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de Melo e Castro
E. M. de Melo e Castro’s poetical erotography
Abstract: E. M. de Melo e Castro’s poetry connects with the ideogram concept and with
traditional lyrical Japanese aspects such as conciseness, visual identity and a collage of
ideas incorporated in a critical and creative way under vanguardism.
Keywords: Haicai, ideogram, concretism, experimentalism.
*
Universidade de São Paulo (USP).
E
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rnesto Manuel Geraldes de Melo e Castro (1932), que assina sua obra poética,
ficcional, teórica e ensaística como E. M. de Melo e Castro, foi um dos expoen-
tes do movimento da Poesia Experimental (PO-EX) na década de 1960, ao lado
de Ana Hatherly, Salette Tavares, Antônio Aragão e Herberto Helder. Comenta-
remos, neste artigo, a ressonância da estética do ideograma em sua produção
textual, a presença da visualidade e da justaposição de signos em sua poesia,
além do diálogo criativo com o haicai, remodelado pelo autor numa estrutura
de quatro versos e temática erótica, em dissonância com a quase ausência do
elemento amoroso no haicai tradicional – o tema erótico-amoroso será mais
frequente na poesia japonesa a partir da Restauração Meiji, destacando-se a
produção de Yosano Akiko (1878-1942), autora de versos como estes, traduzidos
por Donatella Natili e Álvaro Faleiros: “ouça o poema / como negar o carmim /
da flor do campo? / delícias a menina / pecar na primavera” (Akiko, 2007: 53).
No livro Ideogramas, publicado em 1962, Melo e Castro reúne 29 poemas con-
cretos, publicados sem qualquer introdução ou nota explicativa; este é o mar-
co zero da Poesia Concreta e do Experimentalismo em Portugal1 (embora seja
possível rastrearmos uma pré-história da visualidade na poesia portuguesa na
época maneirista e barroca, tema estudado por Ana Hatherly em A experiência
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O poeta concretista brasileiro Pedro Xisto (ele próprio estudioso da cultura japonesa e autor
de numerosos haicais) escreveu uma carta a Melo e Castro em 04/11/1962 onde comenta o livro
do autor português: “Acabo de receber, gratamente, seus IDEOGRAMAS. E, desde o princípio, já
se deflagra uma questão ou reação em cadeia: são eles de ler? Não e sim. Pois não são de ler e
ver? E ainda não e sim, que há mais. E é ter. Mas ter é sim ou não? Quem, afinal, tem a poesia?
E que é o que a poesia tem? Tem um não ou um sim? Quem sabe, na poesia, isto é, no poema,
há de se ler, ver, ter, verter um ser – o próprio ser do poeta, senão (sim ou não?) o ser próprio do
objeto. Do objeto artístico – objetotem o tato do poeta que, atento, sente ao tato – um ato, o ato
criador. Estranho totem, desalienado, não exclusivo do poeta (que é do rei?) e da sua grei e da sua
lei mas, sim, compreensivo de outras gentes e outras terras, lado a lado, as mesmas. Alto teto,
donde o pêndulo se precipita em círculos de tontura e aceleração de ritmos no fundo do poço ou,
exatamente, à fonte alfabética. É como se, sobre o choque de sismos o poeta viesse da serra ao
vale. Rolam os dados (hipnotismo?). O certo é que funciona o gerador – a máquinaimagem. E, do
círculo aberto em cristal e arco-íris, o gesto poético traga novos perfis. Se a asa sem ar resiste e à
casa sem sol é triste – edifício de ferro e cimento – água vem, água vai, e se faz troca ou dura pura.
A casa, em si, fala, e há (ah!) luta e flor. E, porque, também há espinha dorsal, um livro monumento
ergue-se por fim”. (A carta de Pedro Xisto a E. M. de Melo e Castro foi publicada na revista
eletrônica brasileira Zunái, na página http://zunai.com.br/post/56772592455/carta-de-pedro-
xisto-para-e-m-de-melo-e-castro) A respeito dessa carta, e da relação com Pedro Xisto, escreve o
poeta português, no mesmo link: “Só mais tarde, em 1966, quando vim pela primeira vez ao Brasil
e a São Paulo é que conheci pessoalmente o Pedro Xisto e com ele falei sobre o Haikai. Quando
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Figura 1
regressei a Lisboa levei comigo alguns poemas inéditos do Pedro Xisto que foram publicados no
nº 2 da Revista de Poesia Experimental (1966) e no nº 1 da revista Operação (1967), de minha
iniciativa. Hoje esta carta é um documento verdadeiramente notável e único, nas relações poéticas
entre Portugal e Brasil, nesses anos de 60!”
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Apollinaire é o autor de uma frase adotada como grito de guerra pelos concretistas: “il faut que
notre intelligence s’habitue à comprendre synthético-ideographiquement au lieu de analytico-
discursivement” (in: Campos, Pignatari, Campos, 1975: 156).
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Figura 2
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A esse respeito, escreve Haroldo de Campos: “É bem verdade que o ‘caligrama’ de Apollinaire
se perde na pictografia, exterior, imposta (no poema com forma de objetos, na figuração artificial
à composição); mas sua formulação teórica (...) é fecunda e profética” (in: Campos, Pignatari,
Campos, 1975: 97).
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Figura 3
A poesia de Melo e Castro, apesar das evidentes aproximações que podem ser
feitas com o ideograma – quanto à concisão, visualidade, ruptura com a sintaxe e
com o discurso linear, substituído pela aglutinação de partículas semânticas em
estruturas gráfico-espaciais4 –, faz pouco uso da justaposição analógica de sig-
nos que caracteriza o ideograma; na maioria das composições de seu livro, como
4
Conforme escreveu o poeta português, “quase toda a Poesia Experimental Portuguesa
produzida a partir da década de 60 se pode inscrever dentro de uma denominação geral de POESIA
ESPACIAL, uma vez que as suas coordenadas visuais são dominantes” (Melo e Castro, Hatherly:
1981: 9). A expressão se justifica porque “é no campo das experiências visuais e espaciais do texto,
considerado como matéria substantiva de que o poema se produz, que a pesquisa morfológica,
fonética, sintática e semiológica se projetou e se projeta” (idem).
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Figura 4
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A influência das técnicas de composição da poesia visual do barroco português na vanguarda
experimental portuguesa foi abordada por nós no livro A estética do labirinto: barroco e
modernidade em Ana Hatherly (Bauru: Lumme Editor, 2010).
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Figura 5
6
CAMPOS: 2000, 66.
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Dois acontecimentos referidos por Melo e Castro antecedem o surgimento da Poesia
Experimental: “primeiro, a rápida visita a Lisboa de Décio Pignatari, em 1956 (...), após o seu já
histórico encontro com Gomringer; segundo, a publicação em 1962, pela Embaixada do Brasil em
Lisboa, de uma pequena mas excelente compilação da Poesia Concreta do Grupo Noigandres”
(Melo e Castro, Hatherly, 1981: 9).
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Figura 6
Em outra peça do ciclo, as palavras man, woman, name e amor são desmem-
bradas e as letras, repetidas e recombinadas em diferentes sequências anagra-
máticas, formando imagens e sons puramente abstratos (Figura 7) – experiência
radicalizada em outra peça, composta pela repetição de apenas duas letras, s e
z, combinadas e mescladas até a deformação e a mancha (Figura 8):
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Figura 7
Figura 8
Figura 9
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Figura 10
Diálogo explícito com a poesia japonesa será realizado na série Haiku erótico,
conjunto de 14 poemas que integram o volume De entre o rigor e o excesso:
um osso, publicado em 1994. Ao contrário do terceto adotado na maioria das
tentativas ocidentais de adaptação desse gênero poético, Melo e Castro adota o
quarteto (lembremos que o haicai japonês tradicional podia ser escrito em uma,
duas, três ou quatro linhas, sendo o quarteto a forma adotada por Wenceslau
de Moraes em suas pioneiras transposições do haicai para a língua portuguesa),
sem medidas métricas fixas, embora as linhas, em geral, estejam próximas às
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Consideramos aqui a redondilha menor, de cinco sílabas, e a redondilha maior, de sete sílabas,
contadas até a última sílaba tônica, conforme a codificação de Castilho. Na versificação japonesa,
assim como ocorria nas cantigas galego-portuguesas, a contagem de sílabas desconsiderava
a acentuação final, fato observado e comentado por Álvaro Faleiros em seu livro Tradução e
significância nos caligramas de Apollinaire: o espaço gráfico, o metro e a textura fônica (São Paulo:
EDUSP, 2003).
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Composição similar a esta, no procedimento, é o haicai “na pele do deserto / areia movediça /
cetim / de dedos cactus” (idem).
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Referências