora 215

Voc ainda no terminou seu servio.
O esprito indomvel de Melody rebelou-se.
Para o inferno o servio! E para o inferno voc! No sou uma lavradora,
muito menos um cavalo de arado! Sou um ser humano e estou cansada. Cansada
demais at para odi-lo... mas vou fazer um esforo. Tambm vou terminar o meu
servio, mas agora preciso descansar. V embora. Me deixe sozinha!
Dando-lhe as costas, ela enterrou o rosto nas mos, soluando. De
imediato, sentiu um movimento atrs de si e um brao envolveu-a, enquanto outro
era passado debaixo de seus joelhos. No minuto seguinte viu-se apoiada no peito
musculoso.
No! protestou, tentando voltar para o cho.
Mas que droga, fique quieta!
Paul apertou-a com mais fora, subjugando e levando-a para 0 cavalo. Com
Melody a sua frente, ele esporeou o enorme baio c galopou em direo paliada.
Melody tentou se ajustar ao galope, mas mal conseguia manter o equilbrio,
e ganhou uma reprimenda quando deslizou para o lado, obrigando Paul a segur-la
com mais fora.
Pare de se mexer! Eu posso estar acostumado com a sua teimosia, mas o
cavalo no est!
Rudemente, tornou a pux-la para si, fazendo com que Melody sentisse
vontade de lhe bater. Mas estava muito cansada para qualquer tipo de esforo
fsico e resolveu ceder, pelo menos daquela vez.
Paul sentiu o corpo rebelde relaxar, e um sorriso surgiu em seus lbios. O
leno h muito cara da cabea de Melody, e o vento soprava alguns fios de cabelo
de encontro a seu rosto, atormentando-o com o aroma de flores que ela
costumava esmagar e misturar gua com que os enxaguava. Chegaram depressa
demais a casa, e ele colocou-a no cho, antes de desmontar.
Para dentro! ordenou rispidamente.
Cansada demais para protestar, Melody obedeceu, surpreendendo-se ao
senti-lo pegar seu brao e gui-la atravs do hal. Os lbios apertados no davam
a menor indicao do que pensava, e s quando Maata apareceu, ele falou:,
gua e alguma coisa para as mos dela Paul ordenou, arrastando-a
pelo ptio em direo ao quarto, onde abriu a porta e empurrou-a para dentro.
Girando-a ento de frente para ele, agarrou-a pelos ombros, com mos de ferro.
- Estou cansado dessa tragdia grega que voc insiste em representar! Minha
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pacincia se esgotou, e de agora em diante no quero mais saber de teimosia.
Voc vai se comportar como a mulher inteligente que ou nem sei o que.
Melody estava abismada com a raiva e a frustrao existentes na voz dele,
mas nada pde dizer, pois nesse momento Maata entrou, com a gua e um potinho
de creme.
Pea a lady Davenport para vir at aqui, Maata. Melody, quero ver suas
mos.
Mais que depressa ela as escondeu atrs das costas, mas foi empurrada em
direo bacia, que Paul rapidamente encheu. Em seguida, ele segurou-lhe os
pulsos, puxou-os para a frente e ergueu-os. Instintivamente, ela apertou os
punhos.
Minhas mos esto timas!
Melody, Melody!
Ela o fitou, e de repente a raiva e o ressentimento pelo modo como ele a
tratara, no campo, desapareceu. Mesmo contra a vontade, abriu as mos,
exibindo as palmas sangrentas e cheias de bolhas. Paul apertou os maxilares, mas
nada comentou. Devagarinho, baixou as mos dela para a gua. Melody
estremeceu, no contendo uma exclamao de dor, mas permitiu que ele as
limpasse e secasse. No fim, com uma delicadeza impressionante, ele aplicou o
creme, seu toque leve como o de uma pena.
O barulho da porta se abrindo anunciou a chegada de Beatrice, mas s Paul
notou. Melody tinha os olhos fixos no perfil forte, mas estranhamente sensvel,
procura de algo que ainda lhe escapava. Ele ergueu a cabea, e seus olhares se
encontraram novamente, fazendo a terra girar em torno dela.
Voc est queimada de sol, tambm Paul murmurou, tocando-lhe o
rosto com a ponta do indicador. Lady Davenport, quer ajudar sua sobrinha a
tomar um banho e se deitar? Duvido que ela tenha condies de fazer isso
sozinha, e quero que esteja acordada e em boas condies na hora do jantar.
Apesar de horrorizada com a aparncia de Melody, Beatrice sentiu o
magnetismo que unia os dois e resolveu nada comentar, limitando-se a assentir ao
pedido de Paul. Ele ento retirou-se, ainda que com evidente relutncia.
Quando que voc vai aprender? Beatrice censurou a sobrinha,
ajudando-a a tirar o vestido empoeirado. Quando que vai parar de lutar
contra ele e voc mesma?
Por favor... agora no, tia Bia! Afinal, Melody permitiu que as lgrimas
de dor e exausto comeassem a escorrer por seu rosto vermelho. No
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Projeto Revisora 217

momento, no tenho a menor vontade de lutar contra quem quer que seja. S
quero algumas palavras gentis e um gesto carinhoso, no o aperto brutal
daquele... selvagem! No consigo ter uma conversa racional com ele. Com Brett,
pelo menos, eu conseguia dialogar. Ele podia ser selvagem no nome, mas no o era
de fato!
- Tem razo. Mas ele jamais teria conseguido sobreviver aqui, ainda mais
formar uma fazenda, vindo do nada, e ganhar o respeito, at mesmo o amor, das
pessoas que o ajudam.
Melody meneou a cabea, certa de que a tia jamais entenderia o vazio que
tinha dentro de si, e a solido, que s poderia ser dissipada por um nico homem.
Um homem que no podia mais odiar, mas que a via apenas como um objeto de
paixo ou lucro.

CAPTULO XVIII

Na manh seguinte, quase contra a vontade, Melody foi ver os tecidos que
tinham chegado de Wellington. Suas mos ainda estavam doloridas, mas era sua
mente que mais sentia as conseqncias do dia anterior. Cada vez que tentava
lutar contra Paul Savage, acabava derrotada. E agora, com aqueles sentimentos
contraditrios batalhando em seu ntimo, sabia que precisaria de muito mais que
um dia para se recuperar.
Desanimada, cortou o barbante do primeiro dos quatro pacotes, afastando
o papel... e fitando, boquiaberta, a magnfica pea de veludo azul, no mesmo tom
do cu momentos antes do anoitecer. Um presente digno de uma princesa!
Debaixo dele, estava uma pea de seda verde-jade, com vrios metros de renda
para fazer um xale.
No outro pacote, havia um prtico merino, para os dias frios que viriam, e
uma pea de popeline. O terceiro continha peas de linho e de l, em tons que
combinavam com a vegetao daquele pas ao qual ela j estava aprendendo a
amar.
Uma sensao de incredulidade invadiu-a. Paul Savage estava zangadssimo
quando encomendara aqueles tecidos, no entanto no escolhera tons pastis,
prprios para uma moa solteira, nem , tons escuros, que combinavam com uma
matrona. Tambm no encomendara os vermelhos e amarelos to ao gosto de
Celine, nem os tons de cobre e esmeralda, que Beatrice apreciava.
Por qu? Como era possvel que a conhecesse to bem? E por que se
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Projeto Revisora 218

importava tanto com ela?
Melody abriu o ltimo pacote, mais leve que os outros, e no conteve um
grito deliciado ao ver metros e mais metros de chiffon cor de madreprola, com
0 leve tom rosado de um boto de magnlia. Daria um magnfico vestido de baile
para ser exibido cm Londres ou Paris, mas quando poderia ser usado, numa fa-
zenda perdida no mato? Era apenas a essncia de um sonho, mais nada. E o que
pretendia Paul com isso? Atorment-la?
Deve ter custado uma fortuna!
Nem tanto Paul disse, da porta. Entrando no quarto, ele se sentou
sobre a cama, reclinado para trs, apoiado num cotovelo.
Como no?! S pode ter custado uma fortuna! Ele sorriu.
No se pode chamar um touro reprodutor de uma fortuna.
Mas voc precisava daquele touro! Ah, Paul, por que foi fazer isso?
Ele admirou a mulher ajoelhada entre os metros e metros de chiffon, e
tornou a sorrir.
Vamos dizer que, quando quero alguma coisa, no costumo pechinchar.
Melody fitou-o, empalidecendo.
Uma... escrava... pode valer tanto?
Pode Paul respondeu com firmeza, sem hesitar. E indicando o chiffon:
Gostaria que comeasse com esse. Vamos a Wellington no fim do ms. Tenho
negcios a tratar com o governador.
Mas eu pensei que voc no gostasse dele...
Eu no o suporto, mas muitas vezes temos de deixar os sentimentos
pessoais de lado. Haver um baile de gala, e o povo maori precisa de um
representante. lgico que eles sero convidados, porm os convites jamais
chegaro. Depois, haver desculpas, alegaes de que os convites se extraviaram
etc. Mas o resultado ser o mesmo.
Ento, sobra voc...
E outros como eu, que lamentaram o afastamento de sir George Grey do
cargo e lutam por sua volta.
Mas por que voc quer me levar? Sei pouco desse povo, e menos ainda da
sua poltica. verdade que considero justo que tenham seu lugar neste pas e que
homens como Te Whatitoao-raki possam participar do governo, mas fora o pouco
que aprendi com Maata e David, sobre seus costumes e crenas, nada mais
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Projeto Revisora 219

conheo.
Melody se levantou, pondo-se a andar de um lado para outro,as parou ao
encontrar Paul em seu caminho. Se quer mesmo aprender, tem trs semanas
para isso. Voc pode ser uma emissria irresistvel. No preciso lhe ensinar como
fazer um homem dizer mais do que pretende ou introduzir na conversa perguntas
que so quase impossveis de se ignorar, Ele pousou as mos nos ombros dela,
fitando-a como se quisesse memorizar cada trao do rosto adorvel. Quero
que faa isso por mim e pelo meu povo. Porque eles so o meu povo, pelo sangue e
pela amizade.
Melody sentiu nele o amor pela terra e pelos nativos, que queria ver
tratados como iguais. Como pudera pensar em Paul como um conquistador
insensvel?
Eu... vou fazer o possvel. Tia Bia tambm vai? Ele sorriu.
Acho que sua tia ser mais bem-sucedida que ns dois juntos. Ela no
tem preconceitos e sabe avaliar as pessoas. De algumas ela gosta, de outras, no.
E aposto tudo o que tenho que ela no vai gostar de Gore-Brown e seus amigos!
Por que no votam para que ele saia? No consideram o governador Grey
um homem melhor?
Na minha opinio, no h ningum melhor, mas algumas de suas idias no
so populares. Eles o traro de volta... tm de trazer... mas antes disso a situao
vai chegar a um ponto intolervel. Paul sorriu, meio sem graa. Mas melhor
eu no falar de poltica. Quando comeo, no paro mais, e reservo isso para os
polticos. O que eu quero que voc faa um vestido do qual no se esquecero,
um vestido que dispare a imaginao e os atraia como a luz atrai as mariposas.
Quer dizer que serei uma isca. Os dedos de Paul enrijeceram sobre
seus ombros, e Melody se apressou a acrescentar: No, no responda. Sei que
no vou gostar do que tem a falar. No h nada que o detenha, quando quer
vencer uma batalha? Sua causa pode ser justa, Paul Savage, mas os mtodos que
usa no so. Pretende me vender rio abaixo, sr. Savage, ou s me alugar por uns
tempos?
Melody! ele exclamou em tom de aviso, a voz vibrando de raiva.
Me largue! Algo crispou-se dentro dela, destruindo o prazer de
momentos antes. No sei por que se deu ao trabalho de vir com essa histria
de emissria irresistvel! Ela se libertou com um safano, dando-lhe as costas.
Da prxima vez, sr. Savage, lembre-se de que uma criada deve obedecer. Basta
mandar. E fcil. Seu menor desejo uma ordem para mim!
Hazel Smith Orgulho Selvagem Clssicos da Lit. Romntica
Projeto Revisora 220

Paul respirou fundo, dividido entre a vontade de sacudir, beijar... ou at
mesmo dar um tiro naquela mulher linda e enfurecida. Mas disse apenas, virando-
se para sair:
Voc tem trs semanas.
Ele vai ter o vestido que quer! Melody prometeu a Beatrice, fervendo
de raiva, naquela mesmo dia. Ele quer uma isca, e vai ter. Nunca vi um homem
to insensvel, egosta... Tia Bia, a senhora no est me ouvindo!
Beatrice ergueu os olhos do veludo azul. Sua expresso era sombria.
Estou, sim, querida. E acho que j est na hora de voc tomar uma
deciso sobre este lugar... e Paul Savage. Uma deciso sria, na qual no posso
ajud-la. Nesta histria do vestido, no entanto, eu posso. E fcil. Paul pode no
ter usado as palavras certas, mas, se ele quer lev-la toca do leo, no porque
precisa de isca, como voc diz, mas porque precisa de ajuda.
Ajuda?! Paul Savage?
Ele mesmo. Voc s v o homem que quer ver, o homem que est
tentando, em vo, odiar. E por qu? Por que ele livrou-a de ser vendida a um
canalha qualquer e depois recusou-se a trat-la como escrava? Por que ele a
trouxe para c e tenta proteg-la de todos os modos possveis? Por que
apresentou-a aos amigos dele e tornou-os seus amigos? Ele mais homem do que
todos os que voc j conheceu, e isso que voc no agenta. Prefere os Bretts e
Hughs desse mundo, mas, se Paul mostra um instante de fraqueza, voc o rejeita.
Voc diz que ele insensvel e egosta, mas talvez esteja olhando para a pessoa
errada. Deveria olhar para o espelho que h ali!
Melody fitou a tia, aborrecida. Nunca ouvira dela uma palavra de censura e
zanga, e no podia aceit-las.
Paul est me usando!
Ele precisa de voc. Beatrice apontou para as peas de tecido. Isso
no o que ele compraria para uma criada de campo, nem mesmo para uma
escrava de cama: E tambm no uma criada que ele pretende levar ao baile!
Melody caiu sobre a cama, enterrando a cabea nas mos.
Estou to confusa, tia Bia! De imediato Beatrice abraou-a.
Eu sei que est, meu anjo, mas no fim tudo vai dar certo. Agora, temos
um vestido de baile a fazer... para algum que John Brown teria orgulho de
acompanhar ao palcio. Concorda comigo?
Melody endireitou o corpo, respirando fundo.
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Projeto Revisora 221

Sou mesmo uma tola, tia Bia... Mas uma tola que a ama muito! Est bem,
vamos ao vestido.
Depois disso, os dias voaram. Melody passou horas com a costureira que
Maata lhe mandou, e o tecido comeou a tomar a forma de uma criao belssima,
de uma simplicidade clssica, onde a cor era o maior ornamento. Paul tinha ido a
Wanganui, a negcios, e durante dez dias ela foi poupada da tenso de sua
presena.,
Nem tudo corre s mil maravilhas Beatrice informou-a no dcimo dia,
com uma carta na mo- Esta carta de Patrick chegou ontem, mas at agora h
pouco no sabia se lhe mostrava ou no.
A expresso da tia era to sria que o corao de Melody deu um salto.
com Brett? Aconteceu alguma coisa com ele? O que foi titia?
Brett est bem, ao que parece morrendo de saudades de voc. Veja.
melhor voc mesma ler.
Melody pegou a carta, comeando a ler.
Eles ainda esto em Natchez... Patrick arranjou um emprego nos barcos
e est indo bem...
Brett est desenvolvendo muito os sentidos do olfato e da audio, desde
que os garotos se encarregaram dele. At aprendeu a carregar uma arma e atirar
em alvos que faam barulho. Muitas vezes acerta. No entanto, continua meio
triste e fala pouco, a menos que o nome de Melody seja mencionado. A, ento,
capaz de falar sem parar.
Quer dizer que ele ainda se lembra de mim! Eu andei pensando... Melody
interrompeu-se abruptamente, lendo e relendo as linhas seguintes.
"Os dois homens que vi na cidade, quando estvamos em St. Clare, no
eram to tolos quanto pensei. Acabaram vindo dar em Natchez, e os rapazes de
'Gator' no resistiram tentao de se vangloriar do fato de terem dado
hospedagem a uma lady inglesa e sua sobrinha. Eu estava fora, e Brett no viu
motivos para no acreditar na histria deles, de que um parente seu havia
morrido e lhe deixado algum dinheiro, na Inglaterra. O garoto lhes deu o
endereo de Paul e s comeou a se preocupar quando quiseram saber se Melody
ainda estava com voc. Por isso, tome cuidado, minha querida, e vigie Melody. J
tenho uns dois mil dlares e vou mand-los para o banco que Paul mencionou, em
Wellington. Se precisarem sair da...
Melody gemeu baixinho.
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Eu sabia que alguma coisa ia acontecer! Faz tempo que estou com um
mau pressentimento. Ela meneou a cabea, no querendo acreditar. Nunca
pensei que Hogge tivesse tanta influncia... e amigos to poderosos. S no
entendo por que esto nos caando como animais. Ser que acham que roubamos
alguma coisa que pertencia a eles? Para ir a tal ponto...
Fique calma, eles no vo nos achar Beatrice tranquilizou-a. Sejam
eles quem forem...
Melody sentiu um frio na espinha.
Se Luther Hogge devia dinheiro a essa gente... uma grande quantia... e eles
achassem que ela estava com esse dinheiro.,. Mas no, no pensaria nisso. Afinal,
era pouco provvel que continuassem gastando, tentando ach-la num pas
selvagem e distante como a Nova Zelndia.
Tem razo, tia Bia, muito difcil que eles nos encontrem, E mesmo que
sejam vingativos a ponto de contratar um desses desclassificados para vir atrs
de ns... j lidamos com gente dessa laia, antes. Aquele sujeito, no leilo, devia
ter alguma coisa a ver com isso. Tinha uma cara ruim e sabia meu nome. Mas
estamos bem protegidas, aqui, e estaremos bem acompanhadas, em Wellington.
Agora, tenho um vestido a terminar. E David deve chegar dentro de uma hora.
Ele est me ensinando maori. uma lngua linda, tia Bia, e bem mais fcil do que
eu imaginava. Por exemplo, seu alfabeto tem s quinze letras... E ela continuou
a discorrer sobre a lngua maoris afastando da mente, resoluta, o desagradvel
assunto relatado por Patrick.
Quando, afinal, o vestido ficou pronto, at Beatrice mostrou-se
impressionada.
Pena que ainda faltem tantos dias para irmos ela comentou.
Durante esse tempo, o lao afetivo que unia Melody a David tornou-se mais
forte. O garoto comeou a lhe contar tudo o que fazia, aparecendo, de vez em
quando, para relatar uma novidade ou perguntar o significado de uma palavra
desconhecida. Um dia, ela sugeriu que brincassem de pega-pega, e eles foram
para o ptio, onde correram em volta do poo at no poder mais agentar de
cansao e de tanto rir. Comearam tambm a brincar de faz-de-conta, fingindo
que eram uma princesa maori e um lorde ingls, e s podiam falar as respectivas
lnguas.
Graas ao amor pelo menino, Melody achou extremamente fcil aprender a
lngua, a histria e as lendas do povo a que pertencia a me dele. A vida em
Windhaven tornou-se muito agradvel, mas mesmo assim Melody sentia no
corao um vazio que s Paul poderia preencher. Ele deveria voltar no sbado, e
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na quarta-feira ela s David entretiveram-se com outro jogo de faz-de-conta pro-
vavelmente o ltimo, uma vez que, na presena do homem a quem ela temia, teria
de voltar a ser cuidadosa com o que fazia.
Paul ultrapassou a paliada, contente, como sempre, por estar de volta.
Cumprimentou Beatrice, que ensinava algumas garotas maori a bordar, e entrou
na casa, elogiando o aroma da comida de Maata.
Est querendo me engordar para o Natal? brincou, ao confirmar que
ela assava um pernil com acompanhamento de legumes, um de seus pratos
favoritos.
Maata meneou a cabea, rindo.
No precisa de preocupar, mita Savage. Ns, maori, no pretendemos
comer gente no prximo Natal. Pelo menos, no desta vez.
Ele replicou qualquer coisa em maori, que a fez rir ainda mais. Depois,
perguntou:
David est aqui?
Est. Ele e mihi Melody esto no ptio, perto do poo. Paul foi para l,
mas estacou ao ouvir uma exploso de risos.
Devagarinho, abriu a porta, e um sorriso surgiu em seus lbios. David, seu
pequeno e teimoso guerreiro, pulava e corria em volta do poo, com uma
descontrao que ele nunca vira no menino. Rindo tanto quanto o garoto, Melody
tentava, em vo, soltar as mos, amarradas a um dos pilares do poo.
- Est bem, eu me rendo, Grande Chefe ela disse de repente, sem
parar de rir.
O menino aproximou-se, fazendo-lhe cosquinhas na cintura, com uma
expresso deliciada no rostinho moreno.
Chega! Eu j disse que me rendo!
Melody inclinou a cabea e beijou a orelha de David. O menino se virou e...
Papai! Voc chegou antes! Faz sculos que estamos esperando por voc.
Paul abraou o filho, depois fitou o rosto corado e os olhos brilhantes de
Melody. Alguns fios dos cabelos escuros haviam se soltado e agora caam-lhe
pelos ombros, mas ela ficara tensa ao v-lo.
Pode me desamarrar, David. A brincadeira acabou Melody murmurou.
Mas Paul segurou o menino pelo ombro.
Voc est precisando de um banho, David. V, eu solto a sra. Van der
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Veer.
Tia Melody David corrigiu-o. Eu era o terrvel chefe Rawiri, e tia
Melody, minha prisioneira. Foi muito divertido!
Paul deu um tapinha na cabea do filho.
Ande, garoto! E ficou olhando, com um sorriso, enquanto David corria
para dentro. S ento se voltou para a adorvel cativa, que lutava para se soltar
sozinha. Se continuar com isso, os ns vo se apertar e ser pior. Fique quieta,
que eu a desamarro.
Pea uma faca a Maata. Ser mais rpido.
Sem dvida. Agora, fique quieta. Ele sentou-se na beirada do poo,
encostando a coxa musculosa s pernas dela.
Lutando contra a emoo que fazia seu corao disparar, Melody comeou:
Espero que no se importe com o fato de David me chamar de tia... Ns
nos tornamos to bons amigos que sra. Van der Veer ficou muito cerimonioso.
No me importo, no.
Paul estava perto. To perto que ela podia ver-lhe os clios longos, as
sobrancelhas arqueadas e a pele queimada de sol, com todos os detalhes. Seu
olhar deslizou para a boca sensual... e ela murmurou, ofegante:
Afinal... ele chama Maata e os outros criados pelo nome de batismo...
Paul interrompeu o que fazia, e Melody percebeu que, em seu pnico,
cometera um erro.
Eu disse que no me importo ele repetiu friamente. Pronto! Est
livre... pelo menos destas cordas.
Obrigada. Vou fazer o possvel para no lhe dar mais trabalho.
De novo, um sorriso enigmtico surgiu nos lbios de Paul.
Voc vai ter de fazer o possvel e o impossvel para conseguir isso.
Eu... preciso me trocar para o jantar. A voz saiu mais rouca do que
esperava, e ela percebeu que tinha as mos trmulas.
Paul permaneceu bloqueando o caminho por um momento, depois deu-lhe
passagem. Apesar da vontade de fugir dali correndo, Melody dominou-se e
caminhou para seu quarto com toda a dignidade. Ainda sentia a coxa dele em
contato com as suas, mas procurou no pensar nisso. Concentrou-se em David, o
pequeno e corajoso guerreiro, adorvel em sua infncia saudvel. Ento as
palavras "um doce e selvagem amor" vieram-lhe mente, e ela soube que teria de
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evitar os dois pelo resto do dia, pois um fazia com que se lembrasse do outro, e
amando David...
No! exclamou baixinho. impossvel! Eu no quero! Decidida,
Melody voltou para seu quarto logo aps o jantar.
Mas no dia seguinte viu-se novamente no caminho de Paul. Ele andava os
nativos a derrubarem uma rvore, quando o avistou. Estava sem camisa, exibindo
os msculos perfeitos, e ela estacou a alguns passos, fascinada. Quando a rvore
caiu, os maori comearam a dar vivas, e Paul se voltou, com um sorriso nos lbios.
Vendo Melody, aproximou-se rapidamente, e ela de imediato desviou o olhar do
peito dele, cheia de timidez.
Mas o que isso?! Uma mulher casada que cora ao ver um homem de
peito nu? Seu marido nunca tirou as roupas com a luz acesa? Que tipo de casal
eram vocs?
No fale de coisas que no entende! A vergonha de Melody
desapareceu. O fato de uma mulher ser casada no quer dizer que ela esteja
acostumada a ver outros homens semi despidos!
Desculpe-me! No futuro, vou fazer o possvel para estar sempre
corretamente vestido, quando voc passar.
o que um cavalheiro faria!
Um cavalheiro como o seu marido, por exemplo... ou o meu precioso primo
Brett?
Hugh era um cavalheiro, e Brett tambm . Alis, ouvi dizer que todos
os sulistas so.
Todos, claro... At mesmo os que pediam para que uma certa escrava
fosse despida, durante um leilo! Ele fez uma pausa, depois prosseguiu: Um
cavalheiro sulista entra numa guerra em busca de glria e para lutar pela
liberdade. Mas isso no existe, numa guerra... a menos que voc considere
glorioso o bombardeio de Vera Cruz, durante dias seguidos, ou o ataque de
baionetas a um pequeno foco de resistncia inimiga, onde no havia um nico
soldado! Podemos citar tambm as gloriosas batalhas contra o deserto, as
moscas, a comida estragada, a disenteria. .. e mulheres e crianas. Com o olhar
angustiado, tomado por sbita raiva, ele lhe deu as costas, exibindo as cicatrizes.
Especialmente as duras batalhas contra mulheres e crianas!
Melody no conteve uma exclamao abafada ao ver os olhos de Paul,
quando ele novamente a fitou.
Era unia vilazinha sem importncia, e ela era uma garotinha sem
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importncia. Eu ainda era muito inexperiente e no sabia que um inimigo no pode
esperar clemncia. Mas os cavalheiros sulistas sabiam, principalmente em se
tratando de inimigos de cor. Ela no devia ter mais que catorze anos, e o irmo
era um pouco menor. Quando o glorioso exrcito chegou, tentaram se esconder
num paiol, mas os cavalheiros sulistas os encontraram. Eu fui tolo o bastante para
tentar det-los, e por isso tive de ser castigado. Fui amarrado a um poste, e os
seis cavalheiros se revezaram me chicoteando. Depois, violentaram o garoto e a
menina, e usaram as baionetas para acabar com eles... fazendo cortes bem
pequenos, para que sangrassem at a morte, gemiam do de dor. Seria um pecado
desperdiar balas, claro!
O olhar dele perdido no passado, voltou ao presente e fixou-se em Melody,
vendo as lgrimas que escorriam peio rosto delicado,
Melody... Desculpe! Eu no tinha inteno de lhe contar isso...
Sem pensar, Melody foi para os braos dele, e Paul abraou-a, acariciando-
lhe os cabelos. No fim, foi ela quem se afastou, dizendo:
Estou contente que voc tenha me contado, Paul. Forou um sorriso.
Tia Bia Sempre diz que toda mgoa diminui um pouco quando partilhada.
Esta, no. Mas o que voc est fazendo aqui, to longe da casa? Os
maori que nos atacaram ainda podem estar por a. Ningum deve sair
desacompanhado.
Eu... eu no reparei que tinha andado tanto. Vim apanhar flores. Isso me
mantm ocupada, e os quartos ficam mais gostosos, enfeitados.
Eu reparei, mesmo. Mas continuo achando que voc deve voltar. Est
escurecendo, e a noite cai muito depressa aqui. Eu vou com voc. J terminei o
servio.
No preciso.
Paul estacou, fitando-a nos olhos. Melody achou que ouviria algumas
palavras speras, mas ele disse apenas:
De qualquer maneira, vou acompanh-la.
Ele foi buscar a camisa e voltou fechando os botes, exalando um cheiro
pungente, que se misturou com o cheiro dos troncos que os nativos estavam
queimando. Alguns metros adiante, ajudou Melody a subir um barranco, tornando-
lhe a mo e esquecendo-se de solt-la at chegarem a casa.
Terminamos o vestido para o baile ela comentou, na porta. Quer
ver se est de acordo com o que voc queria?
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Tenho certeza de que est. E prefiro esperar para v-la com ele.
Obrigada por me trazer... de volta. Ela ia dizer "para casa", mas se
conteve a tempo.
De nada. Ele ergueu a mo que estava segurando e. antes que ela
pudesse pux-la, levou-a aos lbios.
Estava escuro, mas Melody ainda virava e revirava na cama, analisando as
prprias emoes. O medo a dominava. No podia estar se apaixonando por aquele
tirano arrogante, o homem que era seu dono. Quando ele se aproximava, no
importava o que ela estivesse fazendo, todo seu corpo reagia. Respirava quando
ele respirava, atenta expresso sensual, o corao disparando ao menor sinal de
irritao, e batendo forte como um tambor ao olhar mais casual da parte dele.
Era quase como se tivesse se tornado uma parte de Paul. Estava perdendo
a identidade... e lutava contra isso com todas as fibras de seu ser. Se deixasse
esse amor vingar, na certa haveria de querer apenas servir e agrad-lo, e ele a
dominaria por completo. No mais seriam amo e criada apenas por um contrato, e
sua vontade prpria deixaria de existir...
No! protestou, em voz alta. Sou Melody Van der Veer! Tenho uma
identidade!
Pensou em Beatrice, ainda atraente para os homens, ainda amada, querida e
cortejada. E respeitada por sua coragem e independncia de esprito. Ela nunca
seria diminuda pelo amor ou prejudicada pelas prprias emoes.
Nem eu Melody jurou. Vou ao baile do governador para me divertir,
no para ser olhada com desejo por alguns polticos. Vou danar, e at flertar um
pouco, se quiser. Se algum perguntar meu ponto de vista, vai ouvir minha opinio,
no o discurso patritico que Paul deve ter preparado para mim.
No entanto, ela no conseguia se esquecer do ardor que surgia nos olhos
dele, sempre que falava dos maori. E sabia que esse ardor surgia tambm em seus
olhos, que os pontos de vista dele eram os seus, e que o amor que ele sentia por
aquela terra estava fazendo com que tambm ela a amasse...

CAPITULO XIX

Cansadas da longa viagem, Melody e Beatrice ficaram contentes de chegar
casa dos Reid, em Wellington, onde foram recebidas como velhas amigas. A
famlia havia aumentado, com a compra de um pequenino co apropriadamente
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batizado de Ai-tua Iti, "Pequeno Problema". Pertencia a Ani, mas fora adotado
por todos. No momento em que Melody se sentou no sof, ele se atirou para ela,
tentando, em vo, subir-lhe ao colo.
Aiua! Amy ralhou.
Mas Melody j levantava o cozinho nos braos, lutando para que ele no a
lambesse demais.
Ele perfeito! exclamou, rindo. E, dirigindo-se bolinha de plos:
Voc adorvel, belezinha!
Rindo, com os outros, das estripulias do cozinho, ela olhou para Paul...
e.baixou a cabea depressa.
No vejo voc rir assim desde que David a amarrou ao poo. Deveria
fazer isso mais vezes, Melody.
que no tenho muitos motivos Melody respondeu, virando-se
rapidamente para Amy.
Aquela noite, depois de j estar combinado que ficariam para jantar com
os Reid, Melody foi dar um passeio pelo jardim. O som de vozes e risos, vindo da
casa, aquecia seu corao, por isso ela no notou a brisa fria, s as flores e o
barulho das folhas. A paz do lugar envolveu-a, fazendo-a sentir o quanto amava
aquela terra e seu povo, tanto brancos, quanto maori, mas principalmente os
infortunados mestios como David, cujo nico crime consistia no fato de seus
pais terem conseguido superar a distncia que separava as duas raas. Ela vira a
beleza das matas e das campinas, navegara pelos mares tempestuosos e lagos
tranqilos, sentira o poder do rio Wanganui e seus afluentes.
"No quero ir embora", pensou, de repente "No quero, porque agora aqui
o meu lar!"
Necessitando subitamente da presena dos amigos, ela enveredou por um
caminho estreito, pouco visvel na penumbra, e no conteve uma exclamao de
dor ao prender os cabelos e a manga do vestido nos galhos de uma planta
espinhosa.
Droga! Agora vou ter de me pentear de novo.
Cuidadosamente, tentou se livrar, mas seus esforos s serviram para
piorar a situao. Outra exclamao abafada escapou-lhe dos lbios, e ento
ouviu Paul Savage chamando por ela.
Estou aqui! gritou.
Ele aproximou-se e parou diante dela, a cabea inclinada para o lado,
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tentando no rir de sua expresso meio zangada, meio envergonhada.
Voc gosta mesmo de procurar confuso, hein? Ela corou.
Quer fazer o favor de me soltar? Cada vez que eu tento, fico mais
presa.
Colocando no bolso o papel que trazia nas mos, Paul adiantou-se.
Seu penteado vai se desmanchar, Se bem que eu no sei por que vocs,
mulheres, tm mania de prender os cabelos, quando so to mais bonitos soltos.
E que ns nos vestimos mais para as outras mulheres do que para os
homens.
Ento, sugiro um trabalho rpido, aqui, e uma ida ao quarto de Amy, para
consertar o estrago. Ele comeou a tirar-lhe os grampos da cabea.
Ah, mas...
Prefere passar o resto da noite aqui? No se esquea de que estamos
hospedados num hotel, desta vez e melhor pentear seus cabelos de um modo
mais simples, no quarto de Amy, do que sair do jeito que est.
Sem esperar, ele continuou a soltar as mechas dos espinhos. A princpio,
estava em p atrs dela; depois, quando os fios sedosos j caam pelos ombros de
Melody, foi para a frente, tirando os pedacinhos de galhos e folhas presos entre
os fios. Por mais tempo do que seria necessrio, conservou as mos nos cabelos
escuros e brilhantes, percorrendo-os com o olhar, as feies srias.
Melody sentiu a emoo que o unia e quis falar, mas teve medo. medida,
no entanto, que os dedos de Paul acariciavam-lhe a nuca, provocando arrepios,
arriscou-se:
Estou livre, agora.
Est. Os olhos dele, muito escuros na penumbra, procuraram os dela.
Completamente livre. Do bolso, ele tirou a folha de papel. Este documento
a faz completam ente livre, Melody Van der Veer. Voc no criada de mais
ningum.
Ela segurou o documento, fitando-o, sem entender. Com as feies tensas,
mas voz sob controle, Paul prosseguiu:
Agora pode escolher se fica ou se vai. A ajuda que quero de voc, no
baile, jamais poderia ser dada por uma criada, s por uma mulher livre, que
sentisse o mesmo que eu sinto em relao ao futuro desse povo.
Foi... foi por isso que me libertou?
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Em parte. Ele sorriu. O resto no tem importncia. Voc livre.
No era isso que queria, desde o comeo?
Claro... Claro que sim...
Mas na voz dela faltava convico, e Paul fez uma pergunta que ainda no
estava preparada para responder:
No era essa a nica coisa que a prendia aqui? Melody olhou novamente
para o papel.
- Foi to repentino! No consigo pensar direito. mesmo verdade?
legal, Melody. Voc est completamente livre de mim. Percebendo
que ela examinava seu rosto, Paul virou-se abruptamente para o outro lado.
Quer que eu a leve para dentro ou prefere ficar sozinha por alguns momentos?
Eles... Tia Bia j sabe?
Ainda no. Deixei para voc lhe dizer.
Paul ofereceu-lhe o brao. Depois de uma ligeira hesitao, Melody
aceitou-o.
Quanto ao baile...
A escolha sua. Tem uma semana para pensar. Durante esse tempo,
pretendo discutir negcios com alguns conhecidos.
Eles j estavam quase entrando na casa, quando Melody tomou conscincia
exata do que acontecera e estacou, obrigando-o a parar tambm.
Eu sou Melody Van der Veer de novo!
Voc nunca deixou de ser.
- No. Os olhos dela estavam brilhantes de emoo. Mas agora voltei
a ser. Posso ir para onde quiser, fazer o que quiser!
Pode
Ento... Melody fez uma pausa, extasiada. Ento, eu vou ao seu
baile. No por sua causa, Paul, mas por Maata, David e todos os que precisam ter
voz ativa no governo de seu prprio pas. Eu sei o que estar totalmente sujeita
vontade de outra pessoa, e posso defend-los com mais convico do que voc
imagina.
Banhada pela luz vinda da janela, os olhos cheios de lgrimas de emoo e
as faces coradas de entusiasmo, ela estava to linda que o deixou sem flego.
Obrigada, Paul. No sei por que me libertou, mas com isso voc me
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devolveu a vida.
Foi assim to ruim?
Foi... No... que, para mim, a liberdade o bem mais importante da
vida, Na Inglaterra, eu poderia ter tido uma priso de ouro, mas...
Melody interrompeu-se abruptamente. Estivera a ponto de confessar que
matara, para escapar de uma priso por pouco. Horrorizada, deixou-o onde estava
escorreu para dentro, juntando-se conversa dos outros. Logo depois ele entrou,
e ela o contemplou com novos olhos.
Por que Paul a libertara? O que esperava ganhar com isso? Com certeza
mais do que sua ajuda no baile, pois arriscara-se a perd-la de uma vez por todas,
no dia seguinte.
Com a conversa de Amy e as anedotas picantes de tia Bia ressoando em
torno de si, Melody achou impossvel se concentrar e deu descanso a suas
emoes. No entanto, cada vez que se virava para Paul, encontrava o olhar dele
fixo em seu rosto. E, quando tentava conversar com os outros, sentia a
intensidade com que ele a observava. Certa de que o melhor seria se retirar logo,
alegou uma dor de cabea e pediu que a levassem para o hotel.
No, Paul, fique murmurou, ao v-lo se levantar. s chamar uma
carruagem... No quero estragar a sua noite.
Eu posso voltar, depois.
Por favor...
Ele concordou, e minutos depois uma carruagem parou diante da porta.
Beatrice anunciou que iria junto e mal esperou que sassem para perguntar:
E ento? O que aconteceu?
Melody meneou a cabea, incapaz de partilhar seus pensamentos at com a
tia, sua nica parenta viva e melhor amiga.
Foi alguma coisa que Paul disse? Vocs tiveram outra discusso, no
jardim?
No... No foi nada disso. A senhora se importa se deixarmos este
assunto para amanh?
De jeito nenhum, meu anjo Beatrice garantiu. J percebera que a
sobrinha estava muito tensa e sabia que seria contraproducente forar uma
confisso.
Na manh seguinte, cheia de atividade e compras, Melody no teve
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oportunidade de falar de sua recm-adquirida liberdade, mas agiu como se um
grande peso tivesse sido tirado de seus ombros. Um peso que, no entanto, fora
substitudo por outro, e que Beatrice percebeu de imediato, quando finalmente
recebeu a boa notcia, na hora do almoo. Depois de abraar a sobrinha,
partilhando lgrimas de alegria, ela voltou atitude prtica de sempre.
Agora que voc est livre, precisamos pensar no futuro. Sinceramente,
nunca pretendi passar o resto da minha vida numa fazenda perdida no meio do
mato, por mais confortvel que seja. Wellington, no entanto, uma cidade que
est crescendo, e, se mais gente vier da Inglaterra, chegar perto de ser
civilizada, um dia.
A senhora no pensa em voltar para a Inglaterra?
Como voc no pode, no. E no pense que sinto muita falta de Londres.
So as pessoas que contam, no os lugares. Desde que de vez em quando eu tenha
a oportunidade de ver uma pera, uma corrida de cavalos, freqentar um baile,
uma soire...
Tia Bia, a senhora impossvel! claro que iremos para onde quiser.
Posso trabalhar como professora de piano ou governanta, e a senhora pode ser...
o que era, antes de se tornar uma pessoa to querida da aristocracia londrina.
Que tal irmos para Paris? Ou Nova York? Ouvi dizer que Nova York o melhor
lugar para...
Mas voc no quer ir, quer? Beatrice interrompeu-a. Voc ama
Windhaven... E no s a Nova Zelndia e seu povo... Resumindo, no s
Windhaven que a prende aqui. Mas vamos deixar para pensar nisso depois. Agora,
temos de planejar nossa campanha, e o governador no tolo. Pode ser um
sujeito de idias preconceituosas, mas no tolo. Temos um ou dois dias para nos
prepararmos e tambm para ver o que Wellington pode nos oferecer, em termos
de futuro.
Poderia ter preparado Melody para o que viu na noite ao baile, com
carruagens e mais carruagens despejando convidados porta da manso branca
do governador. Ela, que sempre pensara em Wellington como uma colnia povoada
por imigrantes pobres, teve de refazer suas idias ao se deparar com os
integrantes dos trs regimentos britnicos na cidade, em seus uniformes verdes,
vermelhos e amarelos, misturando-se com mulheres, vestidas com sedas
belssimas, e civis, elegantemente engalanados em cores mais discretas.
Paul foi recebido com fria polidez por alguns e muito entusiasmo por
outros. Melody logo se tornou o centro das atenes, mas em sua opinio, nenhum
dos olhares que recebeu, cheios de admirao, por parte dos homens, e cime,
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por parte das mulheres, chegava aos ps do que lhe dera Paul Savage, ao v-la
com aquele vestido.
Ela se vestira com uma hora de antecedncia, deixando os cabelos soltos
sobre os ombros, como ele gostava. A nuvem de chiffon salientava a curva
deliciosa de seus seios, quase... apenas quase... visveis atravs das dobras
difanas do tecido. Atraindo a ateno para o ponto mais baixo do decote
enganadoramente modesto, estava um raminho de clemates em forma de estrela,
igual aos que espalhara pelos cabelos.
Paul a esperava no saguo do hotel, e ela descera a escada de cabea
erguida, feliz com sua recm adquirida liberdade, os olhos cor de safira
brilhando entre os clios longos e escuros. O vestido envolvia-a como as ptalas
de um boto de magnlia e parecia exigir, sutilmente, que esse boto fosse
colhido.
Pitando-a, ele no pudera deixar de pensar que lhe dera a liberdade,
permitindo que escapasse de suas mos para sempre. Ali estava o esprito que ele
tentara dominar... e que acabara por domin-lo. A beleza que tentara possuir... e
que acabara por possu-lo. A idia cortara seu corao e, antes que pudesse recu-
perar o autocontrole, seu olhar encontrara, o dela.
Melody estacara, perturbada com o olhar ardente, que parecia queimar at
sua alma. Sem perceber passara a ponta da lngua pelos lbios entreabertos,
pedindo ao homem diante de si, com todas as fibras de seu ser, que desse vazo
ao desejo que via nos olhos dele.
Paul dera um passo para a frente, e estacara por sua vez, respirando
fundo.
Ela no era sua! No era mais sua, para tom-la nos braos e levar escada
acima. No era mais sua, para descobrir o que havia por trs da miragem,
acariciando, explorando e fazendo com que ela explodisse num grito de suave
agonia.
Apertando os punhos para evitar que tremessem, ele se curvara numa leve
mesura.
mesmo um vestido inesquecvel, Melody. Sem dvida, ter todos os
homens presentes ao baile a seus ps.
Melody baixara o olhar, tentando abafar as sensaes desconhecidas que
se espalhavam por seu corpo.
Que desagradvel, para eles! Tomara que consigam se recuperar para
uma dana, pelo menos.
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Nesse instante, Beatrice aparecera no topo da escada, magnfica em um
vestido de cetim cor de bronze.
Algum falou em danar?
Paul virou-se, estendendo a mo para receb-la.
Nem sei como tenho coragem de lev-la, lady Davenport. Sem dvida,
vou passar a noite inteira lutando contra candidatos a seduzi-la.
Por favor, no lute demais, sr. Savage, porque estou ansiosa por uma
noite animada.
A noite, sem dvida, foi animada, e no fim Melody culpou o vinho e a rica
alimentao pelo que aconteceu. Elas comearam bem, danando todas as msicas
e promovendo sua causa com uma conversa leve, tpica de flerte.
Cada um a seu modo Beatrice aconselhara, quando ainda estavam no
hotel. Os homens no gostam de mulheres capazes de pensar, minha querida,
por isso teremos de for-los a reconsiderar seus pontos de vista com olhares
ingnuos e perguntas inocentes,
Melody no entanto, achou muito cansativo ter os ps pisados, a cada
passinho, e ainda precisar fingir-se de tola. Sentiu-se obrigada a s danar com
pessoas que pudessem influenciar o governador, e chegou a invejar as garotas
que rodopiavam nos braos de jovens oficiais. Paul sumira numa sala, logo depois
da chegada, e pelo comentrio dos homens que entravam e saam de l, ela ficou
sabendo que as faces opostas estavam se tornando bastante acaloradas. Num
dado momento, queixou-se de sede a um de seus pares, que a levou para a beirada
da pista de dana onde estava um grupo de homens e mulheres da mais alia
camada da comunidade.
Uma escolha infeliz, pois imediatamente uma prepotente matrona atacou-a.
Sra. Van der Veer, que bom ter vindo se juntar a ns! Estvamos mesmo
admirando o seu vestido. To... simples que chega a ser extraordinrio.
Melody forou um sorriso.
Eu gosto de linhas clssicas, sra. Cavendish. E ouvi dizer que o grande
costureiro, monsieur Worth est revolucionando Paris com linhas similares.
Correndo os olhos pelo vestido da mulher, de crinolina vermelha, enfeitado com
flores de seda branca no colo, ela no resistiu a um pequeno comentrio: Eu
gostaria muito de usar um vestido to brilhante e decorado quanto o seu, mas no
tenho o porte necessrio para isso.
Como a inteligncia da mulher no era mais brilhante, ela achou que estava
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Projeto Revisora 235

sendo elogiada.
Realmente, eu tenho um certo... je ne sais quoi.
A pronncia das palavras francesas foi atroz, mas o fato de a mulher ter
falado uma frase em outra lngua mereceu a aprovao de todo seu grupo,
incluindo o prprio marido.
Minha Amlia sempre teve dom para lnguas ele observou, sorrindo
abertamente. Ela at aprendeu uma ou duas palavras de maori! Isso ajuda
muito com os criados, no mesmo, sra. Van der Veer?
Melody vislumbrou a tia se aproximando e no conteve um suspiro de alvio,
antes de responder:
No temos criados em Windhaven, sr. Cavendish. Pelo menos; no no
sentido que o senhor d palavra.
Mas vocs tm maoris l, no tm?
Talvez a sra. Van der Veer no encare seus empregados como criados
sugeriu um rapazinho de olhar meigo. Afinal, nesta terra no h muita
diferena entre um criado e outros tipos de empregados.
De imediato um advogado gordo, com dedos cheios de anis, protestou.
Ao contrrio, h muita diferena! Um criado um ser inferior, que
trabalha muitas horas por um salrio mnimo. No pode estar na mesma categoria
dos meus escriturrios, por exemplo!
Melody no conteve o riso.
No, mas aposto que muitos dos colonizadores por aqui esto, at mesmo
as pessoas que trabalham para eles, sejam elas maori ou pakeha.
Bravo, Melody! Beatrice aplaudiu. Se continuar assim, no entanto,
vai acabar fazendo o sr. e a sra. Cavendish acreditarem que o que caracteriza um
criado a cor de sua pele e a falta de estudo.
O advogado concordou, com veemncia.
Sem dvida uma combinao dos dois, no que diz respeito a este pas.
So todos selvagens sem inteligncia.
Os criados, o senhor quer dizer? Melody perguntou. -Porque no pode
estar falando das centenas de maori educado pelos missionrios, que lem e
escrevem melhor que a maioria de nossos bravos soldados brancos, que lutam
contra eles, no norte. Nem dos chefes que aprenderam a negociar a paz em nossa
lngua, quando viram que no nos daramos ao trabalho de aprender a deles.
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Projeto Revisora 236

Mas a senhora concorda que eles so selvagens, no , sra. Van der
Veer? insistiu um bem nutrido batista, que lutara muito para instilar o medo de
Deus em sua congregao.
No, eu no concordo. Os maori tm uma f to grande em sua religio
quanto o senhor na religio crist. Sua confuso comeou depois que foram
convertidos, como vocs dizem. Um dos meus amigos mais queridos um chefe
maori, um cristo que viveu e praticou o cristianismo por muito tempo, antes de
resolver ser batizado.
Impossvel! exclamou o sr. Cavendish. Que a senhora tenha a
coragem de confessar que convive amigavelmente com esses selvagens...
Melody lanou-lhe um olhar de desprezo, antes de continuar como se no o
tivesse ouvido:
O senhor concorda que muitos dos ideais da cristandade esto baseados
nos Dez Mandamentos? Fez uma pequena pausa, esperando o gesto de
assentimento do batista, depois prosseguiu: Ento concorda, tambm, que h
poucos cristos em posio de mando, atualmente, j que os Dez Mandamentos
nada dizem sobre ser certo matar a famlia de um homem, roubar suas terras e
tomar sua esposa e filha, simplesmente porque sua pele um pouquinho mais
escura ou ele no tem a mesma religio. No h mal em tentar convert-los, mas
no quebrando promessas e dando-lhes falsas esperanas. Usem a fora de von-
tade, no a fora bruta. E perdoem a confuso que fazem, uma vez que mandam
para ensin-los, ao mesmo tempo, presbiterianos, catlicos, batistas,
protestantes, budistas e at maometanos! No de admirar que, no fim, eles
voltem aos velhos deuses. Um homem cristo pelo modo como age, e, se eu
passar o resto da minha vida ajudando quem eu puder, sem prejudicar ningum e
encarando cada dia como um milagre de renascimento, ento serei um dos eleitos
de Deus... no importa o nome que eu lhe d. E, se eu quiser conversar com meu
deus, no meio de um campo, numa quarta-feira, por que tenho de esperar at
estar num edifcio superlotado de gente, num domingo? Se eu quiser falar com
Ele numa igreja catlica, numa mesquita ou num templo, porque o lugar mais
prximo, a troco de que devo ir embora, s porque no estou usando um chapu
ou no posso entender a lngua do livro de oraes? Ela respirou fundo, o rosto
corado, os olhos faiscantes, sem perceber que muitas outras pessoas haviam se
aproximado, atradas pela voz clara de uma linda moa que parecia ter sado de
um conto de fadas.
Se eu quiser venerar o meu deus na minha casa e na minha terra, que eu
conquistei, cultivei e da qual tiro meu sustento, por que no deveria? S porque
um idiota qualquer, que no da minha cor nem fala a minha lngua me mandou
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Projeto Revisora 237

parar... e ainda exige que eu lhe entregue a minha terra?
Houve um silncio pesado... respiraes alteradas... depois uma exploso de
sons... aplausos, bravos, vaias, exclamaes de censura... e o barulho da sra.
Cavendish caindo ao cho, desmaiada.
"No julgueis para no serdes julgados. Beatrice sorriu para o pobre
batista que havia comeado tudo e segurou Melody pelo brao, empurrando-a
para o terrao. Vou buscar Paul. Pelo amor de Deus, no saia daqui nem torne a
abrir a boca. Ouvi dizer que eles mantm lobos famintos, no poro!
Ah, meu Deus, o que foi que eu fiz?! Melody murmurou, fitando as
lanternas chinesas que decoravam o jardim.
Encontrando-a no terrao, isolada, longe do caos que tinha provocado, Paul
sentiu um aperto na garganta. Estendeu a mo... mas logo deixou-a cair ao longo
do corpo. Ela no era mais sua, para que a tocasse.
Quando Melody se virou, j no viu mais a ansiedade e a melancolia no
rosto dele. Em vez disso, surpreendeu uma expresso neutra, cuidadosamente
controlada, que tomou por censura.
Desculpe, Paul! Eu no sei o que me deu. Agora, estraguei tudo para voc!
Ela caminhou para ele, os olhos azuis ansiosos luz do luar. Vou pedir
desculpas a todos e...
De jeito nenhum! Paul apertou os maxilares, resistindo vontade de
abra-la. Voc conseguiu dividir essa gente... Uma coisa que minha diplomacia
jamais teria conseguido... Uma coisa que s voc seria capaz de fazer...
Quer dizer que voc no me odeia?!
Com todo o cuidado, Paul colocou o manto sobre os ombros dela.
escondendo a peie acetinada e as curvas que o vestido quase deixava mostra.
Eu? Odiar voc?!
Ela sentiu a fora nas mos dele e estremeceu, tomada por uma mistura de
medo e ansiedade. Perturbada, viu-o levar uma de suas mos aos lbios,
esfregando-os de leve em seus dedos, os olhos fixos nos seus.
Melody Van der Veer, nunca senti tanto orgulho de algum como de
voc, esta noite!
Melody teve a impresso de que ia explodir de alegria, mas agarrou-se
sanidade, murmurando:
Eu... fico contente por ter... feito alguma coisa pela sua causa.
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Projeto Revisora 238

Ele sorriu.
Como eu havia previsto, voc foi uma emissria irresistvel. No deu
trgua a ningum. Tem certeza de que no quer ficar em Wellington, para obrig-
los a correr para o mar?
De repente, Melody sentiu um enorme cansao.
Eu s quero ir para casa o mais depressa possvel... para Windhaven...
Um pequeno brilho de esperana surgiu no olhar de Paul... mas foi logo
disfarado.
Claro. Voc deve estar querendo fazer as malas e se despedir de todos,
agora que est livre para partir.
Ela assentiu, incapaz de falar, sentindo algo esfriar em seu ntimo. Com
uma estranha rouquido na voz, Paul continuou:
Sua liberdade tambm lhe d o direito de ficar, claro. Vai ter de
providenciar muitas coisas, planejar o futuro. Voc pode no querer passar a vida
numa fazenda perdida no meio do mato, mas se no tiver alternativa, por
enquanto...
Ele se calou repentinamente, maravilhado com a luz de alegria que surgiu
nos olhos cor de safira.
Eu no tenho planos, Paul... Por enquanto, pelo menos...
Ento est resolvido. Voc fica em Windhaven, enquanto quiser,
Vou estranhar ser hspede, em vez de criada. Acha que tambm vai
estranhar no ser mais meu dono?
Eu nunca fui seu dono, Melody. Nenhum homem seria capaz disso. Por
um breve instante, ele encostou a ponta dos dedos ao rosto dela. Vamos
procurar sua tia. Mais uma noite no hotel e depois... para casa!
Melody pensou, depois, que fora sua preocupao com o futuro que a levara
a ter aquela impresso, na volta para o hotel. Mesmo assim o choque do que viu
acompanhou-a durante vrios dias.
A carruagem tinha acabado de entrar na rua principal. No cu, a lua
brilhava, iluminando tudo quase corno se fosse dia. Eles passavam por alguns
prostbulos, quando na porta de um deles apareceu um homem. A carruagem ia
depressa, e as feies do homem no puderam ser vistas com clareza, mas algo
no modo dele, na postura, fez com que Melody gritasse; agarrando o brao de
Beatrice. Logo em seguida, no entanto, ela soltou um riso tremulo e pediu
desculpas.
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Projeto Revisora 239

Acho que dei para ver fantasmas, tia Bia. O que a senhora estava
falando do major Oglethorpe?
Procurou prestar ateno, enquanto a cor voltava a seu rosto plido e seu
corao retomava o ritmo normal. Afinal s podia estar delirando, quando tivera a
impresso de ver Luther Hogge na porta daquela casa!

CAPITULO XX

Alucinao ou no, a lembrana do odiado rosto de Hogge manteve Melody
quieta durante toda a viagem de volta a Windhaven. Bastou, porm, que avistasse
a casa para se animar e esporear o cavalo, ansiosa.
Beatrice trocou um olhar com Paul, mas nada disse. Sua esperana era que
aqueles dois, to orgulhosos e teimosos, conseguissem se entender antes do fim
da semana, data que Melody havia marcado para partirem com destino Amrica.
S Beatrice testemunhara as olheiras da sobrinha, depois de uma noite de
lgrimas e agoniantes decises. Penalizada, sugerira que ficassem em Wellington,
mas Melody se negara terminantemente, dizendo que era muito perto. Ao que
parecia, ela tinha a iluso de que uma grande distncia a ajudaria a tirar
Windhaven e seu arrogante dono da cabea.
Maata estava l para cumpriment-los. E David, que desceu correndo os
degraus da varanda e se atirou nos braos de Melody. Ela o abraou, rindo, feliz,
mas o riso morreu em seus lbios quando seu olhar encontrou o de Paul, por cima
da cabea do menino. Ele tinha uma expresso to tensa que ela sentiu,
inexplicavelmente, que o trara com seu gesto afetuoso. Afinal, ambos sabiam que
no ficaria ali por muito tempo.
Delicadamente, Melody afastou o garoto.
Alguma novidade?
Muitas! David retrucou, quase explodindo de excitao. -O Tio Brett
est aqui, com um amigo. Eles chegaram dois dias atrs.
Brett?! Aqui?! Melody correu para dentro da casa seguida de perto
pelos outros. Brett!
Ele se achava junto lareira e, quando ela entrou na sala, suas feies
perfeitas registraram um lampejo de incrvel alegria... para logo em seguida
ficarem srias.
Voc veio! Melody exclamou.
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Projeto Revisora 240

Claro que ns viemos trovejou Patrick O'Shaughnessy. Ele avanou e
abrapu Beatrice, beijando-a na boca. Meu Deus, como senti a sua falta,
mulher! Por que no me escreveu? At num lugar perdido como este deve haver
alguma forma de correio. Afastou-a de si, assumindo um ar srio. Temos
muita coisa a contar, Beatrice... principalmente o Brett, aqui.
Paul havia recuperado a compostura, depois do golpe de ver Melody se
jogar nos braos de Brett. Sugerindo a David que deixasse os adultos
conversarem sozinhos durante algum tempo, esperou o menino sair e aproximou-
se com um sorriso polido.
Pensei que voc estivesse bem seguro em Natchez, Brett.
Natchez no oferece mais segurana Patrick comentou. Nem
qualquer outro lugar do sul. Foi por isso que viemos. Aqueles idiotas conseguiram
comear uma guerra!
Todos o fitaram, incrdulos.
Foi em dezembro, logo depois que vocs vieram embora. A Carolina do
Sul foi o primeiro Estado a se desligar da Unio, e logo outros Estados sulistas a
imitaram, como o Texas. Em fevereiro formaram outro pas, os Estados
Confederados da Amrica. Em maro os Estados Unidos elegeram outro
presidente, Abrao Lincoln, que decidiu no aceitar a separao. Ao mesmo
tempo, mandou algumas tropas para o Fort Sumter, que se encontrava muito
desprotegido. Parece inacreditvel, pois um fortezinho sem a menor
importncia, mas no dia 12 de abril as foras confederadas abriram fogo contra
ele. As tropas se renderam e o incidente transformou-se numa tragdia. Assim
que eu li a respeito, tomei providncias para sairmos de l. Brett no tem
condies de carregar uma arma, e eu no tinha a menor inteno de lutar por
uma causa daquelas.
Beatrice, a primeira a se recuperar do choque, levantou uma das
sobrancelhas, irnica.
Quer dizer que perdeu o gosto por uma boa luta, Patrick?
De jeito nenhum, milady. Ainda gosto de lutar... mas no por causas
perdidas!
No simpatiza com nenhuma das faces, ento?
Eu vivi no norte e no sul, e o que passei me permite afirmar que minha
lealdade s pelos meus e por mim mesmo. Mas no viemos para c s por causa
da guerra. Brett vai lhes contar.
Melody tomou o brao de Brett, meio sria, meio risonha, e confessou:
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Projeto Revisora 241

Se era preciso uma guerra para nos vermos novamente, fico contente
por ela ter sido declarada. Tenho pensado muito em voc, e agora o tenho aqui.
Ele enrijeceu ao ouvir essas palavras; depois, gentilmente, livrou-se das
mos dela.
Tambm tenho pensado em voc, Melody. Na verdade, no tenho
pensado em outra coisa, desde que veio para c. No conseguia dormir nem
comer, imaginando voc como escrava neste lugar selvagem, trabalhando no
campo... ou pior ainda. Ele a tratou bem?
Paul? Claro. Ela o viu relaxar as mos, e sussurrou: Voc estava
mesmo preocupado! Quer dizer que... ainda me ama.
Uma expresso atormentada surgiu nos olhos do rapaz, e ele tornou a
apertar os punhos, com um gesto violento.
Amo... e que Deus me perdoe por isso!
Como assim? O que foi que aconteceu, Brett? Gelada, ela tornou a
segurar a mo dele. Seja l o que for, no tem importncia. Eu o ajudarei.
Todos o ajudaro. Est pensando na sua cegueira? Ah, Brett, posso cuidar de
voc, agora que est aqui. Eu tambm o amo. E muito!
Realmente, Melody o amava. Amava a gentileza e a ternura que ele sempre
demonstrara... e naquele momento achou que seria capaz de enfrentar qualquer
adversrio; at mesmo Paul, para preservar a convivncia deliciosa que tinham
conseguido.
O rosto perfeito de Brett registrou uma tristeza infinita, enquanto ele
lutava para no perder o controle sobre si mesmo.
Claro que voc me ama, querida. natural que uma garota ame... o seu
prprio irmo.
Como?! O que foi que voc disse? Lgrimas surgiram nos olhos sem viso.
Melody... eu sou seu irmo.
- No estou entendendo. Melody no ouviu as exclamastes de Beatrice e
Paul, to incrdulos quanto ela. Sem resistir, permitiu que Brett a levasse para se
sentar no sof, os olhos fixos no rosto dele. No pode ser! No acredito nisso!
Ah, minha querida, eu daria tudo para que no fosse assim. Quando
Patrick resolveu vir embora, Nanny ficou com medo do que poderia acontecer
entre ns e revelou um segredo que vinha guardando h anos. Deus me perdoe, no
comeo eu no acreditei e at bati nela, para obrig-la a confessar que mentia!
Conte-me tudo Melody pediu, com um palidez de morte.
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Projeto Revisora 242

Numa voz angustiada, com muitas pausas, Brett narrou toda a histria,
terminando:
Voc v, Nanny amava nossa me tanto quanto odiava papai. Ela temia
pela sua vida e achou que era melhor ser escrava do que morrer na revolta. E,
quando Alex apareceu, foi como se Deus tivesse respondido s oraes dela.
Nanny se vingaria de papai, dizendo a ele que a mulher e a filha estavam mortas,
e voc seria criada em perfeita segurana. Naturalmente, seu nome teve de ser
registrado no livro dos escravos, mas ela nunca pensou que pudesse v-la de novo.
Com um gemido, ele enterrou o rosto nas mos. Ah, Melody, por que voc
saiu da Inglaterra? !
Melody sentiu um imenso cansao invadi-la.
Isso no tem mais importncia. Tudo mudou. Por duas vezes, descobri
que no sou quem eu pensava ser. No sei mais em que ou em quem acreditar.
Alguns meses atrs eu era a filha de Alexander e Charity Davenport, uma mimada
aristocrata inglesa. Depois, tornei-me a filha ilegtima de Alex Davenport e de
uma escrava chamada Ereanora. Agora... sou filha de Arabella e Luke Savage,
ambos mortos no dia do meu nascimento.
Beatrice abraou-a, mostrando que alguns sentimentos nunca mudam.
Melody, meu anjo, acho que isso verdade. uma histria fantstica
demais para no ser. E explica uma srie de fatos, at os seus olhos azuis, meu
bem. Ah, querida, voc tem passado por tanto sofrimento! Seu olhar voltou-se
para o Adnis loiro, junto Melody. Vocs dois tm. Deve ter sido terrvel
para voc tambm, Brett.
De certo modo, durante a viagem eu consegui aceitar. Mas agora, tendo
Melody aqui... perto de mim...
Todos haviam se esquecido de Paul, que travava sua prpria batalha, em
silncio, sozinho como sempre. Ouvir Melody dizer que amava Brett atingira-o
como um golpe. Naquele momento percebera que no conseguira nada libertando-
a, a no ser a chance de perd-la para sempre. Depois, ouvindo a histria de
Brett, experimentara um instante de esperana. Esperana que logo fora
substituda pela raiva, ao perceber que ela sempre seria atrada por homens
fracos e delicados, exatamente o oposto do que ele era. Parecia-lhe um absurdo
que uma mulher de esprito livre, to forte e corajosa como Melody, pudesse
desperdiar a vida com rapazes como Brett e Hugh Van der Veer, de quem ouvira
falar por Beatrice.
Tocando o sino com um gesto decidido, Paul chamou Maata.
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Projeto Revisora 243

Acho que um drinque vai fazer bem a todos. A sala j est inundada de
lgrimas e emoo, de modo que um pouco mais de lquido... Patrick?
O irlands assentiu, e Maata logo apareceu com vrios copos e garrafas de
bebida, numa bandeja. Paul serviu duas doses generosas de brandy.
Lady Davenport?
Brandy, por favor. Estou precisando de algo forte.
Melody? Brett?
Melody virou-se para Paul, fitando-o como se o estivesse vendo pela
primeira vez.
Tambm quero algo forte. E voc, Brett?
Nada, obrigado. Ele se levantou. Maata?
Sim, senhor?
Pode me levar para o meu quarto? Por favor, me desculpem. No momento
no sou boa companhia, e melhor eu me retirar.
Assim que Brett saiu, um silncio momentneo envolveu o ambiente. Ento,
Patrick disse:
No quer me levar para uma caminhada, Beatrice? Assim poder me
contar o que anda fazendo, longe da minha boa influncia.
Ela lanou um rpido olhar para Melody, que assentiu.
V, tia. Eu estou bem.
No, querida, voc no est. Mas no creio que possa ajud-la, no
momento, e estou querendo conversar com Patrick.
Melody olhou para Paul, mas ele fitava, pensativo, o copo, que j enchera
duas vezes. Suspirando, ela concordou:
V, sim. Na hora do jantar, todos ns estaremos melhores. Mas nem
ela acreditou em suas palavras e, quando os dois saram, murmurou: Vou dar
uma olhada em David...
Paul continuou em silncio, e ela arriscou mais uma vez:
Paul... Eles vo ficar aqui... Brett e Patrick? O olhar que ele lhe lanou
foi atemorizante.
Onde mais? perguntou, esvaziando novamente o copo.
Nesse ponto Melody resolveu se refugiar em seu quarto.
Hazel Smith Orgulho Selvagem Clssicos da Lit. Romntica
Projeto Revisora 244

Ah, Brett! suspirou, tirando os grampos dos cabelos para aliviar a
repentina dor de cabea. Ah, meu amor!
Foi nesse momento, ao ouvir suas prprias palavras, que entendeu a
profundidade e o tipo de sentimento que nutria por ele: um amor cheio de
ternura, absolutamente sem paixo, de uma irm por um irmo.
Durante o jantar, as emoes j haviam se acalmado, mas a tenso
continuava, com Paul obviamente bbado e tratando a todos com fria polidez.
E por que no? Beatrice questionou, cheia de simpatia, mais tarde,
De uma s vez, ele ficou sem uma escrava e ganhou uma prima adotiva. Voc no
foi a nica cuja vida virou de cabea para baixo, minha querida, embora todos ns
tenhamos a mania de pensar que nossos problemas so mais srios que os dos
outros.
Eu sei, tia Bia. Mas no consigo entender uma pessoa que no s se
recusa a pedir simpatia, como ainda nega, a cada passo, que precise disso. J
Brett... Ela meneou a cabea. No.
-Brett mudou. J no mais o mesmo, parece ter mais segurana no modo
de falar e andar. Ele... ele tambm no precisa mais de mim!
Beatrice lanou-lhe um longo olhar, mas nada disse. Durante os dias que se
seguiram, no entanto, sua pacincia quase esgotou. Paul tinha sua vlvula de
escape, cavalgando para longe ao menor pretexto, mas os outros no podiam sair
da paliada, pois os maori continuavam atacando, rio acima.
Patrick no se importava de ficar preso, pois ele, como Beatrice, tinha um
dom instintivo para fazer amigos. Os dois eram vistos constantemente juntos,
mas sempre na companhia de outros, como se tivessem medo das prprias
emoes. Melody logo percebeu que a separao havia servido para cimentar o
relacionamento do casal. Continuavam a se provocar, mas tambm trocavam
olhares que desmentiam as provocaes. Beatrice falou-lhe de sua juventude
infeliz; e ele revelou a infncia pobre que tivera, na Irlanda.
Mas voc, sendo uma lady, no pode fazer idia do que seja isso.
Beatrice sorriu, desta vez sem humor.
Possuir um ttulo no faz com que todas as portas se abram
automaticamente para voc. E o dinheiro no compra afeto e amor, embora possa
atrair muita inveja.
Mas voc nunca passou fome ou andou descala.
No, mas, se tivesse andado, ningum teria notado. Meu pai queria
Hazel Smith Orgulho Selvagem Clssicos da Lit. Romntica
Projeto Revisora 245

filhos, muitos filhos, para herdar o lugar caindo aos pedaos que ele chamava de
"base" da famlia. Mas minha me quase morreu ao me dar luz, e o mdico
aconselhou-a a no engravidar novamente. Meu pai se mudou para outro andar da
casa e nunca mais falou conosco, a no ser por meio de frases sociais, do tipo
"passe-me o sal".
E o seu irmo... o suposto pai de Melody?
Ele foi o arco-ris depois da tempestade. A situao intolervel durou
bem mais do que cinco anos. O divrcio era inconcebvel no nosso nvel social, mas
eu, pelo menos, no conhecendo outra vida, no o acharia to ruim. Papai nunca foi
cruel e no me faltava nada que o dinheiro pudesse comprar, mas para minha me,
a mulher que o amava, a vida se transformou num inferno, e um dia ela tentou o
suicdio. Seu desespero atingiu-o, finalmente, e deve ter sido naquela noite que
Alex foi concebido. Minha me teve um parto to difcil que nunca mais pode
deixar a cama, e meu pai dedicou todo seu amor a Alex. Eu era tratada como uma
estranha, isolada, sempre aos cuidados de governantas e professores. Adotei os
livros por companheiros e passei a estudar a vida de mulheres que traziam os
homens na palma de suas mos, como eu gostaria de fazer com meu pai. Tambm
estudei poltica e comecei a me sentar para ouvir os amigos de meu pai, to
silenciosa que eles se esqueciam da minha presena e revelavam mais do que
pretendiam. Beatrice sorriu novamente, com amargura. Eu tinha quinze anos
quando me esqueci de ficar de boca fechada e censurei um senhor pela opinio
que tinha sobre os pobres. Meu pai ento me mandou para a casa de parentes, em
Londres, para que me ensinassem a ser uma lady.
Patrick riu.
Eles devem ter lamentado o dia em que nasceram!
Eu dei muito trabalho, mesmo, e dois anos depois deixei-os para me
juntar a uma companhia de teatro. O que me faltava de talento, sobrava de
entusiasmo. No preciso nem dizer, no encanto, que isso tambm no durou muito.
Mas deve ter mantido a casa sempre cheia, enquanto durou. Imaginem,
ver lady Davenport representando?
Eu podia no gostar de meu pai, mas jamais desgraaria o nome da
famlia. No naquela poca, pelo menos! Beatrice tambm riu. Alm do mais,
eu tinha dezessete anos e no gostava do meu nome. Por isso, adotei o de
"Boadicea Devine".
Melody, que j ouvira a histria uma dzia de vezes, apenas sorriu, mas
Patrick explodiu numa gargalhada. Ento, erguendo-se de um salto, obrigou
Beatrice a fazer o mesmo, tomando-a nos braos.
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Projeto Revisora 246

Mulher, voc vale todo o ouro do fim do arco-ris, e eu a amo por isso!
Poucos centmetros separavam os rostos sorridentes, e Melody prendeu a
respirao. Beatrice estava perturbada, e Patrick mais ainda, mas foi ele que se
dominou primeiro. Recolocando-a na cadeira, declarou com voz ligeiramente
trmula:
Mas chega disso! melhor eu ir dar uma olhada numas cercas, seno o
patro vai exigir que eu pague pela minha hospedagem. Na porta, no entanto,
ele se virou, os olhos azuis brilhando. No h dvida de que voc escolheu bem,
minha "divina rainha guerreira"!
Tolo! Menino crescido! Beatrice gritou. Mas no havia censura em sua
voz.
No fim da semana, Paul anunciou que iria a Wanganui, buscar suprimentos.
Patrick imediatamente disse que ele e Beatrice iriam junto, se no fosse
inconveniente.
Faz tempo que no piso numa cidade, e Beatrice est precisando de um
passeio.
No sei, no ela protestou. Acho que j cruzei demais essa estrada.
S que nunca com Patrick Aloysius O'Shaughnessy!
Tenho amigos, l, que podem hosped-la. Paul ofereceu. Um casal de
missionrios. Geralmente, no gosto de missionrios, mas esse casal gente boa e
sincera, que ficar contente em receb-la durante alguns dias. Os olhos
escuros voltaram-se para Melody, que lutava para se concentrar num livro de so-
netos. Voc tambm pode ir, se quiser, Melody. Com Maata, Brett ficar em
boas mos.
Como o tom de voz dele no mostrava mais que um polido interesse, ela
meneou a cabea.
Prefiro ficar, obrigada. Prometi ajudar Maata a fazer compotas, em
troca de algumas lies de culinria. Vou precisar disso... depois. Tambm quero
fazer uns retratos de Maata e David, para guardar de lembrana, quando...
Melody hesitou, no querendo dizer "quando eu for embora", pois tudo em
seu ntimo se rebelava contra aquela idia. Deixar aquele lugar perfeito e a
amizade de todos seria ruim, mas se separar de David... e... outros... partiria seu
corao.
No dia seguinte o trio partiu, acompanhado por vrios maori armados.
Visitariam amigos e parentes na cidade, e receberiam um generoso pagamento
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Projeto Revisora 247

pelo servio extra, embora no fizessem questo disso, pois amavam Paul como a
um irmo.
Assim que eles se foram, Melody saiu procurando seu livro de esboos.
Metade das pginas j estava cheia de desenhos do cu, de pssaros, de flores e
de paisagens, e mostravam o amor cada vez maior da artista por aquela terra.
Havia tambm esboos de crianas maori, de pessoas idosas, de Maata, da casa e
de David, em uma centena de poses. Mas ela queria o esboo de mais algum, e
seus olhos adquiriram uma expresso suave, ao fit-lo.
Brett estava reclinado na grade da varanda, com o rosto erguido para o sol.
Tinha a pele bronzeada, e Patrick dissera que isso ele conseguira graas
ruidosa famlia em Natchez, que fazia questo de lev-lo em suas viagens de
canoa. Com eles, Brett desenvolvera os sentidos da audio e do olfato, e
aprendera a detectar a posio de uma pessoa, ao primeiro som. Ele podia
carregar e descarregar um rifle com segurana, e confessara que havia at
atirado num crocodilo, uma vez. Depois, a fera o jogara ao cho com um golpe de
seu rabo letal e, se no fosse Seth, o pior teria acontecido.
Brett se movimentava cada vez com maior segurana pela casa, deixando
muitas vezes a bengala de lado. Era como se pudesse sentir a presena dos
objetos diante de si, e uma ou duas vezes Melody surpreendera Paul observando-
o com os olhos apertados, como se ele tambm estivesse reavaliando seu
desprotegido primo.
Havia ainda uma certa tenso entre ela e Brett, quando ficavam sozinhos.
Como Beatrice dissera, a lgica nem sempre era capaz de mudar os ditames do
corao, e Melody sabia que Brett ainda a amava. Isso, no entanto, mudaria com o
tempo, e eles voltariam a experimentar a mesma proximidade de antes. Enquanto
isso, ela faria o possvel para que no ficassem sozinhos e tentaria dominar a
vontade que tinha de toc-lo e lhe fazer confidncias, como quando estavam na
Amrica. Com um sorriso satisfeito, Melody sentou-se num tronco da rvore, a
uma distncia em que ele no poderia notar sua presena, e comeou a desenh-
lo. Queria captar apenas a pose descontrada, pois o rosto poderia desenhar
depois, de memria.
Quase uma hora se passou, com Melody absorta em seu trabalho. O local
estava vazio, com os homens trabalhando fora da paliada ou patrulhando a rea.
O sol ia alto, e comeou a esquentar. Colocando o livro de lado, ela verificou se
estavam mesmo sozinhos e soltou os cabelos, deixando que cassem sobre os
ombros. Puxou tambm o vestido um pouco para baixo, permitindo que a brisa
suave acariciasse seu colo.
O vestido era o mesmo daquela noite desastrosa, quando, furioso, Paul a
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Projeto Revisora 248

beijara com tanta brutalidade. Nunca mais o usara, apesar de ter fechado
novamente o decote. No entanto, era um de seus trajes mais leves, por isso o
escolhera naquela manh, j que Paul no estaria ali para v-la.
A lembrana daquele conflito... e de muitos outros desde ento... fez com
que se esquecesse do livro de esboos. Reclinada no tronco de madeira, com os
olhos fechados e a cabea apoiada nas mos, ela voltou o rosto para o sol. Por um
instante, teve a impresso de ouvir os passos de Paul ressoando pelo cho de
terra batida, aproximando-se, o corpo dele bloqueando a luz...
Lindo, minha querida. Lindo mesmo...
Sobressaltada, ela abriu os olhos, dando com o rosto terrivelmente
marcado de Luther Hogge diante de si.
Hogge Vivo! Nem em seus piores pesadelos essa possibilidade lhe ocorrera.
Nunca pensara que pudesse ver novamente aquele rosto odioso, que as cicatrizes
repuxavam de um lado, dando a seu dono um aspecto grotesco. Ela queria gritar,
rejeitando aquela presena, mas nenhum som saiu de seus lbios entreabertos. O
sangue fugiu-lhe das faces, mas o alvio da inconscincia lhe foi negado, e ela
continuou a fit-lo, o corpo paralisado.
Sim, Melody, estou vivo ele declarou baixinho. Durante algum
tempo, cheguei apensar o contrrio... O tempo em que os cirurgies trabalharam
em meu rosto, apesar dos meus pedidos desesperados para que terminassem o
que voc havia comeado. Mas eu queria vingana... acho at que foi isso que me
manteve vivo... e gastei uma fortuna tentando, em vo, localiz-la.
Melody meneou a cabea, tentando controlar a sensao de irrealidade.
Como foi ento...
Pura sorte. Sua tia escreveu para um sujeito que ela chama de John
Brown. Ele estava na ndia, numa misso diplomtica, mas o mordomo reconheceu
o nome da remetente e levou a carta para mim, achando que eu sabia de tudo a
respeito. Da em diante, foi fcil. A Agncia Pinkerton, em Nova York, alguns
contatos na Carolina do Norte e em Nova Orleans... e aqui estou eu.
Hogge deu um passo para a frente. Horrorizada com a aparncia dele,
ainda em estado de choque, ela foi incapaz de fugir.
Seu rosto nunca me saiu da mente, esse tempo todo. No incio, eu a
odiei. Depois, devagarinho, durante meses de tormento, o dio foi morrendo e os
velhos sentimentos voltaram. A boca horrvel curvou-se num sorriso
fantasmagrico. Eu soube, ento, que precisava ter voc, Melody. Mesmo
quando descobri que possua sangue negro... que tinha sido vendida como escrava
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Projeto Revisora 249

a um fazendeiro... continuei a quer-la.
Outro passo frente e Hogge estava praticamente sobre ela, o olhar
devorando os ombros expostos e a curva dos seios sedutores, revelados pelo
vestido puxado para baixo.
Eu sei que no mais virgem, que foi usada como escrava, que sentiu as
mos de um campons na sua pele, e que no preciso mais me casar com uma
garotinha inocente... Agora, s tenho de comprar uma mulher experiente e ainda
incrivelmente linda. Voc vai gostar do aroma de perfume, depois do cheiro de
suor, e de mos macias, depois de dedos calejados pelo arado.
No! Melody protestou, num fio de voz. E estremeceu quando as mos
dele, com aqueles dedos grossos e repulsivos, agarraram seus braos, forando-a
a se levantar.
Mereo uma pequena recompensa, minha querida, depois de tantos
meses de espera.
Mas antes que a boca deformada pudesse alcanar a dela, o grito que
estava preso na garganta de Melody explodiu num som desesperado, cheio de
horror.
Brett saiu de seu estado de semi-letargia, levantando-se aos tropees.
Melody? Melody!
Com um gesto brusco, ela se libertou do abrao odioso, gritando:
- No, Brett! Fique onde est!
E correu para proteg-lo, mas Hogge chegou primeiro, arrancando a
bengala das mos do rapaz.
No! : Melody gritou. No est vendo que ele cego!
Brutalmente, Hogge jogou Brett ao cho, batendo-lhe com a bengala na
tmpora e na nuca.
Nesse momento, atrado pelo grito, David saiu correndo da casa. Mas
estacou, arregalando os olhos ao ver a cena.
Corra, David! Melody pediu, soluando, enquanto lutava contra Hogge.
V buscar ajuda!
Com um grito, no entanto, o menino jogou-se para a frente, chutando e
esmurrando corajosamente o inimigo.
Largue minha tia! Largue!
Hogge largou, virando-se com um gesto quase casual para atingir a tmpora
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Projeto Revisora 250

do menino com um murro. Melody gritou novamente, voltando a atac-lo, mas ele
ergueu o garoto semi-inconsciente no ar, dizendo por entre os dentes:
Voc gosta deste negro? Por acaso tomou gosto por pele escura, depois
que descobriu sua raa?
Solte-o Melody implorou. s uma criana. Eu faa o que voc
quiser, mas solte o menino!
O sorriso horrendo tornou a aparecer na boca deformada.
, acho que faz mesmo. Muito bem. Ns vamos sair daqui tranquilamente.
Meu cavalo est nos portes. Eu disse aos guardas que era seu parente, e assim
que vamos sair.
David comeou a se debater.
Eu no vou! E no conteve um gemido, quando Hogge dobrou seu brao
nas costas.
Pelo amor de Deus, Luther! As lgrimas escorriam pelo rosto de
Melody. Nesse momento, Brett gemeu, e ela se virou institivamente para ele.
No, minha querida avisou a voz odiada.
Mas ele est ferido!
Eu tambm estava, e vou me lembrar daquele ferimento cada vez que me
olhar num espelho. Pode imaginar o que tem sido a minha vida? capaz de fazer
idia do nmero de portas que se fecharam para mim, dos clubes que se
esvaziavam, assim que eu entrava? A situao chegou a tal ponto que eu no saa
mais. E as mulheres que passei a ter, desde ento... O que traz de volta a minha
presena aqui, no mesmo? Mas j hora de irmos. A criana vai conosco at a
costa, para garantir o seu bom comportamento.
Melody fitou-o por entre lgrimas, e sentiu um enorme alivio crescer em
seu ntimo, como se todos os seus sentimentos, todas as suas emoes, tivessem
acabado.
Eu vou com voc, Luther, e lhe dou a minha palavra de que farei o que
quiser. Mas, se voc machucar David, juro que o mato!
Os olhos midos do homem encontraram os dela, e ele percebeu que a moa
diante de si no era mais a mesma, que havia nela algo...
De repente, soou o barulho de gritos e cavalos a galope. Um tiro ressoou,
levantando poeira aos ps deles, e uma voz gelada elevou-se.
Meu primeiro tiro nos apresentou, sr. Hogge. O segundo acabar com
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qualquer chance de relacionamento que possamos ter.
Melody cambaleou, sem se atrever a acreditar. Hogge, por sua vez,
empalideceu, os olhos brilhantes cheios de malevolncia, mas soltou o menino, que
correu para os braos de Paul.
Papai!
Como em cmera lenta, Melody viu Beatrice vir para o seu lado, enquanto
Patrick se abaixava junto a Brett.
Est cometendo um erro, senhor Hogge disse, escondendo a raiva sob
um tom gentil. Melody e eu nos conhecemos muito bem. Tanto que ela ia ser
minha esposa.
Paul apertou os lbios, e Melody gritou, horrorizada:
No! Paul...
Mas a ateno dele estava fixa no outro homem.
No permito que ningum encoste a mo em meu filho ou ataque meus
hspedes, e o senhor fez os dois, sr. Hogge. Seu relacionamento com a sra. Van
der Veer pode ser resolvido depois. Agora, o senhor est em minhas terras, e vou
lhe pedir que se retire.
Melody vai comigo. Tenho dinheiro para compr-la, e ela j concordou.
S por causa de David ela protestou.
Foi como se ela no tivesse falado, pois Paul ignorou-a, continuando com a
ateno presa a Hogge.
A minha resposta "no", sr. Hogge. E no o aconselho a discutir... Ele
levou a mo ao Colt que trazia na cintura. A no ser que queira ficar sem a
outra metade do rosto. Hogge respirou fundo, depois virou-se para Melody.
Mil desculpas, Melody. Compr-la do seu fazendeiro vai ser mais...
dispendioso... do que pensei. Sem se descontrolar, ele tornou a olhar para Paul.
Como eu nunca ameao em vo, e creio que o senhor igual, vou-me embora.
No entanto, estou a par da raa e do status de Melody, e voltarei para
tratarmos de negcios, quando o senhor estiver mais acessvel. Quero Melody e
para isso estou disposto a lhe dar um bom lucro.
Paul empalideceu e enrijeceu o corpo, mas nesse momento Brett gemeu,
atraindo seu olhar. Quando tornou a levantar a cabea, Hogge caminhava para os
portes. Xingando baixinho, decidiu que acertaria contas com o brutamontes em
outra ocasio e foi para junto do primo.
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Projeto Revisora 252

Melody, no entanto, chegou primeiro, agoniada com o gemido do rapaz.
Brett! Oh, Brett, voc est bem? Desesperada, passou as mos pela
cabea dele, encontrando um inchao na parte de trs e um ferimento na
tmpora direita.
Melody? O que foi... onde...
No fale, Brett. Estamos a salvo. Paul chegou, e Luther foi embora.
Luz!... H... luz!!! Vagarosamente, Brett cobriu os olhos com a mo.
Logo depois, descobriu-os... cobriu-os novamente... e tornou a descobri-los.
Antes era s escurido, mas agora h... um pouco de luz!
Vamos, Brett disse Patrick gentilmente. Voc levou uma pancada
feia na cabea e precisa descansar. Acho melhor o mdico dar uma olhada em
voc, tambm.
Virou-se para Paul, que assentiu. Imediatamente, o irlands levantou o
rapaz nos braos e caminhou para dentro.
No! Brett protestou. Voc no entendeu o que eu disse... eu posso
ir andando!
Para cair dezenas de vezes, daqui at o seu quarto? Fique quieto,
menino, e finja que est completamente bbado, como em Natchez... No vai ser
preciso muita imaginao!
Melody comeou a tremer, enquanto eles se afastavam, ainda brigando, e
deixou que a levassem para a sala, onde lhe deram um copo de brandy.
Beba! mandou Beatrice.
Ela tomou um gole, tossiu, e depois, com um soluo, tomou o resto. S ento
olhou ao redor. Beatrice estava a seu lado, no sof, e Paul diante da lareira,
fitando-a atentamente, com um brao sobre os ombros de David.
Como... Por que vocs voltaram?
Agradea a sua tia Paul murmurou, com uma ponta de zanga na voz.
Melody fitou-o, sem entender aquela reao, e Beatrice resolveu
interferir.
Quando ns chegamos ao ancoradouro, o capito do vapor, que conhece
Paul muito bem, quis saber se tnhamos encontrado o homem que viera com ele
para uma visita a Windhaven. Pelo que disse, o visitante tinha passado a noite em
Pipiriki Lodge e alugado um cavalo para seguir viagem.
Nesse ponto, Patrick entrou na sala, anunciando que Brett estava na cama,
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Projeto Revisora 253

aos cuidados de Maata.
O garoto ainda insiste que est vendo luzes, mas no quero que se iluda.
Uma pancada na cabea causa muitas sensaes estranhas, e ele pode estar
imaginando coisas.
Coitado do Brett! Melody exclamou. Ele devia estar fora de si para
tentar me salvar, mas foi um gesto maravilhoso. Eu jamais me perdoaria se... se...
Ele est apaixonado por voc disse Paul. Isso s vezes afeta a
mente de um sujeito.
Beatrice lanou-lhe um olhar de censura, apressando-se em continuar:
Pelo que o capito nos disse, ficou claro que o visitante s podia ser
Hogge. A princpio eu no queria acreditar, mas depois tive de me render s
evidncias.
Ela agiu como uma louca! Sorrindo, Patrick levou a mo ao ombro de
Beatrice. Disse que era uma questo de vida ou morte e que tnhamos de
voltar, mesmo que matssemos os cavalos de cansao.
que na hora eu no tinha condies de me explicar bem. S disse a Paul
que ns tnhamos sado da Inglaterra por causa de Luther, que voc achava que o
tinha matado e que ele na certa viera atrs de vingana. Graas a Deus, chegamos
a tempo!
Um soluo escapou dos lbios de Melody.
Se no fosse pela interveno de Brett e David... David se atirou contra
Hogge como um tigrezinho para me defender. Ela fitou o menino. Mas David,
nunca mais faa isso, por nenhum motivo. Foi um gesto maravilhoso, de muita
coragem, mas voc no deve atacar um adulto, A histria de David e Golias s
funciona na Bblia!
David correu para abra-la.
Mas eu amo voc!
Melody retribuiu o abrao, fechando os olhos para melhor saborear o
momento.
E eu amo voc, meu pequeno guerreiro. Abrindo os folhos, ela
encontrou os de Paul e viu neles zanga, frustrao... e algo bem mais profundo,
que no soube definir. Afastando o menino de si, disse com um sorriso tmido:
Nunca mais faa isso, seno eu lhe dou uma surra!
Voc no teria coragem. Jamais! Posso procurar Maata e pedir um doce?
Eu mereo, no mesmo?
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Projeto Revisora 254

Est bem, Ela continuou sorrindo, comovida. Pea uma dzia... Mas
no v passar mal, depois, hein? Esperou que o menino sasse, e se dirigiu aos
outros: Tia Bia, o que eu faria sem a senhora? E Patrick, tambm. Paul... eu
ainda no lhe agradeci por ter salvado a minha vida.
De novo, a mscara polida tomou conta das feies msculas.
No foi tanto assim.
Se eu tivesse ido com Luther, teria sido a mesma coisa.
mesmo? A incredulidade dele era patente.
Paul!
O homem a conhece bem... At que ponto, prefiro no saber. O problema
que estava em minhas terras e pretendia machucar voc e David, depois de j
ter ferido Brett. No gosto de homens que praticam violncias contra cegos,
mulheres e crianas. No creio que haja mais nada a ser dito.
Voc precisa me deixar explicar! Hogge perigoso. Gastou uma fortuna
para me achar e no vai desistir agora.
Algo brilhou nos olhos escuros, desmentindo o tom frio com que ele falou.
Ento, sugiro que resolvam sua briguinha de namorados num lugar mais
adequado, que no seja to pblico. Agora, se me do licena, tenho uma fazenda
a dirigir... e h outro cavalheiro andante espera, precisando dos seus cuidados!
Interpretando corretamente o olhar de Beatrice, Patrick perguntou:
Voc se importa se eu for junto?
No. Sem mais, Paul dirigiu-se porta.
Quando os dois saram, Beatrice tomou as mos da sobrinha entre as suas.
Patrick vai falar com ele, e depois, numa hora mais conveniente, ns lhe
contaremos toda a histria. Neste momento, Paul est sofrendo as conseqncias
de uma grande dose de medo, zanga e cime. Uma combinao letal, para a qual
no h remdio a no ser o tempo. Enquanto isso, acho melhor seguir a sugesto
dele. Brett foi muito valente e merece um elogio seu. Mas tome cuidado, porque
ele ainda no aceitou o fato de ser seu irmo.
Eu sei, tia Bia, e preciso ter uma conversa sria com ele. S preciso
pensar no que vou dizer! Quando Hogge atacou... apesar de saber que Brett
cego... eu lutei para proteg-lo, como lutaria para proteger David... mas no Paul.
Os... os sentimentos so diferentes. Mesmo que no fosse cego, Brett to
gentil, terno e amoroso... Eu sempre teria vontade de proteg-lo.
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E quando Paul gentil... o que acontece?
Uma pessoa como Paul conforta com sua gentileza, protege com sua
fora. Pode-se lutar ao lado dele, at matar por ele, como no ataque dos maori. E,
se ele cai, isso nos d raiva, no medo. Melody calou-se, ciente de que havia
revelado demais. Ento, a amargura reapareceu. Mas homens como Paul s
precisam de mulheres como companheiras de cama. melhor eu ir ver Brett,
mesmo. Ele, pelo menos, precisa de mim.
Durante os dias que se seguiram, Melody, maravilhada, percebeu que aos
poucos Brett ia recuperando a viso. Comeou na primeira tarde, quando ela foi
v-lo e encontrou-o deitado, muito quieto, de olhos fechados. Ele se virou quando
a porta se abriu, sorrindo.
Melody?
Ela correu para abra-lo.
Ah, Brett, meu tolinho maravilhoso! Voc no devia ter feito aquilo. Mas
eu o amo pelo que fez. Amo muito. Sua coragem e desprendimento...
Brett afastou-a de si, com um gesto firme, mas gentil.
Eu a amo, tambm, Melody... Mas no como irmo... E esse o meu
tormento!
Brett...
Oua, quando eu estiver em condies de viajar, vou voltar para casa.
No para a Carolina ou Natchez, pois esses lugares representam um passado com
o qual eu no posso mais viver, mas para San Francisco. Patrick tem amigos l, e
talvez eu consiga... nem sei o qu! S sei que tenho de sair daqui.
Observando o rosto bonito, Melody sentiu o corao se apertar.
Nunca, mais vou... v-lo, ento?
Talvez... um dia. Brett sorriu. Sem vontade, mas sorriu. Vi a luz de
vrios modos hoje, meu amor. Muitos homens levam a vida inteira para ver, e
outros no conseguem nunca.
A escurido continua mais fraca, mesmo agora que voc descansou?
Ele se virou para a janela.
Continua. Mas ainda sou cego, e um homem cego no tem serventia para
voc. Mesmo que no fssemos irmos, eu no ficaria, apesar de j ter pensado
de modo diferente. Mas isso foi h muito tempo. Brett calou-se por um
instante, depois pediu: V se juntar aos outros. Eu gosto de ficar sozinho de
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Projeto Revisora 256

vez em quando.
No dia seguinte, quando Melody entrou no quarto, ele anunciou:
Voc est com um vestido claro. Tirou o luto!
Oh, Brett!
Ela o abraou, soluando, suas lgrimas misturando-se com as dele. Os
outros vieram, tambm, at Paul, que se ps a mostrar objetos e fazer
perguntas, com a voz embargada de emoo.
So s formas, mas eu posso ver voc... uma figura... cinza... de camisa
clara... segurando alguma coisa!
Durante mais um dia e uma noite, Melody e Maata se revezaram junto dele.
Ento, ao anoitecer do Ultimo dia, mais de uma semana depois que Hogge o jogara
ao cho, Brett virou-se quando Melody entrou e fitou-a da cabea aos ps.
Ela prendeu a respirao, mas, quando ele olhou novamente para a janela,
com lgrimas escorrendo pelo rosto, o medo a dominou.
O que foi, Brett? No me diga que acabou! Voc no consegue ver meu
vestido? um vestido de baile, de chiffon. Coloquei-o especialmente para que
voc o visse.
Mais uma vez ele a encarou, sem tentar esconder a angstia em seus olhos
claros,
Melody... minha doce... irm! Se eu soubesse que voc era to linda, teria
ido embora antes disso. Olhos azuis como safira, cabelos negros e pele macia
como as ptalas de um boto de rosa. Brett respirou fundo. Isto uma coisa
com a qual eu tenho de aprender a viver, minha irm... Mas no aqui... No agora...
No sou forte o bastante.
Tomada por urna tristeza to grande quanto a que sentira com a morte do
pai, Melody o abraou.
Brett... Ser que eu sempre vou amar voc?
Sempre... Como eu vou am-la... ou pelo menos tentar... como um irmo
deveria. Nem que leve o resto da minha vida!
Os lbios dele procuraram os dela. Pela primeira vez, ambos sabiam, sem
incesto, s com uma tristeza imensa pelo que poderia ter sido.

CAPTULO XXI

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Mas o que isso?! exclamou uma voz furiosa, vinda da porta. Paul
Savage olhava para Melody e Brett, rgido, a cicatriz que lhe marcava o rosto
parecendo ainda mais branca, em contraste com as feies tensas.
Praguejando, ainda sofrendo com a agonia da separao que viria, Brett
empurrou Melody para o lado, girou nos calcanhares e acertou um murro no
queixo do primo. Paul, que avanava em direo a eles, recuou alguns passos,
cambaleante, enquanto Brett declarava:
A primeira vez que senti vontade de fazer isso eu estava com oito anos!
Voc pode mesmo ver!
O bastante para sair daqui, E pretendo ir embora amanh.
Brett! To cedo?! exclamou Melody.
Ele sorriu para a irm, e seu rosto expressava tudo, quando disse:
Quanto mais cedo, melhor, no acha?
Procurando esconder a confuso que sentia, ela baixou os olhos para as
mos. Mas Paul j percebera a tenso no ar, e seu tom foi surpreendentemente
gentil.
Voc no precisa ir, Brett, mas concordo que o melhor, tendo em vista
a situao. Vou mandar um dos homens acompanh-lo a Wanganui.
No necessrio. Patrick e Beatrice disseram que iriam comigo, quando
eu quisesse, e na volta trariam os suprimentos que voc encomendou na semana
passada.
Num impulso, sabendo que tinha de dizer aquilo, mesmo que partisse seu
corao, Melody murmurou:
Isso vai facilitar tudo para voc, Brett. E, enquanto eles estiverem na
cidade, podem aproveitar para reservar uma passagem para mim no primeiro
navio que sair para a Inglaterra.
Um pesado silncio envolveu-os. Incapaz de enfrentar os olhos escuros
fixos em seu rosto, ela continuou:
No sou mais procurada como assassina, l, e poderia ter voltado h
muito tempo.
E Luther Hogge? Brett perguntou, preocupado.
A lei me proteger. Alm disso, tia Bia tem um amigo que ocupa um alto
cargo no governo.
Nenhum protesto saiu dos lbios de Paul, e afinal ela ergueu os olhos para
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Projeto Revisora 258

ele, encontrando apenas aquela mscara inescrutvel.
Voc pode fazer o que desejar, Melody. livre, agora, e no h nada
aqui para prend-la. Todos sabem que voc s voltou de Wellington porque queria
se despedir de Maata e dos outros. Vou falar com Patrick. Eles na certa vo
querer ir com voc.
No... No fale com eles, por enquanto. Vou contar a tia Bia depois do
jantar. Pode ser que eles tenham outros planos.
De novo, o rosto dele nada manifestou.
Est bem. Eu s vira perguntar a Brett se ele gostaria de ir a Rotorua
comigo, na semana que vem. l que esto as fontes naturais de gua quente.
Mas agora isso est fora de questo, por isso vou deix-los a ss, para que
terminem sua... conversa.
Paul saiu, fechando a porta atrs de si com desnecessria firmeza.
Droga! Brett exclamou. Melody, voc tem certeza de que est
agindo certo?
Incapaz de fazer a anlise ntima que tal pergunta exigia, ela assentiu,
torcendo para que ele acreditasse.
Eu seria muito tola se ficasse onde no me querem nem precisam de
mim. Vai ser bom voltar para a Inglaterra. Rever velhos amigos, ir a festas,
pera... Meu Deus, como senti falta disso tudo! E no de admirar, pois sou de l.
No existe nenhum lugar no mundo como Londres!
Pois eu cheguei a acreditar que voc estava se apegando a St. Clare.
No, Brett, s ao dono da St. Clare. Por ele eu teria considerado aquele
mausolu meu lar, mas o destino no quis. Melody forou um sorriso brilhante
demais. Assim, chegamos de novo ao ponto de partida. Retornarei a Londres.
Hogge est vivo e provavelmente logo encontrar outras vidas para destruir, j
que eu estarei sob a proteo de John Brown. John tem tanto poder que pode
arruinar o prprio Luther, se quiser. Ser quase como se esse ano no tivesse
acontecido, a no ser pelo fato de que agora tenho um irmo a quem escrever.
No!
Diante da dor de Brett, Melody abandonou o fingimento e foi at ele,
abraando-o com fora.
Desculpe! Eu s estava tentando suavizar esta situao horrvel. Com o
tempo, sei que ns dois aceitaremos a realidade. Ela se afastou um pouco para
fitar o rosto perfeito de Brett, notando que os olhos dele pareciam mais azuis,
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Projeto Revisora 259

agora que eram capazes de enxergar. Preciso me trocar para o jantar.
Este vestido lindo.Obrigado por ter deixado que eu o visse. Vou
guardar esta lembrana... como todas as outras que tenho de voc.
Melody sentiu um n na garganta. Sabia, agora, que existiam tipos
diferentes de amor, um to forte quanto o outro. Seu amor por Brett era to
profundo quanto o que sentira por seu pai ou o que sentia por David. A separao
seria muito dura, s o tempo poderia amenizar a dor que trariam.
At o jantar, ento.
Est bem. Estou precisando mesmo ficar sozinho. Tenho muita coisa em
que pensar.
Quanto Brett entrou na saa de jantar, mais tarde, estava completamente
mudado, e Melody soube que o que o estivera atormentando fora resolvido. Ele se
vestira de preto, com uma camisa branca, o que acentuava sua silhueta esbelta.
Aproximou-se da mesa com passos confiantes, e havia em seus olhos uma
estranha luz, quando se sentou em seu lugar.
David adquirira o hbito de jantar com a famlia, em vez de comer mais
cedo, na cozinha, com as crianas maori. Sentindo na atmosfera algo que no
conseguia entender, ele olhou de um para o outro, mas no se atreveu a fazer
qualquer comentrio.
Depois que a sopa de cogumelos foi substituda por um rico prato de carne
assada, Brett comeou:
Patrick... Voc mencionou que essa guerra na Amrica no pode ser
vencida por ningum, mas sem dvida o sul logo por um fim a ela. Afinal, o sul
est lutando para manter um direito que acha que Deus lhe deu, e isso incutir
mais fora a seus soldados. O irlands sorriu.
O sul pode achar o que quiser, que isso no o far vencer. O norte pode
pr em campo quatro homens para cada sulista. Tem fbricas de plvora e
canhes, alm de armamentos em quantidade. O que o sul vai usar para atirar nos
ianques? Fardos de algodo? Ou pretendem surr-los at a morte com folhas de
tabaco? Isso sem falar em estradas e rios navegveis. Quanto a estradas de
ferro para transportar tropas e suprimentos... Patrick meneou a cabea. So
tolos, todos eles.
Num tom baixo, Paul perguntou:
Posso saber o que voc est pretendendo com esta conversa, Brett?
O rapaz fitou o prato por um momento, depois olhou direta-mente para
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Melody.
Decidi me juntar ao Exrcito Confederado.
Foi como se ambos estivessem sozinhos, e as exclamaes dos outros
soaram abafadas, parecendo vir de muito longe dali. Melody sentiu uma vontade
louca de agarrar-se a Brett e sacudi-lo, ordenando-lhe que no fosse para o que
seria morte certa, s por sua causa.
Ele, por sua vez, fitando os lindos e torturados olhos cor de safira,
explicou:
S uma guerra grande o suficiente.
Ela entendeu e assentiu, os olhos cheios de lgrimas.
Mas que tolice! Patrick estava dizendo. .
No possvel que voc ainda acredite em escravido! S Paul nada
disse. Ele vira e entendera a agonia de sentimentos que havia entre os dois.
Brett deu um sorriso triste.
No, no vou lutar por acreditar na escravido. Vi, por mim mesmo, a
infelicidade que isso pode causar e no acredito mais que um homem deva ser
dono de outro, apesar de a Bblia afirmar que os "servos devem obedecer seus
amos". E olhe que sou um sulista, nascido e criado como um membro da
aristocracia, que sempre se surpreende quando mordido por um cachorro em
que bateu ou jogado ao cho por um cavalo que chicoteou. Se precisa haver um
motivo socialmente aceitvel, vamos dizer que estou lutando por uma causa
perdida... um sonho passado, que nunca mais voltar.
Mas voc no sabe nada de guerra Patrick insistiu.
- No se trata de um duelo romntico, num campo verdejante, ao nascer do
sol. Nem de uma marcha gloriosa ao som de tambores, Trata-se de sangue
derramado, rgos lacerados, gritos, choro, e o mau cheiro de suor, sujeira, medo
e cadveres que ningum tem medo de enterrar. solido, tristeza e tdio, mas a
sensao de que todo mundo sabe o que est fazendo, menos voc. E nesta guerra
estpida voc ainda ter a chance de apontar sua arma para um irmo... e v-lo
apontando a dele para voc!
Tenho sido super protegido desde os sete anos. Sempre me disseram o
que vestir, o que comer, o que fazer e at o que dizer s pessoas. J tempo de
isso mudar, no acha? Fico grato pela sua preocupao, meu amigo... meu grande
amigo... mas j hora de eu permitir que voc volte a sua prpria vida.
No tente mudar de assunto, menino. Voc no tem a menor noo de
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Projeto Revisora 261

sobrevivncia, e, mesmo que saiba carregar e descarregar uma arma, no, faz
idia do que seja matar.
O mesmo acontece com a maioria dos outros soldados que l esto, Mas
no creio que seja preciso muita inteligncia para aprender.
Nenhuma comentou Paul secamente. A inteligncia s necessria
na hora de decidir se deve matar ou apenas ferir o inimigo. E, se voc resolver
matar, que homem escolher; o rapazinho inocente do campo, cujo nico crime foi
nascer no norte, ou o general manaco, que lhe ordena que faa um ataque suicida
boca de um canho inimigo para ench-lo de glria. Mas isso tudo irrelevante,
no ? At agora voc falou muito, mas no disse nada que realmente conte.
O sorriso de Brett morreu, e ele lanou um olhar involuntrio para Melody,
a seu lado.
Em todo caso, acho que no h muita coisa a ser dita, h? Paul
continuou. Voc resolveu achar uma guerra para si mesmo... e qualquer uma
serve.
O olhar dos dois era cheio de compreenso mtua.
Ento, espero que encontre o que est procurando.
David no conseguiu se conter mais.. No entendera direito o que fora
dito, mas sabia que aquela guerra era entre homens que gostavam de negros e
homens que no gostavam, Com a mente cheia de lembranas amargas de seu
grande inimigo, perguntou:
Voc no est indo embora por minha causa, est? No porque sabe
que sou um mestio, ?
David! Brett estendeu a mo para pegar a do garoto apertada sobre a
mesa. A minha partida no tem nada a ver com isso! Quando olho para voc, no
vejo um mestio, mas um jovem guerreiro que arriscou a prpria vida para salvar
a Melody e a mim. Vejo um rapazinho nascido de um lder entre os homens, e de
uma princesa entre as mulheres. Voc um amigo de que tenho muito orgulho,
David, no importa o seu sangue. David sorriu, tmido, mas incapaz de ocultar o
prazer.
Ento, se voc tem mesmo de ir... Mas vou sentir a sua falta. E
prosseguiu, mostrando a capacidade de adaptao da juventude: Pelo menos
vou ter tia Melody para me fazer companhia, quando voc for embora e papai
sair.
Um silncio desagradvel caiu sobre eles, e Brett lanou um olhar para
Melody. Aquele era o momento que ela temia. Pensara em contar a todos
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Projeto Revisora 262

individualmente, mas agora era tarde demais.
David... comeou, hesitante. David, querido, eu tambm vou embora.
No vai ser hoje nem amanh, mas ser logo.
A incredulidade surgiu nos olhos do garoto, to parecidos com os do pai,
mas ainda incapazes de esconder seus sentimentos.
Voc no pode! Melody engoliu em seco.
Eu preciso. David. Eu... e os outros... temos de voltar para casa... para
que voc e seu pai possam reassumir sua vida normal... a vida que vocs tinham,
antes... antes...
Mas eu pensei que voc tinha vindo para ser minha nova me!
Ah, David!
Com os olhos cheios de lgrimas, ela se inclinou para abra-lo. Mas ele
empurrou seus braos para longe, levantando-se abruptamente da cadeira.
Tambm, eu no preciso de outra me! No preciso de ningum, muito
menos de voc!
Soluando, o menino correu para fora da sala.
David!
Deixe-o ordenou Paul, - Voc j disse tudo o que tinha para dizer.
Eu preciso ir atrs dele... explicar...
No, querida Beatrice interferiu com gentileza. Eu falo com ele.
Sei mentir melhor do que voc.
- A senhora tambm acha que eu errei! Todos vocs acham!
Pode ter sido prematuro, mas eu no podia continuar mentindo. Ele tinha
de saber, mais cedo ou mais tarde. Por que no vo at l fora, tomar um pouco
de ar? Vocs podem! Todos podem fugir desta situao horrorosa. At Brett
pode arranjar uma guerra para ir lutar!
Paul pronunciou o nome dela num tom baixo, tentando interromp-la, e
Melody se virou para ele, furiosa.
A culpa sua, por isso no venha com histrias! Voc me colocou nesta
situao! Em primeiro lugar, me arrastou at aqui. : E eu nunca quis vir! Nunca
quis me apaixonar pelo seu maldito pas, o seu filho ou... Ela parou de falar
bruscamente, respirando fundo, lutando contra as lgrimas, corada, os olhos bri-
lhantes de sofrimento, magnfica em sua fria. Estou contente por ir embora.
Ouviu, Paul Savage? Contente!
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Projeto Revisora 263

Soluando, Melody ergueu-se de um salto, jogando a cadeira ao cho, e
correu para seu quarto.
No silncio que se seguiu, Maata entrou para tirar a mesa, lanou um olhar
em torno e recuou, apressada. Patrick tossiu e recebeu um olhar zangado da
parte de Beatrice. Eu entendo o ponto de vista de Melody ela comentou,
dirigindo-se a todos , mas acho que minha sobrinha est cometendo um erro. Se
me do licena, vou falar com ela.
Beatrice encontrou Melody soluando, com o rosto enterrado no
travesseiro, e abraou-a imediatamente.
Calma, querida! Ningum vale as suas lgrimas!
Brett vai embora, para ver se algum o mata, s porque me ama! David
est sofrendo, porque me ama! E Luther Hogge virou um verdadeiro monstro,
porque me ama! Que tipo de mulher eu sou, tia Bia? No tenho foras para
impedir o que est acontecendo!
Brett vai enfrentar essa guerra e encontrar o esquecimento... ou a
resignao... de que precisa. E sobreviver, porque a Natureza parece ter
predileo pelos tolos. David tem a resistncia da juventude e vai se recuperar,
com o tempo. Quanto a Luther Hogge. Nunca houve nada que voc pudesse fazer
para impedir o que aconteceu. O que ele sente no tem nada a ver com amor. Ele
a considera um objeto, lindo, sem preo, fora do alcance de todos, e resolveu t-
la.
- Eu gostaria de ter nascido homem!- Melody explodiu. E depois, com um
sorriso trmulo, murmurou: Mas a eu poderia ter sido como Brett... ou David...
ou Luther... Respirando fundo, afastou-se da tia. Sou uma tola por me sentir
assim! Deveria estar pensando em David, no em mim. A senhora poderia ir atrs
dele e explicar, tia Bia? Ele deve estar se sentindo completamente abandonado.
Eu daria qualquer coisa... No, eu no daria qualquer coisa... Eu no suportaria a
atitude arrogante de Paul Savage um minuto alm do necessrio. Como ele tem a
coragem de ficar zangado comigo, quando a culpa toda dele?
Sabiamente, Beatrice nada comentou, limitando-se a abraar a sobrinha
mais uma vez, antes de sair.
Sem nimo, Melody comeou a tirar o vestido, a angua e as roupas de
baixo. Ainda se achava dominada pela raiva e o desespero, mas agora havia
tambm uma mescla de outros sentimentos, completamente desconhecidos.
Jogando gua fria no rosto, ela soltou e escovou os cabelos, terminando por
colocar um penhoar de seda negra, enfeitado com rendas, que comprara em Nova
York,
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Projeto Revisora 264

No vou deixar que ele me magoe jurou. Vou seguir meu prprio
caminho. Posso at tomar conta de tia Bia, se for preciso... O rosto de Patrick
lhe veio mente, e um sorriso surgiu em seus lbios. Se bem que acho que no
vai ser preciso. Serei s eu, ento... Mas antes s que sob o taco da bota
daquele... selvagem!
Como que ecoando seus pensamentos, uma batida firme ressoou na porta.
Tia Bia no era, porque ela entraria sem bater, e Patrick ou Brett no a
procurariam ali.
V embora, Paul!
Mas ele entrou assim mesmo, e ela o encarou, repetindo:
Me deixe em paz, Paul. No temos mais nada para nos dizer.
Ao contrrio. Temos, e muito!
No! Eu vou embora. No amanh, embora eu esteja morrendo de
vontade de ir, mas no prximo navio para a Inglaterra. No momento... no quero
falar com voc... Saia, por favor.
Por que no amanh? Poderia seguir o seu precioso Brett at a frente de
batalha. E brincar de enfermeira, enquanto ele vive as prprias fantasias!
Pare com isso! Brett tem mais sentimentos do que voc jamais ter!
Mais compaixo e mais amor, alm de ser um cavalheiro da cabea aos ps. Ele me
ama com uma pureza que voc nunca conhecer!
No diga! Pois no essa minha impresso. E voc adora esse papel de
mulher intocvel, no , Melody Van der Veer? Adora conquistar coraes, mas
Deus ajude o coitado que se aproximar demais. O ltimo que fez isso ganhou uma
bala de recompensa. Cus, seu marido devia morrer de medo de voc!
No! Melody gritou, cobrindo as orelhas. Estava apavorada com a
raiva que transparecia nas palavras dele mas sentia, ao mesmo tempo, a mgoa
que o atormentava e que era to grande quanto a sua.
Talvez seja at bom voc ir embora, pois s Deus sabe quantos de seus
apaixonados ainda podem aparecer por aqui. Talvez at seu falecido marido
levante do tmulo e venha reclamar os prprios direitos! J ouvi falar de...
"damas"... que preferem se dizer vivas a admitirem que foram abandonadas!
No! Ele morreu, e Luther... - Ela lhe deu as costas, lutando contra a
horrvel lembrana. Luther estava morto... ,
Mas a voz sem piedade interrompeu-a, prosseguindo:
Uma excelente representao, mas j vi melhores. Voc no mais uma
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virgem ingnua. uma mulher casada, que depois da morte do marido... se que
ele est morto... foi viver durante mais de seis meses com um sujeito do carter
de Luther Hogge. E depois, em Nova York. Mas foi uma parada rpida demais, at
mesmo para uma viva to necessitada de conforto quanto voc! J a viagem para
o sul... Eu conheo aquele pas, sra. Van der Veer. Sei o que pode acontecer a
duas mulheres, viajando sozinhas... A vigilncia de sua tia foi to fraca quanto
tem sido aqui? Depois... meu caro primo Brett despertou seus melhores
sentimentos. Quanto tempo passou com ele, antes de ver como realmente era?
Um ms? Dois? Uma mulher experiente teria de agir rpido para suplantar a
deliciosa Celine.
Melody virou-se de novo para ele, os olhos cor de safira faiscando.
Chega! Voc pode acreditar no que quiser de mim, mas no ofenda Brett!
Os olhos de Paul se estreitaram.
Ento, era Brett! Acrescentou incesto sua lista? Deus testemunha
de que voc enfrentou o leilo com incrvel frieza! Achou que ele levantaria um
exrcito para libert-la? Ou j estava enjoada dele e atrs de caa maior?
Melody ergueu o punho fechado, mas Paul o agarrou cora dedos de ferro,
torcendo-lhe o brao para trs das costas e puxando- a de encontro a si.
No, voc no vai fazer isso! Pela segunda vez, no! J me fez de tolo,
mas agora acabou. Quase acreditei no seu desdm, mas agora sei que no era
mais do que uma "cena". Quantas ainda tem em seu repertrio? Que atriz voc !
Sua tia insinuou, uma vez, que j tinha "feito a vida" por a. Por acaso a ajudou
como isca? Ouvi dizer que isso comum. Vai ver o coitado do Van der Veer j
recebeu "mercadoria usada", apesar da sua pouca idade quando se casou com ele.
Magoada at o fundo do corao por aquelas acusaes, Melody
estremeceu e baixou a cabea.
Se voc acredita nisso, capaz de acreditar em qualquer coisa
murmurou, completamente desanimada. Tornou a fit-lo com olhos agoniados, que
espelhavam o sofrimento dos dele. claro que j estive com outros homens...
Tantos que at perdi a conta! No era isso que queria ouvir? Est satisfeito
agora? No acha melhor eu ir embora, tambm?
No! A negativa saiu como um gemido, expressando profunda dor.
No! Quase contra a vontade, Paul procurou os lbios dela com os seus, num
gesto estranhamente gentil, mas de uma ansiedade insuportvel. No!
repetiu. J esperei demais.
Melody gritou o nome dele, afastando a boca com um gesto brusco,
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Projeto Revisora 266

enquanto lutava contra o desejo por aqueles lbios sensuais.
No, por favor! No verdade. Nada disso verdade! Por favor, Paul...
Nunca houve ningum... Ningum!
Ningum, hoje. Ou esta semana... este ms... ou este ano? Mentirosa!
A voz dele foi quase um soluo. Mentirosa!
Paul jamais acreditaria na verdade, depois daquilo, e Melody, enquanto
lutava para se livrar das mos dele sentiu a raiva e o desejo que o dominavam.
Ah, Paul! exclamou, junto boca dele. Voc est enganado! To...
enganado!
De novo ele a calou com um beijo cheio de paixo, onde se misturava um
profundo ressentimento. Apertada entre os braos de ferro, Melody agarrou-o
pelos cabelos, puxando, lutando contra ele e contra o fogo que queimava em seu
ntimo. Uma batalha insana, que perdeu no momento em que Paul a levantou nos
braos e moldou seu corpo ao dele, atirando-a no vrtice de um furaco de
emoes.
Ah, corpo traidor!
Paul apertou-a ainda mais, e ela gritou... para sentir, no momento em que
seus lbios se abriram, a lngua quente invadir sua boca.
Ele provou as lgrimas que deslizavam pelas faces de Melody e
imediatamente afastou a cabea procurando-lhe o olhar.
No... Pare com isso, por favor! ela pediu.
Mas seus olhos a traram, e ele, em vez de parar, beijou-a novamente, nas
faces, nas plpebras, nas tmporas, no queixo e no pescoo, antes de voltar para
a boca, que acariciou com surpreendente gentileza, murmurando palavras suaves.
Tenho esperado por voc falou, de encontro aos lbios dela. H
muito tempo. Tempo demais!
Melody teve a impresso de que aquele tempo fora toda sua vida, e que o
momento que viviam representava a culminao de seus sonhos mais secretos. O
penhoar deslizou pelos ombros, mas ela s tomou conscincia disso quando dedos
firmes envolveram-lhe os seios. De novo murmurou um protesto, que se
transformou num gemido, quando aqueles dedos comearam uma carcia que era
puro tormento. Os dentes de Paul moveram-se por sua orelha, mordiscando o
lbulo, e um delicioso arrepio percorreu-lhe a pele, enrijecendo os mamilos
rosados. Um mundo de sensaes queimava em seu ntimo, despertando uma
estranha dor, que mais parecia um latejar. No instante seguinte, estava sobre a
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Projeto Revisora 267

cama..Presa sob o corpo dele, ainda tentou resistir, gritando-lhe o nome, mas sua
voz soou como uma doce carcia.
Tempo demais! Paul repetiu.
E ela sentiu as carcias lhe incendiarem lentamente o corpo, ousadas,
embriagadoras.
Seus outros apaixonados lhe ensinaram isto? ele perguntava, com voz
rouca. E isto? E isto?
Melody, incapaz de se controlar, entregou-se inteira onda de prazer.
Deixou que ele a despisse, e viu extasiada as roupas de Paul serem atiradas longe,
revelando-o numa esplendorosa nudez.
Paul se posicionou sobre o corpo que se abria para receber o seu.
Murmurou o nome dela, cego de desejo, sofrendo com a lembrana de todos os
outros que j haviam amado aquele corpo perfeito. Quase enraivecido, penetrou-
a... e seu choque ecoou o grito de Melody. Imobilizou-se por um instante, mas o
ardor em seu ntimo j consumira todo o remorso, e ele recomeou a se mover no
ritmo da paixo. Beijando as plpebras fechadas de Melody, sentiu o gosto de sal
nos lbios e repetiu o nome dela, vezes sem conta.
Quando tudo acabou, Paul deitou-se ao lado e aconchegou-a junto a si,
mantendo o contato de pele com pele.
Melody, por qu...
Ao fitar os olhos cor de safira, viu neles uma mistura de sofrimento e
paixo, j morrendo... e um desespero como nunca imaginara possvel.
V embora ela pediu. No quero que me toque, nunca mais!
Melody.
Voc foi meu primeiro homem, Paul Savage, e me possuiu com dio,
acreditando nas mentiras criadas pelo seu cime. Eu sonhei... todos esses meses...
talvez durante anos... como seria esta primeira vez. Melody rolou para longe,
rejeitando a paixo e o prazer intenso que ele a fizera conhecer. V embora!
V embora daqui!
Com o corao pesado, ele levantou e se vestiu. Da porta, ainda se virou
chamando-a baixinho, procurando algum sinal de rendio.
V embora! ela repetiu, dando vazo raiva e mgoa. Quando
Beatrice entrou, sem bater, como sempre, viu em primeiro lugar o penhoar
amassado no cho e depois a sobrinha nua, encolhida sobre a cama.
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Ah, meu amor! exclamou, correndo para abra-la. Melody afastou-a,
endireitando-se com um sorriso trmulo nos lbios.
Est tudo bem, tia Bia. Verdade! Mas vamos ter de contar tudo a Paul.
V atrs dele e diga-lhe... Fale tudo, por favor!
Eu vou. E vou lhe dizer muita coisa mais! Quando eu terminar, Paul
Savage vai estar achando que o ltimo ataque maori foi um verdadeiro piquenique!
No... eu estou bem, tia Bia. Ele no me machucou. Um riso incerto
escapou-lhe dos lbios. Pelo menos, no muito... Ah, tia Bia, vai ser sempre
assim? sempre assim entre um homem e uma mulher?
Entendendo mal, Beatrice assegurou:
No, minha querida. Depois da primeira vez, no machuca mais.
Melody meneou a cabea.
No... isso no foi nada. No durou mais que um instante ele foi to
gentil depois, quando percebeu... No, eu estou falando da sensao de amor e
dio, tudo ao mesmo tempo. Ah tia Bia, o que vou fazer? Eu o amo tanto!
Pela primeira vez Melody admitira, em voz alta, o que seu corao j sabia
h muito tempo.
Com ternura, Beatrice acariciou-lhe a testa, empurrando pai trs os
cabelos negros. Palavras eram desnecessrias. Nenhum resposta era possvel. Ela
continuou a embalar Melody, at sentir estremecer. S ento disse:
Voc sabe que pode ficar, no ?
No! Com um gesto brusco, ela se afastou. Tenho de ir. No quero
me sentir assim por ningum. Nunca mais! Quero me sentir segura, calma e
tranqila. A senhora precisa reservar passagem para ns, quando for a Wangami
com Brett. Quero ir para casa, no primeiro navio que partir! Ir para a
Inglaterra ainda ir para "casa"? Beatrice perguntou. E, sem esperar
resposta, prosseguiu: Vou falar com Paul. No se preocupe com nada.
Encontrou-o no escritrio... e hesitou na porta, chocada com o ar abatido
do homem diante de si, inclinado sobre a escrivaninha, com a cabea entre as
mos. Chamou-o baixinho, e ele ergueu os olhos, pela primeira vez sem ostentar a
mscara polida com que costumava esconder os prprios sentimentos.
A senhora sabe. Beatrice assentiu.
Precisamos ter uma conversa franca, Paul Savage.
Eu vou me casar com ela, claro.
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Um leve sorriso surgiu nos lbios de tia Bia.
Ela pode no querer voc... Mas antes de discutirmos esse problema, de
amor versus dever, h alguns fatos que deve saber...
J era tarde, muito tarde, quando Paul voltou ao quarto de Melody. Ela
havia se lavado, trocado o lenol que exibia a prova irrefutvel de sua virgindade
perdida e colocado uma camisola de cambraia, fechada no pescoo. Depois,
escovara os cabelos e fora para a cama. Seu corpo todo doa, mas muito pior era
a mgoa que escondia no fundo do corao.
V embora. exclamou, virando a cabea para o outro lado.
Melody... ns precisamos conversar.
Com relutncia ela se sentou, apoiada cabeceira da cama, sentada sobre
as pernas. Paul adiantou-se lentamente, indo acomodar-se junto dela.
No creio que ainda exista alguma coisa a ser dita. Tia Bia deve ter lhe
dado todas as... informaes necessrias. No tenho nada a acrescentar.
No quero que voc deixe Windhaven.
Ah, no quer! Melody sentiu a raiva crescerem seu ntimo. Ento
agora, depois que descobriu que no sou a vagabunda que me julgava, posso ficar
em sua casa! Por outro lado, agora tambm sou... "mercadoria usada, pelos
padres da sociedade. Uma mulher perdida, o que lhe d o direito de me usar
como sua... sua prostituta!
Ele estendeu a mo em direo a ela, que se encolheu.
No me toque! J suportei demais a sua arrogncia. No quero ouvir
mais nada da sua parte! dio e amor por aquele homem misturavam-se no
corao de Melody. Lutei a seu lado numa guerra maori, e depois cuidei de voc
por dias a fio. Limpei sua casa e capinei sua maldita terra! Fui uma companheira
amorosa para seu filho, ouvi seus sonhos, tratei bem seus amigos e espionei seus
inimigos. J o vi bbado e sbrio, zangado e alegre, doente e sadio. Fiz por voc
tudo o que uma esposa faria, Paul... at mais... mas no serei sua prostituta!
Voc seria minha esposa?
Voc no pode me pedir isso! Prefiro ir embora e deixar tudo isto que eu
amo. E j dei o primeiro passo, contando a tia Bia... O que foi que voc disse?!
Ela o fitou com olhos incrdulos e viu, nos dele, algo com que nunca havia
sonhado. Paul no estava sorrindo, quando a segurou pelos ombros.
Melody... Eu estou lhe pedindo para se casar comigo...
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Projeto Revisora 270

Mas...
Eu a amo ele confessou, com simplicidade. E isso tudo que
importa.
Mesmo notando sinceridade na voz dele, Melody meneou a cabea.
No, para mim. Voc me violentou, e agora, por causa de um sentimento
de honra errneo... ou um sermo de tia Bia... resolveu me oferecer o seu nome.
Eu disse que a amo. No o bastante?
J foi... Mas agora no mais. Algumas semanas atrs eu ficaria feliz
ouvindo essas palavras, porque acharia que podiam ser sinceras. Mas agora, no.
Agora, sei que meus padres esto muito acima dos seus. Voc s est querendo
transformar a sua ex-escrava numa companheira de cama legal. Eu quero... ou
melhor, eu exijo... muito mais do que isso. Exijo lealdade e confiana,
companheirismo e aquilo que vem de partilhar esperanas, medos e decises, alm
de horas boas e ms. Desculpe, Paul. Com lgrimas nos olhos, Melody admitiu a
morte de sua ltima esperana de felicidade. Eu no posso aceitar o tipo de
amor que est me oferecendo. No suficiente.
a sua ltima palavra?
Havia um mundo de tristeza na pergunta feita em voz baixa, e como ela
nunca julgara possvel ouvir isso vindo daquele homem arrogante, lder de
tantos... no acreditou. Com os lbios apertados, lutando contra o sofrimento e
fazendo o possvel para no perder a auto-estima, assentiu em silencio.
S me resta lhe desejar boa noite, ento.
Melody baixou a cabea, e logo depois ouviu a porta se fechando.
"Sua tola!", seu corao gritou. "Sua tola teimosa e cheia de orgulho!
Na manh seguinte, no entanto, havia outras coisas em que pensar: os
preparativos para a viagem de Brett... e a ausncia de David.
Eu tentei falar com ele, ontem Beatrice contou, preocupada , mas
David no quis me ouvir. No como dialogar com um rapazinho. Mesmo sendo to
independente, no podemos nos esquecer de que ele s tem sete anos.
Ele acaba voltando Paul garantiu. Um Paul estranhamente humilde,
preocupado com outras coisas alm de um filho que tinha o hbito de
desaparecer. - Vai levar algum tempo, mas ele volta. H uma velha cabana junto
s margens do Wanganui, para onde David vai quando quer ficar sozinho. Sinto
muito, Brett, ele devia estar aqui para se despedir. Mas possvel que voc ainda
o veja, a caminhe do ancoradouro.
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Brett assentiu, distrado.
Claro...
Ele s tinha olhos para Melody, cujo rosto plido e com olheiras
testemunhava uma noite mal dormida. Ser que um dia tornariam a se encontrar?
Ele conseguiria aprender a am-la, sem sentir aquela dor atroz no fundo do
corao?
Beatrice tambm estava quieta, naquela manh, e na hora de partir
abraou Melody com fora.
Ns voltaremos daqui a alguns dias, e ento poderemos falar do futuro.
O mundo a sua ostra, querida.
E a senhora a minha prola respondeu Melody. Mais preciosa que
diamantes e mais constante que o mar.
Minha nossa! riu Beatrice, emocionada. Patrick? Brett? Vamos?
O irlands colocou a mo enorme sobre o ombro de Melody.
At daqui a alguns dias. E, quando vocs forem ter a tal conversa, quero
participar, ouviu? No confio nas duas para andar pelo quintal, que dir pelo
mundo! E vou junto nem que seja s como companhia.
No sei, no... Acho que voc vai ser muito mais do que isso, Patrick
O'Shaughnessy!
Melody virou-se para Brett, e o sorriso morreu em seus lbios. No havia
nada... absolutamente nada... que pudesse ser dito. Sem condies at para
pronunciar-lhe o nome, ela foi para os braos dele.
Brett beijou-a nos cabelos, apertando-a de encontro ao peito como se
quisesse fundir seus corpos. Depois, repentinamente, disse:
V para dentro pediu. E no olhe para trs.
Um ltimo olhar agoniado, e ela obedeceu, caminhando com as costas
eretas, os olhos ardendo.
Minutos depois Paul entrou, e Melody soube que os outros tinham partido.
Incapaz de encar-lo ou falar de Brett, murmurou:
Estou preocupada com David.
Ele est bem. S quer chamar a ateno. Esse menino capaz de fazer
qualquer coisa para manter voc aqui. Mas acaba aceitando... Crianas sempre se
adaptam, embora s vezes levem tempo. No fim, tudo voltar a ser como antes...
pelo menos no que diz respeito a David.
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Projeto Revisora 272

Melody pensou em se abrir, mas hesitou. E acabou no tendo coragem de
revelar seus sentimentos ou a sensao de vazio que a invadia sempre que
pensava em separao.
Voc provavelmente est certo. David deve aparecer, no mximo, para
jantar. Eu falo com ele, ento.
Como quiser. Agora, tenho de sair para patrulhar os campos e vistoriar
algumas cercas. Antes de voltar, passo pela cabana. Melody...
Vou aproveitar para ler um pouco. Livros no faltam, nesta casa. Para
pr logo um fim conversa, ela evitou fit-lo nos olhos. Vou pegar alguma coisa
de Shakespeare... Ele parecia preferir a fantasia realidade.
Talvez isso lhe faa bem... Mas aqui s existe a realidade, Melody. A
realidade dura e fria. A terra. Os maori. Os cristos. E a batalha constante entre
o homem e a natureza.
Eu no estou fugindo da realidade, Paul, s descansando um pouco dela.
Ou voc j se esqueceu de tudo que tia Bia lhe contou? No sou mais uma
debutante inocente, porta da vida. Sou uma mulher que j atirou em vrios
homens, primeiro defendendo a honra, depois, defendendo a sua vida e a minha.
Uma mulher que enfrentou um leilo, onde fui desnudada por centenas de olhos e,
no fim, comprada e vendida como uma pea de carne. Que maior realidade voc
pode desejar? Ah, deixe-me em paz! Eu s quero um pouco de tranqilidade.
Houve um tempo em que tocar piano me ajudava. Na msica encontrei consolo
para a morte de meus pais, achei foras para suportar a presena de Hogge e at
mesmo para viver nesta terra, como sua prisioneira. Por favor, Paul! No
possvel que ainda sinta necessidade de me provocar. Deixe que eu viva pelo
menos estes ltimos dias em paz!
Paul se adiantou, a ponto de dizer qualquer coisa, mas depois mudou de
idia.
Vou para os campos do norte, depois darei a volta at o rio e voltarei
pelo sul. Se precisar de mim, mande um dos irmos de Maata me procurar. Eles
conhecem essa rota. David na certa vai voltar comigo, e voc poder lhe falar da
sua realidade. S no garanto que uma criana de sete anos entenda seus motivos
para abandon-la.
Isso no justo!
Mas ele j se fora, batendo a porta atrs de si.
Durante quase uma hora, Melody tentou se concentrar no livro de
Shakespeare, mas a palavra "abandonar" no lhe saa da mente.
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Eu no estou abandonando David! protestou de repente, em voz alta.
No assim!
Mas no fundo ela sabia que estava, e era essa a causa de sua inquietude.
Quando, momentos depois, uma sbita agitao ocorreu no ptio,
interrompendo seus pensamentos, Melody sentiu-se aliviada. Mais que depressa,
saiu para a varanda e viu Te Whatioao raki e seis guerreiros chegando a cavalo.
O chefe tinha uma expresso sria e, sem preliminares, ordenou: Voc tem de
vir conosco, mihi Van der Veer. Ele fez um gesto, um dos guerreiros adiantou-
se, puxando um cavalo sobre o qual, amarrado sela, vinha um homem branco.
O que isso, Te Whatitoaorak? Deixe esse homem descer!
Com prazer. Ele contamina um bom cavalo. Tirando a faca com um
gesto rpido, o chefe cortou as cordas que prendiam o homem, permitindo que
ele casse ao cho.
O prisioneiro tinha sido muito maltratado, mas parecia no ter ferimentos
graves, e Melody foi ajud-lo a se levantar. O cheiro de falta de banho e roupas
sujas s servia para acentuar-lhe a pssima aparncia fsica. De cabelos oleosos,
com os olhos injetados de sangue e sem dentes, era um exemplo tpico das
camadas mais baixas, que freqentavam os cortios e cais do mundo inteiro.
Ele foi pego em Te Tuhi por uns primos meus, dopa Man-gatoa. Estava
bbado e atacou uma das meninas mais novas, obrigando-a a pedir socorro o
chefe explicou, com evidente . nojo. Trouxe uma mensagem para voc, mihi Van
der Veer, alm disso... Do cinto ele tirou um pedao de pano, que entregou a
ela.
Mas isso... isso... Com uma palidez de morte, no querendo acreditar
na evidncia diante de si, Melody ergueu os olhos para o maori. Essa a manga
da camisa de David!
Te Whatitoaoraki, voltando-se para o homem.
E a mensagem, kuri?
O sujeito fungou, limpando o nariz na barra da camisa.
Voc no tem motivo para me xingar de cachorro, seu selvagem pintado!
Sou um homem branco e tenho amigos muito ricos.
A mensagem Melody exigiu, quase avanando no homem.
Meu amigo rico, o que est com o menino, mandou dizer que vai procurar
voc no prximo navio, e no outro. Depois disso, o garoto "desaparece da face da
Terra". Foi assim que ele disse. Se voc for sozinha, o garoto no vai sofrer nada.
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Mas se levar uma nica pessoa que seja, nunca mais ver o menino. Voc tem de r
sozinha e chegar a tempo. Ele acha que o mesticinho importante para voc.
Melody fechou os olhos por um momento, e num tom gentil Te
Whatitoaoraki lhe disse:
Vai dar tudo certo. Vamos mandar algum atrs de Paul, e depois meus
guerreiros e eu iremos com voc ver esse homem.
No, eu preciso ir sozinha. Hogge no est brincando. Ele um demnio
em forma de gente, capaz de matar David sem um segundo de hesitao.
Rawiri do meu sangue.
Mas ele meu... Eu o amo como a um filho! Melody exclamou. E
acrescentou, numa sbita inspirao:. Patrick e tia Bia devem estar entrando
em Wanganui. Se eu conseguir chegar l antes do que Luther espera, poderei
encontr-los. Ainda no sei como eles podero me ajudar, mas... Ah, meu amigo,
ser que voc capaz de me fazer chegar a Wanganui antes do navio que Luther
est esperando?
Te Whatitoaoraki fitou o vestido que ela usava, cheio de anguas.
Tenho uma canoa de guerra, no meu pa. Voc acha que capaz de
galopar at l e descer o rio nela? Meus homens so os melhores com um reme?
D-me dez minutos Melody pediu, correndo para dentro da casa.
Depois de vestir uma blusa leve e a mais simples de suas saias novas,
deixando de lado anguas e corpetes, ela voltou apressada para junto deles,
encontrando um cavalo j selado sua espera. Pertencentes a uma das poucas
tribos maori a usar cavalos, os guerreiros de Te Whatitoaoraki tinham uma
aparncia formidvel, sobre as montarias meio selvagens, e ela ficou contente
por poder cham-los de amigos.
O sujeito que trouxera o recado de Luther no estava mais l, e, diante de
seu olhar interrogativo, Te Whatstoaorak fez um gesto de indiferena.
Ele era s um mensageiro, no valia o trabalho de mat-lo, por isso o
soltamos. Sem cavalo, ele vai ter de andar muito para voltar a Wanganui.
Mas isso impossvel! Sem uma canoa, armas ou qualquer outra forma de
proteo, ele no sobreviver!
No cabe a ns dizer quem os deuses vo favorecer. Queria que ele
fosse conosco, para ir lamber as botas do patro assim que chegssemos?
Melody respirou fundo, dando razo a ele.
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Vamos?
O chefe assentiu, correndo os olhos pelas roupas prticas, mas que
revelavam inteiramente as formas perfeitas da moa. Seu amigo Paul encontrara
outra mulher to linda e corajosa quanto a primeira. Uma mulher capaz de lutar
ao lado dele, numa batalha, e arriscar a prpria vida para salvar-lhe o filho. Uma
criana que ela quase chamara de "sua".
Um dos meus homens ir atrs de Paul, com o irmo de Maata. Mas ns
no podemos esperar.
Melody montou e partiu a galope, com o chefe maori e o bando de
guerreiros. Eles fustigaram os animais at o limite de suas foras, para chegar
logo aldeia fortificada, e momentos depois Melody viu a linda waka taua, a
canoa de guerra. Mesmo tensa como estava, no pde deixar de admirar a
habilidade do arteso que esculpira a proa e a popa da embarcao
transformando -a num trabalho de arte.
Sem uma palavra, Te Whatitoaorak e seus homens entraram na estrutura
de mais de nove metros de comprimento e pegaram os remos de quase dois
metros. Assim que Melody se acomodou na parte central, deram a partida,
movendo-se em direo ao meio do rio.
Quando a canoa atingiu a correnteza, o chefe deu uma ordem breve, e os
homens, como se fossem um s, inclinaram os dorsos bronzeados e mergulharam
os remos na gua arremetendo para a frente com a velocidade de um golfinho. Se
em sua primeira viagem Melody sentira medo, naquela corrida suicida contra o
tempo ela teve a impresso de que o corao ia parar. Agarrada s beiradas,
fechou os olhos e rezou, enquanto a floresta verdejante ia sendo cruzada, cada
vez mais depressa. A viagem parecia no ter fim, e ela chegou a achar que jamais
recuperaria o equilbrio. Os homens remavam sem parar, s mostrando o esforo
a que tinham submetido seus msculos quando seu lder, afinal, anunciou:
Wanganui
Uma ltima curva os separava de seu destino, mas eles se dirigiram
margem do rio. Diante do olhar interrogativo de Melody, Te Whatitoaorak
sorriu.
Se quiser anunciar nossa chegada para a cidade inteira, s irmos at o
ancoradouro nesta canoa de guerra, tripulada por um bando de guerreiros
armados. Na minha opinio, o melhor ser passarmos todos despercebidos. Tenho
um primo, dono de uma escuna, que poder nos arrumar roupas e conseguir as
informaes de que precisamos. Por enquanto, voc no pode ser vista, kui, pois
no o tipo de mulher capaz de passar despercebida. J eu e meus homens, em
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roupas europias, viramos outro grupo de "nativos da cidade".
Melody levou a mo ao brao dele.
Ns o encontraremos, no ? E vamos salvar David!
Te Whatitoaoraki tornou a sorrir, mas foi um sorriso que no lhe chegou
aos olhos.
Iti noa ana, he pito mata. Literalmente, quer dizer: " s um naco, mas
ainda no foi cozido". Na sua lngua seria: "Onde h vida, h esperana". Faremos
o possvel para encontrar Rawiri, e, quando o encontrarmos, esse homem, Hogge,
vai se arrepender de ter vindo Nova Zelndia.
Preciso ir atrs de tia Bia e Patrick, Se no pudermos encontrar Hogge
logo, terei de tomar o navio, como ele mandou. Patrick pode se esconder at
Hogge aparecer, e depois nos seguir.
Como ns faremos, o tempo todo. Agora, melhor eu ir atrs do meu
primo, e voc, da sua tia. Fique com ela. Ainda temos trs horas, antes de o navio
chegar. Kia tupatote haere.
Tenha cuidado.
Voc tambm, meu amigo. Eu me sinto mais segura, sabendo que voc
estar por perto.
Com um gesto ele chamou os guerreiros e desapareceu em meio
vegetao, deixando dois para esconder e vigiar a canoa. Melody entraria sozinha
na cidade, para no despertar comentrios. Seria um escndalo uma mulher
branca ser vista na companhia de maori, principalmente um to corpulento como
Te Whatitoaoraki.
Sentindo-se muito sozinha e vulnervel, Melody percorreu quase um
quilmetro que a separava da cidade.
Eu vou encontrar voc, David murmurou para si mesma. E, quando
encontrar, juro que sou capaz de tudo para garantir sua segurana. Engoliu em
seco, sentindo os olhos se encherem de lgrimas. Vou fazer tudo que puder,
at deixar voc e tudo que eu amo para voltar com aquele animal Inglaterra.
Ah, David, s espero que voc entenda! Mas... se nem seu pai entende... Eu amo
vocs, mas nenhum dos dois ficar sabendo disso, agora.
Respirando fundo, Melody apressou o passo. No era bom se prender ao
passado, nem s incertezas do futuro. No momento, o importante era encontrar
Patrick e tia Bia.
Deus do cu, permita que eu chegue em tempo! rezou. E depois, num
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tom mais baixo, orou tambm a Rangi-nui-e-tu-nei, o deus Cu, o pai dos outros
setenta deuses maori. Afinal, precisaria de toda a ajuda que pudesse conseguir.

CAPTULO XXII

Naquele dia, os deuses tinham decidido favorecer os que amavam e eram
amados. Beatrice estava no segundo hotel em que Melody entrou e, depois de
ouvir as notcias, mandou um mensageiro procura de Patrick. O irlands chegou
vinte minutos depois e ouviu o relato com um ar sombrio, andando de um lado para
o outro.
Ns vamos encontrar o menino, eu juro! exclamou, socando o punho de
encontro palma da outra mo. E, ecoando as palavras do chefe maori,
acrescentou: Quando eu puser as mos naquele sujeito, ele vai precisar de
mais de vinte mdicos para ficar em p de novo! Fiquem aqui. Eu volto assim que
puder. Depois de mais de uma hora procurando em becos e bares, Patrick viu
Luther desembarcando de uma escuna de transporte de mercadorias, ancorada
junto ao cais. J localizara um dos homens de Te Whatitoaoraki, pois mesmo em
roupas europias eles no podiam esconder sua verdadeira identidade, embora
muitas vezes fosse necessrio um guerreiro para reconhecer outro.
Foi com confiana, portanto, que Patrick se aproximou do maori recostado
casualmente parede de uma taverna.
Homem de Te Whatitoaoraki?
O maiori fitou-o, sem dar a menor impresso de ter entendido, mas Patrick
notou a ligeira dilatao de suas pupilas e um leve apertar da mandbula.
Meu nome Shaughnessy. Conhece lady Davenport? E a sra. Van der
Veer? E logo em seguida, frustrado: Mas que droga, homem! O sobrinho do
seu chefe, Rawiri, est correndo risco de vida, por causa daquele sujeito gordo,
l, e voc fica a, bancando o ndio de pedra! Onde est Te Whatitoaoraki?
O homem endireitou o corpo.
Te Whatitoaoraki perto. Quer que eu siga o homem Hogge?
At que enfim. Quero voc e um dos seus companheiros falantes.
Quando Hogge parar, fique com ele e mande seu companheiro atrs de mim.
Estou no Hotel Rainha Vitria. Conhece o lugar?
Rainha "Wiktdria" boa mulher... Hotel horrvel... Conheo o lugar.
Patrick levantou os olhos para o cu.
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Se algum dia vocs assumirem o governo deste pas, nossos diplomatas
tero de modificar inteira mente seu mtodo de aproximao. Vocs no
desperdiam tempo com palavras, hein?
Peia primeira vez, o jovem maori sorriu.
Matua wakapai i tou maral, ka Wakapai ai i te marae o te tongata, Ele
riu, ciente de que Patrick era um pakeha, sem o menor conhecimento de sua
lngua.
Est bem, seu selvagem pintado e sorridente. O que foi que voc disse?
Eu disse; "Limpe sua prpria casa, antes de limpar a de outro homem".
Com outro sorriso largo e um andar felino, completamente em desacordo com as
roupas que vestia, o rapaz virou-se e saiu na direo que Luther Hogge havia
tomado.
Patrick ficou onde estava, seguindo-o com o olhar, e viu o rapaz fazer um
gesto com uma das mos. Imediatamente outro maori deixou o jogo de dados, que
estava sendo realizado sobre a calada, e foi se juntar a ele.
O irlands meneou a cabea, incrdulo. Se aqueles guerreiros magnficos
podiam entrar em bando numa cidade... e uma cidade fervilhando de soldados de
Sua Majestade... e passar despercebidos, que chance poderiam ter seus
habitantes, contra um ataque planejado?
Ainda bem que eles esto do meu lado murmurou para si mesmo,
voltando para o hotel.
Talvez fosse melhor ns chamarmos os soldados Beatrice sugeria,
quando Patrick entrou no quarto.
Mas Melody j tomara a sua deciso.
Eles no dariam a menor importncia a um garotinno mestio. E, se
Luther tem poder para comprar pessoas influentes, que dir alguns soldados.
No, eu tenho de me encontrar com Hogge e aceitar as exigncias que fizer.
Um brilho ardente faiscou nos olhos dela. Vou fazer tudo que puder para
garantir a segurana de David. Mas, depois que ele estiver livre, o caso ser
apenas entre mim e Hogge. A senhora conseguiu aquela passagem para a
Inglaterra, tia Bia!
Beatrice no conseguiu disfarar um certo embarao.
Eu... Ns amos ver isso amanh, antes de voltarmos para Windhaven.
Pela primeira vez, em vrios dias, Melody sorriu.
A senhora uma mentirosa, tia Bia? No tinha a menor inteno de me
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mandar de volta para a Inglaterra. E, sem esperar resposta, continuou:
Onde pode estar aquele animal, o Hogge?
Patrick adiantou-se.
Melody, acho que voc deveria deixar que Te Whatitoaoraki e eu
tomssemos conta da situao.
Os olhos cor de safira ergueram-se para ele, cheios de medo e zanga.
Voc desperdiou tempo! J devia ter me dito que o encontrou. Onde?
Leve-me at ele!
Patrick nunca vira aquele lado da personalidade de Melody, o da tigresa
defendendo os filhotes, e, surpreso, respondeu:
Ele est sendo seguido por dois homens do chefe, no momento. Assim
que parar em algum lugar, um deles vir atrs de mim.
Onde voc o viu? No podemos perder tempo!
Espere, querida! Beatrice gritou, vendo o rosto corado e os olhos
faiscantes da sobrinha com a mesma surpresa de Patrick. Ela sabia que Melody
havia se afeioado muito ao garoto, mas nunca pensara que fosse tanto. No se
preocupe, ns vamos encontrar Hogge. O menino no vai sair ferido.
Ele no "o menino"! David e... e meu!
Np limite da resistncia, Melody explodiu em lgrimas. Ouviu as palavras
de consolo e sentiu-os braos de Beatrice em torno de si, mas nada disso parecia
ter importncia, e, quando bateram na porta, correu para abrir.
O guerreiro bronzeado fitou-a com uma expresso instantnea.
No longe. Venha, agora.
Sem um olhar para trs, Melody saiu com ele para a brilhante luz do sol.
Fique aqui, Beatrice. Eu vou com ela Patrick ordenou bruscamente.
De jeito nenhum! Jogando um xale sobre os ombros, Beatrice saiu
frente dele, atrs da sobrinha.
O maori os levou a um depsito de linhaa, nos arredores da cidade. O local
fazia parte de um moinho em desuso e tinha vrias dependncias em torno.
Melody quis correr para l, mas o rapaz segurou-a pelo brao, preocupado.
Espere. Hemi no est aqui. O homem Hogge pode ter ido em outro
lugar.
Estamos perdendo tempo Melody protestou. Se Hogge est aqui
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Projeto Revisora 280

com David, preciso ir ao encontro dele. Voc e Patrick, estaro perto. Se eu no
conseguir dialogar com ele, sero dois contra um. Nessas condies, e se eu
concordar em acompanh-lo, Hogge no vai ferir David. a mim que ele quer. Se
no houver ningum no depsito, teremos de recomear nossa busca. Podei ser
que seu amigo esteja atrs dele.
Vendo que o rapaz ainda hesitava, ela gritou:
Ah, faa como quiser! E, livrando-se da mo dele, subiu correndo a
trilha, em direo ao depsito.
Deixe Patrick murmurou, quando o maori fez meno de segui-la.
Ela ter mais chance de falar com Hogge, se ele achar que est sozinha. Enquanto
isso, voc vai por este lado, que eu vou pelos fundos. No podemos esperar pelo
seu amigo. Se bem que eu acho que no vamos encontrar nada...
O maori assentiu afastou-se, com passos silenciosos.
Fique aqui, Beatrice. No quero me preocupar com a sua segurana, se
Hogge estiver armado... como eu acho que est... No... Sem discusses! Melody
j deve estar chegando. Olhe! Ela est na porta.
Patrick comeava seu avano, quando ouviu Melody gritar por ele. Sem a
menor cautela, correu para o depsito, abrindo a porta de supeto para dar com
ela de joelhos, no canto mais distante. Corra, Patrick! Pelo amor de Deus,
corra! Inclinada sobre o corpo de Hemi, o maori, ela tentava conter o sangue
que saa de um ferimento a faca, no peito do rapaz. Foi Hogge, aquele maldito!
Eu sei que foi ele!
Em segundos o outro maori apareceu, seguido por Beatrice. Patrick j havia
tirado a camisa do rapaz, para fazer um tampo, e usado a sua para enfaix-lo.
Precisamos de um mdico, e depressa. Aqui, homem! Ponha sua mo aqui
e aperte, assim. Eu volto j, j, com um mdico, nem que tenha de carregar o
sujeito no colo.
Patrick saiu correndo do depsito, e Melody tentou tranqilizar o jovem
maori.
Seu amigo vai ficar bom. Olhe, j est recuperando a conscincia.
Virou-se para o rapaz ferido: No tente falar. Voc est em segurana. O
mdico no demora.
Mas ele a interrompeu com um gesto fraco e uma voz tornada spera pela
dor.
"Wikitria"... O homem Hogge... "Wikitria"... Me fez dizer...
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O hotel? Ele foi para o hotel. Melody levantou-se de um salto. Ele
nos encontrou... Deixou uma mensagem... Eu tenho de ir Com os olhos
brilhantes de medo e raiva, ela agarrou a manga de Beatrice. Diga a Patrick
onde estou. Se houver uma mensagem, deixo l para que vocs vejam e sigam as
instrues que ele der.
No! Este rapaz pode dizer a Patrick onde estamos. No vou permitir
que entre na toca do leo, nem que seja por um segundo. E Hogge no vai estar no
hotel. Ele pode ser um filho do demnio, mas no tolo. Est fazendo uma guerra
fsica e mental, e, agora que sabe que voc est aqui, far com que sofra
bastante antes de desferir o coup de grce.
Mas Melody j saa, e Beatrice no teve alternativa a no ser ir atrs.
No hotel, o recepcionista adiantou-se rapidamente para receb-las.
Sra. Van der Veer, esteve aqui um homem, procurando pela senhora.
Quis saber qual era o seu quarto. Eu... eu sinto muito, mas ele... ele no era do
tipo com quem se pode discutir.
Os coraes batendo forte, elas correram para o quarto. A chave estava
na fechadura. Afinal... e em cima da cama...
Deus do cu! exclamou Beatrice, vendo a camisa de David sobre a
cama, rasgada a faca e ensopada de sangue. Virou-se para Melody, os olhos
banhados em lgrimas, mas a moa meneou a cabea.
No! Ele no est morto! Eu saberia, se estivesse!
O sangue...
No sei... Pode ser um aviso... terrvel e cruel... O maori estava
sangrando muito. isso! Um brilho duro surgiu nos olhos cor de safira. A
senhora mesma disse que ele est fazendo uma guerra fsica e mental. Hogge
quer me levar ao desespero. Quer que eu sofra tanto quanto ele sofreu. No vai
matar David, porque o nico trunfo que tem. Preciso pensar. Tenho de pensar!
Ela se deixou cair sobre a cama, ao lado da terrvel evidncia da crueldade
de Luther Hogge, e enterrou a cabea entre as mos. Houve uma batida na porta,
e Patrick entrou, muito srio.
O garoto vai sobreviver. Mais um pouco, no entanto, e Luther Hogge
seria responsvel por outra morte. Notando a camisa ensangentada e a
atitude de Melody, ele sussurrou: No! No pode ser!
David est vivo Melody declarou, com convico. Eu sei que est. S
no sei onde.
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Projeto Revisora 282

Patrick correu a mo pelos cabelos, a testa franzida. De repente, bateu a
mo espalmada na porta.
A escuna! Eu vi Hogge saindo de uma escuna, l no cais. o lugar
perfeito para esconder o garoto, e, se ele conseguir que voc suba a bordo, pode
partir com a prxima mar sem que ningum fique sabendo. Vocs simplesmente
desapareceriam da face da Terra. Ergueu as mos, quando Melody levantou-se
de um salto. No, desta vez ns vamos nos preparar. Se fosse necessrio, eu
enfrentaria a tripulao inteira de mos nuas, garota, mas acho que isso no faria
nenhum bem a David. Vou procurar Te Whatitoaoraki e a, sim, iremos at l.
Melody assentiu, aceitando que haviam perdido a vantagem da surpresa e
que Hogge estava brincando com eles, como um gato com o rato.
Depressa, por favor, Patrick!
S quando ele saiu ela voltou a sentar na cama, notando, com gratido, que
a tia removera a camisa de David para outro lugar.
No se preocupe, ns vamos encontrar David Beatrice falou, cheia de
firmeza. Com os guerreiros de Te Whatiteao-raki do nosso lado, no vai sobrar
um nico buraco nesta cidade onde Hogge possa se esconder.
Melody apertou,a mo da tia, grata peio apoio, mas em sua mente havia
apenas a imagem de um garotinho assustado, que se encontrava numa situao
horrvel, porque ela trara a confiana e o amor que ele lhe dedicava.
Depois de uma hora que lhe pareceu uma eternidade, um dos homens de Te
Whatitoaoraki apareceu para lev-los ao cais. O maori no falava ingls, por isso,
no momento em que viu Patrick, Melody correu para ele, ansiosa.
Qual a escuna? Eles viram Hogge? Sabem se David est a bordo?
Calma, menina! A escuna aquela l, mas ningum viu sinal algum de
Hogge ou do garoto. No entanto, h uma grande atividade a bordo, e a mar
vazante deve comear em menos de duas horas. Pode ser que eles estejam l
dentro, e s h um meio de descobrir com certeza.
Audaciosamente, ele subiu com Melody a prancha de embarque, seguido de
perto por Beatrice e o chefe maori. Fechando o cortejo iam seis dos melhores
guerreiros, aparentemente um bando, de nativos mal vestidos e amigveis. Mas a
tripulao da escuna no se deixou iludir e puxou as armas, enquanto o capito se
adiantava para falar com Patrick.
No temos lugar para passageiros, companheiro ele declarou, com um
sotaque que traa as docas de Londres e uma enorme variedade de portos at
Wanganui. Como pode ver tambm no temos tempo para conversa fiada, por
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Projeto Revisora 283

isso melhor dizer logo o que quer e ir embora.
Sujeito amigvel esse, hein? Patrick sorriu para Melody, os olhos
azuis brilhando com a antecipao do confronto, depois voltou-se para o capito:
Sou da mesma opinio, meu senhor, por isso vou direto ao que nos trouxe aqui.
Ns dois sabemos que um tal de Luther Hogge subiu a bordo desta escuna com
um garotinho. Eu quero o menino de volta e lhe ficaria grato se tivesse a bondade
de me dizer onde eles esto.
No esto aqui. Agora, d o fora do meu barco! O sorriso de Patrick
alargou-se.
Se assim, voc no vai achar ruim de meus homens e eu darmos uma
volta pelo seu barco, antes de irmos embora.
Voc me ouviu! D o fora deste barco, ou solto meus cachorros em cima
de voc!
O capito indicou os dez ou doze homens inquietos que tinham se agrupado
em torno dele, com uma coleo assustadora de armas, que iam desde arpes at
velhas cimitarras.
Te Whatitoaoraki afastou Melody para o lado e avanou um passo, sua
figura corpulenta mostrando-se um complemento letal para o corpo avantajado do
irlands.
Capito disse baixo e com preciso , se no permitir que meus
homens revistem seu barco, no ter mais cachorro nem canil. Os... nativos
amigveis que v nas docas no so to amigveis quanto aparentam e teriam
imenso prazer em queimar o seu barco. E acrescentou, depois de uma ligeira
pausa, a ttulo de explicao: O garoto com Luther Hogge meu sobrinho. O
capito olhou de um para o outro e passou a lngua pelos lbios, sabendo que fora
vencido. Fizera tudo que fora pago para fazer, mas havia morte no olhar daqueles
homens. Com um gesto, mandou que a tripulao recuasse. Os marujos obedece-
ram, ainda que relutantes e resmungando.
Como eu disse, eles no esto aqui. Pode ver por voc mesmo. O sr.
Hogge me pagou para usar a cabine por algum tempo, e me pediu para manter
voc aqui o mximo que pudesse. Ele sabia que vocs viriam. Sairemos com a
mar. Vou deixar um homem para trs, com um barco a remo, e a senhora deve vir
com ele para bordo assim que estivermos em alto-mar, moa. S ento o sr.
Hogge vai soltar o garoto.
Onde ele est agora? Eu tenho de saber Patrick interferiu.
Os homens de Te Whatitoaoraki acabavam de voltar de sua busca, e pelas
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expresses, era evidente que nada tinham encontrado.
Eu juro que no sei! o capito insistiu, agressivo. E, quando uma faca
apareceu na mo do chefe maori, gritou: Eu juro por Deus! Ele disse para eu
fazer um sinal quando a moa estivesse a bordo, que iria ao nosso encontro. Disse
tambm que estaria no ltimo lugar que vocs poderiam pensar, por isso melhor
desistirem.
Nunca! - Melody exclamou. Patrick, no podemos desistir!
Claro que no, minha querida. Ns os encontraremos. Agora a caa se
torna o caador. Mas o olhar dele no mostrava convico, quando a seguiu de
volta a terra.
Melody viu a mesma falta de esperana refletida em todos os rostos em
volta de si, at no de Beatrice, que se adiantou para abra-la.
Claro que o encontraremos, meu bem.
Mas a voz dela no demonstrava o otimismo habitual, e Melody sentiu-se
de repente muito sozinha.
Ah, Paul se pelo menos voc estivesse aqui! murmurou para si mesma.
E depois, em voz mais alta: Precisamos pensar. Qual o ltimo lugar que nos
passaria pela cabea?
Um jovem maori aproximou-se do chefe e disse algo enquanto os outros
esperavam, incertos. Te Whatitoaoraki assentiu, e com um sorriso de gratido e
alvio o rapaz afastou-se, apressado.
Ele volta logo o chefe explicou. irmo de Hemi, o homem ferido, e
est ansioso para saber como vo as coisas por l.
Tenho de lhe agradecer por ter ficado conosco tanto tempo, apesar do
ferimento do irmo. O leve sorriso que surgira nos lbios dela morreu, quando
uma idia lhe passou pela mente. No possvel! Ele no faria isso! exclamou.
Mas a idia persistiu, e ela se voltou para Patrick. Sabe onde ele deve ter se
escondido? O ltimo lugar que passaria pela nossa cabea? O depsito de linhaa!
S pode ser.
Beatrice fitou-a com os olhos faiscando.
mesmo! Ele voltou sobre os prprios passos. Como faz a raposa, quando
perseguida... Como o animal que ele !
A notcia rapidamente se espalhou e, como se fossem um s, todos
retornaram ao moinho. Te Whatitoaoraki ordenou aos guerreiros que se
espalhassem pelo mato, de modo a ficarem fora da viso do depsito, mas
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prximos o bastante para poderem atingi-lo com tiros.
Dominando o mal estar, Melody saiu das sombras, mas o chefe colocou uma
mo firme sobre seu ombro.
Ns vamos todos.
Preciso ir sozinha. No quero arriscar a vida de David, se que ele ainda
tem alguma chance.
O chefe, no entanto, no cedeu.
Ns vamos juntos.
Sem outra escolha, e no fundo contente pelo apoio, Melody concordou. Com
o maori de um lado e Patrick e Beatrice do outro, foi em frente, o corao
batendo forte, rezando para todos os deuses; principalmente para a Virgem
Maria e Papa-tu-a-nuku, a me Terra dos maori. Porque eram elas, acima de
todos, que conheciam as alegrias, esperanas, tristezas e dores da maternidade.
Antes que atingissem o depsito, houve um brilho de metal na janela e um
tiro ressoou. Em seguida, veio a voz de Hogge.
Parem a! Voc foi esperta me encontrando, Melody, mas cometeu um
erro ao trazer seus amigos. Estava avisada!
Luther... eu lhe imploro... deixe David sair. Fao o que voc quiser. Por
favor, Luther...
Mande seu exrcito de negros recuar, seno o garoto paga.
No! declarou o chefe, antes que Melody pudesse responder. Se
voc soltar a criana, vive; se a machucar, morre. A escolha sua.
Eu solto o menino, mas quero salvo-conduto at a escuna que est
esperando a mar vazante. E a mulher vai para a Inglaterra comigo.
Eu vou, Luther. s voc soltar David.
No! gritou Beatrice.
S se for por cima do meu cadver completou Patrick.
Eu tenho de ir! Vocs no entendem?!
Hogge! chamou Patrick. Como vamos saber que o garoto est a e
com vida?
Houve um momento de silncio, depois Hogge apareceu devagar, segurando
David diante de si. Os homens escondidos levantaram as armas, mas logo em
seguida, relutantes, tornaram a abaix-las. No eram atiradores de elite e no
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podiam ter certeza de no ferir David, caso disparassem.
Melody deixou escapar um soluo ao ver o menino, e um murmrio zangado
soou entre os homens. David devia ter lutado contra Hogge, em algum momento,
pois tinha a marca azulada de uma pancada no rosto. Parecia cansado, assustado e
muito pequeno, junto a seu raptor. Mesmo assim comeou a se debater quando viu
seus salvadores, gritando.
Tia Melody!
Hogge torceu-lhe o brao para trs, fazendo-o gritar de dor.
Como podem ver, ele est vivo e precisando de um pouco de disciplina.
Puxou o garoto de volta para o interior do depsito, fechando a porta, antes de
exigir: Quero sua palavra de que terei salvo-conduto. E quero Melody aqui.
Solto o garoto assim que a escuna zarpar. L, terei proteo suficiente.
Eu tenho de ir Melody gritou. Vocs no viram? Eu tenho de ir! E
correu para o depsito, antes que pudessem impedi-la.
Volte! No seja tola, berrou Beatrice.
Mas j era tarde demais. A porta do depsito abriu-se, e Melody foi
puxada para dentro.
luz ao lampio a leo, ela viu David no cho, junto a um rolo de linhaa,
onde fora jogado. Ele esfregava os olhos, lutando para no chorar, mas, quando
viu Melody, ergueu-se de um salto e correu para ela. Melody abraou-o com
fora, embalando, beijando e murmurando baixinho palavras de ternura e
conforto.
Muito bonito soou a voz odiosa. Nunca pensei que voc tivesse um
instinto maternal to forte, minha querida. Isso serve aos meus propsitos de
uma maneira extraordinria.
Melody fitou-o com os olhos brilhantes, cheios de lgrimas.
Eu nunca o perdoarei por isso, Luther! Vou com voc para a Inglaterra,
nos termos que quiser. Serei sua escrava, pronta a satisfazer todos os seus
caprichos, mas s sentirei dio por voc, at o fim dos meus dias!
Uma expresso, feia surgiu nos olhos dele, mas a voz no se alterou.
No duvido, minha querida. No duvido. E por isso que vou levar o
garoto conosco... para garantir a sua docilidade.
No!
Era horrvel demais! Pensar naquela criaturinha perfeita da seiva, amorosa
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Projeto Revisora 287

e livre, sendo escravizada naquela casa escura e apanhando por qualquer falta
real ou imaginria que cometesse, encheu Melody de revolta.
Voc no vai fazer isso! gritou, erguendo-se de um salto e avanando
para retalhar o rosto odiado de Luther Hogge com as unhas.
Ele a segurou pelos punhos, recuando alguns passos, chocado pela violncia
do ataque. Por um momento os dois lutaram, batendo na mesa e jogando o lampio
sobre os rolos de linhaa. Ento, Hogge atingiu-a com um murro no estmago, e
Melody caiu, com o corpo dobrado para a frente e contorcendo-se de dor.
Foi a vez de David atacar. No entanto, um tapa cheio de desprezo o atirou
para o lado.
Eu cuido de voc depois!
Melody foi a primeira a ouvir o estalar do fogo e fitar, horrorizada, as
chamas que lambiam os rolos de linhaa.
Luther! chamou, num tom quase inaudvel.
Mas ele j tinha visto. Tirando o palet, comeou a bater e a pisar nas
chamas, chutando para o lado alguns rolos. A linhaa, no entanto, estava muito
seca e incendiou-se em segundos.
Numa reao instintiva, Melody levantou-se aos tropees, agarrou David e
correu em direo liberdade. Alcanava a porta, quando ouviu o palavro de
Hogge. Houve um barulho ensurdecedor, e uma bala enterrou-se na madeira,
junto cabea de David. Desesperada, ela abriu a porta e jogou-se para fora,
arrastando o menino junto.
Patrick levantou-a nos braos e Te Whatitoaoraki agarrou David, correndo
com eles para onde os outros esperavam.
O fogo! Melody gritou, ainda com o estmago doendo do soco de
Hogge, O lampio virou. Vocs tm de ajudar Hogge!
Ele poderia ter matado voc Patrick rosnou.
Voc no pode deixar que ele morra queimado. Mesmo sendo quem !
A porta estava em chamas, agora, e o interior do depsito parecia um
inferno. Um grito animal, mais de raiva do que de dor, chegou ao ouvido deles.
Pelo amor de Deus, faam alguma coisa!
No d mais The Whatitoaoraki falou baixinho. Ningum pode
entrar... ou sair de l.
De repente, um grito que fez o sangue gelar nas veias de todos soou:
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Projeto Revisora 288

Melodyyyy...
Logo em seguida veio o som de um tiro. Melody caiu de encontro ao peito
largo do irlands. Acabou, pequena, acabou.
Mas ela sabia que se lembraria, para sempre, daquele grito horrvel.
Podemos ir para casa, agora? uma vozinha perguntou, trazendo-a de
volta realidade.
Claro... Claro, meu amor! E o mais depressa que pudermos.
Melody virou-se para Te Whatitoaoraki, mas no precisou dizer nada.
A waka taua est esperando.
Tia Bia, a senhora e Patrick vo voltar tambm, no ?
Vamos, mas de um jeito mais civilizado. Vamos tomar o vapor, rio acima.
Os cavalos estaro esperando por vocs no ancoradouro. Agora, tenho
de levar David para casa. Paul j deve estar louco de preocupao.
O maori pousou a mo em seu brao.
Estamos perdendo tempo. Mandei dizer a Paul para nos esperar no pa, e
ele no um homem paciente.
Beatrice sorriu.
Voc to bom na arte de suavizar os fatos que supera at a ns,
ingleses! V indo, Melody. Vou voltar para o hotel e trocar de roupa. J estou at
comeando a me acostumar com essa histria de mudar de lady inglesa para filha
de fazendeiro, de um momento para o outro.
Patrick segurou-a pelo brao, quando o grupo comeava a se afastar.
No faa uma mudana muito drstica, desta vez mandou. O
vestido de tafet cor de bronze vai dar bem.
Beatrice arregalou os olhos cinzentos.
Mas esse um dos meus melhores trajes!
Voc pode se trocar de novo, quando chegarmos ao ancoradouro. Eu
gostaria muito que subisse o rio com o vestido cor de bronze. Tenho umas
coisinhas para lhe dizer, e vai ser mais fcil se voc estiver parecendo um anjo
cado do cu.
No pela primeira vez, desde que o irlands entrara em suas vidas, Melody
viu a tia corar.
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Projeto Revisora 289

Anjo, hein? Pois sim! S se for um anjo de meia-idade, acima do peso e
com o halo definitivamente manchado.
Patrick sorriu.
assim que eu a quero.
Pois no vai me ter de jeito nenhum, Patrick O'Shaughnessy!
O sorriso dele alargou-se.
Esse exatamente o ponto que quero discutir, mas a meu modo e na
hora que me for conveniente. Melody, querida, melhor voc ir andando. Boa
sorte. Vejo voc esta noite.
Impulsivamente, Melody o abraou.
At a noite, Patrick. Ser um jantar de comemorao! J temos muita
coisa a celebrar, mas pode ser que haja mais ainda, quando voc chegar.
Beatrice fungou, afastando-se alguns passos para esconder os olhos
brilhantes. Piscando para Melody, Patrick foi se juntar a ela.
Est bem, Te Whatitoaoraki, vamos para casa disse Melody.
Mas em seu corao havia uma ponta de tristeza, pois sabia que Windhaven
nunca poderia ser seu lar, enquanto Paul Savage a visse como uma escrava liberta,
a quem julgara mal.
Foi com essa mistura de sentimentos que ela subiu a bordo da estreita
canoa de guerra e ouviu o incio do canto que marcaria o ritmo dos remos. Te
Whatitoaoraki num dos bancos, altivo e bonito como um deus pago, usando sua
voz sonora e gestos largos para animar os homens. Eles tambm cantavam a
cano familiar, Via moi, toia mai, te waka "Cuidado com a canoa" , enquanto
impulsionavam a embarcao cada vez com maior rapidez, at uma pequena
parede de espuma se levantar de cada lado.
Livre do medo e da tenso da ltima viagem, Melody foi tomada por uma
sensao extasiante, orgulhosa do fato de ser parte daquele grupo magnfico. Ao
mesmo tempo, sentiu uma certa desolao por saber que logo teria de voltar
Inglaterra.
Inglaterra! exclamou de repente, esperando ser tomada pela mesma
onda de saudade que a dominara ao sair de l. Mas nada sentiu. Meu lar
murmurou ento, e a imagem que lhe veio mente no foi a das colinas
verdejantes e da chuva fina, caindo sobre as ruas brilhantes. Em vez disso, viu
um bosque, no topo de uma elevao, e l embaixo uma casa cheia de ngulos
estranhos, sombreada por uma gigantesca rvore hoa.
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No chore, tia Melody David consolou-a. Est tudo acabado, agora.
Ns vamos chegar logo em casa. Papai estar esperando, e tudo vai dar certo de
novo.
Entre lgrimas, ela sorriu para o menino. Como poderia deix-lo?
- verdade meu guerreirozinho, ns logo estaremos em casa.No vou
deixar David! Jurou. Vou lutar com unhas e dentes para ficar com ele. Voc que
se dane, Paul Savage! Eu vou ficai! Voc pode me expulsar da sua casa, mas no
pode me expulsar do seu pas! Ele o meu lar, agora! Meu!"


CAPTULO XXIII

Avisado pelo som da corneta de concha, Paul soube que Melody estava
chegando muito antes de avistar a canoa. Quando finalmente a enxergou, pensou
que jamais esqueceria aquele quadro comovente.. Sentada altivamente, com um
dos braos envolvendo o menino, ela estava suja de p, molhada pela gua do rio e
com o coque de cabelos negros comeando a se desfazer. Mesmo assim, havia em
torno dela uma aura de tanta beleza que ele sentiu um n na garganta. Beleza que
rivalizava com o brilho dos olhos cor de safira, os quais espelhavam uma rebeldia
totalmente nova.
Para Melody, v-lo no ancoradouro, em p, na pose to familiar, com as
.pernas separadas e as mos nos quadris, foi como ouvir um grito de guerra. Ao
mesmo tempo, a viso do peito bronzeado, exposto pela camisa semi-aberta, e
das coxas musculosas, envoltas em uma cala de linho, fez seu corao disparar.
Ambos desejavam se abraar, deixar que o contato de pele com pele, boca
com boca, apagasse a agonia por que haviam passado. Mas ambos esconderam a
emoo sob uma capa de zanga.
Que droga, Melody! Nunca mais faa isso comigo ele gritou, no
momento em que ela ps os ps em terra. David meu filho. Se ele estiver em
perigo, eu cuido de tudo!
Voc no estava l para cuidar de nada ela replicou, acalorada,
Alm do mais, no era voc que Luther Hogge queria!
No,papai! David pediu, abraando o pai pela cintura e levantando para
ele os olhos suplicantes. Tia Melody salvou a minha vida!
Paul apertou os maxilares, abraando o menino com fora, reprimindo os
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beijos com que uma mulher no teria acanhamento de cobrir o filho. Paul Savage
era um homem em todo o sentido da palavra, mas em momentos como aquele sua
fora transformava-se na maior fraqueza.
Seu filho est bem, meu amigo Te Whatitoaoraki interferiu. E esta
moa teria dado a prpria vida por ele.
verdade, papai. Tia Melody disse que ia voltar para a Inglaterra e ser
escrava do homem Hogge se ele me soltasse. Como uma pakeha pode ser escrava
de algum, papai?
Muito plido, Paul ergueu os olhos escuros para Melody.
Deus permita que voc nunca descubra, meu filho.
O tal Hogge tambm disse que levaria ns dois para a Inglaterra, para
garantir a... a... no-sei-o-qu de tia Melody.
Docilidade Melody explicou, enfrentando o olhar de Paul.
Ele soltou o filho e virou para o outro lado, incapaz de encarar qualquer um
dos dois.
Meu Deus! exclamou baixinho, deixando transparecer uma profunda
angstia na voz, Eu devia ter matado aquele maldito, quanto tive a chance.
Isso tambm j foi resolvido o maori contou.
E, enquanto caminhavam para o pa, em meio a muitas pausas, preenchidas
por David com grande dramaticidade, Paul ficou sabendo de tudo. Ele ouviu em
silncio, de vez em quando pousando a mo no ombro do filho ou fingindo
esmurr-lo no brao, com ar brincalho. E apertou os punhos, com uma raiva
insana, quando David relatou como havia se encontrado com
Hogge no bosque, e o assassino o enganara para que fosse com ele.
Ele estava esperando, papai. Estava sentado debaixo das rvores,
olhando para a casa. Disse que tinha voltado para pedir desculpas por ter me
machucado, e perguntou quem eu realmente era e para onde ia. A voz do garoto
perdeu a fora, tornando-se mais baixa, Eu respondi que no era ningum,
porque ningum me queria, e que estava fugindo de casa.
Melody sentiu um n na garganta, mas dominou-se, enquanto David
continuava, num tom mais firme:
Ele falou que, se eu quisesse que todos fossem atrs de mim e me
pedissem desculpas, devia ir com ele. Disse que era amigo de tia Melody e que
havia comprado um presente to grande para mim que nem tinha conseguido
trazer para c. E garantiu que eu ia ficar numa casa bonita, na cidade, comendo
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tanto doce quanto quisesse, enquanto esperava tia Melody chegar para me pedir
desculpas por no me querer. Melody no agentou.
Ah, David! Eu sempre quis voc, desde o comeo!
Eu sei disso, agora, mas naquele dia estava muito zangado com voc. O
homem Hogge me levou para um barco em Wanga-nui, no para uma casa, e eles
me deram uma bebida ruim. Eu cuspi, mas eles me bateram e eu bebi tudo. A,
dormi. Quando acordei, estava naquele depsito. Ataquei Hogge de novo, mas ele
me bateu e eu parei. Depois, tia Melody chegou.
A narrativa ofegante, incerta, revelou mais do que as palavras. O rosto de
Paul assumiu uma expresso terrvel de se ver.
No pa, eles foram para a whare de Te Whatitoaoraki, onde uma mulher
lhes serviu uma refeio, cujo principal prato foi carne de porco, assada em
forno aberto. Todos se sentaram do lado de fora, j que era proibido comer
dentro de casa, e aceitaram sua parte, embora nenhum deles estivesse com fome.
David, com a capacidade de recuperao das crianas, logo saiu para brincar com
os amigos e contar sua grande aventura. Foi quando o chefe disse:
H ocasies, meu velho amigo, em que devemos parar de falar e comear
a pensar. Deixe Rawiri aqui. Eu falo com ele. No h mais perigo, agora que Hogge
se foi. Te Whatitoaoraki voltou os olhos para Melody, embora continuasse se
dirigindo a Paul. No h nada que pague o que devo a esta mulher, mas creio
que, a meu modo, posso lhe agradecer por ter salvado a vida de Rawiri.
O maori se levantou e entrou na whare escura, mas voltou logo, trazendo
nos braos o manto lindo que Melody j vira. Era azul e cinza, verde e vermelho,
feito de penas minsculas de ka-kriki, o papagaio da cor do arco-ris. Ele sorriu
de surpresa e admirao de Melody, que se ergueu devagar, incapaz de acreditar
no que via.
Paul levantou-se tambm, colocando-se ao lado dela.
Aceita este presente, Melody, Toa Itil o chefe perguntou, chamando-
a de "Pequena Guerreira". Com todo o cuidado, colocou o manto sobre os ombros
dela. Este manto s deve ser usado pelos ariki, que podem nomear seus
ancestrais at o primeiro a chegar a esta terra, ou ento por rangatiri, como eu,
que so de nascimento nobre e grande coragem. No creio que exista aqui um s
homem capaz de dizer que voc no pode us-lo.
Melody no tentou enxugar as lgrimas que escorriam por seu rosto,
quando ele se inclinou e encostou o nariz no seu.
E hoa, voc faz parte do meu pas. Haver mais pessoas como voc, que
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encontraro seu corao aqui, embora sejam de outra raa e outra f. Paul foi o
primeiro que encontrei, e voc a segunda, por isso peo que aceite a gratido de
um velho guerreiro.
Ela sorriu por entre as lgrimas.
Seu pas o meu pas, Te Whatitoaoraki, Maata me ensinou que em rodo
corao h... .Te Taepaepatanga o'te rangi".
Em voz baixa e grave, Paul traduziu:
"Um lugar onde o sol alcana o horizonte. Melody, acho que est na hora
de irmos. Temos... de pensar um pouco.
O olhar dela encontrou o dele.
- No, Paul, quem tem de pensar voc. Eu j pensei tudo que era
necessrio.
Ele a fitou, observando o manto de penas sobre os ombros frgeis, os
cabelos despenteados e o rosto mostrando marcas de cansao e tenso, e a viu
mais mulher do que qualquer uma tinha o direito de ser. Assentiu, ento,
indicando os cavalos. Ela foi a frente, parando um momento para agradecer
moa que havia preparado a refeio, num maori sonoro e fluente.
Sem esperar ajuda, Melody montou num dos cavalos e partiu. Ele seguiu
atrs, mais devagar, notando que ela se lembrava muito bem da trilha entre a
vegetao. Um pouco adiante, arriscou:
O manto de kakriki...
Duvido que eu o use novamente, um dia.
Ficaria meio deslocado, mesmo num baile londrino.
Realmente... Mas no estou pensando em ir embora. S acho que no
posso vesti-lo para limpar a casa ou capinar o campo. Seria um crime.
Voc no vai mais voltar Inglaterra?
No, Paul. Este o meu pas, agora. Continuaram em silncio, s tornando
a falar muito depois, quando a trilha desembocou junto margem do rio. Melody
freou o cavalo, sorrindo.
Est ouvindo um pssaro chamar? Na certa se perdeu. Nesta poca, j
deveria estar mais ao sul.
Ele est fora de seu territrio Paul concordou. Como outros que
conheo.
Ele vai ter de achar o caminho de volta ou se ajustar ao novo ambiente.-,
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como outros que conheo ela replicou.
O sol sumia no horizonte quando eles chegaram ao alto da ltima colina,
saram do meio das rvores e avistaram Windhaven l embaixo. Como naquele
primeiro dia, Melody parou o cavalo, encantada com o que via.
Estamos em casa Paul murmurou, os olhos fixos no rosto dela.
Em casa Melody confirmou, admirando o sol que desaparecia, cedendo
lugar noite neozelandesa e cobrindo a terra com um manto alaranjado.
Case-se comigo, Melody ele pediu baixinho. Ela enrijeceu, mas no se
virou para fit-lo.
Melody... Quero lhe pedir desculpas. Acho que nunca pedi desculpas a
ningum. Eu pretendia domar voc... como domei a terra. Eu a quis desde o
primeiro momento em que a vi, mas nunca a enxerguei como realmente era. Achei
que o medo, que voc escondia sob a agressividade, era rebeldia, e que o seu
orgulho... o orgulho dos Savage, que eu deveria ter reconhecido... era puro
capricho. Vi sua teimosia, mas no a gentileza. Vi a sua sensualidade, mas no a
inocncia que ocultava, e s quando destru essa inocncia comecei a
compreender. Eu estava errado, to errado!
Estava mesmo Melody concordou, com um leve tremor na voz.
No entanto, apesar de mim mesmo... e de voc tambm, Melody...
comecei a am-la. Eu quero que voc fique, que faa deste lugar o seu lar. Quero
voc ao meu lado, como igual, como minha esposa.
Nesse instante, o sol desapareceu por completo no'horizonte, rendendo-se
ao inevitvel, e Melody suspirou, declarando numa voz rouca, que ele guardaria na
lembrana para sempre:
No vou me casar com voc, Paul.
Ele sentiu o corao disparar e uma sensao de opresso na garganta.
Tivera tanta certeza! O desespero cobriu sua alma, mas ento ela se voltou e... de
repente, l estava seu futuro, inteirinho, refletido nos maravilhosos olhos cor de
safira!
Melody ainda lanou um olhar ao redor, para a terra indomvel,
eternamente misteriosa, coberta pelo manto estrelado da noite, antes de
terminar, sorridente:
Eu vou aceitar voc, Paul Savage... mas com a Nova Zelndia que vou
me casar. Se bem que... Deus me ajude, eu o amo quase tanto quanto a este pas!
Com isso, ela esporeou o cavalo e desceu a colina a galope... na direo de
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casa.

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