542-Texto do Artigo-847-1-10-20121007
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Educação e Psicologia
Education and Psychology
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Cultura Escolar e Formação de Professores
School Culture and Teacher Education
Nicanor Palhares Sá
História da Educação
History of Education
ISSN 0104-5962
2007
Revista de Educação Pública Cuiabá v. 16 n. 32 p. 1-180 set.-dez. 2007
Copyright: © 2007 EdUFMT
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso
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R454
Revista de Educação Pública - v. 16 n. 32 – (set.-dez. 2007) – Cuiabá:
EdUFMT, 2007. 180 p.
Anual: 1992-1993. Semestral: 1994-2005. Quadrimestral: 2006-
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso.
ISSN 0104-5962
Educação e Psicologia��������������������������������������������������������������������������������� 73
Contribuição do Curso de Pedagogia para o exercício da
profissão de acordo com os professores nele envolvidos como alunos�������� 75
Ana Conceição Elias e Silva
Maria Augusta Rondas Speller
Work of teacher: at the date the work of teacher profissionalization� �������� 119
Jorge Najjar
Nicanor Palhares Sá
Editor
Cultura Escolar e
Formação de Professores
Resumo Abstract
Os cadernos escolares são um material The school copybooks are pedagogical ma-
pouco utilizado nas pesquisas históricas, devido terials little used in the historical research, due
à sua extrema fragilidade. Eles fornecem, entre- to their extreme fragility. They provide, however,
tanto, testemunhos insubstituíveis a respeito irreplaceable testimonies regarding the students’
dos exercícios escolares, das práticas pedagógi- pedagogical performance and written exercises
cas e do desempenho dos alunos no contexto done in the classroom context. Based on the
da sala de aula. Concentrando-nos no período examples occurred in the period of 1880-1970,
1880-1970, buscamos conhecer como esses ob- we aimed at observing how the school copy-
jetos revelam a cultura escrita visada pela escola books reveal the written culture marked by the
republicana através dos exercícios canônicos de republican school through the canonic exercises
caligrafia, cópia, ditado e redação, averiguando of handwriting, copy, dictation and text produc-
também a evolução dessa cultura de referência tion. We also searched for identify the evolution
após a primeira Guerra Mundial. Questiona- of this reference culture post First World War.
mos, ainda, acerca das articulações entre o oral We still interrogated ourselves regarding the
escolar e a cultura escrita, comparando cadernos articulations between oral school and written
de alunos ao caderno de preparação de aulas de culture by means of comparing students’ school
uma professora dos anos sessenta. copybooks with a class preparation copybook
from a school teacher of sixties.
1 Conferência apresentada na Sessão Especial “Cultura Escrita e Letramentos” da 29ª ANPEd, GT10 – Alfabetização, Lei-
tura e Escrita, realizada em Caxambu, no ano de 2006. A tradução do texto é de Artur Moraes (UFPE), a quem a autora
agradece imensamente.
2 Pesquisadora do Institut National de Recherche Pédagogique (INRP), França. [email protected]
Les cahiers scolaires sont un matériau peu utilisé dans les recher-
ches historiques, à cause de leur extrême fragilité. Ils donnent pourtant
des témoignages irremplaçables sur les exercices scolaires, les pratiques pé-
dagogiques et les performances des élèves dans le contexte de la classe.
À partir d’exemples pour la période 1880-1970, nous avons cherché com-
ment les cahiers scolaires nous donnaient à voir la culture écrite visée par
l’école républicaine à travers les exercices canoniques de calligraphie, co-
pie, dictée et rédaction et quelle était l’évolution de cette culture de ré-
férence après la première guerre mondiale. Nous nous sommes interrogé
sur les articulation entre oral scolaire et culture écrite, en nous comparant les
cahiers d’élèves au cahier de préparation d’une maîtresse des années 1960.
I. Memória e história
Os estudos históricos já realizados sobre os trabalhos de alunos colocaram
em evidência a distância entre a norma prescrita e sua aplicação. Por exemplo, na
França, quando as leis republicanas de Jules Ferry substituíram o ensino da religião
pela educação moral, de que maneira se deu essa aplicação? Jean Baubérot pôde
seguir as marcas escritas de um ensino da moral que se estabeleceu antes dos anos
1900, mas que retrocedeu entre as duas guerras e desapareceu dos cadernos muito
antes de desaparecer dos programas.
Tais materiais escolares são também indicativos dos desempenhos dos estudan-
tes. Torna-se possível saber a que corresponde, numa dada época, um julgamento
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Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os • 15
1º – Familiaridade ou estranhamento
O primeiro princípio é o da familiaridade ou estranhamento. Ocorre quan-
do o leitor contemporâneo “reconhece” de imediato o exercício, em sua forma
ou conteúdo, por tê-lo praticado de uma forma idêntica ou muito parecida. Por
exemplo, a forma do ditado pode ser reconhecida desde o século dezenove até o
início do século XXI, como nesta foto dos anos quarenta:
Ilustração 7 - Texto escrito em 1901 por Marie Combès, aluna de uma comu-
nidade rural do Sul da França
Foto: M.C. 2/10/01.
Diríamos, atualmente, que a moral é uma ciência? Talvez não, mas ela foi consi-
derada assim durante gerações. O que a linguagem comum designa com as palavras
“saber”, “conhecimento” ou “ciência” tem muito a ver com a experiência usual da
escolarização.
1° – Textos copiados
Para encontrar alguns exemplos de cópia, abrimos primeiramente o caderno
de Emile Ract:
2° – Textos ditados
Lucien Boucherie era um aluno de dez anos que morava numa cidadezinha do
Sudoeste da França. Praticamente todos os dias seu professor ditava um texto, cuja
extensão era de uma página ou mais e cujo conteúdo se relacionava com geografia,
história ou ciências naturais e também com a instrução cívica, a instrução moral e
patriótica (seus títulos, por exemplo, eram: As obrigações profissionais, A excita-
ção do combate, Sobre a cólera, A tempestade, A Revolução Francesa etc.). Trata-
va-se de textos anônimos ou de autores canônicos: por exemplo, na página ditada
de Michelet, o aluno aprendia que a Revolução é o acontecimento fundador da
história da França: “Ao convidar o camponês à aquisição dos bens nacionais, ao
vinculá-lo à terra, a Revolução de 1789 passou a ser sólida, durável, eterna”.
É como se a finalidade do ditado não fosse (ou não fosse exclusivamente) o
cuidado com a grafia, mas constituísse também a iniciação numa cultura escrita
ao mesmo tempo instrutiva e “literária”. Quer o aluno copiasse um texto de um
livro, quer escrevesse o que lhe ditasse o professor, tratava-se sempre de guardar na
memória o conteúdo do texto, respeitando sua forma literal, para que se familia-
rizasse com a sintaxe e o léxico francês. Essa escrita encontrava-se, porém, muito
distanciada da língua oral, numa época em que a a comunicação dos alunos ainda
se fazia, muitas vezes, através de um dialeto.
3° – Textos redigidos
Os exercícios que levavam o aluno a redigir inscreviam-se na continuidade
desses modelos. Ele deveria fazê-lo apoiando-se em um texto que era, ao mesmo
tempo, repertório de informações e modelo de estilo. O tema a ser tratado forne-
cia uma trama a ser desenvolvida pelo aprendiz.
Tomemos alguns exemplos daquilo que se chamava, na época, redação, com-
posição ou tarefa de estilo. Citamos aqui quatro conjuntos de temas: 1º: Tarefa
de redação: Necessidade do trabalho. O trabalho manual e o trabalho intelectual.
Dignidade do trabalho de todos os tipos. 2º: Tarefa de estilo: A bandeira da Fran-
ça. Os emblemas de nosso país. A bandeira tricolor: sua origem, sua história. Os
sentimentos que inspira. 3º: Tarefa de estilo: Uma guerra desastrosa. Dizer quais
são as guerras que a França empreendeu sob o reinado de Luis XV. Qual dessas
guerras foi desastrosa para a França e quais foram suas conseqüências. 4º: Tarefa
de estilo: A imprensa. Dizer em que época se deu a descoberta da imprensa e quais
foram as suas vantagens para os homens.
Em alguns casos, tratava-se apenas de “recitar” por escrito a lição que os alu-
nos conheciam de cor. Em outros, o momento de escrita acontecia precedia uma
aula durante a qual o professor fornecia os dados necessários para que pudessem
memorizar a matéria e escrever em bom francês suas composições. Ao lermos os
cadernos, geralmente é fácil distinguir, de início, as duas situações: quando o alu-
no devia pôr, por ele mesmo, as informações ouvidas, mas não lidas, apareciam
indicadores de oralidade, visíveis na redação final, na qual freqüentemente ignora-
va as vírgulas, repetia as mesmas palavras e não utilizava pronomes, demonstrando
que ele não sabia bem como articular as frases.
As dificuldades relativas à sintaxe marcavam a lenta e progressiva apropriação
de uma língua escrita preparada para a memorização de textos copiados ou escritos
sob a forma de ditado. Para os professores era evidente que a cópia, o ditado, a
lição recitada por escrito ou parafraseada a partir do livro eram várias etapas que
preparavam a etapa final, a mais difícil e mais paradoxal: encontrar, a partir da ora-
lidade escolar, as formas sintáticas específicas da escrita. Isso explica por que, nessa
primeira fase, os conteúdos tratados na cópia, no ditado ou na composição de um
texto escrito ou de uma lição oral eram os mesmos, tinham a ver com todas as dis-
ciplinas “discursivas” e instrutivas da escola: moral, história, geografia e ciências.
Desse modo, ao pedir uma restituição escrita da lição ensinada, o professor
propunha um exercício próximo da recitação oral à qual os alunos estavam habi-
tuados desde o início de sua escolarização, mas podia controlar, ao mesmo tempo,
as aquisições do grupo todo, enquanto que oralmente só era possível interrogá-los
um a um. Tal possibilidade era essencial em todas as escolas rurais onde várias sé-
ries funcionavam em paralelo, dentro da mesma sala de aula: enquanto um grupo
escrevia em silêncio, o professor ficava livre para dar aula aos menos avançados. É
por isso que os textos escritos nos cadernos não nos falam de todo o trabalho es-
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Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os • 25
colar. Devem ser interpretados também em relação aos momentos da prática oral,
que neles não deixaram nenhuma marca. Daí surge outra pergunta: como se fazia
e como se faz, atualmente, a articulação entre oralidade e escrita na sala de aula?
vida familiar em que sua experiência comum fosse, muitas vezes, da mãe que batia
nos filhos, do pai que chegava bêbado em casa etc. O possível era falar dos alunos
na escola (os companheiros, os jogos) ou da natureza. Esses temas não pareciam
dizer respeito aos “saberes da escrita”, mas sim aos saberes da experiência. Todos
os alunos, bons ou fracos, teriam então algo a dizer, já que lhes bastaria apoiar
em suas vivências para encontrar o conteúdo em sua língua oral cotidiana, para
expressá-las e comunicá-las, transformando-as em textos escolares. Tal concepção,
que foi defendida por Célestin Freinet (referência), através do conceito de “texto
livre”, contraria totalmente a pedagogia da escrita tal como aparece nos cadernos
escolares que passaremos a apresentar.
distingo muito bem as pessoas que estão nas janelas do avião, vejo as rodas porque
não está muito alto”) e a opinião pessoal (ela conclui: “Eu não gostaria de viajar de
avião”). Em seu caderno, podemos ler as expressões e o léxico que utilizou (“ruído
de trovão, asas, fuselagem, rodas, a hélice dá voltas como as pás de um moinho,
rapidez prodigiosa, um grande pássaro com as asas rígidas”). Essas palavras ou
expressões foram escritas durante o trabalho desenvolvido pela professora com
toda a turma.
Podemos, então, considerar essa ajuda como um molde limitador da expres-
são pessoal do aluno e que o levava a uma escrita estereotipada? Ou, ao contrá-
rio, devemos considerá-la um recurso necessário, sem o qual muitas crianças não
escreveriam quase nada? Nesse caso encontramos algo excepcional: a professora
ditou várias conclusões, copiadas por todos os alunos, para mostrar que existem
diversos pontos de vista aceitáveis: [Primeiro] “Eu não gostaria de andar de avião
porque os jornais dizem que muitos se incendeiam, que outros caem na água ou
se destroçam no chão porque não têm mais gasolina.” [Segundo] “Tenho inveja
dos que estão num avião. Devem se deleitar com um belo espetáculo e, além dis-
so, podem ir muito longe e conhecer muitos países. Mas essa máquina deve ser
terrível durante a guerra!” [Terceiro] “Admiro esses homens que o grande pássaro
leva ao desconhecido”.
Essa diversidade de afirmações não seria imaginável numa geração anterior,
quando a escola ensinava claramente o que cada um deveria aprovar ou desa-
provar. Pelo contrário, depois da primeira Guerra Mundial, os modelos literários
passaram a oferecer um leque maior de reações, sentimentos ou opiniões diante de
um mesmo acontecimento.
Contudo, o status escolar do relato de experiências não se confundia com o
testemunho. Os extratos literários serviam como referência para ajudar os alunos
a contar e descrever “cenas realistas”, expressar desejos, sentimentos e julgamentos
singulares, senão pessoais. Os bons alunos geralmente eram os que aderiam tão
bem aos modelos escolares, que suas próprias expressões se conformavam perfeita-
mente às esperadas pela instituição.
Lendo esse texto, poderíamos pensar que é o relato de uma experiência pes-
soal. Não é o caso. De fato, a professora colocou sobre o quadro uma grande
imagem representando um piquenique. Depois de um momento de oralidade, no
qual todos os alunos falaram, descreveram e comentaram a figura, a mestra pediu
que formulassem oralmente frases corretas, após o que cada um fez um rascunho
de seu texto completo. Jean-Paul teve sete erros gráficos, mas compreendeu per-
feitamente as regras da composição, entendida como um gênero literário no qual
o aluno deveria escrever a cena como se ele mesmo fosse um dos protagonistas.
Não faltou nada nesse texto para que se aparentasse ao relato de uma experiência
pessoal, nem mesmo o nome atribuído à menina (o mesmo da irmã de Jean-Paul),
nem a conclusão sob a forma de exclamação de júbilo.
Segundo comentou a professora, ela trabalhava então numa escola de perfil muito
popular na periferia parisiense. As crianças chegavam ao primeiro ano sem saber ma-
nusear um livro, sem saber segurar o lápis, nem tomar a palavra na sala de aula. Em seu
plano de trabalho para as quatro semanas do mês de novembro (na França, o segundo
mês de aulas do ano), ela colocou, como podemos ver, as atividades coletivas (por
exemplo “A família”,“A mãe”) e as específicas de cada nível (leitura, escrita e cálculo), as
únicas que lhe exigiam disponibilidade para metade da turma. A coluna é então dividi-
da em duas partes: à esquerda, as atividades do CP e, à direita, as atividades do CE.
O programa comum para os dois níveis, na segunda semana, era o seguinte: moral
(a mãe), vocabulário (a chuva), gramática (o feminino de palavras em –eur [chanteur-
chanteuse; voleur-voleuse, mas também instituteur-institutrice etc.]), conjugação (ver-
bo chanter no presente), recitação (uma poesia sobre o outono), história (a civilização
da Gália romana), geografia (o outono e o inverno), observação científica (o óleo e a
água), desenho ou trabalho manual (colorir ou recortar árvores sob a chuva).
Em novembro, nenhum aluno do primeiro ano sabia ler ou sequer decifrar (o
quê?). No entanto, graças à existência de dois níveis, esses alunos receberam uma ins-
trução oral que poderíamos chamar de “intensiva”, dividida segundo as disciplinas
escolares. Por isso, não deveriam escrever depois de cada lição, tal como faziam os
alunos do segundo ano. No entanto, ao olhar os cadernos, poderíamos pensar que eles
passaram todo o tempo decifrando, traçando letras, copiando palavras e contando,
como pudemos ver no caderno de 1960:
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30 • Cultura Escolar e Formação de Professores
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Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os • 33
Resumo Abstract
Este artigo, apropriando-se dos procedi- The school copybooks are pedagogical ma-
mentos metodológicos da microgênese, inves- terials little used in the historical research, due
tiga, em uma narrativa escrita por uma criança to their extreme fragility. They provide, however,
no estágio inicial do processo de alfabetização, a irreplaceable testimonies regarding the students’
ausência de espaços indicadores de parágrafo no pedagogical performance and written exercises
início das linhas e a sua presença no final, acom- done in the classroom context. Based on the
panhados ou não de sinal indicativo de ponto, e examples occurred in the period of 1880-1970,
examina, ainda, a transgressão ou não da mar- we aimed at observing how the school copy-
ca vertical da margem esquerda. As conclusões books reveal the written culture marked by the
apontam para hipóteses sobre as operações utili- republican school through the canonic exercises
zadas pela criança para lidar com a tensão entre of handwriting, copy, dictation and text produc-
distanciar e manter próximos elementos consti- tion. We also searched for identify the evolution
tutivos da narrativa, através de decisões singu- of this reference culture post First World War.
lares. Tais movimentos, por parecerem óbvios, We still interrogated ourselves regarding the
escondem-se do olhar investigativo de pesquisa- articulations between oral school and written
dores e docentes. culture by means of comparing students’ school
copybooks with a class preparation copybook
from a school teacher of sixties.
1 Dagoberto Buim ARENA. UNESP de Marília. Professor Assistente Doutor do Departamento de Didática e professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação
Publicações: Nem hábito, nem gosto, nem prazer. 2003. O astro Anísio Teixeira na galáxia de Gutenberg. 2004. Palavras
grávidas e nascimentos de significados: a linguagem na escola 2006.
End. Rua Guinetti Grassi, 255, Ap. 133. 17527.432. Marília-SP.
[email protected]
Introdução
Em 2005, professores da UNESP, campus de Marília, com seus projetos finan-
ciados pela Reitoria/FUNDUNESP/Núcleo de Ensino, decidiram partilhar suas
ações com uma escola da rede municipal local, próxima da universidade. Instalada
no início do ano, em prédio recém-construído, o estabelecimento de ensino aco-
lheu a oferta de um trabalho conjunto, embora, como apontarei adiante, em ações
dessa natureza as negociações sejam inevitáveis e nem sempre o planejado por um
segmento pode ser implementado sem alterações, devido à natureza diversa das
instituições.
Organizados e combinados para que fossem realizados quinzenalmente na es-
cola, os encontros entre os professores da universidade, os alunos bolsistas e a equi-
pe escolar teriam como objetivos tematizar as práticas docentes, discutir a colabo-
ração desses estudantes e desencadear as ações contidas nos projetos apresentados
ao Núcleo de Ensino. Porém, nas primeiras reuniões, os professores entenderam
que não deveriam definir, antecipadamente, os temas a serem desenvolvidos nas
salas de aula, porque a escola e a secretaria municipal já os haviam estabelecido
desde o planejamento do início do ano letivo.
Pela estreita interação com os profissionais da escola, foi possível aos demais
evolvidos compreender as orientações metodológicas da secretaria, o sistema de
acompanhamento do trabalho docente e os critérios de avaliação de alunos, deter-
minantes dos procedimentos didáticos. Em relação à didática da língua materna,
os professores, para atender às recomendações previstas, deviam oferecer aos alu-
nos a oportunidade de escrever, por semana, dois textos de qualquer gênero e cujos
registros seriam remetidos para a coordenação da escola e para a coordenação geral
do município.
O intuito, segundo depoimentos verbais coletados, seria provocar a necessida-
de de se ensinar a língua materna como prática discursiva. Concluídos os trabalhos
no final de 2005, foi possível coletar dados a respeito do desempenho de crianças
em processo de alfabetização e de leitura, do ponto de vista pedagógico, cujos
comentários serão feitos adiante.
Ensinar a escrever, colocando as crianças na situação de leitores e escreventes
de textos, exigiria uma preparação mais aprofundada sobre aspectos importantes
da lingüística textual, das estruturas dos gêneros, das metodologias específicas e,
sobretudo, da concepção de linguagem que vê o processo de aprender a ler e a
escrever como sendo de elaboração social, cultural e histórica nas relações com
o outro. Como esse outro seria, na sala de aula, o professor, dele se esperaria o
domínio ou o desejo de compreender a natureza da língua e seus usos e, ainda, as
condutas metodologicamente conseqüentes para assumir a posição socialmente
definida de ensinar o aprendiz.
1. A análise microgenética
Góes (2000) destaca a importância de uma metodologia de análise conhe-
cida entre os pesquisadores como análise microgenética, vinculada à psicologia
histórico-cultural vigostkyana, mas estendida aos estudos educativos. As conclu-
sões da pesquisadora, em artigo que procura discutir o paradigma indiciário e essa
categoria de investigação, revelam que
infantis deve ser orientado para o detalhe de uma criança única envolvida em um
processo único e em episódios também únicos, necessários à compreensão do as-
pecto que se quer conhecer melhor. Essa abordagem, todavia, só poderia se apoiar
nas concepções de linguagem e de aprendizagem cujas matrizes se encontram na
escola de Bakhtin (1895-1975) e de Vigostky (1869-1934), centradas no processo
enunciativo-discursivo da linguagem e na intersubjetividade, ambos constituintes
do sujeito em suas relações sociais, culturais e históricas.
Amparado por esse referencial teórico, um texto escrito por uma criança, cons-
tituída a partir das relações culturais, sociais e históricas mediadas pelo professor
que a ensina, poderia ser analisado conforme o interesse do analista. Poderia ser
examinado com o olhar orientado para a compreensão do processo de pontuação
ou de paragrafação; ou ser investigado no interior da situação criada e do episódio
recortado para análise; ou, ainda, ser observado pelos sinais, explícitos ou não,
indicadores do processo de apropriação dos modos de escrever reveladores de rela-
ções intersubjetivas e intrasubjetivas, peculiares daquela criança, naquele episódio.
Esses procedimentos não poderiam ser adotados no interior de um conjunto de
orientações em que são privilegiadas, predominantemente, as categorias previa-
mente definidas, universais, centradas na palavra, pelas quais seriam consideradas
as aquisições subjetivas na relação com o objeto em situação não enunciativa.
Nesta perspectiva, como afirma Góes (2000, p. 12), “no que concerne ao método,
a investigação não pode descolar-se de uma visão sociogenética, histórico-cultural
e semiótica do ser humano, sendo que as proposições metodológicas devem ser
interdependentes e congruentes teoricamente.”
[...] permite também que as categorias, antes impostas, emerjam dos dados.
Ao recuperar a história do dado, por meio da descrição de suas condições de
produção, podem permitir identificar a constituição histórica do sentido. O
objeto de estudo é a língua em atividade e a relação da criança com ela [...]. Por
outro lado, o não-controle de variáveis pode permitir uma aproximação maior
da naturalidade, reconhecendo que o dado é o que acontece, não o que deveria
acontecer, nem o que está faltando.
São essas as condutas metodológicas que serão empregadas adiante para hipoteti-
zar sobre as tentativas de rupturas de um enunciado, cujas marcas indicam os primei-
ros ensaios de paragrafação de um texto mediante a utilização de espaços.
Em trabalho a respeito de operações de segmentação textual com base nas ten-
tativas de pontuação, como a operação de conexão e segmentação de texto, Cardoso
(2002) destaca, em seus estudos, que os elementos lingüísticos tendem a obedecer na
superfície textual ao princípio de proximidade.
Neste trabalho, o olhar sobre as marcas em um texto escrito por uma criança
será orientado para os espaços no final da linha, indicando, hipoteticamente, a
tentativa de ruptura mais forte da enunciação, que poderíamos entender como
lances primários de paragrafação.
3. Configuração do texto
Não haveria, do ponto de vista do professor em sala, sinais de paragrafação no
texto de V., porque não existem espaços destacados no início das linhas próximas
à margem esquerda. Em relação à pontuação, as marcas seriam cinco e estariam
relacionadas ao ponto, como é possível observar nas linhas 1, 3, 8, 14 e 15.
A hipótese seria a de que o espaço no final da linha também indicaria ruptura,
portanto, tentativa de paragrafar. Para o aluno, reiterar a intenção, acrescentando
um outro espaço no início da linha, seria, de certo modo, uma aceitação conven-
cional de praticar a redundância. Quero ressaltar que há duas ações sobrepostas
na convenção do escrever que, como ocorre com certa freqüência em outros casos,
não pela criança. Nesse sentido, para ela parece ser redundante indicar a ruptura
da enunciação com o uso do espaço no final da linha e tornar repetir a operação no
início. É bem possível que para o adulto essas ações sejam normais, todavia, para
uma criança aprendiz da linguagem escrita, que procura entender a lógica do adul-
to, a repetição da mesma operação pode ser suprimida sem que a intenção deixe
de ser cumprida. Nessa mesma linha de raciocínio hipotético, seria possível supor
que o ponto marcado e o espaço se equivalham, podendo ser, portanto, também
marcas redundantes que podem ou não aparecer juntas. Desse modo, o espaço no
final da linha seria, para o aluno, indicação de ruptura, razão pela qual dispensaria
o uso do ponto. Para o adulto não seriam redundantes, mas o que pensa a criança?
E a conjunção E, utilizada no início da linha, é marca de parágrafo? Junta-se ao
ponto e ao espaço como marcas de funções semelhantes? Funções de lidar com as
tensões entre aproximar e distanciar segmentos textuais?
É possível notar, também, algumas letras ou palavras inseridas ou reescritas
pela criança, num processo de troca com algum adulto – professora ou estagiário
– no momento da produção. Apagamentos, inserções e outras ações semelhantes
são vistas, pela investigação baseada na microgenética e no paradigma indiciário,
como indicadoras de atividade mental discursiva no processo de enunciação.
Nessa linha houve transgressão da margem, sem espaços, porque V., ao que
parece, queria concluir o enunciado. Essa operação também é uma indicação de
que a ausência do espaço e a decisão pela transgressão do traço da margem expres-
sam que não poderia haver ruptura, configurando-se, desse modo, a própria trans-
gressão como indicador de parágrafo, ou seja, de distanciamento do enunciado
da linha seguinte. Quero com isso dizer que a criança demonstra de várias formas
suas intenções e tensões entre aproximar e distanciar, entre conectar e apartar.
Aqui, a indicação se deu pela extrapolação da margem, que ao primeiro olhar
pareceria uma atitude extremamente banal.
Linha 16. e o lobo foi pedir para o outro vizinho e bateu na porta do vizi-
nho
Como nos casos anteriores, V. tentou colocar em uma única linha o enun-
ciado completo antes de atingir a margem da direita.
Conclusão
Ao final dessas reflexões, dois aspectos, tomados como conclusão, podem
ser destacados. O primeiro é o que analisa os ensaios da criança e seus dramas
para aproximar e distanciar elementos lingüísticos no processo de enunciação. O
segundo é o que trata da relação adulto-criança durante a elaboração de um enun-
ciado de natureza narrativa.
No que diz respeito ao primeiro ponto, é possível entender que a inves-
tigação, hipoteticamente, apontou operações mentais, não claramente explícitas,
realizadas por V. A intenção, orientada pelos princípios da microgenética e do
paradigma indiciário, foi olhar para o texto já pronto e analisar detalhes, modos
particulares de V. e não de uma outra criança qualquer ou ainda de uma criança
idealizada, universalizada. O foco foi dirigido para V., com suas idiossincrasias e
seus titubeios, isto é, foi direcionado para uma criança única, embora mergulhada
no caldo multicultural e multiétnico da sociedade em que vivia.
O detalhe, entre outros tantos, recortado por esta investigação, centrou-se
nas tentativas de V. em lidar com dois elementos destacados por Cardoso (2002):
a proximidade e o distanciamento dos elementos lingüísticos na construção do
texto.
Quanto ao primeiro aspecto, sabe-se que para narrar é preciso aproxi-
mar fatos, situações, ações, personagens, mas, ao mesmo tempo, isolá-los uns dos
outros, evitando ambigüidades. Nesse caso, os sinais de pontuação são explicita-
mente os de maior destaque, porém os espaços no final da linha, as transgressões
da margem direita e até o volume físico do ponto podem ser outros indicadores.
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 35-50, set.-dez. 2007
Relações entre espaços e pontos no início da alfabetização • 49
REFERÊNCIAS
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SCIESZKA, J. A verdadeira história dos três porquinhos. Por A Lobo, tal como foi
contada a Jon Scieszka. Ilustrações de Lane Smith. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
1993.
Resumo Abstract
As dificuldades de aprendizagem resultam The learning difficulties meant, result not
tanto do fato de que o conceito de “explicação” the least from the fact that the concept of “ex-
é central para nossas práticas e objetivos educa- planation” is central to our educational practices
cionais, como do fato de que a ciência moderna and aims, whereas modern science and mathe-
e a Matemática não fornecem explicações no matics do not provide explanations of anything
sentido desejado. Mas ensinamos a Matemáti- in the sense desired. They are either too hypo-
ca na escola porque acreditamos que ajudará a thetical and abstract or too instrumental and
estabelecer e a legitimar um discurso que toda technical. But we teach mathematics at school
pessoa com boa vontade poderia aceitar de boa because we believe that it will help to establish
fé. Toda aspiração humana por racionalidade e and legitimate a discourse which everybody of
inteligibilidade, desde os tempos da Grécia, fun- good will can accept in good faith. And such a
damenta tal crença. belief has been at the bottom of all human as-
pirations for rationality and intelligibility since
the times of the Greek.
1 Originalmente publicado em: J. Maasz, W. Schloeglmann (Eds.). New Mathematics Education Research and Practice.
75-94. Sense Publishers, 2006.
2 Professor Emérito do Instituto de Didática da Matemática da Universidade de Bielefeld – Alemanha e Professor Visitante
do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]
3 Mestrandos da área temática Teorias e Práticas Pedagógicas da Educação Escolar do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGE/UFMT). E-mail: [email protected] edgar_
[email protected], [email protected]; [email protected] (sem br), [email protected], prof_
[email protected], [email protected], [email protected], [email protected]
4 Professora do Departamento de Matemática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de
Mato Grosso. E-mail: [email protected]
Introdução
Neste texto, buscaremos indicar razões e exemplos de dificuldades do ensino
da Matemática causadas pela transformação histórica da Matemática Pura durante
os séculos de XVII a XX. Deve ficar evidente o quão profundamente conectadas
estão nossas noções de Matemática com as questões fundamentais da nossa auto-
imagem.
As dificuldades de aprendizagem resultam tanto do fato de que o conceito de
“explicação” é central para nossas práticas e objetivos educacionais, como do fato
de que a ciência moderna e a Matemática não fornecem explicações no sentido
desejado.
Mas ensinamos a Matemática na escola porque acreditamos que ajudará a
estabelecer e a legitimar um discurso que toda pessoa com boa vontade poderia
aceitar de boa fé. Toda aspiração humana por racionalidade e inteligibilidade, des-
de os tempos da Grécia, fundamenta tal crença. A Matemática não poderia ser or-
ganizada e nem desenvolvida na escola como um tópico profissional. A Educação
Matemática, assim como outras disciplinas, também tem de contribuir para uma
busca comum pelo esclarecimento de assuntos fundamentais.
I.
Explicação é assimétrica, cálculo matemático e prova lógica não são. Aristó-
teles tornou isso muito claro através da diferenciação entre explicação e dedução
lógica ou cálculo matemático (Post. Anal., Book I, chap. 13, 78a). Pode-se calcular
a altura de um mastro pela medida de sua sombra, mas a sombra não produz o
mastro. Se olharmos para uma sombra, procuramos uma causa e uma explicação.
Quando olhamos para um mastro, parece não haver nenhuma questão. “Podemos
explicar o tamanho da sombra por referência à medida do mastro, e não vice-
versa” (NEWTON-SMITH, 2000, p. 129).
E pior: uma “nova luz” (Kant) deve ter cintilado na mente de pessoas como
Thales, quando perceberam que a relação entre o tamanho do mastro e a medida
de sua sombra possibilita o cálculo da altura de uma pirâmide, tendo sido dada a
medida da sua sombra. “Então ele achou que não era suficiente meditar na figura
como ela se apresentava diante de seus olhos, e então empenhar-se em adquirir
conhecimento de suas propriedades, como elas eram, por uma construção positiva
a priori” (KANT, Critique of Purê Reason, Preface to the Second Edition, 1787).
E certamente, o mastro em si não tem nenhuma relação positiva com a pirâmide
como tal. Isso implica, de acordo com Hume ou com Kant, que não existe uma ra-
zão a priori para assumir que coisas ou leis devem ter determinada forma, ao invés
de outra; e isso torna a generalização do conhecimento matemático um problema
muito profundo.
também é verdadeiro afirmar A de B... Assim, esse silogismo não é do por quê,
mas sim do que, pois não é por não cintilar que estão próximos, mas, antes, é por
estarem próximos que não cintilam (ARISTOTLE, Post analytic, Book I, chapter
13, 78a-b).
A noção de ciência de Aristóteles como uma explicação tornou-se gradual-
mente desvalorizada pelo crescente interesse no registro dos fatos e pelo método
hipotético-dedutivo da axiomática moderna, que não é usado somente na Mate-
mática. Isso reduz explicações matemáticas a meras deduções.
Resultou um longo debate sobre explicação Matemática e prova rigorosa na
Educação Matemática, bem como na filosofia da Matemática (para maiores de-
talhes, ver MANCUSO 2000 e 2001; HANNA 2000). Nessa discussão, várias
vezes a distinção entre provas que provam contra provas que explicam tem desem-
penhado um papel importante. Mas ninguém tem sido capaz de caracterizar essa
distinção claramente sem cair novamente em dicotomias pouco razoáveis, como
psicologismo versus Platonismo, entre outras. Ao contrário, tornou-se comum
hoje em dia opor compreensão subjetiva e redução aos fundamentos objetivos. O
modelo de explicação de Aristóteles influenciou sobremaneira a concordância en-
tre ciência e senso comum e, durante o século XIX, essa conformidade se desfez.
Quando, no decorrer dos séculos XIX e XX, as ciências humanas (Geisteswis-
senschaften) foram desenvolvidas por W. Dilthey (1833-1911) e outros, tornou-se
comum contrastar compreensão e interpretação como a base dessas ciências, com
explicação científica e matemática. Esta distinção resultou mais tarde na noção de
“duas culturas” (Snow). A tese básica de Snow era que a ruptura de comunicação
entre as ciências exatas e as ciências humanas (as “duas culturas” do título) foi o
maior obstáculo para resolver os problemas do mundo (ver C.P. SNOW, 1993).
II.
Qualquer explicação assume certos fundamentos ou causas. Axiomática, no
sentido tradicional, pareceu fornecer essas fundamentações. Mas, quando Euclides
axiomatizou a geometria, o que resultou foi a exibição da possibilidade de alterna-
tivas geométricas não-euclidianas e, portanto, a generalização Matemática.
A tendência comum de considerar a incompletude como o suporte àqueles
que enfatizaram a primazia da intuição, como oposta àqueles que a enfatizaram
como Hilbert, Gödel ou Kolmogorov, a importância do formalismo, mostra-se
superficial, porque ignora “que o próprio significado da incompletude do forma-
lismo é o fato de ele poder ser efetivamente utilizado para descobrir novas verdades
inacessíveis ao seu mecanismo de prova, mas essas novas verdades eram presumi-
velmente impossíveis de serem descobertas por qualquer outro método. Como
poder-se-ia descobrir a ‘verdade’ de uma sentença de Gödel a não ser utilizando
um formalismo meta-matemático? Temos aqui não somente a descoberta de uma
nova forma de usar o formalismo, mas uma prova da eterna indispensabilidade do
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 51-72, set.-dez. 2007
Dificuldades de Aprendizagem Resultantes da Natureza da Matemática Moderna: o Problema da Explicação • 55
III.
Quando o homem tentou pela primeira vez explicar o mundo, o universo
era concebido em termos antropocêntricos, como sendo um texto sagrado, a ser
decifrado e interpretado.
O que é o mundo? O que é isso ou aquilo? De onde vem isso? O que signi-
fica? Essas eram as primeiras questões. E as respostas eram buscadas em Deus,
sendo Deus a explicação de tudo (NICOLAS DE CUSA, De docta Ignorantia, II,
3). Nicolas de Cusa (1401-1464), com sua ênfase neo-platônica na criatividade
mental humana como a imagem da criatividade divina, também uniu, no entanto,
conceitos essenciais e idéias que estão na fonte do desenvolvimento dinâmico da
ciência Européia pós-Renascença.
Então veio a Revolução Copernicana! Em 1543, Nicolas Copernicus
(1473-1543) publicou seu tratado De Revolutionibus Orbium Coelestium (A Revo-
lução das Esferas Celestes) no qual uma nova visão de mundo foi apresentada: o
modelo heliocêntrico.
O aspecto mais importante do trabalho de Copernicus é que ele mudou para
sempre o lugar do homem no cosmo e, portanto, mudou a idéia do que significa
explicar esse cosmo. Essa mudança não ocorreu imediatamente e quando ocorreu
não estava claramente compreendida até que Galileu (1564-1642) e Descartes
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 51-72, set.-dez. 2007
Dificuldades de Aprendizagem Resultantes da Natureza da Matemática Moderna: o Problema da Explicação • 57
Ao dizer que o mundo não é um texto dirigido aos homens nem interpretável
do nosso ponto de vista subjetivo, pode-se ficar tentado a dizer que nem tudo
no mundo tem algum significado, que as possibilidades de explicar as coisas são
então restritas e que nossas aspirações ao conhecimento são limitadas. E a partir
daí surgiu um espírito mais cético, objetivo e exploratório: O que é objetividade?
O que é conhecimento? Isso existe? Como os humanos podem alcançar a verdade?
Tais eram agora as questões, colocadas por Descartes (1596-1650), por exemplo,
e por outros.
IV.
A criança pergunta: Por que ocorre X? De onde vem Y? O que é Z?
E a mãe pacientemente continua a responder a todas as questões e a explicar
as coisas. E se ela é uma pessoa culta, tentará formular suas explicações de acordo
com o ensino da Matemática e das ciências.
Mas, será que as ciências e a Matemática fornecem explicações? Quando o
mundo ainda era um texto religioso, fazia-se necessária uma autoridade para cap-
tar e explicar suas mensagens. Depois as pessoas queriam ler diretamente no gran-
de “Livro da Natureza”. E a insistência de Galileu em que este Livro da Natureza
fora escrito na linguagem da Matemática mudou a filosofia natural de uma abor-
dagem verbal e qualitativa para uma abordagem matemática. Então pergunta-se
de novo: a Matemática, sendo concentrada nos aspectos quantitativos dos objetos,
explica alguma coisa?
Até mesmo o status de explicação matemática e a noção de prova matemática
eram motivo de controvérsias. Euclides, por exemplo, era criticado ainda no sécu-
lo XVI, porque suas provas não forneciam nunca a essência da matéria. Na prova
do Teorema I dos Elementos de Euclides, ele mostra que um triângulo eqüilátero
poderia ser construído sobre um segmento dado, usando círculos para determinar
o terceiro vértice. Mas os círculos não têm nada a ver essencialmente com o triân-
gulo, diziam.
Cristóvão Colombo ainda explicou o caminho para a Índia Oeste para um co-
mitê Real constituído principalmente por teólogos, antes de descobri-lo, embora
ele mesmo nunca tivesse abandonado a crença de que encontrara a Ásia (porque
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 51-72, set.-dez. 2007
Dificuldades de Aprendizagem Resultantes da Natureza da Matemática Moderna: o Problema da Explicação • 59
era isso que ele tinha explicado). As novas terras descobertas pareciam ao mesmo
tempo uma prova da inadequação da concepção tradicional de ciência e um estí-
mulo para ir à busca de novas formas de conhecimento:
Mas enquanto os filósofos experimentais poderiam facilmente imaginar-se
como exploradores de segredos da natureza, o caso era mais difícil para os
matemáticos. A Matemática, com sua estrutura rigorosa, formal e deduti-
va, parecia ser um terreno inadequado para a exploração intelectual... Os
matemáticos, ao que parece, não buscavam novos conhecimentos ou des-
cobriam verdades escondidas na forma de exploradores geográficos. Em vez
disso, tomando a geometria Euclidiana como seu modelo, buscavam extrair
verdades e conclusões necessárias de um conjunto simples de hipóteses. A
força da Matemática se assenta na certeza de suas demonstrações e na ver-
dade incontroversa de suas afirmações, não em descobrir novos e velados
segredos (ALEXANDER, 2001, p. 2).
porque tudo pode ser descrito de uma forma ou de outra. E, se uma teoria arbi-
trariamente complexa seria permitida, então a noção de “teoria” se tornaria vaga
porque sempre haveria uma teoria.
Sempre existe uma descrição, mas para ser útil deveria ser mais simples possí-
vel. Então o mundo precisa ser governado por leis claras e simples.
Um mundo em que quase tudo seria acidental e sem descrição ou sem expli-
cação, nem Leibniz nem Newton teriam aceitado. Mas a própria característica da
filosofia natural – seu compromisso com a inteligibilidade da natureza – fora radi-
calmente reinterpretada por Newton, e a Matemática, assim como matematização
de fenômenos naturais, cumpriu um papel fundamental nesta reinterpretação. A
Matemática nunca fornece a “essência” das coisas. A descrição matemática é sem-
pre abstrata e uma simplificação. Nem um princípio metafísico poderia ajudar. As
descrições matemáticas não devem ser entendidas em termos do que elas descre-
vem ou explicam, ou seja, em sua conformidade com fenômenos, mas, ao contrá-
rio, devem ser vistas em sua fertilidade e poder de fazer previsões e sua capacidade
de descobrir novos fatos e orientar nossas atividades neste mundo. Esse ponto-de-
vista ganhou força por volta do fim do século XIX.
Newton acabou com a metafísica? Ele tornou as considerações ontológicas
obsoletas? Eliminar tudo o que é hipotético poderia ser realmente um objetivo ra-
zoável da ciência moderna? Ele certamente não o fez, já que toda ciência vai muito
além do observável ou definível em seus fundamentos. A controvérsia de Newton
com Leibniz, como exposta na correspondência Leibniz-Clarke, mostra que as
questões sobre a natureza do espaço e das relações, – se as relações são externas aos
relatos ou não – e, o mais importante ainda, as diferenças sobre como Leibniz e
Newton respectivamente conceberam a presença de Deus, ocupou a maior parte
do debate. Se pudéssemos entrar nos detalhes desses debates, o que não podemos
fazer aqui, estaríamos aptos a mostrar o quão intimamente estão conectados a
assuntos que aparentam ser estritamente metodológicos, com questões filosóficas
fundamentais, como a natureza do Homem (ou de Deus) e outras.
A filosofia matemática de Newton foi, durante os séculos XVII e XVIII, de
fato, defendida devido a suas conexões com atitudes religiosas, e ao mesmo tempo
era muito criticada por sua apresentação matemática formal. Um dos mais arden-
tes críticos de suas confusões da explicação física e matemática foi provavelmente
o jesuíta Castel, que, em 1743, publicou um livro sobre o assunto. Castel percebeu
que a Matemática estava na essência da física de Newton e insistiu na distinção a
ser feita entre ambos:
A geometria é geometria somente devido à simplicidade abstrata de seu
objeto. Somente devido a isso ela é certa e demonstrável. O objeto da Física
é muito mais amplo. É o que torna isso difícil, incerto e obscuro. Mas o
essencial é o seguinte: ninguém é um melhor físico porque por ser o melhor
dos geômetras (apud GINGRAS, 2001, p. 401).
O assunto em questão se torna muito claro lendo esta afirmação: Uma ex-
plicação teórica não serve de nada se é tão complexa quanto o fenômeno a ser
explicado. Mas ela fornecerá somente sombras do fenômeno se for muito abstrata
e formal. Entre esses dois pólos do dilema, a Matemática e a Educação Matemática
oscilaram durante um longo período de tempo na história.
V.
Tudo na epistemologia gira em torno de Kant (1724-1804), e o próprio de-
senvolvimento intelectual de Kant, de fato, reflete muito bem a história da epis-
temologia.
Menos de 50 anos depois de Newton, Kant acreditou que as ciências e a Ma-
temática já não poderiam ajudar no acompanhamento dos tempos se não fosse
esclarecida esta questão de como a metafísica é possível. Os pensamentos de Kant
sobre o assunto são muito interessantes devido ao modo como mudaram durante
o tempo. Em seu “Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsätze der na-
türlichen Theologie und der Moral”5, de 1764, que foi escrito como uma resposta
à questão – colocada pela Real Academia de Berlim – de se as verdades metafísi-
cas teriam a mesma natureza que as verdades matemáticas, Kant introduziu sua
distinção bem conhecida entre verdades analíticas e sintéticas. Ele classificava a
Matemática como baseada em definições arbitrárias e, portanto, como sintética e
afirma que, em contraste com a Matemática, é ainda muito cedo para a metafísica
e para a filosofia natural procederem de acordo com o método sintético. “Somente
depois que a análise tiver nos provido com conceitos claramente compreendidos,
a síntese seria capaz, como na Matemática, de descrever conhecimento em termos
de seus elementos simples” (DEUTLICHKEIT, Segunda Consideração).
O método empírico não seria nada além de uma variante do analítico, sim-
plesmente confinado àquelas características, que a experiência razoável e certa de-
tecta sobre as coisas. Os seus princípios não são dados, mas têm que ser inferidos
por análise de experiências dadas. Isso significa então, que a filosofia e a ciência
natural, ambas do mesmo lado, se encontram em oposição à Matemática, que
representa conhecimento científico.
Vinte e sete anos depois, em sua Crítica da Razão Pura, a metafísica ainda está
do lado analítico, enquanto a Matemática e a física se tornam sintéticas a priori e,
portanto, não provêm explicação genuína no sentido aristotélico.
No prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura (1781), Kant afirma
que na esfera da metafísica “tudo que se pareça com uma hipótese deve ser proi-
bido” (AXV); e acrescenta por volta de seis anos depois, no prefácio da segunda
edição, que a Matemática e a física “têm que determinar seus objetos a priori”
(BX), porque nessas áreas “os objetos devem se adequar à nossa cognição”, ao invés
VI.
Reflitamos um pouco mais profundamente sobre o século XVIII, prosseguindo
um pouco mais no assunto da explicação e matematização para compreender melhor
os obstáculos epistemológicos que estão por trás.
Na grande Encyclopédie (1751-1772) de Diderot (1713-1784) e d’Alembert
(1717—1783), pelo termo “filosofia” foram ainda, de acordo com a classificação aris-
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 51-72, set.-dez. 2007
Dificuldades de Aprendizagem Resultantes da Natureza da Matemática Moderna: o Problema da Explicação • 65
6 “O filósofo é aquele que dá as razões das coisas, ou pelo menos as busca, porque aquele que se
limita a ver o que é visível não é nada mais do que um historiador.”
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 51-72, set.-dez. 2007
66 • Cultura Escolar e Formação de Professores
VII.
Um dos mais influentes resultados filosóficos do Iluminismo do século XVIII
foi o positivismo de Auguste Comte. O imenso crescimento e diversificação do
conhecimento exigiu um tipo de teoria da ciência sintética e universal muito mais
ampla em perspectiva do que as tradicionais epistemologias. Exige-se uma lógica e
filosofia da ciência em vez de uma epistemologia ou teoria cognitiva. O termo “Po-
sitivismo” foi primeiramente utilizado por Henri de Saint-Simeon, pai da sociolo-
gia e professor de Comte. Depois de encontrar o reformador social Saint-Simon,
Comte começou a escrever artigos para a imprensa de Saint-Simon e se tornou
um membro de seu círculo, que estava interessado na reorganização da sociedade
em bases científicas. O espírito positivo acreditava-se que consistia em substituir o
estudo das então chamadas causas do fenômeno por aquele de suas regularidades
invariantes, em uma palavra, em estudar o Como ao invés do Por quê.
Comte, em seu livro “Filosofia Positiva” (1830-1842), dividiu a evolução his-
tórica do conhecimento humano em três grandes períodos, o teológico, o metafí-
sico, e o científico ou positivo:
No estado teológico, a mente humana, procurando a natureza essencial dos
seres, as causas primeiras e últimas (a origem e propósito) de todos os efei-
tos [...] supunha todos os fenômenos como sendo produzidos pela ação
imediata de seres sobrenaturais. No estado metafísico, que é somente uma
modificação do primeiro, a mente supõe, ao invés de seres sobrenaturais,
forças abstratas [...] inerentes a todos os seres, e capaz de produzir todos os
fenômenos. O que é chamado a explicação de um fenômeno é, nesse está-
gio, mera referência de cada uma a sua própria entidade. No final, o estado
positivo, a mente [...] aplica-se ao estudo das leis dos fenômenos ou seja,
suas relações invariáveis de sucessão e semelhança” (COMTE, 1978, p. 4).
VIII.
Em relação às suas funções sociais, a ciência, inclusive a Matemática, é conside-
rada com maior freqüência não como um discurso quase filosófico, mas sim como
uma atividade e o cientista como um tomador de decisões. Daí a recomendação:
“Quando for usar informação científica, faça como os cientistas o fazem” (CHUR-
CHMAN, 1983, p. 11). Isto é bastante diferente e mais geral do que a sugestão de
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 51-72, set.-dez. 2007
Dificuldades de Aprendizagem Resultantes da Natureza da Matemática Moderna: o Problema da Explicação • 69
Referências
Resumo Abstract
Este trabalho constitui a síntese de uma The present article is a synthesis of a resear-
pesquisa avaliativa sobre um curso de forma- ch designed to evaluate a course of Pedagogy for
ção de professores, a qual culminou em uma teachers. The research belonged to a dissertation
dissertação de mestrado na área da Educação written to obtain a Master degree on Education
através do Programa de Pós-Graduação do Ins- at the Institute of Education of the Federal Uni-
tituto de Educação da Universidade Federal de versity of Mato Grosso, same institution where
Mato Grosso. Apresenta aspectos considerados the mentinoned course took place. The more re-
importantes na sistematização dos resultados levant results are presented and discussed along
alcançados no estudo e algumas reflexões sobre with some considerations about teacher forma-
formação e profissionalização docente. tion and profissionalization.
1 Pedagoga. Professora da rede de educação pública estadual. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso.
2 Professora. Doutora em Educação. Psicóloga e Psicanalista. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Educação, Subjetividade
e Psicanálise” do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato
Grosso. Orientadora da dissertação da qual resultou o presente artigo.
INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta os resultados da pesquisa intitulada Egressos da Pedagogia/
Convênio 035/94-FUFMT: onde estão e o que pensam de sua formação, a qual cul-
minou em uma dissertação de mestrado inscrita no Grupo de Pesquisa Educação,
Subjetividade e Psicanálise, integrando a linha Educação e Psicologia, na área de
concentração Educação, Cultura e Sociedade, do Programa de Pós-Graduação do
Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso.
A investigação focalizou o resultado de um projeto de formação de professores
(ALMEIDA et al., 1996) experimentado pelo Instituto de Educação, através do
Convênio de cooperação educacional nº 035/94, firmado entre a Fundação Uni-
versidade Federal de Mato Grosso (FUFMT), a Secretaria de Educação do Estado
(SEDUC-MT) e as Secretarias Municipais de Educação (SMEs) de Cuiabá, Santo
Antônio de Leverger e Várzea Grande. Através desse contrato propunha-se qualifi-
car, em nível superior e num prazo de dez anos (1995 a 2005), todos os professores
efetivos dessas redes que possuíam formação somente em nível de Magistério e que
atuavam nas séries iniciais do ensino fundamental.
Por meio da pesquisa empírica, buscou-se conhecer o perfil dos egressos do
curso de Licenciatura Plena em Pedagogia – Magistério das Séries Iniciais do En-
sino Fundamental, produto desse convênio – e saber o que pensavam acerca da
formação recebida. A relevância desta investigação reside principalmente no fato
de que a Universidade Federal de Mato Grosso, o estado de Mato Grosso e seus
municípios há mais de uma década têm trabalhado em regime de parceria na for-
mação de professores para as séries iniciais, sendo, portanto, de grande importân-
cia saber se todo esse investimento tem contribuído para o competente exercício
da profissão, a partir da visão dos professores envolvidos no curso como alunos.
A abordagem metodológica buscou a articulação entre o aspecto quantitativo
e o qualitativo (BOGDAN; BIKLEN, p. 1994), ao envolver dados de natureza
estatística e de caráter descritivo para determinar a quantidade de principiantes
e de concluintes do curso e delinear o perfil desses alunos por ano, sexo, idade,
naturalidade e tempo de serviço. Os dados cadastrais dos estudantes foram levan-
tados junto à Coordenação e Administração Escolar, à Coordenação do Curso de
Pedagogia e ao órgão administrativo das redes signatárias do convênio. A descri-
ção envolveu também dados de natureza qualitativa, referentes ao que pensam
os professores sobre sua formação e atuação profissional, opiniões manifestadas
nas entrevistas semi-estruturadas, nos questionários e nos dossiês profissionais,
elaborados pelos alunos como trabalho de conclusão do curso e constituídos pela
retomada do processo de formação realizado.
O método foi tomado como “[...] ato vivo, concreto, que se revela nas nossas
ações, na nossa organização do trabalho investigativo, na maneira como olhamos
as coisas do mundo” (GATTI, 2002, p. 43). Assim, a perspectiva teórica que
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 75-87, set.-dez. 2007
Contribuição do curso de Pedagogia para o exercício da profissão de acordo com • 77
os professores nele envolvidos como alunos
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Nos últimos tempos, a formação docente vem ganhando destaque nas pre-
ocupações de estudiosos das mais variadas áreas do conhecimento. Temos, por
exemplo, os trabalhos de Catani et al. (2000) e de Bueno, Catani e Souza (2003),
na perspectiva da História da Educação, discutindo a docência, a memória e o
gênero; os de Speller (2002; 2004; 2005; 2006), na linha da Psicanálise em suas
intersecções com a Educação, focalizando a docência, a memória e a formação de
professoras; e os de Mrech (1999) e Kupfer (2000), também no campo psicana-
lítico, abordando a inclusão. Todas essas constituem abordagens que procuram
escutar os professores.
Castro (2004, p. 884-885), em pesquisa sobre esses profissionais da educação
básica e suas expectativas em relação à política de formação definida na lei nº
9394/96, sugere que “[...] um caminho para se pensar os cursos de formação é dar
voz aos professores, considerando o processo de formação inicial como o início de
uma caminhada que não tem fim, seja qual for o nível de ensino em que vá atuar
o professor”.
Nesse caminho, os trabalhos acima mencionados vêm sendo utilizados com
efeitos positivos nos cursos de formação docente, especialmente no que diz respei-
to à constituição da subjetividade do professor e, por conseguinte, à melhoria da
qualidade da atuação profissional.
André et al. (1999) fazem um levantamento do estado da arte nas produções
sobre a formação docente nas academias (pós-graduandos), em artigos de periódi-
cos e em um Grupo de Trabalho (GT) da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Educação (ANPEd), na última década em nosso país. Os resultados
dessa pesquisa informam que, embora a produção discente (dissertações e teses
defendidas) no período de 1990 a 1996 tenha registrado um grande salto – passou
de 460, em 1990, para 834, em 1996 –, o quesito formação docente não acom-
panhou tal ritmo de crescimento. De fato, apesar de se ter verificado um aumento
nas produções acadêmicas - de 28 para 60 dissertações e teses - conforme a análise
apresentada pelas autoras, a proporção de produção na área de formação docente
manteve-se em 5% a 7% sobre o total.
Nessa pesquisa constatou-se também que dos 284 trabalhos, sobre formação
de professor, produzidos de 1990 a 1996, observa-se, entre os temas levantados,
que um total de 216 (76%) tratou da formação inicial, 42 (14,8%), da formação
continuada e 26 (9,2%), da identidade e da profissionalização do professor.
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 75-87, set.-dez. 2007
78 • Educação e Psicologia
RESULTADOS
O perfil dos professores egressos do curso de Licenciatura Plena em Pedago-
gia – Magistério das Séries Iniciais do Ensino Fundamental foi caracterizado pela
predominância do sexo feminino (93%). O fato de que nessa etapa da educação
básica as mulheres constituem a maioria faz-nos pensar a questão da tripla ou múl-
tipla jornada laboral e suas implicações na qualidade de vida dessas trabalhadoras
e da luta pela formação e profissionalização docente. Entre os motivos da opção
pela profissão, apresentados nos dossiês, apareceram as referências: realização de
um sonho, influência do convívio social, única opção de curso no lugar onde vivia,
facilidade para conseguir emprego, afinidade com o curso e gosto pela profissão.
Gonçalves (1995, p. 162), ao pesquisar a carreira das professoras do ensino
primário em Portugal, escreve que
Os estudos demonstraram que são múltiplas as razões pelas quais se escolhe
o ensino como profissão, concorrendo nessa decisão fatores de ordem ma-
terial e de ordem estritamente profissional. Ambos os aspectos estão sempre
presentes na escolha da carreira, sendo a predominância de uns sobre outros
fruto de condições individuais e circunstanciais.
Diniz (1998, p. 200, grifos da autora), diz que, ao se tratar de escolha profis-
sional num espaço tomado por tipicamente feminino, deve-se atentar para o fato
de que tal decisão praticamente não representa uma livre escolha, pois, segundo
suas observações,
Como diz Mrech (2005, p. 156), psicanalista que estuda os possíveis efeitos
que a psicanálise tem suscitado na educação, “[...] não basta ser professor reflexivo,
como propõe Antonio Nóvoa e Donald Schön, porque muito do nosso processo
em sala de aula decorre de um plano inconsciente”. Essa procedente observação,
contudo, não invalida a afirmação de Nóvoa (1995a, p. 25) de que “[...] urge [...]
(re)encontrar espaços de interação entre as dimensões pessoais e profissionais, permi-
tindo aos professores apropriarem-se dos seus processos de formação e dar-lhes um
sentido no quadro das suas histórias de vida”, desde que se tenha em conta o fator já
mencionado por Diniz, qual seja que “[...] o(a) professora(a), ao resgatar suas ações,
suas posturas, suas opções, seus conflitos vividos ao longo da sua história, possa ter
acesso ao processo pelo qual se tornou o professor que é hoje, considerando aspectos
profissionais e pessoais que se fundem e se confundem”.
O estado civil dos que se declararam casados ou solteiros ficou em 46% e 40%
respectivamente. A faixa etária de 36 a 45 anos foi referente a 50% dos egressos,
sendo que 14% revelaram ter idade inferior e 36% indicaram ter mais idade. Se-
gundo pesquisa da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (2003),
a predominância da faixa etária entre os profissionais da educação básica no Brasil
varia de quarenta a 59 anos (53,1%), porcentagem que no estado de Mato Grosso
atinge 45,4%, enquanto que a faixa dos 25 a 29 anos chega a 48,3%.
Do total dos egressos, 54% já trabalhavam no magistério há um período de seis
a quinze anos e 23%, de dezesseis a vinte anos, resultado próximo ao que apon-
tou a investigação realizada por aquele referido órgão, na qual a média do tempo
de serviço indicado pelo conjunto dos entrevistados ficou entre quinze e dezoito
anos. Tais dados se aproximam também dos resultados da pesquisa sobre o perfil
dos professores brasileiros desenvolvida pela Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (2004, p. 86), em que “[...] a porcentagem de
professores concursados é maior nas faixas de tempo mais elevadas (acima de 5 anos
de profissão)”.
A maioria (60%) dos concluintes nasceu em municípios do estado de Mato
Grosso, e quase todos (94%) continuavam na profissão, atuando nas séries iniciais
do ensino fundamental, de modo que dos 6% afastados, a maior parte (70%) jus-
tificou ter se aposentado.
Com relação às contribuições teóricas que embasaram o desenvolvimento do
curso, conforme pudemos observar nas revelações dos alunos, registradas nos dos-
siês e nas entrevistas e questionários, foram predominantes o pensamento de Paulo
Freire sobre Educação Popular, a perspectiva socioistórica do conhecimento fun-
damentada nos estudos de Vigotsky e o construtivismo respaldado nos estudos de
Piaget e nas experiências de Emilia Ferreiro.
Os efeitos subjetivantes dos processos educacionais vivenciados e sistematiza-
dos na trajetória formativa foram marcantes nos escritos e nas falas dos egressos.
Há um destaque para a convicção de que o estudo constante, a reflexão coletiva e
a troca de experiências entre os profissionais são formas necessárias para a atualiza-
ção e o fortalecimento da profissão de professor, cuja formação não termina com
o encerramento do curso, mas constitui-se no redimensionamento diário da
prática pedagógica. Esse posicionamento indica que a formação e a pro-
fissionalização são processos que demandam um movimento contínuo.
Os dossiês analisados apontaram que o curso interveio positivamente no de-
sempenho da profissão e foi considerado imprescindível para a mudança do fa-
zer, do pensar e do agir na educação, apontando novos trajetos rumo à busca de
conhecimentos e propiciando, assim, o crescimento profissional e intelectual. A
fundamentação teórica e as constantes reflexões durante esse período de estudos
possibilitaram que os participantes enxergassem o mundo, a sociedade, a educação
e a própria escola de outra maneira, compreendendo suas inter-relações.
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 75-87, set.-dez. 2007
82 • Educação e Psicologia
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Acreditamos ter atingido a expectativa de avaliar se o curso, pela perspectiva
dos egressos quanto aos resultados alcançados em sua formação, contribuiu ou não
para o desempenho da profissão. Segundo esses participantes, os conhecimentos
adquiridos contribuíram para o seu enriquecimento pessoal e profissional, além de
terem implicado em mudanças na postura político-pedagógica diante de questões
inerentes ao exercício da profissão.
Pelo que pudemos perceber através da leitura dos dossiês e das respostas des-
ses professores ao questionário e nas entrevistas, o impacto da formação recebida
no curso sobre a própria atuação profissional deu-se basicamente na contextuali-
zação socioistórica da educação institucionalizada que tematizou a função social
da escola. A metodologia de desenvolvimento do curso respaldou o desempenho
profissional docente, principalmente pelas dinâmicas, que envolveram a troca de
experiências entre os colegas; pelos debates, que exigiram leituras constantes; e pe-
los trabalhos apresentados em forma de seminários. Notamos que essa contribui-
ção também se deu na medida em que despiu os participantes de suas convicções
prévias sobre um saber e um fazer pedagógico que desconsideravam, no processo
de ensino-aprendizagem em sala de aula, as experiências de vida extra-escolar dos
alunos das séries iniciais do ensino fundamental.
Quanto à área de atuação, conforme constatado pelos depoimentos nos dossiês
e, principalmente, pelas visitas às escolas, as funções desempenhadas pelos egressos
giravam ainda, em torno das séries para as quais o curso fora proposto, não só em
termos de sala de aula, como também de coordenação pedagógica, direção escolar
e educação de jovens e adultos. Portanto, o investimento alcançou êxito no que
diz respeito a manter os profissionais qualificados para atuar no nível de ensino
requisito para entrada no curso. Foi-nos possível observar o compromisso com a
escola e a preocupação com o aprendizado dos alunos, apesar das pouco favoráveis
condições de trabalho.
Os resultados deste estudo fazem-nos pensar que a parceria estabelecida entre
a instituição formadora UFMT e os órgãos contratantes convergiram para o al-
cance das reais necessidades do professorado e do sistema educacional, pelo fato de
que nesse caso, o poder público envolveu-se na problemática da profissionalização
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 75-87, set.-dez. 2007
Contribuição do curso de Pedagogia para o exercício da profissão de acordo com • 83
os professores nele envolvidos como alunos
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Resumo Abstract
O objetivo deste artigo é pensar a tarefa The purpose of this article is to articulate
educativa articulando-a com a noção de sujeito the educative task with the psychoanalytic no-
psicanalítico. Com essa finalidade, focaliza-se a tion of subject. With this aim it is focused the
atividade do inconsciente e sua incidência sobre unconscious activity and its incidence on the
o processo de aprendizagem. Uma decorrência learning process. A result of this perspective is
dessa perspectiva é a possibilidade de discernir the possibility to discern the circumstances that
os perigos que ameaçam interromper a dialética threaten to interrupt the dialectic movement
ordem-desordem implicada na educação eman- of order-disorder implied in the emancipating
cipatória. education.
1. Ressonâncias
A certa altura do texto Análise terminável e interminável, Freud (1937, 1975,
p. 282) aproxima a Psicanálise da Educação e refere-se a ambas como profissões
impossíveis: “quase parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões
impossíveis quanto as quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados
insatisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo são a educação e
o governo”.
Vejamos o que esse fragmento nos permite ressoar. Como profissão impos-
sível, o trabalho educativo produz resultados que seguramente deixam a desejar.
Deixando a desejar, a educação representa uma daquelas ações que, por mais que
se faça, não deixa de causar alguma insatisfação ou certo mal-estar. Deixando a
desejar, a educação é tarefa inconclusa e impossível de ser totalizada. Impossível de
ser totalizada, ela não pode se realizar completamente, mantendo-se assim como
abertura e inquietação, posto que o resultado de sua operatividade não pode ser
calculado de antemão. A tarefa é impossível porque ditada por ideais de totalização
e de fechamento, os quais possibilitariam a coincidência entre o executado e o pla-
nejado, o cálculo e o controle das operações realizadas. Pensando mais um pouco
na questão do impossível, descortina-se o fato de que a efetividade da ação edu-
cativa não reside em questões técnico-administrativas voltadas para a descoberta e
a aplicação de tecnologias adequadas, embora delas não possa prescindir. Assim,
não é na tecnologia didática e na eficácia administrativa das ações educativas que
reside sua possibilidade. Ela é possível quando assume ser quase impossível que
o mesmo método educativo possa ser uniformemente bom para todos aqueles a
quem se dirige. O efeito provável dessa atitude que não recua perante a produção
da diferença é o enfrentamento contínuo do mal-estar gerado pela inconclusivida-
de do processo educativo. É a imprevisibilidade, por sua vez, que faz da elucidação
da tarefa educativa um esforço sem fim.
tituição do sujeito epistêmico opera uma cisão no campo das experiências subje-
tivas: de um lado a subjetividade empírica, variável, inconstante, contextualizada
e particular; de outro lado a subjetividade transcendental, invariável, constante,
anistórica e universal. Em outras palavras, trata-se de estabelecer uma nítida sepa-
ração entre o que faz parte do domínio do corpo (campo da passividade e objeto
dos padecimentos e condicionamentos) e o que faz parte do domínio da razão/
espírito (campo da atividade e do sujeito autodeterminado e livre).
Com a concepção tripartida do psiquismo, Freud desalojou o eu de sua posi-
ção central e soberana, atribuindo-lhe funções e atividades dependentes de outros
poderes no conjunto da vida mental humana. Ao descentrar o sujeito, Freud sola-
pou a ilusão da identidade entre consciência, mente e razão.
Em conversa com um eu imaginário, que Wallwork (1991, p. 90) interpreta
como uma crítica endereçada ao iluminista Kant, Freud (1917, 1976. p. 177) ten-
ta convencê-lo da abrangência da vida mental: “[...] se você não tem informação
de algo que ocorre em sua mente, presume, confiante, que tal coisa não existe”.
O eu acredita que conhece a si mesmo: “[...] você se sente seguro de estar in-
formado de tudo o que se passa na sua mente. Na verdade, você chega a considerar
o que é mental como idêntico ao que é consciente” (p. 177).
Mas o eu, descentrado da auto-evidência de sua experiência de consciência, se
engana sobre si mesmo e fracassa em sua intenção de ser senhor de sua narrativa:
“[...] os pensamentos emergem de súbito, sem que se saiba de onde vêm, tampou-
co se pode fazer algo para expulsá-los. E esses hóspedes estranhos até parecem mais
poderosos do que os submetidos ao ego” (p. 176).
Do ponto de vista psicanalítico, uma razão soberana independente do desejo
não é mais que amarga ilusão, cujo preço pode ser elevado, conforme revela a
clínica das neuroses. Que uma razão pura independente da vida passional seja
apenas efeito de superfície, sustentada pela violência do recalcamento, é uma lição
psicanalítica elementar:
Nada vindo de fora penetrou em você; uma parte de sua própria vida aní-
mica se subtraiu de seu conhecimento e do domínio de sua vontade [...].
Você superestimou sua força quando achou que podia tratar suas pulsões
sexuais da maneira que quisesse e ignorar absolutamente as suas intenções.
O resultado é que se rebelaram e assumiram suas próprias vias obscuras para
escapar dessa repressão; estabeleceram os seus direitos de uma forma que
você não pode aprovar (FREUD, 1917, 1976, p. 176-177).
ência forma o caldo de cultura para diversas formas de violência derivadas prin-
cipalmente da alergia ao outro, em quem é projetado aquilo que não se aceita em
si mesmo.
É de fundamental importância destacar que não vivemos duas vidas, uma
consciente e outra inconsciente. Vivemos uma única vida, constituída pela inter-
relação entre os aspectos conscientes e dinamicamente inconscientes da experi-
ência (OGDEN 1996). Pensar as experiências conscientes e inconscientes como
mutuamente excludentes e independentes entre si é palmilhar ainda em solo car-
tesiano, que promove a dissociação entre loucura e razão. Nessa perspectiva, uma
razão louca constitui uma contradição entre termos. Para a Psicanálise a razão
também pode ser louca quando se põe a justificar ações que claramente estão sob
o comando de paixões que ela não pode aceitar.
Ogden (1996, p. 15) propõe que o sujeito psicanalítico deva ser procurado na
fenomenologia daquilo que se encontra nas relações entre consciência e incons-
ciente. Esse espaço do entre é o campo em que irrompe o inopinado aparentemen-
te desgovernado. Mas isso que irrompe como errância divertida ou cruel, e neste
último caso dá vergonha, produz mal-estar, é também familiar e desejante. Se não
fosse familiar e indício do desejo, a face não enrubesceria e, ato contínuo, o eu
não se sentiria compelido a justificar o que para ele representa uma falha ou um
desejo inconveniente. Mal-comportado, o inconsciente se mostra exsudando-se
do discurso racional e do desejo de ordem e de disciplina. Surge num ato falho,
num esquecimento ou numa palavra mal-dita. Mas aí já é tarde demais. Conforme
a feliz expressão de Bollas (1995, p. 222), o ato falho coloca cascas de banana no
caminho do pensar racional, solapando continuamente a arrogância da consciên-
cia. Os atos falhos são as escorregadelas da vida cotidiana evidenciando que algo
escapou ao controle do eu racional e comportamental. Contudo, são as mesmas
cascas de banana no caminho de nosso pensar consciente que abrem espaço para
os momentos criativos e mutativos, conforme indicou Freud (1905, 1977) em Os
chistes e sua relação com o inconsciente2. Retomaremos esse texto mais adiante.
Paradigmáticos da concepção psicanalítica de sujeito são os nossos sonhos no-
turnos. Produzimos (quem produz?) dormindo pensamentos oníricos, histórias e
cenas cujas características que mais nos chamam a atenção são o desagradável, o
absurdo e o insignificante.
O inconsciente, esse outro do eu consciente, é estranho e fugidio. Pensemos
na experiência de contar um sonho. Quando tentamos narrá-lo, algo sempre esca-
pa. Nunca conseguimos contar o sonho ele mesmo, o sonho tal qual o sonhamos,
por mais que nos lembremos de cenas e de detalhes. Acréscimos aqui, supressões
acolá, não conseguimos reproduzi-lo em uma totalidade por meio de palavras que
2 Em outro lugar trabalhamos a idéia insinuada por Freud de que o inconsciente opera como dissipador de energia pulsional
para as atividades produtivas e criativas, não sendo apenas depósito para onde são banidas as idéias desprazíveis para a
consciência (BLUM, 2002, p. 128-149).
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 89-101, set.-dez. 2007
Sujeito psicanalítico e emancipação: é possível uma educação bem-sucedida? • 93
É notável que Freud utilize a expressão “liberdade de pensar” para se referir à pro-
dução de absurdos e disparates. Procedendo dessa maneira, ele admite que a sustenta-
ção a qualquer custo do compromisso com as regras de coesão e coerência discursivas
pode massacrar disposições psíquicas essenciais para a saúde da vida mental. Vejamos
o que o mecanismo da produção dos chistes pode nos ensinar acerca dos movimentos
implicados no processo criativo:
O chiste tem em alto grau a característica de um fluxo mental involuntário
[...]. Não acontece que saibamos, um momento antes, que chiste vamos
fazer, necessitamos apenas vesti-lo em palavras. Sente-se, em vez disso, algo
indefinível, cuja melhor comparação é com uma ausência (Absenz), um
repentino relaxamento da tensão intelectual, e então, imediatamente, lá está
o chiste em regra já configurado (FREUD 1905, 1977, p. 192).
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 89-101, set.-dez. 2007
Sujeito psicanalítico e emancipação: é possível uma educação bem-sucedida? • 95
díveis aos processos criativos. Tal consciência abre espaço para problematizações
teóricas e práticas acerca das fantasias, do jogo e das transgressões no processo de
ensino- aprendizagem. São problematizações necessariamente avessas à legitima-
ção das formas de poder disciplinares e que incidem sobre as metas implícitas ou
explícitas de padronização e normalização das experiências subjetivas a serviço de
uma inquestionável ordem social.
Não são poucos os pensadores contemporâneos que apontam para a natureza
essencialmente disciplinar e normalizadora dos saberes da sociedade contemporâ-
nea e mostram como nossa sociedade aparentemente hedonista e permissiva, na
realidade, é saturada de normas e regulamentos que, ao mesmo tempo em que
visam a promover o bem-estar do indivíduo, produzem toda sorte de restrições: ao
comer com as regras do comer saudável; à vida sexual mediante as regras de uma
vida sexual saudável; ao viver enfim, pela via das fórmulas do viver saudável. As
recomendações criadas para proporcionar o bem-estar dos indivíduos produzem
efeitos de controle e domesticação do desejo e dos corpos. São eficazes na medida
em que homogeneizam os discursos sobre o que é bom e sobre o que é certo fazer.
E são eficazes porque contam com e alimentam isso que Kant (1783, 1974, p.
101-102) denominou de “incapacidade de usar o entendimento sem a direção de
outro indivíduo”, ao discutir o que é o Esclarecimento. Vale a pena citar este longo
trecho, que, escrito em tempos tão distantes, soa atual:
A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos
homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção
estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto, de bom grado
menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que
é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo
ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um
diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim
decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso de esforçar-me
eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente
pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis.
6. Finalizando...
Educar, curar e governar são ações impossíveis, pois lidam com o desejo do
outro, submetido a uma lógica, a lógica do processo primário, que é impossível de
ser controlada. Se isso é verdade, pode-se falar em educação bem- sucedida? Em
caso afirmativo, em relação a que e a quem ela assim se caracteriza? Seguramente,
a educação bem-sucedida não se materializa mediante a realização de um padrão
previamente traçado, não obstante este seja necessário como regulador do real não
simbolizado.
A Psicanálise nos ensina que a exigência da ordem e da disciplina por meio da
repressão das intensidades desejantes resulta no empobrecimento do eu, na perda
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 89-101, set.-dez. 2007
100 • Educação e Psicologia
3 Retirei a concepção desse dilema de alguma fonte que não posso referenciar. Agradeço ao leitor ou à leitora que porventura
venha a identificar sua procedência.
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 89-101, set.-dez. 2007
Sujeito psicanalítico e emancipação: é possível uma educação bem-sucedida? • 101
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Resumo Abstract
O imaginário contrapõe-se à realidade. A The imaginary is opposed to reality. Tele-
televisão apresenta corpos que ilustram marcas vision presents bodies that illustrate trades with
com linguagens específicas. Uma proliferação specific languages. A proliferation of subjective
de componentes subjetivos desmembrou os es- components has dismembered the bio-cultural
paços de referências do corpo biocultural. Este, body reference spaces. Doubled, the bio-cultural
duplicado, predispõe-se a aceitar a narrativa da body is inclined before hand to accept the televi-
estética visual televisiva e, seduzido, reterrito- sion visual aesthetics narration, and seduced, it
rializa a subjetividade. Isto é, ao aceitar o que remaps subjectivity. That is, by accepting what is
se lhe oferece, não nega ao tato “a especialidade offered, it does not refuse tact ‘the sense special-
no sentido”, e toda uma justificativa responde ty’, and a whole justification answers the consu-
ao ato consumista, correspondendo à linguagem mers’ act, corresponding to language provoked
provocada na imagem publicitária. Um hiato à on the publicity image. A gap to the intensity of
intensidade do acontece aqui faz o intercâmbio what happens here, makes the interchange with
com atitudes para o consumo e o comportamen- attitudes of consume and behavior. Reading and
to. Ler e procurar interações entre o corpo bio- looking for interactions between the bio-cultu-
cultural e os espaços construídos nos “campos ral body and the spaces built within the “virtual
de virtualidade” talvez possa servir, pedagogi- fields”, may, for a pedagogic use, contribute to
camente, à reflexão sobre as relações dos afetos reflect the relations of the affections built by at-
constituídos por atitudes e atos subjetivos. titudes and subjective act.
1 *
J. Luiz Ribeiro Gomes. Mestre em Educação (UnB), concentrando-se na área de mídias e tecnologias. Pedagogo, Escultor,
Artista Plástico, Arte Educador. E-mail: [email protected]
APRESENTAÇÃO
Este ensaio envolve a interface entre três áreas disciplinares: Psicologia, Edu-
cação e Comunicação e teve início após a defesa da dissertação de mestrado inti-
tulada Corpo-desejo: usos da imagem na educação, apresentada em agosto de 2004,
na Faculdade de Educação, departamento de Mídia e Tecnologia da UnB. Na
pesquisa, de natureza empírica, analisamos alguns discursos veiculados nas men-
sagens publicitárias da televisão aberta.
O que nos propõe a publicidade, conteúdo da mídia, é o objeto da reflexão
que apresentamos. Sabemos que há uma vasta literatura sobre a mídia e seus
conteúdos. Analisamos com base na fenomenologia as mensagens dos muitos
corpos que podem ser criados e especificados na estética publicitária. Devemos
considerar que toda oferta precisa ser questionada na conformidade real de uma
necessidade, preferencialmente a partir dos primeiros anos escolares onde o con-
tato social mostra suas diferenças e reforça muitos preconceitos. O desejo pode
ser despertado por estímulo e também pode ser questionado em sala de aula. O
desejo colocado como necessidade na propaganda, pode despertar no consumo
violento uma patologia, e que por isso deve fazer parte do conteúdo pedagógico
disciplinar.
Na estética institucionalizada da imagem publicitária, uma linguagem sutil
e subliminar força o espectador a se transformar numa imagem que se encaixa
no todo, satisfazendo as exigências de uma ‘visibilidade ampliada’ (KAMPER,
2000), exigências essas que conduzem indivíduos a perderem as corporalidades
multidimensionais de suas vidas. Assim, máquinas imagéticas transformam o cor-
po biocultural, forçando o surgimento de um corpo impotente, isolado, controlá-
vel, submisso, moldado num corpo-desejo de ser corpo, conseqüente do assédio
da propaganda.
Neste trabalho, termos como corpo “biocultural”, “corpo-mídia” e “corpo-
desejo de ser” foram tomados de empréstimos a Campelo (2003). O conceito de
imaginário colonizado é nossa criação, a partir do entendimento dos conceitos de
visibilidade ampliada de Kamper (2000) e alteridade em Guattari (1996).
A sensação, tal como a experiência a entrega a nós, não é mais uma maté-
ria indiferente e um momento abstrato, mas uma de nossas superfícies de
contato com o ser, uma estrutura de consciência, e, em lugar de um espaço
único, condição universal de todas as qualidades, nós temos com cada uma
delas uma maneira particular de ser no espaço e, de alguma maneira, de
fazer o espaço (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 299).
2 Stiegler (2007, p. 21) declara que, com o capitalismo cultural, a afirmação dessa diferença é aquilo cujo fim é desejado: essa
é a nova figura do controle, radicalmente nova precisamente nisso, e o que ativa as “sociedades de controle”. Aqui, a luta é
mais aquela do consistente e do existente do que de classes. A força do capitalismo cultural e hiperindustrial é fazer passar
os fantasmas que ele produz industrialmente pelo consistente que não existe, visando precisamente extenuá-lo e eliminá-lo,
porque ele não é nem calculável nem controlável.
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 105-117, set.-dez. 2007
108 • Educação Poder e Cidadania
A visão não é nada sem um certo uso do olhar. Cada órgão dos sentidos
interroga o objeto à sua maneira, que ele é o agente de um certo tipo de
síntese, mas, a menos que por definição nominal se reserve a palavra espaço
para designar a síntese visual, não se pode recusar ao tato a especialidade
no sentido de apreensão das coexistências (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
301).
vas para uma massa consumidora, é a afecção de um corpo consciente das represen-
tações que seleciona e escolhe o valor ético na realidade no mundo real criador de
fantasias. O discurso contido na imagem publicitária é o dizer do capital financeiro,
que investe para manter o sistema e o modelo da economia de mercado. No en-
tanto, precisa ser analisado e questionado criticamente pelos docentes formadores
de opinião e orientadores daqueles que serão referências na brevidade da próxima
década. Ler e procurar interações entre o corpo biocultural e os espaços construídos
nos ‘campos de virtualidade’, talvez para um uso pedagógico, possa contribuir com
reflexões nos afectos que serão constituídos por atitudes e atos subjetivos.
Ora, como advento do impessoal, o recalque é um fenômeno universal, ele
faz compreender nossa condição de seres encarnados ligando-a à estrutura
temporal do ser no mundo. Enquanto tenho ‘órgãos dos sentidos’, um ‘cor-
po’, ‘funções psíquicas’ comparáveis àquelas dos outros homens (...), eu me
torno o lugar onde uma multidão de ‘causalidades’ se entrecruzam (MERLE-
AU-PONTY,1999, p. 124).
O CONTEÚDO DO OLHAR
Depois deste minuto no qual queríamos encerrar toda nossa vida, o tempo,
pelo menos o tempo pré-pessoal, recomeça a se escoar e arrebata, senão nossa
resolução, pelo menos os sentimentos calorosos que sustentavam. A existên-
cia pessoal é intermitente, e, quando essa maré reflui, a decisão só pode dar
à minha vida uma significação forçada (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 125).
Esse corpo vivo ou biocultural pode compreender ou não o que diz o conteúdo
da mensagem, respondendo aos símbolos que convivem consigo, à sensação no espaço
virtual necessária ao todo que se abre ao seu olhar.
A específica informação sobre a produção disponível na economia para o sistema
de consumo apresenta-se em todas as programações. Quando isso ocorre, os meios e
os modos de produção utilizados para realizar o que será divulgado se aliena do objeto
produzido, e a marca passa a adequar um valor simbólico cujo objetivo será atingir as
muitas subjetividades do corpo biocultural nos segmentos sociais. Normalmente cor-
pos atentos a uma programação específica, porém, cortada por intervalos:
Essa setorização e bipolarização dos valores pode ser qualificada de capitalís-
tica em razão do esgotamento, da desqualificação sistemática das matérias de
expressão que ela realiza e que as engajam na órbita da valorização econômica
do Capital. Este trata num mesmo plano formal valores de desejo, valores de
uso e valores de troca, e faz passar qualidades diferenciais e intensidades não
discursivas sob a égide exclusiva de relações binárias e lineares (GUATTARI,
1993, p. 133).
O IMAGINÁRIO COLONIZADO
A exigência de uma “visibilidade ampliada”, apresentada por Kamper (2000), no
corpo biocultural, requerida pelo corpo-mídia, tornar possível muitos signos referen-
ciais de aceitação no imaginário individual como senha de acesso num coletivo. A
categoria de espaço encontrada numa postura que qualifica os dizeres da estetização
global coloniza ‘todos os níveis de alteridade que engendram os estratos espaciais poli-
fônicos’, apresentado por Guattari (1996, p. 123) na composição dos Agenciamentos
Territoriais de Enunciação nas sociedades capitalistas desenvolvidas. Afirmamos assim
que a visibilidade ampliada gera um imaginário colonizado, aculturado. Este imaginá-
rio pertence aos corpos criados pela publicidade que pode nos condenar a existir num
exílio do próprio imaginário.
As aceitações das definições capitalísticas ‘burguesas’ são os novos navios negreiros
– mas dessa vez, de fato, somos todos nós, aliás, é o nosso ser vazio, o homem contem-
porâneo, a vaidade, o materialismo enlouquecedor que estão ‘senzalados’ e confinados
ao fragmento. E que se apresentam nas relações com o outro ou consigo mesmo. A re-
presentação é de fácil reconhecimento nas marcas e nos discursos impressos no corpo,
nos gestos, nos muitos discursos que se apresentam no cotidiano para o olhar.
O intervalo, enquanto refluxo, é interrupção, pausa, não continuidade, corte. Os
anunciantes divulgam o que há no mercado. A publicidade se ocupa do refluxo, do
lugar onde está a insegurança contemporânea fragmentada do Ser, aquele olhar de “es-
pera/corte/intervalo/ação”. A mensagem está colocada para um dialogismo silencioso,
no instante primeiro da solidão pessoal e, posteriormente, na condição universal das
qualidades pessoais temos a maneira particular de ser no espaço social de convivência.
É a ‘sensação, tal como a experiência a entrega a nós’. Os fluxos anunciados servem
à programação, são interativos. Esses fluxos colonizam o imaginário para disciplinar,
readaptar o olhar ao espaço que se abre noutros intervalo. Tais fluxos desenvolvem nas
marcas do espetáculo o prazer para o gozo, a aproximação do olhar sempre individual
acaba por procurar os objetos divulgados. As marcas e os modelos circulam no espaço
urbano para que sejam vistos e entendidos como integrantes dos corpos “atualiza-
dos”.
O olhar ajuda a construir a mercadoria feita pela persuasão. E, assim, as “carências”
são mostradas ao corpo biocultural, que passa a imprimir sobre a pele um discurso cuja
identidade é referendada por uma grife, em função da qual ter assume importância
maior que o Ser. A marca, ao reterritorializar a subjetividade, reivindica na atitude
uma outra convivência no coletivo. Os muitos tipos humanos que se absorvem dessas
linguagens passam, dessa forma, a representar de forma indireta parte do corpo-mídia.
Seres vivos representantes do objeto virtual.
O corpo já não é biocultural: está fragmentado, segue apenas uma mídia para
um comportamento obsequioso.
O CORPO-DESEJO DE SER
Há, ainda, o corpo higiênico. Aquele que divulga produtos para cabelos se-
dosos e sempre macios e para a pele que precisa sempre de proteção intensiva dos
raios solares. O que a campanha Dove (nov/dez. 2004) vende na vinheta de som
que ilustra a imagem? A proteção para a pele da barriga que cobre um conteúdo
vivo. Filmadas em preto e branco, com tons de sépia, as barrigas de grávidas re-
metem ao início de cada um dos espectadores. A campanha do creme hidratante
apresenta mulheres de etnias diferentes, algo relevante e pedagógico para o signi-
ficado que merece a gravidez.
No desejo da maternidade está o lugar do corpo vivo formar a continuidade
da existência humana. Um corpo tatuado que aparece pode indicar a tribo urbana
a qual tal mulher pertence, outra apresenta a marca imprimida pela lâmina da
faca – a cesariana que interrompeu a dor do parto natural? – noutra barriga, a
cicatriz lembra a bala perdida da guerrilha num dia qualquer ou na guerra diária
da condição feminina.
Conforme a idéia segundo a qual o que está sendo gerado não pode ser visto,
o corpo de uma vida inteira deve ser alimentado, como mostra a fábula-mito, pelo
cuidado. A fábula-mito do Cuidado é narrativa de origem grega reelaborada por
Higino (47 a.C. – 10 d.C.), nos termos da cultura romana:
Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. To-
mou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contempla-
va o que havia feito, apareceu Júpiter.
Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom
grado.
Quando, porém, Cuidado quis dar nome à criatura que havia moldado,
Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.
3 A conjunção de Júpiter e Saturno tem uma longa história. Ela ocorreu vinte vezes na época do nascimento de Cristo,
segundo a tradição histórica. Saturno, como se sabe, é um agente maligno. Os escorpiões, as serpentes, os asnos etc.
pertencem ao seu reino. Ele é um espírito obscuro e destrutivo. Júpiter, por outro lado, é em geral a estrela dos reis, do
Rei da Justiça, da expansão do mundo, da magnanimidade e de todas as qualidades positivas de uma personalidade com
realeza. Considera-se que o Cristianismo surgiu num tempo em que se aproximavam esses contrastes extremos, o obscuro
e o luminoso, o corpo e o espírito. A idéia central era de que a era do Cristianismo se caracterizaria inicialmente pela
dominação de Cristo, o espírito jupteriano, e depois pela supremacia do anticristo, o espírito saturnino (VON FRANZ,
1998, p. 121).
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 105-117, set.-dez. 2007
116 • Educação Poder e Cidadania
maior. Se a pele que envolve a terra – a camada de ozônio – não for respeitada nos
termos acordados em Kioto, pelas nações que dominam o poder das tecnologias,
qual corpo mutante será? Qual tipo de máscara usará para ir ao supermercado,
à praia ou à piscina, para sair às ruas? Como os corpos se apresentarão uns aos
outros? Pode-se levantar a máscara, olhar nos olhos do outro, e, através da sombra
construída pela conivência dos seus pais, dizer: “ como vai você”? “Então, perce-
bendo que o homem era por natureza, mau caráter, Deus ensinou-lhe como cons-
truir máscaras para si e para seus asseclas. E foi assim que, sem saber, esse cínico
demiurgo acabou por instituir os primeiros alicerces da moral, do Parlamento e da
hipocrisia (BAZZO, 1994, p. 7)”.
O corpo higiênico talvez seja realizado para uma pedagogia que sublimou o
desejo e o encantamento do tato sobre a pele do próprio corpo. Se não sabemos e
não sentimos, como oferecer ao tato o prazer da pele no corpo, como tocar o outro?
No lugar dessa pedagogia, um olhar tornado vazio foi incorporando e consentindo
a solidão. O produto anuncia a “falta”, aproxima e coloca sensações deixadas pelo
vazio dum sentimento antropofágico. Os produtos divulgados para realçar a pele,
não são feitos para o toque que reconhece a si mesmo nem para a interação no ato
de tocar o outro, porém, são feitos para que o mito afaste a proximidade da morte
com valores capitalísticos, criados para um coletivo.
A experiência do olhar exige questionamento, reflexão sobre o que essa trans-
versalidade maquínica apresenta como paradigma da subjetividade na urbanidade,
não um pensamento cristalizado. Hidratar qual pele? A diretividade da mídia é o
toque sobre a pele artificial, feita de muitos corpos construídos para um corpo não-
discursivo na proposta social. Um corpo-desejo de ser corpo, resultado da relação
entre o biocultural e o corpo-mídia. A pele do corpo-desejo de ser não pode ser
viva nem muito tátil, algo que a remeteria a pensar o prazer do gozo, a localizar a
complexidade e envolver um ao outro para a interação pelo respeito à alteridade.
O sentimento de aceitação e afeto é individual, é o que orienta para a interagir
no mundo. Interagir é procurar valores de inclusão. É a própria auto-exclusão que
processa a violenta anulação da existência do corpo. O imaginário quando coloni-
zado pela persuasão midiática – os bens produzidos pelo capital econômico, junto
com outros produtos, como entretenimento, informação etc. –, podem alienar o
sujeito do debate sobre questões relacionadas à indústria cultural.
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Resumo Abstract
O texto discute a pertinência da “profis- This paper considers the relevance of the
sionalização” do magistério como caminho de actions that indicate the work of teacher profes-
reversão da precarização da prática docente e de sionalization as a path towards the reversion of
decréscimo de seu prestígio social. Apresenta os the unstable situation of the work of teacher and
fundamentos da idéia de “profissionalização”, the social disrepute of the teacher. The theoreti-
mostrando o seu papel de controlar o processo cal perspective adopted here demonstrates that
de trabalho. Contextualiza o magistério no Brasil this approach, which constructs the proper idea
como uma ocupação ligada majoritariamente ao of “professionalizing”, constitutes an option that
setor público e aponta que a “profissionalização” aims to control the work of teacher process, but
vai de encontro à luta histórica dos educadores it is not a relevant process connected to all pro-
pela democratização da escola pública. Conclui fessions. The paper also contextualizes the work
que a melhoria das condições da atividade do- of teacher in Brazil as a profession especially
cente deve acontecer no bojo da luta pela ressig- linked to the public sector and underlines that
nificação do ensino público, no sentido de sua the idea of “professionalization” is opposed to
efetiva publicização. the educators´ historical struggle for the demo-
cratization of the public school. The conclusion
is that the improvement of the work of teacher
should occur within the struggle process for the
re-signifying the public school, considering its
real publicization.
1 Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do Núcleo de Filosofia,
Política e Educação (NUFIPE). E-mail: [email protected]
2 O piso salarial da rede, segundo depoimento da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, é de R$ 918,53
(GUIMARÃES; FARIA, 2006)
3 Este e outros textos aqui citados, que originalmente estavam em espanhol, foram por mim traduzidos, visando à
melhor compreensão de seus conteúdos por um número maior de leitores.
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 119-127, set.-dez. 2007
Trabalho docente: em debate a “profissionalização” do magistério • 121
O receio que serve de base para esse apoio tem uma sólida base de sustentação
nos dados da realidade. Em pesquisa divulgada pelo jornal Folha de São Paulo5,
pode-se ver que nos cinco anos anteriores o número de desempregados triplicou no
Brasil, e a percentagem da população em idade para trabalhar que “vive de bico”
cresceu de 13% para 16%, igualando-se à de trabalhadores assalariados registrados,
que caiu de 22% para os mesmos 16%.
No que tange à situação daqueles que trabalham na esfera pública (situação de
cerca de 80% dos professores brasileiros), a mesma pesquisa aponta que a percen-
tagem de funcionários públicos decaiu, no mesmo período, de 9% para 5%, o que
mostraria o processo de encolhimento do Estado, pois o interesse da população em
conseguir um emprego público permanece elevado.
Embora esse quadro tenha se modificado, em parte, nos últimos anos, com uma
ligeira elevação do percentual de trabalhadores com carteira de assinada e com um
discreto movimento de recomposição do setor público, a degradação das condições
de trabalho ainda é a tônica. Em vista disso, pode parecer que a regulamentação
profissional é um processo positivo, pois resguardaria os professores e os demais
profissionais da educação dessa tendência ao aviltamento.
É necessário, entretanto, complexificar a discussão sobre a regulamentação pro-
fissional, para que se possa, de fato, compreender as possibilidades que ela abre e os
limites que ela traz.
Um primeiro nível possível dessa complexificação refere-se ao próprio conceito
de “profissionalização”, pois se é muito difícil alguém ser contra o profissionalismo
lato sensu, as discussões que cercam o conceito de profissionalização são bastante
controversas.
Diversos autores (CONTRERAS, 2002; ENGUITA, 1991; GHILARDI,
1993) discutem a aplicação desse conceito àqueles que atuam na área educacional.
Embora priorizando este ou aquele aspecto da discussão, quase todos os teóricos que
trabalham com ele em suas análises se baseiam nos autores clássicos da Sociologia
das Profissões e constroem-no a partir do arrolamento de uma série de características
que definiria quem é ou quem não é profissional, numa perspectiva que Contreras
(2002, p. 55) chama de “teoria dos traços”.
Ghilardi (1993, p. 25), por exemplo, identifica sete características presentes nos
escritos desses autores para determinar se uma atividade se constituiria ou não em
uma profissão: posse de conhecimentos específicos; controle do ingresso na profis-
são; códigos de conduta profissional; liberdade de exercício da profissão; organiza-
ção profissional; condições de trabalho; e reconhecimento profissional. Passa, então,
a questionar cada uma delas quanto à sua aplicabilidade para o entendimento do
trabalho docente.
Sobre os docentes esse autor explicita a idéia de que “As mudanças sofridas
pela categoria, assim como os conflitos em curso e as opções presentes, movem-se
dentro de um leque de possibilidades cujos extremos continuam contidos dentro
dos limites da ambigüidade própria das semiprofissões” (p. 50).
Questionando-se se a docência seria uma semiprofissão, Davini (1995, p. 69)
nos lembra que sua origem está vinculada à constituição de um corpo de funcio-
nários públicos para trabalhar no âmbito do aparelho de Estado.
No Brasil, a perspectiva de pensar o professor como funcionário público tem
respaldo nos dados estatísticos, pois são basicamente as redes públicas de educação
(municipais, estaduais e federal) que empregam esse profissional.
O número de professores em efetivo exercício profissional no Brasil é bastante
elevado. Segundo cálculos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educa-
cionais Anísio Teixeira (INEP, 2006), em 2005 havia em nosso país 2.589.688
docentes trabalhando na educação básica, correspondendo a cerca de 6% da força
de trabalho nacional.
Do montante apontado pelo INEP como sendo o total de professores em
exercício na educação básica em 2005, somente 524.537, (20,25% desse total)
estão atuando em estabelecimentos particulares de ensino. Assim, perto de 80%
deles trabalham na escola pública, seja ela municipal (1.110.132 professores), es-
tadual (940.039), seja federal (14.980).
Isso confirma a fala recorrente de que o Estado é o grande empregador na
área da educação. Tal situação tem correspondência com o fato de que é na escola
pública que se concentra o maior número de matrículas – na educação básica são
49.040.519 de um total de 56.471.622, ou seja, 86,84% (INEP, 2006).
Por esses números, podemos dizer que, no Brasil, ao falarmos de escola, es-
tamos falando basicamente de escola pública e ao falarmos de professor, nos re-
ferimos majoritariamente aos professores que atuam nas instituições públicas de
ensino.
Por todos esses dados, o tipo de inserção do professor no mundo do trabalho
deve ser visto muito mais como o de um funcionário público (RIDENTI, 1995;
COSTA, 1995, p. 78) do que como o de um profissional liberal.
Contreras (2002, p. 61), desprezando a idéia de profissionalização docente,
aponta que ela, muitas vezes, está a serviço de projetos educacionais e ideológicos
autoritários (mas o oposto também pode ocorrer em função da reapropriação do
conceito por parte dos movimentos de trabalhadores da educação). Ele aponta
que
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Resumo Abstract
Inserido no campo da História da Educa- In the History of Education field, this es-
ção, o presente ensaio apresenta resultados par- say, located, has as an objective to analyze the
ciais de um estudo que investiga as experiências professional and experiences of primary teachers
profissionais e a produção escrita de um grupo in Corte Imperial. This research, in progess, in-
de professores(as) do ensino primário na Corte tends to investigate the formation, access and
Imperial. Apresentam-se aqui dados relativos à the trajectory in the public teaching carrer as
formação, ao ingresso e à trajetória desses profis- well their participation in intellectual socia-
sionais no magistério, bem como a participação bility groups and their written production. In
deles nos grupos de sociabilidade intelectual. As addition to these works, other modalities of
fontes selecionadas para análise foram dicioná- writing are analyzed such as memories, official
rios biobibliográficos, imprensa pedagógica, reports about schools, letters, mail, responses to
relatórios oficiais, cartas, requerimentos, entre government petitions, etc. This study supports
outros documentos pertencentes aos acervos the hypothesis that these teachers had a highli-
públicos. Sustenta-se a hipótese de que esses(as) ght position because of their actions as urbans
educadores(as) se destacaram por sua atuação intellectuals who reflected about educational
como intelectuais da cidade, participando ativa- questions.
mente dos debates educacionais.
Palavras-chave: História da profissão docente. Keywords: History of the Teaching career. In-
Sociabilidades intelectuais. Produção escrita. tellectuals’ sociabilities. Written production. Di-
Obras didáticas. Corte Imperial. dactic books. Imperial court.
1 Professora Adjunta da Faculdade de Educação e do Programa de Mestrado em Educação da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Pesquisadora do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação (NEPHE/UERJ).
2 Pesquisa sobre os professores secundários e sua produção intelectual está sendo desenvolvida pelas professoras Heloísa Villela
e Arlete Gasparello, na UFF. Ver: GASPARELLO; VILLELA, 2003.
3 VINÃO, 2004, p. 341.
4 Para a realização deste trabalho foram feitas consultas ao dicionário de Sacramento Blake, fontes manuscritas e impressas
de autoria dos professores selecionados, localizadas na série Instrução Pública do Arquivo Geral do Rio de Janeiro, além
dos seguintes periódicos que se encontram no setor de obras raras da Biblioteca Nacional: A Instrução Pública (1872-1875,
1887-1888), Escola – Revista Brasileira de Educação e Ensino (1877-1888) e o Ensino Primário. Revista Mensal consagrada
aos interesses do ensino e redigida por professores primários (1884-1885).
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 131-144, set.-dez. 2007
134 • História da Educação
5 BOTO, 2003, p. 130. Sobre a produção escrita de professores portugueses nas revistas pedagógicas, consultar também a
pesquisa de Gouvêa (2006).
6 LE GOFF, 2003.
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 131-144, set.-dez. 2007
Professores primários como intelectuais da cidade: um estudo sobre produção escrita • 135
e sociabilidade intelectual (corte imperial, 1860-1889)
7 Os diálogos do magistério primário com o governo imperial dinamizaram-se em 1871, quando uma comissão de mestres
redigiu um Manifesto, destinado ao Ministro do Império e ao Imperador Pedro II, protestando, entre outras coisas, contra
os baixos salários e o desprestígio da carreira. Cf. INSTRUÇÃO PÚBLICA. Manifesto dos professores públicos primários do
Município da Corte. Rio de Janeiro: Typographia de Villeneuve, 1871.
8 VIÑAO, 2004, p. 333-335.
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 131-144, set.-dez. 2007
136 • História da Educação
dologias como aquelas utilizadas, por exemplo, pela micro-história, com redução
da escala de observação e intensiva análise do material documental, permitindo
captar aspectos não visíveis, como as contradições, os interstícios, as fissuras pelas
quais os seres humanos operam no seio de sistemas prescritivos e normativos; a
perspectiva do gênero, ou seja, as diferenças culturais existentes nas representações
sobre e nas práticas de homens e mulheres em determinado contexto histórico.
Tais considerações teóricas, desde a década de 1960, já eram realizadas por
historiadores comprometidos com a revalorização do sujeito na história versus o
imobilismo imposto pelas perspectivas do estruturalismo à la Althusser, que então
alcançava enorme prestígio entre as Ciências Humanas e Sociais. Argumentan-
do que os instrumentos teóricos do marxismo não deveriam ser utilizados como
“camisas de força”, Thompson (1981) defendeu ser necessário recuperar o uso de
um “termo ausente” nas análises supostamente marxistas, a experiência, através do
qual a estrutura pode então ser encarada como um processo, e o sujeito, reinserido
na história, dentro do seu campo de possibilidades sociais e culturais. Isso porque,
segundo ele, a experiência humana é, em última instância, gerada na vida material
e é, de fato, estruturada em termos de classe – pressuposto caro ao marxismo. Po-
rém, ainda que o “ser social” determine a “consciência social” – e, nesse sentido, a
estrutura domine a experiência –, a sua influência é pequena, pois as maneiras pe-
las quais os homens e as mulheres manipulam a sua própria experiência desafiam
qualquer previsão e fogem às estreitas definições de determinação9.
Para o autor britânico, o conceito de experiência é muito útil na medida em
que permite estabelecer um ponto de junção e de flexão com a noção de cultura,
ambos tão rejeitados pelos estruturalistas10. A experiência não é expressa apenas
em termos da posição de um indivíduo em relação ao modo de produção, sendo
também revelada nos sentimentos e na cultura, nas normas sociais, nas obrigações
familiares, nas reciprocidades e nos valores morais. Partindo desse fato, é possível
entender como toda a luta entre as classes existentes em uma sociedade é também
uma luta acerca de valores culturais. Desse modo, Thompson demonstrou como
os homens e as mulheres retornam como sujeitos dentro do termo experiência,
não como indivíduos livres, mas como pessoas que experimentam as situações e
as relações produtivas determinadas como necessidades e constrangimentos, os
interesses como antagonismos, e, em seguida, tratam-na em sua consciência e sua
cultura das mais complexas maneiras, agindo sobre determinada situação nem
sempre através das estruturas de classe11.
9 THOMPSON, 1981.
10 Ibid., p. 194.
11 Em artigo recente, Luciano Mendes Faria Filho (2005, p. 239-25) analisa as contribuições teóricas de Edward Thompson
para a pesquisa em história da educação.
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Professores primários como intelectuais da cidade: um estudo sobre produção escrita • 137
e sociabilidade intelectual (corte imperial, 1860-1889)
12 Sobre os processos de profissionalização docente, consultar Nóvoa (1981) e Catani (2000). Uma discussão sobre
funcionarização e proletarização do trabalho docente no Brasil está presente em Sá (2000).
13 Sobre esta metodologia de trabalho com as fontes, ver o estudo de GASPARELLO; VILLELA (2003), especificamente para
o caso dos professores/autores de escolas secundárias entre 1860-1930.
14 Informação sobre Philippe José Alberto conferida com a pesquisadora Heloísa Villela, que vem estudando os professores/
autores secundários e sua produção de obras pedagógicas na Escola Normal da Província do Rio de Janeiro.
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138 • História da Educação
No que concerne às origens sociais vale notar que alguns deles eram filhos de
pessoas socialmente respeitadas, entre militares e bacharéis – como no caso de Au-
gusto Candido Xavier Cony, nascido em 1842, filho do Primeiro Tenente Diogo
José Cony (natural de Lisboa) e de Dona Firmina Fernanda da Conceição Cony
(natural do Rio de Janeiro), e de Januário dos Santos Sabino, filho do bacharel
Ludgero dos Santos Sabino e sobrinho do clínico Dr. Januário dos Santos Sabino.
Para outros professores, encontramos apenas os dados de naturalidade, não tendo
sido possível mapear a filiação ou as origens sociais e étnicas familiares, como fo-
ram os casos de João da Mata Araújo, Guilhermina Azambuja Neves e Thomázia
Siqueira de Vasconcellos.
No tocante à formação e ao ingresso no ofício, a grande maioria dos educa-
dores escolhidos experimentou o sistema de formação pela prática, no interior das
escolas primárias, tendo servido como adjuntos das escolas públicas entre os anos
de 1860 e 1870 (SCHUELER, 2002). Encaixavam-se, nesse perfil: Antonio Este-
vão da Costa e Cunha, Antonio José Marques, Armando de Araújo Cintra Vidal,
Augusto Candido Xavier Cony, Francisco Alves da Silva Castilho, Luiz Augusto
dos Reis, Januário dos Santos Sabino (pai), Januário dos Santos Sabino (filho),
João Rodrigues da Fonseca Jordão e João José de Povoas Pinheiro. Apenas um deles
havia passado pela Escola Normal, Gustavo José Alberto, na Bahia, e três procede-
ram à continuidade dos estudos, adquirindo formação acadêmica superior, a saber,
Antonio Estevam da Costa e Cunha, formado em Farmácia; Manoel José Pereira
Frazão, formado em Matemáticas e Ciências Naturais pela Academia Militar; e
Joaquim José de Carvalho, doutor em Medicina.
A atuação em escolas e colégios particulares, como professores, diretores e/ou
proprietários, também não apareceu como fato incomum nas trajetórias analisadas.
Assim, dez professores exerceram o magistério particular: Augusto Candido Xavier
Cony, Francisco Alves da Silva Castilho, Guilhermina de Azambuja Neves, Gusta-
vo José Alberto, Luiz Augusto dos Reis, João Rodrigues da Fonseca Jordão, Manoel
José Pereira Frazão, Maria Guilhermina Loureiro de Andrade, Rosalina Pereira Fra-
zão e Thomázia de Siqueira Barros e Vasconcellos. Dentre esses, alguns desempe-
nharam a função de diretores e proprietários de escolas, como João Rodrigues da
Fonseca Jordão, casado com a professora pública e particular Angélica de Athayde
Jordão, proprietários de escolas na Lagoa e em Botafogo; Guilhermina de Azam-
buja Neves, proprietária do Colégio Azambuja Neves, no Engenho Velho; Joaquim
José de Carvalho, proprietário do Colégio Amorim Carvalho; Maria Guilhermina
Loureiro de Andrade, proprietária de colégio de meninas no centro da cidade e no
Catete15; Rosalina Pereira Frazão, casada com o professor Manoel José Pereira Fra-
zão, proprietária de escola de meninas na Lagoa; e Thomázia de Siqueira Vascon-
cellos, casada com o professor Philippe de Barros e Vasconcellos, proprietária de
15 A trajetória da professora Maria Guilhermina de Andrade foi recentemente investigada pela historiadora Carla Chamon, em
tese de doutoramento (2006).
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Professores primários como intelectuais da cidade: um estudo sobre produção escrita • 139
e sociabilidade intelectual (corte imperial, 1860-1889)
16 Sobre a participação política dos professores e o movimento associativo da categoria, ver, por exemplo: Manifesto dos
Professores da Instrução Pública Primária de 1871, analisado por Lemos (2006), e, ainda, Schueler (2002, 2005).
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Professores primários como intelectuais da cidade: um estudo sobre produção escrita • 141
e sociabilidade intelectual (corte imperial, 1860-1889)
17 O projeto de pesquisa em andamento junto ao Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação (UERJ) intitula-se
Professores primários como intelectuais na Corte imperial: experiências profissionais, produção escrita e grupos de sociabilidades
(1860-1889).
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 131-144, set.-dez. 2007
142 • História da Educação
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LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio,
2003.
Resumo Abstract
A história constitucional do Brasil tem sido The constitutional history of Brazil has
importante fonte de estudos e pesquisas para os been important source of studies and research
profissionais da educação, sobretudo acerca dos for the professionals of the education. To un-
conflitos entre os defensores do público e do pri- derstand part of the educational organization in
vado. Os embates entre os católicos e liberais, os Brazil does without a intent reading on the legis-
positivistas e os católicos deste o início do século lation education. In the twilight of the Empire,
XX expressavam essa disputa. No crepúsculo do what it mattered was to legalize the freedoms of
Império, o que importava era legalizar as liber- the individuals, considered values more sacred
dades dos indivíduos, valores considerados os of the time. Emphasizing the Letter of 1891, we
mais sagrados da época. Enfatizando a Carta de objectify to argue the relations and the conflicts
1891, objetivamos discutir as relações e os con- between the public and the private one in the
flitos entre o público e o privado. Brazilian education, at the beginning of the Re-
public.
Introdução
2 Sobre o tema ver ALMEIDA (1989), AZEVEDO (1943), HAIDAR (1972), NAGLE (1976), REIS FILHO (1995),
ALVES (2003), LOMBARDI (2005), WATANABE MINTO (2006).
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 145-153, set.-dez. 2007
Educação e sociedade: o público e o privado na constituição de 1891 • 147
A unidade nacional deveria ser assegurada por uma ação pedagógica, dirigida
pelo Estado Nacional8 e concretizada pela escola. A grande tarefa da constituição
republicana de 1891 foi estabelecer as bases jurídicas à unificação do país, em
direção à harmonia social, ideal tão caro aos positivistas.
Considerações finais
Vimos que a ordenação jurídica de um país consiste na fixação daqueles prin-
cípios mais hegemônicos de um determinado momento histórico. A Constitui-
ção Republicana de 1891 inspirou-se nos ideais da “Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão”. Tornou legal o Estado laico, que passou a implementar
uma política messiânica de liberalização total do país, em correspondência com as
transformações sociais no mundo.
A República nasceu amparada nos ideais de progresso, da democracia e do
pensamento nacional-desenvolvimentista. Foi ela resultante das mudanças ma-
teriais ocorridas no final do Império em torno do progresso, fundamentada no
ideário liberal de sociedade de educação.
A Carta de 1891 foi a celebração máxima das liberdades individuais e da de-
mocracia, instituindo uma pedagogia sintonizada com a lógica da economia livre.
O que importava nesse momento era legalizar os direitos e as liberdades individu-
ais, valores considerados os mais sagrados da época. O acesso à educação formal
estava subordinado aos princípios liberais, não ocupando uma função obrigatória.
Essa pedagogia sinalizava que o saber era determinado pela capacidade, interesse e
virtude de cada indivíduo.
O embate entre o público e o privado expressa os interesses econômicos, que,
no Brasil, desde suas raízes históricas, se caracterizam pela apropriação do público
através das forças do privado. Dessa forma, assistimos expansão cada vez maior
8 Ibid., p. 101.
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 145-153, set.-dez. 2007
152 • História da Educação
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1 Mestranda GPMSE
2 Artigo “As mulheres que fazem os movimentos sociais” in www.uol.com.br/folha/dimenstein/comunidade de 08/03/2005,
Acessado em 01/06/2007.
Aponta que também aqui, em Mato Grosso, como em toda a história brasi-
leira, a mulher sofre um processo de desvalorização, mas não se rende a ele e en-
contra na organização, nas lutas feministas, no movimento social e religioso forças
para conquistar sua emancipação e assim exercer sua cidadania política. Sempre
mesclando debates acadêmico-científicos de autores de renome e depoimentos das
próprias mulheres envolvidas nas lutas sociais, vai-nos mostrando que, mesmo
sem conhecer uma teoria que as fundamente, adquirem consciência e entendem
que o processo de conquista de um bem para a comunidade é tenso e, por vezes,
lento, no qual, além de reconhecerem que em determinados momentos devem
fazer concessões e em outros devem recrudescer a luta.
Coletivamente, afirma, o grupo vai descobrindo, através da práxis, que a histó-
ria se desenvolve numa tensão e lutas constantes. Assim, em seu segundo capítulo,
traz os avanços e as contradições da prática educativa do movimento camponês,
destacando o trabalho de Juína, seu campo de pesquisa. Um grupo que, segundo
Riscarolli, no seu processo de desenvolvimento, passa por etapas de amadureci-
mento. Ademais, aponta características que dão condições e possibilitam a apren-
dizagem, que, de acordo com ele, se desenvolve em dois momentos: no primeiro,
os componentes do grupo internalizam a fala e a postura das lideranças – entrada
no grupo –; no segundo, há um despertar e a compreensão do caráter educativo
que o movimento proporciona. Seria, conforme o autor, a passagem da consciência
ingênua para uma consciência da práxis. É importante lembrar, no entanto, que o
lugar historicamente ocupado pela mulher é/foi culturalmente construído e que,
portanto, não é apenas através de cursos que se dará a formação e o aprendizado de
novas relações de gênero, seja nos sindicatos, nas pastorais, seja nas comunidades
eclesiais de base. Os depoimentos de mulheres envolvidas nesses grupos apontam
para a contribuição das mediações e ferramentas para sua formação pessoal e de
sua consciência, bem como na produção coletiva de novos valores. Nos capítulos
que se seguem, situa Juína na história de Mato Grosso e do Brasil, destacando
que a região passou pela exploração da agricultura, do garimpo e da madeira, sua
principal fonte de renda econômica. Destacam os diversos movimentos e grupos
organizados que lá atuam seus fluxos e refluxos diante das dificuldades enfrentadas
(financeiras, políticas, religiosas etc.) e, a inserção das mulheres nesse processo,
não deixando de ressaltar, no quarto capítulo, as representações delas próprias a
esse respeito: sua tríplice jornada de trabalho casa/roça/movimento; casa/escola/
movimento, que geralmente se inicia por volta de quatro/cinco da manhã e se es-
tende até às 21/22 horas. O destaque vai para os depoimentos daquelas que apon-
tam suas lutas dentro e fora de casa, da família e no próprio movimento, deixando
claro que, muito além dos cursos de que participam e dos espaços proporcionados
pelos movimentos sociais políticos e/ou religiosos, existe um desejo de mudança
que lhes é anterior e diz respeito a cada uma. Talvez se possa dizer que a mudança
mais significativa para a sociedade é aquela que começa com a construção do sujei-
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 157-159, set.-dez. 2007
RISCAROLLI, E. Educação, liderança e consciência política de mulheres camponesas. Cuiabá: PPGE/ UFMT, 1988. 148 p. • 159
to que, na relação com o(a) outro(a), constrói uma coletividade. Eliseu Riscarolli
encaminha-nos, dessa forma, para uma discussão sobre um projeto de sociedade
no qual a mulher, com sua entrada nas lutas políticas, nos movimentos, confere
uma nova concepção de como enfrentar as adversidades do mundo do trabalho,
abrindo novos espaços para a prática política. O autor então se pergunta: mudou
a sociedade ou mudaram as mulheres? E responde: o mais sensato é que ambas
mudaram, ainda que algumas transformações não tenham sido percebidas com
toda a profundidade. As próprias mulheres falam:
A contribuição da mulher para esse projeto de sociedade que os/as trabalha-
dores/as sonham vai além das necessidades materiais, ela faz uma revolução
com o coração para a mudança de comportamento. Não pregamos a aver-
são pelo trabalho doméstico, a nossa luta é pela valorização do trabalho seja
ele qual for (Márcia).
[...] para contribuir com um novo projeto de sociedade a mulher tem que
‘sair de casa’. Precisamos estar na luta dos explorados contra os explorado-
res, pois a dominação pode ser tanto masculina quanto feminina (Olinda).
Carlos Maldonado2
A visão política de Einstein (1932, p. 68) é marcada por uma profunda crença
na centralidade do indivíduo e numa idéia de Estado como artefato humano e
serviço: “O Estado é para os homens e não os homens para o Estado. Pode-
se dizer o mesmo em relação à ciência”. Essa importância central do indivíduo
nasce, entretanto, de um substrato de idealismo moral que, aplicando a si próprio,
projeta também ao conjunto da humanidade. É forte a idéia da responsabilidade
1 http://maldonado.squarespace.com/mi-visin-del-mundo-resenha-com
2 [email protected]
do indivíduo para com a comunidade. Ela aparece como uma imanência da própria
justificação da vida e do seu valor. A sua defesa da individualidade é, assim, a de
uma individualidade transcendente, capaz de doar-se ao coletivo, de abdicar-se de
si mesma, sendo, concomitantemente, estóica, solidária e ermitã.
Há em Einstein um arraigado otimismo em relação à espécie e uma fé muito
acentuada na força de valores universais e comuns à humanidade. Essa crença
faz dele um defensor da idéia de uma sólida estrutura planetária de poder e de
processos conducentes à governança global. É ainda possível o entendimento de
que essa centralidade individual não nega a condição histórica do ser, colocando-o,
porém, como objeto das forças específicas e incontroláveis do seu tempo e das
circunstâncias psíquicas que o individuam: “Não creio, em absoluto, na liberdade
do homem em um sentido filosófico. Atuamos sob pressões externas e por
necessidades internas” (1930, p. 11).
Identifica nessa paradoxal situação nossa tragicômica condição ôntica,
receitando para a sua superação a leveza, entendida como a redução do peso da
responsabilidade: “não me tomar muito a sério, nem a mim mesmo, nem aos
demais. Assim, vejo a vida com humor” (1930, p. 11).
Se em Sartre a liberdade é a angústia que nasce do exercício da responsabilidade
de cada decisão, em Einstein o indivíduo se liberta por uma difusa ética comunitária,
em que a transcendência sufoca a angústia. Se em Sartre o preço da liberdade
é tornar-se infeliz, em Einstein o preço do humor é a abdicação da liberdade,
deixando intuir um sentimento de terna tolerância, desesperança e compaixão em
relação aos indivíduos.
Soa também como um aparente paradoxo a convivência de idéias tão díspares,
como a absolutização da individualidade e a defesa de um poder mundial central e
concentrado. Essa contradição pode ser eliminada, se entendermos que o governo
mundial defendido por Einstein é uma expressão ampliada da sua ética comunitária
de justificação individual, que levaria a uma espécie de poder transcendente,
certamente imune às paixões; um poder que pode ser entendido como tradução
fiel do exercício da razão e do bom-senso na defesa do interesse comum da
espécie humana. Um poder que assumiria para si o peso da irresponsabilidade
dos homens.
Como um contraponto necessário, é importante assinalarmos a clareza das
leituras que Einstein fazia sobre a hierarquia dos interesses daqueles que estavam
nas posições de poder e dos valores que orientavam suas ações.
Sobre a educação, é um crítico pertinaz de todos os modelos assentados em
qualquer tipo de instrumentalização (política, ideológica ou religiosa, entre outros);
do acento na formação de especialistas; e da prática pedagógica proclamatória. O
seu modelo ideal funde-se com a sua visão axiológica da vida, assentada nos ideais
da bondade, beleza e verdade (p. 12):
Não é suficiente ensinar aos homens uma especialidade. Com isso se con-
vertem em algo como máquinas utilizáveis, porém não em indivíduos
válidos. Para ser um indivíduo válido o homem deve sentir intensamente
aquilo a que pode aspirar. Tem que receber um sentimento vivo do belo e
do que é moralmente bom [...] Em caso contrário se parecerá mais a um ca-
chorro bem amestrado que a um ente harmonicamente desenvolvido. Deve
aprender a compreender as motivações, os sonhos e as penas das pessoas
para adquirir uma atitude reta a respeito dos indivíduos e da sociedade [...]
(1952, p. 29).
b) Ciência e religião
“Acredito no Deus de Spinoza, que se revela por si mesmo na harmonia de
tudo o que existe, e não no Deus que se interessa pela sorte e pelas ações dos
homens”.
Refletindo sobre as possíveis origens do pensamento e da experiência religiosa
(p. 20-24), propõe duas bases fundadoras: o medo e a moral. Na primeira, que
reputa germinal, entende que a compreensão das conexões causais tende a ser
E advogava, mais uma vez, que “só a dissolução dos métodos de pura violência
através de um ordenamento jurídico supranacional pode salvar a humanidade”.
Sobre a ciência e os seus métodos faz uma lúcida e clara digressão (p. 136 a
142), mediante a discussão epistemológica sobre as formas do conhecer. Propõe
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 161-165, set.-dez. 2007
EINSTEIN, Albert. Mi Vision del Mundo. 6. ed. Barcelona: Tusquets, 2006. 233p. • 165
inicialmente dois postulados: a) “As leis encontradas mediante o uso da lógica não
possuem nenhum conteúdo acerca do real”; e b) “Todo o saber da realidade nasce
da experiência e desemboca nela”. A seguir, pergunta: “Se a experiência inicia,
descreve e propõe uma síntese da realidade, qual é o papel da razão na ciência?”.
Passa, então, a defender seu entendimento (localizando-o, porém, no espaço da
física teórica):
Conclui: “De algum modo creio que é certo que através do pensamento se
pode compreender a realidade, tal como sonharam os antigos”. Clarifica-se dessa
forma a base da sua inabalável fé na causalidade. E é essa fé que o motiva a
prognosticar “um significado efêmero” para a teoria quântica: “Ainda creio na
possibilidade de um modelo da realidade, isto é, em uma teoria que descreva as
coisas em si e não só a possibilidade da sua aparição”.
Finalmente, alguns textos (p. 142-150 e 159-164, além de várias outras
menções), tratam da teoria da relatividade em um esforço de popularizá-la. A
sensação ao final da leitura é a de uma convivência leve e bem-humorada com um
homem imerso no seu tempo. Um homem com uma profunda fé na capacidade da
razão e dos seus instrumentos e que, talvez por isso mesmo, tenha absoluta clareza
em relação à incompletude do nosso saber e uma temerária certeza esperançosa
sobre a nossa capacidade de descortinar a verdade, mesmo que jamais a possamos
experimentar.
Se considerarmos a agudez inaudita das profusas paixões do seu tempo, será
impossível não reconhecer em Einstein uma genialidade absoluta: a do bom
senso.
Continua...
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 171-174, set.-dez. 2007
172 • Informes da pós-graduação e da pesquisa
Continua...
Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 171-174, set.-dez. 2007
Relação de defesas realizadas no PPGE no período letivo de 2007/1 • 173
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Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 16, n. 32, p. 171-174, set.-dez. 2007
174 • Informes da pós-graduação e da pesquisa
“A escravidão contemporânea
Prof. Dr. Danilo Romeu Streck
em um canavial mato-grossense
(UNISINOS)
e a Educação como prática
Adriano da Profª Dra. Maria Lúcia Cavalli
da liberdade: condições de 22/06/2007
Silva Félix Neder (UFMT)
possibilidades para as práxis de
Prof. Dr. Luiz Augusto Passos
um movimento abolicionista do
(presidente)
século XXI, em Mato Grosso”
Heloísa Szymanski
PUCSP
Mariluce Bittar
UCDB
Marlene Ribeiro
UFRGS
Pedro Ganzeli
UNICAMP
1 LIVRO:
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1974, 150 p. (Série Ecumenismo e Humanismo).
2 EVENTO:
OLIVEIRA, G.M.S. Desenvolvimento cognitivo de adultos em educação a
distância. In: Seminário Educação 2003. Anais... Cuiabá: UNEMAT
editora, 2003. p. 22-24.
178 • NORMAS PARA PUBLICAÇÃO DE ORIGINAIS
3 ARTIGO EM PERIÓDICO:
GADOTTI, M. A eco-pedagogia como pedagogia apropriada ao processo da
Carta da Terra. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 12, n. 21, p. 11-24,
jan.jun. 2003.
NICANOR PALHARES SÁ
Editor da REVISTA DE EDUCAÇÃO PÚBLICA
Instituto de Educação - Universidade Federal de Mato Grosso
Av. Fernando Corrêa da Costa, s/nº - Coxipó
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