03. CE2023!24!1-Natureza Da União Europeia

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Capítulo II.

Da natureza da União Europeia

II.1. Uma organização internacional com características próprias

II.1.1. O que é a União Europeia?

A UE nem sempre se chamou assim. Inicialmente foi constituída por “Comunidades”


designadas como tal: a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), depois a
Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia da Energia Atómica
(CEEA), todas criadas nos anos 5040. Com o tempo, foram dotadas de um corpo
institucional único, uma presença internacional comum e, já nos anos 90, com o Tratado
de Maastricht, um chapéu comum, a UE41. Em 2002, a CECA deixou de existir, por se ter
concluído o período de 50 anos previsto pelo respectivo Tratado (era a única das três
Comunidades com um tempo de vida previamente estabelecido). As duas restantes
Comunidades mantiveram-se até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 1 de
dezembro de 2009, e nessa data deram oficial e formalmente lugar à União Europeia,
tendo desaparecido dos tratados a designação "Comunidades".

Cada uma das Comunidades originárias tinha objectivos específicos próprios,


genericamente de natureza económica: a CECA visava a gestão comum dos recursos do
carvão e do aço, a CEEA a dos relacionados com a energia atómica e a CEE a integração
pelo comércio, através da construção de um mercado comum. Com o passar dos anos –
e as sucessivas revisões dos tratados originais – o horizonte da unificação europeia
alargou-se, abarcando sempre novos domínios, estabelecendo novos objectivos e
políticas.

A designação “construção europeia”, muito usada para identificar este processo, é bem
o espelho da sua permanente evolução, aquilo que muitos designam de
“aprofundamento”, em geral contraposto ao alargamento42.

40
À CEE, mais tarde, após a entrada em vigor do Tratado de Maastricht (em 1993), passou a chamar-se
apenas Comunidade Europeia (CE).
41
Assinado em Fevereiro de 1992 e entrado em vigor a 1 de novembro de 1993, o Tratado de Maastricht
ou da União Europeia não lhe atribuiu personalidade jurídica; esta consiste na capacidade de uma
organização de ser titular de direitos e obrigações internacionais, colocando-a assim a par dos Estados-
membros enquanto sujeito de direito, por um lado, embora como entidade distinta desses mesmos
Estados pela sua natureza. Até ao Tratado de Lisboa, só a Comunidade Europeia teve esse estatuto.
42
A terminologia “construção europeia” não parece ser uma designação neutra, já que o termo aponta
para um voluntarismo muito específico, ao qual não é alheia uma visão ideologicamente comprometida

26
Tecnicamente, a UE constitui uma organização internacional supranacional,
caracterizada por objectivos de integração ambiciosos. Juridicamente, é o resultado de
convenções (ou tratados) internacionais – de base intergovernamental – que criam uma
nova entidade jurídica. Na prática, e em particular por força dos domínios em que opera
e dos seus princípios fundadores, é um lugar de confluência de muitos saberes e
ciências, da economia ao direito, passando pela filosofia, as relações internacionais ou
a ciência política.

Organização internacional com mais de 50 anos de existência, gerada em tratados


internacionais de génese intergovernamental (por contraposição, por exemplo, a um
processo constitucional), a UE baseia-se em ideais e princípios próprios, objectivos
concretos e políticas que os visam concretizar. Tem um corpo (ou quadro) institucional
único, dispõe de recursos próprios e de um direito específico e autónomo, o direito
comunitário, ou europeu, terminologia mais correcta após o desaparecimento das
"Comunidades".

A ter de definir de modo lapidar e sumário a União por aquilo que prossegue, basta
referir tratar-se de um mercado único: os vários mercados nacionais transformados num
só mercado interno através da liberalização das trocas de produtos, serviços e capitais
e da livre circulação dos trabalhadores43. Todas as outras políticas – inclusivamente a
própria união aduaneira, ainda que originária -, são subsidiárias e tributárias desse
mercado, que inicialmente foi comum (o “mercado comum”) e mais tarde, com as
reformas dos tratados, se passou a designar de mercado interno (ou único).

Para poder cumprir os seus objectivos, a UE baseia-se num sistema de competências


organizado da seguinte forma: a União reparte com os Estados-membros o poder de
decidir nas muitas áreas que lhe foram cometidas pelo direito comunitário; essa
repartição, como veremos mais à frente, baseia-se no princípio da atribuição e foi

com o processo europeu; não se trata contudo de um conceito determinista, que aponte a unidade
política como fim único inexorável (o federalismo), ideia aliás hoje em dia irrealista e desmentida pelos
factos. Quanto à contraposição alargamento/aprofundamento, trata-se de um tema objeto de abundante
discussão em períodos de alargamento e, muito em particular, do grande alargamento aos países de leste
e sul europeus, ocorrido entre 2004 e 2013 com a adesão de 13 novos membros.
43
Ainda que sujeitas a considerações de ordem e saúde públicas e de salvaguarda dos aspectos mais
sensíveis relacionados com as soberanias nacionais.

27
tradicional e maioritariamente determinada pelas fontes não legislativas do direito
comunitário, em particular a jurisprudência e a doutrina44.

Quem faz o quê, entre todo e partes (União e membros), está desde o início na base de
uma das mais importantes discussões teóricas e políticas sobre a construção europeia.
O Tratado de Lisboa, a partir de 2009, explicitou os termos exactos dessa repartição45.

Todos estes aspectos seriam, contudo, irrelevantes, se as decisões da União pudessem


ipso facto de uma decisão soberana autónoma, legislativa ou não, ser modificadas ou
anuladas por um Estado-membro. Isso tornaria impossível fazer avançar a construção
europeia, tornando-a irrelevante na prática. Por essa razão tem tanta importância, na
tessitura dos princípios, o primado da lei comunitária, isto é, o princípio segundo o qual
as leis comunitárias primam sobre as nacionais, que não as podem pôr em causa46. A
não existir esse princípio, todo o processo seria por definição um oxímoro, isto é, uma
impossibilidade em si mesmo.

A UE dotou-se também, desde os primeiros anos do processo, de políticas próprias,


previstas nos Tratados originais como factores de correcção, reforço ou
aprofundamento do mercado comum. Elas foram aumentando em quantidade e
importância, com cada vez mais sectores “comunitários” subtraídos às soberanias
nacionais, em geral por via informal (de facto)47. São já poucas as dimensões soberanas
típicas dos Estados que escapam à construção europeia.

As primeiras reformas dos Tratados, que tiveram lugar nos anos 80, iniciaram um
processo de consagração e consolidação da comunitarização de um número sempre
crescente de domínios da vida pública dos Estados. De certa forma, o Tratado de Lisboa
concluiu esse processo, ainda que introduzindo novos (e originais) factores de
flexibilidade, como a possibilidade de reversão de políticas europeias para a esfera

44
Capítulo V.2.
45
Idem.
46
Capítulo VI.1.3.1.
47
É em parte o fenómeno conhecido como de integração sucessiva, segundo o qual a integração num
sector leva inevitavelmente a pressões resultantes da crescente interdependência dos sectores, tornando
inevitável o alastramento, ou spillover. Muitos outros factores, contudo, explicam o crescimento das
competências comunitárias em detrimento das nacionais.

28
nacional, em nome nomeadamente do respeito pelos princípios da subsidiariedade e da
proporcionalidade48.

A UE, como referido, dispõe de um quadro institucional único. Trata-se de uma


característica especial, pela manifestação de singularidade e excepcionalidade que a
impõem no mundo das relações internacionais; há apenas uma Comissão – um
executivo -, um Parlamento, um Conselho (que legisla) e um Tribunal. Há inclusivamente
um Banco Central, muito à imagem dos bancos centrais dos Estados que a integram.

As instituições europeias são autónomas, dotadas de uma legitimidade no mínimo


indirecta e têm visibilidade na cena internacional49. Decidem, em cada vez maior
número de casos, de acordo com a regra da maioria. A alteração introduzida pelo
Tratado de Lisboa fez chegar a quase 95% dos casos essa forma de decidir por parte do
Conselho50. Fica mais reduzido o espaço das soberanias nacionais, mas torna-se mais
eficaz a decisão no seio da UE.

Refira-se ainda que a União é uma organização internacional dotada de autonomia


financeira, dispondo de recursos próprios, baseada no primado do Direito (rule of law)
e num equilíbrio fundamental entre as três dimensões puras das relações internacionais:
supranacionalidade, intergovernamentalidade e multinacionalidade.

Para além da natureza política e da organização das relações com os Estados que a
compõem, a UE assenta em múltiplos outros factores que fazem dela o que ela hoje é:
os seus valores, como a democracia, o acima referido primado do direito, o respeito
integral pelos direitos humanos e pela não discriminação sob qualquer pretexto; a
unidade como eixo estruturante da coesão interna; a igualdade e a não discriminação
em função da nacionalidade; a solidariedade entre os seus membros, que também
contribui para a unidade; a diversidade de identidades (nacionais e colectivas) que a
compõem e fazem a sua força; o multilinguismo como pilar da comunicação entre os

48
Ver capítulo V.2.2.
49
A sua legitimidade é cada vez mais, também, direta: os membros do Parlamento Europeu são
diretamente eleitos em actos eleitorais europeus. O Presidente da Comissão é eleito pelo Parlamento
Europeu. Veja-se em II.4.4. o tema da “legitimidade democrática da União Europeia”.
50
No âmbito da generalização do processo de co-decisão, capítulo VIII. O Conselho decide por uma dupla
maioria, de número de Estados-membros e percentagem da população.

29
cidadãos europeus; a cidadania europeia, que acrescenta direitos e confere proteção; e
um lema crucial, que define a sua natureza: unidade na diversidade.

II.1.2. O método comunitário e modelos alternativos de integração

A expressão método comunitário designa um dos elementos mais importantes


caracterizadores da chamada construção europeia. Consiste num método determinado
pela natureza do processo e pela tradição histórica da integração europeia, a par de
muitas outras formas e processos de colaboração e relação entre soberanias. Remete a
sua génese aos tratados originais e às ideias de alguns “pais fundadores”, com destaque
para Jean Monnet. Eis como um director da Fundação Jean Monnet o define, baseando-
se na análise das suas intervenções, orais e escritas, bem como na sua influência:«O
método comunitário consiste na delegação de poderes soberanos das nações a
instituições comuns e à fusão de uma parte das soberanias nacionais, sujeitas ao
interesse comum”51.

O método comunitário aplica-se ao primeiro pilar da UE – ao plano comunitário


propriamente dito –, na sequência de Maastricht. Com o advento do Tratado de Lisboa,
aplica-se ao TFUE embora com vários afloramentos no TUE52. Contrasta com o método
intergovernamental, sendo este como que o seu oposto, baseado na cooperação entre
agentes com idêntica dignidade e capacidade de decisão (aplica-se em geral aos
segundo e terceiros pilares ou, após 1 de dezembro de 2009, em parte à política externa
e de segurança comum) 53.

51
Grin, Gilles, «Méthode communautaire et fédéralisme : le legs de Jean Monnet à travers ses archives»,
Fondation Jean Monnet pour l’Europe, Collection débats et documents, numéro 2, Lausanne, setembro
2014, pág. 4.
52
Veja-se mais à frente, no capítulo V.1, a natureza e estrutura dos vários tratados. Após Lisboa, o Tratado
passou a dividir-se em duas partes separadas fazendo parte de um único dispositivo, o Tratado da União
Europeia propriamente dito (TUE) e o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). A
utilização do termo Tratado da União Europeia, sem mais referências, refere-se ao conjunto.
53
Havendo naturalmente muitos outros possíveis, bem como formas mitigadas de uns e outros. É por
exemplo o caso do método utilizado no âmbito da Estratégia de Lisboa (objectivo 2010) e designado
“método aberto de coordenação” (veja-se o capítulo X.2). Representa um novo quadro de cooperação
entre os Estados-Membros a favor da convergência das políticas nacionais, com vista à realização de
objectivos comuns, com pouca participação das instituições europeias (a Comissão resumida a uma
função de vigilância, PE e TJUE quase totalmente afastados do processo).

30
Como bem salienta Grin, trata-se da fusão (ou partilha, termo talvez menos agressivo e
nem por isso incorrecto) de partes das soberanias nacionais e não da sua perda54: isto
é, a integração europeia consiste no reforço dessas soberanias e não no seu
enfraquecimento – sendo este talvez o ponto crucial. Por outro lado, o método tem
evoluído ao longo dos anos.

São vários os elementos que caracterizam o método comunitário, sendo talvez o mais
importante o “interesse comum”. É esse o objeto servido pela fusão ou partilha de
poderes ou competências, e é ele, in essentia, que justifica a própria ideia de integração.
A guardiã do interesse comum, nos termos dos tratados ab initio – e no espírito da
própria arquitectura institucional –, é a Comissão europeia, o executivo da União, donde
aliás decorre a sua relevância e até a polémica recorrente sobre a extensão do seu
poder, num permanente braço de ferro com os poderes nacionais.

Ora a interpretação do interesse comum por parte da Comissão tem oscilado ao longo
dos anos, na medida quase direta da sua preponderância no sistema europeu de
decisão: fraca e contestada aquando da crise de 1965, períodos de grande afirmação
(vg. 1986 e anos seguintes, com Jacques Delors), de novo uma clara hegemonia dos
Estados, na dimensão intergovernamental assumida pelo Conselho Europeu, a partir da
segunda década do século XXI. O enfraquecimento do executivo europeu é
normalmente acompanhado pela diminuição do método comunitário e o contrário é
igualmente verdadeiro.

Relativamente aos elementos de natureza operativa ou funcional, releva em primeiro


lugar a maioria qualificada no seio do Conselho, onde se reúnem e votam a legislação
europeia os representantes dos governos nacionais (ie., no plano em que confluem as
soberanias nacionais com a dimensão europeia ou supranacional), hoje em dia em
cooperação quase total com os representantes eleitos pelos cidadãos europeus, no

54
Gilles, cit., idem.

31
Parlamento Europeu55. E a política dos pequenos passos, que mais não é do que uma
ideia de gradualismo funcional56.

Outros elementos básicos do método comunitário:o poder/dever (ou direito, conforme


a maioria da doutrina) de iniciativa da Comissão Europeia, um quase monopólio; o
quadro institucional único da UE, com a característica sobreposição de competências e
a suficiência absoluta das instituições europeias para a adopção e execução das
políticas; e a uniformidade do direito comunitário e respectiva interpretação por parte
do Tribunal de Justiça europeu.

Assim caraterizado, o método comunitário está hoje balizado por três princípios bem
determinados e obrigatórios: o primado e o efeito directo do direito da União, que não
constavam dos tratados originários e foram afirmados pela jurisprudência europeia57; o
princípio da atribuição ou da especialidade, relativo à repartição dos poderes entre a UE
e os seus membros, originário do Tratado de Roma; o princípio da proporcionalidade,
que regula o respectivo exercício58; e, reconhecido muito mais tarde, no Tratado de
Maastricht, foi o princípio da subsidiariedade, relativo também ao exercício das
competências pela União59.

Em resumo, como quer alguma doutrina, a característica singular deste método é, na


construção europeia, a sua centralidade face a outros métodos ou soluções de
governação. O método comunitário está para a supranacionalidade como a
intergovernamentalidade para o método intergovernamental. Este implica a
unanimidade para a formação da decisão. Essencialmente, também, desestrutura os
elementos em que se baseia o método comunitário, como a unicidade do quadro

55
Em bom rigor não há uma verdadeira hierarquia dos elementos referidos na caraterização do método
comunitário. E não há também uma categoria de atos ou políticas baseadas na dimensão ideal desse
método, que é afinal mais um desígnio relacionado com a natureza especial (ou específica) do processo
de integração europeia do que um modelo rígido. Mais um arquétipo do que um conjunto de critérios,
afinal.
56
Um neo – funcionalismo assente numa transferência sucessiva e gradual de competências, que tendem
a alastrar (spillover) de domínios técnicos para áreas mais próximas da soberania restrita dos Estados,
como a segurança ou a defesa. Veja-se a este respeito o capítulo II.4.2.
57
Capítulo VI.1.3.
58
Capítulo V.2.2.
59
Idem.

32
institucional ou o monopólio da iniciativa por parte da Comissão Europeia, sempre
questionado e nunca, até hoje, alterado.

As políticas adoptadas por unanimidade, em relações tradicionais entre os governos dos


Estados-membros, assentam quase sempre em menores denominadores comuns,
prevalecendo numa óptica autónoma os interesses nacionais em detrimento do
interesse comum acima referido.

Alguns autores negam centralidade ao método intergovernamental, considerando


tratar-se de um processo em permanente erosão (quer para o lado do método
comunitário, quer mesmo para uma pura e simples renacionalização). Não parece fácil
acolher a tese. O método vigora na diplomacia tradicional desde sempre: significa tão
só que apenas com o acordo unânime dos membros se pode concretizar uma
determinada política comum, em particular se pertinente ao núcleo fundamental da
soberania dos Estados.

Ora a UE, com a sua natureza de objecto sui generis e a se, difícil de reconduzir a modelos
tradicionais, terá sempre uma dimensão intergovernamental, quer como salvaguarda
de determinados planos da soberania nacional considerados fundamentais, quer
mesmo – numa perspectiva funcional – como elemento central de uma maior
flexibilização do processo de integração, aliás aparente na evolução decorrente do
Tratado de Lisboa e nos últimos anos pós-crise (supondo a crise superada, o que parece
longe da realidade) 60.

Por outro lado, e em especial na última década, as crescentes dificuldades do método


comunitário e as inúmeras áreas de conflito, ou mesmo de ruptura, entre o objectivo da
supranacionalidade e as chamadas "soberanias" nacionais, têm levado a um
recrudescimento das soluções intergovernamentais e do método concomitante. Em
certos casos, é mesmo a única forma de ultrapassar bloqueios ao uso do método
comunitário. Por isso, a construção europeia continua a basear-se na coordenação entre
os diferentes métodos de decisão, para conciliar os diferentes planos em presença:
nacional, supranacional, intergovernamental, federal.

60
Sendo que na palavra se compreendem muitas dimensões: da económica à identitária, com relevo para
a crise dos refugiados e migrantes económicos, passando pela própria questão democrática.

33
Parece útil citar de novo o manuscrito de Gilles Grin:

“O método comunitário acotovela de facto no dia-a-dia a soberania nacional, cuja


principal característica é a resiliência. A captura da soberania nacional é uma empresa
de longo prazo, sempre reversível. Ao lado do mundo que muda, é essa realidade
profunda que fornece a trama dos desenvolvimentos da integração europeia”61.

A resposta ao aparente oxímoro decorrente da multiplicadade de caminhos


prosseguidos, dada no início deste capítulo, pode sem dúvida ser a de uma escolha
criteriosa do “interesse comum” partilhado, talvez o elemento crucial do método
comunitário. Mais do que uma captura (Grin utiliza a palavra apprivoisement), é um
reforço das soberanias que está em causa, mesmo se no actual estado das coisas, de
identidades nacionais exacerbadas e da contestação da globalização, essa interpretação
não parece muito pacífica.

II.2. Os ideais europeus, valores, objectivos e políticas

II.2.1. Os ideais e os valores

Como dissemos, a União tem na base uma visão, ou ideal, que a distingue da
generalidade das organizações internacionais. Esse ideal foi postulado pelos pais
fundadores, em particular por Robert Schuman, e consiste na noção de que apenas um
continente unido poderá resolver de uma vez por todas os dois flagelos gémeos: a
miséria e a guerra.

A paz entre os países europeus, mais habituados a destruir-se, e o desenvolvimento,


contra a realidade eterna e aparentemente imutável do subdesenvolvimento, mesmo
no mundo pós-revolução industrial, fazem parte dessa visão originária e criadora62. E se
é certo que no discurso seminal de Schuman se ouviu que “A Europa não se fez,
estivemos em guerra”, mais importante é recordar a História e confirmar há quantos

61
Grinn, G., citado, pág. 9. Texto em francês : « La méthode communautaire côtoie en effet au jour le jour
la souveraineté nationale dont la caractéristique force est la résilience. L’apprivoisement de la
souveraineté nationale est une entreprise de très longue haleine, toujours réversible. A côté du monde
qui change, c’est cette réalité profonde qui fournit la trame des développements de l’intégration
européenne ».
62
Aspiração com ressonância na Paz Perpétua postulada por Kant.

34
anos essa ideia de uma unidade que contrarie o fado da miséria e da guerra, persegue
os europeus63.

A título de exemplo, o notável plano do Rei Podebread da Boémia que, já no século XV,
visava acabar com as guerras e estabelecer relações de cooperação mútua, sendo
condição necessária a unificação dos povos e Estados europeus numa “aliança de
nações” 64. Além da paz, e da criação de condições de desenvolvimento e bem-estar dos
europeus em geral, um critério ínsito no próprio projecto europeu é a sustentabilidade
dessa visão; de que serviria assegurar a paz e estabelecer as bases de uma vida digna e
confortável para todos, se fosse por um limitado horizonte temporal65?

Ao serviço dessa visão, a dar-lhe corpo e exequibilidade, estão os valores da construção


europeia, que se tornaram condição da respectiva existência, constituindo um contexto
determinante no plano externo e interno, em que se assumem como critérios aplicáveis
em circunstâncias como a adesão à UE ou a cooperação para o desenvolvimento, entre
outras.

Esses valores são a democracia e os respectivos princípios, o Estado de Direito e o


respeito pelos direitos fundamentais, e são parte essencial da União, o mais importante
elemento da sua identidade66. Embora só em 1993, no Conselho Europeu de Copenhaga
de 21 e 22 de junho, tenham sido formalmente estabelecidos os critérios de adesão à
UE, a sua natureza democrática, com reserva de acesso exclusivo a países dotados de
democracia política formal e material, foi sempre afirmada pelos protagonistas e
confirmada pela realidade67.

63
Sendo certo que a Guerra, enquanto tal e até há poucos séculos, era uma fatalidade, mas também uma
inevitabilidade; talvez uma fatal inevitabilidade. Saber se a guerra é uma consequência (também
inevitável) da natureza humana é outra discussão, sobre a qual o consenso está longe de adquirido.
Consulte-se por exemplo Frey, Douglas P., “War, Peace and Human Nature: the convergence of
evolutionary and cultural views”, Oxford Scholarship Online, Oxford, maio 2013.
64
Ver ia., Tchoubarian, “The European Idea in History in the Nineteenth and Twentieth Centuries”,
Alexander Frank Cass & CO. Ltd., England, 1994, pág. 8. Conferir igualmente o capítulo III.1.
65
Recorde-se a expressão de Jean Monnet: “nada é possível sem os homens, nada é duradouro sem as
instituições” (Jean Monnet, Memórias, Lisboa, Ulisseia, 2004)
66
Preâmbulo do Tratado da UE: “...confirmando o seu apego aos princípios da liberdade, da democracia,
do respeito pelos direitos do Homem e liberdades fundamentais e do Estado de direito...”. Sobre os
direitos fundamentais ver o ponto II.3.1.
67
“O Estado de Direito não é uma opção na UE. É uma obrigação. A nossa união não é um Estado, mas
deve ser uma comunidade de direito” (Jean-Claude Juncker, discurso sobre o Estado da União em 2017,
Bruxelas, 13 de setembro). Foi essa a razão pela qual nem o Portugal do Estado Novo, nem a Espanha de

35
O artigo estruturante nesta matéria é o 6º do TUE que, remetendo para a Carta dos
Direitos Fundamentais da UE (CEDF), reconhece os direitos, liberdades e princípios por
ela enunciados e afirma a sua obrigatoriedade68. A Convenção Europeia dos Direitos do
Homem é igualmente uma fonte do direito comunitário, sendo os direitos por ela
garantidos, bem como os que resultam das tradições constitucionais dos Estados-
membros, parte do direito da União (no mesmo artigo).

E o Tratado de Lisboa, contrariando jurisprudência anterior do TJUE, prevê mesmo a


adesão à referida Convenção de Roma.

São muitos os princípios que decorrem das inúmeras fontes referidas, com destaque
naturalmente para a CEDF: direitos clássicos como de nova geração, relativos à
privacidade na Internet, por exemplo, mas também direitos estruturantes como o
princípio geral de não discriminação com qualquer fundamento, seja ele o género, a
raça, a origem étnica, a religião, ideologia, deficiência, idade ou orientação sexual,
direito reforçado no que se refere à igualdade entre homens e mulheres; e nenhum
cidadão europeu pode ser discriminado em função da sua nacionalidade, princípio
originário da construção europeia69.

Uma última palavra, neste contexto, para referir um conceito (também um valor) da
integração europeia cuja relevância não parece ser suficientemente destacada pelos
comunitaristas e especialistas do processo: a solidariedade.

Desde logo, porque tem muitos e variados significados no plano europeu, acaba por ser
desvalorizado o mais relevante e, talvez, mais determinante, de todos eles. Fala-se de
solidariedade europeia como fundamento do compromisso europeu com os refugiados,

Franco ou a Grécia dos coronéis, chegaram a perspectivar a adesão. Convém notar que, como se refere
no texto, ainda que os tratados originários não contenham normas explícitas sobre a questão dos direitos
fundamentais e do Estado de Direito, competiu às constituições nacionais e ao catálogo de direitos
contidos na Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais,
adotada em 4 de novembro de 1950, em Roma, no quadro do Conselho da Europa, garantir o seu respeito.
Os preâmbulos dos tratados europeus, aliás, faziam essa menção.
68
A Carta “tem o mesmo valor jurídico que os Tratados”, nº 1 do art.º 6. Ainda que, note-se bem, não
possa "alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados" (idem).
69
Ver a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, art.º 21, mas também o art.º 3 nº 3 do TUE e o 10º do
Tratado sobre o Funcionamento da UE (TFUE), que estabeleceu uma regra horizontal nesta matéria. Ver
ainda, a respeito destas matérias, o art.º 8 do TFUE e art.º 23 nº 1 da CEDF.
69
Art.º 18 do TFUE.

36
os países em vias de desenvolvimento, a probreza no mundo70. Há um fundo de
solidariedade da UE para acorrer às populações europeias afectadas por grandes
catástrofes naturais71. Foi criado um corpo europeu de solidariedade para permitir aos
jovens envolver-se em organizações e actividades solidárias na Europa. E há um princípio
geral de solidariedade para com os mais pobres e desfavorecidos dentro da própria
União, a que vários instrumentos e políticas europeias (como a política social europeia)
procuram dar resposta.

De uma forma geral, a compreensão sobre a natureza e dimensão da solidariedade na


Europa obriga a um entendimento claro sobre o seu conteúdo, legal, político, social72.

Ora há uma dimensão específica do conceito que, pela sua importância para o devir da
União, não pode ser ignorada: trata-se da solidariedade entre os Estados europeus
tendo em vista o desenvolvimento harmonioso das suas regiões e a convergência entre
as mais e as menos desenvolvidas. O segredo do sucesso da integração europeia esteve
sempre na capacidade de impedir que o fosso entre regiões e países europeus se
alargasse; na verdade, e desde a criação das comunidades nos anos 1950, a diferença
foi diminuindo, e muitos países evoluíram de forma rápida, reduzindo o seu atraso ou
até ultrapassando a média europeia73.

70
A UE continua a ser o maior doador de ajuda ao desenvolvimento do mundo.
71
Criado na sequência das cheias devastadoras do verão de 2002, que assolaram a Europa central, para
acudir a catástrofes naturais. Vigora o regulamento nº 2012/2022 de 11 de novembro de 2002, alterado
por duas vezes, em 2014 e 2020. “O fundo destina-se a permitir que a Comunidade responda
rapidamente, com eficácia e flexibilidade, a situações de emergência, nos termos do presente
regulamento” (art.º 1). Em 1 de abril de 2020, como resposta ao surto pandémico, o Fundo passou a
abranger também grandes emergências de saúde pública (a formulação normativa referida já contempla
essa realidade).
72
Para um enquadramento do tema nesses termos, veja-se Ross, Malcom e Borgmann-Prebil, Yuri,
“Promoting Solidarity in the European Union”, Oxford Scholarship Online, Oxford, 2010. É particularmente
relevante o capítulo de Ross, “Solidarity – a New Constitutional Paradigm for the EU?”, que coloca o
conceito da solidariedade no centro da evolução constitucional europeia (note-se que o texto é de
2010…), atribuindo-lhe um verdadeiro carácter transformativo. Ainda sobre o tema, é interessante a
consulta de uma publicação da Comissão Europeia, de outubro de 2018, denominado “Solidarity in Europe
– alive and active”, em que se pode ler: (na sequência de investigações conduzidas no âmbito do Horizonte
2020) “Capturing the potential of solidarity provides a hugely important opportunity for the EU’s own
relevance, renewal and resilience”.
73
Foi o caso da Dinamarca e da Irlanda, mas também de Portugal nos quinze anos que se seguiram à
adesão. O mesmo sucedeu à generalidade dos países do leste europeu, depois da sua adesão, entre os
anos 2004 e 2013, ainda que infelizmente sem o sucesso dos anteriores, pelas razões explicadas de
seguida no texto.

37
Para atingir esse resultado, foi relevante a constante preocupação com a solidariedade
europeia, de que foram concretas manifestações a criação de instrumentos de coesão,
como o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), em 1974, e o Fundo de
Coesão Europeu, em 1994. Ambos davam resposta explícita à integração de novos
países europeus, com atraso de desenvolvimento. E em 1987, o Acto Único Europeu
consagrou a coesão económica e social (mais tarde também territorial) como uma
política europeia.

Infelizmente, o grande alargamento do século XXI, com a adesão de 13 novos países em


pouco mais de oito anos, não foi acompanhado de novos instrumentos de coesão. Pelo
contrário, o orçamento europeu até regrediu, pela primeira vez, no período 2014-20.
Como consequência, e apesar da recuperação notável em termos de desenvolvimento
de alguns dos novos países (medido pelo crescimento do produto per capita, por
exemplo), a recuperação foi lenta, não teve a mesma dimensão – nem o mesmo ritmo
– em todos os casos e, a par de crises exógenas como a de 2008 ou a pandemia, em
2020, levou períodos de euroestagnação ou até retrocesso, pondo em causa o próprio
processo de integração74.

II.2.2. Os objectivos e as políticas europeias

Até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa, os objectivos da construção europeia eram


explicitamente definidos e consubstanciavam a evolução do processo europeu para
tendencialmente abarcar todas as dimensões da vida pública contemporânea. Referia
anteriormente o artigo 2º do TUE cinco objectivos específicos: a promoção do progresso
económico e social e de um elevado nível de emprego (o ideal do desenvolvimento, do
mercado livre, da concorrência justa e saudável); a afirmação da identidade europeia na
cena internacional (uma Europa que expresse os seus valores no mundo e consolide a
sua evolução através de uma influência crescente na relação com terceiros75); o reforço
dos direitos e interesses dos cidadãos da União (a consagração da cidadania europeia,
um claro avatar da transformação deste projecto de uma Europa de elites numa Europa

74
Veja-se mais sobre este assunto no capítulo X.
75
Seja através de políticas como a externa ou a da defesa, seja por via do chamado softpower ou poder
de influência (ou sedução).

38
dos cidadãos); a manutenção e desenvolvimento de um espaço de liberdade, segurança
e justiça (em que a liberdade seminal se estrutura com níveis mínimos de segurança e
de aplicação da justiça no espaço comunitário, para responder aos desafios novos da
imigração massiva); a manutenção do acervo comunitário.

O artigo 3º do Tratado de Lisboa reorganiza completamente o elenco desses objectivos,


estabelecendo alguma confusão entre princípios, objectivos e até políticas; assim se
afirma que a UE “tem como objectivos promover a paz, os seus valores e o bem-estar
dos seus povos” (no nº 1 do referido artigo). Já vimos que se trata de ideais, da visão de
longo prazo que fundamenta a própria existência da União, mesmo modificada pela
evolução recente da História, das políticas internacionais, dos novos cenários em que
está presente e activamente participa. Os objectivos dantes tipificados continuam a ser
enunciados, mas sob uma forma de facto consumado. O que na anterior formulação do
Tratado era referidos como objectivos a concretizar, surge agora, após a entrada em
vigor do Tratado de Lisboa, com a natureza de realidades concretizadas e indiscutíveis.

E assim, a União proporciona (um espaço de liberdade, segurança e justiça); (...)


estabelece (um mercado interno); promove (a coesão económica, social e territorial);
estabelece (uma união económica e monetária cuja moeda é o euro); afirma e promove
(os seus valores e os interesses dos cidadãos nas relações com o resto do Mundo).

O mesmo artigo refere também o que não é fácil deixar de referir como objectivos, e
não realizações consumadas, sempre no mesmo registo assertivo: a UE proporciona,
estabelece, fomenta e promove o progresso científico e tecnológico; a solidariedade
entre os Estados-membros; a sua diversidade cultural e linguística e o património
cultural europeu; a justiça e protecção sociais, a igualdade entre homens e mulheres, a
solidariedade entre gerações e a protecção dos direitos das crianças.

Finalmente, num arroubo de ousadia planetária, a União contribui para a paz, a


segurança, o desenvolvimento sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito
mútuo entre os povos, o comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza.

Três observações sobre este artigo e as respectivas provisões: reiterar que se trata sem
dúvida, com excepção do nº 1 referido, de objectivos da construção europeia;
considerar que a terminologia adoptada (afirmativa e assertiva) é provavelmente uma

39
consequência infeliz da forma como o Tratado de Lisboa viu a luz, na sequência e como
avatar de um Tratado Constitucional que substituía todos os tratados em vigor, sendo
por isso um acto constitutivo ab novo e estabelecendo uma União “definitiva”, mais
“resultado final” do que processo; finalmente, registar a tendência para o alargamento
dos objectivos, em muitos casos (quase sempre) confirmando políticas de facto, já
existentes mas não consagradas no texto do direito primário (ie. dos tratados).

Uma referência final às políticas comunitárias - políticas públicas europeias -, que visam
permitir o cumprimento dos objectivos referidos. O conjunto está hoje dividido em duas
partes – políticas internas e políticas da acção externa – e repartido pelo TUE e pelo
TFUE; no primeiro, acha-se apenas a Política Externa e de Segurança Comum (PESC)
como elemento mais importante (de política intergovernamental) da acção externa; o
TFUE elenca e desenvolve, nas partes III e V, o conjunto das restantes políticas da
UE:Mercado interno, Livre circulação de mercadorias, Agricultura e pescas, Livre
circulação de pessoas, serviços e capitais, Espaço de liberdade, segurança e justiça,
Transportes, Concorrência e fiscalidade, Política económica e monetária, Emprego,
Política social, Educação, Formação profissional, Juventude e desporto, Cultura, Saúde
pública, Defesa dos consumidores, Redes transeuropeias, Indústria, Coesão económica,
social e territorial, Investigação, Desenvolvimento tecnológico e espaço, Ambiente,
Energia, Turismo, Protecção civil e cooperação administrativa (internas); política
comercial comum, Cooperação com países terceiros e ajuda humanitária, Cláusula de
solidariedade (inseridas na acção externa).

Alguns títulos, autonomizados, não parecem constituir verdadeiras políticas, mas antes
instrumentos de política (título XI da parte III – Fundo Social Europeu), medidas e
convenções (vários da parte V) ou disposições de enquadramento (título I da parte V)76.

76
Para uma ideia sobre esta lista e o elenco de políticas bem como do respectivo ordenamento, é útil a
consulta pura e simples do índice do TFUE.

40
II.3. A democracia e os direitos humanos na construção europeia

II.3.1. A democracia como critério prévio essencial da construção europeia

No mapa genético da construção europeia há um gene decisivo: a democracia e o


respeito pelos direitos fundamentais. A liberdade, o Estado de direito e o respeito
intransigente pelos direitos humanos, fazem parte dos princípios fundadores e
representam o essencial dos valores de que a UE se reclama, constituindo a base da
carta de princípios da identidade europeia, quadro conceptual que a impõe como
paradigma democrático77.

É importante salientar uma dimensão específica destes princípios e valores no


enquadramento supranacional em que são afirmados, que respeita ao princípio da
igualdade entre os Estados-membros perante os Tratados bem como da respectiva
identidade nacional, acrescendo explicitamente o princípio da igualdade entre os
cidadãos europeus78.

Há em matéria de direitos humanos na União uma tripla dimensão:

− Formal e política - nenhum país pode ser membro da União se não for uma
democracia, formal e substancialmente, e respeitar os princípios democráticos e
os valores europeus (critério político de adesão)79;
− Endógena - os países membros da União devem respeitar rigorosamente os
direitos fundamentais e os cidadãos da União são todos iguais aos olhos das
instituições e órgãos europeus (e do direito europeu);
− Exógena - a União promove a democracia e, em particular, o respeito pelos
direitos fundamentais no mundo, desde logo no âmbito das relações e acordos
que estabelece com países e organizações de todo o planeta.

Começando pela primeira dimensão, trata-se da mais importante das condições de


adesão à União, conforme explicado anteriormente: para fazer parte da União um país

77
Esses valores são afirmados no art.º 2 do TUE. “A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade
humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do
homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-
membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a
solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres”.
78
Art.º 4 (identidade) e 9 (igualdade) TUE, complementado pelo já referido artigo 18º TFUE.
79
Ver capítulo III.3.

41
tem, como sempre teve, de ser uma democracia, respeitar os direitos fundamentais e
ser reconhecido expressamente como tal80; os valores previstos no artigo 2º TUE são
mesmo condição essencial para que o pretendente receba o estatuto de candidato e se
inicie o período de negociações.

Mas mesmo depois da adesão, e é esta a segunda dimensão referida, deve manter-se o
respeito pelos valores estabelecidos no mencionado artigo 2º do TUE. Esta orientação
da política europeia teve início com o Tratado de Maastricht, que previa no artigo 7º a
possibilidade de uma “violação grave e persistente” desses valores, podendo levar à
suspensão de alguns direitos do Estado prevaricador.

O referido artigo foi fortemente testado aquando da entrada em funções de um governo


austríaco integrado pelo partido de extrema-direita de Jörg Haider, entretanto falecido,
considerado xenófobo pela generalidade dos líderes europeus. O episódio marcou a
Presidência portuguesa da UE no primeiro semestre do ano 2000 e alertou os líderes
europeus para a insuficiência das disposições do Tratado em casos como esse: sem
verdadeira violação, mas na sua iminência (ou ameaça), a União não tinha mecanismos
para se proteger.

O Tratado de Nice corrigiu a situação81: manteve-se a previsão da violação dos princípios


fundamentais e foi adoptada uma disposição relativa à “existência de um risco
manifesto de violação grave dos valores referidos”, que hoje integra o artigo 7º nº 1 do
TUE. O Conselho de ministros, a pedido da Comissão, do PE ou de um terço dos Estados-
membros, pode verificar a existência desse risco e dirigir recomendações ao país
implicado82. Previne-se assim, no equilíbrio entre as soberanias nacionais, o risco de
violação dos valores e princípios fundamentais da UE.

Situação diversa é a que decorre da existência de uma violação efectiva: nesse caso, o
Conselho Europeu (e já não o Conselho), sob proposta da Comissão ou de um terço dos
Estados-membros, após ouvir as observações do Estado acusado e por unanimidade,
pode verificar a existência de uma violação grave e persistente e pedir a suspensão de

80
Desde 1993 e dos “critérios de Copenhaga”, o respeito por esses valores constitui um dos “critérios de
elegibilidade” a que faz referência o art.º 49 do Tratado.
81
De fevereiro de 2001.
82
O Conselho, por uma maioria especial de quatro quintos dos seus membros, após aprovação do PE.

42
certos direitos dos prevaricadores, em particular o de voto83. Esta última decisão,
tomada por maioria qualificada, deve ter em conta as consequências para pessoas
singulares e colectivas.

Finalmente, a União promove a democracia em todo o mundo: “A acção da União na


cena internacional assenta nos princípios que presidiram à sua criação,
desenvolvimento e alargamento, e que é seu objectivo promover em todo o mundo:
democracia, Estado de direito, universalidade e indivisibilidade dos direitos do homem
e das liberdades fundamentais, respeito pela dignidade humana, princípios de igualdade
e solidariedade e respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas e do direito
internacional”84.

Se fosse possível hierarquizar estes valores nas suas múltiplas declinações, referidas no
articulado do Tratado, os direitos fundamentais teriam provavelmente a primazia; as
considerações acima apresentadas a respeito das múltiplas dimensões da aplicação
destes princípios fundadores (e formatadores) da União aplicam-se-lhes de forma
rigososa: os direitos fundamentais devem ser respeitados no acesso à organização por
parte dos candidatos, no exercício dos direitos enquanto membros, e para o exterior
(nas relações da UE). E é deles que trata o essencial do resto deste capítulo.

II.3.2. Os direitos fundamentais no âmago da UE

Os direitos fundamentais, também referidos como direitos humanos, fazem parte de


uma trilogia que caracteriza a UE como organização, tornando-a específica no concerto
das relações internacionais: Democracia, Estado de direito, Direitos fundamentais;
coração da construção europeia, tributária de uma herança filosófica, cultural e social
alicerçada em séculos de evolução, assente na herança greco-romano-judaico-cristã e
nas lições de filósofos e pensadores como Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São
Tomás de Aquino, Espinoza, Rousseau, Maquievel, Hobbes, Locke, Hegel, Kant (entre
muitos outros) e na “suma ideológica” das três grandes revoluções ocidentais, eis a base
de toda a integração europeia.

83
Art.º 7 nº 3.
84
Art.º 21 do TUE relativo à acção externa da UE.

43
O projecto europeu, a um tempo visionário e de destino incerto, afirma nos tratados o
respeito inalienável pelos direitos fundamentais. Não é tarefa fácil: como estabelecer a
lista desses direitos? Como compatibilizar ordenamentos jurídicos constitucionais
distintos, com diferentes graus de exigência na matéria85? Como, afinal, adoptar um
catálogo de direitos e impor uma Carta própria à União, invocável e vinculativa, sem que
isso choque com as tradições nacionais?

Importa desde logo conhecer em concreto de que forma evoluiu o modo como a UE
aplica, promove e faz respeitar o conteúdo das disposições que adopta no domínio dos
direitos fundamentais, apesar das insuficiências políticas que tantas vezes não lhe
permitem dotar-se dos meios para cumprir as ambições que assume86.

A referência aos direitos fundamentais nos tratados não vem da fundação, como já
acima assinalámos87. O Tratado de Roma nada dizia a esse respeito, salvo uma
referência à não discriminação em função da nacionalidade88. O tema tornou-se objecto
de atenção política no seio das Comunidades europeias: em 1973, o Parlamento
Europeu adoptou uma resolução sobre a protecção dos direitos fundamentais na UE89.

Poucos anos depois, em 1977, as três principais instituições europeias, Conselho,


Comissão e Parlamento Europeu, afirmaram a importância da protecção dos direitos
fundamentais e afirmaram como fonte desses direitos a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem (CEDH), bem como as constituições dos Estados-membros90. Muitas
outras tomadas de posição nesse sentido se seguiriam.

85
E poderá recordar-se a propósito a importante decisão do Tribunal Constitucional alemão de 12 de
outubro de 1993, “a sentença Maastricht”, que a propósito justamente dos direitos fundamentais
reafirmou os limites constitucionais da transferência de direitos de soberania à UE, mais tarde reforçada
em decisão de 30 de junho de 2009 sobre a compatibilidade do Tratado de Lisboa com a Constituição
alemã e, sobretudo, pelo acórdão de 5 de maio de 2020. Esta matéria é amplamente tratada no capítulo
relativo ao primado do direito europeu (capítulo VI.1.3.).
86
Parafraseando-se aqui Jacques Delors nos anos 80, no âmbito daquilo que veio a ser o primeiro pacote
(financeiro e de recursos próprios) com o seu nome.
87
No capítulo II.2.1.
88
Referida.
89
Ver em JOCE 26 de 4 de abril de 1973.
90
Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada
em Roma a 4 de novembro de 1950, estabelecida no âmbito do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
(TEDH) do Conselho da Europa.

44
O conteúdo dessas resoluções e tomadas de posição, de natureza política, não eram
novidade: a precedê-las, já desde os anos 60, a jurisprudência do TJCE; em sucessivos
acórdãos, o Tribunal considerou o respeito pelos direitos fundamentais parte integrante
dos princípios gerais de direito a assegurar pela Comunidade. Por exemplo, em 1970,
estabeleceu que “o respeito pelos direitos fundamentais forma uma parte integrante
dos princípios gerais da lei comunitária protegida pelo Tribunal de Justiça. A protecção
desses direitos, embora inspirada pelas tradições constitucionais comuns aos Estados-
membros, deve ser assegurada no contexto das estruturas e objectivos da Comunidade”
91.

O Tribunal considerou sempre de grande importância a remissão para a CEDH, tendo


em vista colmatar as insuficiências das normas comunitárias na matéria. E no decurso
dos anos, apelando às tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, afirmou
e reconheceu direitos como a liberdade de opinião, a livre concorrência, a liberdade de
fazer comércio, a liberdade de associação, de exercício de um credo religioso, de não
discriminação, de protecção da propriedade privada, de protecção efectiva pelos
tribunais, de inviolabilidade do domicílio, etc.

Foi em 1986, com a reforma introduzida pelo Acto Único Europeu (AUE), que essas
matérias passaram a fazer parte formal do património jurídico do direito originário ou
primário (e do direito comunitário positivo). Os membros declararam então
comprometer-se “a promover conjuntamente a democracia, com base nos direitos
fundamentais reconhecidos nas Constituições e legislações dos Estados-membros
(...)”92. Revisões posteriores consagraram a centralidade desta dimensão da integração
europeia: “A UE assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos
direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito,
princípios que são comuns aos Estados-membros”, respeitando os direitos
fundamentais "(...) tal como os garante a (...)" CEDH e resulta das tradições

91
No acórdão Internationale Handelsgesellschaft, processo 11/70 de 1970.
92
Considerandos iniciais do AUE.

45
constitucionais comuns aos Estados-membros, enquanto princípios gerais do direito
comunitários93.

Ainda assim, o Tribunal considerou, em parecer de 28 de março de 1996, que as


Comunidades não poderiam aderir à CEDH, por não prever o Tratado CE qualquer
competência para a promulgação de regras ou celebração de acordos internacionais
relativamente a direitos fundamentais.

Em Nice, no ano 2000, a União adoptou o seu próprio catálogo de direitos, a Carta dos
Direitos Fundamentais da UE (CDFUE). Não sendo ainda vinculativa, permitia por
exemplo fundamentar decisões de outra natureza, em particular jurisprudencial.
Velhíssima aspiração da União, representou outrossim um passo em frente de grande
importância na confirmação da organização como fonte autónoma e legítima de direitos
fundamentais complementares dos nacionais.

O actual artigo 6º do TUE, na formulação adoptada pelo Tratado de Lisboa, tornou a


CDFUE obrigatória para todos os Estados membros e instituições europeias no que diz
respeito à aplicação do direito comunitário. Além disso, e terminando com uma
limitação jurisprudencial justificada pelo direito originário, o Tratado de Lisboa previu a
adesão da UE à CEDH, reforçando assim a protecção jurídica de que beneficiam os seus
cidadãos94.

Essa dimensão dos direitos fundamentais na UE e o seu respeito intransigente, como


acima ficou dito, tem uma vertente interna, relativa à aplicação no espaço europeu e
externa, às relações da organização com países, organizações e cidadãos terceiros. Já
abordámos o primeiro aspecto, vamos agora referir a vertente externa.

II.3.3. A UE e os direitos fundamentais no Mundo

É sem dúvida no plano externo que a acção da União em prol dos direitos fundamentais
e da democracia (mais daqueles do que desta) se faz sentir de forma marcada.

93
Art.º 6 do Tratado de Amesterdão; O Tratado de Maastricht era mais lacónico (artigo F do TUE) e o
enunciado foi desenvolvido pela revisão posterior, de Amesterdão (entrou em vigor em 1999), cujo texto
se transcreve.
94
No art. º 6 nº 2 TUE.

46
Actualmente, a acção externa da UE, seja no que respeita à cooperação com os países
terceiros e à ajuda humanitária, seja nos acordos internacionais e nas relações com
organizações internacionais e os países terceiros é conduzida em conformidade com as
já referidas disposições do TUE95:

“A acção da União na cena internacional assenta nos princípios que presidiram à sua
criação, desenvolvimento e alargamento, e que é seu objectivo promover em todo o
Mundo: democracia, estado de direito, universalidade e indivisibilidade dos direitos do
homem e das liberdades fundamentais, respeito pela dignidade humana, princípios da
igualdade e solidariedade e respeito pelos princípios da Carta da ONU e do direito
internacional (...)”.

A intervenção externa da União em matéria de direitos humanos, contudo, segue em


termos cronológicos um percurso similar ao da dimensão interna, com os primeiros
sinais políticos dados nos anos 70 e confirmados por uma jurisprudência constante. No
final dessa década, é o próprio PE a expressar preocupação com a natureza das relações
da CE com países terceiros, em particular com os menos desenvolvidos, registando-se
várias perguntas escritas e orais nesse sentido de deputados europeus à Comissão e aos
ministros dos negócios estrangeiros. Mas foi ainda um sinal dos tempos que no primeiro
grande acordo multilateral e multissectorial da União com países em vias de
desenvolvimento96 - a Convenção de Lomé, entrada em vigor em 1975 -, pouco ou nada
constasse sobre direitos fundamentais.

Só mais tarde os acordos internacionais celebrados pela UE reflectiram a preocupação


europeia de promover o respeito por esses direitos e pelos princípios democráticos,
nomeadamente após o reconhecimento constitucional no TUE de 1992, que a revisão
de Lisboa aprofundou e consolidou de modo significativo.

A mudança começa sobretudo a partir da queda do Muro de Berlim, em 1989. Em 21 de


Julho desse ano, os então doze Estados-membos pronunciaram-se formalmente sobre
o apego aos direitos fundamentais no âmbito das relações internacionais da
Comunidade, tendo decidido criar um grupo de trabalho para coordenar a respectiva

95
Arts.º 21 e ss., Capítulo 1 do Título V.
96
Conhecidos por ACP, países de África, Caraíbas e Pacífico.

47
actividade nesse domínio. A CE passou a publicar um relatório anual sobre os direitos
fundamentais no Mundo e a sua intervenção em cada caso.

Em 1991, várias declarações confirmam essa orientação: o Conselho de ministros do


desenvolvimento estabelece explicitamente que o respeito pelos direitos fundamentais
passará a ser fulcral nas relações existentes e, sobretudo, nas relações a estabelecer.
Este princípio alarga-se a todos os instrumentos, a começar pela própria adesão à UE,
como já explicitado. O Conselho previu em 1992 que todos os acordos - comerciais, mas
também os de cooperação, designados de terceira geração - com os países de Leste,
integrassem disposições prevendo consequências concretas, como a suspensão de
certos benefícios e direitos previstos nos acordos, no caso do não cumprimento de
obrigações neste domínio. Essa condicionalidade começou de imediato a fazer parte dos
acordos de cooperação, o que suscitou tensões com alguns dos países mais
desenvolvidos do Leste europeu, hoje membros da UE, que reagiram com indignação à
exigência de cláusulas dessa natureza nos acordos que lhes eram propostos.

No domínio da cooperação para o desenvolvimento, estabeleceram-se regras que


incluem medidas de discriminação positiva visando o financiamento de acções que
tenham como objectivo a democracia e um maior respeito pelos direitos fundamentais.
Na aplicação de uma espécie de “política da cenoura e do bastão”, estabeleram-se
cláusulas de condicionalidade, incluídas nomeadamente na renegociação dos acordos
de cooperação para o desenvolvimento e, desde logo, na Convenção de Lomé III, em
1990.

E cedo surgiram os primeiros casos de aplicação dessa condição, por exemplo em


novembro de 1995, com a suspensão temporária da cooperação com a Nigéria na
sequência do enforcamento de nove militantes da causa ecológica.

A generalidade de acordos de terceira e quarta geração da UE, bilaterais ou


multilaterais, com virtualmente todas as regiões e a maior parte dos países do Mundo,
do Mediterrâneo à Ásia e à América Latina, consideram hoje a dimensão dos direitos
humanos como critério essencial para o desenvolvimento da cooperação e o
aprofundamento das relações comerciais e económicas. O acordo de Cotonou, herdeiro
de Lomé, estabeleceu vias de cooperação livre entre a UE e os chamados países ACP,
que privilegiaram o desenvolvimento sustentado desses países com base em regras

48
assimétricas que os favorecem – uma espécie de discriminação positiva na política de
cooperação ao desenvolvimento -, mantendo como condição para a cooperação o
prosseguimento de esforços tendentes a reforçar a democracia, os princípios do Estado
de direito, a boa governação e, sobretudo, o respeito pelos direitos fundamentais 97. A
corrupção é um dos principais alvos dessa vigilância.

Em todo o caso, o saldo de Cotonou não é claro e há em África muitas vozes que
consideram não se tratar de uma parceria positiva para o continente. O processo de
negociação do acordo futuro, em curso em 2020, abrangeu questões cruciais na óptica
das partes, em particular o registo em matéria de direitos humanos e os progressos
conseguidos ou não.

Também nas duas dimensões da Política Europeia de Vizinhança, a Parceria a Leste e a


União para o Mediterrâneo, a condicionalidade relacionada com a democracia e o
respeito pelos direitos humanos tem estado presente, não sem controvérsia. Um
documento de 2013 do Instituto Affari Internazionali alertava para os riscos:
“condicionalidade política, incertezas sobre os benefícios económicos para os acordos
aprofundados de comércio livre (DCFTA) no curto e médio termos, relutância em
conceder liberdade de circulação aos cidadãos desses países e a falta de verbas de apoio
financeiro verdadeiramente motivadoras por parte da UE, podem ter um resultado

97
O acordo de Cotonou, assinado no Benin em 23 de junho de 2000, entrou em vigor em 2002 com uma
duração prevista de 20 anos. Juntou os então 15 membros da União com os 77 países ACP (hoje 79).
Assente em três pilares (cooperação ao desenvolvimento, cooperação política, cooperação económica e
comercial), o acordo explicita: “(…) O respeito pelos direitos humanos, os princípios democráticos e o
Estado de Direito, que presidem à parceria ACP-UE, devem nortear as políticas internas e externas das
Partes e constituem os elementos essenciais do presente Acordo” (art. 9º nº 2). A boa governação (…)
preside às políticas internas e externas das Partes e constitui um elemento fundamental do presente
Acordo. As Partes acordam em que os casos graves de corrupção (…) constituem uma violação desse
elemento” (idem, nº 3). E o artigo 97º determina que, “Se, apesar do diálogo político sobre os elementos
essenciais (…), uma das partes considerar que a outra não cumpre uma obrigação decorrente do respeito
pelos direitos humanos, os princípios democráticos e o Estado de Direito (…) convidar a outra parte a
proceder a consultas centradas nas medidas tomadas ou a tomar pela parte em questão para resolver a
situação (…) Se as consultas não conduzirem a uma solução aceitável por ambas as partes, se forem
recusadas ou em casos de especial urgência, podem ser tomadas medidas apropriadas. Estas medidas
serão revogadas logo que tenham desaparecido as razões que conduziram à sua adopção”. Quanto às
vantagens do acordo, convém salientar não se tratar de uma tese pacífica, havendo muitas vozes, dentro
e fora dos países ACP, que consideram hoje beneficiar pouco da cooperação europeia, para além do
espartilho que representa a condicionalidade.

49
inesperado: empurrar alguns dos parceiros a Leste para outros esquemas e parceiros de
integração"98.

A Rússia está pronta para agarrar essa oportunidade. Ou a retaliar, quando considere
que o aprofundamento das relações, via acordo aprofundado, com um país da sua
vizinhança imediata, possa representar uma ameaça. Foi provavelmente a perspectiva
de assinatura de um DCFTA, ou Acordo de Associação, entre a União e a Ucrânia, a razão
para os acontecimentos de 201499.

Na prática, trata-se de uma política com limites, porque condicionada por considerações
de outra natureza, como as relativas ao desenvolvimento propriamente dito: vejam-se
as dúvidas suscitadas pelo acordo de Cotonou em matéria de resultados ou as verbas
“pouco motivadoras” dos acordos “deep and comprehensive”; sem falar, naturalmente,
das questões geoestratégicas envolvidas. Por vezes, os interesses económicos
prevalecem ou a cooperação parece plasmada em termos mais favoráveis a quem a dita,
controla os termos da troca ou de qualquer outra forma beneficia com ela, em
detrimento das populações no terreno. Por outro lado, a tentação de optar por
processos cooperativos (ou financiamentos) isentos de cláusulas de condicionalidade, é
obviamente grande, levando a frequentes (e crescentes?) cedências.

Nem sempre é possível, e provavelmente quase nunca é aconselhável, aplicar os


princípios da condicionalidade de forma estrita e automática. Mas também parece certo
que a intervenção da UE em matéria de direitos humanos – e de democracia – contribui
para elevar a consciência internacional sobre a sua importância.

Onde se situa o meio-termo, é provavelmente a questão fundamental.

98
Ludvig, Zsuzsa, “The EU and its Eastern Partners: Conditionality and Expected Benefits. How does the
Russia Factor Matter?”, documento IAI 13/09, Instituto Affari Internazionali, novembro 2013, pág. 16.
99
Intervenção militar russa na Ucrânia. O Acordo de Associação em causa, mais tarde, a 1 de setembro de
2017, acabou por entrar em vigor.

50
II.4. Entre Hard, Soft e Sharp power: a natureza do poder da União Europeia

II.4.1. A natureza do poder da União Europeia

Para tentar perceber o que é a UE, interrogação à qual Jacques Delors respondeu com o
célebre acrónimo OPNI, importa questionar a natureza do seu poder100.

São possíveis diversas abordagens: a Europa como um poder constitucional, um poder


civil, um poder militar? Ou um modelo de concentração de poder "westephaliano", com
uma soberania (tendencialmente) única, hierarquizado, com fronteiras externas bem
definidas e um "músculo" militar projectado externa e internamente? Um Império em
devir, como defendem alguns autores101? Ou ainda, noutra perspectiva, a União como
uma entidade pós-moderna, impossível de qualificar e definir, auto-conceptualizada e
em permanente (mas ameaçado) devir102? Um poder próprio ou delegado, mais ou
menos legitimado democraticamente?

Muitas das perspectivas referidas são tratadas noutras partes deste livro. O que aqui se
pretende é aferir da pertinência de uma abordagem da construção europeia como uma
organização (de poder) essencialmente baseada numa capacidade de atracção ou de
persuasão que aumenta a sua influência global.

Graças a esse "poder suave", a UE leva outros - Estados, organizações e empresas -, a


agir conforme a sua (da União) conveniência, persuade-os a querer o resultado que lhe
interessa pela importância que atribuem para si próprios à obtenção desse resultado.
Este "poder suave" ou softpower opõe-se ao poder coercivo ou hardpower103.

Claro que o "poder suave" não se baseia apenas na persuasão ou na atracção:


argumentos, por exemplo, como um dos mercados internos mais importantes do
mundo – com 500 milhões de consumidores, ou 460 mihões aproxidamente após a saída
do Reino Unido, gerador de cerca de 40% do comércio mundial de mercadorias -, ou
uma política de ajuda ao desenvolvimento dotada de mais recursos do que a de

100
Objecto político não identificado.
101
Para um modelo possível veja-se Zielonka, Jan, “The Europe as Empire: the nature of the enlarged
European Union”, Oxford University Press, Oxford, 2006.
102
Uma polity, na terminologia anglo-saxónica.
103
NYE, J, já citado (nota 18) .

51
qualquer outro país desenvolvido, encorajam a aceitação, pelos destinatários, do poder
europeu.

Uma das mais relevantes formas de manifestação desse poder é sem dúvida a emissão
de regras e normas universais; num mundo cuja interdependência é cada vez maior,
essas regras tornam-se indispensáveis, para além de requererem instituições que as
administrem, e que julguem e punam eventuais violações.

São regras que abrangem inúmeros domínios, das questões económicas, ambientais ou
sociais, aos aspectos relacionados com a democracia e o respeito pelos direitos
fundamentais. Existem aliás inúmeras organizações internacionais criadas ou
vocacionadas para a emissão de normas e para o respectivo controlo em vários
domínios: é o caso da ONU, da Organização Mundial de Comércio (OMC) ou do Tribunal
Penal Internacional da Haia, por exemplo.

Mas outros poderes fácticos se têm vindo a destacar (como aliás aconteceu sempre ao
longo da História), bastando lembrar, desde logo, o papel da potência norte-americana
na regulação política e da segurança global do novo sistema unipolar que emergiu do
final da guerra fria.

As normas emitidas pelos EUA, normalmente geradas pelos seus próprios sistemas
internos de regulação, mas muitas vezes também reconhecidamente dirigidas para o
exterior, assumem com frequência um elevado grau de universalização: isto é, regulam
efectivamente o referido sistema global, representando outrossim uma manifestação
de poder que projecta e preserva os interesses nacionais americanos; esse é um poder
que não é apenas de softpower, senão também de natureza intimidatória - ou
protectora -, baseada numa capacidade militar ímpar no mundo.

Os exemplos são múltiplos: da rápida definição de conceitos (e até de comportamentos,


ainda que controvertidos e discutidos, como o caso de Guantanamo ou dos chamados
"voos da CIA", a que o Parlamento Europeu dedicou grande atenção) no âmbito da
guerra contra o terrorismo, à própria proeminência de instituições americanas na
regulação dos mercados (o hoje célebre caso das agências de notação financeira e do
seu poder efetivo e contudo, largamente subjetivo), a lista é longa e difícil seria expô-la
aqui.

52
A UE não tem esse tipo de hardpower, sendo essa uma das fraquezas, para alguns até
uma deficiência estrutural, da construção europeia104: a sua política de segurança é
ainda essencialmente intergovernamental, sem um efectivo "músculo militar"; assenta
na soma das políticas (e dos orçamentos) de defesa dos seus Estados-membros, cada
um com a sua própria agenda nesse domínio, por exemplo em termos de zonas
geográficas preferenciais de intervenção e projecção de interesses. A política externa
europeia não é por isso mais eficaz do que a política de defesa, talvez seja mesmo o
contrário.

Mas a União dispõe de suficientes referenciais de atratividade e sedução para se poder


reconhecer nela um poder real, suave, mas eficaz. Retomando a definição de Joseph
Nye, já citada - os recursos (assets) do soft power são aqueles que produzem atracção -
, produzem atração os bens de um país, no sentido lato, a que terceiros atribuem um
valor, de tal forma que se sintam levados a alinhar com eles, imitando-os ou tentando
aceder-lhes; por exemplo, os seus princípios e valores; o estilo de vida; a cultura; as
normas jurídicas passíveis de impacto exógeno105; as expressões artísticas e as tradições;
a presença e influência nos mercados; o facto de ser um mercado apetecível, para
investir ou fazer comércio; a autoridade, que pode ser moral ou política, junto de outros
países ou grupos.

Afinal, existem muitos recursos que podem servir - voluntária ou involuntariamente -


para um país conseguir moldar as preferências de outros países ou pessoas; até a
capacidade pessoal (de persuasão) dos governantes, o seu "carisma" ou estatura como
"líderes", pode ser relevante.

Na UE existem vários recursos capazes de produzir atracção, como por exemplo os


valores que defende, a sua diplomacia persuasiva, a sua missão, a atractividade do seu
mercado e até as políticas de ajuda ao desenvolvimento e a cooperação com os países
em vias de desenvolvimento. Alguns dirão não se tratar neste caso rigorosamente de
um poder "suave" mas antes do uso como instrumento de poder de uma capacidade

104
O que tem sido resumido ao longo dos anos referindo a UE como um "gigante económico e anão
político".
105
V.g. normas de concorrência, as relativas à segurança aérea, as que se aplicam a produtos industriais
(regras de segurança), a proteção de dados, entre outras.

53
económica real o que, sendo certo, restringiria indevida e exageradamente o conceito:
pPartindo das definições seminais de Nye, "poder suave" é todo aquele que persuade
sem o recurso à força, à intimidação ou à simples "compra" das preferências. Não parece
que a cooperação ou mesmo a ajuda sejam forma de "comprar" essas preferências
(ainda que as condições de condicionalidade por vezes associadas aos acordos de
cooperação possam, no limite, ser entendidos como tal106).

Facto é que a União possui um efectivo poder. Ele expressa-se nomeadamente na forma
como influencia e afecta a política de outros países ou regiões por exemplo em matéria
de direitos humanos; as posições da UE são muito importantes e têm grande impacto
nos países a que se dirige, como no caso do prémio Sakharov, anualmente atribuído pelo
Parlamento Europeu a personalidades que se destaquem pela sua acção em prol da
liberdade de expressão e de pensamento.

Ou, de modo ainda mais visível e relevante, na capacidade de produzir regras e critérios
universalizáveis, matéria em que cada vez mais a Europa compete com os Estados
Unidos: entre muitos exemplos elucidativos da aplicação a entidades globais dessas
regras são a directiva Reach, que impõe às empresas do mundo inteiro regras estritas
relativamente à utilização industrial de produtos químicos, as normas aplicáveis às
companhias de aviação de todo o mundo, que lhes permite (ou não) operarem no
espaço aéreo europeu, ou a polémica directiva dos direitos de autor na Internet107.

Poucas entidades podem ignorar estas e outras regras, atendendo à importância


económica, dimensão e natureza do espaço europeu. Poucas ou nenhumas, de facto, as
ignoram.

106
Ver capítulo anterior.
107
Diretiva “Reach” - Registration, Evaluation and Authorisation of Chemical Legislation - 2006/121/EC e
regulamento 1907/2006 de 18 de dezembro de 2006. Diretiva dos direitos de autor na Internet, aprovada
em março 2019 pelo PE, prevê dois anos para a respectiva transposição pelos Estados-membros. Ver
http://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20190321IPR32110/european-parliament-
approves-new-copyright-rules-for-the-internet

54
II.4.2. O sistema político da União Europeia: das teorias clássicas aos novos paradigmas

O debate, académico e científico, sobre a natureza política da União Europeia, é antigo


e renovado em permanência, com abundância de argumentos e originalidade de
propostas108.

Apresenta-se aqui sinteticamente o “estado da arte” da reflexão sobre o sistema político


europeu, sem deixar de mencionar a sua problematização e tendências mais recentes.
Depois da abordagem da UE na perspectiva das relações internacionais e da natureza
do seu poder, olhamos para a mesma realidade procurando perceber que objecto
político é e como se caracteriza o sistema político em que assenta, do ponto de vista
também da ciência política.

As explicações clássicas desenvolveram-se de forma notável entre os anos 1950 e 80 e


podem reconduzir-se a três modelos: o supranacional, em cujo centro estavam as teses
neo-funcionalistas assentes em quadros teóricos essencialmente tecnocráticos e cuja
principal premissa era a de um contínuo (mas não uniforme) alargamento de
competências da organização; o federal, que é, no fundo, sobretudo um postulado
político, segundo o qual a integração de Estados soberanos europeus deve ter como
objectivo a criação de um novo Estado (uma união política), a criar com base em
princípios federais semelhantes aos aplicados nos Estados dessa natureza; e teses
intergovernamentais, de interesse nacional ou da integração europeia como meio de
defesa e preservação do Estado-nação, temporária ou permanentemente ameaçado. Já
voltaremos a cada uma delas, com um pouco mais de profundidade.

108
Para uma visão geral do problema são inúmeras as propostas bibliográficas possíveis. Vg. Hix, Simon,
Hoyland, Bjorn, “The political system of the European Union”, Palgrave, London, orig. 1999, ed. 2011; mais
recentemente, de Theresa Kuhn publicado no JEPP, “Grand Theories of European Integration revisited:
does identity politics shape the course of European integration”, Routledge, Vol. 26, nº 8, 1213-1230,
2019, que inclui um capítulo sobre o conceito de identidade colectiva nos estudos de integração europeia
e o cotejo entre as “grand theories” e as “identity politics” no 21º século. Ver ainda Sande (citado), a partir
da pág. 24. Alan Milward para o intergovernamentalismo. Andrew Moravcsik na origem do
intergovernamentalismo liberal, com o livro “The Choice for Europe”, de 1998. Liesbet Hooghe, “Grand
theories of European integration in the Twenty First Century”, Journal of European Public Policy, 26 (8):
1113-1133, 2019, Hooghe, Liesbet, Marks, Gary, Marks, Wolfe Gary, “Multi-level governance and
European Integration”, Rowman & Littlefield, USA, 2001, a propósito da (muito recente) teoria da
governança multinível. E muitos outros.

55
A complexidade crescente do processo, entretanto, veio tornar menos plausíveis as
explicações replicantes de estruturas e modelos existentes. Atente-se no seguinte
trecho de Francisco Lucas Pires, escrito em finais da década de noventa:

“Um mercado único, coroado por uma moeda única, mas carente de suficiente ‘união’
ou solidariedade política, por um lado, e sem o respaldo jurídico e moral de uma
sociedade civil europeia, por outro, constituiria um duplo risco. De facto, se é no plano
político e institucional que se pode gerar o poder capaz de suprir as falhas de mercado,
é no plano da ‘sociedade civil’ que se pode gerar a autoridade suposta pela ética de
uma ordem liberal consensualizável”109.

No período em que Lucas Pires escreveu este texto, boa parte da transformação das
“velhas” comunidades numa realidade nova estava consumada, em vias de consumação
ou pelo menos anunciada110; e a construção teórica que propunha, parecia buscar em
novas categorias (políticas, institucionais, sociais, societárias) o cimento que reparasse
as fissuras causadas no edifício europeu pela fraqueza dos alicerces da solidariedade111.

Um dos componentes principais desse cimento, no texto acima transcrito como aliás no
livro de que foi retirado, é a sociedade civil europeia. E atente-se na problemática
filosófica subjacente: não se trata de afirmar o conceito de uma sociedade civil
reprodutora do ‘universal concreto’ hegeliano, nem tão pouco, e simplesmente, do
‘espaço público’ postulado por Habermas112. Trata-se sobretudo de “(…) um maior
sentimento comunitário, uma disposição cultural e moral partilhada, suficientes
garantias de direitos iguais e a noção, ainda que só minimamente concretizada, da

109
Lucas Pires, Francisco, “Do Mercado à sociedade europeia?”, Principia editora, Lisboa, 1998, pág. 8.
110
Realizado o mercado interno, a cidadania europeia, a PESC e muitas novas políticas comunitárias, em
vias de consumação a moeda única, anunciado já o ELSJ e até, num horizonte então ainda imprevisível, o
alargamento aos Estados do antigo bloco de leste, o advento da sociedade europeia podia de facto
parecer iminente.
111
Um défice que, por vezes, leva a dizer que essa – mais do que união, federalismo, mercado – é a
palavra-chave do processo de construção europeia. Ver capítulo II.2.1.
112
Ideia expressa no seu livro de 1962 “Habilitationsschrift, Strukturwandel der Öffentlichkeit: (…)”, ou “A
transformação estrutural da esfera pública (…)”, em que o termo relevante é Öffentlichkeit, com um
sentido muito amplo em alemão.

56
responsabilidade de um por todos e de todos por um” a juntar ao mercado e à moeda
(…)113.

O caminho que esse modelo sincrético expressamente visa trilhar – apenas o caminho –
é o de uma verdadeira democracia europeia. Estamos muito longe das explicações
simplistas dos primeiros anos; de certa forma, a já referida boutade de Jacques Delors
ao designar no início dos anos 90 o processo europeu como um OPNI – objecto político
não identificado – reflectia essa perplexidade perante uma realidade mutante, mutável,
complexa e, por tudo isso, difícil de apreender.

No que respeita aos paradigmas clássicos, o supranacional – ou integração como


processo – assenta no neo-funcionalismo e teve como primeiro grande teorizador Ernst
Haas114; postulava um estádio final da construção europeia muito próximo da instituição
de um Estado (uma união política), a que chegariam as comunidades através de um
processo de crescimento permanente dos respectivos poderes, inevitável e mais ou
menos contínuo, obtido por efeito de contágio ou difusão das decisões, conhecido como
spillover effect. Na forma funcional, o spillover explica como a integração numa
determinada área de política, por exemplo no mercado interno, pressiona a interação
em áreas conexas, como a moeda115; também implica os actores nacionais ou
subnacionais envolvidos no processo, cujos interesses justificam esforços de maior
integração – é o caso dos partidos políticos europeus, dos deputados europeus, dos
comissários, das ONG e lobbies registados em Bruxelas, dos próprios funcionários das
instituições europeias.

113
Lucas Pires, 1998, citado, pág. 8. Nesse texto, aliás, o autor cita, de Vittorio Hoesle, in Ethik und Politik,
Munique, 1998, pág. 867, uma frase premonitória: “(…) paradoxalmente, o triunfo total do sistema de
valores do mercado seria, ao mesmo tempo, a sua hecatombe”.
114
“The uniting of Europe”, de 1958. Haas inspirou-se na teoria funcionalista de David Mitrany, sobretudo
em “A Working Peace System”, de 1943, que via nos avanços na tecnologia e na participação política de
massas um factor de pressão para os Estados cooperarem no seio das organizações internacionais. Sendo
as estruturas estatais inadequadas para gerirem os interesses socioeconómicos comuns, os Estados,
crescentemente interdependentes, eram levados a cooperar para resolver problemas comuns e tirar
partido da eficácia dessa cooperação (numa lógica análoga à das «economias de escala», digamos), que
se iniciava em questões técnicas e em áreas não políticas, menos controversas do que as mais tarde
referidas como de high politics, ou de soberania.
115
Continuamos a considerar a moeda única como a consequência inevitável do aperfeiçoamento do
mercado comum pelo mercado interno. Sem esse passo, nunca o mercado interno poderia (poderá?)
funcionar adequadamente e os obstáculos à livre circulação de factores e de pessoas persistirão.

57
O processo, auto-sustentado, teorizado por inúmeros comunitaristas ao longo de
décadas, continha uma componente determinista clara, de matriz vagamente hegeliana,
baseada numa “integração regional de contornos e objectivos bem definidos e
inevitáveis”116. Levaria à criação de uma entidade política específica, fortemente
integrada, embora não necessariamente à custa da independência dos seus membros.

Mas o seu automatismo e natureza eminentemente tecnocrática tornaram-no


desadequado a um processo em parte baseado em acordos entre Estados, para além da
dificuldade do paradigma em acomodar a integração nas áreas e sectores mais próximos
da soberania nacional, como muito bem consideraram, em sentidos divergentes,
Andrew Moravcsik e Stanley Hoffman117.

Já o paradigma federal, da integração como Estado, com antigas tradições e fortemente


ancorado no imaginário europeu118, tem uma forte componente ideológica e integra um
projecto político: o da criação de um novo Estado baseado nos conceitos e nas soluções
federalistas. Refira-se que se muitos autores, actores políticos e académicos
defenderam esta solução, muitos o continuam a fazer nos nossos dias. De facto, em
situações de crise, a tendência para propor saídas "fortes", com carga ideológica e
visando a instituição de entidades (políticas, em primeiro lugar) novas, tornam o
paradigma federal, a par do da defesa do interesse nacional, intergovernamental, mais
ou menos intemporal e recorrente119. E importa salientar que, de certo modo, inúmeras
soluções incluídas nos tratados são já de pendor marcadamente federal – legitimando
ideias de federalismo sem Estado, como querem diversos autores. O caso da moeda
única é o mais óbvio.

116
Sande, O sistema político…, citado, pág. 27.
117
Neste último caso, num documento seminal de 1966, propondo a distinção entre high politics, tendo
que ver com matérias relativas à própria existência do Estado (ordem pública, defesa, política externa) e
as low politics, todas as outras (as categorias naturalmente não são estanques nem definitivas).
Moravcsik, por sua vez, considerava que as decisões-chave – as high politics – decorriam da referida
negociação interestatal ou intergovernamental e não de qualquer mecanismo quasi-automático de
integração sucessiva e permanente.
118
Veja-se o capítulo sobre a história moderna da unificação europeia, III.2.2 e III.2.3.
119
Basta aliás visitar o sítio da União dos Federalistas Europeus para ter uma ideia da respectiva visão e
ambição. Em https://www.federalists.eu/.

58
A terceira tese, do interesse nacional ou da integração como defesa do Estado-nação,
ao contrário das outras duas, é uma tese eminentemente intergovernamental; ela tem
de resto defensores e detractores empenhados.

Essencialmente, postula que a União não passa de uma organização de natureza


interestatal, que beneficia de simples transferências de competências estatais,
temporárias, e cujo objectivo é preservar o Estado-nação ameaçado. Alain Milward, por
exemplo, considera mesmo que todo o projecto europeu foi concebido e desenvolvido
com esse propósito120. As comunidades serviriam então para regenerar e adaptar os
Estados nacionais ao mundo contemporâneo, permitindo-lhes sobreviver, e teriam
como destino, ultrapassadas as contingências decorrentes dessa ameaça e o dever
cumprido, extinguirem-se.

Não parece contudo irrealista considerar a União uma forma de preservação das
soberanias nacionais sem com isso a condenar à precariedade e a uma espécie de
"morte anunciada": isto é, ambas podem co-existir e adaptar-se, numa nova realidade -
uma nova "criatura" política - menos tributária de realidades conhecidas e pré-
existentes; e isso, quer estejamos perante percepções mais liberais quer mais realistas
do intergovernamentalismo121. Face aliás à evolução do processo de integração, por
outro lado, este paradigma, mantendo-se activo numa perspectiva sobretudo
ideológica, também evoluiu, por vezes tocando a fronteira de modelos claramente euro-
cépticos ou até anti-integração europeia.

O intergovernamentalismo liberal, proposto e teorizado por Moravcsik, dominou parte


da discussão sobre a integração europeia nos anos 90 do século passado. À
predominância dos governos nacionais, acrescentava a ideia das preferências nacionais

120
Em “Allegiance – the past and the future”, in Journal of European Integration History, Nomos, vol. 1 nº
1, Baden-Baden, 1995, pág. 11.
121
A distinção é estabelecida por Moravcsik, em "Taking preferences seriously: a liberal theory of
international politics", in International Organization 51 (4) MIT Press, outubro de 1997, págs. 513–53. Ver
em JSTOR na morada http://www.jstor.org/pss/2703498. O liberal intergovernamentism é baseado na
pretensão dos Estados nacionais em agir de acordo com padrões de preferências nacionais, conforme se
explica de seguida no texto; ao passo que no realismo o padrão dominante respeita à distribuição dos
recursos do poder ou à informação institucionalizada, realidades que a instituição da União visa acomodar
e conciliar. Ver também, de Moravcsik, “Preferences and Power in the European Community: a liberal
intergovernamentalist approach”, in The Journal of Common Market Studies, nº 4, vol. XXXI, Dezembro
de 1993 e o já referido “The Choice for Europe”, Cornell University Press, New York, 1998.

59
como base da negociação entre os Estados-membros, com acordos em pacote e
recompensas à margem, sendo a União estabelecida como regime intergovernamental
para assegurar o cumprimento dos compromissos estabelecidos nessa base. As
instituições supranacionais, ao contrário do que pretendia o intergovernamentalismo
clássico, eram irrelevantes no processo de integração.

O federalismo, a visão soberanista e os modelos funcionais são, pois, visões clássicas.


Sugestões mais recentes para explicar a natureza do sistema político europeu resultam
muitas vezes da sua evolução ou são meros artifícios teóricos, mais ou menos sincréticos
e, para atalhar caminho, pouco úteis. Noutros casos, há notáveis contributos para uma
melhor compreensão da realidade europeia e da sua colocação no xadrez complexo das
relações internacionais.

Veja-se, por exemplo, a ideia da Federação de Estados-nação (soberanos) proposta por


Delors em 1993, ainda hoje evocada; um oxímoro, como o próprio reconheceu ser a
opinião de muitos em entrevista concedida em 16 de dezembro de 2009, representa
uma forma de conciliar a permanência e subsistência dos Estados-nação com a única
solução eficaz de governação da realidade europeia que é, para os defensores desta
tese, como foi Lucas Pires, de matriz federal.

Eis como em 2009 Delors explicou a ideia, que aliás assimilou expressamente ao método
comunitário: duas ideias simples conciliadas, a de que as nações não vão desaparecer e
a necessidade de estruturas federais no topo - com a partilha de parte das soberanias
nacionais, em nome da eficácia.

Uma outra explicação inspira-se no institucionalismo, escola de pensamento que explica


a sociedade pela influência das instituições, sejam formais sejam informais, cuja
evolução na actualidade é referida como neoinstitucionalismo. São três as tendências
principais da teoria na sua aplicação à União Europeia122:o institucionalismo da escolha
racional, que salienta as preferências dos actores do processo de integração e a forma

122
Sugere-se, de Henry Farrel em Glückler J., Suddaby R., Lenz R. (eds), “Knowledge and Institutions.
Knowledge and Space”, The shared challenges of institutional theories: rational choice, historical
institutionalism and sociological institutionalism”, vol 13, Springer, Cham, 2018, consultado online em
https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-319-75328-7_2#citeas

60
como mudam em reacção às modificações das regras institucionais123, considera a
integração como o resultado da interacção entre essas preferências, a informação
veiculada (e percebida) e as instituições. O institucionalismo sociológico destaca a
cultura institucional e a socialização dos protagonistas, dando igualmente destaque às
normas e regras gerais na forma como moldam as identidades e preferências dos
referidos protagonistas. Finalmente, o institucionalismo histórico escolhe o efeito dos
factos passados nos factos presentes (e futuros), incluindo a dificuldade em prever as
consequências para o futuro das decisões praticadas pelos actores envolvidos em cada
momento124.

Mais recente ainda é a teoria da governança multinível, que rejeita aquilo a que chama
o simplismo das teorias clássicas, por considerar que a soberania na Europa se encontra
hoje dividida em inúmeros níveis de poder, que não incluem apenas Estados nacionais
e o nível supranacional europeu mas níveis subnacionais, regionais ou locais. A
complexidade dos múltiplos factores em jogo no processo, os níveis de poder
envolvidos, as mudanças poderosas e as implicações inesperadas da própria
integração125 não podem ser alcançados nem explicados pelas teorias clássicas126.

A integração europeia pode ainda ser encarada sob outros pontos de vista: uma
inevitabilidade (ou necessidade, numa versão mais suave)127, justificada por razões
objectivas128, não carecendo de grande explicação: é porque é, e o modo como se
relaciona, quer com as suas unidades constitutivas (os Estados), quer com a comunidade

123
Podendo ver-se aqui um afloramento de uma outra teoria comunitária, a dos “efeitos não queridos”,
que decorreriam por exemplo das alterações aos Tratados, e que eram consequências dessas alterações
que o legislador não previra – com importantes efeitos no decorrer do processo europeu. Apenas a título
de exemplo, o processo dos “spitzenkandidaten”, ou candidatos principais, que o Parlamento Europeu
pretendeu impor apesar de nada estar previsto expressamente no Tratado.
124
De novo se pode invocar a teoria dos “efeitos não queridos”.
125
Talvez se possa encarar o próprio Brexit como uma ilustração desse facto.
126
Hooghe, “Grand theories of European integration in the Twenty First Century”, 2019, citada e Hooghe,
Marks & Marks “Multi-level governance and European Integration”, citada, 2001.
127
E é como começamos este livro: pela palavra necessidade, de um continente em busca da sua
redenção. Capítulo I.1.
128
Como explica Figueira, António, “Modelos de Legitimação da União Europeia”, Principia, Cascais, 2004,
invocando Philippe Schmitter e o seu "princípio moderno do limiar" (segundo o qual os países deviam ter
uma dimensão mínima para se justificarem). Refere Figueira que, aplicando o princípio à realidade actual,
Schmitter considera que o território das unidades políticas tende continuamente a crescer: "(...) ao
apresentar a unificação da Europa como o corolário de um processo histórico inevitável, desloca-a do
plano das possibilidades políticas para o das certezas científicas, tornando fútil qualquer discussão sobre
os seus méritos", pág. 15.

61
internacional, resulta das soluções concretas em cada momento escolhidas para
interagir com as circunstâncias.

Não parece que seja assim: é certo que, durante décadas, a irreversibilidade do acervo
comunitário129e o permanente crescimento das competências das comunidades terão
contribuído para a percepção de uma realidade indiscutível, indiscutida e em
permanente devir (com término na integração política e sem cuidar de agendas ou
visões políticas); mas os últimos anos, sobretudo, têm mostrado a fragilidade do
projecto, importante e ambicioso e por isso frágil e ameaçado, cada vez mais baseado
em acordos e negociações intergovernamentais130, flexível e reversível131, em constante
alargamento e menos evidente aprofundamento, para usar a terminologia tradicional.

Claro que a essa realidade se contrapõe uma União com cada vez mais poderes e onde,
a despeito das crises (ou graças a elas?), novas soluções consolidam e desenvolvem a
unificação, como a moeda única, a política de defesa, o mandado europeu de busca e
captura (no passado recente), o governo económico europeu (em “construção”) ou até,
para densificar em novos planos de governança, a criação do Procurador de Justiça
europeu.

Essas contradições e os paradoxos delas resultantes remetem para o patamar distinto


da legitimidade da existência da própria UE132. Nesse contexto pode ser útil a ideia da
União como um patamar da evolução da história política da humanidade, concepção de
natureza evolucionista para quem todas as realidades políticas e institucionais actuais,
como o Estado-nação, mais não são do que fases da história da humanidade, que não
terminou, pelo que não podem durar para sempre. Exit, pois, o tempo do Estado-nação,
bem-vinda a era das polity133 pós-modernas, de que a União Europeia seria o primeiro
afloramento. Em 1995, Ian Ward descreveu a visão pós-moderna da integração europeia

129
O “acquis communautaire”.
130
A crescente importância do Conselho Europeu em todo o processo de decisão, sobretudo após o
Tratado de Lisboa, ilustra bem a asserção.
131
Referência ao fim do “acquis communautaire” e à possibilidade de reversão de políticas europeias,
devolvidas à competência nacional (com o recurso, quiçá, ao princípio da subsidiariedade), mas também
ao novo mecanismo das cooperações reforçadas (ver capítulo VI.1.5).
132
Neste capítulo II.4. ainda, o tema crucial da legitimidade do processo europeu de integração.
133
No sentido de chapéu que cobre o papel das instituições que moldam directamente a forma como a
sociedade é governada; mais simplesmente, uma forma específica e particular de sistema de governo.
Não confundir com política ou políticas (policies).

62
conjugando identidade (por identificar) com pluralismo e respeito por valores
democráticos, mas sem uma visão teleológica (sem uma finalidade política específica),
ainda assim "acima da soberania" nacional.

Abandonada a visão holística, quase profética, das teorias clássicas da integração


europeia - a federação como fim ou resultado último, o gradualismo neo-funcional a
conduzir a integração num contínuo aprofundamento -, emergem novas hipóteses,
entre as quais se reafirma com fervor a linha realista da predominância dos Estados-
nação, cujos interesses conduzem o processo. O problema pode ser a visão maniqueísta
da União como uma ameaça à preservação dos Estados nacionais, sem admitir vias
alternativas para o processo europeu.

Então, o quê? A união como um sistema político pós-nacional que se limita a ser
(descrito como) uma realidade indeterminada e descentralizada em resposta às
condições materiais de um novo tempo, de um mundo globalizado em que as unidades
dominantes, os Estados-nação, perdem consistência e razão de ser, como nas propostas
de Wallace e Ward134?

Uma realidade discursiva, com o “espaço público europeu” no centro, qual àgora dos
novos tempos, como quer Habermas?

Um sistema misto, conjugando aspectos supranacionais com intergovernamentais e


com um crescente número de elementos que não são nem uma coisa nem outra, pois
que resultam da simbiose daqueles com um contexto globalizado e em rede (ELSJ,
cidadania), num mundo poliárquico e com múltiplos níveis de governação? Talvez um
pouco de cada.

Torna-se difícil navegar na abundante plêiade de sugestões e propostas sobre o tema:


Karl Popper escreveu um dia que nos podemos tornar criadores do nosso próprio
destino quando deixarmos de querer ser os seus profetas. Esse é o desafio, que nos

134
“Que tipo de animal é a Comunidade: uma federação em construção, uma organização invulgarmente
bem desenvolvida para a gestão por governos de uma complexa interdependência (ou, como os
académicos das relações internacionais parecem agora preferir chamar-lhe, um regime difuso formal), ou
um qualquer tipo de híbrido sem paralelo seja no sistema internacional contemporâneo seja em tempos
mais recuados?”, Wallace, William, “Less than a Federation, more than a Regime: the Community as a
Political System”, em Policy-Making in the EU, H. Wallace e C. Webbs edits., Chicester: John Willey, 1983,
tradução livre.

63
reconduz ao desafio lançado por Francisco Lucas Pires há mais de vinte anos, propondo
agir sobre o destino em vez de o tentar adivinhar, ou postular mecanismos automáticos
deterministas.

O essencial mantém-se: fazer da sociedade civil europeia, dos aspectos culturais, da


partilha de objectivos e dos sentimentos concomitantes, em associação com o mercado
e a moeda, o húmus que fundamenta o telos europeu - ou, melhor, de que o telos resulta
(seja ele qual for). O resultado dessa combinação está por determinar e não parece que
seja possível, nestes tempos e circunstâncias, ir mais longe.

Uma perspectiva de natureza diferente, mas igualmente relevante para explicar a


natureza da União Europeia respeita à hipótese da respectiva constitucionalização (ou
não). Uma Europa dotada de uma Constituição assumiria natural e provavelmente em
definitivo uma dimensão institucional consolidada, a par dos Estados-nação que a
constituem. São abundantes os elementos legais de natureza constitucional presentes
na construção europeia, expressão aliás de um sistema em evolução de cariz federativa,
sem ser federal, como acima se refere.

A UE seria assim um sistema constitucional com várias camadas, agregadora de uma


ordem comum de relações e interdependências, mais “processo” (constitucional) do
que forma135. O problema são os excessos voluntaristas e precipitados, como o que
levou ao projecto gorado da Constituição europeia. A confirmar-se esta via e a
constitucionalização do processo de construção europeia, tratar-se-ia de uma ordem
constitucional especial. E os autores dividem-se entre considerar essa nova ordem como
uma emanação das culturas constitucionais nacionais, das quais dependeria para a sua
própria existência e cuja tessitura legal integraria136, ou como uma realidade a caminho
da autonomia e da consolidação, de que o Tratado Constitucional, na apressada
perspectiva referida, poderia ser o passo derradeiro.

Mas talvez o mais importante traço da evolução contemporânea das tentativas de


explicação da União, abandonadas (ou suspensas) as grandes visões finalistas ou
ideológicas, consista justamente na dicotomia entre as duas abordagens seminais: a

135
Consultar a este propósito o capítulo V.
136
A profunda imbricação entre os ordenamentos jurídicos respectivos, quer na dimensão do direito
derivado quer no domínio das garantias judiciais, parece confortar tais ideias.

64
integração como alternativa aos Estados nacionais ou a integração como complemento
dos Estados nacionais.

O que continua a ser relevante para a compreensão desta realidade é a fractura central
ao projecto europeu, entre a dimensão nacional e os interesses por si projectados e a
nova entidade indefinível, dotada de um direito que se impõe aos seus membros, um
verdadeiro “mistério embrulhado num enigma”137 da cena política internacional.

Outras fracturas e diferenças podem ser identificadas ao longo do processo de


construção europeia, com diversas consequências e implicações. Abordamo-las de
seguida numa perspectiva objectiva tributária essencialmente das relações
internacionais, antes de tratar da questão central da legitimidade democrática do
processo de construção europeia na última parte deste capítulo.

II.4.3. As fraturas no processo de construção europeia

Na construção da Europa, são patentes inúmeras e antigas fraturas entre as diferentes


dimensões do processo: países pobres e ricos, grandes e pequenos, identidades
nacionais e identidade europeia, países fundadores (originários, dos anos 50) e países
“dos alargamentos”, “antigos” e “novos” Estados-membros, a “velha” e a “nova”
Europa.

A fratura, ou ponto de confronto mais importante, que tem marcado decisivamente o


processo de construção europeia e que, de alguma forma, também o caracteriza,
respeita a duas posições distintas sobre a visão europeia: a dos adeptos de uma Europa
mais integrada, por um lado, com diferentes graus, é certo, mas sempre numa
perspectiva supranacional, de aprofundamento constante da integração numa união
“cada vez mais estreita”138 entre os europeus; e os defensores de uma Europa dos
Estados, eminentemente nacional, sobretudo intergovernamental e só subsidiária e
instrumentalmente supranacional.

137
Referência à célebre frase de Churchill, num programa de rádio em 1939: “(Russia) ... is a riddle,
wrapped in a mystery, inside an enigma; but perhaps there is a key. That key is Russian national interest."
138
A frase que, durante muitos anos, fez de epítome da missão europeia, e que constava do intróito do
Tratado que instituía a Comunidade Económica Europeia.

65
Esta dicotomia manifesta-se ainda muito antes da existência das comunidades
europeias. Ao longo da História, como se refere noutras partes deste livro, muitas vezes
se aventou a possibilidade do estabelecimento dos 'Estados Unidos da Europa', um
verdadeiro sucedâneo da nação americana e uma realidade supranacional por
definição139. No passado imediato, o Congresso da Haia de 1948, embrião do futuro
Conselho da Europa, assistiu ao confronto entre federalistas e defensores de uma via
intergovernamental, estes advogando irredutivelmente o princípio “um país um voto”,
confronto esse que não mais findou.

Ao longo dos anos desde a criação das comunidades, são inúmeros os momentos que
testemunham essa oposição140, permitindo-nos entender melhor a razão de impasses
ou de "saltos em frente" no processo europeu: na generalidade dos Conselhos
Europeus, no âmbito dos processos de revisão dos tratados, quer nas Conferências Inter-
Governamentais (CIG) quer mesmo aquando dos referendos nacionais realizados em
vários países, na Convenção prévia à adopção de uma Constituição para a Europa, e em
tantos outros momentos, de um lado têm estado sistematicamente os adeptos de mais
integração, do outro os que se lhe opõem. E se nos momentos solenes ou nas grandes
congregações esse maniqueísmo parece mais visível, não deixa de se tratar de uma
divergência de fundo presente no dia-a-dia da União.

Do ponto de vista terminológico, uns são conhecidos como supranacionalistas,


euroentusiastas, europeístas, federalistas141 ou eurófilos, enquanto os segundos – os
intergovernamentalistas – são eurocépticos, soberanistas ou até anti-europeus142.

Esta ruptura ou divisão fundamental no processo de construção europeia vai a par com
outra dicotomia básica, também já referida neste livro: a que separa o método
comunitário do método intergovernamental. O primeiro é o favorito dos

139
Ver capítulo III.
140
Tem sido sistematicamente o caso das revisões dos Tratados, com um e outro lado a dirimirem as suas
(mais ou menos irredutíveis) ideias e a apresentar os seus paladinos.
141
A designação tem contornos e definição muito concreta, ancorada que está na história da própria
União, na existência efectiva de sistemas federais e na definição que dela faz a ciência política. Questão
diferente (e por isso usada nesta instância) é o facto de a designação ser, neste caso, utilizada
indiscriminadamente e sem qualquer rigor científico ou factual apenas para indicar os partidários de uma
união mais estreita.
142
Expressão provavelmente tão reprovável e demagógica, na direcção oposta, como chamar federalista
a quem quer que seja que preconize uma maior integração.

66
supranacionalistas, o segundo tem a preferência dos defensores das soberanias
nacionais. Mas tenha-se em atenção que não se trata de categorias puras, nem há uma
correspondência absoluta entre a ambivalência ideológica fundamental - mais/menos
integração - com a perspectiva funcional que os métodos representam. Pense-se, por
exemplo, que o método intergovernamental pode levar a decisões que aprofundem a
integração, e o contrário também é verdadeiro. Não é frequente, nem normal, mas é
possível.

Na Cimeira de Nice e na CIG que concluiu o respectivo Tratado, emergiu um novo padrão
de diferença ou tensão intracomunitária que, por momentos, pareceu tornar irrelevante
a díade supranacional/intergovernamental: o debate sobre a reforma institucional no
seio do Conselho Europeu, e em particular a respeito da formação da decisão no seio da
União (limiar da decisão, minorias de bloqueio143), fez-se sobretudo com base no
confronto das distintas posições de países maiores e mais fortes economicamente com
as médias (sobretudo estas) e pequenas nações europeias. Foi o tempo dos receios com
o directório, palavra tomada emprestada ao governo francês de 1795 a 1799, e a que
em português tem sido dado o sentido de dominação por parte de um conjunto de
países mais influentes (ricos ou poderosos) sobre os restantes.

Não se trata de uma designação muito correcta - atento inclusivamente o significado


corrente de "lista de arquivos" ou "instrução escrita" - ainda que consagrada na língua
portuguesa, na acepção política, como "conselho que dirige uma agremiação política,
partido, etc. nacional ou regional". Mas o significado de "grupo dominante" entrou
rapidamente no léxico político utilizado pela opinião pública e publicada, pelo menos
em Portugal144.

Importa também salientar que as razões dessa preponderância não são nem constantes
nem sequer claras: tanto podem basear-se na respectiva dimensão geográfica ou
populacional (os países maiores e mais populosos constituem em si mesmos, ou
coligados, directórios); como em alianças pontuais ou circunstanciais (ingleses e

143
Capítulo VIII.
144
Os significados colocados entre aspas no texto anterior são todos retirados do dicionário Houaiss da
língua portuguesa, na entrada “directório”.

67
franceses em Saint-Malô, em 1998145), de natureza estratégica ou política; como no peso
económico ("países ricos" face aos "países pobres"). É relevante salientar que o grande
alargamento dos anos 2000 tornou estas divisões muito menos regulares ao trazer ao
seio da União, pela primeira vez, países que, sendo grandes em território e população
(caso da Polónia) não tinham grande dimensão económica; até então a regra era a
coincidência entre países grandes e ricos, não havendo qualquer país grande
manifestamente mais pobre do que a média (o contrário, porém, já não é verdadeiro).

A crise económica e financeira e uma liderança clara da Alemanha, usando o seu poder
económico para impor determinadas regras (o "modelo alemão") veio ressuscitar parte
desses receios. Foi aliás curioso verificar como, perante propostas apresentadas (na
verdade mais pressentidas do que verdadeiramente formalizadas) pelo eixo franco-
alemão - refeito para a ocasião -, houve críticas relacionadas com uma pretensa
imposição que ameaçava as soberanias nacionais e, ao mesmo tempo, observações
relativas ao predomínio do método intergovernamental (em prejuízo do comunitário),
face ao apagamento das instituições europeias.

No fundo, mais um sinal de que tensões de sentido múltiplo se conjugam, não


reflectindo senão a complexidade das situações - ao mesmo tempo que se equilibram
entre si, num permanente jogo de freios e contrapesos que caracteriza os processos de
decisão na União, está sempre presente o choque entre soberania nacional e a
supranacionalidade europeia.

Nos anos mais recentes, após as muitas crises das duas primeiras décadas do século
XXI146, esse choque assumiu uma dimensão mais genérica e generalizada, com a
oposição aos movimentos e processos de integração “globalizados” ou mundializados,
oposição essa assente muitas vezes em propostas ou projetos políticos populistas ou

145
Na sequência de uma cimeira na cidade francesa de Saint-Malo, em 1998, entre Tony Blair e Jacques
Chirac, respetivamente primeiro-ministro britânico e presidente francês, foi adotada uma declaração
conjunta, que entre outras coisas afirmava que a União se deveria dotar de meios militares, que fossem
a um tempo efetivos e operacionais e que lhe permitissem atuar em cenários internacionais de crise.
Muitos consideram essa declaração o ponto de partida para a criação de uma verdadeira política de
defesa e segurança comum na UE.
146
Crise económica iniciada em 2008, crise dos refugiados, crise do Brexit, pandemia…

68
nacionalistas. Tais projetos e programas encaram a UE como um adversário, espécie de
paradigma da ameaça permanente à identidade e à soberania dos povos147.

Como antes referido, grandes versus pequenos, tal como a lógica do eixo franco-alemão
ou de outros, mais perspectivados do que reais, é uma outra fratura que se manifesta,
por vezes, no âmbito da União, sem ser, contudo, a mais importante divisão e fonte de
tensão entre os Estados-membros. Essa continua a ser a que separa os adeptos do
aprofundamento da integração dos que o rejeitam.

Nos últimos anos, e em particular com a aceleração dos alargamentos e a entrada de


novos países, de zonas geográficas bem diferenciadas148 e com níveis médios de
desenvolvimento claramente inferiores à restante Europa, emergiu uma nova divisão
entre os membros mais antigos da União e os mais recentes. São estes referidos como
os países "do alargamento"149, discriminados em relação àqueles. É uma fractura que
poderá tender a reduzir-se, com as diferentes vias de consolidação da integração
(institucional, política, de adesão às políticas europeias150), e até graças ao
desenvolvimento económico desses países.

Especificidade importante é a que distingue países originários - os Seis fundadores das


comunidades europeias - de todos os restantes; é uma divisão menos relevante, já que
em muitos casos - como no dos países nórdicos, ou, em menor escala, dos países ibéricos
- os países "dos alargamentos" não originários têm um elevado grau de integração e de
indiferenciação, seja política, social ou até económica, em relação aos fundadores.

Bastante mais ideológica e de contornos muito diversos é a referida distinção entre a


"velha" e a "nova" Europa: com forte carga simbólica, resulta do confronto entre as duas
margens do Atlântico a propósito da participação europeia na invasão do Iraque, em
1993, em consequência da qual o secretário norte-americano da Defesa Donald
Rumsfeld etiquetou os países europeus cépticos em relação a essa invasão como

147
Veja-se também, a este propósito, o que se diz no ponto I.2, sendo a ótica principal a globalização.
148
É o caso do "Leste" europeu.
149
13 países aderiram entre 2004 e 2013: Croácia (em 2013), Bulgária e Roménia (em 2007), Chipre,
Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia, República Checa (2004).
150
Ao euro, a Schengen, etc.

69
fazendo parte da "velha Europa", impotente e retrógrada, face ao grupo dos então
solidários com os EUA.

Esta fractura encontrou de um lado e do outro do respectivo ponto de ruptura todas as


outras divisões: países ricos e pobres, grandes e pequenos, antigos e recentes,
indiferenciadamente, foram colocados do lado da "velha" como da "nova" Europa. O
critério de separação era eminentemente ideológico.

Os protecionismos e populismos que têm vindo a emergir nos últimos anos, com
expressão prática em partidos que se opõem, a um tempo, à globalização e às
organizações internacionais que a procuram regular e disciplinar, de que a UE é um dos
mais importantes exemplos, têm vindo a impor novas fraturas, de grande impacto e
consequências. O seu objetivo quase único – e comum – consiste em levar à
desagregação das organizações que consideram ser os expoentes mais representativos
da chamada “globalização”, como aliás tem sido explicitamente reconhecido por alguns
dos seus mentores principais – seja, no caso do Brexit, relativamente à integração
europeia, ou na oposição mais genérica às realidades internacionais, sejam
intergovernamentais sejam supranacionais151.

Outras tensões e fracturas podem emergir a qualquer altura no âmbito do processo de


integração europeia. De algum modo, esse factor é potenciado pelo aumento da
importância das políticas de cooperação reforçada ou de políticas como a UEM, com
países dentro e fora da zona monetária e do euro. Mas a prevalência continuará a ser
da oposição supranacionalismo versus intergovernamentalismo, uma constante em
todos os momentos da construção europeia.

151
Na retórica, por exemplo, de um dos principais mentores e defensores do Brexit, Nigel Farage, ou do
45º Presidente norte-americano Donald Trump. Neste último caso, todos os símbolos – ou sequer
suspeitos – do multilateralismo, organizações internacionais, acordos ou instituições eram por definição
objeto de crítica e objeto de ações mais ou menos hostis. Acrescem teorias da conspiração, com as quais
não perderemos muito tempo, que consideram a globalização um processo subversivo, com um centro
de comando obscuro mas altamente organizado, muito antigo, ao serviço de elites globais (veja-se a título
de exemplo, Madalina Calance, o artigo Globalization and The Conspiracy Theory” Elsevier, 30 out. 2014
(em https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2212567115004748)

70
II.4.4. A legitimidade democrática da União Europeia: problemática do défice
democrático, situação actual

Durante uma parte substancial do processo de integração europeia, a expressão “défice


democrático” foi usada para referir a perda de controlo das políticas cujas competências
passavam da esfera nacional para a comunitária, sem que o Parlamento Europeu tivesse
os poderes de controlo político ou normativo sobre decisões que, por essa via, deixavam
de ser escrutinadas pelos parlamentos nacionais (ergo, por qualquer parlamento).

"Legitimado pelo voto popular, o PE assumiu a responsabilidade de ser a voz dos


cidadãos, carregando o fardo de uma 'responsabilidade sem poder'. (...) como as
competências nacionais transferidas para a esfera da Comunidade, anteriormente
sujeitas ao escrutínio das assembleias nacionais, não encontravam no PE um controlo
correspondente, começou a falar-se de 'défice democrático' (...)"152. A falta de
competências da assembleia relativamente a poderes “comunitarizados”, previamente
sob a alçada democrática dos parlamentos nacionais, tornou patente um défice de
controlo democrático.

Quer pela acção do TJCE, quer graças ao aumento constante dos poderes do PE,
alargados ao ponto do seu poder legislativo abranger actualmente a quase totalidade
das políticas europeias, no processo de co-decisão, deixou de fazer sentido falar em
défice democrático na acepção referida. Na verdade, o longo processo de reforma
institucional que a União empreendeu entre o Tratado de Maastrich e o de Lisboa, teve
como objecto principal o reforço dos fundamentos democráticos da sua existência (a
par da eficácia); foi desde logo o caso da dimensão constitucional (Tratados, princípios
básicos, o direito) e dos poderes de decisão, com limitação de poder, liberdade e
devolução de soberania aos cidadãos, permitindo falar, a respeito do funcionamento da
União, num sistema político equilibrado de freios e contrapesos153. A democracia e os
valores enunciados no artigo 2º do TUE tornaram-se ainda mais nas pedras angulares
do processo europeu: a Carta dos Direitos Fundamentais, criada em Nice com mero valor
proclamatório, foi reconhecida em Lisboa como vinculativa, a democracia participativa

152
Sande, 2000, citado, pág. 64.
153
Checks and balances, na versão inglesa, com raízes no constitucionalismo americano e nos Federalist
Papers.

71
passou a fazer parte do léxico europeu, os valores da União foram reforçados e
reiterados. O artigo 10º TUE em vigor é claro sobre a legitimidade europeia, ao
determinar:

"1. O funcionamento da União baseia-se na democracia representativa. 2. Os cidadãos


estão directamente representados (...) no Parlamento Europeu. Os Estados-membros
estão representados no Conselho Europeu pelo respectivo Chefe de Estado ou de
Governo e no Conselho pelos respectivos Governos, eles próprios democraticamente
responsáveis, quer perante os respectivos Parlamentos nacionais, quer perante os seus
cidadãos. 3. Todos os cidadãos têm o direito de participar na vida democrática da União
(...). 4. Os partidos políticos a nível europeu contribuem para a criação de uma
consciência política europeia e para a expressão da vontade dos cidadãos da União (...)".

Além da representação democrática, que os partidos políticos a nível europeu também


asseguram, o novo Tratado dá passos firmes na democracia participativa: é o caso do
direito de iniciativa popular previsto no artigo 11º TUE154, que declara que os cidadãos
e as associações representativas têm a possibilidade "de expressarem e partilharem
publicamente os seus pontos de vista sobre todos os domínios de acção da União".

O termo ganhou entretanto nova dimensão, sendo utilizado pela generalidade dos
opositores da UE, que criticam as suas instituições e a “burocracia não eleita de
Bruxelas” – para referir a Comissão -, os deputados europeus que “nada fazem”155 e são
eleitos por uma minoria de europeus, os órgãos e instituições “opacos” e pouco
democráticos que constituem o corpo institucional da organização em geral.

Escreveu António Figueira156, a respeito da questão da legitimação do processo


europeu: "Uma nova polity europeia, qualquer que seja a forma que assuma, deverá
sempre possuir um módico de legitimidade; (...) o conceito de legitimidade (...), no
domínio da filosofia política, constituirá o corpo de normas pelo qual se avalia a

154
Direito dos europeus solicitarem à Comissão que apresente novas propostas, através da participação
de pelo menos um milhão de pessoas de um número significativo de Estados-membros, de acordo com
Reg (EU) 211/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Fevereiro e Reg (EU) 2019/788 do
Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de abril de 2019.. Ver também artigo 24º TFUE.
155
Nigel Farage perante o plenário do PE em Junho de 2016: “I know that virtually none of you have ever
done a proper job in your lives, or worked in business, or worked in trade, or indeed ever created a job”.
156
Figueira, 2004, citado, pág. 17.

72
governação, enquanto no da sociologia será a medida do apoio popular de que esta
beneficia. (...) Seja que tipo for de criatura política, a UE terá, portanto, de ser uma
criatura política legítima (...)".

A legitimidade das suas instituições será sempre, a um tempo e em simultâneo, fonte e


consequência da legitimidade da própria União. Mas as instituições possuem pelo
menos formalmente um módico considerável de legitimidade, na origem (escolha
democrática em eleições) como no corpo de normas:o Conselho, integrado por
representantes dos governos dos Estados-membros, é a emanação das democracias
nacionais; os deputados ao Parlamento Europeu são eleitos directamente pelos
cidadãos europeus em eleições europeias; os membros da Comissão respondem
politicamente perante o PE, que aprova a sua escolha e elege o seu Presidente, após
indicação por parte do Conselho Europeu157.

Mas a ideia de que a transferência de soberania dos Estados nacionais para a esfera da
integração europeia alienou os cidadãos do processo democrático ganhou força e
tornou-se o elemento central da contestação em relação à UE. Pretende-se que as
instituições europeias, pela sua complexidade e distância dos cidadãos, carecem de
legitimidade democrática, não havendo além disso forma dos eleitorados nacionais se
oporem ou rejeitarem a governação europeia, nem de influenciar a respectiva tomada
de decisão e o rumo das políticas europeias.

Afinal, perguntam os críticos do processo de integração, quem é responsável? A quem


se dirigir em caso de dúvida ou contestação?

É um facto que a burocracia das instituições europeias, sedeada em Bruxelas, mas


também em Estrasburgo e no Luxemburgo e nas capitais europeias, integra algumas
dezenas de milhares de funcionários bem pagos e, por definição, não eleitos. Também
deve reconhecer-se a complexidade do processo de decisão e do funcionamento das
instituições. Os comissários europeus são vistos como personalidades distantes das

157
Nos termos do artigo 17º nº 7 TUE, tendo "(...) em conta as eleições para o Parlamento Europeu" (isto
é, naturalmente, as maiorias políticas delas resultantes).

73
realidades nacionais, pelo menos por parte dos países de que não são nacionais158. E
saber quem é o rosto da União, a pessoa responsável ultima ratio por tudo aquilo que a
organização produz, representa uma dúvida legítima, considerando o número e
natureza dos vários protagonistas europeus159.

Mas importa salientar o esforço feito ao longo de décadas para garantir um verdadeiro
sistema de “freios e contrapesos”, de controlo e legitimação democrática da
UE:reforçaram-se os poderes do Parlamento Europeu, instituição eleita, hoje um
verdadeiro co-decisor – com o Conselho de Ministros – na esmagadora maioria das
políticas. E se é certo que a taxa de participação nas eleições europeias é baixa, tendo
aliás baixado consecutivamente em cada acto eleitoral quinquenal desde 1979 até 2014
(aumentou pela primeira vez nas eleições de 2019), também é verdade que em muitas
eleições um pouco por todo o Mundo e em distintos actos eleitorais a participação é
baixa, sem que isso suscite qualquer tipo de contestação à respectiva legitimidade.

Por outro lado, à escolha dos deputados europeus faltou sempre o sentido último
natural de qualquer eleição legislativa: escolher entre os candidatos aqueles que, para
além dos programas políticos, se sabe poderem vir a ser, em caso de vitória, os
governantes. Para tentar aproximar o processo eleitoral europeu dos nacionais nessa
matéria, permitindo aos eleitores uma escolha concreta para o cargo de Presidente da
Comissão, e na esteira das alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa160, os grupos
políticos do PE apresentaram os seus candidatos principais às eleições de 2014. Assim,
o candidato apresentado previamente às eleições pelo partido político europeu
vencedor, deveria ser o proposto pelo Conselho Europeu ao próprio PE.

158
Por exemplo, muitos portugueses sabem quem foi Carlos Moedas na Comissão Junckers (2014/19),
alguns até conhecerão as suas funções como comissário europeu, mas desconhecem o rosto e as funções
de quase todos os outros.
159
Apenas a título de enumeração exemplificativa: Presidente do Conselho Europeu, da Comissão, Alto
Representante da PESC, Presidente do Conselho de Ministros, Presidente do PE, Presidente do BCE,
Presidente do eurogrupo. Remete para a velha questão atribuída a Kissinger: “qual é o número de telefone
da (então) comunidade europeia?”.
160
Que se limitava a referir: “ (…) Tendo em conta as eleições para o Parlamento Europeu e depois de
proceder às consultas adequadas, o Conselho Europeu, deliberando por maioria qualificada, propõe ao
Parlamento Europeu um candidato ao cargo de Presidente da Comissão” (art.º 17 7 TUE, citado
anteriormente). Mas o PE aprovou uma resolução estabelecendo a figura dos spitzenkandidaten, ou
candidatos principais, explicada a seguir no texto principal.

74
Tendo o PPE ganho as eleições em 2014, Jean-Claude Juncker foi eleito pela instituição
para o referido cargo.

Em 2019, o processo sofreu um revés importante, pois não foi possível ao PE eleger um
dos candidatos principais161, tendo a escolhida surgida de uma solução alternativa, na
pessoa da alemã Ursula von den Leyen, do PPE. É cedo para saber se o processo dos
spitzenkandidaten poderá sobreviver, embora nos seus discursos perante o PE, Leyden
tenha prometido trabalhar no seu aperfeiçoamento.

Importa ainda referir que o processo de eleição da restante equipa de comissários é


actualmente sujeito a um moroso e complexo processo de confirmação perante os
deputados europeus, que passa por audições várias e pode levar até à rejeição de um
ou mais nomes, como tem vindo a acontecer desde 2004. De certa forma, trata-se de
um procedimento mais rigoroso do que o da escolha dos executivos nacionais na maioria
dos Estados-membros.

Por esse lado também se pode defender a legitimidade do executivo europeu, que
presta contas em permanência ao PE, incluindo da gestão que faz do orçamento
europeu. Os comissários europeus, além de eleitos pela instituição democrática por
excelência da União, respondem a perguntas orais e escritas dos deputados europeus
sobre a condução dos respectivos pelouros e comparecem perante a Assembleia sempre
que solicitados. Cada comissário pode ser demitido a pedido do Presidente e o colégio
em conjunto pode ser afastado em caso de aprovação de uma moção de censura pelo
PE. Por outro lado, foi também reforçado o o papel dos parlamentos nacionais no
processo europeu, passando eles a ter uma palavra no controlo da subsidiariedade da
legislação europeia162.

No plano doutrinário, são três os critérios clássicos para determinar a legitimidade


política da União Europeia163: a legitimidade pelo desempenho, pela aplicação das

161
Os dois principais candidatos eram o presidente do PPE Manfred Weber, e o comissário holandês Frans
Timmermans (pelos Socialistas).
162
Vejam-se os capítulos VII.3.9. e o VIII.
163
Por todos, David Beetham e Christopher Lord, "Legitimacy and the EU" em Political Theory and the EU:
Legitimacy, Constitutional Choice and Citizenship, ed. Weale e Nentwich, Londres, Routledge, 1998. Sobre
a definição de legitimidade escreveu o mesmo Beetham em 1991: "Where power is acquired and
exercised according to justifiable rules and with evidence of consent, we call it rightful or legitimate” em
“The legitimation of power”, Humanities Press International, EUA, 1991. Regras e consentimento na base

75
regras da democracia e pela identidade. É sobretudo importante compreender que os
critérios aplicáveis a esta organização não são comparáveis nem se devem confundir
com os relativos aos Estados-nação; trata-se de realidades distintas e sem
correspondência de arquétipos.

Durante décadas, a legitimidade da União, aferida pelo seu desempenho, baseou-se no


crescimento económico e no aumento do bem-estar dos europeus. Essa tornou-se a
principal fonte de legitimação da construção europeia, de tal forma que durante
décadas (os "trinta anos gloriosos "), dispensou todas as outras, de natureza política,
estrutural ou de participação dos cidadãos.

O eurocepticismo do início dos anos 80 e especialmente o fim do paradigma político do


Mundo bipolar, com consequências de enorme efeito na União - a reunificação alemã,
o Não dinamarquês ao Tratado de Maastricht, a implosão do sistema monetário
europeu, a guerra nos balcãs, o próprio discurso sobre o défice democrático -, vieram
pôr em causa o consenso aparente relativo ao desempenho europeu, levando ao
princípio do fim do desempenho ou resultado como fonte (pelo menos única fonte) da
legitimidade da construção europeia.

Pode dizer-se que esse consenso era mais do domínio das elites, em cuja acção e
vontade se baseava, de certa forma, a criação e o desenvolvimento das comunidades
europeias, do que efectivamente uma qualquer manifestação de aprovação popular. É
comum ouvir opiniões segundo as quais a década de noventa representa o ocaso dessa
Europa das elites dominantes, paulatinamente substituída por uma realidade mais
próxima das pessoas, uma Europa emergente dos cidadãos.

Na verdade, ter-se-á tratado de um processo evolutivo, com substituição gradual e


progressiva da excepção pela regra, de uns quantos "iluminados" pela participação
popular. Não é inocente o estabelecimento da cidadania europeia logo em 1992, com o
Tratado de Maastricht, nem o já assinalado início de um processo de revisão dos
tratados em cuja matriz se assinalava o objetivo de o tornar mais transparente e
democrático.

da legitimidade política, pois. Mas trata-se de um conceito (e de uma definição) extremamente discutida
e difícil de fixar.

76
Os teóricos comunitaristas voltaram-se então para a democracia como fonte de
legitimação do processo de integração; em 1989, o cientista político Robert Dahl
apresentou cinco critérios para definir democracia164: participação efectiva dos
cidadãos, igualdade de voto no momento da decisão, compreensão dos processos,
controlo da agenda e inclusão. Na verdade, a ciência política trata do assunto há muitos
anos, assinalando a separação de poderes, a liberdade de escolha - voto e regra da
maioria - e a liberdade de expressão como os factores cruciais para a existência de uma
democracia. Mas o principal pressuposto da aplicação desses critérios continua a ser o
Estado-nação, pelo que a sua referência à UE - ou a qualquer outra forma supranacional
(ou pós-nacional, como também é costume referir-se-lhes) - implica uma adaptação a
uma realidade completamente distinta.

No fundo, tudo se joga no reconhecimento e na aceitação por parte dos governados: é


decisiva a percepção da existência ou não de uma legitimidade própria. Por isso mesmo,
posto em causa esse reconhecimento pelo défice crescente dos argumentos
relacionados com o desempenho, sem que possa ser posto completamente de lado,
foram-se tornando mais importantes as estruturas, os conteúdos e as regras de
funcionamento democrático: instituições, formas de escolha e participação, equilíbrio
de poderes, direitos de cidadania e sua tutela... Em suma, uma democracia no sentido
pleno, ainda que adaptada a um nível de integração e governação superior ao do Estado-
nação tradicional, para o qual ela foi inicialmente desenhada.

Segue-se o terceiro critério acima referido: a identidade. O sentimento de identidade


nacional estrutura a existência mesma das unidades políticas às quais se circunscreve165;
ora é difícil sustentar, ainda hoje, a existência na União Europeia de um tipo de
sentimento do mesmo género, uma identidade europeia em gestação. Na Europa, como
bem refere Joseph Weiler166, não existe um demos167que justifique a instituição e

164
Robert Dahl, “Democracy and its Critics”, New Haven, CT, Yale University Press, EUA, 1989. Também
muito importante e mais actual é, em 2000, On Democracy, do mesmo autor.
165
Ver capítulo V.
166
Em inúmeras obras que escreveu sobre o assunto, como por exemplo "European Citizenship: Identity
and Differentity" em European Citizenship an Institutional Challenge, ed. La Torre, Kluwer Law
international, Haia, 1998 ou The Constitution of Europe, Cambridge Press University, Cambridge, 1999.
167
Um povo.

77
desenvolvimento de uma entidade política que o represente. Ou se existe é ainda
incipiente.

A resposta pode passar pela consolidação do "espaço público europeu", que é em


simultâneo um local de afirmação de reconhecimento. É na intersecção de uma
cidadania pós-nacional com essa realidade nova onde se confundem convergências
discursivas com factos e acontecimentos indissociáveis da escala europeia, que se vai
construindo um novo paradigma político que os cidadãos também aprendem a
apreender. A identidade particular europeia vai fazendo o seu caminho, tornando-se o
esqueleto em torno do qual se estrutura uma construção europeia democrática e
legítima.

Em resumo, a Europa vai paulatinamente reforçando, dentro e fora das suas fronteiras,
exógena ou endogenamente, a sua legitimação política, através de uma combinação de
factores e critérios, do desempenho à democracia formal, da representação à
responsabilização, de um espaço público alargado à identificação crescente dos
cidadãos, agora legalmente "europeus", com uma realidade concreta, mas dotada de
valores específicos.

II.5. Adesão e saída da União Europeia - os “critérios de Copenhaga”

II.5.1. Os “critérios de Copenhaga” e o artigo 50º

Os valores próprios à construção europeia, conforme referido, são naturalmente um


elemento definidor da respectiva identidade168. É o caso da democracia como regime
político ou da economia de mercado como sistema económico, critérios necessários
para os países candidatos à adesão.

A qualidade de membro da União não está aberta a todos os países do mundo: como o
próprio nome da organização indica – União Europeia – ela destina-se por princípio a
países do continente europeu. O que, desde logo, levanta a questão das fronteiras da
Europa; a velha expressão “do Atlântico aos Urais” deixa por exemplo em aberto a
hipótese da adesão de países muito distantes do centro europeu, e se não faz muito

168
Capítulos II.2.1. e V.3.

78
sentido falar dessa possibilidade em relação à Federação Russa, é certo que não é de
excluir, no futuro, que países de regiões como o Cáucaso possam aspirar à integração
europeia.

Esta não é uma questão despicienda: em 1986, Marrocos pediu a adesão, pedido que
nem foi sequer considerado por não se tratar de um país europeu. Em 1992, e como
parecer ao pedido de adesão da Noruega, a Comissão enunciava assim os critérios
fundamentais para a adesão de um país: identidade europeia, estatuto democrático e
respeito pelos direitos fundamentais169.

Em 1993, numa Cimeira em Copenhaga, os chefes de Estado e de governo decidiram os


critérios para avaliar o processo de candidatura a membro da União por parte de
qualquer país. Ficaram conhecidos como os “critérios de Copenhaga”. São eles:

- A existência de instituições estáveis, que garantam a democracia e o primado do


direito, o respeito pelos direitos fundamentais e pelas minorias; é o critério político, aliás
prévio à própria aceitação da candidatura e ao início formal das negociações.

- A existência de uma economia de mercado viável, que possa integrar-se de forma


harmoniosa no mercado interno; é o critério económico.

- A capacidade de absorver e aplicar a legislação da União Europeia, nomeadamente por


parte da administração pública do país candidato; é o critério do acervo comunitário.

Esses critérios passaram a ser aplicados a todos os pedidos de adesão e estão hoje
consagrados no artigo 49º TUE, nos seguintes termos: “Qualquer Estado europeu que
respeite os valores referidos no artigo 2º e esteja empenhado em promovê-los pode
pedir para se tornar membro da União (...)”. Além dos valores estipulados no artigo 2º -
que consubstanciam em conjunto o primeiro critério (político)170 - são igualmente tidos
em conta “(…) os critérios de elegibilidade aprovados pelo Conselho Europeu (…)”, isto
é, os restantes critérios de Copenhaga.

169
Ver suplemento nº 2/93 ao boletim da Comissão Europeia desse ano.
170
Nos termos do referido art.º 2: ”A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da
liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do homem,
incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-
-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a
solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres”.

79
O processo decorre da seguinte forma: após o pedido por parte do país interessado, a
Comissão é consultada; o Parlamento Europeu tem de o aprovar por maioria dos
deputados que o compõem; cumprindo o candidato os critérios políticos, o início das
negociações apenas tem lugar após aprovação unânime por parte do Conselho. Segue-
se o processo de negociações, que fixa os termos da adesão, condições a respeitar pelas
partes, eventuais períodos de transição. Concluídas as negociações - considerando as
instituições europeias cumprida a totalidade dos critérios por parte do candidato -,
segue-se o período crucial das ratificações nacionais: todos os Estados-membros têm de
aprovar a adesão. Fazem-no nos termos determinados pelas respectivas constituições
(pode ser exclusivamente por aprovação parlamentar ou através de referendo, seguido
ou não daquela aprovação).

Há no fundo quatro fases no processo de adesão de um país europeu à União: a fase “do
limbo”, quando o pedido foi feito e ainda não há decisão definitiva por parte do
Conselho (o pretendente não é candidato); o período das negociações, que dura o
tempo necessário (quase oito anos no caso português, já décadas no turco); concluídas
as negociações, o período da “antecâmara da adesão”, a aguardar a conclusão das
formalidades e a aprovação pelas instituições europeias, primeiro, e pelos futuros pares;
após a assinatura do tratado de adesão, os países são agora futuros membros, mas ainda
falta a aprovação do acordo pelos pretendentes; em 1994, e após os seus parceiros de
negociações - Áustria, Suécia e Finlândia171 - terem aprovado os respectivos tratados de
adesão, a Noruega rejeitou o seu (pela segunda vez), ficando de fora da União Europeia.

Por outro lado, conforme já referido, desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa
está explicitamente prevista a possibilidade de saída da UE por parte de um Estado-
membro (artigo 50º TUE). Nunca, até ao Brexit, isso tinha sucedido, apesar de, em 1985,
a Gronelândia (então território autónomo da Dinamarca, desde 2009 com autonomia
alargada) decidiu por referendo sair das comunidades europeias.

Ao incluir no Tratado esta hipótese, a União transmite uma mensagem clara: a adesão é
voluntária, não um vínculo eterno, e só lhe pertence quem lhe quer pertencer, por
considerar ser isso do seu interesse e do dos seus cidadãos.

171
Os dois últimos por referendo.

80
Um Estado-Membro que pretenda abandonar a União informa o Conselho Europeu,
seguindo-se negociações para definir os termos da saída, após a qual se estabelecerá
como serão as relações entre as partes no futuro. Esse acordo requer aprovação por
parte do Parlamento Europeu e é celebrado pelo Conselho, por maioria qualificada172,
em nome da União Europeia.

II.5.2. Saída do Reino Unido da União Europeia: o “brexit”

Antecedentes

O Reino Unido aderiu à então Comunidade Económica Europeia em 1973. Para trás,
ficaram vetos à adesão do país por parte da França do general De Gaulle.

Em 1961, depois de inicialmente ter rejeitado a ideia de uma integração europeia em


torno de um mercado comum – e de ter liderado a criação de uma zona de comércio
livre alternativa, a EFTA -, o Reino Unido decidiu pedir a adesão à então CEE. O pedido é
feito sob a égide do primeiro-ministro conservador Harold MacMillan em 3 de Agosto
desse ano.

As negociações começam mal, com o país, ainda imbuído da sua dimensão imperial, a
reclamar privilégios e entorses às regras do mercado comum, a começar pela tarifa
aduaneira comum. Do lado da Commonwealth, em particular do Canadá e da Nova
Zelândia, surgem também vozes contrárias à entrada do Reino Unido na CEE.

Alguns países da Comunidade europeia, como a Alemanha, a Itália e o Benelux – a


maioria dos seis fundadores – manifesta flexibilidade para aceitar concessões; De Gaulle
vai opor um veto definitivo e categórico ao processo de adesão britânico.

A sua razão: uma incompatibilidade profunda entre os interesses continentais e


britânicos. A exigência: que o Reino Unido aceite as condições europeias e rejeite os
compromissos com os países da EFTA contrários à pertença à Comunidade. O receio:
que o país se revele um cavalo de Tróia norte-americano, transformando a Europa
‘europeia’ em ‘atlântica’.

172
Impedindo assim um qualquer direito de veto relativamente à retirada voluntária de um Estado-
membro.

81
Numa célebre conferência de imprensa, em 14 de janeiro de 1963, De Gaulle manifesta
dúvidas sobre o espírito europeu do Reino Unido. E teme o entendimento nuclear anglo-
americano, nomeadamente com o fornecimento de foguetes Polaris norte-americanos
aos britânicos. O eixo franco-alemão ganha músculo.

1. A adesão britânica marca passo.

O processo recidiva em 1967: Harold Wilson, um trabalhista, é o primeiro-ministro


responsável por novo pedido de adesão, inicialmente vetado por De Gaulle, que evoca
desta vez a má situação económica do Reino Unido e exige a resolução dos problemas
britânicos antes de uma eventual adesão.

A França teme que a entrada dos britânicos numa Comunidade Europeia à beira de
concluir o seu mercado comum desvirtue a natureza do projecto, transformando-o
numa grande zona de livre troca. E o reforço da dimensão atlântica, em detrimento de
uma orientação continental – sob batuta gaulesa – é também fonte de preocupação (e
oposição) da França e de De Gaulle.

Em 27 de novembro de 1967, após uma desvalorização da libra por parte do governo


britânico, De Gaulle volta a afirmar em conferência de imprensa a sua oposição à adesão
do Reino Unido. O país, afirma, terá de mudar do ponto de vista político e económico
para almejar entrar na Comunidade. Propõe uma associação que favoreça as trocas
comerciais, mas Londres recusa, pois isso excluiria o RU do processo de decisão da
Comunidade.

A França entra em choque com os seus parceiros europeus, favoráveis à adesão


britânica. Só após a saída de cena do general De Gaulle, em abril de 1969, as negociações
serão retomadas.

Dia 1 de Janeiro de 1973, após quatro anos de negociações, o Reino Unido,


acompanhado da Irlanda e Dinamarca, adere às Comunidades Europeias. A Europa passa
de seis para nove membros. A Noruega, que também participou nas negociações,
decidiu à última da hora, por referendo, não assinar o respetivo tratado e manter-se
fora da integração europeia.

2. O país dos “opt-out”

82
Mas a adesão britânica, mal começara e já se deparava com problemas. Convocado
pelos trabalhistas, contra a vontade dos conservadores, tem lugar um referendo em 5
de junho de 1975 para decidir sobre a continuidade nas então comunidades europeias.
Por 67% dos votos, os britânicos optam por se manter na Europa.

Nas décadas seguintes, o RU vai acumular “opt-outs” e rejeitar inúmeras políticas


comunitárias. É o caso do SME – sistema monetário europeu -, criado em 1978, a que o
país não adere; do “cheque britânico”, devolução ao país de uma parte da sua
contribuição para a CEE, em Agosto de 1984 (sob Thatcher), que se manteve até ao final
da participação britânica na União173; da excepção ao euro e ao espaço Schengen; da
oposição ao pacto europeu para reforço da disciplina fiscal (o “Tratado de Estabilidade,
Coordenação e Governação da UEM”).

Se essa dimensão contestatária (para dizer o menos) da participação do RU, como


membro, foi obviamente um fator criticado e, em parte, responsável por um
permanente mal-estar entre as instituições europeias e aquele país, por outro há muita
gente que lamenta a saída dos britânicos da União, pelo efeito moderador e de
prevenção de excessos de entusiasmo “federalistas” (palavra usada sobretudo como
ilustração) que sempre tiveram na condução em comum dos assuntos da integração
europeia.

3. O referendo de 2016

Em mais de 40 anos, a Europa mudou; o Reino Unido mudou; e as relações entre ambos
mudaram radicalmente.

A adesão em 1973, a que os britânicos em 1975 deram “luz verde”, foi a um mercado
comum com nove países e 250 milhões de pessoas. 40 anos depois, trata-se de uma
união económica, com cidadania comum, 28 membros e 500 milhões de pessoas; e o
que mais é, uma zona monetária em que participam 19 dos 28 membros referidos. E a
Europa mudou com a integração crescente de zonas de soberania que, aos olhos de
muitos no Reino, significaram transferências de soberania nacional inaceitáveis, sem o
escrutínio do povo britânico. Um considerável e crescente número de membros dos

173
Veja-se a esse respeito o capítulo IX.1.

83
tories, no partido conservador ou no Parlamento, opuseram-se a esse estado de coisas
e manifestaram-se contra a pertença à (nova) União Europeia.

Quando David Cameron chegou a Downing Street, em 2010, a sua intenção era deixar
de lado a questão europeia. Não queria o tema a “inquinar” a sua governação e a
presença no governo dos liberais contribuía para reforçar a sua convicção e manter a UE
fora da discussão política.

Mas o ressentimento entre a população, em especial relativamente ao fluxo de


imigrantes desde a adesão dos países de leste, aumentara consideravelmente. A crise
económica reforçou o sentimento de que a presença de trabalhadores, muitas vezes
pouco qualificados, vindos dos países da União, tendo ainda acesso assegurado à
segurança social britânica, iria contribuir para a perda de empregos e, em consequência,
de bem-estar dos britânicos.

Politicamente, Nigel Farage e o UKIP aproveitaram esse ressentimento e assumiram uma


posição activa contra a chegada de imigrantes europeus ao país. E o partido ganhou
acesso ao espaço público, subiu no voto popular174, ganhando até as eleições para o
Parlamento Europeu de 2014, baseadas no sistema proporcional.

A situação levou a uma crescente resistência por parte de muitos deputados do partido
conservador, com particular destaque para o chamado comité 1922 (1922 committee),
constituído por backbenchers, alguns eminentes, que começaram a exigir medidas na
frente da imigração e, até, um referendo à pertença à UE.

David Cameron começou por prometer um referendo caso o país fosse forçado a ceder
mais soberania à Europa, mas isso não pareceu suficiente aos deputados refractários.

Desta forma, em 23 de janeiro de 2013, o primeiro-ministro anunciou um referendo


sobre a continuidade na União, caso os conservadores vencessem as eleições de 2015.
Cameron declarou ainda que faria campanha pelo sim, se, entretanto, a UE revisse os
termos da sua relação com o RU. A aposta estava feita, e talvez o primeiro-ministro
pensasse que nunca chegaria a haver um referendo, quer porque os trabalhistas de
Miliband não o aceitariam, quer porque os liberais se lhe opunham com energia. E talvez

174
Que não na presença em Westminster, devido ao sistema eleitoral britânico.

84
estivesse igualmente convencido que o partido conservador não teria maioria suficiente
para governar sozinho em 2015, pelo que o referendo seria inviabilizado em qualquer
acordo de coligação com algum daqueles partidos.

No rescaldo da vitória de 2015, com maioria absoluta, Cameron voltou a acreditar que
um referendo em que o seu governo e ele próprio fizessem campanha pela continuidade
na União venceria. Lançou-se na aventura da renegociação dos termos da pertença
britânica, cujos resultados não convenceram ninguém: os eurocépticos consideraram
tratar-se de muito pouca coisa, os europeístas lamentaram a cedência da União a mais
uma “chantagem” britânica, como a designaram.

Face aos resultados, das eleições como da renegociação, Cameron cumpriu a promessa,
anunciou o referendo para o dia 23 de junho de 2016 e o apoio ao “Remain”.

A campanha desenrolou-se com dois campos muito extremados, o do “Leave”, liderado


pelo Ukip e por Nigel Farage, a que se juntaram Boris Johnson, que pareceu ter hesitado
longamente, Liam Fox, Michael Gove e muitos outros deputados conservadores; e o do
“Remain”, com o cunho de Cameron, mas sobretudo advogado pelos liberais e alguns
trabalhistas, apesar da relutância manifesta do novel líder do partido, Jeremy Corbyn,
cuja campanha eleitoral junto de um eleitorado trabalhista propenso a expressar o seu
cepticismo nas urnas, foi por muitos considerada tímida e pouco entusiasta da
integração.

De um lado e do outro esgrimiram-se argumentos, quase sempre tendo por base o


medo: os “brexiteers” usaram sobretudo a bandeira da imigração; também a devolução
de soberania ao país, rejeitando nomeadamente a tutela do Tribunal de Justiça e as
imposições da “burocracia de Bruxelas”; e a vantagem económica que resultaria do fim
da contribuição para o orçamento europeu, que disseram ser da ordem dos 17 mil
milhões de euros por ano. Os defensores da continuidade alertaram para as
consequências económicas, com a perda do acesso ao mercado interno, para os direitos
dos britânicos a viver em países da União, para a perda da participação nas redes
europeias de investigação e desenvolvimento.

4. Do referendo à saída

85
No dia 23 de junho de 2016, 17,4 milhões de britânicos decidiram que o país devia
abandonar a União Europeia, após 43 anos de pertença à organização. 51,9% dos votos,
contra 48,1% a favor da permanência, mais de 1,2 milhões de votos de diferença, com
o país rural e as pequenas cidades a favor da saída; Londres, a Escócia e (por pouco) a
Irlanda do Norte, favoráveis à pertença europeia.

No dia seguinte, o primeiro-ministro David Cameron anunciou a sua demissão,


mantendo-se no cargo até à escolha de um sucessor. Em 11 de julho, Theresa May,
ministra do interior de Cameron durante seis anos, foi nomeada para o cargo de líder
do partido conservador, tendo-se tornado primeira-ministra no dia 13 de julho. Tendo
feito campanha – também ela muito discreta – a favor da permanência, logo no início
do seu mandato May declarou que a vontade do povo britânico seria respeitada. O seu
governo integrou vários ministros eurocépticos, como Boris Johnson, que assumiu a
pasta dos negócios estrangeiros, ou Liam Fox, a do comércio internacional.

May, no seu primeiro e importante discurso sobre o assunto, sublinhou que o país não
permaneceria no mercado interno europeu, nem se manteria como membro da união
aduaneira. “Brexit é brexit” afirmou, e a afirmação tornou-se o principal mantra dos
defensores da saída da UE.

No dia 2 de outubro desse mesmo ano de 2016, a primeira-ministra anunciou que o


Reino Unido pediria a saída da União Europeia, invocando dessa forma o artigo 50º, até
março de 2017. Mas em 3 de novembro, e contrariando a intenção do governo, o
Tribunal Superior de Londres determinou que o início do processo teria de ser aprovado
pelo Parlamento, decisão ratificada em 24 de janeiro de 2017 pelo Supremo Tribunal de
Justiça.

Antes, no dia 17 de janeiro, Theresa May fez um discurso em que apresentou


publicamente a estratégia global do governo em matéria de “brexit”, e onde, pela
primeira vez, reconheceu a possibilidade daquilo que ficou conhecido como o “hard
brexit”: a saída sem acordo e o consequente não acesso ao mercado interno. A questão
principal evocada foi a imigração provinda da UE e a livre circulação de pessoas. Tal
como o Reino Unido considerava essa uma matéria inegociável, também a União se
manifestou no mesmo sentido, embora na direcção oposta: a livre circulação faz parte
integrante do mercado interno e não é possível aceder a este sem a aceitar.

86
Os termos dos mandatos negociais, ainda sem terem sido formalmente enunciados na
ocasião, estavam desde logo definidos – e não podiam ser mais irredutivelmente
contraditórios. May afirmou claramente que “nenhum acordo é melhor do que um mau
acordo”.

No dia 8 de fevereiro de 2017, após uma controvérsia considerável e perante referências


mais ou menos explícitas por parte do Partido Nacionalista Escocês à necessidade de um
novo referendo visando a independência da Escócia – matéria em que a ministra
principal, Nicolas Sturgeon, desde logo, se mostrou activamente empenhada -, a Câmara
dos Comuns aprovou, por 494 votos contra 122, uma lei a autorizar o governo britânico
a invocar o artigo 50º do Tratado da União Europeia. A Câmara dos Lordes aprovou a lei,
incluindo nela, contudo, duas ressalvas: a salvaguarda dos nacionais dos Estados-
membros a viver no país e a obrigatoriedade de um voto parlamentar sobre o acordo
final para a saída (após as negociações), alterações essas rejeitadas pelos Comuns no dia
13 de março.

No dia 29 de março de 2017, finalmente, o Reino Unido acionou formalmente o artigo


50º do Tratado da União Europeia, solicitando a saída da organização. Seguiam-se, a
contar desse dia, dois anos de negociações, após o que, ou haveria acordo ou, não
havendo, o Reino Unido sairia da UE sem estarem reguladas as condições da saída e,
muito menos, os futuros termos da relação entre os dois países. É aquilo a que as partes
e os comentadores chamam “hard brexit”.

5. O que diz o artigo 50º e o processo de saída em concreto

No dia 29 de março de 2017, como referido, o Reino Unido notificou formalmente o


presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, da sua decisão de abandonar a União
Europeia. A carta protocolar, entregue em mão em Bruxelas, invocava o artigo 50º do
Tratado da União Europeia.

Na alínea 1 deste artigo refere-se que “Qualquer Estado-membro pode decidir, em


conformidade com as respectivas normas constitucionais, retirar-se da União”. Este
sempre foi o entendimento da doutrina, das instituições europeias e dos Estados-
membros, até pela impossibilidade de obrigar qualquer país a manter-se vinculado a um
acordo internacional – e a uma organização por ele criada – contra a sua vontade. Mas

87
só em 2007, com a assinatura do Tratado de Lisboa, essa possibilidade foi reconhecida
formalmente e regulamentada (ainda que, como muitos alegam, de forma imprecisa e
lacunar). Esta primeira alínea prevê que qualquer Estado-membro se possa retirar da
União cumprindo os procedimentos legais internos nos termos constitucionais
respectivos.

Diz a alínea 2 que “Qualquer Estado-Membro que decida retirar-se da União notifica a
sua intenção ao Conselho Europeu. Em função das orientações do Conselho Europeu, a
União negoceia e celebra com esse Estado um acordo que estabeleça as condições da
sua saída, tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União. Esse acordo
é negociado nos termos do n.º 3 do artigo 218.º do Tratado sobre o Funcionamento da
União Europeia. O acordo é celebrado em nome da União pelo Conselho, deliberando
por maioria qualificada, após aprovação do Parlamento Europeu”.

O Reino Unido procedeu a essa notificação no dia 29 de março de 2017, como vimos. Na
carta, o governo britânico, devidamente mandatado pelo seu Parlamento, indicou as
condições que considerava adequadas às negociações, desde logo defendendo a
necessidade de discutir tudo desde o seu início – termos da saída, período de transição,
relações futuras, incluindo no domínio da defesa e da segurança -, exactamente o
contrário do que os líderes europeus vinham a defender e viria a ser consagrado no
mandato que a Comissão recebeu do Conselho Europeu.

Esse mandato, conforme indica o referido artigo 218.º nº 3, é estabelecido pelo


Conselho Europeu seguindo as recomendações da Comissão e do Alto Representante
para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança em matérias que lhe digam
respeito. Foi o que sucedeu no dia 29 de abril de 2017, numa reunião invulgarmente
curta dos chefes de Estado e de governo da União Europeia. O Conselho autorizou a
abertura das negociações, designando chefe da equipa de negociação da União o antigo
Comissário francês Michel Barnier.

O acordo final obriga à aprovação do Parlamento Europeu e, obtida esta, do Conselho,


a deliberar por maioria qualificada.

Na data de entrada em vigor do acordo, ou em caso da inexistência deste, estipula a


alínea 3, “Os Tratados deixam de ser aplicáveis ao Estado em causa a partir da data de

88
entrada em vigor do acordo de saída ou, na falta deste, dois anos após a notificação
referida no n.º 2, a menos que o Conselho Europeu, com o acordo do Estado-membro
em causa, decida, por unanimidade, prorrogar esse prazo”.

As negociações podem demorar até 2 anos, podendo demorar menos do que isso, após
a notificação da Comissão pelo Estado que decidiu sair. No caso do “brexit”, o prazo
terminava em 29 de março de 2019, mas viria a ser prorrogado “por unanimidade” dos
restantes membros.

Não havendo acordo, nem sendo o prazo prorrogado por unanimidade dos membros do
Conselho Europeu, o Estado que pretende sair sairá de forma unilateral. Na falta desse
acordo, em matéria comercial, por exemplo, passam a aplicar-se-lhe, na relação com a
União e o mercado interno, as regras gerais da OMC. De referir ainda que a maioria
qualificada a que se refere o artigo 50º para a aprovação do acordo final corresponde a
pelo menos 72% dos membros do Conselho que representem no mínimo 65 % da
população total dos Estados-membros (excluindo-se naturalmente o país que pretende
sair).

Após o pedido de saída, o RU e a UE negociaram o acordo ou “withdrawal agreement”


para estabelecer os termos em que essa saída se faria. Esse acordo, celebrado em
dezembro de 2017, cobria três pontos essenciais:

- O montante a pagar pelo RU, incluindo todas as obrigações e direitos decorrentes dos
compromissos assumidos enquanto Estado-membro, da ordem dos 60 mil milhões de €.

- Os direitos dos cidadãos britânicos a viver na União e dos europeus a viver no RU.

- E o complexo e controvertido acordo para evitar a recreação de uma fronteira física na


fronteira das Irlandas, que resultou no chamado “backstop”, que mais não era do que
um arranjo provisório que mantinha o Reino Unido no mercado interno e a fronteira em
causa aberta, até que no contexo das negociações sobre o futuro das relações entre as
duas partes fosse obtido um acordo que permitisse dispensá-lo.

O acordo de saída continha igualmente uma declaração não vinculativa sobre o que RU
e União consideravam dever ser o futuro das suas relações. O acordo previa um período
de transição até 31 de dezembro de 2020, sem prejuízo do resultante do “backstop”.

89
Em Chequers, a 6 de julho de 2018, o governo adotou uma posição comum sobre a
continuação das negociações, mas as ondas de choque – com a demissão de vários
membros do governo conservador de May – abalaram a posição da primeira-ministra,
face à oposição crescente dos setores mais conservadores do seu partido.

O acordo em causa foi rejeitado três vezes pelos deputados britânicos: em 15 de janeiro,
12 de março e 29 de março de 2019. A data de saída acabou por ser prorrogada por
unanimidade dos “27”, estabelecendo-se como novo prazo o dia 31 de outubro de 2019.
Prorrogada a data de saída, a 7 de junho de 2019 Theresa May demitiu-se e foi
substituída por Boris Johnson, após eleições internas no partido, a 24 de julho.

Este exigiu a renegociação do acordo, retirando dele o “backstop”. E assegurou o


cumprimento da data de 31 de outubro, houvesse ou não um acordo aprovado. No início
de outubro e após várias peripécias políticas que incluíram a suspensão do Parlamento
(“prorrogation”) considerada ilegal pelo Supremo Tribunal do Reino Unido, o governo
britânico apresentou uma proposta de alteração ao acordo previamente negociado, do
qual expurgava o referido “backstop”.

A União Europeia, através do seu principal negociador, mas também de alguns dos seus
líderes, como o Presidente do Conselho Europeu e o Presidente da Comissão, começou
por rejeitar a proposta, considerando que a mesma não só não resolvia o problema
principal (a fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda) como continha
um conjunto de soluções e mecanismos vagos e imprecisos. E o parlamento britânico
rejeitou a nova proposta, criando-se assim uma situação de impasse.

Em finais de outubro, o governo britânico pediu uma nova extensão da data de saída,
que foi mais uma vez prorrogada, desta vez até 31 de janeiro de 2020.

Internamente, o parlamento foi dissolvido, em 6 de novembro, e novas eleições tiveram


lugar a 12 de dezembro, resultando numa maioria de 80 para os “Tories”.

O acordo de saída pôde finalmente ser aprovado por uma maioria de deputados nos
Comuns, com os três parlamentos “devolvidos” (Holyrood, Escócia, a Assembleia
Nacional de Gales e o Stormont, da Irlanda do Norte) a rejeitar a lei respetiva. A União
Europeia aprovou o acordo com relativa rapidez.

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O dia da saída do Reino Unido da União Europeia, após quase 47 anos de pertença, ficou
marcado para 1 de fevereiro de 2020. Previa um período de transição até ao final de
2020, após o que o país teria negociado um acordo para o futuro com a organização ou
sairia sem acordo – o chamado (e temido) “hard brexit”.

O processo negocial arrastou-se até quase ao final do ano de 2020.

6. Perspectivas e prospectiva

O processo negocial que levaria à saída do Reino Unido da UE foi, como vimos, longo,
complexo e cheio de peripécias.

Entre as partes existia um conflito de partida difícil de colmatar: para a União Europeia
era impensável que o acordo final com o Reino Unido resultasse numa situação para o
país melhor do que a que tinha enquanto Estado-membro; isso seria inevitavelmente
um convite a que outros quisessem seguir o mesmo caminho (efeito de contágio).

Por outro lado, no final de abril de 2017, o Conselho Europeu adoptou formalmente as
directivas para as negociações do brexit; e logo no seu início, o documento referia que
a competência da União em relação ao acordo é excecional e única (de natureza “one-
off”) e “estritamente para a finalidade de estabelecer a saída da União”.

Ora o Conselho Europeu considerou que as negociações se deveriam desenrolar em


duas fases, tendo indicados objectivos claros na primeira, a única para a qual
estabeleceu directivas, objectivos esses acima referidos. Desde o início que o Reino
Unido insistiu na necessidade de negociar desde logo os diferentes aspectos
relacionados com a saída, incluindo, portanto, o futuro, e eventual, acordo comercial
(fosse qual fosse a sua natureza). E essa foi sem dúvida a grande questão a separar as
duas partes.

As consequências do brexit pareceram sempre imprevisíveis. Um exercício especulativo


em caso de hard brexit permitia pouco mais do que elencar consequências possíveis
para as duas partes envolvidas: o Reino Unido passaria a controlar o fluxo migratório e
o acesso ao país, por parte de cidadãos do Mundo inteiro, incluindo da União Europeia;
deixaria de pagar 13,1 mil milhões de euros para o orçamento europeu e de receber da
União Europeia cerca de 4,5 mil milhões de pagamentos, sobretudo para as regiões mais
pobres e para a agricultura do país; deixaria de estar sujeito às regras europeias,

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nomeadamente em termos fiscais e à jurisdição do Tribunal de Justiça da União
Europeia; os seus (jovens) trabalhadores perderiam o acesso livre ao mercado de
trabalho dos outros países europeus (previsões apontavam para um défice de
trabalhadores na Alemanha em 2030 de cerca de 2 milhões); perderia o acesso livre ao
mercado da União – 27 países, cerca de 440 milhões de consumidores – das suas
mercadorias, serviços e capitais, para além da mão-de-obra, tornando as suas empresas
menos competitivas e aumentando o custo das importações (ergo, inflação); muitas
empresas, nomeadamente no sector financeiro, tenderiam a encarar a possibilidade de
deslocalizar a sua actividade, abandonando a City; o país perderia o acesso ao
desenvolvimento tecnológico “made in” UE, e deixaria de poder participar na rede
europeia de investigação, inovação e ciência; a participação em concursos públicos – e
a obtenção de contratos públicos – na União seria fortemente limitada; os custos do
transporte aéreo, Internet e telefones seria afectado, podendo aumentar
consideravelmente.

A União Europeia começou logo a sofrer os efeitos do brexit, com o crescimento visível
de partidos anti-integração um pouco por toda a Europa; os riscos de contágio eram
evidentes, levando os responsáveis europeus a resistir a um acordo com o Reino Unido
que reforçasse a ideia de que a saída da União podia ser benéfica para um país; por
outro lado, perdia um membro muito importante, nomeadamente em sectores como a
defesa, provavelmente uma perda irreparável para a política europeia no sector; a saída
do Reino Unido, por outro lado, permitiria levar ao reforço de determinadas políticas
em que o país representava um travão ao aprofundamento da integração, como a
monetária, a social ou a fiscalidade.

Os britânicos queriam obter o melhor acordo possível, provando que há vida para além
da União, uma vida melhor. Como bem se entende, a União tinha um interesse oposto.
Qualquer sinal de um “exit” positivo para quem sai teria um efeito de contágio. Ou seja,
a alternativa parecia ser entre um mau acordo ou acordo nenhum. O que sempre
pareceu excluído foi… um bom acordo. Caso o Reino Unido beneficiasse do abandono
da União, “quod erat demonstrandum”, criador de circunstâncias muito favoráveis para
a soberania, a economia e os cidadãos britânicos, seria reconhecida a vantagem em
estar de fora, confirmando as posições dos eurocépticos.

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Há neste processo, aliás, algo de falácia da divisão (multiplicada por 28): porque o Reino
Unido estaria melhor fora da União Europeia, saindo dela mas dela beneficiando através
do tal acordo (algo que no fundo já sucedia estando o país integrado com inúmeros
“opting-outs” e excepções), poder-se-ia concluir que todos os países ficariam melhor
fora dela; mas nesse caso, a União Europeia deixaria de existir, e por isso todos ficariam
pior e não melhor.

No fundo, há uma espécie de ”free raiding” por parte dos países que, como o Reino
Unido, beneficiam do processo de integração com menos custos do que os seus
parceiros, ou sem ter de assumir todas as obrigações que dele decorrem e a que os
restantes estão obrigados; mas sendo esse risco moral grande no caso de países que
fazem parte do processo, seria incomparavelmente mais grave caso o mesmo suceda a
países que, não participando do processo europeu, dele tirem (ou tirassem, para sermos
corretos) os mesmos benefícios, ou benefícios aproximados aos dos seus membros.

Estar de fora, com acesso ao mercado interno, sem livre circulação de pessoas e sem ter
de pagar qualquer contribuição, nem obedecer às regras emanadas de Bruxelas, parece
um objectivo sedutor e exequível. Mas não passa de um oximoro, já que o mercado
interno é o resultado de milhares de normas europeias aprovadas no âmbito do
processo de decisão europeia; qualquer país que queira aceder-lhe tem de aceitar essas
regras, pois só elas, obrigatárias para os países que o integram, asseguram um efectivo
mercado interno.

As negociações tendentes à adoção de um acordo futuro, contudo, prosseguiram ao


longo de 2020 com enorme dificuldade. Como referido acima, terminado o período de
transição em 31 de dezembro desse ano, já que o Reino Unido decidiu não exercer a
prerrogativa de o prolongar até ao final de junho, as perspetivas de um bom acordo
comercial – de acesso aos mercados respetivos por parte do país e da União Europeia -,
foram-se tornando cada vez mais fracas.

A questão irlandesa manteve-se no topo dos temas melindrosos, acompanhada,


contudo de outros assuntos de difícil solução: o acesso dos pescadores europeus às
águas britânicas; as regras aplicáveis às ajudas de Estado; a governação do futuro
acordo, em particular as aplicáveis aos litígios.

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Não ajudou o facto de o governo britânico ter, já no último trimestre de 2020,
apresentado uma lei175 a pôr em causa o acordo de saída – em particular as regras, que
o próprio governo de Boris Johnson propusera, relativas à Irlanda do Norte.

175
“Internal Market Bill”.

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