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Erotografia poética de E. M.

de Melo e Castro
E. M. de Melo e Castro’s poetical erotography

Claudio Alexandre de Barros Teixeira1*

Resumo: A poesia de E. M. de Melo e Castro dialoga com o princípio do ideograma e


com aspectos da lírica tradicional japonesa, como a concisão, visualidade e montagem,
incorporados de maneira crítica e criativa, sob uma perspectiva de vanguarda.
Palavras-chave: Haicai, ideograma, concretismo, experimentalismo.

Abstract: E. M. de Melo e Castro’s poetry connects with the ideogram concept and with
traditional lyrical Japanese aspects such as conciseness, visual identity and a collage of
ideas incorporated in a critical and creative way under vanguardism.
Keywords: Haicai, ideogram, concretism, experimentalism.

*
Universidade de São Paulo (USP).
E
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rnesto Manuel Geraldes de Melo e Castro (1932), que assina sua obra poética,
ficcional, teórica e ensaística como E. M. de Melo e Castro, foi um dos expoen-
tes do movimento da Poesia Experimental (PO-EX) na década de 1960, ao lado
de Ana Hatherly, Salette Tavares, Antônio Aragão e Herberto Helder. Comenta-
remos, neste artigo, a ressonância da estética do ideograma em sua produção
textual, a presença da visualidade e da justaposição de signos em sua poesia,
além do diálogo criativo com o haicai, remodelado pelo autor numa estrutura
de quatro versos e temática erótica, em dissonância com a quase ausência do
elemento amoroso no haicai tradicional – o tema erótico-amoroso será mais
frequente na poesia japonesa a partir da Restauração Meiji, destacando-se a
produção de Yosano Akiko (1878-1942), autora de versos como estes, traduzidos
por Donatella Natili e Álvaro Faleiros: “ouça o poema / como negar o carmim /
da flor do campo? / delícias a menina / pecar na primavera” (Akiko, 2007: 53).
No livro Ideogramas, publicado em 1962, Melo e Castro reúne 29 poemas con-
cretos, publicados sem qualquer introdução ou nota explicativa; este é o mar-
co zero da Poesia Concreta e do Experimentalismo em Portugal1 (embora seja
possível rastrearmos uma pré-história da visualidade na poesia portuguesa na
época maneirista e barroca, tema estudado por Ana Hatherly em A experiência

1
O poeta concretista brasileiro Pedro Xisto (ele próprio estudioso da cultura japonesa e autor
de numerosos haicais) escreveu uma carta a Melo e Castro em 04/11/1962 onde comenta o livro
do autor português: “Acabo de receber, gratamente, seus IDEOGRAMAS. E, desde o princípio, já
se deflagra uma questão ou reação em cadeia: são eles de ler? Não e sim. Pois não são de ler e
ver? E ainda não e sim, que há mais. E é ter. Mas ter é sim ou não? Quem, afinal, tem a poesia?
E que é o que a poesia tem? Tem um não ou um sim? Quem sabe, na poesia, isto é, no poema,
há de se ler, ver, ter, verter um ser – o próprio ser do poeta, senão (sim ou não?) o ser próprio do
objeto. Do objeto artístico – objetotem o tato do poeta que, atento, sente ao tato – um ato, o ato
criador. Estranho totem, desalienado, não exclusivo do poeta (que é do rei?) e da sua grei e da sua
lei mas, sim, compreensivo de outras gentes e outras terras, lado a lado, as mesmas. Alto teto,
donde o pêndulo se precipita em círculos de tontura e aceleração de ritmos no fundo do poço ou,
exatamente, à fonte alfabética. É como se, sobre o choque de sismos o poeta viesse da serra ao
vale. Rolam os dados (hipnotismo?). O certo é que funciona o gerador – a máquinaimagem. E, do
círculo aberto em cristal e arco-íris, o gesto poético traga novos perfis. Se a asa sem ar resiste e à
casa sem sol é triste – edifício de ferro e cimento – água vem, água vai, e se faz troca ou dura pura.
A casa, em si, fala, e há (ah!) luta e flor. E, porque, também há espinha dorsal, um livro monumento
ergue-se por fim”. (A carta de Pedro Xisto a E. M. de Melo e Castro foi publicada na revista
eletrônica brasileira Zunái, na página http://zunai.com.br/post/56772592455/carta-de-pedro-
xisto-para-e-m-de-melo-e-castro) A respeito dessa carta, e da relação com Pedro Xisto, escreve o
poeta português, no mesmo link: “Só mais tarde, em 1966, quando vim pela primeira vez ao Brasil
e a São Paulo é que conheci pessoalmente o Pedro Xisto e com ele falei sobre o Haikai. Quando
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XVII e XVIII, e também em composições esparsas de Mário de Sá-Carneiro, Mário
Cesariny, Jaime Salazar Sampaio ou Alexandre O’Neill). A estratégia adotada por
Melo e Castro nesta coleção de poemas estabelece uma clara consonância entre
disposição gráfico-espacial e referente: assim, no poema Pêndulo, letras e síla-
bas são distribuídas na página de modo a sugerir o movimento pendular (Figura
1); em Edifício, as letras que formam o poema são inseridas em linhas verticais e
horizontais, simulando contornos de um prédio; em Ritmo, a variação gráfica do
texto indica a alternância de tempos fortes e fracos do compasso musical, além
de reforçar, visualmente, as relações de ambiguidade entre as palavras ritmo e
riso.

Figura 1

A representação visual do significante do poema, nos Ideogramas de Melo


e Castro, recorda as experiências de Guillaume Apollinaire2 nos Caligrammes
(1918), como por exemplo na peça il pleut (Figura 2), em que os versos, dispos-

regressei a Lisboa levei comigo alguns poemas inéditos do Pedro Xisto que foram publicados no
nº 2 da Revista de Poesia Experimental (1966) e no nº 1 da revista Operação (1967), de minha
iniciativa. Hoje esta carta é um documento verdadeiramente notável e único, nas relações poéticas
entre Portugal e Brasil, nesses anos de 60!”
2
Apollinaire é o autor de uma frase adotada como grito de guerra pelos concretistas: “il faut que
notre intelligence s’habitue à comprendre synthético-ideographiquement au lieu de analytico-
discursivement” (in: Campos, Pignatari, Campos, 1975: 156).
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tos em linhas verticais e inclinadas, simulam a própria chuva – experiência que


pode ter inspirado a composição pluvial / fluvial, de Augusto de Campos (Figura
3), com uma diferença metodológica clara: enquanto Apollinaire3 preserva o ver-
so e o discurso sintático linear dentro da nova arquitetura semântica, Augusto
de Campos rompe com a versificação e o pensamento gramatical, construindo
seu poema com apenas duas palavras.

Figura 2

3
A esse respeito, escreve Haroldo de Campos: “É bem verdade que o ‘caligrama’ de Apollinaire
se perde na pictografia, exterior, imposta (no poema com forma de objetos, na figuração artificial
à composição); mas sua formulação teórica (...) é fecunda e profética” (in: Campos, Pignatari,
Campos, 1975: 97).
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A relação mimética fundo / forma, no entanto, é apenas o aspecto mais su-


perficial na apropriação do princípio do ideograma pelos poetas concretistas,
que valorizaram, sobretudo, a técnica de justaposição ou montagem da poesia
ideográfica chinesa e japonesa. “Nesse processo de composição” – dizem Fe-
nollosa e Pound – “duas coisas conjugadas não produzem uma terceira, mas
sugerem alguma relação fundamental entre ambas” (Campos, Pignatari, Cam-
pos, 1975: 96). “Em The cantos, de E. P., o ideograma é o princípio de estrutura
presidindo a interação de blocos de ideias, que se criticam, reiteram e iluminam
mutuamente” (idem), escreve Haroldo de Campos no texto Aspectos da Poesia
Concreta. Prossegue o poeta e ensaísta brasileiro: “O isolamento de núcleos te-
máticos em cadeias de essências e medulas impõe a tomada de consciência do
espaço gráfico como fator de organização do corpo do poema (vejam-se, nesse
sentido, especialmente, os Cantos pisanos e a seção Perfuratriz de rochas, últi-
ma publicada, de 1955)” (idem).

Figura 3

A poesia de Melo e Castro, apesar das evidentes aproximações que podem ser
feitas com o ideograma – quanto à concisão, visualidade, ruptura com a sintaxe e
com o discurso linear, substituído pela aglutinação de partículas semânticas em
estruturas gráfico-espaciais4 –, faz pouco uso da justaposição analógica de sig-
nos que caracteriza o ideograma; na maioria das composições de seu livro, como

4
Conforme escreveu o poeta português, “quase toda a Poesia Experimental Portuguesa
produzida a partir da década de 60 se pode inscrever dentro de uma denominação geral de POESIA
ESPACIAL, uma vez que as suas coordenadas visuais são dominantes” (Melo e Castro, Hatherly:
1981: 9). A expressão se justifica porque “é no campo das experiências visuais e espaciais do texto,
considerado como matéria substantiva de que o poema se produz, que a pesquisa morfológica,
fonética, sintática e semiológica se projetou e se projeta” (idem).
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é o caso de Pêndulo e Arco-íris, predomina o figurativismo icônico de Apollinaire,


ou ainda experiências cinéticas que dialogam com a poesia visual do barroco
português como é o caso de Tontura (Figura 4), composto de uma única palavra,
que é fragmentada em diferentes sequências de letras, dispostas em círculos
concêntricos. O poema solicita uma nova dinâmica de leitura para reproduzir,
pelo movimento lúdico, o efeito desejado pela composição. Neste poema, assim
como em outras peças de Ideogramas, é claro o uso de técnicas de combinação,
permutação, anagrama e leitura labiríntica5 que permitem a multiplicidade de
rotas de interpretação e construção do sentido, tema estudado por Umberto Eco
em seu clássico livro Obra aberta, de 1962 (precedido por artigo de Haroldo de
Campos, publicado em 1955 no jornal Diário de São Paulo).

Figura 4

Uma composição curiosa do volume, que se aproxima do princípio da mon-


tagem analógica do ideograma, é o poema (sem título) que associa os termos
antitéticos sim e não aos verbos ler, ver, ter e ser, alinhados em colunas verticais
e dispostos em diferentes sequências (Figura 5). A formatação visual da peça,
próxima ao abstracionismo, obedece a uma lógica estrutural e rítmica que dis-
pensa a relação mimética entre fundo e forma. O leitor é convidado a percorrer
o poema por diversas trilhas labirínticas, construindo múltiplas possibilidades de

5
A influência das técnicas de composição da poesia visual do barroco português na vanguarda
experimental portuguesa foi abordada por nós no livro A estética do labirinto: barroco e
modernidade em Ana Hatherly (Bauru: Lumme Editor, 2010).
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leitura: podemos pensar, nesse caso, no “ideograma como processo relacional,


enquanto metáfora estrutural6”.

Figura 5

No ensaio Ideograma, anagrama, diagrama, Haroldo de Campos afirma que,


no pensamento chinês, “os opostos não são excluídos, mas integrados numa
interrelação dinâmica, mutuamente complementar” (Campos, 2000: 84). Isto
significa que, em lugar da “lógica da identidade” típica da lógica ocidental, pre-
valece, no sistema de ideias chinês, uma “lógica da correlação”, onde o interesse
está “no interrelacionar dos signos (caracteres), não na substância” (idem, 84-
85). Ao silogismo de origem grega, baseado na “lógica da identidade”, o pensa-
mento chinês prefere a analogia. O poema de Melo e Castro, que entre o “sim” e
o “não” perfila quatro verbos no infinitivo, sem sujeito (mesmo oculto), oferece
ao leitor todas as possibilidades de analogia e, portanto, de construção de signi-
ficados. O poeta português, diga-se de passagem, desconhecia, em meados da
década de 1960, a poesia chinesa ou japonesa, e tomou conhecimento do princí-
pio do ideograma por meio dos poetas concretistas brasileiros7, que por sua vez
absorveram as reflexões de Fenollosa, Ezra Pound e Eisenstein sobre a escrita
ideográfica. De modo distinto das experiências realizadas por Ana Hatherly no
mesmo período, com os Mapas da imaginação e da memória (Lisboa: Moraes
Editores, 1973), que dialogam com a materialidade da escrita chinesa e o seu

6
CAMPOS: 2000, 66.
7
Dois acontecimentos referidos por Melo e Castro antecedem o surgimento da Poesia
Experimental: “primeiro, a rápida visita a Lisboa de Décio Pignatari, em 1956 (...), após o seu já
histórico encontro com Gomringer; segundo, a publicação em 1962, pela Embaixada do Brasil em
Lisboa, de uma pequena mas excelente compilação da Poesia Concreta do Grupo Noigandres”
(Melo e Castro, Hatherly, 1981: 9).
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caráter caligráfico, Melo e Castro praticou uma abordagem mais conceitual do


ideograma, com o filtro dos recursos da poesia visual barroca e da bagagem da
poesia de vanguarda das primeiras décadas do século XX.
A obra visual de Melo e Castro ultrapassa o mimetismo icônico e aproxima-
-se de uma nova geometria da composição em obras posteriores, como a segun-
da coleção de Ideogramas (1966), os Cinéticos (também de 1966) e sobretudo os
Infopoemas (1998), estes últimos realizados com programas de computador. O
poema sem título que abre o caderno dos novos Ideogramas é formado por sete
palavras entrecruzadas (coração / respiração / inspiração / expiração / espaço /
braço / abraço), com as letras em diferentes corpos e fontes, dispostas num con-
junto sem contornos discerníveis: o figurativismo cede vez à abstração e a leitura
torna-se o terreno da combinação, da permutação e da ambiguidade (Figura 6):

Figura 6

Em outra peça do ciclo, as palavras man, woman, name e amor são desmem-
bradas e as letras, repetidas e recombinadas em diferentes sequências anagra-
máticas, formando imagens e sons puramente abstratos (Figura 7) – experiência
radicalizada em outra peça, composta pela repetição de apenas duas letras, s e
z, combinadas e mescladas até a deformação e a mancha (Figura 8):
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Figura 7

Figura 8

A série de poemas intitulada Cinéticos, como o próprio nome indica, é um


conjunto de poemas visuais que simulam o movimento: diferentes versões de
cada imagem gráfica (composta por desenhos geométricos e eventualmente
também palavras, sílabas ou letras) são dispostas em sequências que recordam
a linguagem cinematográfica. A peça dedicada ao silêncio, formada por cinco
retângulos, duas cores (branco / preto) e uma única palavra (silêncio) é a que
mais se aproxima do princípio do ideograma, tal como entendido por Fenollosa:
o sentido da composição é construído pela relação entre as imagens, numa re-
presentação visual do som que se transforma em silêncio (Figura 9):
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Figura 9
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Nos Infopoemas, cabe destacar as peças da sequência intitulada Transfilm,


em que as letras são deformadas e convertidas em pontos, linhas, manchas e
figuras puramente abstratas, desprovidas de qualquer valor semântico e pos-
sibilidade de leitura (Figura 9). Nessas composições, que dissolvem os limites
entre literatura, pintura, tecnologia e grafismo, Melo e Castro obtém expressivos
resultados plásticos, equiparáveis aos ruídos gráficos de seus ilustres antepassa-
dos, os mestres calígrafos japoneses:

Figura 10

Diálogo explícito com a poesia japonesa será realizado na série Haiku erótico,
conjunto de 14 poemas que integram o volume De entre o rigor e o excesso:
um osso, publicado em 1994. Ao contrário do terceto adotado na maioria das
tentativas ocidentais de adaptação desse gênero poético, Melo e Castro adota o
quarteto (lembremos que o haicai japonês tradicional podia ser escrito em uma,
duas, três ou quatro linhas, sendo o quarteto a forma adotada por Wenceslau
de Moraes em suas pioneiras transposições do haicai para a língua portuguesa),
sem medidas métricas fixas, embora as linhas, em geral, estejam próximas às
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redondilhas portuguesas8. Todas as peças da série são escritas em caixa baixa,


sem pontuação, com raras rimas internas (“na onda anda”, “negro loiro”, “beijo
eixo”), num estilo próximo ao de outras composições experimentais do poeta
(como os poemas mais concisos do volume De corpos radiantes, de 1982). O
autor português desconsidera as convenções clássicas do gênero, como o a pre-
sença do signo da estação do ano (o kigo), a referência ao local onde foi escrito
o poema e, sobretudo, a ação, o movimento súbito que faz a ligação entre o céu
(eternidade), o homem e a terra (mundo dos fenômenos). Melo e Castro não
pretende niponizar a sua lírica, numa fácil aclimatação de flores de lótus, cere-
jeiras, templos silenciosos, samurais e outros elementos repetidos com certa
frequência por poetas ocidentais que tentam reproduzir aquilo que imaginam
ser o Japão, o haicai e o zen-budismo. O poeta português escolheu trabalhar a
forma japonesa sem renunciar ao seu repertório cultural, à sua formação euro-
peia; não quer convencer o leitor de que a sua sensibilidade está próxima à de
Bashô e seus discípulos, nem fingir uma simplicidade que contrarie seu voluntá-
rio rebuscamento. Renunciando ao clichê, Melo e Castro realiza uma microlírica
de extrema originalidade, a começar pela temática erótica, ausente no haicai ja-
ponês tradicional. Sua linguagem é fragmentária, elíptica, e as linhas se sucedem
de maneira rápida, como em um videoclipe: “mamilos ilhas / do mar elástico /
flores / na pele do peito” (idem, 177). A transformação do corpo humano em
um mapa onde estão espalhados ilhas, mares e flores é um recurso metafórico
próximo a um preciosismo barroco9; em outra composição, de aparente simplici-
dade, a figura empregada é a metonímia: “fundo e claro / o obscuro fluxo / canto
do olho aberto” (idem). A (quase) ausência de rimas é compensada, na maioria
das peças, por jogos sonoros de caráter aliterativo (“a saliva sabe”, “vulva / volu-
me vago”, “nulo de nada”) ou ainda por assonâncias (“do sol o toque”, “voo no
ritmo”, “das asas duplas”). Em todos os micropoemas da série, a pedra-de-toque
é a representação do ato erótico a partir de associações com elementos da na-

8
Consideramos aqui a redondilha menor, de cinco sílabas, e a redondilha maior, de sete sílabas,
contadas até a última sílaba tônica, conforme a codificação de Castilho. Na versificação japonesa,
assim como ocorria nas cantigas galego-portuguesas, a contagem de sílabas desconsiderava
a acentuação final, fato observado e comentado por Álvaro Faleiros em seu livro Tradução e
significância nos caligramas de Apollinaire: o espaço gráfico, o metro e a textura fônica (São Paulo:
EDUSP, 2003).
9
Composição similar a esta, no procedimento, é o haicai “na pele do deserto / areia movediça /
cetim / de dedos cactus” (idem).
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tureza, que materializam o amor em sua dimensão animal; como inesperado


clímax (anticlímax?), o último terceto anula as regras do jogo, numa figuração
deliberadamente abstrata do êxtase: “total orgasmo / nulo de nada / luz / sobre
a iluminação”, linhas que recuperam palavras do vocabulário zen-budista, mas
reconfiguradas em outro campo de referências: na erotografia poética de Melo
e Castro é pelo corpo que o sentido vem.
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Referências

AKIKO, Yosano. Descabelados. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. Tradução:


Donatella Natili e Álvaro Faleiros.
CAMPOS, Haroldo de. Ideograma. São Paulo, Edusp, 2000.
CAMPOS, Augusto e Haroldo de e PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta. São Pau-
lo: Duas Cidades, 1975.
DANIEL, Claudio. A estética do labirinto: barroco e modernidade em Ana Hatherly. Bauru:
Lumme Editor, 2010.
FALEIROS, Álvaro. Tradução e significância nos caligramas de Apollinaire: o espaço gráfi-
co, o metro e a textura fônica (São Paulo: EDUSP, 2003).
HATHERLY, Ana. Mapas da imaginação e da memória. Lisboa: Moraes Editores, 1973.
__________. A experiência do prodígio — bases teóricas e antologia de textos-visuais
portugueses dos séculos XVII e XVIII. Lisboa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
1983.
__________ e MELO E CASTRO, E. M. PO.EX — Teóricos e documentos da poesia expe-
rimental portuguesa (com E. M. de Melo e Castro). Lisboa: Moraes Editores, 1981.
MELO E CASTRO, E. M. Antologia efémera. Rio de Janeiro: Lacerda editores, 2000.

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