Como Não Fazer Um Golpe-38-51

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CAPÍTULO II

Tempos Históricos, Memória e História


do Tempo Presente: o método

A segunda década do século XXI se encerra, em todo o mundo, tendo


como uma de suas características básicas o retorno das “Direitas” e em
especial das “Direitas extremistas”, ditas Extrema-Direita ou mesmo (neo)
fascismo ao cenário político mundial. A mobilização permanente das mas-
sas e a disseminação do ódio, em especial nas redes digitais, colocando em
questionamento o agir político democrático, por todo o Mundo, tornou-se
ator político relevante em países como França, Espanha, Itália e Alemanha.

A chamada “ressurgência fascista”, com inspiração nos regimes fascistas


históricos dos anos entre 1922 e 1945, provoca a impressão de que o “sécu-
lo XX não passa”, ameaçando repetir-se em nossos dias. Agora, nos meios
políticos e acadêmicos, retomamos a discussão central sobre os fascismos
históricos – aqueles que aconteceram na primeira metade do século XX -
percebendo que mesmo com o fim da guerra em 1945 e da Guerra Fria em
1989-1991, as condições de sua reprodução/regeneração permaneceram
presentes. A ânsia pelo novo e por enterrar um século de guerras e genocí-
dios foi tão grande que muitos historiadores não se deram conta de que a
sombra dos fascismos não havia desaparecido. Tais movimentos se consoli-
dam no mainstream político como algo permanente e com reconhecimento

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COMO (NÃO) FAZER UM GOLPE DE ESTADO NO BR ASIL

pelo próprio sistema, muitas vezes assumindo funções de Estado, como foi
o caso no Brasil e na Itália. Por isso, a história e o historiador do tempo
presente não trabalham com uma periodização fixa – um tempo único ‘em
seta” -, mas sim com as variadas formas de construção da sensibilidade e
dos mecanismos de recepção e percepção do passado para compreender a
noção de tempo, relacionado com seu objeto de investigação.

No início dos anos 1990 René Remond afirmava, de forma pioneira, que
era irreversível a inserção da História do Tempo Presente como um campo
disciplinar novo das ciências humanas. Naturalmente, essa afirmação não
foi ex nihilo. Um longo caminho intelectual e institucional foi trilhado para
que esse campo teórico pudesse ter a validade acadêmica que hoje possui.
Frente à força da pioneira e consolidada Zeitgeschichte e a Contemporany
History, a História do Tempo Presente era, então, apenas a pretensão de
um pequeno grupo de historiadores franceses em rebeldia com as “tradi-
ções institucionais”. Tais historiadores, já se encontravam demasiadamente
incomodados com a (não) leitura do difícil passado recente de seu próprio
país e pela construção de uma mítica “França Resistente”, coletiva e unifi-
cada, perante a ocupação nazista. François Bédarida entendeu que entre
seus contemporâneos ainda permeava uma forte presença do pensamen-
to historiográfico do século XIX, evolucionista, linear e compartimentado e
que esse já não seria suficiente para dar conta das demandas oriundas das
diversas experiencias históricas vividas como trauma no presente. Tratava-
-se, pois, das experiencias de guerra, dos genocídios e da repressão ás lutas
anticoloniais do século XX. Claro que, neste rol de eventos-limites, estavam
as ditaduras, militares ou não, e o fascismo. Tampouco acreditava que ler o
presente faria da história “um jornalismo culto”, como ele mesmo afirmou.
Era bem mais do que isso. As diferenças entre jornalismo, o melhor que ele
seja, e a História do Tempo Presente reside na aplicação rigorosa do método
histórico na construção explicativa da relação passado/presente. O enten-
dimento das estruturas de longa duração e do seu peso sobre as práticas
sociais, políticas e mentais do presente supõe uma percepção histórica, um
mergulho em profundidade, nos processos em curso no Tempo Presente.
Neste sentido, por melhor que seja o jornalismo – e temos grandes nomes
com capacidade de análises esclarecedoras, como foi Carlos Castello Bran-
co e hoje Jânio de Freitas – escapa ao Jornalismo a identificação e análise

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TEMPOS HISTÓRICOS, MEMÓRIA E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: O MÉTODO

das “forças profundas”, no dizer de Pierre Renouvin, que moldam os pró-


prios processos de configuração do “Jetztzeit” - do aqui e agora27.

Trata-se de um longo processo de “desfactualização” da história, de eli-


minar uma visão progressiva e unívoca na compreensão dos processos his-
tóricos, permitindo a visão simultânea de tempos da História. Parafrasean-
do Paul Riccoeur28, ou seja, é uma tentativa de introduzir a dimensão de
explicação dos tempos múltiplos, cruzados, onde uma “época” – no sentido
do Historismo alemão – informa e molda os processos em curso. Seguindo
os princípios de Henri Marrou29, era necessário localizar o conhecimento
histórico no tempo, mas sempre com o foco no presente que seria o interlo-
cutor direto com o historiador e seus questionamentos incessantes. A partir
do tempo presente a história passaria a ter uma relação dialógica com as
várias temporalidades e o presente seria entendido como um grande espa-
ço de experiência. Não há dúvidas de que um fenômeno do presente jamais
será compreendido nas mesmas condições de outro já inscrito no passado,
em especial do passado longínquo. A isso chamamos de delimitação de in-
teligibilidade, o que não representa uma questão apenas de “distanciamen-
to” – leia-se de “neutralidade” epistemológica - para os historiadores do
presente, mas todos que exercem o ofício da história. Debates contempo-
râneos, por exemplo, sobre a invenção múltipla ou difusionista da agricul-
tura ou da natureza das primeiras cidades da História – se, são resultado da
sedentarização agrícola ou foram, muito antes, como as ruínas de Göbekli
Tepe nos sugerem, fruto da organização de povos coletores-caçadores já no
XI milênio A. C. -, permitem debates tão acalorados, por vezes até passio-
nais, quanto o papel da politica de “Apaziguamento” de Melville Chamberlain
permitiu o fortalecimento de Adolf Hitler, ou a Guerra do Vietnã foi perdida
pelos Estados Unidos, aferrado ao anticomunismo da Guerra Fria, e, assim,
surdos ao conteúdo “nacional” e “anticolonial” da Frente de Libertação Na-
cional de Ho Chi Minh e seus companheiros de luta. O debate, quanto ampa-

27 Cécile, Gonçalves. Histoire du temps présent, Sources orales, Témoins, Pas-


sé proche, Rôle social de l’historien. Coimbra: Revista Estudos do Século XX, Im-
prensa da Universidade de Coimbra, 2011.
28 Ricouer, Paul. The conflict of interpretations: Essays in Hermeneutics. Nor-
thwestern University Press, 2007.
29 Marrou, Henri. The meaning of history. Helicon; Ex-library/stated first Edi-
tion, 1966.

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COMO (NÃO) FAZER UM GOLPE DE ESTADO NO BR ASIL

rado no rigor do método histórico, aclara e faz avançar os conhecimentos30.


O inaceitável é o negacionismo.

Não há tempo que não limite a sua própria inteligibilidade. Esse reco-
nhecimento dos limites da compreensão histórica, não exclusivo ao presen-
te, colocou François Bédarida, Henry Rousso e os historiadores do Tempo
Presente na vanguarda dos debates públicos. No campo da história, cada
vez mais permeável à Ciência Política, à Sociologia e à Antropologia a obses-
são pelo passado recente tornou a História um campo minado, como explicita
o Projeto “Escola sem Partido” debatido nos Governos Temer e Bolsonaro. Não
era apenas o lidar com a memória presente da França de Vichy ou a Alemanha
de Hitler ou o Brasil sob o Regime Civil-Militar de 1964, mas entender como esse
“luto inacabado” da História retorna, sistematicamente, para informar o Tempo
Presente e mobilizar a sociedade para debater seus próprios temas. Antes de
lidar diretamente com o luto/dor/sofrimento, a história do Tempo Presente,
ao resgatar, como uma de suas temáticas nobres, a análise dos fascismos e das
ditaduras modernas, se debruçou sobre os impactos da Justiça de Transição, as
anistias e como as tentativas de “esquecimento” operaram na formação desse
‘luto inacabado”. Se, a melancolia para Freud era a forma patológica do luto e,
neste, o sujeito estaria num exercício de “desligamento progressivo” do objeto
da perda, no processo histórico o sujeito se sentiria “deslocado”, idealizando
tempos passados, reconstruindo fantasias e mitificando o passado. Assim, os
atores da História acabam por se identificar com o objeto perdido, a ponto de
não mais encontrar ou perceber seu próprio eu. Isso demonstra o quanto a His-
tória do Tempo Presente, ao resgatar, por exemplo, a época dos fascismos e das
ditaduras, foi capaz de retomar a discussão do “eu/individuo”, dessa identidade
dissipada em meio a “esquecimentos” construídos pela incapacidade de lidar
com o passado vivido como trauma – exato ersatz do “luto” no método históri-
co. Um procedimento necessário, posto então, é a distinção entre o campo do
“Tempo Presente” e um conjunto de fatos “recentes”, sucessos “imediatos”, cor-
rentes”, o turbilhão de fatos dos jornais diários, que se desenrolam aos nossos
olhos. Muitas vezes se confunde o “Tempo Presente” com o fluxo extenuante,
incontrolável, de informações, de qualidades e origens diversas, como material

30 Para esse debate ver: Graeber, David e Wengrow, David. O Despertar de


Tudo: Uma Nova História da Humanidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2022.

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TEMPOS HISTÓRICOS, MEMÓRIA E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: O MÉTODO

histórico. Na História do Tempo Presente cabe ao historiador, com seu contro-


le do método e discernimento decorrente de sua especialização no campo do
objeto sobre escrutínio, distinguir dentre o turbilhão de informações incontro-
láveis do âmbito atual de redes de dados, e o que são processos que identificam
tendências e, assim, mostraram-se portadores de futuro em face do universo
que compõe um imenso lixo digital.

Não podemos, pois, confundir o que é estrutural/estruturante, profundo,


com fatos que se desenrolam de forma ‘imediata” e constante, quase presencial,
– o conceito de “surface” braudeliana da História, um tempo rápido, nervoso,
descartável - com a abordagem metodológica rigorosa dos processos estrutu-
rantes do Tempo Presente31.

Ora, tal debate historiográfico, já ocorreu e foi posto para os historia-


dores de oficio, embora tenha sido, ao que parece, relegado, ou mesmo es-
quecido, na maior parte das vezes32. Para grande parte de historiadores – e
mesmo para outros profissionais em Ciências Sociais – ao lançarem mão do
sintagma “Tempo Presente” acaba-se por transformá-lo em um significante
sem significado, ou na melhor de suas escolhas, num significante reduzido a
sua expressão mais pobre: a cronologia que aponta para os fatos recentes33.
Por tal dificuldade, a História do “Tempo Presente” passa, então, a ser frag-
mentada, segmentada, “nacionalizada”, perdendo o seu sentido “universal”,
no momento exato em que se torna, cada vez mais necessário “uma História
Global”34.

31 Dentre tais exceções devemos citar: Elíbio, Antônio. (Et Alli). História do
Tempo Presente: uma história em debate. Recife: Autografia/Edupe, 2019.
32 Schurster,, Karl. O fenômeno Nazi e a historiografia do Tempo Presente.
Recife: Autografia/Edupe, 2017.
33 Ver em especial Schurster, Karl; Moraes, Alana. Disputas historiográficas
acerca do Nazismo e do Holocausto. In: Revista Locus: Revista De História 26 (2):386-
406. https://doi.org/10.34019/2594-8296.2020.v26.30669. 9
34 A partir de que “ruptura” poderíamos falar, no Brasil, de uma “História do
Tempo Presente”l? Para a França a experiencia da Ocupação-Colaboração/Desco-
lonização é, sem dúvida, o fenômeno traumático mais significativo capaz de obrigar
toda uma mudança de grande profundidade na sociedade francesa. Para os alemães
a “Katatastrophe”, de 1945, com o reconhecimento da “Responsabilidade Coletiva”
herdada do Terceiro Reich, é uma ruptura com o passado. Para os americanos a ex-
periência do “Neal Deal” e o rompimento com o “Isolacionismo” e a emergência da
República Imperial são marcos fundamentais. E no Brasil? Poderíamos falar de 1930
ou 1945 como tais marcos? Ou teríamos que avançar mais, até 1964? Por outro lado,

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COMO (NÃO) FAZER UM GOLPE DE ESTADO NO BR ASIL

Tal campo deve ser problematizado em outra direção, como discutido


por Marc Bloch, Bédarrida, Soulet e Rousso. Implica, com outra denomi-
nação/distinção, já amplamente discutida, na definição de História Con-
temporânea, de “História Imediata”, e História do Tempo Presente, cru-
zando-se, agora, com as possibilidades da “História das Emoções” ou das
“Sensibilidades Públicas” – um território das grandes vertigens35.

A preocupação com o impactante, “um acontecimento histórico” que en-


volva todos os indivíduos em sua época e deixe suas marcas permanentes
nos grupos sociais, venha a causar impacto e relevância, terá suas dimen-
sões apreciadas por todos esses campos. Alessandro Portelli, num estudo
exemplar sobre uma comunidade italiana durante a Segunda Guerra Mun-
dial, mostrou como um evento local pode ser apropriado diversamente pe-
los grupos e sua memória, dividida e antagônica, e as comemorações que daí
decorrem, marcam de forma permanente as fronteiras mentais pré-exis-
tentes dos grupos. Só não pode ser negado que naquele agosto doloroso
reféns italianos foram sumariamente fuzilados pela Wehrmacht. De outra
forma seria negacionismo36.

A Pandemia de Covid-19 terá sua história nos três níveis do tempo: o


imediato – rápido, nervoso, impressionista - , o das conjunturas – de onde
emergem as primeiras análises e a compreensibilidade do próprio fenômeno
- e o profundo, que estrutura os demais e é, por sua vez, formatado pelos
anteriores, apontando para as tendências de uma época. As “emoções”

podemos buscar uma periodização diferenciada, fora dos marcos, com os sempre
recorrentes na historiografia brasileira, de caráter político-administrativos, tería-
mos que buscar nos anos de 1955-1960, na “Modernidade Brasileira” – urbanização
avançada, industrialização, Bossa Nova, a Nova Arquitetura, a Política Externa Inde-
pendente etc. os marcos do “Tempo Presente” no Brasil? Sem dúvida, englobar paí-
ses diversos – Argentina, Bolívia, México, Brasil – num só conjunto em nome de uma
militância terceiro-mundista não é uma grande ajuda, contudo ignorar condições
comuns como a industrialização dependente e a dependência, como propõe a obra
de Celso Furtado, no âmbito de um sistema dito “subdesenvolvido e socialmente
desigual”, seria desconhecer a própria história do capitalismo. Ver: FURTADO, Celso.
Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961.
35 Soulet, Jean-François. Histoire Immediate. Paris, Armand Colin, 2012.
36 Portelli, , Alessandro. O massacre de Civitella Vai di Chiana (Toscana, 29 de
junho de 1944). In: Moraes, Marieta; Amado, Janaína. Usos e Abusos da História. Rio de
Janeiro: FGV, 1998.

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TEMPOS HISTÓRICOS, MEMÓRIA E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: O MÉTODO

de cada um são vívidas, já são história cotidiana da epidemia – a dor, as


histórias do isolamento, a resistência, os números que se transformam
tão rapidamente em nomes, a incompetência e o deboche do poder
bolsonarista37. Os fatos que se sucedem, as análises diárias, por vezes que se
contam nas horas, que se confirmam ou contradizem, que formam dossiers
e balanços. São elementos históricos mas, ainda não configura “a” História.
No início são “Histórias” fragmentadas, partidas. São os relatos históricos
da semana. Do mês. Do ano. Por cidade. Por Região. Por país. Um dia o será
do movimento global da pandemia. No entanto, contém uma provisoriedade
que não é o provisório de toda a pesquisa científica. É o provisório do corsi et
ricorsi, do “imediato” aos nossos olhos, da fluidez do acontecimental que se
transforma em vagas. Cabe ao historiador, munido do método, organizar e
interpretar tudo que flui em tais imensas “Infohighways”, sob o risco – como
diria o filósofo Byung Chul Han de paralisarmo-nos perante um verdadeiro
“infarto” das novas “Highways” de informações que nos chegam38.

No “Tempo Presente” toda fluidez é também parte e forma de um


movimento mais largo, continuo e lento, que se estrutura em camadas: as
tochas da marcha neonazista da cidade de Dortmund 2015 foram acessas
em Berlim 1933, e antes, na ‘Marcha sobre Roma” em 1922; as montanhas
de mortos do negacionismo de 2021 no Brasil se iluminam à luz das tochas
acessas de Berlim 1933, em Roma em 1922, em Dortmund 2015 e nas eleições
brasileiras de 2018. Tais eleições, no Brasil, em corsi et ricorsi, irmana-se
na ilustração significante da camiseta de um invasor do Capitólio (em 06 de
janeiro de 2021) que estampa: “Camp Auschwitz” e 1922, 1933, 2015 e 2018 ,
a “longue durée, são “tempos” da estruturação do genocídio Yanomami em
2023 e as ameaças golpistas seja na Alemanha em 2022, seja no Brasil em
2022 e 2023. A história yanomami guarda, também, estes tempos diversos
onde se inscreve o genocídio: desde os primeiros exploradores da Amazônia,
passando pelas conjunturas da construção do Estado Nacional brasileiro até
as invasões, destruições, sequestros, estupros, a febre e a fome que compõe
a vida diária, hoje, dos Yanomami.

37 Casa Nova Maia, , Vera e Lucia. Arquivos da Pandemia. Belo Horizonte: Edi-
tora da UFMG, 2020.
38 Chul Han, Byung. La Société de la fatigue, Paris, Édition Circé, 2014.

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COMO (NÃO) FAZER UM GOLPE DE ESTADO NO BR ASIL

Nenhuma narrativa que aponte para a máquina de morrer que se constitui


na longa duração, selando desde logo o destino das pessoas, pode desculpar
a “intenção” imediata de infringir dor. Na verdade, não se morre de covid-19,
fome ou febre na longa duração. É no imediato do tempo do “Jetztzeit” que
os genocídios ocorrem.

É esse método da História do Tempo Presente que denominamos de


“enlaces” estruturantes das relações passado/presente.

São os “enlaces nos enlaces” profundos que fazem os temas História do


Tempo Presente. Assim, o “Tempo Presente” não é uma “cronologia” ou uma
“periodização” nova aposta a uma fase, mais próxima de nós, da História
Contemporânea. Não falamos de cronologias baseadas em “escalas móveis”
de um tempo linear. Nos debruçamos sobre metodologias e problemas;
com François Bédarida, insistimos sobre a questão do historiador e seu
papel de “crítica e responsabilidade” no seu tempo39, e com Pieter Lagrou,
nos voltamos para as “sequelas e o pânico moral na História em face dos
temas difíceis ou traumáticos”, que se tornou por vezes paralisante40. Mas,
com certeza, o “tempo” do Tempo Presente não é linear e, tão pouco, um
tempo estabelecido numa “escala móvel” de periodização de épocas da
História. O “tempo” no campo do Tempo Presente é derivado do objeto
construído pelo historiador e é um resultado, na abordagem do objeto, dos
enlaces do presente em direção ao passado, daquilo que constrói a matéria
do compreensível41. A proposta da História do Tempo Presente traria uma
revolução de paradigmas na medida em que não só aponta a diversidade
das fontes de análise, mas produz novos caminhos para as leituras das
fontes já tradicionalmente conhecidas nos arquivos públicos, valorizando
a multiplicidade dos tempos históricos. Como na antropologia, torna-se
impossível extrair o observador do que é observado. Por isso, o historiador
do tempo presente não está apenas lidando com sobreviventes, mas, como

39 Bédarida, François. Histoire, Critique et Responsabité. Paris, IHTP/CNRS,


2003, em especial p.23 e ss.
40 Lagrou, Pieter. Mémoires patriotiques et l´ocupation nazie. Paris, CNRS/
IHTP, 2003, p. 139 e ss.
41 Voldman, Danièle. Définitions et usages. Les Cahiers de I’IHTdelesP, n. 21,
p.33-53, nov. 1992.

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TEMPOS HISTÓRICOS, MEMÓRIA E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: O MÉTODO

afirmou Pieter Lagrou, ele é um deles42. Lagrou está correto ao afirmar que
a reflexão sobre o campo da memória não é um subproduto da História, em
especial da História do Tempo Presente, mas parte integrante daqueles que
trabalham com a própria História43. É nessa relação que o historiador do
Tempo Presente renuncia ao seu “exclusivismo” da especialidade histórica
para aceitar que a História é sempre “pública”, polifônica, e que está imersa
num jogo de identidades e memórias diversas, flutuantes e combativas.
A experiência do pesquisador e seu apego ao método rigoroso é o único
recurso na construção de um idioma universal através do qual todos possam
dialogar.

Retomemos aqui as palavras de François Bédarrida: “É exatamente a união


e interação entre o presente e o passado em que reside a inovação maior
em que se baseia a construção do IHTP [Instituto de História do Tempo
Presente]”44. Ou seja, retomando Marc Bloch, não estamos trabalhando com
um período “novo” da História Contemporânea, mas com um novo método
de “interação”, especialização e de abordagem da História. Não por acaso,
que historiadores “clássicos”, como Ernest Labrousse e Arnaldo Momigliano,
apoiaram, desde logo, a emergência do “Tempo Presente” como campo de
atuação do historiador, denominado por este último de “l´histoire retrouve”
– uma presença reencontrada da história de Bloch com o historiador, depois
de tantas ausências.

Foi esse o “cruzamento” dos campos operado no do 6 de janeiro


de 2021 [quando uma multidão, motivada por “paixões mobilizadoras”,
invadiu violentamente o Prédio do Capitólio em Washington] que aponta
e, em parte explica, o 8 de janeiro de 2023, quando uma outra multidão
destruiu os palácios da República na Praça dos Três Poderes em Brasília:
História Imediata, História das Emoções, História do Tempo Presente,
História Política e a Sociologia e a Ciência Política explicitando uma ampla
transdisciplinaridade de várias abordagens possíveis e, porém, diferenciadas.

Mas, como podemos relacionar as ações, bandeiras e programas, por

42 Lagrou, Pieter. De l’actualité du temps présent. In: L’histoire du temps pré-


sent, hier et aujourd’hui, Bulletin de l’IHTP n° 75, juillet 2000.
43 Idem.
44 Bédarida, François. Op, cit, p. 49.

45
COMO (NÃO) FAZER UM GOLPE DE ESTADO NO BR ASIL

exemplo, das milícias – de existência já durável na vida política americana


- e que se organizaram para o 06/01 no Capitólio através das redes sociais
- com a Marcha de Tochas dos neonazistas de Dortmund em 2015 e, antes,
com as Marchas de Tochas de Berlim de 1933 – e a “Marcha sobre Roma” em
1922 – e o 8/01/2023 em Brasília?45 E qual a relação de todos esses eventos
com as eleições brasileiras de 2018 no sentido que 8/01/2023 está contido
em 2016 e em 2018?

Washington, Capitólio, 06/01/2021: vários grupos de extremistas de Direita, su-


premacistas brancos e milicianos de organizações neofascistas invadiram e depre-
daram a sede do Poder Legislativo americano. Na camiseta, além da denominação
“Camp Auschwitz”, um dos locais de extermínio na Segunda Guerra Mundial, cons-
ta o lema do exterminacionismo. O militante Robert Keith Peirce durante a Inva-
são do Capitólio com a camiseta-documento estampada “Camp Auschwitz”, com a
caveira e os ossos cruzados, e o lema dos campos de concentração “Arbeit Macht
Frei” como elo/enlace passado-presente entre todo o ecossistema das Extremas
Direitas e do Fascismos numa longa duração desde 1922, com a “Marcha sobre
Roma” até 2023 em Brasília. Fonte: https://www.nbcnews.com/news/us-news/
man-camp-auschwitz-shirt-photographed-u-s-capitol-riot-arrested-n1254070

45 Ver: Neonazi im Dortmund. In: https://www.tagesspiegel.de/politik/neo-


nazis-in-dortmund-die-braune-suppe-im-pott/11343966.html, 08/02/2015/ con-
sultado em 21/04/2021.

46
TEMPOS HISTÓRICOS, MEMÓRIA E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: O MÉTODO

Ao historiador cabe a crítica, e a responsabilidade, de realizar os enla-


ces entre fenômenos, só aparentemente, distantes no tempo e no espaço,
como um processo “trans-histórico” único46. Só uma leitura não-historici-
zante pode realizar os enlaces necessários para criar esse idioma comum da
história do arbítrio e da tirania, reunindo fenômenos dispersos no tempo/
espaço, provendo uma leitura de “mitos, signos e emblemas” – tochas, ban-
deiras, uniformes, camisetas, palavras de ordem, etc... - que pode nos fazer
entender, por exemplo, a unicidade do fenômeno fascista numa longa du-
ração. Neste caso, a “camiseta” do depredador do Capitólio – estampando
“Camp Auschwitz” -, do militante extremista de Washington, adquire um
significado transcendental de elo entre épocas, permitindo o enlace entre
quatro eventos históricos diversos, e mais corretamente, com um quinto: a
“Marcha sobre Roma”, dos fascistas italianos em 1922; as Marchas de Tochas
de Berlim, 1933, que resultaram nos campos de extermínio, entre eles o no-
meado “[Camp] Auschwitz”; a Marcha de Tochas de Dortmund, em 2015, da
Ressurgência fascista [nazista], repetindo odioso temas exterminacionista
e antissemitas; a Invasão do Capitólio, em 06/01/2021, com as Milícias su-
premacistas brancas antissemitas – onde aparece a camiseta do militante
antissemita, o “signo” que faz o enlace/elo dos diversos “tempos” – e os re-
petidos sinais de emulação nazista do Governo Bolsonaro, o “quinto tempo”,
com seu paroxismo em 8/01/202347.

46 Ginzburg, Carlo. História Noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
47 Não se trata tão somente da absurda afirmação de Bolsonaro sobre o Ho-
locausto ou da sua insistência em classificar o Nacional-socialismo como um mo-
vimento de “esquerda”, mas da atuação concreta de funcionários e políticos do Go-
verno como a cópia de discursos de Goebbels ou a sinalização, em pleno Senado
Federal com sinais típicos da Supremacia Branca, em ofensa e desafio aos básicos
princípios dos Direitos Humanos da Constituição. Da mesma forma, o uso público
por parte do Presidente da República do “copo de leite”, um signo claro dos supre-
macistas. Ver: Valor Econômico. Secretário da Cultura é demitido após citações
nazistas. In: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/01/17/secretario-da-
-cultura-devera-ser-afastado-apos-discurso-semelhante-ao-de-goebbels. Con-
sultado, em 22/04/2021 e Brasil de Fato. Cinco vezes que Bolsonaro, ou pessoas
ligadas a ele, recorreram a símbolos nazistas, 21/03/2020. In: https://www.bra-
sildefato.com.br/2021/03/25/cinco-vezes-que-bolsonaro-ou-pessoas-ligadas-a-
-ele-recorreram-a-simbolos-nazistas, consultado em 22/04/2021 e Congresso em
Foco. Entenda o gesto feito por assessor de Bolsonaro e sua relação com o racismo,
21/03/2021. In: https://congressoemfoco.uol.com.br/midia/simbolo-ok-racista-
-extremista-supremacista/, consultado em 22/04/2021.

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COMO (NÃO) FAZER UM GOLPE DE ESTADO NO BR ASIL

O conjunto de tais “enlaces”, do presente para o passado, no dizer de


François Bédarida, deslanchados aqui a partir do signo/enlace/elo “camise-
ta [Camp] Auschwitz”, constitui-se na abordagem chave dos estudos-tipo do
Tempo Presente e permite, desta forma, a reconstituição, nos tempos diver-
sos e na suas diversidades nacionais e históricas, do ecossistema da Extre-
ma-Direita fascista na longa duração – da Marcha sobre Roma”, em 1922, até
o Golpe falhado de 08/01/2023 em Brasília. Tais “interações”, como propõe
Bédarida, são o próprio material da História. Trata-se de um fiel retorno a
Marc Bloch, um olhar prescrutador do historiador – “l’attention particulière
que j’ai accordée, dans mes travaux, aux choses rurales a achevé de me con-
vaincre que, sans se pencher sur le présent, il est impossible de comprendre
le passé ”48. Estamos, desta forma, perante uma metodologia, jamais em face
de uma cronologia, e nunca de uma periodização baseada em uma “escala
móvel”, segmentando o contemporâneo. O campo do Tempo Presente cons-
trói sua própria periodização, a partir dos enlaces entre o presente e o pas-
sado expostos pela pesquisa histórica, que emergem da definição do tema,
sem ser um tempo constante ou externo ao próprio objeto da pesquisa.49

48 Marc Bloch (1886-1944) refere-se aqui a sua vasta produção de trabalhos


sobre a História Agrária que medieval e moderna, a maior parte de cunho compara-
tivista, que realizou, de forma original, junto com Lucien Febvre e André Piganiol na
Universidade de Strasbourg, nos anos de 1920. Em 1931 defende sua tese de douto-
rado – “Les Caracteres Originoux de la Civilización Rurale Française”, obra de forte
impacto para formação do campo da História Agrária em todo o mundo, embora já
então se faça sentir o clima antissemita reinante na França (como na barreira a sua
entrada no Colége de France). Em 1929 funda com o amigo Lucien Febvre a revista
“Annales”, que terá fortíssimo impacto renovador sobre toda a História profissional
no Mundo, e abre as portas para a “chair” de História Econômica na Sorbonne su-
cedendo a Henry Hauser. Com a invasão da França e a publicação do Estatuto dos
Judeus pelo Regime de Vichy, de 3/10/1940, Marc Bloch perde seu cargo na Sorbo-
ne, é obrigado a migrar para o sul – quando escreve “A Estranha Derrota” - e por fim
passa para a Resistência. Preso e torturado pela Gestapo, é fuzilado em 16 de junho
de 1944, junto com outros 27 resistentes.
49 Bloch, Marc. L´Etrange Défaite. Paris : Éditions Franc ´Tireur, 1946, p. 5.

48
TEMPOS HISTÓRICOS, MEMÓRIA E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: O MÉTODO

Tempo Presente: 2015 como 1933, 2021, 2023 como a repetição da


Marcha sobre Roma de 1922: a História como Imitação.

Grupos de neonazistas alemães organizam-se persistentemente em manifes-


tações antissemitas, contrárias aos residentes estrangeiros e alemães de ori-
gens diversas e escandem palavras de ordens claramente racistas, tais como
“Israel nie wieder” (Israel nuca mais”, particularmente odiosa por sua similitu-
de com “Nie Wieder” utilizado como dístico do Holocausto ); como também
“Der Staat Israel ist unser Unglück” ( “O Estado de Israel é nossa infelicidade”),
que remete diretamente a um dos mais conhecidos chavões do Terceiro Rei-
ch – “Os Judeus são nossa infelicidade”; ou, ainda, “Wer Deustchland liebt,
Antisemit ist” – “Quem ama a Alemanha, é antissemita”, claramente assume
uma atitude racista e discriminatória. Tais manifestantes – jovens, instruídos
e provenientes das classes médias de Dortmund – compõe os militantes da
“Marcha das Tochas” de 2015. Fonte: https://www.belltower.news/dortmun-
der-neonazis-antisemitische-beleidigungen-zu-rosh-haschana-91873/

49
COMO (NÃO) FAZER UM GOLPE DE ESTADO NO BR ASIL

50
CAPÍTULO III

O esperado aconteceu: o golpe

As eleições presidenciais brasileiras, em 2022, realizaram-se em clima de


grande tensão. Para ambos os lados de um país fortemente dividido tratava-
-se bem mais da aprovação de projetos antagônicos para o futuro da Nação
do que a eleição de um candidato. De lado, com o Presidente Jair Bolsonaro
e seu vice, o General Braga Netto, do PL/Partido Liberal, com o antigo PSDB
– que vinha se radicalizando à Direita -, o PP/Progressistas, o Republica-
nos, o PTB – que através da candidatura de um religioso no primeiro turno
funcionou como linha auxiliar do Bolsonarismo com uma pauta comporta-
mental especialmente reacionária. Tal “frente” de Direita e Extrema-direita
organizou sua proposta eleitoral em tono da defesa do país ante a ameaça de
um “projeto comunista” – ou simplesmente “petista” ou ainda “bolivariano”,
com forte apelo em prol da família tradicional, heteronormativa, de fundo
patriarcal, ao lado de uma gestão econômica liberal, privatizante e longe da
atuação indutora do Estado e “honesta”, anticorrupção. A dura caracteriza-
ção do candidato desafiante, Lula da Silva, como “chefe de uma organiza-
ção criminosa” que fora “descondenado” por um Supremo Tribunal Federal
partidário – sob forte influência do ex-Juiz Sérgio Moro, que se reconciliará
com Bolsonaro e assumiria um papel de “conselheiro” do Presidente. Lula da
Silva seria apontado como um “descondenado” por manipulações políticas e
detalhes jurídicos conduzidos no Supremo Tribunal Federal/STF. Essa eram

51
COMO (NÃO) FAZER UM GOLPE DE ESTADO NO BR ASIL

a temática obsedante da chapa Bolsonaro-Braga Netto.

O desafiante do Presidente no cargo foi o ex-Presidente Lula (com man-


datos anteriores entre 2003 e 2011), do Partido dos Trabalhadores/PT, ten-
do como vice o ex-Governador Geraldo Alckmin, ex-PSDB, recentemente
filiado ao Partido Socialista Brasileiro/PSB. Lula da Silva vinha da recupe-
ração de seus direitos políticos, atingidos após uma série de condenações
no âmbito da chamada “Operação Lava-Jato” – já então fortemente desa-
creditada pela série de denúncias de irregularidades de tipo “Lawfare”, co-
nhecidos como “Vaza-Jato” – e após estar preso 580 dias. Lula da Silva for-
mou uma ampla coligação de partidos como o PT, PSB, PCdoB, PV, Avante
– do deputado André Janoanes, que desiste em favor de Lula tornando-se
peça-chave na campanha-, do partido Solidariedade, Psol, após o primeiro
turno, somar-se-á a esta frente com o MDB, da senadora Simone Tebet e
o PDT, historicamente à Esquerda, mas que havia feito uma dura campnaha
contra Lula da Silva sob a liderança de Ciro Gomes e, ainda, o partido Cida-
dania. A campanha de Lula apontava para o combate à fome, que voltara a
maltratar 33 milhões de brasileiros, a criação de novos empregos, a defesa
do meio-ambiente, a inclusão das diferenças e a retomada do protagonismo
brasileiro em relações internacionais.

No primeiro turno Lula da Silva consegue 57.209 milhões de votos, ou seja


48,43% do total dos votos, contra 52.072 milhões de votos depositados nas ur-
nas para Jair Bolsonaro, ou seja, 43,20% dos votos – uma significante diferença
de 5.23 pontos percentuais, correspondente a pouco mais de 6 milhões de vo-
tos sobre um total de mais 154 milhões de eleitores. No entanto, tal votação não
foi suficiente para decidir as eleições no primeiro turno em 2/10/2022. Deu-se,
no campo da coligação de Centro-Esquerda um forte sentimento de abatimen-
to, e mesmo de perplexidade, posto que havia a boa perspectiva de uma vitó-
ria decisiva e final no primeiro turno. A trajetória antipopular de Jair Messias
Bolsonaro, as tremendas falhas na gestão da epidemia de covid-19 – incluindo
o trágico evento das mortes massivas em Manaus – e os péssimos resultados
sociais e econômicos, com o retorno da fome coletiva no Brasil, havia sugerido
aos estrategistas, e aos militantes, uma rápida vitória contra o que chamavam
de “barbárie” e “fascismo”. Porém isso não ocorreu. O segundo turno acirrou
ainda mais a disputa. Às denúncias, constantes de fraude nas urnas eletrôni-

52
O E SPE R A D O AC ON TE C E U : O G OL PE

cas feitas por Bolsonaro, sem qualquer base factual, somaram-se ataques aos
meios jornalísticos e contra as empresas de enquetes das tendencias eleitorais.
Ao mesmo tempo o Presidente em função utilizou-se da máquina do Estado,
sobre a proteção de centenas de ordens indevidas de sigilo, de forma nunca
vista numa eleição presidencial na Nova República. Assim, Bolsonaro afirmava
que as eleições só seriam limpas e justas se ele fosse o vencedor.

Em tal clima, deu-se o segundo turno em 30/10/2022, quando Lula


da Silva vence o Presidente em função, com 50,90% dos votos – ou seja,
60.345.999 votos – contra 49,10% - com 58.206.354 votos. Ou seja, com a
estreitíssima diferença de 1.8% de votos em favor de Lula da Silva. Assim,
o radicalismo bolsonarista, embora derrotado, não foi “quebrado” nas ur-
nas, mostrando, ao contrário, uma grande capacidade de mobilização, se-
dução e convencimento. A diferença de 5.3% alcançada no primeiro turno
reduziu-se no segundo turno a 1.8%. O bolsonarismo conseguiu convencer
eleitores ausentes ou que haviam anulado seu voto a votar e, além disso,
reuniu candidaturas avulsas e derrotadas em 2/10 – do PTB e uma possivel
parcela do eleitorado do candidato Ciro Gomes, entre outros. O que não es-
tava claro então, embora as declarações neste sentido fossem corriqueiras
entre bolsonaristas, que se tramava uma “alternativa” antidemocrática, an-
ticonstitucional, de anular as eleições e desfechar um golpe de Estado para
manter Jair Bolsonaro no poder malgrado o resultado eleitoral.

Aí residiam as razões do golpe, falhado, de 8 de janeiro de 2023.

O que nos propomos neste trabalho, através do recurso metodológico da


História do Tempo Presente é uma análise “à quente”, no calor da hora, dos
eventos que precederam e sucederam o 08/01/2023, em especial o perío-
do entre 12/12/2022 – quando se deram sérias violências e destruições em
Brasília, que estender-se-iam até o dia 02/02/2023 , quando se configura
o caráter renitente da conspiração antidemocrática do bolsonarismo, pas-
sando por 21/01/2023 quando o Presidente Lula da Silva, de forma brusca,
ao exonerar o Comandante do Exército junto com a tentativa de golpe uma
crise militar.

Da mesma forma, nos vemos obrigado a voltar a uma temática doloro-


sa para as ciências sociais hoje no Brasil: as fontes e a extensão do bolso-

53
COMO (NÃO) FAZER UM GOLPE DE ESTADO NO BR ASIL

narismo no Brasil e suas relações com os militares50. Daí avançamos duas


hipóteses-quadro, gerais. para o entendimento do processo golpista. Uma
primeira hipótese sobre a visão autoindulgente, benevolente, do povo bra-
sileiro – mesmo quando se é duro e realista acerca das qualidades, ou au-
sência delas, de nossas elites, como no caso de Darcy Ribeiro51 e Florestan
Fernandes52 – estamos perante uma realidade, por ora, insuperável. Uma
extensa parcela do povo brasileiro, parafraseando Wilhem Reich sobre o
nazismo na Alemanha, “desejou” o bolsonarismo. Este não é uma invenção
de Jair Bolsonaro, que apenas “capturou” com eficácia sentimentos vagos e
dispersos, fragmentados na sua expressão cotidiana, e deu forma de cosmo-
visão aos velhos preconceitos, visões errôneas e deturpadas da História sob
a forma de uma poderosa corrente política. Bolsonaro, nesse sentido, não
é a causa, é, tão somente, o sintoma em forma política de uma sociedade
desigual – no plano das classes sociais, das etnias e de gênero. Trata-se,
pois, de debater o velho dilema que assaltou outras sociedades na primeira
metade do século XX: que tipo de civilização ou barbárie os brasileiros es-
colherão como projeto de futuro para si e seus filhos. A segunda hipótese
volta-se para a eficácia política do bolsonarismo: talvez um tanto pessimis-
ta, vimos que o projeto de Extrema-Direita no Brasil – por vezes em fusão
com formas fascistas – conseguiu um grande feito: a unificação das Direitas
brasileiras historicamente divididas. As vitórias constantes da Centro-Es-
querda, modernizante e includente, no Brasil só foram paralisada, via o voto
popular, em duas ocasiões: no governo Jânio Quadros ( de janeiro até agosto
de 1961) e Collor de Mello ( de 1990 até 1992), em ambos os casos empurra-
dos ao topo do Poder por campanhas moralizantes e sedutoramente anti-
política. No entanto, nenhum dos dois conseguiu completar seus mandatos.
Desde Dutra, Vargas, Juscelino, João Goulart – saltando o triste período da
Ditadura Civil-Militar de 1964-1985 – e, então, FHC, Lula da Silva e Dilma
Roussef foram presidentes do campo da centro-esquerda, por vezes com
alianças mais à Direita, contudo todos modernizantes e includentes, que

50 Tratamos dessa temática, as origens e extensão do bolsonarismo, em: Tei-


xeira Da Silva, Francisco C. e Schurster, Karl. A República Sitiada – Militares e Bolso-
narismo no Brasil. Recife, Edupe, 2022.
51 Ver Ribeiro, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo, Companhia de Bolso, 2007.
52 Fernandes, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: Ensaio de Interpreta-
ção Sociológica, Rio de Janeiro, Zahar, 1975.

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O E SPE R A D O AC ON TE C E U : O G OL PE

venceram as eleições livres. Os governos José Sarney (1985-1990) e Michel


Temer (2016-2019) foram governos não eleitos, um chega ou poder pelos
azares da História e o outro por um Golpe parlamentar-empresarial-militar.
Assim, a Centro-Esquerda reformista, desenvolvimentista e includente con-
formou a entrado do Brasil na modernidade depois de 1930. Ora, a irrupção,
da Extrema-Direita, unificando as Direitas tradicionais e democráticas, sob
a liderança do bolsonarismo – fenômeno não aderente aos marcos básicos
do “arco constitucional -, é uma novidade política estrutural, que altera e
desestabiliza a própria Nova República.

Assim, definimos e recortamos o nosso tema as tratativas em torno de


um Golpe de Estado, que desfechado foi, felizmente, derrotado e os limites
temporais da análise compreendendo uma linha temporal da grande insta-
bilidade institucional da República.

Nossas fontes serão os jornais e agências de notícias e, fundamental-


mente, conversas e entrevistas feitas pelos próprios autores com lideran-
ças políticas e militares e com funcionários em posições centrais no Esta-
do brasileiro. Utilizamos nosso conhecimento e experiência de trabalho no
Ministério da Defesa e no GSI, entre 1991 e 2016, ou seja os governos FHC,
Lula 1 e 2 e Dilma Roussef até 2016. Infelizmente, a maioria dos entrevista-
dos e daqueles que nos concederam espaço de conversas e avaliações da
situação de grave ameaça ao Estado de Direito que vivemos, solicitaram a
manutenção do anonimato. A instabilidade política, e possíveis consequên-
cias funcionais, explicam tal cuidado, que procuramos rigorosamente se-
guir. Possivelmente, em alguns anos poderemos reescrever o texto que se
segue com a identificação plena de alguns atores e de fontes aqui, por hora,
ocultas. Em virtude de uma certa incompreensão do campo da nova História
do Tempo Presente, área que nos dedicamos desde 1991, resolvemos dotar
este pequeno trabalho de um capítulo, à guisa de “Introdução Metodológi-
ca”, sobre “Tempos Históricos, Memória e História do Tempo Presente”. O
leitor interessado diretamente nos eventos golpista no Brasil sinta-se livre,
sem qualquer prejuízo, para saltar esta árida empreitada e ir direto ao trata-
mento do tema desta publicação.

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