serões filosoficos
serões filosoficos
serões filosoficos
SERÕES TEOLÓGICOS
SERÕES FILOSÓFICOS
Luiz Caramaschi
ÍNDICE
SERÕES TEOLÓGICOS
Prefácio.........................................................................................
I - Primeira Jornada Filosófica......................................................
II - Segunda Jornada Filosófica (de Descartes a Leibniz)..............
III - Segunda Jornada Filosófica (Kant)........................................
IV - Segunda Jornada Filosófica (Hegel, Schelling e Fichte).......
V - Segunda Jornada Filosófica (Crítica a Kant)..........................
VI - Idéia de Deus formada pela visão da vida.............................
VII - O triângulo - Kant, Platão e Aristóteles...............................
VIII - Debate sobre a filosofia dos Espíritos................................
IX - Incoerência da Doutrina Espírita..........................................
SERÕES FILOSÓFICOS
PREFÁCIO
do autor ser o Amor a substância de Deus e que, entendendo-o como energia, estava o
Amor submetido por via de conseqüência, às condições de transformabilidade. Mostrou-
se possível, assim, a degradação da substância AMOR até o mais profundo nível de
concentração, no caos primeiro, do Colosso Primitivo, do qual surge o nosso universo
material, a partir do Big Bang. Isso, em decorrência da Queda das Almas referida em
todos os Mitos superiores.
Dessa forma, uma velha idéia, em roupagens inteiramente novas, admissível via
razão, explica o mal no Mundo, como o primeiro filósofo-selvagem o percebeu, nos
primeiros raios que o deslumbraram e o forçaram a dizer aos seus contemporâneos de
um Deus todo bondade que premia o bem. Tal idéia, mãe da civilização, tirou o homem
de sua animalidade e o pôs no caminho do santo e do sábio.
E toda vez que o homem se afasta da idéia de Deus a civilização entra em
colapso e rui como o atesta a história. A ciência não traz sabedoria e sim conhecimento
que torna mais eficiente a prática do mal, que corrompe os costumes e desintegra a
família.
Só o binário Sabedoria (como forma) e Amor (como substância) torna possível a
felicidade sonhada em todas as utopias.
Alcançado o Mito, o último labor filosófico, coube a Luiz Caramaschi sintetizar
todo o conhecimento científico, desentranhando a sabedoria embutida nos mitos e nas
filosofias todas, porque os estudos científicos, visto serem discursivos, através de
análises, buscam as partes, cada vez menores, em seres, cada vez mais rudimentares e
simples, que não levam a Deus. Ao contrário, a filosofia, através das sínteses dos
opostos que buscam novos pares, na construção de seres cada vez mais complexos e, de
união em união, busca a plenitude de Deus que não possui contrário e, por via de
conseqüência, é Geral, Imutável, Intemporal, Inespacial, Incausal, com atributos
oriundos do AMOR, tais como Bondade, Benignidade, Luminosidade, Inefabilidade,
Perdoabilidade, etc... etc...
Através dessa obra entender-se-á porque escreveu São João em seu Apocalipse,
Capítulo 12, Versículos 7 a 9, onde se lê:
Tal verdade, tida por fé, nunca teve uma explicação racional e lógica que agora
se encontra neste e noutros livros do mesmo autor e constitui-se no fundamento da
Terceira Jornada Filosófica.
Seth Caramaschi
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Serões Teológicos
Capítulo I
Árago Pandagis reside na cidade de Cananéia, desde que se aposentou no serviço público.
Ali vive ele na sua contemplação metafísica, na sua visão racional, buscando o meio que tudo
integra e a tudo dá sentido, sobretudo faz isto através das forças da inteligência.
Estava ele, certo dia, a retecer sua rede, sentado no terreiro de um barraco que tem na foz
do rio Mandira, quando lhe surgiu Chilon Aquilano, que o tirou para a discussão, para o conflito.
Desde esse dia começaram as reuniões em sua casa de Cananéia, que fica próximo ao Mar de
Cubatão. Gosta o mestre de recitar, de cor, o soneto de Mário Pederneira, e, ao tempo em que o
faz, vai mostrando nas vizinhanças da casa suas realizações. Parece tomar o mestre o canto
poético por esquema do que executou. E declama:
Tanto que cai a noite, dona Cornélia, esposa de Árago, abre de par em par as janelas da
biblioteca para refrescar. Os estudiosos que pouco a pouco se vão ajuntando, ao chegarem à casa,
entram familiarmente, para a sala da biblioteca, e aí aguardam a entrada de Árago para os
“serões” costumeiros.
Essas tertúlias principiaram a ter mais freqüentadores do que no tempo dos “Serões
Bíblicos”. Chilon Aquilano foi o primeiro a procurar o mestre; depois, acercou-se o materialista
Benedito Bruco; pouco mais, e veio Hierão Orsoni, espírita confesso e pescador de profissão.
Finalmente, passaram a ser freqüentadores Basílio Desiró, Bernardo Jasão, Alcino Licas, Bento
Caturi, Frederico Hêning, além de outros visitantes fortuitos, tais como, Antonio Varrão, Arlindo
Helisiano, Virgílio Hurão, Romão Sileno, João Iguano, e outros.
Muitos destes estavam presentes na sala da biblioteca conversando sobre variados temas,
quando, à entrada de Árago, todos ficaram silentes. Depois dos cumprimentos habituais, dirigiu-
se Árago a Chilon interrogando-o.
– Hoje terão início os nossos “Serões Teológicos”?
– Sim, foi o que o senhor nos prometeu.
em três pulos; mas na teoria, isto é, no cálculo, quando Aquiles alcançasse a tartaruga, ela ter-se-
ia deslocado mais um pouco; e vencido, Aquiles, esse pouco, ela se adiantaria outro pouco, se
bem que menor, e assim por diante. Desde que o espaço pode ser dividido infinitesimalmente, o
cálculo dá uma divisão infinita. Com isto Zenão provava a ausência de movimento, mas aonde?
Claro que no plano das idéias que não no mundo da realidade objetiva. Proposto o problema a
Diógenes, a resposta deste para provar o movimento, consistiu em levantar-se e andar. Mas isto é
responder num plano de existência a uma proposição feita e válida em outro. É no cálculo, e não
na realidade física, que Aquiles não alcança a tartaruga. De igual modo, quando Descartes
sustentava que o movimento é relativo ou recíproco, donde vem que tanto vale dizer que o móvel
dirige-se para o seu alvo, como o alvo é que se move para o seu objeto, quando Descartes
afirmava isto, o filósofo inglês Henry More replicou: “quando um homem corre para um fim,
estafando-se e cansando-se, sabe muito bem se é o móvel ou o fim que está realmente em
movimento”9 (Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 88). Eis aí, de novo, o mesmo
método de refutação a Zenão: Descartes falava de um modo teórico daquilo que sucede no plano
do pensamento, e Henry More, tanto como Diógenes, respondem com um sucesso prático, com
um ato físico. E é exatamente nisto que se resume a sofística: fundar a premissa num plano, e
tirar as conclusões em outro. Não adianta clamar, como faz o padre Orlando Vilela ao dizer:
“infelizmente, a raça dos sofistas é imortal!...” (Iniciação Filosófica, 29). É preciso fazer a
diagnose dessa enfermidade do espírito que é a sofística, e ela consiste nada mais nada menos do
que fundar a premissa num plano, para depois concluir em outro. Sofistas, logo, foram Diógenes
e More, e não Zenão e Descartes.
– Nada disso! bradou Alcino Licas. Negar o movimento é coisa que nem um asno o faz!
Sofistas hão de ser, por certo, Zenão e Descartes!
– Acha você, então, que Diógenes e More tinham razão?
– Que dúvida! – Logo a realidade está no tornar-se, no devir, no vir-a-ser, pelo que as
coisas sempre estão deixando de ser o que são, para serem outras?
– Exato.
– Então Heráclito estava certo ao afirmar que o ser não é, ou que o não-ser é?
– Estava.
– E dizer que o não-ser é, não implica absurdo ou contradição? Acaso não consiste isso
em fazer a afirmação de uma coisa que já vem negada em si mesma? Como pode consistir o ser
no que não é? Tem que ser como o enuncia Parmênides: o não-ser não é, e o ser é.
– Se o ser é, ou se o não-ser não é, eu não sei, tornou Licas. O que sei é que há o
movimento, e as coisas a mover-se e a transformar-se; esta que é a minha vivência, a minha
experiência sensível. Distingo no mundo duas realidades: as coisas em mudança e
transformação, e as coisas em movimento no espaço.
– E as coisas, sejam em mudança e transformação, sejam em movimento no espaço, de
que são feitas, de que se constituem, ou de que consistem?
– De matéria, ora essa.
– E a matéria que é, segundo os últimos resultados da ciência?
– Movimento. Em sua íntima estrutura a matéria é puro movimento.
– Mas é possível haver movimento sem móvel?
– Não.
– Então porque você disse “puro movimento”, quando o movimento não pode ser puro,
visto não prescindir do móvel?
– Retifico então: a matéria é movimento de algo...
– E que é esse “algo”, esse primeiro móvel a mover-se para que a matéria exista?
– Ah! Isso não sei.
– Pois esse primeiro móvel é o “não-sei-que” de Locke; esse seu “algo”, esse “não-sei-
que” se move, e desse movimento surge a matéria. De maneira que no fundo mesmo da matéria
está o “não-sei-que”, o “algo” ignorado em que você tanto confia, chegando ao cúmulo de
afirmar que nem um asno duvidaria disso. Seria que o asno afirma a matéria como ser,
precisamente por ser asno? Nenhum filósofo até hoje declarou isso, isto é, que a matéria é o ser.
9 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 88
11
Pouco há, você tinha por certo e indiscutível que havia o movimento; agora também já não sabe
o que venha a ser o movimento, visto que este implica na existência de um móvel, e o móvel
também se reduz a movimento até o seu último limite que é aquela espécie de “nada” a mover-se
para o que todo material surja! Eis como estava certo Parmênides ao afirmar que o não-ser não é;
e a máxima aproximação do não-ser é o elétron cujo movimento de rotação, porque é quase
infinito, tem seu tempo reduzido a quase zero. A distância mínima possível existente na natureza
sensível é o raio de um elétron; e o tempo elementar é essa distância (o raio do elétron)
percorrida pela velocidade da luz. A distância mínima, portanto, é 10-l3 cm., e o tempo elementar
10-24 segundos (H. Faust, De Onde Viemos Para Onde Vamos, 61). Acaso dir-me-ia você, meu
caro Licas, que o ser é essa partícula elementar, talvez o grão de éter de Mendeleiev, ao qual deu
o nome de “newtônio” em honra de Isaac Newton? Seria o neutrino a partícula elementar visto
que esta se aproxima do newtônio? Seria este quase nada o ser? Seria este não-ser o ser?
Depois desta saraivada com que Árago moeu Alcino Licas, continuou:
– Este não-ser, de que se compõe toda a matéria do Universo físico, está no pólo oposto
ao do Ser. O Ser necessariamente terá de ser único, eterno, imutável, infinito, imóvel. Ora, o
neutrino é infinitamente multíplice, possui tempo mínimo, é infinitamente mutável, possui
espaço punctiforme ou nulo, e move-se com velocidade máxima. Portanto, se num pólo está o
Ser que é Deus, no outro estará o não-ser que é o neutrino, e quem sabe, a ser verdade mesmo, o
newtônio é o grão de éter de Mendeleiev. Ora, se o Ser não pode ser achado na direção da
matéria, visto que esta vai dar no não-ser, teremos de buscá-lo no pólo oposto, na direção do
universal, do pensamento, da idéia, do espírito.
Depois de o mestre passar pela testa a manga da camisa de xadrez vermelho, já meio
puída e descorada pelo uso, prosseguiu:
– Platão pega o problema do uno e total das mãos de Parmênides, e intui o seu topos
uranos que é o lugar celeste onde vivem as almas em perpétua contemplação das verdades
eternas e das belezas imperecíveis. Aí nenhum esforço existe, discursivo, para se alcançar a
verdade, visto que todos a têm pela visão direta ou intuição. Aí não há morte nem dor, e tudo
transcorre no seio do Absoluto e do Eterno. As almas estavam aí, de início, onde foram criadas;
porém caíram para o nosso mundo de sombras irreais, de ilusão, e, em caindo, esqueceram como
é o topos uranos, ou lugar celestial. Encarnadas neste mundo num corpo de matéria, as almas se
desnorteiam, tomando as sombras materiais por realidade. Todavia, como elas tiveram antes o
conhecimento da verdade, e depois o perderam com a queda na matéria, basta o esforço para
irem recordando o que dantes sabiam. O aprendizado, logo, é uma recordação. O mundo da
matéria não é um não-ser total. Possui realidade, porém, em menos grau que a realidade do
espírito. O topos uranos é onde estão as idéias arquétipos, eternas, imóveis, perfeitas e belas, das
quais as coisas do nosso mundo são cópias grosseiras. Aquelas idéias universais são a realidade,
ao passo que as idéias contidas nas coisas, a essência delas, aquilo que delas apreendemos pela
inteligência, são menos reais, chegando a ser meras sombras ilusórias. O real é o universal e
ideal, e não o material e individual. Assim o entendia Platão.
E, após ponderosas reflexões, continuou o mestre:
– Isto é Platão, o realista das idéias e não idealista, visto que situa a realidade fora de si,
no topos uranos. Este realismo platônico ficou perdido no passado, sem continuadores, pois
Aristóteles que se lhe segue, opõe-lhe idéia diametralmente oposta. E os pensadores de após
Renascença são idealistas, por isso que situam a realidade em suas idéias subjetivas, e não nas
idéias universais exteriores a si. Escreve Huberto Rohden : “A filosofia platônica e neo-
platônica, repetimos, não é para uma humanidade em baixo estágio de evolução; supõe
extraordinária maturidade espiritual. É antes uma filosofia para a humanidade de amanhã do que
para a humanidade de hoje”10. Logo, Platão é o filósofo do futuro, e com ele terá início a terceira
jornada filosófica que iremos ver, após a primeira e a segunda. Tudo no mundo tem sua lógica;
não podia surgir a terceira jornada filosófica sem a primeira e a segunda. “Com efeito (diz
Rohden), as idéias neo-platônicas não são, a bem dizer, organizáveis ou burocratizáveis, como
não são suscetíveis de organização a luz, a vida, o espírito, porque são realidades cósmicas, que o
homem pode experimentar em si, mas que não podem ser capturadas em recipientes legais,
10 Huberto Rohden, Filosofia Universal, I, 146
12
fórmulas jurídicas ou parágrafos burocráticos”11. Esta é a razão por que o platonismo adormeceu
no passado para ressuscitar no futuro que começa hoje. “Se a igreja cristã aceitou, quase
integralmente, essa teoria (agostiniana) da criatio ex nihilo (criação do nada), não o fez por
razões metafísicas ou lógicas, mas por motivos psicológicos e pedagógicos; pois, lidando com
uma humanidade predominantemente materialista, era mais prudente incutir aos homens um
profundo ódio à matéria do que apresentar o mundo material como emanação da divindade
(...)”12. Contudo, deixemos Platão ainda neste promontório em que permaneceu quase que
isolado por mais de dois mil anos, e desçamos, com Aristóteles e Cia., pelas encostas, planícies e
vales do saber filosófico.
– Com que sustenta o mestre, então, seja Platão maior do que Aristóteles, redargüiu,
interrogando, Alcino Licas.
– Para mim, retrucou o filósofo, está com a razão Huberto Rodhen: “Aristóteles é, na
história da filosofia ocidental, o rei dos acróbatas”13.
– Isso foi o que disse Huberto Rohden, tornou Licas; mas o Pe. Orlando Vilela escreveu
que “Aristóteles é, não só o ponto mais alto da filosofia grega, mas também o maior gênio da
filosofia de todos os tempos”14. E Jacques Maritain acrescenta que “podemos (...) afirmar, sem
nenhum receio, que Aristóteles é absolutamente único, entre os filósofos: único pelo gênio, único
pelos dotes, único por sua obra”15.
A isto, redargüiu o mestre com ar sobranceiro:
– A Huberto Rohden posso ainda juntar outro que dizia: “Platão é a filosofia e a filosofia
é Platão” diz Emerson; e aplica à A República a frase de Omar sobre o Alcorão: “Queimem-se as
bibliotecas, pois o que elas têm de valioso encontra-se neste livro”16. E quanto a Aristóteles,
Lutero disse “que não passava de um asno”17. E porque uns exageram por uma parte, e outros,
por outra, acabo concordando com Friedrich Schlegel que disse: “Cada homem nasce platônico
ou aristotélico”18.
E em dizendo isto, fechou um livro que tinha nas mãos, depois do que prosseguiu, noutro
tom de voz:
– Aristóteles, discípulo de Platão, faz sua doutrina em posição antípoda, antitética, em
relação à do seu mestre. Afirma ele que a realidade está nas coisas individuais, e não fora delas,
donde vem que as universais de Platão são pura abstração ou fantasia. Para ele as coisas são
constituídas de forma e matéria. Matéria é aquilo de que a coisa é feita. Matéria vem de madeira
(Ortega). A forma é aquilo que a coisa é. “Quer um fundidor (diz Vieira) formar uma imagem.
Suponhamos que é de S. Bartolomeu com o seu diabo aos pés. Que faz para isto? Faz duas
fôrmas de barro, uma do santo e outra do diabo, e deixa aberto um ouvido em cada uma. Depois
disto derrete o seu metal em um forno, e, tanto que está derretido e preparado, abre a boca ao
forno, corre o metal, entra por seus canais no ouvido de cada fôrma, e em uma sai uma imagem
de S. Bartolomeu muito formosa, noutra uma figura do diabo, tão feia como ele”19. Que coisas
são estas? Estas são as formas, as imagens, de S. Bartolomeu e do diabo. De que coisa estas
formas, estas imagens, são feitas? De metal. Eis para Aristóteles que as coisas são constituídas de
forma e de matéria; forma ou essência é aquilo que a coisa é; matéria é aquilo de que a coisa é
formada. A matéria é aquilo de que se pode formar qualquer coisa; por isso que do metal que era
um, se pôde formar duas imagens ou essências, sendo uma do santo, e outra do demônio. A
matéria é a coisa em potência, e a forma é a coisa em ato. Aristóteles diz que Deus é ato puro,
porque é só forma sem matéria alguma. Ele não se pode transformar em nada, porque já é, tudo,
plenamente realizado. Se ele fosse matéria, seria potência pronta a transformar-se em ato; mas
sendo ato puro não possui nada em potência à espera de transformação na forma. É perfeito por
não poder tornar-se noutra coisa diferente do que é, e pela mesma razão é imutável. É eterno, por
que sempre foi e será o que é como forma pura, como ato puro. Mas desçamos às coisas.
– As árvores, os cavalos, os objetos domésticos são formas e por estas os definimos nós.
Definir é dizer o que a coisa é, é mostrar a essência das coisas, não a matéria, mas a essência, ou
seja, o que a coisa é em si, como pensava Aristóteles. São essas formas ou essências que a nossa
inteligência apreende das imagens que nos vieram pelos sentidos. Em nosso espírito se formam
imagens mentais daquelas realidades exteriores (casa, árvore, cavalo, mesa). E nossa inteligência
generaliza todas as imagens de casas, de árvores, de cavalos, de mesas, nos seus respectivos
conceitos. O conceito é a coisa definida, generalizada, abstraída das imagens, mas não é imagem,
e sim, idéia. De onde vem que as idéias nascem das coisas, como o afirma Aristóteles, ao invés
de as coisas surgirem das idéias como o entende Platão. É nisto que se resume a luta milenária
entre os realistas e universalistas platônicos contra os nominalistas individualistas aristotélicos.
E depois de uma pausa meditativa, continuou Árago:
– Esta batalha prosseguiu por toda a Idade Média. Em certo ponto da luta, surge o
problema seguinte: onde estão as idéias? Dizer que estão em mim não pode ser, visto que elas já
existiam nas coisas, antes de mim, e foi de lá, das coisas, que as apreendi. Conhecer uma coisa é
apreender a sua idéia, a sua essência, é conceituá-la. Onde, pois, estão as idéias? Ou estão nas
próprias coisas, como queria Aristóteles, ou estão alhures (topos uranos), como realidades fora
das coisas mas das quais as coisas participam, como o entendia Platão. Santo Agostinho, que é
platônico, pelo menos até antes da sua conversão ao cristianismo, aperfeiçoava esta solução
platônica com dizer: as idéias estão na mente de Deus. Não, retrucavam os aristotélicos; as idéias
estão nas coisas. Estava acesa a luta entre os aristotélicos e platônicos-agostinianos – quando
surgiu no cenário filosófico o maior filósofo da Idade Média, que foi São Tomás de Aquino.
Juntou este pensador a tese e a antítese na síntese, dizendo: as idéias estão nas coisas, como quer
Aristóteles, e juntamente estão na mente divina, como sustenta Santo Agostinho, pela mesma
razão por que a idéia duma estátua está na estátua, onde a pôs o artista, e juntamente na mente do
artista onde a idéia nasceu antes de atualizar-se dando forma à matéria na estátua. Ora, esta
solução tomista é platônica, pois Platão situava as idéias num mundo exterior às coisas, que ele
chamava “topos uranos” que pode ser a mente divina, e ao mesmo tempo estava nas coisas, pois
estas, como ele dizia, participavam das idéias reais existentes no “topos uranos” ou seja na mente
divina. E tem que ser assim, porque na mente de Deus a idéia ou forma pura é perfeita, enquanto
que a idéia ou forma realizada ou atualizada neste mundo de matéria é imperfeita. E é por causa
da feiura e do mal existente no mundo que Santo Agostinho se recusava a admitir que a idéia
existente nas coisas, juntamente estivesse na mente de Deus. Para este filósofo, o mundo foi
criado do nada, “creatio ex nihilo”, sendo a matéria coisa externa a Deus, e não emanada dele.
Todavia se São Tomás acha que Deus foi o que plasmou a matéria e o mundo, segundo sua idéia,
disto decorre esta conseqüência: o mal, a dor, a feiura, a deformidade, a desarmonia, a treva, a
ignorância, o inferno, o caos existente no universo procedem da mente de Deus. Deus então
pensou todas as misérias ao lado das coisas boas; logo, umas e outras surgiram, brotaram da
mente de Deus. Neste caso melhor andou Platão que São Tomás, pois aquele não dá inteira
realidade às coisas considerando-as como sombras em relação à realidade inteira existente no
“topos uranos”. As coisas participam da realidade total e são, nesta medida, realidades. Por isto
as coisas não são nada, porque nascidas do nada, como quer Santo Agostinho. Para Platão existe
uma gradação de realidade nas coisas, pelo que umas são mais reais que outras. Deste modo, há
uma degradação que vai do Ser, por excelência, que é Deus, ao não-ser que é a negação total de
Deus. E as coisas tanto mais são, quanto mais se acercam de Deus, e tanto menos são, quanto
mais se afastam dele, indo no rumo do caos, da pulverização, do relativo, do individual, onde a
mutabilidade contínua torna indiscutível a existência do “panta-rei” de Heráclito. Há, pois, dois
mundos: o do vir-a-ser heracliteano, puramente fenomênico e ilusório, porque coisa nenhuma
nele é o que é, e há o mundo real das idéias causais de Parmênides-Platão. Ao longo do eixo
entre esses dois pólos tem girado todas as metafísicas da primeira jornada filosófica.
Feita uma pausa prolongada, em que o mestre quedou a olhar para uma águia de bronze
sobre a mesa, continuou:
– Platão fala no “topos uranos” ou lugar celeste onde moram as almas e as idéias puras,
14
mas não fala de Deus. Já Aristóteles chega à idéia de Deus, conquanto seja esse o Deus da razão,
alto, frio, distante, que é o Actus Purus. “Imóvel em sua atividade pura, este ser não está
submetido a nenhuma espécie de mudança... Eis o princípio de que dependem o céu e a natureza.
Sua felicidade assemelha-se às alegrias supremas que só poderemos gozar um instante; ele,
entretanto, a possui eternamente. Sua felicidade é o seu ato... é o ato da soberana inteligência, o
pensamento puro que se pensa a si mesmo. É admirável que Deus possua sempre a alegria que
desfrutamos algumas vezes; mas ainda é mais admirável que a possua muito maior; ora, é assim
que a possui. E ele tem a vida. Porque o ato da inteligência é uma vida. Ora, Deus é este ato em
estado puro. É, pois, sua própria vida: este ato subsistente em si, eis sua vida eterna e soberana.
Por isso dizemos que é um ser vivo, eterno e perfeito; porque a vida que dura eternamente existe
em Deus, porque ele é a própria vida” (Aristóteles, Metafísica, citado por Jacques Maritain,
Introdução Geral à Filosofia, 60). E vai Will Durant e escreve esta sua crítica a Aristóteles: “A
Divina Providência coincide perfeitamente para Aristóteles com a ação das causas naturais
(Ética, 1, 10). Mesmo assim há um Deus, embora não seja o deus humano e simples, concebido
pelo perdoável antropomorfismo do espírito adolescente. Aristóteles associa este problema ao
velho quebra-cabeça sobre o movimento. Como começou o movimento? pergunta. Ele não
admite a possibilidade de não ter tido princípio, apesar de conceber a matéria sem princípio; a
matéria pode ser eterna, porque é meramente a perene possibilidade de futuras formas; mas
quando e como principiou esse vasto processo de movimentação e formação, que afinal encheu o
universo de uma infinidade de formas? O movimento teve sem dúvida uma origem, diz
Aristóteles; e se não quisermos, mergulhando no passado, retroceder infinitamente, fazendo,
passo a passo, recuar sem fim o nosso problema, deveremos admitir um primeiro motor imóvel
(primum mobile immotum), um ser incorpóreo, indivisível, sem tamanho, sem sexo, sem
sentimentos, imutável, perfeito e eterno. Deus não criou, mas move o mundo; e move-o, não
como força mecânica e sim como motivo único de todas as espécies de atividade do mundo;
“Deus move o mundo assim como o objeto amado move aquele que o ama” (Metafísica, IX, 7).
Ele é a causa final da natureza, o impulso e a finalidade das coisas, a forma do mundo, o
princípio da vida do mundo, o total de seus processos e poderes vitais, o escopo inerente de seu
desenvolvimento, a estimulante enteléquia do todo. Deus é pura energia; é o escolástico Actus
Purus – a atividade per se; e porventura a “Energia” mística da física e filosofia modernas. É
menos uma pessoa do que um poder magnético. “Mesmo assim, com sua habitual incoerência,
Aristóteles representa Deus como espírito consciente de si mesmo. Um espírito verdadeiramente
misterioso, pois o Deus de Aristóteles nada faz; não tem desejos, nem vontade, nem fins; é uma
atividade tão pura, que nunca age. Absolutamente perfeito; por isso nada pode desejar; por isso,
inerte. Sua única ocupação é contemplar a essência das coisas; e como ele próprio é a essência de
todas as coisas, a forma de todas as formas, sua só ocupação é a contemplação de si mesmo
(Metafísica, XII, 8). Infeliz Deus de Aristóteles! pois é um roi-fainéant, um rei que nada faz; “o
rei reina, mas não governa”. Não é de admirar que os ingleses amem Aristóteles; o Deus de
Aristóteles é claramente uma cópia do rei inglês”20.
E fechando o livro em que lera o texto, prosseguiu Árago:
– Um tal Deus intelectual, cuja única alegria consiste na contemplação de si mesmo, que
pediria aos seus fiéis adoradores? Chilon!
– Que outra coisa poderia exigir senão que seus beatos o contemplassem? Na
contemplação de Deus consiste toda a beatitude dos eleitos; e como Deus é pensamento puro, é a
verdade, toda a contemplação dos eleitos se resume a uma contemplação metafísica.
– Isso mesmo Chilon! Os eleitos hão que ser todos filósofos, senão sábios; e a única
forma de gozo que possuem resulta desta contemplação metafísica, ou seja, uma espécie de visão
super-racional alcançada só com as forças da inteligência. Por isso para São Tomás, o maior
teólogo da Igreja, a bem-aventurança dos santos, como também para Aristóteles, consiste em
contemplar a verdade, porque contemplam a Deus. Sendo Deus pensamento puro, vivem de
contemplar o pensamento eterno, e todo seu gozo consiste no puro pensar. Que distância está isto
dos reis-filósofos de Platão, diz Will Durant, que se preocupam com seus irmãos, em vez de se
isolarem na torre de cristal fora do conflito e da contaminação! Que distância do Deus de amor
20 Will Durant, História da Filosofia, 90, 91
15
caminho que nos leva a ela constitui a terceira jornada filosófica. E a nós nos cumpre não só
terminar com a primeira jornada, como ainda vencer a segunda, para só então cuidarmos da
terceira.
– Tornando atrás, no ponto em que partimos para esta digressão, continua o mestre, temos
de concordar que Aristóteles tinha sua parcela de razão. É certo que nós, mortais, relativos,
sujeitos à relatividade das nossas medidas, só podemos ter acesso às idéias através dos objetos
sensíveis. Todavia, Platão, vencendo rápido esta fase, põe-se no Empíreo, junto dos Serafins, e
olha como eles o universo e vê nele a imperfeição que vai crescendo na proporção em que se
afasta de Deus no rumo do orco até o caos do não-ser. Lá no ponto em que se acha a Terra vê o
quase não-ser da matéria que cada vez mais se enrijece na bruteza das formas toscas. De
mármore pôde Fídias esculpir sua Vênus; não o faria se só dispusesse de areia... Enquanto Platão
se põe a si no empíreo, no “topos uranos”, para de lá olhar o mundo, Aristóteles tem os pés
firmes na matéria, e olha, e vê, e enxerga através dela umas nesgas do empíreo que são a
realidade essencial, a forma, indo no rumo em que está Platão. Este, o decantado realismo
moderado, como se o moderado fosse mais perfeito que o máximo só achado na mente de Deus.
Aristóteles, criticando acerbamente a teoria das Idéias de Platão sai-se com este malabarismo:
“Quanto ao movimento, desde que as Idéias são imóveis, não há Movimento-Arquétipo no
mundo das Idéias; neste caso, de onde procede o movimento”, segundo o sistema platônico? Ora,
tirando-se o movimento, suprime-se, ipso facto, qualquer investigação da natureza”24. Além
desta adições que Maritain faz a Aristóteles, acrescenta, referindo-se a ele: “Com poder
incomparável submeteu a mobilidade à luz imutável da inteligência, demonstrando que há nas
coisas que mudam LEIS QUE NÃO MUDAM, legando-nos a NATUREZA do próprio
movimento”25. Os grifos e os versais são meus, e os fiz, ao datilografar este trecho para os nossos
estudos, adverte Árago. E prossegue:
– Então, se a essência ou NATUREZA do movimento não está no movimento sensível,
mas nas LEIS IMÓVEIS que o determinam, como falar em Movimento-Arquétipo ? Não há
Movimento-Arquétipo, mas Idéia-Arquétipo do movimento que são os mesmos princípios e
LEIS descobertos pelo próprio Aristóteles, e que compõem a sua Física. Falar em Movimento-
Arquétipo é o mesmo que falar em Matéria-Arquétipo, em Efeito-Arquétipo, em Potência-
Arquétipo, em Não-Ser-Arquétipo. Empregando o mesmo argumento aristotélico, podemos
perguntar: se no mundo das Idéias, da Forma, do Pensamento de Deus, não há Matéria, nenhuma
matéria, de onde procedeu a Matéria? Aristóteles diz que “Deus não criou, mas move o
mundo.”26. E, pois, como o move sem o ter criado? Quem logo o criou? Ninguém? Ter-se-ia,
então, o mundo criado a si mesmo... por acaso? E podemos dizer, usando a mesma frase de
Aristóteles: “Ora, tirando-se a matéria, suprime-se, ipso facto, qualquer investigação da
natureza”.
– Dizem os aristotélicos, prosseguiu o mestre, que “a essência de uma coisa é o que esta
coisa é necessariamente e primeiramente a título de princípio primeiro de inteligibilidade”27.
“Portanto, se nossa inteligência fosse incapaz de atingir realmente às essências das coisas, ela
seria mentirosa”28. Atinge, digo, mas não a esgota, visto que as essências se retraem para uma
generalização cada vez maior. Por exemplo, qual é a essência da matéria?
– Mas a matéria não tem essência, atalhou Alcino Licas, pois a essência dos platônicos é a
mesma forma dos aristotélicos. Ora, segundo o mesmo Aristóteles, “a matéria, no seu sentido
mais amplo, é a possibilidade da forma; a forma é a realidade final da matéria. A matéria obstrui;
a forma constrói”29. Isto posto, temos de concluir que a “matéria sem forma seria uma não-coisa,
pois todas as coisas tem forma”30.
– E Aristóteles não diz que das coisas a nossa inteligência apenas apreende a essência ou
forma?
24 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 59
25 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 58
26 Will Durant, História da Filosofia, 90
27 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 131
28 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 132
29 Will Durant, História da Filosofia, 89
30 Will Durant, História da Filosofia, 89
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morenas, outras pretas; umas se vestem de um jeito, e outras de outro. A umas se dão caracteres
masculinos e ficam bonecos trajados à masculina. Todas ficam, por este modo, individuadas e
inconfundíveis por causa dos acidentes que as diversificam do universal que é a forma primeira e
igual de quando as expeliu a máquina. Assim também a essência de Pedro é a mesma da de João;
porém, Pedro não é João por causa dos acidentes que a ambos diversificam, individuam,
personificam. A essência é universal e surge primeiro de tudo como Idéia na mente de Deus
(causalidade primeira). Mas, se na mente divina primeiro surge o individual para depois vir a
Idéia que é universal ou geral, como acontece na mente humana, então Deus também abstrai a
Idéia, em vez de aplicá-la nas formas individuais. Se Deus pensa formas individuais antes da
Idéia universal, então Deus Imagina primeiro para ter idéias depois (como o homem), em vez de
ter Idéias primeiro, para depois Imaginar as formas individuais, como há de ser no seu nível.
Desde que Deus pensou teve início o ato criacional; e o pensamento é anterior à imagem para
todo aquele que cria, seja ele o homem, seja Deus. O pensamento só está a cavaleiro das imagens
que tiramos das coisas, quando abstraímos, quando aprendemos. Mas Deus não aprende; logo
não abstrai das imagens, e antes as imagens é que são individuadas dos pensamentos. No caso
dos bonecos da fábrica aludida há pouco, primeiro o homem teve a idéia que aplicou criando
imagens e formas. Quando o mesmo homem vê o mundo que o cerca, colhe as imagens das
coisas no seu espírito, e depois as sintetiza nas idéias. São dois momentos da inteligência: um de
criar imagens partindo duma idéia; outro, de abstrair idéias, partindo das imagens que são o
reflexo do mundo em nosso espírito. Mas este segundo momento propriamente não existe na
mente divina, por ser ato de conhecer, de aprender, que pressupõe ignorância anterior. Ora, Deus
sabe desde o início; logo, não abstrai a Idéia das imagens, mas aplica o Princípio, a Idéia, criando
as imagens plasmadoras do mundo e das coisas. Estas Idéias da mente de Deus são os Arquétipos
eternos que Platão supunha estar no “topos uranos”; são as imagens individuais, espirituais e
perfeitas que aquelas Idéias-Arquétipos da mente divina criou. Por isso diz Platão que o “topos
uranos” é o reino das almas eleitas, o empíreo, que corresponde ao nosso céu-de-Deus. Aquelas
formas espirituais do “topos uranos”, quando realizadas em nosso mundo, tornam-se
imperfeitas, feias, desarmônicas, e é por isso que Platão as considera cópias imperfeitas
“imagens enfraquecidas e enganadoras da Realidade, objeto de opinião, e não de ciência ou de
conhecimento etc.”33.
Feita uma pausa, em que o filósofo respirou fundo, continuou:
– Conta a lenda de Pigmalião que diz ter-se ele apaixonado por uma estátua que fez de
Galatéia, na qual a deusa Vênus insuflou vida. Pigmalião desposou-se, então, com a estátua. Esta
é a primeira vez que a idéia e a imagem do criador correspondem à forma criada, materializada.
Assim mesmo foi necessária a intervenção duma deusa para que a imaginação de Pigmalião
ficasse satisfeita plenamente. É que na mente do artista as imagens são vivas, coloridas e móveis,
postas estas imagens no barro ou no mármore, por muito que se trabalhe ou pinte não resta,
finalmente, mais que um cadáver. Mesmo assim, vejam que força tem esses cadáveres de barro
ou pedra: “Freud, pesquisador frio, diante da estátua de Moisés em Roma, obra de Miguel
Angelo, ao contemplá-la, sentiu calafrios e ímpetos de fugir”34. Contudo se perguntássemos ao
mesmo Miguel Ângelo se a sua pétrea imagem de Moisés correspondia à forma existente em sua
mente, ele diria que não; e por que? Pois porque, diria o grande escultor, o meu Moisés de pedra
é um cadáver comparado ao Moisés colorido, móvel, vivo, terrível, poderoso e atuante que tenho
em minha mente. Para o mestre do escopro, como para Deus, as coisas criadas na matéria são
cópias “enfraquecidas e enganadoras da Realidade, objeto de opinião, e não de ciência ou de
conhecimento” (Maritain). Se perguntássemos a Freud como teve a idéia do Moisés terrível,
responder-nos-ia ele: - vendo a estátua; desta visão me saiu a imagem de Moisés ameaçador, de
tal modo vivo, que, apavorado, tive ímpetos de fugir. Se perguntássemos a Miguel Ângelo como
teve a idéia do seu Moisés terrivelmente ameaçador, dir-nos-ia ele: – da idéia que tenho de
Moisés criei-lhe a imagem na mente e a transportei para a pedra bruta; mas a imagem de pedra,
conquanto corresponda, não é igual à imagem mental que tenho de Moisés!
Depois de tomar um fôlego, numa pausa, tocou por diante o mestre:
33 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 53
34 Jefferson Gonçalves Gonzaga, Hipnose Médica, 39
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– Por quanto hemos visto, a essência é universal, e existia antes de serem plasmadas as
coisas individuais. E posso argumentar ainda assim: aquilo que está no meu espírito, também
está na coisa, nessa mesma forma universal ou não está? Se está na coisa, meu espírito apenas
reflete em si, como em espelho, esse universal da coisa. Porém, se não está na coisa, como então
está no meu espírito? De onde este foi tirar sua idéia universal? De si mesmo? Se de si mesmo,
então a idéia é fantasia que não existe, e não realidade que existe; se tirou a idéia da coisa, então
a idéia está também na coisa...sendo aí também universal. Todavia, vamos supor que a realidade
seja só individual, e que o universal seja abstração, de maneira que o mundo dos universais seja
pura fantasia. Mas este mundo dos universais é o reino do pensamento, visto que este generaliza,
universaliza as coisas; logo, o reino do pensamento é da pura fantasia, visto que ele corresponde
ao universal, e não ao individual, e o universal é fantasia. Por aqui agora: segundo os
aristotélicos, Deus é pensamento puro, pura essência, pura forma vazia, sem matéria alguma. O
que está na mente de Deus, portanto, com ser ideal é universal; porém o universal é fantasia;
logo o pensamento de Deus é fantasia; mas Deus é puro pensamento; por conseguinte, Deus é
pura fantasia.
Mais: aqui na página 105 (Fundamentos de Filosofia), diz M. Garcia Morente, falando da
doutrina de Aristóteles, “que a forma sem matéria “não é”. Ora, na página 98 está que em Deus
não há matéria, conquanto haja forma. Logo, Deus não é. Se não pode haver “forma sem
matéria”, segue-se que o “actus purus” não é, visto ser este a forma sem matéria alguma. Mas
Deus é o Ser, por excelência, consistindo na forma sem matéria. Por conseguinte a forma sem
matéria é o ser por excelência. Ora, a forma sem matéria é a do pensamento puro. Logo, o
pensamento puro é o ser, a realidade. Mas o pensamento puro é o universal, e está a cavaleiro das
imagens individuais. Conseguintemente, o universal é o real. Quanto mais as coisas participarem
das essências imutáveis da mente de Deus, tanto mais reais elas são. No mundo, as essências se
misturam às matérias, e por isso são menos reais que as formas puras existentes no “topos
uranos” ou mente de Deus. Por isso as coisas de nosso mundo são sombras comparadas às idéias
arquétipos do “topos uranos”.
– Raciocínio perfeito, acudiu Licas, bem concatenado: Deus é pensamento puro, pura
essência ou forma vazia, ou seja, sem matéria alguma. O puro pensamento, a pura essência ou
forma sem matéria (actus purus) é universal. O universal é pura abstração, só existindo em nossa
mente, e não na realidade objetiva, donde vem que o universal é fantasia para Aristóteles;
portanto, Deus é fantasia. A forma sem matéria não é ser; ora, Deus é forma sem matéria; logo,
Deus não é. Mas Deus é, conquanto seja forma sem matéria; portanto a forma sem matéria é; ora,
a forma sem matéria é o puro pensamento, por conseguinte o puro pensamento é o ser.
– Está contente agora, Licas?
– Estou.
– Quer vejamos o edifício inteiro, partindo da sua base real, da única base possível?
– Quero.
– Deus é a suma realidade, da qual todas as demais decorrem como conseqüências desta
única premissa. Esta suprema realidade, que é Deus, é pura essência, pura forma sem matéria
alguma, puro espírito, puro pensamento, como querem os aristotélicos. O puro pensamento, a
pura essência, a pura forma sem matéria alguma é, por conseguinte, a supina realidade. Esta
realidade acima de todas é universal, visto que é essencial ou formal no mais subido grau, e toda
essência ou forma é, por definição, universal. Por conseguinte, o real é universal, e tanto mais
real quanto mais universal, culminando com a suprema universalidade que é a que está na mente
de Deus, e é Deus. Pela recíproca, quanto menor for a universalidade, tanto menor será a
realidade, culminando com a matéria primordial que sendo toda potência é nada ato ou nada
forma. Nas coisas individuais, o universal se reduz só à forma, à essência delas. Se tirarmos às
coisas todas as essências que lhes dão ser, fica só a matéria informal rica de potência, mas pobre
de ato. Conseqüentemente as essências das coisas individuais são reais, e estas coisas são o que
são, graças às essências que lhes dão ser. Todavia, estas essências são abstraídas das coisas pelo
nosso espírito; logo, essas abstrações do nosso espírito são mais reais que as coisas, quando
despojadas de suas essências. A máxima realidade está em Deus que é o Ser por excelência. A
mínima realidade está no pólo oposto a Deus, que é o mundo fenomênico das coisas individuais
20
sujeitas ao devir constante e à contínua mutação. Por isso este mundo das coisas perecíveis,
fugazes, inconstantes e ilusórias é o do não-ser que se contrapõe ao do Ser de máxima
universalidade que é o de Deus. Este mundo das coisas movediças e transformáveis é o da física;
aquele outro das coisas perenes, estáveis, eternas, essenciais é o da metafísica; por isso “a
metafísica é mais real que a física”35. Parmênides, logo, e a seguir, Platão, esteve certo com seu
realismo pleno das idéias; menos certo esteve Aristóteles com seu realismo moderado, e
completamente errado andou Heráclito com o seu “panta-rei” ou vir-a-ser perpétuo.
E pedindo licença Árago para se ausentar por um pouco, todos aproveitaram o intervalo
para discutirem entre si, propondo as dúvidas que tinham. Alcino Licas falou da sua, e se dispôs
a propô-la ao mestre quando ele tornasse à sala. E assim aconteceu. Voltando o pensador do que
fora fazer, disse-lhe Licas:
– Desde que o senhor principiou a falar, uma coisa me ficou roendo, e desejaria ouvi-lo
sobre ela.
– Que é?
– O senhor deu nome a estas tertúlias de “Serões Teológicos”, justificando, logo a seguir
não se tratar de teologia sobrenatural, mas de teologia natural, ou teodicéia, conforme
denominou Leibniz. Ora, segundo o pensar de Jacques Maritain, teodicéia, etimologicamente,
significa “justificação de Deus”. E acrescenta: “Entretanto, este nome é duplamente mal
escolhido: primeiramente, porque a Providência de Deus não tem necessidade de ser
“justificada” pelos filósofos; em seguida, porque as questões que tratam da Providência e do
problema do mal não são as únicas nem as mais importantes do que a teologia natural tenha de se
ocupar”36.
– Esta “justificação de Deus”, esclareceu o mestre, não é feita para atender à necessidade
de Deus, o qual, de fato não precisa dela; é feita para atender à necessidade do homem, para que
este não se rebele ante a dor inevitável. E as questões que tratam da Providência relacionada com
o problema do mal e da dor, não são de fato as únicas, porém são as mais importantes tratadas
pela teologia natural. Se é que Deus é conhecido pela razão natural que vê no espelho das coisas
criadas as perfeições divinas, esta mesma razão natural também enxerga imperfeições divinas
tais como: vitória incondicional do mais forte e do mais astuto sobre o humilde e justo; a tragédia
e a morte invariável do mais fraco ainda que bom; a existência da feiura, da maldade, da
ignorância, do egoísmo, da dor, do ódio, da guerra, do caos, do não-ser. Se é que Deus pode ser
conhecido por um conhecimento analógico que nos permite ver no espelho das coisas criadas,
como estas imperfeições de fato existem, então podemos intuir um Deus negativo, um Demônio
criador, da espécie de um Moloch, como o entendia Schopenhauer. É certo que “natura non
contristatur” (a natureza não se contrista), como o diz Schopenhauer, e nós precisamos saber por
que a natureza não conhece a piedade, se ela foi feita por Deus! Para que vocês não me acusem
de arrimar minhas razões nalgum ponto de fé, faço falar um pensador:
– “As dores e as misérias são, pelo contrário, outras tantas provas em apoio, quando
consideramos o mundo como obra da nossa própria culpa, e portanto como uma coisa que não
podia ser melhor. Ao passo que na primeira hipótese, a miséria do mundo se torna uma acusação
amarga contra o criador e dá margem aos sarcasmos; no segundo caso aparece como uma
acusação contra o nosso ser e nossa vontade, bem própria para nos humilhar”37 (Schopenhauer,
Dores do Mundo, 12). Os grifos vermelhos foram postos aqui no livro por mim, para destacar
que este mundo de males não foi criado por Deus, mas é o resultado da nossa própria culpa. E
prossegue Schopenhauer: “De um modo geral não há nada mais certo: é a pesada culpa do
mundo que nos causa os grandes e inúmeros sofrimentos a que somos votados; e entendemos
esta relação no sentido metafísico e não no físico e empírico. Assim a história do pecado
original reconcilia-me com o antigo testamento; é mesmo a meus olhos a única verdade
metafísica do livro, embora aí se apresente sob o véu da alegoria. Porque a nossa existência
assemelha-se perfeitamente à conseqüência de uma falta e de um desejo culpado...”38.
Ao tempo em que lia o trecho, ia Árago mostrando as partes grifadas em vermelho para
destaque, e fechando o livro, prosseguiu:
– Eis o problema do mal e da dor atenazando a mente de um filósofo. Como é então que
nos vem Jacques Maritain dizer que as questões relativas ao problema do mal e da dor no mundo
não são as mais importantes de quantas se tenha de ocupar a teologia natural? Que problema
pode haver maior e mais cruciante que o da culpa que pesa sobre o mundo, a qual, se não for do
homem, é de Deus? Ou se desculpa Deus pela existência do mal e da dor no mundo, ou não se
carece mais estudar teologia nem filosofia, que tudo, por qualquer caminho, vai dar no caos.
Sentindo esta necessidade imperiosa, ocupou-se deste tema Milton no seu “Paraíso Perdido”, que
é a mais poderosa e bela obra que ainda surgiu sobre a Terra. Escreve assim, em certo trecho, o
gênio inglês:
Capítulo II
de Descartes a Leibniz
No dia seguinte todos os estudiosos do dia anterior estavam presentes, ansiosos por
ouvirem a dissertação de Árago Pandagis, sobre o que ele chama segunda jornada filosófica.
Segundo o mestre de Cananéia, todo o filósofo tem de refazer a caminhada da filosofia desde o
início. Nenhuma disciplina é tão necessariamente histórica como a filosofia. Mas esta
historicidade não deve seguir o método cronológico e sim, construir-se pelo método de conexão
de assuntos ou idéias. A história da filosofia segundo ele, é a história de uma grande polêmica
inacabada, porque a filosofia é essencialmente, crítica. Ora, se a filosofia não passa de uma
grande polêmica no tempo, o diálogo é o seu melhor processo de realização. E só Platão o
empregou, porque, como diz Will Durant, “Platão tinha saber, e também arte; por uma vez ao
menos, um filósofo e um poeta fundiram-se em uma só alma; e criou para si um meio de
expressão em que a beleza e a verdade se davam as mãos – o diálogo” 39.
Todos estavam na sala, quando entrou Árago sorridente, apresentando os cumprimentos
habituais. Depois que o vozerio se acalmou, fez-se ouvir a voz de Árago nestas palavras:
– Hoje iremos todos ver como foi a segunda jornada da filosofia, iniciada, na Renascença,
por Descartes. Estabelecendo uma proporção, podemos afirmar que Parmênides está para a
primeira jornada, assim como Descartes está para a segunda. Até a Renascença as filosofias eram
realistas a começar por Parmênides-Platão, se bem que estes filósofos pusessem a realidade nas
Idéias. O realismo foi a tese, e o idealismo, a antítese; falta agora a síntese que iniciaremos com a
terceira jornada.
– Por que iniciaremos? Interrogou Licas. Acaso o senhor não irá fazê-la por inteiro?
– Cada filósofo cuidou que a sua era a filosofia inteira, definitiva; e, na verdade o era
apenas parte. Ora, a história é a mestra da vida! Por que, pois, me hei de me iludir, julgando-me
único, se nunca houve únicos? Nem pegureiro da terceira jornada me julgo, pois essa glória é de
Platão; a ele pertence o futuro. “Dia virá em que a humanidade chegará a concretizar as
grandiosas visões dos avançados discípulos de Sócrates, Platão, Plotino, Orígenes e outros
videntes e profetas da humanidade”40. Mais: “A filosofia platônica e neo-Platônica, repetimos,
não é para uma humanidade em baixo estágio de evolução; supõe extraordinária maturidade
espiritual. É antes uma filosofia para a humanidade de amanhã do que para a humanidade de
hoje. Enquanto o homem deva ser compelido a ser bom com o azorrague do castigo, ou com o
engodo do prêmio, Aristóteles, Agostinho e Tomás de Aquino serão mais necessários que Platão,
Plotino ou Orígenes”41. E feita uma pausa prosseguiu o mestre:
– O idealismo surgiu como necessidade histórica para corrigir o desvio do realismo
iniciado por Platão e desvirtuado por Aristóteles e pelos aristotélicos que dominaram até o fim da
Idade Média. O idealismo veio para corrigir esse desvio, mas não corrigiu nada, porque isto será
impossível sem voltar às teses de Platão. Como escreve Morente, “Agora queremos uma
metafísica que se apoie, não nos fragmentos de um edifício, mas na plenitude de sua base: na
vida mesma. Por isso digo que agora começa a terceira navegação da filosofia, de rumos
apontados já pela proa dos navios, que, como diz Ortega, caminha para um continente em cujos
horizontes se desenha o alto promontório da Divindade”42. Esse promontório da divindade é o
“topos uranos” conforme o viu Platão; é o continente das almas antes da queda na matéria em
que perderam a visão da verdade, e agora, pela evolução, a reconquistam.
– Desde Aristóteles, prosseguiu o mestre, a atenção do filósofo se fixou sobre o objeto.
Até a Renascença ninguém se ocupou do sujeito que observa, e sim, só do objeto observado. No
entanto, na visão do mundo há o sujeito que observa, e o objeto observado. Pois se o acento, a
ênfase recair sobre o objeto, temos o realismo do tipo aristotélico; se, pelo contrário, recair sobre
o sujeito, temos o idealismo. Estes dois momentos da filosofia correspondem, analogicamente, a
uma balança de braços iguais. No realismo aristotélico o peso é o objeto e tudo tem de ser
ponderado, aferido, avaliado em função do objeto. O sujeito olha e vê o objeto, ocupa-se dele,
esquecendo-se de si. E quando se vai analisar a si mesmo considera-se também como apenas um
objeto a mais a ser observado. Já no idealismo, a medida das coisas, o peso, para efeito de
avaliação é o sujeito. No sistema idealista o sujeito é a premissa, donde hão de brotar todas as
conseqüências, no passo que no sistema realista, o objeto é que é a premissa. Sujeito e objeto: eis
os dois pratos da balança; se os padrões de aferição forem o objeto, tudo mais, até o sujeito
estará no outro prato para ser aferido. Mas se o peso padrão for o sujeito, o mais será ponderado
em função do sujeito. O centro gravítico do realismo é o objeto, e o sujeito, como tudo mais, é
mero planeta a girar em torno do seu sol. Se o sujeito se fizer centro, este será o sol do sistema
em cujo redor girarão todos os objetos. Estes dois sistemas estão superados, porque relativos, e
pretenderam alcançar o Absoluto à força de operar com relativos.
E ponderando o que tinha a dizer, prosseguiu:
– Se não me engano já hei dito que a metafísica não é ciência, por não poder delimitar o
seu objeto. Por isso a pergunta metafísica, o que é o ser?, não tem resposta. Se não se pode
definir o objeto, como haver a ciência desse objeto?
– Protesto! Exclamou Bento Caturi. Ninguém sabe o que seja a matéria, contudo existe a
química e a mecânica; ninguém sabe o que seja a luz e a eletricidade; no entanto existem a ótica
e a eletrônica que se ocupam desses objetos. Igualmente não é preciso seja limitado por uma
definição para que ele seja o objeto duma ciência que seria a metafísica.
– Cada ciência, Caturí, delimita o seu objeto próprio que é o seu fim. A química estuda a
matéria do ponto de vista da combinação entre as moléculas e átomos, com o fim de formar
compostos; ou analisa e decompõe os compostos químicos, até os seus elementos moleculares e
atômicos, e pára aí. Já a física nuclear, ocupando-se da mesma matéria, penetra-lhe a estrutura
atômica, decompondo o mesmo átomo em seus elementos constituintes. A física estuda a coesão
entre as moléculas da matéria, o estado físico dos corpos, a hidrostática, pneumática, e energias e
ondas, tais como luz, eletricidade e som. Assim, prezado Caturí, temos três ciências, cada uma
com seu objeto próprio, e todas estudando a matéria. De maneira que ela não tem que saber o
que é a matéria, mas o que é o seu objeto. Mas a pergunta o que é a matéria? só pode ser feita
pela ontologia. E todas as ciências que estudam a matéria concorrem a dar essa resposta. Se a
matéria é energia, o que é a energia? Qual é a estrutura ôntica da energia, que pode tornar-se
matéria? A matéria não é o ser, pois não possui as características necessárias ao ser; contudo a
ciência ainda não sabe o que é a matéria, visto não conhecer aquilo de que a matéria proveio.
Conquanto não possamos saber o que é a matéria, podemos delimitá-la, fracioná-la, olhá-la pelo
telescópio e pelo microscópio, bombardeá-la com o ciclotron, explodi-la na bomba atômica.
Diga-me agora: poderíamos fazer o mesmo com o ser?
– Não, resmungou Caturí, contrafeito.
– Então a metafísica não é ciência, para ser uma disciplina do espírito... Se não podemos
responder o que é o ser?, podemos, contudo, responder a pergunta: quem existe? Descartes
respondia à pergunta quem existe?, dizendo: existo eu pensando; eu sou uma coisa que pensa.
Este é o célebre cogito de Descartes, base de toda a sua filosofia. Penso, logo, existo; meu existir
se subordina ao meu pensar; se não pensasse, não existiria. A única realidade que existe para
mim é meu pensamento. Posso estar enganado sobre tudo; mas não me engano quanto a que
estou pensando. Meus pensamentos podem não corresponder às experiências do mundo; mas que
meus pensamentos existem realmente isso é inegável. Algum gênio maligno poderá falar no meu
ouvido, inspirando-me uma porção de coisas erradas; mas quando penso nelas, elas existem para
mim. De maneira que a única coisa que tenho certeza de existir são meus pensamentos. Por que
penso, por isso existo.
– Quando pensamos, prossegue o filósofo, um objeto, temos que considerar três coisas: o
eu que pensa, o pensamento, e o objeto pensado. O objeto só é atingido pelo pensamento que põe
24
o eu em contato com o objeto. O objeto é mediato pois está depois do pensamento elaborado
pelo eu; mas o pensamento mesmo é imediato, porque está jungido, ligado, inextricavelmente, ao
eu; podemos dizer que o pensamento e o eu são uma e a mesma coisa. A única coisa certa e
indubitável é o eu que pensa; o resto tudo é duvidoso que exista. Por isso a dúvida é método para
por à prova, e ver se a coisa que nos é dada existe. Mas quando Descartes afirma ser uma coisa
que pensa – je suis une chose qui pense – introduz no seu sistema o velho conceito de coisa dos
realistas, fazendo, com isto que o pensamento seja uma coisa. Quando diz que é uma “coisa que
pensa”, ou uma “substância pensante”, mostra, por esses dois conceitos “coisa” e
“substância”, que ainda está preso pelo cordão umbilical ao velho realismo grego. Só que, no
realismo a coisa era inteligível apenas por sua essência ou forma; ao passo que no idealismo, esta
coisa de Descartes é inteligente, porque pensa. Se, para os realistas, aquilo que há de inteligível
nas coisas constitui o ser delas, para Descartes, o ser é o pensamento mesmo que está no sujeito.
Em vez de objeto inteligível, como no realismo, é o sujeito inteligente ou pensante no idealismo.
Por isso, como eu dizia, foram trocados os valores nos dois pratos da balança. Antes os padrões
ou pesos eram as coisas pelas quais se aferia o próprio sujeito; agora, pelo contrário, os padrões e
pesos são os próprios pensamentos, e só por ele se pode aferir tudo o mais. Como conseqüência
desta mudança, aquilo que para o realismo não era problema, passa a ser, agora, problema para
o idealismo. A realidade das coisas no mundo não era problema para o realismo, porque esta
realidade era a premissa donde se partia; já agora, como a realidade é só o pensamento, quando
se pensa algo, este algo existe ou não existe? Não seria este pensamento só uma criação mental,
sem existência exterior fora do pensamento? Eis aqui está um problema inexistente para o
realismo. O realismo das coisas, para o realista, é uma intuição sensível, dada, como um axioma;
para os idealistas, visto que duvidam desta realidade, é preciso ser demonstrada, deduzida ou
inferida.
– O mundo, pois, prossegue o filósofo, para os idealistas cartesianos precisa ser
demonstrado. Como fazê-lo? O método há de consistir em separar o que há de claro e evidente,
do que há de obscuro e confuso no pensamento. Por exemplo, a idéia de extensão é clara e
evidente por si mesma, sendo, por isso indubitável. Essa idéia é o “eu pensando”, e por isto,
real. Porém, existe a extensão, fora de mim, exteriormente, ou não há? Como saber isto, se me
acho preso em mim mesmo, nos meus pensamentos, sem porta para o exterior? Como sair deste
solipsismo? Pois Descartes se sai assim. Eu existo, mas não existo por mim mesmo, pois não fui
eu quem me fiz a mim; logo minha existência é contingente e não necessária. Portanto, para
existir, careço de um fundamento, porquanto nesse ou sobre esse, existo. Essa existência sobre
que se assenta a minha, é Deus. Portanto Deus, não só está como realidade em meus
pensamentos, como tem existência fora de mim, e se ele não existisse não estaria eu aqui
pensando. Porém, este argumento é o mesmo de Aristóteles quando infere sua própria existência
da de Deus. O célebre argumento ontológico é o de que tem de existir, necessariamente, um ser
perfeito fora de meu pensamento, porque, sendo a existência uma perfeição, tem que fazer parte
da minha idéia do ser perfeito. Ou isto, ou minha idéia de perfeição fica incompleta. Mas minha
idéia de perfeição é completa; logo nela se contém a excelência que é uma perfeição. Por
conseguinte Deus existe. Eis já duas realidades descobertas por Descartes: a dele própria, e a de
Deus.
Depois de breve descanso numa pausa, continuou o mestre:
– Sendo Deus absolutamente perfeito, nele não há erros nem enganos, nem pode ele
mentir ou enganar. Apesar disso eu posso errar e enganar-me se não tomar cuidado em afastar
para longe de mim as idéias obscuras e confusas. Só andarei em segurança, se operar com idéias
claras e distintas. Poderei, deste modo, não saber muitas coisas; porém, o que souber, terá de ser
verdadeiro. Não importa ao homem saber muito; importa-lhe saber o certo. Mas o mundo é
complexo e confuso, pois nele todas as coisas estão misturadas, e a visão que temos dele é como
a do calidoscópio. Para entendê-lo, preciso é reduzi-lo ao que é claro e simples. Tirando-se a um
corpo tudo o que ele tem de acidental, sobra só a sua forma geométrica. A idéia mais simples que
temos do Sol, é a de que ele é uma esfera. Um cavalo é um corpo com três dimensões, um
volume, portanto, uma extensão. Deste modo o sistema cartesiano possui três fundamentos: o eu
pensando ou pensamento, Deus e a extensão. Construindo o mundo sobre esses três
25
E depois de consultar um esquema que tinha sobre a mesa, prosseguiu, nestas palavras:
– Leibniz, mais tarde iria esclarecer que as idéias podem formar-se em nós por dois
caminhos que são o psicológico e o lógico. Por exemplo, tanto podemos ter a idéia do cone
vendo sua forma num vulcão, isto é, tendo dele uma vivência, como podemos concebê-lo pela
revolução de um triângulo retângulo em torno do eixo de um de seus catetos. No segundo caso a
idéia nos nasceu por derivação lógica, visto que já conhecíamos o triângulo. As vivências nos
dão as verdades de fato, enquanto que a derivação lógica nos dão as verdades de razão, segundo
Leibniz. Por aqui já se vê que Descartes seguira pelo caminho das verdades de razão, no passo
que Locke vai pelo das verdades de fato, donde vem que o sistema seu é psicologismo.
Rompendo por este caminho, desde logo, acha duas origens para as nossas idéias: a sensação e a
reflexão. Mas reflexão não é raciocínio para Locke; é como que uma experiência interna; é a
mente percebendo o que se passa consigo mesma. A sensação, por sua vez, representa
experiência externa. Contudo, esta sensação não é simples, e antes nos chega em feixes ao
cérebro pelos nervos aferentes. O simples toque num copo nos dá a sensação de temperatura,
rugosidade, solidez, consistência; se a vista é também empregada no fenômeno, então a sensação
se associa com a idéia de coloração, luminosidade, forma etc. Tudo vai ao cérebro, e aí se
combina com as experiências internas, recordação, reconhecimento do objeto, de modo que as
idéias nunca são simples, mas amassilhos de idéias simples que têm sua gênese nas sensações. A
esta síntese de idéias simples, Locke dá o nome de substãncia, e a designa sob o nome
característico de “não sei que”. A metafísica de Descartes é válida, inteira, para Locke; e que este
fez a mais, foi analisar como se formam as idéias que são a base de todo conhecimento. A
doutrina de Locke, pois, está a cavaleiro da metafísica cartesiana que se resume no pensamento,
em Deus e na extensão. No complexo das idéias, Locke distingue ainda as idéias que ele chama
primárias, (como a extensão, forma, movimento, impenetrabilidade), das secundárias, que são
acidentais, portanto, de menor ou nulo valor ontológico; é evidente que a cor, o cheiro, a
temperatura, a rugosidade, etc., não são coisas, mas qualidades que não acrescentam nem
diminuem o ser das coisas com as quais se acham associadas. Estas são, em resumo, as idéias de
Locke.
E fez depois, o mestre, uma pausa longa, para consultar o esquema que tinha sobre a
mesa; depois continuou:
– O filósofo seguinte na história do pensamento filosófico é Berkeley. O sistema
cartesiano, que fora respeitado por Locke, sofre seriamente, já, nas mãos de Berkeley. Respeitara
Locke as três substâncias metafísicas cartesianas que eram pensamento, extensão e Deus.
Primeiramente Berkeley move o seu aríete contra a substância extensa da matéria. Como Locke
fizesse distinção entre qualidades primárias e secundárias, sendo, para ele, reais as primárias, e
apenas vivências as secundárias, Berkeley nega realidade a ambas, visto que ambas não passam
de vivências. Não entendo, diz Berkeley, por que cor, temperatura, cheiro, sabor, possam apenas
ser vivências minhas, e extensão, forma, movimento tenham realidade fora de mim, sendo algo
mais que vivências. Como posso comprovar a existências dessas coisas fora de mim,
transcendendo das minhas vivências? Como afirmar a existência metafísica em si, e por si,
dessas qualidades primárias, que são tão vivências como as secundárias? A verdade, diz
Berkeley, é que todas as idéias têm o mesmo caráter vivencial, nenhuma me permitindo sair de
mim mesmo para alguma região metafísica, onde as coisas existam em si e por si, fora de mim.
Mudando para outro ponto na seqüência do desenvolvimento histórico-filosófico,
prosseguiu o mestre cananeano:
– E de novo, na história do pensamento filosófico, Berkeley levanta o velho tema
ontológico e metafísico de ser e de existir. Que é ser?, pergunta, e que é existir? Como ele se
achava prisioneiro de seu psicologismo, sem porta para o exterior, já se vê que sua resposta não
poderia ser outra que não a psicológica. Chamo ser as qualidades: ser branco, ser preto, ser
extenso, ser vermelho, ser duro, ser flexível, ser redondo, ser triangular, ser dois, ser três, ser
cinco, tudo é ser. Por isso, ser, são qualidades que distingo. Eu percebo, e minha percepção é o
ser das coisas; as minhas vivências são o ser. Só posso conhecer aquilo de que possa ter
vivência ou percepção. Ainda que uma realidade exista, se não é percebida por mim, não existe,
não podendo eu falar dela. Este é o idealismo subjetivo mais inteiro e completo, porque Berkeley
27
responde à pergunta quem existe?, dizendo: “existo eu com minhas vivências, e fora disto nada
mais existe”. Este é o chamado imaterialismo de Berkeley, o qual ele cuida seja o ponto de vista
de todo o mundo, embora poucos o saibam expressar. Se a um roceiro se perguntar: que é isso
aí? Ora, isto é meu carro puxado a bois! Quererá dizer, contudo que vê o carro, que o toca, que o
ouve, que, quando bate nele com a cabeça, doi-lhe a cabeça. O carro existe, sim senhor, dirá o
lavrador. Mas se repararmos bem, o carro foi conhecido através dos sentidos da vista, do tato, do
ouvido e da dor... de cabeça. O nosso homem da roça teria de concordar com Berkeley, e dizer: –
É verdade... não tinha pensado nisso! De fato só existo eu com minhas vivências... Como este é o
pensar de todo mundo, não será ele o idealismo, e sim, o imaterialismo.
– Que resíduo sobrou do cartesianismo? Interrogou Árago, e ele próprio responde: Restou
o eu que tem vivências. O eu existe, porque tenho dele uma intuição direta. Por isso o “cogito”
cartesiano ainda perdura em Berkeley. Eu sou uma coisa que pensa; eu sou um espírito que tem
vivências. Todavia, eu e as minhas vivências não podemos existir por si mesmas; Alguém as pôs
em mim ao me criar; esse Alguém, espírito puro tanto como o “eu”, é Deus. Logo, eu vivo; eu
vivo e tenho vivências por mercê de Deus. Este é o outro resíduo cartesiano-Deus. O eu existe
por intuição direta, e Deus por necessidade da minha existência; mas a extensão é pura vivência,
e não posso saber se existe fora de mim.
– Este resíduo metafísico cartesiano, o espírito que tem vivências, e Deus, caem por
completo com David Hume. E usa este o mesmo método psicológico de Berkeley. O método de
Hume consiste em reduzir cada coisa à sua expressão mais simples. Decompõe ele cada coisa
nos seus elementos, e depois toca a decompor os elementos obtidos, e assim prossegue até que
cada coisa se reduza a zero. Hume chama “impressões” às vivências e, representações, às idéias.
Eu tenho, agora, a impressão de verde; ato contínuo, posso fechar os olhos, e imaginar o verde:
essa é a representação de verde. E como a memória guarda todas as impressões, sob a forma de
representações, segue-se que temos muito mais representações que impressões. Essas imagens
representativas, já, de si, mais numerosas que as impressões, combinam-se, associam-se, dando-
nos novas imagens e também idéias que não tiveram raiz diretamente nas impressões. Eu que vi
um pássaro verde e outro azul, posso imaginá-los vermelhos, amarelos, brancos, sem que essas
aves me tivessem causado essas impressões. Ainda que associadas, as geratrizes das
representações são as impressões. Então, é só decompor as representações complexas nas
simples, que tudo se reduzirá a impressões. E se porventura alguma representação não tiver raiz
nas impressões, que sucederá? Pois sucederá, muito simplesmente que se trata duma ficção. Só
as representações que, decompostas, mostrarem proceder de impressões são válidas. E assim
começa Hume a sua espantosa demolição. A que impressão ou impressões corresponde o
conceito de substância? Ora, substância é aquilo que Locke chama “não sei que” a qual se acha
por baixo dos caracteres, dos acidentes, das particularidades. E se tomo uma lâmpada nas mãos,
e me pergunto: qual a substância desta lâmpada? Qual seria a resposta? Sua cor vermelha ou azul
não é a substância, visto que esta é mais que sua cor; não pode ser tampouco sua haste ou
suporte, uma vez que ela é mais que seu suporte. Seria sua mecha ou torcida em que se põe fogo?
Eu sei o que é a lâmpada, o braço, a torcida, o combustível, o fogo, a luz, mas o que é a
substância não sei. Seria a reunião de tudo, a substância? Não, porque Locke a especifica com a
palavra “não sei que”, e diz que é o sustentáculo em que as impressões se apoiam. As
impressões, acho-as todas; porém não o esteio que as suporta, por mais que apalpe não o sinto. O
conceito de substância não pode, por conseguinte, ser decomposto nas suas impressões
genéticas; então não existe, senão como criação fictícia na imaginativa; fora com ele, portanto.
– E a representação de existência, continuou Árago, teria seu fundamento nas impressões?
Peguemos de novo a lâmpada nas mãos, agora para procurar nela o fundamento do conceito de
existência. Não é nenhuma parte da lâmpada, nem todos reunidos, nem sua matéria, nem sua
forma. Então, que é existência, senão um conceito abstrato, sem alicerce nas impressões, pura
criação imaginativa? Fora com ela, também.
– E o eu? Prossegue Árago: o eu acaso se alicerça nas impressões? Vejamos: Descartes,
Locke, Berkeley não puseram em dúvida a realidade do eu. Por conseguinte, o eu pode ser
achado nas impressões que o formam. Descartes diz que o eu é uma intuição que tenho de mim.
Que intuição? Intuição sensível? Eu tenho intuições do verde, do azul, do medo, de vivência, de
28
dor, etc. porque tudo isto eu sinto como impressões. Todavia, onde achar a vivência do eu?
Observo-me, perscruto-me introspectivamente, e acho uma série de vivências, sem que nenhuma
delas seja o eu. No exame profundo e compenetrado que faço de mim, não me encontro a mim
mesmo, e sim somente, vivências que são minhas. Somente acho o meu e não, nunca, o eu. Só
tenho vivências e mais nada. Um homem ao qual todos os sentidos faltassem, como ocorre com
o que sofreu anestesia química geral e profunda, não teria vivências nenhumas, e para ele nada
existiria, nem ele próprio! Não sentiria fome, nem sede, nem dores; se lhe tapassem a boca e o
nariz, morreria sem sentir falta de ar. Esse homem não poderia ter consciência de si, e dizer: eu
existo. Isso porque, estando fora de si, faltar-lhe-ia quaisquer vivências. Logo, só existem
vivências. Nó tomamos todas as nossas vivências, fazendo delas um amassilho, e depois
concluímos: isto é o eu! Contudo o conceito de eu é um acréscimo indébito que fazemos sem
base na realidade das impressões.
E tendo o pensador cananeano parado um pouco para se descansar, todos passaram a
trocar entre si impressões. Finda a pausa, prosseguiu Árago:
– Também a idéia de causalidade é um mito da imaginação. O calor dilata os corpos. Eu
tenho a impressão do calor e a tenho de corpos. E observo o fenômeno da dilatação. Porém, a
idéia de causa, sobre que impressão se apoia? A causa é o calor? Mas o calor se originou da
combustão. Logo esta reação química produtora do calor é que é a causa? Porém a reação
química provém da afinidade que o oxigênio tem pelo carbono, pelo hidrogênio e pelos metais.
Por conseguinte a causa é a afinidade química? Quem é que não vê que não há causa nenhuma
nesta cadeia de antecedentes e conseqüentes? Trata-se apenas de associação de impressões por
contigüidade. A causalidade não tem apoio nas vivências, e não passam de associação de idéias
(Hume chamava idéias às impressões) por sucessão no tempo.
– De maneira, prosseguiu o mestre de Cananéia, que tudo são impressões além das quais
nada mais existe. Nada existe que seja exterior a mim; e se existo, não tenho meios de sabê-lo,
visto que só tenho impressões e nada mais que isto. Posso crer que o mundo externo existe, mas
não posso ter ciência disto, visto que não tenho passagem para o exterior. Ora, a metafísica
cogita do problema do ser que não posso saber se existe; logo, a metafísica é impossível. À
pergunta quem existe? Descartes responde: existo eu, a extensão e Deus; Locke responde o
mesmo que Descartes: todavia, Berkeley já nega a existência da extensão, conquanto afirme a
existência do eu e de Deus; Hume responde à pergunta dizendo: não há eu, nem extensão, nem
Deus. Só há vivências. O mundo físico poderá somente, ser objeto de crença. Ora, se a física é
objeto de fé, que será, então, a metafísica que se oculta por detrás da física? Uma fé que se oculta
por detrás de outra fé? O que há é um credo no qual todos os homens rezam: creio na existência
externa do mundo, na minha própria, na física, na química e na biologia; creio no que vejo das
estrelas, dos planetas e do universo; e crer, depois, que haja qualquer coisa, a mais, por detrás de
tudo isso que apenas creio, é crer demais, é fé sobre fé!...
– Eis, meus caros, concluiu o mestre, as últimas conseqüências do idealismo. Este é o
ponto de máxima descida do ciclo histórico da filosofia. Depois disto não há mais descer. O
psicologismo aqui, enfunando-se de todo, invadiu e dominou tudo, matando a lógica, a ontologia
e a metafísica. Não há mais razão nem lógica de as coisas serem assim; elas são assim, porque o
creio, porque me habituei, por associação de representações. De igual forma, ruíram todos os
conceitos ontológicos de substância e de existência. Todavia, sendo o homem um ser ativo, ele
atua e sente necessidade de viver; para viver precisa contar com certas regularidades e fazer
previsões baseado nelas. Estas regularidades observadas pelo homem, vividas por ele são suas
ciências, suas verdades. Esta é a causa de se dizer que David Hume é o predecessor do
positivismo, assim como, também, o do pragmatismo.
E tendo, o mestre, feito uma pausa para concatenar novas idéias, dona Cornélia, que já
esperava à porta, entrou com a bandeja de xícaras e o bule de café.
– Bravo! Exclamou Árago voltando-se para a esposa. Estava vai não vai para pedir nos
trouxesse o café.
E enquanto tomavam o café, iam todos expondo suas impressões relativas ao estudo.
Árago se mantinha em silêncio, com os olhos postos no vazio, pois tinha a mente fervente de
idéias, e se dispunha a expô-las. Findo o café, e enquanto dona Cornélia se retirava, sorridente,
29
a não ser numa dada forma de triângulo, segue-se, necessariamente, que não há a idéia geral de
triângulo, sendo este apenas um nome. Isto soa como os argumentos dos nominalistas medievais,
ressuscitados pelos idealistas modernos. Onde, porém, se encontra a falha? A falha consiste em
que as imagens formadas em nossa mente não são pensamentos, mas figuras tão individuais
quanto as dos objetos que elas refletem ou espelham. Na imaginação temos o retrato do mundo
que nos cerca, aí chegado através dos sentidos; aí está refletido tudo sob a forma de imagens, e
como retratam as coisas individuais, são individuais também. Porém, o pensamento não é isso, e
sim, é a abstração que generaliza as imagens individuais da mesma espécie, tirando delas um
conceito. Qual, pois, é a idéia de triângulo? É a idéia do que tem três lados ou três ângulos, e só.
Esta é a enunciação lógica ou racional do triângulo, não sendo, portanto, imagem nenhuma,
conquanto esteja este conceito a cavaleiro das imagens. É absurdo mandar, como fazia Berkeley:
– pense um triângulo; e depois inquirir: – que triângulo você pensou? Isto é tomar imagem por
conceito. O que ele queria propor era: - imagine um triângulo. Porém, pensar um triângulo, um
determinado triângulo, é impossível, porque o conceito de triângulo é geral, donde vem que só se
pode mandar pensar o triângulo; e se depois mandarmos: – desenhe o triângulo pensado na lousa,
se o sujeito ao qual falamos for lógico, há de replicar-nos: – isso é impossível, pois conceitos,
com serem gerais, não são desenháveis. Para desenhar o triângulo, preciso é imaginá-lo, e então,
será o isósceles, o escaleno, o retângulo, o curvilíneo, etc., e já, aí, aparecem todos individuados.
– Além desta crítica de Berkeley ao universal, prosseguiu Árago, outro ponto que merece
estudo é o conceito de ser em si, no que também conservam um fundo do realismo aristotélico.
Ora, os nominalistas pretendiam que as coisas existem em si mesmas, independente de que haja
ou não quem as conheça. Este ser que está nas coisas, que pode ou não ser conhecido por mim, é
o ser em si. Mas há nas coisas dois seres, sendo um este ser em si, e outro ser-para-
conhecimento. O ser do conhecimento não é o ser em si; contudo não é um não-ser. Todavia os
idealistas não podendo achar nas coisas o ser em si, negam-no, de todo, na coisa, e o transferem
para o sujeito. Porém Hume, em fazendo sua análise, não encontra nenhuma impressão que
corresponda ao eu, logo, não há o eu em si. Contudo este em si que não há para o sujeito, nem
para as coisas, existe nas vivências. Para Hume, pois, as vivências são coisas em si. Isto de
chamar as vivências coisas em si é resíduo do aristotelismo. E assim vai acesa a luta, até que
Kant nos venha demonstrar haver além do ser em si das coisas, um outro ser para conhecimento,
sendo este ser do conhecimento o objeto para o sujeito. Aquilo que apreendemos das coisas, não
é o ser em si, mas o ser objeto do conhecimento. E o pensamento é a correlação do sujeito e do
objeto, sendo este objeto o ser para conhecimento, e não o ser em si. O ser em si é o ser natural,
objetivo, exterior, que constitui um problema insolúvel para a filosofia; já o ser para
conhecimento é o ser lógico, posto para ser conhecido, um ser proposto como problema. Não
vale dizer como Berkeley que o ser do conhecimento é o ser percebido; conhecer é mais que o
simples perceber, pois qualquer animal inferior percebe, mas não conhece. Mas isto é problema
para Kant resolver. Cumpre-nos agora ver o que Leibniz andou fazendo.
E dizendo isto, pôs-se o mestre em pé, para desentorpecer as pernas do muito estar
sentado. E permanecendo assim, prosseguiu:
– Como já hemos visto, Hume destruiu tudo, caindo, por isso no mais radical pessimismo.
A Kant cabe a missão de reconstruir o mundo idealista, pois ele é o ponto alto desta outra onda
histórica. Todavia, antes dele, que fale seu precursor Leibniz.
– Este, continuou o mestre, foi um dos grandes espíritos surgidos neste mundo, e quanto a
seu saber enciclopédico, faz parelha com Aristóteles e Descartes. Espírito argutíssimo viu claro
onde se ocultava o calcanhar de Aquiles do empirismo inglês, e esta falha consistia em reduzir,
como fizera Locke e Cia, o racional ao fático, considerando a razão, como se fora ela fato.
Refutando os “Ensaios Sobre o Entendimento Humano” de Locke, Leibniz escreve os seus
“Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano”, publicados após a morte de Locke. De início,
Leibniz distingue duas formas de verdade que são as verdades de razão e as verdades de fato. As
verdades de razão são aquelas que enunciam alguma coisa, de tal modo que não poderia deixar
de ser desse modo. As verdades de fato são aquelas que declaram que uma coisa é de certo
modo, mas que poderia ser de outro. Quer dizer que as verdades de razão são necessárias, no
passo que as de fato são contingentes. O conceito de triângulo nos declara ser triângulo tudo o
32
que tenha três ângulos, e não poderia ser de outro jeito. Todos os pontos duma circunferência são
eqüidistantes do centro, e não pode ser de outro modo. Porém, se declaramos que o calor dilata
os corpos, temos de supor que poderia não ser assim, e de fato, não o é, com respeito à água, que
se dilata com o frio, ao se fazer gelo, e por esta causa, blocos de gelo bóiam sobre as águas. Por
isso todas as verdades matemáticas são verdades de razão, são lógica pura, são necessárias, ao
passo que as verdades das ciências experimentais, como a física, a química, a biologia, a história,
são verdades de fato, porque contingentes, e são de um modo, mas não há razão nenhuma para
que não pudessem ser de outro. Isto posto, temos: se a razão se reduz a fato, deixa por isso
mesmo, de ser razão, passando ela da qualidade de necessária, à condição de contingente. Daí
por diante as verdades de razão poderiam ser de um modo e também de outro. Neste caso as
verdades matemáticas tinham de ser experimentais como as das ciências empíricas, e 2x2 podiam
não ser quatro. Na física nuclear é assim, donde ser possível a bomba atômica de urânio e de
hidrogênio. Ao cindir-se o átomo de urânio em dois outros, sendo um de bário, e outro de
criptônio, há uma sobra de massa que se transforma em energia segundo a bem conhecida
fórmula de Einstein. Quer dizer que postos num prato da balança os dois átomos resultantes da
cisão (criptônio e bário), e no outro prato o átomo inteiro de urânio, pesa mais este que aqueles
dois reunidos. Igualmente quatro átomos de hidrogênio pesado, submetidos a altíssima
temperatura, fundem-se um no outro, formando dois átomos de hélio. Pois estes quatro átomos
de hidrogênio pesam mais que os dois de hélio resultantes, donde vem que uma sobra de massa
se transforma em energia, seja na bomba H, seja na fornalha solar. O hidrogênio, por este modo,
é o combustível que mantém aceso o Sol. Por isso “na física nuclear 2+2 não são 4, mas sim 3,9
ou 4,1”48. Eis uma verdade contingente ou fática que só pode ser alcançada pela experiência. E
se reduzirmos as verdades de razão às verdades de fato, aquelas também passam a ser
contingentes, e não mais necessárias. O fato, portanto, é como é, sem nenhuma razão de ser; no
passo que o racional é como é, porque não poderia ser de outra maneira.
– E este é o pecado original do psicologismo, continuou Árago, e foi isto que Leibniz
enxergou com olhar de lince. O psicologismo reduz o pensamento a vivência pura com o que faz
dele puro fato; cessa portanto de existir o racional que é necessário, para só existir o fático que é
contingente. Há, pois, que distinguir no pensamento duas coisas: as vivências e o racional; as
vivências que criam as imagens, possibilitam a imaginação, que é o mundo exterior refletido em
nosso espírito. E como o mundo exterior se compõe de fatos, a imaginação, a imagética é, por
sua natureza, fática, e, por isso é como é, podendo, contudo, ser de outro modo. Neste plano, o
da imaginação, tudo pode ser mudado livremente, e é por isso que o romancista, o ficcionista cria
o que não existe, mas que poderia existir alhures. Por que não fazer os animais verdes, as árvores
vermelhas, o céu amarelo, a água e as nuvens lilases? Então se imagina a vida em outro planeta,
e tudo pode ser então, como se quiser que seja. E por que? Simplesmente porque, sendo a
imaginação reflexo do mundo em nosso espírito, como aquele, ela é fática, e, por isso,
contingente, fortuita. Aqui está no que dão as vivências, de que se compõe uma parte de todo
pensamento. Há, porém, a outra parte que é a racional, a necessária, visto como não pode variar
como ocorre com a imaginação. O racional generaliza as imagens, abstraindo delas o conceito
que é a parte inteligível das coisas, a essência delas, o universal que, por isso mesmo, é unitário,
imutável, constante, eterno, necessário, ideal. Se retirarmos ao pensamento o que ele tem de
racional, de formal, tudo se reduz à irracionalidade fática, contingente, fortuita, mutável,
calidoscópica, ilusória, que é o reino do vir-a-ser heracliteano refletido em nosso espírito, ou
seja, o mundo do não-ser parmenídico-platônico. Não é sem razão que David Hume se perdeu
neste labirinto, caindo no mais radical pessimismo. E se a verdade não está nesta parte do
pensamento, terá de ser procurada na outra; se não está no reino fantasioso da imaginação e das
vivências puras, só pode estar no mundo da realidade racional, donde vem que ser real é ser
racional. Daí o ter dito Hegel que “todo o racional é real e todo o real é racional”49.
– A pedra é real, argumentou Alcino Licas; logo é racional? Mas a pedra não é racional,
porque não raciocina; então não é real?
– A pedra, tornou o mestre, é e não é real, visto que nela há as duas coisas: o fático ou
48Fritz Kahn, O Átomo, 93
49M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, 25
33
contingente, e o real ou racional. Olhando uma rocha e muitas rochas de cores e espécies
diferentes, tenho em minha imaginação, a vivência, a imagem delas. Dessas imagens abstraio o
que há de comum em todas as rochas, o universal delas, que é a essência, o conceito de rocha.
Esse conceito é o real ou racional, para falar que nem Hegel. E como tirei o conceito das rochas,
através das imagens que elas produziram no meu espírito, segue-se que esse conceito, esse
racional, essa essência está nas rochas, sem o que eu não poderia entendê-las. Então o
pensamento que tenho da pedra está em mim, porque antes estava nela; na pedra, pois, há
pensamento, há racionalidade, e ela é real por ser racional (Hegel). Não é que a pedra seja
racional porque ela raciocine; é racional por ser inteligível, por conter em si um pensamento que
não é seu, mas daquele que a criou, do mesmo modo pelo qual a estátua contém o pensamento do
artista que a plasmou. E é por este pensamento, por esta essência que a pedra se torna
racionalmente real. Fora disto que posso apreender da pedra, ela me é incompreensível,
irracional. Este irracional da pedra constitui o que ela tem de fático, de contingente, que poderia
ser assim ou de outro modo. Por este lado a pedra possui um conteúdo, uma substância, e esta
pode ser variável, pode deixar de ser pedra para ser fraguedos, pó, moléculas de puro composto
químico. Por esta parte a pedra está sujeita aos processos do vir-a-ser heracliteano, e sendo que
ela é isto, e já não é isto para ser aquilo, então não é, e se reduz ao vir-a-ser heracliteano que é o
não-ser de Parmênides. Por isso, meu Licas, a pedra é real por ser racional, não porque raciocine,
mas porque possui em si a racionalidade, e isto é o que Hegel chamava de real. E se você me
puder mostrar uma coisa que não possua em si esse “quid” de racional, essa coisa não seria
entendida, não possuiria conceito ou essência e você não a conceberia, quer dizer: essa “coisa”
não teria lugar no seu espírito nem na sua imaginação, nem na sua razão. Entendeu, agora, o que
disse Hegel, ao afirmar que “todo o racional é real e todo o real é racional”?.
– Entendi.
– Toquemos por diante, então, com nosso estudo, tornou o pensador. Este assunto que
vimos há pouco, referente às verdades de fato e às verdades de razão é exatamente igual a
divisão que fazem os lógicos a respeito dos juízos apodíticos e dos juízos assertórios. Os juízos
apodíticos são aqueles em que o predicado repete aquilo que já se acha implícito no sujeito.
Dizer que o triângulo tem três lados, e o quadrado, quatro, é uma redundância, uma tautologia,
pois é impossível que o triângulo não tenha três lados, e que o quadrado não possua quatro. Por
isso, verdades de razão e juízos apodíticos são uma e a mesma coisa. Igualmente acontece com
as verdades de fato e os juízos assertórios; neste caso o predicado diz uma coisa do sujeito que
não se acha implícito no seu conceito. Dizer que o Sol é luminoso, que o calor dilata os corpos,
que a lanterna é vermelha, são juízos assertórios ou verdades de fato, porque o Sol podia ser
escuro, visto haver de fato estrelas escuras; o calor poderia não dilatar os corpos, e a lanterna
poderia ser azul. Então, os juízos apodíticos são as verdades de razão, e constitui todas as das
matemáticas; os juízos assertórios são as verdades de fato, próprias das ciências experimentais. O
ter quatro lados é qualidade que pertence ao quadrado, não de fato, mas de razão. Já o ser
luminoso é qualidade que pertence, de fato, ao Sol, mas não lhe pertence de razão, porque o Sol,
como muitas estrelas mortas, poderia não ter luz. Eis o que significam as expressões de razão e
de fato. Isto posto, pergunto, aqui, ao Licas: as verdades de razão ou os juízos apodíticos podem
originar-se da experiência?
– Claro está que não. Se as verdades de razão se originassem da experiência, seriam
originados de fatos, e então seriam verdades de fato. Igualmente, as verdades de fato não se
podem originar da razão, e sim só das experiências.
– Exato! Exclamou o mestre. Foi isto, precisamente que arruinou a física de Aristóteles.
Há nela erros de fato, conquanto possa tudo estar bem deduzido pela razão. Errou, Aristóteles,
quando afirmou que duas massas diferentes, mas da mesma forma e da mesma matéria, têm
velocidades diferentes quando abandonadas no espaço, em queda livre. Galileu, aproveitando-se
da inclinação da Torre de Pisa, fez a experiência, e verificou que tais massas caem com igual
velocidade, observando-se um só baque no chão. Errou ele quando disse que o cérebro servia
para refrigerar o sangue, que a mulher é um homem inacabado, e outras mais tolices que foram
refutadas na Renascença. Em vez de fazer experiência, foi tirando tudo da sua cabeça, e aí está o
que vem a ser os erros de fato.
34
alimentos, mesmo quando tinha fome. Na idade de quatro anos, não conhecendo nem o alfabeto
nem os algarismos, sabia fazer impressionantes cálculos mentais”54. Há mais casos, mas estes
bastam.
Disse o mestre estas últimas palavras, ao tempo em que fechava o livro de Serge
Voronoff, depondo-o sobre a mesa. E como estivesse em pé, voltando a sentar-se à sua mesa,
prosseguiu:
– Eis, meus caros, a razão por que Leibniz em seus Novos Ensaios relembra a teoria das
reminiscências de Platão, quando, no diálogo, Sócrates faz vir à sua presença o jovem escravo
Menon para demonstrar a seus ouvintes que o moço conhecia as matemáticas sem nunca as ter
aprendido, visto como as matemáticas nascem, surgem, aparecem por evocação do próprio
espírito que é criado segundo um plano lógico para ser, naturalmente, racional. Esta é a versão
leibniziana para a teoria platônica das reminiscências. E fundamentado nestas evidências propõe,
Leibniz, a reformulação do princípio basilar dos empiristas, já milenário, enunciado por
Aristóteles, e que diz: “Nada há na inteligência que não tenha estado antes nos sentidos”; a isto
acrescente-se: “exceto a própria inteligência com o seus princípios e leis, com seus germes, com
todas as suas possibilidades de ulterior desenvolvimento, não precisando, para desenvolver-se,
mais do que o estímulo das vivências”. Esta teoria de Leibniz, sobre as verdades de razão, é que
vamos estudar ainda em Kant, com o nome de verdades a priori, isto é, que são independentes da
experiência. As verdades de razão se opõem às verdades de fato que, em Kant, se dizem a
posteriori, ou seja, vindas depois da experiência. Este segundo conhecimento é inferior ao
primeiro, por ser contingente, no passo que o primeiro é superior, por ser necessário. Se um
homem nascer desaparelhado para os conhecimentos a priori, podemos dizer que é idiota; e
porque lhe falta a aparelhagem do a priori, por isso mesmo também não poderá desenvolver os
conhecimentos a posteriori, visto que estes se entrelaçam e dependem dos primeiros. Por isso o
ideal da sabedoria consiste em desenvolver as verdades de razão, os conhecimentos à priori;
depois disto, cumpre não desprezar as verdades de fato, os conhecimentos a posteriori, visto que
eles também se sustentam em princípios de razão. É claro: a Suma Sabedoria que criou o homem
racional, fez o mundo e as coisas segundo o mesmo princípio lógico, donde vem que tudo se
torna inteligível e possui em si razão. Por isso é que existe objetividade nas coisas, e é esta que
apreendemos com nossa inteligência, donde vem que as verdades de fato, a posteriori, também
se fundam no princípio de razão suficiente. Por conseguinte, quando um cientista está estudando
um fenômeno, não quer outra coisa além de descobrir a lei do fenômeno, a constância com que
as coisas se dão, a razão suficiente do acontecimento, a sua inteligibilidade, a sua racionalidade,
a sua causa, a verdade de razão que se oculta sob as aparências da verdade de fato. As verdades
de fato são aparenciais, ou verdades segundas, porque se buscam debaixo delas, as verdades
primeiras, as verdades de razão que aquelas ocultam. Por este motivo há de existir um plano de
vida espiritual, onde todas as verdades são de razão, por estarem despidas do fático, do
contingente, do transitório, do fenomênico, do vir-a-ser constante. Esse plano é o “topos uranos”
de Platão, ou lugar das Idéias Arquétipos, onde as almas vivem felizes, livres da dor e da morte.
Deus é dessa natureza, e por isso nele, ou para ele, não há verdades de fato, a posteriori, visto
que não precisa da experiência para estar ciente, sendo suas verdades todas de razão ou a priori.
De um lanço de olhos Deus contempla as essências puras, as verdades primeiras, as verdades de
razão através do calidoscópio fenomênico, da ilusão contínua que nos cerca e nos aturde. Esta
ilusão nossa constitui as sombras da caverna, consideradas em relação às realidades puras das
essências que moram em “topos uranos”, como refere Platão. Em Deus tudo é atualidade fixada
por um tempo eterno que não passa, visto como, quanto mais a velocidade diminui, mais o tempo
aumenta, e onde o movimento cessa, o tempo fica eterno. Em Deus não há mover, por isso o
tempo é eterno. Esta é a causa de Deus ser atualidade, e, nesta, ele conhece, como numa intuição
que só ele pode ter, todas as razões suficientes que fizeram que cada coisa seja aquilo que é; e se
a coisa se muda, também há uma razão suficiente para esse mudar que objetiva a perfeição,
chegada à qual, cessam as mudanças. Pela mesma razão exposta há pouco, em Deus não há
juízos assertórios e todos eles são apodíticos e necessários. Os males e as dores do mundo, a
vitória da força e da astúcia, a derrota do fraco, do justo, do humilde e do bom, as misérias do
54Serge Voronoff, Do Cretino ao Gênio, 44
36
mundo, todas, sem faltar nenhuma, existem de fato, e, como tudo o que é fático, se apóiam sobre
razões suficientes que a nós nos cumpre descobrir e desenvolver na terceira jornada filosófica, da
qual, estes estudos, são meros exórdios. Quando Leibniz declarou estar este mundo da melhor
forma possível, não quis dizer que o mundo é perfeito, mas sim que, por sua razão suficiente, não
poderia ser coisa melhor nem pior do que é. Não é este nem o melhor, nem o pior dos mundos;
apenas é como é; é como não podia deixar de ser; é como o impõe a sua razão suficiente, e isto
ainda iremos ver na terceira jornada, querendo Deus. Ainda iremos ver como se pode ser
resignadamente otimista, apesar de estar metido neste bem arrematado vale de lágrimas; por isso
ao filósofo da terceira jornada caberá batalhar por duas coisas fundamentais: a primeira é lutar
pela melhoria do homem, e, por conseguinte, pela do mundo; a segunda consiste em elevar-se
sobre si mesmo o quanto mais puder, tendo em vista evadir-se deste inferno terrestre para planos
mais felizes.
Erguendo-se depois de sua cadeira, foi até à porta, e pediu para dona Cornélia lhe trazer
um copo d’água. Bebeu a água de uma assentada, e, tornando ao seu lugar prosseguiu:
– O ideal do conhecimento, para Leibniz, consiste no da pura racionalidade que tem sua
plenitude na matemática e na lógica. A física, a química, a biologia, etc., são conhecimentos um
pouco inferiores, visto se constituirem de verdades de fato com base na experiência. Porém,
como já temos dito, não há abismo intransponível entre as verdades de razão e as verdades de
fato, donde vem que é necessário transformar as verdades de fato em verdades de razão, e isto se
faz com retirar do fático o que ele tem de racional. Como já dissemos, todas as verdades de fato
se fundamentam sobre uma base de razão suficiente. Quando buscamos a razão de alguma coisa,
verificamos que esta razão se assenta sobre outra anterior, e esta, sobre a antecedente, e cada vez
mais se vai alargando o círculo, abarcando razões suficientes cada vez maiores e gerais, até
remontarmos à razão primeira que não pode ter antecedente por se ter tornado de âmbito infinito.
A razão primeira não tem mais antecedentes, porque, se o tivesse, esses haviam que ser mais que
infinitos. Nada, porém, pode ser maior que o infinito; logo, a razão que se situa aí, há de ser a
primeira da cadeia para o que desce, e a última para quem sobe. Kant afirma que a cadeia de
razões suficientes se interrompe na Causa Primeira sem necessidade. Pois é necessário que nada
possa superar o infinito, e, por este motivo, que a Causa Primeira não tenha causa. Das coisas
miúdas se compõem as grandes, e, pela recíproca, as grandes se compõem das pequenas. Dos
ciclos mínimos depende o desenvolvimento dos máximos, donde vem que os máximos se
compõem dos mínimos. Ora, se cada coisa possui a sua razão suficiente, tanto possui razão
suficiente as coisas mínimas, como as máximas. Assim há razão suficiente para que exista o
universo total de círculo materialmente máximo, como a há para o elétron que é o círculo
mínimo. E deste mínimo se compõe o máximo por integração; e pela desintegração, aquele
máximo pode chegar a esta partícula infinitesimal, que é o elétron, de cuja reunião, por
entrelaçamento de campos, se forma o oceano eletrônico que enche o espaço físico, objetivo.
Assim também com o tempo: o elétron é um vórtice de velocidade rotacional máxima; e quando
a velocidade raia pelo infinito, o seu tempo se aproxima de zero. Deste modo o tempo mínimo é
o do raio do elétron percorrido pela luz. Este tempo é tão curto, que se aproxima de zero ou não-
tempo; e o não-tempo, o tempo zero, coexiste com o não-ser completo, que é o não existir,
situado no extremo da escala descendente, abaixo do elétron. Daí para cima, começa a gradação
dos seres que cada vez mais são, quanto mais crescem, até o ser físico total que é o universo.
Mas o universo físico é curvo e finito; logo não é ele a circunferência máxima de raio infinito
que coexiste com Deus no puro plano moral. Se abaixo do elétron o tempo não existe,
começando a surgir com este, acima do universo total o tempo tende para a eternidade que é
quando o movimento cessa. A velocidade e o tempo são inversamente proporcionais; por isso,
quando a velocidade aumenta, o tempo encurta, e quando a velocidade diminui, o tempo
aumenta. Assim a eternidade não pode ser outra coisa senão um tempo tornado infinito pela
ausência total do movimento. O elétron se move rápido para ter existência por meio da
velocidade; ele é um quase nada oriundo do movimento que gira sobre si mesmo em turbilhão
velocíssimo, e com isto se torna ser; depois gira ele em torno do núcleo atômico com tal rapidez,
que se torna como que onipresente em todos os pontos de sua trajetória. Eis outro ser formado
pela velocidade. Se descêssemos abaixo do elétron, portanto, onde a velocidade se tivesse feito
37
infinita, o tempo ficaria zero e não haveria mais ser, tendo ele cessado de existir. Pela recíproca,
subindo-se acima do universo, a velocidade ir-se-á cada vez mais reduzindo, o ser aí cada vez
mais se define como ser, até que, quando o movimento cessasse de todo, o Ser seria pleno, e o
tempo eterno. Esse Ser pleno, senhor do tempo eterno é Deus; lá no pólo oposto, abaixo do
elétron, onde o ser não tem tempo, está o não-ser que é um não-Deus. E tudo o que Deus é, o
não-Deus não é; conhecendo-se as propriedades do não-Deus, poder-se-á inferir às de Deus pela
recíproca, pela contraditória.
E depois duma pausa para um fôlego, continuou o pensador:
– Destas conclusões metafísicas, pois, Leibniz criou, por aplicação, o seu cálculo integral
e diferencial. Estava ele certo, por conseguinte, ao afirmar ser preciso interpretar as ciências
experimentais segundo as leis do pensamento que se acham codificadas nas matemáticas e na
lógica. Assim, tanto a física clássica, como a física nuclear e a química, podem ser descritivas ou
matemáticas; são descritivas se só descrevem os fenômenos; serão matemáticas, se forem
dimensionadas, matematicamente, por meio de símbolos e fórmulas. A físico-matemática
moderna preenche o ideal de Leibniz, e existe, em parte, graças aos seus esforços. Em criando
ele o cálculo infinitesimal, obrigou o conhecimento humano a dar um salto formidando para
frente. Problemas de física que gênios não puderam solucionar, no passado, tornaram-se hoje,
corriqueiros, para todos os que se dedicam às matemáticas. Assim como se pode passar do
elétron ao átomo, à molécula, ao cristal protéico, aos seres vivos inferiores, aos médios, aos
superiores, ao homem, ao gênio, ao santo, ao anjo, ao querubim, ao serafim, etc., numa
integração constante, também se pode partir do fático e construir uma integral em que a razão
suficiente duma coisa é englobada por outra mais alta, num processo de continuidade ascendente
e constante até Deus. A relação existente entre as verdades de fato, com todos os seus
antecedentes de razão suficiente que as sustentam, e a última verdade de razão – Deus, é
exatamente a mesma que há entre a reta e a curva, visto como a reta não é mais do que uma
curvatura de raio infinito. E se o raio é infinito, qual será o comprimento da circunferência? E
considerando que o Absoluto supera todas as dimensões, pois nenhuma existe que não tenha
saído dele, qual seria o volume da esfera de raio infinito? Pois aí está uma das muitas idéias de
Deus: uma esfera de raio infinito, que se pode expressar por uma fórmula, se bem que esta só
tenha a função de sintetizar:
4/3 Π ∞
– Deus, continuou o mestre, é infinitamente mais que uma simples esfera ainda que de
raio infinito, assim como também o Sol é mais que uma esfera. Porém, assim como a verdade de
razão mais simples de todas é a de ser o Sol uma esfera, igualmente a idéia mais simples de Deus
é a intuída como sendo ele uma esfera de raio infinito, e que, por isso, abarca tudo, nada lhe
ficando fora. O Ser absoluto, pois, se pode representar por uma esfera de raio infinito e tempo
eterno. Em oposição polar a este Ser, podemos intuir o não-ser completo, que se representa por
um zero absoluto, ou infinito negativo, porquanto o não-ser decorre do ser criado, o qual se
negou infinitamente, chegando, por isso, a nada. Buscando compensar a quase inexistência, pela
velocidade, quanto menos é o ser, mais corre ele, até que, raiando sua velocidade pelo infinito,
tem seu tempo reduzido a zero. Se Deus não foi quem criou o não-ser, segue-se que este surgiu
do ser criado que se negou até este extremo desfazimento. Deste não-ser, de curvatura máxima,
ao Ser por exelência, de curvatura mínima, escalonam-se todos os demais seres que tanto mais
são, quanto menos correm, e tanto menos precisam correr, quanto mais forem senhores das
verdades de razão mais altas. Lá no topo da escada está Deus, que possuindo a verdade de razão
suprema, por isso mesmo não se move, e fixo se acha, como único senhor do tempo eterno. Lá
no extremo oposto do não-ser está o elétron com sua verdade de fato, e para existir precisa
turbilhonar com velocidade máxima, donde vem que quase não tem tempo, visto que este, quanto
mais desce na escala, tanto mais tende para zero. Temos então, que se pode representar a Deus
por uma reta, os seres todos por curvaturas maiores e menores, e o não-ser total pelo ponto
geométrico, carente de dimensões.
E depois de divagar, mentalmente, certo tempo, por estas acrologias, como que
38
refazendo os cálculos com os instrumentos que criara, achou que a energia, ou “força viva”
como a nomeia, é a massa pelo quadrado da velocidade. A própria inércia é já, por si só, uma
força viva, visto que reage ao impulso, e dado este, a inércia o mantém em movimento, reagindo,
outra vez, contra novo impulso. Logo, a força viva de um ponto material em movimento é a
síntese do seu passado, representado na trajetória percorrida, e prenúncio do seu futuro, que está
na trajetória por percorrer.
– Quer dizer que já temos um conceito novo – o da força viva – agregado ao da pura
extensão, concluiu o mestre. Esta força viva como caráter definido de matéria, em vez de pura
extensão, aliado ao infinitamente pequeno do cálculo infinitesimal, formam os fundamentos
sobre que repousa a metafísica leibniziana – as mônadas.
– Mônada, prosseguiu o pensador, vem do grego e significa unidade. Mônada, segundo
Plotino, é a unidade indivisível mais simples. Mônada seria o átomo, no sentido em que o
entendia Demócrito, isto é, de indivisível e simples. Este termo foi ressuscitado e posto de novo
em circulação na Europa por Giordano Bruno. Depois Leibniz o toma, e dá outra ascepção. Para
este filósofo as mônadas são infinitas em quantidade, todas independentes entre si, e representam
seres individuais capazes de movimentos espontâneos. São elas a realidade substancial, não
como pensamento, mas como conteúdo da forma, como coisa em si que se move por si. As
mônadas são, em primeira instância, a substância; e esta não é extensa, conquanto a extensão
possa constituir ordem da substância, assim como o tempo é ordem de sucessão dos
acontecimentos. Não sendo extensas, as mônadas não são divisíveis. Logo, as mônadas não são
materiais, pois se o fossem, teriam extensão, e seriam divisíveis. Que são, pois as mônadas? Não
outra coisa que força viva, que energia, que vis ou vigor, do latim. Não é a mônada a força viva
da física leibniziana, mas a da sua metafísica; não é a capacidade de um corpo atuar fisicamente
sobre outro, fazendo-o mover-se, porém a capacidade intrínseca da auto-determinação, com que
um corpo se move a si mesmo, e por si mesmo, sem o concurso de ajudas exteriores que não
tivessem sido buscadas pela própria mônada. É a capacidade de agir, de atuar por si, de ser o
agente da ação, de ser o sujeito do objeto. Falando do Sujeito por excelência, Absoluto ou
Primeiro, diz Huberto Rohden: “Sujeito, do latim subjectum, derivado de sub-jacere (jazer
debaixo), que como base, substrato e sustentáculo de todas as coisas; aquilo que causa efeito,
mas não é causado. Objeto, do latim objectum, derivado de ob-jacere (jazer contra), é aquilo que
está contra ou de fronte, algo que é oposto ao sujeito, algo que foi emitido ou individualizado
pelo sujeito subjacente”55. Portanto nós mesmos somos mônadas, donde vem que ela é o “eu”. E
como os “eus” são infinitos em número, segue-se que não há no universo sequer duas mônada
iguais. E está certo, porque duas coisas que fossem iguais, seriam duas no número, mas uma na
essência e substância. A finalidade de cada mônada é a mesma que a do eu humano. “O fim do
homem é revelar em sua existência individual – aqui ou alhures – aquele aspecto peculiar e único
da divindade que só ele pode revelar plenamente. Pois, como todos os seres da natureza, e
sobretudo todos os seres humanos, são originais, únicos e inéditos na sua existência, seres que
nunca existiram nem jamais existirão iguais; indivíduos que não são cópias de outros anteriores,
e dos quais não serão feitas cópias posteriores - segue-se que cada indivíduo e cada
personalidade tem a missão peculiar de concretizar um determinado aspecto da divindade”56. E
“tanto mais divino é o homem quanto mais ativo. Atividade não é idêntica a movimento
mecânico; pelo contrário, o zênite da atividade coincide com o nadir do movimento – assim
como uma roda em movimento rotativo acusa tanto maior movimento quanto maior a distância
entre a circunferência e o centro, ao mesmo tempo que sua força aumenta na razão direta da
aproximação do centro e na razão inversa da periferia. O homem divinizado é silenciosamente
ativo, calmamente dinâmico, imperceptivelmente poderoso”57. Por isso, “ Ser quer dizer agir.
Ser é viver – e todo o viver é dinâmico, a essência da vida é a energia” 58. “De maneira que
poderíamos definir a Absoluta Realidade (Deus) como sendo a Pura Atividade, ou Atualidade –
função da trajetória evolutiva da mônada, ela, em qualquer momento, representa a integral das
percepções e apetições. Logo, estas percepções e apetições são como pontos infinitesimais que
constituem a integral da mônada. Em qualquer tempo, por conseguinte, da vida da mônada, ela
tem em si refletido o mundo do seu ponto de vista, da sua perspectiva. E como a mônada vive no
tempo e se desloca no espaço, esse reflexo do mundo em seu interior é vário, como passado
extratificado, e com o futuro previsível. O passado está vertido no presente que, por sua vez, é o
prelúdio do futuro determinado, já, pela atividade presente da mônada. Isto posto, podemos
concluir que as mônadas refletem o universo do seu ponto de vista, da sua colocação no espaço,
da sua história no tempo. É a perspectiva da mônada, só para ela existente. E o número infinito
das mônada todas, como se vê, individuais, reflete as possibilidades de perspectivas infinitas do
todo. De cada ponto está u’a mônada contemplando o universo, que, por este modo, se fita a si
mesmo.
E depois de pensar um pouco, enquanto coçava a testa, continuou:
– Temos, então, que as mônadas são todas diferenciadas, graças à história individual que
cada uma escreve no tempo e no espaço; elas são diferentes também quanto ao grau, segundo
Leibniz, havendo hierarquia de valor entre elas. Assim há as que possuem só percepções, e estas
são representadas pelos animais muito inferiores da escala zoológica que, percebendo os
estímulos, reagem. Desde os tropismos, e até as reações instintivas, incluindo os reflexos
incondicionados, tudo é percepção inconsciente, e grande é o número de mônadas que integram
esta classe. Depois vem as mônadas que possuem, além de percepções, apercepções. Apercepção
é percepção consciente. As percepções subliminares que passam despercebidas pela consciência,
são só percepções. Há até a possibilidade de se explorar comercialmente esta verdade de fato da
psicologia e hipnose. Se numa fita cinematográfica houver quadros intercalados a intervalos
dizendo: “coma pipoca!”, dentro de algum tempo começamos a ter desejo de comer pipocas.
Estas experiências, hoje, só são permitidas em caráter científico, experimental, e teme-se que os
ditadores intercalem entre os quadros, por exemplo: “Hitler, o maior!”. Não temos consciência
de nada do que nos é sugerido, por este modo, porque eles são impressões e percepções
subliminares, quer dizer: que passam por baixo do limiar da consciência. Nós possuímos sentidos
internos que nos dão contas do funcionamento das glândulas e orgãos involuntários; não temos
consciência dessas percepções internas. Estamos cercados de ruídos, e não nos damos conta
deles, porque temos a atenção fixada em nosso trabalho; no entanto, quando levantamos a cabeça
para descansar, podemos notar esses ruídos, apercebendo-os, quer dizer, fixando neles a nossa
atenção. E grande é o número de animais que possuem apercepção, pois, do meio de tanto rumor
do seu mundo, sabem distinguir aqueles que indicam a iminência de perigos. Se não houvesse
apercepção, os animais não se colocariam em atitude de alerta, e, logo depois, em fuga, se
pressentissem algum perigo. E como esses animais sabem perceber e distinguir os perigos,
segue-se que têm memória, seja instintiva, seja adquirida. As mônadas, que além de percepções,
possuem apercepções e memória, diz, Leibniz, que se chamam almas. Os animais, pois, têm
alma, e não são meras máquinas reflexas, como pretendia Descartes. Até aqui temos visto as
mônadas portadoras de idéias confusas ou obscuras. Vem a seguir as mônadas capazes de idéias
claras que são os espíritos. Estes são todas as mônadas que além de almas possuem capacidades
racionais, e podem conhecer as verdades de razão que se acham amalgamadas às verdades de
fato. Estas mônadas podem intuir as verdades de razão, podem ter percepções aperceptivas. Eis o
nosso lugar na escala das mônadas! Acima de nós, todavia, está Deus que é a Mônada perfeita,
na qual todas as percepções são apercebidas, não havendo zonas de inconsciência; nela todas as
idéias são claras, nenhuma confusa, visto que todas as verdades aí são de razão, onde os juízos
são todos apodíticos e necessários e nenhum assertório. Nessa Mônada o Universo, com “U”
maiúsculo ou total, está refletido sob todos os pontos de vista, não só como presente, senão como
passado e como futuro. Todas as perspectivas e pontos de vista, infinitos como os das mônadas,
são, por Deus, abarcados com um só lanço de olhar, pois Deus é infinito sob qualquer aspecto, e
por isso, somente ele pode ter tal visão de si. Aquilo que o sábio poderia ver numa sucessão
infinita do espaço e do tempo, Deus o vê contemporaneamente; o Universo, nessa perspectiva
volumétrico-temporal, somente Deus pode ter. Embaixo, pois, lá no pé da escala das mônadas,
estão os corpos materiais que são os pontos de “força viva” da física, conglomerado de energias
42
que se fixaram na rigidez e na massa. Pouco mais acima vêm as mônadas que já começam ter
percepções; depois vêm as que se chamam almas e possuem, além de percepção, apercepção e
memória. Um grau acima, e aí estamos nós, os espíritos, possuidores de todos os graus
inferiores, e ainda, por cima as faculdades racionais, e o domínio sobre as verdades de razão. No
topo da escada está Deus como mônada perfeita, único possuidor de todas as idéias claras, de
todas as verdades de razão, de todas as apercepções, de tudo o que infinitamente, pulsa no
Universo.
E fez uma grande pausa o mestre. Levantou-se, foi até a janela, respirou o ar fresco da
noite, descansando o olhar nas luzes distantes. Depois voltou à mesa, sentando-se de novo.
Decorrido ainda algum tempo, exclamou:
– Deus criou as mônadas, segundo Leibniz, todas individuais e estanques, todas com suas
substâncias e leis próprias, todas com seus destinos a realizar-se no espaço-tempo. Mas se cada
substância é única em si mesma, não havendo duas iguais no universo, como haver comunicação
entre elas? Como se explica a interação existente, de fato, entre todas? Descartes já dissera haver
três substâncias que são: Deus, o eu e a extensão. Ora, sendo o eu e a extensão de substâncias
diferentes, como se explicam as comunicações do espírito sobre o corpo e as ingerências deste
sobre o espírito? Só é possível a comunicação entre semelhantes; logo, para que o espírito possa
comunicar-se com o corpo, preciso é haja um denominador comum, um elemento de passagem
entre a matéria e o pensamento. Entre o espírito e a matéria há interligação; então, é inevitável a
existência do equador entre esses dois pólos opostos. Todavia, se as substâncias são estanques,
separadas, únicas em si mesmas, como explicar as interferências e interatuações? Eis o grande
problema metafísico de Leibniz, que estava para o idealismo resolver.
– Para resolver este problema, prosseguiu o mestre, os pensadores do século l7 aventaram
a hipótese dos dois relógios. Duas substâncias diferentes são como dois relógios independentes,
mas que trabalham no mesmo compasso, no mesmo sincronismo. A primeira hipótese foi a do
próprio Descartes que julgava estar a alma sediada na glândula pineal que fica na base do
cérebro, e tem a forma de um pinhão ou badalo de sino. Os movimentos da alma fazem o badalo
oscilar, e estas oscilações se fazem refletir no corpo; igualmente, os movimentos e alterações
ocorridos no corpo, como que puxam pelos cordéis do badalo fazendo-o vibrar, e a alma a ele
ligada se inteira da ocorrência. Mas como ligada? O badalo é matéria, e a alma não. E aí está a
dificuldade da intercomunicação. A segunda hipótese supõe que um prudente e hábil artesão
construiu dois relógios que funcionam sincrônicos; mas o artesão está sempre presente, e a
qualquer adianto ou atraso de um dos relógios, ele toca nos mecanismos acertando-os. Esta é a
hipótese proposta por Malebranche, filósofo francês, discípulo de Descartes. Deus seria o artesão
atento aos dois relógios que fabricara. A interação entre as substâncias se dá através desse
terceiro elemento, e esta hipótese é conhecida com o nome de “teoria das causa ocasionais”. A
outra hipótese é a de Leibniz, segundo a qual cada mônada constitui uma substância à parte,
estanque, sem comunicação com nenhuma outra; porém, as substâncias são como os relógios
construídos por habilíssimo artesão, e por isso, entre eles não há a mínima possibilidade de
adiantos ou atrasos. Assim, quando acontece alguma coisa na alma, sincrônicamente, acontece a
sua correspondente no corpo. Quer dizer que se um homem escorrega, e cai, e quebra a perna,
ficando um mês no hospital, todas as sua dores, insônias e experiências que tira do fato, iam já
aparecer no seu espírito; e se acontecesse de falhar o relógio do corpo ou da substância material,
apareceria toda a contraparte espiritual sem a correspondência física. Neste caso o homem
sofreria a alucinação de quebradura, de dor, de hospitalização, sem, que nada houvesse
acontecido na parte física. Seria esta a causa da loucura e das alucinações? Chilon! Seria um
desacerto entre os dois relógios, o da substância espiritual, e o da física?
– Nessa canoa não entro, prezado Árago.
– Nem eu, tornou o mestre. Mas há ainda a hipótese de Espinosa. Para este filósofo só há
uma substância única no universo, e todas as coisas são diferenciações desta. Seria como se
muitos fossem os mostradores dos relógios, porém um só, o mecanismo motor. Como a máquina
é uma só, qualquer ocorrência num dos ponteiros se reflete, de pronto, em todo o mecanismo.
Esta é a doutrina a que dão o nome de panteísmo, porém que H. Rohden dá como sendo
panenteísmo; não que tudo seja Deus, senão que Deus está em tudo, como substância, como o
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Sujeito que subjaz nas profundezas das coisas. Todavia, Leibniz acha que não há uma só
máquina para muitos mostradores, para ele, há tantas máquinas quantos são os mostradores, e se
há harmonia entre eles, essa é preestabelecida, e tudo anda certo por puro sincronismo. Logo,
concluía ele, tudo está da melhor forma possível, sendo este mundo o melhor dos mundos.
– É..., comentou Licas, mas essa assertiva de Leibniz valeu-lhe a réplica de Voltaire que,
para o motejar, escreveu seu “Cândido”.
– Isso mesmo, caro Licas, tornou o mestre. Esse otimismo de Leibniz esbarra com a
existência da dor e do mal deste mundo. Que mundo melhor possível é este? E num livro de
quinhentas páginas, chamado “Teodicéia”, Leibniz tenta demonstrar que a existência do mal no
mundo é necessária, visto que o melhor dos mundos também deve conter algum mal. Qualquer
outro mundo possível teria, forçosamente, mais males que o nosso; logo, este é o melhor dos
mundos possíveis. E vem, logo a seguir, as três razões por que é impossível mundo sem males: a
primeira declara que é porque o mundo é limitado, finito, necessariamente; a segunda, porque,
sendo material o mundo fenomênico, nele não pode deixar de haver males físicos; a terceira é
porque o mal moral é condição para a existência do bem moral. O mal metafísico decorre da
limitação; o físico, da materialidade e fenomenismo do mundo; o moral procede da necessidade
de se contrapor ao bem moral. O bem moral resulta da vontade robusta, sobre as tentações e
pecados. Como poderia haver essa vitória se não houvesse a luta? E como haver luta se não
houvesse o que vencer? Segue, por conseguinte, que o mal é razão necessária para a existência
do bem; é o fundo tenebroso, absolutamente indispensável para que, sobre ele, o bem se
destaque, tome força, e encha o primeiro plano do quadro apoteótico. Então o mal existe como
condição de um bem maior; e como o mal está criteriosamente dosado, este é o melhor dos
mundos possíveis.
– E com estes argumentos falazes, meus caros, prosseguiu Árago, Leibniz também não
resolve o problema metafísico mais que cruciante, da existência do mal e da dor no universo.
Este será tema fundamental a ser atacado em nossa terceira jornada filosófica. Até Leibniz,
inúmeros problemas de física permaneciam insolúveis, simplesmente, porque não se tinha ainda
criado o instrumento matemático para os resolver. Tal e qual com a filosofia: não se descobriu
ainda o método filosófico para atacar e resolver o problema da existência do mal e da dor no
universo. Essa será a minha tarefa, querendo Deus. Todavia, antes que eu diga as minhas
verdades, cumpre-nos ouvir, primeiro, as dos outros. Mas isso não será hoje, que estou deveras
cansado.
E com estas palavras, deu o mestre por encerrado os estudos do dia. A estas palavras de
Árago, todos se puseram a falar, sobre tudo, por longo tempo, tratando-se de tudo, até de
pescaria e de caçada. Pouco a pouco cada um se foi retirando, ficando apenas Árago na sala para
fechar as janelas, e apagar as luzes.
44
Capítulo III
45
Quando Árago entrou para a sala, no dia seguinte, todos os estudiosos já estavam
presentes. O mestre passara a tarde ocupado em repintar um barco seu, e quando deu acordo de
si, o tempo correra, indo ele, com atraso, para o seu banho e jantar. Enquanto fazia estas coisas,
deixou no prato do toca-discos algumas músicas lindas de Vivaldi e Corelli. E mesmo depois de
ter vindo à sala, não interrompeu as músicas. Findo o último disco, Árago tomou a palavra,
dizendo:
– Vimos todos na noite passada, que Leibniz representa o pináculo do racionalismo, e
que, depois dele, tem início o império da razão em toda a Europa. De fato foi Leibniz que
demonstrara haver verdades de fato e verdades de razão, assentando que o ideal do conhecimento
científico é construir-se somente com verdades de razão. Isto significa que as comprovações de
fato obtidas pela experiência, devem ser vertidas em verdades de razão, que são juízos fundados
em outras verdades de razão mais gerais e mais profundas. Quer dizer que o ideal científico
consiste na interpretação matemática dos fenômenos. Por isso, a física moderna é um amontoado
de fórmulas, de gráficos, de vetores. A mesma coisa ocorre com a física nuclear e com a
química. Pudesse o homem resumir toda a interpretação da natureza na brevidade duma fórmula,
então seu ideal supremo estaria realizado para sempre. E Leibniz pensa tudo poder resolver com
sua teoria das mônadas, pois assim como as verdades de fato, com serem problemas, se tornam
pouco a pouco verdades de razão, também o desenvolvimento interno da mônada, levando-a de
percepção em percepção, acaba refletindo em si todo o Universo. A hierarquia das mônadas
atinge seu termo em Deus que é a mônada perfeita, para quem toda percepção é apercepção, toda
idéia é idéia clara, e todo fático é pura razão. Deste modo, como já o vimos, Leibniz formula
uma metafísica espiritualista, na qual todo o Universo se representa como pontilhado de
substância espiritual que são as mônadas. Paralelamente às mônadas, há os objetos materiais com
seus movimentos, combinações e princípios desses movimentos e dessas combinações; este é o
universo fenomênico do vir-a-ser heracliteano; este é o mundo como o vemos, como o sentimos,
como o percebemos. Todavia, esta é apenas uma face, visto que a outra, a mais profunda, a das
mônadas que é a das verdadeiras realidades, realidades em si mesmas. Isto significa que todo
esse mundo fenomênico que nos rodeia, do vir-a-ser, do tornar-se, forma o corpo das idéias
confusas (Descartes), ou verdades de fato (Leibniz) que não passam de expressão exterior das
realidades profundas das mônadas, de natureza espiritual.
E ao tempo em que tomava o mestre melhor cômodo na cadeira exclamou:
– Eis a ressurgência do tema parmenídico-platônico da existência dos dois mundos, sendo
um o das aparências, do fenomenalismo, do vir-a-ser heracliteano, da ilusão platônica, e outro o
mundo das coisas reais, das coisas ideais, das coisas em si, imutáveis e eternas. Estas coisas em
si para Leibniz são as mônadas. O que existe não é o espaço de Descartes, nem as vivências dos
pensadores ingleses, mas sim unidades espirituais simples no seu ser metafísico, e que, no
entanto, nos dá uma variedade de percepções. Reparem, vocês, como o movimento idealista
iniciado por Descartes traz um resquício do aristotelismo: eu sou uma coisa que pensa; esta
coisa é resíduo aristotélico. Disto derivou Descartes as suas três substâncias, com o que manteve
o resíduo. Vêm os pensadores ingleses e fazem a transposição do conceito aristotélico do “em
si”, e em vez de aplicá-lo à substância e às coisas, transferem-no para as vivências mesmas.
Agora, Leibniz dá as mônadas como coisas em si. Sendo elas coisas em si, não o são em nós, não
podendo ser conhecidas por nós. Logo, a existência metafísica das mônadas transcende do objeto
do conhecimento. Esta existência metafísica transcendental das mônadas, essa coisidade em si
mesma, é resíduo do realismo aristotélico-tomista.
E feita uma pausa, pega o livro de Garcia Morente, para tê-lo à mão, continuando:
– A tarefa de Kant foi dar remate ao idealismo, expungindo dele qualquer vestígio do
realismo aristotélico. Como já hemos visto, a atitude idealista se opõe à realista; nesta, a ênfase
recai sobre o objeto, e naquela, sobre o sujeito. Mas, aqueles resíduos de realismo de que falei há
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pouco, tinham de ser expungidos totalmente, para que o modo de raciocinar idealista tivesse o
seu inteiro acabamento. As coisas em si como espaço, Deus, alma; ou então vivências como
coisas ou fatos; ou então as mônadas, tudo isto que constitui realidades independentes do sujeito,
devia cair. O movimento filosófico iniciado por Descartes, por meio de uma dialética histórica,
precisava chegar ao seu fim. E Kant deu remate a tudo, acabando com a idéia de coisa em si, e,
em lugar dela, põe a coisa para conhecimento, uma coisa posta pelo sujeito cognoscente como
objeto do conhecimento, não havendo o em si, nem para si como realidades transcendentes.
Encerrando o período iniciado por Descartes, Kant dá formulação cabal e completa ao idealismo
transcendental. Todavia, Kant representa o início de um novo período na história do pensamento
filosófico. Estabelecendo um novo sentido de ser, que não é mais o em si, mas para
conhecimento ou ser no conhecimento, Kant abre o período que chegou até nossos dias, quando
tem fim a segunda jornada da filosofia.
E continuou o mestre:
– Diz Cervantes, no seu Quixote, que “as grandes façanhas para os grandes homens estão
guardadas”62. Estava guardada para Kant uma grande obra filosófica, pois surgiu na Terra ao
tempo em que se cruzavam três grandes correntes ideológicas. Nos meados do século XVIII
estavam vigentes a filosofia de Leibniz, o empirismo de David Hume, e as ciências positivas,
sobretudo a físico-matemática de Newton que se firmava. Kant representa a convergência em si
dessas três correntes, e delas tira suas conclusões estabelecendo, primeiro, a teoria do
conhecimento, e, depois, a do problema da metafísica. A madurez filosófica de Kant foi muito
tardia, a julgar pela sua obra maior, mais estudada, mais comentada, mais discutida de toda a
literatura filosófica, que é sua “Crítica da Razão Pura”. Até então fora apenas um excelente
professor de filosofia das universidades alemãs, nas quais se ensinava a filosofia de Leibniz. Os
ensinamentos de Kant não iam além da leitura e comento das obras dos discípulos de Leibniz, e
por cima dava ainda aulas de matemática e de lógica. Só muito tarde o seu sistema se delineia,
tendo ele publicado sua “Crítica da Razão Pura” quando tinha já cinqüenta e sete anos. Esse foi o
primeiro de uma série de livros que publicou desde então.
– Tanto como Descartes, como Leibniz, prosseguiu o mestre, Kant começa sua filosofia
por uma prévia teoria do conhecimento, a qual se acha num livro com o título de “Prolegômenos
a Toda Metafísica Futura”. Neste livro Kant estuda tudo o que é necessário saber, com respeito à
teoria do conhecimento, antes de atacar a metafísica. Todavia, quando Kant fala em
conhecimento, refere-se a uma coisa em grande parte feita por Galileu, Pascal, Newton, e não
como seus predecessores, que se referiam à ciência ainda toda por fazer. Ao tempo de Kant, a
ciência físico-matemática não era um conhecimento possível ou desejável, mas uma realização
acabada. Reduzir as leis da natureza a fórmulas matemáticas e a leis expressas, foi o que Newton
conseguiu, e portanto esta teoria do conhecimento é um corpo de verdades de razão. De modo
que a matemática pura de uma parte, e a físico-matemática de outra, constituem o que Kant
chama sua teoria do conhecimento.
E consultando o mestre seu livro de Morente, prosseguiu:
– O conhecimento físico-matemático é constituído de juízos que são proposições ou teses
nas quais se afirma algo resumidamente; a estes resumos a gente dá o nome de princípios ou leis.
Por aqui começa Kant a construir sua teoria do conhecimento, tendo ele sempre presente, como o
devemos ter nós, que estes juízos não são vivências psicológicas, não são fatos subjetivos da
consciência, mas sim, enunciações objetivas acerca de algo exterior; são teses de caráter lógico
as quais, por isso mesmo, podem ser verdade ou erro. Atentando para esses juízos lógicos
descobre Kant que eles podem ser classificados em duas ordens a que dá os nomes de juízos
analíticos e juízos sintéticos. Ora, os juízos são proposições ou orações que se compõem de
sujeito e predicado, e podemos reduzi-los às siglas S e P. Nos juízos analíticos o predicado está
implicitamente contido no sujeito; no próprio termo do sujeito está contida a declaração que vai
no predicado. Juízos analíticos são o mesmo que juízos apodíticos dos lógicos, ou operações
dedutivas do pensamento pelas quais, de um enunciado mais geral, se tiram as conseqüências
implícitas no enunciado. Nesta espécie de juízos o predicado decorre mediata ou imediatamente
do sujeito. Dizer, por exemplo, que o triângulo possui três ângulos é uma redundância, pela qual
62 D.Quixote, Clássicos Jackson, IX, 150
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o predicado apenas é um modo diferente de expressar o que o termo do sujeito declara, pois
triângulo já quer dizer três ângulos. Nos juízos analíticos, como o predicado está contido no
sujeito, dizemos que o sujeito é igual ou maior que o predicado (S=P ou S>P), não passando a
afirmação predicativa de pura tautologia (do grego: tauto, o mesmo; e logia, dizer) que significa
dizer o mesmo; por isso se diz que, nestes juízos, o predicado é repetição e variação do sujeito, e
por isso, tais juízos em nada aumentam os nossos conhecimentos. Por esta causa os juízos
analíticos são verdadeiros, peremptórios, necessários, universais, sendo impossível que eles
deixem de ser verdadeiros nalgum tempo, ou em algum ponto ignoto do Universo. E como não
se fundam na experiência, são também chamados a priori.
– Já com os juízos sintéticos, prosseguiu o filósofo de Cananéia, nossos conhecimentos
crescem, visto que o predicado não se acha contido no sujeito. Dizer, por exemplo, que o calor
dilata os corpos, verificamos que no conceito de calor não se acha implícito o conceito de
dilatação de corpos. Como vêem vocês, nos juízos sintéticos o predicado acrescenta alguma
coisa ao sujeito, e por isso dizemos que o predicado está fora do sujeito; não pode ser extraído ou
deduzido do sujeito, por ser diferente do sujeito (S≠P). O predicado diz mais que o sujeito; é
maior que o sujeito (S<P). Como o predicado representa um acréscimo, para ter validade, preciso
é ser comprovado pela experiência. Quando digo: a lanterna é verde; no conceito de lanterna não
se contém a idéia de verde, e tanto que podia ser amarela ou vermelha. Logo, para fazer esta
afirmação foi necessária a experiência, isto é, a verificação de que a lanterna é, de fato, verde.
Por isso, os juízos sintéticos são como os juízos assertórios dos lógicos, e são afins com as
operações mentais indutivas pelas quais, de verdades particulares, formulamos enunciados mais
gerais. Como estes juízos têm sua raiz na experiência, também se chamam empíricos ou a
posteriori. São empíricos, porque se baseiam na experiência; são a posteriori, porque vêm depois
da experiência; e só são verdadeiros, quando a experiência os avaliza. E como a experiência é
percepção sensível, e se realiza num lugar: aqui; e num tempo: agora; por isso, os juízos
sintéticos são verdadeiros somente em relação ao aqui, ao agora e às condições tais ou quais. É
abusivo, por conseguinte, concluir que o que ocorre aqui, agora e nestas condições, tenha
ocorrido num tempo passado, venha ocorrer no futuro, e ocorra em qualquer lugar do Universo.
Os juízos sintéticos são, por conseguinte, particulares, contingentes, empíricos, desnecessários, a
posteriori.
E fazendo o mestre uma pausa para consultar Morente, continuou:
– Depois deste estudo da teoria do conhecimento vale perguntar: em que classe de juízos
devemos incluir os conhecimentos científicos físico-matemáticos? Estariam os conhecimentos
científicos baseados em juízos analíticos? Mas então não seriam conhecimentos, porque os juízos
analíticos são tautológicos e redundantes, não conferindo saber nenhum a quem os usa.
Explicitar no predicado o que se contém no sujeito, não é ampliar em nada os conhecimentos.
Esta é a causa por que Descartes enunciava que o silogismo serve para expor verdades
conhecidas, e não, para descobrir verdades novas. Logo, o saber científico não se pode compor
de juízos analíticos. Está certo isto, Licas?
– Está. E não podendo a ciência constituir-se de juízos analíticos, terá ela de formar-se de
juízos sintéticos.
– Tampouco, meu Licas, a ciência se compõe de juízos sintéticos, porque, então, não seria
ela conhecimento, visto estar presa ao aqui e ao agora que sempre mudam. Ora, as verdades
científicas, conquanto sejam empíricas, gozam da propriedade dos juízos analíticos, isto é, são
verdadeiros, universais, necessários. Portanto, as ciências físico-matemáticas não são
constituídas de juízos sintéticos.
– Se, pois, tornou Licas, não são uma coisa nem outra, que seriam?
– São uma e outra coisa juntamente. Se a ciência fosse constituída só por juízos analíticos,
só por verdades de razão, como queria Leibniz, seria vã, não passando de tautologia, de
logomaquia, de repetição constante de u′a mesma coisa. Por outro lado, se a ciência se
constituísse só de juízos sintéticos, por relação de fatos, como pretendia Hume, ela seria puro
empirismo local, não indo além de pragmatismo, de costume, de meros hábitos de pensar,
constituídos à força de conexão de idéias. Sendo a ciência costume e hábito de pensar forjado
pela repetição, não passaria de reflexos condicionados, ou de inferências fisiológicas conforme o
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dizer de Bertrand Russell. Tal ciência não teria validez universal, nem seria peremptória,
necessária. Mas não. As ciências físico-matemáticas estão aí reduzidas a fórmulas de aplicação
universal; aí estão os enunciados de Newton, de Kepler, de Galileu, de Arquimedes, de Gauss, de
Faraday e de outros, todos de validade universal, sendo puras verdades de razão. Quer dizer que
existem, nas ciências, uns juízos que não são analíticos nem sintéticos, para serem ambas coisas
ao mesmo tempo. Hão de ser sintéticos e a priori ao mesmo tempo. E não há nada de novo nisto;
todos os físicos do mundo sabem, perfeitamente, que uma experiência bem conduzida, bem feita,
pode servir de fundamento a uma lei que vale para além dessa experiência concreta e particular,
e não é crível que essa lei não fosse verdadeira no passado nem que o não seja no futuro. Tais
juízos são empíricos porque derivam da experiência, e ao mesmo tempo a priori, porque uma vez
descoberta a lei, esta cobre uma imensidade de fenômenos da mesma natureza. Até a descoberta
da lei e a construção da fórmula geral, tais juízos são empíricos; depois da descoberta da lei e da
construção da fórmula, para efeito de aplicação a outros fenômenos afins, são a priori.
Finda esta parte do discurso, consultou o mestre seu roteiro, depois do que prosseguiu:
– As matemáticas sempre foram tidas por protótipos de verdade de razão, pelo que, nelas,
havia de ser impossível encontrar juízos sintéticos. Todas as verdades matemáticas haviam de ser
apodíticas, analíticas, extraídas duma verdade maior. No entanto, se dissermos: a reta é a
distância mais curta entre dois pontos; acaso será este um juízo analítico? Qual o sujeito? É linha
reta. Qual o predicado? É a distância mais curta entre dois pontos. Que coisa do predicado está
contido no sujeito? Está contido somente o conceito de ponto, pois a linha é formada de pontos;
porém, o conceito de distância e de mais curta não se acham implícitos no conceito de linha.
Logo, este juízo é sintético. Todavia, não é preciso fazer a experiência e medir as distâncias,
porque este juízo, conquanto sintético, é axiomático, isto é, trata-se de uma verdade evidente por
si mesma. Agora, se dissermos que a linha é uma sucessão de pontos, então teremos enunciado
um juízo analítico, porque, de fato, linha e sucessão de pontos são a mesma coisa. O primeiro
caso é um juízo sintético a priori; é sintético, porque o predicado não está contido no sujeito; mas
é a priori, por não ser necessária a experiência para aceitarmos a verdade, visto tratar-se de um
axioma, ou duma intuição a priori.
– Na física, mais do que nas matemáticas, continuou o mestre, abundam exemplos de
juízos sintéticos a priori. Quando Galileu concebeu e formulou as leis de inércia e as do
movimento, como o fez? Pois ele mesmo explica que empregou somente a mente concipio;
fechou os olhos à realidade objetiva, e no seu espaço subjetivo viu o móvel deslocar-se, acelerar-
se, retardar-se; viu as forças atuarem nele representando-as por vetores, e de tudo isso foi tirando
as leis do movimento e as da inércia, sem outro recurso que não essa intuição empírica
intelectual. Todavia, como estas verdades são universalmente reconhecidas, valendo para todos
os fenômenos de inércia e de movimento, por isso são, também, a priori.
– E na metafísica? Interrogou o pensador cananeano; acaso há nela juízos sintéticos a
priori? Pois como é que Aristóteles chegou à idéia de Deus imóvel, imutável, eterno, senão
observando o movimento? Acaso não foi da observação do vir-a-ser contínuo que Parmênides
intuiu a idéia do ser necessário, uno, eterno, infinito, imutável, imóvel? Ou Descartes? Como
chegou ele à idéia de Deus? Acaso ele teve de Deus alguma experiência mística? Não. A intuição
de Deus, do ser, é a priori; mas, todos os juízos que levam a Deus são sintéticos por se
fundamentarem na experiência, na idéia de causa, na noção de fenômeno. Por conseguinte, na
metafísica também possuímos juízos sintéticos a priori.
– Tenhamos presente, todavia, continuou o mestre, que nas matemáticas todos
reconhecemos haver juízos sintéticos a priori. As matemáticas existem, estão aí produzindo seus
frutos irrecusáveis, indiscutíveis. De igual modo a física está aí fazendo movimentar-se o mundo;
ninguém duvida das suas verdades materializadas nas rodas, nas asas, nas engrenagens que
promovem o progresso indiscutível. Porém, a metafísica é ciência discutida, ou nem é ciência,
visto não poder definir o seu objeto que é o ser. Cada novo filósofo surgido sobre a Terra, tem de
refaze-la desde os fundamentos. É uma disciplina que não tem nenhuma verdade estabelecida
como ocorre nas matemáticas e na física. É uma ciência (que ciência?) que pode ser posta em
dúvida, como o fez Hume. Ainda é preciso estudar se os juízos metafísicos são legítimos; e se o
forem, como o são; e se o não forem, uma de duas: ou não haverá metafísica, ou ela terá outra
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base que não a que sempre se procurou para ela. E toda a filosofia de Kant se ocupa em resolver
estas três questões: como são possíveis os juízos sintéticos a priori nas matemáticas, nas ciências
e na metafísica.
Neste ponto da palestra, dona Cornélia entrou na sala, com a bandeja de xícaras de café e
o bule; e foi servido a todos, ao tempo em que perguntava pelos familiares de cada conhecido. E
um falava do sarampo que lhe grassava em casa; outro dava contas de sua esposa, dizendo ter ido
ela a Pariquera visitar a mãe; outro contava a última peraltice do seu pequerrucho. E assim,
enquanto tomavam o café, tratavam de tudo, menos de filosofia. Finda esta pausa, Árago
reiniciou o seu discurso, dizendo:
– O espaço e o tempo, segundo Kant, não são realidades metafísicas nem físicas, não
tendo, por isso, existência em si ou por si; o espaço e o tempo são formas de nossa capacidade de
perceber; são formas de intuição que fazem como substrato de todas as demais intuições que
desta base surgem. A intuição de espaço e a de tempo são puras, que é o mesmo que a priori,
significando que não dependem da experiência. Espaço e tempo não são conceitos de coisas
reais, porém, intuições a priori. E sendo o espaço e o tempo intuições puras, a priori,
fudamentam toda a possibilidade de juízos sintéticos a priori nas matemáticas. Estas são as três
questões fundamentais que Kant desenvolve em sua obra “A Crítica da Razão Pura”. A primeira
diz que o espaço e o tempo são intuições puras; a segunda, que eles não são conceitos; a terceira,
que eles fundamentam as matemáticas. A primeira e a segunda trata-as juntas, dando-lhes o
nome de “exposição metafísica”. A última é tratada à parte com o título de “exposição
transcendental”.
E, depois de um gesto de hesitação, concluiu:
– Todavia, antes de entrarmos neste assunto, tenhamos presente que Kant era criacionista,
como, aliás, o foram todos os filósofos antes dele. O próprio “Kant fala da possibilidade de os
macacos virarem homens”63; porém, não insistiu nessa linha de pensamento, porque, se o tivesse
feito, teria de falar também na possibilidade de o tarsus virar macaco; de o lêmur virar tarsus; de
o réptil virar mamífero, e assim por diante. De sorte que, teria Kant de aceitar toda a evolução de
Darwin-Spencer, já suspeitada pelo gênio de Aristóteles que encontrou parentesco entre as aves e
os répteis. Por este caminho se vai às origens da vida, ao mundo pré-vital, à matéria inorgânica
dos compostos químicos, à matéria bruta toda feita de corpos simples, à matéria constituída de
núcleos nus que turbilhonaram no caos do pré-universo onde as energias se concentravam, e a
matéria nascia. Ora, o caos é a negação da Lei, da Ordem, da Harmonia, da Beleza, do Bem, de
Deus, enfim; e sendo que no começo era o caos, segue-se, muito naturalmente, que o ato
primeiro do Criador foi produzir a sua negação. Como o autor se se conhece pela obra, um Deus
que criou a negação de si, revela-se, por aquilo que criou, como um anti-Deus, ou Demônio
Criador. É em razão disto que a sua criação mais alta, a vida, se funda na força e na astúcia, de
uma parte, e na dor, na tragédia e na morte, da outra. No evangelho da natureza está escrito:
bem-aventurados os astutos e os fortes, porque eles herdarão a Terra! Têm, logo, razão,
Trasímaco, Machiavel e Nietzsche. Spencer foi o maior filósofo da evolução; contudo “a
filosofia ética de Spencer não constituía o corolário mais natural da teoria da evolução. Se a vida
é luta na qual os mais aptos sobrevivem, então a força é a virtude suprema e a fraqueza o defeito
básico. Bom é o que sobrevive, o que vence; mau, o que falha. Unicamente a covardia vitoriana
dos darwinistas ingleses e a respeitabilidade burguesa dos positivistas franceses e dos socialistas
alemães podiam iludir o inevitável desta conclusão. Aqueles homens eram bastante bravos para
rejeitar o cristianismo e a teologia cristã, mas não ousaram ser lógicos e rejeitar também as idéias
morais, a adoção da fraqueza, da suavidade, do altruísmo que haviam brotado dessa teologia.
Cessavam de ser anglicanos, católicos ou luteranos, mas não cessavam de ser cristãos. Assim
argüia Nietzsche”64. “Inconscientemente Darwin completara a obra dos enciclopedistas: haviam
eles removido a base teológica da moral, mas deixaram a moralidade em si intacta e inviolada,
suspensa misteriosamente no ar” 65.
– Eis, meus caros, prossegue o pensador, como existe uma tortura para os mais
experiências que surgirão de futuro. O espaço é uma intuição pura, e não um conceito.
– O conceito, esclareceu o sábio, é uma coisa definida, quer dizer: da qual se traçou os
limites, ou “fines”. É uma unidade mental que engloba um número indeterminado de seres ou
coisas. Quando eu digo praia, todos vocês sabem que a praia se compõe de umas tantas coisas
essenciais, sem as quais a praia deixa de o ser. Praia é a faixa que separa o mar da terra; se não
for isto não será praia. Agora digo cavalo: e já se formou na mente de vocês uma unidade mental
que possui o comum a todos os cavalos. O conceito é uma unidade mental, uma síntese que
engloba os caracteres indispensáveis à definição ou delimitação de qualquer coisa. O conceito é
uma unidade sintética que cobre uma multidão de coisas; por isso o conceito se refere a um
plural; é a singularização de uma pluralidade. Pois a intuição pura é exatamente o oposto disto,
porque se refere sempre a uma unidade indecomponível. Não se pode, como no exemplo dos
cavalos, pensar muitos espaços individuais para depois generalizar o espaço como um conceito.
O espaço se nos apresenta, de pronto, como único. Trata-se duma operação subjetiva pela qual o
espírito toma ciência de uma individualidade. Se tenho intuição sensível (e intuição quer dizer
visão) desta mesa, vejo-a, em particular, como uma só; todavia, da mesa em geral, não posso ter
intuição sensível ou visão, conquanto possa formar um conceito que engloba na unidade todas as
mesas possíveis. Já se vê, que as intuições sensíveis são a raiz dos conceitos. Por isso um e outro
são conhecimentos. Como a intuição nos dá o conhecimento de um objeto individual, particular e
único, o espaço só pode ser uma intuição pura, não sensível, pois, como observam vocês, não
podemos sintetizar as idéias de muitos espaços num conceito de espaço em geral. Pela mesma
razão não pode haver conceito do Ser nem de Deus, porque são únicos, donde vem que deles só
podemos ter intuições puras. Não há muitos espaços, senão um só e único, dentro do qual
podemos conceber cubículos de espaço que são frações ou partes do único espaço possível. E
como há pouco afirmamos que o espaço é a priori, quer dizer, independente de qualquer
experiência, podemos agora concluir, com pleno conhecimento, que o espaço é uma intuição
pura. Até aqui temos visto que o que Kant chama “exposição metafísica” do espaço, que ele
estuda junto com a do tempo, porém, que nós vamos ver em separado, para maior clareza.
Vejamos, em seqüência lógica, o que Kant chama “exposição transcendental” do espaço.
– Transcendental, prosseguiu Árago, deriva-se de transcendente; e transcendente é aquilo
que está além de nós, que existe em si e por si, independente de nós. Transcendental é tudo o que
pertence à razão pura, anterior a toda experiência. Esta razão pura já existe em nós, pré formada,
não sendo nós partícipes de sua gênese. Algo que nos transcende criou em nós o que, por isso, é
também transcendental. Assim Aristóteles se liga a Kant; aquilo está para além de nós, que existe
em si e por si (Aristóteles), nos forjou a razão pura, que, por isso mesmo, também é
transcendental (Kant) e anterior a toda experiência. Deste modo a geometria é transcendental, e
se acha estruturada na razão pura. Ao pensarmos, construímo-la em nossa mente por meio duma
intuição puramente ideal, não sensível. A intuição de qualquer figura geométrica decorre das
construções que fazemos dela em nossa mente, e que depois a projetamos no papel, e não de algo
sensível que nos venha do mundo objetivo. E a geometria subpõe o espaço, e não somente no
ponto de partida, senão também a todo o instante que construímos figuras geométricas no
pensamento. Por isso todas as intuições de figuras supõem, subpõem, põem por debaixo,
constantemente, uma intuição a priori que é o mesmo que pura. Segue-se, logo, que a intuição
pura de espaço não somente é o subposto primeiro da geometria, senão que a geometria
constantemente a supõe. Então o espaço puro é imanente em toda a geometria, e as intuições
geométricas não se definem, mas se constróem. Todavia, quando nós passamos desta geometria
pura, subjetiva, à aplicada, objetiva, verificamos que as experiências feitas no mundo objetivo
coincidem, perfeitamente, com aquela geometria pura que temos na mente, nascida da intuição a
priori de espaço, sem a participação de experiência alguma. Há equivalência perfeita entre esta
geometria pura que estudamos de olhos fechados, e essa outra empírica, que nos entra pelos
olhos, do mundo sensível, do mundo objetivo, do mundo à mão.
E depois de uma pausa meditativa em que Árago procurava tornar claro um dos pontos
mais escuros e difíceis de Kant, prosseguiu:
– Aristóteles diria que a geometria existente em nosso espírito nos veio do mundo
objetivo, visto que este possui, em si, geometria. Para Kant, o mundo objetivo não tem em si
52
geometria, a não ser aquela que lhe damos, e isto porque a geometria não passa de forma de
conhecer, própria da nossa inteligência. Eis como a filosofia realista de Aristóteles subpõe o
mundo objetivo ao sujeito, e o que está neste, procedeu daquele. Já a atitude idealista subpõe o
sujeito ao mundo objetivo, e o que há neste, projetou-se do sujeito. O idealista diz que só
podemos entender do mundo aquilo que nós lhe demos, que é a forma de conhecer, própria e
puramente nossa, e não dele. O idealista só pode entender do mundo aquilo que ele projeta de si
para o mundo. O realista, ao contrário, entende só aquilo, do mundo, que se refletiu em si; em
seu espírito há geometria, porque o mundo foi geometrizado por Deus, donde vem que a
geometria tem ser real no mundo, e não, mera forma de conhecer, como querem os idealistas.
Não nos esqueçamos de que, para Kant, o espaço e o tempo não são realidades metafísicas nem
físicas, e que, por isso, tenham existência em si e por si; para ele, Kant, espaço e tempo são
formas puras de nossa faculdade ou capacidade de conhecer. Então, pôr os objetos, é injetarmos
neles nossa intuição pura de espaço e de tempo, como se estas intuições puras fossem realidades
existentes neles; como se fossem, não significa que são. Conferimos aos objetos reais os
caracteres puros, ideais, de espaço e de tempo, e depois vamos encontrando, continuamente, na
experiência, esses caracteres que nós próprios lhes conferimos. Daí o dizerem os idealistas que o
ato de conhecer possui duas fases: a primeira consiste em pôr os objetos que se vão conhecer;
este pôr os objetos significa subpor a eles aquele conhecimento puro, que é próprio da nossa
inteligência ; imprimimos nos objetos, conferimos a eles o nosso subjetivismo; esta primeira fase
é a da hipótese. Usando o material que temos dentro de nós, com lápis e papel, chegamos a uma
conclusão, e dizemos: é isto. Esta é a primeira fase que denominamos por objetos ou hipótese.
Depois vem a segunda fase que é a demonstrativa ou experimental: por meio desta vamos
devagar, e discursivamente, procurando nos objetos reais o conhecimento que, previamente, lhes
imprimimos. Deste modo toda a dedução, transcendental deve consistir em que as condições
deste conhecimento puro, possam imprimir-se nos objetos reais correspondentes àqueles mesmos
conhecimentos que, de antemão, já tínhamos. Primeiro descobrimos tudo no mundo subjetivo do
pensamento; é a hipótese. Depois vamos conferir este saber antecipado, com a realidade do
mundo: é a demonstração.
E vendo, pelo livro de Garcia Morente, qual o ponto que devia suceder ao precedente,
continuou:
– Do mesmo modo como Kant procedeu em relação ao espaço, deduzindo dele a
geometria, seguindo a mesma ordem de argumentos, faz o estudo do tempo, extraindo dele a
aritmética. Kant agora procura demonstrar como é possível uma aritmética pura; mostra como
podemos nós construir de olhos fechados, de um modo inteiramente a priori, fazendo omissão
completa da experiência, toda uma ciência que é a aritmética, e que, depois, esta ciência pura que
criamos na mente, coincide em todos os pontos com os fatos reais da natureza exterior. Assim
como o espaço, diz Kant que o tempo também é a priori; quer dizer, independente de toda
experiência; não tem realidade objetiva, não passando de pura forma de conhecer. O tempo, diz
ele, é uma intuição pura, independente da experiência, porque qualquer percepção sensível é uma
vivência, um acontecimento percebido pelo eu; e tudo o que acontece implica, já, tempo, porque
todo o acontecer é um tornar-se, um vir-a-ser, um devir, um deixar de ser o que foi para ser o que
será; tudo o que acontece é um suceder no tempo. Portanto, o tempo está subposto a todo o
desenvolvimento, e marca o ritmo do tornar-se. Acontecer significa que, no decurso do tempo,
algo vem a ser o que será, e deixa de ser o que foi. Conseqüentemente, toda percepção sensível,
toda a vivência é algo que nos acontece no tempo. Podemos intuir um tempo vazio de
acontecimentos, não porém um acontecimento que se realize fora do tempo, ou sem tempo.
Antes, durante e depois do acontecer, o tempo subjaz, como fundamento, a priori.
– Depois de demonstrado que o tempo é a priori, continuou o mestre, Kant passa a
demonstrar que o tempo é uma intuição e não um conceito. Porque o conceito é uma unidade
mental que engloba uma multiplicidade de coisas, como já o disse, ao tratar do espaço. O
conceito de homem implica num juízo sintético que reúne tudo o que é essencial no homem; o
que for acidental, como cor da pele, dos cabelos e dos olhos, altura, peso, não entra no conceito.
Isto posto, temos que não há u’a multiplicidade de tempos com partes essenciais e partes
acidentais, de sorte que se possa reunir as essencialidades num conceito único. O tempo é, já, por
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si mesmo, uma unidade, e por isso não pode ser um conceito, e sim, uma intuição pura. Nós
podemos intuir o tempo como uma unidade, e nunca pensá-lo como conceito resultante duma
generalização de muitos tempos num único. E nisto se resume o que Kant denomina “exposição
metafísica do tempo”. Após isto, vem a “exposição transcendental do tempo”. E assim como a
“exposição transcendental do espaço” implicou na construção pura, a priori, da geometria,
igualmente a “exposição transcendental do tempo” torna possível a construção pura da
aritmética. A intuitividade e o apriorismo do tempo são condições de possibilidade dos juízos
sintéticos na aritmética. Para formularmos nossos juízos em aritmética não precisamos da
experiência, visto que partimos da intuição. Para somar, subtrair, multiplicar, dividir, potenciar e
extrair raízes, necessitamos do tempo, e as mesmas operações implicam tempo, e as fazemos a
priori, isto é, independente de qualquer experiência objetiva. É somente subpondo o tempo como
intuição pura, que podemos, de um modo a priori, construir a aritmética, sem pedir o concurso da
experiência. E isto ocorre, precisamente, porque o tempo é uma forma da nossa capacidade
mental em relacionar as vivências. O tempo é como o fio que liga as contas-vivências no colar da
nossa vida, que também é uma conta maior dum colar maior, e assim, até o tempo uno e eterno.
É assim que o tempo, conquanto não passe de forma de conhecer, se aplica à realidade onde se
dão os fenômenos dos quais temos percepções sensíveis que são as vivências. As nossas
vivências se ordenam em sucessão no tempo, e lá, fora de nós, no mundo objetivo, tudo acontece
conforme a previsão da aritmética pura que construímos de olhos fechados.
Fez silêncio o mestre por um pouco, não só para tomar um fôlego, senão, também, para
procurar no livro o ponto seguinte. E tendo-o achado, continuou:
– Como temos visto, o espaço e o tempo são formas de sensibilidade que não coisas
objetivas da realidade exterior; e sensibilidade para Kant é o mesmo que percepção. As
percepções externas ou experiências das coisas se fundam no espaço; as vivências ou percepções
internas se lastreiam no tempo. Todavia, toda percepção externa possui, também, duas fases: a
presentânea, imediata, que é o momento mesmo da percepção, e a interna, mediata, em que a
percepção se funda em duas: porque, ao mesmo tempo em que percebo as coisas sensíveis,
também me dou conta de que as estou percebendo; ao tempo em que percebo, me apercebo; não
só tenho percepção, senão que também tenho apercepção que é perceber que estou percebendo.
Assim o tempo é forma da sensibilidade externa e interna ao mesmo tempo, enquanto que o
espaço é somente sensibilidade externa. Deste modo o tempo, por sua posição privilegiada,
abarca em si todas as vivências, referindo-se tanto aos objetos exteriores quanto às vivências
interiores, servindo de base comum, de denominador comum entre a aritmética e a geometria.
Eis, então, que a aritmética e a geometria se interpenetram, se acasalam, se correspondem. Por
causa disto é que foi possível a Descartes estabelecer contatos e pontes entre as duas ciências
paralelas: geometria e álgebra, e fica entendido que a álgebra é a generalização da aritmética.
Descartes inventou a geometria analítica, e por ela se reduzem figuras geométricas a equações
algébricas, e vice-versa. Pouco depois vem Leibniz, e estende mais ainda essa possibilidade de
redução da geometria à álgebra, pela criação do cálculo infinitesimal. Primeiro Descartes, e
depois, Leibniz possibilitou a passagem das equações às figuras, e destas às equações,
conseguindo, deste modo, que ambas tivessem um denominador comum que são as leis
unívocas. Mas Leibniz descobre ainda a lei do desenvolvimento de um ponto em quaisquer
direções do espaço; esta verdade se acha concretizada nas fórmulas diferenciais e integrais que
registram as diferentes e sucessivas posições de um móvel no espaço, isto é, prevê, pelo cálculo,
a sua trajetória. Com isto completou-se a harmonia e coerência entre geometria e álgebra que
representam, respectivamente, espaço e tempo.
– De sorte, continuou o mestre, que toda a matemática representa um sistema de leis a
priori, absolutamente independente da experiência, que, todavia, torna inteligível e coerente toda
percepção sensível. Por isso, toda a percepção sensível que tivemos no passado e teremos no
futuro, está subordinada às leis da matemática, e estas leis, em vez de serem induzidas da
experiência, foram deduzidas das intuições puras do espaço e do tempo, e para deduzi-las não se
precisou mais do que de pena e de papel. O ser para conhecimento, portanto, existente no
objeto, não é próprio do objeto, e sim, do sujeito. As formas de sensibilidade, espaço e tempo,
não existem nos objetos, até enquanto o sujeito não as pôr neles; postas nos objetos, estes as
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possuem, e são estas formas de sensibilidade possuídas pelos objetos que, depois, o sujeito
encontra neles. Nada existe no objeto que não tivesse sido posto nele pelo sujeito. A coisa em si
de que não se puderam libertar os filósofos idealistas, desde Descartes, recebe de Kant a sentença
definitiva de exclusão. As coisas em si não existem, ou se existem, não têm trânsito nenhum para
o eu, de sorte que este possa vir a conhecer que existam. Só podemos falar de objetos para
conhecimento, de objetos postos pelo sujeito para serem conhecidos, e não, de coisas em si, das
quais nada podemos dizer, visto que esta expressão é um absurdo radical, como dizia Berkeley.
As coisas que conheço são em mim, estão na minha inteligência, e por isso sei o que são; porém,
as coisas em si estão fora de mim, do meu entendimento e alcance, não podendo, absolutamente,
ser objeto de pensamento. As coisas em si são inconcebíveis, inconceituáveis e inintuíveis; logo,
não existem para a razão; e se existem, de algum modo, para a razão, são como se não
existissem. Só podemos falar de coisas extensas no espaço e de fenômenos sucessivos no tempo;
mas como espaço e tempo não são “coisas”, nem propriedades das coisas, mas sim, formas da
sensibilidade, condições de cognoscibilidade, de perceptibilidade que o sujeito põe nas coisas,
vale dizer que as coisas são no sujeito, e nunca, em si mesmas. Estas coisas partícipes das
propriedades do espaço e do tempo, por intervenção exclusiva do sujeito, recebem de Kant a
denominação de fenômenos. Fenômenos, portanto, são as coisas amalgamadas pelo espaço e
pelo tempo, providas de espaço e de tempo por empréstimo que o sujeito fez a elas.
– Toda esta parte da “Crítica da Razão Pura” que expus, rematou o mestre, recebe de Kant
o nome de “estética transcendental”. A palavra estética deriva-se de “estesis” que, no grego,
significa percepção. Logo, estética transcendental significa teoria da percepção. Transcendental
se refere à razão pura. Estética transcendental quer dizer teoria pura das percepções sensíveis.
Esta é a acepção que Kant dá às palavras “estética” e “transcendental”. Não se trata de “teoria do
belo”, nem “teoria da beleza”, nem “teoria da arte”, como, de repente, vocês iriam supor.
E novamente consultando o livro de Morente, exclamou, Árago, após ter limpado o
pigarro da garganta:
– Agora vem o passo da exposição kantiana que tem o nome de “analítica
transcendental”. Depois da “teoria pura das percepções sensíveis”, isto é, da “estética
transcendental”, vem a “analítica transcendental” que é a teoria do conhecimento das leis dos
fenômenos. Aqui se estuda como são possíveis os juízos a priori dos fenômenos. Pois claro: se o
espaço e o tempo não são coisas, nem propriedades das coisas, porém, formas das sensibilidade,
condições de cognoscibilidade, de perceptibilidade, que o sujeito põe nas coisas, donde as coisas
serem no sujeito, mas não, em si mesmas; se o ser para conhecimento existente no objeto não é
próprio do objeto, e sim, do sujeito; se as formas de sensibilidade, espaço e tempo, não existem
no objeto até o momento em que o sujeito não os pôs nele, para conhecê-lo; se as coisas que
conhecemos não são em si, mas em nós, na nossa inteligência; se as coisas em si estão fora de
nós, do nosso entendimento e alcance, não podendo, absolutamente, ser objeto de conhecimento;
se nada existe no objeto que antes não tivesse sido posto nele pelo sujeito, porque a ponte de
trânsito entre o sujeito e o objeto, pertence ao sujeito, e não ao objeto; se tudo é assim, como
venho expondo, coerentemente, tudo o que sabemos da física tem de ser a priori. Como não o
ser? Se as coisas mesmas nos houvessem ensinado, então havia trânsito das coisas para o sujeito,
conforme o afirma o realismo; mas não, diz Kant: o trânsito somente existe do sujeito para os
objetos; logo, tudo o que sabemos, sabemo-lo a priori. As coisas nos enviam impressões, e nada
mais que impressões como diria Hume. Contudo cada coisa possui sua essência, é efeito duma
causa, possui sua lei de transformação. Como sabemos disto? Sabemo-lo a priori, visto que nada
disto é impressão. As leis universais não são impressões; nenhuma coisa nos pode comunicar o
conceito de causalidade; nenhuma, o conceito de essência. Ora, se tudo isto apreendemos das
coisas, só pode ser porque antes lhes demos, lhes pusemos. Logo, existe um conhecimento a
priori das coisas da natureza. Qualquer livro de física começa pela “mecânica racional” que é um
conjunto de leis, de teoremas, de proposições a cerca dos objetos reais; estão as leis do
movimento, as da inércia, que não nasceram da experiência, nem estão impressas nas coisas onde
as lemos com a nossa inteligência. Inteligência deriva-se de “inter legere” que significa ler entre,
como definira o realismo aristotélico. Não há este ler entre para Kant, senão que as leis e
princípios do movimento e da inércia extraímos integralmente do nosso pensamento puro. Lemos
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entre as coisas (inter legere) somente aquilo que pusemos, de antemão, nelas; daí vem que se
pusemos muito, lemos muito, e se pusemos pouco, lemos pouco. A diferença está, portanto, no
quanto pomos. Os inteligentes põem mais, e os ignorantes, menos; mas cada um só pode ler nas
coisas, o quanto pode pôr nelas. A palavra inteligência, que vem de inter-legere, devia proceder
de inter-pôr – conhecimentos ou ciência. Inteligência devia ser, segundo Kant, interporciência.
Uma vez que Kant sentenciou que não há trânsito possível das coisas para o sujeito, e, sim,
somente, do sujeito para as coisas, não há alternativa: tudo do conhecimento das coisas, tem de
sair do próprio sujeito, tal como a aranha que tira de si o material com que tece a sua teia, no
dizer de Francis Bacon.
E prosseguiu o filósofo, após ter consultado seu livro de texto.
– Ao ter início a segunda jornada filosófica, lembremo-nos de que Descartes estabeleceu
a dúvida por método de pesquisa. Todavia, o vasto campo sobre que a dúvida pode exercitar-se
pode ser dividido em duas partes. Uma é aquela em que se situam as nossas intuições sensíveis;
este setor é o da realidade objetiva das coisas que vemos, tocamos e ouvimos. A outra parte é
aquela dos nossos pensamentos. E Descartes conclui que a dúvida só persiste na parte relativa
aos objetos do pensamento, e não aos pensamentos mesmos. Assim, diz Descartes, eu penso no
centauro, que pode ser que não exista; entretanto meu pensamento dele existe. Eu posso, diz ele,
sonhar que me acho voando; pode suceder que, em vez de voando, esteja dormindo; contudo,
não pode ser que não esteja sonhando estar voando. Pelo que se vê, os puros pensamentos não
podem ser objeto de dúvida, porém, a realidade objetiva, relacionada a esses pensamentos, sim,
pode. Então se a realidade pode ser duvidosa, não é realidade. A realidade tem de ser aquilo que
não padece dúvida. Logo, para Descartes, que vem a ser realidade? Pois realidade é um
pensamento que corresponde exatamente a um objeto além de si. O pensamento pode não ter
correspondência com seu objeto; o pensamento do centauro existe, mas não existe o centauro;
logo, o centauro não é uma realidade. E se acontecer que exista o centauro, nalgum lugar do
universo? Neste caso o centauro se torna uma realidade. Então, somente não incorrerá em erro,
aquele que nunca afirma ou nega o objeto dum pensamento. Aquele que se bastar só com o puro
pensamento, sem afirmar, nem negar... que o pensamento corresponde ao seu objeto, esse não
erra. Basta não julgar da realidade exterior, limitando-se a pensar somente, para não incorrer em
erro. E poderá estar em erro todo aquele que afirme ou negue que aquilo que pensa existe.
– Todavia, continuou o mestre, como podemos pensar, sem que o pensamento afirme ou
negue alguma coisa? Como é possível a um homem ficar só consigo em seus pensamentos? Pois
se os pensamentos se compõem de juízos, que juízos há que não afirme nem negue algo do
sujeito? A realidade, já o disse Descartes, é “algo” ao qual o pensamento se refere. Mas essa
realidade só terá validade se for posta, afirmada; e se não afirmamos, se não formulamos um
juízo que declare que esse pensamento se refere a essa realidade, esta não será válida, nem se
poderá formular o juízo dela. Então para que uma realidade exista é preciso que ela apareça
como sujeito de um juízo; e um juízo não pode compor-se só do sujeito, senão que também é
exigido nele o predicado; e o predicado é aquilo que se afirma ou nega do sujeito. Se digo: esta
mesa é larga, a mesa, pelo menos é real, porque lhe juntei a partícula afirmativa é. A mesa é,
porque se ela não fosse, impossível seria afirmar dela qualquer coisa; fosse ela uma não-ser, não
se lhe poderia juntar propriedades ou qualidades. Por conseguinte, para afirmar a realidade de
qualquer coisa, basta pô-la por sujeito de um ou mais juízos que afirmem ou neguem dela
alguma coisa. Não se pode afirmar ou negar nada de nada, e sim, somente, afirmar ou negar
alguma coisa de algo; por isso quando afirmamos ou negamos do sujeito, este já está, por isso
mesmo, posto como realidade. Logo, a função primacial do juízo é pôr a realidade. A função
intelectual do juízo, como a função ontológica, consiste em estabelecer uma realidade. E quando
temos dúvidas sobre se uma coisa é ou não real, perguntamos: que é isso? Se a resposta vem:
isso é nada; então, não se trata de realidade. Se a resposta for isso é algo; então se trata duma
realidade. O simples fato de perguntar: que é isso? já constitui uma colocação ou posição duma
realidade. E esta identidade da função lógica do juízo, com a função ontológica de pôr a
realidade, é o fundamento sobre que Kant assenta o seu método de deduzir todas as variedades
possíveis de toda a realidade. Colocando sempre a realidade por diferentes formas de juízos, a
própria realidade vai variando, sem, contudo, deixar de ser o que é. E as diferentes formas de
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juízo estão perfeitamente estudadas desde Aristóteles que criou a lógica formal ou pura, válida, e
sem mudança, até nossos dias.
Dito isto, o mestre fez uma pausa; e pegando dum giz, foi à lousa a fim de anotar nela as
formas clássicas de juízos na lógica formal, que são: de quantidade, de qualidade, de relação, de
modalidade. E tendo, depois, retornado à sua cadeira, continuou:
– Essas, que estão ali na lousa, são as formas do juízo na lógica formal, com suas
correspondentes categorias kantianas. A primeira forma de juízo que aparece ali, é a de
quantidade; quanto a esta forma de juízo, os sujeitos podem ser individuais, como por exemplo,
Frederico é alemão, ou A é B; particulares, como em, alguns homens são filósofos, ou seja:
alguns A são B; universais, como em todo o homem é mortal, isto é, todo A é B. Depois vem a
segunda forma de juízo, que se refere à qualidade. Quanto à qualidade os juízos podem dividir-se
em afirmativos, negativos e infinitos. São afirmativos aqueles juízos que fazem afirmações do
sujeito como em Frederico é alemão, ou A é B; são negativos, quando negam do sujeito uma
qualidade, como, por exemplo, o universo não é simples, ou A não é B; infinitos quando uma
qualidade somente do sujeito é negada no predicado, como em os sapos não são mamíferos, ou
os A não são B. Não se afirma o que são os sapos, mas apenas se lhes nega uma qualidade,
deixando aberta a possibilidade de eles serem tudo o mais. Segundo a relação, os juízos podem
dividir-se em categóricos, hipotéticos e disjuntivos. São categóricos aqueles juízos que afirmam
de modo incondicional, como, por exemplo, o ar é transparente ou A é B; no juízo hipotético se
afirma sob condição, assim por exemplo: se hipnose é sugestão, e sugestão, fé, então hipnose é
fé, ou se A é B, e B é C, então A é C. Juízo disjuntivo é aquele em que a afirmação aparece
debaixo de alternativas, como em: Alcino é russo, ou francês, ou brasileiro, ou seja: A é B ou C,
ou D. No que concerne à modalidade os juízos dividem-se em problemáticos, assertórios e
apodíticos. Problemáticos são os juízos que somente evidenciam possibilidade, como em
Antonio pode ser baiano, ou A pode ser B; juízos assertórios são aqueles em que, no predicado,
se afirma do sujeito; exemplo: átomo é tomo; ou A é B; nos juízos apodíticos os predicados
afirmam de modo diferente aquilo que o próprio nome do sujeito expressa, como, por exemplo, o
quadrado tem quatro lados; ou A é necessariamente B; ou não há como A não seja B; ou A tem
que ser B.
– Temos visto, prosseguiu o pensador, a classificação aristotélica dos juízos na lógica
formal, que anotei resumidamente, ali na lousa. Ora, se o ato de julgar consiste em pôr, em
colocar a realidade, então, todas as diferentes formas do ato de julgar, correspondem aos vários
modos com que se apresenta a realidade. As diferentes formas do juízo correspondem aos
variados modos de ser da realidade. A tabela de categorias, pois, deve sair da tabela de juízos. E
Kant extraiu de cada uma destas formas de juízos a forma correspondente da realidade. Quer
dizer que as categorias da realidade são pura e simplesmente deduzidas do ato de julgar, do ato
de formular juízos. As categorias unidade, pluralidade e totalidade correspondem,
respectivamente, às formas de juízo individuais, particulares e universais. Estas formas de
juízos dizem respeito à quantidade, como ali na lousa se vê. Os juízos quanto à qualidade são
afirmativos, negativos e infinitos. As respectivas categorias são: essência (no sentido de
consistência), negação e limitação. Dos juízos de relação que são os categóricos, hipotéticos e
disjuntivos, saem as categorias substância, causalidade e ação recíproca. Da quarta e última
forma de juízo lógico, que é o de modalidade, subdivididos em problemáticos, assertórios e
apodíticos, extrai Kant as categorias de possibilidade, de existência e de necessidade. Eis aí as
doze categorias kantianas extraídas das doze formas clássicas de juízos da lógica formal.
Feita uma pausa para um breve descanso, prosseguiu:
– Logo após expor as suas categorias, Kant passa a tratar delas, por miúdo, na sua
“dedução transcendental”, que também pode chamar-se “analítica transcendental”. Esta parte
da “Crítica da Razão Pura” é a mais importante, mais famosa, mais fundamental. A ela, pois:
– Estas categorias, como já vimos, são deduzidas dos juízos formais da lógica pura. Ora, a
lógica, com ser pura, não procede da experiência; logo as categorias são a priori, uma vez que
também não procedem da experiência. Então podemos formular, agora, um pensamento que
caracteriza todas as filosofias existentes, ou que venham a existir de futuro; é este: as categorias,
ou estão nas coisas, e estas no-las enviam, como quer o realismo, ou estão em nós, e as enviamos
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às coisas, como o entende o idealismo. Se as categorias estão nas coisas, e estas no-las enviam,
então, até as doze formas de juízos da lógica menor ou pura são a posteriori, visto que elas
derivam das categorias que emanam das coisas. Se, pelo contrário, como querem os idealistas, as
categorias se deduzem das formas de juízo da lógica pura, e depois são postas nas coisas, então,
tudo, de fato, é a priori. Aristóteles é da primeira opinião, e Kant, da segunda. Para Kant as
formas categóricas são a priori, porque não se derivam da experiência. Para os realistas as
categorias nos vêm das coisas. Mas isso é absolutamente impossível, dizem os idealistas, porque
as coisas não enviam mais que impressões; ora, as categorias de unidade, de pluralidade, de
totalidade, de causa, etc., não são impressões, mas relações. Se as condições de conhecimento
estivessem fundadas só nas impressões que as coisas nos enviam, então estaria com a verdade
Hume. Neste caso as coisas nos enviariam impressões sensíveis, que se agrupavam em nossa
mente como vivências puras, associadas por semelhança, por contiguidade, por contraste. A
ciência seria mero costume local, contingente, e ninguém poderia garantir a constância de nada,
pois não haveria causalidade nem lei, visto que estas categorias não são impressões sensíveis
nem vivências. Mas não: a ciência existe; está aí; suas previsões se cumprem. O homem
formulou sistemas, subpôs teses, fez afirmações científicas redutíveis a fórmulas matemáticas, e
tudo isto expressa o que as coisas são como realidade, como movimento, como são encadeadas
umas às outras por princípio de causalidade. Desde Galileu, desde Newton, temos uma física que
funciona, que é inteligível, que é matematicamente exata. Indubitavelmente temos um
conhecimento racional, exato. Cumpre-nos descobrir como esse conhecimento é possível. Pois é
possível debaixo das seguintes e necessárias condições: é preciso haver objetos, que sem eles não
há conhecimento deles. É preciso que esses objetos possuam uma essência, no sentido de
consistência, de substância, porque se os objetos não se consistirem de alguma matéria, não
existem, e não existindo eles, ipso-facto, não existe o conhecimento deles. É preciso, em terceiro
lugar, que os objetos existentes e possuidores de um ser, estejam relacionados entre si por causa
e efeito, porque se não houvesse cadeia de causalidade, se surgissem e desaparecessem os
objetos sem ordem nem lei que os enlaçasse, não se poderia conhecer nada. Em síntese, sem tudo
aquilo que as categorias nos declaram que os objetos são, não há conhecimento possível. Por
conseguinte, as condições de conhecimento são a mesma coisa que condições de objetividade.
As duas condições, as de conhecimento e as de objetividade, se equivalem. Mas as condições de
conhecimento são a priori visto que se derivam da lógica formal ou pura; logo, as condições de
objetividade são a priori também. Eis como Kant conduz a sua dedução transcendental. Não há
mais que estas duas possibilidades exploradas pelos idealistas e pelos realistas: as categorias, ou
procedem de nós, e são a priori, ou procedem dos objetos, e são a posteriori. Procedem de nós?
então não procedem das coisas. Procedem das coisas? então não procedem de nós. Daqui não há
fugir! Qual dos dois filósofos está com a verdade? Seria Aristóteles, ou seria Kant? A resolução
deste problema se reserva para a terceira jornada filosófica, porque depende de como se deu a
gênese do homem. Se Deus fez o homem, diretamente, e de um golpe, pondo-o no cenário da
vida como produto acabado, então, ao construir-lhe o aparelho do pensamento, pôs nele, como
ocorreu com as demais peças anatômicas, os juízos puros da lógica formal, e desta se deduziram,
depois, as categorias todas, que dão inteligibilidade às coisas do mundo objetivo. Se, todavia, o
homem for um dos muitos produtos da evolução, tendo, como tudo, procedido do caos
primordial, então, não só ele, como tudo o que há no mundo, surgiu pelo embate das vivências
dolorosas, das experiências amargas, não havendo nada a priori, e antes, sendo tudo a posteriori.
Mas este é o tema da terceira jornada filosófica que nos cumpre não antecipar.
E refestelando-se na cadeira, o pensador, tendo no semblante o ar de quem se gloria por
sua clareza e precisão de raciocínios, continuou:
– E Kant tem tanta convicção de que a sua é a doutrina incontestavelmente verdadeira,
que aplicou ao seu sistema a inversão copernicana, que consiste nisto: até Copérnico, se tinha por
certo que a Terra era o centro do Universo, girando em torno dela o Sol com todos os demais
planetas e satélites. Todavia Copérnico descobriu ser completamente impossível a interpretação
do que se observava em astronomia se o Sol desse voltas ao redor da Terra, sendo esta o centro
do Universo. É então que Copérnico propõe a inversão das posições, pondo ele o Sol por centro
do sistema planetário. Bastou isto, que tudo se resolveu. Pois esta é a inversão copernicana, que
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Kant aplica ao seu sistema filosófico. Até Descartes sempre se teve por indiscutível, pois
Aristóteles o dissera, que as coisas nos enviam sua essência; essência, no sentido de ser, de
aquilo que é. Aquilo que recebemos das coisas, que no-las torna inteligíveis, compreensíveis,
antes de estarem em nós, na nossa inteligência, estão, primeiro, nas coisas. Por isso, as condições
de objetividade que são as categorias, vêm-nos das coisas. Mas isto é impossível, ininteligível
por completo, bradam os idealistas, porque as coisas não nos enviam mais que impressões. Ora,
as categorias ônticas não são impressões, mas conceitos. Então Kant propõe, como o fizera
Copérnico, para inverter as posições dos juízos e dizer: os nossos conceitos não nascem do
conhecimento das coisas, senão que o conhecimento das coisas nascem dos nossos conceitos. Os
nossos conceitos não se ajustam às coisas, senão que estas se ajustam aos nossos conceitos. As
categorias, por conseguinte, são conceitos puros ou a priori, que, por isso, não são derivados das
coisas, mas que pomos ou subpomos a elas. Com esta operação Kant acaba de expungir o
idealismo de qualquer resquício de realismo aristotélico, além de fixar, para sempre, a correlação
basilar do sujeito e objeto no conhecimento. Além disto, o objeto do conhecimento só é objeto
do conhecimento quando possui as condições para ser conhecido; e essas condições do
conhecimento são postas no objeto pelo sujeito, de modo que as coisas em si não são mais do
que coisas para o conhecimento. Se, depois destas coisas que são para o conhecimento, houver
ainda alguma coisa em si, como ela é em si, e não no sujeito, não pode ser conhecida por este, e,
por isso, não existe; e se existe, o sujeito não dispõe de meios para o saber. Eis como tanto o
sujeito como o objeto são termos relativos que aparecem no plano do pensamento, a partir do
momento em que o ser se dispõe a não querer mais submeter-se ao determinismo instintivo,
próprio do animal, e por isso procura conhecer. Quando, um dia, o eu biológico se propõe a ser o
sujeito do conhecimento, ou seja, quando a curiosidade natural do homem o leva a formular
perguntas a respeito do mundo e das coisas; quando o sujeito interroga: que é isto?, nesse ponto
o mero eu biológico animal se torna no sujeito do conhecimento, no sujeito cognoscente, no eu
humano que, por sua própria natureza, é filosófico. Desde então o sujeito começa a pôr os
problemas, e a os resolver. Por isso, enquanto um problema não é posto, ele não existe.
Problemas inexistentes para Aristóteles surgiram na mente de Descartes, e tiveram sua cabal
resolução em Kant. Problemas com os quais Kant não atinou, serão atacados e resolvidos na
terceira jornada filosófica. E assim, de problema em problema, de solução em solução, o
pensamento avança, sendo a filosofia, problematicidade contínua, e a história da filosofia a
história dessa problematicidade.
E concatenando novas idéias, continua o mestre:
– O homem ignorante, assim como o animal, caminham pelo mundo sem perguntar, visto
que para um e outro só existe o ritmo da vida física a transcorrer sem necessidades superiores;
filosoficamente bisonho, cada um aceita suas múltiplas impressões e vivências, como se elas
fossem a realidade mesma, sem precisão nenhuma de perguntar: que é isso? Todavia, quando
essa pergunta se formula, o eu biológico que é mera unidade vital, se torna no sujeito
cognoscente, e, simultaneamente, as impressões e vivências se transformam em objetos para
conhecer. Porém, esta mudança de atitude psicológica, pela qual as impressões se tornam objeto
para conhecer, significa que o sujeito passa a considerar as impressões–objetos sob o aspecto das
categorias de essência, de substância, de unidade, de causa, etc. Portanto, o eu está para o sujeito
na mesma relação que as impressões e vivências estão para o objeto do conhecimento. Por isso, o
objeto para conhecer não é a coisa em si, para ser a coisa em relação com o sujeito cognoscente.
Por conseguinte, nem o sujeito cognoscente é em si, como também não é em si o objeto; o
sujeito está para o objeto, na função de conhecer, como o objeto está para o sujeito na função de
ser conhecido. O que há é esta reciprocidade sujeito-objeto, e não coisa nenhuma em si. Sujeito e
objeto formam um sistema paralelamente semelhante a inúmeros sistemas duplos de estrelas, em
que ambas giram em torno de um centro de gravidade comum. O pensamento é esse centro de
gravidade comum ao sujeito e ao objeto, e que dá sentido a ambos como coisas ou fenômenos.
Foi mera pretensão a dos filósofos realistas considerarem que, além do sujeito cognoscente,
havia o em si, e além dos objetos para conhecimento havia a coisa em si. Eles examinavam as
coisas, e cuidavam que a objetividade, a essencialidade, a causalidade, a unidade, a pluralidade, a
ação recíproca, a totalidade, enfim, todas as categorias eram propriedades das coisas em si
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mesmas, em vez de propriedades das coisas no sujeito, ou postas pelo sujeito. Pois as
propriedades das coisas não o são delas, mas, só o são em relação ao sujeito cognoscente. Dizer,
com Descartes, eu existo... porque penso, significa que o pensamento é o que dá existência ao eu;
o eu então, como qualquer coisa, recebe existência do pensamento, isto é, mediante as categorias
puras do pensamento. Eu existo, porque, como todas as coisas, meu “eu” também pode receber
as categorias de unidade, de causa, de substância, e as demais do conhecimento. Logo, nem o
sujeito cognoscente, nem o objeto para conhecimento são coisas em si, visto que ambos não
passam de fenômenos no dizer de Kant. Por esta causa, “em nenhuma outra coisa se baseia a
dignidade humana, senão nela própria; e as atividades do homem precisam valer por si mesmas e
pelos seus fins, se tiverem que ter qualquer valor”68.
E trocando o livro de que fizera a citação, pelo de Morente, prosseguiu o mestre:
– Surge agora um problema que existe desde Parmênides, e que foi mantido por Platão,
Aristóteles e São Tomás, pelos escolásticos, por Descartes, por Leibniz e pelos filósofos ingleses
modernos. É o problema da metafísica, pois esta disciplina tem em vista conhecer as coisas em si
mesmas, e não, em relação de puro conhecimento, como sujeito cognoscente e objeto por
conhecer. A pretensão da metafísica consiste em conhecer as coisas em si mesmas, e não debaixo
da relação sujeito-objeto. Com esta pretensão a metafísica lança suas vistas para as coisas, para a
alma humana, para o mundo, para Deus. Mas então, visto que Kant afirma que o homem se acha
preso no seu sistema sujeito-pensamento-objeto, sem possibilidade de evasão, vale perguntar,
como o faz Kant: como é possível a metafísica se ela pretende situar o seu objeto na coisa em si,
fora da constelação sujeito-objeto? E toca Kant, através do que ele chama “dialética
transcendental”, a demonstrar a impossibilidade da metafísica na razão pura. Como se hão de
lembrar vocês, Aristóteles já dissera haver nas coisas a forma e a matéria. A forma é o que diz
respeito à razão, ao pensamento; e a matéria, o que concerne à consistência, ao conteúdo da
forma. Assim Kant começa por classificar os conhecimentos em formais e materiais. Ora, o
grupo de conhecimentos formais, visto que são de razão pura, são determinados pelas condições
a priori de espaço, de tempo e das categorias. Porém, o espaço, o tempo e as categorias são puras
formas, são condições ontológicas que se sobrepõem àquilo que, sendo material, proporciona
percepção sensível. Quer dizer que a percepção sensível, uma vez chegada à mente pelas vias
aferentes dos sentidos, aí se coordena, aí se subordina às formas de espaço, de tempo e de
categorias, tornando-se, por isso, inteligíveis, e esta inteligibilidade das coisas recebe o nome de
objetividade, de realidade do objeto conhecido. Por isso o conhecimento possui forma e matéria:
a forma diz respeito ao espaço, ao tempo e às categorias; a matéria se refere às impressões
sensíveis que nos vêm dos objetos postos para conhecer. Ora, a metafísica pretende que a razão
humana possui condições para conhecer as coisas em si mesmas, e não os fenômenos, não os
objetos postos para conhecer, e por isso, sujeitos ao espaço, ao tempo e às categorias. Trata-se,
ao ver de Kant, de um atentado contra a definição do que seja conhecimento. Daqui por diante,
na “Crítica da Razão Pura”, Kant se propõe a esclarecer em que consiste este atentado praticado
pela metafísica.
E depois duma pausa meditativa prosseguiu Árago:
– O primeiro objeto ou coisa em si contra a qual se aplica o aríete kantiano, é a alma.
Nem no espaço, nem no tempo, nem nas categorias achamos qualquer coisa que corresponda à
alma, porque quando nos inspecionamos, introspectivamente, quando atentamos para nossa vida
psíquica a fim de descobrirmos a alma, o que só descobrimos são séries de vivências cada uma
representando qualquer coisa do mundo exterior. Todavia, nenhuma dessas imagens
introspectivas, nenhum desses reflexos do mundo é o eu. O eu mesmo, a alma, não se acha em
parte alguma. Nenhuma percepção sensível existe que pudesse corresponder ao conhecimento da
alma, e isto é requisito fundamental para a validade de quaisquer conhecimentos. Tal como a
alma, também o universo, é um conceito forjado, sem correspondência com as intuições
sensíveis, com a experiência praticável. Percebemos as coisas, as árvores, o mar, o céu, as
estrelas; mas a totalidade a que damos o nome de universo, disso não temos percepção sensível.
Nossa vista, embora armada do mais potente telescópio, não alcança senão parcela mínima do
universo. Logo, não posso saber se corresponde à realidade, o que minha mente cuida saber do
68 Wells e Huxley, Ciência da Vida, 5, 29
60
universo. E de Deus? qual é a experiência sensível que temos de Deus? e então, se nenhuma
dessas coisas pode ser objeto do conhecimento, como a razão chegou a formá-los. Formou-os,
porque a razão, por sua própria natureza, é sintetizadora; ela coordena as impressões em sínteses.
Os juízos são sínteses, e o ato de julgar relacionando o sujeito com o predicado, diz, por
exemplo, A é B. Todavia esses julgamentos da razão só têm validade quando se referem às
coisas encontráveis pela experiência. É preciso que a formalidade corresponda à sua matéria; o
pensamento tem de encontrar solidez e apoio no objeto, e este se forma de vivências. Porém, a
razão estende sua capacidade de síntese para além do limite do real, tirando conclusões que
excedem os dados da experiência. Não se contentando a razão com as sínteses a que damos o
nome de substância, magnetismo, luz, eletricidade, corpos, etc., continua seu processo de
sintetizar, fazendo sínteses de sínteses. E não bastando estas últimas, com elas opera novas
sintetizações, somente parando ao chegar à barreira da unidade, da absoluta totalidade. Ora, essas
sínteses e uniões totais são os objetos da metafísica. Alma é a síntese das vivências, e universo, a
síntese que engloba todas as coisas sensíveis, do nosso mundo, e de todos os mundos possíveis.
Tudo quanto possa contrapor-se ao sujeito, tudo quanto faça frente ao eu pensante, tudo isso
unificado na totalidade, forma o universo que leva o que é no próprio nome, pois universo
significa a unidade mais o seu verso, o seu oposto, a pluralidade, quer dizer um + verso.
– A estas sínteses supremas, continuou o mestre, Kant dá o nome de idéias. No afã de
sintetizar, a razão passa de condição a condição num esforço contínuo de chegar ao
incondicionado. Embora o incondicionado nunca seja achado em nossas experiências, a razão o
pede, a razão o exige, a razão o necessita. Então, em vez de se ir passo a passo de uma condição
a outra, num processo exaustivo, infinito, a razão extrapola, salta sobre a série infinita, intuindo a
totalidade numa síntese que é a idéia; assim com a alma, assim com o universo, assim com Deus.
É precisamente este salto do condicionado para o incondicionado total, absoluto, que a
metafísica realiza.
E procurando no livro a seqüência a seguir da dissertação, a que se tinha proposto,
continuou:
– A respeito da alma, diz Kant, nós não podemos predicar absolutamente nada, visto que
ela não pode ser objeto de conhecimento, nem o puro, da razão, nem o dado na experiência sob a
forma de fenômeno. A experiência se processa no tempo, e os fenômenos anímicos que
implicam tempo são as vivências que se sucedem umas às outras num fluir constante, numa
corrente da consciência. Mas se bem considerarmos, essas vivências trazem consigo um sinal
duplo: de uma parte é vivência de um eu, e do outro, vivência de uma coisa. Todavia não
encontramos, nem interna nem externamente, algo que corresponda a uma vivência-síntese que
seja a alma. Logo, sem transgressão às leis do pensamento, não podemos considerar a alma como
uma coisa a conhecer. Teríamos que sair do tempo e do espaço que são o par de trilhos por onde
trafegam os fenômenos, as vivências, e situar fora do espaço-tempo a alma como substância
simples, indivisível e imortal, como pretende a psicologia racional. Contudo, nós estamos
jungidos ao espaço-tempo que são as primeiras condições de todo conhecimento possível. Essa
totalização chamada alma é completamente indevida, não passando essa idéia de transgressão
aos princípios que regem o pensamento. Tal como o capítulo “Erro da Psicologia Racional” está
o outro a que Kant dá o nome de “Antinomias da Razão Pura”. Antinomias quer dizer
contradição entre dois princípios ou leis. E dá Kant este nome às inevitáveis contradições contra
as quais se coloca a razão, quando se arrisca a encetar investigações sobre si mesma, sobre suas
faculdades. E por meio de raciocínios paralelos, podemos chegar à compreensão clara de que de
fato, as coisas se passam do modo como Kant o diz. Eis um exemplo: para encurvar uma linha,
precisamos fazê-lo sobre um plano; para encurvarmos o plano, uma folha de papel, por exemplo,
precisamos trabalhá-lo no espaço. Quer dizer que só de um plano superior podemos operar sobre
o imediatamente inferior. O espaço, por isso, só pode ser movimentado no tempo. Para
compreendermos o espaço e o tempo, precisamos estar numa dimensão superior que é a
consciência. De igual modo, precisamos estar situados no nível da hiperconsciência, da
consciência volumétrica, para operarmos sobre a razão ou consciência. Querer, por conseguinte,
investigar as bases da razão, sem nos sairmos dela, equivale a pretender encurvar uma folha de
papel, sem tirá-la do plano para o espaço. Existe, todavia, a hiperconsciência, e é somente nela
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que se podem atacar e resolver os problemas metafísicos. Estando, pois, no nível racional, não
podemos atacar problemas que servem de fundamento à mesma razão. Se o tentarmos, achar-
nos-emos envolvidos por afirmações e juízos contraditórios, igualmente válidos... para a razão.
– Assim, prosseguiu Árago, do universo podemos afirmar ou fazer predicações
contraditórias, as quais, apesar de contraditórias, são igualmente demonstráveis, e por esta causa,
com igual força probatória. Descobre Kant haver quatro dessas oposições de tese e antítese,
acerca do universo. A primeira delas é a seguinte: Tese – o universo tem uma origem no tempo,
assim como um limite no espaço. Antítese – o universo é eterno no tempo e infinito no espaço. A
segunda antinomia diz: Tese – tudo quanto há, no universo, se compõe de elementos simples
indivisíveis. Antítese – tudo o que há no universo não se compõe de elementos simples,
indivisíveis, mas, pelo contrário, de elementos que se subdividem infinitamente. A terceira
antinomia declara: Tese – o universo deve ter tido uma causa incausada. Antítese – a causa que o
universo deve ter, pode ser que seja também causada. A quarta e última antinomia é variação da
terceira, e diz: Tese – no universo ou fora dele deve haver um ser necessário. Antítese – nem no
universo, nem fora dele, deve haver um ser necessário.
– Estas são, prosseguiu o mestre, as quatro antinomias apresentadas por Kant. Como
vocês podem ver, é possível emitir-se teses contraditórias, igualmente válidas para a razão pura,
o que é absurdo. Algum erro ou falha deve existir, e Kant o denuncia como sendo o seguinte: na
primeira e na segunda antinomias, o erro é matemático, visto como nelas o espaço e o tempo
foram tomados como coisas em si mesmas, em vez de tomá-los como formas da nossa
capacidade ou faculdade de conhecer, aplicadas aos fenômenos. Pois é claro que se tomarmos o
espaço e o tempo como coisas em si mesmas, havemos de concluir que o espaço e o tempo, ou
têm ou não têm um começo e um fim. Logo, qualquer das soluções dadas às duas primeiras
antinomias são falsas uma vez que tese e antítese partem dum sofisma, ou seja, de um
pressuposto contrário às leis e condições do conhecimento. Já com a terceira e quarta antinomias
se dá o contrário do ocorrido com as duas primeiras, porquanto ambas podem ser consideradas
verdadeiras. Nestas duas últimas antinomias, tanto a tese como a antítese se ajusta às leis e
condições do conhecimento, por isso que nelas se pede, como é de razão pedir, que todo o ser,
toda a realidade proceda duma causa determinante, e que esta causa provenha de outra, e assim
por diante. A falha, no entanto, está em que a tese e a antítese desta antinomia, ultrapassam o
limite de todo o conhecimento possível, visto referir-se à coisa em si mesma. Contudo,
suponhamos que exista outra via para o conhecimento, que não a racional ou científica, e por ela
se possa chegar às verdades metafísicas que são as coisas em si. Aventemos a hipótese de que
existe no campo vário e fecundo da consciência um outro modo de conhecer que nos leve às
verdades noumenais; neste caso, tanto as teses como as antíteses são compatíveis, porque,
enquanto as teses são válidas no mundo dos fenômenos, as antíteses o são no mundo dos
nôumenos.
– Mas, o senhor nos poderia esclarecer o que seja nôumenos? interrogou Licas.
– Nôumeno se opõe, em princípio, a fenômeno. Ora, o fenômeno está jungido ao tempo
que mede o tornar-se, o devir heracliteano; o fenômeno é transformismo no tempo. Já o nôumeno
é a coisa em si, o ser dos realistas, a idéia de Platão, com suas características de perfeição,
imutabilidade, unidade, eternidade. Portanto, o nôumeno de Kant equivale ao ser parmenídico, a
coisa em si dos realistas, à idéia platônica, que é o objeto da metafísica. Seriam os nôumenos
essências absolutamente incognoscíveis que hão de situar-se para além dos fenômenos,
consistindo, portanto, no limite do conhecimento racional. A ruptura entre o fenômeno e o
noumenal, entre a coisa para o conhecimento e a coisa em si, entre o ser e o vir-a-ser, é ponto
fundamental da doutrina de Kant. O evolucionismo dialético que iremos ver na terceira jornada
filosófica, nega possa haver coisas em si separadas das coisas para nós, pois a história o
demonstra que a zona do mistério noumenal (coisa em si) pouco a pouco se vai transformando
no conhecimento, ou coisa para nós. Quer dizer, meu prezado Licas, que se for achada a via
supra-racional que nos conduza às verdades metafísicas, as teses das duas últimas antinomias
ficam válidas em relação a essa nova atividade cognoscitiva, a supra-racional, enquanto que as
antíteses serão válidas em relação aos conhecimentos formais físico-matemáticos. E como é
impossível duas verdades em contradição, igualmente válidas, ou estará certa a asserção partindo
62
das ciências físico-matemáticas, ou estará certa a outra conclusão, a da super-razão que dá apoio
à metafísica. É isto que Kant quis dizer no seu jargão, na sua linguagem obstrusa.
E depois de o mestre quedar pensativo, por algum tempo, prosseguiu, com os olhos postos
no livro de texto de Morente:
– Outro ponto atacado por Kant em sua “Crítica da Razão Pura”, é o que se refere à
existência de Deus. Nas provas tradicionais que se têm dado da existência de Deus, Kant acha
também erros de raciocínio que iludem a razão e as condições de toda objetividade e de todo
conhecimento possível. Os argumentos tradicionais, pró existência de Deus se podem agrupar
triplicimente, assim: argumento ontológico, argumento cosmológico e argumento físico-
teleológico. O argumento teológico é o mesmo que Descartes formula em suas “Meditações
Metafísicas”, provavelmente tirados de Santo Anselmo. Eu tenho, diz Descartes, a idéia de um
ser, de um ente perfeito, que deve existir, porque, se não existira, não seria perfeito, pois a
perfeição faz parte da existência, e negada a existência, cessa a perfeição. A perfeição não pode
ser atributo do nada; tem que ser de algo; logo, esse algo existe. E Kant começa por discutir este
argumento, demonstrando que existência é uma categoria das do conhecimento possível. Existir
ou existência é uma das categorias formais, tal como espaço, tempo, causalidade, substância que
nós aplicamos às percepções sensíveis, e só a elas. Se nossas percepções sensíveis não
proviessem de coisas que existem, então teria razão Hume ao dizer que nossas percepções
sensíveis são nossas somente, não correspondendo a nada fora de nós. Mas justamente o ato de
aplicarmos as categorias às percepções sensíveis, significa colocação ou posição dos objetos a
conhecer. Aqui está em que sentido devemos tomar a categoria de existência. De maneira que
para afirmar que algo existe, não basta ter idéia desse algo, mas é preciso que esse algo se nos
apresente à percepção sensível. Ora, a idéia de Deus não acha correspondência com nossas
percepções sensíveis, donde vem que não podemos fundamentar a existência de alguma coisa só
na sua idéia. O que podemos afirmar é isto: tenho a idéia de que um ser perfeito existe; esta
existência do ente perfeito fica só na minha idéia, sem passo para a existência real. A existência
autêntica, diz Kant, é aquela que “diferencia cem táleres realmente existentes de cem “táleres
ideais” que não podem ser achados no meu bolso”. Deus é como os cem “táleres ideais”, que não
se pode dizer que existe, somente com base na idéia. E mais isto, como muito bem o expõe
Huberto Rohden: “Existir, como a própria palavra diz (ex-sistere = estar por fora) é próprio dos
fenômenos concretos e individuais, que foram “postos para fora” e “estão por fora” (existem) do
grande sujeito universal, isto é, nasceram dele como outras tantas manifestações, que, mesmo
depois de manifestos, continuam a inerir nesse mesmo sujeito produtor e sustentador” 69. Ora, se
existir é ser criado, é ter sido posto fora, é ser algo situado no tempo e no espaço, Deus não
existe, visto não poder criar-se a si mesmo, pôr-se a si mesmo fora de si, ser temporal e espacial,
enfim, ter origem e, conseqüentemente, fim no tempo. Logo, dizer que Deus existe é considerá-
lo como coisa, como fenômeno, sujeito às contingências do espaço-tempo. Deus não existe, mas,
é; possui essência, porém, não existência, não sendo, por conseguinte, objeto das experiências
sensíveis. Deus é um objeto ideal, como os tais cem “táleres ideais” de que fala Kant.
– O argumento cosmológico, continuou o pensador, consiste em ir encadeando as séries
de causas até chegar à causa incausada que é Deus. Acontece que a categoria de causalidade
admite uma cadeia infinita de causa e efeito, mas não admite interrupção. Uma causa incausada
não é causa; e se é causa, não pode ser, pela razão pura, incausada. Como é que se pode, sem se
sair da razão, justificar a interrupção da cadeia?
– O terceiro argumento, o físico-teleológico, é o surradíssimo da finalidade. Este
arrazoado funda-se na harmonia e entrosamento das coisas naturais, no maravilhoso enlaçamento
com que tudo funciona, cada coisa alcançando seu fim, às vezes, pelo esforço alheio, o qual,
também, não quer outra coisa além de realizar-se. Cada órgão, cada peça anatômica, cada coisa é
adequada a seu fim. E assim como é impossível existir uma máquina sem o seu construtor,
também não se pode explicar como se engrenam as coisas no mundo, senão supondo-se uma
inteligência criadora que tenha pretraçado a essas formas seus comportamentos tão
maravilhosamente entrosados para a consecução de seus fins. Kant contra-argumenta declarando
que nada se pode afirmar, a esse respeito, além de que as coisas, de fato, são adequadas a seus
69 Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 192
63
fins. Sem ultrapassarmos os limites da experiência não podemos inferir que haja alhures um ser
Criador, só porque as coisas, na natureza, se adequam a seus fins. E contra todos os místicos de
todos os tempos e de todos os lugares que sempre afirmaram não ser possível haver obra sem
autor, podemos retrucar, em sã razão, que também não pode haver autor que não seja obra de
outro autor. Se, pois, a cadeia racional se estabelece com dizer que o relógio foi feito pelo
artífice, este, pela natureza, esta, por Deus, a razão exige, imediatamente, um autor para o
próprio Deus, e um autor para o autor, e assim por diante indefinidamente. Por isso, quando
dizemos que "Deus fez o mundo” surge a pergunta irrespondível da criança: “E quem fez
Deus?”70. É assim, e não de outro modo, que funciona a razão... até a das crianças, e é por isso
que elas, quando ainda não viciadas no ilogismo, costumam desconcertar os adultos com tais
perguntas perfeitamente racionais.
– E há mais isto, sentenciou o mestre: a ciência tem avançado muito nestes últimos
tempos pondo em xeque a idéia de finalidade. Tenho, aqui à mão, “O Livro da Natureza” de
Fritz Kahn, onde se lê, na parte referente ao mimetismo, que, ao observarmos a natureza,
deparamos com uma porção de disparates praticados por ela; todavia, só vou citar um deles, que
é o dos insetos-folhas. É evidente, aqui, a finalidade de iludir, evitando, por este modo, os
inimigos naturais. Seria o caso até de se escrever uma ode à sabedoria do Criador, por realizar tal
feito. “Um belo dia, porém, a ciência fez explodir a bomba, na casa aprazível do “saber
admitido”; a folha animada é mais antiga do que a folha imitada”71. Naturalmente a infinidade de
formas das folhas não tem nenhuma finalidade; seria absurdo procurá-la” 72. A evolução, por
exemplo, se faz por meio das mutações, sobre as quais, depois, se opera a seleção darwiniana.
No entanto, “as mutações não têm sentido; elas são produtos do acaso”73. E aqui na pág. 238,
apresentando uma ilustração do mundo calidoscópico dos insetos, exclama Fritz Kahn: “Que
desorganização inextricável! Eis exatamente o que essa ilustração visa pôr diante dos olhos, em
contraste deliberado com a sistematização dos compêndios e as vitrinas dos colecionadores: não
há sistematização. O mundo dos insetos é a concretização da desorganização grandiosa,
característica da natureza, o desprezo objetivado de todo o pedantismo do colecionador e
selecionador”74. “Os homens do século passado consideravam a natureza uma técnica, o que ela
não é absolutamente. Se havemos de fazer comparação, digamos: a natureza é uma artista. Não é
uma técnica que visa uma finalidade, à construção de mecanismos, tanto quanto possível
eficientes; é uma artista que cria pelo mero prazer de criar: a arte pela arte. A natureza compõe
como Mozart, porque nela há música.”75. Portanto, “libertemo-nos dos conceitos errôneos do
século XIX; dizia-se então que a natureza é metódica e trabalha com objetivos. Diante de toda
descoberta de fenômeno natural, desistamos de lhe investigarmos o sentido; etc.” 76. “Elevemo-
nos da mentalidade mesquinha e indigna de querer explicar tudo, de achar atrás de tudo uma
finalidade, como pretendemos na qualidade de filhos e netos do prático e prosaico século XIX”77.
E fechando, com estrépito, o livro que tinha nas mãos, prosseguiu o filósofo:
– Estas, meus caros, são as observações que podemos fazer da natureza, e sem ultrapassar
estes limites, não podemos concluir que haja um criador destas formas. Assim Kant procura
demonstrar que o pecado original da metafísica consiste em ultrapassar os limites da experiência,
em aplicar as categorias àquilo que não é objeto de percepção sensível, em tomarmos como
objetos para conhecimento aquilo que não são objetos de conhecimento como sejam as coisas
em si. A metafísica é pretensiosa em querer conhecer o noumenal que, por sua própria condição,
é incognoscível; por isso a metafísica é uma disciplina impossível.
E meditando algum tempo sobre que mais havia de dizer, prosseguiu:
– Eis aí, meus amigos, exposta a “Crítica da Razão Pura” de Kant, pela qual este pensador
se propõe a demonstrar a impossibilidade da metafísica, e a de se chegar à idéia de Deus pela
70 Will Durant, História da Filosofia, 352
71 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 272
72 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 86
73 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, I, 353
74 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 238
75 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 55 e 56
76 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 41
77 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 274
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razão pura. Insurge-se ele contra o nôumeno, a coisa em si, a idéia, porque transcende da
experiência. Todavia, “quandoque bonus dormitat Homerus”; quer dizer: até o bom Homero, às
vezes, toscaneja; assim: mesmo nas obras de gênios há cochilos. É assim que o próprio Kant
parte de uma idéia oculta, e não manifesta, para erigir sobre ela o seu sistema. Para ele o homem
surgiu no cenário da vida como produto acabado, e assim como ocorre com todos os demais
órgãos, a razão esteve pronta para funcionar desde o início, com suas intuições a priori de
espaço, de tempo e dos juízos da lógica formal, da qual se derivam as categorias que, por isto,
são conceitos puros. Se bem que Kant fale “da possibilidade de os macacos virarem homens” 78,
não persistiu nessa idéia, porque ela o faria remontar, inevitavelmente, ao caos primevo, à fase
acósmica do pré-universo. Para não vir dar consigo por aqui, preferiu Kant admitir a idéia
teológica de que Deus fizera o homem perfeito. E daí? Daí o mecanismo da razão esteve pronto
para funcionar desde o início, e por isso nela o Criador gravou as intuições e conceitos puros
para posteriores aplicações às coisas, tornando-as, deste modo, inteligíveis. E ele despreza a
idéia, porque não tem base na experiência; no entanto, parte de uma idéia não demonstrada para
a elaboração do seu sistema, e por isso, todo ele respira e vive dessa idéia, donde vem que toda
fala de Kant supõe ou subpõe a idéia do homem criado como coisa acabada e perfeita. Ocorre
com ele o mesmo que com Espinoza que afirmou: “Nós sentimos e experimentamos que somos
eternos”. Quer dizer que por baixo daquela mole de teoremas que formam a sua ética geométrica,
estava viva e palpitante a idéia da eternidade do espírito humano. Kant, todavia, (em sua “Crítica
da Razão Pura”), não se trai, como Espinoza, porque tinha em mente revelar-se todo, inteiro, na
sua “Crítica da Razão Prática”.
E feita uma pausa, prosseguiu o mestre:
– Hume dizia: nada existe na inteligência que não tenha passado pelos sentidos; a isto
Leibniz acrescenta: exceto a própria inteligência. E Kant aceita isto. E no que Kant se baseou
para o aceitar? Baseou-se ele simplesmente na idéia não demonstrada, de que o homem foi
criado tal como se apresenta, e não, evoluído das etapas anteriores. A verdade, porém, é que o
homem não surgiu para a vida como coisa acabada, e antes, pelo contrário, ele é produto da
evolução. Isto sim é que é fato inconteste, e não pura idéia. Ora, tendo o homem surgido por
evolução, tudo o que nele há, teve sua gênese nas etapas anteriores, inclusive as intuições de
espaço e de tempo, e os conceitos categóricos. Logo, nada existe na inteligência que não se
origine da experiência, visto como ela própria se formou aos embates da vida que trabalha ainda
em formá-la desde há milhões de anos. E quando falo de experiências não me refiro somente às
dos sentidos exteriores, nem às dos interiores, senão que também me refiro às experiências
paranormais nas quais se incluem as intuições intelecto-emotivas mais altas que são as idéias, os
nôumenos. É por aqui que Kant é refutável. Partiu ele duma idéia para suas intuições e conceitos
a priori, terminando pela comprovação experimental. Nós, pela recíproca, seguindo o caminho
normal da evolução, podemos partir da experiência, induzir as categorias e intuições a posteriori,
culminando, finalmente, com a idéia. Se as experiências são o ponto de chegada para Kant, e elas
dão validade aos conceitos puros e às intuições a priori, por que não partir dos fatos da ciência e
da evolução, e chegar aos conceitos, intuições e idéias a posteriori? Assim, tanto o idealismo
kantiano, como o realismo aristotélico estão certos. Kant nos dá conta de como seria o mundo
anterior à queda, onde as coisas e seres saíram perfeitos das mãos do Criador; depois da queda
até o caos mais extremo, teve início a evolução que traz tudo de novo de volta para Deus, sendo
tudo, da mente humana, construído a posteriori. Quem pôde abarcar com um lanço de olhar estas
duas posições foi Platão, e por isso é ele o filósofo do futuro a ser desenvolvido na terceira
jornada filosófica. Se, pois, o realismo aristotélico foi a tese, e o idealismo kantiano foi a
antítese, Platão será a síntese. Historicamente ocorreu isto de extraordinário: a síntese de Platão
cindiu-se na sua tese e na sua antítese. Eu disse “extraordinário”, porque o ordinário, para nós,
em fase evolutiva, é construir a síntese da tese e da antítese. Mas na fase involutiva ou de análise,
em que o todo se decompõe nas partes, primeiro vem a síntese, que se decompõe na sua tese e na
sua antítese. Pois Platão é a síntese, Aristóteles, a tese, e Kant, a antítese. Nisto se resumiu a
grande obra de Kant; ele deu remate à antítese começada por Descartes. “Até o grande
materialista Helvecio escreveu, paradoxalmente: “os homens, se me atrevo a dizer assim, são os
78 Will Durant, História da Filosofia, 344
65
criadores da matéria”. A filosofia não mais será tão ingênua como em tempos mais antigos e
simples; será sempre diversa e mais profunda – porque Kant existiu”79. “Foi nesses fagueiros
dias da metafísica alemã que Jean Paul Richte escreveu “Deus deu aos franceses o domínio da
terra; aos ingleses, o do mar; aos alemães, o do ar ”80. E “Schopenhauer declara ser a Crítica “a
obra mais importante da literatura alemã” e considera criança o homem que ainda não
compreende Kant”81. Todavia Kant é apenas a antítese da síntese achada por Platão que, por isto,
é o filósofo do futuro.
– Acho, concluiu o mestre, que podemos parar por aqui, por hoje. E dizendo isto,
começou a pôr em ordem os papéis e livros de sua mesa, ao tempo em que, na sala, se fez ouvir o
vozerio de todos.
Capítulo IV
No outro dia, tão logo caiu a noite, os estudiosos começaram a aparecer. Árago passara a
tarde estudando um assunto em sua biblioteca. Quando todos estavam reunidos, o mestre pôs de
lado o que estava lendo e principiou a falar:
– Ainda seguiremos, neste estudo, o texto de M. Garcia Morente, como já o fizemos
ontem, por ser desnecessário refazer um trabalho executado com talento e mestria superiores ao
que faríamos, se nos propuséssemos a o tentar.
– Vimos, então, através do estudo da “Crítica da Razão Pura”, ser impossível considerar
a metafísica como ciência, visto que ela, pretendendo conhecer as coisas em si, se põe além de
todo o conhecimento científico. O problema metafísico posto pelos gregos de o que existe,
recebeu duas respostas diametralmente opostas, no decorrer da história: a resposta realista e a
idealista. Os filósofos gregos, tentando responder essa pergunta, conduziram o pensamento à
mais perfeita forma de realismo que culminou com Aristóteles. Depois Descartes coloca o
problema em nova forma, e dá uma resposta totalmente diversa e que culmina em Kant com a
máxima explicitação. A resposta realista à pergunta de o que existe, é a mais pronta, natural e
ingênua que há. O que existe? As coisas existem, e eu, entre elas. Mas esta resposta está
assentada sobre os dados fornecidos pela polêmica entre Heráclito e Parmênides. Para
Aristóteles, porém, as coisas e o mundo que as circunda tem existência real. A essas existências
reais constituídas pelo mundo e pelas coisas dele, Aristóteles chamou substância. A substância é
aquilo de que as coisas consistem, e este consistir tem existência temporal, isto é, existe no
tempo. Além de as coisas terem substância, terem existência, possuem também essência. A
essência é aquilo que as coisas são em si mesmas. Esta carne é de boi, esta, de peixe, esta de
frango. A substância é carne para os três; as essências porém, diferenciam a substância em boi,
peixe e frango. As essências fazem das coisas aquilo que elas são. Fora estas categorias ainda há
os acidentes que restringem as essências, individualizando-as dentro do quadro geral. A par
destas coisas Aristóteles faz o estudo do conhecimento.
– O conhecimento, para Aristóteles, prosseguiu o mestre, deriva das coisas. As coisas se
nos oferecem aos sentidos pelas suas formas, pelas suas imagens, pelas suas essências. Estas
essências, que são individuais, se organizam em nossa mente em conceitos gerais. Uma coisa é o
conceito geral e abstrato de cavalo; outra é o alazão, aí, do Bento Caturí, que arrastou a rede na
praia, faz... oito dias. Saber o que é uma coisa, significa procurar o conceito dela em nossos
arquivos mentais. Entre todas as coisas que enchem o mundo está o eu que conhece, só que este
eu possui uma substância que Aristóteles chama racional. Um dos caracteres essenciais desta
substância racional, ou eu que conhece, está a faculdade de generalização, ou seja, da formação
de conceitos partindo das imagens das coisas refletidas em nosso espírito. Então, conhecer é
generalizar os conceitos, partindo das imagens. Tal é a atitude dos realistas que têm o expoente
máximo em Aristóteles.
E depois duma pausa para a consulta do livro de texto de Morente, continuou o mestre:
– Já para os idealistas o que existem são os pensamentos, e não as coisas, pois é só do
pensamento que podemos ter uma intuição imediata. Ora, o pensamento é como o equador entre
dois pólos que se defrontam, participando a um tempo do sujeito que pensa, e do objeto que é
pensado pelo sujeito. E assim, o pensamento é uma correlação entre o sujeito e o objeto. Sendo o
pensamento essencialmente uma correlação, um laço, que prende um ao outro sujeito e objeto,
fica fora dele a coisa em si mesma. Não há, pois, o objeto em si mesmo, mas somente o objeto
para nós. Não há o ser em si, porém, somente, o ser para conhecimento. Não há no pensamento
coisa nenhuma que possa ser tida como o em si mesma, porque todo ele não passa de correlação
entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido. A partir de Descartes, dois séculos foram
precisos para que esta posição se delineasse com clareza. Somente em Kant se viu que esta
definição se fez claramente. Em Descartes, nos filósofos ingleses, em Leibniz, durante o século
XVII e parte do XVIII, mantém-se ainda vivo um resquício de realismo, ou seja a idéia da coisa
em si, realmente existente fora de todo pensamento, independente de qualquer relação. Nisto se
cifra a dificuldade que todos sentimos ao ler Kant, principalmente se estamos imbuídos de idéias
realistas. Kant acha que o pensamento é uma correlação entre o sujeito pensante e o objeto
pensado, de sorte que o objeto só é objeto enquanto pensado; primeiro, logo, está o pensamento
do objeto, para depois ser considerado o objeto do pensamento. Entretanto a atitude realista é
oposta, polarmente, a essa do idealismo, e para o realista o objeto pensado, primeiro é objeto e só
depois pensado. E como nos primeiros leitores de Kant havia, pelo menos, um resto de realismo,
difícil se tornava a sua compreensão. “Entender uma teoria é habituar-se a ela”, disse o famoso
físico nuclear Niels Bohr. Precisamos nos habituar a este modo inusitado de pensar qual seja o de
admitir que a atividade de pensar é que cria o objeto pensado. Não é como querem os realistas,
que o objeto seja, exista, e por isto seja pensado; pelo contrário, o objeto é precisamente por ser
pensado, e se não fosse pensado não era nem existiria. Pensá-lo, pois, é objetivá-lo, é pô-lo para
o conhecimento, e conhecê-lo. Esta mesma relação entre o pensamento e o objeto existe também
entre o pensamento e o sujeito; a primazia não está no sujeito, mas, no pensamento. Deste modo
o sujeito pensante não é em primeiro lugar sujeito, para depois ser pensante; ele é pensante para
depois ser o sujeito, e se não pensasse não seria o sujeito, donde vem que só é sujeito quando
pensa e porque pensa. Deste modo, não é que o sujeito seja uma coisa em si, como o entendia
Descartes, e que desta coisa que pensa emanassem os pensamentos como meros atributos; o
próprio sujeito, para Kant, é produto do pensamento. E com isto fica totalmente eliminado o
último resíduo de realismo que existia nos filósofos pré-kantianos.
E dando, o mestre, por concluída esta parte, procurou no livro o que vinha a seguir.
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Manteve depois, por certo tempo, o polegar esquerdo sob o queixo e o indicador sobre o lábio
inferior, que esta era a costumeira postura sua de meditação. Por fim, mudando de atitude,
prosseguiu:
– Mas, ao dar remate ao pensamento idealista, Kant deixa aberta a porta a ulteriores
desenvolvimentos. Introduz ele, no sistema os germes que irão desenvolver-se nas filosofias que
o sucedem. Depois de eliminar a coisa em si, no sentido em que os realistas a punham, Kant dá
novo sentido ao em si, dizendo que ele é um anseio de absoluto, de incondicionalidade. A razão
aspira superar-se a si mesma, a sair dos seus limites, e atingir a incondicionalidade. É por isso
que ela não se contenta com um ser para conhecimento, mas quer atingir o ser em si, absoluto,
incondicionado. Mas sendo o ato de conhecer uma correlação entre o pensamento e o sujeito, e o
pensamento e o objeto, todo o conhecimento racional está irremediavelmente jungido a esse
relativismo. O ato de conhecer se faz pelo estabelecimento de uma relação; porém esta relação
decorre de uma relação antescedente, e suscita uma conseqüente. Quer dizer que uma relação,
por causa de ser relação, levanta novos problemas que se resolvem mediante outras relações. As
relações se enlaçam umas às outras como causas e efeitos, sendo que estes efeitos são causas de
outros efeitos formando uma linha de continuidade indefinida, cujo começo e fim se perdem no
incondicionado. A razão se acha suspensa e mantida numa cadeia de determinações, afligindo o
homem que traz no seu peito a ânsia do absoluto; neste afã de conhecer, o homem não descansa,
e está sempre no encalço de um objeto pensado, mas que seja um objeto que, logo após
conhecido, não lhe traga novos problemas, e antes tenha em si e consigo a razão total do seu
próprio ser; que sua essência seja definitiva, um “actus purus” incondicionado, perfeito, não
sujeito a nada e que sujeite tudo. Este é o maior anseio da razão que se não sente saciada com a
ciência positiva e relativa, que apenas nos proporciona respostas fragmentárias e parciais.
Queremos o absoluto, a coisa em si, que os realistas ingenuamente supuseram apreender por
meio de conceitos aplicados à substância.
– Todavia, prosseguiu o filósofo, essa ânsia de absoluto, conquanto não possa ser
satisfeita pelo conhecimento racional, dado que este é relativo, constitui, apesar disso, uma
necessidade imperiosa do pensamento. Então, como o pensamento aspira o absoluto, o
incondicionado, este se torna o ideal do conhecimento, o motivo dele, a bússola que o norteia, o
motor que o move, as esporas que o forçam a ir sempre para adiante. Todavia, esse ideal não
pode ser atingido pelo conhecimento, porque, girando o pensamento sobre si mesmo, cada vez
que o homem o amplia, e cuida por isso, que agora vai atingir o absoluto, novos problemas
surgem, exigindo novas soluções. Contudo, a estrela do ideal está lá adiante, suspensa no espaço,
atraindo e guiando o viajor do saber. Esta concepção é sumamente alvissareira, pois dá rumo à
filosofia e finalidade às ciências; já, agora, as ciências não são um caos de fatos isolados e
descosidos, mas, pelo contrário, todas se tornam num todo orgânico, onde os fatos se coordenam,
completando-se uns aos outros. Então a razão busca uma coisa que não pode alcançar, e sabe não
poder alcançá-la, tem plena consciência disto..., mas continua querendo o seu fim último que não
está nela, e sim fora dela – o incondicionado, o absoluto. Eis que a razão se torna plenamente
consciente de si, conhecendo integralmente as suas possibilidades e limitações.
E tendo o pensador meditado um pouco, continuou:
– Vamos por outro caminho: há um certo número de condições que regem a atividade do
conhecer as coisas e os fenômenos; ora, as coisas em si, com serem absolutas, incondicionadas,
não se acham debaixo destas condições que tornam possível o conhecimento; logo, as coisas em
si não podem ser conhecidas. Porém, a metafísica pretende conhecer as coisas em si; então a
metafísica é impossível como ciência, como conhecimento teorético, especulativo. Contudo, o
ideal de todo conhecimento é a metafísica, visto que ela promete a posse das coisas em si, do
incondicionado, do absoluto. Pela razão pura não se pode chegar a ela, como já vimos. Então é
que surge esta pergunta aturdidora: haverá outras vias para a metafísica, que não a do
conhecimento?
E depois de o filósofo espraiar seu percuciente olhar pelos presentes que se mantiveram
em silêncio, prosseguiu:
– Se existirem esses caminhos, uma coisa fica assentada de modo definitivo e
inexpugnável: a razão pura, a razão teorética, uma vez que se mostrou impotente para construir a
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metafísica, pela mesma razão não poderá destruí-la, se ela for armada por outros meios e
condições que não as da razão. E Kant acha que existem caminhos que nos conduzem aos
objetivos metafísicos. O homem não é apenas u’a máquina de pensar e conhecer; ele não é
apenas uma atividade de situar-se frente às coisas para conhecê-las, ele como sujeito, e elas,
como objetos. O homem vive, trabalha, diverte-se, ama, busca prazeres e alegrias, fugindo
sempre da tristeza e da dor; ele possui interesses, sentimentos, possui fé, cria instituições morais,
políticas, religiosas, extasia-se diante do belo, em suma, o homem não é apenas uma criatura
racional. Antes do homem está a vida, e esta agiu antes de conhecer; é mais provável que nos
fundamentos da vida esteja o sentimento que não a inteligência. Os seres inferioríssimos da
escala da vida não têm pensamento, e, contudo, sentem. Foi por isto que ao “princípio diretor de
Descartes – Penso, logo, existo! – Gassendi replicou com esta frase de experiência do naturalista:
O pensamento é mentiroso; só os sentimentos não mentem!”82. O sentir, portanto, é mais antigo
que o pensar, sendo até que o pensamento nasceu do sentir, e ainda, agora, o pensar se subordina
ao sentir, e não, vice-versa. Esta é a causa por que arranjamos razões para provar o que sentimos
ser verdade, como ocorreu com Espinosa que fez sua ética geométrica para demonstrar um
sentimento vivo e palpitante de imortalidade da alma. Disse ele: “Nós sentimos e
experimentamos que somos eternos”. Também Kant “sentia” que Deus criara o homem como
criatura acabada, perfeita, desde o início, donde lhe vinha esta decorrência imediata: o
mecanismo do conhecimento, necessariamente, tinha de existir a priori. Quer dizer que as
intuições puras de espaço e de tempo, assim como os juízos da lógica formal, donde se
deduziram as categorias que, por isto, são conceitos puros, tudo isso supõe uma idéia: Deus criou
o homem perfeito. Esta é a idéia basilar de Kant, não demonstrada nem referida por ele.
Quaisquer que sejam os sistemas supõem uma idéia que surge como um sentimento secreto
intuitivo, consistindo isto naquelas “razões do coração” que Pascal dizia que “a razão não
alcança”. Pensamos, pois, porque sentimos, e não é que sentimos porque pensamos. É deste jeito
que o sentimento se acha imanente em todo pensamento, está suposto nele como um fundo sobre
que ele se desenha, e isto desde a origem mais remota, até o telefinalismo mais alto e distante.
Não é, pois, a razão que governa o mundo, mas o sentimento. De modo mais geral e mais amplo
possível, “para a maioria das criaturas, há só os dois estímulos mencionados por Schiller: “fome
e amor”83. E agora isto: “o amor não é privilégio dos “superiores”. É tão antigo como a vida.
Quando emergiram das trevas do algonquiano os primeiros seres – vírus e fogócitos – o amor
também já estava presente”84. No começo, durante e no fim da evolução está o sentimento
acionando e norteando tudo, como único motor da vida. O sentimento é super-racional; “o amor
é a mais alta racionalidade”85 .
E após uma pausa, prosseguiu:
– Esse sentimento que temos da verdade, essa idéia incondicionada sobre que assentamos
nosso edifício ideológico, é o que Bergson chama postulado primário, ou “dado imediato da
consciência”; é aquilo “que a consciência interna atinge diretamente, sem nenhum intermediário
externo. O “dado imediato da consciência” não é derivado de algo anterior, não é veiculado por
outra faculdade; é meridianamente claro e evidente em si mesmo; é o alicerce original, virgem,
não lançado pelo cognoscente, e sobre o qual o cognoscente ergue o seu edifício cognoscitivo” 86.
Este “dado imediato da consciência ” não é pensamento, é idéia; e nos vem como uma certeza
axiomática que não entendemos mas sentimos. Por isso nos fundamentos dos próprios
pensamentos está a idéia-sentida em vez de idéia-cógnita. Por tudo isto, podemos dizer à moda
de Descartes: Sinto, logo, existo.
E descansando o olhar nas luzes distantes que entravam pela janela, continuou o mestre a
discorrer:
– Assentado que o sentimento é anterior à razão e raiz desta, estando, por esta causa,
presente, tanto na sub como na super-consciência, isto é, na pré como na pós razão, é aqui, e não
em qualquer outra parte, que se há de colocar os alicerces da metafísica, como muito bem o
entendeu Kant; e ele a assenta no que ele chama “consciência moral”. Tendo Deus feito o
homem (eis, de novo a idéia incondicionada, base do sistema kantiano); tendo Deus feito o
homem, pôs nele, a par da razão pura, a consciência moral, que se constitui de um certo número
de princípios pelos quais os homens regem suas vidas. Não só estes princípios norteiam a
conduta, como possibilitam ainda a formulação de juízos morais. E acha Kant que esta
consciência moral é um fato indiscutível, tão real, tão certo, como os fatos do conhecimento.
Para ele os princípios da consciência moral são tão claros e evidentes como os são os princípios
do conhecimento, os princípios da lógica formal. Os juízos morais são tão firmes e sólidos, como
os juízos lógicos ou formais puros. Pois é sobre esta consciência moral, no entender de Kant, que
pode ser construída a metafísica. E tal como fez Aristóteles, Kant dá o nome de “razão prática”
ao conjunto de princípios da consciência moral. Ao dar este nome de razão ao que não é de
razão, Kant põe em evidência esse algo que, não sendo a razão, se assemelha a ela. Esses
princípios também são racionais e evidentes, podendo nós, partindo deles, fazer julgamentos
legitimamente válidos para a razão. Ora, se são legitimamente válidos para a razão, podemos
chamá-los de razão..., não teorética, mas, prática. Não se trata, vê-se claramente, de razão
aplicada a descobrir a essência das coisas, de razão especulativa, porém, de razão aplicada a
guiar a conduta, a prática dos preceitos morais. E “Deus, que é a eterna Razão (o Logos), é
também o Amor infinito – e o homem que atingiu o ápice da racionalidade culminou no vértice
do amor”87. Por isso “o amor é a mais alta racionalidade”88. E assim como Kant, em sua “Crítica
da Razão Pura”, parte do fato do conhecimento para a realidade histórica, objetiva, do
conhecimento, igualmente, começa ele seu estudo da razão prática pelo fato da consciência
moral.
E interrompendo o mestre o seu discurso para consultar o livro, pôs-se de pé e a andar
para desentorpecer as pernas. E ao tempo em que andava, continuou falando:
– Considerando que podemos chegar à metafísica, ao incondicionado, partindo da
consciência moral, ou do sentimento, segue-se, naturalmente, que a moral tem primazia sobre a
razão. Já vimos que a posse do absoluto é a suprema aspiração da razão; é o seu motivo, o seu
alento. A razão aspira o incondicionado, porque este cessaria de levantar-lhe novos problemas, e,
com isto, ela entraria em repouso, em descanso, para sempre. Todavia, conquanto esta aspiração
seja inatingível para a razão, e ela o sabe, mesmo assim este ideal constitui sua senda do
progresso. Mas isto que move a razão, que a força a progredir, que a conduz para o seu fim, é a
base natural sobre que se assenta a consciência moral. A consciência moral é um fato; porém,
não o seria, se não postulasse o absoluto, se não postulasse a liberdade, a imortalidade da alma, a
essência de Deus que é a absoluta Verdade. Esta primazia da razão prática sobre a pura é a
segunda característica do sistema kantiano, e que torna Kant diferente de seus predecessores,
sendo, precisamente, dessas características que partem seus continuadores. As filosofias
sucessoras da de Kant partem desse absoluto que, para Kant, representa o ponto de chegada, ou
seja: o ideal do conhecimento, de uma parte, e a consciência moral existente, a priori, da outra. E
como são dois os pontos de chegada para Kant, dois serão os pontos de partida para os filósofos
que o sucedem. As duas filosofias sucessoras da de Kant, conquanto partam do absoluto, seguem
por dois ramos diferentes. Portanto, é esse absoluto e incondicionado que dá sentido e validade à
progressão do conhecimento, que tem por alvo uma metafísica ideal, em contraposição à antiga
ou real. E não só isto, senão que esse mesmo absoluto fundamenta a validez dos juízos morais.
Cumpre-nos, agora, ver o que há de comum entre os três grandes filósofos pós-kantianos que
são: Fichte, Schelling e Hegel.
– Todos estes três filósofos, continuou Árago, partem do ser absoluto. Respondem eles à
pergunta metafísica fundamental de o que existe?, afirmando, categoricamente: o absoluto, o
incondicionado é o que existe; este é o ponto de partida. Este ser absoluto que é de natureza
espiritual, manifesta-se na criação, expressa-se no tempo, abjetiviza-se no espaço, cria o
movimento, o vir-a-ser, o devir. Então, esse ser absoluto que é fora do tempo, na eternidade, se
dá a si mesmo nas coisas que existem no tempo, e tomam lugar no espaço. Daqui vem que o ser
87Huberto Rohden, Filosofia Universal, 2, 177
88Huberto Rohden, Filosofia Universal, 2, 177
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absoluto que está fora do tempo e do espaço como algo espiritual, explicita-se nas limitações do
espaço-tempo, constituindo-lhes a essência, que, por isso mesmo, é única para todas as coisas. E
isto já parece que sabe a Espinosa. O ser absoluto e eterno se relativiza nas coisas e se finitiza no
tempo. E tudo isto fica sendo no seio do absoluto, visto que, sendo este infinito e eterno, nada lhe
pode estar por fora. Por conseguinte a essência do absoluto é a mesma da das coisas, não sendo
elas feitas do nada, o que é absurdo. E aqui percebemos a coincidência das filosofias pós
kantianas com a intuição dos pensadores orientais. E assim que “Brahman não existe, mas é; ele
é a única realidade que de fato é. Existir, como a própria palavra diz (ex-sistere = estar por fora),
é próprio dos fenômenos concretos e individuais, que foram “postos para fora” e “estão por fora”
(existem) do grande sujeito universal, isto é, nasceram dele como outras tantas manifestações,
que, mesmo depois de manifestas, continuam a inerir nesse mesmo sujeito produtor e
sustentador” 89. Segue-se, logo, que Deus, o ser absoluto, “é um no ser, e muitos no agir”90. E
“Maya, o mundo dos fenômenos, serve ao mesmo tempo, dizem eles os orientais, para revelar e
velar Brahman – assim como a teia revela (manifesta) e vela (oculta) a aranha”91. Por isso, “no
princípio era o Logo (a eterna Razão pensante), e o Logo estava com Deus, e o Logo era Deus.
Tudo foi feito pelo Logo, e nada do que entrou na existência foi sem ele. E o Logo se fez
carne”...92. Vê-se, por conseguinte, que “Deus, essencialmente infinito, é existencialmente finito.
Essencialmente uno, é ele existencialmente múltiplo. Um no ser, e muitos no agir. Em nenhum
dos seus efeitos pode Deus revelar-se total e exaustivamente, o que equivaleria a criar um novo
Deus e esgotar assim suas potencialidades criadoras em um único ato criador”93. “Deus criou o
mundo do nada fenomenal – e do Todo numenal”. “Desde toda a eternidade, o mundo era
Brahman, mas no tempo se tornou Maya”94. “Perante a transcendência de Deus, o homem se
extasia num como sagrado terror e assombro, que a tremenda majestade do Eterno e Infinito
inspira. Perante a imanência de Deus, o homem sente-se como que envolto numa suave aura de
amor e delícia, inspirada pela inefável intimidade que a fusão dos dois seres provoca. Não há
religião genuína sem esses dois sentimentos, o do assombro e o do amor. Há quem tema a Deus
como algo longínquo, assombroso e terrífico – mas não o ama como alguém que seja propinquo,
terno e delicioso. Há também quem trate a Deus como de igual a igual, com insípida
camaradagem e democrática familiaridade – mas falta-lhe o senso de reverência e sacralidade, e
por isto a sua religião é banal como um mundo sem mistério e tenebrosos abismos. Para que se
possa amar alguém com deliciosa tortura e acerba delícia é necessário que haja distância e
proximidade, transcendência e imanência, mistério e conhecimento, o ilimitado além de ignotos
horizontes e o terno aquém de afetiva intimidade. A transcendência sem a imanência congela a
alma numa frialdade polar. A imanência sem a transcendência enoja a alma no tédio de uma
trivialidade insípida. A transcendência do Senhor do universo e a imanência do Pai celeste,
quando unidas na mesma alma, enchem o homem de tamanho fascínio e entusiasmo que ele vive
cada instante eternidades de inefável beatitude. Deus é como o sol - esse sol que, na estupenda
potência da sua força arremessa pelos espaços sidérios gigantescas esferas de inconcebível
velocidade – ao mesmo tempo que, na suavidade da sua bem-querença, beija silenciosamente as
assetinadas pétalas das flores e acaricia as faces duma criança dormente sem a acordar...”95.
E depondo o mestre sobre a mesa o caderno em que anotara estes pontos da obra de
Huberto Rohden, prosseguiu:
– Viram, vocês, que beleza nos dá esse insigne mestre do espírito, que é Huberto
Rohden? Não se pode saber que mais admirar nele: se o estupendo criador de coisas belas, ou se
o oráculo da verdade; ouvi-lo, é como ouvir Platão! É ele ainda o que nos diz: “o que há e tem
havido sempre são “panenteístas” (tudo-em-Deus, ou Deus-em-tudo), mas nunca houve um
“panteísta” (tudo-é-Deus, Deus-é-tudo). Panteísmo é idêntico a politeísmo, e politeísmo eqüivale
a ateísmo; pois se há tantos deuses quantos os fenômenos individuais da natureza, é claro que
89Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 192
90 Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 213
91Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 213
92Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 215
93Huberto Rohden, Filosofia Universal, 2, 63
94Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 145
95Huberto Rohden, Filosofia Universal, l, 203 e 204
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nenhum desses é Deus, porque todos são finitos; por onde se vê que logicamente, panteísmo
eqüivale a ateísmo”96.
E depois de um interregno, continuou:
– O método desses três filósofos continuadores de Kant, consiste em partir duma intuição
intelectual que declara, primeiro: o absoluto é o ser; segundo: esse ser é de natureza espiritual;
terceiro: esse absoluto se relativisa na criação, tomando existência no tempo, e corpo, e forma no
espaço; quarto: toda filosofia parte duma idéia indemonstrável, duma premissa, e essa operação
filosófica chama-se intuição intelectual, consistindo ela em apreender diretamente a essência
desse incondicionado que se acha fora do tempo, isto é, do existir, e fora do espaço, porque ser
espacial é ter corpo, é ser fenômeno, é existir. O nôumeno, o sujeito absoluto, que se objetivisou
em toda a criação possível, em todo o universo, não está jungido ao tempo, ao existir, porque,
existir, conforme a etimologia da própria palavra (ex-sistere), é ser posto na espacialidade e na
temporalidade pelo ser supremo, unicamente ao qual todas as coisas devem, não só o seu
nascimento, senão também a sua manutenção. Depois dessa apreensão da essência do absoluto,
feita pela intuição intelectual, segue-se uma operação dedutiva, analítica, para demonstrar como
esse absoluto eterno e sem tempo, se manifesta no relativo do universo, da natureza e da história.
Depois de uma pausa, o mestre consultou o seu livro de textos e rematou:
– Como vêem, esses filósofos são sistematicamente construtivos. Uma vez obtida a
intuição intelectual que é a premissa do sistema, as deduções seguem-se, naturalmente, como
pura explicitação do que se contém implícito na premissa. A esta operação dão estes filósofos o
nome de dedução transcendental, e ela nos mostra toda a série de trâmites e conexões com que a
idéia primeira, o absoluto e incondicionado se explicita no tempo e no espaço. Estes caracteres
são comuns aos três filósofos em estudo, os quais seguem a transformação que Kant deu à
metafísica. Ora, a metafísica, desde seu início, se ocupa daquilo que se chama o em si ou
incondicionado. Pois pelos caminhos da ciência, da razão pura este em si é inatingível; todavia,
eis a transformação kantiana: este em si, conquanto inatingível, é a idéia reguladora de todo
conhecimento discursivo constituído de todas as ciências empíricas. Essa idéia reguladora está
situada no pólo oposto ao dos objetos do conhecimento positivo ou concreto. Assim, se estes
conhecimentos representam o relativo, aquela idéia que os regula e os norteia é o absoluto, o
incondicionado, o total, o que se acha além de qualquer dependência ou condição. Sendo que é
para este absoluto que as ciências e metafísicas antigas se dirigiam, numa operação indutiva ou
de síntese, é de aqui que os filósofos modernos partem, numa operação inversa de análise, de
dedução. Por isso os filósofos realistas, exceção feita a Platão, são sintéticos ou indutivos; já os
filósofos idealistas pós kantianos são dedutivos como Platão, e partem duma idéia para a
construção do mundo. Até aqui temos visto o que é comum entre os três filósofos; cumpre-nos
ver, agora, em que eles eram diferentes.
E tendo dito isto, o mestre se pôs a procurar no livro por qual dos três filósofos começar.
E prosseguiu:
– O maior destes três filósofos é Hegel; e dizêmo-lo o maior, porque ele parte do
postulado da razão como ser absoluto. Então, porque Hegel é protótipo do intelectual puro, por
isso o pusemos em primeiro lugar; ele é o protótipo do pensador lógico, racional, inexorável,
exato. Era cognominado de “o velho” pelos seus colegas adolecentes dos tempos de escola; e o
era de fato, e o foi durante toda sua vida. Para Hegel o absoluto é o ponto de partida, e o absoluto
é a razão. À pergunta metafísica de o que existe, ele respondia: existe a razão da qual decorrem
todos os demais fenômenos. Esta razão hegeliana não é inerte ou estática, senão dinâmica, cheia
de possibilidades que se vão desenvolvendo no tempo. Assim a razão fica concebida como um
movimento, um devir, não sendo só razão estática ou de possibilidade potencial, senão que
também é raciocínio ou razão cinética. A razão estática é como um sino em que dormem as
ondas sonoras sob a forma de possibilidade; mas a razão cinética como Hegel a concebe, é o sino
vibrando e lançando de si, ao longo, no espaço e no tempo, suas ondas, sua energia cinética ou
de movimento.
– Mas que é raciocinar? Interrogou o mestre.
– E não vindo respostas por parte de ninguém, ele próprio respondeu:
96Huberto Rohden, Filosofia Universal, 2, 79
72
– Pois raciocinar não é outra coisa que propor uma explicação, cogitar um conceito,
formular mentalmente uma tese. Todavia, achada a resposta para o que se procura, começa-se a
perceber as falhas do conceito, e defeitos da afirmação; começamos então opor objeções à tese
mediante outra afirmação igualmente racional. Este é o princípio de contradição existente em
todo pensamento. Quer dizer que à tese opomos a antítese, a adversativa da primeira proposição.
A razão se debate entre a afirmação e sua contraditória, procurando um meio de conciliar os dois
extremos numa síntese que seja, ao mesmo tempo, pertinente à tese e à antítese. Eis que um
enunciado racional cria seu adversário, o seu oponente, que é outro enunciado racional, e, ato
contínuo, ambos se juntam, como duas metades, para formar um novo todo mais perfeito.
Contudo este todo mais perfeito, esta nova unidade sintética é a tese de outra antítese para a
formação de outra síntese que será tese doutra antítese, e assim por diante, infinitamente. O
raciocínio é isto; os prós geram os contras que se ligam noutros prós de outros contras, e assim
sucessivamente. Estas são as duas pernas com as quais a razão caminha, o que significa dizer que
ela vai tirando de si, da sua potencialidade o seu dinamismo, o seu tornar-se, a sua explicitação.
A razão, pois, é a realidade primeira e última; real e racional são, portanto, uma e a mesma coisa.
O racional é real e vice-versa, porque é impossível existir uma posição real que não possua sua
justificativa racional; pela recíproca, não há posição racional que não tenha sua objetivização na
realidade passada, presente, ou futura. Se é lógica, se é racional uma posição, então ela
corresponderá a uma realidade existente, ou que existiu ou que existirá. “Conceito. Fórmula.
Experiência. Aparelho – são as fases que levam da ciência à técnica” 97. E assim como a técnica
humana se concretiza de uma razão que trabalha, primeiro, no plano abstrato da teoria, também a
natureza é explicitação de uma razão universal que primeiro pesa, e depois constrói. Por isso “no
reino animal e na técnica, surgiram automaticamente os mesmos modelos, porque as criaturas
nesses dois domínios se movem num mundo de forças idênticas e tendem para o mesmo fim: o
máximo de eficiência, com o mínimo de esforço e nas melhores condições”98. Assim, “o iate
semelhante ao peixe; o peixe como o iate - ambos substância convertida em idéia, como tudo o
que existe é idéia convertida em evidência, vontade substancializada, realização que se tornou
carne”99. A ave e o avião são construídos segundo um mesmo plano básico, porque ambos têm
que ser lógicos. Como a razão é uma só para tudo, por isso aparecem os paralelismos dentro da
natureza, e entre esta e a técnica humana. Por esta causa, “a pata, que evolveu da do miriápode,
chegou a uma estrutura análoga à pata que se originou mais tarde das barbatanas dos peixes” 100.
A técnica criou o olho mecânico, que é a câmara fotográfica em paralelismo com a câmara
fotográfica animal que é o olho biológico; e assim como há a tele-objetiva e a grande angular da
técnica, igualmente há o tele-olho da águia e o olho-grande-angular da siba. E “se, nos outros
planetas, vivem seres dotados de visão, essas criaturas devem ter olhos de estrutura análoga à dos
olhos do animal vertebrado e da siba; saudarão o recém-chegado e este terá a impressão de haver
desembarcado entre “irmãos”101. A lei de correlação descoberta por Cuvier, é a lei da lógica que
a natureza aplica em suas criações. Por isso de partes mínimas, como a cova de um dente, se
podem construir todos completos. “É incrível a quantidade de coisas que um técnico pode
deduzir dessas minúsculas coroas de dentes: o tamanho do animal, a forma dos seus maxilares e
daí o feitio da cabeça; a dentadura dá a conhecer o gênero de alimentação e desta podem-se tirar
amplas conclusões sobre o modo de vida do animal e o ambiente em que ele se move" 102. A
mesma coisa ocorre comigo, quando alguém me faz uma afirmação fruto de suas convicções
profundas. Por isso, ninguém consegue dizer-me só uma coisa, senão todas as do seu sistema.
Feita uma afirmação, num relâmpago de idéia, vejo toda filosofia em que, logicamente, essa
afirmação se encaixa. E assim como o paleontologista pode dizer: “pelos teus dentes te
reconhecerei”103, também afirmo: dá-me uma sentença, e dir-lhe-ei como pensas!
Neste ponto interveio Chilon, argumentando:
97Fritz Kahn, O Livro da Natureza, l, 4l
98Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 333
99Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 332 e 334
100Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 233
101Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 223
102Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 409
103Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 410
73
– Aqui no caos, nesta bolsa imensa de pré-matéria, que se arredonda, fechada sobre si
mesma, suspensa no seio do absoluto e do infinito, aqui no caos, em que se desfez no nada
nôumenal o anjo mau, é que começou o movimento inverso da reconstrução. Então “o átomo
exclama: “completa minha órbita e eu me unirei a ti. Transforma meu dorso crivado de lacunas
em um “gás nobre” e me juntarei a ti”107. “Esse impulso dos átomos de encher sua camada
externa de elétrons e alcançar o estado ideal de gases nobres constitui a razão da intranqüilidade
dos átomos, e esta intranqüilidade dos átomos, o impulso inerente para se integrarem, enchendo a
camada eletrônica, é, em última análise, a tendência para a ordem que observamos no
universo”108. “Como os átomos obedecem a uma lei, resulta a “ordem”. Percebemos a ordem
como harmonia e a harmonia como beleza” 109. Assim “a beleza surge na natureza independente
de sentido e exibição como ordem objetivada das coisas no espaço e no tempo, segundo o
princípio de menor resistência. A inquietação reina até o ponto em que se cria a ordem, e o caos
reina até que se cria o cosmo”110. Eis, pois, que “o belo aparece em obediência a leis (...). A
natureza produz sem contar, caoticamente; só fica, porém, o que obedece às leis” 111. “O sistema
solar é belo, porque nele reina a harmonia. Sem harmonia, não existe sistema solar (...). Se o
mundo não fosse o cosmos, nós não estaríamos aqui para admirar; o caos não tem
admiradores”112. Aqui está por que “o universo é a matemática tornada substância” 113. Assim
sendo, “para o mundo orgânico também soará a hora em que, tal como na física e na astronomia,
procuraremos na natureza a confirmação do que o cálculo exige no papel” 114. Por tudo quanto
nos deixa ver esta rapsódia de citações, no começo era o caos; depois houve, a lei , a ordem e a
razão. E a razão descobriu que o universo também é racional, donde Hegel ter afirmado que todo
o racional é real, e todo real é racional. Ou de outro modo: o absoluto é razão, ou a razão é
absoluta.
E depois de uma pausa, prosseguiu Árago:
– Tanta confiança tinha Hegel na razão, que o procurou “certo dia um colega da faculdade
de ciências naturais: “Sr. Professor Hegel” – disse-lhe – “os fatos que encontramos por meio de
experiências contradizem completamente suas idéias filosóficas!”. Que respondeu Hegel? “Tanto
pior para os fatos”115. Por isso, “quando aparecem desacordos entre o cálculo e Sírius, o culpado
só pode ser Sírius. Bessel explicou: Sírius se movimenta “erradamente”, porque possui um
satélite que o rodeia e conforme a sua posição, puxa-o ora para frente, ora para trás ou para o
lado”116. E isto ficou comprovado, pelo que Hegel estava certo com sua “razão”, e não seu
colega, com seus “fatos”. É na razão que está a realidade, que pode ou não, ser encontrada na
natureza. É assim que “os químicos produzem assombrosas combinações dos 92 elementos – não
raro, substâncias inexistentes na criação” 117. “Podemos hoje, aliás com emprego enorme de
aparelhos: ciclotrões, campos magnéticos e instrumentos análogos, produzir partículas isoladas
de anti-matéria”118. E “no Sistema Periódico das partículas elementares, há ainda espaços vagos,
tal como faltava uma série de elementos químicos na composição do primeiro sistema
periódico”119. “De fato a física experimental encontrou nos últimos anos para cada partícula
elementar a correspondente anti-partícula. Por conseguinte, se existem elétrons positivos – a que
se deu o nome de “positrons” – e prótons negativos – denominados “anti-prótons” – por que não
existem então anti-átomos?”120. Todos os corpos transurânicos, exceto o califórnio, não existem
na natureza, e contudo são produzidos nos laboratórios de física nuclear; quanto ao califórnio,
como se reduz à metade em 55 dias, supõe-se seja ele o que se desintegra nas estrelas “Novas”.
Quando se construiu a escala dos corpos simples, apresentou ela várias lacunas que foram
preenchidas, exceto a do elemento 43 a que se deu o nome de tecnécio. Porém, este corpo, ao
lado do estalino, só pôde ser criado pelos reatores atômicos. E, todavia, o tecnécio é encontrável
fora da Terra, conforme observação espetroscópica. Os elementos transurânicos cujos números
atômicos vou declarando após o nome, são todos produzidos artificialmente, e são estes:
Netúnio------------------------------------ 93
Plutônio----------------------------------- 94
Amerício---------------------------------- 95
Cúrio--------------------------------------- 96
Berquélio---------------------------------- 97
Califórnio---------------------------------- 98
Einstênio----------------------------------- 99
Férmio------------------------------------- 100
Mendelévio-------------------------------- 101
Nobélio------------------------------------ 102
Laurêncio---------------------------------- 103
– Aqui está, concluiu Árago, que a razão, de fato, é absoluta, superando até a própria
natureza, visto que nesta existe ilogismos, e na razão, nunca..., pelo menos perduráveis, como
subsistem os ilogismos naturais. Podemos, portanto, afirmar que “absoluta e igual em todo o
universo é a matemática”121. O que o homem criar com sua inteligência, e construir com suas
mãos isso é o real, exista na natureza ou não. O cientista americano, por exemplo, L. Coes quis
saber o que acontece aos minerais quando expostos a pressões e temperaturas máximas. E
produziu com o quartzo, um mineral desconhecido até então na natureza, o qual recebeu o nome
de coesita, em honra do sábio. Mas, onde deveria ser procurado esse mineral? Pois havia de ser
procurado nos lugares onde se verificaram pressões e calores altíssimos; e onde cai um
meteorito, aí se verificam essas condições; logo, nas crateras produzidas pela queda de
meteoritos deve haver coesita. E há. E por isso a coesita é hoje, um indicador de meteoritos. Eis,
pois, que o homem supera a natureza, criando coisas e condições inexistentes na natureza que o
cerca.
Neste ponto interveio Alcino Licas, exclamando:
– Como pode o senhor afirmar que o homem supera a natureza, se o homem é produto da
natureza? Se o homem é fruto dela, e a supera, segue-se que é a natureza que se superou a si
mesma no homem. Não disse bem: a natureza busca realizar-se, e encontra sua plenitude de
realização na razão humana.
– Hegel não pensa assim, meu caro Licas, tornou o mestre. Para ele, tanto o homem
quanto a natureza da qual ele emerge, são produtos da Razão Absoluta. Em relação à Terra, é no
homem que esta Razão Absoluta mais altamente se manifesta. Conquanto a Razão seja Absoluta,
não é no homem que ela se manifesta em toda a sua plenitude; pode sê-lo em relação à Terra;
não o será, todavia, em relação ao universo. Apesar da maravilha que é a razão humana, como o
demonstrou, em parte, minha rapsódia, o homem não é a medida das coisas. Por conseguinte
devemos considerar que há Razão e razão: Razão Absoluta e razão humana; não há entre as duas
razões diversidade de essência, porém, há diferença de grau. Deste modo não há posição real
possível que não tenha sua justificativa racional, e, pela recíproca, não há posição racional que
não haja estado, esteja, ou venha a ser explicitada numa forma exterior, objetiva. De maneira que
dessa Razão, que é Absoluta, mediante trâmites internos, vai explicitando-se, tornando
substancialidade a idéia, ou plasmando a substância segundo a idéia. Esse trâmite com que se
passa da tese à antítese, à síntese, que por sua vez é a tese da trilogia seguinte, Hegel chama
movimento dialético da lógica. E assim como ocorre na razão humana, a natureza executa este
movimento dialético em suas formas criacionais. Quer dizer que a natureza raciocina devagar, e
o homem, depressa; ambos, porém, vão explicitando um pensamento interno por meio de
ensaios-e-erros, somente perdurando o que for lógico. A razão, ao desenvolver-se, vai realizando
suas razões, vai explicitando suas teses, depois as antíteses, depois as sínteses que são as teses
em relação ao movimento seguinte, e assim vai criando seu próprio fenômeno segundo as leis da
matemática e da lógica. E tudo quanto foi no passado, é no presente e será no futuro, não passa
de manifestação, de fenomenalização, de explicitação sucessiva do que se contém na Razão
Absoluta sob a forma de potência. Eis que Hegel parte da Razão Absoluta intuída
intelectualmente, e depois, através da dedução transcendental, cria seu sistema divergente de um
ponto central, como se fôra o centro de explosão de um fogo de artifício, que nos deslumbra e
encanta.
E dito isto, passou o mestre a procurar no livro de Morente o ponto seguinte, e tendo-o
achado, esclamou:
– Até aqui, de modo rápido, vimos Hegel; vamos estudar agora Schelling. Se Hegel é o
121H. Faust, De Onde Viemos Para Onde Vamos, 149
76
protótipo do homem lógico, Schelling o é do esteta, do artista contemplativo. Tal como Hegel,
Schelling parte do Absoluto; porém, se para Hegel o Absoluto é a Razão, para Schelling o
Absoluto é a Harmonia, a identidade, a unidade sintética dos contrários, a unidade na variedade,
possibilitando a que o mundo esteja, como diz Vieira, “fundado em uma concórdia discorde”
não havendo “coisa nele que não tenha o seu contrário”122. Tudo o que vemos se nos apresenta
como unidade, porém, ao atentarmos para a coisa, que temos sob as vistas, verificamos que é
formada de partes. A primeira divisão é feita pela linha de simetria e depois cada parte também é
simetricamente dissociável em duas metades. Fora isto, existe a simetria de funções, pelo que
cada peça se engrena na outra, e cada orgão se coordena a outro, de modo que a harmonia e o
sincronismo torne o multíplice em unidade seja mecânica, n’ua máquina, seja orgânica num ser
vivo, seja cósmica no átomo, na molécula, no cristal, na rocha, no planeta e em todos os sistemas
solares galácticos, até o Universo total. Eis por que “universo, composto de unus (um) e versus
(radical de diverso, vário) indica maravilhosamente a unidade e a diversidade do mundo. A
palavra grega Kosmos (ordem) e o termo chinês Tao (caminho) têm fundamentalmente o mesmo
sentido, simbolizando a unidade central latente na pluralidade periférica do mundo”123. Assim “a
falta de individualização resultaria em monotonia, como a individualização sem integração
acabaria em caos, ao passo que a individualização aliada à integração produz harmonia. O
Cosmos é essencialmente um Uni-verso, quer dizer uno e diverso, um composto de unidade e
diversidade. Sendo que o homem é um microcosmo, maravilhosa síntese do macrocosmo ao
redor dele, deve ele ser um perfeito uni-verso, isto é, uma perfeita harmonia entre a unidade e a
diversidade, reflexo da divindade, una em sua essência e múltipla em suas manifestações” 124. Eis,
pois, que para Schelling, o Absoluto é uma unidade vivente, de natureza espiritual, possuidora de
todas as unidades diversificadas existentes no universo. Deste modo, o fim dos seres, “o fim do
homem é revelar em sua existência individual – aqui ou alhures – aquele aspecto peculiar e único
da divindade que só ele pode revelar plenamente. Pois, como todos os seres da natureza, e
sobretudo todos os seres humanos, são originais, únicos e inéditos na sua existência, seres que
nunca existiram nem jamais existirão iguais; indivíduos que não são cópias de outros anteriores,
e dos quais não serão feitas cópias posteriores – segue-se que cada indivíduo e cada
personalidade tem a missão peculiar de concretizar um determinado aspecto da divindade”125. As
obras da natureza, como não são feitas a máquina, podem ser semelhantes, porém, não, iguais.
Aqui está por que a simples técnica não pode nunca substituir a arte, e a tela feita com a câmara
fotográfica, conquanto fiel, carece de inspiração, como também ocorre com as músicas
compostas por “robots”. Por isso as criações da natureza, são como as de um artista. “O universo
é, como pretendiam os místicos, um ser vivo. Ele respira”126. O universo é belo como uma obra
de arte, porque nele há inspiração, há o espírito de Deus. Já “os produtos artificiais são mudos.
Eles não viveram e por isso não são imortais, enquanto os outros viveram e por isso são providos
de alma pela beleza dolente das coisas transitórias”127. Quando o padre Vieira se pôs a procurar o
estilo para o perfeito sermão, concluiu que “o mais antigo pregador que houve no mundo foi o
céu”128. “E quais são estes sermões e estas palavras do céu? As palavras são as estrelas, e os
sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas”129. E “não fez Deus o céu em
xadrez de estrela, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte
está branco, da outra há de estar negro; se de uma parte está dia, da outra há de estar noite; se de
uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão
de dizer subiu”130. Assim, pois, pensa o padre, Deus prega os seus sermões, fazendo se
harmonizem na unidade dele, todas as posições polarmente contraditórias. Todavia todas as
contrariedades provêm da diferenciação de uma substância única. Assim o Absoluto não só é
unidade substancial espiritual, como é também unidade essencial, visto que na essência do todo
se congregam, univocamente, todas as essencialidades existentes ou potenciais. Quanto a isto, eis
o que diz a ciência: “No cálculo de todas as possibilidades chegou-se a 101.000, um número que
deixa muito longe a cifra dos elétrons no espaço universal, 1080. É inútil dizer que essas
combinações nunca se concretizarão, mas dão uma idéia das possibilidades ilimitadas da vida, de
produzir sempre novas substâncias, cores, formas, de originar sempre novas e fantásticas
criaturas no nosso planeta ou em outros mundos”131.
E feita uma pausa, prosseguiu o mestre:
– Temos então, que uma unidade vivente se põe, firmando-se em sua identidade; logo
começa a mudar-se, variar-se, tornar-se noutra que é a recíproca e oposição de si. A unidade
identifíca-se como tese, logo antítese, para usar a linguagem de Hegel. E tanto que de tese se foi
à antítese, une-se a outra unidade tética para formar a síntese de um novo ser. E assim as
unidades se juntam, se combinam, se harmonizam em unidades e todas cada vez maiores. A lei é
a da diferenciação, e diferenciação para a união. “A falta de individualização resulta em
monotonia, como a individualização sem integração acabaria em caos, ao passo que a
individualização aliada à integração produz harmonia”132. O universo é harmoniosamente belo,
porque tudo nele é diferente, e nada igual, e ao mesmo tempo tudo unido e coordenado
organicamente.
E fazendo o pensador uma pausa, para um fôlego, prosseguiu:
– Eis que o movimento e o tornar-se, podem criar perpetuamente novas formas de ser, e
através destas se explicita o Absoluto. Do simples sai o complexo que, depois, se reduz ao
simples de ordem superior, o qual se complica de novo, para nova simplificação. Tudo procede
como o modelo do sermão de Vieira. “Aprendamos do céu o estilo da disposição e também o das
palavras. Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito
claras. Assim há de ser o estilo da pregação; muito distinto, e muito claro. E nem por isso temais
que pareça o estilo baixo: as estrelas são muito distintas e muito claras e altíssimas. O estilo pode
ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem, e tão alto que tenham
muito que entender nele os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para a sua
lavoura, e o mareante para a sua navegação, e o matemático para as suas observações e para os
seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler, nem escrever, entendem
as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto
nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas, que todos as vêem, e muito poucos as medem” 133.
Assim, “ antes se pode esperar que uma formiga escreva a história da pintura no chão do Museu
do Louvre do que um homem estar em condições de conhecer o céu que o cobre. “Lasciate ogni
esperanza"134.
E depois de ponderar um pouco, em silêncio, continuou o mestre:
– Se soltarmos um foguete em posição vertical, suba até onde subir, voltará ele em queda
sobre o local de onde partiu. Todavia se ele subir muito alto na estratosfera, e em vez de cair
sobre sí, começa a fazer uma curva, desse momento em diante começará a cair ao redor da Terra.
Então, também a Lua anda caindo ao redor da Terra, como ocorre com os satélites artificiais. “A
essência de todos os movimentos de translação é a queda; o Sol “cai” para o centro da Via-
Láctea, a Terra para o Sol, a Lua para o da Terra; mas não atingem o seu objetivo, pois não
somente caem como simultaneamente acompanham o vôo da totalidade do sistema”135. O
universo, por conseguinte, está caindo, e contudo, invés de fechar a espiral da queda, reunindo
tudo outra vez no Colosso primitivo de Alpher, Bethe e Gamow, em vez disto, está fugindo para
a periferia, com movimento semelhante ao duma explosão. E vem Newton, depois Kepler, e
estabelecem as leis deste cair universal; depois Einstein, corrige tudo, estabelecendo não só a sua
lei da relatividade, senão, também, criando o conceito de energia-substância em sua famosa
fórmula de equivalência entre energia e massa. Mas os elétrons caem, também, ao redor de seus
núcleos, e com tanta velocidade caem, que a matéria fica rígida. E combinam-se depois uns com
os outros, entrelaçando as trajetórias do perpétuo cair, em moléculas simples, logo em moléculas
gigantes, engrenadas, como máquinas, pelos dentes atômicos, formando todos tão complexos,
que “por isso não se deve falar em cadeias e sim em padrões de tapeçaria”, para, então, se ter “a
idéia de um modelo que se aproxima da verdade”136. E que os átomos, depois, se arranjem,
harmonicamente, formando estrelas-do-mar, corais, cristais protéicos, células, neurônios,
cérebros? alguém pode entender como da queda eletrônica possa ter surgido a Nona Sinfonia de
Beethoven? E, todavia, quem não entendeu a teoria da queda do foguete sobre si mesmo, e a do
satélite artificial ao redor da Terra? Eis, pois que de uma verdade simples tiramos conclusões tão
complexas, que nos põe aturdidos. “Quem entenderá? Uma dada flor, um determinado inseto; o
impulso do inseto para saborear o néctar; a atividade da planta em lhe preparar e apresentar a
beberagem capitosa; a adaptação recíproca de duas criaturas tão completamente diversas, como a
moeda e o autômato. E depois, o milagre da fecundação, o cruzamento de duas espécies de
plasma, o complemento dos gens partidos ao meio e tudo isso nascido de átomos de carbono, de
hidrogênio, de oxigênio, de azoto, de enxofre, de fósforo, de magnésio – gerado na superfície
duma esfera que paira no espaço, um globo chamado Terra, em mares de asfalto e nuvens de
ácido carbônico... Quem dirá que entende? Ainda que Platão, Goethe e Shakespeare
aparecessem, de braços dados, bradando: “Nós entendemos!”, eu não acreditaria”137.
Interrompendo, por um pouco a dissertação para dar tempo a que os presentes pudessem
tornar a si do pasmo, prosseguiu:
– Um princípio único está presente, regendo tudo, fazendo se associem para um mesmo
fim seres completamente diferentes. Quer dizer que há uma indentidade fundamental, pelo que
tudo é u’a mesma coisa diferenciada, e todas as coisas são vazadas da fôrma única do Absoluto.
E consultando seu livro de Morente, prosseguiu:
– No primeiro momento, o Absoluto se diversifica em natureza e espírito, segundo pensa
Schelling. Nessa primeira diversificação vamos achar de um lado as coisas da natureza como
matéria, energia, vida, e do outro, as coisas do espírito como princípios, leis, pensamentos,
almas. Todavia esta distinção não abole a indentidade, pelo que a natureza está cumulada de
espíritos, como estes estão jungidos à natureza. Quem puser os olhos nos fenômenos da vida,
verificará que animais e plantas, em vez de serem reinos divorciados, estão, pelo contrário,
maridados, casados, numa mútua dependência, de sorte que o desaparecimento de um dos reinos
implicaria na extinção de outros. Se é certo que as plantas purificam o ar do gás carbônico,
pondo nele oxigênio respirável, por outra parte, os animais viciam o ar de gás carbônico,
tornando-o vital para as plantas. Vegetais e animais possuem funcionamentos invertidos, pelo
que se dependem mutuamente. E de permeio a tudo está o espírito como princípio diretor
imaterial e energético, mas que coordena e unifica tudo dando a tudo um sentido lógico (Hegel)
ou harmônico (Schelling). A matemática se acha presente supervisionando tudo, porque a
matemática é pensamento puro, é lei, é espírito. A harmonia equilibra, e ordena, e congrega tudo,
porque ela é a lei da unidade, e logo dualidade, e, depois, multiplicidade que se congrega outra
vez na unidade do universo, composta da unidade e da sua contraparte pluralidade. A essência-
substância do universo se reduz a uma única palavra que é substância-lei. Esteja a substância sob
a forma material fixada na rigidez e na massa, esteja ela liberta sob a forma de energia radiante,
estará sempre jungida à sua lei que é o seu espírito. E como nada há que não seja a manifestação
duma lei, não existe coisa alguma que não tenha espírito. Os átomos possuem leis, que os regem;
e quando se associam em moléculas, o fazem em obediência a uma lei mais alta que vai dar nova
unidade à nova forma. Depois as moléculas se combinam em complexos que são novas unidades
submetidas à nova lei. E assim, entendemos que há organismos de coisas porque há organismos
de leis. Os cristais têm um espírito, diz Schelling , cristalino, que é a lei do seu formar-se. Este
possui um espírito hexaédrico, porque sua forma é o hexaedro, e se quebrado, forma hexaedros
menores. Este outro é um vírus, porque é um cristal de compostos protéicos. Aquele animal é
uma esponja-do-mar, porque possui o espírito-lei dos esponjários, e se for moído n’ua máquina,
e passado pelo crivo fino duma gaze, posto no seu elemento aquático, recompõe-se outra vez
136Fritz Kahn, O Livro da Natureza, I, 310
137Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 117
79
como dantes, porque possui em si o seu espírito, o espírito da sua forma, do seu ser. Aquela
estrela-do-mar terá cinco pontas sempre, reconstruindo-se das mutilações que lhe forem
impostas, porque o espírito da sua forma é o pentágono vivo. Cada nova organização, cada nova
unidade, implica a existência de um espírito coordenador que o identifique e o una com outras
partes, formando um novo todo. Por este modo é que se constróem os seres superiores, cujos
espíritos, conquanto unitários, são organismos de espíritos menores coordenados em unidades.
Surge, por fim, o homem, no pináculo da escala terrena, com sua apoteótica razão, com seu
pensamento, porque dentro em si, traz as leis de cada formação coletiva desde as do átomo, até a
do eu humano que por isso mesmo, é uno e pluri a um tempo, de modo que o homem vem a ser
também um uni-verso, ou microcosmo, semelhante, basicamente, ao universo total de que faz
parte. Isto é Schelling. Mas paremos, por aqui, para ver Fichte.
E feita uma consulta a Morente, prosseguiu:
– Também Fichte parte do eu Absoluto que para ele é uma intuição intelectual. O
Absoluto é o Eu; mas não eu empírico, objetivo, senão subjetivo e geral. A atividade deste Eu
não consiste, em primeiro trâmite, em pensar, senão em agir. Este eu de Fichte é a atividade, sua
essência é a ação. Goethe põe na boca do seu Fausto estas palavras, quando este se põe a
pesquisar a origem das coisas, tendo sob os olhos o Evangelho de S. João:
força, e não a movimento. E como a potência (p) é o produto da força (f) pela velocidade (v), –
P = vf – quando se ganha em força perde-se em velocidade, e vice-versa. A máxima atividade,
logo, é quando o movimento tende a cessar, fazendo que a força seja igual à potência P. Num
mecanismo de relógio, a força está na caixa da corda que tem mínima velocidade e máxima
força; já a mínima força está na roda-de-escape, onde a velocidade é máxima. E assim como a
caixa da corda, com seu movimento imperceptível, toca todo o mecanismo do relógio, também o
Eu Absoluto de Fichte-Rohden, da imobilidade, move o universo. “De maneira que poderíamos
definir a Absoluta Realidade (Deus) como sendo a Pura Atividade, ou Atualidade – o “actus
purus” de Aristóteles, ou “Forma” sem “Matéria” alguma”142.
E, pensativo, fechou o mestre o livro de H. Rohden depondo-o sobre a mesa; depois
continuou:
– Esse Eu Absoluto, para exercer a sua ação, necessita de um objeto; portanto sua
atividade age para criar seu objeto, para que sobre este possa depois recair a sua ação. Ora, o
objeto da ação do Eu Absoluto é um não-eu, visto que o eu é o núcleo da atividade, e o não-eu, é
o seu objeto, isto é, o ponto sobre o qual a ação se aplica. Já, então, surge um dualismo formado
pelo Eu e seu objeto; pelo Eu e pelo não-eu. Eis o primeiro trâmite com que o Eu se explicita em
seu objeto não só com criá-lo, senão, com agir sobre ele. Todavia, estes objetos da ação do Eu
Absoluto podem dividir-se, por sua vez, em sujeitos ativos e objetos de ação. Assim o homem,
conquanto seja objeto da ação do Absoluto, também, por sua vez, é um núcleo de ação, pois o
homem também é ativo, e sua atividade também recai sobre um objeto determinado. Podemos
dizer, por conseguinte, que há o Eu Absoluto que se explicita em eus relativos, eus menores, os
quais, por seu turno, exercem sua ação, sua atividade sobre objetos inativos, como a matéria, ou
também sobre os eus a seu modo ativos como os animais e vegetais. Os eus, pois, sofrem uma
degradação de ser na proporção que se afastam do Eu Absoluto, e por isso, o homem é um eu
mais pleno de atividade do que um eu animal, no mesmo passo que este o é mais, em relação a
uma planta, e esta mais do que uma pedra. Se, pois, num extremo pusermos o não-eu ínfimo da
matéria, no outro extremo estará o Eu Absoluto espiritual. Entre o Eu Absoluto e o não-eu mais
extremo escalonam-se os não-eus, que tanto menos têm de eu ativo, quanto mais se afastam do
Eu pleno de atividade, que é o Eu Absoluto. Pela recíproca, para ficar bem claro, quanto mais os
eus empíricos, os eus criados, os eus-objetos, se afastam do Eu Absoluto e total, tanto mais se
negam como eus e se afirmam como não-eus; o não-eu extremo seria o nada, e não existe. Logo,
“há corpos pouco espiritualizados, e há corpos muito espiritualizados. Só não tem corpo o
TODO e o Nada, a Realidade absoluta e a irrealidade absoluta. Tudo o que fica entre o TODO e
o Nada tem corpo. O Todo não tem corpo. O Nada não tem corpo. O Algo tem corpo” 143. Aqui
está como o Eu Absoluto se explicita, no tempo e no espaço, criando eus empíricos que agem no
mundo das coisas. O homem é um eu empírico, eu prático, eu de ação, em grau menor do que o
Eu Absoluto que se assemelha ao homem quanto à ação. Daqui vem, então, uma consequência
moral inexorável: todo o conhecimento humano deve estar orientado para a ação. É preciso agir;
e para agir é necessário saber; portanto o agir é o motivo único do saber. Ora, a razão pura, o
teorismo absoluto, afasta o homem da ação, enquanto que a razão prática, objetiva, o traz a ela;
logo a razão prática, a consciência moral, tem primazia sobre a razão pura, como, aliás, era o
pensar de Kant. O conhecimento, portanto, é uma atividade subordinada, e não subordinante, por
isso deve ter por objeto proporcionar a ação, levar o homem à ação. Por esta causa o eu só é
plenamente realizado quando está apto a atuar moralmente. Para atuar moralmente faz-se preciso
que exista, primeiro, os eus e os não-eus, ou seja, os sujeitos e os objetos. Em segundo lugar é
preciso conhecer esses objetos da ação que o sujeito põe, para poder agir sobre eles. E assim, de
trâmite em trâmite, vai Fichte deduzindo do Eu Absoluto toda a cadeia de manifestação, toda a
fenomenalização, tudo o que há no mundo, no espaço, no tempo e na história.
E tendo o mestre descansado um pouco numa pausa, continuou:
– Sendo a essência do Absoluto a atividade, a ação, a força, a energia, podemos refazer
toda nossa dissertação em termos de energismo, como há pouco eu já tinha começado a o fazer.
A atividade supõe a força, a energia, que sem esta nada se move. Então, tanto o Eu Absoluto
142Huberto Rohden, Filosofia Universal, l, 33
143Huberto Rohden, Filosofia Universal, l, l52
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como o eu empírico, para serem núcleos de atividade, hão de ser, ipso-facto, centros de energia.
Que energia? Pois energia moral, ou vontade. Essa é a energia protótipo do mundo moral, da
qual decorrem todas as demais. O Eu Absoluto, portanto, antes de ser um foco de Razão, é uma
plenitude de Vontade, de querer, e foi querendo primeiro, que pensou depois para criar, e não
que pensou primeiro, para querer depois. Por este caminho o pensamento fichteano nos conduz a
Schopenhauer que escreveu seu “O Mundo como Vontade e Representação”. Mas sendo a
energia primeva do Eu Absoluto pura Vontade, como entenderíamos essa força? Por analogia
poderíamos entender o foco da Vontade suprema, o centro irradiante dessa luz moral, como o
nosso Sol dadivoso que nos cria e nos nutre. Se bem repararmos toda esta fábrica da Terra em
plena atividade é movida pelo Sol. Aqui, de novo está a caixa da corda do sistema que nos faz
correr já acima, já abaixo, já atiçando a cobiça, já estimulando o pensamento. O nosso pão é
amido que o trigo retirou dos raios do Sol, e que se desintegra nos açucares que são queimados
nos músculos, permitindo-nos movimento e calor. E quando em dia frio nos acercamos da
lareira, ali nos aquece o Sol cujos raios se fixaram na celulose do lenho, por efeito da função
clorofiliana. Assim, também, se esta luz que aqui temos vem do locomóvel, é raios de Sol
libertados da lenha, e se nos vem da usina hidroelétrica, é Sol que produziu a evaporação, logo as
chuvas, logo os rios, logo as quedas d’água ou hulha branca. Quando, à noite, esfregamos o pé
na areia da praia, brilham no rastro as ardentias; e aquela luz verde ali é luz do Sol. Quando, na
primavera, nos visitam os colibris, adejando-nos as flores, aquele frêmito de asas tornou-o
possível o Sol. No princípio era o Sol, e nada do que foi feito, sem ele se fez. Bem pudéramos
parar aqui nesta ode ao Sol; mas há mais.
– O próprio Sol também foi criado da energia cósmica, continuou Árago. Assim o diz a
ciência hodierna, assim o alcançou a inspiração de Moisés. A matéria do mesmo Sol nasceu da
sua luz, porque a energia se transforma em matéria; por isso o Criador, no princípio, dissera à
inspiração do grande hebreu: “Haja luz!” (Gen. l, l), para que depois desta luz pudesse surgir a
matéria. Por esta razão, diz Vieira: “São Tomás, e com ele o sentir mais comum dos teólogos,
resolve que a luz que Deus criou o primeiro dia, foi a mesma luz de que formou o sol ao dia
quarto. (...). No primeiro dia foi criado o sol informe; no quarto dia foi criado o sol formado”144.
Desta maneira “a palavra do Gênesis de que, no princípio, Deus criou a luz (não as luzes
focalizadas, sol, lua, estrelas, mas a luz universal ou cósmica) encontra na física nuclear dos
nossos dias a sua mais brilhante confirmação. Diz-nos a ciência nuclear que a luz é a mãe
cósmica de todas as outras coisas no plano físico”145. Dado que a matéria nasce da luz, e ao
desintegrar-se, desfaz-se em radiações dinâmicas, temos que “cientificamente falando, o
materialismo do século 19 morreu... por falta de matéria! A tal “matéria”, proclamada pelos
materialistas como sendo a única realidade do universo, abortou em “imaterialidade”, isto é,
acabou por se revelar inexistente, irreal, e os seus adoradores estão prostrados diante de um altar
sem deus; a deusa Matéria desmaterializou-se em pura energia”146. “Ora, sendo que a luz
absoluta é a mais intensa realidade no domínio do universo energético, é lógico que todas as
demais realidades da natureza - isto é, as outras formas de energia e de “matéria” sejam efeitos
derivados dessa causa primária. A luz é a mãe de todos os fenômenos do mundo. Nada existe no
vasto âmbito do universo que não seja filho da luz - como não existe alimento algum que não
seja produto da luz. Todos os seres são lucigênitos e todos são lucífagos. Isto, que um século
atrás, teria sido simples divagação poética ou hipérbole mística é hoje em dia uma conquista da
ciência exata. Tudo é originado da luz e sustentado pela luz, ou radiação cósmica” 147. Todavia
tudo isto é uma parábola pela qual procuramos entender uma coisa pela compreensão de outra.
Assim, a luz absoluta ou energia volitiva do Eu total está para a criação dos espíritos, como
outros tantos eus criadores, do mesmo modo como a luz cósmica está para a criação de todos os
não-eus ou objetos da ação. De outro modo: o Eu Absoluto, pela sua atividade volitiva, cria os
outros eus também criadores (eus empíricos), como são os homens, assim como a luz primeva
criou, e sustenta, e move o universo. Isto é Fichte.
vemos quão impossível é libertar-nos da consciência duma Realidade jacente atrás das
Aparências, e como desta impossibilidade resulta nossa fé indestrutível nessa Realidade. Mas
que Realidade é essa, não podemos saber”148. Não podemos saber, porque, “pensar sendo
raciocinar, nenhum pensamento exprime senão relações... O intelecto sendo afeito unicamente
por fenômenos, a fim de lidar com fenômenos, resulta obscuro tentar usá-lo para qualquer coisa
que não seja fenômeno”149.
E voltando-se o mestre para Alcino Licas, interrogou:
– Todavia, meu caro Licas, esse Incognoscível spenceriano manifesta-se através da lei da
evolução pela qual todos os demais fenômenos se regem, não é?
– Sim, tal é como o expõe Spencer.
– Logo, tornou o mestre, se o Incognoscível se manifesta, conquanto não o possamos
conhecer como Ser em si, podemos conhecê-lo como ser manifesto, como ser para
conhecimento, como dissera Kant; está certo?
– Exato!
– E como é que sabemos que Miguel Ângelo, Rafael e Leonardo da Vinci foram grande
artistas?
– Pelas suas obras, ora essa!
– E como Lampeão veio a ser, entre nós, um bandido tão famoso quanto temível?
– Também pelas suas obras perversas, se fez ele famoso. Seja pelo fazer da arte, seja pelo
agir da conduta, as obras são o homem.
– Bom. Sendo o Incognoscível o substrato último da realidade que nos cerca, isto é, o
que subjaz a tudo, como suporte ou sustentáculo, é certo, logo, que essa realidade que nos
circunda emana, brota, desse substrato. E pelo conhecimento de como é essa realidade ao nosso
redor, que nos penetra e de que fazemos parte integrante, podemos inferir como será esse
substrato, não no todo, em que permanece incognoscível e oculto, mas na parte em que se nos
mostra ou manifesta. Pelas obras se conhece o autor, você o disse há pouco, não foi?
– Foi o que eu disse.
– E como Spencer declara que, partindo do reconhecimento de um Absoluto, de uma
parte, e admitindo a relatividade da ciência, da outra, se pode estabelecer a conciliação entre
ciência e fé, vale perguntar: que religião sairia de um Absoluto e Incognoscível que serve de
substrato a uma realidade natural que evolui e retrocede, que avança e recua, que integra e
desintegra, que forma e desforma, que sai do caos do homogêneo e indiferenciado, avança para
as integrações e diferenciações cada vez mais altas, forçando sempre a que o homogêneo e igual
se torne no heterogêneo e desigual, tão altamente especializado e vário, até o cúmulo de fazer
surgir, no pináculo, um Platão, um Goethe, um Miguel Ângelo, um Beethoven, e que, depois,
tudo se derroque de novo no caos, para um novo recomeço? É certo, como o entende Spencer,
que se pode traçar uma linha evolutiva da nebulosa ao homem, do selvagem a Shakespeare;
porém, que Shakespeare se desande se desintegre, até tornar-se de novo na nebulosa, no caos?
Não é isto, acaso, o eterno retorno de Nietzsche? Acaso o Incognoscível é Sísifo a rolar sua
pedra morro acima, para vê-la despenhar-se no abismo outra vez? Que religião poderá nascer de
um Incognoscível cujas manifestações tem por princípio e fim o caos? Desse Incognoscível brota
a vida que é amoral, visto que premia os fortes e astutos, em detrimento dos humildes, dos
pacíficos, dos justos, dos bons. Que moral, que religião poderia sair daí? Que me diz a isto? Meu
caro Bruco!
– Ora, que digo! Essas conclusões são inexoráveis! Depois da obra de Spencer,
impossível se tornou conciliar a ciência à religião. Esta é a razão por que, como o escreve Will
Durant, “por uns tempos os evolucionistas foram conservados em severo repúdio pelas pessoas
respeitáveis; eram denunciados como monstros da imoralidade, sendo bom tom insultá-los em
público”150.
– Então, meus amigos, replicou Árago, somos já entrados no tema de amanhã. Vejamos
como é essa natureza que brota do Incognoscível, como se comporta a vida, e, quais, as suas leis.
Capítulo V
No dia seguinte todos se fizeram presentes, ansiosos que estavam para ouvir a dissertação
de Árago. Encontravam-se todos na sala, em animada conversa, até que, à entrada do pensador,
ficaram silentes. Depois dos cumprimentos, dirigiu-se o mestre a Orsoni dizendo-lhe:
– Muito obrigado pelos camarões, meu Hierão; estavam deliciosos do modo como
Cornélia os preparou.
– Foi um amigo meu chegado hoje de Ubatuba que nos trouxe, no gelo, de lá, explicou
Hierão Orsoni.
– Que nos traga sempre desses regalos, tornou Árago, sorridente. Mas vamos ao nosso
assunto.E dizendo isto, sentou-se pesadamente em sua cadeira, recostando-se bem, para trás.
Encarando a todos os presentes, iniciou:
– Kant, como todos os filósofos idealistas, começa a erigir o seu sistema pela teoria do
conhecimento. Leibniz já assentara as bases sobre que Kant iria trabalhar; fizera aquela distinção
entre verdades de razão e verdades de fato, insistindo em que o ideal do conhecimento científico
consiste em descobrir, sob a mole das verdades de fato, as verdades de razão. As verdades de
razão extraídas das verdades de fato, têm de concordar com os juízos fundados noutras verdades
de razão mais gerais ainda. Assim o experimentalismo científico toma sentido mais profundo, e
se estrutura sobre verdades alcançadas por outras vias racionais. Dito de outro modo: as ciências
experimentais devem ser interpretadas e explicadas através dos princípios matemáticos. Este é o
ideal do racionalismo: que todas as ciências se expliquem pela geometria, pela álgebra, pelo
cálculo diferencial, e integral. Este é o ponto alto da física-matemática, e todo idealista anela por
chegar ao cúmulo de sintetizar todo o universo numa breve fórmula. De um lado está o
fenomênico, o ilusório, o confusamente amontoado; mas dentro de tudo isto se ocultam as
verdades de razão, perenes, eternas, imutáveis. Eis aqui, de novo, a repetição do tema
parmenídico-platônico, apenas deslocado da realidade objetiva das coisas, para a realidade
subjetiva do eu. Mas, partindo sempre da intuição do eu, desta realidade subjetiva, chegavam os
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pensadores idealistas a outras realidades, agora objetivas, porque fora de si, como extensão e
Deus de Descartes, como os estímulos exteriores que provocavam impressões e vivências dos
filósofos ingleses, como as mônadas ou “eus” de Leibniz. Todavia, a atitude dos idealistas
consistia sempre em partir do eu, tendo a este como padrão de medida para averiguação de tudo
o mais. O ser em si que todos os filósofos buscam, Kant provou ser, não o ser em si, porém um
ser para conhecimento, um ser objeto para ser conhecido, um ser posto pelo sujeito cognoscente
como objeto de conhecimento, não se podendo chegar ao “em si” como realidade transcendente.
É por isso que Kant significa o encerro deste modo de filosofar idealista. Contudo, apesar de
Kant encerrar o movimento idealista iniciado por Descartes, abre nova perspectiva para os
filósofos que o sucedem. Partindo da idéia do Absoluto, do incondicionado, Hegel, Schelling e
Fichte construíram sistemas ideais divorciados da realidade presente. Também a filosofia de
Kant, como a de Descartes, como a de Leibniz, começa pela teoria do conhecimento. Assim
inicia sua “Crítica da Razão Pura”, pela distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos. Pela
própria contingência histórica que pôs Kant nas grandes encruzilhadas do pensamento, não
precisou ele ocupar-se de idéias obscuras como as nomeara Descartes, nem verdades de fato,
como as classificara Leibniz. Para Kant, todas as verdades e juízos já se achavam destilados,
sendo os juízos todos apodíticos, e todas as verdades de razão. Conquanto os juízos sejam
acontecimentos ocorridos na consciência, não são subjetivos, uma vez que se referem a fatos
exteriores, enunciações objetivas a respeito de algo, são teses de caráter lógico. Armado destes
dados pela contingência histórica que colocou Kant no cruzamento das vias do saber, atacou ele
o problema do conhecimento, distinguindo o que ele chama de juízos analíticos dos juízos
sintéticos.
E depois de uma pausa, prosseguiu o mestre:
– Juízos analíticos são aqueles cujo predicado já se acha contido no sujeito da oração; é o
mesmo que juízos apodíticos. Todo juízo é uma enunciação lógica, em que há um sujeito do qual
se declara alguma coisa, e um predicado que é a coisa afirmada do sujeito. Quando analisamos o
conceito do sujeito, e o decompomos mentalmente, podemos verificar que o predicado faz parte
das coisas contidas no sujeito. Por exemplo, se digo: o quadrado tem quatro lados, verifico que o
ter quatro lados é afirmação redundante, tautológica, pois a afirmação está envolvida pelo
próprio conceito de quadrado. Trata-se este do juízo apodítico ou analítico. Todavia, os juízos
sintéticos ou assertórios são aqueles cujos predicados não se acham contidos pelo sujeito. Se
afirmo que o calor dilata os corpos, emito um juízo assertório ou sintético, porque, no conceito
de calor, que é o sujeito, não encontro o conceito de dilatação dos corpos. Como o conceito de
dilatação não está envolvido pelo de calor, o predicado acrescenta uma coisa nova ao sujeito,
quer dizer, amplia-o por adição ou síntese. Já se vê, então, que a validade destes juízos só pode
estar fundada na experiência. Como o predicado acrescenta coisa nova ao sujeito, preciso é que a
experiência valide esse acréscimo. Mas, os juízos analíticos, apodíticos, ou verdades de razão
não carecem da experiência para serem válidos; basta deduzí-los do sujeito que, como se fôra
uma premissa, contém em si o enunciado expresso pelo predicado. Dizer que o triângulo possui
três ângulos é uma tautologia; esta palavra significa, do grego, tauto = o mesmo e logia = dizer.
O predicado diz o mesmo do dito no sujeito, pois, triângulo quer dizer três ângulos. Os juízos
analíticos apenas explicitam os sujeitos que os contém, e por isso tais juízos são verdadeiros,
universais e necessários. Não me ocorre que possa haver algum lugar do universo, onde o
quadrado da hipotenusa não seja igual à soma dos quadrados dos catetos. Porém, se me disserem
que há planetas de céu amarelo, de plantas vermelhas e animais mamíferos azuis, só vendo para
crer, isto é, só através da experiência, da percepção sensível, posso ter tais fatos por verdades.
Os juízos analíticos ou apodíticos, as verdades de razão derivam do princípio de identidade que
diz ser o sujeito igual ao predicado; posto em fórmula: S = P. Já nos juízos sintéticos o sujeito é
diferente do predicado: S ≠ P. Como os juízos analíticos independem da experiência, também se
chamam a priori; e como os juízos sintéticos dependem da experiência, por isso também se
chamam a posteriori. Estes juízos sintéticos são particulares e desnecessários; ocorrem aqui e
agora, porém, pode não ocorrer daqui a milhões de anos, por causa da mudança do meio, ou num
lugar diferente do universo, em condições diferentes das da Terra. Por esta causa estes juízos se
dizem contingentes, visto que, alhures, se pode dar de modo diferente do verificado aqui e agora
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pela experiência. O gelo sob pressão altíssima não se derrete ainda que sua temperatura se eleve
a 220 graus centígrados. Eis aqui uma verdade de fato, ou juízo sintético ou assertório que só a
experiência pode validar, e, em verdade, a valida.
E olhando o mestre para o livro de Morente que tinha, aberto, sobre a mesa, prosseguiu:
– E as ciências físico-matemáticas? De que tipos de juízos se constróem? Agora, uma
inovação kantiana: as ciências físico-matemáticas são constituídas de juízos sintéticos a priori.
– Mas isso é uma contradição, prezado Árago, obtemperou Orsoni; pois se estudamos, há
pouco, que os juízos apriorísticos são como as verdades de razão, são deduzidos de premissas, do
mesmo modo como os juízos apodíticos, são juízos cujos predicados se acham presentes nos
sujeitos da oração; e se os juízos sintéticos se opõem a tudo isto polarmente, ou seja: os juízos
sintéticos acrescentam ao termo sujeito coisas estranhas a ele, pelo que, para ter validade,
preciso é estar fundamentado na experiência; como, então, pode o que é forçosamente
experimental e contingente, ser, ao mesmo tempo, independente da experiência e necessário?
– Assim é, meu Hierão, atalhou o mestre. Tais juízos são sintéticos só no começo da ação
de conhecer, quando se está descobrindo a lei do fenômeno. Até este ponto do processo o juízo é
sintético; descoberta, porém, a lei, esta é aplicada a priori sobre a imensidade dos outros
fenômenos correlatos. Suponhamos que um físico observou que a difusão da luz se dá na razão
inversa do quadrado das distâncias. Ora, ele observa que a difusão se faz esfericamente para
todos os lados; quer dizer que uma mesma quantidade de luz se distribui por esferas tanto
maiores, quanto mais se vão afastando do centro de iluminação. Como estas esferas têm suas
superfícies crescidas na razão direta do quadrado de seus raios, segue-se, necessariamente, que a
luz decresce tanto mais, quanto maior for a superfície a iluminar; então decresce na razão que o
raio da esfera aumenta; por isso a difusão da luz pela superfície esférica se dá na razão inversa do
quadrado do raio ou distância do ponto luminoso, i = I/d2 onde i = iluminação de qualquer ponto
da esfera; I = intensidade da fonte luminosa; d2 = distância, ou raio da esfera. Pronto: até aqui
os juízos sintéticos. De agora em diante esta lei, condensada na fórmula, pode ser aplicada, a
priori, a qualquer tipo de difusão de energia, seja o som, seja magnetismo, seja eletricidade, seja
gravitação. Os juízos a priori não aumentam os conhecimentos, porque são tautológicos, dizendo
de outra forma o que se contém implícito no sujeito da oração. Eles explicitam no predicado o
que já se contém no sujeito. Por esta causa já dizia Descartes que o silogismo serve para expor
verdades já conhecidas, porém não para descobrir verdades novas. Atravessada, pois, a fase
empírica dos juízos sintéticos que vai até à fórmula, daí por diante tudo é aplicação do já
conhecido, e por isso, a priori. Newton precisou observar a queda da maçã para formular sua lei
da gravitação; mas Kepler não precisou de nada mais além da fórmula de Newton para a
descoberta das suas leis de mecânica celeste; logo, as leis de Kepler estão implícitas na de
Newton.
– Se as ciências físico-matemáticas, continuou o pensador, fossem apenas apriorísticas,
apenas verdades de razão, como queria Leibniz, seriam meras repetições do conhecido, seriam
vãs tautologias; se, por outro lado, fossem apenas experimentais, contingentes, relativas ao aqui
e ao agora, sem aplicação a qualquer tempo e a qualquer lugar do universo, não seriam ciências,
mas costumes, hábitos de pensar, como diria Hume, e por isso mesmo sem validade universal.
Por isto, para que as ciências físico-matemáticas sejam conhecimentos reais, preciso é que
participem da virtude dos juízos analíticos ou a priori, e ao mesmo tempo, da virtude dos juízos
sintéticos ou a posteriori. Nesta verdade crêem todos os físico-matemáticos do mundo; daí, para
eles, uma experiência bem conduzida pode fundamentar uma lei que tem validade para além
dessa experiência concreta, objetiva; não haverá, então, experiências passadas, presentes e
futuras que esta lei não abarque no seu âmbito.
E vendo Árago que Alcino Licas estava ansioso por manifestar-se, fez silêncio para que
ele falasse.
– O senhor discorreu, sobre os juízos da ciência, que são, a um tempo, sintéticos e a
priori. Não seria possível inverter a posição dos vocábulos, de modo que pudesse haver juízos a
priori e sintéticos?
– Há destes juízos também, tornou o mestre. É por este modo que se formulam as
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hipóteses científicas antes da sua comprovação experimental. Neste caso a ciência supõe que
certas verdades conhecidas têm validade mesmo em plano diferente do plano a que ela serve; e
então, se enunciam as leis e se constróem as fórmulas antes da experiência. Chamam-se isto
hipóteses de trabalho, e só podem ser incorporadas à ciência, depois da comprovação
experimental. Chamam-se hipóteses de trabalho, porque só servem para orientar o trabalho, as
experiências que, deste modo, não se fazem às loucas, pelo método do puro ensaio-e-erro
animal.
– E as matemáticas, interrogou Benedito Bruco, o senhor acha que elas são pura
tautologia, isto é, verdades de razão puras, puros juízos analíticos ou a priori?
– Enuncie, então, Bruco, um juízo matemático para que o assunto se objetive, tornou o
mestre.
Depois de matutar um pouco, respondeu Bruco:
– A linha reta é a distância mais curta entre dois pontos dados.
– Qual é o sujeito do juízo?
– A linha reta.
– Você acha que no conceito de linha reta está implícito o conceito de distância?
– Não.
– E se eu dissesse: a linha reta é constituída por uma sucessão de pontos numa mesma
direção. No conceito de linha está contido o conceito de ponto?
– Está.
– Então, aqui se trata de um juízo matemático analítico. Porém, no juízo anterior, no
conceito de linha reta, não está contido o conceito de distância; logo, este juízo anterior é
sintético e não, analítico. Por isso é que todos os teoremas matemáticos possuem hipótese e
demonstração. Podemos concluir que nem todos os juízos matemáticos são analíticos,
tautológicos, a priori. Todavia, não é preciso medir a reta para saber que ela é a distância mais
curta entre os dois pontos; isto é uma evidência, um axioma, uma intuição intelectual. Temos
aqui um exemplo claro em matemática de juízos ao mesmo tempo sintéticos e a priori; é
sintético, porque o predicado não se contém no sujeito do juízo; é a priori, porque esta verdade
está axiomaticamente contida numa intuição intelectual, que, por isso, independe da experiência,
ou da demonstração.
– E na metafísica? perguntou Licas; seriam possíveis juízos sintéticos a priori? As leis do
movimento, assim como a da inércia, Galileu as concebeu, como ele próprio o declarou pela
“mente conscípio”. Bastou, portanto a Galileu fechar os olhos à experiência sensível, e ir
concebendo em sua mente um móvel no espaço, e dessa pura abstração ir tirando as leis do
movimento, mais a da inércia. Trata-se, como se vê, de juízos sintéticos e a priori, ao mesmo
tempo. Igualmente na matemática o senhor demonstrou haver juízos sintéticos a priori, como é o
enunciado que diz ser a linha reta a distância mais curta entre dois pontos. Mas, na metafísica,
seriam possíveis juízos sintéticos a priori?
– Quando Descartes, busca demonstrar a existência de Deus, tornou Árago, é certo que
emite juízos a priori, visto que de Deus não podia ele ter nenhuma experiência sensível.
Todavia, partindo da noção de causalidade, pela qual todo o fenômeno tem de ter uma causa,
partindo da noção da parte pela qual toda parte tem de pertencer a um todo maior; tanto na noção
de causa como na de partes, num e noutro caso é preciso que haja um paradeiro; e esse é quando
o todo é o infinito, e quando a causa chegou à unidade absolutamente geral. Kant afirmou que a
cadeia de causalidade se interrompe em Deus, sem razão de ser; e como poderia ir além da
unidade primordial? como ir além do todo, quando este se fez infinito? Cada sistema se constitui
de partes que se encadeiam e se subordinam até a unidade a qual, por sua vez, faz parte de um
sistema mais alto; todavia, em chegando ao infinito, é de razão que a cadeia se interrompa. O
próprio pensamento reconhece a necessidade de interrupção de um processo que se torna ou
infinito, ou zero, porque além destes limites absolutos não se pode mais avançar com o cálculo.
Ora, sendo a noção de causalidade e a de parte oriundas da experiência sensível, segue-se que
este juízo metafísico é sintético. Sintético porque se vai remontando de causa em causa até à
unidade causal, e de todo em todo até o infinito; e também a priori, pois para se fazer isto não se
precisa da experiência direta; para fazer isto não é necessário mais do que a “mente conscipio”
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com que Galileu, de olhos fechados, abstraiu as leis dos movimento e mais a da inércia. Da
noção de obra se conclui pela de autor, pois nunca ninguém viu alguma coisa que não tivesse
sido feita por alguém. Logo, necessariamente, há de existir um Autor do Universo que nos aturde
com toda a sua complexidade. E como o Autor, é infinito, não há razão para se perguntar, como
fazem as crianças: e quem fez Deus? Deus é o infinito, e o infinito é o limite para qualquer
tendência, mesmo em matemática. Da observação das coisas visíveis, transitórias e contingentes,
em perpétuo vir-a-ser heracliteano, Parmênides primeiro, depois Platão, e, finalmente,
Aristóteles inferiu a existência de um mundo imutável, imóvel, eterno, onde tudo é perene
porque perfeito. Aristóteles avança mais, e intui um Ser que move e rege tudo, que é Deus. Ora,
o método para se chegar a estas verdades, é o mesmo do da ciência, isto é, sintético e a priori.
Sintético porque se afirmou do sujeito mais do que ele continha implícito; a priori porque estas
generalizações, conquanto partidas da experiência, foram alcançadas pela pura “mente
conscipio” ou concepção da mente e não de alguma experiência direta, objetiva. Por conseguinte
é possível em metafísica juízos sintéticos a priori, exatamente como nas ciências físico-
matemáticas, e nas matemáticas.
E depois de consultar seu livro de texto, prosseguiu o pensador.
– Kant, todavia, não concorda possa haver juízos sintéticos a priori na metafísica. Quanto
às matemáticas Kant não tem dúvida, nem quanto à física, pois aí estão as matemáticas e a física;
todavia, não assim com relação à metafísica que é uma ciência muito discutida. Cada vez que
surge um novo pensador no mundo, toca ele a refazer o feito desde o princípio para achar suas
veredas próprias. Mesmo supondo que a metafísica seja uma ciência, tem-se de concordar que
nela nada ainda está estabelecido definitivamente, como ocorre nas matemáticas, na química e na
física. Trata-se duma ciência que pode ser posta em dúvida, como fez David Hume. Ainda se tem
de saber se os juízos metafísicos são legítimos e se o são, por que o são?
– E se não forem legítimos, tornou Bruco, como o supunha Kant, que acontece?
– Acontece que, ou não há metafísica como o entendia Kant, ou a base desta disciplina do
espírito não pode estar, como as outras ciências nos juízos sintéticos a priori. E para responder a
estas questões Kant escreveu sua obra maior: a “Crítica da Razão Pura”.
E examinando suas notas, exclamou o mestre:
– Bertrand Russell diz isto: “Kant goza de reputação de haver sido o maior filósofo
moderno, mas, na minha opinião, não foi senão uma desgraça”151.
– Protesto! exclamou, resoluto, Alcino Licas; acho que Kant é o maior dos pensadores
modernos, e não concordo que se diga isso dele!
– Concorda, então, meu caro Licas, estudarmos a “Crítica da Razão Pura”, de um ponto
de vista crítico?
– Ora, se concordo! Mas que dúvida?!
– Neste caso, você nos vai definir umas tantas noções necessárias a prosseguirmos em
nossa metacrítica kantiana. Primeiro que tudo, diga-nos o que é intuição.
– Intuição é a percepção mediata dos objetos; por isso não pode existir se o objeto não
nos for dado aos sentidos. É mediata, porque entre a intuição que se dá na mente, e os objetos
exteriores, estão os sentidos como intermediários.
– E que é sensibilidade?
–É a capacidade de receber os objetos em nosso espírito, ou a capacidade de representá-
los em nosso mundo subjetivo. Os objetos nos são dados mediante a sensibilidade, e por isso
somente ela nos fornece intuições. Logo, a sensibilidade gera intuições
. – E entendimento, que é ?
– Entendimento é aquilo pelo qual as intuições são pensadas, e por isso é dele que
surgem os conceitos.
– Então, que é conceito?
– É a elaboração das intuições que nos vieram através da sensibilidade que é o mesmo
que sentidos.
– Se a sensibilidade é o mesmo que sentidos, argüiu Árago, por que, logo, empregar dois
termos diferentes para dizer uma mesma coisa?
151 Bertrand Russell, Delineamentos da Filosofia, 102
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– Isso que você afirma, baseado em Kant, é um absurdo, meu prezado Licas; porque a arte
sempre representa o individual e não o geral; por isso a Vênus e o Apolo japoneses não podem
corresponder à Vênus e ao Apolo gregos! Um serafim não poderia nunca ser branco para os
africanos, nem preto para os chineses. É impossível que, no céu, os anjos tenham uma mesma
cara, para esta corresponder à perfeição universal; um como que anjo-conceito, vivo, real,
atuante, um como que conceito individualizado em milhões de formas iguais, como bonecos
saídos duma máquina automática de prensar. Os anjos, para não serem monótonos, enfadonhos,
hão de ser diferentes, diferenciados, únicos, cada um em si mesmo, pois a natureza não cria
nunca formas universais, mas individuais. Há, por isso, um bom gosto grego, como há um bom
gosto evidenciado nos desenhos dos homens das cavernas pré-históricas; o que não há é uma
forma universal, cósmica, apriorística de bom gosto, pois ele nasce da experiência artística e
pode transferir-se pela educação. Não há duas lógicas, nem duas matemáticas, nem duas da
mesma ciência, duas físicas, por exemplo, cada uma enunciando verdades diferentes; contudo há
muitas estesias, e todas válidas, porque todas correspondem a seus fins, que é representar o que
é, objetivamente, individual.
– O senhor tem razão, concordou Licas; concedo seja esse um dos pontos em que Kant
queimou a manga. E diz mais o pensador de Koemgsberg: há duas formas de intuição sensível
que nos são apriorísticas – espaço e tempo. “O tempo não pode ser percebido exteriormente,
assim como o espaço não pode ser considerado como algo interior em nós outros”154.
– Por que?
– Porque o tempo é uma relação e o espaço, uma intuição pura. “O espaço não é um
conceito empírico, derivado de experiência anteriores”155.
– Não concordo! Acho que as primeiras experiências dum recém-nascido formam o
conceito de espaço, quando começa a divisar coisas, como o vulto da mãe, por exemplo, a
mover-se sobre um fundo imóvel. Essa experiência grava-se tão indelevelmente, que mais tarde
ele supõe que o conceito de espaço já existia como representação a priori, no seu espírito. De
fato, os conceitos têm relação com o cérebro; logo, não podem existir, quando ainda não há
cérebro, e nascem quando este começa a funcionar. Mas o cérebro desenvolve-se com o
exercício através das experiências dos sentidos. Por conseguinte, o conceito de espaço data das
primeiras experiências e sensações do recém-nascido, para não dizer do feto, que já se move num
angusto espaço ventral. Suponhamos que um ser humano nasceu defeituoso, e por isso, sem
nenhum dos sentidos externos que são os cinco clássicos, para não nos referir ao outros. Ainda
que haja sentidos internos que percebem os órgãos e os comanda; ainda que o mecanismo do
cérebro seja perfeito, tal ser não pode ter conceito de espaço. Portanto, este conceito é empírico.
– E diz mais Kant, acrescentou Licas: “O espaço é uma representação necessária, “a
priori”, que serve de fundamento a todas as intuições externas”156.
– Esta segunda proposição de Kant, deriva-se da primeira; e como neguei a primeira,
nego, também, a segunda, e, no enunciado, em lugar de “a priori”, ponho “a posteriori”.
– Mais isto, então, prezado Árago: “O espaço não é um conceito discursivo, ou como se
diz, universal das relações das coisas em geral, mas uma intuição pura”157.
– Sendo o conceito de espaço uma intuição sensível, como entendo que é, formada pelas
primeiras experiências do recém-nascido, segue-se que estas experiências têm de vincular-se à
existência de corpos que se vêem separados por intervalos. Se não houvessem corpos no espaço,
de modo que o recém-nascido só enxergasse o vazio, como havia de formar-se no seu espírito a
intuição de espaço? Mas espaço e corpos são correlatos, pois sem corpos não se pode formar a
noção de espaço. Quem vê corpos, os vê juntos, ou separados, ou movendo-se; e quando atenta
para o que enxerga, conclui que espaço e corpos tudo são corpos, e tanto que há corpos
movendo-se dentro de outro corpo. Nossa casa, um vagão ferroviário, um ônibus, tudo são
corpos continentes de outros corpos. Por fim a própria Terra é um corpo a mover-se dentro de
outro corpo que é o sistema planetário solar o qual, por sua vez, se move “dentro” do sistema
galáctico – a Via-Láctea. Que é, então corpo, e que é espaço? Todos estes corpos referidos há
pouco, ou móveis ou fixos, são materiais; também é material os lugares onde eles se acham ou se
movem. Por isso o conceito de espaço está vinculado à idéia de corpo, e este, à de matéria. Nós
abstratizamos a matéria, os corpos e esse é o espaço; logo, sem a existência de matéria, de corpos
materiais, não há o conceito de espaço. E como o conceito de matéria, de corpo, é discursivo,
também o é o de espaço.
– Negue mais isto, então, tornou Licas, que tinha, aberto, nas mãos, o volume “Crítica da
Razão Pura”: “O espaço é representado como uma grandeza infinita dada”158.
– Não, não nego meu prezado Licas! Mas veja lá onde vou parar. O espaço coexiste com
a matéria. E onde não há matéria não há espaço objetivo, real, mas, apenas a extensão subjetiva
do conceito que temos ele. Dentro da matéria um possível espaço vazio, é espaço. Todavia, fora
da matéria, além da curvatura do Universo total um espaço vazio não é espaço; é nada. Segue-
se, pois, que para esse espaço ser objetivo, real, precisa conter em si matéria. Ora bem. Se o
espaço é infinito, como quer Kant, se-lo-á também a matéria da qual ele é a abstração. E se a
matéria é infinita, coincide com Deus, sendo este, então, também, material. E esta é a réplica
mais temida pela raposa de Koemgsberg; eis, pois, que Kant “receava o argumento de que, se o
espaço é objetivo e material, Deus deve existir no espaço e ser, por conseguinte, espacial e
material. (...) A velha raposa abocou um pedaço maior do que o que podia mastigar ” 159.
Entretanto, eu tenho as minhas razões suficientes para considerar a matéria eterna, infinita, e
incriada como pensara Aristóteles, porque, para isto reduzo, como fez Einstein, a matéria a
energia-substância. Sobre o denominador energia-substância enxergo não só a matéria e a
energia, como também a vida (energia vital) e os sentimentos e afetos todos sobretudo o mais
alto deles que é o amor. Agora não nos causa espécie quando São João diz que Deus é amor, que
Deus é luz ... amor e luz, já se vê, eternos, infinitos e incriados. Nunca me coube na cabeça que
Deus fosse princípio vazio, pura idealidade formal sem conteúdo, tão irreal como os “cem táleres
ideais” de Kant, que não podiam ser achados no seu bolso. Mas isto é cá comigo. Mas vejamos o
que diz a ciência. A física moderna, através da teoria da relatividade, chegou a este mesmo
resultado que expus há pouco, para contraditar Kant: o espaço, diz ela, e o tempo absolutos não
existem de modo objetivo; unicamente existem espaço e tempo que podem ser preenchidos com
coisas e fatos..., e as coisas e os fatos são relativos.
– Além disto, continuou o pensador, a doutrina de Kant, impõe que todo apriorismo
existente em nosso espírito, para ser válido, precisa corresponder com as realidades do mundo
objetivo. A existência autêntica, segundo ele, é aquela que “diferencia cem táleres realmente
existentes de cem “táleres ideais” que não podem ser achados no meu bolso”. Isto posto, temos:
a representação ideal ou pura do espaço infinito tem de achar correspondência no mundo
objetivo, ou não vale. Ora, para que espaço puro possa ser infinito, terá, também, de ser infinito o
espaço objetivo ou material que dá validade àquele. Por conseguinte, afirmando uma coisa, ipso-
facto, fica afirmada a outra. “O espaço é representado como uma grandeza infinita dada”?
(Kant). Pois, então, o conteúdo, a substância, a matéria, que dá objetividade a esse espaço,
também é infinita; e sendo a matéria infinita, confunde-se com Deus. Estou bem com esta
conclusão, porque, para mim, o Deus-substância é o amor. E do mesmo modo como, nas
“antinomias da razão”, Kant nega a alma, nega Deus e nega o Universo, porque não podemos ter
experiências sensíveis desses objetos, pela mesma razão nego o espaço infinito puro dele, pois
também não posso ter uma experiência sensível que corresponda a esse objeto ideal. A menos
que aí, o nosso Licas, tivesse tido tal experiência. Por acaso a teve, Licas?
– Claro está que não! Ora essa...
– Pois então, o espaço puro infinito não passa duma ficção, sobre a qual Kant assenta todo
o seu sistema. Não é à toa que já se disse estar a metafísica alemã assente sobre o ar... E há mais
isto:
– Ficou dito que o espaço puro infinito, sem correspondência objetiva com a matéria,
também infinita, tem a mesma validade dos cem “táleres ideais” que não se acham no bolso de
Kant. Então, a substância do infinito espaço puro, necessariamente, também, terá de ser infinita.
158 Kant, Crítica da Razão Pura, 34
159 Will Durant, História da Filosofia, 288
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Todavia, a matéria está sujeita ao tempo, à causalidade, às transformações, com início e fim no
tempo. Se a matéria teve um começo, o quanto a creio, antes dela não havia correspondência
para o espaço puro infinito, donde se conclui que este era nada, como os cem “táleres ideais”
outra vez. Antes, por conseguinte, da criação da matéria, o espaço não-era; este não ser espacial
passou a ser espaço, depois da criação da matéria; logo, foi a matéria que deu ser ao espaço, e
como ela está sujeita ao tempo e à causalidade, também o está o espaço que ela valida e dá ser.
Conseguintemente, espaço e matéria são uma e a mesma coisa, e não, como pretendia Kant, que
o espaço seja pura forma de conhecer.
– E se eu disser, acudiu Licas, que a matéria é eterna, sem começo nem fim, como
pensava Aristóteles, e como o senhor o crê?
– Neste caso, já por sua infinitude, já por sua eternidade, a matéria é o próprio Deus! Se
dissermos que a matéria é eterna (Aristóteles), e infinita (Kant), então já estará respondida a
pergunta metafísica: que é o ser?, e da religião: que é Deus? Pois o ser e Deus são uma e a
mesma coisa: matéria (energia substância) quanto ao conteúdo, e, espaço, quanto à forma. Não é
que Kant esteve vai não vai para descobrir a pólvora? A grande “desgraça” que ele representa (B.
Russell) foi o não ter chegado a esta conclusão!
E como Alcino Licas não ousasse retrucar, depois de uma pausa, continuou o pensador de
Cananéia:
– Podemos estender o conceito empírico para além da experiência material, usando a pura
“mente concípio” de Galileu. Tornamos apriorístico, por extensão, aqueles conceitos que
nasceram da experiência; nosso pensamento caminha por meio de juízos sintéticos a priori, como
diz Kant, e é por isso que podemos estender o conceito empírico para além da experiência
sensível; todavia, esta extensão do conceito pode carecer de realidade objetiva. Se todas as
extensões tivessem realidade objetiva, então poder-se-ia imaginar espaços polidimensionais. A
geometria analítica nos leva lá, por extensão da análise algébrica; mas a realidade que as
fórmulas representam, não vai além da terceira dimensão espacial; o que passar daqui, é pura
ficção geométrica.
– Mais isto, então, tornou Licas: “A Geometria é uma ciência que determina
sinteticamente, e, portanto, “a priori”, as propriedades do espaço. Que deve ser, pois, a
representação do espaço, para que tal conhecimento seja possível? Deve ser, primeiramente, uma
intuição; porque é impossível tirar de um simples conceito proposições que o ultrapassem, como
se verifica em Geometria (int. V)160.
– Está certo. A geometria forma seu postulado partindo da intuição, a priori, de espaço.
Euclides, ao enunciar seu postulado V, disse que, por um ponto dado fora de uma reta, só se
pode traçar uma paralela a essa reta. Ora, só num plano é possível traçar linhas retas paralelas;
logo, está pressuposto o plano. Mas este plano pode ser deslocado em qualquer dos três sentidos
do espaço; portanto o espaço tem três dimensões, sendo plano em quaisquer dos sentidos. Eis a
intuição pura, a priori, de espaço de Euclides, sobre o qual se pode traçar linhas retas paralelas.
Então, é certo que a geometria forma seus postulados pressupondo, a priori, uma forma de
espaço. Da intuição que Euclides tinha de espaço, saiu a geometria euclidiana. Depois vieram
Gauss, Lobatschevsky, Bolyai e Riemann e fundaram as geometrias hiperbólica, elíptica e
esférica que pressupõem espaços não euclidianos. Cada geometria parte duma intuição pura, a
priori, de espaço, sobre a qual se funda o seu postulado. Quer dizer que se pode ter tantas
geometrias quantas são as possíveis intuições apriorísticas de espaço. Até já se falou, por isso, no
“escândalo da geometria”. Ora, suposto que pode haver intuições contraditórias, qual delas
aceitar por certa? É claro que uma delas estará com a verdade; mas qual a verdadeira? Como é
que a inteligência de um está apta a ter intuições puras, a priori, em contraposição com as
intuições, também puras, a priori, de outros? Que valem, então, tais intuições? Que é, então,
espaço, e que forma e propriedades tem? Se Kant diz que “essa intuição deve achar-se em nós, “a
priori”, quer dizer, anteriormente a toda percepção de um objeto, e, por conseguinte, ser pura e
não empírica”161, vale perguntar: então por que essa intuição kantiana e euclidiana não coincide
com a intuições de Gauss, Lobatschevsky, Bolyai e Riemann?
160 Kant, Crítica da Razão Pura, 35
161 Kant, Crítica da Razão Pura, 35
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– Mate mais esta, então, mestre Árago: “Efetivamente, as proposições geométricas, como
esta por exemplo: o espaço não tem mais que três dimensões, são todas apodíticas, quer dizer
que elas implicam a consciência de sua necessidade; mas tais proposições não podem ser
julgamentos empíricos ou de experiência, nem deles derivar”162.
– Não é exato: a consciência de que o espaço é tridimensional veio da experiência de que,
qualquer corpo, sem nenhuma exceção, possui três dimensões e não mais. E se pegarmos uma
linha, entendemos que ela só tem uma dimensão – o comprimento. Se, todavia, quisermos
encurvá-la, isto só será possível sobre um plano – 2.ª dimensão. É impossível, num mundo
liniforme, encurvarmos a linha, e depois sem nos sairmos dele, enxergarmos essa curvatura da
linha. De igual modo, para encurvarmos o plano, uma folha de papel, por exemplo, só podemos
fazê-lo no espaço – 3.ª dimensão. Tentem encurvar uma folha de papel, fora do espaço, para ver
como é isso impossível! Esta seqüência de experimentos nos leva ao seguinte raciocínio: o
espaço poderia ser encurvado numa 4.ª dimensão. Tentem encurvar o espaço; ofereçam prêmios
a quem o fizer, objetivamente, e verão como isso é impossível. Logo, o espaço só tem três
dimensões, sendo isto um fato empírico, e não uma intuição pura, a priori, como queria Kant.
E depois de matutar um tanto, concluiu o mestre:
– Que possuímos capacidade inata para fazer coordenações, para estender conceitos além
dos seus limites, isso é fato.
– Mas isso está errado, exclamou Licas; Kant já disse que “é impossível tirar de um
simples conceito proposições que o ultrapassem”163.
– No entanto é isso mesmo que acontece; por isso a intuição, para mim, é a extensão de
conceitos; é exatamente o que Kant julga impossível, ou seja: “tirar de um simples conceito,
proposições que o ultrapassem”. É por isso que as intuições para mim valem só como hipótese de
trabalho, sendo falíveis, como o demonstrei ser no caso das várias geometrias, cada uma fundada
em postulado diferente que subentende espaço diferente. O cérebro está pronto para funcionar,
como o pulmão, antes de nascer. Como todos os órgãos, o cérebro é funcional, antes de
funcionar. Mas, com o funcionamento ele cresce, aumentando-se-lhe as fibras associativas;
começam, então, a formar-se conceitos que são generalizados em intuições, todas, como se vê,
de fundo empírico. E quando num cérebro começam a formar-se conceitos por fé, por ouvir
dizer, por crença na autoridade de quem revela, as intuições procedentes de tal cérebro são todas
malucas. Os erros de Aristóteles passaram por verdades indiscutíveis no mundo, até os começos
da Renascença; destes erros de fato se tiraram conclusões também erradas, preparando a mente
para as intuições estapafúrdias que se viram então, em toda Idade Média. No cérebro não se
acham gravadas verdades, de antemão, como ocorre com um cérebro eletrônico; como pensava
Kant; o cérebro pode desenvolver-se pelo exercício sobre conceitos e intuições erradas, surgindo,
daí, os maníacos, os paranóicos, os semi-loucos, que se têm a si por certos, estando errado o
resto do mundo. Estes malucos cuidam-se gênios, como Nietzsche, como Dom Quixote, não
reconhecendo que houve neles um desvio funcional da consciência. Por isso, meus caros, a nós
nos cumpre não descurarmos das ciências e da filosofia, como disciplinas supremas da razão. É
da natureza do nosso espírito fazer generalizações, e saltando, ele extrapola e cria apriorismos e
intuições que Kant cuida sejam puras, mas que, no entanto, são a posteriori. Por isso já dizia
Francis Bacon que “a imaginação pode ser a maior inimiga da inteligência, quando não se limita
a prestar-se unicamente, a suas tentativas e experiências”164. E já tinha ele dito um pouco antes:
“Não se deve deixar o espírito saltar e voar dos particulares para os axiomas remotos e da mais
alta generalidade;... convém não se lhe darem asas, e, sim, de preferência, pendurar-lhe pesos
para impedir-lhe os pulos e vôos”165. Visto que os saltos e as extrapolações subentendem um
lastro de experiência, todo o juízo, como diz Kant, é sintético e a priori, em dois tempos
sucessivos. É sintético porque derivou da experiência da qual se induziu o princípio geral; é a
priori, porque, uma vez descoberto este princípio, uma grande área de fenômenos passa a ser
coberta por eles. Todavia, sempre alguma coisa se acrescentou à premissa, sempre o predicado
diz alguma coisa mais do que o implícito no sujeito da oração. Ora, esse acréscimo terá de ser
provado para ter validade científica. E assim como nas ciências, podemos formular juízos
sintéticos a priori, na metafísica, também se pode, contanto que se os prove, também, por meio
de argumentos. Quando Aristóteles, partindo da visão do movimento, concluiu ser necessário
haver um motor imóvel, que é Deus, nada mais fez do que formular um juízo sintético a priori
metafísico. E assim, por muitas vias, se vai construindo a intuição de Deus, do qual, como prova,
se pode deduzir as propriedades do Universo que contém em si todas as coisas. A obra revela o
autor; eis um juízo sintético, porque se a obra está toda no autor do qual ela saiu, o autor só pode
estar em parte na obra, sendo que ele, por isso, é sempre mais que a obra. Pela recíproca, tal
autor, tal obra; este é um juízo analítico ontológico, visto como a idéia de obra está implícita,
ontologicamente, na de autor, uma vez que este a contém em si, de onde a tira para a luz. A obra
sai conforme com o autor, porque ela é extensão dele, em sentido não só empírico, senão
também metafísico. Se estes juízos são válidos para os homens, se-lo-á também para Deus.
Logo, o nosso Universo, como unidade total, sendo obra de Deus, não contém todo o Deus,
como o queria Espinosa, porque o autor é sempre, sem exceção, mais que sua obra; daqui vem
ser preciso haver outros universos para além da curvatura do nosso, para que Deus se explicite
neles também, tal como o fez no nosso. Por isto, o nosso Universo é parte de Deus, porque o
autor está só em parte na obra. E assim chegamos à idéia do monismo pelo qual Deus possui dois
aspectos: o transcendente e o imanente. Também aqui há a extensão de um conceito empírico
para uma intuição metafísica, porque, como Deus, qualquer autor humano é também
transcendente à sua obra, visto como está nela, e ao mesmo tempo além e acima dela. Esta
imanência do autor em sua obra, representa seu pensamento expresso nela. Todas estas noções,
como vêem, têm por base ou a experiência, ou as leis e princípios descobertos através da
experiência. Eis como são possíveis juízos metafísicos sintéticos a priori, contrariando o que
afirma Kant.
– Como é esse estar em parte na obra, prezado Árago? Interrogou Licas, e argumentou a
pergunta dizendo: O homem eu entendo que está na obra, e também fora dela, porquanto é ele
finito, e para criar sua obra, lançou mão de um material fora de si. Mas Deus, sendo infinito,
primeiro não pode criar coisa nenhuma fora de si, segundo não pode usar outra substância que
não a sua própria; e se criar do nada, como o queria Santo Agostinho, toda a criação é pura
ilusão fósmea produzida pelo nada, com que vem a ser nada.
– Bom argumento Licas. Sendo Deus infinito, e a sua obra, finita, esta só contém Deus
em parte, seja como pensamento ou essência, seja como substância que é aquilo de que a obra é
feita. Se a obra é finita, e Deus, infinito, a obra só pode estar em Deus, abarcada por ele, e ele
nela, como substância e como essência. O Universo total que, imenso, se arredonda como
amplíssima esfera, é abarcado por Deus que está para todos os lados dela, e ainda entranhado
nela, pelo que é ela. Por isso o Empíreo está no rumo da periferia do Universo, e o inferno, no
seu centro. Mas tanto o Universo como o Empíreo que o circunda expressam Deus no seu
aspecto imanente ou criacional. Por conseguinte, Deus é a Criação na mesma proporção em que
Pigmalião é sua estátua que ficou viva por vontade de Vênus. Mas Pigmalião é muito mais que
sua Galatéia viva, ou que todas as demais estátuas vivas que fizesse ou pensasse fazer. Depois de
uma vida inteira de labor, ainda Pigmalião seria mais que toda sua obra. Assim também Deus é
mais que toda a criação surgida no passado, que vige no presente, e que virá no futuro! Contudo
a obra do homem é exterior a ele, e de substância tomada fora de si; mas sendo Deus infinito e
único, não pode criar nada exterior a si, nem doutra substância que não a sua própria.
– Tornando da nossa digressão teológica à metacrítica de Kant, tornou Licas, temos aqui,
no livro, isto: “O espaço não representa nenhuma propriedade das coisas, já consideradas em si
mesmas, ou em suas relações entre si etc.”166.
– Nego! O espaço representa a primeira propriedade, e por isso, necessária das coisas.
Volume é a propriedade básica, necessária, essencial, sem a qual as coisas nos são inconcebíveis.
Tente-se abstraí-la das coisas e estas se desvanecerão. Como o espaço é conceito número um, da
nossa experiência sensível, ele forma o substrato para os outros conceitos, e é base de operação
para todos os fenômenos. O espaço é a forma, a essência, o conceito que diz o que a coisa é.
166 Kant, Crítica da Razão Pura, 36
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Todavia, nem a capacidade de formar tudo está a priori, no espírito; pelo contrário, tudo o que aí
se forma, inclusive a própria capacidade de formar, é a posteriori, isto é, procede da experiência.
Nenhuma coisa é a priori; nem mesmo o é essa máquina pensante, que se torna apta a funcionar,
e se desenvolve e aperfeiçoa através do mesmo funcionamento. E visto que Kant afirma ser o
espaço uma intuição pura a priori, pergunto: quando se formou ela? Seria quando da formação
do cérebro do feto, e antes da formação da massa branca que se constitui toda de fibras
associativas? Posto que a cabeça dum recém-nascido possui o mesmo número de células
nervosas existente na caixa craniana dum adulto, segue-se que o crescimento da cabeça resulta
da expansão do cérebro pela formação da massa branca feita toda de fibras associativas.
Conquanto esteja falando contra Kant, acho-lhe, no seu próprio cérebro, a prova do que afirmo.
“No crânio de Kant na idade de 82 anos as suturas ainda eram móveis enquanto num microcéfalo
se fundem já na adolescência”167. Deste modo “o crânio humano pode, de acordo com a lei do
exercício, aumentar de circunferência nos últimos decênios da vida. Tanto o crânio de Goethe
como o de Gladstone cresceram mesmo depois dos 50 anos”168. Quando é então que temos
formada a intuição pura, a priori, de espaço? Seria quando ainda não há massa branca? Se o
cérebro possui uma genética e uma história biológica e fisiológica, esta última ligada às
experiências pelas quais cresce, como dizer que a intuição já existe pronta, pura, a priori,
independente de qualquer experiência? Como é que se explica o surgimento em nós desta ciência
infusa que nos faz saber, do mesmo modo como sabe o cérebro elétrico de um robô? Há dois
modos de prejudicar o crescimento de um cérebro, fazendo-o que fique anão; uma é meter a
cabeça da criança que o porta num capacete rígido, de modo que não cresça. As fibras, ao se
formarem, exigem espaço, e se este não existe, o cérebro não cresce; o outro é privar a criança
de toda e qualquer experiência, com lhe serem destruídos todos os sentidos possíveis. Será que
tal cérebro, assim altamente prejudicado, possui a intuição a priori de espaço? Pelo visto, nem a
construção da máquina pensante, nem ainda o modo de funcionamento dela são a priori. Isto
quer dizer que os a prioris da razão são o a posteriori da biologia. As leis biológicas constróem a
máquina cerebral, e esta, em funcionando, cria os a prioris, pelo caminho dos a posterioris. De
modo que nossos conceitos dependem de como nossa máquina mental é organizada; e ela é
organizada segundo leis e princípios biológicos que a plasmaram; estes princípios e leis
plasmadores constituem o espírito. Quanto mais alto e complexo for este, mais alta e complexa
será a máquina pensante que ele cria para servir-se dela no seu trabalho. Um gênio se diferencia
dum idiota pelo cérebro; mas como o cérebro foi construído pelo espírito que dele se serve,
segue-se que a diferença entre o gênio e o idiota está, primeiro, nos espíritos, e só depois, nos
cérebros, e não como vice-versa se supõe.
– Ao nosso assunto de novo, sentenciou Licas. Aqui diz assim: “O tempo não é um
conceito empírico derivado de experiência alguma, porque a simultaneidade ou a sucessão não
seriam percebidas se a representação “a priori” do tempo não lhes servisse de fundamento. Só
sob esta suposição podemos representar-nos que uma coisa seja ao mesmo tempo que outra
(simultânea), ou em tempo diferente (sucessiva)”169.
– Tempo, tornou Árago, é a duração do movimento de algo no espaço. A idéia de tempo
se associa à de movimento ou de duração de um acontecimento. É uma extensão do conceito de
espaço; alguma coisa se juntou ao espaço conferindo-lhe movimento. Sem espaço não há tempo,
porque as coisas são espaços, em primeira instância, que se movem no espaço maior que os
abarca; deste movimento de espaços no espaço surge o tempo como duração do movimento. O
tempo é perfeitamente definivel e até mensurável, pelo que é um conceito, e não, uma intuição;
ou de outro modo: como o espaço é um conceito, e não, uma intuição pura ou a priori, segue-se
que o tempo também o é, visto sustentar-se naquele. Do conceito de espaço surge o de tempo,
como uma ampliação. E para o demonstrarmos, tenhamos presente, outra vez, o caso do recém-
nascido. Ele percebe o movimento do vulto materno em seu quarto. O corpo móvel está em
vários lugares do espaço. Ele se move devagar ou depressa, e no espírito do recém-nascido se vai
formando um conceito de tempo que é a duração dos estados ou dos movimentos. O tempo, por
num mesmo lugar, são simultâneas. Vejam vocês a que ficam reduzidos aqueles enunciados que
Kant dá como sendo “princípios apodíticos”, ou “relações ou axiomas do tempo em geral”173;
esta certeza apodítica, axiomática, faz parelha com aquela outra em que se fundamenta o
postulado quinto de Euclides, que demonstrei ser falsa; se o não fosse, seria impossível as
geometrias não euclidianas. O espaço que nos cerca não pode ser infinito, mas curvo e fechado
em si mesmo, porque ele coexiste com a matéria do nosso universo, e esta não pode ser infinita.
A sucessão de todos os universos possíveis, além do nosso; de todos os espaços tão fechados em
si mesmo, como o nosso, todos cheios da energia-substância são o Deus-substância, visto que o
não posso entender como princípio vazio, pura essência, pura idealidade formal. Logo, Euclides
não tem razão, nem sua geometria é certa do ponto de vista metafísico, conquanto possa servir às
miudezas humanas, no que concerne à diuturna e corriqueira prática. Porém, para as medições
cósmicas, e para as construções filosóficas estará errada. Se a consciência de espaço é inata, a
priori, intuitiva, como quer Kant, havia de ser uma só para todos os homens, visto fazer parte do
mecanismo do conhecimento que nos é dado, a priori, ao nascer. Como é então que esta intuição
pura a priori não é igual para todos os homens, donde haver surgido várias geometrias? Se tudo
no Universo é circular, elíptico, esférico, lentiforme, curvo, enfim, por que haveria o espaço de
ser plano para qualquer das três dimensões, como o entendem Euclides e Kant, e tanto que um e
outro cuidaram fosse possível traçar no espaço retas paralelas? Se está provado pela astrofísica
ser impossível haver reta, e toda reta é segmento duma curva, então a tal de intuição pura e
apriorística kantiana está errada; e se o está, como terá validade tal intuição de espaço, como
base de todos os fenômenos? É certo que se a base estiver viciada, todo o edifício padecerá do
mesmo pecado original! Esta assertiva, sim, meus caros, é axiomática, apodítica, dissuasiva!
– Mas se o espaço é curvo, que haverá para além dessa curvatura? Interrogou Bruco.
– Ou há outros espaços de outros universos, com suas respectivas curvaturas, ou espaço
ideal, sem correspondência material, objetiva; e sem esta correspondência, o que é só ideal,
conforme o próprio Kant, é um nada igual aos cem “táleres ideais” que não se lhe encontravam
no bolso. Por isso, para além da curvatura do Universo ou há o nada, ou há outros universos que
nos são desconhecidos, porque suas luzes, fazendo a curvatura de seus sistemas, não chegam a
nós. Igualmente as luzes de nosso universo não podem ir além da curvatura do nosso sistema.
Suponhamos que um ser hipotético habitasse o interior de um átomo: ele concluiria que o átomo
em que está é tudo, nada havendo para além dele. Assim, bem pode ser que nosso universo seja
um átomo da cadeia de universos. Todos os “átomos” universais formariam as “moléculas” de
que se constituiria uma “matéria”, e só assim se poderia chegar ao infinito espaço cheio da
energia-substância. Os homens terrenos chegaram a produzir anti-partículas atômicas, elétrons
positivos (positrons) e núcleos negativos (antiprótons). E então pensaram seja possível a anti-
matéria com seu correspondente anti-universo. O nosso universo unido de algum modo a um
anti-universo, seria como dois átomos formando uma molécula. Ou isto, ou para além do nosso
espaço universal estará o nada, puro espaço subjetivo, ideal ou formal cuja realidade é como a
dos “cem táleres ideais” de Kant. E um Deus sem substância infinita é um Deus ideal, subjetivo,
vazio, inexistente, um não-ser. Tudo o que é, possui forma e conteúdo desde o elétron até Deus.
– Mas, perguntou Bruco, não poderíamos imaginar um projétil ideal capaz de andar em
linha reta, como pensava Euclides ao postular o seu espaço?
– Podemos.
– Então, tornou Bruco, esse projétil sairia perpendicularmente à superfície da Terra, indo,
sempre, na mesma direção, para o infinito; acaso em sua viagem, tal projétil não estaria cortando
espaço?
– De fato, meu Bruco, nós podemos imaginar um projétil euclidiano e kantiano, capaz de
cortar os espaços em linha reta, sem fazer a curvatura geodésica do nosso Universo. Porém, isso
acontece, meu nego, porque a imaginação está livre das peias espaço-tempo, movendo-se nas
dimensões próprias, que são as da consciência. Todavia, quando nos pomos a lucubrar sobre uma
dada matéria, temos de abdicar da liberdade imaginativa, e nos sujeitar às contingências que a
dada matéria impõe. É fácil imaginar um projétil balístico ideal que corte os espaços também
ideais, em linha reta; contudo a realidade é que esse projétil, com ser material, fará a curvatura
173 Kant, Crítica da Razão Pura, 40
98
geodésica do lugar, tornando ao ponto de partida. E se esta é a realidade, o que fugir daqui é
sonho! Deste modo, o espaço vazio é o mesmo que nada. Além disso, o conceito de espaço total,
infinito, transcende a nossa capacidade cognitiva. A mente que iniciou um processo, quer
continuá-lo indefinidamente. Assim, os tempos sucessivos se hão de escalonar vindos da
eternidade passada, e indo para a eternidade futura. A sucessividade dos espaços dentro dum
espaço maior, leva-nos à idéia de infinito espacial para todos os lados. A idéia de causalidade nos
faz remontar a Deus; e então u’a mente, como a de Kant, exige a causa de Deus, protestando
contra a interrupção, aí, da cadeia de causalidade. No entanto, é axiomático que precisamos pôr
um paradeiro à continuidade das exigências mentais, com uma Causa primeira, com uma Causa
não causada, com um infinito, com um eterno. Entretanto, essas são intuições a que chegamos
pela extensão final de nossos conceitos de ser, de espaço e de tempo. Não sabemos, todavia, o
que signifiquem essas coisas que funcionam como palavras-chaves usadas para fechar as portas à
indagação. Entendeu, Bruco?
– Entendi.
– Por isso, continuou o mestre, Pascal já dizia: “As qualidades excessivas são nossas
inimigas, não as sentimos, sofremo-las”. E depois: “A simples comparação entre nós e o infinito
nos acabrunha”174.
Depois de uma pausa, prosseguiu o filósofo:
– A doutrina de Kant, para ser coerente, deveria partir de três intuições, e não somente de
duas. Deveria considerar o Espaço, o Tempo e o Ser. Se fizesse isto, teria pé a sua metafísica.
Pois se parte ele da intuição pura de espaço para construir a geometria, e da de tempo para
edificar a física-matemática, por que não partiu também da intuição pura de ser, de eu cartesiano,
para erigir a metafísica? Se não admite ele que a intuição de eternidade do tempo seja a
posteriori, e resulte da experiência que nos mostra a sucessão do tempo objetivo; se não aceita
que a intuição de espaço seja sintética, a posteriori, decorrente da experiência que temos dos
vários espaços que nos circuitam; por que não disse também que o Ser é uma intuição pura, a
priori? Se o espaço que nos rodeia sempre, é parte do espaço infinito que se nos apresenta como
intuição pura; se o tempo que marca o ritmo dos acontecimentos vividos é fração do tempo
eterno que se nos mostra, também, como intuição a priori; por que, logo, a certeza de que somos,
de que existimos, não decorre da intuição a priori de Ser do qual fazemos parte? Acaso esta
intuição do Ser supremo não existe já na mente do primitivo, do pré-homem macacóide? Como,
logo, pretende Kant refutar a idéia de Ser, usando do falaz argumento de que Deus não pode ser
o fim duma cadeia de causalidade interrompida? Quer ele, então, uma continuidade causal para
Deus? Pois então exijo eu uma supra-eternidade que abarque o eterno, e um hiperinfinito que
abranja e contenha em si o mesmo infinito !
– Mas o espaço e o tempo são intuições puras, Árago, obtemperou Bruco; e porque a
intuição existe já, inata, em nossa inteligência, por isso mesmo está na raiz de todo
desenvolvimento racional.
– Se são intuições o espaço e o tempo, por serem totais, e a prioris ou puras por já
existirem pré-formadas em nosso espírito, por que não seria uma intuição a priori o Ser, que é o
Espírito, o qual, por sua própria natureza, tem que ser necessário, infinito e eterno? Se a idéia do
Ser por excelência desabrochou com a consciência humana, e existe já na mente do primitivo,
como pode não ter saído ela da razão pura?
– Todavia, entende Kant, tornou Licas, que a noção de ser é posterior à de tempo e à de
espaço, porque o ser é um fenômeno, que, por isso, implica tempo; e possui um corpo, com que
vem a estar no espaço. Conseguintemente a idéia de ser é a posteriori e não pura.
– E quem é que possui as intuições de espaço e de tempo?
– É o ser, o eu, ora... ora...; quem outro poderia ser?
–Então, meu caro Alcino Licas, se é no eu, no ser, que reside a intuição de espaço e de
tempo, segue-se, necessariamente, que o ser, o eu, é anterior a essas intuições; portanto a idéia do
ser, do eu, como queria Descartes, é a priori, e serve de substrato às intuições de espaço e de
tempo. Se o espaço e o tempo são intuições puras, a prioris, o Ser é um nôumeno pré-intuicional.
Se não existisse o eu, por isso mesmo não existiriam quaisquer intuições, donde vem que a
174 Clássicos Jackson, XII, 127 e 128
99
são possíveis por e na representação do tempo, e se essa representação não fosse uma intuição
(interna) “a priori”, não poderia nenhum conceito, qualquer que fosse, tornar compreensível a
possibilidade de uma mudança, quer dizer, a possibilidade de união de predicados opostos
contraditórios em um só e mesmo objeto (por exemplo, que uma mesma coisa esteja e não esteja
em um lugar)”181.
– O pecado original de Kant (hic jacet lepus) foi considerar que nossa primitiva e
fundamental atitude diante do mundo e das coisas é a de pensar. No entanto, a atitude reflexiva
do pensamento nem é primária, nem é fundamental, e antes, pelo contrário, é derivada e
secundária. Nós estamos no mundo entre as coisas, e elas, em nossa vida. Sobre elas agimos, e
com elas praticamos muitas ações. Com este tronco de árvore posso fazer um caíque; dessa
palmeira como um coco verde, com a colher, depois de haver bebido, deste, a água. Com estas
linhas faço uma rede, ponho-lhe as bóias de cortiça e pesos de chumbo. Ando pela praia, caço
meus putingas com o buçal ou com o picarê. Mergulho sobre um parcel, de nadadeiras, máscara
e arpão, em busca de algum mero ou garoupa. De repente, dou de cara com um cação curioso
que me estuda, tendo-lhe eu de dar um cotucão no focinho. Ainda aos sobressaltos, saio d’água,
sento-me no caíque e me ponho a refletir: que é o tubarão? Só agora me dou conta de que estou
pensando. Ao agir sobre as coisas encontro-lhes resistência, e me pergunto: que é isto? Este pau
não serve para fazer canoa; por que? Que é o coqueiro? Que são os camarões e os siris? Quais as
essências destas coisas que toco, que pego, que como? A atitude reflexiva não é primária, nem
fundamental, e antes se deriva da minha vida de fazer coisas, de agir sobre elas, e de lhes sofrer a
resistência que me impede de alcançar os meus fins. As coisas se resolvem agora em problemas,
e por isso penso sobre elas; todavia, quando não me são problemas, ajo sem pensar, e até tenho o
pensamento posto noutros assuntos que não os misteres que executo. Os animais, sobretudo os
inferiores, não pensam e, contudo, vivem, pelo que a vida está cheia de quefazeres para todos, e
não de lucubrações. Dito isto, seguiu-se uma pausa. Depois de algum tempo de reflexões,
prosseguiu o pensador:
– Todavia, Kant supõe seja a atividade de conhecer a primeira da vida. Daí o afirmar ser
preciso uma intuição a priori de tempo eterno, para compreender os fenômenos de movimento.
Atentem, agora, para isto que me acudiu à mente neste instante:
– Suponhamos que um pássaro, porque novo, ainda não tem intuição de tempo eterno.
Mas, de seu galho, vê o caçador mover-se de um lado para outro. Antes estava ali, e agora, lá.
Carente, como é, da intuição do tempo eterno, o pássaro não pode entender o que está
sucedendo. Antes o perigo estava ali, e, por isso, o pássaro atenta para ali; depois o caçador
moveu-se para achar melhor posição de tiro, e o pássaro, apesar de ter acompanhado o
movimento com os olhos, não sabe mais nada, porque não possui intuição de tempo eterno.
Percebendo esta ignorância da ave, o caçador resolve pegá-la. E com este intento chega-se cada
vez mais, de vagarinho, e zaz, pega-a pelos pés. Não é assim que sempre acontece, prezado
Licas?
– Que nada! Quem tentar isto verá que o pássaro voa!
–Por que voa?
– Ora, por que !... voa porque entende muito bem o perigo a que se expõe.
– Como entende? Kant não disse que qualquer tempo procede do maior, por derivação?
Neste caso, ou o pássaro tem intuição pura de eternidade, ou não poderá compreender que o
caçador se moveu. Sem esta intuição (interna) a priori, não poderia o pássaro conceber a
possibilidade de mudança, pela qual o caçador está e não está no mesmo lugar. Estava ali, e já,
agora, não está mais ali, e sim, lá. A ave, para tomar a decisão de fugir, de voar, precisaria
entender o que está acontecendo. Entretanto, ela não pode entender nada, visto carecer da
intuição pura de eternidade, da qual decorrem todos fenômenos de movimento com seus
respectivos tempos. Então, como o pássaro não entende, não foge, e o caçador pode pegá-lo
pelos pés, se o galho em que estiver pousado for baixo. Partindo da necessidade da existência da
intuição a priori para a compreensão de quaisquer movimentos, pude deduzir, como o faria
Hegel, que o pássaro não pode fugir às aproximações do caçador. Está certo isto, Licas?
– Claro que está, digo, o raciocínio esta. Não obstante, todos sabemos, por experiência
181 Kant, Crítica da Razão Pura, 41 e 42
101
observa, e não nas coisas. O tempo é a forma do fenômeno, e o movimento é o seu conteúdo. A
forma, como é idealidade, pertence ao subjetivo. Mas fora está o movimento a que o tempo-
formal corresponde. Fora de nós está o movimento que é o fato objetivo; dentro, está a relação
do movimento que é o fato subjetivo, que é o modo como o sujeito interpreta o objeto exterior.
Mas não é certo que esta forma de intuição interna possa ser representada anteriormente a
qualquer experiência de movimento, e, por conseguinte, a priori; isto não. As primeiras
experiências do ser formam estes primeiros conceitos de tempo os quais estarão como intuições
que só serão a priori em relação às experiências futuras. Não serão, todavia, intuições puras, e
sim, empíricas conquanto a priori, como é o caso da previsão de que a casa cairá, se lhe
solaparmos as bases, para usar um exemplo do próprio Kant.
– E continuou Licas: “O tempo é a forma do sentido interno, quer dizer, da intuição de
nós outros mesmos e de nosso estado interior. (...) E como esta intuição interior não forma figura
alguma, procuramos suprir esta falta pela analogia e representamos a sucessão do tempo por uma
linha prolongável até o infinito, cujas diversas partes constituem uma série de uma só dimensão,
e derivamos das propriedades desta linha todas as do tempo etc.”187.
– Está certo. Só que em lugar de intuição, eu poria conceito; no mais deixaria o texto
como está redigido.
E prosseguiu Licas com o seu Kant:
– “O tempo é a condição formal “a priori” de todos os fenômenos em geral”188.
–Nego isto, e afirmo: o tempo é a condição formal, a posteriori, gerado pelas primeiras
experiências do recém-nascido; só funciona como condição formal a priori, em relação aos
fenômenos futuros que, por isto, podem ser previstos. Trata-se, pois, de um juízo sintético a
priori, quer dizer: um conceito nascido da experiência, porém com validade antecipada para
todos os fenômenos ainda não ocorridos. O espaço é o lugar ou a condição primeira dos
acontecimentos; estes têm lugar no espaço e se relacionam pelo tempo. No ponto em que o
recém-nascido enxerga o mundo exterior, esse mundo refletido no seu íntimo se chama espaço;
no ponto em que coisas se movem no mundo exterior, também se movem no mundo subjetivo;
até aqui está a intuição sensível do recém-nascido. Mas a criança observa que os movimentos dos
corpos no espaço, ora são lentos, ora rápidos, ora constantes, ora uniformemente acelerados, ora
uniformemente retardados, ora irregulares. Repara que quando um corpo se desloca em direção a
outro, se o movimento for lento, dura mais de quando o movimento é rápido. E assim nasce o
sentido de relação do movimento ou tempo. Não há, tempo objetivo, porque ele é relação, e esta,
nunca está fora de nós, mas em nosso espírito. Já o espaço, esse sim existe subjetivamente ao
mesmo tempo que objetivamente. O reflexo do mundo exterior no espírito que o sente, é a
intuição sensível de espaço; o reflexo do corpo em movimento no mundo exterior, é de que se
deriva a relação de tempo.
E dizendo isto, Árago levantou-se da cadeira, e dirigindo-se para a lousa, foi dizendo, ao
tempo em que andava:
– Apertemos mais !
E pegando do giz, mostrou-o para os companheiros, exclamando:
– Acompanhem-me os raciocínios! O tempo é uma relação, dí-lo o próprio Kant. Logo,
pode ser expresso por esta fórmula em que “t” é tempo, “e”, espaço e “v”, velocidade:
e e
t = –– : v = –– : e = t . v
v t
a todos os demais conhecimentos empíricos. Diz mais que este tempo intuitivo é o ilimitado, do
qual todos os demais tempos são partes ou frações. Mas, se o tempo é uma relação, e sua intuição
é de eternidade, podemos fazer o seguinte raciocínio: sendo o espaço igual ao produto da
velocidade pelo tempo, quanto mais cresce a velocidade mais se encurta o tempo, e, vice-versa,
quanto maior for o tempo, tanto menor será a velocidade. Se eu for daqui até onde estão vocês,
gasto certo tempo; mas se o faço várias vezes e em velocidade cada vez maior, cada vez mais o
tempo se encurta; se a velocidade se fizer infinita, serei onipresente em todos os pontos do trajeto
que me leva aí. Se, por conseguinte, a velocidade se fizer infinita o tempo ficará zero. Pela
recíproca, se cada vez que vou daqui aí, o faço com menor velocidade, cada vez gasto mais
tempo. Quando a velocidade for nula, o tempo fica infinito. O movimento parou. A idéia de
eternidade, que é a ilimitação temporal, coincide com a ausência de movimento e não com o
tempo sucessivamente sem fim. Foi pensando deste jeito que Aristóteles, partindo do conceito de
movimento relativo e variável, pôde chegar à idéia de motor imóvel na eternidade que é Deus.
Posto isto em fórmula temos:
e = t . v : e = t oo . v o : e = t o . v oo
Porém isto é para qualquer relação, e não, somente para a de tempo. As verdades existem
impressas no Universo que contém o mundo, as coisas e eu; e como o espírito reflete em si o
mundo e as coisas, por isso, tais verdades estão também nele por causa desta reflexão; todavia,
para o descobridor, as relações só existem depois de descobertas. É por isso que nossos conceitos
se ampliam e melhoram, fazendo envolver a consciência. E ela cresce rumo a Deus; e cresce pelo
empirismo que possibilita a descoberta de relações as quais são válidas para além do campo da
experiência objetiva. Por isso “a ciência procura reunir os fatos em feixes, mediante leis
científicas; tais leis, mais do que os fatos originais, são a matéria bruta da filosofia”189. “A
filosofia é, assim, uma atividade contínua, e não algo que possamos atingir, de uma vez por
todas; (...) a verdade final pertence ao céu, e não a este mundo” 190. Descoberta portanto, uma
relação, ela funciona em toda a linha, desde o não-ser ao Ser, como o demonstram estas fórmulas
aqui, que pus na lousa. É este o objeto da filosofia; fazer trabalhar as verdades científicas fora
do campo de pesquisa experimental, no puro domínio da metafísica. Da física é que há de sair a
metafísica para o filósofo moderno, conforme com a etimologia do termo, e não o contrário,
como sempre foi, até o advento das ciências.
– Entendo, disse Bruco, que Kant, quando fala de tempo eterno, refere-se a um tempo que
transcorre como medida dalguma coisa que se move ou se transforma, e não a um tempo
resultante da cessação total de qualquer movimento. Mesmo que não se possa pensar nas coisas
como em movimento ou transformação, temos de pensá-las como algum estado que tem começo
e tem fim, pelo que chamamos a esse lapso de tempo, vida da coisa. A ilimitação temporal ou
eternidade para Kant é a sucessão dos outros tempos; ou de outro modo: qualquer tempo é
fiação do tempo eterno sem começo nem fim.
– Está bem Bruco, tornou o mestre. Se a eternidade fosse temporalidade sucessiva sem
começo nem fim, que até se pode representar por uma linha que vem do infinito passado, e vai
para o infinito futuro, se fosse assim, teríamos esta conseqüência imediata: o movimento é
eterno. Porque o tempo nasce do movimento; e sendo o movimento sem começo nem fim, seu
tempo fica eterno. Ora, o movimento decorre da imperfeição, porquanto o que se move, o faz
para buscar outra situação ou estado que não o em que se acha. O que é perfeito não se muda
para melhor, porque não há melhoria depois da perfeição; não se muda para pior, porque seria
isto degradar-se. Deus não pode ir para melhor, nem degradar-se; logo, nele não pode haver nem
deslocação, porque é infinito, nem transformação porque imutável e perfeito. Então sua
eternidade é repouso, imobilidade que resulta do não-movimento. Todavia, fazendo-se, como
quer Kant, a eternidade proceder dum movimento sem começo nem fim, segue-se que o mesmo
movimento fica eterno; e como é o movimento índice de imperfeição, Deus fica imperfeito, visto
que o mesmo Deus se move, ou seja de um lugar para outro, com que não é infinito, seja porque
se transforma, com que não é imutavelmente perfeito. Porém, é de absoluta necessidade que
Deus seja imóvel e imutável, como suprema Lei que é de todas as coisas. Se Deus se move, é
imperfeito; e como é a Lei de tudo, e Lei imutável, tudo o mais cai no caos. Que construção seria
possível sobre bases eternamente movediças? Todavia, apesar de algum caos restrito, há a
Ordem e a Harmonia gerais. Então a Lei e a Ordem são imutáveis e fixas. Por conseguinte Deus
não se move e é imutável. Logo, a eternidade em que ele se acha, é a do repouso, da imobilidade,
e não o do movimento sem começo nem fim. Por conseguinte, a relação expressa pela minha
fórmula está correta, e a intuição pura, kantiana, de eternidade, errada.
E tendo meditado certo tempo, prosseguiu o filósofo:
– Eu disse que a eternidade está em Deus no qual o tempo não flui por causa da
imobilidade sua. Em Deus não há tempo, porque este diz respeito a fenômeno, e Deus não é
fenômeno. Se fosse Deus fenômeno, e estivesse medido pelo tempo, estaria sujeito ou a
deslocamentos no espaço, com o que não seria infinito, ou a transformações no tempo, com o
que não seria imutável ou perfeito. Depois de Deus, vem o Universo que é o fenômeno de tempo
máximo, sem ser eterno. Dentro desse tempo que nos é máximo, em que o fenômeno Universo se
realiza, todos os outros fenômenos e realizações menores têm sua vez. Dentro desta unidade
temporal máxima, porém finita, tem lugar todos os outros tempos, numa escala decrescente, cujo
189 Bertrand Russell, Delineamentos da Filosofia, 8
190 Bertrand Russell, Delineamentos da Filosofia, 9 e 10
105
extremo é o tempo eletrônico. O elétron é um pequeno turbilhão etéreo, cuja existência se deve
ao movimento de rotação velocíssimo. O elétron é um efeito ocorrido no meio etéreo, e se ele se
abre, e se desvanece em ondas, a matéria que ele representa ter-se-á transformado em energia.
– Mas o elétron é uma coisa real, interrogou Benedito Bruco, é um objeto material, ou é
apenas um efeito, como o senhor diz?
– Entendam isto primeiro: nos Estados Unidos são comuns os ciclones. Um vortilhão
desses formado no Golfo do México pode varrer tudo, indo para o norte. O que se desloca do
Golfo para o norte não é o ar do Golfo, mas o efeito-ciclone. O ar, após ser movimentado no
corpo do vórtice, é expelido, para que outro ar o substitua. Deste modo o ar fica no lugar e só o
efeito se desloca. Ora, sendo o elétron um ultra-micro-ciclone, temos que sua órbita, ao redor do
núcleo atômico, é apenas a trajetória ao longo da qual o efeito-elétron se desloca. Quer dizer que
não é uma determinada porção do meio etéreo que se desloca ao redor do núcleo atômico preso a
uma formação vorticosa; é o efeito-elétron que vai envolvendo o meio etéreo, fazendo-o girar,
para ser abandonado a fim de assimilar outro. É assim que, sucessivamente, o efeito, e não o éter,
se desloca ao redor do núcleo. Este efeito-elétron, já de si filho da velocidade rotatória em torno
de um eixo de forças, translada-se na órbita eletrônica com tal velocidade que se torna como um
anel rodopiante. Imaginem o elétron ampliado até às proporções do ciclone norte-americano de
que falei há pouco. Imaginem que esse ciclone é como que onipresente em todos os pontos de
sua trajetória. Toda a zona norte do Golfo estaria então sob a tormenta dum cordão turbilhonário.
Entenderam? Pois é mais ou menos assim que temos de conceber a órbita eletrônica ao redor do
núcleo atômico. O efeito vorticoso eletrônico percorre sua órbita, estando em quase todos os
pontos dela. Quer dizer que a substância da matéria é o movimento. O “ente” aqui significa
velocidade. O conceito de rigidez e impenetrabilidade da matéria é tão ilusório como o
cinematógrafo. Do mesmo modo como nossa vista se ilude, no cinema, por causa da inércia
visual, também se ilude nosso tato cuidando ser solidez aquilo que é puro movimento. Ao ponto
agora:
– Se a velocidade, assim compreendida, raia pelo infinito, o tempo do fenômeno
eletrônico tende para zero. Eis aí o movimento máximo e mínimo expresso por minha fórmula
aqui na lousa. E cabe na cabeça de vocês, como coube na de Kant, que este tempo máximo, o do
Universo, e mais que este ainda, o eterno de Deus, seja uma fundamental intuição, a priori, que
temos, sobre a qual se alicerçam todos os demais fenômenos, cada um com seu tempo próprio?
Se o tempo do Universo é o máximo, porque depois dele vem o eterno de Deus que tudo abarca
na sua unidade imóvel, sem começo nem fim, é possível aceitar que esta acrologia que nos causa
cansaço e sofrimento pensar, seja o primeiro alicerce que temos para conceituar todos os demais
tempos, como medida dos fenômenos? O conceito de tempo existe numa criança, porém não
existe a intuição de ilimitação temporal ou eternidade, como base apriorística de todos os
fenômenos, como quer Kant.
E finda uma pausa, feita para a coordenação de novas idéias, continuou Árago:
– Recapitulemos para gravar bem, tudo o quanto hemos dito: a intuição de eternidade,
como vimos, coexiste com a imobilidade própria de Deus. Deus é imutável porque não muda
nem se move; é eterno porque não é fenômeno, e por isso não se transforma, e o tempo que
marca o começo e o fim de um acontecimento, não pode medir o que não teve começo nem terá
fim. O tempo eterno não é tempo, porque qualquer tempo, sem exceção, mede a duração dum
fenômeno, e Deus não é fenômeno pelo que não tem duração, visto que, na eternidade, o
movimento é parado. Deus não se move porque, sendo infinito, não tem para onde ir, e como tal,
domina tudo pela onipresença da Lei que é, em si, como transcendência, ao passo que o Ser da
Criação, é-lhe pura imanência. Esta imanência com que Deus está no criado e lhe dá o ser, é a
essência ou lei das coisas. Tudo o que é só pode ser graças à lei da sua existência. Assim Deus,
na sua imobilidade eterna, é onipresente por plenitude, no mesmo ponto que o não-ser, porque
não é, apresenta-se como absoluta carência e pobreza. O elétron para “ser” tem de mover-se
febricitante; o “ser” da matéria se deve à corrida louca com que o elétron enche consigo a sua
órbita ao redor do núcleo; para que a matéria exista é preciso que o elétron rode sobre si,
inflando-se de éter, e depois corra e se torne quase que onipresente em todos os pontos da sua
trajetória; o elétron tem que se inflar pela velocidade, e depois tem que se multiplicar por
106
sucessão de si mesmo, enchendo consigo sua órbita. Nada é mais mutável e móvel que o elétron;
nada tão veloz, e, por isso, de tempo tão reduzido; nada tão fugaz, efêmero e quase nulo. Por isso
ele é a oposição de Deus, o último estado de desintegração a que pode chegar uma criatura que
se mantenha em perpétua rebeldia e negação. Lá, no extremo oposto ao do não-ser, está o Ser
que é Deus, imutável, imóvel, eterno, infinito, onipresente como Lei que é, único representante e
mantenedor da ordem, da harmonia, da beleza e do bem. Ele é a grande Unidade que constitui a
Essência última de todas as coisas, o que as coisas são em si, e das profundezas onde se oculta
como Lei que é, forja o elétron, o átomo, a molécula, o vírus cristalino, o bacilo, a célula, o
neurônio, o cérebro humano, o artista, o gênio, o anjo, o serafim que se mostra incendiado do
divino amor. Deus irradia o seu amor que é a gravitação do plano consciencial, fazendo mover-se
tudo – elétrons, mundos, sóis, querubins. E quanto mais se é, tanto menos se precisa correr.
Correria é indício seguro de inferioridade; o sábio não corre... e ri-se dos que não podem
permanecer quedos! É de Satanás aquela máxima que diz: “time is money”! Lá no extremo
limite da matéria, o demônio-elétron, para existir, tem de construir-se com e pela velocidade. O
diabo, não tem tempo porque corre, e quanto mais corre menos tempo tem; contudo corre para
manter-se, para ser. Ele está condenado ao inferno do não-tempo, e quanto mais desce na escala
do ser, mais sua velocidade aumenta; e quando há chegado à velocidade da luz, então explode
em ondas que se abrem no espaço, para irem constituir outras formações que sobem do Caos.
Deus se há por fim negado no íntimo do rebelde, e ele pereceu por desintegração no seio do
Caos, ao ter chegado à velocidade-limite. O salário do pecado é a morte (Rom 6,23); pecado é a
fuga da Lei e da Ordem para o reino cada vez mais infernal da velocidade; e onde ela se torna
infinita, o tempo se acaba, e com este morre o ser por explosão... Porque o Ser total coincide com
a eternidade, por isso o não-ser coincide com o não-tempo!... Está certo tudo isto, Bruco?
– Está! e que beleza!...
– E a isto não cheguei partindo da fórmula empírica que tenho aqui na lousa? Como é,
então, que nos vem Kant dizer que não se pode chegar à idéia de Deus pela razão pura? Acaso é
possível olvidar a existência destes dois extremos a que o empirismo nos leva? Agora, meu
Chilon, você já pode entender a causa por que me chamam excêntrico! E o sou, de fato, porque
desprezo a riqueza, o poder e a glória que a todos fascinam. É que tudo isso é inferior ao que
trago aqui comigo, e me mantenho imóvel para ser penetrante, e rico, e forte como pensamento
puro. Mudando o cogito de Descartes, posso dizer, por minha vez: penso, logo, sou afortunado!
Porque nenhuma riqueza, e poder, e glória se compara a esta de se poder pensar... de ser a gente
pensador! À-toa não foi que “São Tomás, quando tenta imaginar ou ver ou intuir em que deva
constituir a bem-aventurança dos santos, não encontra outra atividade senão a mesma de
Aristóteles: os santos são bem-aventurados porque contemplam a verdade, porque contemplam a
Deus. Como Deus é pensamento puro, contemplam o pensamento puro e vivem eternamente nas
zonas do puro pensar”191. Não gozam desta contemplação metafísica só os eleitos, no céu, senão
que também a gozam os filósofos, mesmo quando ainda sobre a terra. Mas no céu há mais: lá se
junta ainda a esta contemplação, a mística que é a do amor divino, conhecida pelos santos desde
aqui da Terra.
E continuando em pé, próximo à lousa, porém voltado para os assistentes, prosseguiu o
pensador:
– Mas repisemos inda mais o ponto para fixá-lo bem. Diz Kant, referindo-se ao tempo:
“E como esta intuição interior não forma figura alguma, procuramos suprir esta falta pela
analogia e representamos a sucessão do tempo por uma linha prolongável até o infinito, cujas
diversas partes constituem uma série de uma só dimensão, e derivamos das propriedades desta
linha todas as do tempo, excetuando só uma, a saber: que as partes das linhas são simultâneas,
enquanto que as do tempo são sempre sucessivas”192. Responda-me então Licas: neste caso, a
eternidade é a sucessão infinita do tempo?
– É ... segundo o pensar de Kant, é.
– E você concebe tempo, sem acontecimentos? Sem fenômenos?
– Não. Tempo e acontecimentos são correlatos, não existindo um sem o outro.
191 M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, ll0
192 Kant, Crítica da Razão Pura, 43
107
se extingue, visto ser ele a medida do movimento. Para que o tempo exista é preciso mover, por
isso a eternidade é um tempo sem tempo, um tempo que parou e se tornou nulo ou zero. Logo
um tempo infinito é igual a zero (∞ = 0). Por aqui agora, meu Licas: atrás eu não disse que, pela
fórmula, a velocidade ficando infinita, o tempo fica zero?
– Sim ... disse.
– E se lá eu dizia ser inferno o não-tempo onde o não-ser se anula totalmente, como pode,
então, a eternidade que se confunde com Deus, ser também não-tempo? Não-tempo por infinita
velocidade do não-ser, e não-tempo por imobilidade absoluta do Ser por excelência? Como é
isto, Licas?
– Eu que sei?
– Mas você está sentindo que esses dois não-tempos têm sentidos opostos?
– Ah! isso estou; percebo que esses dois não-tempos se opõem entre si como o berço e a
tumba; mas não sei fazer a exegese do ponto, como o senhor o faria.
– O não-tempo de Deus é o repouso na imobilidade, onde o tempo ainda não nasceu; o
não-tempo do Diabo é o inferno da velocidade onde o mesmo tempo morreu. O não-tempo de
Deus existe por superação do movimento, por plenitude, por soberania e majestade do Ser, pois
não precisa ele mover-se para estar em todo lugar; o não-tempo de Satã existe por carência do
ser, o qual, para dominar mais, precisa correr mais; e quanto mais corre, mais pequeno fica em si
mesmo, e quanto mais pequeno fica em si mesmo, mais corre, e não só corre, mas incha, como o
elétron que precisa inflar-se do movimento, para depois encher consigo a sua órbita no redor do
núcleo atômico, tornando-a, deste modo, num anel, turbilhonário. Esta é a diferença, e não há
outra, dos dois não-tempos, o não-tempo e eternidade de Deus, e o não-tempo e nulidade de Satã.
O primeiro resulta da abundância e majestade do Ser que é, e o segundo, da extrema miséria do
não-ser que não é. O primeiro é o Ser mesmo, o Ser em si, enquanto que o segundo é só uma
vontade louca de ser, de não perecer de todo. Por isso no primeiro está o tudo, e, no segundo, o
nada. O primeiro é pleno da Essência que é, e o segundo gira sobre si, enfuna-se no vórtice,
cresce na velocidade, e sai-se numa disparada doida a dominar o que cuida seja seu, que é o
espaço vazio, o qual enche consigo. Porque lhe falta ao Diabo a substância, preciso é suprí-la
com a velocidade; por isso corre o demo como correm esses pobretões espirituais para irem
cuidar dos seus imensos haveres!... São pobres porque querem enriquecer-se da matéria cuidando
seja ela alguma coisa, quando, na realidade, ela não passa de movimento fósmeo... Por isso que a
riqueza, a glória e o poder terrenos são coisas ilusórias, visto fundar-se na matéria, e tanto mais
se é pobre, quanto mais se as ama e as busca. Estas coisas chegam ao sábio, como peixes na
rede, quando ele segue a sabedoria de Salomão que se limitou a pedir o saber que não outra
coisa!...
– Agora entendi, disse Licas. Mas há ainda uma coisa confusa para mim.
– Que é?
– É que o senhor declara ser o espaço curvo, finito e coexistente com a matéria. Mas eu
não posso imaginar um espaço infinito euclidiano?
– Pode. Foi o que sucessivamente Euclides e Kant fizeram. A consciência está para além
do espaço e do tempo. É livre, pode criar sonhos e imaginar quimeras que serão reais no seu
nível, no mundo conceptual, porém, não, no mundo físico, objetivo. Eu disse que o espaço é
curvo, esférico; mas suponhamos que qualquer coisa, um raio de luz, por exemplo, saia numa
dada direção; ela fará a curvatura do espaço, tornando ao ponto de partida, após mil milhões de
anos, como diz Einstein. Todavia, nós podemos imaginar que saímos, em espírito, pelo raio de
curvatura do Universo, e cortando o seu limite, avançamos pelo espaço afora sempre na direção
apontada pelo raio. Então estaremos no espaço subjetivo, abstrato, conceptual que existe na
mente de Deus, e dentro do qual o nosso Universo físico se dilata ou se encolhe. E pode ser que
haja outros universos fora do nosso, fechados, como este, em suas curvaturas. Pode ser que haja
os universos de anti matéria formando parelha dialética com o nosso, da combinação de ambos,
forma uma como molécula-universo. O nosso Universo todo esteve um dia concentrado num
ponto único, onde se formou, depois, uma esfera de dez mil anos luz de diâmetro. Ora, o espaço
ao redor daquele ponto, era o só conceptual ou abstrato, sem realidade objetiva para nós, por não
conter nada, e se continha alguma coisa, só podia ser o gene de outros universos. Depois formou-
109
se, por condensação da energia, aquela esfera cósmica que, mais tarde explodiu nas galáxias que
hoje se afastam daquele ponto comum, e o espaço objetivo ou material se expandiu sobre aquele
outro, o conceptual. Na mente de Deus o espaço é infinito, o tempo, eterno, e Ele, a Consciência
total. Infinito, Eternidade, Consciência, eis aí a realidade primeira e última das coisas. O espaço
é onde as transformações se dão; o tempo é a medida ou duração delas; a Consciência cósmica é
a Lei que tudo determina... Está satisfeita sua pergunta, Licas?
– Está.
– Neste caso, tornemos ao que íamos dizendo. Vimos atrás como os dois não-tempos
podem ser diferentes. Ora, um não-tempo é o tempo zero; e zero tempo também é o outro não-
tempo; logo, se um não-tempo é diferente de outro não-tempo, zero é diferente de zero (0 ≠ 0 ).
Se um zero é diferente de outro zero, igualmente, um infinito pode ser diferente de outro infinito
(∞ ≠ ∞). É que tanto o zero como o infinito são relativos, e variam de valor quando varia o
sistema de referências; eles dependem do que representam; o valor de zero e do infinito
dependem da sua posição relativa nos vários sistemas. E visto termos podido demonstrar que o
tempo tornado infinito corresponde ao não-movimento, e sabido que sem movimento o tempo
cessa, temos que o tempo infinito, ou eternidade, é igual a zero (∞ = 0). Em oposição a isto,
quanto mais alta for a velocidade, tanto mais o tempo se encurta tendendo para zero; a
velocidade, então, congela-se na massa, na rigidez, tornando-se no repouso da matéria que a
velocidade e só ela, criou. Quem é que iria cuidar, antes do advento das ciências, que um
penhasco “eternamente” parado, que temos sob as vistas, resultasse da velocidade congelada em
rigidez e massa? E se a velocidade dos elétrons, longe ainda de ser infinita, confere ao diamante
tal rigidez e dureza, tal inércia, de modo que ele risca e corta tudo o mais, que sucederia se a
velocidade intrínseca da matéria, de fato, se fizesse infinita? Esse rochedo “eterno”, parado,
imóvel, que temos sob as vistas, é movimento, Licas?
– É... a ciência no-lo confirma.
– E notem, prosseguiu o mestre, que estas conclusões obtivemos partindo da fórmula do
movimento. Estes são juízos sintéticos a priori, como o das ciências, que podem servir de base a
um novo “Organon”. E foi alcançada pela experiência que se fazem todos os dias com os
engenhos mecânicos que riscam os espaços. É muito mais seguro generalizar o princípio de um
fato isolado para obter uma intuição empírica, do que, como quer Kant, admitir a priori uma
intuição pura, por arte, de certo, adivinhatória, para fundar nela uma ciência, como a geometria,
por exemplo. Tratando ele da geometria, escreve: “Posto que as proposições da Geometria são
conhecidas sinteticamente “a priori” e com uma certeza apodítica, pergunto: de onde tomais
semelhantes proposições e em que se apoiam o nosso entendimento para chegar a essas verdades
absolutamente necessárias e universalmente válidas?”193. Se esta convicção de Kant que soa para
ele como um juízo apodítico ou axioma, correspondesse à verdade, as geometrias não euclidianas
como a hiperbólica de Gauss, Lobachevski e Bolyai, e a elíptica e esférica de Riemann, não
seriam possíveis. E vendo Euclides as dificuldades que se asilavam na teoria das paralelas “pede
se lhe conceda” formular o postulado, em função do qual toda a geometria existe. Mas aquilo
que Euclides pedia se lhe concedesse, Kant pretende impor, peremptoriamente, como se fora
verdade apodítica, tautológica, axiomática, e por isso escreve que sua doutrina (do espaço
infinito e tempo eterno como verdades apriorísticas e intuições puras) “não merece ser recebida
somente como uma hipótese verossímel, mas como um valor tão certo e seguro como pode
exigir-se de uma teoria que deve servir de Organon”194. E Kant, para enunciar esta sua teoria que
ele acha deva servir de Organon, se alicerça na geometria euclidiana contra a qual se insurgiram
outros geômetras criadores de outras geometrias, de modo que D’Alembert veio a falar do
escândalo da geometria. Kant acha impossível tirar, de uma intuição empírica, “uma proposição
universal, e menos ainda, uma apodítica, porque mediante a experiência não se podem jamais
conseguir de semelhante natureza”195. No entanto, como tenho demonstrado, da observação do
movimento no espaço a física relacionou velocidade ao tempo, induzindo a fórmula geral (e = t.
v) não só como verdade sintética, senão, também, a priori, visto que tem valor universal. Pela
193 Kant, Crítica da Razão Pura, 54
194 Kant, Crítica da Razão Pura, 54
195 Kant, Crítica da Razão Pura, 55
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aplicação do juízo de que o tempo cresce com o diminuir da velocidade, e vice-versa, pudemos
chegar à intuição empírica, porque derivada da experiência, de que Deus é eterno, imóvel e
imutável, dominando tudo por onipresença da Lei que é, e não por velocidade infinita que seria
preciso ter para estar em todo o lugar de um certo âmbito, como faz o elétron em sua órbita
atômica. Esta intuição empírica resultante da generalização da experiência, tem muito menos
probabilidade de ser contestada do que a afirmação adivinhatória de que o espaço físico,
objetivo, é infinito, sobre o qual se pode traçar linhas paralelas. É muito mais verossímel que o
espaço seja curvo, já que tudo é curvo no Universo, do que plano nos três sentidos do volume, de
modo a se poder traçar nele retas paralelas.
E depois de descansar um pouco no intervalo duma pausa, prosseguiu:
– Por esta parte, como vêem, cai este fundamento primacial de Kant. Por outra, esqueceu-
se ele de falar em como se dá a gênese dessa intuição pura, apriorística, de espaço-tempo em
nosso mundo subjetivo. No feto o espírito está dormindo na inconsciência; depois ele se
desperta, pouco a pouco, com as primeiras experiências dos sentidos, e vendo o espaço entre as
coisas, e estas, nele, forma o conceito de espaço juntamente com o de coisas. Observando os
objetos em movimento, concebe o tempo. Se a intuição pura, a priori, de espaço-tempo forma-se
com o mecanismo do conhecimento, como se fora uma peça biológica dele, então temos de
convir que esta intuição já existe já nos animais rudimentares, por isso que eles fogem à
aproximação de algum perigo, visto que esta aproximação não pode ser interpretada senão em
função de espaço (coisa e lugar) e tempo (movimento da coisa no espaço). E como diz Kant que
o espaço subjetivo é ilimitado, assim como o tempo, donde todos os espaços possíveis serem
partes do espaço infinito, e todos os tempos serem frações do tempo eterno, uma de duas: ou os
seres inferiores têm intuição pura a priori de infinito e de eternidade, ou esta intuição que têm de
espaço e de tempo se relaciona com as experiências que têm de coisas paradas e de coisas em
movimento. É impossível que uma intuição possa ser anterior ao cérebro; e o cérebro teve sua
gênese e sua história na escala da vida. Ao estímulo da luz formou-se os olhos, e ao do som, os
ouvidos; aos estímulos da problematicidade da vida, criou-se o cérebro como aparelho próprio a
resolver problemas, e a pensar. Como é então que alguma coisa pode surgir à priori,
independente do estímulo da experiência? A vida que criou e aperfeiçoou o cérebro humano, fê-
lo aos embates das lutas e tribulações; e nenhuma coisa ainda agora força mais o
desenvolvimento da inteligência que as lutas, as dificuldades, as polêmicas. Por isso é que
escolhemos o método polêmico para os nossos estudos filosóficos, como também o fez Platão.
Se tudo se fez e se faz pela luta que cria tudo e seleciona o melhor; se na raiz de qualquer
desenvolvimento está o estímulo da experiência; que vem a ser uma intuição pura, a priori,
independente da experiência que modelou até o cérebro? E como uma lula ou caranguejo não
podem ter noção nem de infinitude espacial, nem de eternidade, conquanto entendam muito bem
o meio que os circunda, e ajam sobre ele, segue-se que nossas intuições destas coisas originam-
se das experiências que tivemos desde a infância. O infinito, então, de Kant, é pura extensão do
conceito de espaço, aliás, primitiva, ou seja: uma exaustiva expansão de qualquer das três
dimensões do volume. É assim que o homem comum se esforça por conceber ou intuir o infinito,
por desconhecer onde a realidade objetiva termina, para, daí por diante, prosseguir a sua fantasia
de um puro espaço conceptual, sem realidade ontológica. Como a consciência é livre das peias
espaço-tempo, por isso ultrapassa a curvatura do Universo entrando no espaço conceptual ou
subjetivo. Tal com a eternidade; para Kant ela é a somatória de todos os tempos que vêm dum
não-começo e avançam para um não-fim. Ora, se como vimos, o infinito do tempo coincide com
a imobilidade, eternidade é onde o tempo não nasceu, visto estar tudo aí parado; depois alguma
coisa se move ou se transforma, e o tempo nasce, lento, longo, imenso. O movimento se acelera,
e o tempo encurta; a aceleração cresce... cresce, por uma parte, e o tempo se encurta na mesma
razão, por outra, até que o tempo morre quando a velocidade se fizer infinita. O tempo nasce no
seio de Deus, na imobilidade do Eterno, e morre no centro do Universo onde a velocidade se
torna infinita. O espaço conceptual é infinito na mente do homem, como na de Deus; e nesse, o
espaço físico, objetivo se expande ou se contrai. Porém, uma linha esticada através do espaço,
fará a curvatura dele, funcionando como coisa objetiva.
– Eis, meus caros, concluiu o mestre, que da visão do relativo podemos inferir leis e
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princípios, sim senhores, que depois se tornam a priori em relação a tudo o quanto delas se
deduz. E sua validade guarda relação com a das ciências que também são sintéticas a priori. O
próprio espaço de Kant, conquanto ele pretenda tenha antecipado o mecanismo do conhecimento
como intuição pura a priori, de fato surgiu com o mecanismo do conhecimento, visto que este
mecanismo surgiu aos embates das lutas e das experiências, que só estas forjam o cérebro
pensante, conforme o podemos comprovar pela observação do comportamento dos animais de
toda a escala zoológica que estereotipa a evolução. Portanto aquela intuição que Kant cuida seja
pura e a priori, na verdade nasceu pelas experiências, sendo, por conseguinte, intuição empírica,
a posteriori, conseguida pela extensão dum conceito. O conceito de espaço estendeu-se pelo
esforço de se lhe encontrar um limite sempre para mais além, e deste modo foi que surgiu a
primitiva e a posteriori intuição ou idéia de infinito. Idêntico sucedeu com o tempo como
duração de um movimento sensível, objetivo. A busca de um tempo cada vez mais anterior fez a
mente humana remontar à eternidade passada; pela aplicação do princípio de contradição,
pensou-se em um outro tempo igual, porém, futuro. Ora, como Kant afirma haver um tempo
único, do qual todos os outros são partes, vale perguntar: o tempo por vir faz parte desse tempo
único, ou só vale o passado? Se só vale o tempo passado para a conta, então há dois tempos que
são o passado e o futuro. Se dissermos que o futuro faz parte do tempo único, teremos outra vez
dois tempos, um real, que é o passado porque existiu, e deixou marcas, e outro irreal, que é o
futuro ainda em nada demarcado. Como saber, de antemão, o que há de vir? Como pôr na conta
um tempo que o será, por certo, mas que ainda não o é? Esta contagem do tempo futuro,
abstrato, irreal, prova que a mente humana está armada para penetrar o desconhecido com os
elementos de que dispõe. Como é que sabemos, com toda a certeza, que virá o futuro? Porque
temos experiência disto; o presente passou, e nós o vimos passar. Pela aplicação do princípio de
contradição, assim como o passado existe de fato, terá de existir, então, se bem que não de fato,
ainda, a sua adversativa, a sua oposição, o futuro. É assim que também podemos ter a visão do
Absoluto, pelo contemplar o relativo; da Imobilidade, como fez Aristóteles, pelo contemplar o
movimento; do Ato Puro, pelo contemplar a potência em transformação neste mundo
(Aristóteles); do Ser, como fez Parmênides, pelo contemplar o mundo fenomênico do vir-a-ser
puro heracliteano; da Realidade, pelo contemplar a sombra da Realidade, que é este mundo,
como fez Platão; de Deus, pelo contemplar a sua obra; do espírito, enfim, pelo contemplar a
matéria. O Universo físico, como muito bem o definiu aí o Chilon, é uma bolha de matéria
suspensa no seio de Deus. Por isto, o empíreo se situa para todos os lados da periferia do
Universo, e o inferno, no centro dele. E em relação a qualquer sistema, seja planetário, seja
galáctico, seja um simples orbe, o centro é sempre inferior à sua periferia do ponto de vista
espiritual.
E dirigindo-se o pensador para sua cadeira, foi arrazoando:
– Se a geometria euclidiana for verdadeira, e nasce do postulado das paralelas, preciso é
que o espaço objetivo, material, seja plano em qualquer sentido das suas três dimensões. Se tal
espaço objetivo é infinito, também infinita será a matéria que o enche e lhe dá objetividade, pelo
que ela se confunde com Deus, sendo, este, material. Por isso, até a moral está interessada na
demonstração do postulado quinto de Euclides, porque, se ele for verdadeiro, e Deus, material,
todos os nossos conceitos e juízos morais ter-se-ão de entender pelo avesso. Se, logo, Euclides
estiver certo, o espaço objetivo será infinito, e Deus, matéria, sendo negativa a moral de Cristo, e
positiva a moral da besta, estando com a razão Trasímaco, Machiavel e Nietzsche. O mal e a dor
serão, neste caso, positivos, como o dissera Schopenhauer, e a felicidade e o bem, negativos. No
entanto, se Deus é espírito, a matéria será finita e curva, tal como seu espaço objetivo, não sendo
possível, então, traçar nem retas, nem paralelas, estando errados Euclides e Kant, e certos
Riemann e Einstein. Eis como a verdade é una, não podendo estar em luta dois enunciados
verdadeiros, visto serem conseqüências de um princípio único – Deus. Não importa se falo, ao
mesmo tempo, de física e de metafísica, de geometria e de moral; para mim tudo são peças dum
mesmo jogo. Por esta causa julgo válido, para a metafísica, o método das ciências físico-
matemáticas, que se constróem por meio de juízos sintéticos a priori, como o afirmara Kant.
E querendo objetivar o que havia dito, pegou o pensador de um bola de borracha, e foi
riscando nela a sua demonstração, depois do que, disse:
112
– Olhem aqui: qualquer reta é uma circunferência que rodeia a esfera. As paralelas não
existem, porque se interceptam duas vezes ao circuitar a esfera. Todas as “retas” que passam por
um ponto exterior a uma “reta” dada (a linha do equador, por exemplo), cortam esta “reta” em
dois pontos antípodas da superfície esférica. A soma dos ângulos internos de um triângulo é
sempre maior que a de dois retos; e quando este triângulo cobrir um oitavo da superfície
esférica, terá três ângulos retos.
– O senhor me permite uma pergunta? atalhou Licas.
– Permito; pode fazê-la.
– O senhor afirma que o espaço objetivo é finito, pelo menos para nós que nos achamos
fechados em nosso universo. E o espaço subjetivo, acaso, será infinito?
– O espaço subjetivo é infinito, visto não ser material.
– E qual dos dois é o mais real? o subjetivo, ou o objetivo?
– Real vem de res, que quer dizer coisa. Ora, o espaço subjetivo não possui coisidade;
logo, não é real, sendo por isto, ideal. E quando digo que é ideal, emprego o é, verbo, que se
conjuga do verbo ser. Por isso, os objetos reais são, do mesmo modo que os objetos ideais
também são. Ambos, juntamente, formam o ser das coisas. Idealidade e realidade são aspectos
do ser das coisas, e só pela abstração e para fim de estudo, podemos separá-los.
– Então, pergunto de outro modo: qual dos dois espaços tem primazia? o objetivo, ou o
subjetivo?
– O que tem primazia é o espaço subjetivo ou ideal. Porque subjetivo deriva de
“subjectum” que diz respeito ao sujeito. “Sujeito, do latim subjectum, derivado de sub-jacere
(jazer debaixo), é aquele que está como base, substrato e sustentáculo de todas as coisas; aquilo
que causa efeitos, mas não é causado. Objeto, do latim objectum, derivado de ob-jacere (jazer
contra) é aquilo que está contra ou defronte, algo que é oposto ao sujeito, algo que foi emitido ou
individuado pelo sujeito subjacente”196. Por isso, meu prezado Licas, o espaço subjetivo tem
primazia por consistir no espaço do sujeito, e não no espaço do objeto que se opõe ao sujeito. É
assim que “no princípio era o sujeito universal, absoluto, não objetivado; e desse sujeito eterno é
que vieram os objetos temporais”197. O espaço do sujeito, ou subjetivo, é primordial por estar na
mente de Deus como possibilidade de ser criado nele o objeto, ou seja, o espaço da realidade
material, finito e curvo.
– Todavia, tornou Licas, Kant não afirma que o real e objetivo é que dá validade ao ideal
e subjetivo? Antes de haver o real, por conseguinte a pura idealidade era como os tais cem
“táleres ideais” não encontráveis no bolso de Kant. Portanto, sem a correspondente realidade, o
que for só ideal não é ser.
– Isso diz Kant, não, eu. Para mim os objetos ideais são, do mesmo modo que os objetos
reais também são .Ambos representam aspectos do ser que se mostra sempre composto por estes
dois objetos inextricavelmente ligados. Porém, os objetos ideais antecedem, como matrizes, aos
reais. Se eu não crio um objeto na mente, não posso executá-lo na prática. Logo, os objetos
ideais, no meu pensamento, antecedem aos objetos reais, sendo, estes, cópias daqueles que se
acham formados, isto é, como forma, em minha mente.
– Não obstante, quando o objeto já se me mostra pronto, feito por mãos alheias, acaso a
idealidade dele, que se transfere para mim, não procedem de sua existência real? Neste caso, o
ideal não provém do real?
– Sim, provém. No entanto, alguém ideou tal objeto primeiro, para depois projetá-lo de si,
para que ele existisse no mundo objetivo. Esse alguém pode ser um outro homem ou Deus. E é
em relação a esse alguém, que o ideal antecede ao real. O ideal precede ao real na feitura da
obra; o real antecede ao ideal na compreensão dela por parte do observador. Por isso, aquele
espaço subjetivo, formal, ideal, absoluto, infinito, da Mente divina, é antes do espaço objetivo
que procedeu daquele. Numa segunda fase, aquele espaço absoluto e infinito é intuído, a
posteriori, pela mente humana que o abstrai do mundo objetivo. Pois é somente naquele espaço
infinito, subjetivo, já na mente de Deus, e depois, na mente humana, que se podem imaginar
linhas retas e paralelas que se prolonguem ao infinito. Este espaço subjetivo de que falo, tem
196 Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 164
197 Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 164
113
primazia, portanto, sobre o espaço objetivo ou físico, na mesma proporção em que o Sujeito-
Deus é primaz em relação ao Objeto-Criação. Daqui vem que a metafísica tem prioridade sobre a
física, e o espírito possui prioridade e excelência em relação à matéria. Por este motivo repito:
só neste espaço subjetivo, abstrato, conceptual, ideal, podemos estender linhas imaginárias, e só
imaginárias, e não, linhas físicas, porque as linhas físicas, materiais, estão sujeitas às
propriedades, às contingências do espaço físico, objetivo. Sendo, Deus, espírito, seu espaço
infinito, imediato, é o espiritual, que é o mesmo que conceptual ou subjetivo, existindo,
aprioristicamente, só na mente de Deus, e, a posteriori, na mente humana, e isto, porque o
próprio homem faz parte dos objetos criados, e, como todas as coisas, se opõe ao Sujeito
Criador, tendo sido individuado dele e por ele no tempo e no espaço. E como o homem terreno
foi criado, por evolução, tudo de sua mente tem sua gênese e sua história.
E após uma pausa, para um descanso, prosseguiu argumentando, o pensador:
– Porque o espaço do nosso universo objetivo é finito, curvo, limitado no tempo, a
matéria que o enche, além de limitada também no espaço, possui sua gênese e sua história
cósmica. Não sendo a matéria infinita e eterna, ela não é Deus. Se Deus não é material, então, ele
é o oposto da matéria, como sua contraditória, que é o espírito. Logo, porque o espaço objetivo é
finito, curvo e limitado no tempo, por isso Deus é espírito, infinito e eterno. De onde saiu, então,
a intuição de matéria infinita e eterna de Kant, coexistente com Deus de toda a eternidade? Pois
saiu da infinitização do conceito de espaço objetivo. A procura do limite levou a mente humana a
outro limite, a outro, a outro, até o infinito, intuído como uma cansativa sucessão de limites. O
primeiro a cometer este erro metafísico de Kant, foi Satanás. Ele também possuia um corpo
material, conquanto de matéria de máximo raio de curvatura, como é a matéria de que se formam
os corpos perispirituais dos querubins. E por meio desta extensão do conceito do espaço restrito,
objetivo, o arcanjo chegou à conclusão de que aquele espaço subjetivo, infinito, que ele
concebia, que ele na sua mente, intuia era material; por conseguinte, pensa ele, a matéria é
infinita; conseqüentemente, a matéria é a deusa que tudo cria e ordena. Então, é dar primazia ao
corpo, pois é ele o que cria o espírito. A sabedoria, conclui ele, consiste no domínio da física que
não no da metafísica, visto que o ser é a matéria, e não, o espírito. A riqueza, por conseqüência,
consiste nos haveres que servem ao corpo. Amontoar bens, então, é o objetivo supremo, pois se o
espírito é função do corpo, a felicidade só pode ser função das riquezas. Ninguém, logo, poderá
ser forte e feliz, sendo pobre. E a lei moral vigente no empíreo, que se fundamenta no amor?
Ora, a lei...! Essa foi criada por aqueles que cuidavam que o espírito era tudo, e a matéria, nada.
Mas invertidas as posições, tudo deve ser entendido pelo avesso, e onde a lei diz: justiça, é
entender: força; onde diz: sabedoria, é replicar: astúcia; onde diz paz, é declarar: guerra; onde
diz dar, é entender tomar; onde diz amor, é colocar: egoísmo. Contra a lei moral, que se alicerça
no amor, contraponhamos, pensa ele, a lei da força e da astúcia, que se fundamentam no
egoísmo. Ser virtuoso é ser forte, e ser moral é ser desassombradamente forte; a moral é o
desassombro do forte (Nietzsche).
– Eis como se deu a inversão, continuou o mestre, primeiro, no plano moral, com se
esfriar e se inverter o amor que é o princípio de integração das unidades sociais; segundo, na
metafísica com que o anjo concebeu um sistema às avessas, fundado na matéria, que não no
espírito; e finalmente, físico, porque, como o mesmo egoísmo é centralização em torno do eu,
aquela matéria quase toda energia e diáfana do plano angelical, se encurvou na velocidade que
gerou a rigidez e a massa. Perdido que foi o amor, esta filosofia norteou a derrocada. Por isso é
que a subida evolutiva só poderá dar-se pela reconquista do perdido amor, e por uma metafísica
ou sabedoria contrária a esta do Demônio.
Disse. E levantando-se, a seguir, foi à estante, a fim de pegar um livro de Bertrand
Russell, para tê-lo à mão. E depois de procurar o trecho que tinha em mente citar, marcou-o,
com um pedaço de papel, prosseguindo:
– Do mesmo modo como Kant cuida seja espaço e tempo intuições puras, apriorísticas,
existindo, de antemão, na estrutura do espírito, independente de quaisquer experiências, também
assim são os conceitos puros do entendimento, ou sejam, as leis e princípios do pensamento, que
dão corpo à sua Lógica transcendental. Para Kant o espírito surge no cenário da vida armado
desses conceitos puros, a prioris, como se fôra um autômato cujo cérebro eletrônico funcionasse
114
corretamente, por ter sido gravado nele as leis e princípios das matemáticas. Quer dizer que esse
cérebro não desenvolveu, por si mesmo, aqueles princípios os quais, pelo contrário, surgiram
com o seu aparecimento. O cérebro elétrico resolve problemas complexos da física moderna,
mas isto se compreende claramente, uma vez quer seu construtor partiu da experiência e dos
fatos, para induzir as leis e princípios que, agora, foram introduzidos na máquina, e ela os aplica.
Todavia, um homem se difere dum autômato, entre outras coisas, nisto: ele se criou a si mesmo,
segundo leis cósmicas, e, pelo ensaio-e-erro, foi selecionando o certo do errado, e esse certo
constitui, agora, seu campo de conceitos abstratos, ou sejam as leis e princípios do pensamento.
Só os anjos não caídos tiveram criação imediata como os “robots” produzidos pelo homem;
porém, o homem foi criado por Deus, mas, mediatamente, isto é, através da evolução que o traz
das trevas para a luz, do Caos para Deus. Por isso o homem hoje pensa para agir, porque já
atravessou a fase empírica, animal, em que agia para pensar. Quanto mais inferior é o animal,
tanto mais emprega ele o método fundamental do ensaio-e-erro, para descobrir a solução dum
problema, por meio de tentativas impensadas. Todavia, achada a solução, é ela fixada para
aplicações futuras a problemas semelhantes. Assim é que ratos aprendem a andar e a sair dos
labirintos pela única porta possível; e cada vez que se repete a experiência, verifica-se que o rato
erra menos, até aprender de todo. Até peixes aprendem a contornar lâminas de vidro invisíveis
que lhes barram a passagem para os alimentos. Porém, os macacos já sabem refletir e antever
soluções, em vez de tentá-las, desassisadamente. Bertrand Russell fala das experiências de
Kohler que eu já havia lido em “Como Vivem e Sentem os Animais” de Wells e Huxley. Kohler
faz suas experiências com chimpanzés; “pendurava ele uma banana fora de alcance e deixava
caixotes perto, de modo que os chimpanzés, subindo nos caixotes, pudessem alcançar a fruta. Às
vezes, eles precisavam empilhar três ou mesmo quatro caixotes, um em cima do outro, a fim de
ser bem sucedido. Depois, colocava ele a banana fora das barras da jaula, deixando dentro uma
vara, e o macaco conseguia apanhar a banana por meio da vara. Certa ocasião, um dos
chimpanzés, chamado Sultão, tinha duas varas de bambu, ambas muito curtas para chegar até à
banana. Após alguns esforços inúteis, seguidos de um período de silenciosa meditação, o animal
introduziu a vara menor na parte oca da outra, construindo, assim, uma vara suficientemente
longa. Parece, porém, pela descrição, que ele primeiro introduziu uma vara na outra mais ou
menos acidentalmente, percebendo somente depois que encontrara uma solução” (...) “Ficou o
chimpanzé tão contente com o seu novo truque, que puxou várias bananas para a jaula, antes de
comer qualquer delas. Procedeu, com efeito, como os capitalistas com relação à sua
maquinaria”198. Aqui, como venho demonstrando, o puro ensaio-e-erro já se vai transferindo para
o mundo subjetivo do pensamento; “o problema real já está suficientemente definido no trabalho
de Kohler: é a análise do “discernimento” (insight) oposto ao método do reflexo
condicionado”199. Os conceitos abstratos que tem o homem em si gravados, portanto, são filhos
da necessidade, da luta e da dor. A vida é problematicidade; ou se resolvem os problemas, ou se
é posto de lado. Nos níveis inferiores, a não solução de um problema vital, implica,
inevitavelmente, em tragédia e morte; não há alternativa possível. É por isso que a natureza está
cheia de paralelismos: o útero do animal e o ovário das plantas se coincidem ponto por ponto,
não que um houvesse copiado o outro, mas, porque essa é a única solução do problema biológico
enfrentado pela vida nestes dois reinos diferentes. As fórmulas químicas da hemoglobina e da
clorofila são idênticas quanto à estrutura, com a diferença só do eixo ou parte central que, na
hemoglobina, é ferro, e na clorofila, magnésio. “As duas moléculas parecem-se, a ponto de
darem a impressão de serem irmãs; e como tais as considerava outrora o mundo contemporâneo.
Entretanto não o são; desenvolvem-se independentemente e constituem um exemplo de
paralelismo”200. Referindo-se às sibas diz Fritz Kahn: “No tocante à história da evolução, esse
animal nada tem de comum com o homem; mas tomem nota: quando o plasma se organiza em
criatura, aparecem construções de planos fundamentais análogos”201. Por isso, “se, nos outros
planetas, vivem seres dotados da visão, estas criaturas devem ter olhos de estrutura análoga à dos
olhos do animal vertebrado e da siba; saudarão o recém-chegado e este terá a impressão de haver
desembarcado entre “irmãos”202. Assim também com as leis do pensamento: são como são,
porque não poderiam ser de outro modo; errar no pensamento é errar na ação, e errar na ação é
sofrer ou perecer. É muita pretensão, por isso, dizer que a lógica só passou a existir, depois do
código de Aristóteles, pois que, se o homem não soubesse aplicá-la, ainda seria antropóide. Até
no instinto há lógica, que, do contrário, o ser pereceria; e este instinto teve sua gênese no ensaio-
e-erro-e-seleção, cujos resultados se cristalizaram no espírito, primeiro como hábitos, e, depois,
como instintos, ou seja, hábitos das vidas pregressas do ser. Tudo, portanto, teve sua gênese na
experiência, nada existindo a priori e construído sem saber como, conforme o pensar de Kant.
E depois de um silêncio continuou arrazoando:
– Os conceitos do pensamento puro, a priori, se referem aos objetos, e foram criados,
independentemente, da presença e do estímulo deles? Seria o mundo subjetivo, paralelo e à parte,
do objetivo? Seria que ambos são iguais por ser essa a linha do certo? Teria o paralelismo natural
agido aqui, também, como no caso do útero dos mamíferos e o ovário das plantas? Por aqui não
se pode romper caminho, por que, tanto os animais como as plantas chegaram a um mesmo
resultado, independente um do outro, pelo autodesenvolvimento, seguindo a linha do certo; as
infinitas tentativas frustradas, os erros todos, foram simplesmente eliminados do cenário da vida.
Um, portanto, espelha o outro, por causa da lei comum que os plasmou. Porém, aquilo que o
homem possui dentro, no seu mundo subjetivo, se não se formou em função do mundo objetivo e
da experiência, então como surgiu? Teria o homem sido feito por Deus diretamente, fora dos
caminhos da evolução, sendo ele um ser à parte, semelhante a um cérebro eletrônico fabricado
pelo homem? Será que Kant partiu do pressuposto de que o homem não evoluiu?
E depois de permitir aos presentes divagarem por estas questões, prosseguiu:
– Mas a evolução do homem é um fato: di-lo as já clássicas seis provas, uma das quais
demonstra possuir o homem nada menos que duzentos órgãos residuais. “Hoje, ninguém mais
nega o fato da evolução orgânica – exceto, naturalmente, os indivíduos ignorantes, supersticiosos
ou dominados pelo preconceito”203. “O corpo do homem adulto é uma das melhores provas da
Evolução; e o desenvolvimento particular de cada um de nós é uma verdadeira certidão
juramentada da história evolutiva da nossa espécie”204. “Mais uma vez verificamos que, sem a
Evolução, a biologia se comporia somente de fatos desconjuntados; ao passo que, com a
Evolução, ela se nos afigura uma grande história dramática, formada de milhares de aventuras
entrelaçadas”205.
E fechando o livro, descansou as vistas no cenário distante, que se mostrava através da
janela; e deparando com umas flores vermelhas iluminadas pelas lâmpadas da rua, continuou:
Se eu lhes disser que aquelas flores vermelhas, daquele quintal, não têm cheiro, que juízo fariam
de mim? Acaso, que fui cheirar as flores? Digo-lhes, entretanto, que esta minha asserção encerra
um juízo sintético a priori que é o fundamento das ciências. Parto da verdade de fato de que as
abelhas são daltônicas, e por isso não enxergam o vermelho, vendo, todavia, muito bem, o azul;
já os pássaros que enxergam o vermelho, são cegos para o azul; logo, aquelas flores são vistas
pelos colibris, e não, pelas abelhas. Como os pássaros são notoriamente pobres de olfato, segue-
se que as flores polinizadas por eles, além de vermelhas, não tem cheiro. Já todas as flores roxas,
lilases, azuis, visíveis para as abelhas, e não tanto para os pássaros, são perfumosas. De quatro
verdades de fato: primeira, as abelhas enxergam o azul, e não o vermelho; segunda, os pássaros,
ao contrário, não vêem o azul, mas sim, o vermelho; terceiro, os pássaros são pobres de olfato, e,
as abelhas, bem dotadas dele; quarto, existe, na natureza, o princípio de colaboração egoística,
pelo qual, cada parte buscando alcançar seus próprios fins, colabora na realização dos objetivos
das outras; destas quatro verdades de fato concluo, apoditicamente, que aquelas flores vermelhas,
próximas àquele poste de iluminação, não têm cheiro.
E feita uma pausa longa, meditativa, concluiu o pensador:
– Tornando ao que ia dizendo, os fatos da evolução, se entrelaçam, dando-nos uma lógica
deles, donde vem que essa teoria nos fornece meios para construir verdades de razão, partindo
das verdades de fato. Isto mesmo foi o que fez Darwin: “Quando se descobriu uma orquídea de
Madagascar, com um esporão de mel de 27,5 centímetros de comprimento, Darwin profetizou
que, na mesma região, dever-se-ia encontrar um inseto com uma tromba do mesmo
comprimento; e, de fato, poucos anos depois, o referido inseto foi descoberto – a mariposa-
falção, cuja tromba tem justamente 27,5 centímetros de comprimento”206. Aí está, como “a
consciência humana é uma das obras-primas da Evolução”207, pois tendo descoberto a esta, pode,
agora, antever e explicar uma quantidade imensa de fatos que Aristóteles, Lineu e Cuvier
jamais suspeitariam fosse possível. À toa não foi que Pascal declarou ser o homem, “em si
mesmo, o objeto mais prodigioso da natureza”208. E sendo o homem um objeto, como os demais
objetos, e uma coisa, “uma coisa que pensa”, no dizer de Descartes, ele, e tudo o que existe nele,
foi forjado durante a subida evolutiva, nada havendo que não surgisse da problematicidade da
vida e das vivências. Do mesmo modo, por conseguinte, como não há intuição pura a priori do
espaço e do tempo, não há os tais conceitos puros, apriorísticos de Kant, que se relacionam com
os objetos em geral, e que, ao mesmo tempo, absurdamente, são independentes de todas as
condições da sensibilidade, sem nenhuma fundação na experiência que a vida executou desde os
seus primórdios até o homem. Esta é a causa de ser Kant o mais difícil de todos os filósofos; é
escuro, por ser absurdo em suas proposições mais fundamentais; e como tudo decorre destas, é
só mesmo dizendo com Bertrand Russell: que Kant não passa duma desgraça.
E trocando o livro de Bertrand Russell pelo de Kant, continuou:
– Kant afirma que estes conceitos puros, apriorísticos, são anteriores a qualquer
experiência, como vimos, e contudo admite que se relacionem com os objetos em geral. Os
conceitos e seus respectivos objetos existem, separados, como ocorre com as mônadas de
Leibniz; ambos funcionam graças a um acerto sincrônico feito pelo Criador, sem nenhuma outra
relação que não a da simultaneidade. Pois é claro: sendo o espaço, segundo o pensar de Kant,
uma intuição pura, a priori, por isso que já existe pré-formada em nosso espírito, todo o conceito
que derivar desta intuição, será, também, puro, a priori. Das propriedades do espaço euclidiano
resulta a possibilidade do traçamento de retas paralelas. Cortando-se as paralelas por uma
secante, surgem as primeiras verdades axiomáticas e os primeiros teoremas deduzíveis,
apoditicamente, daquelas primeiras verdades fundamentais e gerais. Por causa de o espaço ser
uma intuição pura, a priori, todos os conceitos da geometria, necessariamente, o são também. E
como saber, agora, que toda essa construção subjetiva, tem correspondência com o mundo
objetivo? Para isto é preciso, como diz Kant, submeter os conceitos puros a uma comprovação
dedutiva, a fim de ver se a prática confirma aquelas verdades apriorísticas; sem esta “dedução
transcendental do dito conceito” (...), se “procederia cegamente e depois de haver vagado de um
ponto para outro, voltaria à ignorância donde partira”209. Trata-se, portanto, de “renunciar
completamente a toda pretensão com respeito à razão pura, em seu campo mais atraente, a saber:
além dos limites de toda experiência possível, encaminhar esta indagação crítica à sua completa
perfeição210. Este ponto mais atraente, que é a pura especulação metafísica sem base nenhuma na
experiência, terá de ser renunciado para submeter os conceitos puros, apriorísticos à pedra de
toque da experimentação. Então, por que não ir daqui para lá, como fez Aristóteles, e da
experimentação induzir os princípios gerais, sintetizando-os ainda mais até chegar àqueles
conceitos que Kant dá como sendo puros, a priori, por fazerem parte do mecanismo inato do
processo de conhecer? Partindo da experiência, os conceitos são a posteriori, e como eles
englobam um número infinito de experiências não feitas, por isso Kant lhes nega validade. Mas,
e a comprovação dos seus conceitos puros, apriorísticos, acaso poderá ser feita por um número
infinito de experiências? Se um número reduzido de experiências comprovam seus conceitos
puros a prioris, por que razão as mesmas experiências não darão validade aos mesmos conceitos
considerados sintéticos, a posteriori? Se não se dispõe de possibilidade para todas as
experiências, o tal conceito puro só é válido no ponto em que foi comprovado pela
experimentação e pelos fatos, e nada além disto. Ou se podem generalizar os conceitos obtidos
da experiência, ou não são válidos aqueles conceitos puros a prioris na parte a ser comprovada
exaustivamente pelos fatos.
E respirando o mestre, fundamente, numa pausa, continuou:
– Como vêem, tudo isto não passa de logomaquia kantiana, prejudicial à descoberta da
verdade, sobretudo, por não esclarecer como é a gênese desses conceitos puros que nos forma o
mecanismo do pensar. Se é verdade que “Locke encontrou na experiência conceitos puros do
entendimento, que fez derivar da própria experiência, e foi, portanto, tão inconveniente, que
procurou conhecimentos que ultrapassam os limites da experiência" 211; se é isto verdade, verdade
também o será que nem Kant, nem ninguém poderá esgotar, através de experiências, as
possibilidades todas de um conceito puro a priori extenso. Então toda a zona coberta por ele,
porém, não comprovada, é zona de dúvida. Toda indução e síntese ultrapassa os limites da
experiência, por isso que é uma generalização que supõe como feitas muitas experiências por
fazer. Se da observação do movimento (experiência) induzo o princípio de que o tempo decresce
com o crescer da velocidade, por que não estará certo isto nalgum lugar do Universo? E se o
está, então, não é certo, igualmente, que se a velocidade tender para o infinito, o tempo tenderá
para zero? Pela reciproca, não é exato que quando o movimento diminui, o tempo aumenta? E se
o movimento parar, logo, o tempo não fica infinito, que é a eternidade? Não é experimental que
posso achar no elétron orbitário de um átomo, esta velocidade altíssima, de tempo reduzido, e, no
extremo oposto deste quase não-ser, intuir o tempo eterno de Deus que não se move por ser
onipresente e imutável em sua natureza de Lei? E tudo isto não ultrapassa o limite da
experiência? Será que estaria melhor se eu dissesse, à moda de Kant, que estas coisas relativas a
Deus e ao elétron são conceitos puros, apriorísticos, e depois provar que eles são verdadeiros,
visto que deles deduzo o princípio do movimento, demonstrável pela experiência feita com um
veículo ao qual aumento e diminuo a velocidade, para verificar que, respectivamente, se encurta
e se alonga o tempo?
E depois de breve descanso numa pausa, argumentou o mestre:
– Pouco há, dissemos que Kant se expressa assim, falando de espaço subjetivo e de
conceitos puros, a priori: diz ele: “Daqui resulta que não somente fazem suspeitar com respeito
ao seu valor objetivo e aos limites de sua aplicação, como também convertem em duvidoso o
conceito de espaço pela inclinação que (todos) têm em usá-lo além das condições da intuição
sensível”. Ora, o conceito de espaço, conceito, não intuição pura, é o espaço definido,
delimitado, e por isso, objetivo. “Usá-lo além das condições da intuição sensível”, consiste em
estender essa intuição sensível, esse conceito limitado, cada vez mais para além, até chegar ao
infinito. Deste modo o espaço objetivo e material fica infinito, coincidindo com o espaço
subjetivo que só existe em nossa mente, como abstração, o qual Kant dá como sendo intuição
pura, a priori. E por que não? Acaso os tais conceitos puros, a priori, de Kant, não têm que
corresponder aos dados da experiência efetuada no mundo objetivo? Não é a experiência que dá
validade às intuições e conceitos puros, a priori, existentes, segundo Kant, em nosso espírito? Se
as intuições e conceitos puros, a priori, do mundo subjetivo têm de ser comprovados,
objetivamente, pela experiência, segue-se, necessariamente, que, só estas têm valor, e tudo o que
transcende delas, e não pode ser provado, nada é. Uma de duas então: ou estender o conceito de
espaço até o infinito, ou não tem validade nenhuma a intuição pura, a priori, do espaço infinito,
subjetivo, visto como não podemos ter experiência nenhuma dele. Se são as experiências que
validam as intuições e conceitos a priori do mundo subjetivo, é proceder, então, como a ciência
físico-matemática moderna que, desprezando os apriorismos kantianos, fundou seu conceito de
espaço objetivo na experiência; espaço é o campo eletromagnético, e tem máxima curvatura no
lugar em que estiver a matéria. A matéria é o lugar onde o campo é máximo. E o espaço será
tanto mais curvo, quanto mais concentrada for a matéria que ele circunda, verificando-se a
máxima curvatura nos chamados “anões brancos”, nos quais se deu o colapso dos átomos,
formando a pasta nuclear. Espaço e matéria coexistem inseparáveis, sendo espaço pura abstração
da matéria, e matéria, objetivação de espaço. Logo, só há espaço, onde houver matéria. E como
211 Clássicos Jackson, XII, 104
118
a matéria é finita e curva, finito e curvo há de ser também o espaço que lhe corresponde. Por
conseguinte, ou há outros universos para além do nosso, ou há uma energia-substância divina
enchendo o resto do espaço além do de nosso universo, ou do contrário, Deus, para além da sua
Criação, é puro princípio vazio, pura idealidade subjetiva.
– E o espaço subjetivo? acaso podemos deixar de imaginá-lo infinito? perguntou Licas.
– Não podemos deixar de “imaginá-lo” infinito, como se expressou muito bem você, por
causa da extensão indevida do conceito de espaço objetivo; é infinito, porque a mente está fora
das contingências do espaço-tempo, e por isso pode operar com objetos ideais, isto é,
idealidades, próprias do seu plano, do plano do pensamento puro, porém, que não passam de
sonhos e quimeras em relação às contingências do espaço-tempo, ao férreo determinismo
fenomênico energia-matéria. Só de um nível superior se pode operar com e sobre o inferior;
assim, a linha só pode ser movida e encurvada no plano; este, no volume; o volume só poderá ser
movido no tempo, e este só poderá ser encurvado na consciência. Já vimos que o tempo é curvo,
visto estar circunscrito aos fenômenos ocorridos no espaço que também é curvo. A consciência é
a dimensão superior à do espaço-tempo, e por isso, nela, todos os movimentos são possíveis.
Sendo ela uma dimensão superior, contém, em si, todas as que lhe ficam abaixo, com as quais
opera. Agora, não esquecer isto, meu caro Licas: sendo a consciência uma dimensão, superior,
possui em si seus movimentos próprios, como a imaginação, por exemplo, sem correspondência
fática nos níveis inferiores. Deste modo, “se o espírito do homem”, segundo Bacon se expressou,
“atuar sobre dada matéria, atuará de acordo com a substância dela e por ela se limitará; mas se
atuar sobre si próprio, como a aranha a tecer sua teia, será uma coisa sem fim, acarretando com
isso teias de aranha de conhecimento, admiráveis pela delicadeza do fio e do trabalho, mas sem
valor ou utilidade”212. Por isso, diz ele, “a imaginação pode ser a maior inimiga da inteligência,
quando não se limita a prestar-se, unicamente, a suas tentativas e experiências” 213. Assim, os
mundos criados pelo pincel genial de Walt Disney são ideais, próprios do plano da consciência,
do mundo subjetivo da imaginação e do pensamento; todavia, do ponto de vista objetivo,
material, são irreais. Tal o espaço infinito: um sonho de luz e cores de Walt Disney,
perfeitamente ideal e compreensível no nível consciencial, porém, sem correspondência no
mundo fático, objetivo, de nosso universo conhecido. Como se é livre para sonhar, eu imagino a
existência de outros universos para além da curvatura do nosso. Ou imagino isto, ou tenho de
supor que Deus é limitado. Não posso aceitar como realidade a pura forma; a forma vazia de
conteúdo, mesmo para Deus. Um Deus forma pura, um Deus ideal, subjetivo, é como os “cem
táleres ideais” de Kant. Para mim Deus é e existe. É, por ser essência, e existe, por possuir um
conteúdo de energia-substância na sua forma mais alta, que é o Amor. Deus é amor substancial,
que não só forma ou essência pura. Por isso, e só por isso, é que podemos imaginar ou intuir o
espaço infinito, um espaço cheio da energia-substância-amor. Está satisfeita sua pergunta, Licas?
– Está.
– Ficamos sabendo, então, resumiu o mestre, não existirem conhecimentos puros a priori,
visto que todos são posteriori, e as intuições resultam da extensão dos dados da experiência.
Deste modo é que se desenvolveu o pensamento humano, e se criaram as ciências e as filosofias.
De uns poucos indícios induzimos um princípio geral que funciona como hipótese de trabalho, e
desta hipótese partimos, a priori, para outras experiências e comprovações. Comprovada a
hipótese pela experiência, ou demonstrada por argumentos lógicos, ela, por sua vez, permite a
formulação de hipótese e teses mais gerais ainda, e assim por diante. Este é o caminho
palmilhado pelas ciências, e não aquele de Hume que foi procurar o fundamento primeiro em
que os demais se assentavam, acontecendo cair no ceticismo por ter buscado um impossível. Este
alicerce que ele procurou alcançar pelo recuo, levou-o ao ceticismo mais extremo. Hume quis
procurar a base no pólo oposto ao de Deus; em vez de procurá-lo no sentido da síntese, foi
buscá-la na análise, e assim, pelo retrocesso de base a base, ele chegou ao nada, pois é este o
caminho de se ir ao não-ser. Não é, pois, de admirar, que ele se tivesse perdido no ceticismo.
Pelo avançamento, de generalização em generalização, Platão chegou à idéia, do Ser que ele
chama real, e do seu mundo dado como sendo o real das idéias arquétipos imutáveis e eternas.
212 Will Durant, História da Filosofia, 122
213 Will Durant, História da Filosofia, 147
119
Desta intuição platônica saíram todas as filosofias do passado, que ainda governam o mundo,
diferenciada em leis, costumes, morais, religiões. Esta base está lá, onde a síntese alcança,
inacessível pela análise. Por causa disto, reparem bem: qualquer síntese, sem nenhuma exceção,
é sempre um produto, e nunca uma soma dos elementos, visto como, na síntese, existem
propriedades novas, não encontráveis nas partes componentes. É por isso que o hidrogênio e o
oxigênio quando combinados, formam a água cujas propriedades não fazem, nem de longe,
lembrar as daqueles dois gases. Como posso ter o pensamento nesses dois gases, ao examinar, ao
microscópio, as maravilhosas formações cristalinas da neve? Acaso um sábio, porque descobriu
a fórmula química dos gens, sabe o que vem a ser a vida? “Não há diferença entre vivo e
inanimado. O vivente é uma potenciação das forças normais da natureza”214. “O plasma não é
matéria, mas sim organização. Uma matéria como o aço pode correr em quantidades desmedidas
dos altos-fornos; organização como os automóveis só podem sair da linha de montagem em
exemplares isolados”215. O busílis está nesta potenciação, nesta organização, e não na química,
nem na física. Tanto que dois indivíduos humanos se ligam, surgem as propriedades do social
que não existiriam num Robinson Crusoé mais radical ainda que o legendário. Imaginemos uma
criança abandonada numa ilha salubérrima, rica em frutos, peixes e animais pequenos e
inofensivos. Aos vinte anos esse homem encontra uma mulher semelhante a si, criada em ilha
diferente. Pois na sociedade formada por esse par, surgiriam as propriedades do social até então
desconhecidas de ambos. Daí o dizer-se que a sociedade é um produto, e não um soma dos
indivíduos. Aqui está por que a síntese representa sempre acrescentamentos de "quês"
irredutíveis pela análise. Por esta causa a vida só pode ser estudada nos seres vivos, e nunca, em
cadáveres, do mesmo modo que a sociedade tem de ser estudada no social, e não nos indivíduos
isolados. Os indivíduos assumem atitudes sociais imprevisíveis para eles mesmos, se ignoram
sociologia, forçados pelas contingências do meio social em que se acham. Do modo como os
mesmos indivíduos se arranjam na estrutura social, depende a forma das diferentes sociedades.
Um indivíduo humano bem plástico, versátil, como são os artistas cênicos, assemelha-se ao
átomo de carbono, e, por isso, pode assumir todas as atitudes e representar todos os papéis,
conforme a exigência da peça. É completamente impossível fazer derivar as propriedades
variadíssimas dos compostos orgânicos, das propriedades isoladas do carbono, do hidrogênio, do
oxigênio, do azoto e do enxofre. No entanto, a complexa estrutura da vida se apoia,
fundamentalmente, nestes cinco corpos simples que se pode guardar muito bem de memória, por
formarem a sigla CHONS. Se cada arranjo diferente destes corpos químicos, produz um
complexo diferente, então, a diferença tem de ser procurada no arranjo, e não nos corpos
isolados; é tarefa, portanto, da alçada da biologia, que não da química, visto que o arranjo que
produz as diferenças não pode ser reduzido pela análise, como gostaria Hume de o fazer. Logo,
se pelos caminhos de David Hume não podemos encontrar o fundamento último das coisas, é
buscá-lo no extremo oposto. Se na direção do não-ser tudo se nos esvai da mão, é ir na outra
direção, na da síntese, na da grande Síntese, na do Ser por excelência que é Deus, e aí, então,
acharemos o fundamento de tudo, conquanto não o possamos abarcar por causa da nossa
pequenez. E é nisto mesmo, na nossa pequenez, que está o perigo de erros; como a base nos
ultrapassa, cuidamos, a priori, como Kant o fez, que ela esteja onde não está. O apriorismo
kantiano dava como verdadeiro o espaço de Euclides, onde se alicerçava a geometria plana. Com
isto Kant admitiu o espaço objetivo ou físico como sendo infinito, porque só num tal espaço
poder-se-iam traçar as paralelas de Euclides, base da sua geometria. Então aconteceu o inevitável
desta conclusão: se o espaço físico é infinito, Deus é material, e o é, mas do modo como
expunha, e não como teima Kant, na extensão infinita da matéria bruta. Eis o perigo de cuidar
esteja a base onde não está. Por isso é preciso cautela. Por outro lado, todavia, a análise não nos
pode dar o conhecimento almejado, porque ela fragmenta e destrói, levando-nos no rumo do não-
ser.
Feita uma pausa, para descanso, continuou o mestre:
– A menor distância encontrada até hoje é o raio dum elétron (10 -13 cm.) “Distância
menor parece não existir e alcançado este limite o espaço não é mais de composição
214 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 36
215 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 321
120
E consultando o relógio, e vendo que era tarde, o mestre resolveu deixar o resto para
outro dia.
Capítulo VI
123
Ansiosos por ver o que Árago traria de novo para o pensamento filosófico, os estudiosos
todos estiveram presentes, no outro dia à casa do pensador, tão logo caiu a noite. E Árago não se
demorou, pois passara o dia todo em casa estudando. Depois dos cumprimentos habituais, e de
Árago tomar seu assento à mesa, principiou ele a falar:
– Estivemos ocupados, ontem, em estudar os objetos do conhecimento. Amanheci hoje,
porém, com vontade de aprofundar o estudo da vida, e ver por ela, como seria o seu Criador. Se
concordarem, gostaria de vermos juntos, que idéia poderíamos ter de Deus, ao contemplar sua
obra mais completa, a vida.
Todos aquiesceram, prazerosos, depois do que, Árago continuou:
– Herbert Spencer é o filósofo da evolução. Porém, no seu tempo, não se tinha ainda
reunido a formidável mole de fatos como ocorre hoje. Os anti-evolucionistas bradavam, então,
pelo elo faltante que ligaria o homem ao macaco. Começou-se, então, a busca do elo, até que, na
África do Sul, nos terrenos calcáreos de Johannesburg, foram achados ossos de homens-símios.
“Ao tempo em que ficaram terminados os primeiros estudos científicos imparciais, em 1950, as
provas eram esmagadoras. O veredicto foi emocionante: descobrira-se finalmente o elo que há
muito se procurava”221. Hoje não há só um elo descoberto, mas, séries inteiras deles.
“Encontraram-se partes de esqueletos de seres que ocupavam posição intermediária entre o
mesopiteco e o homem. Os restos provenientes dos locais desses achados revelam, de modo
inconfundível, o emprego do fogo. Muitos cientistas vêem no primeiro e consciente emprego do
fogo o início da vida humana propriamente dita”222. Existe até “a curiosa designação “antropóide
pitecantropóide”, cunhada em vista da multiplicidade das formas intermediárias”223. “Esses
semimacacos (Mesopitecos) são nossos antepassados diretos. O homem não descende do
macaco, como se julgou dever interpretar a teoria de Darwin, mas desses mesopitecos. Na
história genealógica o primata não é pois nosso pai, mas nosso primo” 224. Por exemplo, “o
chimpanzé não está ligado a nenhum outro animal senão ao homem pela posse de muitos
caracteres hereditários. Isso significa que existiu noutro tempo uma raça de antropóide de cujos
descendentes vivem ainda os chimpanzés e os homens, ao passo que todos os outros antropóides
atuais já se tinham desviado dela muito antes desta última separação”225. Como vêem, “o homem
não descende do chimpanzé. Embora se atribua à evolução da linha do oreopiteco uma duração
razoável, a separação símio/homem talvez remonte a uns 40 milhões de anos”226. “O homem tem
menos de um milhão de anos”227. E até o presente, “os mais antigos restos de animais
fossilizados foram descobertos na Austrália. Remontam a 500 ou 600 milhões de anos” 228. E “as
formas mais antigas de primatas datam de 70 milhões de anos”229.
radiocarbono"231. É deste jeito que se sabe que “o caixão de Sesóstris foi feito há 3.750 anos” 232,
e que há “sandálias de 9.053 anos, segundo o relógio de carbono de Libby” 233. Como “não há
coisa que não seja dotada, pelo menos, de uma radioatividade mínima”234, a ciência descobriu
que o isótopo de hidrogênio, o trício, é radioativo, desintegrando-se e reduzindo-se à metade em
doze anos e meio. E para a contagem do tempo paleontológico e geológico usa-se o urânio U238
que, ao desintegrar-se, produz o tório, o bismuto, o polônio, os vários rádios até o D que é o
chumbo estável. “O Rádio D, quimicamente, não é senão chumbo; por isso mesmo, não é
possível separá-lo quimicamente de si próprio” 235. Considerando que o urânio da Terra tem a
mesma idade do urânio de qualquer ponto do universo, visto que todos os átomos pesados foram
forjados no seio do “Colosso Primitivo de Alpher, Bethe e Gamow” 236 , então, podemos conhecer
a idade do Universo? “Da relação entre o urânio e os seus produtos de decomposição resulta que
a crosta terrestre tem 3.500 milhões de anos. Do urânio primitivo ainda existe mais ou menos a
metade”237 . Porém o urânio teria gasto outro tanto de tempo a formar-se no seio do “Colosso
Primitivo”, como, por outros meios, se pode saber. Assim “os aerólitos ou pedras meteóricas são
os selos na certidão de nascimento do universo. Cai algo do firmamento, ardendo em brasa,
chiando como lacre e imprimem-se no globo terrestre como sinete. Corre-se para ver, lê-se a
gravação e eis que se sabe: nascimento do universo, há sete mil milhões de anos”238.
E feita uma pausa, concluiu o mestre:
– Que distância vai tudo isto do que escreveu James Ussher, em l.654! Este bispo irlandês
anunciou “que o mundo foi criado a 26 de outubro de 4.004, antes de Cristo, pelas nove horas da
manha”(?!)239. E a Versão Antiga da Bíblia traz, à margem, esse cálculo.
E fechando o mestre os livros de que fizera citações, concluiu:
– Como vêem, o homem procedeu debaixo, de seres que lhe são inferiores. Hoje não é
mais preciso ao filósofo proceder à coleta de fatos, como fizera Aristóteles no passado. As
ciências se incumbem desta tarefa, ficando reservado ao filósofo o trabalho da organização em
sistema, da congérie dos fatos que cada dia mais se amontoam. E do mesmo modo como se
procurou e achou o “elo que faltava” da cadeia, outros elos se encontraram ligando os macacos
ao tarsus, e este, ao lêmur. Descobriu-se, pelo registro fóssil, que o musaranho passou para o
lêmur primitivo, de cabeça canina, e este, para o lêmur do tipo Tarsius, com fisionomia
macacóide, de que se originou o macaco primitivo e o pré-homem. Por causa disto, “não
devemos esquecer que os monos evoluíram tão bem como nós outros, sendo hoje mais monos do
que o foram ontem, enquanto nós o somos menos"240.
que “saem do seu papel”. Alguns concentram o elemento tóxico selênio; outros, como a
cavalinha, contêm quantidades consideráveis de silício. Dos “tunicados” do Mediterrâneo,
sabemos mais ou menos que concentram o metal raro vanádio”242. E, “todavia , não consiste só
nisso a sua singularidade: os tunicados contém mais de 10% de ácido sulfúrico livre. Uma
comparação: são muito mais ácidos do que o nosso suco gástrico”243. “A causa disto é a
decomposição das suas células sanguíneas, de um amarelo esverdeado, comparáveis aos nossos
glóbulos brancos. Essas células sanguíneas chegam a conter 3% de vanádio, numa combinação
semelhante à hemoglobina”244. “enquanto que as seringas-do-mar não utilizam senão esse
elemento raro que é o vanádio”245. O sangue dos artrópodes também é diferente dos vertebrados:
“em vez de pigmento vermelho, a hemoglobina, portador de oxigênio, a lagosta tem um
pigmento azulado, a hemocianina, em que o ferro é substituído pelo cobre”246. “Serão, de
fato, micróbios as bactérias do mar calcáreo? – indaga Dombrowski, tomado de pasmo, ante seus
próprios resultados. Cumpre então admitir que temos diante dos olhos os seres vivos mais
antigos que se nos depararam até agora. E isto, não por intermédio de longa série de gerações
sucessivas, mas com uma idade individual que podemos avaliar em 180 ou 200 milhões de
anos”247. Também se descobriram “vermes que vivem no gelo e perecem imediatamente quando
dele são retirados. Existe até uma bactéria que vive no ácido cianídrico, um dos mais perigosos
venenos químicos para o homem. Sucumbe ao entrar em contato com o oxigênio, para nós
indispensável à vida”248.
E fazendo o mestre uma pausa em suas citações, comentou:
– Diante destes resultados estupefacientes, começou-se a pensar em como seria a
atmosfera primitiva da Terra, chegando-se à conclusão de que ela deveria conter ácido sulfídrico.
E também se admitiu que as “nitratobactérias e nitritobactérias talvez suportassem um “ar”
impregnado de amoníaco. Logo, é lícito presumir que pelo menos as bactérias redutoras de
sulfatos, com seu metabolismo singular, pertençam às espécies de seres vivos mais antigos da
Terra”249. E “as pesquisas mais recentes possibilitaram uma prova que pasmou os químicos: a
prova da existência anterior de uma atmosfera terrestre de amoníaco”250.
Os raios ribombavam no espaço como tambores e timbales gigantes, e vendavais silvavam nas
arestas das rochas, e as bocas das cavernas gemiam como tubos acústicos de órgãos fantásticos,
em que demônios executassem a música telúrica e catastrófica de Satã. Era o negro, e quente, e
úmido período algonquiano, em que se demorara a Terra por muitos milhões de anos.
E depois duma pausa, grave, meditativa, prosseguiu o filósofo:
– Tal arqui quadro mais que dantesco e atormentador azucrinou por certo tempo a mente
de Stanley Miller, até que este se resolveu a criar o mundo primitivo no laboratório; para tanto,
construiu um alambique que levava o vapor-d’água duma caldeira a um balão de vidro, e deste
saia um outro tubo de vidro, em serpentina, que, atravessando um refrigerador, devolvia a água à
caldeira em forma líquida. Podem examinar o desenho do aparelho reproduzido aqui na página
206 da obra de F. L. Boschke, “A Criação Ainda Não Terminou”. Como vêem, duas hastes de
metal penetram dentro do balão, levando a eletricidade de uma máquina eletrostática para
produzir, aí, pequenos raios. O balão está cheio dos gases amoníaco e metano, além do vapor
d’água. Passadas algumas horas Miller analisou os gases do balão encontrando metano,
amoníaco e alguns traços de bióxido de carbono, não havendo aí, portanto, nada de anormal.
Contudo ao proceder a análise do que se continha dissolvido na água, obteve dez substâncias
orgânicas, dentre as quais seis amino-ácidos. Obteve Miller por este modo simples, glicina,
alamina, sarcosina, alamina-beta, ácido aminobutírico-alfa, metil-alamina N; amino-ácidos, ou
seja, aquilo que se constróem as albuminas não só artificiais, senão, também, as vivas. Fora estes
compostos, acharam-se também, na solução, ácido aspártico, ácido acético, ácido sucínico, ácido
láctico, ácido amino-aceto-propiônio, e até a própria uréia. Wohler já tinha destruído o tabu da
“força vital”, provando que “também podemos produzir, nos tubos de ensaio, combinações
orgânicas que se formam nas células vivas”251. Agora vem Stanley Miller, e produz amino-ácidos
artificiais, partindo de compostos muito simples. Segue-se, depois, o trabalho de equipe,
chefiado por Sidney W. Fox, que deu como resultado a produção de albumina artificial, com a
qual se preparou uma solução nutritiva; pondo dentro dela um bacilo, “o bacilo viveu nela –
viveu dela –, desenvolveu-se apenas mais lentamente do que na solução em que vinha sendo
cultivado. O produto artificial era igualmente “comestível” para ele. Um bacilo podia viver
naquela albumina! Estava descoberta uma albumina adequada à vida”252. De fato, “aminoácidos e
calor forneciam albumina”253. E há mais isto: “enquanto um organismo animal reage, perante
uma albumina diferente, com um choque e produz anti-matérias, com a albumina sintética isso
não ocorre. Ela pode ser injetada em animais, sem que se originem os chamados anti-corpos”254.
E coçando, o mestre, a cabeça, enquanto fazia uma pausa, prosseguiu, a seguir:
– Ainda não se pôde produzir a vida no laboratório; mas não se está longe disso; e tudo
leva a crer que a vida surgiu na lama “escura, quente, úmida como um útero; a terra
assemelhava-se (então) a um regaço preparado para o acontecimento místico da concepção.
Como ocorreu, não sabemos”255. “Os primeiros seres vivos foram presumivelmente os vírus que,
comparados às criaturas atuais, são apenas semiviventes”256. “O vírus não constitui um ser vivo
legítimo, pois a essência do ser vivo é a capacidade de manter em movimento o mecanismo da
sua substância viva com as matérias mortas de seu ambiente. O vírus não pode fazer isso, pois
ele precisa do plasma vivo de um outro ser vivo para se manter e se multiplicar” 257. Os vírus,
“através de suas moléculas, conduzem o metabolismo da célula para os trilhos do seu próprio
metabolismo, desviando por assim dizer os vagões de carga que se destinavam ao local “Célula”,
por via lateral para a estação “Vírus”258. Numa gota d’água que pende de uma folha, as
moléculas estão ordenadas como acontece nos cristais, pelo que se pode chamar a gota d’água de
“cristal líquido”. E assim como água, todos os líqüidos podem formar “cristais líqüidos”. “No
começo do século Stephan Leduc chamou muita atenção pelas observações que fez nesses
251 F. L. Boschke, A Criação Ainda Não Terminou, 204
252 F. L. Boschke, A Criação Ainda Não Terminou, 220
253 F. L. Boschke, A Criação Ainda Não Terminou, 220
254 F. L. Boschke, A Criação Ainda Não Terminou, 221
255 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 14
256 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 14
257 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, I, 316
258 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, I, 316
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cristais líqüidos que ele descreveu como sendo os precursores dos seres vivos. Na realidade é de
espantar o que eles realizam em movimentos “vivos” e manobras. Eles se enroscam como
vermes, arrastam-se como amebas, devoram como estas, crescem e dividem-se quando atingem
determinado tamanho”259. Como se vê, “não há diferença entre vivo e inanimado. O vivente é
uma potenciação das forças normais da natureza”260. “A matéria viva é apenas um arranjo
especial da matéria ordinária e a evolução da vida não é mais que um redemoinho peculiar e
local, em meio da evolução cósmica”261. “E a série é esta: matéria em forma de núcleos atômicos
nus e eletrônios livres e vagabundos (é o estado em que ela se encontra mais comumente); –
matéria em forma de átomos; – matéria em forma de misturas simples; – matéria em forma de
misturas especiais, que precisam da água para se formarem (é o estado mais raro); – finalmente,
matéria em forma de unidades bastante complexas e dotadas de auto-reprodução, a que
chamamos matéria viva”262.
E fechando o mestre o livro que tinha nas mãos, exclamou:
– Aqui está, o veredicto da ciência. O universo e tudo o que nele há, teve seu começo no
caos. “Há 4.000 milhões de anos, o universo devia ser um só ponto de matéria” 263. Em torno
desse ponto turbilhonavam ondas de energia que se concentravam, vindas da periferia do espaço-
tempo. Se é verdade que, para as ondas que se expandem no espaço, a intensidade decresce na
razão inversa do quadrado das distâncias, também, então, é exato que, para as ondas que se
concentram, vindas da periferia, a intensidade crescia na razão direta do quadrado da
distância. E quando a distância se torna mínima possível (l0-l3), então a onda se fecha no vórtice
eletrônico, que é a primeira unidade material de que surgirão todas as demais. Assim, à custa da
energia vinda do ilimitado, pouco a pouco se foi formando o Colosso Primitivo de Alpher, Bethe
e Gamow em que se reunia toda a matéria do universo, e que devia ter uns dez mil anos-luz de
diâmetro. Este Colosso Primitivo que imenso se arredonda, suspenso no bojo do caos que
rebentava em tempestades de energia, foi a primeira formação a delinear-se no seio da
substância, até então informe. E aqui foi onde se forjaram os átomos pesados, de que se compõe
toda matéria que ora viaja pelo espaço-tempo, constituindo todos os sidéreos sistemas que
pululam nas galáxias do universo inteiro. No princípio era o caos medonho, a noite antiga, o não-
ser, o inferno mais extremo da inteira potência e nada ato. O não-ser se mostrava, então, em toda
a sua plenitude de negação, onde a essência era nada e a substância tudo. Esta esfera consistia,
mas, não era; tudo o que fora antes, desfez-se ali na substância, da qual outras essências
surgiram. Se Aristóteles afirma que tudo o que existe se constitui de matéria e forma, sendo Deus
a forma (actus purus) sem matéria alguma, pela recíproca, o caos primeiro é a indefinida
potência, o não-ato, constituído de pura matéria sem forma alguma. Depois surgiu um ponto de
matéria que cresceu até o Colosso Primitivo em cujo seio se formaram todos os átomos do
Universo. Depois a pressão ondulatória vinda dos espaços se foi arrefecendo, e o Colosso
principiou a rugir e a expandir-se, não com explosão, mas com movimento lento, vencendo a
custo a força contrativa externa que amassava e reduzia tudo à pasta nuclear. O Colosso se
expandiu, possibilitando a que os núcleos nus ganhassem esferas eletrônicas. Depois tudo
começou a encaixar-se pelos entalhes atômicos, engrenando-se pelos dentes eletrônicos, e a
grande roda dos átomos simples principiou a girar.
Fez uma parada o professor, continuando a seguir:
– O Colosso rodava sobre si mesmo, impulsionado pelas ondas de energia que giravam
com o espaço, e quando começaram a explodir as massas de corpos transurânicos, os pedaços
saíram rodando também, e também explodindo. Arrefecida a força centrípeta, procedente da
periferia, começou a dominar a centrífuga, filha do movimento rotativo central, e o universo se
expandiu, e se expande ainda. Formaram-se as galáxias, e dentro delas, os sistemas planetários.
– Eis que somos chegados à nossa Terra, continuou Árago, ainda massa informe de gases
rodopiantes. Os corpos densos, radioativos, por efeito da força centrífuga, foram projetados para
a periferia do sistema, ficando dentro dele, no centro, os materiais mais leves. O material denso
terrestre condensou-se numa esfera achatada, quase discóide, e na zona do equador, enrijou-se o
cinturão dos corpos radioativos, não na superfície, mas abaixo dela, no ponto em que se
equilibravam as impulsões centrífuga e centrípeta gravitacionais. A temperatura caia. E quando o
oxigênio e hidrogênio se casaram, os compostos complexos se fizeram presentes já na Terra, já
nas águas quentes, já na atmosfera de amoníaco, vapor d’água e metano. As chuvas caíam
torrenciais, e relâmpagos iluminavam o firmamento negro do algonquiano, deixando ver, nesses
átimos de tempo, o panorama tormentoso desse outro caos. E as trevas do algonquiano cobriram
a face da Terra por milhões de anos, pois nenhum raio de luz poderia penetrar no espesso
cobertor das águas em suspensão. Até que, por fim, as nuvens se ralearam, e o Sol iluminou pela
primeira vez a face do planeta. No tépido caldo dos mares primitivos, formas gelatinosas se
moviam, e, vorazes, transformavam em substância própria a albumina filha do raio, nascida na
tempestade. E de ensaio em ensaio a vida se foi firmando, mantendo o certo, e eliminando o
errado. A lei imperava e punha ordem no caos, e a harmonia e a beleza correspondiam à lógica
das formações. Primeiro vírus, depois bactérias, depois células, depois colônias celulares; e
quando a divisão do trabalho especializou as primeiras células coloniais, então surgiu no seio das
águas o primeiro ser vivo unitário, de porte superior. O homogêneo se tornava heterogêneo, o
tético se tornava antitético, para, unido a outra tese, formar uma síntese mais alta. E debaixo
deste princípio a vida trabalhou, selecionando o melhor, e eliminando sem piedade o pior.
E após uma pausa meditativa, exclamou, enfático, o pensador de Cananéia:
– Eis até onde nos trouxe a ciência moderna, impossível de ser iludida ou ignorada pelos
filósofos da terceira jornada que começa aqui e agora, nesta escola de pensadores. Assim como
do fragmento de um vaso pode o arqueólogo reconstruí-lo inteiro; assim como por um dente ou
resto fóssil o paleontólogo reconstrói um animal pré-histórico; assim como por alguns
documentos, dados e indícios os historiadores reconstroem uma civilização; assim como com
algumas pistas os detetives rastreiam e descobrem um crime; igualmente, pela visão da vida
poder-se-á inferir sua moral, e pela visão do Universo, intuir a idéia de Deus. Isto posto,
pergunto: quando vocês olham a vida, que vêem?
Enquanto todos se mantinham hesitantes, Benedito Bruco rompeu, nestas palavras:
– A primeira característica da natureza é o egoísmo. Nunca vi altruísmo em coisa
nenhuma. Para mim a vida é um come-come. E é comer, para não ser comido; é agredir e matar,
para não ser agredido e morto. O animal só tem piedade e amor para com suas crias; fora daí, a
luta é de uma crueza e selvageria incríveis. Não vejo nada belo, porque enxergo em profundidade
como raio x, e meus olhos observam o estômago e as vísceras, onde outras formas estão sendo
desfeitas e digeridas pelo vencedor. Na barriga do sapo enxergo o colibri; na da cobra, o sapo; na
do jacaré, a cobra; na do homem, as carnes do jacaré. A cadeia se interrompe, aqui, no que é
mais forte e mais astuto.
– Protesto contra essa generalização de Bruco, vociferou Hierão Orsoni. Vejo na natureza
coisas belas. Hajam vistas a inocência e candura duma criança, a beleza duma flor, o
maravilhoso duma pérola.
– Que o que! tornou Bruco: Você, Hierão, pensa do mesmo modo que Rousseau: “A
natureza oferece-me um quadro de harmonia e proporção, enquanto o gênero humano só me dá
confusão e desordem! Reina a concórdia entre os elementos, e nos homens o caos! Os animais
são felizes; só o seu rei é desgraçado!”264. Aqui está, o que são os homens e os animais, meu caro
Hierão. Quanto às flores, digo-lhe que não são mais do que órgãos sexuais das plantas. São
muito variadas e muito artificiosas, por causa da luxúria vegetal. Tais órgãos sexuais são postos
nos altares dos santos, dos quais se propala que venceram a carne, dominando a animalidade
grosseira. Se adornássemos os altares com os órgãos sexuais dos animais, sobretudo os dos
superiores, então seria sacrilégio horrendo, denunciado como falolatria. Mas como tais órgãos
são de vegetais, tudo está bem para esses ilógicos que chegam a ver nas flores motivos de
pureza. Assim “a rosa com que a donzela se enfeita para o baile, é um órgão genital!... Que
escândalo!”265. E a pérola? Que pensa você que é? Vê aquele belo colar de pérolas enfeitando o
264 Clássicos Jackson, XII, 273
265 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 91
129
colo semi-nú, e provocativo, e perfumoso daquela mulher? Pois “as pérolas são os caixões
mortuários onde o marisco encerra a múmia duma larva de tênia, saída do intestino da arraia” 266.
Assim as pérolas resultam da irritação, da luta silenciosa e da tragédia!
– Neste ponto interveio Alcino Licas aparteando:
– Mas Bruco, você disse, com Rousseau, que a natureza oferece-nos “um quadro de
harmonia e proporção”?
– Foi o que ele e eu dissemos, então, conquanto afirme agora que aquilo é só meia
verdade, porque, como o anotara Schopenhauer “o mundo é uma lanterna mágica” 267. E
acrescenta: “Dizem-me para abrir os olhos e fitá-los na beleza do mundo que o sol ilumina,
admirar-lhe as montanhas, os vales, as torrentes, as plantas, os animais, que sei eu! (...)
Certamente que o espetáculo é esplêndido à vista, mas representar aí um papel, é outra coisa”268.
“Se pudesse pôr diante dos olhos de cada um as dores e os espantosos tormentos aos quais a sua
vida se encontra incessantemente exposta, um tal aspecto enchê-lo-ia de medo; e se quisesse
conduzir o otimista mais endurecido aos hospitais, ao lazaretos e aposentos de torturas
cirúrgicas, às prisões, aos lugares de suplícios, às pocilgas dos escravos, aos campos de batalha e
aos tribunais criminais, se se lhe abrissem todos os antros sombrios onde a miséria se acolhe para
fugir aos olhares de uma curiosidade fria, e se por fim o deixassem ver a torre de Ugolino, então,
com certeza, também acabaria por reconhecer de que espécie é este melhor dos mundos
possíveis”269.
Benedito Bruco estava lívido...; seus lábios como que tremiam... E perdendo o olhar no
vazio prosseguiu:
– São belíssimas, bucólicas, arcádicas, as passagens bíblicas, em que o valoroso pastor
Davi, quase dá sua vida pelas ovelhas. Um frêmito de heroísmo e de piedade nos percorre os
nervos e nos esfria as entranhas, quando o grande servo do Deus vivo se defronta com leões, com
ursos, com tigres e com chacais; armado só da sua temerosa funda a todos acomete, e os
desbarata, arrancando-lhes, das bocarras, os cordeirinhos tenros. Ora Davi é visto rodando no ar
sua perigosa funda, contra a qual nem ursos nem gigantes se atreviam, ora é visto com sua harpa,
afugentando demônios a Saul. Mas..., de que hauria Davi a força com que acionava as pedras
danosas na funda? A força lhe vinha das carnes que comia aos mesmos cordeiros, pelos quais,
cantando loas, dizia agora quase sacrificar-se. Para ele ficava o só quase sacrifício, para que o
sacrifício real e verdadeiro coubesse às mesmas ovelhas e aos cordeiros, em seu único proveito.
Oh! Dura coisa, meu Licas, é escapar das garras sanhudas das bestas ferozes, para morrer nas de
Davi!... Importa em nada, portanto, o nome, porque, do ponto de vista das ovelhas, os Davis se
confundem com os lobos e com os tigres, sendo tanto maior o perigo, quanto mais estiverem
protegidas e guardadas nos apriscos. As lutas que Davi travava contra aqueles animais bravios,
na defesa do rebanho, não era por amor do rebanho, como alardeava, senão por amor de si
mesmo, ou seja, para garantir a sobrevivência própria. No fim da fábula, Davi proferia a frase do
Leão, que era, da tribo de Judá: “Quia nominor Leo” – quer dizer: porque me chamo Leão!...
E voltando-se para Árago, interrogou Bruco:
– Prossigo, ou paro?
– Prossiga, prossiga!...
– As belezas com que Davi canta estas façanhas todas, têm feito a muitas gerações chorar
de êxtase heróico e de alegria “santa”, e ainda há pouco elas fizeram suspirar, aí, o nosso Hierão.
Ainda mais que este Davi é figura profética de Cristo que arranca as almas das unhas de Satanás.
No entanto, ao que sei, nunca se achou quem advogasse a causa das ovelhas sacrificadas por
Davi, como se fosse glória e honra grandes escapar de ser pasto das bestas ferozes, para ser
comida do poeta amoroso, e místico, e sensível, e dedicado cantor do Deus vivo! O canto de
Davi é o canto do Universo que, todo, se acha fundamentado sobre a dor, e a miséria, e a
destruição do mais fraco, e vitória incondicional do mais forte ou mais astuto. “Este mundo é um
covil de ladrões; porque se bem considerarmos, não há nele coisa viva, que não viva de rapinas:
os animais, as aves, e peixes comendo-se uns aos outros, se sustentam, e se algum há, que não se
mantenha dos outros viventes, tomam seu pasto dos frutos alheios que não cultivaram; com que
vem a ser tudo uma pura ladroeira; tanto, que até nas árvores há ladrões; e os Elementos se
comem, e gastam entre si, diminuindo por partes, para acrescentar cada qual as suas”270.
a mão na travessa para se apoderar do melhor bocado; espera que o sirvam e dá-se por satisfeito
com o seu quinhão. Enquanto outros símios, quando não se lhes fazem as vontades, estrilam,
berram, arranham ou mordem – Alexandre Magno morreu tão jovem, da mordedura dum macaco
– o gibão, se lhe negam alguma coisa, volta quieto ao seu canto. Em geral, no cativeiro, o gibão
fina-se de hipocondria – da tristeza de ter de viver entre os homens. O homem também tem
motivos para se entristecer quando vê o gibão; porque é dessa criatura amável, fiel, sincera que
derivou a espécie humana”274. Porque procedemos do gibão, por isso, o homem nasce bom, e ao
crescer, se torna mau, não no sentido de Rousseau, mas no sentido biogenético, pois o homem,
na vida adulta, recapitula sua história pregressa do troglodita. Eis o critério paleontológico para
classificar o homem: “Enquanto os paleontologistas ainda não se tinham decidido sobre se os
sul-africanos deviam ser considerados macacos ou homens, Weinert escrevia esta frase que tem
sido freqüentemente citada: Nenhum macaco mata, assa e devora os membros da própria
espécie: isto é humano. E acrescentou: Era bonito considerar o ato de Prometeu como o
primeiro da humanidade nascente; mas nós não podemos deixar de antepor-lhe o ato de
Caim"275. O cérebro frontal é, como se costuma dizer, a sede do moral e do imoral, o que
inspirou ao antropólogo americano Hooton este conceito perfeitamente fundado: “Novecentos
gramas de cérebro são suficientes para o ótimo em procedimento humano; o que sobrar,
transforma-se em más ações”276. Esta mesma citação se acha inserta na obra de Herbert Wendt,
depois do que explica ele: “Os pré-homens dotados de grande cérebro ainda estavam longe de
atingir esse ótimo, mas, com o auxílio da nova arma milagrosa, a pedra, já praticavam toda a
sorte de atos sangrentos”277.
Benedito Bruco, de pé, próximo à mesa de Árago, imitava o mestre no fazer dissertações,
e usava a biblioteca do filósofo com tanta mestria quanto a dele. E percebendo, nas feições, que
todos estavam satisfeitos com sua palavra, exceto Hierão, prosseguiu:
– A antropofagia do primitivo mais se acentuou ainda quando surgiram motivos
religiosos para reforçá-la. O homem do período glaciário já praticava a magia, e acreditava numa
vida depois da morte. Deste modo, “o devoramento por amor tem uma razão; a gente não quer
perder as pessoas queridas e, portanto, procura atrair para si as suas almas devorando-lhes os
corpos”278. E “compreende-se que, se uma pessoa queria encarnar as qualidades de outro homem,
não precisava esperar que ele morresse de morte natural; podia matá-lo violentamente se se
apresentasse um motivo religioso. Assim nasceu o costume do sacrifício humano. Já era
conhecido no período glaciário279. “Era o mesmo quadro da vida do homem no fim do glaciário:
todos os crânios de Chou-kou-tien tinham o occipital aberto de modo a se poder introduzir a mão
no seu interior e extrair o cérebro; a maioria dos ossos tubulares davam a impressão de terem
sido fendidos para lhes chuparem a medula”280. “Os antepassados dos gregos, que são para nós
protótipos do homem civilizado, eram antropófagos, segundo informa a mitologia. O próprio
Aquiles imolou na pira do seu amigo Pátroclo bravos rapazes troianos; em compensação, Hécuba
ameaçou devorar-lhe o fígado. Quase ao mesmo tempo, ocorria a entrada dos filhos de Israel na
Terra da Promissão, em cujos povoados encontraram os fornos do deus Baal, a cujas fauces
ardentes se atiravam as crianças; não absolutamente as indesejadas; mas justamente as mais
queridas, assim como Abraão estava pronto e se dispunha a sacrificar o seu único filho Isaac – o
paralelo do sacrifício de Ifigênia, imolada pelo pai. Destes sacrifícios humanos derivaram mais
tarde os sacrifícios de animais, a imolação de reses do templo de Salomão; destes sacrifícios se
desenvolveu o hábito da “Ceia”, no princípio do sabá, o uso de saborear pão e vinho como
símbolos idealizados da carne e do sangue”281. Agora se entende claramente por que Cristo disse:
“Na verdade, na verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do homem, e não
beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. (...) Porque minha carne verdadeiramente
274 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 460
275 Herbert Wendt, À Procura de Adão, 338
276 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 472
277 Herbert Wendt, À Procura de Adão, 338
278 Herbert Wendt, À Procura de Adão, 277
279 Herbert Wendt, À Procura de Adão, 277
280 Herbert Wendt, À Procura de Adão, 365
281 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, 473
132
eram unos e que não podia erigir-se um muro divisório entre a matéria e o espírito, entre o corpo
e a alma”290. Ora, se Deus é a natureza, o mundo, meus amigos, como pode Deus ser a justiça e a
bondade mesmas?
Vendo Hierão Orsoni sua fé espírita ameaçada por esta conclusão de Bruco, exclamou,
furibundo:
– A natureza não é Deus, mas apenas o espelho em que Deus se reflete; e conquanto o
homem seja parte da natureza, não a representa toda, inteira. Há pouco você deu o gibão como
sendo um ser dócil e meigo; segue-se, logo, que o homem se desviou do gibão, não só evoluindo
para um cérebro maior, senão também pela aquisição da maldade que o gibão não tem.
Possuindo o livre arbítrio, usou-o, o homem, para o mal. Como é que um ser desviado da
bondade e da doçura do gibão pode representar a natureza no seu grau máximo? Desça do gibão,
meu Bruco, e essa é a natureza que espelha Deus!
– Então desço – tornou Bruco, dispondo os livros para mais citações, com que havia de
documentar suas assertivas. – Vou provar que quanto mais a vida se eleva, mais cresce a
maldade; o pior de todos os animais é o homem, por ser o rei deles. E, pela recíproca, quanto
mais se desce na escala da vida, mais se atenua a maldade. Seria, então, que a bondade suprema
coexiste com a matéria? Seria, logo, o cosmo de matéria bruta, o Deus-Natureza de Giordano
Bruno, de Galileu, de Espinosa, de Goethe? Se só na matéria bruta existe harmonia, e ordem, e
bondade, segue-se que o Deus-Natureza é a matéria, e que a Matéria é Deus.
– Absurdo, Bruco! – exclamou Hierão – acaso não há no mundo verdadeiros santos?
– Pode ser que haja ..., mas não são filósofos, e por isso não se guiam pelas luzes da
razão. Os místicos aceitam tudo por sugestão ou fé, e não por persuasão ou ciência; para eles
vale o princípio da autoridade, do “Magister Dixit”; certos ou errados, não podem provar nada.
O fenômeno religioso teve início, quando alguns místicos tiveram um pressentimento ou palpite
de que deve haver uma vida após a morte. Então saíram a pregar esta “verdade”, como coisa
absolutamente certa e indiscutível, criando legiões de adeptos, que são os crendeirões do mundo
inteiro. Como o demonstrei há pouco, o próprio canibalismo do primitivo tinha por base a fé que
não tanto a necessidade de alimento; logo, o homem primitivo era mau por ter fé e crer. Se a
religião pode ser, assim, um motivo de maldade ou de bondade, por que me vem você falar da
bondade artificial do santo, sem base nenhuma na natureza? Conquanto tenha eu dito que a
antropofagia do primitivo tinha por base, sobretudo, a fé, posso provar que a natureza não se
opõe a esta fé, e antes a encoraja e corrobora com ela, pelo que é ela natural; já a fé do santo é
antinatural porque faz oposição e guerra à natureza que manda devorar sob qualquer pretexto.
E dizendo isto, pôs-se a procurar no livro de Fritz Kahn, o que havia de citar. E tendo
achado o ponto correspondente às suas anotações, exclamou:
– No princípio eram as plantas; e conquanto disputassem o espaço vital, não se
entredevoravam umas às outras. “Na história da vida, a primeira época foi – como a descreve a
Bíblia – o “paraíso”. Mal a primeira luz atravessou a atmosfera, que ia clareando, os jovens seres
vivos, até aí ocupados em formar penosamente combinações do azoto atmosférico, puseram-se a
utilizar a energia da luz, a fabricar, com carbônio e água, hidrato de carbônio. Eis o quadro da
vida benévola, amena e moral que figuramos para nós mesmos, como plano da criação: a luz
cálida, vivificante, do sol inunda, do universo, a Terra; a criatura capta as ondas do éter e
compõe, com materiais e gases inferiores, as combinações superiores que formam o plasma,
insuflando assim a vida na matéria inanimada. Já precocemente, porém, aparece o mal; uma
criatura começa a roubar à outra o fruto do seu trabalho. “O fagócito, o “devorador”, encosta-se
ao bacilo e torna-se bacteriófago. Os cogumelos implantam-se em vegetais ainda unicelulares,
sugam-lhes a seiva e desenvolve-se a simbiose – belo nome para uma relação detestável. Mas,
até aí, não havia assassínio na terra”. E prossegue:
– “Nasceu então Caim; não se contentando com ser parasita e furtar, concebeu o plano
criminoso de acometer e devorar o possuidor de tesouros nutritivos. Consumou-se o primeiro
fratricídio, e desta maneira o vegetal se transformou em animal. A hora em que, pela primeira
vez na terra, um ser devorou outro ser, foi a hora do nascimento do animal”. Mais isto:
– “Considerando bem, sem nos perdermos em digressões, a planta é uma criatura moral:
290 Herbert Wendt, À Procura de Adão, 223
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ela produz. Desperta o que é morto para a vida. O animal é imoral: mata o ser vivo, desagrega as
grandes moléculas carregadas de energia, produzidas pelo vegetal, e estimula com a força de
tensão delas a máquina do seu corpo. Ao assassínio da planta chamamos “comer”. Comer é
característico do animal”. Mais:
– “Foi um dia negregado, na história do planeta, o dia em que ocorreu a uma criatura
funesta a idéia diabólica de “comer”. Comer é “o mal em si”. É o pecado original e atávico que
pesa sobre o reino animal, e do qual sofre todo animal até ao homem, pelo temor de ser
devorado, que nasceu como a sombra do crime, e nos persegue, sob forma de medo da morte,
desde a hora do nascimento. Comer é o primeiro característico do animal; o receio de ser comido
é o segundo. O primeiro é a falta; o segundo, o castigo. Se perguntarmos como pode uma forma
de vida tão imoral, não só desenvolver-se, mas até predominar, a resposta é explícita: a natureza
é amoral. Assim como não conhece nem ontem nem amanhã, como não pode ser chamada
grande nem pequena, necessária ou inútil, assim não tem noção do bem e do mal. Dela só se
pode dizer: A natureza é; e está acima de tudo impassível, fitando no vácuo os olhos cegos, como
a estátua de Buda – até hoje, a personificação mais perfeita da essência universal”291.
E fitando Bruco a Hierão nos olhos, exclamou:
– Repita-me agora que a natureza é o reflexo de Deus, e eu concluo: se é amoral o reflexo,
amoral há de ser o refletido. E lanço aos rostos de Giordano Bruno, de Galileu, de Espinosa, de
Goethe e de outros, isto: se Deus é a natureza, então o mesmo Deus é amoral. Quer você que eu
continue examinando este assunto? Pois, prazerosamente, o farei:
– “A revolução devora os seus filhos”. Depois de certo tempo, em que o animal se
contentou com exterminar as plantas e viver como “herbívoro”, como é inevitável entre ladrões,
instaurou-se a rapina e o morticínio entre os cúmplices. Para que o esforço penoso de arrancar
folhas às árvores, de comer corolas de flores? Deixemos isso a outros; depois não custará salteá-
los e arrebatar-lhes a presa tão suada. Assim, aos devoradores de vegetais sucederam os
devoradores de animais que, de dia, dormiam nas suas tocas, enquanto os herbívoros simplórios
pastavam nos prados. Receberam aqueles a denominação de animais rapaces; injustamente,
porque os despojados também viviam de rapina. Os assassinos de plantas eram estraçalhados por
matadores de animais292. Eis, pois, que “o ser vivo, na sua natureza mais íntima, é um rapace;
cada qual procura apossar-se de tudo quanto pode, sem perguntar donde tira e o que fica aos
outros”293. Por fim até algumas plantas resolveram que ser ladrão é melhor do que trabalhar a
terra. “A planta carnívora é uma variedade anormal de vegetal. Anormal porque não é hábito do
vegetal comer, e sim criar comestíveis; o vegetal não atrai o ser vivo para a morte, mas extrai
vida do morto. Matar é, porém, meio cômodo de se prover de alimento; mais fácil do que
aguardar os raios luminosos, puxar água das entranha da terra, brigar com bacilos azotados
debaixo do solo. Desde que as plantas provaram o fruto proibido, talvez, algum dia elas também
venham a aderir a esse modo de vida mais econômico; e também no reino vegetal o futuro
pertencerá, não aos “vegetarianos” antiquados, mas aos carnívoros modernos”294. Esta foi a
conclusão que tirou o vegetal para tornar-se animal herbívoro, e o animal herbívoro para tornar-
se animal carnívoro. “Matar, para criar com o material do morto vida própria, é o caráter –
poderíamos dizer: a natureza execrável do animal”295. E, contudo, quanto mais execrando for o
animal, tanto mais subido estará na hierarquia dos vencedores. Por isso “em toda classe animal
os tipos mais aperfeiçoados, os que mereceriam a denominação de “reis”, são também os
assassinos mais consumados: entre os peixes, o tubarão; entre as aves, a águia; entre os
mamíferos, o leão; entre os insetos, a libélula”296. O Homem não foi posto nesta relação porque
está colocado acima de todos como rei supremo, e por isto mesmo é o assassino por excelência, e
supinamente perverso.
E depois de breve pausa, concluiu Bruco:
– Se tal é o mundo, no que ele tem de mais alto que é a vida, e o mundo espelha Deus,
como pode este ser a justiça e a bondade mesma? Quem tinha razão é Nietzsche, e o super-
homem há de ser um amoral, pois deve achar-se, como Deus, para além do bem e do mal. Se o
universo espelha Deus, por ser obra sua, e canta, com Davi, a grande epopéia da ferocidade, da
força, da astúcia e da crueldade, como admitir haja em Deus justiça e caridade? Se o autor se dá
a conhecer nas obras, tais obras, tal autor; se o pai se revela nos filhos, tais filhos, tal pai. Por
que, logo, não sermos fortes como a águia e o leão, mesmo que injustos, para sermos fracos,
dóceis e meigos como o cordeiro e o pombo? Por que razão há de ser a rola pasto do milhafre, e
o cordeiro, comida do leão, ainda mesmo quando este se chama Daví-Cantor-de-Deus? Ah! Por
que!... porque como bem o notara Santo Agostinho, “no começo era o caos. Os elementos
estavam em confusão. Pouco a pouco cada coisa tomou o seu lugar. Apareceram então os seres
vivos apropriados ao estado do globo”297. Por que, pois, o universo se nos mostra, assim, ao
negativo? Pois porque ele é negativo já na sua fundação com ter vindo do nada como diz
Santo Agostinho encarnado, e do caos, como diz ele mesmo, como espírito; e por muito que
mude, se era nada, é nada, tenha o aspecto que tiver. E um ser que cria e sustenta a negação, não
pode ser afirmação; é negação também. Esse Deus refletido na sua obra mais alta, que é a vida, é
negativo, porque a vida o é também, visto achar-se fundada sobre a força, sobre a astúcia, sobre a
tragédia, sobre a dor e sobre a morte. Um Deus que cria do nada um universo negativo, não pode
ser outra coisa senão um grandíssimo Tirano, um Moloch supercolossal odiento, egoísta e
sádico, que cria uma ilusão do nada, só para gozar com vê-la sofrer e chorar!... Astúcia e força,
martírio e morte são as quatro notas fundamentais com que Deus compõe a sinfonia da vida, e
por esta causa ouço sempre, em meu espírito, o tã-tã-tã-tããã... obsessivo e selvagem do “Destino
Batendo à Porta”, da “Quinta Sinfonia ” de Beethoven. Só que o grande gênio alemão
encaminhou esta sinfonia para um “alegro” final, quando devia tê-la terminado pela “Marcha
Fúnebre” da “Terceira” ou “Heróica, que foi e não foi dedicada a Napoleão. É a tragédia, o
martírio e a morte que põem fim à vida, e nunca a alegria.
E tendo Bruco feito uma pausa, prosseguiu, depois, em tom de voz mudado:
– Tudo veio do caos? Sim, diz Santo Agostinho-Espírito, no livro que forma a base
teológica da “consoladora” doutrina espírita! Sim, diz a ciência inexorável, que, por isto mesmo,
não promete consolação nenhuma a ninguém. A doutrina “consoladora” me afirma, pela boca de
um seu oráculo, que procedo do nada e do caos; do nada, disse, enquanto encarnado, e do caos,
disse, quando já espírito; e que, por isto, participo deste caos e nada em minha vida, a qual,
como conseqüência, é referta de dores e aflições. Sou nada, logo, sofro. Se eu fosse um ser,
participaria do Ser supremo que me gerou da sua substância, não me podendo ele infligir dor
nenhuma que o não atingisse também. Mas..., “não podendo fazer-se Deus, o homem quer ao
menos ser uma parte de Deus”298. Eis o que diz Santo Agostinho-Espírito. Logo, não sou parte de
Deus, com ter sido feito por ele do nada e no caos! Sou, por isso, uma ilusão que sofre e se cuida
ser, nascida por efeito dum passe de mágica. Por esta causa minha dor é só minha, visto que não
me acho ligado substancialmente ao Ser que produziu a vida do nada e no caos, forçando-a a
subir a escala da sensibilidade e da razão, para que, finalmente, ele, o Sr. Deus pudesse me
aplicar a tortura de todo criado, fazendo-me que urre de dor e escabuje no estertor da agonia, no
momento derradeiro. Eis, pois, que junto este meu grito antecipado ao berreiro universal que
reúne todos os berregos dos que podem bradar, e os silêncios (oh! dor!) dos que não têm voz!...
Rio-me, por isso da “doutrina consoladora”, e mais ainda da “consolação” dela, pois tenho por
certo que todo homem, como bem o disse o mestre Schopenhauer, “acabará por chegar à
conclusão de que este mundo dos homens é o reino do acaso e do erro, que o dominam e o
governam a seu modo sem piedade alguma, auxiliados pela loucura e pela maldade, que não
cessam de brandir o chicote”299. E prossegue Schopenhauer: “Os esforços sem trégua para banir
o sofrimento só tem o resultado de o fazer mudar de figura”300. Mais: “Em toda a parte se
encontra um adversário: a vida é uma guerra sem tréguas, e morre-se com as armas na mão”301.
Ainda isto: “Trabalho, tormento, desgosto e miséria, tal é, sem dúvida durante a vida inteira o
quinhão de quase todos os homens” 302. Por isso a vida “possui o caráter de uma grande
mistificação, para não dizer um logro...”303.
E vendo Bruco que Hierão se contorcia de raiva, apoplético, interrogou-lhe:
– Você acha justo que a criatura sofra Hierão?
– Acho!
– Por que?
– Porque errou, ora essa!
– E por que errou?
– Errou porque Deus a criou no caos, passando pela fase de simplicidade e ignorância.
– E por que Deus a criou simples e ignorante, partindo do caos? do nada?
A estas última palavras de Bruco, Orsoni bateu com um pé no chão, ao tempo em que
bradava, apoplético:
– “Como ousas pedir a Deus contas de seus atos? Supondes poder penetrar-lhes os
desígnios?”304.
– Tal e qual!... tal e qual!... replicou Bruco. Assim também falava o feitor de escravos,
quando estes lhe pediam contas da lógica de seus donos...
– Você está louco, Bruco? Não vê, acaso, que seu discurso, por blasfemo, é demolidor?
Deus existe, afirma a revelação, no “Livro dos Espíritos” na R. 14; “Deus existe; disso não
podeis duvidar, e é o essencial. Crede-me, não vades além. Não vos percais num labirinto donde
não lograreis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que
acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, conseguintemente, de lado todos
esses sistemas; tendes bastante coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos.
Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do
que pretenderdes penetrar no que é impenetrável”. O que precisamos, caro Bruco, é nos salvar,
praticando o bem!
– Isso mesmo, tornou Bruco, foi o que disse Schopenhauer, por outras palavras:
“Certamente ainda terei de ouvir dizer que a minha filosofia carece de consolação – e isto
simplesmente porque digo a verdade, enquanto todos gostam de ouvir dizer: o Senhor Deus fez
bem tudo quanto fez. Ide à Igreja e deixai os filósofos em paz”305. E ainda me vem você dizer
que o Espiritismo é ciência, Orsoni? Que diabo de ciência é essa que traz numa mão o milho, e
na outra, o cabresto, a corda? O que precisamos é nos salvar praticando o bem? Acaso sabe você
o que seja a salvação? sabe o que seja o bem? Ah! “santa” ingenuidade! Devemos nos salvar do
que? para quem? Será que está salvo o cordeiro escapo dos dentes do lobo pelas mãos de Davi?
Devemos praticar o bem? Todavia, agora, depois desta visão de Deus pelo seu reflexo em sua
própria obra-dor-dano-mal, vale perguntar: que é o bem? Se Gestas sofre porque é Gestas, então,
por que sofre Cristo? Seria por que é ele o Cordeiro Máximo de Deus? A evolução é um fato;
que ela procedeu do caos, é outro fato; que se faz pela luta impiedosa em que os fortes vencem, e
os fracos deperecem, é outro fato; que se fundamenta no egoísmo, na astúcia ou na força, é outro
fato; que nela não há lugar para nenhuma virtude cristã, é outro fato. Que moral, então, poder-se-
ia inferir da evolução, a não ser a de Trasímaco, Machiavel e Nietzsche? “A filosofia ética de
Spencer não constituía o corolário mais natural da teoria da evolução. Se a vida é luta na qual os
mais aptos sobrevivem, então a força é a virtude suprema e a fraqueza é o defeito único. Bom é o
que sobrevive, o que vence; mau, o que falha. Unicamente a covardia vitoriana dos darwinistas
ingleses e a respeitabilidade burguesa dos positivistas franceses e dos socialistas alemães podiam
iludir o inevitável desta conclusão. Aqueles homens eram bastante bravos para rejeitar o
cristianismo e a teologia cristã, mas não ousavam ser lógicos e rejeitar também as idéias morais,
a adoração da fraqueza, da suavidade, do altruísmo que havia brotado dessa teologia. Cessavam
de ser anglicanos, católicos ou luteranos, mas não cessavam de ser cristãos. Assim argüía
Nietzsche”306. Mais: “Inconscientemente Darwin completara a obra dos enciclopedistas: haviam
eles removido a base teológica da moral moderna, mas deixaram a moralidade em si intacta e
inviolada, suspensa misteriosamente no ar; uns haustos de biologia era tudo quanto se tornava
necessário para varrer esse remanescente da impostura. Homens que podiam pensar, cedo
perceberam o que os mais profundos cérebros de todas as épocas haviam percebido: que nesta
batalha a que chamamos vida o de que necessitamos não é a bondade, mas força; não é
humildade, mas orgulho; não é altruísmo, mas resoluta inteligência; que a igualdade e a
democracia se chocam contra a seleção natural e a sobrevivência dos mais aptos; que não as
massas, mas os gênios são o objetivo da evolução; que não “justiça”, mas poder é o árbitro de
todas as diferenças e de todos os destinos”307.
E tomando um fôlego, numa pausa, interrogou Bruco:
– Por que a natureza se nos mostra assim ao negativo? Por que ela é negativa na sua
estrutura mais recôndita, com ter vindo do nada, como diz Santo Agostinho, em razão do que é
nada, tenha o aspecto que tiver... E um Deus que cria e sustenta a negação, não pode ser
afirmação: é negação também. Este Deus concebido pelo ex-bispo de Hipona, que cria do nada
um Universo negativo, não somente é um Grande Mago, mas, sobretudo, um grandíssimo tirano,
um super-colosso Moloque odiento, egoísta e sádico, que cria uma ilusão do nada, só para gozar
com vê-la sofrer...
E carregando, Bruco, a catadura, ao mesmo tempo que encarava Hierão, rompeu em tais
palavras plenas de energia:
– Ponham-se de lado os medrosos crendeirões que, vociferando, costumam dizer: estas
coisas não nos interessam de perto! O de que precisamos é nos salvar, praticando o bem! Ou esta
outra grita: tantas almas por salvar e esse sujeito perdendo seu tempo com demolições! Ah!
“santa” ingenuidade! Ah! miopia!... Devemos nos salvar do que? indo para onde? ou para quem?
Será que está a salvo o cordeiro arrancado dos dentes dos lobos pelas garras de Davi? Devemos
praticar o bem? Todavia, agora, depois desta visão de Deus, pelo seu reflexo em seu espelho
vida-dor, vale perguntar: que é o bem? Se Gestas sofre porque é Gestas, por que sofre Cristo?
Seria por que ele é o Cordeiro Máximo de Deus? Boa razão, por certo, é esta, para Deus, se é que
este se compraz no sofrimento de suas criaturas... Neste caso, Cristo é como a vaca-madrinha
que conduz o resto do rebanho ao ponto certo do abate. Ora sus! Se a fatal desesperação é o que
por fim nos resta, então, é pormos por obra o conselho de Moloque inserto no Paraíso Perdido,
canto II, de Milton. Façamos, logo, contra Deus crua guerra, e, feros, obriguemo-lo a que, de
pronto, nos arrase “a nada reduzindo a essência nossa” (Milton). Se pela sua magia fomos nó
criados, forcemo-lo, se possível, a que a desfaça; pois, se a magia sua desprazer lhe causa, ele
dirá, estalando os dedos: basta!... e desde então, seremos o que sempre o fomos... nada!... Agora
pode ornear e pinotear como quiser, meu pobre Hierão, que deste tronco não se escapa.
E voltando-se Benedito Bruco para o mestre, declarou:
Faço ponto aqui em meu discurso, pois me acho cansado de falar.
– Muito bem, tornou Árago; alguma musa preta o inspirou; algum demônio, da casta
daquele que ajudava Sócrates, insuflou-lhe estas evidências que, entretanto, constituem somente
meia verdade.
– Como meia!... exclamou Virgílio Hurão que estivera todo tempo, sequioso, sorvendo as
palavras de Bruco. Essa é a verdade inteira que temos sob as vistas! Isso que Bruco enunciou são
fatos, são verdades de fato, nascidas da experiência, contra as quais em vão se chocam as
verdades a priori da razão pura, criadas artificialmente, a partir duma premissa, como fizeram os
filósofos idealistas pós-kantianos, Fichte, Schelling e Hegel. A verdade é que não há sistema na
natureza, como pretenderam Aristóteles, Lineu, Cuvier e os filósofos há pouco citados. A
natureza é amoral e anti-sistemática como o demonstram as descobertas modernas, e os fatos
assinalados por Bruco em seu discurso de há pouco. Que teologia, logo, se pode induzir da visão
do mundo? Não a cristã, por certo, que é anti-natural, mas a amonita que concebia um Deus de
acordo com a natureza. E se nesta venceu o forte e o astuto, segue-se que Deus galardoa o forte e
306 Will Durant, História da Filosofia, 384
307 Will Durant, História da Filosofia, 384 e 385
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o astuto, e pune com a tortura e a morte ao que for fraco, pacífico, dócil e bom. E quando digo
astúcia, refiro-me a mimetismo, camuflagem, ludíbrio, engano, logro, mentira, falsidade,
dissimulação, etc., que tudo isto é próprio da natureza usar; e se disto usa a natureza-filha,
segue-se que astuto também há de ser o Criador-Pai. Se a vitória do forte é sempre, por toda
parte, incondicional, sendo sempre certa a tragédia e a morte do fraco e do bom, por que o Deus
verdadeiro não há de ser o Moloque amonita? Eis que, como a natureza, este Deus é cruel, e,
como todos os demais deuses, incluindo Jeová, gosta do cheiro de assados! Necessariamente,
Deus tem que sentir gozo, prazer e alegria em trinchar, salgar e assar vivas suas criaturas neste
forno infernal que é o mundo. Por esta causa lhe pintaram os antigos como bárbaro, injusto,
cruel, sanguinário, sendo preciso, de quando em quando, lhe aplacar as ganas com holocaustos
humanos. Entre todos os povos, sem nenhuma exceção, essa foi sempre a idéia que se fazia da
divindade. E como diz o Kardec, aí, do nosso Hierão, que a universalidade é uma garantia da
verdade, temos que a universalidade corresponde ao conceito que os amonitas faziam de Deus,
donde criarem a sua imagem em Moloque. “Um homem pode ser iludido, pode enganar-se a si
mesmo; já não será assim quando milhões de criaturas vêem e ouvem a mesma coisa. Constitui
isto uma garantia para cada um e para todos”308. E o que todos vêem, ainda agora, sem nenhuma
exceção, é que a força e a astúcia vencem na natureza, e o fraco e o bom deperecem. E o boi, o
carneiro, o cabrito, o porco e todas as aves domésticas são criadas para a panela, porque o
homem, imagem e semelhança de Deus, é forte e astuto. Logo, o Deus que premia a força é
Forte; o Deus que galardoa a astúcia é Astuto. Esta conclusão é universal, e por isso, necessária,
tendo sido de aplicação geral nos tempos idos. Eis, portanto, que a verdade estava com os
antigos, sendo Moloque a imagem fiel do Deus verdadeiro. Esse terrível e tribal Deus Moloque,
assim como Jeová e todos os demais deuses tribais e barbáricos dos povos antigos, gostava do
cheiro dos assados (Gên. 8, 21 e Lev. 1, 9). Os sacrifícios de seres humanos estão na raiz de
todas as religiões primitivas. A criança é mais humana e melhor que o adulto, porque recapitula a
fase do gibão que é manso, sincero, humilde, cordato e bom, como já o demonstrou, aí, o nosso
Bruco. O adulto é pior, e menos humano que a criança, por recapitular e viver a fase pós-gibão,
que é a de quando este, tendo chegado ao uso da razão, descobriu que, para vencer, precisava ser
forte, astuto e impiedoso. “Quem ao inimigo poupa, nas mãos lhe morre”. E tendo posto por
prática o que lhe mandava a razão, de fato, fez-se forte a tal ponto, que o mesmo Deus o pôs por
rei da criação, e por imagem e semelhança sua – “Façamos o homem à nossa imagem, conforme
à nossa semelhança” (Gên. 1, 26).
Orsoni acompanhava toda esta explanação de Hurão, tomado da mais funda revolta. E
tendo o discurso chegado a este ponto, não mais pode ele conter-se, exclamando :
– Vocês dois estão doidos! Como pode ser que Virgílio Hurão e Benedito Bruco se
transformassem tanto? Acaso não percebem que estão blasfemando? Os mistérios da divindade
são impenetráveis, insondáveis com a razão, como já o dissera Kardec. E “o homem que julga
infalível a sua razão está bem perto do erro. Mesmo aqueles cujas idéias são as mais falsas se
apoiam na sua própria razão e é por isso que rejeitam tudo o que lhes parece impossível” 309.
Calem-se, logo, ambos, Hierão e Bruco, que nosso estudo de hoje foi só demolidor; nada
construímos de bom; estou horrorizado!...
– Calma, Hierão! – tornou Árago. Você precisa mais de conselhos que os outros.
Lembre-se de que nossa reunião é de filósofos, que não de místicos. Aqui curamos de buscar a
verdade, usando só das forças do pensamento, não nos importando se nossos conceitos e
conclusões são blasfemos aos ouvidos dos beatos. Há pouco você citou Kardec, dizendo estar
bem perto do erro, o homem que julga infalível sua razão. Ora, Kardec, ou se apoia na razão ou
não se apóia; se não se fundamenta na razão, o espiritismo é pura religião e fé, que não ciência;
se porém, se fundamenta na razão, a ciência de Kardec é falível porque a razão é falha, estando
bem próximo do erro o homem que a julga infalível. Limitar a razão com a mesma razão, já o
disse Hegel, é como pretender nadar sem haver água. Depois de um longo raciocínio pró-
panteísmo, interroga Kardec ao Espírito de Santo Agostinho: “Que se pode opor a este
raciocínio?” – “A razão. Refleti maduramente e não vos será difícil reconhecer-lhe o absurdo”310.
Se a razão é falha, meu Hierão, a doutrina espírita é um equívoco, pois dizendo-se científica e
filosófica, nega validade à razão. Está certo isto?
Depois de relutar um tanto, mas vencido pela lógica, concordou, Hierão, com um aceno
de cabeça.
– Então, tornou Árago, vamos organizar em síntese o que disseram Hurão e Bruco. Você,
Orsoni, responder-me-á às perguntas, e com isso ir-se-á curando desses temores vãos; diga-me:
Você enxerga na natureza esse come-come desenfreado, essa roubalheira infinda, essa luta
diabólica em que a força e a astúcia são premiadas com a vida, e a fraqueza e a piedade são
punidas com a desesperação e com a morte?
– Forçoso me é dizer que essa verdade não padece dúvida.
– Logo, em lugar de amor há ódio; em lugar de paz, guerra; em lugar de bem, mal; em
lugar de altruísmo, egoísmo; em lugar da verdade há astúcia, engano, ludíbrio, mimetismo,
camuflagem, em fim, mentira?
– Sim, isso é evidente.
– E a que fim é tudo isso? Quais os valores que são premiados?
– A força e a astúcia, respondeu Orsoni, de muito má vontade.
– E Bruco não disse que o autor se conhece pela obra, e o pai, pelos filhos? Ora, suposto
que a obra de Deus é a natureza, e os filhos, suas criaturas, pela visão do mundo e da vida
podemos dizer: tais obras, tal Autor; ou tais filhos, tal Pai. Está certo?
– Essa foi a conclusão de Bruco, e... que não posso deixar reputá-la verdadeira.
– Igualmente, não podemos inverter a ordem do enunciado e dizer: tal Autor, tais obras?
ou tal Pai, tais filhos?
– Dá na mesma dizer assim.
– Atenção agora, recomendou o mestre: se Deus seleciona seus melhores em termo de
força e de astúcia, qual deverá ser seu atributo primeiro?
– Os atributos primeiros de Deus hão de ser Força e Astúcia. Que Deus me perdoe a
blasfêmia que sou forçado a dizer...
– Mas astúcia não é o mesmo que inteligência?
– Não posso negá-lo, concordou Hierão; em vez de astúcia, digo, então, inteligência. E
isto me é até mais cômodo, pois minha doutrina espírita me diz que “Deus é a inteligência
suprema, causa primária de todas as coisas” 311.
– Portanto, em vez de Deus ser a sabedoria a priori, ele é a inteligência a posteriori.
Porque a sabedoria sabe de antemão, intuitivamente, de um golpe; ao passo que a inteligência
sabe, igualmente, porém, por um processo discursivo, por progressividade. “Inteligência vem de
duas palavras latinas, inter (entre) e legere (ler, ou, primitivamente, apanhar, escolher).
Inteligência é, pois, a faculdade que lê, apanha ou percebe algo entre as coisas individuais, um
nexo oculto que os sentidos orgânicos não percebem”312. Sendo a inteligência a faculdade de ler
entre as coisas, o nexo que une as coisas, só pode existir depois de haver as coisas. Eis por que
eu disse que a inteligência é a posteriori, e só vem depois da experiência... e das coisas. Ora, se a
inteligência resulta das coisas, é gerada das coisas, é inter-legere que significa ler entre as coisas,
como pode ser ela, a inteligência, a causa primária das coisas? As coisas sim, é que são a causa
primária da inteligência, porque se não houvessem coisas, ipso facto, não se tinha também o que
ler. Como as coisas hão de vir primeiro, para depois vir a inteligência delas, por isso, primeiro
Deus faz as coisas, depois as intelecciona, isto é as entende. Por isso é que diz Goethe, no seu
“Fausto”, que “No princípio era a Ação”313. Como Deus é a inteligência, primeiro age, e depois
aprende; primeiro cria o ininteligível que é o caos, para depois o ir aperfeiçoando, devagar.
Porque Deus é a inteligência suprema, por isso sua obra primeira é o caos. Está bem deduzido e
claro meu pensamento, Orsoni?
– Está. O senhor também é um demônio...
– Então, sendo Deus a inteligência perquiridora, e não a sabedoria mesma, a priori, anda a
fazer suas experiências para ver em que dão, como se fora um aprendiz, e é por isso que sua obra
começa pelo caos ou nada. Ele só sabe construir, partindo do imperfeito em grau extremo. O
universo é o seu laboratório de experiências, e à vezes, por causa, quem sabe, de algum engano
ou descuido, uma estrela explode no laboratório espacial. Então Deus aprende, como o homem, e
está evoluindo na proporção que seu universo evolui. A inteligência é a posteriori; vem depois da
experiência; logo, Deus faz, e depois aprende. Por conseguinte, Deus evolui. Você pode fugir
destas inferências, ou iludir estas conclusões?
– Não... não posso – respondeu Hierão, contrafeito. Esta sala deve estar cheia de espíritos
demoníacos; estou vai não vai para fazer uma prece – resmungou, a seguir.
– Se Deus evolui, há de ser para melhor, não é assim, Hierão?
– Não pode ser de outro modo.
– E o que pode melhorar é imperfeito, não é?
– Sim..., que remédio, tenho de concordar.
– Deste modo, meus caros, concluiu o pensador, partindo do enunciado de que Deus é a
inteligência suprema, alcançamos um atributo da divindade que é a imperfeição.
E voltando-se de novo para Hierão Orsoni, continuou sua indagação:
– Há pouco, você não concordou em que os eleitos de Deus, seus filhos diletos, são os
fortes e os astutos, que vencem e esmagam sem comiseração, e tanto que, para estes, Deus
reserva a palma da vitória e da vida, e para as vítimas, o castigo da desesperação e da morte.
Que me diz a isto?
– Esse é o fato irrefragável que nos mostra a natureza, a criação; e se tal é a lei imposta à
criação, essa é a vontade do Criador; não há fugir. Deus que tenha dó de mim...
– Esta vitória do mais forte, você o sabe, é em proveito dele mesmo. Quem vence, come,
cresce, engorda à custa do vencido que passa a integrar o organismo do vencedor. Cada ser quer
triunfar, para sobreviver; em todos eles, sem nenhuma exceção, está inscrita a lei: egoísmo.E o
Pai de tais filhos, e o Criador de tais criaturas, que os criou a eles conforme com seus atributos, à
sua imagem, à sua semelhança, como diz o Gênese, não pode deixar de ser senão egoísta. Então,
é Deus egoísmo Hierão?
– Desse jeito é... que fazer! Estou a benzer-me...
– E qual é o oposto do egoísmo?
– Ora, o oposto do egoísmo é o altruísmo, e tanto que, enquanto o egoísmo quer tomar, o
altruísmo quer dar.
– Bom. E o ato de dar enfraquece quem dá, em proveito de quem recebe. Por isso, o
altruísta, dando de si, se destrói, no passo que o egoísta, tomando, por força, aos outros, se
conserva. Logo, o altruísmo é uma negação, um suicídio. Só no egoísmo pode estar a vida e o
crescimento, donde vem que o egoísmo é positivo. Ora, sendo Deus vivo, positivo, egoísta, por
excelência, por isso mesmo não é amor, isto é, altruísmo. Está certo?
– Segundo essa cadeia de raciocínio, tenho de concordar. Que Deus me ajude, e me salve,
que já estou caindo no abismo...
Neste ponto interveio Arlindo Helisiano, que até então se mantivera em silêncio,
exclamando:
– Mas o amor existe, prezado Árago; vemo-lo na mãe que defende o filho ao qual deu o
ser. E se o amor não deriva de Deus, de onde saiu, então?
– E por que a mãe defende o filho, Arlindo?
– Pois porque é seu, ora essa...
– Bom. Se a mãe defende o filho porque é seu, neste seu está implícita a resposta ao
quesito; a mãe tem sensação de posse sobre o filho; e defender o seu é o mesmo que se defender
a si. Quando Hume fez sua análise para descobrir o “eu”, não o achou em parte alguma, e por
mais que se esforçasse, somente achava o “meu”, e nunca o “eu”, O “meu” e o “eu”, logo, se
confundem. Então, aquilo que você chama amor, eu digo que é egoísmo do eu, em cujo redor
gravitam os “meus”. Os meus, portanto, são extensões do eu. Amar o seu, por isto, é amar-se a si
mesmo; e quem a si se ama é egoísta. Neste sentido egoístico, Deus é amor. Ele ama aos seus
escolhidos e selecionados, que são os fortes e os astutos, e só a estes dá todo o bem que pode,
141
porque se ama a si mesmo neles que lhe são extensões. Deus, de fato, se sente viver nos seus
eleitos, como um pai nos filhos. Varando, portanto, esta zona de gravitação do “eu” em que os
“meus” são possuídos, o amor torna-se negativo; porque, quem dá o que tem, fica pobre e fraco;
e quem é fraco fica à mercê do forte que pode comê-lo, ou escravizá-lo. Quem, por conseguinte,
compreendeu a lição da vida, sabe que o amor é negativo, e o egoísmo, positivo. Como vê,
Helisiano, trata-se somente de mudar os sinais aos dois termos da expressão, como fazemos em
álgebra. Está certo que podemos interpretar o amor em termos de egoísmo?
– Está.
– Então, concluiu o mestre, até aqui temos visto vários atributos: Deus é força, astúcia
(inteligência), egoísmo, imperfeição, sujeito à evolução e a melhorar-se, e por isso mutável.
Seus eleitos são os fortes e astuciosos; para estes, a alegria de viver, a euforia da vitória; para os
vencidos, a dor, a desesperação, a tragédia, e a morte inexoráveis. Diga-me agora, Hierão, você
que é espírita: como ensina sua fé?
– Minha fé espírita me ensina, primeiro, que a evolução existe, de fato, e procede do caos;
segundo, que Deus cria eterna e ininterruptamente; e terceiro, que o mal e a dor são eternos, não
para os mesmos indivíduos, ou para as mesmas criações, mas, para as criações novas que sempre
se vão elevando do caos. Como se vê, este terceiro enunciado que é o da dor eterna, decorre do
segundo que postula sobre a criação ininterrupta, começada, sempre, no caos. O mal e a dor são
contingências naturais, forçadas, que eternamente se repetem para todos os seres criados, quando
evolucionam nos graus inferiores da escala da vida universal.
– Veja bem, Hierão, como seu espiritismo concorda com o que vimos falando. Por causa
de Deus ser egoísta e insensível, senão sádico, seus eleitos, os fortes e os astutos, são já
insensíveis, como ele mesmo, às dores medonhas pelas quais sempre estão passando seus irmãos
mais novos nos planos inferiores da escala da vida.
– Nada disso, meu caro, tornou Hierão: minha doutrina ensina, também, que os eleitos são
sensíveis às dores alheias, e é por isso que “fora da caridade não há salvação”314.
– Neste caso, se os eleitos de Deus são sensíveis às dores e aflições que grassam nos
níveis inferiores, hão de sofrer a dor dos debaixo, por solidariedade ou empatia. Não é assim?
– Exato.
– Por conseguinte, concluo, por correto raciocínio, que a dor não só sangra embaixo,
como corta os corações em cima. Os espíritos que sobem à condição de salvos, ou ficam
insensíveis às dores dos debaixo, ou não. Se ficam sensíveis, hão de sofrer eternamente, visto
que a dor é eterna, porque sempre renovada por Deus que cria, ininterruptamente, planos
inferiores desde o caos. Deste modo, então, a dor será eterna para todos os espíritos, tanto para os
em evolução, como para os evoluídos! Se, todavia, os eleitos ficam insensíveis à dor alheia,
então temos isto de estapafúrdio: salvam-se, pela caridade, e, depois de salvos, perdem a
caridade, com que ficam insensíveis. A caridade não passa, então, duma escada pela qual se sobe
à insensibilidade dos eleitos que, por impassíveis, se tornam como é Deus. Logo, a máxima
espírita deveria ser enunciada assim: fora da caridade não há salvação, e dentro da salvação
não há caridade. Como é, Hierão: Deus é impassível, ou sofre?
– Estou desarmado, entre a ponta da espada e a parede; porque se digo que Deus sofre, o
senhor me retrucaria: então, por que não acaba de vez com a situação que criou livremente, e
agora o faz sofrer? Se, entretanto, digo que é impassível, responder-me-á: se é impassível, se-lo-
ão também os filhos eleitos, que lhe herdam o atributo de impassibilidade. Dentro da salvação,
neste caso, não há caridade, sendo extravagância afirmar que fora da caridade não há salvação.
Melhor me é ficar quieto, que continuar a enredar-me nas malhas; só vejo ciladas por todos os
lados. Mas que nos diz o senhor a isso?
– Por agora, provisoriamente, para fins de argumentar, direi que, sim, Deus sente gozo
com a dor, por isso que a cria e a sustenta ininterruptamente. Esta é a conclusão que a sua
doutrina espírita impõe ao afirmar que, para não ficar ocioso, Deus não cessa de criar espíritos
no caos. Como vêem, a criação ininterrupta e eterna de espíritos em estado de simplicidade e
ignorância, faz eterno o dualismo bem-mal, alegria-dor, céu-inferno, etc; faz de Deus um
flagelador de inocentes, porque, se o pune, o faz porque erraram; mas erraram por ser ignorantes;
314 Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XV
142
e como Deus os fez ignorantes, criou-os para a dor. Ora, se Deus fosse impassível, não lhe
interessaria isto. Porém, considerando que ele goza com fazer sofrer os seres que terão de passar
pela experiência do mal, do pecado, da dor, para aprenderem a ser fortes, astutos, egoístas e
impassíveis, então Deus é sádico. É por causa deste atributo de Deus, o sadismo, que ele premia,
conforme nos mostra a natureza, a astúcia e a força, visto que ambas dão vitória ao forte sobre os
fracos, os quais Deus não se honra de ter por filhos. Logo, fora do egoísmo, da força e da astúcia
é que não há salvação, e não como enuncia a doutrina espírita, aí, do Orsoni.
Depois duma pausa, prosseguiu o mestre:
– Sirva isto de lição a todos os que se metem a ensinar, esquecendo-se de que o
pensamento tem suas leis invioláveis. Ninguém será capaz de destruir isto que deixo assentado
em rocha de diamante. Depois do que eu disse, meu Hierão, o seu espiritismo terá de reformular
seus enunciados.
E tendo o mestre meditado um pouco, exclamou:
– Concordariam todos em deixarmos o resto para outro dia?
Todos concordaram, e os estudos deste dia foram encerrados.
Capítulo VII
Na noite posterior àquela em que fora feito o estudo das duas hipóteses, todos se
encontravam de novo na sala da biblioteca, ávidos por continuar nos estudos. E tendo Árago
entrado para a sala, e indo para a lousa, principiou a falar:
– Conquanto tenhamos discorrido bastante sobre Kant, quando lhe fizemos a crítica, ainda
hoje a ele nos referiremos, em virtude do triângulo que estou disposto a formar, com os vértices
Kant, Platão e Aristóteles. Para este fim, como vêem, vou desenhando um triângulo eqüilátero
aqui na lousa, com uma das bases voltada para cima. Um ângulo dessa base é Platão, e o outro,
143
Kant. No ápice que está, assim, para baixo, ponho Aristóteles. Como vêem, Kant se opõe a
Platão como um ângulo a outro; de igual modo, ambos se opõem a Aristóteles. Todavia, todos
juntos dão feitio triangular à verdade total, quanto à razão.
E largando o giz, dirigiu-se para sua cadeira; e após consultar suas notas, continuou:
– “Sócrates – disse Renan (Vida de Jesus, cap. 38) – deu aos homens a filosofia e
Aristóteles deu-lhes a ciência. Existia filosofia antes de Sócrates e ciência antes de Aristóteles; e
depois de Sócrates e de Aristóteles a filosofia e a ciência progrediram muito, mas tudo se
construiu sobre os fundamentos que eles lançaram”315. No entanto, Sócrates é Platão; não o
conhecemos, em seu aspecto positivo, senão pelos escritos de Platão e de Antístenes que também
escreveu uma “Apologia de Sócrates” diferente da de Platão. Por isso, fazendo-se a redução de
Sócrates a Platão, com mais justiça podemos afirmar que Platão nos deu a filosofia, e Aristóteles,
a ciência. Este é também o pensamento de Emerson que diz: “Platão é a filosofia e a filosofia
é Platão”; e ainda aplica à “A República” a frase de Omar sobre o Alcorão: “Queimem-se as
bibliotecas, pois o que elas têm de valioso encontra- se neste livro (3)” 316. Um paralelo, por
conseguinte, entre Platão e Aristóteles é o mesmo que um entre a filosofia e a ciência. Está certo
isto, Licas?
– Está. Só que ainda não atinei como o senhor vai se haver com Kant no triângulo, uma
vez que Platão, no dizer de Will Durant, “é o homem que menos se assemelha a Kant”317.
– Pois aí está, meu nego, que sendo os três filósofos diferentes até a oposição, destas três
facetas construiremos a verdade inteira.
E tomando melhor cômodo na cadeira, prosseguiu o pensador:
– A visão de Kant é semelhante à de Platão, visto como ambos pressupõem uma criação
perfeita saída das mãos do Criador. Assim o sistema de Kant repousa sobre um númeno: a
criação perfeita do homem.
– E que é númeno? Interrogou Hierão Orsoni.
– É a idéia absoluta que serve de fundamento a um sistema. Segundo Kant, númeno é o
fato que se passa em nosso espírito, e se nos revela pela consciência. Sendo, como é, subjetivo,
se opõe a fenômeno, que, por sua natureza, é objetivo. Trata-se de coisa conhecida pela razão,
em oposição aos fenômenos que nos impressionam os sentidos. Númeno é a idéia que subjaz a
tudo como sustentáculo. Ora, Kant parte de uma idéia numenal, não referida por ele, mas sobre a
qual se alicerçam suas intuições puras, seus a prioris. É uma como intuição mais geral, que
antecede e serve de base às intuições puras decorrentes.
criado e escravo da casa de Menon, esteve a recordar o que sabia quando habitava o lugar
celeste. Para Kant, porém, não é que o rapazola recordasse o que sabia, senão que fizera
funcionar seu mecanismo apriorístico da razão, descobrindo, por isso as verdades de razão ou
puras da geometria. Todavia, temos de convir em que o jovem escravo, para Platão, era uma
alma caída em nosso mundo de esquecimento e sombras ilusórias; mas quando habitava o topos
uranos, sabia à moda de Kant, por ter sido criada de modo perfeito por Deus, donde vem que
sendo perfeita sua razão, tinha em si todo o saber puro sem ter sido preciso aprender. Eis, meus
caros, realismo e idealismo interligados.
E sem quebrar o mestre a torrente de idéias, foi dizendo, ao tempo em que abria um livro
em lugar marcado:
– Então tem razão Hegel ao afirmar que "todo o racional é real e todo o real é
racional"322. Racionalidade e realismo, portanto, tornam-se palavras sinônimas, de sorte que
Platão fica jungido a Kant pelo lado do triângulo que liga estes dois vértices opostos. O mundo
de Platão era o das idéias arquétipos, sendo, para ele, real e ideal uma e a mesma coisa. Desde
Parmênides, a quem Platão chamava o Grande, as propriedades essenciais do ser são as mesmas
que as do pensar. "Dentre os fragmentos que se conservam, brilha esta frase esculpida em
mármore imperecível: "Ser e pensar é uma e só coisa323.
A estas últimas palavras de Árago, exclamou Chilon:
– Com que acha, o senhor, então, como pensam os idealistas alemães, que Parmênides é
um idealista antes do idealismo, e que Platão é precursor de Kant?
– Se eu achasse isso, não poderia colocar esses dois filósofos em oposição de modo a
formarem os dois ângulos da base do triângulo. Em Parmênides, de fato, existe a identidade entre
ser e pensar. Todavia, usando uma expressão de Garcia Morente, tudo depende de onde iremos
pôr o assento. Se fizermos recair sobre pensar, então, pensar tem primazia sobre ser, e este
depende daquele. Deste modo, tudo nos parecerá idealismo. Contudo, em oposição a isto, se
fizermos recair o assento enfático sobre ser, o pensar dependerá do ser, visto como, sem este,
não é possível o pensamento. É este o realismo parmenídico-platônico. Por isso, Parmênides e
Platão não são idealistas à moda de Kant, e "querer converter Platão em um idealista é falsear
por completo a posição e a solução do problema metafísico tal como o propunham os gregos"324.
A coisa se resume, portanto, em saber o que veio primeiro: se o pensamento, ou se o ser. Que
foi feito antes, Chilon: o martelo, ou a tenaz?
– O martelo, pois claro! Até um macaco arbóreo o usa, que é a pedra com que ele rebenta
sua castanha.
– Discordo! – exclamou Bruco. A mão que segura a pedra é donde saiu a tenaz, por isso
que esta mais não é do que a extensão dos dedos polegar e indicador que se opõem entre si. Os
dois braços, porque simétricos, quando erguem e transportam um objeto, agem simultaneamente
um contra o outro, tal como ocorre com as hastes da tenaz. A tenaz é prolongamento e cópia dos
dedos, ou faz as vezes de braços que erguem e transportam coisas, e o martelo primitivo é uma
pedra colocada na extremidade rachada de um pau. Ora, as duas partes que se afastam em virtude
da rachadura, e que contém entre si a pedra, também fazem lembrar as hastes duplas da tenaz.
Por isso, o martelo primitivo é uma tenaz de madeira apertando entre seus ramos uma pedra.
Como a tenaz surgiu da mão que segura, ou do pau rachado na ponta que atenaza a pedra, por
isso, a tenaz antecede o martelo no tempo; por isso que sem tenaz não há martelo.
– Se você, Bruco, atalhou Chilon, faz derivar a tenaz da mão que segura a pedra, eu faço
o martelo surgir de um punho cerrado, por isso que o soco, o murro, com que o primitivo atacava
seu adversário na luta corporal, é u'a martelada desferida com a mão. Este golpe de mão fechada
tem paralelo na bola eriçada de pontas da extremidade caudal do gliptodonte, com a qual este
grande tatu primitivo martelava o seu atacante.
– Entretanto, acudiu Bruco, se com um punho cerrado o primitivo golpeava o seu
adversário, é bem certo que com a outra mão ele o prendia e segurava. E se você me fala dessa
danosa maça pejada de pontas em que findava a cauda do gliptodonte, faço-o lembrar-se de que
isso é nada perto das terríveis mandíbulas do dinossauro, armadas de dentes, pontiagudos e
fortes, contra as quais nenhum outro animal pré-histórico se atrevia. E os maxilares dos animais,
sem exceção, são tenazes que prendem e seguram. E antes que um recém-nascido use os punhos
cerrados para golpear, é do seu instinto ou reflexo prender e segurar com as mãos como
tenazes. Antes, por conseguinte, que houvesse mãos que golpeiam, houve bocas e mandíbulas
que atenazam como ocorre com as serpes e com os peixes que não tendo mãos, as mordem.
Logo, a tenaz antecede o martelo no tempo.
– Pois aí está, tornou Chilon, que o mastigar não passa da ação de um martelo que se opõe
ao seu contrário, por isso que o mastigar é feito de marteladas que trituram entre as mandíbulas o
que se come, longe estando de estas parecerem tenazes que apenas prendem e seguram. E se me
concede, você, que o maxilar inferior seja martelo que ora golpeia e esmaga, ora prende e segura,
havemos de convir em que tenaz e martelo têm a mesma origem, e quando apareceu um,
simultaneamente surgiu o outro.
– Está bem... está bem... concordou Bruco.
Árago, que acompanhava, atento, o desenrolar da discussão, vendo o desfecho a que
chegaram Chilon e Bruco, rematou:
estão nas coisas como diz Aristóteles. Mas também estão na mente de Deus, como diz Santo
Agostinho"325. Já, agora, Hegel tem razão, e todo o real é racional, e todo o racional, real. Se a
pedra não fosse racional na mente de Deus, se fosse ela um absurdo, não existiria, como
realidade objetiva; logo, existe porque foi pensada. Conquanto ela não pense, já existe, e é ser,
donde vem que, em relação a si, o ser é antes do pensar. E assim como a pedra, o homem teve
que ser, antes que pudesse pensar. De igual modo, no topos uranos, as almas foram criadas para
depois pensarem, e não que se pensaram a si mesmas, para serem criadas. Antes do ser das almas
esteve o pensar de Deus, e depois do ser delas, foi-lhes possível o pensar.
criaturas é possível. Logo, tanto que elas tiveram ser, e passaram a existir, nelas ficou impressa a
lei do pensamento, estando, a priori, pronto para funcionar o mecanismo da razão, como, aliás,
ocorre com todos os demais órgãos que são funcionais antes de funcionarem. Ora, o mesmo
Deus que criou as almas, criou também as coisas do mundo objetivo do lugar celeste. Então, as
almas, para saberem, não precisavam senão tirar tudo de si, de seus mundos subjetivos, como o
ensina Kant. Todavia, Platão olha para fora, para o mundo objetivo, e toma almas e coisas tudo
como coisas. Lá no topos uranos as almas vivem contemplando perpetuamente as belezas
imperecíveis e imutáveis das idéias realizadas ou objetivadas nas coisas, sem nascer nem morrer.
Nenhum esforço expedem nesta contemplação metafísica, porque têm a verdade impressa em si
mesmas, podendo-a contemplar, intuitivamente, por uma como sabedoria infusa. Então, as
almas, olhando para fora, para o mundo objetivo, observam que este mundo exterior se casa à
maravilha com suas visões interiores, e sabem, a priori, como é lá fora, porque almas e coisas
tudo foi plasmado segundo um princípio único, donde vem que o que está fora, é como o que
está dentro. Querendo Platão que este nosso mundo fugaz, heracliteano, do vir-a-ser constante, se
assemelhe o mais possível ao mundo das idéias arquétipos, lança-se (aqui, a diferença) a criar
utopias, a escrever "A República", a pretender que só os filósofos fossem reis, ou, o reis,
filósofos. A este respeito escreve Arnold J. Toynbee "Ao sugerir este remédio, Platão viu-se em
dificuldades para desarmar, antecipadamente, a crítica do homem simples. Platão apresentou a
sua proposta como um paradoxo próprio a provocar a ironia das mentalidades não-filosóficas.
Não obstante, se a prescrição de Platão constitui uma afirmação violenta para os leigos – quer se
tratasse de reis, quer se tratasse de plebeus – foi uma afirmação mais dura ainda para os
filósofos. Não é no desprendimento da vida que consiste o verdadeiro alvo da filosofia? E não
são os esforços em prol do desprendimento individual e a salvação social reciprocamente
incompatíveis, ao ponto de se excluírem mutuamente? Como pode alguém propor-se salvar a
Cidade da Destruição, quando está justamente lutando para ser livre? Sob o ponto de vista do
filósofo, a encarnação do auto-sacrifício – o Cristo Crucificado – é uma personificação da
Loucura. Apesar disso, poucos filósofos tiveram a coragem de confessar esta convicção e menos
ainda a de agir baseados nela"327.
E tendo aberto junto ao de Toynbee, o livro de Will Durant, continuou:
– Por isso, "com a palavra filosofia, Platão significava uma cultura ativa, uma sabedoria
associada com as atividades práticas da vida; não pretende formar metafísicos de gabinete, sem
traquejo do mundo"328. Para Platão, "a ação é uma forma enfraquecida de contemplação"329. Eis
por que, Chilon, Platão "é o homem que menos se assemelha a Kant". Esta preocupação de
Platão com o Estado, com lançar as bases da sociedade modelo, prova que o céu dos eleitos,
segundo ele, difere do céu segundo a concepção de Aristóteles, São Tomás de Aquino e Santo
Agostinho. "São Tomás, quando tenta imaginar ou ver ou intuir em que deva consistir a bem-
aventurança dos santos, não encontra outra atividade senão a mesma de Aristóteles: os santos são
bem-aventurados porque contemplam a verdade, porque contemplam a Deus. Como Deus é
pensamento puro, contemplam o pensamento puro e vivem eternamente nas zonas do puro
pensar"330. Esta concepção aristotélico-tomista leva ao isolacionismo egoísta, comum a quase
todos os filósofos. Contra esta tendência reagiu Platão, pelo que procurou realizar a integração
social na Unidade-Estado. Ora, quem diz integração, antes terá de dizer: interação, convívio,
preocupação com a sorte alheia, amor do próximo. E por que Platão cura de realizar tudo isto em
nosso mundo? Porque, pois claro, intui uma sociedade integrada pelo Amor no topos uranos. Por
conseguinte, a beatitude dos santos não consiste somente no gozo intelectual, na pura
contemplação metafísica, como querem os aristotélicos todos, senão, também, na interação das
unidades sociais vinculadas pelo amor, no que São Tomás chama "fluição" amorosa. Esta é a
causa, e não há outra, por que Platão anseia por ver na Terra tudo parado nas instituições
perfeitas; assim o quer, porque assim é como o intui no mundo celeste das idéias-arquétipos.
E prosseguiu o mestre, após uma pausa:
anda à caça de vistosas frases"351. Todo cosmo é beleza e todo caos, fealdade; todo cosmo é belo,
porque harmônico e ordenado, seja ele uma sinfonia, um tratado de idéias, um conjunto de
formas, um organismo vivo, ou u'a máquina. A máquina é um cosmo dinamomecânico, assim
como um organismo vivo é um cosmo biológico; e tudo é belo porque, além de funcional, possui
ordem e harmonia. Já o caos nada disto tem, e por isso é feio. Qualquer coisa, tanto é mais bela,
quanto mais for simples, funcional e harmônica; tudo tem de ser lógico como o é qualquer
cosmo, e não absurdo, alógico, como o é qualquer caos. Em literatura, como em música, como
em pintura, como em qualquer outra arte, a beleza há de corresponder à funcionalidade pela linha
do menor esforço. Assim como os sons se organizam segundo as leis de harmonia, para
formarem um cosmo sinfônico, e as formas são trabalhadas pelo artista a fim de constituírem um
todo harmônico, também as palavras têm regra certa de harmonia, e não podem ser ligadas a
esmo, tendo-se em vista só o trivial da gramática. A língua, na boca, ao terminar uma palavra,
precisa estar na posição de iniciar a seguinte; sem esta elisão que une os sons próximos, o estilo
se endurece e emperra. A sonoridade que os poetas conseguem, vem disto, e não de outra coisa; a
par deste encadeamento vocal, é necessário haja o oracional, o ideológico, o dialético e o lógico.
E só quem imprimiu no próprio espírito estas leis de harmonia cósmica, pode ser artista, seja ele
um Platão, seja um Mozart, seja um Ticiano, seja um Goethe. Por este motivo, e não por outro,
Platão afirma que "a incorreção de linguagem não é somente uma falta contra a própria língua;
ela causa também mal às almas"352. Não se trata de poder mágico nenhum atribuído às palavras,
como pretendeu o tradutor em nota 44 ao pé da página. Trata-se de que a incorreção de
linguagem leva a idéias errôneas. Está claro que se Críton disser: Sócrates é o que foi enterrado
hoje, então, terá afirmado que Sócrates morreu absolutamente, nada restando dele. Todavia, se
disser: os restos mortais de Sócrates foram enterrados hoje, terá afirmado que Sócrates não
morreu, mas que vive, alhures. Nada há que ver, portanto, com poder mágico das palavras.
Considero grave ofensa atribuir tão chocha crendice à grande inteligência de Platão. Vieira disse
o mesmo, por outras palavras, quando prega que o diabo pode fazer da fé heresia, e da heresia,
fé. Cristo ressuscitou; não está aqui – eis a fé. Cristo ressuscitou? não; está aqui. Eis a heresia
igual a que se lê na campa de Voltaire, onde o materialismo dos pensadores franceses fez
escrever: "Aqui jaz Voltaire". A arte, por conseguinte, está na alma do esteta, e, à do receptor
dirige a sua mensagem; não está na boca, nem nos olhos, nem nos ouvidos, nem nas mãos do
artista; por isso calha bem o dito de Lessing: "Rafael seria um grande pintor, ainda que nascesse
sem braços"353.
E após ponderar um tanto concluiu:
– Eis, aqui está, como nós, procedendo aristotelicamente do particular para o geral,
podemos induzir uma estesia e uma ética. Não disse bem: procedendo desse modo, descobrimos
a Moral e a Estética em função das quais, aliadas à Lógica, tudo o que existe deve sua razão de
ser. Estas luzes, não só nos auxiliam na vida prática (pois esta não só é um mundo de
possibilidades, governado por leis), como também nos faz aproximar de Deus. Desenvolvendo-
nos no campo das idéias puras, chegamos, como já o dizia Platão, a "participar de um estado de
consciência quase divino". Nosso espírito, ajustado de acordo com estes conceitos, responde com
idéias intuitivas, reais, exatas, no momento em que for solicitado. Nosso cérebro não difere,
quanto a isto, dos computadores eletrônicos; estes, como aquele, se ajustado corretamente,
respondem certo; porém, se num ou noutro caso se imprimirem dados falsos, as respostas serão
menos verdadeiras. A resposta a um problema que colocamos, elaborada em nosso íntimo com
os recursos aí existentes, e que nos chega instantâneo, como um raio, se chama intuição. Por este
motivo a pedagogia de Platão que mandava estudar primeiro as ciências exatas, como as
matemáticas, era melhor do que a de Aristóteles que se ocupava da biologia caótica. Porque as
matemáticas são verdades de razão, e independem da experiência, no passo que a biologia se
constitui de verdades de fato, que só podem ser alcançadas graças às experiências. Acabamos de
entender agora, claramente, que, como dizia Hegel, "tudo o que é real é racional, e tudo o que é
racional é real".
ARISTÓTELES PLATÃO
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coisas do topos uranos, visto como ali tudo saiu diretamente das mãos de Deus como criações
imediatas. As criações de nosso mundo são mediatas, por isso que imperfeitas. Em “A
República”, página 90 (Atena Editora), diz Platão que “sendo Deus essencialmente bom, não é a
causa de tudo, como geralmente se diz”. “Assim, pois, a primeira lei sobre os deuses bem como a
primeira estabelecida, ordenará que se reconheça, nos discursos públicos e nas composições
poéticas, que Deus não é o autor de todas as coisas, senão só do bem” 359. E o método analógico
aristotélico mostra-se incapaz de provar nisto o erro de Platão; pelo contrário, tal método, o
analógico, se revela como uma espada de dois gumes que tanto pode cortar para a direita como
para a esquerda. “A escola de Aristóteles e São Tomás ensina que Deus é conhecido, pela razão
natural, por um conhecimento analógico, que nos permite ver no espelho das coisas criadas as
perfeições divinas (ser, unidade, bondade, inteligência, amor, etc.), sem pôr entre Deus e as
coisas nenhuma unidade de natureza, nenhuma medida comum, nenhuma proporção, nenhuma
espécie de mistura ou confusão”360. Ora, se é que Deus é conhecido pela razão natural que vê no
espelho das coisas criadas as perfeições divinas, esta mesma razão natural também enxerga,
como as viu Darwin (Origem das Espécies) e Schopenhauer (Dores do Mundo), imperfeições
divinas tais como: vitória incondicional do mais forte e do mais astuto sobre o humilde e o justo;
a tragédia e morte, invariável, irremediável, do mais fraco, ainda que bom; a existência, da
feiura, da maldade, da estupidez, da ignorância, do fanatismo sangüinário, do egoísmo, da dor,
do mal, do ódio, do caos. Se é que Deus pode ser conhecido por um conhecimento analógico
que nos permite ver no espelho das coisas criadas estas imperfeições todas, então, podemos
conceber um Deus negativo, um Demônio criador, da espécie de um Moloch. Foi olhando neste
espelho das coisas criadas que Machiavel concebeu seu “O Príncipe”, e Nietzsche, as falas de
Zaratustra. Foi neste espelho que Trasímaco colheu as imagens que apresentou a Sócrates em “A
República” de Platão. Foi neste espelho que o homem das cavernas concebeu seu deus terrível
que exigia sacrifícios humanos; esse deus sangüinário e mau se honra de ter por filhos os fortes,
e a estes dá a palma da vitória e da vida, e nega a paternidade aos fracos que devem, por isso,
serem sacrificados, sejam animais, sejam homens vencidos em combate. A hóstia humana surgiu
da idéia que a natureza bruta nos dá de Deus, como já foi discutido num destes nossos serões.
Como vêem, a espada é de dois gumes; e, dependendo do ponto de vista, todos têm razão.
E depois de reflexionar um pouco, voltou a falar:
– Finalmente, e digo assim, porque precisamos pôr termo a este nosso estudo; finalmente,
Kant se liga a Aristóteles pelas suas categorias que, em Aristóteles, recebem o nome de juízos.
Dos quatro juízos da lógica formal aristotélica, Kant extraiu suas categorias ônticas. E aqui
aparece sua famosa inversão copernicana. Copérnico achava que não se podia interpretar
corretamente as observações astronômicas, a menos que se considerasse o Sol, e não a Terra,
como centro do sistema. Kant, cuidando a mesma coisa em relação à sua doutrina, diz: uma vez
que não podem as coisas nos enviar suas categorias, visto que estas são puras relações, temos de
aceitar, sem outro remédio, que as categorias estão na nossa inteligência, e são postas ou
impostas às coisas. As coisas não nos podem enviar as categorias tais como: unidade,
pluralidade, totalidade, causa, etc., porque isto são relações; logo, as relações estão em nossa
mente, e não, nas coisas. As coisas nos enviam apenas impressões, e nosso espírito é que elabora
os conceitos, as categorias. Se, pois, as categorias não nos vêm das coisas ao espírito, então só
pode ser que vão do nosso espírito às coisas. Por conseguinte, as categorias são conceitos puros,
a prioris, visto serem condições preexistentes em nossa inteligência.
– E se dissermos assim, aparteou Bruco: Nossa inteligência possui a capacidade
antecipada de elaborar os conceitos, mas, partindo das imagens. Os conceitos não passam de
abstrações do nosso espírito, e por isso não são realidades objetivas do mundo sensível.
– E essas abstrações do nosso espírito, essas idéias, são reais, ou não são?
– Não são, repetiu Bruco. O realismo está só na individualidade das coisas, e não nos
conceitos que elaboramos das imagens. Aristóteles tem razão: o real é o individual, o nominal.
– Logo, você, meu Bruco, tem que concordar com David Hume: nada mais temos que
séries de imagens, e nossos conceitos são fantasias puras, nas quais cremos, de fé. O
359 Platão, “A República” , 90-91-92 - (Atena Editora)
360 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 161
159
conhecimento racional é puro ato de fé; apenas cremos, mas não conhecemos de verdade. “Por
conseguinte, a única coisa que posso ter é crença, belief, no mundo exterior”361.
– Neste caso, modifico o que disse, tornou Bruco, e ponho isto: os conceitos das coisas já
existem preformados em nosso espírito.
– Se for assim, meu caro Bruco, então veja mais isto: o conceito de cavalo, de peixe, de
ave não nos é também fornecido pelo cavalo, pelo peixe e pela ave, porque estes seres apenas
nos enviam suas impressões, suas imagens. Eu recebo, através dos sentidos, as imagens de vários
cavalos, de variados peixes, de múltiplas aves; então abstraio, elaboro, dessas imagens seus
respectivos conceitos. Os conceitos, logo, estão a cavaleiro das imagens. Porém, como as coisas
não nos enviam mais que imagens, segue-se que os conceitos dessas coisas são elaborados pelo
nosso espírito, do mesmo modo que as categorias. Mas o argumento de Kant é de que as coisas
não nos podem enviar as categorias; e acaso podem nos enviar os conceitos? Se porque não
podem nos enviar as categorias, por isso, estas são a prioris, não podendo enviar-nos os demais
conceitos, estes o serão também, como você afirmou há pouco. Pois essas idéias antecipadas das
coisas, sob a forma de conceitos, de universais, são o que Platão chama de realidades de idéias-
arquétipos das quais as coisas individuais surgem como cópias; os conceitos são temas básicos, e
as coisas individuais, variações.
– Está certo exclamou Bruco.
–Então está certo Platão, e os conceitos universais são as realidades maiores, das quais se
copiam as realidades menores das coisas individuais, dos “nominais”. Está contente agora
Bruco?
– Não!
– Não, por que?
– Porque diz Platão que as idéias-arquétipos são exteriores a nós, ao passo que o senhor
há demonstrado que elas estão em nós.
– Elas se acham em nós, porque nosso espírito reflete em si aquilo que há na mente de
Deus, a qual, de maneira direta, criou as almas e as coisas perfeitas do topos uranos. Está correto
agora?
– Agora está! – concordou Bruco.
– Está e não está, atalhou o mestre. Kant e Platão estão certos, se considerarmos o homem
como criado de pronto por Deus, de maneira perfeita, como ocorreu com as almas. Nas almas
puras do topos uranos, visto que saíram prontas, acabadas, das mãos de Deus, estão não só as
categorias de Kant como conceitos puros, a priori, mas, também, se acham todos os demais
conceitos, porque elas refletem, em si, as idéias-arquétipos. Não, todavia, em relação ao homem
terreno, criação mediata ou indireta de Deus, porque, tendo-se ele, o homem, formado,
paulatinamente, por evolução, houve um tempo em que, para ele, não existiam nem juízos, nem
categorias, nem conceitos de qualquer espécie. Por conseguinte, Aristóteles, Platão e Kant têm e
não têm razão, dependendo só da relação em que os colocarmos. Igualmente, o velho adágio
latino aristotélico que diz: “nada existe na consciência que não tenha estado antes nos sentidos”,
está e não está certo: está certo em relação ao homem terrenal que evoluiu de baixo; porém, se
considerarmos as almas perfeitas, do lugar celeste, criadas imediatamente por Deus, vale o
acrescentamento introduzido por Leibniz: “nada há na inteligência que não tivesse antes estado
nos sentidos, exceto a própria inteligência”. O intelecto, com suas leis próprias, com seus
germes racionais, com suas possibilidades de crescimento, desenvolve-se em contato com as
experiências, mas não é produzido por estas. E nisto posso ainda ser mais radical do que Leibniz:
nada há no entendimento que tenha passado pelos sentidos, porque Deus, à semelhança
longínqua de um homem que constrói um “robot” de cérebro eletrônico complexo, pôs nas almas
que criou, toda a sabedoria que em criatura é possível. Eis aqui o que vem a ser ciência infusa! O
homem, lutando, afanosamente, transforma as verdades de fato em verdades de razão, procura
dar a todos os fenômenos naturais, interpretação matemática. Pois para as almas perfeitas do
topos uranos, todas as verdades são de razão, e para saberem tudo (tudo o quanto em criaturas é
possível) não dependem de experiência alguma. Portanto, é como digo: nada há na inteligência
das almas que tivesse estado antes nos sentidos. E mais: as almas perfeitas não precisam de
361 M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, 185
160
sentidos exteriores para o conhecimento. O que nelas predomina é a mente concípio de Galileu.
Galileu, para descobrir as leis do movimento, “apartou de seus olhos toda experiência sensível e
concebeu com os olhos fechados um espaço, um móvel nesse espaço, e dessa pura concepção foi
por pura intuição direta tirando as leis do movimento” (M. Garcia Morente). Também Beethoven
estava surdo aos sons sensíveis, quando “escutava” a sua “Nona Sinfonia” nas notas que grafava
no papel. Galileu para enxergar o funcionamento de suas leis, fechava os olhos, e Beethoven,
para escutar sua sinfonia derradeira, já não tinha audição. Tal com as almas puras que, para
enxergar, não precisam ver com os olhos, para escutar, não necessitam ouvir com os ouvidos,
para falar, não carecem de articular palavras, visto que as comunicações, ali, se fazem por
ressonância mental, por telepatia, e tudo o mais ocorre no recôndito de suas mentes. Então, como
as almas puras não têm precisão de sentidos, normalmente não os possuem, conquanto os possa
criar na hora da necessidade, do mesmo modo como fabricamos nossos utensílios e instrumentos.
Os chifres, que no boi são armas nascidas na cabeça, eqüivalem ao punhal que o sicário carrega à
cinta; aquilo que no boi são peças anatômicas, no homem é instrumento exterior a seu corpo. No
mesmo passo, os sentidos que possuímos, como partes anatômicas, são aparelhos exteriores à
alma pura, e esta os cria conforme suas precisões. Não é, pois, de mais e de melhores sentidos
que necessitamos, e sim, de melhor inteligência. Ninguém, jamais viu um elétron; contudo
Descartes o desenhou como um vórtice etéreo, e tal como ocorre com todos os turbilhões, o
elétron não passa de um efeito que rodeia o núcleo atômico.
Ao dizer estas últimas palavras, o pensador se pôs a esticar as pernas para as
desentorpecer; e após ter também estirado os braços, concluiu:
– Dou por satisfeitas as questões que levantei de começo, ao construir o triângulo da
verdade total quanto à razão. Está, portanto, realizado, em parte, o anseio de Manuel Garcia
Morente que deste modo se expressa: “De modo que o velho tema da morte, que já está em
Platão, e o velho tema de Deus, que já está em Aristóteles, ressurgem de novo na metafísica
existencial da vida; mas ressurgem agora com um cariz, um aspecto e umas condicionalidades
sensivelmente diferentes. Agora entramos, por assim dizer, na terceira navegação da filosofia.
Porque nem um realismo nem um idealismo exclusivista podem dar uma resposta satisfatória aos
problemas fundamentais da filosofia, já que percebemos que o sublinhado pelo realismo e pelo
idealismo são fragmentos de uma só entidade: aquele – o realismo – afirma o fragmento das
coisas que “estão em” a vida; este – o idealismo – o fragmento do eu, que também “está em” a
vida. Agora queremos uma metafísica que se apoie, não nos fragmentos de um edifício, mas na
plenitude de sua base: na vida mesma. Por isso digo que agora começa a terceira navegação da
filosofia, de rumos apontados já pela proa dos navios, que, como diz Ortega, caminha para um
continente em cujo horizonte se desenha o alto promontório da Divindade”362.
E fechando o pensador o livro, encarou os presentes, exclamando com ênfase:
– “Alto promontório da Divindade”? E que promontório alto é esse, senão o que Platão
chama de topos uranos?
E deixada a interrogação no ar, dava o mestre visos de que o estudo tinha terminado.
Aproveitando-se da pausa, porém, Chilon interrogou:
– Por que fala o senhor da verdade total, e logo sublinha, com entonação de voz, que é só
quanto à razão? Acaso essa não é a verdade total em sentido absoluto?
– Não! Tudo o que tenho dito corresponde somente à meia verdade, porque o topos
uranos, o promontório da Divindade, não é só um céu de racionais, um paraíso somente de
gozos metafísicos, como queriam Aristóteles, São Tomás e Santo Agostinho. É, sobretudo, e
aqui está o busílis, um céu de amor, que sem este vínculo de integração, a mera especialização
racional das células sociais, conduz irremediavelmente, aos caos. A própria inteligência se cria e
se nutre do amor. Garcia Morente fala da vida? Pois a mesma vida é amor, que sem amor não há
vida. E defino amor como o princípio de integração na sua expressão mais excelsa. Por isso é
que Platão já dizia que o mundo está cheio de eros (amor) sendo este, como diz o mestre Esíodo,
o princípio de integração dos elementos, seja para formar um átomo, seja para manter a
sociedade topos-uraniana. Deste modo, o que mantém coeso em unidade o topos uranos é o
amor, e o pouco dele que há no mundo, é parte da participação de que nos fala Platão. Mas hoje
362 M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, 312
161
Capítulo VIII
corporal poderia deixar de existir, ou nunca ter existido, sem que isso alterasse a essência do
mundo espírita?” “De certo. Eles são independentes; contudo, é incessante a correlação entre
ambos etc.’’ (R. 86). Esta é a doutrina que Kardec considerou ao elaborar a “Introdução’’ ao “O
livro dos Espíritos’’, parte VI. Aqui está: “O mundo espírita é o mundo normal, primitivo,
eterno, preexistente e sobrevivente a tudo. O mundo corporal é secundário; poderia deixar de
existir, ou não ter jamais existido, sem que por isso se alterasse a essência do mundo espírita’’
(pág.22). Portanto, no começo era o mundo espírita não só que preexiste, senão que também
sobrevive a tudo, podendo o mundo corporal nunca ter existido, ou desaparecer agora, sem que
isto alterasse a essência do mundo espírita. Logo, o mundo espírita é necessário, e o corporal,
acessório, visto que surgiu pelo acidente da queda, não sendo obra direta de Deus. Ou, de outro
modo: o mundo espírita preexiste a tudo; logo, preexiste ao mundo corporal e ao caos; ora, não
pode haver mundo espírita sem espíritos; por conseguinte, esses espíritos habitantes do mundo
espírita, preexistem a tudo. Se preexistem a tudo, são anteriores aos mundo corpóreo e ao caos,
não procedendo destes por evolução. Conseqüentemente, estes espíritos perfeitos habitantes do
mundo espírita – topos uranos, lugar celeste, preexistem ao mundo corpóreo e caos que vieram
depois. Por isso que Kardec diz, entre outras coisas, que esse mundo “espírita é eterno’’
(Introdução, VI, pág. 22). Deste modo, Deus, com ser a suma perfeição, cria espíritos perfeitos; e
só são submetidos à evolução, os espíritos que, posteriormente, são recriados a partir do caos da
substância dos que, em caindo, ali se dissociaram. Se o mundo espírita preexiste a tudo, o caos só
pode ter surgido depois, e por causa de caírem as almas desse mundo espírita que é o “topos
uranos’’. Por esta causa é que Platão afirma no “Mito da Caverna’’ ser sombra e ilusão a
realidade deste nosso mundo, se comparado à realidade do topos uranos. Conseguintemente, no
começo eram os Espíritos habitadores do mundo espírita, já porque Deus é Espírito (Jo 4,24 e II
Cor 3,l7), já porque o Espírito que é Deus é também o Verbo que era no princípio (Jo l, l)...
E após uma pausa, prosseguiu Árago:
– Espírito é organização, e não, caos; é “o princípio inteligente do universo” (R. 23). E
conquanto o espírito sempre esteja jungido à matéria (perispírito), que é o seu veículo de
manifestação, espírito e matéria “são distintos um do outro” (R. 25). “Pode dizer-se que os
Espíritos são os seres inteligentes da criação. Povoam o universo fora do mundo material”
(R.76). E tiveram princípio (R.78); e formam um mundo à parte, que é o “das inteligências
incorpóreas” (R. 84); têm forma indefinida, como a de “uma chama, um clarão, ou uma centelha
etérea” (R.88). De maneira, meus caros, que a filosofia de Platão da queda das almas do “topos
uranos” em nosso mundo corpóreo de sombras e irrealidades está n“O Livro dos Espíritos”
expresso na seguinte pergunta de Kardec e resposta do Espírito: “Qual dos dois, o mundo espírita
ou o mundo corpóreo, é o principal na ordem das coisas?’’ (P. 85). “O mundo espírita, que
preexiste e sobrevive a tudo” (R. 85). Aí está, prezado Hierão! É este o mundo que Deus criou ao
princípio, visto que o mesmo “Deus é espírito” (Jo 4, 24 e II Cor 3,l7) havendo de criar segundo
sua natureza, e não em oposição a ela. Se, pois, o mundo espírita preexiste e sobrevive a tudo,
sendo o PRINCIPAL na ordem das coisas, existia antes do mundo corpóreo e do caos. O mundo
espírita é, portanto, o necessário, o primitivo, o condizente com a natureza de Deus.
A estas palavras de Árago, Hierão, alarmado e contrafeito, retrucou:
– Mas eu, faz vinte anos que rodeio mesas de sessões práticas do espiritismo, e mais as de
estudos, e até hoje não ouvi que isso fosse dado por doutrina. Sempre ouvi que “no começo era o
caos”; que “os elementos estavam em confusão”; que “pouco a pouco cada coisa tomou o seu
lugar, e apareceram os seres vivos apropriados ao estado do globo” (R. 4l3); que “a espécie
humana encontrava-se entre os elementos orgânicos contidos no globo terrestre” (R.47); que
“Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, isto é, sem saber” (R. ll5 e l21); que “se
Deus houvesse criado os Espíritos perfeitos, nenhum mérito teriam para gozar os benefícios
dessa perfeição” (R. ll9); que Deus cria ininterruptamente espíritos, como simples e ignorantes
(R. 78 e 80); que por mais distante que se logre figurar o início da sua ação não o podemos
conceber ocioso, um minuto só que seja (R. 21). Isto foi o que sempre ouvi dizer; mas agora vem
o senhor, e me diz que tudo é ao contrário disto? Sempre tenho ouvido que os espíritos “todos
são criados simples e ignorantes e se instruem nas lutas e tribulações da vida corporal” (R. l33);
que “Deus lhes impõe a reencarnação com o fim de faze-los chegar à perfeição” (R. l32). Estou
163
saturado de ouvir que a salvação se faz pela caridade, donde a máxima repisadíssima de que
“fora da caridade não há salvação” (Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XV, pág. 213). Esta,
a doutrina que sempre ouvi repetida por todos os espíritas; como é que o senhor me vem com
essa doutrina diferente, e me diz que isto é Espiritismo?
– Diga-me, Hierão: que é salvação?
– O que se entende por salvação, segundo as várias igrejas, é não ir para o inferno; no
espiritismo, significa libertação das dores.
– E há pouco você não me disse que Deus cria, de contínuo, espíritos simples e
ignorantes, e os submete às reencarnações tribulativas para se aperfeiçoarem ?
– Disse; e daí?
– Daí, que, como todos os espíritos são submetidos às tribulações da vida corporal, sendo
a dor tanto mais atroz quanto mais embaixo eles estiverem, tiro a conseqüência de que no
Espiritismo não há salvação. Provo: se fora da caridade não há salvação, uma de duas: ou o ser
redimido sofre por solidariedade a dor dos que sofrem embaixo, ou fica indiferente. Se fica
indiferente, e por isso não sofre com a dor alheia, então, necessário é concluir: dentro da
salvação não há caridade. Basta, então, subir, para se ficar insensível, indiferente. Todavia se
dissermos que os espíritos eleitos, sim, sofrem; que se confrangem com a dor alheia, então a dor
é eterna, não só para os que se acham embaixo, subindo do caos, como para os que se encontram
em cima, para os redimidos ou salvos, visto que estes sofrem por empatia ou compaixão, a dor
dos debaixo. Ora, meu Hierão, se a ascensão implica no desenvolvimento do amor ou caridade,
segue-se que quem ama sofre, ao ver sofrer os outros; e como a dor é eterna, porque Deus cria de
contínuo Espíritos simples e ignorantes, temos de concluir, necessariamente, que a dor é eterna,
porque os salvos das dores próprias continuam a sofrer com as dores alheias. O que vem então a
ser a salvação no Espiritismo?
Vendo-se apertado, e sem saída, esbravejou Hierão:
–A dor é própria dos seres atrasados, que não dos evoluídos; estes sabedores do que ela é,
por que ela existe, e qual é o seu termo, não passam pelos nossos transes. Se passassem, Cristo
estaria sofrendo ainda com as dores nossas. É certo que os médicos têm coração tanto como nós;
todavia, sabendo que o doente vai sarar, não fica sofrendo com as dores dele.
– Diga-me Hierão: quando ainda não havia anestesia, os médicos não operavam?
– Claro que operavam.
– Amputavam eles uma perna, por exemplo?
– Perfeitamente.
– E encabeçavam as veias e artérias com ferro em brasa, ou, então, cozinhavam a boca do
coto em azeite fervendo?
– Era assim que se usava fazer.
– E extraíam um olho canceroso, ou trepanavam crânios com facas de cristal, para mexer
no cérebro?
– Também isso se fazia.
– E o médico, em aplicando tais tratamentos, não sabia que o enfermo ia sarar?
– Sabia, pois claro!
– Então, porque o sabia, conquanto tivesse coração como nós, não se confrangia, ao ver
escabujar de dor o infeliz, ao tempo em que soltava urros e berros medonhos?
– Penso que os médicos cirurgiões, comentou Bruco, de tanto tomar parte ativa em tais
espetáculos dantescos, acabavam por ficar insensíveis à dor alheia. Assim como a extrema
brutalidade dos campos de batalha bestializa os homens, a constante visão da dor insensibiliza os
médicos cirurgiões.
Depois de o mestre ponderar, em silêncio, o argumento de Bruco, voltando-se para
Hierão, concluiu:
– Logo, dos médicos não se pode afirmar que têm coração como nós. E nós temos
coração? Lembra-se daquele moço que se afogou na barra do Ribeira? Seu filho integrava o
grupo dos que ali mergulhavam para a caça submarina. O moço desmaiou no fundo d’água,
morrendo por hidrocussão. Quando se espalhou a notícia, você perguntou sobressaltado: quem é
o rapaz? Mas sua angustiosa expressão de expectativa e sofrimento, presto, cedeu lugar a um
164
suspiro de alívio, quando lhe disseram que seu filho estava bem... Se fôra seu filho o afogado,
acaso não cresceria ao paroxismo sua dor? Contudo, porque o morto era um estranho para você,
o que devia ser dor, não passou, quando muito, de pesar. E agora me vem você dizer, assim, de
um modo geral. Que temos coração?
E tendo assim o mestre posto a Hierão contra a parede, prosseguiu, após ligeira pausa.
– Como vê, meu nego, a dor alheia não nos dói, como não dói a do médico, porque
ambos, nós e ele não amamos. Mas quando amamos, a alheia dor nos dói. Se a dor de um não
doesse em outro, que sentido teria a fala de Simeão que profetizou dizendo que um punhal se
encravaria no coração da mãe de Jesus? (Lucas, 2, 35). Já leu você de Resfa, que teve num só dia
seus dois filhos crucificados? Querendo o rei Davi desagravar a ofensa praticada por Saul contra
os gabaonitas, perguntou-lhes o que exigiam para tornarem à amizade antiga. Os gabaonitas
impuseram que sete da descendência de Saul fossem crucificados num só dia, o que se fez.
Cinco filhos de Mical e dois de Resfa foram entregues aos gabaonitas para o sacrifício no
primeiro dia da ceifa quando se começava a segar as cevadas. Porém, Resfa guardou seus filhos
nas cruzes, cuidando que as aves de rapina não os dilacerassem de dia, nem as bestas ferozes, de
noite (II Sam 21, l a l0).
E após suspirar numa pausa, prosseguiu:
– Você sabe por que, Hierão, os médicos não praticam cirurgia grave em seus filhos e
esposas?... Pois é porque eles moralmente vão para as mesas de tortura cirúrgica juntamente com
seus entes queridos. E neste caso particular, se pode dizer que os médicos têm coração ... como
nós; e ainda que saibam que seus amados vão sarar, sofrem, sim senhor, com as dores deles.
Aquele que ama ao próximo como aos próprios filhos, médico ou não, sofre com as dores dele.
Se, pois, os salvos do Céu forem insensíveis, como os médicos da Terra, às dores alheias, então,
se pode, com acerto, dizer que dentro da salvação não há caridade. Todavia se a caridade é o
caminho único pelo qual se sobe à condição de eleito, e nestes, ela se agudece, então, dentro da
salvação também há dor, ou, simplesmente, não há salvação, como venho demonstrando.
Enraivado por esta conclusão, iniludível, vociferou Hierão:
– Mas que tem a ver a doutrina espírita com isso? Que os Espíritos sejam indiferentes à
dor alheia, ou vivam penando porque ela existe, acaso a doutrina tem alguma coisa a ver com
isto? Que o sofrimento existe é um fato; mas não foi a Doutrina Espírita que o inventou. E a ser
verdade que os salvos, os redimidos, porque amorosos, sofrem com as dores alheias, isso
também não foi o Espiritismo que inventou. Deus é o único responsável por isso tudo; havenha-
se ele, logo, com essas discrepâncias, desde que ele é que teria colocado, a par, sofrimentos em
uns, e sensibilidade em outros.
– De onde é, Hierão, que vem essa lógica obtusa, que afirma que na oposição entre a
doutrina espírita e Deus, o errado só pode ser Deus? Ora, os atributos da divindade são a pedra
de toque com que se hão de provar quaisquer doutrinas. Porém, de acordo com você, qualquer
doutrina estará certa, porque, quando for discorde com os atributos de Deus, poder-se-á dizer:
que tem a ver com isso a doutrina? Se ela não bate com o que sempre se pensou de Deus, pior
para Deus! Sendo ele o errado, havenha-se ele com a alhada! Que se mude, então, a idéia de
Deus, visto estar certa a doutrina! E por que o está? Está porque sim, ora... ora...
E depois de ponderar um pouco em silêncio, concluiu com ar faceto:
– Não sofrem os espíritas quando se fazem críticas a “O Livro dos Espíritos”?. Mas
muitos deles gostam de criticar a Bíblia que protestantes e católicos têm por regra de fé e de
verdade. Cuidando ser granítico seu pedestal doutrinário, põem-se a fazer críticas, e não lá
muitos sérias, da Bíblia, como se não houvesse coisa melhor com que se ocupar.
E encarando a Hierão, prosseguiu, o pensador:
– Como dizer que a Doutrina Espírita nada tem a ver com isso, se foi ela, justamente, que
suscitou a colocação do problema? É certo, como diz, aí, o Orsoni, que o sofrimento existe, e não
foi a Doutrina que o inventou; e que sofremos com a dor alheia, também isso não foi inventado
pelo Espiritismo; porém, que a dor seja eterna também para os bons, também para os salvos,
também para os eleitos, isso é conseqüência necessária implícita nos postulados espíritas, pois,
jamais, nunca, foi isto afirmado por religião nenhuma! Terá, por conseguinte, o Espiritismo de
responder por este ponto, porquanto é exclusivamente dele a doutrina de que Deus cria
165
ininterruptamente, Espíritos simples e ignorantes do nada, para, depois, forçá-los, pela dor, a
subir a escala evolutiva; e para realizarem isto, terão os Espíritos de desenvolver a sensibilidade
caridosa ou amor, com que vêm a sofrer com as dores alheias. Esta concepção de dor eterna é
invenção, sim senhor, do Espiritismo, donde vem que a salvação não pode estar no amor e sim,
na inteligência. Provo a conseqüência:
E dizendo isto, começou a folhar "O Livro dos Espíritos” a fim de achar o ponto.
– Como disse, aí, Hierão, no espiritismo, salvação consiste em escapar das dores. Como
fazê-lo? Subindo-se pelo desenvolvimento da moral e pela inteligência. E o amor? onde ficou o
amor? A moral é o código de conduta que rege as unidades humanas no todo social, sem o que
não pode haver convívio. O direito é apenas um círculo menor dentro do maior da moral, ambos
concêntricos. Portanto, a moral pode não ser amor. Negar isto implicaria em afirmar que todos
somos imorais, pois, é certo que não amamos... ao próximo, segundo o modelo proposto por
Cristo, na parábola do bom samaritano. Então, moral não é amor.
– Impugno! – exclamou Hierão. O homem ascende pelo intelecto e pela moral. Primeiro
está o conhecimento, e depois, vêm as virtudes nas quais se inclui a caridade, o amor. Moral é
tudo o que diz respeito ao coração. Vá o senhor a qualquer dicionário e ele lhe dirá que moral se
refere a tudo o que procede da alma, estando, por isso mesmo, em oposição ao corporal, ao
físico, ao material. Como vê, é imensa a extensão do termo moral que, por este motivo, inclui o
amor.
– Conheço de sobra essa manha meu dicaz Hierão. Sendo imensa a amplitude do termo
moral, nossa discussão se torna infinda, e por isso mesmo, sem nenhum resultado para o ponto
que se quer aclarar. Não cuide, porém, que me vou deslembrar do assunto deste estudo.
– Diga-me primeiro: que é moral?
– Se disse, de começo, que moral é termo amplíssimo, como definí-lo? Moral é tudo o
que se refere à alma, já o disse!
– Então, como a coragem se refere à alma, também é moral. Todavia, a coragem pode
resolver-se em temeridade, por um extremo, e em covardia, por outro. E tanto a temeridade,
como a coragem, como a covardia se refere à alma, donde vem que tudo é moral. Sendo moral
tudo isto, é moral ser covarde? é moral ser avarento? ser egoísta? ser orgulhoso? perdulário?
iracundo? invejoso? luxuriento? arrogante?
– Tudo isso, está claro, e imoral !
– Que é então imoral?
– Imoral é o vício, é tudo o que se opõe à virtude, tudo o que se opõe à moral.
– Mas, se moral é tudo o que diz respeito à alma, como estes vícios se referem à alma,
fazem parte da moral, não é?
– Fazem parte, porém, como oposição, como antítese.
– Então, moral já não é tudo o que se refere à alma, assim de um modo geral, como você
disse, mas, particularmente, tudo o que for bom, não é?
– Isso mesmo!
– E que posso entender por bom?
– Bom é tudo o que nos causa alegria, e mau, o que nos traz sofrimentos.
– Todavia, todo viciado sempre encontra prazer, alegria, no seu vício, e aborrecimento, na
virtude que se lhe opõe. Para ele, bom é o vício, que não a virtude.
– O gosto de um dominado pelo vício não pode servir de paradigma ou padrão de valores!
– Então, qual deve ser o padrão de valores?
– O virtuoso, ora essa!
– E que é a virtude?
– É o oposto do vício, e nada mais que isto.
– Logo, se catalogarmos todos os vícios, de uma parte, as virtudes estarão da outra, em
oposição; é assim?
– Perfeitamente.
– E você acha que, na parte dos vícios, podemos incluir a ignorância, e, do lodo oposto,
na coluna das virtudes, a sabedoria?
– Claro que podemos! A ignorância (e este é o pensar de Sócrates e Platão) não só é a
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mãe, senão também a nutriz de todos os vícios; pela recíproca, a sabedoria é o princípio de todas
as virtudes.
– E segundo sua doutrina espírita, Deus não criou os espíritos simples e ignorantes?
– Criou-os, e então?
– Então, tiro a imediata conseqüência de que Deus criou os espíritos viciosos!
– Quando é que o senhor vai largar mão de dar rasteiras, à moda de Sócrates? Digo,
então, que a ignorância não é vício, pronto!
– Porém, concorda em que ela se refira à alma, não é?
– Concordo!... que fazer!
– E tudo o que se refere à alma ficou catalogado em duas colunas opostas: a da moral,
consistindo das virtudes, e a da imoral, constituída dos vícios. E como a ignorância se refere à
alma, e não ao corpo; e não podendo ser posta na coluna dos vícios (a ignorância não é vício,
você o disse), terá de ir para o das virtudes. Então a ignorância é virtude?
– Arrisco-me a dizer, então, que nem a ignorância é vício, nem a sabedoria, virtude.
– Como você definiu a virtude como o oposto do vício, não sendo a ignorância vício,
também sua adversativa, a sabedoria, de fato, não pode ser virtude. Todavia, tanto a sabedoria
como a ignorância dizem respeito à inteligência, à razão. Portanto, por definição, deviam estar
catalogados sob o título da moral. Eis, Hierão, que para dar validade ao que preceitua “O Livro
dos Espíritos”, você peca contra a lógica, fazendo uma exceção que consiste em pôr fora da
moral a sabedoria! Assim, a sabedoria, conquanto diga respeito à alma, não é moral! É ou não é
que os espíritas, quanto ao fanatismo, podem ser postos na mesma canga com quaisquer outros
religiosos?
– Chega, Árago! Estou cansado de disputar. Enfim... arrisco mais isto: a moral é o amor.
– Logo, todo o que ama é moralizado, e o que não ama é sem moral?
– É isso!
– Mas em que sentido toma você a palavra amor? em sentido sexual, comum a todos os
animais? Em sentido maternal, comum a quase todas a fêmeas? Em sentido grupal, comum a
todos os rebanhos, bandos, cardumes, varas, maltas, etc? Ou em sentido moral, humanitário,
comum aos homens superiores?
– Todo o amor é divino, todo diz respeito à alma. Que coisa mais sublime pode haver do
que o amor de mãe?
– A estas últimas palavras de Hierão, Árago foi até à estante, em silêncio, tomou dela um
livro, folhou-o para diante e para trás até dar com o ponto, lendo, em seguida, em voz alta, para
todos:
– “Implantando-se um ovário num galo ou um testículo numa galinha, a glândula
implantada morre rapidamente. Ela é digerida ou, melhor, “expulsa”, pois a glândula sexual do
animal vela ciumentamente pelo seu sexo e impede o crescimento de um órgão qualquer de outro
sexo. Mas se a implantação do ovário é feita após castrar o galo, a glândula feminina cresce sem
obstáculo e sob seu influxo o galo torna-se uma galinha: ele adquire plumagem de galinha, flerta
com outros galos e se encontra ovos põe-se a chocá-los como se fosse mesmo uma galinha. Até o
amor materno desperta nele, que cobre os pintinhos com a proteção de seu corpo. Como se pode
ver no mundo animal, a maternidade é um acontecimento hormonal, que surge e desaparece
segundo o ritmo das funções glandulares”363. Mais isto: “Na fig. 3l3 vê-se uma macaca virgem.
Mas a injeção de hormônio hipofisiário provocou nela o desenvolvimento dos órgãos genitais,
dos seios e do instinto maternal. E para satisfazer sua fome de uma criança e seu amor materno,
ela tomou a uma cobaia um filho, que vai criar como seu pupilo. Seu amor materno era
excessivo, como se vê na expressão de seu rosto na fotografia. Mas depois de castrada cessou
todo o seu interesse pelo animalzinho e com indiferença ela viu outro macaco matá-lo”364. Neste
caso, meu Hierão, que é mais sublime: o amor materno, ou o hormônio que o provoca?
– Digo, então, que o amor sublime é o moral, ou seja, aquele comum aos homens
superiores. É isso. A moral se resume no amor do próximo. Quem tem desse amor é moral; quem
o não tem, não é moral.
363 Fritz Kahn, O Corpo Humano, II, 509
364 Fritz Kahn, O Corpo Humano, II, 510
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– E você possui desse amor humanitário, que vai na máxima: ama ao próximo, como se
ele fôra seu filho?
– Digo que tenho... vá!
– Então, por que sua expressão fisionômica de angústia e aflição, se mudou, de pronto, na
de tranqüilidade e alívio, quando lhe disseram que o infeliz afogado na barra do Ribeira não
era o seu filho? Acaso você teve também o coração transpassado pelo ferro que dilacerou os
corações daqueles pais que viram o filho morto?
– Não... não tive!
– Então você não ama ao próximo como a si mesmo, ou como a seu filho, como ordenou
Jesus?
– Para ser sincero, tenho de dizer que não amo a meu próximo.
– E como você declarou que a moral consiste no amor do próximo, afirmando agora que o
não ama, confessa que não é moral, que não tem moral. Ter moral é ter amor; ora, você não tem
amor; logo, não tem moral!
– Oxalá tivesse eu ficado quieto no meu canto!
Vendo que Hierão dava mostra de retirar-se do assunto, prosseguiu, de livro nas mãos:
– “A moral, disse Jesus, é a bondade para com os fracos; a moral, diz Nietzsche, é o
desassombro do forte; a moral, diz Platão, é a eficaz harmonia do todo”365. A virtude para Cristo
há que ser extrema: “Eu sei as tuas obras, que nem és frio nem quente: oxalá foras frio ou
quente! Assim, porque és morno, e nem és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca” (Apoc
3, l5 e l6). Já para Aristóteles a virtude consiste no áureo meio termo – “in medio virtus”. “A
ética de Aristóteles é uma ramificação da sua lógica: a vida ideal assemelha-se a um perfeito
silogismo. Ele dá-nos um manual das conveniências em vez de um estímulo para o
aperfeiçoamento”366. “Hoje só subsistem três sistemas de ética, três concepções do caráter ideal e
da vida moral. Uma é o de Buda e Jesus, que dá preponderância às virtudes femininas; que
considera todos os homens igualmente preciosos; que resiste ao mal contrapondo-lhe o bem; que
identifica a virtude com o amor e se inclina, em política, a uma ilimitada democracia. Outra é a
ética de Machiavel e Nietzsche, que dá preponderância às virtudes masculinas; que aceita a
desigualdade dos homens; que se deleita nos riscos do combate, da conquista e do mando; que
identifica virtude com poder e exalta a aristocracia hereditária. Terceira é a de Sócrates, Platão e
Aristóteles, que nega a universal aplicabilidade das virtudes masculinas ou femininas; que
considera que somente os espíritos maduros e bem formados podem decidir, de acordo com as
circunstâncias, quando deve imperar o amor e quando deve imperar o poder; que identifica
virtude com inteligência e advoga no governo uma mistura de democracia e aristocracia”367.
Fechando o mestre o livro, e depondo-o sobre a mesa, dirigiu-se a Hierão perguntando:
– Ainda está animado a me mandar aos dicionários a fim de ver que o amor, com ser coisa
da alma, está implícito no termo moral?
– Como espírita que sou, nada tenho com o que disseram Sócrates, Platão, Aristóteles,
Machiavel e Nietzsche. A mim me basta o que disse Cristo, para o qual a virtude se confunde
com o amor.
– Demos então que a moral seja o amor... e que as virtudes devam ter caráter feminino,
e, neste caso, as qualidades masculinas passem a ser defeitos, como querem Cristo e Buda
citados há pouco. Cristo disse: ama ao próximo como a ti mesmo, sendo isto, segundo ele, o
resumo da Lei e dos Profetas. Logo, a ascensão espiritual implicaria no desenvolvimento do
amor. Ora, quem ama ao próximo como a si mesmo, como a seu próprio filho, sofre ao ver sofrer
os outros; e como a dor é eterna, segundo o espiritismo, porque Deus cria ininterruptamente
espíritos simples e ignorantes a partir do nada, para forçá-los, pela dor, a subirem a escala
evolutiva, segue-se que os salvos das dores próprias passam a sofrer com as alheias. E não me
torne, Hierão, com essa objeção fragilíssima de que os salvos não sofrem com as dores alheias,
por saberem que, com a evolução, as dores cessam de pungir o sofredor; é completamente
chocho esse argumento, porque, sendo salvação igual a caridade, ipso facto, significa
solidariedade na dor. “Os filósofos antigos, definindo a verdadeira amizade, qual naquele tempo
era, ou devia ser, disseram: Amicus est alter ego: O amigo é outro eu”368. Se o amigo é o outro
eu que se acha em mim, as dores desse outro eu são dores minhas. E quando há amor perfeito,
qual o que se presume ser o dos eleitos, mais doem neles as dores do outro eu que as do próprio.
Assim há de ser, porque, de um modo geral, qualquer mãe humana dar-se-ia por muito feliz, se
pudesse substituir a seu filhinho tenro na dor, transferindo para si as dores dele. E mesmo na
saúde as mães sofrem sempre as pensões que não as deixam em paz, porque, estando seus filhos,
neste nosso mundo, sujeito a variações e mudanças constantes, tudo pode acontecer. É assim que
“o amor, depois da perda, vê-se na dor, e antes dela no receio”369. Tal há que ser o amor dos
eleitos, porque, “o amor fino é aquele que não busca causa nem fruto: ama porque ama, ama por
amar”370. “O amor perfeito, e que só merece o nome de amor, vive imortal sobre a espera da
mudança, e não chegam lá as jurisdições do tempo. Nem os anos o diminuem, nem os séculos o
enfraquecem, nem as eternidades o cansam”371. E “que mal filosofaram da dor e do amor os que
lhe deram por defensivo a ausência! Quem armou o amor com arco, e não com espada, quis dizer
que na distância feria mais; o amor não é união de lugares, senão de corações; a dor na presença
reparte-se entre os sentidos: na ausência recebe-se só na alma, e toda é alma; a dor na presença
tem o assistir, tem o servir, tem o ver, tem a mesma presença por alívio: a dor na ausência toda é
dor”372. Esta solidariedade, Hierão, ou existe ou não existe: se existe, não há salvação possível,
porque a dor do outro eu é eterna; se não existe, então dentro da salvação não há caridade,
porque os salvos não têm o tal outro eu e sim só o próprio, isto é: os salvos não têm amigos por
quem se doer... são absolutamente insensíveis às dores alheias.
E após fazer uma pausa, prosseguiu o filósofo:
– Tendo Cristo falado do amor do próximo, eis que lhe perguntaram os fariseus: quem é o
meu próximo? Então Cristo compôs a parábola do bom samaritano, deixando expresso que o
bom homem de Samária “moveu-se de íntima compaixão” (Lucas 10, 33), pelo viajor que fôra
roubado e espancado por ladrões, e deixado por morto à beira do caminho. Isto posto, pergunta
Cristo: qual é o próximo do que fôra espancado? Responderam-lhe: aquele que usou de
misericórdia para com ele. Esta é a causa por que os dicionários dão para compaixão o
significado de “dor pelo mal alheio, comiseração, dó, pena, pesar”. O amor, logo, possui sujeito
e objeto. E é impossível que o sofrimento do objeto amado (alter ego) não atinja também o
amante – ego. Por isso, amante que não se dói com as dores do objeto amado não é amante. E se
as dores do amado forem eternas, eternas serão, também as do amante. Sendo salvação estar livre
da dor, como esta isenção é impossível, segundo o Espiritismo, segue-se que no Espiritismo não
há salvação.
– Como vêem, continuou o pensador, a criação ininterrupta e eterna de espíritos simples e
ignorantes e a salvação pela caridade são incompatíveis; porque, se Deus cria de contínuo,
espíritos simples e ignorantes, a dor será eterna; e se para se salvarem, hão os espíritos de aguçar
a sensibilidade, a salvação se torna impossível. Por conseguinte, a salvação espírita, ou não
existe, ou existe, porém, não pode estar fundada no amor; se existe e está no amor, então, Deus
não cria ininterruptamente, espíritos simples e ignorantes. As duas proposições são inconciliáveis
entre si. Por isto, se a dor for eterna, só o não será para os que chegarem à insensibilidade duma
espécie de indiferentismo, pelo qual se mergulha o eleito numa contemplação metafísica, abstrata
e distante. Sem ser mau, desumano, perverso, cruel, pode-se, perfeitamente, ser neutro, omisso,
indiferente, acomodado num estado de indiferença pelo que não se deseja nem o bem nem o mal.
Estando, assim, para além do bem e do mal, se é perfeitamente indiferente à dor alheia, gozando
duma felicidade puramente intelectual, vivendo numa contemplação metafísica, como é a
beatitude dos eleitos segundo o entender de Aristóteles, de São Tomás, de Santo Agostinho, este
último, não só de quando vivo e bispo de Hipona, senão também de quando desencarnado, a
julgar pelo ensinamento que deixou exarado n“O Livro dos Espíritos”. É dele, pois, e não de
Platão, a doutrina que dá a inteligência, em vez de o amor, como atributo supremo de Deus.
Aristóteles diz que Deus é a Razão pura, e estar no céu consiste em contemplar a Razão de todas
as razões. Segundo Aristóteles, “Deus cria o mundo da mesma forma que um artífice faz sua
obra; mas como Deus não está no tempo, cria sua obra somente pensando-a. Sua atividade é só
pensar (pensar pensamentos), é esse “pensamento dos pensamentos”. Assim Deus é a essência
exemplar das coisas realizadas neste mundo”373. “Portanto, a finalidade do homem no mundo é
clara: é realizar sua natureza; e o que constitui sua natureza, aquilo que distingue o homem de
qualquer outro ser, é o pensamento. Por conseguinte, o homem deve pensar”374. Por este motivo,
“São Tomás, quando tenta imaginar ou ver ou intuir em que deva consistir a bem-aventurança
dos santos, não encontra outra atividade senão a mesma de Aristóteles: os santos são bem-
aventurados porque contemplam a verdade, porque contemplam a Deus. Como Deus é
pensamento puro, contemplar o pensamento puro é viver eternamente nas zonas do puro
pensar”375. E sendo Santo Agostinho aristotélico, também é deste pensar. Ou, como se expressa o
Pe. Orlando Vilela: “a) Agostinho, embora não tenha sido propriamente um filósofo platônico,
serviu-se, em sua teologia, da instrumentalidade conceitual platônica. b) Tomás de Aquino, cuja
teologia era substancialmente a mesma de Agostinho, ao sistematizá-la cientificamente, serviu-se
da instrumentalidade conceitual aristotélica”376. E a teologia de Santo Agostinho vivo não difere,
substancialmente, da de quando desencarnado, e tanto que dá a inteligência, em vez de o amor,
como sendo o atributo primacial de Deus; eis por que declara: “Deus é a inteligência suprema,
causa primária de todas as coisas” (O Livros dos Espíritos, R. 1).
E após uma pausa para um fôlego, prosseguiu:
– Sendo a inteligência ou a razão o atributo por excelência de Deus, por isso mesmo, é a
mais excelsa virtude humana. Logo, tanto mais se estará acercado de Deus, quanto mais
inteligente e racional se for, donde a implícita conseqüência de que fora da inteligência não há
salvação. Desenvolver a inteligência pelo exercício constante do pensamento, é a única ascese
que nos garante a posse do céu. Ai dos ignorantes, ai dos faltos de inteligência, ai dos crendeiros
irracionais, ai dos “pobres de espírito” que, quanto à razão, são achados em falta, porque não
poderão participar da glória de Deus!
E depois de suspirar numa pausa, concluiu o filósofo:
– Se por este caminho aristotélíco-tomista-agostiniano se pode fugir à dor eterna, não será
ele a única via de salvação? A dor coexiste, portanto, com a ignorância, e cessa com a sabedoria.
Os carneiros e os pombos, logo, são feitos para as garras dos tigres e dos gaviões; e sobre todos
os carniceiros aquinhoados por Deus com todos os bens da vida, está o homem que chega a fazer
a indústria do carneiro, do porco e do boi, criando-os com ciência e técnica, para depois os abater
por atacado, a fim de abastecer as grandes geladeiras dos centros populosos. O homem se tornou
o vencedor da vida em seu planeta, não por ser bom, mas por ser astuto e inteligente! Os que,
todavia, desenvolverem a caridade, estarão para sempre infernados na dor. Ora, os que se doem
pelos animais, e por isso formam sociedades de proteção deles, começam a sofrer por outrem
desde já, quando ainda não se libertaram das dores próprias. Então, se para o Espiritismo a
salvação consiste no eximir-se da dor, sendo a dor eterna, segundo o mesmo Espiritismo, segue-
se que no Espiritismo não há salvação. Que é do norte filosófico, Hierão, que o Espiritismo
prometia ao mundo?
– Nenhum espírito há, respondeu Hierão, nenhum sequer, que nos fale em dor eterna, seja
a dor eterna do inferno, seja do egoísmo eterno do céu. Qualquer que seja o sofrimento do
próximo, há sempre a esperança de um termo, pois o progresso para a felicidade é um fato. Esta
consciência alivia os martírios próprios, e nos faz resignados quanto aos alheios. É por isso que
nós, espíritas, já não choramos tanto a morte dos que nos são caros.
– Toda premissa, Hierão, implica conseqüências. Para dizer as conseqüências, basta ter
dito a premissa. Todas as escolas do mundo mais não fazem do que desenvolver as premissas
dos seus mestres. Os corolários nascem das premissas, como os galhos, dos troncos. Assim, nas
matemáticas; assim, nas ciências; no pensamento; na filosofia. Qualquer premissa, sem exceção,
é como o pé de um leque ou eixo das hastes em que se fixa o pano. As escolas, assim como os
leques, são formações que se apoiam num centro que dá unidade ao sistema. Este centro é a
premissa. Quem admite a premissa fica obrigado às conclusões, como quem emite a ação fica
exposto à reação, como quem provoca um fenômeno está sujeito ao seu transcorrer até que seu
impulso se esgote. É deste modo que toda a geometria euclidiana se apoia no postulado quinto
das paralelas. Euclides não disse todas essas coisas que hoje aprendemos nas escolas; jamais
sonhou ele fosse possível reduzir a geometria à algebra, como fez Descartes, criando a geometria
analítica que possibilita, pela extensão da análise algébrica, uma geometria a quatro ou cinco
dimensões; nunca imaginou fosse possível, algum dia, ser criado o cálculo diferencial e integral
que permite a resolução e simplificação dos processos matemáticos, tornando possível ao homem
comum resolver problemas que nem gênios matemáticos do passado jamais ousaram tentar.
Depois que Cuvier descobriu a lei de correlação, tornou-se possível, aos paleontologistas,
reconstruir qualquer animal fóssil partindo de uns poucos restos. Por que assim? Porque a
natureza é compelida a seguir a lógica! Os ilogismos, as teratologias, os absurdos em qualquer
plano que seja, não conseguem sobreviver... Por isto, Hierão, estranho muito que você me diga
que nenhum espírita jamais disse as conseqüências que tirei. Mostre-me a falha no raciocínio, e
não venha dizer que é preciso virem os espíritos revelar e explicitar o que posso muito bem
deduzir do implícito. O que eu disse, meu nego, fica assentado, e sem resposta lógica; de nada
valerão os orneios dos espíritas fanáticos, como esse que você emitiu há pouco. Será que sua
inteligência não alcança, nem mesmo depois de eu esmiuçar, como venho fazendo, que a
criação ininterrupta e eterna de espíritos simples e ignorantes e a salvação pela caridade são
coisas que se excluem? Que são duas premissas contraditórias, como tese e antítese, cada uma
dando um sistema que se opõe polarmente a outro? Como é que pode haver um termo no
sofrimento do próximo, se quando ele não mais sofre as dores próprias, que ora o afligem, passa
a sofrer com as dores alheias, por ter desenvolvido em si a sensibilidade caridosa? Não nego que
o progresso para a felicidade seja um fato: mas em que está a felicidade? na inteligência fria,
inexorável, insensível, ou no amor cálido, exuberante, apaixonado pelo próximo? Estará a
felicidade no orgulhoso isolamento metafísico teórico e distante, ou na prática do amor que a
todos enlaça como células de um só organismo, de sorte que o sofrimento de uma única célula o
é de todas? Se nisto se resumir a felicidade, a dor terá fim no universo, e Deus não cria, não
senhor, espíritos simples e ignorantes sem cessar por toda eternidade, porque, enquanto houver
um só que seja gemido de dor no universo, não poderá haver um só que seja espírito caridoso
completamente feliz... Não há, pois, fugir, meu Hierão: se a dor for eterna, por causa da
eternidade dos planos inferiores, a salvação só poderá estar na inteligência, e o céu terá de ser um
estado de puro gozo intelectual, de pura contemplação metafísica que nós, filósofos, conhecemos
muito bem. Porém, se a dor for um acidente da criação, que está sendo corrigido pela evolução,
então ela terá fim, e a felicidade pode estar no amor, que não só na inteligência. Esta consciência,
a de que a dor é uma doença, e a evolução, o remédio, esta compreensão, sim, alivia os martírios
próprios e nos faz resignados quanto aos alheios.
– E os espíritas, como diz você, prosseguiu o mestre, não choram tanto a morte dos que
lhes são caros. Mas os protestantes também não choram os seus defuntos, e até passam a noite do
velório cantando aleluias e hinos da sua fé. Se este nosso mundo é uma masmorra de dores, e
pela morte se sai da prisão a fim de ir-se à pátria verdadeira, os espíritas deveriam fazer como
alguns povos orientais que choram o nascimento e festejam a morte. “Como a Moksa ou
libertação de sua larga cadeia de reencarnações é a meta perseguida por todo hindú; para ele não
há ventura maior na vida do que morrer. Quando, pois, sente que a morte se avizinha, procura
transladar-se, sem perda de tempo, para a cidade santa de Benares, a fim de lavar-se dos pecados
nas águas sagradas do Ganges. Isto fez Benares transformar-se numa vasta e buliçosa metrópole
funerária. Anciões, enfermos e viúvas pululam por suas ruas; e no Gohats, escadarias da ribeira
daquele rio, as piras crematórias ardem dia e noite incinerando uma procissão interminável de
cadáveres. O espetáculo não podia ser mais triste para um viajante ocidental. Para o hindú, pelo
contrário, que vê a Benares como o termo definitivo de uma jornada de agruras e aflições, as
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mesmas cenas resultam quase festivas”377. “Questão foi mui duvidosa (diz Vieira) entre os
antigos qual dia desta vida era o mais feliz, se o primeiro, se o último; se o dia do nascimento, se
o da morte. Daqui veio que, seguindo várias gentes várias opiniões, umas se alegravam, nos
nascimentos, outras os celebravam com lágrimas; umas se entristeciam nas mortes, outras as
solenizavam com festas. Chegou finalmente a dúvida ao tribunal de el-rei Salomão, o qual,
inclinando-se à parte que parecia menos provável, resolveu que melhor é o dia da morte que o
dia do nascimento: – Ecl 7, 2”378. Se, quanto à resignação na morte, o Espiritismo já nasceu
superado, como é que você me vem propor por modelo de perfeição? A mais perfeita resignação
na morte é a que se transmuda em festividade! E o nascimento, como representa a entrada na
masmorra do mundo, havia de ser celebrado com lamentações e lágrimas! Isto, sim, é ser lógico,
e andar conforme com a doutrina!
Estas últimas palavras foram proferidas pelo mestre, enquanto ele fitava Hierão a fim de
ver se ia ele contraditar. Mas vendo-o quieto, e após meditar algum tempo, retornou ao tema de
que se desviara um pouco, por força das interpelações de Hierão, continuando:
– A primeira jornada filosófica, a realista, nascida da polêmica entre Parmênides e
Heráclito, teve seu termo no fim da Idade Média com São Tomás de Aquino e Santo Agostinho.
A segunda jornada, a idealista, encetada por Descartes, terminou com os filósofos absolutistas
pós-kantianos Fichte, Schelling e Hegel, que armaram seus sistemas como leques, partindo dos
Egos, Vontades e Idéias totais. Vem depois a reação positivista com Augusto Comte e Herbert
Spencer, levando a filosofia ao ridículo. Ser metafísico, daí por diante, passou a ser motivo de
zombaria. Mas, a que levou a filosofia evolucionista de Darwin-Spencer? Levou ao caos
primeiro de onde surgiu o universo com tudo o que nele há. E as conseqüências morais de tal
doutrina, que promove a seleção pela força e pela astúcia, onde o forte e o astuto sobrevivem à
custa da ruína do fraco ou do bom, os corolários morais de tal doutrina só podem ser aqueles
assinalados por Trasímaco, Machiavel e Nietzsche. E Hitler soube muito bem aplicar esta moral
natural da força e da astúcia, não lhe ficando atrás o bolchevismo. O mundo filosófico está,
assim, sem norte, sem bússola. Por isso diz José Ortega y Gasset que “o mundo está sem
filosofia desde Kant”. E o Espiritismo, em vez de dar norte ao mundo, meteu-o no caos, como
fizeram Darwin e Spencer, a considerar essa meia verdade que Hierão, aí, defende, como sendo
tudo o que o Espiritismo ensina.
Vendo-se citado, retrucou Hierão, contrafeito:
– Como é que o senhor me vem dizer que o Espiritismo não deu norte filosófico ao
mundo? Até então, tudo o que sabíamos da nossa vinda ao mundo, e por que viemos, e por que
sofremos, e por que existimos, e por que morremos, tudo era puro e simples arbítrio divino, tudo
para a glória de Deus. As grandes religiões da Ásia avançaram um pouco mais, apresentando a
doutrina da reencarnação. Vem, agora, o Espiritismo e nos traz cabalmente a explicação da dor,
do problema do conhecimento, do da evolução, do da vida além da morte, expõe sobre a vida
noutras esferas, o que lá se passa, o que lá se faz, demonstrando tudo isso, como jamais se fez, e
agora me vem o senhor com esse estapafúrdio, de dizer que o Espiritismo não deu norte
filosófico ao mundo? Sua bússola, sim, é que não está funcionando bem, e por isso não acusa o
norte!
– Para a maioria, tornou o pensador, é certo, norteando-se por pura crença, essas luzes
próximas bastam, luzes que você apontou, quais sejam: a explicação da dor presente; e também
lançou luzes sobre o problema do nascimento, sobre o da evolução, sobre o da vida em outros
planos, explicando o que lá se passa, como nunca se fez. Para os que se acham aquém dessas
luzes, elas são de fato, norte; mas os filósofos estão para além delas, e precisam saber se a dor é
eterna ou não... para poderem tirar suas conclusões teleológicas primeiro, e morais e práticas,
depois. Se houver dor eterna para os “salvos” no Espiritismo, prefiramos o céu católico
aristotélico-tomista-agostiniano, em que a inteligência ou razão é tudo, e a caridade, nada! Pois
claro: havendo inferno eterno para os católicos e protestantes, seus eleitos hão de ser insensíveis
para não ter compaixão dos precitos, alguns dos quais, parentes e amigos. A ser verdade mesmo
que o mundo veio do caos em primeira instância – “no começo tudo era caos” (R. 43); que Deus
377 Life em Espanhol de 28-03 1955
378 Vieira, Sermões, 21, 237 - Ed. das Américas
172
Substância divina, ipso facto, tudo o que proveio dele também é partícipe de Deus. Porém, para
Santo Agostinho Espírito não há esta participação, pelo que o homem quer ser parte de Deus,
mas não o é (R. 15). O homem não é parte de Deus; os elementos que o formam, também o não
são. Não sendo co-participantes da Substância divina, são nada, a menos que se diga que há
alguma coisa além de Deus, estranho a ele. Não procedente dele (!), o que é absurdo. Ou os
espíritos vieram do nada, conforme Santo Agostinho, ou de Deus. E dizer, meu caro Hierão, que
vieram dos fluidos, não é responder, visto como a questão, conquanto se recue, se mantém; os
fluidos, ou vieram do nada, ou vieram de Deus. Santo Agostinho Espírito diz que do nada, e por
isso que não há participação da Substância; Platão Espírito diz que de Deus, e por isso a
participação existe. Que me diz a isto, Hierão?
– Digo-lhe que n“ O Livro dos Espíritos” está escrito: “Ficai sabendo: coisa nenhuma é o
nada e o nada não existe” (R. 23 ). E mais isto: “Não, não há o vácuo. O que te parece vazio está
ocupado por uma matéria que te escapa aos sentidos e aos instrumentos” (R. 36).
– Aí está, de novo, n“O Livro dos Espíritos”, a idéia da matéria incriada de Aristóteles.
Se coisa nenhuma é o nada, e o vácuo não existe, então o que existe é algo enchendo todo o
espaço. E como o espaço é infinito (R. 35), esse algo ou fluido é infinito. Esse fluido infinito é a
Substância de Deus, conforme o entendem as grandes religiões, mas não o é, segundo o pensar
de Santo Agostinho que tem a Deus como um Ser distinto da criação, uma vez que, segundo ele,
“se fosse assim, Deus não existiria, porquanto seria efeito e não causa. Ele não pode ser ao
mesmo tempo uma e outra coisa” (R. 14 ). Então, temos isto: Deus é infinito (R.3), e o fluido
universal que enche o espaço infinito, também o é. Porém esse fluido não é substancialmente
Deus; ambos coexistem no mesmo lugar, no seio do infinito, mas são distintos um do outro,
como causa e efeito, no dizer dele. Deus infinito é a causa, e o fluido infinito, o efeito. E como,
segundo Santo Agostinho, Deus “não pode ser ao mesmo tempo um e outra coisa” (R.14), segue-
se que são independentes entre si. A questão se impõe de novo: a substância desse fluido ou
algo é a mesma da de Deus ou não é. Se é, Deus está no algo; se não é, Deus não está no algo.
Se Deus não está no algo, este algo é puro nada. E se apesar de o algo ser nada, ele existe, então
tudo não passa de pura ilusão fósmea, possuindo realidade aparente, como a que nos dá o
cinematógrafo, e não realidade substancial. O universo, então, é uma tela infinita sobre a qual
Deus projeta as figuras da poderosa lanterna mágica da sua mente. Ou melhor: Deus fez surgir o
universo do mesmo modo como o mágico tira um coelho da cartola, com a diferença que, na
verdadeira mágica de Deus, o universo é falso ou pura ilusão fósmea vinda do nada, no passo
que na falsa mágica do prestidigitador, o coelho é real, pois existia antes. É assim: para Santo
Agostinho o universo é pura ilusão fósmea, pura alucinação, pura insubstancialidade, visto que
tem o nada por fundamento, que não a Substância de Deus.
E após descansar numa pausa, prosseguiu o pensador:
– E você me disse também, de acordo com sua doutrina espírita, que o homem “se achava
em estado de fluido, no espaço, no meio dos espíritos, ou em outros planetas, à espera da criação
da Terra para começar existência nova em novo globo”. E estes espíritos, meu Hierão, em cujo
meio estava o fluido pré-humano, donde vieram?
– Estes espíritos, segundo penso, resultaram da evolução de outra humanidade que
estivera também, por sua vez, sob a forma fluídica, no meio de outros espíritos mais antigos
ainda, desde que se faça isto se relacionar à “criação ininterrupta dos Espíritos simples e
ignorantes”.
– E esses outros mais antigos?... Considerando que a criação teve começo (R. 37), houve
um tempo em que o homem era só fluido enchendo o espaço sem Espírito algum. “Portanto, é
este o ensino”, como você o declarou: “achava-se no espaço, em estado de fluido”. Então
concluo: este fluido espacial era já o caos ou não-ser; era a pura Substância informada, pura
potência ainda, em nada ato; não era ainda nem a confusão dos elementos, visto que estes são já
um modo de ser, porém, a substância dos elementos, antes ainda de estes elementos se formarem.
Ter-se-á, então, de admitir uma fase pré-caótica ou fluídica, existente antes do caos do “começo”
(!). E tudo isto se resume da frase de Santo Agostinho que declara: “No começo tudo era caos”
(R. 43). Neste “tudo” está também o pré-caos. A exegese do texto se faz assim: “No começo
tudo era Caos”; depois, formaram-se os “elementos” que, entre si, “estavam em confusão”. É
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assim, porque houve e há muitos caos. Há tantos caos, quantas são as fases ou etapas da escala
evolutiva. Os elementos são já organização ou essências, porém, entre eles, rodeando-os, ainda
reina o caos. Os elementos, depois, arranjam-se em formações atômicas, contudo, os átomos
continuam, entre si, em caos. Passados mais alguns bilhões de anos, os átomos combinam-se em
moléculas ou compostos. Entretanto, as moléculas, entre si, continuam em caos, isto é, rodeadas
pelo caos. Arranjam-se as moléculas em combinações mais altas, quando já foi possível a
presença da água. Todavia, os compostos complexos resultantes, ainda permanecem, entre si, em
estado de caos. Surge a micela, as moléculas gigantes, o vírus, os protozoários e fitozoários, as
colônias celulares, os metazoários, etc. como organizações insuladas no meio do seu caos. Cada
unidade, do mais baixo até o mais alto nível, é uma organização em si, uma ordem e harmonia
em si; no entanto, como ainda não se associou à sua contrária, entre elas continua reinando o
caos. Em nosso nível humano, como indivíduos isolados, representamos ordem, cosmo orgânico,
universo biológico; não obstante, entre os homens reina ainda o caos social, visto como os
organismos sociais estáveis ainda não se formaram, por faltar o elemento de integração – o amor.
Enquanto vigorarem o egoísmo e a força, ninguém estará seguro, e as guerras, de quando em
quando, assolarão nosso planeta. Por conseguinte, o caos sempre existe na escala evolutiva,
donde se pode definir evolução como sendo: anulação progressiva do caos, pela integração.
Disto, decorre, imediatamente, esta conseqüência: a evolução é finita: porque, se a fizermos
infinita, teremos de admitir a presença eterna do caos que sempre coexiste com ela.
E prosseguiu o pensador, após uma pausa:
– Por tudo quanto hei dito, “no começo tudo era caos”; esta é, digamos, a primeira fase.
Depois, “os elementos (já formados) estavam em confusão”; esta, a segunda fase. “Pouco a
pouco cada coisa foi tomando o seu lugar”; eis a terceira fase. “E apareceram os seres vivos,
apropriados ao estado do globo”; esta é a quarta fase. Os seres vivos evoluíram até o homem
simples e ignorante, que, suponhamos, é a quinta fase. Os homens primitivos organizaram-se em
tribos e estas, em cidades independentes, as quais, por isto, se guerreavam mutuamente, até que
uma casa venceu sobre as demais, unificando-as, pela força. E foi assim que surgiram as nações
as quais, ainda, se manterão em guerra, isto é, em caos, até que o mundo todo seja unificado sob
uma só bandeira. As nações vivem sob a constante ameaça de guerras, ou seja, vivem sempre sob
o signo do caos.
– E após descansar um pouco, numa pausa, continuou:
– É assim que Deus criou o homem simples e ignorante, partindo do caos mais inteiro,
que é o estado fluídico, conforme a fala de Santo Agostinho Espírito. Para este Santo Agostinho,
tudo começou pelo caos extremo, primeiro na ordem das coisas, no passo que, para Platão
Espírito, é o contrário disto, ou seja, no começo era o mundo espírita, e tanto que este preexiste
a tudo, quer dizer: existe antes de tudo, até mesmo do caos primeiro. E mais: este mundo
espírita, primordial por excelência, visto que não podia existir sem Espíritos, estava povoado
por Espíritos que não podiam ter procedido do caos, por uma razão muito simples: porque o
caos surgiu depois. Diz ainda que este mundo espírita, além de preexistir, sobrevive a tudo,
portanto, também, ao caos. Se o mundo espírita sobrevive ao caos, este terá fim, e com ele, a
evolução, visto que esta coexiste sempre, sem exceção, com o caos. Somente o mundo espírita
não terá fim, com representar o início e o fim do caos. Conseqüentemente, o mundo espírita é o
necessário, no passo que o mundo corpóreo e o caos são acessórios, acidentais, podendo nunca
terem existido, como, de fato, não existiram antes, como podem deixar de existir, sem que isto
afete a essência do mundo espírita. Que mais quer você, Hierão? Pode haver clareza e
concatenação mais perfeitas do que estas, que faço? Pode haver repisamento maior, para evitar
laconismos e confusões?
– Não... não pode haver, concordou Hierão.
E suspirando fundo, continuou o pensador:
– De maneira, meus caros, que as doutrinas destes dois Espíritos são antitéticas uma em
relação à outra; são tese e antítese. Santo Agostinho diz que no começo era o caos dos elementos,
ou pré-caos fluídico, em nada espiritual, visto que espírito é sinônimo de organização, de
ordem, de inteligência. Vem Platão, e afirma que o mundo espírita, isto é, o dos Espíritos, ou
ainda, o das inteligências incorpóreas, é o que preexiste e sobrevive a tudo, portanto, também, ao
175
caos. No começo eram os espíritos habitantes do mundo espírita, já porque Deus é espírito (Jo 4,
24 e II Cor. 3, 17), já porque o espírito é o Verbo que era no princípio (Jo l, l) ... Então o espírito
é organização e não caos; é o “princípio inteligente do Universo” (R. 23). E é absurdo dizer
caos espiritual, pela mesma razão que o seria se disséssemos estupidez inteligente, ou
inteligência estúpida! E conquanto o espírito sempre esteja jungido à matéria, ao perispírito, que
é o seu veículo primeiro de manifestação, antes do corpo físico, espírito e matéria “são distintos
um do outro” (R. 25). “Pode dizer-se que os Espíritos são os seres inteligentes da Criação.
Povoam o Universo fora do mundo material” (R.76). E tiveram princípio (R.78); e formam um
mundo à parte, que é o “das inteligências incorpóreas” (R. 85); e têm forma indefinida, como a
de “uma chama, um clarão, ou uma centelha etérea” (R. 88). E agora, Hierão, vem o xeque-mate
dado pela pergunta de Kardec e pela resposta do Espírito de Platão: “P. 85 – Qual dos dois, o
mundo espírita ou o mundo corpóreo, é o principal na ordem das coisas? – Resposta: O mundo
espírita, que preexiste e sobrevive a tudo”. Que mais? Este é o mundo que Deus criou ao
princípio, visto como o mesmo “Deus é espírito” (Jo 4, 24 e II Cor. 3, 17), havendo de criar
segundo a sua natureza, e não, em oposição a ela. Se, pois, o mundo espírita preexiste e
sobrevive a tudo, sendo principal na ordem das coisas, existia antes do mundo corpóreo e do
caos. Disto vem a conseqüência necessária de que “o mundo corporal poderia deixar de existir,
ou nunca ter existido, sem que isso alterasse a essência do mundo espírita” (P.86). O mundo
espírita é, por conseguinte, o necessário, o primitivo, o condizente com a natureza de Deus,
como já o disse outro dia. O caos é acidental, secundário, acessório, contrário à natureza de
Deus. Como iludir a esta conclusão?
E após o descanso numa pausa, continuou:
– Se o caos é acidental, desnecessário, a dor não é eterna. Vale, então, desenvolver a
caridade, o amor; vale preocupar-se a gente com a dor alheia, lutando por achar-lhe o lenitivo;
vale preocupar-se com a humanidade, com o Estado, com o mundo, como fez Platão, como fez
Jesus, em vez de isolar-se na torre-de-cristal do indiferentismo metafísico, num abandono
intelectual que busca conhecer o mecanismo das leis só para escapar-lhes às reações, evitando,
assim, as dores próprias, só as próprias, visto que as alheias doem só nos outros. Preocupando-se
Platão com o problema político, não lhe achou outra solução que não a de os filósofos se
tornarem reis, ou o reis, filósofos. A isto comenta Arnold J. Toynbee: “Platão apresentou a sua
proposta como um paradoxo propício a provocar a ironia das mentalidades não-filosóficas. Não
obstante, se a prescrição de Platão constitui uma afirmação violenta para os leigos – quer se
tratasse de reis, quer se tratasse de plebeus – foi uma afirmação mais dura ainda para os
filósofos. Não é no desprendimento da vida que consiste o verdadeiro alvo da filosofia? E não
são os esforços em prol do desprendimento individual e a salvação social reciprocamente
incompatíveis, ao ponto de se excluírem mutuamente? Como pode alguém propor-se a salvar a
Cidade da Destruição, quando está justamente lutando por ser livre? Sob o ponto de vista do
filósofo, a encarnação do auto-sacrifício – o Cristo Crucificado – é uma personificação da
Loucura. Apesar disso, poucos filósofos tiveram a coragem de confessar esta convicção e menos
ainda de agir baseados nela”379. Pois Platão não só expressou esta convicção, como ainda agiu
baseado nela, e por isso propôs que o filósofo fosse político e se pusesse na luta em prol da
coletividade, em vez de isolar-se do todo, pela renúncia do mundo. Tentou, então, converter o
siciliano Dionísio às suas teorias políticas, de modo a que este rei se tornasse, também, filósofo.
Mas esta besta de Dionísio, em vez de fazer de Platão um valido da sua corte, escravizou-o, até
que os próprios discípulos de Platão o resgatassem. Eis, pois, que Platão é o filósofo do amor,
que não só da razão; e agia assim, por acreditar na vitória final do Bem, na extinção total da dor,
pela volta das almas ao topos uranos, de onde se despenharam um dia. Bastava cresse ele numa
dor eterna, irremediável, fosse como a que deixa entrever o Espiritismo, pela fala de Santo
Agostinho, fosse como a do inferno protestante e católico, e jamais, nunca, proporia que se
devesse o filósofo preocupar com o Estado, com o mundo, tornando-se politicamente rei. Se,
pois, para a maioria dos filósofos, Platão e Cristo são loucos, em contrapartida, no conceito de
Platão e no de Cristo, loucos hão de ser todos esses filósofos do egoísmo que somente visam o
bem próprio, no desprendimento da vida, deixando que se dane o mundo. Esta sabedoria, a dos
379 Arnold J.Toinbee, Um Estudo de História, IV, 1002)
176
filósofos do desprendimento, deve ser considerada, e com razão, estultícia diante de Deus (I Cor
3, 19). Aí está por que Platão, conquanto filósofo, e não místico, se emparelha com Cristo que é
místico, e não, filósofo, na nobre missão de guiar o mundo. Esta é, meus caros, a causa por que
devemos estar com Platão, para quem o mundo espírita, que é o seu topos uranos, preexiste e
sobrevive a tudo; que este é o mundo normal e primitivo, principal na ordem das coisas,
existente no princípio, antes do caos, e que sobreviverá no fim, depois da evolução; que o mundo
corporal podia nunca ter existido ou deixar de existir, sem que isso afetasse a essência desse
mundo espírita; que, finalmente, o topos uranos é o lugar celeste em que as perfeições se fixam
na imutabilidade, sendo esse o mundo necessário, no passo que nosso mundo corpóreo é
secundário, derivado, povoado de aparências, de ilusão, de maldade. Este é o “Credo” de Platão,
implícito não só na sua obra de encarnado, senão também na do de Espírito, quando dita a
Kardec parte da doutrina inserta n"O Livro dos Espíritos”.
E após um fôlego, rematou o mestre:
– Como vêem, desloco o pensamento ao longo do eixo agostiniano-platônico d"O Livro
dos Espíritos”, de Santo Agostinho para Platão. Com isto fica aberto um ciclo novo para o
pensamento espírita, pois, não vejo por que a autoridade de Santo Agostinho deva ser maior, de
mais valia do que a de Platão.
E enquanto esperava por outra objeção, recostou-se no espaldar da cadeira, estirando as
pernas para se desentorpecerem. De novo se fez ouvir então a voz de Orsoni, tentando ainda
salvar sua doutrina espírita, do modo como foi ela até aqui entendida e ensinada:
– O senhor pretende que há duas bases espíritas antitéticas uma em relação à outra, e que,
enquanto não se fizer a síntese delas, ambas se excluem. A primeira, platônico-cristã diz que
“fora da caridade não há salvação”; a segunda, tomista-agostiniana, afirma que “fora da
inteligência não há salvação”. Mas, o que só sei, prezado Árago, é que “os Espíritos são
individualização do princípio inteligente, como os corpos são individualização do princípio
material” (Livro dos Espíritos, R. 79); que os espíritos todos, sem exceção alguma, “são criados
simples e ignorantes e se instruem nas lutas e tribulações da vida corporal” (R. 115 e 133); que,
“o livre arbítrio se desenvolve à medida que o Espírito adquire a consciência de si mesmo”
(R. 122).
Árago, recostado ainda no espaldar da cadeira, e tendo as mãos apoiadas nos braços dela,
acompanhou todo o arrazoado de Hierão, depois do que falou:
– Diga-me Hierão: os espíritos são individuações do princípio inteligente?
– Exato!
– E ao mesmo tempo são, na sua origem, simples e ignorantes?
– Perfeitamente.
– Quer dizer: são individuações do princípio inteligente, mas, ignorantes e simples; são
inteligências que nada absolutamente sabem. Ora, a palavra inteligência vem de inter = entre, e
legere = ler; ler entre, ou seja, descobrir o nexo que liga as coisas e as faz compreensíveis. Se os
Espíritos, na sua origem, são inteligências que nada sabem, equivale a dizer que são inteligências
que não são inteligências. Está certo?
– Como certo! Os Espíritos, ao serem criados, são inteligências potenciais. O princípio
inteligente que eles individuam, então, ainda não se acha manifesto.
– Você quer dizer, meu Hierão, que os Espíritos são individuações do princípio
inteligente, mas princípio ainda não manifesto. O princípio inteligente se acha individuado,
porém, não manifestado. Então, que vem a ser aquela individuação do princípio inteligente que
ainda não é inteligente? Você me disse que o princípio material se individua nos corpos, assim
como o princípio inteligente se individua nos Espíritos; mas, se princípio material não se achar
manifestado, não há corpos; pela mesma razão, se o princípio inteligente não estiver manifesto,
não há Espírito!... Como é, então, esse tal de Espírito (princípio inteligente) simples e ignorante,
isto é, sem inteligência?
– Não esquecer que tudo começa num germe, prezado Árago! que entre o dia e a noite, ou
entre a noite e o dia, há o crepúsculo da luz, que nem é dia, nem é noite. Assim, com o princípio
inteligente em via de individualizar-se. Assim, quando o Espírito se acha na fase de simplicidade
e ignorância, está vivendo o crepúsculo da inteligência. Tudo é gradativo, pois “natura non facit
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saltus”!
– O Espiritismo, como você sabe, tem de pautar-se pela ciência, não é?
– Perfeitamente.
– E a ciência paleontológica descobriu séries inteiras do elo que faltava, ligador do
homem aos animais, em vários lugares da terra, sobretudo na região do Quênia, no sul da África.
Isto posto, pergunto: o tal Espírito simples e ignorante seria a série de hominídeos?, seria os
antropóides de que saíram os hominídeos?, seria o tarsus, de onde proveio o macaco antigo?,
seria o lêmur, de que saiu o tarsus? Se as formas mais altas da vida saem das mais baixas,
podemos rastrear a evolução indo até as origens, abaixo mesmo do ponto de passagem entre a
matéria bruta e a matéria viva. E descendo a escala da matéria bruta, chegaremos à pré-matéria
que se movia no caos do princípio. Quando, então, e onde, o tal princípio inteligente começou a
manifestar-se nas individuações chamadas Espíritos?
– Entendo que a escala da vida é escala do Espírito, e que não só todos os animais
possuem espírito, senão que a mesma vida se mostra inteligente. A escala da vida, pode dizer-se,
é a escala da inteligência. Logo, o princípio inteligente manifesta-se e se explicita em toda a
escala da vida, sendo ínfimo nos seres rudimentares, e pleno no gênio; eis aí a meia noite e o
meio dia da inteligência!
– E Deus, Hierão, deu livre-arbítrio a todas essas inteligências, visto como elas
constituem aquilo que, mais tarde, e no alto, irá chamar-se homem; está certo?
– Isso mesmo. É por isso que está escrito: “O livre arbítrio se desenvolve à medida que o
Espírito adquire a consciência de si mesmo” (R. 122). Esta tomada de consciência é gradativa
progressiva, avançando sempre pela escala da vida acima, como a noite que caminha para o dia.
– E para tomar consciência de si, é preciso sobreviver, não é?
– Sim, pois claro!
– E sobreviver significa viver sobre, ou seja, vencer na luta contra o adversário que,
derrotado, se torna pasto do vencedor, não é assim?
– Evidentemente.
– E o que dá vitória e faz sobreviver, ou é a força, ou é a astúcia. Então, o Espírito que
vem sendo criado através da vida, que vem subindo a escala zoológica, usa o livre-arbítrio
nascente e crescente procurando desenvolver a agilidade, a astúcia e a força pelas quais
sobrevive, chegando, deste modo, até o plano do homem, não é certo?
– Isso mesmo.
– Então, quando chega ao nível do homem, está condicionado a usar o livre-arbítrio como
sempre o empregou; por isso o homem que crê na força e na astúcia, vence sobre os demais...
neste mundo. Não é assim?
– Evidentemente é.
– Ora, se o livre-arbítrio está condicionado, através de um tempo imemorável, a eleger a
força e a astúcia, visto que estas sempre deram vitória ao animal e ao homem, segue-se que a
força e a astúcia são bem, e a bondade e a mansuetude, mal. Então, o passado condiciona o
presente, e o agir certo no passado determina o agir correto no presente. No passado, a força e a
astúcia eram bem, pois garantiram a sobrevivência, condição “sine qua non” para o
desenvolvimento da inteligência. Por conseguinte, como fica demonstrado, por correto
raciocínio, que o livre-arbítrio é condicionado, segue-se que o arbítrio não é livre. O ser escolhe,
então, “livremente”, de acordo com suas experiências passadas; as experiências passadas
condicionam a “livre” escolha presente. Sabendo-se como foi um Espírito no pretérito, poder-se-
á prever qual será sua “livre” escolha no futuro. Está certo isto?
– Está.
– Então, o Espírito simples e ignorante possui um passado; e usando do seu “livre
arbítrio”, estará condicionado a fazer o que sempre fez, que é matar e devorar o seu
semelhante..., exatamente como o comprovam as descobertas antropológicas. “Enquanto os
antropologistas ainda não se tinham decidido sobre se os sul-africanos deviam ser considerados
macacos ou homem, Weinert escrevia esta frase que tem sido freqüentemente citada: Nenhum
macaco mata, assa e devora os membros da própria espéci; isso é humano. E acrescentou: Era
bonito considerar o ato de Prometeu como o primeiro da humanidade nascente; mas nós não
178
podemos deixar de antepor-lhe o ato de Caim” 380. Por esta razão, “um cérebro de novecentos
gramas, declarou o pessimista Hooton, é suficiente para um comportamento humano ótimo. O
que passa disso é empregado em maldades”381.
E depondo sobre a mesa o livro de que fizera a citação prosseguiu:
– O comportamento antropofágico serviu assim de base, para classificar os sul-africanos
como homens e não, como macacos. Este sinal serviu depois, e serve ainda, para a classificação
do pré-homem em todas as demais descobertas antropológicas espalhadas pela Terra inteira.
Concorda você, Hierão, em que seja este sub-homem o “Espírito simples e ignorante” de que nos
fala “O Livro dos Espíritos”?
– Sem dúvida!
– E a antropofagia, vigente ainda, agora, na Nova Guiné, é um bem, ou um mal?
– É um mal, pois claro!
– Então, como é que afirma Santo Agostinho a Kardec que Deus não criou os Espíritos
maus, e sim, somente, “simples e ignorantes, isto é, tendo tanto aptidão para o bem quanto para o
mal”? (R. 121). Acha que estando os sul-africanos condicionados por um passado que é o de
toda a história da vida, a empregar a astúcia, a força e a crueldade, tinham alguma aptidão para o
bem, em vez de toda esta para o mal? Acha que tantos milhões de anos gastos em formar e
reforçar o condicionamento, deixou ainda livre o arbítrio para decidir e escolher o caminho do
bem? Que será o bem, no conceito de um “caçador de cabeças” da Nova Guiné que gosta de
carne de “porco comprido”, que é como chama a presa humana?
– Agora empaco! disse Hierão.
– Que sentido pode ter, tocou por diante o mestre, esta pergunta de Kardec: “Por que é
que alguns Espíritos seguiram o caminho do bem e outros o do mal” ? (P. 121). E quando Kardec
interroga: “Todos os Espíritos passam pela fieira do mal para chegar ao bem?” (P. 120).
Resposta: “Pela fieira do mal não; pela da ignorância”. Não é sem sentido a primeira pergunta de
Kardec e esta última resposta do Espírito? Se, de acordo com o mesmo Espiritismo, no saber
está o bem, ipso facto, na ignorância estará o mal; fazer, pois, Deus, o filho ignorante, acaso não
é criá-lo mau e para a dor? Que me diz a isto, Hierão?
– Não digo nada. Fico quieto.
– Conquanto não possa você dizer nada, eu posso apertar mais: Leio aqui n"O Livro dos
Espíritos” que as influências exercidas sobre o espírito simples e ignorante vem de fora, que não
dele próprio. Ora, que ele se acha condicionado pelas experiências pregressas sem conta,
ocorridas durante o transcurso de milhões de anos, já o demonstrei. Agora vem Santo Agostinho
e nos diz que ele sofre a pressão dos espíritos perversos: Eis o texto: “Donde vêm as influências
que sobre ele se exercem?” “Dos Espíritos imperfeitos que procuram apoderar-se dele, dominá-
lo e que rejubilam com faze-lo sucumbir. Foi isto que se intentou simbolizar na figura de
Satanás” (R.122). Condicionado por dentro pelo passado atávico, que lhe ensinou, através de
infinitas experiências dolorosas, que “se a vida é luta na qual os mais aptos sobrevivem, então a
força é a virtude suprema e a fraqueza o defeito básico. Bom é o que sobrevive, o que vence;
mau, o que falha”382. Com esta consciência profundamente enraizada em sua vida, e pressionado
de fora, pela inspiração de Espíritos satânicos, que também só acreditam na força e na astúcia,
como dizer que o arbítrio é livre? Como escolher outro caminho que não seja este assinalado
pela experiência própria sem conta, e reforçada ainda pelas inspirações dos Espíritos ainda
piores, porque perversos, que o cercam? Como falar, como o fez Kardec, de Espíritos que
seguiram, desde o começo, só a senda do bem? (R. 124 e 126). Como pode saber o que venha a
ser o bem um pré-homem sul-africano, se isto é ainda um problema não solucionado para os
filósofos? Porque se Machiavel e Nietzsche tiverem razão, o bem reside na força e na astúcia; se
tiverem razão Platão e Sócrates, o bem reside na sabedoria; se tiver razão Cristo, o bem reside no
amor que se opõe ao egoísmo. Santo Agostinho esclarece que o espírito simples e ignorante tem
tanto aptidão para o bem quanto para o mal. Esta declaração deixa entrever que, para Santo
Agostinho, o espírito simples e ignorante é uma tábua rasa de valores, uma como cera virgem,
passiva, sobre que iriam incidir as primeiras impressões. Hoje sabemos, pela ciência inexorável,
que o chamado “espírito simples e ignorante”, nem é simples, nem é ignorante; possui o
aprendizado que lhe conferiu a vida através de milhões de anos de provas aspérrimas, e é tão
complexo como a mesma vida. Agora, se é bom ou mau o pré-homem das cavernas, isso
depende de se saber, primeiro, o que venha a ser o bem e o mal!...
A estas últimas palavras de Árago, um tumulto se levantou na pequena assembléia.
Também neste ponto entrou na sala, Anidra, com a bandeja de xícaras e a garrafa térmica de
café. Ao tempo em que saboreavam o café, iam, todos, emitindo suas opiniões, alguns meio
escandalizados por causa de o mestre manifestar dúvida sobre o que fosse o bem e o mal; ao que
parece, todos se davam conta de saber muito bem o que eles fossem. Serenado o tumulto,
Benedito Bruco se resolveu a interrogar:
– Porque as almas caíram do mundo celeste?
– Caíram por deixar de amar!... respondeu Árago.
E após breve meditação, prosseguiu:
– Caíram por deixar de amar, e o deixaram, porque eram livres, e o eram porque não pode
haver amor forçado! Põe Milton, na boca de Deus, este verso que sei de cor, a respeito dos
Espíritos celestes:
– Tais palavras, continuou o pensador, que Milton põe na boca de Deus, expressam a
substância do fenômeno. Cessando de amar ao próximo, à Totalidade, a Deus, passaram as almas
ao natural amor de si mesmas, pretendendo transformar a ordem teocêntrica na ordem
egocêntrica primeiro, e egoísta, depois.
– Poder-nos-ia o senhor explicar a diferença que vai entre egocentrismo e egoísmo? –
solicitou Romão Sileno.
– Egocentrismo significa que o centro é o eu; mas este eu, como ocorre com um pai de
família, opera em favor do sistema do qual apenas é o centro. Com o egoísmo não é assim, pois,
ele é o ismo do ego, isto é, o sistema do eu, ou ainda, todo o sistema é o próprio eu, e por isso
tudo é feito em favor exclusivo deste eu. O eu, aqui, não se sente o centro do sistema, apenas;
ele é todo o sistema. Um pai que cria, educa e ajuda os filhos por todos os modos é egocêntrico;
aquele que sacrifica a família em seu único proveito é egoísta. Entendeu, Romão?
– Entendido!
– Foi por isso que eu disse que a ordem primeira caiu do teocentrismo para o
egocentrismo, e, finalmente, para o egoísmo. Primeiro tudo girava em torno de Deus; depois, em
torno de algumas almas chefes que Cristo chama “o diabo e os seus anjos”. Finalmente, estes
“diabos” ficaram sem corte, visto ser impossível união e colaboração entre egoístas. Todas as
180
almas desta corte se fizeram a si mesmas outros tantos centros. O general foi repudiado pelo
exército, a ordem dele se desfez na anarquia geral, e cada soldado foi em busca de seus próprios
interesses. Foi assim que se deu a desintegração da Ordem moral, pelo que cada alma se viu
sozinha com seu egoísmo individual. Porém, como cada alma também é um coletivo, como a lei
que se impôs era a do egoísmo, o processo desintegrativo entranhou-se nela, alma, fazendo-a,
por fim, desintegrar-se nas partes que a compõem, e estas partes se dissociaram nos seus
elementos, e estes, na substância última que os constituem. Eis aí está, como a Ordem Moral
caiu no caos mais extremo de que surgiu o Universo evolutivo, em sua atual volta para Deus.
– Mas, os espíritos rebeldes, tornou Bruco, não sabiam que se iam destruir como
individualidades? isto é, que seria desintegrado, por fim, o coletivismo de que cada um se
constituia para ser um eu individual?
– Não. Esta experiência eles ainda não a tinham. Entretanto, sendo o amor o princípio de
integração por excelência, torna-se absolutamente impossível a desintegração de qualquer todo
fundado nele. Pela recíproca, nenhum todo poderá manter-se, fundado só no egoísmo. Isto os
espíritos deveriam saber, pelo menos em teoria, pois que ainda não se tinha então verificado esta
experiência. Esta sabedoria durou enquanto durou o amor; tanto, porém, que deixaram de amar,
cessaram de saber. Tanto que não cultivaram a idéia da totalidade, para irem cuidar de si
próprios, deixaram de amar, caindo na primeira ignorância em que, por exemplo, apesar da
ciência, os Dragões383, ainda crêem que o mal vencerá, finalmente. O próprio Gregório “Espírito
poderoso nos raciocínios”, que “ainda não chora sob o guante do arrependimento benéfico” (...),
“entretanto já duvida da vitória do mal e abriga interrogações na mente envilecida”384. Como
podem verificar, destaquei com grifo, aqui no livro, a parte que diz: “já duvida da vitória do
mal”.
– Mas isso é um absurdo, replicou Hierão Orsoni, como poderá crer na vitória do mal?
– Primeiro que tudo, tornou o mestre, os dragões não sabem, ao certo, o que venha a ser o
bem e o mal, pois, quanto a isto, como já vimos, nem os filósofos andam em paz. Por esta causa
crêem na vitória daquilo a que chamamos mal. Sem esta confiança, ninguém teria forças para
manter-se na reação negativa. E não é difícil descobrir a premissa em que se fundamenta a lógica
deste procedimento. Ei-la: se o sistema divino fosse o avesso do que é, esse inverso seria o certo;
esse errado, o direito. Sendo Deus único, incomparável, singular, como ele for, nas sua
totalidade, esse modo será o verdadeiro. E como Deus se deu a si mesmo na sua Criação, segue-
se que, se toda ela se invertesse, Deus ficaria invertido e certo, como se assim o fora sempre. E
aquele que vier a ser o chefe supremo nesse sistema hierárquico negativo, esse será o deus dos
deuses. Não poderia ser de outro modo; esta é a sua lógica para resistir na oposição, sem nenhum
esmorecimento. Ninguém, nem mesmo Satã, poderia lutar sem uma crença; e a respeito de Deus
diz São Tiago que o Diabo crê e estremece (Tiago 2, 19).
– E onde é que está o vício desse raciocínio? Inquiriu Bruco.
– Está em que não se considerou o aspecto Transcendente da divindade, pelo qual Deus é
infinito, todopoderoso. Considerou-se somente o aspecto Imanente, pelo qual, sendo Deus a
Substância última da criatura, ficou, no particular, e só aqui, a mercê dela. É assim que a
criatura pode ir contra a vontade cósmica que se acha impressa nas suas profundezas. Nem que
todos os espíritos se rebelassem, ainda assim Deus seria Deus na sua Transcendência
todopoderosa, causticante e enceguecente, na sua majestade infinita, e, sobretudo, indefinível,
porque um Deus definido (definir é traçar finis, limites), já, por isso mesmo, não é mais Deus. O
Demônio é panteista, por cuidar que tudo é Deus, ou Deus é tudo. Esta tese luciferina forçou a
antítese agostiniana que considerou só o aspecto Transcendente da divindade, fazendo Deus
exterior à sua Criação; o mundo, então, assim como o homem, foi criado do nada; o caos é
apenas um estágio acima do nada. O primeiro sistema é materialismo grosseiro, porque o
panteísmo é o politeísmo na sua forma extremada. O segundo, de Santo Agostinho, é o dualismo
Deus-Satã, Ordem-Caos, Tudo-Nada. A verdade, porém, está na síntese da tese e da antítese;
está no MONISMO que considera Deus, não só no seu aspecto transcendental e agostiniano,
senão também no aspecto imanentista e espinosiano, pelo qual, toda a Criação é,
383 André Luiz, Libertação, cap. VIII, pág. 103
384 André Luiz, Libertação, cap. VIII, pág. 47
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consubstancialmente, Deus. Mas a Criação não representa senão parcela de Deus, que é nada, se
comparado com o esplendor total dele na sua Transcendência e Majestade. E ainda há mais uma
diferença: a Imanência não é panteísmo (tudo é Deus), senão panenteísmo, ou seja, tudo-em-
Deus ou Deus-em-tudo. Não são as coisas que são Deus, mas a Substância delas que é uma só
para tudo.
E após meditar por algum tempo, prosseguiu o filósofo:
– Se Deus criou o Universo do nada, como queria Santo Agostinho Espírito, e tudo
começou pelo caos, abaixo da matéria, então, antes de existir o Espírito, existiu a matéria, e
aquele saiu desta, por evolução. Neste caso o Espírito é um produto da matéria, e vale a tese
materialista. Admitida a queda das almas de Platão, e do Velho e do Novo Testamento, a matéria
passa a ser mero produto do espírito, e por isso mesmo, ela, por evolução, se desencurva ao
máximo, para ser possível dar corpo aos seres e coisas do mundo celeste. Por isso, não é a
matéria que se torna no espírito, mas o princípio espiritual, prisioneiro dela, é que exsurge e se
evidencia cada vez mais com a organização da matéria, por evolução. Antes da queda o espírito
circunscrevia e dominava a matéria, sendo, esta, serva dele; na queda, com a inversão de valores,
a matéria passou a circunscrever e a dominar o espírito que, por isso, passou a serví-la. Porém,
como a matéria não possui a sabedoria, que é propriedade exclusiva do espírito, onde ela
comandar, o edifício se esboroará no caos.
E meditando um pouco, concluiu o pensador:
– Como estão vendo, o enunciado d"O Livro dos Espíritos” que declara serem os
Espíritos exteriores ao Criador, isto é, apartados dele, não partícipes da sua Substância (R. 77), é
dualismo agostiniano, útil, em seu tempo, para os devidos fins, mas que, se for mantido, é,
também, absurdo e blasfemo. A comparação que se fez de Deus e a sua Criação, como a de um
homem que constrói a sua máquina (R. 77) é pueril. Aristóteles disse a mesma coisa ao afirmar
que “Deus cria o mundo da mesma forma que um artífice faz sua obra; mas como Deus não está
no tempo, cria sua obra somente pensando-a. Sua atividade é só pensar (pensar pensamentos), é
esse “pensamento dos pensamentos”. Assim Deus é a essência exemplar das coisas realizadas
neste mundo”385. Se Deus não sai da esfera do pensamento puro, a matéria, que não é
pensamento, donde surgiu? Se, de acordo com Aristóteles, as coisas são constituídas de forma e
matéria, sendo a forma pensamento, essência, a matéria, que é? Deus é infinito, e por isso não
pode criar fora de si mesmo, nem tem outra Substância com que operar, que não a sua própria,
visto como, cientificamente, para não falar em lógica, do nada não sai nada. Esta idéia de criação
exterior à divindade decorre do “creatio ex nihilo” de Santo Agostinho, pelo qual, tendo Deus
criado o mundo do nada absoluto, fê-lo a este não só exterior a si, senão que também o criado
não participa da Substância divina. Isto foi de utilidade em seu tempo, como já disse, porque
serviu para a Igreja de Roma estabelecer sua hierarquia eclesiástica de padres, bispos, cardeais e
papas, que seriam os únicos representantes do Cristo que se diz ser o único intermediário entre
Deus e os homens. Pois claro: sendo Deus exterior à sua Criação, não está nela, nem é a
substância de coisa alguma, nem que essa coisa seja o homem, pelo que não pode ser aí
procurado, só podendo ser buscado através dos seus representantes legítimos de batina. Isto foi
de utilidade, em seu tempo, porque permitiu à Igreja organizar-se como força disciplinadora de
um mundo barbárico e hostil, o qual teria, na certa, tirado conseqüências desastrosas do conceito
imanentista. Só poderá buscar Deus dentro de si mesmo, quem já entrou aí, e passou a duvidar
que ele possa ser achado fora.
– E há mais isto, continuou Árago. A comparação que Santo Agostinho Espírito,
copiando Aristóteles, fez de Deus e sua Criação, como a de um homem que constrói a sua
máquina (R. 77), esbarra nesta dificuldade: quando o homem cria seja lá o que for, ele lança mão
dum material já existente, exterior a ele, e o transforma. Deus, para operar sua Criação, lançou
mão de que material? e como esta matéria poderia ser exterior a si, como se o Infinito pudesse ter
exteriores? A matéria com que Deus operou, inclusive a substância para criar os Espíritos, tomou
Deus do nada, diz Santo Agostinho. Ora, seja lá o que for que se nos apresente, é o seu aspecto
anterior modificado; portanto, se era nada no princípio, sê-lo-á em qualquer fase, ainda que a
obra apresentada seja um serafim. E como há entre os espíritas a opinião de que Cristo fez a
385 M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, 108
182
evolução como qualquer outro Espírito, tendo ele também saído da fase de simples e ignorante;
e sendo ele exterior à Divindade e produzido a partir do nada, segue-se que ele, Cristo, também
é nada.
– Pelo imanentismo, continuou o filósofo, Deus é a Substância mesma de todas as coisas,
e, por isso, também, a do homem, não carecendo ninguém de intermediários para O buscar. E
quando diz Cristo ser o caminho, a verdade e a vida, única via para o Pai, refere-se à sua
Doutrina, que não a si como pessoa. Não é a pessoa de Cristo que salva, mas a vivência da sua
Doutrina. Esta distinção entre Doutrina e pessoa, fê-la Vieira ao dizer que cremos em Cristo, isto
é, cremos nele, mas não cremos a Cristo, por não darmos crédito ao que ele diz e manda. “De
maneira, senhores católicos, que somos cristãos de meias: temos uma parte da fé, e falta-nos
outra; cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo”386.
E após ponderar em silêncio o que mais dizer, prosseguiu:
– Bem perto da Verdade andou Kardec quando perguntou: – “Os Espíritos tiveram
princípio, ou existem como Deus, de toda a eternidade?” (P.78). Todavia, como é certo, que a
morte não significa renovação, o filósofo desencarnado, ex-bispo de Hipona, respondeu com sua
“verdade” pessoal, com seu ponto de vista particular: “Se não tivessem tido princípio, seriam
iguais a Deus, etc” (R. 78). Isto mesmo: como Substância, as almas não tiveram princípio,
coexistindo com Deus! Teve princípio a essência delas que é aquilo que são, porém, não teve
princípio a Substância de que são formadas. Contudo Kardec mais arguto que o Mentor, contra-
argumentou: – “É difícil de conceber que uma coisa que teve começo, possa não ter fim” (P.83).
A resposta a isto foi umas evasivas, pelas quais o ex-bispo declarou ser limitada a inteligência de
Kardec, deixando crer que a sua própria não o era, visto como não se incluiu no que afirmava.
Mais adiante, pergunta Kardec se “todos os Espíritos passam pela fieira do mal para chegar ao
bem” (P.120), ao que o Espírito instrutor responde com este desarrazoado: “Pela fieira do mal,
não; pela da ignorância”. Ora, se todo o mal provém da ignorância, como passar pela fieira da
ignorância, e não, pela do mal? O que este ilogismo quis contornar é que Deus, tendo feito os
espíritos ignorantes, por isso mesmo os criou maus e para a dor.
– Agora, continuou o pensador, o desarrazoado vem de Kardec que interroga: “Por que é
que alguns Espíritos seguiram o caminho do bem e outros o do mal?” (P.121). Faliu o guiado,
porque já andava claudicando o Guia, e a resposta a este quesito foi outra queda no ilogismo:
“Não têm eles o livre arbítrio? Deus não os criou maus; criou-os simples e ignorantes, isto é,
tendo tanta aptidão para o bem quanto para o mal. Os que são maus, tais se tornam por vontade
própria” (R. 121). Não há duas estradas a percorrer, senão apenas uma, na qual se pode avançar
ou retroceder. É a estrada que leva do caos a Deus. Quando se avança, então, se vai para Deus;
quando se retrocede, desanda-se para o caos. De maneira que toda a criatura vem do caos, do
mal, da treva, para a luz, para o bem, para ordem, para a felicidade. Deste modo, qualquer
posição é bem e mal ao mesmo tempo; se comparada com as posições superiores, é mal; se
comparada às inferiores, bem. Em relação à besta o homem é bom; em relação ao super-homem,
santo e gênio, mau. Portanto, se a primeira criação divina teve início no caos, sendo o caos mal,
Deus criou o homem no mal, para que ele se torne bom, à custa de seu próprio esforço doloroso.
Quer dizer: o homem se torna bom por sua auto-realização, devendo a si próprio, e a mais
ninguém, a glória desta conquista que contrasta, pela oposição total, ao ato de Deus, porque
tendo Deus feito o homem mau, eis que o homem se negou no mal, tornando-se bom!
– Nada disso! – exclamou Orsoni: – o espírito não se degenera! “Pode permanecer
estacionário, mas não retrograda” (R. 118). E quanto às duas estradas, Cristo falou delas!
– E essas duas estradas, argumentou o mestre, uma do bem e outra do mal, são paralelas,
ou são continuativas? Quero dizer: elas estão lado a lado, uma estreita e dificultosa, levando ao
cimo, e outra larga e fácil, conduzindo ao caos? Ou são continuativas, isto é, a que vem do caos
se continua na que leva a Deus?
– Hão de ser paralelas e lado a lado, que se forem continuativas, como o senhor diz, não
seriam duas, mas uma.
– E se são paralelas, separadas, como se passa de uma à outra? Ora, se há duas estradas
paralelas, os que se acham numa não se passam à outra, donde veio a idéia a São Paulo da
386 Vieira, Sermões, 3, 183 - Ed. das Américas
183
existência dos predestinados para a salvação (Rom 8, 29 e Ef l, 11), e dos precitos, feitos para a
perdição. Este ponto deu o que fazer à agudeza de Vieira que escreve: “Todos os homens
quantos há, e houve, e há de haver no mundo, ou são predestinados que se hão de salvar, ou são
precitos que se hão de perder. Que Cristo morresse pelas almas dos predestinados, bem está: são
almas que se hão de salvar, e que hão de ver, e gozar, e amar a Deus por toda a eternidade; mas
morrer Cristo, e dar o preço infinito de seu sangue também pelas almas dos precitos? Sim.
Morreu pelas almas dos predestinados, porque são almas que se hão de salvar; e morreu também
pelas almas dos precitos, porque, ainda que se não hão de salvar, são almas. Nos predestinados,
morreu Cristo pela salvação das almas; nos precitos, morreu pelas almas sem salvação, porque é
tão grande o valor das almas por si mesmas, ainda sem o respeito de se haverem de salvar, que
deu Deus por bem empregado ou por bem perdido nelas o preço infinito de seu sangue”387.
E voltando-se o mestre para Orsoni, após fechar o livro, ponderou:
– Viu, Hierão, como é que se constrói uma ponte sobre o ar? Ouça mais isto: “Todos os
homens neste mundo vivemos com duas ignorâncias: a primeira da morte, a segunda da
predestinação. Todos sabemos que havemos de morrer, mas ninguém sabe o quando. Todos
sabemos que nos havemos de salvar ou condenar, mas ninguém sabe qual destas há de ser. E por
que ordenou Deus que a morte fosse incerta e a predestinação duvidosa? Não pudera Deus fazer
que soubéssemos todos quando haveríamos de morrer, e se éramos ou não predestinados? Claro
está que sim; mas ordenou com suma providência que estivéssemos sempre incertos e duvidosos
da predestinação, para que a morte nos suspendesse sempre o temor com a incerteza, e a
predestinação nos sustentasse a perseverança com a dúvida. Se os homens soubessem quanto
haviam de viver e quando haviam de morrer, que seria dos homens? Se eu, sabendo que posso
morrer hoje, me atrevo a ofender a Deus hoje, quem soubesse que havia de viver quarenta anos,
como não ofenderia confiadamente a Deus ao menos os trinta e nove? Por esta causa ordenou
Deus que a morte fosse incerta, e pela mesma que a predestinação fosse duvidosa. Se os homens
soubessem que eram precitos, como desesperados haviam-se de precipitar mais nas maldades; se
soubessem que eram predestinados, como seguros haviam-se de descuidar da virtude; pois, para
que os maus sejam menos maus, e os bons perseverem em ser bons, nem os maus saibam que são
precitos, nem os bons saibam que são predestinados. Não saibam o maus que são precitos, para
que não se despenhem como desesperados, nem saibam o bons que são predestinados, para que
se não descuidem como seguros”388.
E fechando o livro, concluiu:
– Aí está no que vem dar a idéia das tais duas estradas separadas, nada valendo ser bom,
se é precito, nem importa praticar o mal, se é predestinado. Não viu o padre, ou, se o viu, calou a
verdade... de que o sangue de Cristo se torna perfeitamente inútil neste caso, seja para salvar os
que não se podem, de modo algum perder, seja para salvar os que de modo algum se salvam. Se
sou predestinado, não careço de nenhuma gota do sangue de Cristo, que estou salvo; se sou
precito, nem todo o sangue de Cristo me há de salvar. Também, acaso é desse parecer a sua
doutrina espírita?
– Não. Minha doutrina diz que “os Espíritos que enveredam pela senda do mal poderão
chegar ao mesmo grau de superioridade que os outros”...; “mas, as eternidades lhes serão mais
longas” (R. e P.l25).
– E como é que se há de passar de uma estrada à outra, se ambas são paralelas, separadas
portanto, uma levando a um destino, e a outra, a outro? E se esses destinos são opostos
polarmente, como são paralelas as estradas?
– Bem!... A coisa é que não são paralelas, propriamente, mas em forma de V. Estando o
espírito simples e ignorante no vértice do ângulo, pode tomar por qualquer dos seus ramos, seja
para a direita ou bem, seja para a esquerda ou mal.
– E existe possibilidade de passagem de um ramo para outro? Ou, de outro modo: quem
estiver na estrada do bem pode praticar o mal, e quem na do mal, o bem?
– Segundo minha doutrina espírita, quem estiver na estrada do mal pode tornar atrás, e o
fará na certa, pois todos os espíritos hão de salvar-se; porém, o que segue já pela estrada do bem
387 Vieira, Sermões, 2, 400 - Ed. das Américas
388 Vieira, Sermões, 6, 399 - Ed. Das Américas
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não pode voltar atrás, porque, como já disse, o espírito não se retrograda. (R. 118).
– Bom. Você me afirma, com fundamento em sua doutrina, que todos os espíritos se hão
de salvar; logo, o que toma pelo caminho do mal, terá de voltar sobre seus passos um dia, não é?
– Isso mesmo.
– E quando um espírito que ia longe já no caminho do mal, cai em si, arrepende-se, e se
dispõe a emendar-se, desandando o caminho que o levaria para o caos, desde esse momento não
está evoluindo para Deus?
– Claro está que sim!
– Então é possível evoluir, mesmo estando ainda no ramo esquerdo do V, correspondente
ao do mal?
– Sem dúvida; e daí?
– Daí vem que se tornar atrás na estrada do mal é já evoluir, tocar por diante nela é
involuir ou retrogradar. Ora, quem se acha no vértice do V está em posição superior à de quem já
vai longe na estrada do mal; e este, que vai longe no mal, para seguir a estrada do bem, precisa
retornar ao vértice; então, se essa tornada ao vértice é já evolução, segue-se que o avançar pela
senda do mal, é involução ou retrocesso. E se quem se acha no ramo esquerdo do V, pode, ou
avançar para Deus, ou retroceder para o caos, por que razão o que segue pelo ramo direito ou do
bem, fica impedido disso? A que fica reduzido, então, o tão decantado livre-arbítrio, se o espírito
só é livre para evoluir, e nunca, para retroceder? Ou me vai você dizer que há pontes entre os
ramos do V, como querem as religiões católica e protestante, de sorte que prosseguir no ramo do
mal, é idêntico a seguir pela senda do bem, visto como, lá numas tantas, basta o Espírito poder
passar-se de uma estrada à outra, por qualquer das pontes que as interligam? Acaso pensa assim
sua doutrina espírita?
– Não. Para tornar duma estrada à outra, é preciso regredir ao vértice do V, desfazendo
todo o mal feito, e pondo, no lugar dos vícios, as virtudes correspondentes. E quem, indo-se pelo
ramo do mal, torna ao vértice, evolui. O senhor tem razão... evoluir não é só seguir pelo ramo do
bem, senão, também, tornar atrás no do mal. E se a tornada atrás na senda do mal é evolução, o
movimento inverso de avançar por ela é involução, retrocesso, retrogradação. E se não há saltos
ou passagens de um ramo a outro do V, e por isso o Espírito só pode andar e desandar numa e
noutra estrada, passando e repassando pelo vértice, segue-se que as duas vias são continuativas,
como o senhor aventou.
– Por conseguinte, meu Hierão, se as tais duas estradas são continuativas, não são duas,
são uma, embora dobrada em V. Endireite-se o V, e ter-se-á uma reta que leva do caos a
Deus ! ... O vértice do V é o meio da jornada evolutiva, e neste ponto Santo Agostinho Espírito
supõe que Deus criou o espírito na fase de simplicidade e ignorância, uma espécie de tábua rasa
de valores, sem passado algum a atuar como inércia, sendo-lhe, ao espírito, por isso, tão fácil
enveredar pela trilha do bem, como pela do mal. Todavia a verdade é bem outra: se a fase de
simplicidade e ignorância representa o meio do caminho para Deus, segue-se que o espírito já
possui vida e experiências pregressas estratificadas nos instintos por milhões de anos. E quem
possui, instintos tenazes quais hão de ser os do pré-homem macacóide, não é livre de escolher,
como já hei demonstrado. Eis que, partindo da premissa espírita das duas estradas, tenho
chegado ao mesmo resultado exposto antes, em perfeita concordância com os últimos dados da
paleantropologia moderna. O Espírito simples e ignorante, logo, no vértice do V, possui um
passado que remonta à origem da vida. Santo Agostinho supõe, e dá esta suposição por doutrina
verdadeira; supõe que o Espírito simples e ignorante, no vértice do V, é uma tábua rasa de
valores, uma cera virgem, pronta para receber as primeiras impressões. Mas a verdade é que o
Espírito, nesta fase, representa uma formação que resiste às mudanças por impulsão de muitos
milhões de anos. E quando segue, como ocorre sempre, pela senda do mal, não faz senão
recapitular as fases já vividas no passado, e que se estratificaram no subconsciente sob a forma
de instintos. Então, quem se acha no vértice do V, no meio da escala, e pode seguir o caminho do
mal, no rumo do caos, de onde evoluiu, mais não faz que retrogradar!
Neste ponto da discussão, interveio Romão Sileno, dizendo:
– Eis aqui, tenho achado nos Evangelhos, o passo em que Cristo falou de duas estradas;
aqui está o texto: “Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que
185
conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; e porque estreita é a porta, e apertado o
caminho que leva à vida, poucos há que a encontrem” ( Mat 7, l3 e l4).
– Eis aí, Hierão, comentou o mestre, como Cristo apenas empregou uma bela e oportuna
figura mostrando, na porta e caminho estreitos as virtudes por serem adquiridas com grande
esforço e luta; na porta e estrada largas ele simbolizou os instintos e impulsões atávicas de
milhões de anos cristalizados pela repetição. Basta só, portanto, afrouxar a tensão do esforço da
subida, e já se desanda para a largura dos instintos e hábitos malsãos, estratificados no profundo
do espírito, no subconsciente. Não são paralelas ou em V as estradas, porém, ambas são uma só,
visto que uma se continua na outra. Posso estreitar ou alargar a vida, se curo de adquirir virtudes
que não tenho, ou se me abandono às próprias impulsões animalescas das fases superadas, mas
não extintas. Com esta idéia de duas estradas independentes, interroga Kardec: “Têm
necessidade da encarnação os Espíritos que, desde o princípio, seguiram o caminho do bem? ”
(P. 133). Resposta: “Todos são criados simples e ignorantes e se instruem nas lutas e tribulações
da vida corporal. Deus, que é justo, não podia fazer felizes a uns, sem fadigas e trabalhos
conseguintemente sem mérito”. Então, como Deus é justo, e na impossibilidade de criar a todos
felizes, fê-los a todos sofredores, isto é, pôs por lei geral as lutas e as tribulações da vida
corporal. E isto, para terem o mérito de que nunca poderão gozar, sob pena de serem punidos por
vaidade, por orgulho e por ingratidão. Se o mérito é meu, nada devo a Deus, não lhe precisando
elevar preces de gratidão, nem lhe trinar hinos de louvor. Se sou inteligente, devo-me a mim
mesmo esta conquista, pelo que me posso dar os parabéns. Se sou justo, e bom, e virtuoso, e
sábio, posso fazer panegírico destas minhas qualidades que só por meu esforço conquistei, sem
que Deus tenha alguma coisa a ver com isso. Mas não: se sofro, sou culpado; se sou feliz, devo
dar graças a Deus. É por isso que, qualquer migalha de alegria é benção, é graça de Deus, no
passo que todas as dores, e fadigas, e aflições, são o resultado de culpas humanas. Ora, se o
merecimento é nosso, do mesmo modo que são nossas as culpas, já não precisamos dar graças a
Deus, pelas nossas alegrias. Elas são só nossas, nada tendo Deus a ver com isso. E, pois, como é
punido por ingratidão quem assim procede? De que nos vale, então, o merecimento, se ele nos é
impossível?... Não satisfeito, Kardec, com estas sem-razões, acrescenta: “Mas, então, de que
serve aos Espíritos terem seguido o caminho do bem, se isto não os isenta dos sofrimentos da
vida corporal?” Resposta: “Chegam mais depressa ao fim” (R. 133). Que fim, se para o
Espiritismo ortodoxo a evolução é eterna? Diga-me, Hierão: pode ser considerado salvo um
espírito, enquanto estiver sujeito às contingências da vida material?
– Claro está que não, pois, salvação significa estar livre da dor: ora, quem se livrará das
dores, estando submetido às contingências da vida corporal?
– Se, pois, a salvação significa isenção da dor; e se isto é impossível até mesmo para o
que seguiu, sempre, somente, pela estrada do bem, de novo se impõe o imperativo anterior: a
salvação não existe,e a dor é eterna. Tanto faz, logo, ser Cristo ou Gestas, que para ambos,
cruzes não hão de faltar!
E depois de refletir um pouco, prosseguiu:
– Diga-me mais isto: pode sofrer o inocente, de acordo com sua seita espírita?
– Absolutamente não... que não pode haver efeito sem causa. Toda dor provém de erros
cometidos.
– E os espíritos que desde o começo, sempre, seguiram pela estrada do bem, concorda,
você, que são inocentes?
– Tenho de concordar, pois, se não têm culpa, são inocentes.
– E “sofrem” ao serem submetidos às “lutas e tribulações da vida corporal”? (R. 133).
Como cordeiros mansos, pacíficos, que são, não ficam sempre, os inocentes do mundo, expostos
às sanhas dos lobos vorazes de que se constitui a maioria?
– O inocente e justo, concordou Hierão, sofre neste mundo; isto é da experiência diária...
e histórica ...
– É inocente e justo, e sofre? Então, pode sofrer o que não tem culpa, e o que sempre
temeu a Justiça? É pacífico, para todas as religiões, que a salvação tem de corresponder a um
estado de inocência; e se mesmo o inocente e justo sofrem, segue-se, por aqui, também, que a
salvação não existe, porque a dor é eterna!, haja ou não causa para o efeito da dor.
186
Tentando livrar-se do arrocho, com que Árago o afligia, enveredou-se Hierão, por insólito
caminho ao dizer:
– Demos, porém, que a evolução seja finita, e não eterna; então, o fim referido n"O Livro
dos Espíritos” é o regaço do Pai, ao qual se dirige o filho, por evolução.
– Neste caso a criatura torna a Deus por evolução? – perguntou Árago.
– Sim.
– Se torna a Deus, é porque saiu de Deus, visto ser impossível voltar sem ter saído!
Portanto, este fim é também o começo de onde o Espírito podia não ter saído; e se saiu por
vontade própria, como o entendem as religiões, é culpado, sendo bem merecidas as dores todas
que o assoberbam; todavia, se, como o entende Santo Agostinho, foi compelido a sair, se
possível, bom é não retorne, para não precisar sair de novo...
– Eu disse que o espírito se dirige ou vai ao Pai, por evolução, retrucou Orsoni. Ora, ir ou
dirigir-se para alguma parte, não é tornar a ela. Todavia, capcioso como o senhor é, matreiro e
sofista, trocou meu ir para ou dirigir-se, pelo termo tornar ou voltar, o que não é a mesma coisa,
dando a entender que o espírito teve origem em Deus, para o qual retorna, e não, no caos, de
onde procede. O espírito vai ao Pai, disse eu, porém não torna, porque não procedeu dele, e sim,
do caos. Pois claro: se o processo evolutivo começou no caos, e acaba em Deus, evoluir significa
ir para Deus que não é o mesmo que tornar a Deus.
– Você me está dizendo, então, que o caos é estranho a Deus, não procedente dele, não
originário da sua Substância?
– Foi isso mesmo que eu disse, não por enigma, senão claramente. Como pode Deus ter
alguma coisa a ver com o caos, se este representa a suma oposição de Deus?
– Se o caos não surgiu de Deus, de que surgiu então?
– Do nada, ora essa !
– Mas surgiu, por si mesmo, por acaso, ou foi por vontade e obra de Deus?
– Claro que surgiu por obra e vontade de Deus! De quem outro havia de ser?
– Logo, Deus criou o caos do nada, visto que este não procede da sua Substância?
– É isso mesmo!
– E o homem veio do caos?
– Perfeitamente.
– Por conseguinte, o homem veio do nada?
– Veio, e daí? É como diz o Espírito na Resposta 15 de “O livro dos Espíritos”: “Não
podendo fazer-se Deus, o homem quer ao menos ser uma parte de Deus”. Ora, dado que a
Criação teve princípio, houve um tempo em que só havia Deus. Se ao criar, Deus não tirou coisa
nenhuma de si, só pode ter criado do nada.
– Daí vem, então, que o homem é nada, contra-argumentou Árago, porque, qualquer
estado em que qualquer coisa se apresente, é o estado anterior sob novo aspecto, e deste modo se
pode, inexoravelmente, remontar à última substância de que a coisa consiste. Eis, então, que
segundo sua doutrina espírita que expressa o pensar de Santo Agostinho, Deus não pode estar no
interior das suas criaturas, mesmo as mais perfeitas, visto como Deus é exterior à sua Criação,
tendo esta vindo do nada. Desenvolvendo sua premissa agostiniana temos: se no começo tudo era
o nada, qualquer coisa é o mesmo nada sob outro aspecto. A Criação é exterior a Deus? Sim, é,
responde Santo Agostinho, pois que ela veio do nada e é nada, só Deus sendo tudo,
completamente separado, estanque, da sua Criação, existindo ele, somente, como
Transcendência, e não, como Imanência que é ele na sua expressão criacional. E se alguma coisa
pode ser exterior a Deus, e estar fora de Deus, então ele é finito, tem limite, podendo haver-lhe
os foras que são os extralimites. Tem Deus foras? Sim, tem. Então Deus é finito, e não é Deus.
Cristo é Deus, Hierão?
– Cristo é homem, conforme o ensina o Espiritismo.
– Então Cristo é nada...porque não é Deus, mas, somente sua criatura, vinda, como tudo,
do nada, pelo que é o nada sob o aspecto de Cristo. Sendo, pois, Cristo, um nada fantasmagórico
e ilusório, que pode ser o Evangelho que ele produziu? Eis aí, Hierão, um nada criando outra
nada, que tudo é ilusão fósmea, com ser tudo exterior à divindade que é a única Realidade que
não se reparte no criado. Mas que é o nada? Acaso não é a negação total, absoluta? Não é, acaso,
187
o nada, o não-ser que se opõe ao Ser por excelência, que é Deus? E, pois, se Deus criou as suas
criaturas, ainda as mais perfeitas, do nada substancial, do nada consistencial, segue-se que elas
vieram do não-ser para a ilusão de ser. O nada está abaixo do caos mais inteiro e primitivo,
sendo o último estado a que alguma coisa pode degradar e cair. O nada é a suprema treva,
suprema inconsciência, suprema negação, mal e dano supremos. Neste ponto foi que Deus, o
Grande Mago, deu os seus passes de magia, fazendo surgir, do vácuo, o homem angustiado,
sofredor, ignorante, fraco. E esse nada, com aspecto de homem, sofre, sua, sangra, vive na morte,
porque a vida é nada. Luta por evoluir, enfrenta o martírio já como Gestas, já como Dimas, já
como Cristo. Mas não adianta nada evoluir, porque eterno é o sofrer, visto como a dor é
característica desse sistema que começou do nada, e por isso, é nada. Qual, logo, é a última
consistência ou substância de Cristo? O nada! Pois que gema, então, chore, sue e sangre na sua
Cruz, que esse há de ser o eterno resultado que pode produzir o nada !
Fez silêncio o pensador, e ficou a ver se Hierão ainda se dispunha a retrucar. Mas vendo-o
quieto, pôs remate ao que vinha dizendo:
– Eis aí está desfeito e por terra o dualismo agostiniano que põe a Deus de uma parte,
como a Realidade única ou Ser absoluto, e da outra, o não-ser ou nada substancial. Como vêem,
da premissa agostiniana do “creatio ex nihilo”, tirei estas conseqüências implacáveis,
irreverentes, blasfemas, e fiquei depois a esperar pela resposta, aí, de Hierão; que não veio nem
virá! Ou então ele, a exemplo de quantos espíritas fanáticos que andam por aí a vozear, em face
destes argumentos esmagadores, decidir-se-á recorrer às ofensas pessoais e aos xingos, que são a
única arma dos fracos, vazios e ínscios: eis por que, para começar, já me classificou entre os
sofistas, ardilosos, matreiros e sagazes. Então eu já não sou um filósofo que ama e busca a
verdade, no conceito de Orsoni, e sim mero sofista conversador que procura projeção pessoal.
Depois de uma pausa, voltando a olhar o livro que tinha, aberto, nas mãos, prosseguiu:
– Diz, mais, aqui, a letra: “Demais, as aflições da vida são muitas vezes a conseqüência da
imperfeição do Espírito” (R. 133). Se “são muitas vezes”, e não, todas as vezes, segue-se que
pode haver “aflições da vida” que não decorrem da imperfeição do espírito. Por conseguinte,
pode o inocente e perfeito sofrer... Como é então que, aí, Orsoni afirma, com base na doutrina
espírita, que o inocente não pode sofrer, porque, não podendo haver efeito sem causa, toda a dor
tem de provir de erros cometidos? Mas o espírito sofre por ser imperfeito, e o é, porque assim o
fez Deus, com criá-lo simples e ignorante. Que se diga, então, sem eufemismos ou rebuços, que
as aflições da vida são impingidas pelo Pai aos filhos inocentes, visto que qualquer erro decorre,
imediatamente, da ignorância, da qual o ser não tem culpa. Se não sou culpado da ignorância, e
erro, porque sou ignorante, não sou culpado pelo erro; por que, logo, me pune Deus? E se me
decido a seguir sempre só pela estrada do bem, ainda assim, terei de sofrer as dores e tribulações
da vida corporal, e isto, diz o Espírito, para poder chegar à perfeição. Daqui se deduz,
claramente, que aquele que anda sempre só pela estrada do bem ainda não é perfeito. Mas para
escolher entre uma estrada e outra, usando o livre arbítrio, preciso é ser sábio, porque o
completamente insciente não pode escolher, e se toma por uma estrada ou outra, há de ser por
acaso. Ora, quem age ao acaso não usa o livre arbítrio nem escolhe. Portanto, se sigo sempre só
pela estrada do bem, e nunca, pela do mal, nisto dou prova de sabedoria. Contudo, apesar de
sábio, e de, por isso, nunca errar, tenho de passar pelas vicissitudes todas da vida corporal para
chegar à perfeição. Por conseguinte, na sabedoria também não reside a perfeição, por isso que o
sábio sofre, e Sócrates foi condenado à morte pela cicuta, e Cristo, pela cruz. Então, que é a
perfeição? E se ignoro o que vem a ser perfeição, como hei de querer o que ignoro? E se a
ignoro, não a posso querer; e se a não quero, como guiar, então, meus passos para ela?
E após consultar o relógio, exclamou:
– Puxa! como é tarde! O tempo se escoou, sem que o percebesse!
– Mas amanhã é domingo, tornou Bruco, e por isso podemos ficar mais tempo na cama.
– Apesar disso, replicou o mestre, convém encerrarmos estes nossos estudos de hoje.
Resumindo tudo, temos: o espírito simples e ignorante é uma etapa ou fase de um
desenvolvimento que começou pelo caos. As coisas se organizaram pouco a pouco, através de
bilhões de anos. Os seres vivos apareceram, então, e evoluíram, lentamente, até o homem, o
qual, deste modo, se viu criado como simples e ignorante; e porque procedeu, o homem, dos
188
animais inferiores, se acha assoberbado pelos instintos animalescos, os quais, por uma
necessidade de vida, teve de desenvolver e de reforçar por meio de repetições constantes. André
Luiz nos dá um relato desses espíritos, assim como de um dos lugares onde habitam, quando
desencarnados: diz-lhe seu Mentor Gúbio: “Milhares de criaturas, utilizadas nos serviços mais
rudes da natureza, movimentam-se nestes sítios em posição infra-terrestres. A ignorância, por
ora, não lhes confere a glória da responsabilidade. Em desenvolvimento de tendências dignas,
candidatam-se à humanidade que conhecemos na Crosta. Situam-se entre o raciocínio
fragmentário do macacóide e a idéia simples do homem primitivo na floresta. Afeiçoam-se a
personalidades encarnadas ou obedecem, cegamente, aos espíritos prepotentes que dominam em
paisagens como esta. Guardam, enfim, a ingenuidade do selvagem e a fidelidade do cão”389.
E fechando o livro, prosseguiu:
– Tais espíritos, como se vê, estão abaixo da fase das paixões, que representam já “um
sinal de atividade e de consciência do eu, porquanto, na alma primitiva, a inteligência e a vida se
acham no estado de germe” (R. 191). Esse espírito nascente e incipiente é posto no começo da
fieira da ignorância que, absurdamente, não é do mal (R. 120). Dá-se-lhe um livre arbítrio, para
ele escolher entre o bem e o mal, sendo que isto, nem os filósofos ainda não sabem o que sejam.
Sofre, por dentro, a pressão dos instintos ferozes e vivíssimos, e por fora, a “dos Espíritos
imperfeitos, que procuram apoderar-se dele, dominá-lo, e que rejubilam com faze-los sucumbir”
(R. 122). Depois de tudo isto, achar Kardec (P. 121) seja possível terem, alguns espíritos,
seguido, sempre, somente, pela estrada do bem? Como se existissem, de fato, dois caminhos, em
vez de um só, Caos-Deus, no qual se pode avançar ou retroceder? Se tudo fosse desse jeito
mesmo, seria Deus justo, e bom, como tanto se apregoa? Mas a intuição (“Dados imediatos da
consciência” – Bergson; “Imperativos categórico da razão” – Kant”); mas a intuição nos declara,
peremptoriamente, que Deus é justo, que Deus é bondade e amor; logo, estas coisas não passam
de absurdo e blasfêmia, se as quisermos válidas para os nossos dias. Chegado é o tempo de o
Espiritismo avançar mais um passo, se não quiser ficar estagnado, deslocando o pensamento ao
longo do eixo agostinho-platônico, de Santo Agostinho para Platão. A premissa teológica
agostiniana, o seu “creatio ex nihilo” está superada, e sabe a blasfêmia, se quisermos ainda estar
com ela; como o Pentateuco, pertence, já, agora, ao passado. É respeitável como elo do passado
mental da humanidade, sem o qual o pensamento não lograria ter chegado até aqui, do mesmo
modo que este arrazoado nosso é passo necessário para os desenvolvimentos futuros. Platão é o
que está com a verdade: no começo era o mundo espírita (topos uranos) não só que preexiste,
senão que sobrevive a tudo, podendo o mundo corporal ou acidental nunca ter existido, ou deixar
de existir, sem que isto altere a essência do mundo espírita. Por conseguinte, o mundo espírita é
necessário e primitivo, e o corporal, acessório e posterior, visto ter surgido por causa da falência
dos Espíritos, não sendo, logo, obra direta de Deus. Isto é o que se infere do que diz Platão, não
só na sua obra de encarnado, senão, ainda, na doutrina que assinalou n“O Livro dos Espíritos”
(R. 85 e 86).
– Esta, a verdade, continuou o filósofo, que poderá ser aceita pelo Espiritismo liberal;
porém, o ortodoxo, falado pela boca de seus mestres conservadores, irá pretender impedi-la, sob
o pretexto irrisório de que “devemos defender a unidade da Doutrina”. Que importa a unidade da
doutrina? Que culpa tenho eu de o Espiritismo ortodoxo ter-se enveredado pelo ramo de Santo
Agostinho, em vez de, pelo ramo de Platão? A verdade, e só a verdade é o que interessa, e não, a
unidade de quaisquer doutrinas, como sempre o foi, e por todo sempre o será. Todavia, como
também é fato que a história se repete, a ortodoxia espírita pretenderá pôr diques ao curso da
verdade, como fizeram os judeus do tempo de Cristo, e a Igreja de Roma do tempo de Lutero.
Mas, detida em seu curso natural, a verdade avolumar-se-á, como sempre tem acontecido,
arrebentando os diques misérrimos levantados por esses reacionários. Hierão Orsoni, aí, é um
exemplo da reação espírita que estaria disposta a lutar pela integridade da doutrina, não importa
se absoleta ou falha. Todavia eu, cumprindo uma missão, lhe mostro no mesmo “Livro dos
Espíritos”, o ponto em que baseio a reforma que se fará, no futuro, queiram ou não queiram os
espíritas conservadores.
E consultando, de novo, o relógio, exclamou:
389 André Luiz, Libertação, 60
189
Capítulo IX
190
Caída que foi a noite, e estando todos reunidos na sala da biblioteca, Árago principiou a
falar:
– No dia da semana passada, após vocês saírem, fui para a cama, mas não pude conciliar o
sono. As idéias fervilhavam-me na mente, e só pela madrugada me acalmei. O que pensei, então,
acho deve ser motivo de nossas cogitações de hoje. Ainda mais que é prosseguimento do que já
hemos discutido na noite daquele dia. O que andei cogitando é que se Kardec fosse filósofo,
orientaria seu interrogatório ao Espírito Instrutor de outra maneira. Acontece que tudo o quanto
o homem vê, toca, percebe pelos sentidos, esse momento estimula a sua inteligência. E quando
deseja conhecer a coisa que o ocupa, procura, em primeiro lugar, saber o que ela é, e, depois, de
que é feita tal coisa. É assim que o filósofo coloca o problema do ser, e pergunta: qual, a sua
essência? E qual a sua substância? de que ela se constitui ou no que consiste? Todavia, lendo “O
Livro dos Espíritos”, sobrevém-nos uma desolação, por causa de as perguntas serem diferentes
de como as faria um pensador.
E pegando d"O Livro dos Espíritos”, prosseguiu:
– Aqui pergunta Kardec: “O universo foi criado, ou existe desde toda a eternidade?”
Resposta: É fora de dúvida que ele não pode ter-se feito a si mesmo. Se existisse, como Deus, de
toda a eternidade, não seria obra de Deus” (R. 37). Então, tornou Kardec: “Como criou Deus o
universo?” (P.38). Se Kardec fôra filósofo, perguntaria: do que Deus criou o universo. Pois
claro: o como não interessa tanto, como o de que. E porque a pergunta não nos satisfaz, também
a resposta nos deixa insatisfeitos: “Para me servir de uma expressão corrente, direi: pela sua
Vontade” (R. 38). E com isto a substância ontológica ficou no tinteiro... Isto, porém, que não
ficou explicitado, nós podemos deduzir de outras partes, como já o fizemos outro dia. Agora
vamos a isto:
– Noutro lugar, diz o Espírito que o espaço é infinito (R. 35), e que não há vácuo. “O que
te parece vazio está ocupado por uma matéria que te escapa aos sentidos e aos instrumentos”
(R.36). Ora, o espaço é infinito, e está ocupado por uma matéria. Logo, esta matéria é infinita.
Kant também esbarrou com esta dificuldade ao que sendo o espaço objetivo infinito, está
ocupado por uma matéria também infinita; e se a matéria é infinita, ela se confunde com Deus.
Porém, não é só isto, porque “ao elemento material se tem que juntar o fluido universal, que
desempenha o papel de intermediário entre o espírito e a matéria propriamente dita, por demais
grosseira para que o espírito possa exercer ação sobre ela” (R. 27). “Este fluido universal, ou
primitivo, ou elementar” (R. 27), tem que ser também infinito, porque coexiste com a matéria,
sendo o que, modernamente, se chama energia. A matéria não se acha nunca desacompanhada da
energia, nem esta, daquela; e sendo a matéria infinita, ipso facto, a energia também o é. Deste
modo, matéria e energia infinitas enchem o espaço infinito. E o espírito? “Que é o espírito?” É
“o princípio inteligente do universo” (R. 23), que atua na matéria através do seu
intermediário, o fluido universal. Então o universo que ocupa o espaço infinito é constituído de
matéria-energia-espírito. Agora, a questão: estas três substâncias, ou são redutíveis a uma delas,
ou não o são. Se o são, há somente uma substância universal e não, três. Se o não são, então há
três substâncias fundamentais, separadas, estanques, três mônadas, para usar um expressão de
Leibniz. No caso de haver três substâncias separadas, irredutíveis entre si, fica recolocado o
velho problema metafísico: como se intercomunicam ou interligam as substâncias, se são
estanques. Não havendo um bordo de contato, uma zona de sintonização onde as duas
substâncias se confundam, o impulso gerado numa, não se transfere à outra. Havendo zona de
sintonização, nesse ponto as duas substâncias são uma. Se o espírito atua sobre a matéria, e esta,
sobre o espírito, preciso é que haja uma zona de sintonia ou de passagem dos impulsos; nesse
ponto, espírito e matéria se confundem, donde vem que um se reduz ao outro. O exemplo
clássico usado pelos filósofos idealistas até Leibniz, dos relógios sincronizados, de modo que
191
tudo o que acontece com um, ocorre, simultaneamente, com o outro, mostrou-se totalmente
inconvincente e já foi abandonado. Todavia, sejam três, ou seja uma, resta saber de onde Deus
retirou estas substâncias, se de si, ou se do nada. Se de si, tudo no universo é partícipe dessa
Substância divina. Não é, então, que todas as coisas sejam Deus, mas sim que Deus constitui a
substância primeira de todas as coisas; não panteísmo, mas panenteísmo. Porém, Santo
Agostinho Espírito, respondendo a Kardec, diz: “Não podendo fazer-se Deus, o homem quer ao
menos ser uma parte de Deus” (R. 15). Os espíritos “são obras de Deus, exatamente como uma
máquina o é do homem que a fabrica” (R. 77). Logo, segundo o Instrutor de Kardec, os Espíritos
não são emanações ou porções da divindade, e por esta causa, denominados filhos de Deus
(P.77). Pelo que nos diz “O Livro dos Espíritos”, Deus não tirou os filhos do seu seio, da sua
Substância; os filhos foram criados do nada substancial. Ora, é o próprio Instrutor que diz a
Kardec: “Ficai sabendo: coisa nenhuma é o nada e o nada não existe” (R. 23). Pois se coisa
nenhuma é o nada, e somos feitos desta coisa nenhuma, somos nada; e como o nada não existe,
não existimos. Somos aparência, pura ilusão de ser, e não, seres reais, e está certo o bramanismo
em afirmar que o mundo é “maya”, isto é, ilusão. O mundo é mau, porque, “maya”, ou como o
afirma Maritain: “A existência das coisas individuais e desta imensa Decepção que se chama a
natureza (maya) e que nos mantém prisioneiros do múltiplo e do mudável é essencialmente má,
fonte de todo sofrimento”390. Ora, Deus foi o que criou do nada a ilusão de existir; logo, Deus é
culpado direto pela existência de “maya” que é ilusão, e erro, e dor, e dano, e mal.
– Não e não! bradou Hierão Orsoni, num arroubo de fanatismo espírita, citando, de cor,
“O Livro dos Espíritos”: “Não é na pequenina esfera em que vos achais”, diz o Mentor a Kardec,
“que podeis compreendê-lo” (R. 35); isto quer dizer que nesta esfera não podemos compreender
todas as coisas.
– Que importa o lugar, Hierão? Acaso Sócrates seria menos ou mais Sócrates, e Cristo
menos ou mais Cristo, se estivessem em Mercúrio ou Plutão? Então se pode ser menos ou mais
inteligente e sábio, dependendo só da esfera em que se está? Se posso ser mais inteligente e
sábio, só por habitar esferas superiores, porque, logo, não me deixa Deus ir a elas?
– Para habitá-las, tornou Hierão contrafeito, preciso é ser achado na senda do bem, sem
nunca se ter desviado dela.
– Que nada, meu inflamado Hierão! Não importa que os Espíritos hajam seguido “desde o
princípio (...) o caminho do bem” (R. 133), que “isso não os isenta dos sofrimentos da vida
corporal”. As reencarnações lhes são impostas nesta “pequenina esfera”, a fim de desenvolverem
também a inteligência. E é nesta esferinha de nada que terão os Espíritos de esforçar-se por
compreender o que vem a ser um espaço infinito cheio de matéria, e como é que essa matéria
pode ser assim infinita sem ser Deus, visto que somente ele deveria ser infinito, e não também a
matéria que, neste caso, com Deus se confunde. A fé espírita tem por certo que a matéria é
infinita, e que Deus também é Infinito. O Criador Infinito, e a criatura, também infinita. Porém, o
Infinito Criador, diz-nos a razão, há que ser maior que a matéria infinita, porquanto, somente o
mais pode criar o menos, e não, o contrário. Ora, se esse menos que é a matéria, chega a ser
infinito, como não ser, então, mais que Infinito o mais que criou esse menos? Deus é infinito; a
matéria também é infinita; mas, Deus criou a matéria; portanto o Infinito-Deus é maior que o
infinito-matéria. Por conseguinte, segundo o ensinamento do Instrutor espiritual da “grande
esfera”, deduz-se que pode haver um infinito maior que outro infinito (∞ > ∞)! Também
estabelece isto o padre Antonio Vieira, quando pretendeu construir uma ponte por sobre o ar,
quando afirma que o ventre de Maria é maior que Deus, pois que cercou e teve em si o próprio
Deus. E argumenta o padre sofista: “A boa filosofia admite que pode haver um infinito maior
que outro infinito, porque se houver infinitos homens, também os cabelos hão de ser infinitos;
porém o infinito dos cabelos, maior que o infinito dos homens”391. E se antes só havia o Infinito-
Deus, de que substância foi feita a matéria infinita? Do nada? Então, do nada, que não existe
(“coisa nenhuma é o nada” R. 23), pôde Deus criar outro infinito que não o seu? Se a substância
deste infinito criado é o nada, tudo é infinita negação, infinita ilusão, infinito “maya”. Disto se
conclui, por correto raciocínio, que a ilusão, o erro, a dor, o dano, o mal são infinitos, não
390 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 27
391 Vieira, Sermões, 6, 97 - Ed. das Américas
192
podendo haver nenhum culpado pela existência deste outro deus contrário, deste anti-Deus, que
não o próprio Criador! Mas Deus é infinito, Hierão?
– Sim. Está escrito que Deus é infinito, conquanto seja essa uma “definição incompleta.
Pobreza da linguagem humana, insuficiente para definir o que está acima da linguagem dos
homens” (R. 3).
– E que é infinito?
– “O que não tem começo, nem fim: o desconhecido; tudo o que é desconhecido é
infinito” (R. 2).
– E o espaço também é infinito?
– “Infinito. Supõe-no limitado: que haverá para lá de seus limites?” (R. 35).
– Esse espaço infinito está cheio, ou vazio?
– “Não há vácuo. O que te parece vazio está ocupado por uma matéria que te escapa aos
sentidos e aos instrumentos” (R. 36).
– Logo, essa matéria é infinita, tanto como o espaço infinito que ela ocupa?
– Pois claro!
– E sendo Deus infinito, e a matéria também infinita, esses dois infinitos coexistem no
mesmo lugar, ou estão separados?
– Estão separados, sem dúvida, visto que Deus Criador não se pode confundir e misturar
com a matéria criada.
– Então, se há dois infinitos separados entre si, há o limite entre ambos; e se há limite, não
são infinitos.
– Neste caso, nego o que disse antes, e coloco a questão deste modo: os dois infinitos
coexistem encaixados um no outro.
– Sendo assim, Deus se acha jungido à matéria, sendo tão onipresente como ela no espaço
infinito. Criador e criatura se confundem, e Deus está na Criação, sendo-lhe a Substância prima.
Depois de relutar um tanto, exclamou Hierão:
– Sou forçado a concordar: não há fugir a essa conseqüência... conquanto esteja escrito
que os Espíritos são seres distintos da divindade. “São obras de Deus, exatamente como uma
máquina e o homem que a fabrica. A máquina é obra do homem, não é o próprio homem” (R.
77).
– Se Deus não se confunde com suas obras, estando ambos separados, então, nem Deus
nem a matéria são infinitos, porque, aquele que for infinito abarcará o outro. Se Deus for infinito,
e a matéria, não, Deus abrangerá a matéria, visto que esta não poderá estar fora dele, porque fora
implica limite, e o que tem limite não é infinito. Se a matéria for infinita, e não, Deus, a matéria
abarcará Deus. Para que possam estar separados, preciso é que nenhum seja infinito, como
ocorre, exatamente, com o homem em relação à máquina que ele fabricou. Como ambos são
finitos, podem estar apartados sem se confundirem. Mas Deus é infinito; abarca toda a Criação,
confundindo-se com ela. E se a Criação também for infinita (espaço objetivo infinito) não haverá
Deus além nem fora dela, porque um infinito não poderá sobrepujar a outro. Todavia, se Deus
for infinito, mas a Criação limitada, como entendo que é, então Deus abarca a Criação
coexistindo com ela como imanência, e ao mesmo tempo existe ou é fora e acima da Criação
num aspecto a que se dá o nome de transcendência.
E após ponderosos pensamentos, prosseguiu:
– Eis, meu Hierão, que “O Livro dos Espíritos” é incoerente. Declarando que o Criador
não se confunde com suas criaturas, afirma a transcendência pura que implica no Dualismo
agostiniano. Neste caso a Criação veio do nada via caos. Declarando que o espaço e a matéria
que o enche são infinitos, tal como Deus, junge o Criador às criaturas não havendo Deus fora
delas. Isto é o imanentismo puro, exatamente, que pretende negar. Como afirma estas duas
oposições, assim de forma a que se excluam, fica incoerente.
– Todavia, atalhou Hierão, o fato de Deus coexistir com suas criaturas, seja no todo,
porque ele e ela são infinitos, seja em parte, porque só Deus é infinito, e a natureza, não, isso
não quer dizer que Criador e criaturas se confundam. Os gases atmosféricos estão juntos sem se
ligarem. O azoto, o oxigênio, o gás carbônico, etc., conservam cada um sua identidade,
independência e autonomia, apesar de juntos. Assim, Deus, conquanto lado a lado com suas
193
o é, por que não constou este termo da definição? Mas, convenho em que Deus seja o modelo do
amor; porém, disto se pode tirar a conseqüência necessária de que, por isso, “nunca esteve
inativo”? Deus nunca esteve inativo por ser a suma Inteligência, ou é por ser o supremo Amor?
Se a Inteligência suprema é que é a causa primária ou basilar das coisas, como afirmar agora que
as coisas são produzidas pelo amor que não permite a Deus ficar inativo ? E como pode
satisfazer-se o amor de Deus com a criação da matéria infinita e do caos? O caos não é a negação
extrema de Deus? Não é certo que tudo o que Deus é, o caos não é, pelo que ele se mostra, em
relação a Deus, como contraditória, como oposição polar? Deus é Amor? logo, o caos é egoísmo
que nega e subverte o Amor. Como pode contentar-se o Amor de Deus em criar o seu contrário,
e isto, por um ato de Amor? Como pode Deus semear Amor e colher egoísmo, treva,
desarmonia, fealdade, ódio, desintegração, ignorância, dor, visto que de tudo isto se compõe o
caos? Como é Hierão: no começo tudo era caos? (R. 43). E é por aqui que principiou o Amor de
Deus que não pode permanecer quedo?
Hierão abaixou a cabeça, pensativo, desnorteado pelo bombardeio que lhe movia o
pensador com sua palavra fácil e rápida. Cobrando ânimo, porém, replicou:
– O que nos interessa não é tanto a origem, mas o fim; e o progresso para a felicidade é
um fato iniludível.
– Pois as origens e os fins se confundem, como é normal suceder com todos os ciclos; no
momento em que termina um ciclo para iniciar outro, ninguém poderá divisar quando é um, e
quando, outro, no átimo da coincidência. As vinte e quatro horas de um dia se sobrepõe à hora
zero do dia seguinte. Caminhar para o fim, pois, é idêntico a ir par o começo de onde o ciclo
partiu. Logo, o caos é o meio de um ciclo que tem seu começo e fim no Mundo Celeste.
Portanto, o caos não é começo, a não ser em relação ao meio ciclo da volta para Deus, que se
completa com o outro meio ciclo, o do afastamento de Deus. E se dissermos que a primeira
origem esteja no caos, o fim último será a volta a ele, como queria Nietzsche com sua doutrina
da eterna recorrência. Se, todavia, a origem primeira esteve em Deus, o fim último será quando
se houver retornado a Deus. A doutrina da Evolução, portanto, se completa com a da Involução e
queda das almas do Mundo Celeste; sem esta, aquela Evolução se torna absurda e blasfema, ou
seja, como diz Schopenhauer, “uma amarga acusação contra o Criador”.
– Nada disso, vociferou Hierão; eu tenho minha religião Espírita que é evolucionista, sem
admitir a falência das almas!
– Pois aí é que está o absurdo! A idéia da Evolução esposada por um religioso, é uma
sem-razão igual à de quem se diz cristão comunista, porque cristianismo e comunismo se
excluem mutuamente.
– Que está dizendo? replicou Hierão. Acaso a Evolução não está comprovada por fatos?
por provas irrefragáveis?
– Sim, está, tornou Árago. Porém, por causa do modo como a Doutrina Espírita se acha
codificada, a verdade da Evolução colide com os atributos da divindade, que a mesma doutrina
dá por certos. Assim, todas as religiões, excetuando o Espiritismo, são contrárias à Evolução,
porque esta lhes solapa a teologia. Então, os religiosos, coerentemente, para não perderem a fé,
negam os fatos da Evolução.
E após uma pausa reflexiva e profunda, prosseguiu o filósofo:
– O primeiro que falou de Evolução foi Anaximandro, discípulo de Tales de Mileto.
Segundo ele, a vida apareceu primeiramente no mar, sob formas muitos simples; e desses
animais marinhos saíram os terrestres, por evolução, e destes, o homem. Esta doutrina encontrou
sua dura réplica em Aristóteles, apesar de ser ele o primeiro a organizar, às expensas de
Alexandre, o primeiro jardim zoológico. Via ele tudo o que a evolução nos pode mostrar em
animais diferenciados reunidos num mesmo lugar. Viu que, na base da escala da vida, quase não
se podia distinguir os seres vivos da matéria bruta. Descobriu, pela observação, que a
inteligência se desenvolveu em correlação com a complexidade da estrutura do sistema nervoso
primeiro, e do cérebro, depois. Fundou a embriologia, com estudar o desenvolvimento de
embriões de pintos, em suas várias fases. Constatou o paralelismo anatômico, ao escrever que as
aves e os répteis são aparentados entre si, e que o macaco, pela sua forma corporal, é
intermediário entre os quadrúpedes e o homem. Todavia, saltando aos olhos de Aristóteles todas
195
estas evidências, negou a evolução, para aceitar a idéia da criação das espécies em planos
paralelos e independentes. Refutou Empédocles que afirmava haver seleção natural dos órgãos e
dos seres melhor adaptados, e também discordou de Anaxágoras cuja doutrina era de que o
homem se tornou inteligente com se utilizar das mãos para pegar, em vez de para locomover-se,
como fazem os quadrúpedes. Ao contrário disto, Aristóteles afirmava que, por ser inteligente, o
homem se utilizava das mãos.
– Ora, meus caros, continuou Árago, Aristóteles era um gênio que tinha essa mole de
fatos debaixo do nariz. Os fatos estavam patentes, mas o gênio grego negava os fatos; por que ?
Porque, se os aceitasse, e admitisse a Evolução, teria, ou de negar Deus, ou de concebê-lo de
forma negativa. Aristóteles procurou conciliar, então, o que via, com a idéia que formara de
Deus. E assim sua metafísica surgiu da sua biologia. Para ele Deus possui dois aspectos, sendo
um a imanência, e outro a transcendência. Usa ele outros termos, como, por exemplo,
“enteléquia”, para designar a faculdade de que cada coisa possui de se organizar segundo sua
maneira própria. Aquela força que modela a matéria na forma é a enteléquia. Deus é a enteléquia
do Universo, assim como a alma é a enteléquia do corpo. Tudo, diz ele, exceto Deus, pode
reduzir-se a “forma” e “matéria”. A forma é o princípio ativo; a matéria, o passivo. “A Divina
Providência coincide perfeitamente para Aristóteles à ação das causas naturais”392. Pois então,
este é o aspecto panenteista de Deus. Ele não é as coisas mesmas, porém, a enteléquia delas, a
força que as modela na forma. Pois claro: sendo Deus a enteléquia do Universo coincide com a
enteléquia das coisas entre as quais se inclui o homem. Então a alma humana, por sua natureza
intelequial, não foi criada por Deus, mas é Deus, coexistindo com ele de toda a eternidade. E não
só a alma como enteléquia do corpo, senão também a enteléquia das coisas, é Deus. Por isso,
para Aristóteles, Deus não criou, mas move o mundo; não o criou, está claro, porque o mundo,
e com ele, o homem, no seu aspecto entelequial, coexiste com Deus de toda a eternidade. Fora
este, porém, há o aspecto transcendental, pelo qual Deus está separado da sua Criação, acima e
fora dela. E como a Criação é Deus na forma entelequial, vale dizer que Deus se acha separado
em si mesmo, divorciado como enteléquia que é, da sua transcendência que também é Deus. Este
aspecto é o “primum mobile im motum”, isto é, motor, mas, imóvel. Como transcendência,
Deus é um ser indivisível, incorpóreo, sem tamanho, imutável, perfeito e eterno. E como pode
Deus estar assim apartado de si em dois aspectos estanques, como se foram dois deuses, duas
substâncias ou duas mônadas independentes, sem interação entre si? O Deus que move o mundo
é a enteléquia; acaso não é este já o “primum mobile im motum”? Que vem a ser este outro
motor não movível, além do motor, já de si imóvel, da enteléquia? Divorciar o aspecto
transcendental do imanentista é criar inidudível incoerência. Um Deus que nada faz, porque
imóvel e impassível, visto que é o “actus purus”, e não o movimento em si; um Deus que não
tem desejos, nem vontade, nem sentimento, nem fins; que é absolutamente perfeito, e por isso
não pode mudar, nem desejar, nem sair da sua imobilidade e inércia; um Deus calmo, sereno,
indiferente, impassível, imóvel, imutável, indivisível, perfeito, apartado da sua Criação e das
coisas com as quais não se contamina, nem se imiscui, é uma coisa em si que não serve para
nada, que ninguém pode saber se existe, nem se não existe, e sobre a qual ninguém pode dizer
coisa nenhuma, quanto mais, sobre ela, fundar uma ética.
E prosseguiu o mestre após limpar o pigarro da garganta:
– Porém, há o aspecto imanente pelo qual Deus está na Criação, sendo-lhe a enteléquia.
Mas a Criação, aqui, é apresentada em planos paralelos superpostos, numa ordem eterna fechada
em si mesma. Por que, para Aristóteles, os seres vivos se escalonam em planos superpostos,
separados, estanques, em vez de ligados em cadeia por continuidade evolutiva ? É porque a idéia
de evolução levaria, inevitavelmente, ao caos das origens primeiras, pois “no começo tudo era
caos”. E como o caos é a negação total de Deus, uma de duas: ou o caos não foi criado por Deus,
ou foi criado por ele, e, neste caso, Deus é polarmente contrário à idéia que dele fazemos. E se o
caos não foi criado por Deus, então, ele resultou da queda das almas do topos uranos. A
evolução é inegável; logo, houve queda, ou não há Deus.
Disse. E após isto, foi à estante buscar um livro para tê-lo à mão. E tendo-o aberto no
lugar marcado, continuou:
392 Will Durant, História da Filosofia, 90
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se fraco. Assim, o temor do forte se liga ao sofrimento do fraco, com que vem a estar a vida
fundada sobre a dor. Como a dor abunda no mundo, segue-se que Deus se compraz na dor de
suas criaturas. É preciso, então, aplacar-lhe as fúrias com sacrifícios dolorosos. Ou fazer isto, ou
Deus tomará por sua conta cevar-se nos míseros mortais. Leão alimentado é leão inofensivo, e tal
e qual com Deus. Façamos-lhe, portanto, sacrifícios... Entretanto, Deus, também, é astuto; por
isso não o podemos enganar no negócio, fazendo-lhes sacrifícios dos que nos são indesejáveis.
Há de ele querer as primícias, pois esta é a parte que cabe ao leão. E como o sacrifício e a morte
do fraco é em beneficio do forte, Deus ficará zangado se jogarmos fora as hóstias do sacrifício;
cumpre-nos, portanto, comê-las em ritual agradável a Deus. E ainda mais: alimento forte e sadio
produz força; ora, sendo as hóstias o melhor que há, delas sobrevirão as qualidades para os
comungantes. Deste modo as hóstias humanas sempre foram para atender a banquetes
antropofágicos. Todos os crânios da caverna de Altamira têm seus occipitais quebrados, de modo
a se poder tirar por ali o cérebro. Comiam-se miolos humanos, e também as carnes das vítimas
sacrificadas, para se incorporarem as qualidades do morto. Cristo teria dito, na seqüência desta
tradição: aquele que me não comer a carne, e me não beber o sangue, não terá vida eterna (João
6, 53 e 54). A ingestão, por conseguinte, do pão e do vinho consagrados, não passa dum
canibalismo simbólico idealizado. O canibalismo é caráter tipicamente do humano, e serviu para
identificar o pré-homem. Visto que nenhum macaco mata, assa e devora o seu semelhante, o que
faz isto não pode ser macaco, senão, pré-homem. E por meio deste caráter típico descobriu-se na
África e na Ásia, não um, mas séries inteiras do elo que liga o homem aos macacos. O tão
decantado elo que faltava, está achado. O homem procedeu dos seres inferiores, por evolução.
E ponderando um pouco, em silêncio, continuou:
– Aristóteles, com ser um gênio, enxergou claro tudo isto, e por isso recusou-se a tomar
por este caminho, o da Evolução, que se lhe antolhava a cada passo. Também não quiseram
meter-se por ele, nem Lineu, nem Cuvier. E os que se puseram a andar nesta estrada, foram, dar
consigo no materialismo mais arrematado, que consiste na negação de Deus e do espírito. Ora,
sendo o Espiritismo evolucionista, tinha, necessariamente, de chegar a este resultado. No entanto
fala-nos ele da moral de Cristo, em vez da de Nietzsche; fala-nos de Deus como de amor e
bondade, ao invés de no-lo apresentar como um Moloch Amonita odiento e cruel. Pela indução
das verdades evolucionistas, chega à moral nietzscheana, e, por extensão, à teologia amonita de
Moloch. Pela dedução, partindo dos atributos da divindade, aceitas, a priori, chega-se à moral de
Cristo que se opõe à de Nietzsche polarmente, do mesmo modo como é, Moloch, o contrário do
Deus Pai cristão. E como o Espiritismo aceita e dá por certas estas duas contradições, que
mutuamente se excluem, sem fazer a necessária síntese, fica incoerente.
– Por outro caminho, o filosófico, também se pode chegar a este mesmo resultado
materialista, prosseguiu o pensador. Aristóteles chama enteléquia (do grego: força essencial)
que sub-jaz na matéria, como capacidade sua de transformação. Qualquer coisa é a explicitação
da enteléquia da coisa. A alma é a enteléquia do corpo, do mesmo modo que Deus, no seu
aspecto imanente, é a enteléquia do Universo. Deus imanente é ele no seu aspecto entelequial.
Há ainda, para Aristóteles, o aspecto transcendental da divindade, pelo qual Deus se acha
apartado da sua Criação, não se imiscuindo, nem se contaminando com as coisas. Neste aspecto
transcendental, Deus se mantém nas alturas como Razão pura “Actus purus” pensando
pensamentos, isto é, não pensando coisas, mas pensamentos puros. Todavia, sendo Deus a
enteléquia do Universo, neste aspecto ele se confunde com as causas naturais. Deus é a
enteléquia do Universo; ora, o Universo se compõe de coisas; logo, Deus é a enteléquia das
coisas, inclusive do homem. A alma, já ficou dito, é a enteléquia do corpo; por conseguinte, a
alma humana, em sua expressão entelequial, é porção de Deus. Posto isto, vamos pôr outra coisa,
para depois concluir das duas:
– A filosofia realista iniciada por Parmênides, teve o seu termo no fim da Idade Média,
quando se pôde achar os grandes erros científicos de Aristóteles. Assumindo posição antípoda à
do pensamento grego, teve início o período idealista com Descartes. Partindo de idéias muito
simples, muito claras, das verdades de razão da geometria, Descartes geometrizou o mundo,
criando, depois, a geometria analítica que reduz a geometria à algebra, tornando possível operar,
algebricamente, com as figuras geométricas. O mundo cartesiano tornou-se, por isso, artificial,
198
ideal, forçado, irreal, cheio de gráficos e máquinas registradoras, medidores de tudo, abrindo
caminho para a máquina de calcular, computadores e robôs. E a vida? como colocou Descartes
os problemas da vida? Pois colocou-os, muito simplesmente, em termos geométricos e
mecânicos. Os animais são máquinas, disse ele. Mas o evolucionismo de Montaigne e Gassendi
demonstrou que o homem é um animal. Logo, o homem é u’a máquina concluiu Julien Offray de
La Mettrie (À Procura de Adão, 53).
– Observando a linha dos filósofos da natureza, continuou o mestre, que diz ser Deus
imanente no universo, porém, reagindo contra a doutrina cartesiana dos animais máquinas,
Baruch Espinosa afirmou que o espírito e a matéria procedem de uma só substância – Deus. “O
Deus dele não atuava sobre as coisas, e sim nas coisas, identificava com aquilo que os homens
chamavam natureza. Pensamento inaudito, angustioso e inebriante ao mesmo tempo. No
mundo da suprema unidade de Espinosa não havia bem nem mal, anjo nem demônio. Sua Ética
desembaraçou inteiramente da camisa-de-força de todo o ensino doutrinário professoral. Tudo o
que acontece era natural e pertencia à essência de Deus”396.
Fechando ambos livros, ficou o mestre por certo tempo de olhar perdido no vazio.
Tornando, porém, a si, concluiu:
– Quer dizer que a lei da seleção das espécies, da luta, da vitória do mais apto, do mais
astuto, do mais forte, é natural, ou seja, da essência mesma de Deus. O cordeiro, com ser fraco e
indefeso, é pasto do lobo voraz, assim como a rola serve de comida ao gavião. Que as moscas
vão parar nos palpos das aranhas, e estas, nos ferrões dos marimbondos, tudo é lei natural, e,
portanto, divina. Esta mesma lei divina, no campo econômico deu a ciência que se chama
Economia, a qual tem por objeto estudar as riquezas as quais não se dissociam do egoísmo
individual e do de classe. E tudo é natural, ou seja, da essência de Deus. Não há coisa nenhuma
que o homem possa fazer, com exemplo na natureza, que seja anti-natural. E tudo aquilo que a
natureza não dá exemplo, é anti-natural. Ora, a bondade, a tolerância, o perdão, a piedade para
com o fraco, a monogamia para o homem, tudo é anti-natural. O natural é a guerra, a luta, a
seleção pela força, e a mentira, o engano, o ludíbrio, a falsidade, visto que tudo isto é astúcia.
Deus está na natureza, e tudo o que acontece nela é por vontade de Deus... Por isso é que Pascal
dizia: “Todo o natural é sem Deus; para mim a Filosofia Natural não vale uma hora de
esforço”397.
E arrematou, após pensar um pouco:
– Por aqui se vê que a visão do universo, dada pela ciência, seja da mecano-geometria
cartesiana, seja da evolução, seja da filosofia da natureza, não pode produzir uma teologia e uma
ética que não sejam as de Moloch Amonita. Por causa destas conclusões que tiro do panenteismo
espinosista, "as mesmas pessoas que tinham verificado que sob o escalpelo desapareciam as
diferenças entre o animal e o homem, ficaram cheias de horror quando um pensador tirou as
conseqüências desse fato”398. A guerra contra Espinosa foi encarniçada, tendo sido ele forçado a
renunciar sua herança, e para a subsistência própria, teve de fazer-se polidor de lentes. Sua
família o renegou, e a sinagoga judaica o excomungou com todos os ritos do cerimonial judaico.
Um fanático até o quis assassinar. “O próprio Leibniz, que tinha muita afinidade espiritual com
ele e uma vez chegou a procurá-lo em Amsterdã, não sabia o que pensar dele. Um mundo sem
bem nem mal, sem rígidas leis morais e sólidas noções de ordem, sem fim nem utilidade, em que
o criador e criatura eram um e no qual o homem, no fundo, não significava mais do que um
microrganismo, era inconcebível, mesmo para os espíritos tolerantes”399. Muitos pensadores se
tinham ocupado com essa hipótese de um Deus-Natureza, incluindo-se entre eles o próprio Kant
que considerava isso “uma arrojada aventura da razão”. Todos recuavam assustados com as
conseqüências que disso podiam advir. Não obstante, Espinosa, porque empreendeu essa
aventura, foi espezinhado por todos. “E ainda depois do seu fim prematuro foi tratado (segundo
as palavras de Lessing) como um cão morto”400.
dores alheias, conquanto possa haver dor eterna nos planos inferiores, eles não sofrem, e antes,
ficam gozando da sua contemplação metafísica, da sua contemplação intelectual. Daqui tiramos
os corolários, prosseguiu o mestre:
– Se fora da inteligência não há salvação, os eleitos não amam, porque o amor ou
caridade implicaria em sofrimento pelas dores alheias; como esta dor é eterna, por Deus criar, de
contínuo, Espíritos simples e ignorantes, se houvesse amor, os eleitos sofreriam no céu, donde
vem que a dor tanto estaria embaixo, como em cima. Para que a dor eterna possa estar só
embaixo, e não, em cima, os eleitos não podem ter compaixão nem amor. E se houver algum
eleito ou salvo que ame, esse sofre; e se sofre não está isento da dor, embora possa estar num céu
infernal. O amor, por conseguinte, conduz ao inferno, e inferna o ser que ama, na dor e no caos.
Pois claro: ardendo-se de compaixão pelo próximo, dá tudo o que tem, e se torna pobre.
Despojando-se, cada vez mais, em favor dos outros, vai cada vez mais indo para o aniquilamento
de si mesmo, até chegar ao caos do não-ser. Por isso o amor é negativo, visto que destrói, e sua
recíproca, o egoísmo, positivo, uma vez que constrói. Pelo egoísmo o ser toma tudo o que pode
aos outros, com o que se enriquece, tornando-se mais rico, mais ser. Pela supremacia da
inteligência, vence e subjuga o fraco e ínscio, fazendo-o trabalhar para os seus fins. E de vitória
em vitória destas, o ser vai alargando o seu poder, tornando-se ainda cada vez mais inteligente,
até que se acerca de Deus que é o sumo Potentado da inteligência. Como é a inteligência e o
egoísmo que conduzem ao ser, e a compaixão e o amor, ao aniquilamento e ao não-ser, segue-se
que os eleitos representam o mais alto grau de inteligência e de egoísmo, resumindo a felicidade
deles na pura contemplação metafísica da Verdade que é a Inteligência, o Egoísmo e o Poder por
excelência. É assim que Deus é Impassível, e por isso não sofre, e seus eleitos, a exemplo seu,
são os que chegaram à impassibilidade, pela anulação do amor negativo, trocando-o pelo seu
impulso contrário e positivo, o egoísmo. Esta é a causa por que a natureza, criada por Deus, se
mostra egoísta e desapiedada para com o fraco. A astúcia que aparece como mentira, engano,
camuflagem, ludíbrio, constitui o começo da inteligência. Esta culmina no homem que é rapace
no mais alto grau terreno, e por isto, mata, devora, escravisa os animais todos, e também os
vegetais, construindo seus variadíssimos ramos do que ele chama, sem nenhuma vergonha,
exploração industrial. Ser inteligente, astuto e forte é o princípio que rege a natureza toda desde
o caos, e o homem já está prestes a criar seu paraíso terrenal, e isto, somente, devido a ter-se ele
tornado o rei da Criação. E quanto mais se sobe, mais este princípio se evidencia, até que,
chegando ao céu, ter-se-á chegado a Deus que é “a suprema inteligência, causa primária de”
toda essa Grande Indústria do Universo, que Ele, e só Ele, explora em seu único proveito
egoístico. Deste modo, o Universo é a Grande Fábrica de Deus, e ele o Industrial por excelência,
que explora tudo; e o bem que nos faz é semelhante àquele que fazemos ao porco, ao boi e às
plantas. Está tudo bem deduzido Hierão ?
– Está.
– Vamos, então, ao outro enunciado: Fora da caridade não há salvação. E sendo caridade
idêntico a amor, segue-se que só através do amor é possível a salvação. E que é salvação,
Orsoni?
– Pois salvação é estar isento da dor, já o disse.
– Não pode ser só isso, meu nego, porque os sentimentos têm polaridade. A isenção da
dor é apenas um estado neutralista de não sofrer nem gozar. Todavia, sendo o amor um
sentimento, se não está transvestido da sua forma negativa, que é a dor, há que estar no seu
positivo que é a alegria. Logo, salvação tem que ser mais do que mera isenção da dor; é um
estado perene de alegria. Concorda?
– Sim, pois claro! essa é a verdade!
– Por conseguinte, salvação é estar isento da dor, num estado de constante felicidade. E
se dissermos, por outro modo, que salvação é estarmos juntos de Deus, permanecer junto dele é o
mesmo que não sofrer, e manter-se em estado de felicidade. E é só pelo cultivo e
desenvolvimento do amor que se chega a esse estado de alegria e de felicidade. Isto posto, temos
a conseqüência de que quanto mais amarmos ao nosso próximo, mais nos acercaremos de Deus,
e, pela recíproca, quanto menos formos amorosos, mais estaremos afastados dele. O amor é
altruísmo que se abre e dá de si; pela contraditória, o egoísmo é o impulso contrário que se fecha,
201
e toma dos outros para si. Podemos, então, concluir, que a salvação coexiste com o amor e com a
alegria, no passo em que a perdição está implicada com o egoísmo e com o sofrimento. Se
quanto mais se ama, mais se acerca de Deus, e, pela adversativa, quanto mais se desama e se é
egoísta, mais se afasta dele, no rumo da perdição e do caos, podemos concluir: Deus é o Amor
excelso. Por isso que a aproximação ou afastamento dele, se mede pelo amor. Pondo isto,
também, na escala de valores algébricos, Deus será o Ser por excelência ou o Amor pleno e
infinito. No outro extremo da escala, no menos infinito, estará o caos como suprema negação do
amor, do que resulta a desintegração e desfazimento do ser no não-ser. O Ser é o Amor; a
ausência total do amor é o não-ser, em grau extremo ou caos. Por isso, Deus é amor (I Jo 4, 8),
e, no extremo oposto, o egoísmo é o Diabo. Se, pois, fora da caridade não há salvação, Deus é o
Amor supremo, causa primária de todas as coisas. O amor é o princípio de integração que une e
faz o ser; pelo contrário, o egoísmo é o princípio de desintegração que desfaz o ser no não-ser.
Como vêem, da premissa de que fora da caridade ou amor não há salvação induzi, muito por
miúdo, o princípio de que Deus é o Amor supremo, causa primária de todas as coisas. Esta é que
deve ser a intuição de Deus, por extensão daquela premissa de São Paulo, inserta n“O Evangelho
Segundo o Espiritismo”.
E depois de um interregno, concluiu o filósofo:
– Agora, podemos ver os corolários disto. O Espírito, no céu, junto de Deus, não sofre. E
sendo o amor a capacidade de sofrer com as dores alheias, enquanto houver um só que seja,
gemido de dor no Universo, não pode haver um eleito completamente feliz. Portanto, a dor no
Universo, terá que ter fim, para que o gozo dos salvos seja só alegria, sem mesclas de dor. E para
que a dor do Universo tenha termo, é necessário que a Evolução seja finita, porque Evolução se
define como sendo a anulação progressiva do caos pela integração, e enquanto houver caos, há
sofrimento. A última integração é feita pelo amor, e depois desta, não há mais o que integrar,
visto ter tudo chegado a Deus, cessando a Evolução e seu correlativo caos. Para que a felicidade
e o gozo dos eleitos seja puro, a dor e a Evolução serão finitas, não sendo possível, por
conseguinte, haja criação ininterrupta de Espíritos simples e ignorantes, a partir do caos mais
extremo. Para que fora da caridade não haja salvação, duas coisas se impõem, necessariamente:
primeiro, que a criação de Espíritos simples e ignorantes não seja contínua por toda a eternidade;
segundo, que a Evolução seja finita.
E após respirar fundo, numa pausa, concluiu a olhar para Hierão:
– Não é como eu disse, que esses dois enunciados do Espiritismo se excluem? E como
ambos são apresentados sem a síntese, tornam-se iniludivelmente, incoerentes. Se o Espiritismo
ensina que o Espírito foi criado em estado de simplicidade e ignorância, a antropopaleontologia
nos prova que ele, antes de ser simples e ignorante, subiu a escala evolutiva procedente do caos.
A conclusão inexorável é que o homem, em primeira instância, saiu do caos. Ora, todas as dores
e aflições do mundo provêm desta origem caótica do Universo. Mas isto não é tudo, porquanto o
absurdo e incoerência mais se ampliam, com afirmar a Doutrina Espírita que Deus cria de
contínuo, sem que nunca o possamos imaginar inativo (R. 80). Este ensinamento levou o grande
mestre espírita Dr. Fáeton a afirmar que o mal e a dor são eternos; “não podem ser eternos para
os mesmos indivíduos ou para as mesmas criações, mas são contingências naturais, forçadas, que
eternamente se repetem para todos os seres, quando evolucionam nos graus inferiores da escala
da vida universal”. Este Deus não é, então, nem de amor, nem de justiça, antes, sádico, como, há
dias, o disse Bruco, para tal desejar e executar. E os seres evoluídos ficam insensíveis, como é
Deus, às dores medonhas pelas quais estão passando os irmãos nos planos inferiores? E se os
anjos forem sensíveis, hão de sofrer a dor dos debaixo, por empatia e solidariedade, dando-nos a
conclusão iniludível de que a dor tanto sangra embaixo, como zurze em cima. Seria que os
Espíritos que atingiram o plano da angelitude se esquecem dos irmãos que ficam a sofrer
embaixo? Que significação teria, então, a descida de Cristo ao nosso charco, para ser sacrificado,
depois que desceu ainda mais, a pregar aos espíritos em prisões subcrostais (cavernas), que ali se
encontravam desde os dias de Noé? (I Pedro, 3, l9). Não se envergonhará, então, da sua
indiferença egoísta, para com os infelizes do vale escuro, o luminoso espírito Albano Metelo,
conforme no-lo relata André Luiz? (Obreiros da Vida Eterna, l5 e l6 - 2.ª Ed. F.E.B.). Teria
falseado à verdade Emmanoel, ao afirmar que sua estrela esplendorosa Alcione (Livia do “Há
202
Dois Mil Anos), atendendo a seu pedido (Renúncia, l9), reencarnou-se, para auxiliá-lo na pessoa
física de Carlos, vindo ela a morrer-lhe nas mãos, encarcerada numa das masmorras do Santo
Ofício, por seu (dele) desleixo criminoso, visto como ele era adjunto (Renúncia, 450) do
Inquisidor Mor, em Madrid? Mentiria André Luiz ao afirmar que sua mãe iria trocar seu asilo de
luzes pelas trevas do mundo, em que faria reencarnação sacrificial, a fim de salvar Laert e as
pobres meretrizes a ele imantadas, em virtude das muitas promessas que ele lhes fizera, e que
agora as havia de cumprir, tendo-as por filhas? (Nosso Lar, 226 a 228 - 3.ª Ed. F.E.B.). Quando
é, então, que cessam as dores para nosso espírito eterno, se quando já não as temos, próprias,
abraçamos, por nossas, as dores alheias? Será que enquanto houver um só gemido de dor que
seja, no Universo, algum serafim poderá ser completamente feliz?.
E depois de o mestre considerar em silêncio, acrescentou:
– Mas convenhamos em que, como quer Aristóteles, Deus seja impassível; logo, não é
amor, porque muito sofre quem ama. Deus é, então, impassível, para não ser amor, e quanto mais
se sobe na escala da angelitude, tanto mais se vai assemelhando a Deus na impassibilidade.
Porém, que é, então, da caridade ou amor, em que se fundamenta o Espiritismo, fora da qual, diz,
não há salvação? Seria que fora da caridade não há salvação, e dentro da salvação não há
caridade? Seria o anjo aquele que realizou o ideal da filosofia, exceto da de Platão, que consiste
na impassibilidade pelo desprendimento da vida? A ser verdade isto, quanto mais se sobe na
escala espiritual, tanto mais se entrega o Espírito à contemplação metafísica, ao abandono de si
mesmo e isolamento egoísta, para estar mais acercado de Deus, o Impassível.
Disse. E enfrascando-se, após, em profundos pensamentos, assim quedou por certo
tempo, depois do que, concluiu:
– Tal, meus amigos, a premissa maior a que somos levados pela indução lógica, se
partirmos do enunciado espírita da eternidade do mal e da dor, em virtude da criação ininterrupta
de Espíritos inocentes que, apesar disto, são flagelados em todos os passos da evolução. E esta
situação ainda mais se agrava, com admitirmos que a dor só existe embaixo, nos planos
inferiores, e não, em cima, no céu, porque isto nos faz pensar num céu de egoístas e de
indiferentes. Eis aqui céu e inferno eternos, a cindir o todo num sistema dual, em que bem e mal
são normais, ou seja, naturais, ou ainda, características essenciais da divindade, como queria
Baruch Espinosa, no passado, e como quer o grande mestre espírita Dr. Fáeton, no presente. Um
Universo fundado no mal e na dor (caos) eternos, pressupõe a ditadura de um Deus bárbaro,
cruel, sanguinário, sádico (e tremam-se os espíritas que isto aceitam!), pior do que o Jeová-tribal,
o Deus terrível, ciumento, vingativo e gostador do cheiro de assados, segundo a concepção dos
antigos hebreus, porque este Deus ao menos era mais humano e sensível, visto que parcial,
pendendo sempre para o seu povo eleito. Presumo que estas conclusões já tenham constituído
uma tortura íntima para todos os que puderam enxergar esta contradição n“O Livro dos
Espíritos”, todavia, se silenciaram, para não dividir, chegou o tempo, e agora é, de se bradar esta
verdade mais completa, para que se faça obrigatória a renovação mental de todos. A blasfêmia
embora não intencional, implícita na teologia espírita ir-se-á cada vez mais evidenciando, virá à
tona, através de discussões, de luta, será cada vez mais posta ao nu, saltará à vista, de modo que
nenhum espírita consciente terá paz interior, se tentar admití-la diante de Deus. Contudo, se a
teimosia (misoneísmo) dos espíritas lhes tapar os ouvidos, para não ouvirem, e os olhos, para
não enxergarem, a blasfêmia continuará, como um anacronismo, a exigir das novas gerações
(odres novos) a recolocação do Espiritismo nos seus verdadeiros fundamentos que são
progressivos e dinâmicos, e não, como agora querem, definitivos e estáticos. Ninguém será
capaz, jamais, nunca, de desfazer, ou contornar, ou iludir o inexorável desta conclusão: se a
Evolução é um fato, ou se admite a queda, ou não há Deus. Não importa, todavia, que esta
proposição seja irrefragável. As abelhas, conquanto saibam ser impossível prostrar por terra o
homem, hão de molestá-lo sempre, com picar-lhe a pele...
E indo o pensador à estante, pegou dela um livro; e tendo-o aberto num ponto marcado,
leu para todos:
– “Em todos os tempos e em todos os lugares, os homens são os mesmos. O fato dum
homem se ocupar com a ciência não lhe altera a natureza humana. De cem homens, noventa e
cinco repelem a priori as novas verdades; e, com particular obstinação os que apresentam
203
“verdades” profissionalmente, porque ninguém admite de bom grado que se converta em erro o
que ensinou, durante três decênios, como exato. Depois dos quarenta, ninguém gosta de reformar
os seus conhecimentos, porque os velhos erros são mais cômodos do que as novas verdades; é o
que se dá com os sapatos usados que recalcitramos em trocar por novos. Em conseqüência, toda
verdade, segundo Schopenhauer, não passa de celebração efêmera duma vitória, entre os dois
longos períodos em que ela foi condenada como paradoxo e será menosprezada como
trivialidade. A história das teorias novas repete-se, estereotipada. Os sábios de l.600 insistiram
obstinadamente em que o Sol gira em torno da Terra, apelaram afinal para o papa. A nova
geração, tão esforçada em defender a doutrina de Copérnico, envelhecendo não foi melhor, já
que se insurgiu contra a nova teoria da circulação do sangue; a luta geral contra os “circulatores”
foi imortalizada drasticamente por Molière. Também não foram mais clarividentes os filhos dos
“circulatores”, combatendo a idéia de serem os fósseis animais petrificados. E, por seu turno, os
da geração seguinte amargaram de tal maneira a vida ao infeliz médico Roberto Mayer que se
atrevera a inventar uma lei física: o princípio da conservação da energia – que o pobre homem
acabou num hospital de alienados. Nem teve melhor sorte o seu contemporâneo Semmelweis,
pregando o asseio no quarto das parturientes; nem Pasteur, mais tarde, ao divulgar a sua tese da
infecção. Virchow foi um dos homens mais progressistas do seu tempo, uma verdadeira glória da
ciência e da política; entretanto defendia obstinadamente o disparate, evidentemente improvável,
de ser o crânio do homem de Neandertal o dum indivíduo que sofrera de raquitismo na infância
e, na velhice, levara uma pancada na cabeça. Não podia haver – sustentava ele – um homem
primitivo. Contra a teoria da relatividade, os físicos de 1920 fundaram uma “Associação para a
defesa da ciência germânica”; e os psicólogos, cujos filhos se tornaram analistas, realizaram um
congresso “contra a psicanálise”. Assim foi, e assim é, e assim será amanhã; porque não se trata,
no caso, de justo ou de injusto, de inteligência ou de estupidez, mas dum fenômeno psicológico
de raízes profundas, que devemos admitir e que sempre se repetirá, como os bebês sempre hão
de chupar o polegar”402.
E trocando o pensador “O Livro da Natureza” pelo “Evangelho”, prosseguiu:
– Desesperado com este fatalismo psico-histórico, brada Cristo aos do seu tempo: “Ai de
vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que edificais os sepulcros dos profetas e adornais os
monumentos dos justos, e dizeis: Se existíssemos no tempo de nossos pais, nunca nos
associaríamos com eles para derramar o sangue dos profetas. Assim, vós mesmos testificais que
sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós pois a medida de vossos pais” (Mat 23, 27 a
32). E noutro lugar: “Jerusalem, Jerusalem, que matas os profetas, e apedrejas os que te são
enviados! quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos
debaixo das asas, e tu não quiseste!” (Mat 23, 37).
– Mas os Espíritas não farão nada contra o senhor, pode estar tranqüilo, comentou Hierão.
Eles são diferentes... por estarem animados do ideal cristão.
– Farão sim senhor! retrucou o filósofo; porque o fenômeno é psicológico e histórico. E
um fenômeno, invariavelmente, se repete, dadas as mesmas causas, e sob as mesmas
circunstâncias. E a primeira coisa que já me fizeram, foi darem-me com as portas na cara,
impedindo-me de escrever nos seus jornais e revistas espíritas. Para que meus escritos possam
sair à luz por tais veículos, precisariam trazer, como diz aí, o Bruco, o “Imprimatur” espírita que
declara: “ejusaen farinae”, que quer dizer: da mesma farinha.
– E o senhor já se preveniu contra o que possa vir?
– Já! Faz já bem tempo que me recuso a ler os dislates contra mim escritos. Há pacotes
de revistas que jamais abri, e tais como vieram do correio, jazem, empoeirados, numa prateleira
de refugos. Assentei comigo mesmo que não tomo conhecimento dos desabafos temperamentais,
das tempestades emocionais, dos chistes e dos sarcasmos daqueles que falam muito, mas não
dizem nada. Desprezo, sem nenhuma consideração, quaisquer furores, sejam eles poéticos, sejam
proféticos; move-me a riso as exacerbações nervosas, os acervos de palavras ocas, ainda que
tempestuosas e prenhes de raios. O que exijo dos que me enfrentam, são pensamentos lógicos,
precisos, exatos, claros, frios, cortantes, aplacadores. Os amontoados vocabulares são sempre
para encobrir a vacuidade dos conceitos, e é por isso que tanto mais se grita e vocifera, quanto
402 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, II, l93-l94
204
mais os argumentos são fracos. O que interessa é a verdade, e só a verdade, a qual, embora seja
única e imutável no eterno, para nós relativos, é progressiva: assim a verdade menor, mais
superficial, deve ceder o lugar à maior, mais completa e profunda, posto possa ainda não ser
total. E como a verdade vem do alto por inspiração, cada vez mais completa, para os que a
podem suportar, temos que ela não é de ninguém, como o não são a água e o ar. Se bem no
Espiritismo não possa haver excomunhões, eu já estou excomungado; não sendo ele obra
humana, ninguém há na Terra investido de autoridade para excomungar; contudo, como é
comum acontecer, os homens tomaram de assalto a obra divina, excomungando-me com a
sentença: esse não é espírita! Dar-se-á, então, em virtude de a história repetir-se, que nós, os
excomungados, como fez Cristo, como fez Lutero, reunir-nos-emos numa nova comunidade,
conservando, com outro nome, o que de substancial, de verdadeiro e de divino se contiver no
Espiritismo. “Eis que faço novas todas as coisas” (Apc 21, 5), diz Deus na inspiração de João
Evangelista. É por este modo que as coisas novas saem das velhas, e a verdade avança.
– Diante do exposto, prosseguiu o filósofo, fica evidente a inutilidade de se procurar os
congressos espíritas para se discutir as reformas de base do Espiritismo. É completamente inútil
pedir aos congressistas espíritas aceitem e incorporem tais ou quais obras à doutrina; pois claro:
eles representam a velha guarda, e por isso hão de estar vigilantes, e serão os primeiros a se
insurgir contra as inovações. Nem é preciso esperar venham mais revelações da parte dos
espíritos, visto como as premissas foram já lançadas, há mais de cem anos. Por este motivo as
reformas hão de sair das próprias premissas pelo uso da reflexão, da lógica, da dialética e da
crítica que disciplinam a inteligência, mostrando qual a atitude a tomar e quais os processos a
empregar na descoberta da verdade. Feito isto, a reforma se impõe a todos os que pensam, com
ou apesar dos congressos.
E após refletir um pouco, continuou:
– A Evolução é um fato; logo, ou ocorreu a queda, ou não há Deus. Desde que a Evolução
se positivou como verdade de fato, este raciocínio se impõe como uma gravação a ferro em
brasa. Se Aristóteles, Lineu, Cuvier, Kant e outros admitissem a Evolução, teriam de colocar
este problema: visto que há Evolução, para que haja Deus, então, preciso é ter havido a queda.
Ora aqui está o ponto: o Espiritismo declara haver Evolução, afirma Deus, mas nega tenha
havido a queda das almas do lugar celeste como o enxergara Platão e como está na base de todas
as grandes religiões e dos mitos. Por esta causa, desde agora, o Espiritismo estará em xeque-
mate; quanto à sua filosofia. O gênio de Aristóteles previu que, havendo Evolução, ou não há
Deus, ou ele será negativo. Platão, porém com olhos de águia ou de lince, enxergou que as
almas caíram, donde vem que, conquanto haja a Evolução delas, ou a volta delas para o topos
uranos, há Deus. E por hoje basta.
205
SERÕES FILOSÓFICOS
Capítulo I
206
No dia imediato ao em que Árago abordara o problema dos turbilhões eletrônicos, logo
pela manhã, ele se pôs a trabalhar nuns desenhos, para objetivar os estudos que se dispunha
desenvolver, à noite. E munindo-se dumas folhas de cartolina, foi grafando nelas o seu
pensamento. Depois, coloriu as partes do desenho para destacá-las. Prendeu uns sarrafos de
madeira em cima e embaixo de cada folha, para pendurá-las à parede por um barbante.
Descida a noite, todos os estudiosos se reuniram na sala da biblioteca, e tomando o
pensador o seu lugar, deu início aos estudos ao dizer:
– Descartes, como já temos visto, deu novo rumo ao pensamento filosófico iniciado pelos
gregos. Partindo do seu “cogito”, achou que o meio de não se enganar consiste em ocupar-se de
idéias muito simples e muito claras das verdades de razão. E assim procedendo geometrizou o
mundo no que pôde, e no que não pôde, reduziu-o às verdades físico-matemáticas. Descobriu o
modo de fazerem trabalhar juntas geometria e álgebra, e com isto deu ao mundo a geometria
analítica. Prosseguindo nesta mesma linha, Leibniz, mais tarde, descobre o cálculo diferencial e
integral. O primitivo pensamento de Descartes era o de simplificar o mundo para entendê-lo; no
entanto, o mundo se acha hoje complicado por fórmulas, por gráficos, por instrumentos, de modo
que ele se nos apresenta como um outro mundo, completamente artificial e apartado da natureza.
Só se fala em termos de matemática; contudo, Bertrand Russell que era matemático antes de
ser filósofo, acabou por concluir que a matemática não sabe do que fala, nem se o que fala é
verdadeiro. Por isso mesmo expressa esta opinião: “Não podemos abordar todos os nossos
problemas filosóficos mediante o método objetivo, mas vale a pena seguí-lo até o ponto em que
ele nos leve”403.
E depois de refletir um pouco prosseguiu:
– O idealismo está por toda parte e nos aturde pelo modo subjetivo e artificial de tratar as
coisas. A matemática divorciou-se da vida prática, a física tornou-se num amontoado de
fórmulas, de modo que se sai das escolas, assim, meio que nem um robô que sabe tudo, mas não
pensa nada. Não se pode manter duas palavras com um técnico moderno, sem que ele nos faça
logo umas fórmulas, e depois conclua: “eis a essência do fenômeno!”. Ou então, como declara
José Ortega Y Gasset: um físico-matemático, apontando para uma fórmula, nos afirma: eis, aí
está, o universo! O que está faltando no mundo, Bruco?
– Está faltando o pensamento representativo, a imagética.
– É isso mesmo: falta a representação das coisas, e nossa mente esta afeita a trabalhar por
meio de representações, e não, por meio de abstrações puras totalmente destituídas de imagens. E
é por isso que as matemáticas e a física se transformaram em instrumentos de tortura para os
adolescentes. A tendência idealista fez do estudo da língua puro estudo de gramática em que o
gramatiquismo substitui a arte prática do escritor. A própria linguagem diária está pejada de
termos idealistas, subjetivos, e por isso falamos de coisas próximas e concretas, como se elas
fossem vagas, ideais e distantes. Certa vez José Ortega Y Gasset foi repreendido por u’a moça
que lhe disse: exijo que o senhor me trate como um ser humano! Então, respondeu-lhe ele: a
senhorita, de certo vem de alguma escola idealista para me pedir isso; eu sempre me encontro
com homens e com mulheres concretos, reais, e, nunca, com seres humanos gerais, abstratos,
distantes. É por esta causa que Bertrand Russell considera Kant uma desgraça. Foi, de fato, uma
desgraça ter o idealismo subjetivado o mundo concreto e real que nos cerca. É, pois, necessário e
urgente reagir contra essa pura idealidade artificial que nos fala das coisas individuais pelos seu
conceitos, em vez de pelas suas imagens reais. Deste modo, nosso estudo de hoje será feito,
tanto quanto possível, por imagens representativas da realidade, e não, por seus conceitos
abstratos, ideais, completamente carentes de realidade objetiva. Faremos um esforço para
imaginar e representar as coisas o mais possível. E tudo o que eu disser, dou-o como hipótese de
trabalho. As hipóteses são tão necessárias como os andaimes, sem os quais o edifício não pode
ser construído; mas os andaimes não são o edifício, e por isso são retirados quando
desnecessários. Está bom assim, Bruco?
– Está.
– Então vamos começar por um fato que todos vocês já tiveram a oportunidade de
observar, que é o redemoinho aéreo. Um pé-de-vento vindo do mar, dá numa montanha,
voltando-se sobre si mesmo. O resultado é o encontro de ventos, com a conseqüente formação de
um remoinho aéreo. Antes não havia nada ali no sopé da montanha; já, agora, vemos formar-se
uma individuação do meio. Esse indivíduo vorticoso resulta do encontro de ventos (ou de
forças), e neles, se equilibram as forças centrípeta e centrífuga. A poeira aspirada pelo vórtice, é
que lhe dá visibilidade, forma um cilindro na sua parte mais rígida, enquanto que, no centro do
cilindro, se forma o vácuo, em razão do que os remoinhos aspiram por uma extremidade, a boca,
e expelem por outra, o anus, lembrando um ser vivo no seu processo vital de assimilação e
desassimilação. Por isto, o vórtice é um ser dinâmico, uma individuação do meio que o cerca e
que o constitui. O movimento turbilhonar gera a força centrífuga que tende a abrir as voltas do
vórtice; porém, o eixo dele, visto que representa uma rarefação, puxa as voltas para o centro; ou
de outro modo: em virtude da rarefação do ar no centro, a pressão atmosférica aperta o vórtice
por todos os lados, acabando por penetrá-lo por uma extremidade, que é a boca, e saindo pela
outra, que é o anus. Então, fica entendido que a força centrípeta não é algo que puxa para o
centro, senão pressão do espaço que atua de fora para dentro premindo o corpo do turbilhão. A
palavra centrípeto dá idéia de força que puxa para o centro, o que não existe, pois, na realidade,
o que há é força perífuga ao centro, resultante da pressão do espaço sobre o vórtice. Alguma
objeção, Bruco?
– Não... nenhuma. Isso que o senhor diz é intuitivo, axiomático, peremptório.
– Então, verificamos nos vórtice duas forças contrárias que se equilibram: uma é a
centrífuga, nascida do movimento de rotação, e outra, perífuga, oriunda de pressão atmosférica,
da pressão do espaço. Os grãos de poeira e demais detritos, giram com o ar na parte rígida do
vórtice, no lugar em que as forças perífuga e centrífuga se anulam. As trajetórias das partículas,
no remoinho, situam-se no ponto zero, ou seja, no da anulação dos impulsos opostos. Se
chamarmos à força centrífuga C, e a perífuga P, podemos construir esta fórmula:
P+C= 0
E voltando o mestre ao seu lugar, de onde se levantara para pôr a fórmula na lousa,
continuou:
– Ainda tornaremos a este ponto, quando se tiverem aclarados outros que lhe são
correlatos. A segunda coisa que temos a notar no remoinho, é o sentido do movimento. A rotação
do cilindro vorticoso faz que as partículas girem circularmente em plano horizontal. Cada grão
de pó descreve uma circunferência ao redor do eixo, em plano horizontal, e o empilhamento das
circunferências que elas descrevem, dá o aspecto de cilindro ao turbilhão. Contudo, as partículas
que atravessam o vórtice de um extremo a outro, fazem-no em sentido vertical, e resulta da força
perífuga que procura penetrar no vórtice, só o conseguindo por sua boca. Há dois movimentos,
portanto, no ciclone: o horizontal, em que as partículas giram em circunferência, e o vertical, em
que elas acompanham o sentido do eixo de uma extremidade à outra. O plano das
circunferências está, invariavelmente, a noventa graus do eixo do sistema. Está bem claro isto,
Bruco?
– Está perfeitamente claro.
– Então podemos resumir tudo isto em três leis do vórtice; a primeira diz: todo turbilhão
resulta do encontro de forças contrárias; segunda: a zona rígida de todo vórtice é o lugar em que
se equilibram os impulsos centrífugo e perífugo; terceira: o plano das circunferências está
invariavelmente a noventa graus do eixo.
E olhando o pensador para Bruco, interrogou:
– Há mais alguma coisa a acrescentar?
– Acho que não. Tudo está claro como um dia de sol.
208
por seu correspondente ideal, o espaço; depois, absurdamente, conferiu propriedades materiais a
esta idealidade pura, e então tudo se resolveu facilmente. E o coro dos papagaios
(Schopenhauer) continuou repetindo o absurdo, só porque ele provinha de uma autoridade
incontestável. E porque a história se repete, assim como na Idade Média se cria na infalibilidade
de Aristóteles, na Idade Moderna se crê na de Einstein. Está certo isto, Bruco?
– Está.
– Então o falaz artifício de Einstein não conseguiu derrubar a hipótese do éter ?
– Não conseguiu, pois claro! Como pode um absurdo ser verdade?
– Então, tornou, sorrindo, o mestre, deixemos Einstein de um lado, com seu paradoxal
espaço, e toquemos por diante, com o nosso assunto.
– Fritz Kahn, no seu livro “O Corpo Humano”, primeiro volume, página 4, não só dá o
desenho do elétron que copiei, de forma ampliada na figura n.º 1, ali, no cartaz fixado à parede,
como ainda faz dele uma descrição. Vou ler o texto de Fritz Kahn, para o que peço a atenção de
todos:
– “O elétron. O espaço em que se movem os sois não é vazio mas provavelmente cheio
de uma substância fina, chamada “éter”; os espaços sidéreos são, pois, um mar de éter. Como na
água do mar, há neles ondas, correntes e redemoinhos”.
– “O redemoinho é um encontro de forças em que a matéria atrai ou repele a sua
vizinhança e assim se mantém em tensão. Todos conhecem a força de tração e a tensão que os
redemoinhos da água produzem nos batoques dos tonéis. Tais centros de força no éter são os
redemoinhos do éter ou átomos primordiais (fig. 2). A força de tração com que os redemoinhos
etéreos atraem ou repelem o éter chama-se eletricidade, enquanto esse redemoinho é chamado
elétron; a tensão por ele produzida no éter é denominada magnetismo. Admite-se que o elétron
tenha carga negativa ou positiva conforme os redemoinhos etéreos atraiam ou repilam o éter. Os
redemoinhos etéreos carregados de eletricidade, ou elétron, são a unidade fundamental de toda a
matéria e de todas as forças do Universo. Todos os corpos – o sol no espaço, o globo terrestre
em que vivemos, a casa em que nos encontramos, o livro que temos na mão, diante dos olhos do
físico – tudo isso nada mais é do que reuniões de elétrons. Também o corpo humano é, do ponto
de vista físico, um sistema, extremamente complicado, de turbilhões etéreos, isto é elétrons”.
Fechando o livro, pôs-se o mestre a refletir, depois do que continuou:
– O espaço caracteriza-se por suas três dimensões; ora, o elétron é uma limitação espacial,
isto é, a três dimensões; logo, o elétron é matéria. O torvelinho eletrônico é apenas u’a matéria
diminuta, assim como o vortilhão galáctico é u’a matéria grande. Aquilo que, num turbilhão de
matéria grande se nomeia gravitação, no elétron, se chama eletromagnetismo. Um elétron é um
turbilhão que se forma no seio do oceano etéreo. O redemoinho é uma individuação formada no
e do meio, semelhante ao torvelinho que se origina no ar, como já vimos, ou na água, quando se
verifica o encontro de movimentos. No remoinho aéreo e aquático observamos uma força de
sucção, e uma de repulsão. Quando, após o banho, soltamos a água da banheira, verificamos a
formação de um vórtice. A água, vinda de todos os lados, encontra-se no ponto comum do
escoamento; como conseqüência disto, do encontro, começa a massa do líquido a girar sobre si
mesma, e, em girando, cria a força centrífuga que a faz afastar-se para os lados, produzindo um
buraco no centro do movimento. Mas este é um vórtice predominantemente perífugo, no qual
aparece uma componente (ou oponente) centrífuga. Porém, há torvelinhos que, às avessas deste,
são predominantemente centrífugos, sem, contudo, deixar de existir a componente perífuga. Por
causa disto, todo o vórtice é uma individuação expansitiva ou retrativa, havendo, em qualquer
dos casos, dilatação e compressão ao mesmo tempo, equilibrando-se as forças. Às vezes o
vórtice gira mais veloz sobre si mesmo, e se restringem as voltas, em razão do que ele se aperta,
se enrijece, assimilando, em si, mais elementos dos meio ambiente. Sua massa ou quantidade de
matéria aumenta, precisamente, por que a tomou de fora. Nesta fase, como se vê, predomina a
força perífuga, ou seja a de sucção. Às vezes, porém, o turbilhão diminui a sua velocidade, as
voltas se afrouxam, a massa e a rigidez diminuem, e ele tende a desfazer-se em nada, devolvendo
a sua substância ao meio de que proveio pelo encurvamento. Logo, como o elétron é um
torvelinho do meio etéreo, não possui massa constante, visto como pode apertar as suas voltas, e
absorver, em si, mais substância do meio, ou pode afrouxar-se, e até, teoricamente, desvanecer-
210
se em nada, isto é, cessar de existir individualmente, por restituir a sua substância ao ambiente de
que dimanou. O elétron nasce pelo encurvamento do meio etéreo sobre si mesmo; sua morte
teórica, pois há de estar no desencurvamento, tal como ocorre com um remoinho aéreo.
E ponderando, um pouco, em silêncio, prosseguiu:
– Pelo visto, no elétron, pode predominar a força atrativa, centrípeta a ele, que eu resolvi
chamar perífuga, ou pode predominar a oposta força repulsiva ou centrífuga. Estas forças
perífuga e centrífuga, no nível eletrônico, recebem o nome de magnetismo. A eletricidade é o
movimento mesmo do turbilhão eletrônico; o magnetismo é a força de atrair ou repulsar. E
assim como a gravitação é um binário de forças, o eletromagnetismo do elétron também o é.
Aquilo que, na gravitação, se chama tensão centrífuga e perífuga, no elétron, ganha o nome de
magnetismo de polaridades opostas. Todavia, do mesmo modo como no turbilhão aéreo, a
rotação do vórtice é um só para o binário perífugo-centrífugo, no torvelinho eletrônico, a
eletricidade é a corrente rotativa do vórtice simplesmente. Quando um remoinho aéreo gira
velozmente sobre si mesmo, ora assimilando mais ar, e ora desassimilando-o, aparecem duas
pressões opostas em jogo, uma centrífuga e outra perífuga. Esta tensão de duplo sentido, que o
remoinho produz no meio, é a gravitação; como se vê, a gravitação é bipolar, visto como há
forças que são contrárias, agindo em oposição coordenada. No elétron, esta mesma força bipolar
se chama magnetismo. A eletricidade é o movimento mesmo do turbilhão eletrônico, e não tem
polaridade, como ocorre com o campo magnético, senão apenas sentido de corrente. Deste modo
não há duas eletricidades, uma positiva e outra negativa, senão apenas há sentido do movimento
de um potencial mais alto, que por tradição, mas erradamente, se chama negativo, para outro
mais baixo, ou nulo, que se convencionou, absurdamente, chamar de positivo. As forças pois, de
atrair, ou de repelir, mudam de nome, somente, em virtude de se mudarem os indivíduos em que
se produzem. No nível eletrônico o campo gravífico de forças é o campo magnético, enquanto
que o vórtice é o elétron, sendo a rotação dele a eletricidade, e o sentido do seu movimento, o
sentido desta.
E indo-se o mestre para onde estavam as figuras desenhadas, e após munir-se de uma
varinha, foi apontando para as partes dessa, ao tempo em que explicava:
– A figura N.º 1 é uma tentativa de representação do vórtice eletrônico.
Fig. 1
Como vêem, o movimento do turbilhão (a) faz ângulo reto com o campo magnético (b) que o
envolve. Quer dizer que tanto o magnetismo, quanto a eletricidade, mais não são do que
movimentos etéreos de sentidos perpendiculares entre si. Onde há um, forma-se o outro,
integrando a unidade dual do eletromagnetismo. De acordo com esta hipótese, a eletricidade
resulta do movimento de rotação do elétron, sendo sua velocidade a desta rotação. Ao longo de
211
Fig. 2
O sentido da corrente elétrica é dado pelo movimento rotativo dos elétrons livres, isto é,
não presos a átomos nenhuns, estes elétrons livres enfileiram-se ao longo do condutor,
guardando, entre si, certa distância, na parte em que seus movimentos são contrários,
semelhantes aos das rodas de trás e da frente de quaisquer veículos. Todavia, os campos
magnéticos se associam, por suas polaridades opostas, envolvendo o condutor, assim como
também os corpos turbilhonantes dos elétrons. Como vêem, os movimentos turbilhonares dos
elétrons se somam, por se desenvolverem num só sentido, na superfície do condutor. Se a
corrente for alternada, os elétrons não alteram suas rotações, porém, mudam de sentido de seus
eixos. O ponto zero ou nulo duma alternação elétrica se dá no momento em que os eixos
eletrônicos ficam paralelos ao sentido longitudinal do condutor. Se a freqüência das alternações
for muito alta, suas pulsações ou mudanças de sentido se propagam pelo éter, num processo
comunicativo de próximo em próximo, que são as ondas hertzianas. As ondas eletromagnéticas
se propagam pela associação dos elétrons livres no espaço. O oceano etéreo há formado tantos
elétrons, que estes constituem um outro oceano, o eletrônico, através do qual as ondas
eletromagnéticas se propagam. O oceano eletrônico do espaço está saturado de elétrons donde
provém as propriedades eletromagnéticas do espaço. Deste modo, uma oscilação hertziana,
luminosa, gravífica, etc., orienta, segundo ela os eletrons vizinhos, e esta orientação iniciada pela
onda, se propaga de próximo em próximo, não por choques, mas por orientação de campos. E
assim tais oscilações se propagam pelo espaço-tempo (energia-matéria) com a velocidade da luz.
E digo espaço tempo, porque participando os eletrons das propriedades da matéria (espaço), ao
212
mesmo tempo são vórtices dinâmicos, isto é, de energia (tempo). Por isso o espaço eletrônico, ou
seja, o mar de eletrons, é dínamo-material, isto é, uma forma intermediária entre matéria e
energia.
E voltando a apontar o desenho N.º 2, prosseguiu:
– Se o potencial aplicado ao condutor acelerar de muito o movimento turbilhonário dos
elétrons, o atrito do movimento, na superfície do condutor, fá-lo, a este, aquecer-se. Com o
aquecimento, os elétrons se afastam mais para fora, enfraquecendo a corrente originada por seus
movimentos rotatórios, e por isto é que a resistência elétrica aumenta com o aquecimento dos
condutores. Por razão idêntica, quando a disposição dos elétrons nos átomos de um certo corpo,
não permite grande aproximação dos elétrons livres do espaço, esse corpo, dizemos, possui
grande resistividade elétrica. Pela recíproca, quando as disposições das órbitas eletrônicas dos
átomos, permitem grande aproximação dos elétrons livres, temos um corpo bom condutor de
eletricidade. É assim que se explica por que o calor influi na resistividade elétrica, de maneira
que há corpos cujas condutividades só se tornam ideais às baixas temperaturas.
– Pelo que se vê, continuou o pensador, o elétron, sendo matéria pelo seu vórtice, porque
este representa a tridimensoriedade do espaço, é, contudo, também, energia pelo seu campo
magnético de forças, e, como tal, está sujeito às contingências do tempo. Nesta unidade
vorticosa, mais que em qualquer outra, tempo e espaço estão jungidos um ao outro, pelo que o
elétron participa das propriedades do espaço e mais as do tempo, uma vez que se trata de um ser
intermediário entre matéria e energia.
E passando a ponta da vara para o terceiro desenho, continuou:
– Há duas maneiras básicas de os elétrons se associarem entre si. Na associação paralela,
como vêem aqui na figura 3, os eixos eletrônicos ficam paralelos entre si.
Fig. 3
Fig. 4
213
se ligam pelos pólos opostos, de sorte a se movimentarem no mesmo sentido. Aqui, porém, os
campos se somam de modo diferente do caso anterior. Como vocês estão enxergando, os campos
somados, envolvem igualmente os dois elétrons. Uma vez compreendida estas duas associações
básicas ou elementares, fica fácil de entender as associações mistas, isto é paralelo-série e série-
paralela que são vistas aqui na figura 5.
Fig. 5
– A natureza tão pródiga em fazer arranjos, não iria desprezar, está claro, estas
possibilidades. O desenho N.º 2 representa o campo eletromagnético num condutor que tem sua
ponta voltada para o observador. Mas ali os elétrons estão afastados para ser possível representar
o campo magnético circulando por dentro dos núcleos (eixo) eletrônicos. Na verdade, contudo,
os elétrons não permanecem tão afastados, senão que se ligam e se associam em série formando
um anel vorticoso em torno do condutor. Os anéis se enfileiram ao longo do condutor,
guardando, entre si, certa distância, na zona em que se tocariam, se os movimentos não fossem
opostos. Ao redor, e envolvendo tudo, então, se forma outro anel, este, agora magnético ou
campo, acusado pelas agulhas imantadas.
214
Fig. 6
muitíssimas vezes num segundo, esta sua dança propagar-se-á de próximo em próximo, e nisto
constitui a propagação da onda hertziana eletromagnética. Esta propagação está representada
aqui pela figura N.º 6; trata-se, como vêem de ondas longitudinais e transversais
sucessivamente. Os impulsos longitudinais “a” são elétricos, e representam anéis vorticosos de
elétrons associados em, série. Os impulsos transversais “b”, que aparecem com circunferências
concêntricas no desenho, são os campos magnéticos. Como podem observar, estas
circunferências transversais fazem ângulo reto com a projeção longitudinal. O princípio é o de
que, como vimos expondo, todo campo elétrico suscita um campo magnético e vice-versa; assim
um impulso elétrico cria um eqüivalente magnético que, por sua vez, cria outro campo elétrico.
A luz é onda deste tipo, isto é, eletromagnética de freqüência própria e de comprimento que a
define; quer dizer que, se as ondas hertzianas se tornassem do comprimento das de luz, seria luz.
Encostando o pensador a vara à parede, tornou ao seu lugar. E após sentar-se continuou:
215
– Como tenho exposto, o oceano eletrônico que enche o espaço não é uma confusão,
senão que os elétrons se acham associados em série, orientados, como as agulhas magnéticas,
pelo magnetismo terrestre. Porém, uma perturbação em qualquer ponto desse meio eletrônico, se
propaga para todos os lados numa dança eletrônica, em que eles alternam suas posições, e essas
alternâncias de uns suscita as de outros, e assim é que as ondas eletromagnéticas se propagam. E
esta hipótese explica mais coisas, tornando-as inteligíveis.
– Esta teoria, continuou o mestre, explica também a razão por que as órbitas eletrônicas
de um átomo de hélio, por exemplo, fazem, entre si, um ângulo de noventa graus. A explicação
está em que, quando um átomo possui dois elétrons, há dois campos em movimento, os quais
mutuamente se repelem para um máximo afastamento, e esse máximo, para duas circunferências
concêntricas, é noventa graus. Os elétrons não podem girar em plano, como se foram planetas,
exatamente por causa de seus campos magnéticos. Para os campos eletrônicos se associarem, os
elétrons teriam de gravitar o núcleo atômico em posição impossível aos giroscópios que são.
Para manterem seus eixos perpendiculares ao plano de suas órbitas, os campos não se podem
associar, e o resultado disto é o se afastarem ao máximo, ou seja: os planos das órbitas de um
átomo de dois elétrons hão de estar a noventa graus entre si. É ainda pela interação dos campos
que se explica a excentricidade das órbitas eletrônicas. Dos planetas se sabe que têm órbitas
elípticas, por causa da translação do Sol. Todavia, sendo o núcleo atômico parado, por que hão
de ser excêntricas as órbitas eletrônicas, senão por causa da atuação mútua dos campos? É por
esta hipótese, ainda, que se torna compreensível por que há calotas eletrônicas. A primeira calota
ou esfera eletrônica, em virtude do espaço muito reduzido, se satura, magneticamente, com dois
elétrons. Deste modo, se o átomo adquirir mais uma órbita, como é o caso do lítio, esta órbita
terá de desenvolver-se noutra esfera, e ainda na resultante dos dois campos anteriores. Se o
átomo adquirir, ainda, outra órbita, como é o caso do berilo, esta há de estar, outra vez, a noventa
graus em relação ao elétron já existente nesta segunda esfera. A saturação magnética, nesta
segunda esfera, porque o espaço já é maior, se dá com oito elétrons, podendo este número subir
até dezoito elétrons, como acontece na quarta esfera, ou quarta distância do núcleo atômico.
Aqui, então, se dá a primeira saturação total, e o processo se recomeça. Um vórtice galáctico, ou
planetário qualquer, é uma individuação apenas gravífica, e por isso pode ser, como é, em plano,
como um disco. Já o indivíduo atômico, com ser gravífico e eletromagnético ao mesmo tempo,
só pode ser um esferóide.
E após considerações silenciosas, continuou:
– Voltemos, agora ao nosso turbilhão aéreo, de onde começamos, para seguir noutra
direção. Vocês ainda hão de ver quão fecundo é ele para a ciência. Suponhamos que nós
podemos nos reduzir, sem perda da nossa capacidade intelectiva, às dimensões de um grão etéreo
que é aquela última estrutura do espaço, conforme o pensar do Prof. March. Deste modo,
imaginariamente reduzidos, nos encontramos na zona rígida de um redemoinho aéreo, sobre um
grão de poeira, o qual se nos afiguraria como um pequeno planeta. Havíamos de sentir a pressão
do meio sobre nós, calcando-nos contra o grão de pó, e diríamos, então, que no centro deste há
uma força atrativa. Veríamos os grãos de poeira, numa distância enorme uns dos outros,
“atraídos” para o centro do turbilhão, ao mesmo tempo que repelidos de aí, pelo movimento de
translação, e concluiríamos que tudo aquilo é a gravitação. Sem nos sairmos do torvelinho,
tornemo-nos, de novo, à nossa estatura normal, porém, com a ampliação, agora, dos grãos de pó
na escala grão-de-March por homem. Os grãos de poeira tornar-se-iam planetas e sóis, e o
torvelinho aéreo seria uma galáxia. A pressão do espaço continuaria a calcar-nos contra o nosso
planeta, dando-nos a ilusão de que existe uma força de gravidade a irradiar-se do centro dele.
Verificaríamos que nosso planeta queria cair para o centro galáctico, mas era repelido de aí pela
força centrífuga originada pela translação planetária. Todavia, um sujeito inteligente que nos faz
companhia, naquele planeta imaginário, nos apresenta o seguinte raciocínio: uma vez que todas
as forças da Natureza têm sua recíproca, de modo que sempre se nos apresentam equilibradas no
binário de oposições; e considerando que os planetas não caem para o centro do vórtice, por
causa da força centrífuga originada da translação, segue-se, necessariamente, que aquela força
que empurra para o centro tem de ser da mesma natureza da força centrífuga, representando a sua
contraditória. Considerando que as forças sempre se mostram equilibradas no binário dos
216
semelhantes, conhecido um termo do binário, ipso facto, estará conhecido o outro. Ora, o que
mantém os planetas afastados do centro do movimento é a força centrífuga; logo, a força que
arrasta os planetas para o centro, tem de ser a força centrípeta. E conhecidas as propriedades de
uma destas forças, as da outra serão idênticas, somente que com sinal contrário, isto é,
entendidas como oposição. A gravitação, por conseguinte, é um binário de forças, originadas do
movimento, e não, nunca, uma enigmática força isolada que atrai do centro da matéria. Tudo
isto nos disse o sujeito lá no grão de pó ampliado. Mas tornemos à nossa sala; tornemos já do
vôo imaginoso.
E descansando um pouco o pensador, numa pausa, prosseguiu:
– É uma necessidade lógica que a força que puxa para o centro seja da mesma natureza da
que empurra de aí, não é certo, Bruco?
– Esse argumento é inexorável!
– Então, conhecendo-se as propriedades todas de uma das forças, ipso facto, estarão
conhecidas as da outra, pela recíproca, não é ?
– Que dúvida! as propriedades da força desconhecida, são as mesmas da conhecida
tomada como sinal contrário! Isto é peremptório.
– Ora, as propriedades da força centrífuga são experimentalmente conhecidas, e qualquer
livro de física desenvolve esta matéria na parte relativa à mecânica. E após acompanhar as
experiências de laboratório, verificamos que a força centrífuga “C” é proporcional à massa “M”,
ao raio “R” e ao quadrado da velocidade “V”.
C = m.r.v2
E como, no vórtice seja ele aéreo, seja galáctico, não há nada que atraia do centro, mas o
que há é uma pressão periférica que empurra para o centro, em vez de chamar a isto força
centrípeta, temos de falar de força perífuga ao centro, não é assim?
– Exatamente, concordou Bruco.
– E vimos já, ao estudarmos o redemoinho aéreo, que a força centrífuga “C” se opõe e se
equilibra com a força perífuga “P”, consistindo a trajetória de cada grão de poeira, o ponto de
equilíbrio destas forças. Um enunciado é antitético em relação ao outro, visto ambos se referirem
a forças opostas, em razão do que podemos construir uma única fórmula, válida tanto para a
força centrífuga, como para a força perífuga. A diferença estará em que as forças opostas, e, por
isso, precisam ser indicadas com setas “vai para a periferia” ( à P ), e “vai para o centro” ( à
C ).
P + C = 0
àC àP
ou então:
P + C = 0
à ←
ou de outro modo:
m. r. v2
força centrífuga ou C =
C à P
m. r . v2
força perífuga ou P =
P à C
217
m. r. v2
C=
C à P
m. r. v2
P=
P à C
ou ainda:
P + C = ( m. r. v2 ) + [ – ( m. r. v2 ) ] =
m. r. v2 + [ – m. r. v2 ] =
m. r. v2 – m. r. v2 = 0
extremidade do braço que move as brocas, fez girar o esmeril, metendo-o depois, no centro da
espiral da areia da bacia. Tanto que o líquido se movimentou, ao impulso centrífugo da roda, a
areia afastou-se para a periferia, formando, de fato um anel. O Sol foi formado de um centro
semelhante a esta roda de esmeril, disse-me ele, e os planetas, desse anel.
E tendo suspirado numa pausa, prosseguiu o filósofo:
– Esta experiência com a areia na bacia, fí-la eu, várias vezes; depois substitui a areia por
serradura de madeira, e, para maior uniformidade de movimentos, empreguei um aquário de
vidro, desses que se põe peixinhos coloridos, sobre o prato de um toca-discos. Deitei água
filtrada no aquário; depois coloquei na água a serradura de madeira, previamente lavada para
sair o pó miúdo e a tinta turvadora. Iniciado o movimento, a água, por sua inércia, mantinha-se
parada, a princípio. Porém, a serradura, como estava no fundo do vaso, ficava já animada do
movimento do aquário, e por efeito da força centrífuga ia parar no equador. Com o correr do
tempo, o movimento do vaso ia-se comunicando ao meio, porém, da periferia para o centro, de
sorte que o centro se mantinha parado ainda, quando já rodava o meio na periferia. Por este
tempo eu desligava a corrente elétrica ao toca-discos, e, ato contínuo, brecava o vaso com as
mãos. Neste ponto, toda a serradura de madeira vinha amontoar-se no centro; até alguma coisa
que estivesse boiando, vinha, então, parar aqui. Introduzi chumbo-de-caça no centro de uma lima
(fruta), de modo a fazê-la ficar em suspensão no meio do líquido. Também usei, para idêntico
fim, uma bexiguinha de borracha cheia d’água. Dado início ao movimento do aquário, a lima ou
a bexiguinha mantinham-se no centro do movimento, ainda mesmo quando tentava deslocá-los
para a periferia. Verifiquei, experimentalmente, que, quando vigora a força centrífuga, só vai
para a periferia o que for mais denso que o meio. O que for da mesma densidade, como a lima ou
a bexiga, fica no centro. Quando, todavia, entra em vigor a força perífuga, o mais denso vem
para o centro, enquanto que o menos denso, começa, agora, a girar em torno.
Feita esta exposição concluiu o pensador:
– Disto podemos concluir que a gravitação, entendida somente como força atrativa das
massas, nada mais é do que a força perífuga, isto é, ocasionada pelo movimento oposto ao
daquele que gera a força centrífuga. Se, pois, a força centrífuga resulta de um centro que gira
mais veloz que sua periferia, a inversa força centrípeta ou perífuga provém de uma periferia
que gira mais depressa que seu centro. Se quando um centro, que pode ser uma roda qualquer,
gira rapidamente, tende a projetar as coisas de si para a periferia, um movimento rápido,
periférico, um encontro de ventos, por exemplo, cria uma concentração, o vórtice, que faz
pressão contra o centro ou núcleo parado ou lento. E eis, aqui, chegamos de novo ao redemoinho
aéreo, como prometi. Como se estivera eu escrevendo uma sinfonia, repito, variando sempre, o
tema fundamental.
E tendo o mestre o olhar perdido no vazio, quedou por certo tempo a relembrar as lições
do amigo ausente. Dirigindo-se depois à parede em que dependurara os desenhos, tomou da vara,
e se pôs a falar:
– Ainda foi o Sr. Antonio Alves da Cunha o que pôs serradura de madeira num recipiente
bojudo de vidro, em cujo centro fez girar uma esfera de madeira, conectada à extremidade da
broca do dentista. Imprimindo movimento à esfera, esta movimentou o líquido, formando
exatamente o que se supõe acontecer no espaço cósmico que circunda o Sol com sua família.
E apontando para o desenho N.º 7, prosseguiu:
Fig. 7
219
– Aqui, na região equatorial da esfera, por efeito da força centrífuga, o meio é repelido
para a periferia. Mas, chegando aqui, o meio se encurva em dois ramos, indo cada um deles
entrar nos pólos da esfera, para, de novo, velozmente, ser projetado pelo equador. Jogando um
fiapo de algodão na água do aquário, observa-se o fenômeno dos cometas a fazerem suas órbitas
em elipses alongadas, visitando de tempos a tempos a esfera-sol, e então, com grande velocidade.
Tal, o sistema planetário solar. Os planetas giram no plano equatorial, no passo que as órbitas
dos cometas caem, obliquamente, à linha do equador. Visto por cima, ou por baixo, o aquário,
conforme se verifica aqui no gráfico N.º 8,
Fig. 8
220
Fig. 9
221
Este campo cinético terrestre pressiona-se contra o campo solar. As setas a, d, mostram o
sentido do movimento do campo etéreo solar, visto do pólo do sistema. A Terra está suspensa
nesse campo; contudo, possui, também, seu campo próprio, cujo movimento está indicado pelas
setas b, c. No lugar das flechas c, d, há um encontro de forças que geram um turbilhão etéreo.
Nesse lugar, o campo solar tende a paralisar o movimento rotacional planetário. Todavia, no
lugar das flechas a, b, há uma soma das forças, de modo que o campo solar tende a impulsionar a
rotação terrestre. Tudo funciona como se existisse a alavanca A R P, com o apoio em A (breque
= encontro de forças = turbilhão) e a potência em P (campo solar). O terceiro elemento desta
alavanca imaginária, R, é a própria Terra. A força que atua em P tende a acelerar o movimento
de translação terrestre, ao longo da sua órbita, e isto se dá por causa do seguinte: no lugar do
turbilhão, no encontro dos vetores c, d, está o ponto de apoio A da alavanca A R P, porém, esse
ponto de apoio também se move com o sistema. A alavanca planetária A R P se apoia em A, e
se lança no sentido do movimento, em virtude da força aplicada em P, onde os vetores a, b se
somam. Há, portanto, uma tendência de a Terra transladar-se mais depressa do que o meio, isto
é, do que o campo etéreo solar. Esse turbilhão etéreo, resultante do encontro dos vetores c, d, é o
que provoca o movimento de libração lunar, porque, quando a Lua cai dentro dele, na lua-nova,
visto que ele gira em sentido retrógrado, tende a paralisá-la em sua rotação, e por este motivo, a
Lua tende a nos mostrar a outra face. Atravessada esta zona de perturbação, a Lua continua
mostrando um pouco da outra face, durante todo o quarto crescente, vindo, na lua-cheia,
equilibrar-se de novo, e até oscilar em sentido oposto, com a tendência de aumentar a sua
rotação, pelo impacto dos vetores a, b, na ponta do seu ovóide, que estará, então, voltado para a
periferia do sistema solar. A causa do movimento de libração lunar, como vocês estão vendo,
está em não haver igualdade constante entre o movimento de rotação da Lua, e o seu, de
translação, em torno da Terra. Mas a desigualdade entre esses dois movimentos, por sua vez,
tem causa no fato que relatei, expresso, aqui, no gráfico N.º 9.
– E mais isto: A pressão e a deformação dos corpos etéreos podem explicar a razão por
que, à noite, melhoram as telecomunicações radiofônicas de ondas longas, piorando as de ondas
curtas, que são boas, durante o dia. De dia, por causa da pressão dos campos, a camada refletora
(ionosfera) das ondas hertzianas longas, fica muito baixa, e as ondas refletidas aí, só podem ir
perto. Já as ondas curtas, com se refletirem numa camada mais alta, têm seu ponto ótimo de
propagação durante o dia. À noite, essa camada refletora das ondas curtas fica mais alta,
piorando a propagação; porém, as ondas longas, em se refletindo mais do alto agora, vão mais
longe. Então, para as ondas curtas, a capa refletora muito alta, à noite, não corresponde mais
àquele ponto ótimo, verificável durante o dia. Contrariamente, o ponto ótimo é à noite para as
ondas longas, por se refletirem mais do alto. Também se explica a existência do cinturão de Van
Allen, pelo atrito do campo etéreo terrestre com o campo solar.
Fez uma pausa, o mestre, para um descanso; tornando, porém, ao assunto, continuou:
– Lembro-me haver lido, em Fritz Kahn, que “cada planeta, por sua vez, forma em torno
de si mesmo um campo de espaço. Estes campos são, segundo Einstein, “entrosados um no
outro” e, ao girarem os planetas em torno do Sol, esses campos entrosados deslocam um ao outro
como rodas dentadas”406. Estão “entrosados” como diz Einstein, porém, não como rodas
dentadas, e sim do modo como explicou o Sr. Antonio Alves da Cunha, e isto por uma razão
muito simples: o Sol com toda a sua família planetária giram no mesmo sentido; e rodas que
giram no mesmo sentido não se engrenam, mas se atritam pela oposição dos movimentos. A ser
verdade que o cinturão calorífico de Van Allen resulta deste atrito de campos, temos esta
conclusão: ele só existe na parte da Terra voltada para o Sol, e não na face oposta, porque, se na
face da Terra voltada para o Sol há o encontro dos vetores c, d, como se pode ver no desenho
N.º 9, na face oposta, escura, os vetores “a” do campo solar, e “b” do terrestre, se somam. A ser
verdade isto, não há o tal cinturão, e sim, uma calota a cobrir toda a parte iluminada pelo Sol. Na
face da Terra voltada para a Lua, haveria, também, uma pequena calota, proveniente do atrito do
campo terrestre com o campo lunar.
Fez silêncio o pensador, enquanto dependurava novo gráfico no prego. Depois pegando a
406 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, I, 42
222
vara, se pôs a bater suavemente com ela nas pernas, ao tempo em que falava:
– Quando, como nesta fase do universo que ora vivemos, predomina a força centrífuga, o
Sol, em girando sobre si mesmo, forma um campo etéreo, que se move rapidamente na superfície
solar, e tanto mais lentamente, quanto mais se afasta dele. A verificação disto se pode fazer,
como a fez o Sr. Antonio Alves da Cunha, pondo a girar uma esfera dentro de um líquido. Como
se presume, o movimento angular é rápido nas circunvizinhanças do Sol, e vai decrescendo na
medida em que se afasta dele. Sendo este movimento angular do meio etéreo uniformemente
retardado, na proporção do afastamento, a zona onde se verifica menor movimento, em relação
também a qualquer planeta, é a periferia. Na parte central, ocupada pelo Sol ou por qualquer
planeta, o movimento é maior. Portanto, a Terra, em girando sobre si mesma, também possui seu
campo etéreo que se pressiona e se atrita, pela parte externa, contra o campo solar. Nesta parte é
que se dá o encontro dos vetores b, d, como vocês podem verificar nas figuras 9, l0, 11 e l2,
formando o ponto de apoio A da alavanca imaginária A R P, que faz deslocar-se o planeta com
maior velocidade de translação. Deste modo, o movimento de rotação se torna no de translação,
quando consideramos o movimento centrífugo isolado. De igual modo, se o Sol aumentasse sua
rotação (fig. 11), os planetas receberiam um impacto maior de força (vetor b) no ponto A da
alavanca A R P, e eles reagiriam, por causa da rotação de que estão animados, lançando-se para a
frente em suas trajetórias, aumentando, com isto, a velocidade de translação. De outro modo,
podemos dizer que se o Sol aumentasse sua rotação, os planetas se afastariam, porque, então,
teria aumentado a força de atrito na parte intermediária entre os planetas e o Sol. Igualmente, se
aumentasse a rotação planetária, aumentar-se-ia seus campos etéreos, atritando-se com maior
violência no ponto A, com o campo solar. O resultado seria o mesmo: aumento de velocidade de
translação, com a inevitável conseqüência do afastamento do centro solar. Logo, pela recíproca,
se eles diminuíssem a rotação sobre seus eixos, também reduzir-se-ia a força translativa, em
razão do que aproximar-se-iam mais do Sol. Então, se a força centrífuga é diretamente
proporcional à translação planetária, a contrária força centrípeta ou perífuga o é inversamente.
E depois de ponderar um pouco em silêncio, acrescentou:
– Examinemos mais por miúdo esta parte. Suponhamos que a Terra aumentou sua
rotação; com isto, aumentou-se o seu campo etéreo representando, isto, um aumento dos braços
da alavanca A R P, conforme o objetiviza o desenho N.º 10. Por estas duas razões decorrentes do
movimento, isto é, maior velocidade e maior comprimento da alavanca, o atrito em A aumentou
também, pelo encontro dos vetores b, d. Isto significa que o aumento de rotação se decompõe em
dois fatores, quais sejam: maior campo (alavanca) e maior atrito, ambos a concorrer para um só
fim que é acelerar a translação planetária. Ora, acelerando-se a translação, o planeta se afasta do
centro. Tanto faz, pois, o planeta rodar mais rápido, como girar mais rápido o Sol, como ambos,
ao mesmo tempo, o resultado é a aceleração da velocidade translativa planetária, com o
conseqüente afastamento do centro. É o que acontece no periélio: aqui o planeta, em se
aproximando muito do Sol, entra-lhe na zona onde seu campo tem mais movimento; com isto, o
planeta tende a ser paralisado em sua rotação (pelo encontro dos vetores b, d ), ao que ele reage,
pela sua inércia rotacional, fugindo para a frente; quer dizer: sua velocidade translativa aumenta
nesse lugar, porque é como se a velocidade de rotação solar se tivesse aumentado. Já no afélio,
ao contrário, o planeta está na zona do campo solar, onde é menor o movimento, e por isso passa
a transladar-se com menor velocidade. Então é como expliquei: a força centrífuga, que
representamos por C, é proporcional à rotação, seja do Sol, seja do planeta, seja de ambos ao
mesmo tempo. O Sol, conquanto não aumente a sua velocidade de rotação, tudo se passa como
se ela aumentasse no periélio, porque o campo eletrônico, que circunda o Sol, tem velocidade
máxima (igual à do Sol), nas proximidades da esfera solar, e mínima na periferia do seu sistema.
E após o descanso numa pausa, prosseguiu:
– Suponhamos que o centro do movimento, nesta fase expressa pela figura 10, está
parado, ou se move vagarosamente; neste caso o impacto dos vetores b, d em A é, praticamente,
nulo. Todavia, o vetor “a” atuando em P, não só faz o planeta rodar sobre si mesmo, como cair,
decididamente, para o centro, desenvolvendo uma espiral geométrica, como a que se vê aqui no
gráfico. Se não interviesse a força centrífuga, este cair para o centro seria tanto mais rápido,
quanto maior fosse a velocidade do meio, e quanto mais se encurtasse o raio do centro. A
I
i=
d2
223
gravitação não é movimento mesmo do campo eletrônico, mas a tensão pressivo-repulsiva que
se forma nesse meio. Na fase perífuga o movimento do campo eletrônico é maior na periferia do
que no centro. O resultado é que se forma uma tensão no meio, a qual se encaminha, em ondas
gravíficas para o centro. Esta energia tensional, esta pressão gravífica ou gravítica, visto como
segue a lei geral para todas as ondas, intensifica-se na razão inversa do quadrado da distância, ou
raio do centro. Isto é fácil de entender-se, visto como, se na fase centrífuga ou expansitiva,
qualquer onda se abre no espaço, de um centro ou fonte, para a periferia, perdendo tanto mais em
intensidade, quanto mais se afasta, na fase inversa, isto é, na de centralização ou perífuga, a onda
periférica terá sua intensidade progressivamente aumentada, na proporção do fechamento para o
centro. Objetivemos o fato, usando, por exemplo, o som ou a luz. Se considerarmos “i” como
sendo a intensidade de iluminação, ou de sonoridade, em determinado ponto do espaço, podemos
concluir que:
Onde “I” é a intensidade da fonte luminosa ou sonora, e “d” a distância. No processo inverso,
que é o de centralização dinâmica, temos:
I = i. d2
Quer dizer que a onda de intensidade “i”, na periferia do sistema, ir-se-á intensificando, na
proporção em que o raio se encurta no quadrado. A intensidade máxima será alcançada quando
aquela grande esfera-onda se tiver reduzido a um grão de pó impalpável de raio, portanto,
fracionário, tendendo para o limite zero. Se as nossas energias centrífugas são esferas de
dilatação, as opostas energias perífugas, ou seja, que fogem da periferia para um centro, são
esferas contrativas. Imaginemos, portanto, o que aconteceria se uma grande esfera-onda do
tamanho do Sol, se concentrasse num único ponto central! Pois estes mesmos conceitos se
aplicam à gravitação. Quando, no binário gravitacional, predomina a força perífuga, ou seja,
quando há um meio que se move mais rápido na sua periferia do que no seu centro, então, a força
tensional que se forma nesse meio, tende a fechar-se para o centro do movimento,
intensificando-se tanto mais, quanto mais se encurtar o raio, até o ponto em que, ao tornar-se o
raio quase zero, a intensidade será tal, que onda vira matéria. Existindo qualquer massa em
suspensão no meio, essa será carregada para o centro, com velocidade uniformemente acelerada.
Quer dizer que a “atração” do centro, ou pressão da periferia, é tanto maior, quanto mais curto se
tornar o raio. E como o acréscimo da intensidade se faz na razão inversa do quadrado do raio,
para qualquer onda que se concentre, segue-se que a força perífuga é inversamente proporcional
ao quadrado do raio do centro. E é, também, proporcional à massa, pois é sobre ela que a tensão
do meio atua. Igualmente é proporcional à velocidade do meio, visto como, quanto maior for a
rapidez com que o meio se mover, com tanto mais força as massas suspensas nele fugirão para o
centro. Disto temos, então, que a força perífuga “P” é diretamente proporcional à massa “m”, à
velocidade “v” do meio, e inversamente proporcional ao quadrado do raio ou distância do centro:
P= m.v
à C d2
Com a força centrífuga o fenômeno é o mesmo, porém, em sentido contrário, em razão do que, é
preciso representar, na fórmula, o sentido do movimento por meio de setas que dizem: “vai
para a periferia à p” e “vai para o centro à c”. Assim, quando consideramos a força centrífuga
isolada, verificamos que ela resulta de um centro que se move mais depressa no centro do que
em sua periferia. A energia de tensão, agora, é de dentro do sistema, do centro, para fora.
Entretanto, a intensidade da força se enfraquece com o decrescer do movimento do meio
circunjacente ao centro; logo, ela também é diretamente proporcional à velocidade. E as massas
maiores são projetadas para fora com mais força, de que as menores; por conseguinte, a força
centrífuga também é proporcional à massa. Verificamos, no aquário, que esta tensão centrífuga
se vai enfraquecendo na proporção em que se afasta do centro, pois o que está próximo do centro
(esfera rotativa) é jogado com mais energia para fora, e a velocidade das partículas decresce na
m.v 2 m.vm.v
C + P2= d 2 2 +
d 2 d
(
−
2 2
) =[- (0 )] =
m.v 2
d2 224
m.v m.v 2
[ ]=
C= 2 P= 2
r r2
+−
razão do afastamento.
m.v 2 Distom.v
induzimos que a força centrífuga é inversamente proporcional ao
raio. E como se 2 trata também 2de uma energia de irradiação de um centro, fica ela também,
d
sujeita à lei do decréscimo d
m de intensidade na razão inversa do quadrado do raio. Ainda mais que
C = 2 é corroborada pela intuição sensível que temos no aquário. Deste
esta dedução matemática
modo, a fórmula da força d centrífuga é também:
C = m.v
àp d2
A força perífuga é proporcional à massa (m), ao quadrado da velocidade (v2) do meio que cada
vez mais vai diminuindo na proporção que se aproxima do centro, e inversamente proporcional
ao quadrado da distância do centro, porque a energia de tensão se concentra numa esfera cada
vez menor.
P= m . v2
d2
Quer dizer que a velocidade (v) do meio decai, na proporção em que se aproxima do centro, e
esta aproximação significa encurtamento da distância. Quando a massa chega no centro, a
velocidade e distância serão iguais à unidade, tornando-se P = m. Na fase inversa, ou centrífuga,
a velocidade do meio também decai, na proporção que se afasta do centro, na proporção que o
raio aumenta. Quando a massa chega à periferia, a velocidade é igual à unidade e o raio é
máximo tornando-se
A força centrífuga é proporcional à massa, ao quadrado da velocidade do meio, que vai cada vez
mais diminuindo, na proporção que se afasta do centro, e inversamente proporcional ao quadrado
do raio, porque a energia de tensão decai por se distribuir por uma esfera maior
C= m.v P= m.v
àp d2 àC d2
– E tudo o que disse em relação ao nosso sistema solar, se aplica ao sistema galáctico
dentro do qual o Sol com sua família se move. E se houver um centro comum para as galáxias,
225
este princípio será extensivo a elas. Se, por ventura, o universo se expande hoje por efeito de
força centrífuga, e não, por explosão do Colosso Primitivo, então estes conceitos serão
extensivos a todo o universo físico.
E dito isto, o pensador voltou a tomar o seu assento. E tendo-se recostado no espaldar da
cadeira, continuou:
– Como vocês viram, o tema que tomei de início, o vórtice aéreo, foi sendo variado, e
muito ensinamento nos deu. No entanto, agora, se vocês concordarem, passaremos ao estudo das
propriedades do pião. É que tenho em mente entrar num assunto correlato ao do turbilhão aéreo,
mas gostaria de o fazer pelo método de Platão.
– Jamais ouvi que Platão se ocupasse de ciências físicas, retrucou Bruco.
– Não é isso, prezado Bruco. Platão faz uma digressão antes de atacar o assunto da justiça
na sua “República”. Acha ele mais fácil estudar a justiça em grande escala que em pequena.
Compreendendo o que venha a ser um estado justo, compreender-se-á mais facilmente, depois, o
que é um indivíduo justo. “Assim como pomos à prova a visão de um homem fazendo-o ler
primeiro caracteres maiores e, depois, menores, mais fácil é analisar a justiça em grande escala
do que na escala exígua do procedimento individual”407. “Se se incumbisse a pessoa de vista
curta da leitura de longe, de letras de tipo miúdo, mas um dos ledores descobrisse que as mesmas
se encontravam, em outra parte, escrita em caracteres maiores sobre larga superfície, ninguém
duvidaria da conveniência de ler primeiro os caracteres maiores para depois compará-los com os
menores, a ver se eram realmente bem iguais”408. Isto é o que eu queria dizer, meu caro Bruco, ao
me referir ao método de Platão. Iremos, portanto, estudar em grande escala, o que, entretanto, se
passa em mínima.
– Vejamos, então, tornou Bruco, se o senhor consegue tirar tantas lições do pião, quantas
tirou do redemoinho aéreo.
–Tiro, porque o pião, para mim é um redemoinho rígido, no passo que o redemoinho é
um pião elástico. Por isso, através dele, posso aprofundar meu estudo da gravitação e da massa.
O pião, quando em movimento, toma posição de equilíbrio impossível em estado de repouso. O
movimento, por conseguinte, confere às coisas em movimento propriedades inexistentes, quando
em repouso. Há uma inércia do movimento, que quer manter em repouso o eixo do pião, isto é,
quer fazê-lo apontar, sempre, para um ponto fixo, absoluto. E quando lhe damos um piparote, ele
faz inclinações de modo que seu eixo começa a fazer um círculo; a cabeça do pião como se fora
um planeta, no ponto em que gira sobre si mesmo, percorre uma órbita circular. Esse movimento
vai diminuindo, o círculo descrito pela cabeça vai se restringindo, até que o pião “dorme” como
dizem os meninos que os jogam. Este dormir faz acompanhar-se de um zunido característico, e
significa que o pião se acha isento de perturbações. Se o pião, pouco a pouco, vencer a
perturbação que lhe imprimiu o piparote, por que sendo a Terra como um pião, possui seu
movimento de inclinação sobre seu eixo? Por que, Bruco?
– É porque, não sendo a Terra perfeitamente esférica, e antes, achatada nos pólos, a
gravitação solar, sobretudo esta, desloca a Terra produzindo o movimento de precessão. Mas há
também a teoria segundo a qual a Austrália seria um grande bólide caído na Terra. A ser verdade
isto, a Terra se inclina sobre seu eixo, como o pião, em virtude do piparote que lhe teria dado a
Austrália ao cai do espaço.
– Mas isso não vai ao caso, tornou o pensador. A lei de inércia de Galileu diz o seguinte:
“Um corpo em repouso resiste a mover-se. Um corpo em movimento uniforme resiste a deter-
se ou mudar sua velocidade e direção”409. Como a matéria é formada de partículas moleculares,
atômicas e subatômicas, cada uma destas que compõe o corpo do pião, quando em movimento,
adquire uma trajetória circular em torno do eixo. E como qualquer corpo, em movimento,
resiste às mudanças de direção, todas as partículas, de que se compõe o corpo do pião, em
movimento, se conjugam, de modo que aparece uma inércia de movimento, a que foi dado o
nome de inércia giroscópica; esta inércia mantém o pião, sempre, na posição vertical. O eixo do
pião é o centro de translação das partículas, às quais está ligado, e faz ângulo reto com o plano
das trajetórias. Por causa disto, qualquer mudança de posição do eixo, significa mudar as
trajetórias de todas as partículas, ao que elas resistem, pela lei da inércia. A resultante de todas
as inércias particulares é a inércia giroscópica, pela qual, o eixo quer manter-se parado,
constante, numa só posição. Porventura, a inércia giroscópica é um caso particular da lei geral de
inércia, Bruco?
– Tal é o que nos impõe suas conclusões, de modo que, compreendida a lei geral da
inércia, compreende-se, facilmente, o que venha a ser a inércia giroscópica.
– O oposto disso é que é a verdade, meu nego, de sorte que a inércia giroscópica é mais
geral, decorrendo desta a lei de inércia de Galileu. Contudo, esta lei geral da inércia giroscópica
aparece em caracteres pequenos, no passo que a lei de inércia de Galileu se nos mostra em
grande escala, tornando-se, por isso, objeto mais claro de nossa intuição.
– Contudo, prosseguiu o mestre, visto que estamos falando de inércia giroscópica,
passemos do pião ao giroscópio, que este é irmão daquele. O giroscópio é constituído por um
disco grosso e pesado de latão, preso, pelo centro, a um eixo que se conjuga ao de um motor
elétrico. Tanto o giroscópio como o motor estão dentro duma argola metálica, fixados a ela por
meio de pontas cônicas que giram em encaixes igualmente cônicos. Esta argola que sustenta o
giroscópio, se suporta em uma outra, pela face interna, de modo que os pontos de fixação fiquem
a noventa graus de onde o eixo do giroscópio está fixado. Este conjunto todo fica dentro do
terceiro e último anel, periférico, portanto, o qual se apoia num pedestal maciço, por meio de um
eixo de extremidade esférica, que se move, livremente, dentro de pequena concha. Deste modo, o
giroscópio, movendo-se nas suas juntas, pode tomar todas as posições possíveis.
– Se pusermos, continuou o filósofo, o giroscópio em movimento, e apontarmos o seu
eixo para o Sol, de manhã, o eixo o continuará apontando o dia todo, e também à noite, e,
fazendo uma rotação completa sobre si mesmo, estará no outro dia, apontando ainda para o Sol
no seu nascente. Tiremos, já, umas conseqüências deste fato. Primeira: isto que descrevemos,
constitui uma prova de laboratório de que a Terra gira. Segunda: o eixo do giroscópio, visto que
acompanha o Sol, pode servir de relógio-de-sol, básico para o acerto de todos os outros relógios,
e capaz de dizer, exatamente, o lugar em que está o Sol, quando percorre os céus das regiões
antípodas. Terceira: colocando-se o giroscópio no centro duma “esfera celeste” transparente,
todos os movimentos dele dentro da esfera, não são dele, mas da Terra, do Sol, da Via-Láctea,
do Universo. Quarta: dada a fixidez do eixo giroscópico, pode o giroscópio ser usado como
bússola, com vantagem sobre a agulha-imantada, por não se desorientar, como esta, com as
tempestades magnéticas. Quinta: nos navios de guerra, os giroscópios servem para fixar as
pontarias dos canhões; só, então, se dá ao gatilho, quando o alvo passar pelo centro do visor
telescópico. Sexta: nas embarcações marítimas de pequeno calado, e por isso muito balouçantes,
usa-se o giroscópio para torná-las mais tranqüilas; os movimentos são amortecidos pela inércia
de um grande giroscópio preso ao cavername e corpo da embarcação. Sétima: o giroscópio pode
manter, sem deixar cair para os lados, quer parado, quer andando, um tem monotrilho. Oitava: o
giroscópio, por ser “uma coisa parada” (!), pode servir de ponto de referência absoluto, para
todos os outros movimentos; com isto, afirmamos nada menos que o giroscópio é uma coisa
como que fora da relatividade; é um absoluto dínamo-mecânico.
E após refazer-se da fadiga, numa pausa, prosseguiu:
– Dissemos que a inércia giroscópica resulta da soma das inércias das partículas que
constituem o corpo do giroscópio. Cada partícula está presa ao eixo do sistema, e quer manter
sua trajetória circular. As partículas giram em plano perpendicular ao eixo, e a soma das inércias
de cada elemento determina a fixidez do eixo. Ou de outro modo: o eixo não varia sua direção,
porque, isto seria variar as trajetórias de todas as partículas. Suponhamos, agora, que enchemos
um caixote cúbico com vários giroscópios, cada um com seu eixo apontando para uma direção
diferente. Façamos os eixos fixados às paredes internas, cada um como dissemos, orientado
segundo um sentido diferente, a começar pelo do comprimento, pelo da largura e pelo da altura.
Essa caixa, quando os giroscópios forem postos em movimento, reagirá a qualquer mudança de
posição. A caixa terá uma inércia maior, do que quando os giroscópios estão parados. Ora, aqui
está, pura e simplesmente, a causa da inércia da matéria. A inércia da matéria resulta de que toda
ela se constitui de blocos de infra-micro-giroscópios atômicos; e como os elétrons e satélites do
227
núcleo não giram em plano, mas em todos os sentidos do espaço, um só átomo é como se fosse a
micro-miniatura da nossa caixa. Cada elétron, falemos só destes, e não, dos poderosos satélites
vorticosos do núcleo; cada elétron, em girando em torno do núcleo, pode ser interpretado como
um disco de latão de nossos giroscópios comuns. Cada disco destes, ou seja, cada órbita
eletrônica, girando em plano diferente, cria uma inércia que reage a todas as mudanças de
direção. Esta inércia é tanto maior, quanto maior for o número de ultra-micro-giroscópios
eletrônicos existentes no átomo. Por isto, um átomo de chumbo, com seus 82 elétrons, tem,
forçosamente, de apresentar maior inércia, do que um átomo de alumínio, com seus 13 elétrons
apenas. Assim, uma barra de trilho tem mais inércia do que nós, e ambos, nós e ela, se
estivermos suspensos no espaço interplanetário, conquanto não tivéssemos peso, teríamos
inércia; e como a dela é maior do que a nossa, se quiséssemos empurrar para a frente a barra, ela
reagiria, e nós é que iríamos para trás. O caso é semelhante ao de quando pretendemos empurrar
um tora de madeira dentro d’água. Se a empurrarmos, nós é que cedemos, pois ela possui maior
inércia do que nós. Inércia, por conseguinte, nada tem a ver com peso; inércia é massa, é
quantidade de matéria, é número de ultra-micro-giroscópios atômicos.
Neste ponto dona Cornélia entrou na sala com o café; e após tomá-lo todos, e de muitos
acenderem seus cigarros, o mestre continuou:
– Esta teoria, em rigor, se deve aplicar ao núcleo atômico, e não tanto às calotas
eletrônicas. Quando se fizer mais luz na escuridão do núcleo, esta teoria se transferirá para aí,
que é o seu verdadeiro lugar. O núcleo é vorticoso, assim como todas as partículas constitutivas
dele; podemos afirmar que, se as velocidades de translação eletrônicas dão volume e rigidez à
matéria, os núcleos dos átomos lhe dão peso. Falamos de rigidez sensorial, certamente, porque se
nos ativermos à rigidez em sentido estrito, científico, então, teremos de afirmar que nada pode
existir mais duro, mais rígido e mais impenetrável, do que um núcleo atômico. Veja lá se alguém
pode imaginar quão espantosas hão de ser aí as velocidades ! Todavia, se esses torvelinhos se
desfizessem, oscilariam o campo eletrônico do espaço em ondas, e este desfazer-se, significaria
que se transformaram em energia. O que antes era massa que podia ser pesada numa balança,
desfeitos os vórtices, as ondas já não teriam peso. A massa, então, ter-se-ia transformado em
energia, e a substância do vórtice retornaria ao reservatório etéreo, isto é, ao meio corpuscular do
Prof. March. Ao desfazer-se o vórtice, ter-se-ia ele transformado em energia, ou seja,
desencurvado da forma material para a forma dinâmica.
E ponderando um pouco, em silêncio, prosseguiu:
– Lançando-se u’a massa no espaço, ela quer manter-se em trajetória retilínea; se fizermos
rodar em torno de nós uma pedra atada a um barbante, ela manterá sua trajetória circular, sempre
num mesmo plano, apesar dos movimentos desordenados que façamos com a mão que segura o
barbante. E se, em vez de barbante, empregarmos uma haste rígida, com a pedra atada à ponta,
quando esta for posta em movimento circular, já nossa mão não poderá executar movimentos que
impliquem na mudança de posição da haste e, conseguintemente, na alteração do plano da
trajetória da pedra; qualquer tentativa, neste sentido, será frustrada pela inércia do movimento.
Isto todos poderão comprovar pela experiência. Ora, este macro fenômeno reproduz-se ultra-
micrometricamente, nos interiores da matéria, onde massas, igualmente, se estão movendo em
espaços. De modos que a inércia dos corpos, observada por Galileu, existe como decorrência
daquela outra inércia, a atômica, pois é axiomático que se os movimentos atômicos e nucleares
cessassem, a matéria se desvaneceria em um pouco de névoa impalpável, logicamente, sem
massa nem inércia. Pelo visto, o princípio de inércia de Galileu não é fundamental, e antes
decorrente da lei mais geral da inércia giroscópica, visto como o porque de os corpos em
movimento, resistirem às mudanças de rota, está em que todos eles, sem nenhuma exceção, são
constituídos de ultra-micro-giroscópios núcleo-eletrônicos. Galileu constatou o fato, e nós
estamos dando o porque dele. Logo, o princípio mais geral não há de ser o de Galileu, mas, este,
da inércia giroscópica. Entretanto, a inércia atômica seria ininteligível, se não conhecêssemos a
outra inércia, a dos corpos, que, por ser um macro fenômeno, está nos limites das nossas
intuições sensíveis. Não se vá, portanto, dizer que incorremos no que os lógicos chamam de
círculo, uma vez que explicamos a inércia giroscópica pela inércia de Galileu, e vice-versa.
Trata-se de ler o livro da natureza em caracteres grandes, antes de em caracteres minúsculos,
228
conforme o recomenda Platão. Contudo se aí, meu inteligente Bruco, apesar disto, me acusar a
mim e a Platão de incorrermos no círculo, de modo que as falas de Platão não passam de
artifício, responder-lhe-ei deste modo: abaixo e acima do sensorial situa-se o incognoscível, para
as mentes apenas racionais. E qualquer intuitivo, quando fala a racionais, há de pautar-se pelas
limitações deste, caindo, irremediavelmente, no círculo, porque a razão é circular e fechada para
todos os lados.
– Mas eu nem pensei em falar nada, prezado Árago, obtemperou Bruco.
– Então, se não pensou, perdi meu tempo em prevenir esta réplica! Neste caso, toquemos
por diante. Estávamos falando da pedra atada a ponta de um barbante, para fazê-la rodar ao nosso
redor. E atrás falamos do caixote contendo giroscópios vários orientados segundo as três
dimensões do espaço. Façamos isto agora: amarremos um cabo flexível ao caixote, para fazê-lo
girar, como a pedra, ao nosso redor. Estando os giroscópios em movimento, teriam de mudar
continuamente as posições dos seus eixos, e a isto resistiriam; todavia, se, apesar de tudo,
tivessem de mover-se, haviam de querer que o movimento fosse o retilíneo. Mesmo que
forçássemos a caixa ao movimento rotatório, rompido o cabo que a prende ao centro, a nós, ela
faria o caminho de uma reta tangencial à circunferência que antes, por força, descrevia.
E munindo-se de três lápis, prosseguiu o mestre:
– Para objetivar, tomemos estes lápis, e os metamos pelos vãos dos dedos, assim, de
modo que fiquem, os três, representando as três dimensões do espaço, isto é, comprimento,
largura e altura. Os lápis, assim colocados, formam três ângulos retos entre si, como se fora um
dos cantos duma caixa cúbica. Podemos deslocar a mão, à vontade, para diante, para atrás, para
cima, para baixo, para a direita e para a esquerda, sem que os sentidos destes eixos (lápis) se
alterem. Basta, contudo, movermos a mão em curvas, e já os eixos apontam para outros pontos,
que não, os anteriores. Estes lápis, em minha mão, representam os eixos dos giroscópios contidos
na caixa. É por isso que o movimento de mínima resistência, seja para a caixa, seja para a pedra,
é o retilíneo. Os corpos, a matéria, querem seguir a trajetória retilínea, por se constituírem de
ultra-micro-giroscópios. Logo, a lei de inércia de Galileu é uma decorrência da inércia
giroscópica, e não o contrário. Como vimos, se os giroscópios forem postos em movimento, a
caixa resistirá a todas as mudanças de posição, porque isto seria mudar o sentido em que
apontam os eixos. No entanto, se a quisermos fazer deslocar-se, o movimento de mínima
resistência é o retilíneo, e o de máxima, o curvilíneo. A causa disto é muito clara, pois o
movimento retilíneo não muda as posições dos eixos; entretanto, o curvilíneo representa uma
constante mudança de suas posições.
– Não existe, por isso, continuou o pensador, nenhum turbilhão (giroscópio) capaz de
rodar, preso à uma só extremidade de seu eixo, de modo que este eixo varra, ou percorra um
círculo, como se fôra raio deste. Qualquer remoinho, ao deslocar-se, ainda que seja em círculo,
ao redor de algum centro, só o fará, de modo a manter seu próprio eixo paralelo ao daquele
centro ao qual estiver fixado. É assim que os eixos da Terra, do Sol, da Lua, do sistema
planetário, etc., são mais ou menos paralelos entre si. Quer dizer que o equador tende a coincidir
com a eclíptica. Se prolongássemos o eixo da Terra para além dos pólos, conceberíamos que,
com a translação terrestre, esse eixo traçaria, no espaço, um grande cilindro oco, em cujo centro
estaria o Sol. O eixo desse grande cilindro imaginário coincidiria com o do Sol. Não obstante, os
elétrons não giram em plano, e nisto também o sistema planetário atômico difere do solar. Os
elétrons giram em todos os sentidos do espaço. Quer dizer que um átomo não tem equador nem
pólos, em sentido “geográfico”. Todavia, podemos conceber que, se prolongássemos o eixo de
um elétron, este eixo eletrônico, com a translação do elétron, traçaria um cilindro, em cujo centro
fica o núcleo. Deste modo, o eixo do cilindro passaria pelo centro do núcleo. Outro elétron que
girasse noutro sentido do espaço, traçaria outro cilindro, cujo eixo cortaria, igualmente, o núcleo,
porém, noutra posição. Os cilindros seriam tantos, quantos fossem as órbitas eletrônicas, e os
eixos daqueles cilindros cortariam em tantas posições o núcleo atômico, que este ficaria como se
fôra um pindá (ouriço-do-mar). Cada espinho do pindá, varando a esfera nuclear, se continuaria
no seu antípoda, constituindo o eixo de um cilindro eletrônico. Concluímos agora:
– Cada eixo destes tem sua inércia giroscópica, e um só átomo seria semelhante a caixa
referida há pouco, cheia de giroscópios. Se isto acontece em relação a um único átomo, que
229
acontecerá num bloco de matéria? A inércia, pois, de qualquer porção de matéria é a integral das
inércias giroscópicas de cada elemento de que se compõe o sistema. Um átomo qualquer, exceto
o de hidrogênio, não possui um eixo, mas, um núcleo que representa o cruzamento, ou ponto
comum, de muitos eixos, e o número destes é igual ao de elétrons do sistema planetário atômico.
Por esta causa, quando se quer mover um corpo, ele resiste, com uma inércia que é,
exclusivamente, filha do movimento. Quer dizer que a inércia do repouso resulta da inércia do
movimento, pelo que podemos construir este paradoxo científico: a matéria quer ficar parada
porque se move, e tanto mais será inerte, parada, imóvel, quanto maior for sua velocidade; a
matéria não se move porque se move. Todavia, se as velocidades e movimentos cessassem, ela se
moveria, já não querendo mais ficar parada, por ter perdido aquela força de querer, que é a
inércia (!). Inércia é a cristalização do poder da vontade de mover-se em determinismo do
movimento.
E voltando-se o filósofo para Bruco, fez-lhe esta proposição.
– Do quanto ficou dito, prezado Bruco, qual o movimento de maior resistência: o duma
esfera que rola, ou de outra que desliza?
– Suprimindo-se o atrito da superfície sobre a qual se dão os dois movimentos, a esfera
que desliza executa um movimento de menor resistência, porque os eixos dos vórtices
eletrônicos da matéria conservam sempre suas posições. Já na esfera que rola, esses eixos são
compelidos a mudar constantemente suas direções. Portanto o movimento de rolar é de maior
resistência inercial do que o de deslizar.
– Muito bem, Bruco! Isso prova que você entendeu bem minha explicação. Agora
vejamos outra coisa: podemos fazer a caixa de giroscópios mover-se, circularmente, em torno de
um centro, com os giroscópios parados, no seu interior; então notaremos que a força centrífuga
desenvolvida por ela, é uma. Sem pararmos o movimento da caixa, ligamos, agora, corrente
elétrica aos giroscópios, e, tanto que eles comecem a girar, a força centrífuga da caixa aumentará
mais. Ora, se a velocidade continua a mesma, o raio, o mesmo, por que aumentou a força
centrífuga? Pois aumentou, porque aumentou a massa, isto é, a inércia interior, com que, a caixa,
com mais violência, quis partir o cabo, para seguir pela tangente da circunferência. Quando
estudamos o redemoinho aéreo, verificamos que quando não há movimento de correntes aéreas
encontradas, não há remoinhos; depois, com correntes de ar fracas formam-se pequenos vórtices;
se as correntes de ar crescem, o turbilhão aumenta, e quando as correntes de ar forem tufões, o
ciclone será tornado arrasador que vai moendo tudo pelo caminho, deixando atrás de si uma
estrada de destroços, de ruínas, de caos. Do mesmo modo que os remoinhos são filhos do
movimento e crescem com o crescer deste, o pião e o giroscópio ao girarem, criam um campo
cinético que passa a pertencer ao corpo em movimento, de sorte que ele cresceu de massa. Os
elétrons livres no espaço não se acham desordenados; pelo contrário, formam uma trama de
associações em série, paralela e mista, verdadeiro oceano eletrônico, com propriedades, portanto,
eletromagnéticas. Apresenta, por conseguinte, as propriedades do ar em extrema rarefação, e, ao
mesmo tempo, a rigidez do aço mais duro, no sentido, não de dureza sensorial, mas no de que, só
num meio duro como o aço, se poderá propagar ondas com velocidade da luz. Esse campo
eletrônico espacial se diversifica na proximidade de qualquer pedaço de matéria, consistindo isto
no seu campo próprio, isto é, particular. Suponhamos que este pedaço de matéria é o pião: posto
este em movimento, seu campo particular se associa ao próximo, arrastando-o para o seu
sistema. Com isto sua matéria aumenta, visto que a matéria de qualquer corpo é o seu corpo
visível mais o seu campo eletrônico. O campo de um corpo em movimento gira com o corpo, por
estar conectado à massa deste, e arrasta para si, parte do campo espacial próximo. É por isto que
um corpo em movimento tem sua massa aumentada, e nenhum corpo material pode atingir a
velocidade da luz, porque se isto acontecesse, sua massa se tornaria infinita. Está ficando bem
claro isto, Bruco?
– Está.
– Fornecer energia, portanto, a um corpo, é o mesmo que aumentar a velocidade íntima
do sistema, e esta velocidade íntima se reflete, exteriormente, como campo eletromagnético,
porque, como ficou dito, força o campo geral a aderir ao restrito, ou seja, ao do corpo. O corpo,
neste caso, aumentou de massa, isto é, de quantidade de matéria. Como a gravidade atua na
230
massa, um corpo acrescido de energia, pesa mais. Um pedaço de ferro em brasa pesa mais do que
um frio, conquanto isto não se possa averiguar por meio de balança. E depois de a energia ter-se
transformado na massa, na velocidade, fornecer ao corpo mais energia seria o mesmo que
aumentar-lhe mais a aceleração, e isto representa mais massa. Uma grama de matéria, a zero
absoluto, se for transformada em energia, dá vinte e dois bilhões de calorias. Logo, se
fornecermos vinte e dois bilhões de calorias a um corpo, ele pesará mais uma grama. A massa
do corpo aumenta, por lhe acelerarmos a velocidade íntima do sistema, com a conseqüente
ampliação do seu campo eletrônico externo. E qualquer outro tipo de aceleração, que não o
obtido por meio do calor, igualmente, resulta em aumento de massa. Se, portanto, um corpo
rodopiar sobre si mesmo, como o pião, ou deslocar-se no espaço, como a bala, num e noutro caso
terá sua massa aumentada. O pião, o giroscópio e a bala, quando em movimento, tem mais massa
do que quando em repouso, e esta massa virtual será tanto maior, quanto maiores forem suas
velocidades. Se o calor aumenta a massa, por transformar-se no seio da matéria, em energia
cinética que é energia do movimento; se dar calor à matéria significa aumentar-lhe a massa, por
lhe acelerar a velocidade, segue-se que massa e energia são termos eqüivalentes, e dar energia à
massa é o mesmo que dar massa à massa, isto é, dar massa-energia à massa matéria. Se quando
os movimentos íntimos se aceleram, a massa aumenta, pela recíproca, se os movimentos íntimos
diminuíssem e cessassem, a matéria mudaria de estado, e, desmaterializando-se, voltaria àquela
antiga e primeira névoa de pó impalpável que é o espaço de estrutura granulosa do Prof. March.
Conseqüentemente, na prática, a lei de Lavoisier, de que o peso dos reagentes é igual ao peso
dos produtos da reação, está de pé. Teoricamente, porém, e para os grandes cálculos, não é
válida, porque se a reação química desprendeu ou absorveu energia, esta precisa ser contada. Se
a massa (matéria) se transforma em energia (E = M. C 2), quando uma reação é endotérmica, isto
é, absorve calor, os produtos da reação pesam mais do que os reagentes. Se, pelo contrário, a
reação é exotérmica, ou seja, desprende energia, o peso dos reagentes é maior do que o dos
produtos da reação. Contudo, na prática, nas operações de laboratório, não é preciso considerar
isto, e vale o princípio de Lavoisier. Se a matéria se transforma em energia e vice-versa, já não
precisamos estar falando, especificamente, de qualquer tipo de energia, pois, toda ela,
indistintamente, atuando sobre e na matéria, aumenta-lhe a massa. A massa, por conseguinte,
não é constante, porém, relativa, dependendo da velocidade da qual é ela função.
Fez silêncio o mestre. E com o olhar perdido no vazio, procurava concatenar novas idéias,
depois do que, prosseguiu:
– Nos laboratórios de pesquisas tecnológicas existem prensas para testar a resistência de
materiais, como por exemplo, a de blocos de cimento. Executam-se várias fórmulas de misturas,
construindo-se, com estas, vários blocos de cimento. Depois de eles secos, são levados à prensa,
para se verificar a quantas toneladas de pressão eles se esboroam, e a quantas de tração eles se
partem. Deste modo é que se sabe possuir, o cimento, muita resistência a esmagamento, porém,
pouco à tração. O resultado destas pesquisas leva o engenheiro a considerar, no cálculo de uma
estrutura de cimento armado, como hão de trabalhar o cimento e o ferro; onde houver tração, tem
que haver ferro; onde, compressão, cimento. A prensa do laboratório possui um dispositivo de
registro da força compressora, de sorte que, quando o bloco testado se esboroa, o registro mostra
a quantas toneladas de pressão o fenômeno se verificou. Bom. Usemos esta prensa, agora, na
seguinte experiência: ponhamos um prego apontado contra um bloco de madeira, e levemos
tudo à prensa. Por este processo experimental saberemos qual a pressão em quilos, necessária
para enfiar o prego no bloco de madeira. Empreguemos, a seguir, não a prensa, mas, um malho, e
com uma só pancada metamos o prego num bloco de madeira idêntico. Se o prego entrou no
bloco, à mesma profundidade que antes, é axiomático que a pressão do malho foi igual à da
prensa. Então podemos dizer que a força do malho foi de tantos quilos. Contudo o malho não
pesava tanto; donde, pois, apareceu a diferença de peso? Pois de nada a não ser da velocidade
com que ele foi acionado. Logo, a velocidade amplia e aumenta a massa. Suponhamos, agora,
que metemos o mesmo prego dentro dum fuzil, isto é, usamos um fuzil cuja bala seja igual ao
prego-teste. Atirando contra o bloco de madeira, a bala aprofundou-se como nos casos
anteriores. Antes tivemos uma pressão só da prensa, que agiu sem velocidade; depois, como a
massa real do malho era insuficiente para agir sozinha, tivemos de ampliá-la com o movimento,
231
conferindo-lhe u’a massa aparente. Agora não temos nem prensa, nem malho, conquanto
obtivéssemos o mesmo efeito. Que quer dizer isto? Pois diz, nada menos, que a massa do projétil
foi multiplicada pela sua velocidade. É assim que um projétil em movimento tem sua massa real
ampliada pela sua velocidade, pelo que ele entra num sólido, como se fôra um prego a cuja
cabeça se houvesse batido com um malho o qual, no movimento da pancada, desenvolvesse a
mesma força da bala. Tanto com a prensa, como com o malho, como com o fuzil, obtivemos um
mesmo efeito, que foi o de enfiar um sólido (bala-prego) num outro sólido (bloco de madeira) a
u’a mesma profundidade.
Fez silêncio o filósofo, e enquanto estava pensando no que havia de dizer, manifestou-se
Alcino Licas:
– Faz tempo já que eu estou vai não vai para fazer-lhe um pergunta.
– Pode fazê-la, Licas.
– O senhor fala em massa e em peso. Que relação há entre uma e outra coisa ?
– Uma coisa é o peso, e outra, a massa. Massa é a quantidade de matéria. Peso é essa
quantidade submetida à ação da gravidade. A massa é praticamente constante em qualquer ponto
do universo.
– Por que, retrucou Licas, o senhor diz que a massa é praticamente constante, se
teoricamente já nos demonstrou que ela é função da velocidade?
– Digo que é praticamente constante, porque, em nossa vida diária, em nosso contato
primário com as coisas, isto é, enquanto as coisas não nos são problemas, nem objetos de
pensamentos, a quantidade de matéria não muda. Nosso contato primário e prático com as coisas
não é o de conhecimento, como o entendia Kant. Quando compro um quilo de batatas no
mercado, e ao conferir o peso, em casa, noto a falta de cem gramas, nunca me ocorre que tal falta
resulte duma diminuição de velocidade dos átomos e das moléculas constituintes das batatas; ao
verificar a falta de peso, imediatamente penso que fui roubado. Fui roubado, porque a massa é
constante, concluo logo com meu pensamento primário ou prático. Por esta razão digo que a
massa é, praticamente, constante. Todavia, o peso varia de lugar a lugar, de planeta a planeta,
por representar a massa submetida à ação da gravidade do lugar. “O mesmo litro de água, que a
45 graus de latitude pesa 1.000 gramas, pesa 997 no Equador e 1002 no Pólo... “O mesmo litro
de água que na Terra pesa l Kg., na Lua pesará apenas 166 gramas. Não há razão, porém, para
susto: o mesmo litro de água colocado na superfície do Sol pesaria nada menos de 28 Kg.!”410.
Contudo a massa é praticamente constante, por representar a quantidade de matéria. Sendo a
massa praticamente constante, o peso varia de acordo com a variação da gravidade a que se dá o
nome de aceleração; esta aceleração é a gravidade do lugar; por isto é que um litro d’água
suspenso no espaço cósmico interplanetário, conquanto tenha inércia, não pesa. Este litro d’água,
de peso zero aqui, vai crescendo na proporção em que a gravidade atua sobre ele, até que, na
superfície da Lua pesa 166 gramas, na Terra, 1 Kg., e na do Sol, 28 Kg.
– Mas então, que é a gravidade? interrogou Licas.
– Ora, meu Licas, já estudamos isso! A gravidade é a força perífuga considerada de modo
isolado. A gravidade não é alguma coisa inerente à matéria, sem relação nenhuma com o
movimento, como até aqui se pensava. A gravidade resulta do movimento. O próprio Isaac
Newton não afirmou que existe atração recíproca das massas. “Muito acertadamente disse
Newton ao enunciar sua lei: “Tudo se passa como se nos corpos existisse uma força” sem afirmar
que tal força fosse uma realidade, pois certamente seria muito difícil concebê-la e mais ainda
compreender sua atuação. Por esse motivo alguns autores se inclinam a considerar a tendência
universal dos corpos à aproximação, não como uma força atrativa inerente à matéria, mas como
efeito de um impulso que, por certa analogia com a tensão superficial, poderia chamar-se tensão,
ou melhor, pressão espacial, igual em qualquer ponto do espaço e da mesma intensidade em
todas as direções, a não ser que se interponha a matéria, que então serviria como que de
anteparo”411. Podemos igualmente dizer, por nossa vez, que tudo se passa como se no espaço
existisse uma força premindo os corpos uns contra os outros, e todos contra a Terra.
– Porém, de que natureza é esse espaço? insistiu Licas.
410 Enciclopédia Prática Jackson, V, 324
411 Enciclopédia Prática Jackson, II, 358
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sobre seu próprio eixo, deveria existir um como “vento-de-éter” em sentido oposto ao do
movimento. Logo, projetando-se um raio de luz, primeiro no sentido rotacional da Terra, e
depois no sentido contrário, isto é, no mesmo sentido em que ela gira, no primeiro caso, a luz
teria sua velocidade menos a do “vento-de-eter”, e, no segundo, a teria somada à desse “vento”.
Feita a experiência, e depois, o cálculo, verificou-se que o resultado era zero, e isto quer dizer
que a Terra está parada em relação ao éter, e por isto, Einstein negou a existência dele. Não
obstante, segundo a hipótese que venho demonstrando, fica compreensível por que o cálculo de
Michelson deu zero. É que a Terra, em girando sobre si mesma, arrasta, com sua atmosfera, o
campo eletrônico ao qual toda a matéria está engastada. Uma camada do campo eletrônico
arrasta outra, pelo engastamento de associação de campos, movendo-se todo o oceano eletrônico
planetário, sendo maior esse mover-se, nas circunvizinhanças da crosta. É assim que existe um
campo dinamomaterial pelo qual se propagam as ondas gravíficas, luminosas, hertzianas, etc. A
Terra, portanto, está parada em relação a seu campo, precisamente porque este gira com ela.
Contudo a Terra, embora tenha seu campo eletrônico próprio, que é o que gira com ela, está
submersa no campo eletrônico solar que, por sua vez, se submerge no galáctico. Tanto a Terra
como o Sol, em girando sobre si, engasta-se com seu campo eletrônico, arrastando-o consigo;
mas o campo eletrônico solar, sendo mais vasto, abarca todo o seu sistema que gira com ele. Os
planetas, além de girarem sobre si mesmos, são levados, flutuantes, por esse meio. O meio
eletrônico circundante transmite uma tensão gravítica ao campo eletrônico planetário, ou de
outro modo: o campo solar pressiona-se com os planetários, e disto resulta a gravidade que é a
tal “pressão dos espaços” como afirmam os cientistas modernos. Esta pressão resulta da
densidade do campo etéreo espacial, que é variável, em virtude de o espaço achar-se em
movimento.
E prosseguiu o filósofo, após uma pausa:
– Quando estudamos o giroscópio, dissemos que ele, quando em movimento, cria um
campo gravífico, um campo cinético, um campo eletrônico, um campo de forças em torno de si.
Este campo é tanto maior, quanto maior for a massa em movimento, e quanto maior a
velocidade. E a fim de ver se aí, o Licas, entendeu o assunto, faço esta proposição: se gravidade
é força perífuga, ou pressão dos espaços, qual deve ser mais importante, a massa, ou o volume?
influiria o volume na formação do campo?
Tendo ponderado um tanto, respondeu Licas:
– Se a gravitação for função do volume planetário, aumentando-se o volume do planeta,
ipso facto, aumentar-se-á a gravitação. Penso que sim, porque se o campo eletrônico pega à
superfície, engasta-se nesta, aumentar a superfície equivale a aumentar a área do atrito em que o
campo eletrônico adere e faz pressão.
– Portanto, concluiu o mestre, o que vale é a superfície, e não, propriamente, o volume?
– Perfeitamente.
– Então, Licas, se dois astros da mesma superfície esférica, quer dizer do mesmo volume,
um oco e outro maciço, ambos teriam, em idênticas circunstâncias, a mesma gravitação?
– Penso que sim.
Depois de o pensador coçar a cabeça, argumentou esclarecendo:
– Um pião maciço de latão, igual, em volume, a um pião oco, quando ambos em
movimento, o maciço possui mais inércia giroscópica do que o oco, resistindo com mais energia
às mudanças de sentido de seu eixo. Contudo ambos tem a mesma superfície de atrito à mesma
velocidade; como, então, o pião maciço é mais inerte, Licas.
– Ah! então não sei!
– Você estaria com a verdade, prezado Licas, se superfície quisesse dizer massa. O atrito
do campo eletrônico não se dá só na superfície periférica, mas, em toda a estrutura interna dos
elementos formadores do campo em movimento. Se fosse só a superfície externa que valesse, o
peso dos corpos dependeria, também, de seu volume, pois, uma esfera maciça deveria pesar
menos do que ela mesma, se distendida em lâmina finíssima. Esta claro que a pressão do espaço
acharia mais superfície em que calcar contra a Terra, na lâmina, que na esfera. Logo, a lâmina
pesaria mais. Entretanto, o peso não depende da superfície, do volume. Portanto, a pressão do
espaço atua sobre todas as partes constituintes dos átomos do corpo, e não somente na superfície
234
externa. Ora, um corpo pesado possui mais massa, mais matéria, mais átomos, que um leve.
Então a atuação do espaço, no material de que se constitui o corpo, dá uma componente
gravitacional maior no corpo pesado que no leve, independendo, isto, da superfície externa. Esta
pressão dos espaços, que gostamos mais de chamá-la perífuga, atua no corpo, e sua ação se faz
sentir dentro dos átomos, atingindo todos os seus elementos, por causa de serem forças da
mesma natureza gravífica. Por outras palavras, a gravidade atua no campo eletrônico-gravífico
da matéria, o qual está engastado a ela até as profundezas. Este acoplamento por proximidade
genética ou estrutural, ou ainda, por sintonização entre iguais, é o que o norte-americano chama
de “fluid-drive”, ou seja, acoplamento fluídico, ou acoplamento elástico da mecânica. Dois
ventiladores, um contra o outro, um ligado à força elétrica, e o outro não, ambos giram, porque,
se um é motor, o outro é movido; um é ventilador, e outro, ventoinha. O ar faz o acoplamento
entre as hélices. Suponha-se, agora, que uma roda de palhetas helicoidais se opõe a outra roda
idêntica, a uma distância de um a dois centímetros, ambas contidas por uma caixa de ferro cheia
de um fluido viscoso. Uma das rodas é motora, por estar conectada, diretamente, ao motor; a
outra é movida, e transmite o seu movimento ao restante do maquinismo. Tal sistema permite
arranques macios, porque as diferenças muito grandes de velocidade são suavizadas pelos
deslizamentos. Este processo de conexão fluídica que demos o nome de engastamento de
campos, é o “fluid-drive” ou acoplamento elástico.
E feita uma pausa, prosseguiu:
– O campo etéreo-eletrônico tanto está fora, no espaço exterior à matéria, como dentro
dos átomos, e ainda nos espaços intra-atômicos e inter-moleculares. Assim, qualquer movimento
vindo de fora, do meio eletrônico externo, se transmite dentro, nos átomos, por meio do
acoplamento elástico. Igualmente, qualquer movimento dentro, nos átomos, se transmite fora, no
meio eletrônico periférico fazendo-o mover-se; é por isto que se forma em torno dos corpos em
movimento um campo cinético, ou seja, de forças gravíficas. No primeiro impacto de uma força
sobre um corpo, este responde com sua inércia, porque os seus elementos constituintes estão
engastados, conectados, ao campo geral, o qual, por estar movendo-se noutros sentidos, quer
manter o corpo parado. Mas o esforço, atuando sobre o corpo, vence a sua inércia e o faz
deslocar-se. Então ele arrasta parte do campo eletrônico externo consigo, e este campo, mesmo
cessado o impulso, quer manter o corpo em movimento. Qualquer novo impulso dado ao corpo,
implicaria na apreensão de mais campo externo, o que significa nova inércia a vencer. A inércia,
portanto, é propriedade gravífica dos campos, produzida pelo movimento, e que, por isso, resiste
ou a novos impulsos, ou a mudanças de direção. Está bem claro isto, agora, Licas?
– Está.
– Emprestando-se energia a um corpo, ele aumenta de massa, e este aumento é
exatamente, a do campo cinético que se lhe adere, tomado de fora. Emprestando-se calor a um
corpo, este passa a pesar mais, e isto é pacífico, uma vez que a ciência demonstrou que energia e
massa são termos reversíveis. Ora, quando fornecemos energia calorífica, a um corpo, ele passa a
pesar mais, porque há uma aceleração intrínseca dos movimentos atômicos com o conseqüente
reflexo no campo do espaço adjacente. O calor transforma-se, na intimidade dos átomos, em
energia cinética, energia de movimento, e velocidade é massa. Este é um modo de aumentar a
massa a um corpo, atuando de dentro para fora. Todavia podemos, também, atuar de fora para
dentro, obtendo o mesmo resultado. Por isso, se fornecermos, diretamente, energia cinética, ou
seja movimento, a um corpo, pela mesma razão, ele, também, aumenta de peso. Fazendo mover-
se um corpo, ele aumenta de massa, seja esse movimento de rotação, seja de translação que é o
de deslocação no espaço. Campo eletrônico é o que está fora, e campo eletrônico é o que está
dentro do corpo, na intimidade dos átomos, ligando os elétrons ao núcleo, e eles entre si. O
campo externo prime-se contra o campo de dentro, isto é, o campo gravitacional do espaço
cósmico, mais aberto, atua sobre o campo do espaço atômico, mais encurvado. O núcleo atômico
se move sobre si mesmo, em vórtice, engastado, ou acoplado aos satélites seus, que lhe são
menores. Ao girar, ele move o campo seu, ao seu redor, e este arrasta os elétrons nas órbitas,
atuando nestes por meio duma energia tensional que é, ao mesmo tempo, gravitação e
eletromagnetismo. Por isso a teoria do campo unificado de Einstein tem sua exemplificação no
próprio átomo. Quando se fornece calor a um corpo, os elétrons o recebem, acelerando, por isso,
235
os seus movimentos de translação em torno do núcleo. Este deslocamento dos elétrons, como se
faz num meio etéreo (espaço corpuscular do Prof. March), arrasta o meio, pelo que o movimento
se comunica de calota em calota até o núcleo, fazendo todo o sistema pulsar mais intensamente,
o que representa maior massa. A energia do movimento eletrônico, nas calotas, se comunica ao
núcleo, como tensão puxa-empurra rapidíssimo, de freqüência curtíssima, maior que a da luz, e
esta altíssima freqüência da tensão do movimento se chama gravitação. Por outro lado, os
elétrons, rodando mais rapidamente sobre si mesmos, ampliam seus vórtices eletromagnéticos,
tendendo a afastar-se mais uns dos outros. Este afastamento, por conseguinte, resulta de dois
efeitos que são o gravífico e o eletromagnético, agindo, coordenadamente. O resultado sensorial
deste acontecimento intrínseco é a dilatação de volume do corpo.
E voltando o filósofo para Alcino Licas, disse-lhe:
– Agora, meu caro Licas, depois de todo este desenvolvimento dialético, poderemos achar
a relação entre superfície e massa. Conquanto nas regiões interplanetárias os corpos não tenham
peso, têm, todavia, massa, e esta se manifesta como inércia. A inércia não resulta somente da
soma dos infra-micro-giroscópios atômicos, senão, também, de que, ao mover-se, o corpo, terá
de ser movido o campo exterior que se lhe associa ao campo particular, campo este que se acha
engastado aos torvelinhos interiores eletrônicos e nucleares. O núcleo atômico tem mais peso,
inércia e matéria, sendo ele quase todo o átomo, precisamente, por ser aí que o campo
gravitacional atua, por causa da natureza cinética de ambos. Um pião de chumbo, maciço, tem
mais inércia e massa que um de pau. Se ambos fossem moídos e reduzidos a pó impalpável, o de
chumbo daria mais pó, porque possui menos espaços vazios do que o pião de pau. Ora, reduzir
um sólido a poeira impalpável é aumentar-lhe a superfície, ou torná-lo todo superfície. Se,
quando o sólido era um bloco, a superfície era só a externa, agora, depois de moído, a superfície
é a integral de todas as superfícies de cada grão de pó. E quando os grãos de pó se tornarem
infinitesimais, isto é, tendentes para zero volume, a massa total do sólido ter-se-ia tornado, todo,
superfície. Pois é nesta superfície intrínseca, e não na superfície geométrica, que o campo etéreo-
eletrônico-gravífico atua. Mais superfície, neste sentido, por conseguinte, tem de ser
interpretado como maior quantidade de matéria, maior superfície intrínseca de acoplamento, de
engaste, e isto quer dizer mais massa. O que vale, meu Licas, é a superfície-massa, que não a
superfície geométrica, pois aquela representa a superfície intrínseca, somatorial de todas as áreas
particulares.
– Então, continuou o mestre, a inércia resulta do atrito com o meio muito rígido, mas,
imponderável, que é o campo eletrônico; quando a resistência do meio é vencida, e o corpo se
move, quer esse meio continuar o movimento, e agora é ele que arrasta aquilo que, outrora, fora
o seu motor. Deste modo, um planeta oco, conquanto tenha o mesmo volume de um maciço, terá
menor inércia e gravidade, porque, em seu movimento, cria um campo eletrônico menor que o
maciço. E a pressão dos espaços, que é a gravitação, depende da reação dos campos, havendo
maior reação e pressão, onde houver mais volumoso campo, embora este circunde u’a massa
grande, porém, concentrada em volume pequeno. Será que alguém poderá ser mais
minuciosamente claro que eu, Licas ?
– Não... Não pode haver maior clareza e esmiuçamento que o seu.
– A ser verdade mesmo, prosseguiu o mestre, que há discos voadores, temos de supor que
esses engenhos não se comburem, pelo atrito com o ar, precisamente porque devem possuir um
movimento de rotação vertiginoso, em razão do que se forma, em torno dele, um campo
gravífico, cinético ou eletrônico. E este campo que se atrita com o ar, e não o corpo metálico do
disco. Os que dizem ter visto tais máquinas, no-las descrevem com três esferas na parte inferior;
pois essas esferas não podem ser outra coisa, senão giroscópios orientados segundo as três
dimensões do espaço. Um bólide se consome, ao entrar na atmosfera pelo atrito com o ar; no
entanto, aquela sua velocidade pode ser atingida pela periferia duma roda, sem que ela, sequer,
se aqueça. É que a roda, em girando, produz um campo, e este é o que se atrita com o ar, e não a
roda propriamente dita.
E pondo-se o filósofo profundamente a meditar, por alguns instantes, continuou:
– Ainda quero tecer mais alguns comentários sobre este assunto. Se o que eu disser for
aproveitável, muito bem; se o não for, não tem importância. O que importa é construir hipóteses,
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pois que o saber não se constrói sem elas. Quem, por conseguinte, não se arrisca a errar, por
isso mesmo, fica impedido de encontrar a verdade. Vocês têm de aprender comigo esta forma de
coragem... a coragem de errar. Todos os filósofos a tiveram, e errando e acertando todos, todos
construíram a filosofia. Eu não me curvo, respeitoso, diante de Platão, diante de Aristóteles,
diante de Kant, pelos seus acertos; curvo-me também diante deles, pelos seus erros!
Disse. E desfazendo pouco a pouco em seu semblante o ar grave, de heróica
responsabilidade, prosseguiu:
– Como dizíamos há pouco, para o campo eletrônico não há só a superfície externa, onde
se atrita o ar, porém, há a superfície interna, somatorial de todos os elementos componentes do
corpo; trata-se duma superfície-quantidade, superfície-massa. Disto, temos que uma esfera
planetária feita toda de lítio, embora maior do que uma de chumbo, possui menor gravitação, e
também gravidade, ainda que todos os outros fatores sejam constantes para as duas astroesferas
metálicas. Deste modo, sempre que nos referimos à massa, entendemos que isto é a quantidade
de matéria que integra o corpo, ou seja, a quantidade de espaço objetivo, ou ainda, de éter
concentrado nos vórtices constitutivos da matéria. E como os elementos constituintes dos
núcleos atômicos estão no nível genético do éter, é aí, nos núcleos, que se dão os engastamentos,
e qualquer movimento do corpo significa movimento do éter circunjacente, com a conseqüente
formação do campo cinético etéreo, eletrônico e gravífico. Só o volume exterior, sem se dizer do
que se compõe o corpo, nada significa. Plutão é mil e trezentas vezes, ou mais, menor do que
Júpiter; e, pois, como é tão periférico no sistema solar? É que seu material é o mais denso do
sistema, podendo ter, concentrada, mais massa do que Júpiter. Cada planeta ou astro ocupa a
órbita que lhe determinaram suas características. Se fossem todos iguais, ocupariam a mesma
órbita. Todavia, porque são dessemelhantes, ocupam órbitas diversas. Isto mesmo se poderia
dizer dos elétrons das órbitas atômicas, que não são iguais entre si, pois, se o fossem, razão não
haveria para ocuparem nada menos que sete esferas, ou calotas, ou níveis de energia, a partir do
núcleo. Os elétrons periféricos são mais frouxos do que os internos, mais degradados e com
menores características dinâmicas; estão prestes a se desprenderem para se abrir em ondas. E
mais: quando um átomo recebe calor, seus elétrons começam a saltar de uma esfera para outra, e
esse oscilar eletrônico desenha uma onda ao redor do átomo, que se propaga no espaço. Mas
este saltitar do elétron é acompanhado do abrir-se e fechar-se do seu vórtice, de modo que,
juntamente com as ondas que produz o saltitar, seguem outras, muito curtas, que são as
gravíficas. Os elétrons internos são, ao contrário dos periféricos, altamente dinâmicos, as ondas
que produzem ao oscilar, são mais curtas, e se chegam a abandonar o núcleo, fazem-no com
prodigiosa energia. Os elétrons periféricos são matéria (encurvamento de onda) no último grau
de amadurecimento, semelhantes a Plutão que é quase só feito de corpos velhos e radioativos,
enquanto que os elétrons interiores, próximos ao núcleo, são ainda jovens, fechados, materiais.
Se os elétrons periféricos correspondem ao planeta Plutão, os internos correspondem a Mercúrio.
E prosseguiu o pensador, após uma pausa:
– Assim como, quanto mais se vai para o centro da Terra, tanto mais se escasseiam os
materiais radioativos, também estes se rarefazem, se nos encaminhamos para o centro genético
do sistema, seja este planetário, seja galáctico; inversamente, se buscarmos os planetas
exteriores, formados da massa periférica da nebulosa, mais se acentuam os elementos
radioativos, até que, ao chegarmos à zona rígida das galáxias, encontramos astros em plena
decomposição atômica que são as estrelas “novae” ou novas. Cumpre notar, todavia, que nossa
referência a Plutão, como pertencente à família solar, não é rigorosa. Pode ser que Plutão seja,
assim como Urano e Netuno, filho adotivo do Sol, isto é, incorporado mais tarde à família solar.
De Urano e de Netuno, se sabe que têm movimento de rotação retrógrado. Se um astro estiver
gravitando o Sol, no espaço, em passando a Terra, por exemplo, pelas proximidades dele, fá-lo-ia
cair sobre ela, e caindo ele na resultante dos dois movimentos, o de translação que fazia, e o da
queda, transformar-se-ia em satélite da Terra, como é a Lua. Assim é, também, que o Sol
incorpora à sua família mais planetas. Igualmente é assim, que acontece com os bólides.
Suponhamos que o aerólito esteja (e é o que sucede), animado de prodigiosa velocidade em
sentido tangencial à superfície da Terra; neste caso, se a Terra o solicita, ele cai no sentido da
resultante das duas forças: a de gravitação terrestre, e a de que está animado. Faz, portanto, uma
237
curva em torno da Terra, tornando-se um satélite minúsculo, semelhante aos artificiais que os
russos e os americano soltam. É por isso que, no universo se pode dizer que tudo está caindo. É
deste jeito que um planeta pode passar a integrar um sistema diferente, e apresentar, às vezes,
movimentos de rotação mais rápidos, e as vezes retrógrados. O que não pode ser, e não há
exemplo disto, é o planeta transladar-se ao arrepio ou contra a corrente do campo do astro rei que
governa o sistema. Por isso, um satélite que faça sua órbita no mesmo sentido do dos astros no
céu, tem vida mais curta do que aquele que corta os céus em sentido contrário ao das estrelas; ir
contra o movimento aparente das estrelas é estar favorável ao campo terrestre. A Terra gira do
oriente para o ocidente; pois os satélites devem gravitar, também, nesse sentido, que, do
contrário terão vida mais curta. Todavia, nenhum satélite artificial poderá manter-se muito tempo
(como também não se mantém nenhum bólide), no espaço terrestre, porque a velocidade ou
impulsão que lhe imprimiu o foguete, se vai, lentamente, diminuindo por causa do atrito com o
campo eletrônico. Se tal campo não oferecesse nenhuma resistência, o satélite continuaria,
indefinidamente, no espaço; contudo a velocidade não se mantém, e o satélite descreve uma
espiral de fechamento constante. Logo, o campo eletrônico oferece resistência. O satélite
descreve uma espiral de fechamentos mínimos, e quando entra na atmosfera, como acontece aos
aerólitos, se combure e se consome. É por esta razão que os bólides são sempre vistos riscando
de luz o céu, em posição tangencial à superfície da Terra, e nunca, caindo em direção ortogonal
ou vertical. E antes de se tornarem aerólitos, por algum tempo, foram satélites. Os satélites caem,
como também, os aerólitos, porque são muito pequenos, sem quase massa e sem campo cinético
suficiente para ser considerado um membro da família planetária; eles não vão além de fetos
planetários. A Lua não cai, e até se está afastando na proporção de um centímetro por ano,
(Fritz Kahn, O Livro da Natureza, I, 190), porque está energizada pelo seu campo, o qual está
conexo com os campos terrestre e solar, dos quais recebe impulso translativo pelo sistema da
alavanca lunar, conforme o expliquei. Se o satélite artificial rodasse sobre si mesmo,
vertiginosamente, fosse para a direita, fosse para a esquerda, então formar-se-ia ao seu redor um
campo cinético; e se ele se transladasse no mesmo sentido do sistema planetário solar, este
atuaria nele fazendo-o manter-se acelerado; já, deste modo, não seria um feto planetário, porém,
um filho adotivo pequenino. Tal é o princípio sideral que mantém os astros em suas órbitas.
Penso que esta parte ficou bem esclarecida.
E dava mostras o pensador de que este assunto estava encerrado, quando interveio Bruco:
– Aristóteles escreveu que duas massas de pesos diferentes, porém, da mesma substância
e forma, abandonadas no espaço, caem com velocidades diferentes, sendo as velocidades
proporcionais às massas. Assim duas esferas de um mesmo metal, uma de cem quilos e outra de
um quilo, deveriam cair, a de cem, cem vezes mais veloz que a de um quilo. O raciocínio de
Aristóteles é perfeito, porquanto, a gravidade terrestre atua cem vezes mais na esfera maior do
que na menor. Por conseguinte, se a solicitação gravítica é cem vezes mais na esfera maior, esta
deve cair com cem vezes mais velocidade do que a esfera de um quilo. Isto é intuitivo. Todavia,
Galileu fez a experiência, na torre de Pisa, na presença dos sábios da época, e para tanto,
aproveitou-se da inclinação da torre. Abandonadas no espaço as duas massas de pesos diferentes,
porém, do mesmo material e da mesma forma, todos ouviram, não dois, mas um só baque no
chão. As duas massas, apesar dos pesos diferentes, caíram com igual velocidade. Por que é isto?
Acaso a gravidade não atua cem vezes mais na massa maior, e tanto que, por causa desta atuação
maior, a balança acusa maior peso? Pois como, então, não acelerou mais o movimento da maior
que a da menor, e antes, pelo contrário, ambas caíram com uma só velocidade ?
Tendo acompanhado, atento, todo o desenvolvimento racional de Bruco, e após achar
melhor cômodo na cadeira, respondeu:
– Suponhamos, Bruco, que subimos num foguete, a fazer experiências no espaço
interplanetário, onde é menor a influência da gravitação terrestre. E levamos, conosco, as tais
duas esferas metálicas. Lá em cima, as duas esferas não têm peso, e ambas flutuam no espaço
cósmico. Contudo, se tentarmos deslocar essas esferas, com nossas mãos, notaremos que a esfera
maior reage mais que a menor. Se dermos um mesmo impulso a ambas esferas, a grande
deslocar-se-á cem vezes mais de vagar que a esfera pequena. E se quisermos acelerar os
movimentos das esferas, dando-lhes novos impulsos, notaremos que a reação da esfera maior
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será, sempre, o cêntuplo da reação da esfera menor. Esta reação a cada aceleração de velocidade,
chamá-la-emos inercial. Se puxarmos, por dois cabos, as duas esferas, com um mesmo esforço, a
esfera menor deslocar-se-á cem vezes mais depressa que a maior. Se aplicarmos à esfera maior
um esforço cem vezes maior do que o aplicado à esfera pequena, ambas se deslocarão com igual
velocidade. Aqui está o que acontece, Bruco, com massas de pesos diferentes, quando
abandonadas no espaço. A gravidade puxa com força cem vezes maior a esfera grande que a
pequena; porém, aquela responde com um inércia também cem vezes maior. A reação às
acelerações de movimento demos o nome de massa inercial, a outra massa, a que as balanças
acusam, daremos o nome de massa gravitacional. Então, essa massa inercial, quando recebe o
impulso gravítico vindo do espaço, reage cem vezes mais na esfera maior que na menor. Se o
impulso gravítico fosse o mesmo para ambas esferas, é claro que a esfera menor cairia cem vezes
mais depressa que a maior. Mas acontece que, se a esfera grande reage, por sua massa inercial,
cem vezes mais, ao impulso gravítico, também a gravitação atua nela com cem vezes mais força.
Por isso, a aceleração de um corpo que cai no espaço é diretamente proporcional à massa
gravitacional e inversamente proporcional à massa inercial. As duas massas, isto é, a
gravitacional e a inercial, como se vê, são iguais, porém, em oposição. Entendeu, Bruco?
– Entendi
– Então, se entendeu, diga-me qual a causa essencial ou profunda desse comportamento.
A este pedido de Árago, Benedito Bruco se pôs a pensar, depois do que repetiu :
– A causa substancial do fenômeno, conforme sua explicação, reside em que, qualquer
corpo é um campo etéreo-eletrônico que se acha associado, entrosado, ao campo etéreo-
eletrônico geral do espaço; e qualquer modificação, seja de posição, seja de deslocamento,
implica em nova forma de associação, ao que os campos geral e particular resistem. De modo
que a qualquer impulso, inclusive ao da gravidade, o corpo resiste com toda a inércia da sua
massa que é o mesmo que campo associado. O campo restrito do corpo resulta da somatória dos
campos de todos os ultra-micro giroscópios constituintes do corpo. Este campo restrito, já, de si,
produto do movimento, se acha entrosado, estruturado, engastado, no campo geral, também
oriundo do movimento. Qualquer modificação do corpo, implica em nova forma de
entrosamento, de estruturação, de engastamento, e a isto, o todo resiste. Massa, por conseguinte,
é igual a campo, e inércia, também, é igual a campo, donde se segue que massa é igual a inércia.
Se a aceleração da gravidade é diretamente proporcional à massa, é, ao mesmo tempo,
inversamente proporcional à inércia; e como a massa e inércia são uma coisa só, equivale a dizer
que a aceleração da gravidade é direta e indiretamente proporcional à massa. Esta contradição
anula os termos inércia e massa, donde se pode enunciar a lei que diz: a aceleração da gravidade
é igual para todos os corpos que caem no vácuo, o que, aliás, se pode comprovar por meio do
tubo de Newton.
– Muito bem, Bruco! Essa é a essência do fenômeno. Agora, podemos aprofundar mais
um ponto, para depois tirarmos nossas conclusões teleológicas. Aquele pó sub-microscópico do
Prof. March é o fim duma cadeia de falências iniciada no topos uranos. Este é o fim da fase
involutiva, e começo da evolutiva que começou neste ponto marcado pelo ponto zero absoluto do
ser, ou nada essencial, ou névoa de pó impalpável, ou caos. Esta poeira etérica moveu-se em
turbilhões que são os elétrons, os quais, reunidos uns aos outros, formaram um outro contínuo
sobre o primeiro. Outros turbilhões se criaram neste e deste contínuo, pelo encurvamento dele, e
isto sob pressão e calores altíssimos só possíveis no seio do Colosso Primitivo de Alpher, Bethe
e Gamow. O Colosso Primitivo é o ponto de onde todo o universo físico está se afastando para
todas a direções do espaço. Este segundo contínuo, formado de elétrons encadeados pelos seus
campos, está sobre o primeiro, e nele se criam outros redemoinhos que são os átomos, os quais,
também, estruturam um outro contínuo, o atômico, em cujo seio se constróem os turbilhões
moleculares. Daqui vem que a estrutura dos contínuos é granulosa, e os grãos são vórtices; e a
estrutura dos remoinhos é a dos contínuos que lhe ficam abaixo, e se criam pelo encurvamento
destes contínuos. No e do contínuo atômico geram-se os remoinhos das moléculas simples, e no
e do oceano delas originam-se os vórtices dos compostos complexos, até que a vida mais não é
do que um remoinho particular da matéria formada de todos os contínuos e vórtices que lhe
ficam abaixo. Podemos, então, estabelecer: todo vórtice resulta de um meio que se encurvou
C 2 M- ∞ = t2 239
t 2 + t 2 + t 2 + ...............t 2 + ↓ t 2 = C3
March é vorticoso também, e aqueles C 3sãoM
CM
pós ==ttresultantes
sobre si mesmo, e todo meio é um oceano de vórtices. Por isto, aquele meio corpuscular do Prof.
vórtices 3 de ondas que se fecharam
t +neles,
t +vindas
Etao+ t +isto,..........
dizer + cadeira,
......dat sua
Árago levantou-se t= ↓ Cdirigindo-se
dos espaços profundos. Eis, então, o esquema do universo:
1 para a lousa. E voltando-se
para os presentes, falou:
C1M+=pela
– Se representarmos os meios ou contínuos ∞t1letra “C”, turbilhão ou remoinho, por
t1 +“T”,te1velocidade
+ t1 +ou..........
movimento ......t
1 + t1 = C 2
por “M” , temos:
Isto quer dizer: contínuo “C” do Prof. March pelo movimento é igual a turbilhão “T” ou
elétron. A soma dos turbilhões eletrônicos dá o contínuo “C1”. O contínuo “C1” pelo movimento
rotatório “M” forma o turbilhão “T1” dos átomos. A soma dos átomos “T1” forma o contínuo
atômico “C2”. Os vórtices construídos no e do contínuo atômico “C2”, dá nascimento aos
remoinhos das moléculas dos compostos simples “C3”. No seio deste contínuo molecular “C3”,
graças ao movimento, criam-se as moléculas em cadeia dos compostos complexos do carbono.
Depois vêm as micelas, os vírus, as células vivas rudimentares, os protozoários e fitozoários, os
seres coloniais cujas células, pela divisão do trabalho, se especializam, tornando-se dependentes
umas das outras. Por este modo surgem os metazoários que enchem a escala de complexidade
crescente rumo ao homem, o qual não tem outro caminho a seguir, a não ser o da diferenciação
para o exercício de funções específicas, integrando-se, depois, pelo amor, na unidade família que
é a primeira célula social de que tudo o mais se constrói, até o topos uranos. Os contínuos
todos se interpenetram, havendo-os de granulação grossa como a água e ar, e contínuos de
granulação fina, como o éter, pois, enquanto o ar e a água são feitos de moléculas, os “grãos” de
éter são constituídos pelo fechamento das ondas provindas do espaço periférico e distante. A
criação de um contínuo superior, pela somação de vórtices maiores, não absorve todas as
possibilidades do contínuo precedente; todos os contínuos coexistem, interpenetrados no mesmo
espaço. O elétron é o primogênito do éter, e daquele provieram, primeiro, os núcleos de
hidrogênio, e destes, os átomos todos. O zero absoluto da escala do ser, é aquela névoa de poeira
sub-microscópica, em que tudo se retornaria, se fossem cessados todos os movimentos. É dessa
névoa de poeira que teve início a evolução, até às unidades humanas, nas quais se evidencia a
consciência como uma forma de turbilhão em que se movem coisas, seres e mundos. Subindo-
nos das unidades humanas que são turbilhões feitos de turbilhões, observamos as formações
coletivas, igualmente vorticosas (vórtice espiritual-moral), quais sejam: a família, os órgãos
sociais, as sociedades, a nação, o mundo unificado pela sociedade das nações que é fraca,
incipiente e ignorante agora, mas que será a potência máxima, do amanhã. Acima da sociedade
das nações virão as humanidades galácticas, cósmicas, e finalmente, a monística e divina do
topos uranos. O Deus imanente é um Vortilhão ou Tornado que tudo abarca, nascido na e da
Substância do Contínuo-Pensamento-Amor do transcendente. Aquele é uma individuação
orgânica, não em sentido biológico e psíquico somente, mas sobretudo, moral. Ele é um
Vortilhão, de turbilhões de vórtices de remoinhos, até ao infinito negativo ou zero absoluto do
ser que é aquela névoa de pó impalpável ou não-ser, do Prof. March.
E após se descansar, um pouco, do grande vôo acrológico, prosseguiu o mestre:
– Porque o pensamento é mais ou menos curvo, por isso as formas mentais são mais ou
menos limitadas. Quem está habituado a pensar por certa maneira, não sabe, e por isso, não pode
pensar de outra. As formas mentais resistem às mudanças, e esta resistência ou inércia mental se
chama misoneísmo. Aqui, no nível da consciência, o vórtice também resiste às mudanças, tal,
240
Capítulo XI
Gênese do Universo
No outro dia, depois que tinha caído a noite, Árago se encontrava na sala da biblioteca,
ocupado em fazer umas fórmulas na lousa. Os componentes do grupo de estudiosos iam
chegando e tomando seus lugares. Findo o trabalho, o filósofo voltou-se para os presentes,
cumprimentando-os, afavelmente. Depois interrogou:
– Que é de Bento Caturí e de Bernardo Jazão?
– Ainda não chegaram, respondeu Chilon.
– Esperemos por eles, então, tornou o mestre.
E enquanto isto, todos se mantiveram em animada conversação, sobretudo tratando dos
assuntos da véspera. Até que, chegando os retardatários, Árago deu início aos estudos, dizendo:
– Antes de entrarmos no estudo desta noite, queria chamar a atenção de todos para o
assunto a que dei o nome de “fundamentos da terceira jornada filosófica”. Para tornar as coisas
objetivas, e também para me servir de roteiro, fiz, ali na lousa, ao lado das fórmulas, um quadro
sinótico da matéria.
espaciais
objetos reais temporais - pretérito
(coisas) causais
inespaciais
Ser objetos ideais intemporais
(essências) incausais
inespaciais
objetos metafísicos temporais - futuro
causais
um não-existir, porque existir implica tempo; logo, os objetos ideais são, mas não existem. Pela
recíproca, a pura realidade é uma não essência, um não-ser, visto que essência vem de ser, e onde
não há essência, há o não-ser. Como vocês vêem, o não-ser não é um nada, e sim uma não
essencialidade. Aquela matéria primordial de Aristóteles que não foi criada, aquela potência pura
ainda em nada ato, é a energia-substância ou substancialidade. E o ser, nem de Deus, nem de
nada pode consistir na pura idealidade sem substância, nem na pura substancialidade informada,
isto é, sem essência. Este duplo aspecto do ser, a matéria e forma de Aristóteles, não pode ser
dissociado na prática, e só teoricamente o dividimos para fins de estudo. Dizer, por conseguinte,
que o ser é ideal, ou que é real, representa enunciar somente a metade da verdade. O ser é ideal e
real ao mesmo tempo, participando das propriedades da imobilidade e imutabilidade próprias do
que é ideal, e, ao mesmo tempo, participando do movimento e transformabilidade próprios do
que é real. O ser é idealidade e coisidade. Por isso, a idealidade pura é um não existir, no
passo que a realidade pura, a pura potencialidade, é um não-ser; a primeira é, mas não
existe, enquanto que, a segunda, existe, porém, não é. Ambas, idealidade e realidade não existem
separadas.
– Os objetos metafísicos são inespaciais, porque não possuem coisidade. Minha vida,
nossa vida, contêm coisas, e sendo o continente, não pode ser, ao mesmo tempo, conteúdo. Não
é espacial, por não possuir três dimensões. Contudo é temporal, e apresenta o caráter notável de
fazer-se, de construir-se pelo futuro. Nós queremos ser o que ainda não somos, e este ser do
futuro, este irá-ser nos força a caminhar. O futuro é já uma coisa acontecida para nossa
idealidade; quando chegamos ser o que ideamos, a coisa, no ideal, já é passado. Por isso é que
vivemos de um futuro sido; futuro no tempo objetivo, e sido, como passado, no tempo subjetivo
ou ideal. Além disto, a vida é sujeita à causalidade. Porém, este ponto não interessa no momento.
Tornemos ao que tratávamos antes, relativo ao ideal e ao real.
– Deus, prosseguiu Árago, é um oceano da energia-substância incriada que enche o
espaço infinito. Sobre esta energia-substância está Deus como idealidade, que cria, com aquela
energia-substância , seres e coisas. O aspecto realidade de Deus é o imanente pelo qual ele está
nas coisas, e é a substância delas. Pelo seu aspecto transcendência, Deus é idealidade pura, ou
possibilidade infinita de criar novos mundos, novos seres e novas coisas. Vamos imaginar que a
energia-substância incriada, e que, por isto, é um aspecto de Deus, consiste num contínuo
homogêneo imaginável, concebível assim, mas não cognoscível, por causa da nossa natureza de
conhecer só pela essência. Conhecêmo-la por oposição ou reciprocidade, porque,
correspondendo a pura idealidade com a imobilidade e com a imutabilidade, por oposição, a
energia-substância pura corresponde ao movimento extremo. Entretanto, a idéia de movimento
implica na idéia de móvel e de sentido. Qual é o móvel, e qual, o sentido? Pois o móvel é a
energia-substância, e o sentido do movimento é o do vórtice. E com isto já estamos a falar da
essência do vórtice, e por isto é que ele é compreensível. E como a idealidade pura é, mas não-
existe, e a pura substância informal, existe, porém não é, precisamos concebê-las reunidas desde
o início, donde vem que a energia-substância se nos mostra como possuindo essência vorticosa.
Então, a primeira formação essencial ocorrida no seio do contínuo incognoscível da energia-
substância, é o vórtice. Deste modo o oceano infinito da divina energia-substância é puro
movimento vorticoso. Esses vórtices são os mínimos possíveis, infinitesimais, e estão associados
pelos seus campos de modo que se podem propagar, por eles, ondas infinitesimalmente mais
curtas que as ondas da luz. Que ondas são estas? Pois não podem ser outras que não os raios
cósmicos; se o comprimento das ondas dos raios luminosos é 0,0006 mm e o dos raios gama, 0,
000.000.000.1 mm, o dos raios cósmicos é 0,000.000.000.006 mm. Não há onda mais curta que
esta dos raios cósmicos, com um trilhonésimo de milímetro. E tem tanta energia tais raios, que
podem atravessar uma muralha de chumbo de trinta metros de espessura.
Aproveitando-se da oportunidade de uma pausa que fizera o mestre, Benedito Bruco
interrogou:
– Qual deve ser o nome dessa partícula infinitesimal, desse vórtice ultra-minúsculo?
– Escreve F. L. Boschke, tornou o mestre, o seguinte: “Mendeleiev chegou ainda à
conclusão de que devia existir uma partícula com peso atômico de
3,5/100.000.000.000, isto é: 3,5 1011 ".
244
“Julgava que fosse o éter, então defendido pelos físicos e, em homenagem ao grande
físico inglês Isaac Newton, deu a esse elemento a denominação de “newtônio”. Ora, nós não
sabemos a que corresponde exatamente uma partícula de newtônio de Mendeleiev. Talvez a
devamos registrar como uma excelente aproximação do já mencionado neutrino”412.
– E que é neutrino? Perguntou Chilon.
– O núcleo mais simples é o do hidrogênio, composto de um próton de carga positiva.
Tirando-se essa carga positiva, resta só a massa sem carga alguma, a que se dá o nome de
nêutron. Se tirarmos ao nêutron sua massa, resta um nada a que se dá o nome de neutrino.
Assim, o neutrino torna-se uma partícula hipotética, de valor nulo. Porém, é desta nulidade que a
massa começa a organizar-se e a crescer; por isto há neutrinos de vários valores massa. Ora, o
neutrino, possuindo massa variável, a partir de zero, altera o sistema periódico das partículas
elementares, sendo o ponto de partida para o desenvolvimento que nos leva à revolucionária
concepção da anti-matéria. Fermi, desenvolvendo a hipótese do neutrino de Pauli, pode explicar
por que os elétrons emitidos pelas substâncias radioativas têm velocidades de valor variável.
Tais velocidades variam, ao acaso, de elétron a elétron, para um mesmo elemento radioativo,
desde zero até um limite. E como velocidade equivale a energia-massa, segue-se que tais elétrons
aparecem com massa variável. Este comportamento altera, por completo, nosso hábito de pensar
nas energias atômicas repartidas em níveis distintos. Segundo Fermi, a explicação estaria em
que, no núcleo radioativo, um nêutron existente no próton, se cinde em um elétron e um
neutrino, repartindo-se entre estes dois a massa do nêutron, de modo que o neutrino pode possuir
a mesma massa de um elétron, porém sem carga elétrica, eqüivalendo a dizer que ele é um
elétron neutro. Logo, se é possível haver elétrons neutros pode os haver com carga positiva, e
aqui está o anti-elétron ou positron. Fazendo-se gravitar um núcleo negativo por um positron,
obtém-se um átomo de anti-hidrogênio. E os físicos nucleares já conseguiram produzir átomos
com cargas invertidas, o que vale a dizer que chegaram a produzir a anti-matéria. Imagina-se,
deste modo um sistema periódico completo de anti-elementos, os quais, em se combinando
produzem anti-compostos. E sobre os compostos do anti-carbono, anti-hidrogênio, anti-oxigênio,
anti-azoto e anti-enxofre poder-se-ia construir uma anti-vida, semelhante à nossa, e por este
caminho se pode chegar ao anti-universo tão complexo como o nosso. No entanto há um fato a
se considerar: a anti-matéria não pode entrar em contato com a matéria; elas se chocam e se
anulam, transformando-se ambas em energia. Se os homens chegarem a isolar a anti-matéria
terão chegado a esta arqui poderosa bomba atômica, perto da qual a mais poderosa bomba de
hidrogênio é inofensivo traque.
E continuou o pensador:
– E sendo o universo rodeado pelo topos uranos, uma limitação, um encurvamento
ocorrido no oceano infinito da energia-substância divina, e considerando que Deus, no seu
aspecto idealidade transcendente tudo pode criar; considerando ainda que até os homens
chegaram, praticamente, à anti-matéria, podemos conjeturar: não teria Deus criado alhures, no
oceano do infinito espaço cheio da energia-substância, um anti-universo? Se há esta
possibilidade até para o homem, porque não a usaria Deus? Pensando deste modo, “o Prêmio
Nobel Emílio G. Segré resumiu a situação nestas frase incisivas: “Se Deus criou o universo – se
os senhores crêem que Ele o criou – haverá alguma razão para supor que tenha preferido a
matéria à anti-matéria ?”413.
E dando um suspiro, falou para Chilon:
– Mas tudo isto, meu caro Chilon, veio para responder sua pergunta relativa ao neutrino.
Agora podemos voltar ao que íamos dizendo: o espaço infinito em que a idealidade
transcendente coexiste com a realidade imanente, criacional ou pré-criacional, tudo pode
acontecer, estar acontecendo, ou ter acontecido. E a primeira cognoscibilidade que temos da
energia-substância, é a de que ela é um contínuo de vórtices infinitesimais, associados pelos seus
campos. Estes vórtices são intuídos como grãos de éter das dimensões do newtônio de
Mendeleiev, ou dos neutrinos da física nuclear. Deste material Deus criou o universo evolutivo
que é este nosso, o qual sabemos existir. De um modo direto, sem evolução, Deus criou o topos
412 F. l. Boschke, A Criação Ainda Não Terminou, 94
413 F. L. Boschke, A Criação Ainda Não Terminou, 97
245
uranos e as almas habitantes dele. Este mundo celeste, este mundo espiritual, é uma curvatura,
por conseguinte, ocorrida no seio do pensamento-energia-substância, que, num segundo
momento, é de estrutura vorticosa, e desta essência-substância vorticosa tudo o mais saiu. O
espaço criacional, por conseguinte, de curvatura mínima, é limitado, e nele as almas se movem,
sem possibilidade de sair fora da curvatura do sistema, além do qual outros mundos espirituais
e outros universos hajam sido criados ou não. As almas e quaisquer outras coisas, se partissem
em retilíneo vôo, com velocidades muito superiores a da super-luz, após milhões de bilhões de
anos, retornariam ao ponto de partida, por terem feito a curvatura do sistema. Se houver outros
universos cercados por outros topos uranos, e até construídos com base na anti-matéria, eles
estarão, como o nosso, nos seus limites. Por este modo de conceber, fica tendo razão o Espírito
instrutor de Kardec, quando afirma que o espaço é infinito e cheio du’a matéria que nos escapa
aos sentidos e instrumentos.
E tendo meditado certo tempo no que acabara de dizer, disse, resoluto:
– Agora, após este largo preâmbulo, podemos atacar nosso assunto de hoje, para o qual
organizei aquelas fórmulas ali na lousa. Na fase evolutiva, como já hemos visto ontem, todo
vórtice é formado pelo encurvamento de um meio constituído pela reunião de unidades
vorticosas menores, e, da reunião destas, cria-se um outro contínuo no qual se encurvam outros
vórtices de cuja reunião dá nascimento a outro contínuo, e assim por diante, tanto para cima,
como para baixo até o limite da luz incriada ou energia-substância ou pura matéria-potência
ainda não tornada ato algum, como o entendia Aristóteles. Um meio se encurva sobre si mesmo,
e surge um turbilhão, e muitos turbilhões idênticos de cuja reunião se constrói um outro meio,
por sua vez, no qual outros turbilhões se encurvam, formando outro meio em que se podem
estruturar novos, maiores e mais complexos remoinhos. A máxima velocidade coexiste com a
energia-substância pura, e a mínima se registra no topos uranos que é o vortilhão supremo em
relação a nós, que tudo envolve na sua mínima curvatura, tudo, até o universo físico que lhe fica
no centro. Ora, se é isto assim, na fase evolutiva, na inversa fase involutiva ou de queda, tudo
aconteceu pela recíproca, pelo inverso. Esquematizei este pensamento naquelas fórmulas
intuitivas, porém, de modo inverso de como o fiz ontem.
+∞
Colônias celulares C3 M = t3
Células C 3 = t2 + t2 + t2 + t2 t2
Vírus C2 M = t2
Compostos do carbono C2 = t1 + t1 + t1 + t1 + t1
Moléculas C1 M = t
Átomos C1 = t + t + t + t+t+t+
246
Éter C
↓
–∞
se intensifica na razão inversa desse quadrado, até o ponto em que, ficando o raio a unidade, a
onda se torna um grão de pó, isto é, a matéria punctiforme do Prof. March, ou newtônio de
Mendeleiev, ou neutrino de massa quase nula dos físicos nucleares modernos. A esfera
ondulatória se fecha, e aqui está como o espaço se encurva; fecha-se cada vez mais para um
centro, reduzindo-se a um grão de pó submaterial que é o éter. As grandes esferas da energia se
apertam e se restringem para um centro, e todo aquele enorme espaço da esfera-onda veio a
encontrar-se num grão de pó impalpável e invisível até pelo microscópio eletrônico, que é aquele
newtônio, ou neutrino, ou pó do Prof. March. Porém, a onda que se encurvou e se condensou no
éter, para o fazer, já se moveu num meio mais diáfano ainda que o próprio éter, e esse meio mais
fino que o mesmo éter, por sua vez, é formado pelo encurvamento de ondas mais
quintessenciadas que ondas de energia comuns. O meio, em que as ondas se moveram para se
encurvar no éter, necessariamente, tem que ser mais diáfano ainda que o mesmo éter, mais
imaterial ainda que ele. Esse meio pré-etéreo é o oceano da energia-substância pura, que por não
conter essência alguma, é incognoscível. Todavia, o movimento da queda para este extremo
desfazimento, iniciou-se num meio formado de vórtices grandes, sobre o qual se propagavam as
ondas longas do pensamento e da vontade desamorosa. Portanto há campos materiais que se
acham infinitamente acima do éter. Esse meio pode constituir-se de u’a matéria diferente da
nossa, porém, semelhante, como é toda aquela gama material de que são formados nossos
perispíritos, e ainda os meios (espaços-planos vibratórios) de variados graus de curvatura em que
os espíritos se agitam no além, após a morte física.
E parando um pouco, para munir-se de livros, já, de antemão, marcados, prosseguiu: –
Leia-se o capítulo VIII do "Livro dos Médiuns” de Allan Kardec, que trata do “Laboratório do
Mundo Invisível”. Leia-se André Luiz, e ver-se-á como existem outros planos de matérias que
são mais desencurvadas, em que as velocidades dos turbilhões de estrutura são menores, donde
vem que eles são mais frouxos, largos, tardonhos, e, por isso mesmo, de menores massas. É
desse material que se revestem os nossos pensamentos para serem formas vivas, podendo até
serem “odiosas e agressivas”, e por isso precisarem ser devoradas pelos ibis, se pequenas, ou
escorraçadas para as furnas, pelos cães dos samaritanos, se monstruosamente grandes (André
Luiz, Nosso Lar, 160 – 3.ª Ed. e Mensageiros, 172 – l.ª Ed.).
E após uma pausa prosseguiu:
– Lemos, em “Nosso Lar”, que André Luiz, após estafante dia de trabalhos, deitou-se, e
dormiu, numa cama que lhe preparara Narcisa, ao lado das Câmaras de Retificação (op. cit. 172
– 3.ª Ed.) Dormindo, sonhou que subira ou fora levado, ao plano em que residia sua mãe, no qual
até as flores eram luminosas. A isto perguntamos: que deixou André Luiz, lá, no leito que lhe
preparara Narcisa, enquanto estava com sua mãe, no plano superior? O “veículo inferior”, dí-lo
ele mesmo na página 172. Com que veículo, então, André Luiz abraçou sua mãe, e foi abraçado
por ela? Com o “veículo superior”, digamos, nós, de passagem. E quando a mãe de André Luiz
dorme, lá, no plano dela, que deixa em sua cama, visto que se sobe para planos mais altos ainda?
Pois o que deixa na cama é o “veículo inferior” dela, relativamente ao com o qual se sobe mais.
Quando André Luiz, Gúbio e Elói inalaram as substâncias espessas no umbral, para se
igualarem, em densidade, aos habitantes da “Cidade Estranha”, ficaram densos, sem, contudo,
serem, para nós, visíveis, visto como não se revestiam de nossa matéria que tem curvatura
diferente (André Luiz, Libertação, Cap. IV). De que material eram feitos aqueles braços e mãos
que sustinham a coroa de flores luminosas e brilhantes, sobre a cabeça de Raquel, por ocasião da
reencarnação de Segismundo, para serem invisíveis ao próprio André Luiz? (Missionários da
Luz, 230 – 3.ª Ed.).
E feita uma pausa, continuou:
– Por tudo isto sabemos que há muitos tipos de matéria, e cada uma participa das
características do contínuo de que procedeu, pelo encurvamento. O primeiro encurvamento foi o
da energia-substância incriada, nos vórtices de que se constitui o éter, o qual se encurvou na
matéria do plano espiritual, de que são constituídos os veículos de manifestação das almas do
topos uranos. Esta matéria possui mínima curvatura, e, por isso, de raio máximo. Os espíritos
são limitações também físicas, havendo um espaço de três dimensões, cheio da matéria que lhes
é própria, e na qual se movem. Um espaço mais aberto abarca outros mais curvos. Há matéria de
248
espaço material mais amplos que mesmo as grandes esferas da nossa energia conhecida. Os
espaços interpenetram-se, estando os mais curvos abarcados pelos menos curvos, e o infinito
oceano do pensamento e do amor, a infinita atmosfera intelectoemotiva de Deus, que tudo move
e anima, é de natureza material, energética e espiritual ao mesmo tempo, cuja fórmula, desde o
início, era a energia-substância de Einstein mais a idealidade pura de Kant. A energia-
pensamento, num extremo, e o pensamento-lei, no outro, participam das propriedades da
energia-substância, por uma parte, e da substância-espírito, da outra, consistindo, por
conseguinte, no denominador comum que permite a passagem da matéria ao espírito e deste
àquela. Sobre tudo isto está a idealidade pura do Ser, que, por sua natureza, é imóvel, imutável,
intemporal, inespacial e incausal, como, aliás, são todos os objetos ideais como os objetos
matemáticos e as essências. Deste modo o homem é constituído de planos vibratórios diferentes
e interpenetrados, desde os divinos, nas profundezas do seu ser, no nível da Substância incriada,
até os periféricos, ilusórios e invertidos, onde está situada a matéria mais densa do seu corpo
somático. Por conseguinte, os planos espirituais em que operam, por exemplo, Emmanuel e
André Luiz são constituídos de matéria, que é a mesma de que se constituem os seus perispíritos,
as habitações, as roupas, os utensílios, os alimentos, o ar, a água, o meio, em fim. Essa matéria
resulta da concentração das energias desses planos. Além disso, existe, neles, energia,
independente da matéria, porém, estreitamente vinculada a ela, e que dá vida e movimento a
esses níveis de vida e psiquismo e consciência. André Luiz nos fala da existência de eletricidade,
de luz natural e artificial, bem como de energias magneto-elétricas em toda a sua obra.
E após meditações, continuou:
– As propriedades da nossa e daquela matéria do mundo espiritual, assim como das
nossas e daquelas energias, decorrem só da curvatura dos sistemas. O encurvamento da matéria
do plano espiritual até à coincidência com a curvatura da nossa matéria, chamam os espíritos,
materialização. Ao esencurvamento da nossa matéria, chamam, eles, desmaterialização. Como
vêem, empregam os espíritos termos impróprios. Provo: Dentro duma caixa-forte ponho um
objeto qualquer, um relógio de bolso, por exemplo, e trancafio a porta a chave, e giro, ao acaso,
os discos do segredo. E o espírito, quase sempre ignorante, conectando sua matéria perispiritual à
do médium de efeitos físicos, simplesmente mete a mão pela parede do cofre forte, pega o
relógio, e o tira para fora através da parede. Temos, então, o revolucionário caso de um sólido
atravessar outro sólido, sem deixar o buraco da passagem. Que aconteceu, Hierão.
– Ora, pois o espírito, em pegando o relógio da caixa-forte, desmaterializa-o, e, deste
modo, retira-o para fora. Ao depô-lo sobre a mesa, e retirada a mão, o relógio se materializa
outra vez, tornando-se visível e palpável. Tal é como o ensina minha doutrina espírita.
– Viram, tornou o mestre, como é a explicação espírita? O próprio médium pode ser
transportado através de paredes da grossura e do material que se quiser. É crível que o espírito,
invariavelmente ignorante do que acontece, possa desintegrar um ente humano, e materializá-lo
de novo? O que o espírito faz, inconscientemente até, é comunicar às coisas materiais do nosso
plano, a curvatura sua, isto é, da sua matéria perispiritual. E como matérias de curvaturas
diferentes não se interferem, podendo coexistir no mesmo lugar do espaço, o médium atravessa a
parede do quarto, e o relógio, a da caixa-forte. Basta, portanto, encurvar ou desencurvar a
matéria, e ela apresenta propriedades diferentes. A matéria “vitalizada”, hectoplasmicamente,
torna-se um espaço menos curvo e mais aberto; e todo o espaço menos curvo pode conter, pode
ser penetrado, pode coexistir com outro mais restrito, mais curvo, mais limitado espacialmente.
O fenômeno se dá porque os espaços não têm a mesma curvatura, e por isto, o infinito número
deles pode coexistir no mesmo lugar, sem interferências. Basta, portanto, ao espírito, variar a
curvatura do espaço, e já as matérias não se interferem, não se atritam, não se opõem,
mutuamente, resistências, podendo ambas coexistirem no mesmo lugar, e, por conseguinte, uma
atravessar a outra.
E após concatenar novas idéias, prosseguiu:
– Nossa matéria densa pode, pois, variar sua curvatura, e como que tornar-se imaterial.
Quando um espírito desencarnado, usando o ectoplasma do médium de efeitos físicos, “vitaliza”
a matéria grosseira, pode, depois, não só levitá-la no espaço, senão, também fazê-la atravessar as
solidíssimas paredes de uma caixa-forte hermeticamente fechada. É por este processo que se
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podem retirar, nas chamadas operações espirituais, pedras dos rins, da bexiga e do fígado. A
matéria não se desmaterializa, como se costuma dizer; os elétrons apenas passam a percorrer
órbitas imensamente maiores. Aumentando-se os raios eletrônicos (raios geométricos da esfera
atômica) que ligam os elétrons aos seus núcleos, a velocidade angular diminui para compensar.
Está claro que, sendo a força centrífuga proporcional ao raio, à massa e ao quadrado da
velocidade angular, se o raio aumenta, para que a força centrífuga continue a mesma, é preciso
diminuir a velocidade angular eletrônica. Ora, percorrendo órbitas maiores, e ainda com
velocidade angular diminuída, cessa aquela quase onipresença da partícula eletrônica em todos
os pontos da sua trajetória, única causa da rigidez e da impenetrabilidade material. Em termos
sensoriais, poder-se-ia dizer que um alfinete de cabeça, por exemplo, em se “desmaterializando”,
para sair de uma caixa-forte, teria as dimensões de um prego de tendas. A matéria, neste estado,
tem seus espaços intermoleculares alargados, e a outra matéria, a da parede do cofre, passa por
entre eles. O espírito trabalha com a matéria, mas, a do seu plano; trabalha com a matriz etérea
ou duplo do alfinete, e sua parte física, com estar “vitalizada” pelo hectoplasma, acompanha a
matriz, desencurvando-se mais. O espírito que faz estas coisas, pode não ser consciente deste
processo, e daí o não poder explicar como o fenômeno se efetiva. Neste caso, nos dirá que basta
o seu querer, para que as coisas se dêem.
A estas palavras de Árago, interrogou Bruco:
– Que é esse duplo etéreo ou matriz fluídica das coisas?
Pondo-se o mestre a refletir, respondeu:
– Lembra-me haver lido que Waldomiro Lorenz recebeu umas poesias em esperanto, de
poetas desencarnados que, em vida, não sabiam esperanto. Perguntando Waldomiro em que
livros estudaram essa língua, responderam que nos nossos. Nós estudamos no duplo etéreo do
livro que vocês tem na estante, responderam eles. Também me lembra haver lido num dos livros
de André Luiz que uma criança, estando no plano espiritual em companhia da mãe, porém, aqui
na crosta, colheu uma flor num pequeno jardim residencial. A criança colheu o duplo da flor, e a
parte física desta, entrou a murchar-se, tombando sobre a haste que a sustentava. Esse é, meu
caro Bruco, o que se pode entender por duplo etéreo ou matriz das coisas.
– E o senhor aceita tudo isso, de fé, como sendo a verdade? Acaso não lhe ocorre que
tudo pode não passar de pura ficção?
– Ocorre-me, tornou o mestre. E não dou nada disto como sendo a verdade, e sim, como
hipótese de trabalho. Tudo fica destarte, pendente de comprovação. Entretanto, esta hipótese
pode nos auxiliar a compreensão da hipótese maior, que é a de haver vários tipos de matéria,
desde a grosseira nossa conhecida, até aquela de mínimo raio de curvatura de que se vestem as
coisas e almas do topos uranos. De umas coisas que estão assentadas decorrem outras que nos
são hipotéticas. Que a energia se concentrou em matéria, formando o Colosso Primitivo, é um
fato, pois o universo que dele saiu, está aí como experiência sensível para todos. De onde, pois,
veio aquela energia que se converteu na matéria? Bom. Que há evolução, a partir do caos, do
simples para o complexo, da matéria bruta para a matéria viva, e desta, depois, para a
inteligência e a consciência, é outro fato, que não adianta querer iludir ou enganar, ou falsear.
Ora, havendo evolução, com todo o seu cortejo de dores, fadigas, aflições, lutas, vitória da força
e da astúcia de uma parte, e martírio, desesperação e morte, da outra, impõe-se esta verdade
inexorável: houve queda, ou não há Deus de bondade e de amor. Suposto, então, que há Deus,
segue-se que houve queda. Logo, aquela energia que se converteu no Colosso Primitivo
necessariamente, proveio da desintegração de parte dos espíritos que caíram do topos uranos no
caos. Vejam, vocês, que se forma uma cadeia que ninguém pode quebrar. O desenvolvimento
dialético faz que uma idéia puxe outra, obrigando-nos a formulação de hipóteses, que vêm
corroboradas por aquilo mesmo que os místicos afirmam. Suposto que há o topos uranos como
sendo o de matéria menos curva, e, conseguintemente, de espaço de raio máximo, essa curvatura
mínima tudo abarca no seu âmbito, apresentando-se-nos como uma esfera imensa, a flutuar no
seio do contínuo do transcendente. Este contínuo transcendente, é por sua natureza infinito,
eterno, incausal e representado pela idealidade e pela energia-substância, o que vale dizer
Essência e Substância, ambas eternas, ambas infinitas, ambas incriadas. No seio desta Essência-
Substância criou-se aquela grande esfera do imanente, do criacional que é o topos uranos. No
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seio deste os encurvamentos iam até certo ponto, que era, o representado pelos seres e coisas
neste nível excelso de perfeição. Mas ocorreu a queda, que não pode ser entendida senão como
encurvamentos maiores até o máximo que é o estado da energia-substância de onde tudo saiu a
primeira vez, pela criação de Deus, e de onde tudo sai agora, de novo, pela evolução. Deste
modo as várias matérias se escalonam pelos seus raios de curvatura, desde aquela de raio
máximo, até a de raio mínimo que coincide com a do não-ser ou pura energia-substância, donde
partiram as primeiras criações perfeitas operadas por Deus, sem evolução e sem dores, e onde,
agora, partem as segundas criações feitas através da evolução com imperfeições e com dores.
E após ponderar um tanto, em silêncio prosseguiu:
– Vocês já repararam numa formação ondulatória, como a que vemos na água tranqüila de
um lago em que jogamos uma pedra?
– Quem já não viu isso? respondeu, por todos, Bruco.
– Bom. Neste caso, vocês hão de intuir o que venha a ser uma onda esférica, ocasionada,
no ar, pelas vibrações das moléculas de um sino?
– Também isso é intuitivo, tornou Bruco. As ondas sonoras são esferas de dilatação
constante, a começarem pelas moléculas do sino, e depois, pelas moléculas do ar pegadas à fonte
sonora; essas esferas dilatam-se pelo choque de próximo em próximo, a partir da fonte, para
todos os lados do espaço.
– Então, replicou Árago, a esfera-onda possui quatro dimensões, sendo três, as comuns
da esfera geométrica, e uma quarta, que é o tempo, que é medida da expansão da esfera no
espaço. Quem é que não entende esta evidência?
– Pois isso não tem o que entender, respondeu Bruco; é uma intuição sensível, uma
experiência intelecto-sensorial, uma vivência. A quarta do espaço-tempo não é nenhum mistério,
não passando da onda de energia que participa de todas as propriedades do espaço esférico, e de
todas as do tempo que mede o movimento de deslocação. Por isso, a energia possui espaço,
juntamente com o tempo. Aquele espaço que a onda aprisiona em si, na sua curvatura, possui três
dimensões. Se congelássemos a onda, ou a considerássemos num momento dado, ela não
passaria duma esfera como uma bolha de sabão, estando, por isso, sujeita aos princípios
matemáticos da esfera. Por este motivo, a lei do decrescimento da intensidade, válida para
qualquer tipo de onda, se dá, na razão inversa do quadrado das distâncias da fonte. Pois claro: a
superfície esférica está na razão do quadrado do raio. Ora, sendo a onda uma esfera de dilatação
constante, quanto maior ficar a esfera, tanto mais se enfraquece a intensidade da onda, pois a
energia que ela carrega, tem de distribuir-se por uma superfície esférica cada vez maior; e como
a superfície da esfera é proporcional ao quadrado do raio, segue-se que a intensidade da onda de
energia decresce na razão inversa da desse aumento; logo, na razão inversa do quadrado do raio,
ou seja, do quadrado das distâncias da fonte.
Terminando Bruco seu pensamento, continuou Árago:
– Vêem, vocês, como são conexos esfera e onda, espaço e tempo, matéria e energia. Por
isto a onda se subordina ao determinismo físico, isto é, às leis do espaço geométrico, e se apoia
na matéria de que o espaço está cheio. Mais um passo agora: esferas vibratórias de freqüências
diferentes ocupam o mesmo espaço, sem se interferirem. Esferas-ondas, esferas vibratórias são
espaços, Hierão?
– Que dúvida!
– E como, então, espaços diferentes, isto é, de esferas-ondas de freqüências diferentes,
podem estar juntas ocupando um mesmo espaço, sem interferências? Como se explica que
podemos distinguir numa execução musical, os vários instrumentos que dão notas diferentes, e
até quando dão u’a mesma nota, por causa dos timbres? Como se explica isto, Hierão?
– Ah! agora não sei.
– Pois é pelo que já dissemos: espaços de curvaturas diferentes podem coexistir no
mesmo lugar sem se interferirem. É por isto que as ondas, que são esferas, não se misturam,
conquanto se interpenetrem, pois constituem espaços de curvaturas diferentes. As curvaturas
desses espaços são representadas pelas freqüências.
A isto que Árago disse, todos ficaram sem entender. Percebendo o ar de hesitação,
explicou melhor o pensador:
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surge pelo movimento da linha no sentido da perpendicular a ela; o volume origina-se pelo
movimento do plano no sentido duma perpendicular baixada sobre ele. No tridimensório
seguinte, o espaço é, de novo, o ponto de cujo movimento nasce a linha que, agora, é o tempo. E
do mesmo modo que, no tridimensório anterior, a linha é absorvida pelo plano, neste segundo
tridimensório, a consciência planimétrica, e é a nossa, e absorve o tempo, e é, a seu turno,
absorvida pela hiper-consciência própria do gênio. A unidade de medida da consciência é o
raciocínio, e a da hiper-consciência, a intuição.
– O tempo, continuou o pensador, é o comprimento da onda, ou espaço que a onda
percorre numa oscilação. Por aqui se pode calcular as curvaturas de todas as ondas, visto como
essas curvaturas podem ser interpretadas pela volta da linha sinuosa à sua condição de
circunferência. Na onda, como a circunferência se acha desdobrada na sinuosa, o comprimento
dela é igual a dois diâmetros. Quer dizer que o diâmetro da circunferência ondulatória, não
desdobrado, é igual à metade do comprimento do eixo que representa o comprimento da onda.
Logo, o raio da curvatura é um quarto do comprimento da onda. Explicando melhor: o
comprimento da onda é igual a dois diâmetros, e cada diâmetro, igual a dois raios;
conseguintemente, o comprimento da onda é igual a quatro raios. Dividindo-se portanto,
qualquer comprimento de onda por quatro, obter-se-á o raio de curvatura do sistema
ondulatório. Quanto mais curta for a onda, menor será o raio da curvatura do sistema, até que
essa curvatura coincide com o átomo, com o elétron, com o núcleo, com as partes deste, e por
estas alturas, se a onda for frenada em seu movimento, ela passa a girar em torno de si mesma
formando um turbilhão, e isto é já partícula ou matéria.
E tendo respirado fundo, numa pausa, continuou:
– Mesmo a tese de Maxwell, de que a luz tem propagação eletromagnética, não se
sustenta, se o espaço não possuir um meio em que se suportem os campos elétricos e magnéticos
sucessivos e alternados. Segundo a tese de Maxwell, um campo elétrico gera um campo contíguo
magnético, o qual, por sua vez, cria, contiguamente, e para o exterior, outro campo elétrico, e
assim por diante. Mas em que se apoiam os campos elétricos e magnéticos, Bruco?
– Pois apoiam-se no nada.
– Porém, o nada pode servir de apoio a alguma coisa?
– Bom... digamos, então, que a onda se projeta no espaço, pela força mesma da sua
impulsão, e por isso, sem se apoiar em nada.
– Neste caso, tornou o mestre, o espaço que as ondas eletromagnéticas vão ganhando ou
cobrindo, ao propagar-se, estava vazio antes ?
– Estava.
– Contudo o espaço vazio é pura idealidade, e para que exista, é preciso haver nele
matéria. Já estudamos que os objetos ideais, como espaço e tempo, são, mas não existem, e que
os objetos reais, como a matéria e as coisas, são e existem. Entendeu isto Bruco?
– Entendi, mas gostaria de ouví-lo, de novo, sobre essa matéria.
– Seja, então. Na matéria nós temos a física, e, no espaço abstrato, geométrico, ideal, a
metafísica; metafísica, etmologicamente, significa depois da física. Nossos sentidos sentem a
física, e nosso espírito constrói uma síntese que é a metafísica. Deste modo, espaço é um
conceito metafísico, abstrato, ideal, como também o é o tempo. A realidade que, no plano
sensorial, é matéria, no nível consciencial, subjetivo, metafísico, se chama espaço. A realidade
que, no plano objetivo ou sensório, é energia, dinamismo, devir, no nível subjetivo da
consciência se chama tempo. É por isso que não existe matéria sem espaço, nem tempo sem
movimento. O que tem havido é uma dicotomia entre espaço e matéria, como se espaço pudesse
existir vazio daquela. Isto acontece porque nosso espírito, sendo livre em suas dimensões
superespaciais e supertemporais, pode criar u’a metafísica puramente ideal sem
correspondência real ou objetiva, mesmo quando trata de coisas que lhe ficam abaixo. Mas a
pura idealidade sem correspondência com a realidade é, no seu plano, porém, não existe, porque
existência implica em coisidade. É deste jeito que podemos criar, na imaginação, formas sem
matéria alguma, iguais às projeções estereoscópicas de figuras planas. Todavia, para tais formas
existirem, como realidade objetiva, física, concreta, preciso é possuírem matéria ou substância.
De igual modo podemos pensar num espaço infinito e num tempo eterno, além do sentido que
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pensa. Do mesmo modo que não se concebe um espaço vazio de matéria como se fora realidade,
não tem sentido um tempo imóvel, sem movimento. Matéria e movimento são a experiência
sensível, e, por isso, física; espaço e tempo são abstrações daquelas realidades, e, por isso,
metafísica. O tempo seria a duração do movimento de alguma coisa no espaço, ou, o movimento
do mesmo espaço. Uma esfera ondulatória (e todas as ondas o são) seria um espaço em
movimento. Sendo a onda uma esfera, possui as três dimensões do espaço; porém, esta esfera
não está parada, estática, congelada, que, se isto fosse, seria matéria e não energia; ao contrário,
ela se move abrindo-se no meio espacial. A onda é uma esfera de dilatação constante, se
tivermos em vista só as ondas centrífugas. Por isso existe, para ela, não só as três dimensões do
espaço, senão, também, o tempo, que é o quanto demora aquela dilatação em vencer distâncias.
Toda a onda, pois, é um espaço em movimento, e a freqüência da oscilação a individua, de modo
a se não misturar com as ondulações de freqüências diferentes.
E tendo feito uma pausa, concluiu:
– De maneira que, ao falarmos em tempo, nossa mente vê esferas dilatando ou retraindo-
se no espaço, isto é, vê espaços-tempos movendo-se no espaço maior. Um espaço movendo-se
no espaço, pode ser também um móvel qualquer deslocando-se em sua trajetória. Entretanto, ao
pensarmos em espaço, vêm-nos à mente as três dimensões do volume, porque a isso estamos
acostumados. E conquanto o não seja errado, é noção insuficiente que não permite maiores
avanços no rumo da verdade maior, sempre, cada vez mais central, abstrata, metafísica. Devemos
nos habituar a uma visão mais fundamental do fenômeno. Espaço e ondas se reduzem a um só
conceito, e é este o de curvatura. Assim como ondas de freqüências diferentes não se interferem,
ainda que vibrem ou se propaguem no mesmo espaço, igualmente, espaços de curvaturas
diferentes podem ocupar o mesmo lugar, sem se interatuarem. U’a matéria só é impenetrável à
outra, quando ambas têm a mesma curvatura espacial; não se interferirão, todavia, podendo
coexistir no mesmo lugar, se os raios de suas curvaturas espaciais forem diferentes. Por isso o
espaço não é absoluto, como não o é o tempo. Portanto, o espaço é relativo, constituindo uma
variável, exatamente como o tempo. Se, pois, o espaço é variável, relativo, inconstante, em que
ele varia? Nas suas três dimensões não pode ser, que estas são constantes, e definem espaço. Pois
se ele varia, e não varia nas três dimensões, então só pode ser na curvatura. Por conseguinte, há
tantos espaços, quantas são as possíveis curvaturas deles. E como não existem espaços sem
matérias, existem tantos tipos de matérias, quantos são os espaços que se interpenetram, como se
foram esferas ondulatórias congeladas nos vários estágios de sua expansão dinâmica. Os espaços
menos curvos abarcam os mais curvos, e todos coexistem enlaçados pelo topos uranos que é a
mínima curvatura do sistema.
E após reflexões silenciosas, prosseguiu:
– De modo que, quando os espíritos desencarnados nos dizem que seus planos de vida são
constituídos de u’a matéria mais rarefeita, mais tênue, mais quintessenciada, falam com
impropriedade, visto como aquelas matérias apenas são menos curvas que a do nosso mundo
material. Se aquelas matérias se encurvarem, e é o que sucede nas materializações, se aqueles
espaços diminuíssem os raios de suas curvaturas, tornar-se-iam na nossa matéria densa, como a
chamamos. Concentração e desconcentração de matéria significam apenas encurvamento e
desencurvamento de espaços. As propriedades todas das matérias decorrem das curvaturas dos
sistemas, cujo raios podem ser considerados como sendo os dos elétrons. Até as velocidades
íntimas das matérias dos vários sistemas provêm das curvaturas. Podemos considerar o
comprimento do raio eletrônico, como sendo o que mede a curvatura do sistema que o contém.
Num sistema em que este raio eletrônico é mais longo, a matéria se torna mais rarefeita. Tal é o
para que tende nossa matéria, quando submetida a altíssimas temperaturas. Ela, neste caso, pode
passar-se para o estado radiante e atravessar as paredes da retorta que a continha.
– Pelo que vimos, prosseguiu o filósofo, não existe um tempo absoluto, básico, que possa
servir de fundamento a aferições de outros tempos, visto como cada fenômeno tem o seu.
Também não há um espaço definitivamente curvo, constante, fundamental, que pudesse servir de
padrão de medida. O espaço é móvel, contrátil e expansível, e, sua curvatura, por isso,
inconstante. Ele é menos móvel do que as esferas-ondas da energia, e nisto só reside a diferença
entre matéria e energia. Onde ele se há restringido na matéria, as ondas de que aquela provém, se
255
reduzem a um latejar íntimo que, por sua vez, se propaga como outras ondas que são a
gravitação. Este latejar se torna mais intenso no lugar ocupado pela matéria, donde se dizer que
ela possui um campo gravitacional tão mais intenso, quanto mais próximo a ela. A gravitação
consiste num latejar da matéria, e se propaga de dentro para fora, rumo ao espaço exterior.
Todavia, os espaços estão em movimento, a seu turno, e primem contra a matéria com ondas
gravíficas semelhantes às pulsações cinéticas provindas da matéria. Trata-se de pressões da
mesma natureza, porém, de sentidos contrários. A onda gravífica, vinda dos espaços, é aquela
energia que tende a se concentrar em matéria; contrariamente, as ondas gravíticas procedentes da
matéria, não só tendem a se expandir, senão, também, a se degradar noutras formas de energia de
comprimentos de onda cada vez mais longos, ou seja, em sistemas de ondas cada vez menos
curvas. As ondas gravíticas dos espaços são centrípetas à matéria ou perífugas ao espaços, no
mesmo passo que as da matéria são gravitação na sua fase expansionistas ou centrífugas rumo a
comprimentos de onda cada vez mais longos, até sua completa retificação na corrente contínua
da eletricidade, já nas bases da vida.
E tendo entrado em considerações silenciosas, tendo o olhar perdido no vazio, retomou o
fio das idéias declarando:
– Vimos já, em um destes nossos estudos, que os espaços se movem formando fabulosos
vortilhões galácticos. Ao redor e dentro desses vortilhões formam-se campos eletrônicos, em
que os elétrons aparecem associados pelos seus campos particulares. Quando o movimento
periférico é maior que o central, aparece uma componente gravítica que prime contra o centro do
movimento. Qualquer coisa mais densa que esteja suspensa no espaço, convergirá para esse
centro. Quanto mais inerte for a coisa, quanto maior for sua massa, tanto mais reagirá ao
movimento do espaço, pela inércia, fugindo para o centro, que é de mais repouso. Não querendo
(repisemos) mover-se, por causa da inércia, há de a massa ir para onde o movimento não existe,
ou é diminuto. É compreensível, portanto, que qualquer coisa queira ir para o centro, na fase
perífuga, e com tanto mais ímpeto, quanto maior for a sua inércia ou massa, e quanto maior for a
velocidade periférica do meio. Quando, todavia, se forma um núcleo de matéria mais
concentrada, no centro do vórtice, essa matéria, por causa do movimento de rotação que lhe
imprimiu a periferia, emite correntes centrífugas contra as pulsações gravitacionais vindas dos
espaços. Se as forças dos espaços forem maiores que as emitidas pelo centro, cada vez mais este
se aperta, se contrai, se restringe, produzindo o calor e a pressão necessários à construção dos
átomos pesados da matéria. Isto foi o que se deu na formação do Colosso Primitivo. Quando,
entretanto, se afrouxam as constrições espaciais, e as ondas gravíticas exteriores, perífugas, se
apoucam, como o centro está girando sobre si mesmo, começam a afastar-se os átomos mais
pesados para fora, produzindo os anéis que se podem ver nas nebulosas aneladas ou planetárias.
Os anéis, assim como depois as órbitas planetárias, são os lugares de equilíbrio das forças
oponentes centrífuga e perífuga, que representam a tese e a antítese da síntese gravitacional.
Gravitação, por conseguinte, não é atração da matéria, e sim, pressão originária do movimento; o
centro prime para fora, pela força centrífuga, e o espaço pressiona para dentro pela sua força
perífuga. E gravitação é este binário de forças oponentes e complementares. Como vocês vêem,
os espaços não são coisas paradas, cuja medida sejam só as três dimensões que os definem; eles
são móveis e dinâmicos, em menor proporção que a energia, mas são. Eles se encurvam e se
desencurvam, e os vários tipos de matéria aparecem e se somem.
E dizendo isto, levantou-se de sua cadeira, indo até à estante, de onde retirou um livro.
Folhando-o depois, achou o ponto indicado pelas suas notas. E após sentar-se, novamente,
prosseguiu:
– Para que vocês não cuidem que estou teorizando no ar, que minha exposição não passa
de quimera, chamo a atenção de todos para o trecho que vou ler, de Fritz Kahn, que é de onde
parti para o desenvolvimento desta minha hipótese:
– “Einstein fundamentou a teoria dos fótons, dizendo: as oscilações que migram pelo
espaço com alta energia apresentam propriedades materiais e podem ser consideradas como
corpos. Como antítese ou quase que inverso desta idéia De Broglie desenvolveu o pensamento de
que corpos que se movimentam com grande energia se conduzem como ondas. É possível
calcular o número dos movimentos pela fórmula simples de
256
M × C2
______________
isto é, a massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz dividido por h que é o símbolo
dos quanta descoberto por Planck. Os elétrons que se movem 15.000 Km/seg. possuem o
“comprimento de onda” dos raios Roentgen. Mas na realidade um corpo não se transforma em
onda por meio de velocidade acelerada. A substância é ondulatória por sua própria natureza.
Quanto menor a massa e quanto mais rápido o movimento, mais nítido se torna o seu
característico ondulatório. Quanto maior a massa e quanto menos ela se movimenta, mais
domina o seu característico de matéria. As ondas e a matéria são manifestações diferentes de
uma única coisa, isto é, da energia-substância”416.
E fechando o mestre o livro, e depondo-o sobre a mesa, concluiu:
– Então, do mesmo modo que, para a energia, há espaço e mais o tempo, em proporções
diferentes, para a matéria, também há o tempo e mais o espaço. Por este motivo, podemos
reduzir estes dois conceitos, espaço e tempo, a um outro mais geral ainda que, por isso mesmo,
dimensiona a ambos com uma só medida, que é o raio de curvatura. Quando os espaços têm
curvaturas de raios diferentes, suas matérias, porque possuem graus diferentes de concentração,
não se interferem, podendo coexistir no mesmo lugar. A impenetrabilidade de um corpo por
outro, só existe para os que possuem matérias de um mesmo raio de curvatura. Assim também
com as ondas dinâmicas; se têm a mesma curvatura, isto é, o mesmo comprimento de onda,
interferem-se, e não podem estar juntas no mesmo espaço, porque, ou se anulam, ou se somam. É
baseado neste princípio de batimento, que as ondas sonoras se anulam no trombone de Quincke,
nos silenciadores das armas de explosão e nos “silenciosos” dos automóveis; é fundado nele que
as ondas hertzianas se anulam nos demoduladores radiofônicos, para que se evidenciem as
ondas sonoras que vêm a cavaleiro da portadora. Se, todavia, as ondas possuem freqüências ou
curvaturas diferentes, propagam-se, perfeitamente, no mesmo espaço, sem interferências.
– Ora, concluiu o filósofo, sendo o círculo o retrato do espaço-matéria, e a sinuosa, o do
espaço-onda, tanto a sinuosa se reduz a círculo, como este se abre naquela, e isto significa que
tanto a matéria se torna energia, como a energia, matéria. Com isto, energia e matéria, tudo vem
a ser círculo e curvatura, podendo ter o raio por medida. O raio do círculo da matéria dá, logo, de
pronto, a curvatura do espaço em que ela se acha encurvada. Na onda, este raio representa um
quarto do seu comprimento, porque, como já vimos, sendo a sinuosa um círculo desdobrado, o
comprimento da onda representa dois diâmetros ou quatro raios. Basta, portanto, dividir o
comprimento de qualquer onda por quatro, e já se obtém o raio de curvatura do sistema. Assim,
energia e matéria, sendo, como vêem, manifestações de u’a mesma realidade, a substância,
podem ser representados de um só modo que é a curvatura, cuja medida é o raio. Não há, pois, só
um espaço a três dimensões da geometria, mas, na realidade, infinitos espaços, e todos dados
pela presença da matéria e da energia em vários graus de encurvamento. E porque existem
infindos tipos de energia, nos vários planos do universo, por isso mesmo há muitos tempos.
E concluiu o pensador, após pequena pausa:
– Posto que há, como tenho demonstrado, tipos diferentes de matéria, e tipos diferentes de
energia, tem que haver, também, diferentes graus de consciência, ou seja, tipos diferentes de
espírito. Já pela observação, sabemos haver graus de consciência diferentes, pelo que uma planta
não é animal, nem este, homem. De igual modo sabemos que o som e os raios gama, conquanto
ambos sejam ondas, pertencem a tipos diferentes de energia. Com a matéria se dá o mesmo,
havendo tantos tipos dela, quanto os possíveis graus de concentração, significando isto, espaços
de curvaturas diferentes. Uma é a matéria deste livro de que fiz citações há pouco, e outra, a do
seu duplo etéreo que pode ser manuseado por um espírito desencarnado. Eis, pois, que por este
encadeamento dialético, podemos chegar à verdade mais essencial que é o fundamento das
coisas, a curvatura, cuja medida é o raio. Curvo é o Todo, o topos uranos, e curvas, as partes
416 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, I, 38
257
constituintes dele. A máxima curvatura, de raio zero, é o ponto geométrico ou não-ser ou nada-
essência. A mínima curvatura, de raio máximo, é aquela grande esfera do Deus imanente ou
criacional, representado pelo topos uranos. Entre esses dois extremos, Tudo e nada, escalonam-
se os vários existires, todos curvos, os quais tanto mais se autoafirmam, se positivizam, se
manifestam em ser, quanto mais se desencurvam, isto é, se acercam por evolução
(desencurvamento), da suprema Realidade, que é aquela de curvatura mínima. Evoluir é
desencurvar-se, e involuir, encurvar-se. E tanto a evolução como a involução tem uma única
medida que é o raio de curvatura e um limite superior que é Deus no seu aspecto imanente,
representado pelo topos uranos, e um limite inferior que é Satanás, entendido este em toda a sua
“plenitude” de não-ser.
– Pouco há dissemos, prosseguiu o mestre, quando tratamos das ondas, que elas são
representadas por sinuosas serpenteantes ao longo do eixo do tempo. Esse eixo representa, por
isso o espaço percorrido pela onda. Deste modo, o espaço ficou reduzido a uma expressão linear.
É o espaço que se moveu, como se fora ele, agora, o ponto, de cujo movimento nasceu a linha no
tridimensório anterior. O espaço é linear, aqui, porque representa o tempo. E do mesmo modo
como, no tridimensório anterior, a linha moveu-se no sentido da perpendicular baixada sobre ela,
e deste movimento nasceu o plano, e assim o tempo linear se move, também, neste sentido da
perpendicular, e disto nasce a consciência planimétrica. Nos planos inferiores, a vida ainda é
linear, porque, ainda sendo energia, mede-se pelo tempo. Esta linha-tempo, aqui, no plano da
vida, é o eixo de câmbio orgânico. É o eixo do vórtice vital com suas duas extremidades, uma de
assimilar e outra de expelir os resíduos. Mais adiante esta linha se engrossa e é instinto que
conhece uma só direção de desenvolvimento para onde sempre se lança. Contudo esta linha do
determinismo instintivo, de engrossar, passa a alargar-se numa faixa, como o estuário de um rio
que cada vez mais se espalha, de sorte que o ser já é livre de oscilar dentro dessa faixa que,
sempre, cada vez mais, se alarga, na proporção que a evolução avança pela escala zoológica. A
domesticação e o aprendizado animal representa este alargamento, e o ser já pode escolher e
decidir-se dentro desta pequenina consciência. É deste jeito que nasce a consciência
planimétrica, pelo alargamento da linha instintiva do tempo. O tempo, aqui, como aconteceu com
a linha no tridimensório anterior, desaparece absorvido pela dimensão consciencial planimétrica.
Como aconteceu antes, em relação ao aparecimento do volume, este plano consciencial se
desloca no sentido duma perpendicular levantada da sua superfície, com que surge o volume
consciencial, ou consciência volumétrica, ou hiperconsciência, ou consciência cósmica. E do
mesmo modo que a dimensão da consciência planimétrica é o raciocínio, aquela perpendicular
levantada sobre o planimétrico da razão é a intuição.
– De maneira que, concluiu o pensador, assim como o animal não desenvolve sempre,
indefinidamente, numa progressão linear, um único instinto, e antes, pelo contrário, cria instintos
novos aos feixes, paralelos entre si, de modo a alargar aquela linha primitiva, também em nossa
fase racional, não se há de multiplicar os conhecimentos e ampliar a consciência para todos os
lados, por meio da erudição infinita. Não se há de fazer isto, mas sim, ganhar profundidade ou
altura, ou seja, multiplicar tudo o que sabemos por outra dimensão, de modo a obtermos a
consciência em volume, em síntese cosmonômica. Não mais ciência, porém, sabedoria. E esta
dimensão pela qual a consciência se há de multiplicar é a intuição. Esta é a causa por que a
intuição é visão de profundidade, visão integral do todo, visão sintética e instantânea como
relâmpago. Não obstante, assim como na elaboração da fase racional, o ser, usando o ensaio-e-
erro, apoiou-se nos instintos e tateou com a razão, também, ao elaborarmos a fase
hiperconsciencial, precisamos apoiar na razão e tatear com a intuição. Este é o controle racional
dos “dados imediatos da consciência” (Bergson). Intuição, por conseguinte, sem o lastro de
racionalidade em que se fundamente, é pura imaginação. O gênio tem relâmpagos de intuição, e
isto lhe dá o material para o labor consciencial de toda uma existência. Pois estes relâmpagos
vão-se amiudando cada vez mais, até que, como ocorre com os seres dos planos mais altos da
espiritualidade, a luz interior não pisca nem relampagueia mais, senão que se torna num
esplendor contínuo. A consciência ter-se-á, então, tornado definitivamente volume, e a visão do
absoluto se desvenda de vez e para sempre, para sossego da mente. Tal é como um arcanjo vê
tudo do seu nível abaixo.
258
E prosseguiu o mestre:
– A fase pré-instintiva é comparável a uma folha de pergaminho virgem, sem nenhuma
dobra: a fase instintiva é como quando, nesta folha, se fazem algumas dobras, viciando-as; a
fase racional ou consciencial, como a do homem comum, é como quando o pergaminho se acha
amarrotado ao infinito, e, de tão sovado, dobra-se em qualquer lugar. A consciência, então,
torna-se numa superfície plana sobre a qual se podem tomar quantas linhas se quiser. O que,
embaixo, era instinto, aqui é hábito; e como estes podem ser infinitos, pelo menos em teoria,
temos que a consciência é a possibilidade de os instintos, reflexos condicionados, coordenações,
memória, etc., se tornarem infinitos. Se tal consciência se expandir para todos os lados, teremos
a erudição; porém, se ela se multiplicar pela vertical da intuição, adquirimos a sabedoria. É deste
modo que se pode ser sábio, sem muita erudição, e, erudito, sem ser sábio. Deste modo, o
conceito de curvatura, se pode estender à consciência, e a que for menos curva, de maior raio de
ação, pode abarcar e compreender às de raio menor, mais curvas, mais fechadas, estreitas,
restritas, sem que o inverso se dê. Daqui vem que o hiper-racional é tolerante com as limitações
alheias, e toda a intolerância significa pequenez e estreitismo consciencial.
Dito isto, pôs-se o filósofo a meditar. Retomando, depois, o assunto, exclamou:
– Tornemos isto evidente, através de alguns exemplos: Stephan Leduc, no começo deste
século, fez observações notáveis sobre os cristais líquidos, descrevendo-os, e com razão, como
os precursores dos seres vivos. E quero que vocês observem, aqui, em “O Livro da Natureza” de
Fritz Kahn, a figura 138 que se acha à página 315 do primeiro volume.
E todos se levantaram de seus lugares, e se postaram ao redor do mestre para seguirem, na
figura, o que ele ia lendo no texto:
– “Na realidade é de espantar o que eles realizam em movimentos “vivos” e manobras.
Eles se enroscam como vermes, arrastam-se como amebas, devoram como estas, crescem e
dividem-se quando atingem determinado tamanho (Fig. 138).
Em 1 vê-se uma gota de clorofórmio que come uma “cobra”. Essa cobra é um fio de laca. A
gota gira e desse modo enrola o fio de laca que a ela se cola. Depois ela o dissolve quimicamente
e com isto fica maior. Em 2 vê-se como uma gota de clorofórmio se encontra com um pauzinho
salpicado de grãos de cores. A gota absorve o pauzinho, dissolve os grãozinhos e devolve o
259
pauzinho comido, esvaziado. Em 4 vê-se como uma gota assim crescida se reparte e, em 3, uma
figura fragmentada, conforme aparece nas células quando estas se subdividem (veja Fig. 142).
Todos que se interessarem pela experimentação podem produzir essas imagens de Leduc
por meio de misturas adequadas com tinta nanquim, corantes, óleos, sabões, lacas e, como na
vida não importa o que se faz e sim o que se vive, podem-se obter através dessas brincadeiras
biomecânicas estímulos valiosos. Por meio delas preparamo-nos para o encontro com os vírus e
as bactérias, as células, os núcleos celulares e os cromossomos que se comportam exatamente
como os cristais líquidos, e somos prevenidos contra a tentação de supor forças vitais onde,
conforme aqui se vê, bastam reações físico-químicas para provocar “ações racionais”
verdadeiramente inacreditáveis”417.
E levantando os olhos para o grupo ao redor de si, concluiu:
– Como viram, ainda onde não há vida, observamos acontecimentos iguais aos deparados
nos planos inferiores dela. E a ameba que lembra os cristais líquidos em todos os pormenores,
“possui todos os três elementos fundamentais do comportamento psíquico: a recepção dos
estímulos, a transmissão ou condução dos impulsos e a ação final de um órgão efetor. Nela,
porém, todos esses três elementos são indiscriminadamente misturados e espalhados por todo o
corpo. Não há definição de partes especializadas. E já que uma parte qualquer do corpo da ameba
pode ser ora um órgão sensorial, ora um nervo, ora um músculo, seu protoplasma manifesta a
falta de eficiência própria dos que querem fazer tudo a um tempo só”418. Mais: “Há alguns anos,
em Plymouth, Pantin mostrou que os movimentos da ameba têm muitas propriedades em comum
com os movimentos da célula muscular; uns e outros são semelhantes nas suas relações com a
carência de oxigênio, com a temperatura, com grande número de substâncias químicas. Em
suma, uma fibra muscular é uma célula especializada no sentido de que a contratilidade primitiva
da matéria viva se torne mais vigorosa e eficiente”419. Mais isto: à primitiva forma de transmissão
nervosa que se verifica numa esponja-do-mar, “Parker chamou “transmissão neuróide"420.
Neste ponto, todos já se achavam de novo em seus lugares, e Árago continuou falando:
– Depois disto a vida começa a complicar-se para além dos tropismos, começando a
surgir os reflexos e os instintos. A simbiose, então, que se instala desde os mais baixos até os
mais altos níveis, é tão generalizada e complexa, que foi preciso criar um ramo de ciência, a
simbiótica, para estudá-la. Os simbiologistas chegaram até a supor que as criaturas superiores
não resultam, como sempre se pensou, de colônias celulares, na qual se deu a divisão do
trabalho. A última teoria neste sentido é de que “um bacilo alojou-se no plasma duma ameba e
dessa união resultou a célula das criaturas superiores”421. Seria paralelismo “que o esqueleto
humano é um coral arborescente; que, nos nossos ossos, vivem milhões de animais coralíferos;
que estes, como os seus irmãos do oceano, extraem com tentáculos de plasma cálcio da linfa, tão
semelhante à água do mar; e que os nossos ossos são troncos de coral?” 422. E para pensar, acaso
não é necessário um cérebro? Pois “para compreendermos o reino animal inferior, cumpre
libertar-nos da falsa noção de que, para pensar, o ser vivo precisa de cérebro. No curso da
história, o cérebro ajudou-o a pensar melhor; não lhe deu, no entanto, a faculdade de pensar”423.
– Ué! Isso para mim é novidade, exclamou Hierão Orsoni.
– Novidade? E se eu lhe disser que até um verme-da-terra pode aprender?
– E vendo no rosto de Hierão um ar de descrença, tratou logo de folhar o volume
“Ciência da Vida” de Wells e Huxley. E tendo achado o ponto, exclamou:
– Aqui está. As experiências foram feitas por Yerkes, e depois, confirmadas por Heck.
Ambos construíram um tubo em T, colocando na parte inferior minhocas. Elas subiam, e ao
chegarem na ramificação, tomavam, indiferentemente, para a direita ou para a esquerda. Porém,
se tomam para a direita recebem um pequeno choque elétrico de um par de eletródios aplicados
às paredes do tubo. Se tomam para a esquerda escapam sem conseqüência. “As experiências
mostram que o verme é suscetível de aprendizagem. A princípio, a escolha da rota se faz ao
acaso, e o animal toma indiferentemente a direita ou a esquerda. Lentamente, porém, o fato de
que o caminho da direita é perigoso se impõe à inteligência elementar do animal. Após uma
centena de ensaios, aproximadamente, ele pende definitivamente mais para a esquerda do que
para a direita; após cerca de cento e cinqüenta ensaios, o animal tende para a esquerda dez vezes
mais do que para a direita. A esta altura, trocam-se os eletródios do lado direito para o esquerdo
do tubo. E também, lentamente, o verme desaprende a primeira lição e aprende o novo
caminho”424. A minhoca não tem cérebro, e sim, gânglios nervosos aos pares, um par para cada
segmento; e aprende, apesar de não ter cérebro. Um ser primaríssimo invertebrado, como a siba,
é capaz de atos inteligentes, sem possuir cérebro, como seja, empregar instrumentos exteriores
ao seu corpo. “As sibas são, como os símios, os únicos animais que fazem alguma coisa do que é
própria e especificamente humano; isto é: sabem usar instrumentos. A siba apanha uma pedra
chata, aproxima-se traiçoeiramente dum marisco, enfia fulminantemente a pedra entre as valvas
e suga o animal reduzido astuciosamente à impotência”425. Fritz Kahn afirma que a siba é o único
invertebrado que faz isso? No entanto vemos aqui em seu livro, página 315, a figura 169, um
crustáceo que ao mudar-se de moradia, leva sua actínia; em cima, na mesma figura, um
caranguejo em luta com um peixe, desarraiga duas actínias, e com elas criva o adversário de
setas causticantes. “Os próprios polvos hesitam em atacar o crustáceo que tenha em casa essa
amazonas de braços urticantes” 426.
chimpanzé, não é semelhante à “mente concipio” de Galileu, pela qual descobriu este as leis de
inércia, Bruco?
– Penso que a diferença é só de grau, e não de natureza do fenômeno psíquico.
– Isso mesmo, Bruco. O pensamento do macaco era estimulado pela presença física das
varas. Em Galileu, tudo era abstração e cadeias de imagens mentais em operação. Nesta
capacidade de abstração é que reside, como você disse, a diferença de grau. Quer dizer que
Galileu era capaz de idéias abstratas, no passo que o macaco só as possuía concretas. E a idéia,
Bruco; que é a idéia?
– Idéia, do grego, é imagem.
– Se a idéia é imagem, o conceito, que é ?
– É a generalização que se faz das imagens. Primeiro vem a percepção dos sentidos que é
a intuição sensível. Esta experiência dos sentidos reflete-se no mundo interior como imagens que
são cópias fiéis daquilo que se observou. A cavaleiro destas imagens estão os conceitos que são
generalizações numa unidade mental, daquelas imagens. Os elementos fortuitos, as
particularidades individuais, são eliminados, ficando só os caracteres essenciais ou fundamentais.
O conceito é a essência, ou seja, aquilo que a coisa é.
– Posto, então, que há imagens e há conceitos, continuou o mestre, deve existir duas
formas de pensar, sendo uma por imagens, ou imaginação, e outra por conceitos, ou abstração?
– Não há dúvida que há, tornou Bruco.
– E Galileu teria pensado por imagens, ou por conceitos ?
– Galileu pensou por imagens primeiro, porquanto viu um espaço, enxergou móveis
deslocando-se nele, e foi concebendo, de olhos fechados, o conceito de tudo isso, nas suas leis de
inércia.
– E o chimpanzé de Koehler teria pensado por imagens, como Galileu ?
– De modo algum. Aquilo que em Galileu era intuição intelectual, no macaco era
intuição sensível, por isso que precisava da presença das varas e das demais condições concretas
do ambiente, para poder pensar a solução. O macaco antecipou o que era evidente através das
condições sensíveis. Ele viu a situação, consistindo nisto a solução do seu problema.
– Então, concluiu o mestre, o pensamento animal é feito de concreções; o humano, de
Galileu, é produzido por imagens abstratas. O pensamento por conceitos ou por essências, como
das matemáticas, é uma forma superior ainda, do que o pensamento por imagens. O pensamento
concreto é material; o imagético, menos material; o produzido por conceitos, completamente
imaterial. É isso, Bruco?
– Perfeitamente.
– E quando estudamos os objetos ideais, não ficou assente que eles são inespaciais,
intemporais e incausais?
– Ficou.
– E as imagens, já o dissemos, não podem ser classificadas entre os objetos ideais, não é?
– Isso mesmo. Segundo já estudamos, os objetos psíquicos são reais, e por isso
respondem às quatro categorias ônticas que são: ser, espacialidade, temporalidade e causalidade.
Porém, há isto de distinto dos objetos reais: os objetos psíquicos não são espaciais em sentido
objetivo, e sim só em sentido subjetivo. Esses objetos, os psíquicos, constituem, uma categoria
ôntica regional do espaço, isto é, não possuem espaço objetivo, senão, só subjetivo.
– Aí está, concluiu o mestre; os objetos ideais têm ser, todavia, não possuem causa, nem
duração, nem espaço. E estão conexos com os objetos psíquicos que possuem ser, causa e tempo,
mas não, espaço objetivo. Já os objetos reais possuem ser, causalidade, espacialidade e
temporalidade. O pensamento do chimpanzé se confunde com os objetos reais, possuindo as
quatro categorias ônticas do real, representando a primeira fase do conhecimento, a do
empirismo puro. No entanto, o pensamento de Galileu participa das três fases: a empírica, de
quando observou os fenômenos de movimento; a psicológica, de quando imaginou tudo
acontecendo em sua mente; finalmente a fase ideal em que abstraiu as leis de inércia, que são
puras essências ou objetos ideais. Disto concluímos que há três formas de pensamento: o físico,
o imagético e o ideal. O pensamento ideal se apoia sobre o imagético, e este, sobre o físico. Esta
é a cadeia do conhecimento. E o das criações, das invenções, Bruco, como será ?
263
– Pois tem que ser essa cadeia pelo inverso. Toda a invenção nasce dum princípio que é
pura idealidade; esta cria as imagens, pelo que o inventor enxerga sua máquina funcionando em
sua mente; por fim, ele realiza a coisa no plano físico, e sua máquina estará criada para todos
verem. É assim que o puro princípio que é, mas não existe, que não tem causa, nem tempo, nem
espaço, passa a ter causa e existência, primeiro como pensamento imagético, depois como
pensamento concretado na realidade objetiva.
Ponderando em silêncio, por algum tempo, prosseguiu o pensador:
– O pensamento do chimpanzé de Koehler é material; o mundo imagético de Galileu, sê-
lo-á também, Bruco?
– Tem que ser... mas de matéria diferente. As imagens das coisas são matérias de outro
plano da vida; as imagens serão feitas de matéria mental, menos curva que as do nosso plano
físico.
– E é possível haver matéria mental sem sua correspondente energia mental ?
– De nenhum modo, tornou Bruco. Matéria e energia, sejam físicas, sejam mentais,
formam o binômio da energia-substância que pode manifestar-se num plano ou noutro pelo
encurvamento ou desencurvamento, segundo o senhor já expôs.
– Bom. E os conceitos, as essências, as idealidades puras, são constituídas de matéria
mental?
– Não pode ser, pois, se o fossem, seriam causais, espaciais e temporais. Ora, os objetos
ideais não possuem estas categorias ônticas. Eles são, somente. Não posso conceber que o
princípio ou lei das alavancas, sobre que se repousam todas as máquinas mecânicas, possa
constituir-se de matéria de qualquer espécie.
– Mas, prezado Bruco, quando pensamos um conceito, ele não se pinta em nossa mente
como uma imagem do geral? Se digo: cavalo, que é que surge em nossa inteligência ?
– Pois surge uma imagem de cavalo que não é de nenhum conhecido; a imagem que se
nos pinta na mente é diluída, difusa, sem cor, transparente, como se fôra feita de ar.
– E essa imagem conceito não possui espaço subjetivo com sua correspondente energia-
substância mental?
– Deve possuir, porquanto não deixa de ser imagem. Porém, no correr de um raciocínio, o
conceito de cavalo é pensado sem essa representação simbólica; aparece-nos fugaz, galopante,
sem nos dar tempo para o pensarmos como ser isolado. Ele surge-nos na cadeia de relações de
maneira furtiva, de modo a não podermos mais dizer que aquela forma ondulante e sumidiça,
seja constituída de matéria mental. Sê-lo-á, porém, na forma última de quintessenciação.
– Esta certo, concordou Árago. Fixemos bem estes pontos: o pensamento pode ser pura
idealidade, razão ou lei, fora do espaço, do tempo e da causalidade; pode ser imagético com
matéria e energia mentais; e pode ser pura concreção ou físico, constituído da energia-substância
encurvada de nosso plano material. Será, Bruco, que entre estas fases consideradas, há
gradações, podendo haver o pensamento pré-macacóide, e pós genial?
– Isso não padece dúvida! Os reflexos condicionados dum ser rudimentaríssimo como as
minhocas de Yerkes e Heck, têm que ser a forma de pensamento a que Bertrand Russell dá o
nome de “inferência fisiológica”. A inferência fisiológica é um pensamento pré-macacoide. Por
outro lado, o pensamento matemático puro, visto ser pura relação sem imagem alguma, deve ser
semelhante ao pensamento pós-genial de um querubim em cuja mente os conceitos voam como
ondas, enlaçando-se entre si em turbilhão mental de expressão volumétrica, global. A fulmínia
visão intuitiva, de claridade solar, é a forma mais alta, segundo entendo, de pensamento.
– Bom. E haveria homens em que predomine o pensamento imagético?
– Como não! estes são os artistas.
– Haveria a classe dos de pensamento puro, isto é, que trabalham só com conceitos ?
– Pois esses são os matemáticos e filósofos.
– Em que, logo, se diferenciam os matemáticos dos filósofos ?
– As abstrações matemáticas são feitas por meio de símbolos, fórmulas e cálculos, e as
das filosofias, de conceitos, juízos e relações. Como muito bem o expressou Huberto Rohden,
aqui, nas minhas notas... deixe-me ver se acho o ponto... está aqui: “Pode-se considerar a
filosofia como uma espécie de matemática, que soma e subtrai, combina e separa as coisas
264
razão e lei puras, e de freqüências mais altas, mais curvas, no ponto em que estão situadas as
ondas do pensamento-energia. Se as ondas se reduzem a curvaturas, como já estudamos, visto
que representam círculos desdobrados nas sinuosas, ondas curtas, e raios mínimos, dão
curvaturas máximas. Pela recíproca, quanto mais longas forem as ondas, maiores serão os raios
de sua curvatura, até que, em se retificando a onda, seu raio se torna infinito. Por isso a reta do
transcendente representa esta onda retificada de raio infinito. Deus, pois, criou o topos uranos
pela ondulação desta reta, pelo encurvamento primeiro, do qual todos os demais encurvamentos
se tornaram possíveis, inclusive o máximo, abaixo de nossa matéria grosseira com e pela queda
das almas do lugar celeste. A reta é a Essência de Deus ou idealidade pura; e os pontos de que se
constituem esta reta são a energia-substância primordial. Nenhuma coisa pode ser maior que esta
reta, e nenhuma menor que os pontos da energia-substância constituintes dela. O máximo e o
mínimo, pois, se encontram em Deus, sendo o primeiro a sua Essência, e o segundo, a sua
Substância. Mas Deus não é uma, senão infinitas retas em todos os sentidos do espaço, o que
vale a dizer que o espaço cheio de retas é o mesmo espaço real cheio da Substância. Esse,
verdadeiramente, é o espaço euclidiano, sem curvatura alguma, e no qual, portanto, é possível se
tracem retas que se dirijam para qualquer direção do infinito. A Energia-Substância constitui a
Realidade primeira, e as retas, a Essencialidade por excelência, visto que guarda em si a
possibilidade de criar infinitamente. Esta Energia-Substância é a Matéria incriada, conforme o
viu a intuição de Aristóteles, e, por isso mesmo intemporal e incausal em si mesma. Eis como é
possível uma Realidade sem ser coisa, visto lhe faltar as categorias de causa e de tempo.
E após ponderar um tanto, prosseguiu o pensador:
– Essa Energia-Substância punctiforme, possui velocidade de vibração infinita que a faz
parecer parada, pois onde a velocidade se faz infinita, o tempo se reduz a zero. Os dois não
tempos estão em Deus: na Essência pura não há espaço, nem tempo, nem causa. Na Substância
há o infinito espaço euclidiano, porém, não há causa, por ser incriada, nem tempo, porque a
vibração da partícula punctiforme possui velocidade infinita, com que seu tempo é zero. A
Essência não possui tempo por natureza, e a Substância não o possui por movimento infinito,
pois a natureza da Substância é a velocidade. Como tudo o que existe nasceu desta Potência pura,
por ato da Essência, o último grau de desfazimento de qualquer ser é aquele antigo estado de
Potência pura em nada ato, a que denominamos caos. A Substância primeira não é o Caos porque
se acha jungida à Essência que desta Substância tudo cria. Todavia, se os seres formados se
desintegrarem até o nível desta Substância, terão caído no Caos mais inteiro, porque, aí, não
terão mais a presença da Essência-Lei a impor a ordem. Sem o Pensamento-Lei, esta Substância
terá velocidade infinita, porém, semelhante ao movimento browniano, sem finalidade e sem
meta, tendo de achá-las, por si mesma, pela integração ou evolução que vai eliminando,
progressivamente, o caos. Em Deus transcendente a Substância se acha pronta a organizar-se
segundo a forma que a suma Idealidade planear. Fora do topos uranos, estende-se,
infinitamente, para todos os lados, o infinito oceano desta Energia-Substância, pronta a obedecer
o imperativo criador da Mente divina. No centro do topos uranos para onde as almas, em
desintegrando, caíram, reina o Caos, porque, aí, a Energia-Substância se acha desamparada do
Pensasmento-Lei. O trabalho de reconstrução da parte derrocada, corre por conta da própria
unidade topos uranos, ou seja, do Deus imanente nele. O transcendente, ao dar-se na esfera do
imanente, criou de cima para baixo: a evolução, ao contrário, como é reconstrução do desfeito,
opera, por evolução, de baixo para cima. Esta é a diferença, e não há outra, de a Substância
jacente no centro do topos uranos ser Caos, e de a que o cerca, pela periferia, ser a Substância
ordenada na reta da Idealidade, pronta a dar-se em quantos topos uranos haja Deus criado, ou
venha a criar. Tal é como o pôde enxergar minha intuição, dentro dos limites estreitíssimos e
miseráveis da minha humana condição. E porque a parte derrocada terá de ser refeita pelo
próprio Deus imanente ou topos uranos, por isso os serafins, como é Cristo, ajudados dos
querubins, arcanjos, virtudes, tronos e anjos, não cessam de descer onde há desorientação,
desespero, dor e morte, para ensinar o único caminho da subida, isto é, o da integração que quer
dizer amor. Este é o significado cósmico da descida de Cristo ao nosso mundo, e de outros
serafins, a outros.
E após descansar-se um pouco do esforço que estas acrologias lhe causaram, prosseguiu,
266
o filósofo:
– Do que expus, fica subentendido que naquele contínuo em que a Substância
punctiforme constitui as retas da Idealidade, uma parte ondulou-se, ou seja, modulou-se na
curvatura do topos uranos. Trincou, depois, a grande esfera do imanente, formando outras
individuações menores e mais curvas, as quais se deram, por sua vez, nos encurvamentos
maiores, até que os seres angelicais se viram já criados, já integrados pelo amor nas curvaturas
maiores do social, desde os órgãos coletivos próximos aos indivíduos, até o organismo total,
pleno de luz e beleza do topos uranos. As almas, então, lançaram mãos dos elementos de seu
meio, criando as coisas que desejavam, e porque eram perfeitas e sábias, o que fizeram possuía
máxima perfeição, de tal modo, que Platão as dava por idéias arquétipos imutáveis e eternas. As
ondas Pensamento-Lei, de retas que eram, ondulou-se em modulações longas, de baixa
freqüência, as quais possuíam, como todas as ondas, harmônicos de ordem. Ao encurvar-se as
ondas longas em vórtices maiores, seus harmônicos, ao mesmo tempo, se encurvaram em
vórtices menores. Mas a onda Pensamento-Lei continuava tocando sua melodia criadora,
variando os acordes, e já as ondas fundamentais, já os harmônicos que davam timbre próprio à
voz divina, continuaram a encurvar-se nas individuações vorticosas, e estas criações, por sua vez,
recantavam a música do Céu, e do seu canto, novas e menores formas surgiam. A voz única que,
ao princípio, começara grave e profunda, entoando a Criação, foi logo seguida de miríades de
vozes menores, mais penetrantes e agudas, até que o topos uranos total pôde encher os espaços
das jubilosas modulações do amor; numa “Ode à Alegria” que Schiller gostaria de escrever, e
Beethoven, de tocar. Aquela voz tonitroante e cava começara sozinha o seu canto, e este foi o
“fiat lux”, e desta luz encheram-se os espaços dando cores e formas às coisas do topos uranos
que nenhuma “Fantasia” de Walt Disney poderia pintar. As almas eleitas, como despertadas de
um sono, se viram criadas, e, de pronto, puderam entender por sabedoria infusa, o que eram, e
que lhes cumpria fazer. O amor, então, as irmanava a todas, e o gozo que sentiam era um êxtase
contínuo. Na periferia do topos uranos que é a parte mais alta deste, os serafins,
incendiados do amor divino, como baixos profundos, entoavam suas notas que se casavam, em
acordes, às dos querubins de sons menos graves. Num plano mais interior, o coro das virtudes e
dos tronos trinava suas respostas acompanhadas dos arcanjos e dos anjos cujos intelectos
emitiam ondas agudíssimas da racionalidade pura, e iam destarte recriando mais para o centro
formas e coisas que espantariam Platão. A Lei cuja reta marcava o compasso do todo sinfônico,
cantava com todo o criado, o Hino da Criação.
E após um instante de pausa, prosseguiu:
– Vendo quão poderosos eram, quão agudas e penetrantes eram suas notas do intelecto,
alguns anjos e arcanjos tentaram dominar a sinfonia, e destarte variar o tema central à sua moda,
e criar, por sua vez, em stravinskyano estilo, algo que ao mais alto empíreo se opusesse. E como
nossos jovens modernos, principiaram a tocar a rebelião, o rebate, aos altos e indevassáveis
desígnios do Senhor dos altos Céus! E trocando o Amor que é o Ser e a existência, pelo egoísmo,
pretenderam subverter a ordem, de modo que fosse a Inteligência, e não o Amor, a causa
primeira da Criação. Com este pensamento louco, correndo a imaginação, voando a fantasia,
principiaram a encurvar-se, e aquilo que lhes era conhecido, por intuição direta, peremptória e
axiomática por direta sabedoria infusa, começou a descer de nível, caindo da hiperconsciência
para o planimétrico da razão, com que tudo, então, problema se tornou. E em luta suicida,
despenharam-se para o centro, fechando-se na animalidade bruta cuja vida se cifra na linha
instintiva e egoística da própria conservação. Com se fecharem, perdiam eles energia, e estas se
encurvavam e se restringiam cada vez mais, tornando-se espiritualmente pobres, conquanto mais
potentes, se vistos do ângulo do puro dinamismo. E as ondas de energia, cada vez mais curtas,
mais curvas, quais raios cósmicos, canhoneavam de partículas aquele ponto central em que
surgiria, por fim, o Primitivo Colosso de Alpher, Bethe e Gamow. Outros e outros e mais outros
encurvamentos, vindos da periferia, foram gerando o Caos em que a Substância, desamparada da
Lei, se viu sozinha, isolada, naquele espaço punctiforme, de estrutura granulosa do Prof. March,
que outra coisa não é, senão o éter. Ainda outros movimentos perífugos, a cavaleiro deste éter,
concentraram-se nos grãos eletrônicos, de estrutura vorticosa. Ondas e mais ondas, cavalgando,
agora, o oceano eletrônico do espaço, concentraram-se nos núcleos de hidrogênio que, prensados
267
uns contra os outros no seio do Colosso, deram nascimento aos átomos pesados que vão até os
corpos transurânicos. As esferas perífugas da energia no seu tempestuoso abraço, arrastaram os
núcleos de hidrogênio para o centro único, o qual, quanto mais se apertava, mais se aquecia,
raiando a temperatura pelos milhares de milhões de graus.
E prosseguiu o mestre, após um suspiro:
– Esta foi a fornalha cósmica, única no universo, que possuía calor e pressão suficientes a
forjar os átomos pesados, não só até o urânio, senão também os elementos, hoje artificiais,
netúnio, plutônio, amerício, cúrio, berquélio, califórnio, einstênio, férmio, mendelévio, nobélio e
laurêncio. O elemento químico califórnio se reduz à metade em cinqüenta e cinco dias.
Observando o declínio da luz duma “Nova”, após a explosão, chegou-se à hipótese de que, ali, se
desintegra o califórnio. Conquanto estes elementos tenham vida muito curta, a pressão e o calor
reinantes no seio do Colosso agiam como freios do processo desintegrativos. Aqui foram feitos
todos os átomos pesados e radioativos, e depois disto, nenhum calor e pressão se acharam
suficientes a imprimir aos núcleos de hidrogênio tal velocidade, de sorte a metê-los dentro dos
núcleos mais pesados. Mas, a energia periférica começou a arrefecer-se, tornando-se inevitável a
explosão de tais e tantos átomos instáveis. Então, começou a esgotar-se o impulso periférico,
que fazia concentrar-se a matéria; contudo, o Colosso estava animado do movimento que lhe
imprimira a periferia. Deste modo, começou a inverter-se o impulso perífugo em centrífugo,
porque o Colosso, continuando a girar sobre si, começou a ser mais rápido que o movimento
periférico em fase de arrefecimento.
E querendo tornar mais claro o assunto, antes de prosseguir, tornou atrás, repisando o que
fôra dito:
– Como vimos ontem, a equação da força centrífuga, num meio fluídico, é a mesma
equação da força perífuga, porém, apresenta-se com sinal contrário, isto é, negativo. Por este
motivo, tal como ocorre com a força centrífuga, a força perífuga também é proporcional à massa,
à velocidade e inversamente proporcional ao raio do centro. Quanto mais curto for o raio ou
distância do centro, maior se torna a força constritiva do vórtice. Por isso, na primeira fase, os
grãos etéreos, e depois os núcleos de hidrogênio mais se iam encaminhando para o centro, dando
início à formação da grande massa que, mais tarde, passou a integrar todo o universo físico; nela,
portanto, se concentravam todas as galáxias, e que deveria ter, segundo a hipótese do sacerdote
belga La Mettrie, dez mil anos-luz de diâmetro. Somente nessa prodigiosíssima fornalha em que
o universo se forjava, é que se poderiam construir os átomo pesados. O calor solar de seis
milhões de graus na superfície do Sol, e de vinte milhões, no seu interior, só dá para construir o
ciclo do carbono, cujo resultado final é a produção de hélio; só pode, aí, ser forjado o hélio, de
núcleos de hidrogênio pesado. Quer dizer: a gênese, aí, só vai do hidrogênio ao hélio, conquanto
o processo dê uma volta maior, passando pelo carbono. Disto conclui a física moderna, o que
anota Fritz Kahn, em seu livro “O Átomo”, pág. 95:
– “A maioria dos núcleos atômicos comportam-se como o berilo: pesam mais que seus
componentes e, por conseguinte, ao serem formados não libertaram energia, senão a
consumiram”.
E levantando os olhos do livro, falou para os presentes:
– Viram, onde é que foi parar a prodigiosa quantidade das energias acantonantes,
procedentes da periferia, do topos uranos?
E voltando para a página, continuou:
– “A quantidade necessária (de energia) para unir tantos e tão obstinados prótons quanto
os do núcleo do ferro ou até do urânio, parece enorme. Para fazer um núcleo de 26 prótons de
ferro, necessita-se de uma pressão de 7 × 10l8 atmosferas e de mais temperatura de 8 bilhões de
graus. Nunca, nem nas mais quentes épocas primordiais, pôde a Terra ter tido essa temperatura
ou ter fornecido aquela pressão; uma esfera gasosa das dimensões da Terra, sob essas forças,
explodiria num instante. Ao nascer, a Terra deve ter herdado os seus grandes átomos de pais
mais poderosos, os quais, aliás, não sabemos quais tenham sido. Não foi o Sol, pois, este,
também seria incapaz de tal façanha. Também não poderiam ter sido outras estrelas, pois mesmo
as mais quentes da Via Láctea não fornecem tanta energia para poderem fazer “crescer o ferro”.
E fechando o livro, comentou:
268
– Todas as galáxias do universo são vistas, hoje, afastando-se dum ponto comum,
seguindo todas as direções do espaço, e com velocidade uniformemente acelerada, como ocorre
nas explosões. Logo, esta fase evolutiva ou centrífuga, que ora vivemos, começou com uma ou
mais explosões dos materiais radioativos. Sendo esta fase explosiva, evolutiva, centrífuga, houve
uma anterior, implosiva, involutiva, perífuga. Esta fase atual começou, portanto, por uma
explosão atômica dos corpos transurânicos que, em virtude de seus pesos, se acumularam no
interior da proto-nebulosa. Todavia a impulsão explosiva, que procedia, então, do centro, lutava
contra a pressão espacial das energias acantonantes, as quais eram absorvidas e transformadas
em massa pelas formações atômicas. Este encontro de forças produziu, aqui e ali, nos blocos de
nuvens projetadas pelas explosões, os turbilhões galácticos tal como os vemos hoje, em plano,
parecendo-nos lentiformes, se vistos de lado, ou espiralados, se vistos pelos pólos. Com a
explosão, os corpos densos se espalharam pelos espaços, cessando de estarem reunidos num
bloco mais ou menos homogêneo. Os corpos químicos, antes das explosões, organizavam-se
numa escala em que, no centro, ficavam os mais densos, e na periferia do Colosso, os mais leves.
Com a explosão, tudo se misturou, para ser iniciado novo e inverso escalonamento, com base,
agora, na força centrífuga. Formados, portanto, os átomos pesados, no interior da nebulosa pan-
galáctica, e espalhados, depois, no seio da massa total, por efeito da explosão, continuou-se o
processo expansitivo do universo, nesta atual fase, inversa da anterior, por ser evolutiva ou
centrífuga. Como a força centrífuga é proporcional à massa, os átomos pesados de matéria foram
sendo projetados para a periferia, em cada galáxia, permanecendo os mais leves no seu centro, de
sorte que a escala dos corpos simples se organizou, de modo inverso do anterior, ou seja, do
centro para a periferia, numa gradação que vai do hidrogênio ao urânio, tal como pode observar
o espetroscópio, em todas as nebulosas. Se não tivesse havido explosões, nos começos, e antes a
expansão do universo se devesse só ao movimento de rotação do Colosso, então o universo não
seria esférico, mas, lentiforme ou elíptico. Ele seria um disco, um plano, em que a expansão se
daria só em duas dimensões, como é o caso de qualquer galáxia, ou de qualquer sistema
planetário. Todavia, porque sua expansão é esférica, segue-se que se originou de explosões cuja
demora se relaciona com a quantidade de matéria deflagrável, e com a inércia das partes
impulsionadas para fora. Por conseguinte, todo o material radioativo existente em todas as
galáxias, em todos os sistemas planetários, nos planetas, na Terra, nasceram num mesmo berço e
têm a mesma idade. Desde o tempo das explosões do Colosso, já o urânio começou a dissociar-
se, rumando para o chumbo, que é onde pára o seu processo desintegrativo. Por que nas jazidas
terrestres há mais de cinqüenta por cento de urânio misturado ao chumbo, concluiu a ciência que
a idade do universo é de três bilhões e quinhentos milhões de anos. Está errado: esse tempo é só
o de quando o urânio se acumulou nas jazidas, por efeito da força centrífuga. Todavia, a
desintegração dele começou desde as explosões da proto-nebulosa, e por todo esse tempo, que
não é curto, o urânio não se tinha ainda acumulado nas jazidas. Mas tenho lido também que a
idade do universo é de cinco a sete bilhões de anos, o que já é mais razoável. É assim que, como
diz Fritz Kahn, “os aerólitos ou pedras meteóricas são os selos na certidão de nascimento do
universo. Cai algo do firmamento, ardendo em brasa, chiando como lacre e imprime-se no globo
terrestre como sinete. Corre-se para ver, e lê-se a gravação e eis que se sabe: nascimento do
universo, há sete mil milhões de anos”437.
E trocando o livro de Fritz Kahn, por outros, já marcados nuns pontos, prosseguiu:
– Outro método de se contar a idade do universo, após seu nascimento, é o do
afastamento das galáxias de um “ponto”, do qual depois se dispersou para todos os lados, como
numa explosão. Um cálculo simples mostra que esse período deve ter-se situado há uns cinco ou
seis bilhões de anos”438. Para termos uma idéia de como as galáxias são vistas, afastando-se de
um ponto comum, e com velocidades progressivas, podemos empregar uma bexiga de borracha
toda pintalgada. Deste modo “as nebulosas extra-galácticas afastam-se entre si, de modo análogo
ao afastamento dos pontos de uma película esférica de sabão ao ser soprada” 439. Por isto F. L.
Boschke escreve: “Se considerarmos que há 5 bilhões de anos toda a substância se concentrava,
em estado de densidade extrema, uma espécie de ovo primitivo, cumpre admitir certas coisas
como explicadas”440.
Fechando os livros, e depondo-os sobre a mesa, prosseguiu com o assunto que vinha
tratando:
– Enfraquecidas as energias concentrativas, como já dissemos, teve início a fase de
expansão cósmica, a começar pelas explosões; estas se continuaram na abertura das galáxias por
efeito da força centrífuga originada do movimento rotativo ou vorticoso ocasionado pelo
encontro de poderosas forças que eram as centrífugas e as das explosões, com as perífugas, ou
seja, das energias convergentes. Contudo, quando as energias se concentravam, o espaço já se
movia da periferia para o centro, trazendo, para aqui, tudo o que fosse denso, e por isso reagisse,
ao movimento, com sua inércia, fugindo para a zona de menor velocidade. De maneira que a
grande massa cósmica estava animada da rotação comunicada pela periferia, quando se deram as
explosões. Ora, com as explosões, os blocos (galáxias) não só se afastaram do centro comum,
como também rodavam em torno de si mesmos, e transladavam ao redor do centro,
desenvolvendo, por isto, espirais logarítmicas. Tanto que principiou a sobrepujar a fase inversa,
centrífuga, de expansão, por causa do esgotamento das energias constitutivas dos átomos, os
corpos mais pesados foram, pela força centrífuga, expulsos para o equador dos vórtices
galácticos. Deste modo, no centro, ficaram somente os átomos leves de permeio às forças
dinâmicas ainda centralizantes. Estas forças se enfraqueciam, na proporção em que os átomos
pesados se afastavam. É por isto que, no centro das galáxias, ficaram as estrelas mais quentes,
azuis e brancas, formadas de hidrogênio e hélio, no passo que, em suas partes externas, se
aglomeram as estrelas velhas, vermelhas, com grande número de raias metálicas. Avançando
mais, rumo à periferia, deparamos com astros frios, escuros, cuja reunião produz o que se
chamam “sacos de carvão”. Prosseguindo mais, as estrelas começam, de novo, a brilhar, agora,
por desintegração atômica, e são as estrelas “novae”, visto como, nestas estrelas, é onde se
concentrou a maior porção de átomos radioativos.
Dito isto, Árago principiou a procurar, num livro, um ponto que tinha em vista citar. E
tendo-o achado, prosseguiu:
– “O nosso sistema solar situa-se numa formação que tem 100.000 anos-luz de diâmetro,
de 1.000 a 5.000 anos-luz de espessura e que pode assumir, por fora, forma lenticular” 441. Mais:
“O nosso sistema solar gira, com milhares de outros sistemas solares, em torno de um ponto
central da Via Láctea. Sabemos onde se encontra esse centro de rotação: na direção da
constelação de Sagitário. Infelizmente, não o podemos ver”442. Mais isto: “Dentro do horizonte
visível existem cerca de 100 milhões de sistemas de galáxias” 443. E “o sistema de galáxias mais
próximo de nós dista da Terra 1.500.000 anos-luz. O que lá vemos, tão longe de nós, aconteceu,
portanto, há 1.500.000 anos. E que ocorre ali atualmente? Só o saberemos, após o mesmo lapso
de tempo. Toda a discussão a esse respeito é ociosa”444.
E fechando o mestre o livro, continuou:
– Quem observar a fotografia da "Nebulosa espiral N.G.C. 891”, tirada no Observatório
de Monte Wilson, verá que esta nebulosa está rodeada de um anel de matéria escura”. “A de
número 4.736 do Novo Catálogo Geral dá a impressão de uma sucessão granulada de núcleos
brilhantes e escuros perfeitamente definidos; em compensação a de número 4.826 do mesmo
Catálogo, em meio de uma série de espirais muito juntas e homogêneas, apresenta na região
central uma sombra que dá a impressão de ter-se fraturado a nebulosa”445. Essas faixas pretas no
equador das nebulosas, dividindo-as, até, em duas partes, é onde a força centrífuga do sistema
projetou os corpos mais densos e mais velhos. É nesses lugares escuros que, de quando em
quando, aparece uma estrela Nova. Nem nosso sistema planetário solar foge a esta regra, pois,
sendo o Sol líquido e gasoso, feito de matéria leve, tem seus planetas sólidos e construídos de
material pesado. A análise espectral revelou existir, no Sol, ferro, cobre, magnésio, níquel,
zinco, prata, chumbo, cálcio, hidrogênio, hélio, porém, não se encontrou nele ouro. Já nos
planetas do seu sistema aparecem também os outros metais, do chumbo em diante, até o urânio,
em jazidas. Por este raciocínio, Plutão deve ser o mais rico em metais pesados, havendo mais lá,
do que em Mercúrio, tório, rádio e urânio. Com a Terra, teria acontecido o mesmo que com o
Sol, em relação ao seu sistema. Os corpos radioativos estão na superfície da crosta planetária,
nos terrenos velhos, e não, no seu centro, ou nos terrenos vulcânicos. Por isto a matéria do centro
da Terra, assim como toda a do Sol é constituída de corpos mais leves, mais jovens que os
corpos pesados e velhos, visto terem estes a idade do universo, e os leves podem não ter essa
idade, pois muitos deles são ainda formados nas estrelas. Só a hipótese que venho formulando
pode responder a esta proposição: se é tendência geral de os corpos densos irem para o centro da
Terra, por que os mais pesados estão na superfície? “Extremamente improvável é que o calor
derive de decomposição radioquímica: com efeito, neste caso, durante as erupções vulcânicas,
deveria ser expelido material radioativo, o que nunca se observou, até hoje, em medida
plausível”446.
E tendo entrado a meditar profundamente, continuou, a seguir:
– Os corpos mais velhos, da idade do universo, mais pesados, estão sempre na periferia,
em relação a qualquer sistema, seja ele a Terra, seja o Sol, seja uma galáxia qualquer, como
nossa Via-Láctea. Logo, o centro da Terra pode não ser constituído de ferro e de níquel, como já
aventou, correspondendo esta asserção mais uma concordância com a teoria de que a gravitação
decorre do movimento, não sendo nenhuma propriedade incompreensível, misteriosa, inerente à
matéria. Se no centro da Terra houvesse metais pesados, havê-los-ia, pela mesma razão, nos
núcleos das nebulosas e no Sol. E assim como esses corpos densos saíram desses centros
galácticos e estelares, por efeito da força centrífuga, igualmente, os metais pesados terrestres se
mantiveram próximos à superfície, no tempo em que a rotação planetária era mais rápida, e o
dia durava apenas algumas horas (Wells, História Universal, I, 26). Por este motivo, também,
é completamente destituída de fundamento a hipótese do filho de Charles Darwin, segundo a
qual a Lua ter-se-ia desprendido da Terra, quando a circunferência desta era duas vezes e meia
maior do que é hoje, e tinha uma velocidade de rotação seis vezes maior. Se isso fosse certo, o
material pesado da Terra ter-se-ia acumulado no equador, a ponto de, até, ser arremessado ao
espaço, formando a Lua. Logo, a Lua seria constituída de material pesado, radioativo, o que não
corresponde à verdade. Segundo Darwin Filho, a Terra expelira, de si, várias Luas, e em caindo
uma delas, formou-se a África. Portanto, a África dever-se-ia constituir de materiais radioativos,
em proporção assustadoramente maior do que qualquer outra parte do globo, o que as
experiências não confirmam. A força centrífuga é proporcional à massa, e isto é demonstrável
pela experiência; pois como a força centrífuga de Darwin, que chegou a lançar massas ao espaço,
foi projetar os materiais leves, em vez de os pesados? E se uma das Luas caiu e formou a África,
as terras africanas haviam de ser da mesma constituição lunar, o que também não corresponde à
verdade. A Lua se constitui de material leve, não tendo, por isso, gravidade suficiente nem
mesmo para reter sua atmosfera. Logo, não se desprendeu da Terra por efeito da força centrífuga,
e antes foi (quem sabe ?) capturada pela Terra dos espaços.
– O lugar das jazidas uraníferas e plumbíferas terrestres, continuou o mestre, assim como
de toda a massa dos metais pesados, estaria na faixa do equador, no lugar limite em que se
equilibraram as forças centrífuga planetária, e perífuga do espaço, quando da formação do
planeta. Talvez haja um cinturão metálico ao longo do equador. Pode não estar totalmente na
superfície o lugar das jazidas uraníferas, porém, no centro é que também não está.
E tornando ao tema central, rematou o filósofo:
– Em conclusão, é na parte rígida das galáxias que aparecem as estrelas novas (velhas é
como dever-se-iam chamar) e super-novas. Estas não são estrelas em formação, mas, em
decomposição por desintegração atômica, pois, aí, se reuniram os átomos mais pesados do
universo. Por conseguinte, há estrelas em formação, há estrelas mortas, obscuras, como os
“sacos de carvão”, e há estrelas em decomposição, isto é, em fase de explosão atômica. Isto está
conforme com a ciência que diz terem as estrelas um ciclo de vida, podendo apresentar luz, tanto
446 F.L. Boschke, A Criação Ainda Não Terminou, 118
271
na sua formação, nascimento e vida, como, depois da sua morte, na desintegração. Só a análise
espectral, a velocidade de afastamento da galáxia a que pertence a estrela, e ainda sua situação na
galáxia, podem determinar se uma estrela nasce, se vive, se apaga, ou se desintegra.
Fez, o mestre, uma pausa meditativa, tendo o olhar perdido no vazio. Depois, tornando a
si, continuou:
– Supõe a ciência que, há cinco ou sete bilhões de anos, o universo deveria achar-se num
ponto só de matéria, que é o Colosso Primitivo. No entanto, esse é o tempo do nascimento do
universo pelas explosões do Colosso. E quanto tempo gastou o universo nesta sua gestação?
Quanto tempo levou a “chocar” o grande Ovo Primitivo? Seriam dez bilhões de anos? seriam
dezoito ou vinte? O certo é que, não sendo de toda a eternidade que a matéria existe, houve um
tempo em que nada material existia no espaço em que se move hoje a matéria. E sendo que a
matéria se formou pela concentração das energias, para esse ponto elas se canalizaram. Se elas se
fecharam para esse ponto, reduzindo-se, cada onda, num grão de poeira impalpável, é por essa
poeira, de estrutura granulosa (Prof. March), que começou o existir da matéria no espaço. Essa
poeira é o éter pré-eletrônico, como já temos visto. E sobre que meio anterior as ondas
cavalgaram, para reunir-se nesses pontos materiais? Seria num meio mais etéreo ainda que o
próprio éter. É certo que tais ondas haviam de ser mais curtas e mais velozes que as mais curtas
ondas nossas conhecidas, que são as produzidas pelas vibrações dos núcleos atômicos, ou seja,
os raios gama. Então, já o espaço pré-material não estava vazio, porém, cheio de um fluído pré-
etéreo que é aquela Substância punctiforme que constituía os pontos daquela reta da pura
Idealidade, ou seja, do Deus transcendente. Só que, aqui no Caos cercado pelo topos uranos, a
Substância se achava desamparada do Pensamento-Lei, e só por isto era Caos. Sobre este meio,
pois, as ondas mais curtas dos raios cósmicos cavalgaram, ao serem projetadas contra o corpo do
Colosso, penetrando neste, e indo formar os átomos mais densos do universo.
E consultando o relógio, exclamou:
– Puxa! como é tarde! Contudo eu queria deixar encerrado este nosso estudo de hoje. E
tornando ao assunto, prosseguiu:
– Agora, já podemos saber de onde provieram as energias que se concentraram no
Colosso Primitivo. Pois vieram da desintegração das almas em queda! Assim como na fase
evolutiva cada integração representa consumo de energia, na fase inversa, quando as unidades se
desintegravam, produziam energia. Estas foram as que se concentraram no Ovo Primitivo que,
aliás, já representa uma nova forma de integração. Os átomos, ao se formarem, consomem
aquela mesma quantidade de energia que produzem ao dissociar-se pela desintegração atômica.
E todas as formações coletivas seguem esta mesma regra. No nível da matéria as energias
transformam-se em massa reversível em formas dinâmicas; porém, estas energias oriundas da
desintegração da matéria, não se tornam outra vez em matéria, em ciclo vicioso, como pretende o
materialismo moderno. As energias se degradam do ponto de vista dinâmico, e esta perda de
qualidades dinâmicas pode ser achada na vida, no psiquismo e na consciência. A evolução opera
o inverso do que se deu com a desintegração e queda das almas. As ondas que, na queda, se
encurvaram, agora, por evolução, se desencurvam, e é por isso que a cada transformação
dinâmica, a energia se degrada, tornando-se em ondas cada vez mais longas, tendendo para
aquela reta da pura Idealidade de que tudo partiu. O pensamento é onda, e onda é energia; por
isso, no nível do espírito, as energias dinâmicas degradadas se transformam em psiquismo e
consciência, também reversíveis, se o centro arregimentador de forças se resolvesse a desandar o
caminho. Se fosse possível atormentar um santo, até que ele desejasse a extinção total de si
mesmo, isto é, a morte do próprio espírito, estaria aí a fonte prodigiosa de energia, perto da qual
a bomba da anti-matéria é nada! Esta é a técnica do demônio residual, isto é, o que ainda sobrou,
e vive nos interiores dos orbes planetários, para conseguir o necessário para sua subsistência. Só
que, ao atormentar-se um santo, ele se firma naquilo que o resiste, como a ave no ar, subindo-se
de nível. Assim, só se lhe pode atormentar e destruir a carne, e com isto, o anjo alado desprende-
se do seu pedestal de barro, e voa na direitura do infinito. Para que haja desintegração psíquica,
preciso é que a rebelião se instale no centro, por uma decisão do próprio ser, e jamais, nunca, por
violências exteriores. Assim como, para desintegrar o átomo, faz-se necessário introduzir-lhe
perturbações no núcleo, para fazer a um espírito desandar o caminho palmilhado, faz-se
272
necessário mudar-lhe a filosofia da vida. É com idéia que se constrói ou se danifica um espírito,
e não com a força. Faz-se mister mudar-lhe a direção, tanto para o bem, como para o mal, e isto
se resume em dar-lhe nova filosofia. Tal a força duma idéia! Os inimigos duma idéia, por
conseguinte, não são a força, porém, outra idéia que se lhe oponha. Conseqüentemente, a guerra
desencadeada no topos uranos, antes de ser fluídica, foi de idéias; depois, antes de ser física,
foi fluídica e nervosa. Os instrumentos de luta desceram da idéia para as emoções, para as
descargas fluídico-nervosas, e, finalmente, para os choques físicos, porque, então, se criaram os
instrumentos de ferir, também neste plano. E toda a prodigiosa energia dos desgastes e atritos da
luta, se encaminharam para o centro da esfera do topos uranos, que é o centro, também, do
universo físico, ou lugar onde principiou a formar-se o Colosso Primitivo. Primeiro as ondas de
energia se condensaram no éter, e para fazerem isto, movimentaram-se no pré-éter da Substância
incriada; depois, cavalgando o éter, condensaram-se nos vórtices eletrônicos e nas partículas
satélites dos núcleos atômicos. Formado o campo eletrônico do espaço, ondas eletromagnéticas
desceram, furibundas, em remoinhos medonhos, num crescendo cada vez maior de forças
potentes. No ar feito de núcleos, horrendos vendavais arrancavam à superfície do Colosso,
furibundos macaréus, e os arrojavam léguas mil pelos espaços, enquanto coriscos chispavam
entre as nuvens de férreos vapores. Ondeando a superfície do sinistro e ardente lago, os ventos
de núcleos se enrodilhavam em vortilhões medonhos, prenhes de hórridas energias
desencadeadas, e gemendo e silvando, faziam suas furiosas danças ao compasso tremendo da
mais que dantesca música de Satã. Do espaço periférico, abaixo logo do topos uranos, as ondas
se moviam em tornados vorazes, levando de roldão tudo o que colhia nas suas voltas malignas,
moendo tudo, anjos e armas de guerra. Os núcleos atômicos que se forjavam logo na periferia,
eram atirados em chuvas torrenciais de raios cósmicos, como ígnios dardos, sobre a face do
Colosso, e entranhando-se na matéria, iam construindo os átomos pesados. Estes, em criados,
fugiam para o centro, desprotegendo a superfície para nova chuva de ardentes e irosos raios. E
por bilhões de anos durou a maldita chuva torrencial de núcleos de hidrogênio sobre a face
hedionda do Colosso. O movimento periférico fazia rodar o espaço, indo comunicar-se ao
Colosso que rodava sobre si, no rodopio louco de um pião movido pela fieira de Deus. Os
átomos pesados cada vez mais fugiam para o centro na busca tresloucada de um repouso
impossível. O movimento era desigual, tanto maior, quanto mais para fora do sistema; então a
inércia era a massa que fazia tudo concentrar-se. Os átomos de laurêncio, de nobélio e de
mendelévio forcejavam por desintegrar; porém, as voltas dinâmicas eram frenadas pela pressão e
pelo calor inimagináveis. Na dança frenética das partículas, a loucura do Caos deu para formar a
anti-matéria; todavia, chocando-se esta com a matéria, transformava a massa de ambas em
energia, fazendo rude estrondo que, abafado, morria antes mesmo de ter chegado à superfície.
Corcoveava o monstro no seu inferno de luminosos fogos, e os calombos das explosões surdas,
eram logo recalcadas para dentro pelas tremendas força periféricas. E deste modo o horrendo
Caos esteve em ebulição por bilhões de anos, a gestar a matéria inteira do universo.
Descansando um pouco, tornou o mestre à descrição que tirava da sua facúndia:
– Assim foi, até que um dia de alguns milhares de anos, a energia periférica principiou a
arrefecer-se. Então começaram a explodir-se as massas contidas pela pressão, e galáxias inteiras
de núcleos atômicos eram atiradas nos espaços, e de novo caíam no lago ardente, borrifando sóis
para todos os lados. Outras giravam a curta distância e com tal velocidade que se desfaziam em
anéis rodopiantes, e pouco a pouco se afastavam quebrando-se em galáxias menores que
continuavam a abrir-se pela força centrífuga de que estavam animadas. Por todas as direções do
espaço as galáxias eram projetadas pelas explosões. Os núcleos pesados, abandonando o centro,
agora cortavam a massa do Colosso, vindo arrebentar-se na superfície como super-bombas
atômicas, e, rompendo o espaço, iam entranhar-se nas galáxias que se afastavam rodando sobre
si mesmas como ciclones. Nem todos os átomos explodiam ao mesmo tempo, porque não eram
iguais quanto ao amadurecimento cinético. Só explodiam os átomos, como ainda é hoje, cuja
velocidade interna do sistema superava o limite de estabilidade. Esta é a causa de uns átomos
explodirem, e de outros, não. Nem todos os átomos tem a mesma idade, isto é, foram feitos ao
mesmo tempo; a diferença de idade, traduzível em termos de crescente aceleração intrínseca do
sistema, explica o que Bertrand Russell declara que ninguém sabe, ou seja: “por que razão, por
273
exemplo, num pedaço de rádium, certos átomos se rompem, enquanto que outros permanecem
intáctos”447. Começou assim a separação da matéria pela expansão explosiva e vorticosa ao
mesmo tempo, e as primeiras galáxias feitas todas de material radioativo, explodiam, também,
nas alturas, aumentando o horror do mais que Miltoniano inferno. E o universo se expandia,
lento, tardonho, mantendo as massas sempre, como é hoje, na resultante das forças perífuga e
centrífuga. E assim foi que nasceu o universo.
E tendo o mestre repousado numa pausa grave, profunda, prosseguiu:
– E no topos uranos, que se cogitava? O inimigo fôra despenhado do empíreo para
sempre. Os que mais ardidos nas batalhas se mostraram, foram destruídos pela morte eterna,
perdendo o ser no moinho do Caos. Outros, mais comedidos, quedaram-se a espreitar que mais
convinha fazer: buscar a morte logo, ou retardá-la o mais possível? Logo abaixo do topos
uranos ficaram estes, por longo tempo, vagando, até que lhes fosse possível habitar algum orbe
do universo. E indo-se eles, quando foi possível, aí se meteram na matéria, o reino novo que
criaram. Conforme as densidades, uns foram para os centros, e outros, para outros níveis, até a
superfície, todos passando a habitar os vagabundos planetas que enxameiam as galáxias,
circundando sóis.
E continuou após ponderosos pensamentos:
– A grande hipótese está lançada. Se ela corresponder à verdade, muito bem; se não
corresponder, não tem nenhuma importância; o que interessa é tê-la lançado, visto como o saber
não se constrói sem hipóteses. Já o disse antes, e o repito agora para vocês que me ouvem, e para
a fita magnética que está correndo no gravador, para audições futuras. Quem não se arrisca a
errar, por isso mesmo fica impedido de encontrar a verdade. Vocês têm de aprender comigo esta
forma de coragem... a coragem de errar... que todos os pensadores tiveram. E foi errando e
acertando, que eles construíram a filosofia. Os místicos são como os tenros filhotes das aves que,
nos ninhos, tudo esperam de seus pais, ou como a infância nossa, de absoluta dependência
materna. Os filósofos são como o adolescente rebelde que sai de casa, enfrenta o mundo e
aprende a lição, quebrando a cabeça e esfolando as canelas. Sem esta coragem de errar, ninguém
chegaria à idade adulta. É caindo e levantando, que se aprende a andar; é esquiando que se
esquia e exercitando vôos que se voa. Ponham, vocês, em dúvida tudo o quanto lhes hei dito, e
cada um, por si mesmo, procure achar a verdade em minhas palavras ou fora delas. Não quero
que ninguém me siga como crendeirões, mas que cada um acenda suas próprias luzes como
racionais. Não se fiem vocês da autoridade de quaisquer mestres; fiem-se da razão, forcem-na a
trabalhar, de modo que a verdade não seja porque eu disse, senão porque cada um, por si, a
achou. O alimento só é organismo, quando integrado nos tecidos do próprio corpo. Aquilo que
era peixe, e ave, e cereais, é transformado pelo tubo digestivo em substância de homem, e é
homem; a razão é esse tubo digestivo em que as idéias se digerem, e se assimilam, para a
construção da mentalidade, do espírito. Submetam, vocês, tudo a essa digestão, a esse moinho
que tudo desintegra para integrar de novo em substância de cada um. O mais puro, cândido e
ingênuo misticismo que tudo aceita de fé, sem discutir, e tudo espera de Deus, é pobríssima coisa
diante da rebelde racionalidade madura de um filósofo. A revelação é para as crianças, e a
racionalidade, para os adultos do espírito. Eia! companheiros da jornada do saber! aceitem o
risco de errar, saiam do ninho tépido e macio, abandonem o aconchego do lar paterno, andem,
cada um, por suas próprias pernas, que este é o modo único de se chegar à idade adulta da razão.
Os mestres são para a adolescência; um gênio não tem mestres; um querubim não pode guiar-se
por sugestão. Esta é a grandeza dos filósofos, e por isso, me curvo, respeitoso, diante deles, não
só pelos seus acertos, senão, também, por seus erros, pois tiveram esta coragem... a coragem de
errar.
E dito isto, e após um descanso, interrogou o pensador:
– Será que me fiz suficientemente claro em toda esta minha exposição ?
Houve um silêncio prolongado, em que, os presentes, se entreolhavam, hesitantes. Até
que enfim falou Benedito Bruco, por si e por todos:
– O senhor foi suficientemente claro, e o escuro que deixa entrever nossa hesitação, não
provém do seu desenvolvimento, mas do assunto que, em si, é escuro.
447 Bertrand Russell, Delineamentos da Filosofia, 130
274
– Neste caso, tornou Árago, dou por terminado nosso estudo de hoje.
275
Capítulo III
276
maus, belos ou feios, úteis ou inúteis, santos ou profanos. Está certo Jasão?
– Está. Não somos indiferentes aos valores, visto que eles nos forçam a um atitude de
agrado ou desagrado; nossa atitude, em relação a eles é negativa ou positiva ou neutra, donde
vem que os valores são subjetivos, sendo a ação de agrado ou desagrado que as coisas produzem
em nós, ou que nós sentimos frente a elas.
Antes que Árago falasse, rompeu Hierão Orsoni com este argumento:
– Neste caso, Jasão, os vícios são bons, e as virtudes, mas; porque os vícios causam
agrados aos pecadores, e as virtudes, desagrado. Ora, se o valor é o que agrada, e o não valor, o
que desagrada, os vícios são valores, porque agradam, no passo que o cultivo das virtudes,
porque desagradáveis de as praticar, são valores negativos. São Paulo a si se dava por miserável,
tendo dito: “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço” (Rom 7, l9). Acha
certo isto, Jasão?
– Agora empaco! exclamou Bernardo Jasão.
– Ora, prosseguiu Hierão, se o que me é desagradável e doloroso pode ser bem, e, ao
contrário, o que me agrada e deleita pode ser considerado mal, não podemos classificar os
valores como impressões subjetivas de agrado ou desagrado, como você o fez. Ninguém pode
discutir se uma impressão me agrada ou desagrada, porém, sobre o valor duma tela de arte pode
discutir-se, e saber se é bela ou feia. Tal como uma tese científica, um quadro de arte pode
suscitar discussões, e é óbvio que o só subjetivo, não admite discussões. Há o que mostrar numa
tela, há um descortinar do que o outro não enxergou, há um assinalar pormenores, e um chamar a
atenção para a perspectiva, e por fim, há uma visão de conjunto ou intuição de beleza. Uma vez
que os valores podem ser discutidos, são objetivos, e por isso a virtude é boa, embora me
desagrade, e o pecado, mau, ainda que cause prazer. Por isso, os valores são descobertos a quem
os não enxergou, e isto se faz pela educação.
A estas conclusões de Hierão, Bernardo exclamou:
– Ainda não me saí do impasse. Porque, ou os valores são objetivos, e, por conseguinte,
coisas, ou são impressões subjetivas, e, por isso, não-coisas. O que não pode ser é serem
objetivos sem ser coisas.
– Os valores, Jasão, argumentou Orsoni, são qualidades das coisas, estão nelas, e delas
chegam a nós, e não que nós emprestamos a elas. São objetivos porque se acham nas coisas. A
idealidade é ser, as impressões subjetivas também são ser; todavia, os valores não o são, mas
valem.
– Como é que me hei de sair do impasse?! exclamou Jasão; você declarou que as
impressões subjetivas são, e que os valores não são; e que estes valores que não são, enviam-nos
as coisas. Aquilo que não é, quando está na coisa, muda-se em ser, quando se transforma em
impressões subjetivas? Aquilo que não é, estando na coisa, passa a ser, quando nos vem a nós.
Como pode ser isso?
Hierão Orsoni ficou pensativo, sem, contudo, dar resposta alguma. Alcino Licas, porém,
entrando na discussão, começou assim:
– Acho que posso dirimir essa dúvida. A questão se resolve se considerarmos com B.
Russell que os valores não são independentes das coisas, não tendo substantividade. Os valores
são qualidades que não se podem separar das coisas, como as demais qualidades em geral. Estão
aderidos às coisas de modo inseparável. Esse caramujo é branco, e podemos conceber a
qualidade ser branco separada dele; sabemos o que seja a brancura. Porém o ser belo dele não se
lhe pode separar, nem por abstração. Tirar de uma parte a beleza do caramujo para examiná-la,
como fazemos com os objetos ideais, ou com as qualidades substantivas, é impossível. O valor é
uma qualidade que tem isto de característico e distintivo das demais qualidades: estas são
separáveis idealmente das coisas, são independentes delas, no passo que o valor é uma qualidade
inerente à coisa, inseparável, até idealmente, dela. Trata-se, o valor, de uma qualidade irreal,
porque não é coisa; também não é ideal, visto que, nem idealmente, a podemos separar da coisa.
Não podemos separar a beleza do que é belo; por isso a beleza não é. Assim, também, não
podemos separar o valor daquilo que vale. E não podemos considerar a beleza, o valor como
objetos ideais, porque estes são incausais, intemporais e inespaciais; o ideal é o que tem
antecedente e conseqüente, e estes termos se acham ligados por implicações ideológicas, do
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mesmo modo como as conseqüências de uma premissa estão implícitas nela. As conexões entre
os objetos ideais não são de causa e efeito, porém, por fundamento e conseqüências como no
silogismo. Logo, se a beleza, o valor fossem desta espécie, isto é, objetos ideais, poderiam ser
demonstrados, como se demonstram as propriedades dos triângulos, ou os teoremas
matemáticos. O máximo que se pode fazer das qualidades beleza, valor, bondade, é mostrá-las,
exemplificá-las, descortiná-las às vistas. Se fossem objetos ideais cairiam, inevitavelmente, sob
as férreas leis da demonstração. Não obstante, essas qualidades específicas, são também
inespaciais e intemporais. Quando um quadro é belo, não começa a ser belo, ou deixa de o ser;
um gesto caridoso, um ato de justiça, não começa a ser justo, para não o ser depois, do que vem a
não estar jungido ao tempo. Um ato de bondade não está sujeito ao espaço, podendo não o ser
nalgum lugar do universo, nem pode ser contado por quantidade, e portanto, divisível por
número, podendo-se dizer, de um quadro, que é duas vezes mais belo que outro. Disto, decorre a
conseqüência natural que os valores são absolutos, e não relativos, pois não podem ser valores
para uns indivíduos, e não, para outros; ou para umas épocas, e não, para outras. Sendo alheios
ao tempo e aos lugares (espaço) são absolutos.
– E como é que se explica, tornou Jasão, que o ato de justiça praticado contra Sócrates,
contra Cristo, foram considerados injustos, depois? Acaso não há obras que ficam dormindo no
esquecimento, para virem à luz mais tarde?
– Isso não é objeção, contrargumentou Licas. As verdades das ciências, não o são menos
por não terem sido descobertas. Antes da queda da maçã de Newton, a lei da gravidade estava aí,
governando o mundo, mas ninguém a enxergava. Os teoremas matemáticos de Tales e os
descobrimentos físicos de Arquimedes e de Galileu, estavam aí, no nariz de todo mundo,
contudo ninguém os via. Assim com os valores: podem ser conhecidos ou não dos homens; não
é porque há cegos, que não há luz. Como os homens são relativos, e os valores, não, por isso, em
certas épocas e certos homens não podem descobrir, para si, os valores. E há mais isto a
considerar: os valores têm polaridade, e podem ser postos na escala relativa dos valores
algébricos, que, partindo de zero, possui gradações positivas para a direita, e gradações negativas
para a esquerda. O ponto zero seria o da indiferença, e existe, de fato. Conseqüentemente não há
valor que não tenha o seu contrário, o seu contra-valor. O bem contrapõe-se ao mal, o belo, ao
feio, o justo, ao injusto, o generoso, ao mesquinho, o sublime, ao ridículo, e assim por diante.
Daí os valores confundirem-se com as impressões subjetivas, com os sentimentos, visto que estes
também possuem polaridade. A diferença entre a polaridade dos valores, e a dos sentimentos,
está em que estas são psicológicas, e as dos valores, axiológicas. Conquanto os valores sejam
irreais, fundam-se nas coisas das quais não se podem separar; já os sentimentos não se fundam
nas coisas, não passando de vivências psicológicas, estados internos da alma. Como, na alma,
valores e sentimentos se confundem, por isso foi tomado um pelo outro. Paro, ou continuo,
Árago?
– Continue... continue!
– E há ainda a hierarquia dos valores, pelo que eles se podem classificar em úteis, vitais,
lógicos, éticos, estéticos e religiosos. Partindo, portanto, do zero da escala algébrica, o zero da
indiferença, os valores se escalonam, para à direita, como positivos, na ordem que enumerei.
Entrando nós numa casa em chamas, salvamos primeiro um criança, por ser um valor moral, e só
depois retornaremos às chamas para pegar um quadro de Rafael; se nos for dado retornar à cena
do incêndio, salvaremos um livro precioso, antes que uma réstia de cebolas. E Scheler coloca no
ápice os valores religiosos, e eu me fico a perguntar: será que os valores éticos são mesmo
inferiores aos religiosos? Salvar a hóstia consagrada de uma inundação, seria ato mais louvável,
mais desejável, do que salvar uma criança que não sabe nadar ? Eis como cada uma destas
hierarquias de valores dá nascimento a uma ciência, sendo a economia, a que trata dos valores
úteis; as ciências antropológicas, “lato sensu” a que trata dos valores vitais; os valores lógicos,
fundamentam a lógica; os estéticos, alicerçam a estética; a ética se lastreia sobre os valores
morais; também os valores religiosos é que se hão de servir de base à religião.
Fez silêncio Licas. E vendo Árago que ninguém se dispunha a contraditá-lo, começou o
exame do que dissera ele, fazendo-o responder a um interrogatório.
– Diga-me caro Alcino: Se bem entendi o seu arrazoado, você declarou que os valores são
281
outro modo, teria de abrir uma classe nova para eles. No entanto é elementar que Davi, tendo o
gigante Golias pela frente, a honra por trás e a própria vida em meio, não hesitaria jamais, nunca,
em pegar os cinco seixos rolados do riacho com que armaria a sua funda, do que todos os
diamantes e brilhantes do mundo. Para o que morre de sede num deserto, mais lhe vale um litro
d’água potável, que os mais apreciados e caros perfumes de Paris. Logo, os valores dependem
das circunstâncias, e o que é circunstancial é relativo. Sempre foi apreciado o ouro, e por que?
Não por outro motivo, senão pelo de ser bonito. Acaso é mais útil o ouro do que o ferro? O ouro
é o motivo, mas o ferro é o instrumento das guerras; o ouro foi o motivo que levou os
alquimistas às primeiras descobertas da química, em sua ânsia de descobrir a pedra filosofal; o
ouro foi o motivo de se construírem pirâmides para o guardar junto às múmias dos faraós, porque
ninguém iria violar túmulos para nada, e estas pirâmides foram a miséria, e ruína, e destruição do
Egito! O ouro foi o motivo das navegações, com que se expandiu o mundo conhecido, e foi o das
bandeiras, para fazer crescer o Brasil para além das Tordesilhas ! As riquezas são a meta
dourada que põe em movimento a massa total dos homens que de noite e de dia não cessam de
trabalhar, de roubar e de explorar os mais fracos, e só um aqui, outro acolá curam de conseguir a
sabedoria e as virtudes. Se o ouro vale tanto, Licas, há de ele ser posto por padrão supremo da
desejabilidade. Acaso, então, gostaria você de sofrer a punição imposta pelo deus Baco ao rei
Midas? Avivo-lhe a memória: o rei Midas sofreu a punição de ver transformado em ouro tudo o
que tocasse... E é crível que todos os homens estejam errados em seus motivos, e só um Sócrates,
um Platão, um Cristo, certos? É admissível que um simples pedaço de metal, no meio de tantos
outros, produza tamanho reboliço no mundo, escrevendo a história, até nossos dias? Pois por
tudo isso eu o desculpo de haver asseverado que os valores são absolutos, pois assim também
pensaria a saúva que leva à cabeça um retalho de folha!... Que me diz a tudo isto?
Licas quedou, pensativo, sem nada retrucar. Vendo-o silente, prosseguiu o pensador:
– Visto que você não me faz oposição, redigo que os valores são relativos, contingentes,
porque decorrem das filosofias numa conexão de antecedentes e conseqüentes como ocorre com
os objetos ideais. Cada filósofo cuida que descobriu a verdade, e é a que expõe na sua doutrina.
Em relação a esse “absoluto” que ele cuida ser, os valores todos decorrem. Todos nós estamos
absolutamente certos numa coisa: há verdade. Esta é uma intuição axiomática, peremptória para
todo o homem sem exceção. Por isso todos buscam descobri-la, e os que não a buscam, aceitam,
de fé, religiosamente, o que disseram suas autoridades no assunto. Como cada filósofo padece
desta ilusão de ter encontrado a verdade, eu não faço exceção à regra. Também acho que
encontrei a verdade, e é a que exponho aqui, a vocês. E pode ser que a tenha encontrado mesmo;
porém, o fracasso de tantos outros nesta tarefa, me põe receoso de fazer esta afirmação, e por
isso, modestamente, dou tudo como pura hipótese, que fica na dependência de comprovações
futuras. Sei que isto não serve para criar prosélitos, visto que estes gostam de seguir, de fé, ao
que têm por absolutamente certo. Para fazer escola, precisaria eu afirmar tudo isto, como sendo a
verdade que descobri, de uma vez para sempre. Aí os crendeirões iriam repetir-me, far-me-iam
um trono dando-me a antonomásia de o infalível, como ocorre com o papa. Nada disto, porém,
me interessa; o que quero é a verdade... para mim; e para vocês, dou tudo como hipótese;
havenham-se vocês com elas. Depois que digo tudo isto, torno a afirmar: a verdade há. Em
relação a esta verdade que há, os valores são absolutos, e vale tudo o que disse, há pouco, nosso
prezado Alcino Licas. Deste modo, no topos uranos, aquela doutrina é válida. Mas suponhamos
que o topos uranos não passa de um belo sonho, que Deus é da espécie de Moloch amonita, que
a dor e o mal são positivos (Schopenhauer), e que ser bom é ser forte (Nietzsche), e que há o
eterno retorno das coisas, da perfeição ao caos e deste àquela, como entendia Nietzsche? Basta
seja aceito isto como a verdade, e todos os valores se invertem. Por isso, os valores são
decorrentes das filosofias, sobretudo os religiosos, os éticos e os estéticos. Os valores lógicos e
úteis também decorrem, mas continuam sofrendo a contingência de outros fatores. Um exemplo
para ilustrar o que digo: o carbono é o corpo fundamental da matéria viva, donde vem, que não
há vida sem carbono; seguem-no, de perto, o oxigênio e o hidrogênio, já como água, já como
outros compostos. E sucede, suponhamos, que começou a faltar o gás carbônico na atmosfera,
donde veio começarem a morrer as plantas, que, de fato, sentem já grande carência desse gás
valioso... para elas. Não havendo o gás carbônico, nem vegetais que o decompusesse, viria a falta
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de oxigênio para os animais. Pois sucederia que o oxigênio teria de ser extraído da água, vendido
em ampolas, e todos os homens trariam às costas suas garrafas do ar vital. Dormindo ou
acordado, no trabalho, nos veículos (elétricos e atômicos), nos folguedos e nas festas, todos
estariam munidos de suas garrafas. Os animais todos teriam desaparecido, inclusive os peixes,
tornando-se o homem artificiariano, tecnívoro ou tecnífago, que tudo vem a ser que se nutre de
produtos artificiais. Imaginem vocês, por si mesmos, que não me quero perder nisto, quais as
modificações na economia, nas finanças, nas políticas, nos vestuários, na arte, na ética e na
religião! Logo, os valores são contingentes, e quanto mais contingentes, como os valores úteis,
mais variáveis. Cada mundo tem os seus valores, valendo isto para os deuses no topos uranos,
para os homens na Terra, e para as formigas debaixo da terra. Nesta degradação dos valores do
absoluto para o nulo, o homem, no meio da escala, os considera relativos, como é ele próprio.
Fazendo uma pausa, o mestre, aproveitou-a Chilon para perguntar:
– Quer dizer que os valores são subjetivos, não estão nas coisas, e sim que o homem lhes
põe a elas?
– Sim e não, respondeu Árago.
– Como sim e não? acaso os valores não são vivências internas da alma, tal como os
sentimentos?
– São e não são, respondeu Árago.
– Como diferenciar, então, reperguntou Chilon, os sentimentos dos valores?
– A diferença entre uns e outros é a mesma entre sentimento e sensibilidade, respondeu o
mestre. Os sentimentos estão para as vivências internas, assim como a sensibilidade está para os
valores atribuídos às coisas, ou que nos vem delas. A sensibilidade consiste em sentir ou
experimentar impressões físicas. Troquem-se, nesta frase, impressões físicas, por impressões
morais, e ter-se-á definido o que seja o sentimento. Por isto, o sentimento é só subjetivo, no
passo que a sensibilidade possui, também objetividade. Se digo que uma obra de arte é bela,
posso mostrá-lo, apontando, expondo, discutindo o que o outro pode, por sua vez, intuir;
todavia, quando, no Getzemani, Cristo disse que sua alma estava numa tristeza mortal, só o pôde
declarar, porém, não, mostrar. Posso me extasiar ouvindo uma sinfonia de Beethoven ou
Mozart, ou vendo uma tela de Ticiano, e defino: isto é sensibilidade. Posso, depois, chorar de
emoção, ao ver o generoso e heróico ato de um soldado bombeiro que se mete nas chamas, em
vestes de amianto, para salvar das chamas uma criança, num aposento cercado pelo fogo. Até
uma galinha que acoberta os seus pintos com as asas, ou investe, furiosa, contra mim que lhe
passo perto, causa-me emoção do sentimento. Aconteceu-me, numa caçada, de sair contra mim
um inhambuzinho choco, e todo arrepiado, parecendo uma bolinha, arremetia-se contra mim,
arrastando as asas sobre as folhas secas. Enquanto que esta cena me enternecia o coração, um
colega de caçada projetava dar-lhe um chute, e só o declarar-me isso, fez-me repreendê-lo, com
pena de ele ficar magoado comigo. Vejam vocês: eu me enternecia com a cena, enquanto meu
companheiro se propunha a praticar uma crueldade. Dois sentimentos opostos: o meu, de
compaixão, e o dele, de malvadeza. Ora, a cena era a mesma para estes dois sentimentos polares.
Se, contudo estivéssemos a observar um quadro de Leonardo da Vinci, seria quase impossível
que de novo divergíssemos quanto à sensibilidade. Por este motivo declarei que o sentimento é
só subjetivo, enquanto que a sensibilidade não o é, totalmente. Também propõe Cristo a parábola
do samaritano que acudiu e amparou o pobre homem que fôra espancado por ladrões, a ponto de
ficar semimorto. E conta que antes do samaritano, primeiro um sacerdote, depois, um levita,
passou de largo. Aí está, de novo, três sentimentos: o de crueldade, dos ladrões, o de indiferença
do sacerdote e do levita, e finalmente, o de compaixão, do samaritano. Fossem que estes homens
diferentes quanto ao sentimento, estivessem a contemplar uma tela em que o pintor exaltava a
bravura de um javali enfrentando um tigre, já todos, para esta cena, teriam a mesma disposição
de ânimo, a mesma intuição ou sensibilidade. Assim, os valores possuem algo de objetivo. Além
da mensagem intelectual que o artista nos transmite através da sua linguagem própria, junto a
esta mensagem, a tela nos envia à sensibilidade outra mensagem, que é a de valor, entrevista na
ordem do conjunto, na harmonia das partes, na proporção dos elementos, na coerência do todo,
no equilíbrio de tons, na espontaneidade do desenho, na impressão que nos causa, e tudo isto
pode ser discutido e mostrado com o dedo, pelo que não há só o nosso subjetivo a ser
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considerado, senão, também, esse algo objetivo que, não somente a tela, mas todas as coisas nos
enviam. Esse algo que nos vem das coisas, pelo que elas se nos tornam desejáveis ou
desprezíveis, é o valor que nos pode vir na forma de agrado, ou na de desagrado. E harmonia,
proporção, coerência, etc., podem ser consideradas como coisas, Bruco?
– De modo nenhum. Tais qualidades dos objetos não constituem partes integrantes deles
sem as quais eles seriam menos ser. E não podem ser confundidas com os objetos ideais, porque
estes podem ser separados, idealmente, dos objetos reais em que têm sede. Já não se pode, em
relação às qualidades-valores, fazer esta dicotomia, visto que elas não têm sentido fora dos
objetos a que se referem. Portanto, a harmonia, a ordem, a coerência, o equilíbrio, a proporção, a
expressão, etc., são qualidades que hão de estar a cavaleiro dos objetos, sejam reais, sejam ideais.
A ordem e a harmonia de idéias num todo lógico, são qualidades axiológicas de categorias
ideais. E assim, as qualidades de valor não podem ser consideradas nem como objetos reais,
porque não são coisas, nem como idealidade, visto como não podem ser isoladas, como ocorre
com os objetos ideais, para um exame abstrato, em separado.
– Está certo, Bruco, tornou Árago. Os objetos reais têm causa, estão no tempo, e
implicam espaço; os objetos ideais estão isentos destas três contingências. E a harmonia, a
beleza, por exemplo têm causa?
– Sim, têm, respondeu Bruco. Elas resultam da disposição das partes num todo; portanto
elas surgem e desaparecem com ele. No cosmo há harmonia e beleza, e no caos não as há; logo,
elas surgem e desaparecem com o cosmo.
– Porém, esse cosmo de que você fala, não possui sua contra-parte ideal, a sua
essência?
– É certo que possui; e percebendo já onde o senhor quer chegar, vou facilitar-lhe a tarefa.
As qualidades de ordem, de harmonia, de beleza, etc., existentes nos objetos reais, por isso
mesmo também estão nas essências destes objetos. E como as essências são objetos ideais,
independentes de causa, de tempo e de espaço, as qualidades, que também estão nessas
essências, tal como essas, são incausais, intemporais e inespaciais.
– Isso mesmo, Bruco! Aí é onde eu ia chegar, e você, poupou-me o esforço, atalhando-me
o caminho. Por conseguinte, os valores não são, mas valem, estando a cavaleiro dos seres que
podem ser considerados sob o aspecto de objetos reais, e de objetos ideais; segue-se, disto, que
os valores correspondentes a estes objetos, participam das propriedades deles, podendo ou não,
ser contingentes. Deste modo, temos de falar em valores dos ideais e valores dos reais, visto
que acompanham os objetos ideais e os objetos reais. Os primeiros não estão sujeitos ao espaço,
ao tempo, e à causalidade, no passo que os segundos, sim, estão. No topos uranos, que é o
mundo das idéias-arquétipos, como tudo é perfeito, os valores, mesmo os dos objetos reais, são
intemporais e universais, no sentido em que valem para todas as épocas, e em qualquer lugar
daquele plano de vida. E certo, como é, que o homem se está encaminhando para lá, por
evolução, como seria a arte do futuro, Chilon?
Colhido de surpresa, Chilon remexeu-se na cadeira, tossiu para limpar do pigarro a
garganta, e depois disse:
– Suposto que o homem do futuro será o homem cósmico, de vistas largas, de vasta
inteligência, de sensibilidade imensa, de alta moralidade, irá, na certa, tratar de temas globais,
que abarquem, na sua esfera, tudo o que há e o que existe. Modernista não há de ser o homem do
futuro, porque esta escola de arte, além de regionalista, não criou nada de substancial, pelo que o
seu protesto é oco, vazio. Na obra “Literatura no Brasil”, Vol. III, T.1, pág. 80, escrita por vários
escritores sob a direção de Afrânio Coutinho, pergunta-se, em referência à “Semana da Arte
Moderna”: “Quais os caracteres, objetivos e resultados da Semana?” E vem a resposta: “A idéia
central da Semana é a de destruir, fazer escândalo. O sentido principal é crítico. “Não sabemos
definir o que queremos, mas sabemos definir o que não queremos”, foi a frase de Aníbal
Machado, que podia ter sido a plataforma”. Ora, quem não sabe o que quer, como pode chegar a
algum fim, exceto o da destruição? que há de construir? Romântico, também não pode ser o
homem do futuro, por causa da natureza do romantismo em perder-se em pormenores, e em
choradeiras literárias. Clássicos, então? Mas o clássico é individualista, esmiuçador, além de
apresentar o todo fragmentado em planos e partes independentes. Barroco! agora é que atinei! há
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de ser barroco, visto que esta forma satisfaz os requisitos da unidade na variedade, da
convergência para um ponto central, uma vez que não pode ser outra a visão do homem cósmico.
– É isso mesmo Chilon. Bem se vê que você assimilou bem o que expus, estando nós, à
noite, ao pé do fogo, naquela caçada da Serra do Taquari. Num destes nossos serões, fizemos um
triângulo entre Platão, Aristóteles e Kant; hoje poderíamos fazer um paralelo entre Aristóteles e
Platão, vendo-os por um outro prisma que é o estético. Antes, todavia, de tocar por diante,
gostaria me dissessem o que é arte?
Depois de uma longa pausa, em que todos se puseram intensamente a lucubrar, adiantou
Chilon:
– Para mim, arte é meio de expressão; é a necessidade da intercomunicação que a cria e a
conserva. Por isso, a arte está no expressar, seja o pensamento, seja o sentimento; e tanto que o
consiga, está feita a arte que será tanto maior, quanto mais puder preencher a esta finalidade. Por
este motivo, tenho que a arte deve ser simples, precisa, exata, devendo ir direto ao seu objetivo
sem rodeios.
– Neste caso, tornou Árago, quando olho a natureza nesta linda Cananéia, o céu, o mar, as
aves brincando no espaço, os pescadores movendo-se com seus barcos no grande cenário natural,
e me emociono, me comovo, até aí não houve arte nenhuma, pois não há ninguém me
comunicando nada?
A isto Chilon franziu a testa, reflexivamente, e respondeu, meio encabulado:
– Bom... a natureza é expressiva... e comunica ao observador a sua beleza!
– Mas há pouco você declarou que a arte é comunicação de pensamento e de sentimento;
agora, com afirmar que a natureza me comunica sua beleza, tiro estas conseqüências: primeiro,
que a natureza é artista, visto que me comunica algo; segundo, que esse algo, comunicado é a
mesma beleza. Então a natureza é uma artista que nos comunica belezas, em vez de, como você
disse, comunicar pensamentos e sentimentos?
– Você, Chilon, atalhou Bruco, entrou por um caminho errado. Na natureza não há
preocupação estética; ela cria suas belezas indiferentemente, sem o objetivo de comunicar nada;
uma alvorada ou pôr de sol, no mar, é sempre uma sinfonia de cores, quando há nuvens, e por
isso existiu desde a aurora do mundo, quando não havia quem a observasse. Se mo permite
Árago e os companheiros, posso reforçar esta minha tese, lendo em Fritz Kahn, um trecho.
Vendo, pelas expressões fisionômicas, a anuência de todos, Benedito Bruco tirou da
estante “O Livro da Natureza” de Fritz Kahn, e, depois de folhá-lo um pouco, acrescentou:
– Está aqui. “A natureza não quer nenhuma beleza, entretanto a cria. Por isso a questão
sobre a finalidade da estética não tem sentido. Os corais são bonitos. Eles crescem debaixo da
água e ninguém os vê. A estrela-do-mar que também é bonita e que se arrasta por cima deles não
pode admirá-los. Nem o peixe. Eles existem cem milhões de anos antes dos peixes e mil milhões
de anos antes do aparecimento do homem que os levou para casa encantado. Durante o
crescimento ficam belos, porque crescimento é acréscimo de átomos e os átomos se agrupam nos
tecidos em formação, de acordo com determinadas leis. A beleza surge na natureza independente
de sentido e exibição como ordem objetivada das coisas no espaço e no tempo, segundo o
princípio de menor resistência. A inquietação reina até o ponto em que se cria a ordem, e o caos
reina até que se cria o cosmo455.
– Ora, continuou Bruco, se a “questão sobre a finalidade da estética não tem sentido”
como nos vem Chilon dizer que a natureza é artista, e que nos comunica sua beleza? E já, agora,
é beleza que ela nos comunica, e não pensamentos e emoções, como dissera de começo ?
– Em primeiro lugar, sentenciou Árago, a estética tem aquela finalidade de produzir
aquele estado de encantamento que há pouco eu estava sentindo ao ouvir Mozart e Haendel, e
que continuo sentindo ao observar o entusiasmo curioso, indagador, de vocês todos. Nós,
também, aqui, compomos um quadro de arte, se bem que não fosse esse nosso objetivo ao reunir-
nos. Esse estado de embevecimento, de descanso espiritual, que a arte nos proporciona, não está
nas coisas, no mundo, mas, no espírito que o observa e o sente. E este sentimento do belo, de
sublimidade, que se dá o nome estese ou estesia, está em nós, e não nas coisas observadas. Quem
não tiver esta receptividade, esta sensibilidade, nada sentirá, e por isso é que Fritz Kahn declarou
455 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, I, 292
286
que a estrela-do-mar não pode sentir a beleza dos corais, nem os peixes a destes e daquela. De
maneira que não é a natureza que nos comunica, como disse Chilon, sua beleza, senão que nós a
entendemos, a sentimos, a refletimos em nosso espírito, a comungamos, através de nossa
sensibilidade. É certo que a estrela-do-mar e o peixe não podem admirar os corais; porém, o
homem os leva “para casa encantado”. A estética da natureza não tem, por certo, esta finalidade
de produzir encantamento no homem; contudo, como o homem pode extasiar-se com a visão das
belezas naturais, cumpre à arte, como finalismo, fixar estas maravilhas para repetir e prolongar
os êxtases. E nisto se cifra a arte.
Feita uma pausa, prosseguiu o filósofo:
– Quer dizer que o artista recebe em si a natureza, e a expressa na sua arte cuja fórmula,
portanto, pode ser: natureza + artista; ou, de outro modo: natureza + alma + expressão. A arte
mostra a natureza como o artista a enxergou e a sentiu.
– Neste caso, todo mundo é artista, adiantou Bruco, visto que todos podem sentir e
expressar o que sentem; acho muito vaga sua fórmula...
– Ainda não terminei meu pensamento que se está movendo no espaço conceptual; e
como o desenvolvimento volumétrico da razão assemelha-se a um expandir-se para todos os
lados, repetirei o tema, variando-o sempre, como se fôra este nosso estudo a variação de um tema
musical. Repetir é tornar ao ponto de partida, mas sempre numa relação diferente, visto que os
raios da esfera expandem-se do centro para todos os lados, ou convergem destes para o seu
centro. Procedamos por partes, vindo do geral e da universalidade, para o particular, como
manda o método dedutivo. Aquela fórmula é vaga, portanto, por ser geral. Você, prezado Bruco,
disse que neste caso todo mundo é artista, e eu dou que o seja, de fato, porém, em estado
potencial; se assim não fôra, não se poderia transmitir nada a ninguém; a receptividade é já meio
caminho andado no rumo da arte; quem não sente nada é como um bacurau. Mas não está certo
que se possa fazer as coisas de qualquer jeito, de modo que todo mundo seja artista, tendo por
técnica a regra do Miguelão de como sair saiu. A própria natureza não age assim, e antes, segue
certas leis no agrupar os átomos, como ouvimos da leitura de Fritz Kahn. Esta harmonia e ordem
é que produz a beleza dos corais, da estrela-do-mar, dos pólipos, das flores, etc. Ora, se a
própria natureza não age ao azar, às cegas, como pode fazer arte quem agir ao acaso? Se a
natureza opera segundo certas leis, cumpre ao homem fazer arte de acordo com certas regras de
estesia; estas regras são a técnica. Conquanto a técnica pura não seja arte, esta não pode realizar-
se sem aquela. Por isso, em nossa fórmula ter-se-á que acrescentar mais este fator, donde vem
que a arte é igual a assunto + sensibilidade + técnica. Está certo agora, Bruco?
– Agora está. Só que ainda tenho uma dúvida.
– Qual?
– Constituiria a arte, então, na cópia fiel da natureza? ou seria a natureza melhorada?
– Para entendermos esse ponto, continuou o filósofo, estudemos o assunto numa arte bem
objetiva como é a fotografia ou pintura, e depois, ser-nos-á fácil entendê-la nas mais abstratas
como a literatura ou a música. Um fotógrafo, munido da sua câmara, sai-se a colher cenas de
belezas naturais. Um cão estava bebendo água num lago tranqüilo, e o movimento de sua língua
produzia ondulações concêntricas na água. Colhida a cena, verificou o fotógrafo que o céu estava
azul, ficando branco e inexpressivo na fotografia. O artista sai-se, de novo, noutra oportunidade a
procurar um céu rico de nuvens belas, e o fotografa. De passagem, pelo jardim, fixa, na gelatina,
um galho de flores pendido sobre o passeio. De posse destes três assuntos, executa uma
fotomontagem de sorte que os três negativos, convenientemente preparados, vão para o
ampliador a serem projetados no papel sensível. E o resultado é uma bela fotografia do cão
bebendo água, com um céu cheio de nuvens formosas, emoldurado por um primeiro plano que é
o galho de flores. Aquele conjunto é inatural, embora seja formado de partes naturais. A natureza
não mostrou ao fotógrafo aquele quadro; mas, poderia ter mostrado; não se trata de um absurdo
estético, porém, dum acontecimento que poderia ter-se dado do modo como no-lo mostra a
fotografia. Quer dizer que a arte superou a natureza, sendo uma supernaturalidade ou supra-
realismo, neste sentido, que não no de escola. Então a arte não deve ser naturalista, porém, supra-
naturalista. Quem é que me diz, por exemplo, que a cena do Calvário é como no-la pintam os
artistas? Onde é que está o natural e prosaico no arte de todos os tempos? Por que se enfeitam as
287
mulheres, e aparam os cabelos e raspam as barbas os homens? Por que se vestir elegante além de
funcionalmente? Por que há uma estesia norteando tudo? Acaso deve o homem tornar à bruteza
natural, como o desejaria Rousseau, ao invés de fugir dela, artificializando-se, como fazemos
todos? O homem, que disciplinou a natureza bruta e a forçou a trabalhar para os seus objetivos
artificiais, é, já, em si mesmo, supernatural. Sua arte, por conseguinte, não pode ser natural, visto
que nem ele o é. Espere Chilon; ainda não terminei meu pensamento, e você dá mostras de me
querer argüir sobre o que, de certo, ainda vou tratar. Falo duma arte que não é, por certo, uma
criação arbitrária, convencional, porém que corresponde à realidade interna da natureza, e às
forças imanentes no próprio homem; estas forças imanentes no homem, esta realidade interior é
que devem gerar e dirigir a arte. Tudo é a natureza; todavia, esta possui um aspecto bruto e
inferior, e outro divino e superior: falo do divino que é o ideal. Deste modo, o homem é
supranatural, se o considerarmos em relação à natureza bruta; todavia, é natural, se por natural
entendermos natural aquele aspecto profundo da natureza. Uma criação artística arbitrária não
estaria de acordo com este aspecto profundo que é a verdadeira Realidade. É neste sentido, e não
noutro, que o homem e sua arte são supra-naturais.
E olhando para Chilon, e vendo-o satisfeito, prosseguiu:
– Uma escultura grega possui formas, linhas e proporções impecáveis. Não há ninguém
com aquela perfeição, porém, poderia haver, e as há, de fato, nos planos superiores da vida, antes
mesmo de chegar ao topos uranos; as perfeições parciais, em nosso mundo, acham-se espalhadas
pela natureza, e aqui há uma, ali, outra, e naquela forma grega todas se acham reunidas. Não se
trata, portanto, de um absurdo estético, e sim duma estilização. Acontece que, sendo o homem
um produto da natureza no seu mais alto grau, ele pode superá-la nos pontos em que ela lhe fica
abaixo. É preciso convir, todavia, que se a natureza criou o homem, o gênio, por exemplo, é
porque ela lhe é superior, visto como só o mais pode produzir o menos, e não vice-versa; logo,
em criá-lo, não se superou a si mesma, porém apenas revelou um pouco mais da sua inexaurível
possibilidade. Neste sentido, as criações artificiais (não as arbitrárias, que são aberrações),
também são naturais, visto como, sendo o homem um produto da natureza, aquilo que ele fizer,
fê-lo ela. Então as superações da natureza são efetuadas pela mesma natureza imanente no
homem; trata-se, como estão vendo, de que o aspecto mais alto pode superar o mais baixo, sem
se sair da natureza. Neste sentido, não há o super-realismo que anotei há pouco, quando ainda o
pensamento se equacionava, e sim, somente, o realismo ou naturalismo. É assim, de certo, que
raciocinava Platão, cifrando-se nisto o seu Idealismo Realista. Realismo, portanto, para nós,
nestes estudos, é o de Platão, e não o da escola que descreve o natural de aspecto inferior.
Fez o mestre uma pausa meditativa, depois do que continuou:
– O ideal é aquilo que poderia ser, e o será alhures, porém, o não é ainda aqui na Terra. O
ideal é o perfeito, segundo o conceito de perfeição já visto nestes estudos. Observando a linha de
perfeição que a natureza material nos mostra, podemos avançar para além do limite em que ela
pára, e extrapolando este ponto, sairmos do baixo e inferior, alcançando o ideal e superior,
concebendo o belo para além do real-material, no reino do real-espiritual. Platão por este modo,
todos o tinham por sonhador de utopias; contudo, não sei que haja outro modo de falar. Na
música, por exemplo, não se pode muito copiar a natureza bruta; os sons naturais são
pobríssimos, hajam vistas algumas poucas frases musicais dos pássaros. Somente o homem pôde
descobrir as leis de harmonia sonora, os efeitos emotivos dos estacatos, das interrupções, das
notas sincopadas, das dissonâncias bem ordenadas, das variações imprevisíveis de uma única
frase musical num todo sinfônico. Como a música, também a linguagem não acha paralelo na
natureza inferior. Por isso a língua e a música são, em si mesmas, supra-naturais ou, se
quiserem, ideal-realista do tipo platônico. Aqui tem começo a natureza superior; e esta natureza
que criou um Mozart, um Cícero, um Ticiano, um Goethe, há de ter seus pontos acrológicos de
nós ignorados, onde tudo são perfeições, tudo belezas, tudo ordem, tudo harmonia. Esse é o
mundo Real de Platão, sendo este nosso cópia caricata e efêmera daquele. Como vêem, podemos
chegar à ética partindo da estética, e isto, porque em Deus, todos os caminhos se encontram.
E refletindo, longamente, prosseguiu o filósofo:
– Suponhamos que Platão e Aristóteles estão lá no topo do morro de São João,
observando a natureza, o sol, o mar, o céu... Cada um destes gênios vê coisas diferentes na
288
mesma coisa. Platão enxerga a Realidade na essência das coisas, em suas profundezas, que são
aqueles protótipos formais, ou idéias-arquétipos eternas, feitas de pensamentos-formas. Sua
visão é convergente para o Ser essencial do qual tudo promanou, e em torno do qual tudo
gravita; seu Universo construído por partes que se concertam, que se afinam, de linhas que se
concentram para esse ponto. Para ele há a unidade na variedade, a constante na variação, a lei na
profusão infinita dos fenômenos. Para ele, como para Vieira, “o mesmo mundo está fundado em
uma concórdia discorde, e não há coisa nele que não tenha o seu contrário” 456. Ou então, como
escreve Huberto Rohden: “Universo, composto de unus (um) e versus (radical de diverso,
vário) indica maravilhosamente a unidade e a diversidade do mundo. A palavra grega Kosmos
(ordem) e o termo chinês Tao (caminho) têm fundamentalmente o mesmo sentido, simbolizando
a unidade central latente na pluralidade periférica do mundo”457. É assim que Platão, em
vendo as coisas, enxerga-lhes a essência fundamental nas profundezas; enxerga a unidade, no
momento mesmo que tem os olhos postos na pluralidade.
E respirando numa pausa, continuou:
– Já Aristóteles vê o mundo em planos paralelos, superpostos e estanques. A matéria, para
ele, é eterna, como todas as coisas, cada uma no seu nível. Deus não criou, mas move o mundo,
diz ele. Os animais foram criados em espécies separadas e incomunicáveis, geneticamente, como
já o vimos numa destas nossas tertúlias.
E de olhar perdido no vazio, prosseguiu o mestre, no tom de quem se sente oprimido pelo
passado.
– Lá está o gênio de Stagira sobre o monte, recostado ao tronco duma árvore, meditando...
foi na Grécia... e já vai para mais de dois mil anos... que esta lince do pensamento enxergou claro
o que muitos doutores não vêem ainda hoje. Observou o stagirita que as aves são aparentadas
com os répteis, e os macacos, com o homem. E quando se esperava que ele fosse falar de
evolução, priscando para um lado, saiu-se com o seu sistema biológico, segundo o qual as
espécies se escalonam por planos paralelos e superpostos. As espécies são, para ele, criações
separadas, isoladas, sem passagem evolutiva entre elas. Por que o concebeu, assim Aristóteles?
Aqui está o busílis! Porque enxergou que, se admitisse a evolução, necessariamente teria de
aceitar que o homem procedeu de um tronco ancestral comum aos homens e aos macacos. Este é
o pré-chimpanzé, como o chamam hoje os biologistas, que veio, por evolução, de outros
mamíferos inferiores os quais se originaram dos répteis, dos anfíbios, dos peixes, dos
invertebrados, dos seres coloniais, dos unicelulares, da monera de Haeckel que se supõe ser a
matéria organizada primordial, gelatinosa, oriunda da matéria bruta que se agitara no caos das
nebulosas... Logo, “a matéria viva é apenas um arranjo especial da matéria ordinária e a evolução
da vida não é mais que um remoinho peculiar e local, em meio da evolução cósmica”458. “E a
série é esta: matéria em forma de núcleos atômicos nús e eletrônios livres e vagabundos (é o
estado em que ela se encontra mais comumente); – matéria em forma de átomos; – matéria em
forma de misturas simples; – matéria em forma de misturas especiais, que precisam de água para
se formarem (é o estado mais raro); – finalmente, matéria em forma de unidades bastante
complexas e dotadas de auto-reprodução, a que chamamos matéria viva”459. Mais: “A matéria
viva é matéria – mas uma espécie de matéria espantosamente complicada, muitas vezes mais
complexa na sua construção do que qualquer outra substância até hoje conhecida no universo”460.
A vida, então, procedeu da matéria, e o espírito, da vida, donde vem que o espírito é um produto
da matéria... Esta conclusão é definitiva, iniludível, necessária, a qualquer ser pensante... Por
conseguinte, o primeiro ato de Deus foi criar o Caos donde tudo promanou. É por esta causa
que, em nosso mundo, a treva, o dano, a dor, o mal e a morte imperam; é que o mundo é filho do
Caos, do não-ser, da negação extrema do Ser. Eis por que está o Universo fundado sobre a dor,
sobre a força, sobre a mentira, sobre a astúcia e a violência, sobre a vitória, enfim, incondicional
do mais forte... Nietzsche é quem, então, estava certo, e não, Cristo... Para não vir dar consigo,
nestes infernos mais que infernais, resolveu-se a formular o stagirita, uma concepção em que o
Universo estivesse construído em planos paralelos, separados e eternos. Cada coisa, segundo
este modo de ver, foi objeto de um ato especial do Criador, não havendo derivação nem
passagem entre as partes, nem entre as espécies. Estas mesmas razões, como já o vimos há
tempos, forçaram Lineu e Cuvier a pisarem nos rastros de Aristóteles. A idéia de evolução, por
este mesmo motivo, foi tida por Kant, como “uma perigosa aventura da razão”, e Goethe, ao
escrever sua “Metamorfose”, declarou que ia efetuar a “perigosa aventura”.
Fez uma pausa o pensador, depois do que, prosseguiu:
– Aceitar, por conseguinte, a evolução implica em aceitar um Deus negativo que cria o
Caos, o mal, a dor, ao invés de a ordem, o bem e a felicidade. E um Deus negativo é um não-
Deus, um Anti-Deus, um Satanás. É por esta razão que os religiosos de todos os tempos, para
não perderem a fé, aristotelicamente, negam a evolução que, no entanto, se demonstra
irrefragavelmente, por seis ordens de provas que são: as paleontológicas, as anatômicas, as
embriológicas, as dos orgãos residuais, as sorológicas e as geográficas. Contudo os religiosos
negam-se a aceitar estes fatos, e com muita razão, para não perderem a fé, porquanto é absurdo
aceitar a evolução e ter fé. Por isso, quando um cientista, um médico, por exemplo, se diz
materialista, está coerente consigo mesmo, visto como, sendo aristotélico e aceitando a evolução,
foi dar consigo exatamente naquele ponto que Aristóteles refugou... Como a teologia de
Aristóteles saiu da sua biologia, acima da prateleira de todos os planos fica seu Deus, calmo,
apartado da sua criação com a qual não se mistura nem se contamina; esse Deus aristotélico
permanece em sua torre de cristal, distante, indiferente, impassível, servindo de modelo para o
rei inglês que reina mas não governa (Will Durant). Conquanto possa estar assim apartado, Deus
também se acha na essência das coisas; e quando, outra vez, se pensa que o arguto stagirita vai
dizer que essa essência é a Realidade feita de Idéias-Formas, como o quer Platão, priscando de
novo, absurdamente afirma que a realidade são as coisas em si, e não as idéias-arquétipos. Estas
idéias, segundo ele, viriam depois das coisas feitas, sendo o reflexo delas em nossa consciência;
do mesmo modo como a imagem dum objeto refletido num espelho, não é o objeto real, senão o
aparente, assim as imagens mentais, os pensamentos-formas, não são realidades, e sim
aparências. Não é à-toa que Huberto Rohden afirma que “Aristóteles é, na história da filosofia
ocidental, o rei dos acróbatas”461.
E prosseguiu o pensador, após refletir um tanto:
– Para Platão, o primeiro ato do Criador foi formar, com sua Mente, aqueles modelos-
arquétipos eternos e perfeitos, aqueles como pensamentos-formas, pelos quais se modelaram,
posteriormente, todas as coisas do nosso mundo, donde vem que estas não são absolutamente
reais, e sim cópias imperfeitas e efêmeras daquela Realidade essencial. Deus criara modelos
mentais perfeitos, os quais, em parte, ruíram no caos da imperfeição, das trevas, da dor e da
morte, de onde agora tudo retorna para Deus, pela evolução. Segue-se daqui, como estamos
vendo, que o Universo de Platão é convergente para Deus que é a origem. Então, tornando, de
novo àquele quadro do morro de São João, onde deixamos Platão e Aristóteles contemplando a
natureza, se lhe pedíssemos nos descrevessem o que viram, que sucederia?... Considerando o que
assentamos, de começo, que o artista vê o mundo e o interpreta no seu espírito e o revela na sua
arte, estes dois artistas do morro hão de declarar coisas diferentes, pois suas visões são
polarmente opostas em relação à realidade. Conquanto ambos estejam no mesmo local, e vejam a
mesma coisa, e na mesma hora, contudo, enxergam-na de dois pontos de vista encontrados ou
opostos. O homem vê com os olhos internos da abstração, e por isso de nada nos valeu colocá-
los no mesmo lugar e na mesma hora, cuidando que ambos, em vendo o mesmo espetáculo,
fizessem u’a mesma declaração. Cada artista, pois, revela a visão que tem do mundo, e esta visão
é diferente para cada um deles, e por isso, cada um deles busca uma técnica pela qual possa
expressar-se. Disto decorre que, conquanto seja sempre o mesmo o mundo, as artes são muitas.
A cada visão renovada do mundo, do cosmo, um conceito novo de estesia surge. Quanto mais
alta for a cosmovisão do artista, tanto mais profunda e complexa será sua arte. Esta é a causa de a
arte de um gênio, como Goethe, não se poder comparar com a do medíocre; naquele está a
profundeza e a qualidade, no passo que neste predomina, invariavelmente, a vulgaridade e a
461 Huberto Rohden, Filosofia Universal, l, 115
290
quantidade. Enquanto Goethe, no seu “Fausto” , canta, com ironia, os mistérios profundos de
uma caveira que se ri dele e dos seus esforços vãos, para atingir a essência das coisas, a luz que
vivifica, o medíocre modernista se dá por feliz, por plenamente pago, ao cantar a beleza... “de
uma réstia de cebolas” dependurada à porta do armazém do Guilhermino! Se tais podem ser os
assuntos, muitos serão os versos e os poetastros...
E refazendo-se do esforço, prosseguiu:
– Desde que existiram esses dois grandes gênios gregos, galhos do tronco socrático, os
homens, ou são platônicos, ou são aristotélicos, no dizer de Friedrich Schlegel; ou são místicos e
intuitivos, ou são racionalistas e positivos; ou são dedutivos, condoreiros, habitadores das
escarpas inacessíveis das montanhas altíssimas, ou são indutivos e habitantes das planuras e dos
valados; ou são seres voadores, como as aves, ou são reptadores como as cobras. Ver por
intuição, é ver platonicamente; ver racionalmente é ser aristotélico, científico, esmiuçador. O
primeiro vê global e instantaneamente o todo, porém, não, as partes; o segundo enxerga as partes
com as quais mantém um contato próprio dos animais reptantes que têm os olhos, e a boca, e o
nariz, e o tato, tudo posto no solo sobre que rojam. Para a cobra que roja sobre a terra, assim
como para os homens só de razão, o mundo possui só duas dimensões; a serpente não conhece a
terceira dimensão do espaço, não tem vivência dele, e o puramente racional, desconhece a razão
volumétrica, a hiper consciência. Todavia, isto não significa que os homens sejam assim tipos
extremados, sem possibilidade de passagem de uma para outra espécie. O racional pode ser
também intuitivo, e vice-versa; o que não pode ser é as duas coisas ao mesmo tempo pela mesma
razão de não correr a ave, enquanto voa, nem voar, enquanto corre. Do rojar de répteis vem o
correr dos quadrúpedes, e finalmente o deslocar-se, aos saltos, da corça, aqui acabando o ciclo
das pernas, para começar o das asas. O réptil cria asas, por evolução, começando o voar curto e
rasteiro daquelas aves pesadas e primitivas; depois cresce a envergadura das asas, o corpo se
afila e emagrece, o externo se estende para frente, como quilha, e sobre ele cresce a musculatura
do vôo. Esta modificação anatômica mostra a escala das aves quanto ao vôo, que vai do pesado e
tardonho réptil primitivo, alado já, mas quase não voador, à águia subestratosférica. Tais as
gradações conscienciais que levam do racionalista ao intuitivo, da ciência fragmentária e
analítica à unidade sintética. O vôo intuitivo tanto mais é seguro, quanto mais for veloz; e como
a velocidade, neste caso, guarda relação com o tamanho e potência das asas, quanto mais forem
estas grandes e fortes, tanto mais se poderá subir no rumo das rarefações estratosféricas, voando,
seguro, sobre os abismos vertiginosos. E quando ainda a sombra está nos vales, onde a maioria
dorme na inconsciência, já se banham as águias na luz das madrugadas das idéias... Os gênios,
assim como as águias, hão de ver primeiro o Sol; elas, o Sol dos dias; eles, o das idades. São
quais auroras de luz, as madrugadas de idéias; que, banhando primeiro os montes, atingem
primeiro as águias.
– E sabe você, Chilon, interrogou o mestre, como se chama este estilo em que,
dissertando, faço minha arte ?
– Se não for barroco, não sei como chamá-lo !
– É isso mesmo; é o barroco conceptista, como o que empregava Vieira nos “Sermões”.
Este é o estilo das grandezas, dos assuntos cosmonômicos e acrológicos. A língua ou a pena,
aqui, têm de se movimentar céleres, porquanto os conceitos se amontoam, compactos,
atropelando-se, na única porta que dá para o mundo, e isto, porque tudo é volumétrico na
intuição. Não mais aquela clareza e rigidez da lógica conclusiva que noutros dias usei, porque
tudo é globalizante aqui, e não sólido, mas fluídico. Esta linguagem compacta de conceitos
esféricos, e de esferas em dilatação como ondas no espaço, é platônica ou barroca, e por isso é
que, em Platão, sonho e realidade, lógica e poesia e musicalidade se baralham. Ele é o filósofo
do futuro, e por este motivo a sua filosofia “é antes uma filosofia para a humanidade de amanhã
do que para a humanidade de hoje”462. É, pois, preciso pertencer-se ao futuro, como ele, ou ser
da sua estirpe, para o entender. Falo do espírito do barroco, da teoria do barroquismo, que não
da forma que este pudesse ter assumido nos seus altos e baixos. As formas estilísticas têm, como
os seres vivos, um ciclo de vida que vai do berço ao túmulo. Também no classicismo há cristas e
fundos em sua ondulação evolutiva; e também os há nas formas de transição que, a seu turno, se
462 Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 146
291
alteiam ou se rebaixam; os próprios estilos e escolas mais não são do que manifestações de duas
realidades essenciais, de duas escolas básicas (barroquismo e classicismo), das quais todas as
outras são variantes, porque duas somente são as visões extremas do Universo. Entre esses
extremos marcados por Aristóteles e Platão, os vários estilos se escalonam, visto que o homem,
com sua visão, pode estar em qualquer ponto ao longo do eixo que liga aqueles dois pólos. Por
esta razão, quando falo de barroquismo e de classicismo, refiro-me ao espírito, à filosofia destas
duas escolas polares, nada tendo a ver com épocas. E qualquer destes dois estilos tomados
isoladamente, também é bifrontal, visto como, em qualquer deles, há duas coisas a se considerar,
que são conteúdo e forma. Toda unidade é bipolar, e a do estilo se constitui de um eixo cujos
extremos são conteúdo e forma; ao longo deste eixo oscilam os modismos de um mesmo estilo.
No nascimento, o estilo é simples, preciso, vigoroso, talhado a golpes rápidos, cheio de arestas,
sem aplainamento nenhum, chegando às vezes a ser lacônico. Depois, com o correr dos tempos,
vem o lavor, o artesanato progressivo, o rebuscamento, e a forma se torna pomposa, complexa.
Finalmente a forma se enfuna de todo, e, enchendo-se de vento, invade tudo num
açambarcamento e pompa formal, ficando o conceito, como esqueleto que é, perdido nas
custosas vestes. Antes era só esqueleto; agora é só vestido, tuba de bronze nas letras, gongo
fraseológico, que dá muito som, mas não diz nada. A grande mensagem da Cruz, por exemplo, é
simples; pode ser lida nos quatro Evangelhos; depois o conceito começou a ser trabalhado pelos
artistas através dos tempos; primeiro vem o estilo clássico preciso e simples, até seu estiolamento
no fim da Idade Média; depois do humanismo renascentista, que continua avançar no rumo da
matéria, surge, como reação a este e à Reforma, o barroquismo conceptista, simples e preciso
também, como o é o belo estilo senecano; mas a tendência transforma-o no gongorismo
campanudo, arrebicado e colorido, até sua diluição total no rococó. Eis o esplendor e a
decadência de dois estilos opostos. É que, não podendo variar o conteúdo da mensagem, só se
pode trabalhar a forma; cada século trouxe uma peça a mais, até que a mensagem se perdeu nas
vestes...
Fez uma pausa, o mestre, depois do que, concluiu:
– Considerando que toda a unidade é bipolar, se a unidade tomada for a Arte, como um
todo, os dois pólos são Platão e Aristóteles, correspondentes, respectivamente, a barroco e
classicismo. Se a unidade considerada for um estilo, seja o clássico, seja o barroco, isoladamente,
então seus extremos são conteúdo e forma; e quando se ganha em forma, perde-se em conteúdo e
vice versa; e isto é lei... que pode ser expresso pela fórmula: estilo = conteúdo × forma;
abreviado: e = c. f. Não se espantem pois, vocês, de eu dizer que sou barroco; não se trata, como
vocês podem ver, de um barroco feito de rebuscamento, de verbalismo próprio do cultismo ou
preciosismo como o de Rui Barbosa, como o de Coelho Neto, como o de Euclides da Cunha;
nem é ainda barroco sintático, de rebuscamento ideológico, como o de Vieira. Todavia, não
deixa de ser barroco, porque conserva o espírito do barroquismo, a convergência para um ponto
central, ou divergência dele para todos os lados da esfera de conceito. Aristóteles tinha as vistas
voltadas para os fenômenos da natureza, para o particular, para a minudência. É individualista,
observador, e exaustivamente perquiridor. Com a helenização do mundo, a ciência dos gregos, e
sobretudo a deste grego, espalhou-se impregnando tudo. Cai o Império Romano sob o domínio
dos bárbaros, e estes começam a aceitar o cristianismo com Constantino. Vem a Idade Média,
surgindo grandes filósofos como Santo Agostinho, de linhagem platônica, mas só quanto à
forma, e São Tomás de Aquino, de linhagem aristotélica. Porém, Santo Agostinho desgarrou-se
de Aristóteles, concebendo o Universo como criado do nada, “creatio ex nihilo”. Esta
concepção, mais psicológica, pedagógica e política do que lógica e filosófica, serviu,
magníficamente, aos fins da Igreja, pois sendo Deus exterior à sua Criação, apartado dela
(Aristóteles), e sendo o homem nada, porque feito de nada (Agostinho), precisaria este homem
de intermediários que são os padres, os bispos e o papa. É neste ponto que Platão ficou
esquecido, esperando pelo futuro que é daqui por diante. São Tomás aceita a criação do nada de
Santo Agostinho, e constrói um vasto edifício ideológico levantado sobre Aristóteles. Surge,
então as três ciências: a ciência de Deus fundada na Bíblia; a ciência do Homem, em Patrício; e a
ciência da Natureza, em Aristóteles. Esta trilogia de valores repete-se, ampliando-se, em Dante,
Petrarca e Bocácio. Platão, como todos os demais filósofos da linhagem socrática, é sempre
292
ainda não somos. Assim não há nenhum homem que viva o que pensa, o que prega e que
escreve, porque, este labor se desenvolve tendo em vista o porvir, que não é presente. É assim
que Platão se insurge contra os poetas e contra os mitos, e, contudo, faz crescer consigo o
número dos que fazem poesias e mitos. Como diz Will Durant, “deplora haver sacerdotes que se
vão correndo terras a falar sobre o inferno e a oferecer a redenção, em troca de alguma dádiva
(confronte-se com A República, 364), mas é ele, por sua vez, um sacerdote, um teólogo, um
pregador, um supermoralista, um Savonarola a malsinar a arte e a receitar a fogueira para as
vaidades do mundo. Reconhece, como Shakespeare, que “as comparações são resvaladias” (O
Sofista, 231), mas resvala a cada passo em comparações sucessivas; anatematiza os sofistas
como discutidores, mascates de frases, mas não se põe fora de maltratar a lógica como um
sofomoro”464. Por este motivo, Platão, com Vieira, condenam o que praticavam, porque eram,
então, o produto do seu tempo, da sua época. Contudo, a doutrina de um e de outro tinham em
vista criar novas condições futuras. No entanto, é só pelo gosto de discutir que você levantou
esta questão, pois não me cabe na cabeça, que você não tivesse percebido a distinção das duas
antíteses. Umas são artificiais, forçadas, como o xadrez de palavras do culteranismo; outras, as
naturais (dia-noite, claro-escuro, belo-feio) e não inventados pelo homem para causar efeito. E
dá Vieira como exemplo do pregar o céu. “Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os
pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras”465. E olhe você, Chilon, o Branco e Negro, o
Dia e Noite, a Luz e Sombra, o Desceu e Subiu de que se compõe o céu, e diga-me, se isso se
parece com xadrez? Até o presente, sempre que olhei para o céu, enxerguei tudo isto apontado
por Vieira, porém, jamais, nunca, me ocorreu que essas antíteses formavam um xadrez! Tal deve
ser o sermão, feito de antíteses naturais, porque a natureza é antitética; todavia, não forçar o
xadrez com arranjos forçados de palavras! O sermão que faz efeito por si mesmo, é como o
sermão do primeiro pregador que foi o mesmo céu, no dizer de Vieira. E já, meu caro Chilon,
que se referiu você a essa obra escrita sob a direção de Afrânio Coutinho, veja se aquele
preciosismo de Rui pode ser imputado a Vieira? É aquele exagero, veja bem, exagero, que é
condenável, “sobretudo em Rui, em quem o gosto da palavra, da sonoridade verbal, do
rebuscamento e inusitado no estilo, são bem o exemplo, na prosa política, da concepção
estilística que domina os espíritos nos dois decênios à volta de 1.900, e que levava escritores
como Coelho Neto e Euclides da Cunha, além do próprio Rui, à técnica da coleção de palavras
raras (registradas em caderninho e mesmo no punho da camisa) para uso oportuno, ou que fez
Rui Barbosa ler o dicionário de Cândido de Figueiredo, traindo nos seus discursos no Senado,
pelo predomínio das palavras de inicial igual, a marcha da leitura” (op. cit. Vol. III, T. 1, 263).
Por acaso você me pode dizer que Vieira fazia destas coisas?
– Não... não fazia, obtemperou Chilon.
– Logo, concluiu o mestre, o preciosismo está para as palavras, assim como o
conceptismo está para as idéias. Acredito que fosse preciosista, vez por outra, hajam vistas os
seus trocadilhos, alguns até de mau gosto; ele próprio se penitenciou destes pecados,
confessando, certa vez, ter pregado só palavras, prometendo que noutro dia haveria de pregar
pensamentos. Conquanto combatesse uma tendência, não podia deixar de ser produto de sua
época. Por isso, como já disse, os homens não são o que pensam e o que dizem, senão o que
fazem. No entanto, o que pensam e o que dizem plasmam as tendências futuras. Deste modo
podemos afirmar que tanto o cultismo como o conceptismo, em sentido absoluto, não passa de
presunção. Todavia, se há dois barrocos que se opõem dentro do mesmo barroco, sendo um de
idéias, e outro, de palavras (e = c. f.), não há negar que precisamos de dois nomes para os
diferenciar. Esta distinção de conceptismo, conquanto Vieira não a seguisse por inteiro, no-la
deu ele próprio ao dizer: pregar palavras e pregar pensamentos. Será que não está claro como o
dia este assunto Chilon?
– Sim, está. Pode o senhor tocar por diante com o que ia dizendo, quando o interrompi.
– O que eu estava por dizer é que Aristóteles observava que um ser vivo é uma
coordenação orgânica de partes, e o todo só funciona, quando se apresenta como unidade
indestrutível. A retirada de qualquer peça essencial acarretaria a destruição do ser. Por esta causa
464 Will Durant, História da Filosofia, 36
465 Vieira, Sermões, Ed. das Américas, 1, 61
294
o padre Vieira, no “Sermão das Sexagésima”, compara o sermão à árvore, ou seja, uma unidade
formada de variedade. Isto vem de Platão, como dizia, por via aristotélica. Numa parte, o
empréstimo vem de Platão por meio de Plotino, e este é o que dá ao barroquismo aquele tom de
mistério, de esoterismo, de obscuridade, aquele claro-escuro que faz Vieira sentenciar: “Tal pode
ser o sermão: estrelas, que todos as vêem, e muito poucos as medem”466. Sendo platônico e
intuitivo, o conceptismo fala mais ao sentimento, através dos sentidos, sobretudo o da vista, em
vez de falar à inteligência claramente. É sugestivo, isto é, sugere, antes de persuadir. Fixa o
geral, de onde desce aos pormenores, pelo método dedutivo ou analítico. Conserva um que de
vôo, que não pode ser interrompido a todo instante com paradas de ponto final; por isso emprega
ponto e virgula e dois pontos, em vez de ponto. Conserva a constante mística do iluminismo (de
iluminado-místico), do mistério, do sonho e da fuga do mundo derrocado e mau, e feio, e
diabólico. Este mundo nosso é cópia do real e verdadeiro (Platão); aquele é a fôrma, e este, o
formado, e por isso, negativo e invertido em relação àquele; tudo aqui é às avessas do real, e por
isso, quando lá diz: branco, aqui diz: preto; lá: luz, aqui: treva; lá: espírito, aqui: matéria; lá:
alegria, aqui: sofrimento; etc. Esta é a causa de Cristo declarar que seu reino não é deste mundo,
e de S. João afirmar “que todo o mundo está posto no maligno” (II João, 5, 19). Por esta razão a
alma barroca quer evadir-se, quer fugir para esse outro reino, e isto só pode ser feito pela boa
morte, morte de quem morreu antes de morrer, ou seja, morreu para o mundo; daqui vem a
ênfase que se dá à morte, ao fúnebre, ao túmulo, à caveira, ao esqueleto, ao lôbrego, à arte do
feio – o feísmo. É preciso enfatizar os aspectos cruéis, dolorosos, sangrentos, sórdidos,
formidandos, medonhos deste mundo derrocado e invertido, que destrói os justos como Cristo e
como Sócrates, e premia a força, a astúcia e a maldade, para que todos, desenganados dele, se
queiram evadir para o outro, aquele de Platão e de Cristo, que é perfeito, por ser o avesso deste.
Satanás tem de ser mostrado junto deste mundo que é seu, e porque seu, por isso, nele, no
mundo, abunda a mentira, a ignorância, a treva, a dor, a danação, o mal; é necessário apresentar
no teatro, e por todos os modos possíveis, o relâmpago e o trovão, os coriscos vermelhos, a boca
do inferno vomitando fogo e lavas ardentes; é preciso mostrar as almas penadas escabujando
nessas lavas, e urrando de suas dores imortais, como de fato são as dores deste mundo
(Schopenhauer), pois, na verdade, é ele um vale de lágrimas, como reza, a prece da Igreja de
Roma a “Salve Rainha”... É imprescindível criar e alimentar o conflito entre o homem e o
mundo, tornando patente o dualismo bem-mal, positivo-negativo, belo-feio, etc., reinantes em
todo o universo derrocado, e a luta mais que dantesca de Jesus contra os dragões. É
indispensável cultivar o heroísmo e o martírio, o gosto do sacrifício e da renúncia total, a fuga
no isolamento ascético, para o retempero das energias, antes de nova arremetida contra as forças
do mal. Se o artista barroco volta para o mundo suas vistas, é com desdém e asco, e por isso, não
para abraçá-lo, senão para o combater, como fazem quaisquer profetas que são sempre contra.
Deus dizia: profetiza contra meu povo; por isso, ser profeta, é ser contra.
Renascimento Barroco
Aristóteles Platão
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Por este gráfico se vê que os pensamentos e os estilos se repetem, todavia, cada vez
menos curvos, podendo abarcar cada vez mais substância no seu âmbito. Este velho e, contudo,
novo estilo que virá é o barroco, visto como só ele possibilita vôos altíssimos, por ser dinâmico,
aberto, em vez de estático e fechado como o clássico. É, o barroco, “um estilo prismático, em
que as impressões são comunicadas através das diversas facetas, os vários aspectos de uma ação,
que se unem na mente de Deus. Daí a preferência pelos verbos prismáticos, por meio dos quais,
como define Hatzfeld, uma ação é privada de sua análise imediata, aparecendo quebrada em
multidão de impressões desconexas ou não relacionadas; tal como um raio de luz dividido por
um prisma, há, entre o autor e a descrição, um olho, um ouvido, ou outro receptáculo sensorial
do herói que influa na expressão” (op. cit. Vol. I, T. 1, 230).
E após uma pausa meditativa, prosseguiu:
– Houve uma época em que se quis ser barroco, por estar isto em moda. Entretanto, o
barroco é mais psicológico do que histórico, como o afirma Antonio Sérgio ao escrever: “Podem
aparecer mentalidades barrocas em todos os momentos da história de um povo: mas topamos um
período em que estiveram em moda, em que se quis ser barroco – período mais longo nas nações
297
hispânicas (de l.580, digamos, até 1.680) do que no centro norte do continente da Europa”467. É
da mesma opinião Afrânio Coutinho, como já vimos. Mas fale ainda Afrânio: “Hatzfeld teve o
ensejo de aventar que Raimundo Lúlio foi o típico precursor do conceptismo e, de fato, o Doutor
Iluminado do século XIII, já explora um mundo metafórico, que era a antecipação natural
daquela que veio florir como uma constelação de espantos na Espanha de Paravincino e de
Calderon de Barca”468. Mais: “Assevera Hatzfeld que, se o italiano Miguel Ângelo foi o pai do
Barroco formal, o espanhol Santo Inácio fez-se o inspirador do espírito da Contra-Reforma, de
modo que o problema da origem do Barroco se resume, relativamente à história das idéias, no
problema da influência espanhola na Itália entre os anos de 1.530 e l.540, quando o papa Paulo
III estava sob a inspiração de Inácio de Loiola”469. Eu grifei, aqui no livro, o lugar que diz:
“relativamente à história das idéias”, porque, para mim, como para Antônio Sérgio, o fenômeno
vem de trás, sendo mais psicológico do que histórico. Por isso é que até existem “alguns
defensores de um pan-barroquismo (Eugênio de Ors), para designar um tipo de expressão que
pode ocorrer em qualquer cultura e em diversos momentos como uma tendência universal e
permanente, uma constante histórica”470. Isto é um modo geral de ver o fenômeno, conquanto o
termo possa ser empregado em sentido restrito, para época definida, para ter validade na crítica
literária, como quer Afrânio Coutinho, neste mesmo parágrafo, na parte que não li. Tão grande
foi a influência do barroco no pensamento humano que “nenhum gênio literário do
Renascimento, do Barroco e do Neo-Classicismo, escapa ao tributo: Shakespeare, Montaigne,
Cervantes, Gongora, Quevedo... Há páginas inteiras de Sêneca em Montaigne, e seria tempo
perdido pretender rastrear os passos de Sêneca e Plutarco em Shakespeare”471. E “estudos
recentes incluem Camões na obra barroca”472.
E fechando o livro, prosseguiu:
– Só o barroco possui recursos imensos, e por meio das teses, antíteses e sínteses, pode
desenvolver-se num vôo que todo é arrojo, e força, e convergência; só ele poderá trabalhar com e
sobre opostos, alcançando a maravilhosa unidade na variedade como farão os Berninis, os
Caravaggios, os Velásques, os Rubens, os Beethovens e os Vieiras do futuro. O barroco é um
instrumento de gigantes, e não de pigmeus; estes, quando muito, poderão ocupar-se do
culteranismo, não, porém, do conceptismo. Não serve o barroco para a prosa política, como fazia
Rui, nem para cantar insignificâncias como fazia Botelho de Oliveira, quando compara ao Sol, o
nada que é o rosto de Anarda, em suas redondilhas. Só a dialética conceptista poderá alcançar a
verdade mais central e unitária, através das verdades periféricas, que de nenhum modo são
estáticas. Estou aqui a falar do barroquismo na sua expressão mais alta, e não, certamente do
churriguerismo, não do gongorismo, não do arcadismo, não do rococó; não barroco para ostentar,
para impressionar pelas agudezas e engenho. Não falo do barroquismo que tem em vista causar
efeito, porém do que permite ser unitário na multiplicidade, sintético na análise, convergente na
variedade, e, sobretudo, poderosamente cortante no rumo da Verdade total. Ele é, e há de ser, um
grandíssimo clamor que abale a inteligência e o coração, despertando o espírito dementado pelo
materialismo, e por isto mesmo ateu. O mundo materialista pede ciência e racionalidade! Eia,
pois, companheiros! armemo-nos da racionalidade e da ciência mais atual, e depois voemos nas
asas da intuição que sempre vem inflamada do mais profundo sentimento. A alma deve estar
incendiada de paixão para que suas vozes sejam tormentosas e dantescas; só poderão fazer que se
trema o mundo inteiro, aqueles cujo fabuloso verbo seja todo feito de luzes celestiais, que mais
firam o sentidos do que deixem ver. Tais coisas se dirão, e em tal estilo, no momento histórico da
pós-hecatombe, quando se tiver verificado o desengano do mundo em relação à matéria e ao
materialismo, com a conseqüente volta para o espírito, para Deus. A razão deve incendiar-se do
sentimento, para que o estilo apaixonado e dorido seja trombeta apocalíptica para aviso do
mundo... “Com brio”, em música, significa que o trecho deve ser executado com força, com
veemência; por isso se deve falar ou escrever “com brio”; toca-se por diante a pena ou a língua,
sem pensar, impulsionada só pelo fogo sagrado que arde dentro do peito! Esse modo “com brio”
é o que ressalta do estilo conceptista; Rubens e Franz Hals pintavam “com brio”; Beethoven
usou-o, e também Tchaikovsky, na música; Guerra Junqueiro e Castro Alves, na poesia, e Vieira
e Cícero, na oratória! A premissa, no classicismo, tem de ser um ponto sólido, imóvel,
dogmático, absoluto; aqui não há absolutos, e as premissas se movem; elas são ao mesmo tempo
que deixam de o ser; são provisórias, relativas, dinâmicas, como o impõe o pensamento
conceptista. Só quem fizer síntese, e em conceptismo, poderá escrever para o futuro. O barroco
não é estático, mas dinâmico, olímpico, calidoscópico. A afirmação, quando encerra em si um
devir ou tornar-se, quando é feita de dinamismo, quando possui, em si, a beleza suprema do
movimento, ao mesmo tempo que é fala de Vieira, é música beethoveniana que sacode, com
violência, a imaginação, é conceito que se extravasa da forma, dizendo muito mais do que aquilo
que está escrito. Ninguém poderá esgotar o conteúdo ideológico, quando este vem vazado na
forma simbólica como fez Vieira. A alegoria, a figura, são expressões que, como as da
matemática, falam a todos os tempos e a todos os planos, e quanto mais se atenta para elas, tanto
mais se expandem pelos ramos da parábola, da hipérbole, assumindo caráter cósmico, infinito.
Tais são as figuras: “estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem” 473. As palavras, na
forma, hão que manter o momento clássico de propriedade, clareza, naturalidade, rigorismo,
precisão; porém, o pensamento há que ser volumétrico, e não linear ou planimétrico; pictórico,
visual, intuitivo e profundo, em vez de superficial e táctil. No barroco há o “desenvolvimento do
superficial em direção do profundo. Na arte clássica as partes do todo, são uma seqüência de
planos. O barroco dá ênfase à profundidade”474. “Classicamente, o objeto tem contornos bem
definidos e no campo ético, bem e mal estariam apartados, como num quadro da Renascença, as
figuras mantêm a sua autonomia unidas por mero nexo de coordenação. Mas esta nitidez de
contornos esbate-se no barroco”475. “Barroco é o ciclo das bandeiras como das navegações.
Marcados ambos do mesmo sentido de hipérbole e infinito”476.
Fez uma longa pausa, o mestre, em que se aprofundou em meditações. Depois,
prosseguiu:
– O estilo do futuro há, pois, que ser uma síntese de Aristóteles e Platão: clássico quanto à
forma, isto é, claro, simples, próprio, preciso, porém conceptista quanto à idéia, porque só deste
modo se poderão resolver os formidáveis problemas da síntese, alcançando o infinito e o
absoluto, ainda que por meio da precária linguagem humana. Só o barroco pode confundir
extremos, conseguindo a unidade na variedade; “jamais como no barroco se viu tão intenso o
sestro da confusão das diversas artes entre si”477. Mas isto é por que? Diga-o Matias Aires que
tinha “a idéia do mundo, não como realidade estática, mas, barrocamente, como movimento e
mudança”478. Se o próprio mundo que nos rodeiam, é barrocamente calidoscópico, e, no seu
devir, jamais é o que foi, ou será o que é, impõe-se, clara e inexoravelmente, que só o estilo
barroco pode explicá-lo. Afrânio Coutinho e outros, na obra “Literatura no Brasil”, Vol. I. T. 1,
Pág. 48, citando Machado de Assis, anotaram o seguinte: “o que se deve exigir de um escritor,
antes de tudo é certo sentido íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda
quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. Esta doutrina está certa, relativamente
a quem fala, e para quem fala. De acordo com este relativismo que considera o grau de
consciência do autor e o de seu público, isto é, a idade mental cósmica de quem fala e de para
quem fala, podemos também dizer: “o que se deve exigir de um escritor, antes de tudo, é certo
sentimento íntimo, que o torne homem” de todos os tempos e de todos os países, ainda quando
trate de assuntos locais e próximos no espaço e no tempo. Uma consciência cósmica adulta não
pode servir exclusivamente a uma época e a um local. Em Cristo temos o exemplo disto, pois,
falando ele a seu povo, em época e tempo definidos, falou para todas as épocas, para todos os
lugares e para todos os povos. O sentido da vista, e não do tato, é que criou, nutriu e guiou o
barroquismo passado; no futuro que se antevê por intuição, será ainda o sentido da vista que há
de guiar o superbarroquismo pan-barroco; se, pois, o do passado nasceu da vista, e o do futuro,
também, em que, logo, residirá a diferença entre um e outro, para que os pósteros, avançando
pelo futuro, retornem ao passado, seguindo as voltas da espiral helicoidal aberta? A diferença
estará em que o barroquismo passado viu o mundo mais com os olhos da carne, no passo que, o
futuro, vê-lo-á com os olhos do espírito, e isto quer dizer intuição. Intuição é a vista subjetiva,
interior, substancial, das bases que subjazem, isto é, que jazem por debaixo, sobre as quais tudo
se edifica. Esta visão sintética do conjunto é aquela que a águia tem, contra os tateios e reptações
da objetividade multíplice, que, porque sensorial, e não metafísica, se perde nos pormenores.
Por isto, o supra barroquismo futuro será só cosmo-conceptista, e não, geoculturalista, para não
dizer antropocultista. Cuidará ele só de pensamentos, sendo, por aqui, complexo e profundo,
sem, contudo, possuir forma rebuscada. Trata-se de um barroquismo sem os vícios do
barroquismo, isto é, um barroquismo só conceptista, sem palavras ociosas e simbolismos vãos,
ou seja, cheios de vento. Escoime-se de Vieira (dos Sermões), todos os defeitos, e ter-se-á
construído o fundamento do estilo do futuro. Em tal se resume os meus esforços nestes serões,
conquanto, nem sempre, tenha eu sido feliz em meu desiderato. Eia! ó companheiros de estudo!
aqui está o caminho da grande arte do porvir! Vieira se fundamentava na Bíblia, e sendo esta
barroca, constituía em fonte inesgotável de figuras; fundamentem-se, os pósteros, também, na
ciência; e como o universo se acha regido pelo princípio da unidade que se diversifica na
variedade, os extremos se entrelaçam, à força de se afastarem, possibilitando reencontrar, depois,
a unidade na variedade. A lei dos vórtices, reitora do Cosmo, possibilitará a correspondência
analógica e também simbólica pelo paralelismo existente entre planos diferentes, porém, do
mesmo setor. Esta é a técnica barroca e o método por excelência usado pelo maior de quantos
mestres já existiram, absolutamente ímpar entre todos – Jesus Cristo. O barroco passado é o de
uma adolescência cósmica que se cuidou adulta; tratou-se de um grande estilo usados por
meninos, ou por aqueles que, não sendo meninos, a tais tinham de falar; assuntos de nada pediam
extravagâncias de estilo para se tornarem atraentes. O barroquismo verdadeiro buscará não fazer
efeitos pelo aguçamento do engenho, porque estará ocupado em buscar uma grande verdade
central, por meio de seus pólos opostos téticos e antitéticos. “Assim o Barroco foi uma forma
estilística que se desenvolveu para explicar uma nova concepção do mundo, que só através dele
encontraria o modo ótimo de realizar-se”479. E o grande mundo está aí, tão complexo e
desconhecido, e vário como dantes, a espera dos seus explicadores. A visão futura do mundo
será paramacrocósmica, e o estilo que o explique, meta-barroco, profundo, não pela ampliação
de insignificâncias regionais, como fez o ufanismo seiscentista e setecentista, mas, pela natureza
mesma do assunto que é sintético cosmonômico. O barroquismo passado fez a descrição de
modas em grande estilo; agora é o estilo que se apouca e empobrece diante das gigantescas
premissas que terá de desenvolver. Só com o barroco se poderá conectar, organicamente, em
síntese viva, o Ser, o Todo, com sua antítese, o não-ser, o nada, ou seja, o vortilhão do Deus
imanente, do topos uranos, com a sua última projeção no relativo como ínfimo infra-
microgiroscópio eletrônico. Com esta linguagem, pois, e com este estilo, podemos dizer que a
Substância subjaz a tantas realidades diferentes, quantos são os planos de vida do Universo.
Deste modo a matéria pode ser tão fechada, como aquela em que se deu o colapso dos átomos,
tornando-se, por isso, em pasta nuclear, de tal maneira densa e compacta, que uma agulha de
coser pesa como um arranha-céu (Fritz Kahn, O Átomo, 48); pode, por outro lado ser tão
desencurvada, diáfana, invisível, desmaterializada e luminosa, que nela tudo são luzes e
esplendores divinais, não se podendo quase distinguir os limites da forma, visto como eles se
esfumam, se esbatem e se perdem na policrômica luz do topos uranos.
E consultando o relógio, Árago pediu para deixar o resto para outro dia.
Capítulo IV
Economia
Se digo que os valores éticos não acrescentam ser ao homem, o senhor concluirá que todos os
homens têm igual ser, seja ele um pré-homem macacóide, seja um gênio, seja um serafim.
Admitido que há uma escala de seres que vai do não-ser a Deus, todos os seres estarão
distribuídos por essa escala, não fazendo exceção o homem. Como os homens são diferentes
quanto às qualidades, tenho de admitir que o são quanto ao valor. Evoluir é valorizar-se; é
adquirir valores cada vez mais altos, intelectuais, estéticos e éticos. Por conseguinte, o gênio,
porque possui estas qualidades, tem mais valor do que o pré-homem pitecóide, na proporção em
que um galo vale mais que um ovo. Portanto, sou forçado a retificar minha afirmação anterior, e
dizer que os valores acrescentam ser.
Sorrindo, astutamente, comentou o mestre:
– Você quer dizer, então, que as verdades são relativas, e uma afirmação nossa nunca é
um absoluto. Provisoriamente você disse que os valores não acrescentam ser, porque, dizer o
oposto, implicaria em ter de provar uma coisa para a qual não se tinham ainda feito os
desenvolvimentos necessários. É isto?
– Perfeitamente.
– Então, afirmar que os valores não acrescentam ser, foi mero recurso dialético
semelhante aos artifícios matemáticos sem os quais algumas equações não se resolvem. É assim?
– Exato.
– Diria você, então, que o valor duma árvore, por exemplo, começa na semente que nasce,
cresce, desenvolve-se, chega à plenitude de ser, depois decai, envelhece, morre em pé, e
finalmente cai, apodrece, desfazendo-se em adubo para nutrição de outras árvores; a escala do
seu valor acompanha todo este desenvolvimento natural, de modo que o máximo valor da árvore
coincide com a sua plenitude de vida, de ser. E tal como ocorre com as árvores, os pré-homens
das cavernas fizeram instrumentos, descobriram o fogo que o raio acendeu na floresta, viveram
dos achados, criaram riquezas com as próprias mãos, desenvolveram as trocas de utilidades,
forjaram o dinheiro, organizaram civilizações, valorizaram-se pelas técnicas, pelas artes, pelas
ciências, imaginaram filosofias e religiões, legislaram códigos de ética e de direito, tornaram-se,
alguns, gênios, heróis e santos, e rumam agora para as mais altas criações do espírito. E pondo
lado a lado um troglodita e um Einstein, este vale mais que aquele, apesar de ambos serem
homens. Está certo isto, Bruco?
– Claro que está.
– Logo, São Francisco de Assis é mais ser do que um pré-homem simiesco, porque vale
mais?
– Que dúvida!
– Então os valores acrescentam ser?
– Isso é axiomático!
– E como se explica que os valores, não sendo ser, acrescentam ser às coisas ?
Benedito Bruco ficou pensativo, por certo tempo, respondendo a seguir:
– É mais fácil perguntar que responder. Vejamos como se sai o senhor dessa enrascada!
– Saber perguntar, prezado Bruco, é já saber por metade! Adquirir valores é o mesmo que
subir na escala do ser, mas a primazia não está nos valores e sim no ser, neste recaindo o acento
enfático; não são os valores que fazem o ser, senão que este faz os valores, isto é, em se fazendo
a si mesmo pelo trabalho, pelo esforço contínuo, ascende na escala dos seres que corresponde à
dos valores. Uma árvore vale mais do que uma semente, porque incorporou mais seres na sua
organização, no seu ser; tudo o que está na árvore, e falta na semente, acrescenta ser àquela, e o
valor segue em paralelo a esta aquisição crescente de ser, até sua plenitude. O que se juntou à
semente não foram valores irreais, porém coisas autênticas, mensuráveis e pesáveis; e cada coisa
incorporada tinha já seu valor em separado, e, com a organização, mais se exaltaram. A árvore
apresenta-se, finalmente, como um valor-produto, e não como um valor-soma. Assim, também,
com o homem-símio que, em milhões de anos, se transforma em gênio. Ele incorporou, em si,
experiências, construiu-se nas lutas e tribulações, ampliou a inteligência, desenvolveu a técnica,
forjou códigos, organizou-se em ser social, em sociedades, em Estado, conheceu-se como
substância das formações coletivas superiores das quais ele é simples célula. E ninguém vai
pensar que todas estas aquisições não tenham ser. Uma bactéria está para um homem primitivo,
302
assim como uma célula especializada e integrada de um organismo vivo está para você, prezado
Bruco; uma célula nervosa do nosso córtex cerebral tem que valer mais do que uma ameba, e
esta mais valia guarda relação com o mais ser da célula nervosa. O mais ser da árvore, em
relação à semente de que proveio, pode ser averiguado com a balança e com o metro; o mais ser
de Goethe em relação a um homem-símio, não pode ser demonstrado com a balança nem com o
metro, mas pelo poder da inteligência, do coração, da sensibilidade, da moral, da organização,
enfim, do ser gênio, e não, macaco. Não é, logo, o mais valor que acrescenta mais ser, porém, o
mais ser que representa e lastreia a mais valia. O mais valor decorre do mais ser, e não, vice-
versa; não é o ser que nasce do valor, senão o valor que brota e se sustenta do ser. De maneira,
prezado Bruco, que minha proposição que o embarrancou, era capciosa; eu disse: como é que os
valores, não sendo ser, acrescentam ser às coisas? Não é assim que eu deveria perguntar, – e
cuidado com as ciladas que algumas perguntas armam... Não são os valores que acrescentam ser,
senão que os seres, em crescendo na escala, em se fazendo, em se subindo, adquirem mais valor.
Acha ainda, Bruco, que os valores acrescentam ser às coisas ?
– Ah! agora o senhor não me pega mais! Os valores não acrescentam ser, porque não são.
A mais valia duma coisa decorre do seu mais ser. Uma árvore bela possui mais ser do que uma
feia, depauperada, exausta de vida, prestes a morrer. E duas árvores plenas de vida, uma bela e
outra feia, hão de pertencer a espécies diferentes, sendo a mais bela mais ser, porque mais
evoluída, mais complexa, mais realizada no reino vegetal.
– Muito bem, Bruco. Agora está completo aquele pensamento que progredia e ficou
interrompido em nosso estudo passado, a espera de ulteriores desenvolvimentos de que
dependiam. Então, qual é o ser mais valioso em nosso mundo ?
– O homem. Agora não temo ciladas. Considerando que nenhum ser na Terra é maior que
o homem, este é o princípio e o fim de todos os valores, e é em relação a este padrão supremo,
que todos os demais valores hão de ser considerados.
– Vamos ver, então, como esse homem concebe o seu mundo de valores?
– Vamos.
– Por onde me aconselha devamos começar?
– Proponho comecemos pelos valores úteis, por serem mais objetivos.
Árago se pôs profundamente a pensar, depois do que exclamou:
– Seja então. Que são os valores úteis?
Após considerações silenciosas, Bruco arriscou um definição:
– No próprio nome acho que temos a definição, pois se são valores úteis, não podem ser
senão utilidades. O que não serve para nada, não pode ser considerado valor útil. O valor duma
coisa sugere ao homem o desejo de possuí-la; a desejabilidade duma coisa guarda estreita relação
com a utilidade, com a usualidade dela; por isso, desejabilidade, utilidade, usualidade, valor útil,
conquanto não sejam palavras sinônimas, são palavras afins.
– E acha você que os valores úteis possam ser absolutos, isto é, válidos para todos os
homens e para todas as épocas, e ainda para todos os momentos de nossa vida?
– De modo nenhum. Os valores variam de acordo com a psicologia dos indivíduos, e
ainda, de conformidade com os momentos psicológicos de um mesmo indivíduo. A realidade dos
valores é aparente ou puramente psicológica, não estando neles próprios, senão no espírito que
os considera ou não como valores. Nenhum bem útil pode ser mais desejável do que um cantil
d’água, para quem morre de sede num deserto. O Cavalo de Tróia foi considerado como um
valor religioso, ou seja, uma dádiva dos gregos à deusa Palas, e, por isso, em procissão, os
troianos o conduziram para dentro das muralhas da cidade; porém, depois que se viu Tróia em
chamas, e depois, em cinzas, que troiano havia de confirmar que o presente dos gregos era valor?
Tornando ao teatro da vida, para castigo seu, que juízo faria dos valores o espírito de um faraó,
ao ver violada sua pirâmide que julgara inexpugnável, suas imensas riquezas roubadas e sua
múmia sacrilegamente desfeita em pedaços? Tanto suor, e sangue, e lágrimas de milhares de
escravos, e sobretudo tantas mortes, para nada? O Egito foi uma dádiva do Nilo, e as pirâmides
consistiram no “presente de grego” do mesmo Egito, pois elas, em massacrando e matando o
povo, foi a causa de sua ruína e destruição. O que o Nilo generoso deu, as pirâmides do egoísmo
tiraram para lição e exemplo de que os valores hão de ter um sentido social, ou serão desvalor!
303
– Riqueza é tudo o que significa valor; são coisas materiais de utilidade para os seres
humanos. Enquanto que os valores não têm ser, mas valem, as riquezas têm ser, são realidades
objetivas sobre que se apoiam seus valores. A riqueza é o sustentáculo dos valores, que por isso
subestá a eles. Riqueza é tudo o que pode ser possuído pelos seres humanos. Os valores dão
validade às riquezas, porém estas são coisas objetivas, palpáveis, mensuráveis, concretas,
materiais. A riqueza é a possessão, a propriedade, à qual se atribui valor.
– E quais os meios de se obter riqueza?
– Pela ordem da evolução da humanidade: achando, roubando, recebendo em dádiva,
fazendo e comprando. Os homens primitivos saíam a procurar os frutos naturais da terra e a
caçar; e dado que encontravam alguém com boa provisão de achados, roubavam-nos, ainda
que, para isso, tivessem que tirar a vida a esse alguém. Os homens das cavernas faziam como
fazem os animais, que vivem de achados e de rapinas. Depois aprenderam a trocar parte de seu
achados, por parte dos achados de outrem, formando destarte pequenas comunidades,
comunidades tribais, em que a divisão do trabalho de achar coisas ficava dividido entre os
membros da tribo. Para capturar as presas de grande porte, agiam em conjunto, e dividiam-nas
entre si. Para isto usavam machados e facas de sílex, acontecendo que alguns se ocupavam de
procurar estas coisas já prontas, nas pedreiras. Assim, nasceram os primitivos artesãos que com
umas pedras rachavam outras, até que algumas lascas saíssem com formas apropriadas ao uso.
Estes utensílios tinham valor pelo que serviam, e por isso eram trocados por frutos e caças. A
classe dos artesãos se especializava, e os machados e facas toscos de pedras lascadas, foram
superados pelos instrumentos de pedras trabalhadas primeiro, e polidas depois. Todavia, as
condições de umas tribos não eram iguais às de outras; e como o roubo era uma forma perigosa
de prover-se, porque cada uma defendia o seu, as tribos começaram a trocar entre si suas
utilidades, dentre as quais, as mulheres. Deste modo as mulheres eram vendidas, isto é, trocadas
por outros artigos de consumo; porém, sempre que o forte de uma tribo encontrava o fraco de
outra, o roubo era inevitável, fosse de utilidades, fosse de mulheres, fosse do próprio fraco que
era apresado e ia servir de escravo... ou de comida... ou de hóstia sacrificada ao deus tribal.
– E o dinheiro, Bruco, como surgiu? interrogou o mestre.
– Surgiu da necessidade de se encontrar um denominador comum de valor,
universalmente aceito por todas as tribos. Pontas de lança, facas, machados, carneiros e sal (de
onde salário, soldo, soldado, etc.) eram utilidades comuns que a todos serviam. Então, possuir
bastante destas coisas era ter dinheiro. Mas o homem é um animal vaidoso que sempre quis
melhorar sua aparência; por isso, paralelamente ao dinheiro-utilidade, surgiu o dinheiro-
adorno, feito de conchas, pedras especiais, dentes de porco-marinho, penas, peles e dos metais
preciosos como ouro e prata nativos.
Silenciou Benedito Bruco em sua exposição, e Árago se pôs a meditar longamente.
Rompendo depois o silêncio, interrogou.
– Você não declarou ser o homem a coisa mais valiosa em nosso mundo?
– Sim.
– E como foi considerado esse valor, o homem, através da história?
– Bom. O homem é um egoísta, e seu mundo é o da força e o da astúcia, tudo
eufemizado por belas palavras de efeito retórico. Nisto, estou plenamente de acordo com seu
irmão Aristides Pandagis. Quando expomos a ele uma idéia social qualquer, um plano
econômico, por exemplo, ele arregala seus grandes olhos perscrucientes e pergunta:
– Mas quem é que vai tomar conta de tudo isso? é gente?
– Pois claro que é – respondemos.
– Então não presta, torna ele, porque gente possui os defeitos de gente, e o maior deles é o
egoísmo. Ninguém organiza um plano para proveito de outrem; de maneira que toda aquela
beleza do plano, se posto em prática, redunda em fracasso. O mundo está cheio de belos e bons
planos, assim como de boa intenção, dizem, está forrado o inferno; ou, pelas palavras de Vieira,
“o inferno está cheio de bons propósitos” 480.
E depois de pensar um pouco, prosseguiu Bruco:
– Desde os começos dos tempos, os fortes dominaram sobre os fracos que eram
480 Vieira, Sermões, Ed. das Américas, 2, 248
305
qualificação de “maus”, como a vaidade, a inveja, avareza, a cobiça, a crueldade, a astúcia” 484.
Mais: “Só quem conhece a fórmula de esquizóide possui a chave para entender, em si próprio e à
sua roda, a vida em todas as suas contradições gritantes. O assassino não faz uma questão de
consciência de partir a marteladas o crânio da velha compassiva que lhe deu pousada, para lhe
furtar alguns vinténs. Ao fechar a porta, porém, o olhar cai-lhe no canário; o homicida volta
atrás, despeja o cartucho de alpiste e põe uma xícara de água limpa na gaiola. Uma
envenenadora, julgada em 1950 na Alemanha, no espaço de quinze anos despachara desta para a
melhor vida, uma dezena de “amigas”, com uma xícara de café. O pastor conhecia-a como
pessoa caridosa, freqüentadora assídua do templo. Na cadeia, essa mulher empenhava-se em
converter à fé as companheiras. Frederico, o Grande, foi preso por seu pai, pelas suas atividades
antimilitaristas. Não podendo ser paladino da paz, tornou-se herói guerreiro; empreendeu guerras
de expansão e estimulava os seus soldados, nas batalhas, empunhando o bastão, com a frase que
se tornou clássica: “Pretendem não morrer nunca, “seus” malandros?”485. Mais: “Bernard Shaw
dedicou a sua vida ao ideal de redimir a sociedade humana das sua fraquezas sociais e morais.
Ele próprio não só era interesseiro, mas pouco se lhe dava mostrar que o era. Acumulou uma
grande fortuna de que – outra vez, o esquizóide – não soube fazer uso; vivia frugalmente como
um monge. Nem mesmo os seus subalternos fiéis e dedicados, aproveitaram o que quer que fosse
dessa riqueza. Shaw pagava-lhes, pelo contrário, “salário de fome”, contra os quais reclamava
nas suas obras. “Ele era o último homem a quem poderia ocorrer a idéia de aumentar ordenados
– diz uma sua biógrafa”. – Ocupava-se demais de escrever sobre economia”. “Os ideais dos
homens estão, em primeiro lugar, no papel (Bernard Shaw)”486. Mais isto: “Shaw lembra muito
Schopenhauer de quem tinha quer o senso crítico acerado e a elegância de expressão, quer a
extravagância e o egoísmo mesquinho. O filósofo do pessimismo dormia, com o revólver
carregado na mesa de cabeceira. Pregava nos seus escritos a futilidade dos bens materiais; era, no
entanto, impiedoso na cobrança dos aluguéis; e, no aposento onde escreveu de maneira
incomparável sobre triunfar das paixões, atirou uma inquilina escada abaixo, de maneira tão
desastrada, que teve de lhe pagar uma indenização”487.
E fechando Bruco o livro de Fritz Kahn, falou, olhando para Árago:
– Eis, aí está, o retrato do homem por dentro e por fora, aliás, como o senhor já o fez
noutra oportunidade, nestes nossos serões. Pelo visto, de nada vale escrever belas doutrinas
econômicas, que só são bonitas no papel. Varrão teve a desfaçatez de confundir o escravo com os
instrumentos de trabalho, classificando-o como sendo o de “gênero falante” (o escravo), o
“gênero de voz inarticulada” (os animais), e o “gênero mudo” (os instrumentos de madeira e
ferro)”488. A chamada “Revolução Industrial”, iniciada no século dezoito, foi possível graças ao
advento das máquinas automáticas que suprimiram todo o trabalho rotineiro artesanal; e como
para operar tais máquinas não era necessário um tipo especial de trabalhador, crianças foram
jungidas a elas. “Uma vez que os asilos de menores da Inglaterra e a numerosa prole da classe
operária forneciam abundante suprimento desse trabalho a preços muito baixos, sucedeu que as
novas fábricas foram largamente providas com meninos e meninas de tenra idade, enquanto os
pais deles, privados de mercado para as aptidões que lhes haviam assegurado outrora a
prosperidade e a independência, se quedavam em casa, reduzidos à modesta função de cozinhar
para os filhos e manter a casa mais ou menos em ordem. As crueldades e barbaridades que se
acumularam sobre esses trabalhadores juvenis e os aparelhos inimigos inventados para jungir ao
trabalho os seus corpos frágeis, constituem uma das páginas mais negras da história da
civilização ocidental. Os salários pateticamente baixos que eles recebiam determinaram um
padrão, cujos efeitos práticos e psicológicos nunca puderam ser ainda inteiramente
dominados”489.
E trocando este livro por outro, prosseguiu Benedito Bruco:
– Em toda a Idade Média, que pode ser definida como o milênio da formação da
consciência do bem e do mal, a cobiça, a ganância era considerada pecado grave. “Feio como era
o pecado do turpe lucrum, havia um outro ainda mais condenável: era o pecado danado da
usura, isto é, o pecado da cobrança de juros para a formação e acumulação de capitais. Aqui os
teóricos da Idade Média eram implacáveis. Equiparavam a usura ao adultério e à fornicação.
Monstros de iniquidade, eis a conta em que eram tidos os emprestadores de dinheiro a juros,
antes que aparecesse Calvino no plano da história”497. Acontece que, “na predestinação
calvinista, Deus envia sinais desta prova (a da salvação) com as recompensas que concede ao
trabalho, seja em termos de êxito, seja em termos de riqueza. Ora, como ninguém gosta de
presumir de condenado, a busca da prova de eleição se torna geral, numa aceleração de trabalho
e de procura de riqueza como jamais o mundo conheceu” 498. Eis como “a religião dominante,
que endossava a idéia de que o Senhor recompensa os seus fiéis não só na vida futura mas
também neste mundo fortalecendo a doutrina com preceitos tais como “na casa do justo há
muitos tesouros”, “a sua alegria está na lei do Senhor... e tudo que ele fizer prosperará”, exaltou
ainda mais a posição do homem que granjeia fortuna na comunidade”499.
Fez uma pausa Bruco, e vendo que Árago se agradava em ouví-lo, prosseguiu:
– Num destes nossos serões, eu disse que os homens primitivos, observando a natureza,
acabaram concluindo que Deus é Força e é Astúcia, visto que confere a palma da vitória e o
prêmio da vida ao forte e ao matreiro; a dor, a tragédia e a morte cabem, invariavelmente, ao
vencido, ainda que dócil, meigo e bom. Deus, logo, se compraz na dor, no sacrifício e na morte
do fraco, e goza com os vitoriosos das suas vitórias. Então é preciso fazer-lhe holocáustos para
que ele esteja saciado, e não venha a enfurecer-se contra todos indiscriminadamente, assolando-
os com a seca, com a fome, com a peste e com os cataclismos. Desta idéia surgiu a figura
formidanda de Moloch, o deus amonita, ao qual se sacrificavam criancinhas, jogando-as vivas à
fornalha aquecida ao rubro, que era a boca do deus. Passaram-se os tempos, porém o homem não
passou, continuando a crer no deus da força, no deus que vence, no deus que tem por seus eleitos
os ricos e os poderosos da Terra. Estes é que são os puros, os eleitos, no passo que os pobres e
desvalidos são os proscritos, os réprobos, os perdidos contra os quais sempre foi lícito praticar
toda sorte de barbaridades, como as fizeram os Norte Americanos contra os índios, dizimando-os
às duas margens do Mississipi. Por causa da doutrina calvinista de que estavam imbuídos, “a
grande maioria, a quase unanimidade, via no índio o filho do demônio, o “homem diabólico que
não serve a ninguém senão ao diabo”500. “Calvino, pontífice supremo do “levante dos ricos
contra os pobres”, dos fortes contra os fracos, dos puros contra os pecadores, é furiosamente
contra o pobre”501. Deste modo, “para o protestante calvinista a fraternidade é irrealizável,
porque o mundo está desde sempre dividido entre eleitos e condenados, entre puros e pecadores,
cabendo aos eleitos e puros descobrir os sinais da condenação e segregar ou eliminar os
condenados” E prossegue Vianna Moog:
– “Daí à justificação e aceitação, como fatos naturais, da desigualdade econômica, da
doutrina da desigualdade das raças, e, mais tarde à aceitação de forças ocultas mais poderosas do
que a vontade e a razão (freudismo), e à concepção da luta de classe, em que triunfará o mais
forte (Hobbes, Darwin, Nietzsche, Marx), em contraste com a crença católica e pré-capitalista na
possibilidade da fraternidade universal e da justiça social sob a égide da Igreja, a passagem será
rápida. E historiadores, sociólogos e poetas para entrever as guerras, a matança de índios, não
somente como fatalidade inevitáveis, mas como mandatos da Divina Providência ou do
determinismo que traça para os povos “destinos manifestos”, no sentido de que triunfe o mais
forte e o mais capaz, nunca mais hão de faltar”502.
– É ou não é, concluiu Bruco, que os tempos passaram, mas o homem não passou? O deus
que inspira ainda os homens, acaso não é o Moloch amonita? Para Calvino, “a melhor maneira
de ser agradável a Deus (que deus?) é acumular riquezas”503. Conquanto o calvinismo nasça do
Velho Testamento, o empréstimo ao pobre, sem juros, que Moisés recomenda e Calvino
transcreve, não tem absolutamente sentido. Na verdade, de fato, “este empréstimo sem juros aos
pobres é letra morta no calvinismo, dada a veemência com que Calvino exprobra a caridade e a
pobreza. Nisto Calvino é um perfeito banqueiro: só empresta a quem realmente não precisa”504.
– “O horror que ele tem ao pobre! Pobreza para ele é sinal de danação” 505. Calvino “vê na
pobreza algo intrinsecamente malsão, sinal invariável de ociosidade. E como deblatera contra a
esmola! Condena-a com veemência em quase todas as circunstâncias. A ociosidade do
mendicante era ao mesmo tempo um pecado contra Deus e um mal social, e devia ser reprimido
com toda violência quanto o jogo, a blasfêmia, os excessos no comer e no beber. As casas
deviam ser varejadas pelos censores da comunidade para que não dessem abrigo aos vagabundos
e aos viajantes. Na sua guerra ao pobre, ele não distingue as razões morais das razões
econômicas”506. Cristo disse ser mais fácil passar um camelo pelo fundo duma agulha, do que
entrar um rico no céu: pois Calvino inverte os termos da proposição, trocando a palavra rico por
pobre, porquanto estes são os que não entram no céu, por serem já precitos, amaldiçoados por
Deus já nesta vida, e depois, na outra. Estes “salvos” já nesta vida, aquinhoados pelo deus
Moloch ou deus da força e da astúcia, desenvolveram e aplicaram a doutrina do lassez faire, “a
qual foi tão entusiasticamente aclamada no início do século passado. Os feios aspectos dessa
doutrina econômica são-nos a todos familiares – miséria, pauperismo, os cortiços, greves,
moléstias industriais, o crime, o vício, a guerra, e agora “a pobreza em meio da abundância”, e a
par de tudo isso, sentimentos crescentes de azedume e hostilidade entre os vários elementos da
sociedade”507. O deus da força e da astúcia está agora satisfeito, saciado (estaria mesmo?), pois
viu postos em prática pelos seus eleitos os seus altos decretos; assim, como ele o quis, “as
qualidades que habilitam um homem a lograr êxito econômico em condições de livre
concorrência não são necessariamente, nem geralmente, as que fazem dele um membro útil da
sociedade. Em vez de a uma excepcional atividade, habilidade e capacidade de administração, é
por demais freqüente à excepcional cobiça, astúcia e insensibilidade que um homem deve o seu
êxito neste sistema. Ele o deve, particularmente, à sua habilidade e resolução de explorar, tanto
os recursos naturais como os seus semelhantes. Na maioria dos casos, verifica-se que o que
determinado homem sabe fazer melhor é enganar o próximo”508. Isto é o oposto do que
sonhavam os Enciclopedistas ao exaltarem a idéia da liberdade, a fé na onipotência da razão, a
confiança na bondade natural do coração, e do instinto humano voltado para o bem. Achavam
que, “assim, ao buscar o seu próprio interesse, todos agem de conformidade com o interesse
geral. Basta, pois, dar liberdade aos homens para que o mundo avance em direção da ordem e da
harmonia”509. Seguindo nesta linha “Adam Smith, professor da Universidade de Glasgow,
publica, em 1776 um Ensaio sobre a Natureza e a Causa da Riqueza das Nações que se tornará
a Bíblia da Escola Liberal”510. “Sua teoria econômica possui um fundamento psicológico: o
interesse pessoal. O motor de toda atividade econômica reside no princípio hedonista que impele
os homens à busca do máximo de conforto com o mínimo de esforço” 511. “S. Mill preconiza o
conceito de Homo oeconomicus, este homem abstrato e esquemático, movido exclusivamente
por seu interesse pessoal e atuando num mundo de perfeita concorrência. O princípio hedonista
incita-o à buscar do máximo de satisfação com o mínimo de esforço; esta sistemática procura de
seu interesse pessoal concorda com o interesse geral e o seu exercício não deve sofrer quaisquer
entraves”512.
que acontece em seu mundo, disseram-lhe, aos que, pelo esforço da mente, conseguem chegar à
angelitude. Pelo estudo que fizemos da sua pessoa, e pela ciência que temos da vida primária
como é a do seu mundo, concluímos que, na Terra, vigora ainda a lei natural da força e da
astúcia, tudo ardilosamente velado pelos refinamentos e eufemismos. A justiça, conforme nos foi
dado observar através de nossa pesquisa, se apoia na força, e o vértice, em que se equilibra a
balança do direito, é a ponta aguda duma espada. Em seu mundo, disseram-lhe, quem for
astucioso e forte vence, visto como forja situações e compra falsos – testemunhos. Em economia
política, o capitalismo é a exploração de muitos por alguns, e o comunismo, também, ou seja:
não passa da exploração de todos por uma classe oligárquica, que não abre mão, do poder
discricionário. Por tudo isto, nossa “Máquina Suavizadora”, tornando atrás no feito, repôs sua
personalidade no egoísmo anterior, indispensável à convivência com outros egoístas do mundo
como é o seu. Isto me contou Pompílio Gerião.
Fez silêncio o mestre, e ficou a esperar se alguém se dispunha a defender a tese contrária.
Todavia ninguém ousou impugnar ou refutar esta doutrina dos lulóides. Então, retomando o
filósofo a palavra, prosseguiu:
– Esta, a dos lulóides, é a quarta inversão copernicana. A primeira foi a do próprio
Copérnico que argumentava: uma vez que, considerando a Terra como centro do sistema
planetário, os problemas astronômicos não se resolvem, basta inverter e considerar o Sol, e não a
Terra, como centro, e tudo o mais se aclara. Vem depois Kant com a segunda, e diz: visto como
não pode ser que as coisas nos enviem as suas essências, temos de inverter o enunciado e dizer
que nós é que pomos às coisas as suas essências. A terceira inversão nossa é a que diz: desde que
a evolução se positivou como fato irrefragável, demonstrado, sem contestação racional, que tudo
procedeu do caos, ou a involução e queda do espírito se impõe, e a moral se mantém, ou não há
Deus, ou há, e ele é Moloch do qual não pode decorrer outra moral que não seja a de Trasímaco,
Machiavel e Nietzsche. A quarta inversão copernicana (como quaisquer outras) decorre da
terceira, e pode ser assim enunciada: se, como ficou demonstrado, dentro do egoísmo não há
salvação possível para o mundo, e todas as doutrinas econômicas redundam em estulto
palavrório, não há outro remédio senão aceitar a doutrina oposta à do egoísmo, que é a do amor.
Amor quer dizer altruísmo, e só por aqui o mundo se há de salvar. Deste modo o antigo
problema dos escolásticos de novo se coloca, porém de forma diferente.
– Mas isso é uma utopia, prezado Árago, tornou Bruco, visto representar a inversão do
egoísmo natural do homem!
– Utopia ou não, este é o caminho, e não há outro. Ademais, como já o disse Fritz Kahn,
“a utopia de ontem é a isotopia de hoje”513. A realidade vai ocupando o lugar das fantasias de
outrora. O que afirmo acontecerá infalivelmente, não a curto, senão a longo prazo, na medida em
que o homem se for desanimalizando. Como já o expôs, aí, o nosso Bruco, na Idade Média, a
propriedade, a usura, o apetite de ganho, a cobrança de juros por dinheiro emprestado, tudo era
considerado imoral. Refutando Karl Marx, pergunta Vianna Moog: “Não será antes o caso de
afirmar que não são os fatores econômicos os que governam a história, senão os religiosos, uma
vez que foi o protestantismo e sobretudo o calvinismo que, modificando os conceitos
escolásticos sobre a propriedade, o dinheiro, o trabalho, a usura, possibilitaram o advento do
capitalismo?”514. A ética é que disciplinava a economia e não vice-versa. Jamais, nunca, passou
pela cabeça dos escolásticos que a economia viria tornar-se numa ciência autônoma, numa
ciência do egoísmo, completamente desligada e despreocupada dos aspectos morais.
Preocupados só com os problemas de Deus, os pensadores medievais se postavam no pólo
oposto ao da matéria em que a economia política se lastreia. Os bens materiais, porque servem ao
corpo, como este, eram tidos como meros instrumentos para alçar-se a um fim mais alto – a
salvação da alma. Tudo havia de ser para a glória de Deus – ad majorem Dei gloriam. Lá está a
escultura, a pintura, a literatura, a música e a filosofia para o atestarem. Toda a Idade Média é
uma réplica iniludível ao princípio de Karl Marx segundo o qual “a história se processa
preponderantemente em torno dos fatores econômicos”. Se o estudo de uma simples fase
histórica, como é a do capitalismo, nos autoriza fazer tais generalizações, poderíamos apresentar
513 Fritz Kahn, O Livro da Natureza, I, 68
514 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 67
312
de feiticeiro da lenda, que liberta, na ausência do seu mestre, os gênios malfazejos, e não sabe
como detê-los”518. Pois Henry Ford é o mago, o mestre consumado, que põe cobro aos abusos
dos gênios do mal. Com Ford, o liberalismo deixou de ser uma utopia, desde o momento em que
esse grande homem trocou o princípio do interesse pessoal pelo do interesse coletivo.
E pondo Árago de novo os olhos no livro, continuou a lê-lo para os presentes:
– “O liberalismo é uma utopia, pois baseia-se em quatro princípios contraditórios: o
interesse pessoal, liberdade, concorrência, responsabilidade. Ora, o interesse pessoal pode levar
os homens a usar a liberdade para restringir a concorrência e evitar as responsabilidades.
Portanto, abandonado às suas próprias forças, o sistema não se apresenta em equilíbrio. Urge a
intervenção do Estado no campo da produção, da moeda, do comércio internacional e do salário.
Mas é preciso ir até o socialismo? Não.”519. Ford o demonstrou que não, simplesmente com
trocar o interesse pessoal pelo interesse coletivo. Esta consciência norteará o homem do futuro,
e a concorrência também será trocada pela colaboração. Este, o humanismo econômico. “Tal
concepção leva, em essência, a encarar o homem, não só como mero indivíduo e não só como
mera célula social. Opondo-se ao individualismo liberal, apenas preocupado com o interesse
egoísta, do homem tomado separadamente, e com as suas necessidades materiais, ela procura
considerar as suas necessidades morais e intelectuais, sem isolá-lo das comunidades naturais a
que pertence (família, profissão, nação). Combate, igualmente, os totalitarismos materialistas que
vêem no homem um simples meio de produção e para os quais a sociedade constitui o exclusivo
fim; ela considera, ao contrário, que a pessoa humana tem finalidades próprias e o direito de
florescer plenamente e que, para tanto, deve receber a ajuda da organização econômica e
social”520. Isto já está deixando de ser utopia, precisamente onde floresceu com mais força o
capitalismo. A este respeito recomendo a que vocês leiam o capítulo V da obra Bandeirantes e
Pioneiros de Vianna Moog, sobretudo do tópico 4 em diante. Alguma coisa disso, todavia,
vamos ver aqui, se bem que de modo fragmentário. Aqui esta: “Atente-se, para não ir longe, no
violento contraste entre o pessimismo da civilização americana dos primeiros tempos coloniais e
o otimismo aparentemente definitivo da civilização americana atual. O contraste entre o
pessimismo calvinista e a atual crença na possibilidade de aperfeiçoamento do homem e da
humanidade, por sua própria iniciativa e diligência, não podia ser maior. Chega a ser
chocante”521. Intransigentes em matéria de negócios, “acene-se-lhes, porém, com um princípio
humanitário, e os rochedos, abalados, vão verter a longa distância, na Europa, na Ásia e até na
América Latina e na África, a cornucópia dos seus dólares”522. Enquanto no mundo dos negócios
vigora a férrea lei darwiniana da vitória do mais forte, o norte americano sonha com algo muito
mais alto, qual seja a “possibilidade de aperfeiçoamento moral, com a conseqüente aceitação dos
princípios cristãos de fraternidade, humildade e igualdade”523. É assim que “de George
Washington a Eisenhower, nenhum galgou o poder tão-somente com os seus títulos de sucesso
mercantil. Vale isto dizer que, paradoxalmente, “na civilização talvez mais dominada por
homens de negócio, estes têm de renunciar à esperança de serem reis” 524. Conquanto Polk
tivesse adquirido o Estado do Texas ao México, “nem por isso o seu nome é um nome
maiormente reverenciado. E Jefferson, certamente não é por ter comprado a Luisiana a Napoleão
que é lembrado, senão por ser o autor da Declaração dos Direitos do Homem. Não são, pois, os
presidentes da fase dos grandes negócios os que a América reverencia e ama. Os seus grandes
presidentes são os das mensagens morais – George Washington, Andrew Jackson, Abraão
Lincoln, Woodrow Wilson, Franklin Delano Roosevelt. Neles é que a América se revê” 525. “No
terrível debate da Liga das Nações, em que os Estados Unidos e a Europa são chamados a
definir-se acerca dos problemas da paz, Wilson é o antimaquiavélico por excelência, o homem
novo da América. Ele não parte para a Conferência da Paz com palavras de ressentimento ou de
518 Joseph Lajugie, As Doutrinas Econômicas, 42
519 Joseph Lajugie, As Doutrinas Econômicas, 99
520 Joseph Lajugie, As Doutrinas Econômicas, 144
521 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 208
522 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 209
523 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 209 - 210
524 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 210
525 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 211
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ódio para com o vencido. Pelo contrário, todo ele é um apelo em favor do entendimento sincero
entre os homens e as nações. O tempo não era para retaliações ou reparações, mas para sarar as
feridas da guerra. Em lugar de exprobrar o vencido, estava empenhado numa missão mais alta:
cuidar das viúvas e dos órfãos, amparar os necessitados, assistir aos enfermos e estabelecer a
segurança e a paz entre as nações. A sua mensagem: esquecer o passado e construir tudo de
novo, à base dos seus catorze princípios, os famosos princípios wilsonianos. Tinha tanta
confiança na força persuasiva desses princípios que, aconselhado a fazer-se acompanhar por
senadores republicanos, homens práticos e de grande experiência em assuntos internacionais,
medida política que lhe asseguraria o apoio da retaguarda, repele terminantemente a sugestão: “já
há tratados demais feitos por homens práticos” 526. As raposas da maquiavélica e velha Europa,
“certo, já tinham ouvido falar vagamente num país onde existira um certo Abraão Lincoln e um
certo Thomas Paine, e onde os visionários podiam amanhecer no poder. Mas agora era diferente.
Estavam em presença de um desses raros exemplares da fauna americana. E não acabavam de
acreditar no que viam, pois um tal homem não podia existir” 527.
– “Entretanto (continua Moog), o homem existia, e era apenas o presidente dos Estados
Unidos da América. Mas, apesar de todas as evidências, após os primeiros encontros com
Wilson, Clemenceau ainda teimava: “Wilson está blefando”. E, quando ele e Lloyd George por
fim se capacitaram de que tudo aquilo não era blefe, mas a projeção sincera de profundas
convicções, quase se dão ao desespero”528.
– “Logo, porém, se refazem. Ei-los agora, astutos e formidáveis estrategos de
combinações políticas, a solapar o plano de Wilson. Daí a luta lenta, pertinaz, esgotante, em que
Wilson, combatendo em duas frentes – de um lado contra os maquiavéis da Europa e do outro
lado contra os isolacionistas e reacionários da América – não levaria a melhor. As reservas de
energia física de Wilson acabariam esgotando-se. Sobreveio o primeiro colapso. Uma primeira
transigência, arrancada a um homem enfermo, acarretaria a segunda. E, assim, de transigência
em transigência, de capitulação em capitulação, chegar-se-ia ao Tratado de Versalhes, no qual do
majestoso edifício dos princípios wilsonianos não ficou pedra sobre pedra” 529.
E deixando o dedo indicador dentro do livro fechado, para marcar a página, prosseguiu o
mestre:
– A civilização Norte Americana teve e tem seus altos e baixos, como todas as demais.
Mas, se o Norte-Americano, afeito como é ao trabalho e ao ganhar dinheiro e, sobretudo o do
passado vivia puritanamente, logo, sem muitos gastos, que era feito do dinheiro acumulado?
Acaso ia para fazer mausoléus ou pirâmides? “Nada de mármores imponentes, de legendas
dilacerantes, de saudades irreparáveis. Em lugar do cemitério tradicional, evocativo, grave,
oprimente, um simples campo repousante, dificilmente distinguível de um parque ou de uma
pista de golfe”530. Então, que é do dinheiro? Pois todo ou boa parte do dinheiro foi para a
fundação e manutenção de universidades, em cuja fachada vai as iniciais do nome do morto.
“Ao morrerem, esses duros capitães de indústria, esses impermeáveis banqueiros, esses
autocratas para quem o dinheiro parecia a única preocupação, legam toda a fortuna ou parte dela
a hospitais, a universidades, a obras de benemerência social indiscutível” 531. É assim que,
juntamente com um George Washington, com um Abraão Lincoln, com um Woodrow Wilson,
com Franklin Delano Roosevelt, se perpetua a memória de um Henry Ford, de um Audrew
Carnegie, de um John Rockefeller. Inútil será procurar seus nomes nos mausoléus de Cária, nos
caixões de pórfiro posto às costas de elefantes... E na vida social ou privada, o norte americano é
alegre, comunicativo, não fala nem de miséria nem de doenças; suas alegrias são partilhadas
coletivamente, porém as dores, não. “Valente, piedoso, ágil, trabalhador, dócil e brando com os
humildes, amigo e protetor dos animais – não esquecer este aspecto, que é importante –
arrogante até à insolência com os poderosos, nenhuma virtude lhe deve faltar”532.
526 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 211 - 212
527 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 213
528 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 213
529 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 213
530 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 215
531 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 209
532 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 219
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E após uma pausa para a reflexão, em que o pensador reunia novas idéias, continuou:
– Até o fim da Idade Média, economia e ética não se excluíam, e antes, a economia estava
subordinada à ética. “Compreende-se: o capitalista, enquanto capitalista, só pode ser católico
pela metade. Um católico, como capitalista, será sempre um capitalista canhestro. Em ambos os
casos estaremos em presença de um cisma da alma, este cisma que, além de dar lugar ao triunfo
do capitalismo dos povos protestantes, será o grande responsável pela decadência dos povos
peninsulares. Paradoxalmente – e este é um paradoxo que o materialismo histórico não explica –
esta tendência vai começar no momento exato em que portugueses e espanhóis põem a mão nas
mais fabulosas fortunas que o Ocidente jamais conhecera”533. “Enquanto os protestantes,
sobretudo os calvinistas, com a colaboração dos judeus expulsos da Península, na Inglaterra, na
Alemanha, nos Países-Baixos, na Suíça e, em menor escala, na França e na Bélgica, vão
estabelecer a lei da oferta e da procura, da livre concorrência, inventar a letra de câmbio, os
títulos ao portador, reabilitar os juros, fundar as companhias por ações, enfim, plasmar as
condições econômicas do mundo moderno, a alma católica de portugueses e espanhóis,
preparada para o heroísmo e a fé, vai debater-se entre a ambição de riqueza, cuja manipulação
entregara anteriormente aos judeus para não por em risco a própria salvação, e o direito
canônico, numa indecisão que deveria durar quatro séculos e que só acabaria – se é que tenha de
todo acabado – quando, pela internacionalização do capital, os povos protestantes, sob pressão,
obrigassem Espanha e Portugal a aceitar as suas regras” 534. Por esta época, em assuntos
econômicos, “dir-se-ia que Portugal e Espanha estavam apostando em ver qual dos dois
praticaria maiores desatinos”535. Essa consciência francamente ainda medieval dominou os
primórdios de nossa colonização.“Era a Idade Média, superada na Europa, que se prolongava de
mil formas na América Latina: na arquitetura, na escultura, na pintura, na legislação, nos
costumes”536. Com a Renascença, o individualismo se alastrou de maneira nunca vista, e foi
então, que surgiu o amoralismo econômico em substituição da norma do lucro moderado
medieval. O Renascimento e a Reforma, sobretudo a de Calvino, são responsáveis por isto: “Pela
primeira vez, vemos o pensamento econômico abstrair-se das considerações éticas”537. Todavia,
o mundo, inclusive o econômico, não pode caminhar sem uma ética, e a ética nasce, ou da
religião, ou da filosofia. Ora, as filosofias realistas e idealistas não podiam fornecer uma ética
que perdurasse depois de Darwin e Spencer cujas doutrinas, logicamente, não conduzem a moral
nenhuma, a não ser a de Nietzsche. Como se vê, a descoberta dos fatos e provas da evolução pôs
em cheque os princípios religiosos, cavando um abismo entre fé e ciência. E as filosofias atuais,
chamadas novas, não são sistemáticas; aprofundam muitos assuntos sumamente interessantes,
porém, não fornecem base nenhuma para a ética. Muitos são até pessimistas quanto ao fim da
humanidade, achando que tudo vai levar a breca, e que mergulharemos, de novo, na barbárie.
E recostando-se, contente, na cadeira giratória, e com um sorriso nos lábios, prosseguiu o
filósofo.
– De agora em diante, todavia, não será assim, pelo menos para vocês que me ouvem.
Uma vez que a evolução se positivou como fato incontestável, a queda dos espíritos do topos
uranos se impõe como uma necessidade inexorável para a sobrevivência da ética. Vista por este
prisma, a economia terá de reformular-se, não mais em base do egoísmo, mas sobre os
fundamentos do altruísmo. O interesse individual terá de harmonizar-se com o interesse coletivo.
Viver para outrem não será uma frase oca, vazia, suspensa no ar, como ocorreu na doutrina de
Augusto Comte. Será uma imposição a todo o sujeito que pensa, porquanto a sua desinversão, a
sua salvação, a sua felicidade não se realizará a não ser através do amor. Tudo o que provocou a
queda e mantém os homens separados, em conflito, em pé de guerra, será, paulatinamente,
substituído pelos valores contrários. Isto é o que faltava: uma visão do mundo que abarque os
dois meios ciclos, o involutivo ou da queda, e o evolutivo ou da volta para o topos uranos, para
Deus. Realizada a reforma do homem, operada a sua desinversão de dragão em anjo, qualquer
doutrina econômica, ou política, ou religiosa será boa, porque o egoísmo, este pecado original
por excelência, estará superado pelo seu princípio contrário, o altruísmo, que quer dizer amor.
Então podemos antever uma humanidade sem pátrias que as separem, unificadas por uma só
língua, o Esperanto, sem guerras, e com uma só bandeira que enxergo branca, com um estrela
verde ao centro, e no meio desta a pombinha branca da paz com seu ramo de oliveira no bico.
Cada povo terá duas línguas: a nacional e o Esperanto; a primeira para uso cotidiano, sujeita às
inovações e acomodamentos; o Esperanto será fixo, como o quis, sabiamente, Zamenhof, e só se
enriquecerá de novos e necessários termos, depois de propostos e aprovados pela academia
mundial. Ninguém terá o direito de criar vocábulos novos, exceto aqueles das combinações, já
previstos pela própria língua internacional. E quando se diz que o Brasil será o coração do
Mundo e a Pátria do Evangelho, não se faz uma afirmação gratuita. “De efeito, se nos
perguntassem qual o aspecto mais alto, mais edificante e significativo da civilização brasileira,
não teríamos a menor dúvida em indicar a quase inexistência de problemas raciais
intransponíveis”538. E este, que quase inexiste para o Brasil, é o maior problema dos Estados
Unidos, porque será impossível que os brancos lá se miscigenem com os pretos, ou que estes
sejam, de novo, devolvidos à África. Neste sentido de indiscriminação racial, o Brasil
desenvolveu-se em progressão geométrica, no passo que os Estados Unidos não o fizeram,
efetivamente, em quase nenhuma progressão. Não há dúvida nenhuma que a formação católica
do Brasil, quanto à confraternização racial, o colocou na dianteira em relação à América do
Norte de formação protestante calvinista. A América do Norte pode ser mais rica, mais poderosa,
do ponto de vista material, do ponto de vista econômico, pronta, por isto, para lutar e vencer no
sentido darwiniano da força. Acontece, porém, que o homem terreno está em via de
desanimalizar-se – este, o seu destino – donde vem que ser maior no mundo do bruto, é estar
atrás. Trocando-se os sinais da equação, o que era mais fica menos; e quanto maior era no mais,
tanto maior fica no menos, o que vale dizer, mais próximo da nulidade absoluta, que é o menos
infinito da escala relativa de valores. E há mais isto: como o Estados Unidos acreditaram na
força do seu ouro, das suas armas, da sua técnica, criaram este determinismo histórico que tem
de ser esgotado, agora, na terceira guerra, a maior e mais calamitosa que o mundo jamais viu. E
porque a grandeza do Brasil se mede noutra dimensão, pouco ou nada terá a ver com essa guerra
que virá. O Brasil sempre foi pela paz, e todos os seus problemas de fronteira foram resolvidos
pacificamente; até a dívida de guerra do Paraguai foi perdoada, e não há nenhum ressentimento
contra aquele povo irmão.
– Mas essa guerra não poderá ser evitada, perguntou Chilon Aquilano.
– Não.
– Por que?
– Porque um recipiente prestes a derramar-se, não se esvazia pondo-se nele mais água.
Resolver o problema da paz pela força, pela corrida armamentista, é pôr mais água no vaso já
cheio. A máxima romana que diz: “se queres a paz, prepara a guerra”, já mostrou, na história, o
seu resultado. Por isso a terceira guerra é inevitável. Os povos que acreditaram na força, serão
traídos por ela, porque a força é a fantasiosa crença do demônio. Conquanto a história não possa
ser prevista, por causa de nela não haver exatidão, nem clareza, nem lógica, nem calculabilidade,
em grosso, porém, ela se prevê. Uma vez postas em ação as causas, os efeitos não poderão ser
evitados, assim para os indivíduos, como para as sociedades, povos e nações. O mundo creu
demais na força e na astúcia, para que agora não colha os frutos inexoráveis. Todos tremem de
medo da guerra, mas o caminho para evitá-la, está errado. As discussões pró desarmamento
ficam só em palavras, causando riso a toda gente, porque, no fundo, o que cada um quer é
enganar o outro, donde vem este paradoxo: a par dos tratados pró paz, armam-se, cada vez mais,
as nações. Logo, o que cada um quer é que o outro acredite na mentira, e se desarme. “Jogue o
teu pinga fogo no chão, e brigue que nem homem!” – disse um bandido ao outro. E pensando
este que a briga era para ser corpo a corpo, por meio de socos e pontapés, jogou fora o revólver.
Então, o primeiro muito comodamente, sacou de sua arma e disparou, matando o adversário.
Deste modo, quando as forças se igualam, o desempate terá de fazer-se pela astúcia... pela
mentira. Todavia, sendo os dois matreiros, ardilosos, um recurso só se lhes antolha: o choque, a
538 Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, 28
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destruição e a morte de ambos. Por tudo isto, meu Chilon, acho que a terceira guerra será
inevitável.
– O senhor é muito pessimista – interveio Alcino Licas.
– Sou-o, e não o sou. Ninguém mais pessimista que eu, no que concerne à vitória pela
força, se considerada a longo prazo; e ninguém mais otimista, no que se refere à vitória da justiça
e do amor. Por muito tempo ainda teremos o desgosto de ler nos jornais cabeçalhos assim: “Vila
Guilherme, Século XX: homem apodrece sob a ponte”. Trata-se de um tuberculoso, abandonado
pelo poder público, cheio de bernes e de bicheiras. (Diário da Noite Nº 12.886 – 20-09-67). Ou
então, pelo mesmo jornal: Criança de três anos morta pela própria mãe, com três foiçadas, uma
no pescoço e duas na cabeça, porque... mexeu na lata de açúcar.
E por certo tempo Árago manteve no rosto a expressão de asco, de nojo; porém, depois,
tornando pouco a pouco ao seu normal, prosseguiu, com o que vinha dizendo:
– A guerra é inevitável, porque a besta humana, o homem dragontino que somos, terá de
ser virado pelo avesso. Contudo, um dia, as técnicas estarão tão evoluídas, que não será mais
necessário, como agora, a matança dos animais, pelo menos dos animais; gigantescos
laboratórios industriais farão a síntese dos compostos químicos, produzindo todos os alimentos
artificialmente. Não haverá estradas longas como agora, porquanto todo o tráfego far-se-á pelo
ar. Florestas imensas cobrirão a face da Terra, e nelas habitarão animais respeitadores do
homem. A superprodução industrial será eliminada por menos horas de trabalho, e todos terão
tempo para enriquecer-se da cultura, da estética e dos valores morais. A jardinagem será
“hobby” de milhões, e ninguém será obrigado a um trabalho de que se desagrade. Todo o
trabalho será um flanar criador, como já o disse num destes nossos serões. Nenhum sentimento
será maior do que o profundo respeito pela dignidade humana, e o da certeza de que os homens
são e serão diferentes para se integrarem como unidades complementares na formação de novas
unidades coletivas mais altas, mais complexas e maiores. Haverá também, depois disto, o
respeito profundo pela vida, e o homem se envergonhará no dia em que, fazendo uma violência
contra um animal, com isto dê a si mesmo prova de força. A força estará banida, para sempre, e
em seu lugar reinarão, entronizadas, a Justiça e o Amor. Neste mundo que virá, tenho disto a
mais absoluta certeza, Cristo será o modelo do super-homem, a ciência e a fé estarão para sempre
irmanadas, e os templos da veneração a Deus, serão vastas universidades, circulares, rodeadas
por jardins floridos. Tratar-se-ão ali de todos os saberes, e a filosofia estará, de novo, no
pináculo, como rainha de todas as disciplinas do espírito. Da escola de filósofos sairão os
melhores para todos os postos de comando político, como sonhara Platão, o filósofo do futuro
(Huberto Rohden). O mais alto poder estará enfeixado nas mãos dos detentores da mais alta
sapiência, não particular, específica, filamentar, porém geral, enciclopédica, no mais vasto
humanismo que possa a mente humana de então suportar; não se trata de erudição assombrosa,
somente, de portentosa memória, mas de síntese suprema que tudo abarca e converge para a
unidade Deus. E como a filosofia, todas as artes terão este sentido barroco de unidade e
grandeza, porém, sem os aspectos negativos do barroquismo. Será um mundo sem misérias, sem
dor nem guerras, o que nos espera em futuras reencarnações. Um mundo sem doenças, sem
câncer, sem ladrões nem desonestos, em que os poderes psíquicos parapsicológicos e espíritas
serão corriqueiros. O contato entre vivos e mortos será comum, e os fenômenos das aparições e
materializações serão filmados com material infra-vermelho. Os fenômenos de voz direta dar-se-
ão com o auxílio de sensíveis amplificadores eletrônicos, de modo que a potência das vozes
poderá ser mínima. A morte será, para todos, um plácido adormecer, sem o desespero nem o
medo animal. A genética terá penetrado o mistério dos gens, e nesta especialidade não haverá
mais segredo algum. Banco de ovos humanos estarão abertos para os fornecer a quem os queira
incubar, pois será melhor gestar um ovo bem dotado, geneticamente, do que gerar os filhos
próprios geneticamente defeituosos. Este é o mundo róseo dos meus sonhos, e para lá me dirijo
desde agora, conforme mo permitem as contingências humanas atuais. Oxalá, vocês, aqui, me
queiram acompanhar!
E dizendo isto, deu o mestre mostras de ter concluído os estudos deste dia. Então, a
pequena assembléia tumultuou-se, por causa dos vários assuntos que os grupos isolados
passaram a tratar. Pouco a pouco cada um se foi embora, e, por último, Chilon. De longe, este,
318
ainda, olhando para trás, via a sala de Árago toda iluminada, pois o filósofo se deitava sempre
muito tarde. De certo ficara meditando no belo mundo dos seus sonhos, na sua linda utopia cor
de rosa.
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