Como Não Fazer Um Golpe-38-51
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pelo próprio sistema, muitas vezes assumindo funções de Estado, como foi
o caso no Brasil e na Itália. Por isso, a história e o historiador do tempo
presente não trabalham com uma periodização fixa – um tempo único ‘em
seta” -, mas sim com as variadas formas de construção da sensibilidade e
dos mecanismos de recepção e percepção do passado para compreender a
noção de tempo, relacionado com seu objeto de investigação.
No início dos anos 1990 René Remond afirmava, de forma pioneira, que
era irreversível a inserção da História do Tempo Presente como um campo
disciplinar novo das ciências humanas. Naturalmente, essa afirmação não
foi ex nihilo. Um longo caminho intelectual e institucional foi trilhado para
que esse campo teórico pudesse ter a validade acadêmica que hoje possui.
Frente à força da pioneira e consolidada Zeitgeschichte e a Contemporany
History, a História do Tempo Presente era, então, apenas a pretensão de
um pequeno grupo de historiadores franceses em rebeldia com as “tradi-
ções institucionais”. Tais historiadores, já se encontravam demasiadamente
incomodados com a (não) leitura do difícil passado recente de seu próprio
país e pela construção de uma mítica “França Resistente”, coletiva e unifi-
cada, perante a ocupação nazista. François Bédarida entendeu que entre
seus contemporâneos ainda permeava uma forte presença do pensamen-
to historiográfico do século XIX, evolucionista, linear e compartimentado e
que esse já não seria suficiente para dar conta das demandas oriundas das
diversas experiencias históricas vividas como trauma no presente. Tratava-
-se, pois, das experiencias de guerra, dos genocídios e da repressão ás lutas
anticoloniais do século XX. Claro que, neste rol de eventos-limites, estavam
as ditaduras, militares ou não, e o fascismo. Tampouco acreditava que ler o
presente faria da história “um jornalismo culto”, como ele mesmo afirmou.
Era bem mais do que isso. As diferenças entre jornalismo, o melhor que ele
seja, e a História do Tempo Presente reside na aplicação rigorosa do método
histórico na construção explicativa da relação passado/presente. O enten-
dimento das estruturas de longa duração e do seu peso sobre as práticas
sociais, políticas e mentais do presente supõe uma percepção histórica, um
mergulho em profundidade, nos processos em curso no Tempo Presente.
Neste sentido, por melhor que seja o jornalismo – e temos grandes nomes
com capacidade de análises esclarecedoras, como foi Carlos Castello Bran-
co e hoje Jânio de Freitas – escapa ao Jornalismo a identificação e análise
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Não há tempo que não limite a sua própria inteligibilidade. Esse reco-
nhecimento dos limites da compreensão histórica, não exclusivo ao presen-
te, colocou François Bédarida, Henry Rousso e os historiadores do Tempo
Presente na vanguarda dos debates públicos. No campo da história, cada
vez mais permeável à Ciência Política, à Sociologia e à Antropologia a obses-
são pelo passado recente tornou a História um campo minado, como explicita
o Projeto “Escola sem Partido” debatido nos Governos Temer e Bolsonaro. Não
era apenas o lidar com a memória presente da França de Vichy ou a Alemanha
de Hitler ou o Brasil sob o Regime Civil-Militar de 1964, mas entender como esse
“luto inacabado” da História retorna, sistematicamente, para informar o Tempo
Presente e mobilizar a sociedade para debater seus próprios temas. Antes de
lidar diretamente com o luto/dor/sofrimento, a história do Tempo Presente,
ao resgatar, como uma de suas temáticas nobres, a análise dos fascismos e das
ditaduras modernas, se debruçou sobre os impactos da Justiça de Transição, as
anistias e como as tentativas de “esquecimento” operaram na formação desse
‘luto inacabado”. Se, a melancolia para Freud era a forma patológica do luto e,
neste, o sujeito estaria num exercício de “desligamento progressivo” do objeto
da perda, no processo histórico o sujeito se sentiria “deslocado”, idealizando
tempos passados, reconstruindo fantasias e mitificando o passado. Assim, os
atores da História acabam por se identificar com o objeto perdido, a ponto de
não mais encontrar ou perceber seu próprio eu. Isso demonstra o quanto a His-
tória do Tempo Presente, ao resgatar, por exemplo, a época dos fascismos e das
ditaduras, foi capaz de retomar a discussão do “eu/individuo”, dessa identidade
dissipada em meio a “esquecimentos” construídos pela incapacidade de lidar
com o passado vivido como trauma – exato ersatz do “luto” no método históri-
co. Um procedimento necessário, posto então, é a distinção entre o campo do
“Tempo Presente” e um conjunto de fatos “recentes”, sucessos “imediatos”, cor-
rentes”, o turbilhão de fatos dos jornais diários, que se desenrolam aos nossos
olhos. Muitas vezes se confunde o “Tempo Presente” com o fluxo extenuante,
incontrolável, de informações, de qualidades e origens diversas, como material
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31 Dentre tais exceções devemos citar: Elíbio, Antônio. (Et Alli). História do
Tempo Presente: uma história em debate. Recife: Autografia/Edupe, 2019.
32 Schurster,, Karl. O fenômeno Nazi e a historiografia do Tempo Presente.
Recife: Autografia/Edupe, 2017.
33 Ver em especial Schurster, Karl; Moraes, Alana. Disputas historiográficas
acerca do Nazismo e do Holocausto. In: Revista Locus: Revista De História 26 (2):386-
406. https://doi.org/10.34019/2594-8296.2020.v26.30669. 9
34 A partir de que “ruptura” poderíamos falar, no Brasil, de uma “História do
Tempo Presente”l? Para a França a experiencia da Ocupação-Colaboração/Desco-
lonização é, sem dúvida, o fenômeno traumático mais significativo capaz de obrigar
toda uma mudança de grande profundidade na sociedade francesa. Para os alemães
a “Katatastrophe”, de 1945, com o reconhecimento da “Responsabilidade Coletiva”
herdada do Terceiro Reich, é uma ruptura com o passado. Para os americanos a ex-
periência do “Neal Deal” e o rompimento com o “Isolacionismo” e a emergência da
República Imperial são marcos fundamentais. E no Brasil? Poderíamos falar de 1930
ou 1945 como tais marcos? Ou teríamos que avançar mais, até 1964? Por outro lado,
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podemos buscar uma periodização diferenciada, fora dos marcos, com os sempre
recorrentes na historiografia brasileira, de caráter político-administrativos, tería-
mos que buscar nos anos de 1955-1960, na “Modernidade Brasileira” – urbanização
avançada, industrialização, Bossa Nova, a Nova Arquitetura, a Política Externa Inde-
pendente etc. os marcos do “Tempo Presente” no Brasil? Sem dúvida, englobar paí-
ses diversos – Argentina, Bolívia, México, Brasil – num só conjunto em nome de uma
militância terceiro-mundista não é uma grande ajuda, contudo ignorar condições
comuns como a industrialização dependente e a dependência, como propõe a obra
de Celso Furtado, no âmbito de um sistema dito “subdesenvolvido e socialmente
desigual”, seria desconhecer a própria história do capitalismo. Ver: FURTADO, Celso.
Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961.
35 Soulet, Jean-François. Histoire Immediate. Paris, Armand Colin, 2012.
36 Portelli, , Alessandro. O massacre de Civitella Vai di Chiana (Toscana, 29 de
junho de 1944). In: Moraes, Marieta; Amado, Janaína. Usos e Abusos da História. Rio de
Janeiro: FGV, 1998.
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37 Casa Nova Maia, , Vera e Lucia. Arquivos da Pandemia. Belo Horizonte: Edi-
tora da UFMG, 2020.
38 Chul Han, Byung. La Société de la fatigue, Paris, Édition Circé, 2014.
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afirmou Pieter Lagrou, ele é um deles42. Lagrou está correto ao afirmar que
a reflexão sobre o campo da memória não é um subproduto da História, em
especial da História do Tempo Presente, mas parte integrante daqueles que
trabalham com a própria História43. É nessa relação que o historiador do
Tempo Presente renuncia ao seu “exclusivismo” da especialidade histórica
para aceitar que a História é sempre “pública”, polifônica, e que está imersa
num jogo de identidades e memórias diversas, flutuantes e combativas.
A experiência do pesquisador e seu apego ao método rigoroso é o único
recurso na construção de um idioma universal através do qual todos possam
dialogar.
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46 Ginzburg, Carlo. História Noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
47 Não se trata tão somente da absurda afirmação de Bolsonaro sobre o Ho-
locausto ou da sua insistência em classificar o Nacional-socialismo como um mo-
vimento de “esquerda”, mas da atuação concreta de funcionários e políticos do Go-
verno como a cópia de discursos de Goebbels ou a sinalização, em pleno Senado
Federal com sinais típicos da Supremacia Branca, em ofensa e desafio aos básicos
princípios dos Direitos Humanos da Constituição. Da mesma forma, o uso público
por parte do Presidente da República do “copo de leite”, um signo claro dos supre-
macistas. Ver: Valor Econômico. Secretário da Cultura é demitido após citações
nazistas. In: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/01/17/secretario-da-
-cultura-devera-ser-afastado-apos-discurso-semelhante-ao-de-goebbels. Con-
sultado, em 22/04/2021 e Brasil de Fato. Cinco vezes que Bolsonaro, ou pessoas
ligadas a ele, recorreram a símbolos nazistas, 21/03/2020. In: https://www.bra-
sildefato.com.br/2021/03/25/cinco-vezes-que-bolsonaro-ou-pessoas-ligadas-a-
-ele-recorreram-a-simbolos-nazistas, consultado em 22/04/2021 e Congresso em
Foco. Entenda o gesto feito por assessor de Bolsonaro e sua relação com o racismo,
21/03/2021. In: https://congressoemfoco.uol.com.br/midia/simbolo-ok-racista-
-extremista-supremacista/, consultado em 22/04/2021.
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CAPÍTULO III
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cas feitas por Bolsonaro, sem qualquer base factual, somaram-se ataques aos
meios jornalísticos e contra as empresas de enquetes das tendencias eleitorais.
Ao mesmo tempo o Presidente em função utilizou-se da máquina do Estado,
sobre a proteção de centenas de ordens indevidas de sigilo, de forma nunca
vista numa eleição presidencial na Nova República. Assim, Bolsonaro afirmava
que as eleições só seriam limpas e justas se ele fosse o vencedor.
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