A partilha do sensível

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EXO experimental org.

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Copyright© EXO experimental org./Fdirora .'14Ltda. (edição brasileira), 2005


Le partage du sensihle © La Fabrique L~ditions,2000 A partilha do sensível
Esta edição foi realizada com o apoio do Ministério das Relações Exteriores da França
Cette édition ri eti' réalis(e avcc l,zppui du Ministere des Afjiúres !1trrmgeresde Frrmre

A fotoc6pia de qualquer folha deste livro é ilegal e configura uma


apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.
Nota da tradução ................................................ .
Edição conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Prólogo .............................................................. .
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:
Brrtcher dr Malta Produção Grt!fira
1. Da partilha do sensível e das relações
que estabelece entre política e estética ..........
Revisão:
Ricardo l.ísias, Alherto Martins 2. Dos regimes da arte e do pouco interesse
da noção de modernidade ........................... .
l ·• Ediçâo - 2005, 2° Edição • 2009
3. Das artes mecânicas e da promoção estética
CIP· Brasil. Catalogação-na-Fonte
e científica dos anônimos ............................ .
(Sindicato Nacional cios Ecliwrcs de Livros, RJ, Brasil)
RanciCn:, JacqttL'S
4. Se é preciso concluir que a história é ficção.
Rl )2p A partilha do ~cnsível:cstttic.i e política/ Dos modos da ficção .................................. .
J.icques Rancihe; traduyão de Mónica Costa Nctto. -
São Paulo: EXO experimental org.; Ed .. l4, 2005. 5. Da arte e do trabalho. Em quê as práticas
72 p.
'1 da arte constituem e não constituem
ISBN 85-7326-321-0
uma exceção às outras práticas ................... ..
Tradução de: Le partage du sensible

1. Filosofia francesa contemporânea.


2. EsLética. 3. PoHtica. I. Tüulo. Sobre o autor ....................................................... .
CDD- 194
Nota da tradução

i !

O conceito de "partilha do sensível" [partagedu sensible]apa-


rece uma primeira vez para o público brasileiro muito bem expli-
citado no Prefácio de Jacques Ranciere ao seu livro Políticasda es-
critrl, publicado pela Editora 34 em 1995, na Coleção Trans, diri-
gida por Éric Alliez. Nesse livro - que aliás consiste numa coletâ-
nea de textos inédita na França e, portanto, numa raridade brasileira
na bibliografia do autor - podemos ler:

"Pelo termo de constituição estética deve-se en-


tender aqui a partilhrl do sensívelque dá forma à comu-
nidade. Prlrtilhasignifica duas coisas: a participação em
um conjunto comum e, inversamente, a separação, a
distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível é,
ponanto, o modo como se determina no sensível a rela-
ção entre um conjunto comum partilhado e a divisão de
partes exclusivas." (Políticasda escrita,p. 7, grifo nosso)

Mas na tradução do livro O desentendimento:política efiloso-


fia (Editora 34, 1996), uma nova opção foi feita e o conceito rea-
parece como "divisão do sensível". Uma vez que o texto de A parti-
lhrl do sensívelremete explicitamente às análises desenvolvidas nes-
te último livro, estimamos indispensável alertar para este fato a fim
de não comprometer a referência. Quanto à nossa escolha de rea-
firmar a tradução inicial, além de apoiar-se na preferência do autor,
parece-nos satisfatoriamente justificada pela citação acima.
1
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'1

A partilha do sensível
Estética e política
Prólogo

As páginas a seguir respondem a uma dupla solici-


tação. Em sua origem encontram-se as questões coloca-
das por dois jovens filósofos, Muriel Combes e Bernard
Aspe, para a revista Alice, mais precisamente para a seção
"A fábrica do sensível" - seção esta voltada para os.atos
estéticos como configurações da experiência, que ense-
jam novos modos do sentir e induzem novas formas da
subjetividade política. Nesse contexto, questionaram-me
sobre as consequênCÍas das análises dedicadas em meu li-
vro O desentendimento à "partilha do sensível" enquan-
to cerne da política, e portanto a uma certa estética da
política. Suas questões, também suscitadas por uma nova
reflexão sobre as grandes teorias e experiências vanguar-
distas de fusão da arte com a vida, comandam a estrutura
do texto que se vai ler. Minhas respostas foram desenvol-
vidas e suas pressuposições, tanto quanto possível, expli-
citadas, a pedido de Eric Hazan e Stéphanie Grégoire.
Toda via, essa solicitação particular se inscreve em
um contexto mais geral. A multiplicação dos discursos
denunciando a crise da arte ou sua captação fatal pelo
discurso, a generalização do espetáculo ou a morte da

11
imagem são indicações suficientes de que, hoje em dia, to dos desastres da arte ou da imagem trocam em prosa
é no terreno estético que prossegue uma batalha ontem mais medíocre essa reviravolta de princípio.
centrada nas promessas da emancipação e nas ilusões e Essa conhecida paisagem do pensamento contem-
desilusões da história. Talvez a trajetória do discurso si- porâneo define o contexto em que aqui se inscrevem es-
tuacionista - saído de um movimento artístico de van- tas questões e respostas, mas não o objetivo delas. Não
guarda do pós-guerra, vindo a ser nos anos 1960 crítica se trata de reivindicar, mais uma vez, contra o desencan-
radical da política e, hoje, absorvido no comum do dis- tamento pós-moderno, a vocação vanguardista da arte
curso desencantado que compõe o avesso "crítico" da ou o elã de uma modernidade vinculando as conquistas
ordem existente - seja sintomática das idas e vindas da novidade artística às da emancipação. Estas páginas
contemporâneas da estética e da política, e das transfor- não foram motivadas pela preocupação com uma inter-
mações do pensamento vanguardista em pensamento venção polêmica. Elas se inscrevem num trabalho de lon-
nostálgico. Mas são os textos de Jean-François Lyotard go prazo que visa restabelecer as condições de inteligibi-
que melhor assinalam a forma como a "estética" pôde lidade de um debate. lsto é, em primeiro lugar, elaborar
tornar-se, nos últimos vinte anos, o lugar privilegiado o sentido mesmo do que é designado pelo termo estéti-
em que a tradição do pensamento crítico se metamorfo- ca: não a teoria da arte em geral ou uma teoria da arte
seou em pensamento do luto. A reinterpretação da aná- que remeteria a seus efeitos sobre a sensibilidade, mas
lise kantiana do sublime transpunha para a arte o con- um regime específico de identificação e pensamento das
ceito que Kant havia situado além da arte, para com isso artes: um modo de articulação entre maneiras de fazer,
melhor fazer da arte um testemunho do encontro com formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos
o irrepresentável que desconcerta todo pensamento - e, de pensabilidade de suas relações, implicando uma deter-
a partir daí, um testemunho contra a arrogância da gran- minada ideia da efetividade do pensamento. Definir as
de tentativa estético-política do devir-mundo do pensa- articulações desse regime estético das artes, os possíveis
mento. Assim, o pensamento da arte tornava-se o lugar que elas determinam e seus modos de transformação,
onde se prolongava, após a proclamação do fim das uto- este é o objetivo atual da minha pesquisa e de um semi-
pias políticas, uma dramaturgia do abismo originário do nário mantido há alguns anos na Universidade de Paris
pensamento e do desastre de seu não reconhecimento. VIII e no Colégio Internacional de Filosofia. Não se en-
Muitas das contribuições contemporâneas ao pensamen- contrará aqui o resultado dessa pesquisa, cuja elaboração

12 13
segue seu ritmo próprio. Em compensação, procurei assi- 1.
nalar alguns marcos, históricos e conceituais, apropriados Da partilha do sensível
à reformulação de certos problemas que são irremedia- e das relações que estabelece
velmente confundidos por noções que fazem passar por entre política e estética
determinações históricas o que são a priori conceituais e
por determinações conceituais, recortes temporais. Den-
tre essas noções figura certamente, em primeiro lugar, a
de modernidade, hoje denominador comum de todos os
discursos disparatados que põem no mesmo saco Hol-
derlin ou Cézanne, Mallarmé, Malevitch ou Duchamp, Em O desentendimento, 1 a política é questionada a
arrastando-os para o grande turbilhão em que se mes- partir do que o senhor chama "partilha do sensível': Nesta
clam a ciência cartesiana e o parricídio revolucionário, a expressãoestaria, no seu modo de ver, a chave da junção ne-
era das massas e o irracionalismo romântico, a proibição cessdria entre prdticas estéticas e prdticas políticas?
da representação e as técnicas da reprodução mecaniza-
da, o sublime kantiano e a cena primitiva freudiana, a Denomino partilha do sensível o sistema de evidên-
fuga dos deuses e o extermínio dos judeus da Europa. In- cias sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência
dicar a pouca consistência dessas noções evidentemente de um comum e dos recortes que nele definem lugares e
não implica uma adesão aos discursos contemporâneos partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portan-
de retorno à simples realidade das práticas da arte e de to, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes ex-
seus critérios de apreciação. A conexão dessas "simples clusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se fun-
práticas" com modos de discurso, formas de vida, ideias da numa partilha de espaços, tempos e tipos de ativida-
do pensamento e figuras da comunidade não é fruto de 4e que determina propriamente a maneira como um co-
nenhum desvio maléfico. Em compensação, o esforço mum se presta à participação e como uns e outros tomam
para pensá-la implica abandonar a pobre dramaturgia do parte nessa partilha. O cidadão, diz Aristóteles, é quem
fim e do retorno, que não cessa de ocupar o terreno da
arte, da política e de todo objeto de pensamento. 1 JacquesRanciere, O desentendimento: política e filosofia, tradução
de Ângela Leite Lopes, São Paulo, Editora 34, 1996, Coleção Trans.

14 15
toma parte no fato de governar e ser governado. Mas uma política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer so-
outra forma de partilha precede esse tomar parte: aque- bre o que é visto, de quem tem competência para ver e
la que determina os que tomam parte. O animal falan- qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos
te, diz Aristóteles, é um animal político. Mas o escravo, possíveis do tempo.
se compreende a linguagem, não a "possui". Os artesãos, É a partir dessa estética primeira que se pode colo-
diz Platão, não podem participar das coisas comuns por- car a questão das "práticas estéticas", no sentido em que
que eles não têm tempo para se dedicar a outra coisa que entendemos, isto é, como formas de visibilidade das prá-
não seja o seu trabalho. Eles não podem estar em outro ticas da arte, do lugar que ocupam, do que "fazem" no
lugar porque o trabalho não espera. A partilha do sensí- que diz respeito ao comum. As práticas artísticas são "ma-
vel faz ver quem pode tomar parte no comum em fun- neiras de fazer" que intervêm na distribuição geral das
ção daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser
a.tividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela "ocupação" e formas de visibilidade. Antes de se fundar no conteú-
define competências ou incompetências para o comum. do imoral das fábulas, a proscrição platônica dos poetas
Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, funda-se na impossibilidade de se fazer duas coisas ao
dotado de uma palavra comum etc. Existe portanto, na mesmo tempo. A questão da ficção é, antes de tudo, uma
base da política, uma "estética" que não tem nada a ver questão de distribuição dos lugares. Do ponto de vista
com a "estetização da política" própria à "era das mas- platônico, a cena do teatro, que é simultaneamente es-
sas", de que fala Benjamin. Essa estética não deve ser en- paço de uma atividade pública e lugar de exibição dos
tendida no sentido de uma captura perversa da política "fantasmas", embaralha a partilha das identidades, ativi-
por uma vontade de arte, pelo pensamento do povo co- dades e espaços. O mesmo ocorre com a escrita: circulan- ,
mo obra de arte. Insistindo na analogia, pode-se enten- do por toda parte, sem saber a quem deve ou não falar,
dê-la num sentido kantiano - eventualmente revisitado a escrita destrói todo fundamento legítimo da circulação
por Foucault - como o sistema das formas a priori de- da palavra, da relação entre os efeitos da palavra e as po-
terminando o que se dá a sentir. É um recorte dos tem- sições dos corpos no espaço comum. Platão destaca dois
pos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e grandes modelos, duas grandes formas de existência e de
do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que efetividade sensível da palavra: o teatro e a escrita - que
está em jogo na política como forma de experiência. A virão a ser também formas de estruturação para o regi-

16 17
me das artes em geral. Ora, tais formas revelam-se de o modo como as formas artísticas refletem estruturas ou
saída comprometidas com um certo regime da política, movimentos sociais. Quando são publicados, Madame
um regime de indeterminação das identidades,' d~- des- Bovary ou A educação sentimental são imediatamente
legitimação das posições de palavra, de desregulação das percebidos como "a democracia em literatura", apesar da
partilhas do espaço e do tempo. Esse regime estético da postura aristocrática e do conformismo político de Flau-
política é propriamente a democracia, o regime das as- bert. Até mesmo sua recusa em confiar à literatura uma
sembleias de artesãos, das leis escritas intangíveis e da ins- mensagem é considerada ~orno um testemunho da igual-
tituição teatral. Ao teatro e à escrita, Platão opõe uma dade democrática. Ele é democrata, dizem seus adversá-
terceira forma, uma boa forma de arte, a forma coreogrd- rios, na sua opção por pintar em vez de instruir. Essa
fica da comunidade que dança e canta sua própria uni- igualdade de indiferença é consequência de uma opção
2
dade. Em suma, Platão destaca três maneiras a partir das poética: a igualdade de todos os temas, é a negação de
quais práticas da palavra e do corpo propõem figuras de toda relação de necessidade entre uma forma e um con-
comunidade. Identifica a superfície dos signos mudos: teúdo determinados. Mas esta indiferença, o que é ela
superfície dos signos que são, diz ele, como pinturas. E afinal senão a igualdade de tudo que advém numa pági-
o espaço do movimento dos corpos, que se divide por na escrita, disponível para qualquer olhar? Essa igualda-
sua vez em dois modelos antagônicos. De um lado, há o de destrói todas as hierarquias da representação e insti-
movimento dos simulacros da cena, oferecido às identi- tui a comunidade dos leitores como comunidade sem le-
ficações do público. De outro, o movimento autêntico, gitimidade, comunidade desenhada tão somente pela cir-
o movimento próprio dos corpos comunitários. culação aleatória da letra.
A superfície dos signos "pintados", o desdobramen-
to do teatro, o ritmo do coro dançante: três formas de 2 No original, "l'egalité de tous les sujeis'', expressão que encerra du-
partilha do sensível estruturando a maneira pela qual as plicidade de sentido intraduzível, pelo fato do termo "sujei' (sujeito) em
artes podem ser percebidas e pensadas como artes e co- francês também significar, segundo o contexto, "tema" ou "objeto", no sen-
tido daquilo de que se trata. No que diz respeito à relação entre estética e
mo formas de inscrição do sentido da comunidade. Es-
política, a ambiguidade parece tornar-se relevante, já que para Ranciere "a
sas formas definem a maneira como obras ou performan- política é assunto de sujeitos, ou melhor, de modos de subjetivação" e ela
ces "fazem política", quaisquer que sejam as intenções "só existe mediante a efetuação da igualdade de qualquer pessoa com qual-
que as regem, os tipos de inserção social dos artistas ou q~~~-pessoa" (cf. O desentendimento, op. cit., pp. 47 e 71). (N. da T.)

18 19
Uma politicidade sensível é assim, de saída, atribuí- inspirou uma nova ideia da superfície pictural como su-
da às grandes formas de partilha estética como o teatro, perfície de escrita comum.
a página ou o coro. Essas "políticas" seguem sua lógica O discurso modernista apresenta a revolução pictu-
própria e repropõem seus serviços em épocas e contex- ral abstrata como a descoberta pela pintura de seu "me-
tos muito diferentes. Pensemos na maneira como esses dium" próprio: a superfície bidimensional. A revogação
paradigmas funcionaram no nó arte/política no final do da ilusão perspectivista da terceira dimensão devolveria
século XIX e início do século XX. Pensemos, por exem- à pintura o domínio da sua superfície própria. Mas pre-
plo, no papel assumido pelo paradigma da página sob cisamente essa superfície não tem nada de "própria".
suas diferentes formas, que excedem a materialidade da Uma "superfície" não é simplesmente uma composição
folha escrita: temos a democracia romanesca, a democra- geométrica de linhas. É uma forma de partilha do sensí-
cia indiferente da escrita, simbolizada pelo romance e seu vel. Escrita e pintura eram para Platão superfícies equi-
público. Mas temos também a cultura tipográfica e ico- valentes de signos mudos, privados do sopro que anima
nográfica, esse entrelaçamento dos poderes da letra e da e transporta a palavra viva. O plano, 3 nessa lógica, não
i1!1agem,que exerceu um papel tão importante no Re- se opõe ao profundo, no sentido do tridimensional. Ele
nascimento e que vinhetas, fundos de lâmpada e inova- se opõe ao "vivo". É ao ato de palavra "vivo", conduzido
ções diversas da tipografia romântica ressuscitaram. Esse pelo locutor ao seu destinatário adequado, que se opõe
modelo embaralha as regras de correspondência à distân- a superfície muda dos signos pintados. E a adoção da
cia entre o dizível e o visível, próprias à lógica represen- terceira dimensão pela pintura foi também uma respos-
tativa. Embaralha também a partilha entre as obras da ta a essa partilha. A reprodução da profundidade óptica
arte pura e as decorações da arte aplicada. É por iss~ que foi relacionada ao privilégio da história. Participou, no
teve um papel tão importante - e geralmente subesti- Renascimento, da valorização da pintura, da afirmação
mado - na transformação radical do paradigma repre- de sua capacidade de captar um ato de palavra vivo, o
sentativo e nas suas implicações políticas. Penso prin- ~ornemo decisivo de uma ação e de uma significação. A
cipalmente em seu papel no movimento Arts and Crafts poética clássica da representação quis, contra o rebaixa-
e todos seus derivados (Art Déco, Bauhaus, construtivis- mento platônico da mímesis, dotar o "plano" da palavra
mo) em que se definiu uma ideia do mobiliário - no
sentido amplo - da nova comunidade, que também 3 No original, "!eplat''. (N. da T.)

20 21
ou do "quadro" de uma vida, de uma profundidade es- política. Não é a febre revolucionária ambiente que faz
pecífica, como manifestação de uma ação, expressão de d~ Malevitch ao mesmo tempo o autor do Quadradopre-
uma interioridade ou transmissão de um significado. Ela to sobrefundo brancoe o arauto revolucionário das "no-
instaurou entre palavra e pintura, entre dizível e visível vas formas de vida". E não é um ideal teatral do novo ho-
uma relação de correspondência à distância, dando à mem que sela a aliança momentânea entre políticas e ar-
"imitação" seu espaço específico. •
tistas revolucionários. É, antes, na interface criada entre
É esta relação que está em questão na pretensa dis- "suportes" diferentes, nos laços tecidos entre o poema e
tinção do bidimensional e do tridimensional como "pró- sua tipografia ou ilustração, entre o teatro e seus decora-
prios" a esta ou aquela arte. É na superfície plana da pá- dores ou grafistas, entre o objeto decorativo e o poema,
gina, na mudança de função das "imagens" da literatura que se forma essa "novidade" que vai ligar o artista, que
ou na mudança do discurso sobre o quadro, mas tam- abole a figuração, ao revolucionário, inventor da vida
bém nos entrelaces da tipografia, do cartaz e das artes de- nova. Essa interface é política porque revoga a dupla po-
corativas, que se prepara uma boa parte da "revolução Ú~icainerente à lógica representativa. Esta, por um lado,
antirrepresentativa" da pintura. Esta pintura, tão mal de-
separava o mundo das imitações da arte do mundo dos
nominada abstrata e pretensamente reconduzida a seu interesses vitais e das grandezas político-sociais. Por ou-
medium próprio, é parte integrante de uma visão de con- tro, sua organização hierárquica - e particularmente o
junto de um novo homem, habitante de novos edifícios primado da palavra/ação viva sobre a imagem pintada-
cercado de objetos diferentes. Sua planaridade4 tem li-' era análoga à ordem político-social. Com a vitória da
gação com a da página, do cartaz ou da tapeçaria - é página romanesca sobre a cena teatral, o entrelaçamen-
uma interface. E sua "pureza" antirrepresentativa inscre- to igualitário das imagens e dos signos na superfície pic-
ve-se num contexto de entrelaçamento da arte pt1r:1eda tural ou tipográfica, a promoção da arte dos artesãos à
arte aplicada, que lhe confere de saída uma significação grande arte e a pretensão nova de inserir arte no cenário
de cada vida em particular, trata-se de todo um recone
4N •• 1, "!.
o ongma e , que em f'rances não designa apenas a su-
• d,"
p atztu A ordenado da experiência sensível que cai por terra.
perfície bidimensional, mas remete também a uma ideia de banalidade ou É assim que o "plano" da superfície dos signos pin-
de indistinção, estabelecendo aqui uma relação entre a igualdade dos sujei- tados, essa forma de partilha igualitária do sensível estig-
tos e a indistinção das artes. (N. da T.)
matizada por Platão, intervém ao mesmo tempo como

22
23
princípio de revolução "formal" de uma arte e princípio tenha proposto a isso, redefine sua politicidade. E, no
de re-partição política da experiência comum. Do mes- sistema clássico da representação, a cena trágica será a
mo modo se poderia refletir sobre outras.grande;·°F~rmas, cena de visibilidade de um mundo em ordem, governa-
a do coro e a do teatro que já mencionei, ou outras. U~a do pela hierarquia dos temas e a adaptação, a esta hierar-
história da política estética, entendida nesse sentido, deve quia, das situações e maneiras de falar. O paradigma de-
levar em conta a maneira como essas grandes formas se mocrático se tornará um paradigma monárquico. Pen-
opõem ou se confundem. Penso por exemplo na maneira semos também na longa e contraditória história da retó-
como esse paradigma da superfície dos signos/formas se rica e do modelo do "bom orador". Ao longo de toda a
opôs ou se confundiu ao paradigma teatral da presença idade monárquica, a eloquência democrática de Demós-
- e nas diversas formas que esse próprio paradigma pô- tenes significou uma excelência da palavra, sendo a pró-
de assumir, da figuração simbolista da lenda coletiva ao pria palavra considerada um atributo imaginário da po-
coro em ato dos novos homens. A política aí se repre- tência suprema, mas também sempre disponível para re-
senta como relação entre a cena e a sala, significação do tomar sua função democrática, emprestando suas formas
corpo do ator, jogos da proximidade ou da distância. As canônicas e suas imagens consagradas às aparições trans-
prosas críticas de Mallarmé colocam exemplarmente em gressivas de locutores não autorizados na cena pública.
cena o jogo de remissões, oposições e assimilações entre Pensemos ainda nos destinos contraditórios do modelo
essas formas, desde o teatro íntimo da página ou a coreo- coreográfico. Trabalhos recentes relembram os avatares
grafia caligráfica até o novo "ofício" do concerto. da escrita do movimento elaborada por Laban num con-
Assim, por um lado, essas formas aparecem como texto de liberação dos corpos e transformada em mode-
portadoras de figuras de comunidade iguais a elas mes- lo das grandes demonstrações nazistas, antes de reencon-
, mas em contextos muito diferentes. Mas, inversame~te, trar, no contexto contestatário da arte performática, uma
. elas são passíveis de remissão a paradigmas políticos con- nova virgindade subversiva: A explicação benjaminiana
• traditórios. Tomemos o exemplo da cena trágica. Para pela estetização fatal da política na "era das massas" es-
Platão, ela é portadora da síndrome democrática ao mes- quece-se talvez da ligação muito antiga entre o unanimis-
mo tempo que do poder da ilusão. Isolando a mímesis mo cidadão e a exaltação do livre movimento dos corpos.
em seu espaço próprio, e circunscrevendo a tragédia em Na cidade hostil ao teatro e à lei escrita, Platão recomen-
uma lógica dos gêneros, Aristóteles, mesmo que não se dava embalar incessantemente as crianças de colo.

24 25
Citei essas três formas por causa da referência con- 2.
ceituai platônica e da constância histórica delas. Eviden- Dos regimes da arte
temente elas não definem a totalidade dos modos como e do pouco interesse
essas figuras de comunidade se encontram esteticamen- da noção de modernidade
te desenhadas. O importante é ser neste nível, do recor-
te sensível do comum da comunidade, das formas de sua
visibilidade e de sua disposição, que se coloca a.questão
da relação estética/política. Apartir_da(pC>4~:::sepensar
as intervenções políticas dos artistas, desde as f~;rnas li-
terárias românticas do deciframento da sociedade até os Algumas categorias centrais para se pensar a criação
modos contemporâneos da performance e da instalação, artística do século XX- a saber: modernidade, vanguar-
passando pela poética simbolista do sonho ou a supres- da e, mais recentemente, pós-modernidade - também têm
são dadaísta ou construtivista da arte. A partir daí podem um sentido político. Estas categoriasparecem-lhe ser de al-
ser colocadas em questão diversas histórias imaginárias gum interessepara se conceber em termos precisos o que liga
da "modernidade" artística e dos vãos debates sobre a au- o "estético"ao ''político"?
tonomia da arte ou sua submissão política. As artes nun-
' ca emprestam às manobras de dominação ou de emanei- Não_creio que as noções de modernidade. e de van-
1

! pação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito guarda tenham sido bastante esclarecedoras para se pen-
simplesmente, o que têm em comum com elas: posições . sar as novas formas de arte desde o século passado, nem
e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições as relações do estético com o político. Elas de fato con-
do visível e do invisível. E a autonomia de que podem fundem duas coisas bem diferentes: uma coisa é a histo-
·,_gozarou a subversão que podem se atribuir repousam ricidade própria a um regime das art;;·;~ geral. Out~'a,
~obre a mesma base. são as decisões dê.ruptura ou ântecipação_quese operam
rió interior desse regime. A noção de modernidade esté-
tÍc~ recobre, sem lhe atribuir um conceito, a singulari-
dade de um regime particular das artes, isto é, um tipo
específico de ligação entre modos de produção das obras

26 27
ou das práticas, formas de visibilidade dessas práticas e ças e aos espectadores cidadãos uma certa educação e se
modos de conceituação destas ou daquelas. inscrevem na partilha das ocupações da cidade. É neste
Uma digressão se impõe aqui para esclarecer essa sentido que falo do regime ético das imagens. Trata-se,
noção e situar o problema. No que diz respeito ao que nesse regime, de saber 11,0 que o m9do de: ser das imagens
chamamos arte, pode-se com efeito distinguir, na tradi­ concerne ao ethos, à maneira de ser dos indivíduos <,".. das
ção ocidental, três grandes regimes de identificação. Em coletividades. E essa questão i�pede a "arté dese indi-
primeiro lugar, há o que proponho chamar um regime vi4ualizar enquanto tal.5
ético das imagens. Neste regime, "a arte" não é identifi­
cada enquanto tal, mas se encontra subsumida na ques­
tão das imagens. Há um tipo de seres, as imagens, que é � A partir dai, pode-se compreender o paralogismo contido em to­
das as tentativas para deduzir do estatuto ontológico das imagens as carac­
objeto de uma �upla questão: quanto à sua origem e, por terísticas das artes (por exemplo, as incessantes tentativas para extrair da
conseguinte, ao seu _!:�or de verdade; e quanto ao seu des­ teologia do ícone a ideia do "próprio" da pintura, da fotografia ou do ci­
tino: p� usos que têm e os �fritos que induzem. Perten­ nema). Essa tentativa põe em relação de causa e efeito as propriedades de

ce a esse regime a questão d;�-i�agens da divindade, do


dois regimes de pensamento que se excluem. O mesmo problema é colo­
cado pela análise benjaminiana da aura. Com efeito, Benjamin estabelece
• direito ou proibição de produzir tais imagens, do estatu­ uma dedução equívoca do valor ritual da imagem ao valor ele unicidade da
to e significado das que são produzidas. Como a ele per­ obra de arte. "f: um fato de importância decisiva que a obra ele arte não
tence também toda a polêmica platônica contra os simu­ possa deixar de perder sua aura a partir do momento em que nela não res­

lacros da pintura, do poema e da cena. Platão não sub­


ta mais nenhum vestígio de sua função ritual. Em outros termos, o valor
de unicidade próprio à obra de arte 'autêntica' se funda nesse ritual que, na
mete, como é dito com frequência, a arte à política. Essa origem, foi o suporte de seu antigo valor de utilidade" (A obra de arte na
/ distinção em si não faz sentido para ele. Para Platão, a era de sua reprodutibilidade técnica). Esse "fato", na realidade, é apenas o
arte não existe, apenas existem artes, maneiras de fazer. ajustamento problemático de dois esquemas de transformação: o esquema
historicista da "secularização do sagrado" e o esquema econômico da trans­
E é entre elas que ele traça a linha divisória: existem ar­ formação do valor de uso em valor de troca. Mas lá onde o serviço sagrado
tes verdadeiras, isto é, saberes fundados na imitação de define a destinação da estátua ou da pintura como imagens, a ideia mesma
. um modelo com_fuis.definidos, e �im.ulacms...de arte que de uma especificidade ela arte e de uma propriedade de unicidade de suas
imitam simples aparências. Essas imitações, diferenciadas "obras" 1:1-ão pode aparecer. O retraimento de um é necessário à emergên­
cia da outra. Não se segue absolutamente que a segunda seja a forma trans­
quanto à origem, o são em seguida quanto à destinação: formada do primeiro. O "em outros termos" supõe equivalentes duas pro­
pela maneira como as imagens do poema dão às crian- posições que não o são em absoluto e permite todas as passagens entre a

28 29
Do regime ético das imagens se separa o regime poé- externa de um domínio consistente de imitações é, por-
tico - ou representativo - das artes. Este identifica o tanto, ao mesmo tempo, um princípio normativo de in-
fato da arte - ou antes, das artes - no par poiesis/mí- clusão. Ele se desenvolve em formas de normatividade,
mesis. O princípio mimético, no fundo, não é um prin- que definem as condições segundo as quais as imitações'
cípio normativo que diz que a arte deve fazer cópias pare- podem ser reconhecidas como pertencendo propriamen-
cidas com seus modelos. É, antes, um princípio pragmá- te a uma arte e apreciadas, nos limites dessa arte, como
tico que isola, no domínio geral das artes (das maneiras boas ou ruins, adequadas ou inadequadas: separação do
de fazer), certas artes particulares que executam coisas es- representável e do irrepresentável, distinção de gêneros'·
pecíficas, a saber, imitações. Tais imitações não se enqua- em função do que é representado, princípios de adap-
dram nem na verificação habitual dos produtos das artes tação das formas de expressão aos gêneros, logo, aos te-
por meio de seu uso, nem na legislação da verdade sobre mas representados, distribuição das semelhanças segun-
os discursos e as imagens. Nisto consiste a grande ope- do princípios de verossimilhança, conveniência ou cor-
ração efetuada pela elaboração aristotélica da mímesis e respondência, critérios de distinção e de comparação en-
pelo privilégio dado à ação trágica. É o feito do poema, tre as artes etc.
a fabricação de uma intriga que orquestra ações repre- Denomino esse regime poético no sentido em que
sentando homens agindo, que importa, em detrimento identifica as artes - que a idade clássica chamará de "be-
do ser da imagem, cópia interrogada sobre seu modelo. las-artes" - no interior de uma classificação de manei-
Tal é o princípio da mudança de função do modelo dra- ras de fazer, e consequentemente define maneiras de fa-
mático de que falava acima. O princípio de delimitação zer e de apreciar imitações benfeitas. Chamo-o represen-
tativo, porquanto é a noção de representação ou de mí-
mesis que organiza essas maneiras de fazer, ver e julgar.
explicação materialista da arte e sua transformação em teologia profana. É
Mas, repito, a mímesis não é a lei que submete as artes à
assim que a teorização benjaminiana da passagem do cultuai ao exposicional semelhança. É, antes, o vinco na distribuição das manei-
sustenta hoje três discursos concorrentes: o que celebra a desmistificação ras de fazer e das ocupações sociais que torna as artes vi-
moderna do misticismo artístico, o que dota a obra e seu espaço de exposi-
síveis. Não é um procedimento artístico, mas um regi-
ção dos valores sagrados da representação do invisível e o que contrapõe,
aos tempos remotos da presença dos deuses, o abandono do "ser-exposto"
me de visibilidade das artes. Um regime de visibilidade
do homem. das artes é, ao mesmo tempo, o que autonomiza as artes,

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mas também o que articula essa autonomia a uma ordem tranho a si mesmo, sede de um pensamento que setor-
geral das maneiras de fazer e das ocupações. Precisamen- nou ele próprio estranho a si mesmo, é o núcleo invariá-
te o que eu evocava acima a propósito da lógica represen- vel das identificações da arte que configuram original-
tativa. Esta entra numa relação de analogia global com mente o pensamento estético: a descoberta por Vico do
uma hierarquia global das ocupações políticas e sociais: "verdadeiro Homero" como poeta apesar de si mesmo,
o primado representativo da ação sobre os caracteres, ou o "gênio" kantiano que ignora a lei que produz, o "esta-
da narração sobre a descrição, a hierarquia dos gêneros do estético" de Schiller, feito da dupla suspensão da ati-
segundo a dignidade dos seus temas, e o próprio prima- vidade do entendimento e de passividade sensível, a defi-
do da arte da palavra, da palavra em ato, entram emana- nição dada por Schelling da arte como identidade de um
logia com toda uma visão hierárquica da comunidade. processo consciente e de um processo inconsciente etc.
A esse regime representativo, contrapõe-se o regime Ela percorre igualmente as autodefinições das artes pró-
das artes que denomino estétiço.Estético, porque a iden- prias à idade moderna: ideia proustiana do livro inteira-
tificação da arte, nele, não se faz mais por uma distinção mente calculado e absolutamente subtraído à vontade;
no interior das maneiras de fazer, mas pela distinção de ideia mallarmiana do poema do espectador-poeta, escri-
um modo de ser sensível próprio aos produtos da arte. to "sem aparelho de escriba" pelos passos da dançarina
A palavra "estética" não remete a uma teoria da sensibi- iletrada; prática surrealista da obra expressando o incons-
lidade, do gosto ou do prazer dos amadores de arte. Re- ciente do artista com as ilustrações fora de moda dos ca-
mete, propriamente, ao modo de ser específico daquilo tálogos ou folhetins do século precedente; ideia bresso-
que pertence à arte, ao modo de ser de seus objetos. No niana do cinema como pensamento do cineasta extraído
regime estético das artes, as coisas da arte são identifica- dos corpos dos "modelos" que, repetindo sem pensar as
das por pertencerem a um regime específico do sensível. palavras e gestos que dita para eles, manifestam, sem o
Esse sensível, subtraído a suas conexões ordinárias, é ha- seu conhecimento ou o deles, a verdade que lhes é pró-
bitado por uma potência heterogênea, a potência de um pria etc. ,
pensamento que se tornou ele próprio estranho a si mes- Inútil prosseguir com as definições e exemplos. E
mo: produto idêntico ao não-produto, saber transforma- preciso, porém, assinalar o cerne do problema. O regi-
do em não-saber, logosidêntico a um pathos, intenção do me estético das artes é aquele que propriamente identi-
inintencional etc. Essa ideia de um sensível tornado es- fica a arte no singular e desobriga essa arte de toda e qual-

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quer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêne- dessa historicização simplista foi a passagem à não-figu-
ros e artes. Mas, ao fazê-lo, ele implode a barreira mimé- ração na pintura. Essa passagem foi teorizada numa as-
tica que distinguia as maneiras de fazer arte das outras similação sumária com um destino global antimiméti-
maneiras de fazer e separava suas regras da ordem das co da "modernidade" artística. Quando os arautos dessa
ocupações sociais. Ele afirma a absoluta singularidade da modernidade viram os lugares onde se exibia este bem-
arte e destrói ao mesmo tempo todo critério pragmáti- -comportado destino da modernidade invadidos por to-
co dessa singularidade. Funda, a uma só vez, a autono- da espécie de objetos, máquinas e dispositivos não iden-
mia da arte e a identidade de suas formas com as formas tificados, começaram a denunciar a "tradição do novo",
pelas quais a vida se forma a si mesma. O estado estético uma vontade de inovação que reduziria a modernidade
schilleriano, que é o primeiro - e, em certo sentido, artística ao vazio de sua autoproclamação. Mas é o pon-
inultrapassável - manifesto desse regime, marca bem to de partida adotado que não convém. O pulo para fora
essa identidade fundamental dos contrários. O estado es- da mímesis não é em absoluto uma recusa da figuração.
tético é pura suspensão, momento em que a forma é ex- E seu momento inaugural foi com frequência denomi-
perimentada por si mesma. O momento de formação de nado realismo, o qual não significa de modo algum ava-
uma humanidade específica. lorização da semelhança, mas a destruição dos limites
A partir daí, pode-se compreender as funções exer- dentro dos quais ela funcionava. Assim, o realismo roma-
cidas pela noção de modernidade. Pode-se dizer que o nesco é antes de tudo a subversão das hierarquias da re-
regime estético das artes é o verdadeiro nome daquilo presentação (o primado do n4rrativo sobre o descritivo
designado pela denominação confusa de modernidade. a
ou a hierarquia dos temas) e adoção de um modo de
Mas "modernidade" é mais do que uma denominação focalização fragmentada, ou próxima, que impõe a pre-
confusa. Em suas diferentes versões, "modernidade" é o sença bruta em detrimento dos encadeamentos racionais
conceito que se empenha em ocultar a especificidade da história. O regime estético das artes não opõe o anti-
desse regime das artes e o próprio sentido da especifi- go e o moderno. Opõe, mais profundamente, dois regi-
cidade dos regimes da arte. Traça, para exaltá-la ou de- mes de historicidade. É no interior do regime mimético
plorá-la, uma linha simples de passagem ou de ruptura que o antigo se opõe ao moderno. No regime estético da
entre o antigo e o moderno, o representativo e o não-re- arte, o futuro da arte, sua distância do presente da não-
presentativo ou antirrepresentativo. O_ponto de apoio -arte, não cessa de colocar em cena o passado.

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Aqueles que exaltam ou denunciam a "tradição do vida com base em uma ideia do que a arte foi, teria sido.
novo" de fato esquecem que esta tem por exato comple- Quando os futuristas ou os construtivistas proclamam o
mento a "novidade da tradição". O regime estético das fim da arte e a identificação de suas práticas àquelas que
artes não começou com decisões de ruptura artística. Co- edificam, ritmam ou decoram os espaços e tempos da vi-
meçou com as decisões de reinterpretação daquilo que a da em comum, eles propõem um fim da arte como iden-
arte faz ou daquilo que a faz ser arte: Vico descobrindo tificação com a vida da comunidade, que é tributária da
o "verdadeiro Homero", isto é, não um inventor de fá- releitura schilleriana e romântica da arte grega como
bulas e tipos característicos, mas um testemunho da lin- modo de vida de uma comunidade - aliás, em sintonia
guagem e do pensamento imagéticos dos povos dos tem- com as novas práticas dos inventores publicitários que
pos antigos; Hegel assinalando o verdadeiro tema da pin- não propõem, eles, revolução alguma, mas somente uma
tura de gênero holandesa: não as histórias de estalagem nova maneira de se viver em meio às palavras, imagens
ou descrições de interiores, e sim a liberdade de um povo e mercadorias. A ideia de modernidade é uma noção
impressa em reflexos de luz; Holderlin reinventando a equívoca que gostaria de produzir um corte na configu-
tragédia grega; Balzac contrapondo a poesia do geólogo ração complexa do regime estético das artes, reter as for-
que reconstitui mundos a partir de vestígios e de fósseis mas de ruptura, os gestos iconoclastas etc, separando-os
àquela que se contenta em reproduzir algumas agitações do contexto que os autoriza: a reprodução generalizada,
da alma; Mendelssohn recompondo a Paixão segundo a interpretação, a história, o museu, o patrimônio ... Ela
São Mateus etc. O regime estético das artes é antes de gostaria que houvesse um sentido único, quando a tem-
tudo um novo regime da relação com o antigo. De fato, poralidade própria ao regime estético das artes é a de
ele transforma em princípio de artísticidade essa relação uma co-presença de temporalidades heterogêneas.
de expressão de um tempo e um estado de civilização que A noção de modernidade parece, assim, como in-
antes era considerada a parte "não-artística" das obras ventada de propósito para confundir a inteligência das
(aquela que se perdoava alegando a rudeza dos tempos em transformações da arte e de suas relações com as outras
que vivera o autor). Ele inventa suas revoluções baseado esferas da experiência coletiva. Parece-me haver duas
na mesma ideia que o leva a inventar o museu e a histó- grandes formas dessa confusão. Ambas se apoiam, sem
ria da arte, a noçã.9 de classicismo e as novas formas da analisá-la, na contradição constitutiva do regime estéti-
reprodução ... E se entrega à invenção de novas formas de co das artes que faz da arte uma forma autônoma da vida

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e, com isso, afirma, ao mesmo tempo, a autonomia da se poderia chamar de modernitarismo. Denomino assim
arte e sua identificação a um momento no processo de a identificação das formas do regime estético das artes às
autoformação da vida. Daí deduzem-se as duas grandes formas de execução de uma tarefa ou de um destino pró-
variantes do discurso sobre a "modernidade". ~ prim_ei- prio da modernidade. Na base dessa identificação está
ra quer uma modernidade simplesmente identificada à uma interpretação específica da contradição matricial da
autonomia da arte, uma revolução "antimimética" da "forma" estética. Valoriza-se a determinação da arte co-
arte idêntica à conquista da forma pura, enfim nua, da mo forma e autoformação da vida. No ponto de parti-
arte. Cada arte afirmaria então a pura potência de arte da encontra-se a referência insuperável que constitui a
explorando os poderes próprios do seu medium especí- noção schilleriana de educação estética do homem. Ela fi-
fico. A modernidade poética ou literária seria a explora- xou a ideia de que dominação e servitude são antes de
ção dos poderes de uma linguagem desviada do seu uso tudo distribuições ontológicas (atividade do pensamen-
comunicacional. A modernidade pictural seria o retorno to versus passividade da matéria sensível) e definiu um es-
da pintura ao que lhe é próprio: o pigmento colorido e tado neutro, um estado de dupla anulação em que ati-
a superfície bidimensional. A modernidade musical se vidade de pensamento e receptividade sensível se tornam
identificaria à linguagem de doze sons, livre de toda ana- uma única realidade, constituindo algo como uma nova
logia com a linguagem expressiva etc. E essas modernida- região do ser - a da aparência e do jogo livres - que
des específicas estariam numa relação de analogia à dis- torna pensável essa igualdade que a Revolução Francesa,
tância com uma modernidade política, capaz de se iden- segundo Schiller, mostra ser impossível materializar di-
tificar, conforme a época, com a radicalidade revolucio- retamente. É esse modo específico de habitação do mun-
nária ou com a modernidade sóbria e desencantada do do sensível que deve ser desenvolvido pela "educação es-
bom governo republicano. O que se chama "crise da ar- tética" para formar homens capazes de viver numa co-
te" é essencialmente a derrota desse paradigma moder~ munidade política livre. Sobre essa base, construiu-se a
nista simples, cada vez mais afastado das misturas de gê- ideia da modernidade como tempo dedicado à realização
neros e de suportes, como das polivalências políticas das sensível de uma humanidade ainda latente do homem.
formas contemporâneas das artes. Quanto a esse aspecto, pode-se dizer que a "revolução es-
Essa derrota é evidentemente sobredeterminada pe- tética" produziu uma nova ideia da revolução política,
la segunda grande forma do paradigma modernista, que como realização sensível de uma humanidade comum

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existindo ainda somente enquanto ideia. Foi assim que pós-modernismo trouxe à tona tudo aquilo que, na evo-
o "estado estético" schilleriano tornou-se o "programa lução recente das artes e de suas formas de pensabilidade,
estético" do romantismo alemão, o programa resumido arruinava o edifício teórico do modernismo: as passagens
no rascunho redigido em comum por Hegel, Hõlderlin e as misturas entre as artes que arruinavam a ortodoxia
e Schelling: a realização sensível, nas formas de vida e de da separação das artes inspirada por Lessing; a ruína do
crença populares, da liberdade incondicional do pensa- paradigma da arquitetura funcionalista e o retorno da li-
mento puro. E foi esse paradigma de autonomia estéti- nha curva e do ornamento; a ruína do modelo pictural/
ca que se tornou o novo paradigma da revolução, e per- bidimensional/abstrato através dos retornos da figuração
mitiu ulteriormente o breve, mas decisivo, encontro dos e da significação e a lenta invasão do espaço de exposi-
artesãos da revolução marxista e dos artesãos das formas ção das pinturas por formas 'tridimensionais e narrativas,
da nova vida. A falência dessa revolução determinou o da pop art à arte das instalações e às "câmaras" da vídeo-
destino - em dois tempos - do modernitarismo. Num -arte; 6 as novas combinações da palavra e da pintura, da
primeiro tempo, o modernismo artístico foi contrapos- escultura monumental e da projeção de sombras e luzes;
to, com seu potencial revolucionário autêntico de recusa a explosão da tradição serial através das misturas de gê-
e promessa, à degenerescência da revolução política. O neros, épocas e sistemas musicais. O modelo teleológico
surrealismo e a Escola de Frankfurt foram os principais da modernidade tornou-se insustentável, ao mesmo tem-
vetores dessa contramodernidade. No segundo tempo, a po que suas distinções entre os "próprios" das diferentes
falência da revolução política foi pensada como falência artes, ou a separação de um domínio puro da arte. O
de seu modelo ontológico-estético. A modernidade, en- pós-modernismo, num certo sentido, foi apenas o nome
tão, tornou-se algo como um destino fatal fundado num com o qual certos artistas e pensadores tomaram cons-
esquecimento fundamental: essência heideggeriana da ciência do que tinha sido o modernismo: uma tentativa
técnica, corte revolucionário da cabeça do rei e da tradi- desesperada de fundar um "próprio da arte" atando-o a
ção humana, e, finalmente, pecado original da criatura uma teleologia simples da evolução e da ruptura histó-
humana, esquecida da sua dívida para com o Outro e da ricas. E não havia de fato necessidade de se fazer, desse
sua submissão às potências heterogêneas do sensível.
O que se chama de pós-modernismo é propriamen- 6 Cf. Raymond Bellour, "La chambre", in L'entre-images 2, Paris,
te o processo dessa reviravolta. Num primeiro tempo, o P.O.L., 1999.

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reconhecimento tardio de um dado fundamental do re- nismo tornou-se então a grande nênia do irrepresentável/
gime estético das artes, um corte temporal efetivo, o fim intratável/irrecobrável, denunciando a loucura moderna
real de um período histórico. da ideia de uma autoemancipação da humanidade do
Mas, precisamente, o que se seguiu mostrou que o homem e sua inevitável e interminável conclusão nos
pós-modernismo era mais do que isso. Muito rapida- campos de extermínio.
mente, a alegre licença pós-moderna, sua exaltação do A noção de vanguarda define o tipo de tema que
carnaval dos simulacros, mestiçagem e hibridações de to- convém à visão modernista e próprio a conectar, segun-
dos os tipos, transformou-se em contestação dessa liber- do essa visão, o estético e o político. Seu sucesso está me-
dade ou autonomia que o princípio modernitário dava nos na conexão cômoda que produz entre a ideia artís-
- ou teria dado - à arte a missão de cumprir. Do car- tica da novidade e a ideia da direção política do movi-
naval voltou-se então à cena primitiva. Todavia, a cena mento, do que na conexão mais secreta que opera entre
primitiva pode ser tomada em dois sentidos: ponto de duas ideias de "vanguarda". Existe a noção topográfica e
partida de um processo ou separação original. A fé mo- militar da força que marcha à frente, que detém a inte-
dernista tinha se atrelado à ideia dessa "educação estéti- ligência do movimento, concentra suas forças, determi-
ca do homem" que Schiller extraíra da analítica kantia- na o sentido da evolução histórica e escolhe as orienta-
na do belo. A reviravolta pós-moderna teve como base ções políticas subjetivas. Enfim, há essa ideia que liga a
teórica a análise feita por Lyotard do sublime kantiano, subjetividade política a uma determinada forma - do
reinterpretado como cena de uma distância fundadora partido, do destacamento avançado extraindo sua capa-
entre a ideia e toda representação sensível. A partir daí, cidade dirigente de sua capacidade para ler e interpretar
o pós-modernismo entrou no grande concerto do luto e os signos da história. E há essa outra ideia de vanguarda
do arrependimento do pensamento modernitário. E a que se enraíza na antecipação estética do futuro, segun-
cena da distância sublime acabou resumindo todos os ti- do o modelo schilleriano. Se o conceito de vanguarda
pos de cenas de pecado ou distância original: a fuga hei- tem um sentido no regime estético das artes, é desse lado
deggeriana dos deuses; o irredutível freudiano do objeto que se deve encontrá-lo: não do lado dos destacamentos
não-simbolizável e da pulsão de morte; a voz do Abso- avançados da novidade artística, mas do lado da inven-
lutamente Outro pronunciando a proibição da represen- ção de formas sensíveis e dos limites materiais de uma
tação; o assassínio revolucionário do Pai. O pós-moder- vida por vir. É isso que a vanguarda "estética" trouxe à

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vanguarda "política", ou que ela quis ou acreditou lhe 3.
trazer, transformando a política em programa total de Das artes mecânicas
vida. A história das relações entre partidos e movimen- e da promoção estética e científica
tos estéticos é antes de mais nada a história de uma con- dos anônimos
fusão, às vezes complacentemente entretida, em outros
momentos violentamente denunciada, entre essas duas
ideias de vanguarda, que são, com efeito, duas ideias di-
ferentes da subjetividade política: a ideia arquipolítica do
partido, isto é, a ideia de uma inteligência política que
concentra as condições essenciais da transformação, e a Em um de seus textos, o senhor faz uma aproximação
ideia metapolítica da subjetividade política global, a entre o desenvolvimento das artes "mecânicas': que são a fo-
ideia da virtualidade nos modos de experiência sensíveis tografia e o cinema, e o nascimento da "nova história': Po-
inovadores de antecipação da comunidade por vir. Mas deria explicitar essaaproximação? A ideia de Benjamin se-
essa confusão nada tem de acidental. Não é que, segun- gundo a qual, no início do século XX, com a ajuda dessas
do a doxa contemporânea, as pretensões dos artistas a artes, as massas adquirem visibilidade enquanto tais, cor-
uma revolução total do sensível tenham preparado o ter- responderia a essaaproximação?
reno para o totalitarismo. Trata-se, porém, do fato de
que a própria ideia de vanguarda política está dividida Em primeiro lugar, talvez exista um equívoco a ser
entre a concepção estratégica e a concepção estética de esclarecido quanto à noção de "artes mecânicas". Apro-
vanguarda. ximei um paradigma científico de um paradigma estéti-
co. A tese benjaminiana, por sua vez, supõe outra coisa
que me parece duvidosa: a dedução das propriedades es-
téticas e políticas de uma arte a partir de suas proprieda-
des técnicas. As artes mecânicas induziriam, enquanto
artes mecânicas, uma modificação de paradigma artísti-
co e uma nova relação da arte com seus temas. Essa pro-
posição remete a uma das teses mestras do modernismo:

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a que vincula a diferença das artes à diferença de suas arte. Que o anônimo seja não só capaz de tornar-se arte,
condições técnicas ou de seu suporte ou medium especí- mas também depositário de uma beleza específica, é algo
fico. Essa assimilação pode ser compreendida no modo que caracteriza propriamente o regime estético das artes.
modernista simples ou segundo a hipérbole modernitá- Este não só começou bem antes das artes da reprodução
ria. E o sucesso persistente das teses benjaminianas sobre mecânica, como foi ele que, com sua nova maneira de
a arte na era da reprodução mecânica se deve, sem dúvi- pensar a arte e seus temas, tornou-as possível.
da, à passagem que asseguram entre as categorias da ex- O regime estético das artes é, antes de tudo, a ruí-
plicação materialista marxista e da ontologia heidegge- na do sistema da representação, isto é, de um sistema em
riana, referindo o tempo da modernidade ao desdobra- que a dignidade dos temas comandava a hierarquia dos
mento da essência da técnica. De fato, esse vínculo en- gêneros da representação (tragédia para os nobres, comé-
tre o estético e o onto-tecnológico teve o destino comum dia para a plebe; pintura de história contra pintura de gê-
das categorias modernistas. No tempo de Benjamin, de nero etc). O sistema da representação definia, com os gê-
Duchamp ou de Rodchenko, ele acompanhou a fé nos neros, as situações e formas de expressão que convinham
poderes da eletricidade e da máquina, do ferro, vidro à baixeza ou à elevação do tema. O regime estético das
ou concreto. Com a reviravolta dita "pós-moderna", ele artes desfaz essa correlação entre tema e modo de repre-
acompanha o retorno ao ícone, aquele que faz do véu de sentação. Tal revolução acontece primeiro na literatura.
Verônica a essência da pintura, cinema ou fotografia. Que uma época e uma sociedade possam ser lidas nos
É preciso, no meu entender, que se tome as coisas traços, vestimentas ou gestos de um indivíduo qualquer
ao inverso. Para que as artes mecânicas possam dar visibi- (Balzac), que o esgoto seja revelador de uma civilização
lidade às massas ou, antes, ao indivíduo anônimo, preci- (Hugo), que a filha do fazendeiro e a mulher do ban-
sam primeiro ser reconhecidas como artes. Isto é, devem queiro sejam capturadas pela mesma potência do estilo
primeiro ser praticadas e reconhecidas como outra coi- como "maneira absoluta de ver as coisas" (Flaubert), to-
sa, e não como técnicas de reprodução e difusão. O mes- das essas formas de anulação ou de subversão da oposi-
mo princípio, portanto, confere visibilidade a qualquer ção do alto e do baixo não apenas precedem os poderes
um e faz com que a fotografia e o cinema possam ser ar- da reprodução mecânica. Eles tornam possível que esta
tes. Pode-se até inverter a fórmula: porque o anônimo seja mais do que a reprodução mecânica. Para que um
tornou-se um tema artístico, sua gravação pode ser uma dado modo de fazer técnico - um uso das palavras ou

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da câmera - seja qualificado como pertencendo à arte, nema e a fotografia que determinaram os temas e os mo-
é preciso primeiramente que seu tema o seja. A fotogra- dos de focalização da "nova história". São a nova ciên-
fia não se constituiu como arte em razão de sua nature- cia histórica e as artes da reprodução mecânica que se
za técnica. O discurso sobre a originalidade da fotografia inscrevem na mesma lógica da revolução estética. Passar
como arte "indiciai" é um discurso bastante recente, que dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos
pertence menos à história da fotografia que à história da anônimos, identificar os sintomas de uma época, socie-
reviravolta pós-moderna evocada acima? Também não dade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordi-
foi imitando as maneiras da arte que a fotografia tornou- nária, explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e
-se arte. Benjamin mostra-o bem a propósito de David reconstituir mundos a partir de seus vestígios, é um pro-
Octavius Hill: é através da pequena pescadora anônima grama literário, antes de ser científico. Não se trata ape-
de N ew Haven, e não de suas grandes composições pic- nas de compreender que a ciência histórica tem uma pré-
turais, que ele faz a fotografia entrar no mundo da arte. -história literária. A própria literatura se constitui como
Também não foram os temas etéreos e os flous artísticos uma determinada sintomatologia da sociedade e contra-
do pictorialismo que asseguraram o estatuto da arte foto- põe essa sintomatologia aos gritos e ficções da cena pú-
gráfica, mas sim a assunção do qualquer um: os emigran- blica. No prefácio de Cromwell, Hugo reivindicava para
tes de The Steerage de Stieglitz, os retratos frontais de a literatura uma história dos costumes que se opunha à
Paul Strand ou de Walker Evans. A revolução técnica vem história dos acontecimentos praticada pelos historiado-
depois da revolução estética. Mas a revolução estética é res. Em Guerra epaz, T olstói contrapunha os documen-
antes de tudo a glória do qualquer um - que é pictural tos da literatura, tirados das narrativas e testemunhos da
e literária, antes de ser fotográfica ou cinematográfica. ação de inumeráveis atores anônimos, aos documentos
Acrescentemos que ela pertence à ciência do escri- dos historiadores tirados dos arquivos - e das ficções -
tor antes de pertencer à do historiador. Não foram o ci- daqueles que acreditam comandar as batalhas e fazer a
história. O conhecimento histórico integrou a oposição
quando contrapôs à velha história dos príncipes, batalhas
7 A vocação polêmica antimodernista dessa descoberta tardia da
e tratados, fundada na crônica das cortes e relatórios di-
"origem" da fotografia, calcada sobre o mito da invenção da pintura por
Dibutade, aparece claramente, tanto em Roland Barthes (A câmara clara) plomáticos, a história dos modos de vida das massas e
como em Rosalind Krauss (O fotogrdflco). dos ciclos da vida material, fundada na leitura e interpre-

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tação das "testemunhas mudas". O surgimento das mas- ciedade. O conhecimento histórico entendeu fazer uma
sas na cena da história ou nas "novas" imagens não signi- seleção no interior da configuração estético-política que
fica o vínculo entre a era das massas e a era da ciência e lhe dá seu objeto. E aplaina essa fantasmagoria do ver-
da técnica. Mas sim ~ lógica estética de u_mmodo devisi- dadeiro nos conceitos sociológicos positivistas da men-
bilidade que, por u111lac:lo,.revoga as escalas de grandeza talidade/ expressão e da crença/ignorância.
ela tradição representativa e,..por outro, revoga o mode-
lo oratório da palavra em prove~to da leitura dos sig1:1,os
sobre os corpos das coisas, dos homens e das sociedades.·
O conhecimento histórico é herdeiro disso. Mas eie
sepa~~~ condição de seu novo objeto '(a ~ida dos anôni-
mos) de sua origem literária e da política da literatura em
que se inscreve. O que ele deixa de lado - e que o ci-
nema e a fotografia retomam - é a lógica que a tradi-
ção romanesca, de Balzac a Proust até o surrealismo, faz
aparecer, esse pensamento do verdadeiro do qual Marx,
Freud, Benjamin e a tradição do "pensamento crítico"
são herdeiros: o banal torna-se belo como rastro do ver-
dadeiro. E ele se torna rastro d~;~id~ddi-~ ;·~-~;~;~~-
car111~sde sua evidência para dele fazer um hier6glrfo,
uma figura mitológica ou fantasmagórica. Essa dime~são
fantasmagórica do verdadeiro, que pertence ao regime
estético das artes, teve um papel essencial na constí~ui-
ção do paradigma crítico das ciências humanas e sociais.
A teoria marxista do fetichismo é seu testemunho m·~i~
fulgurante: é preciso extirpar a lllerçaq.9ri;ic.le..§Y<l.~P~r.~n-
cia trivial, transformá-la e111objet9 fanrnsmagór.ico.,.parn.
que nela seja lida a expressão das contradiç.ões de.uma.s.o-

50 51
4. É melhor começar pelo segundo, a "positividade"
Se é preciso concluir da ficção analisada no texto a que você se refere. 8 Essa
que a história é ficção. positividade implica, por si mesma, uma dupla questão:
a questão geral da racionalidade da ficção, isto é, da dis-
Dos modos da ficção
tinção entre ficção e falsidade, e a questão da distinção
- ou indistinção - entre os modos de inteligibilidade
apropriados à construção de histórias e aqueles que ser-
vem à inteligência dos fenômenos históricos. Comece-
O senhorse refereà ideia deficção como essencialmente mos pelo começo. A separação da ideia de ficção da ideia
positiva. O que se deve entender exatamentepor isso?Quais de mentira define a especificidade do regime representa-
são os vínculos entre a História na qual estamos "embarca- tivo das artes. Este autonomiza as formas das artes no
dos" e as histórias contadas (ou desconstruídas)pelas artes que diz respeito à economia das ocupações comuns e à
narrativas?E como compreenderque os enunciadospoéti- contraeconomia dos simulacros, própria ao regime éti-
cosou literdrios "ganham corpo': que tenham efeitosreais, co das imagens. É precisamente o que está em jogo na
ao invés de serem reflexosdo real?As ideias de "corpospolí- Poética de Aristóteles. As formas da mímesis poética são
ticos" ou de "corposda comunidade" são mais do que me- aí subtraídas à suspeita platônica relativa à consistência
tdforas?Essa reflexãoimplica uma redefiniçãoda utopia? e à destinação das imagens. A Poética proclama que a
ordenação de ações do poema não significa a feitura de
Há dois problemas aí, alguns costumam confundi- um simulacro. É um jogo de saber que se dá num espa-
-los para melhor construir o fantasma de uma realidade ço-tempo determinado. Fingir não é propor engodos,
histórica que seria feita apenas de "ficções". O primeiro porém elaborar estruturas inteligíveis. A poesia não tem
problema concerne à relação entre história e historicida- contas a prestar quanto à "verdade" daquilo que diz, por-
de, isto é, a relação do agente histórico com o ser falan- que, em seu princípio, não é feita de imagens ou enun-
te. O segundo, concerne à ideia de ficção e à relação en-
tre a racionalidade ficcional e os modos de explicação da 8 Jacques Ranciere, "La fiction de mémoire: à propos du Tombeau
realidade histórica e social, entre a razão das ficções e a d'Alexandrede Chris Marker", in Trafic, nº 29, Primavera 1999, pp. 36-
razão dos fatos. 47.

52 53
ciados, mas de ficções, isto é, de coordenações entre atos. nalidade: a nova maneira de contar histórias, que é, an-
Outra consequência tirada por Aristóteles é a da supe- tes de mais nada, uma maneira de dar sentido ao univer-
rioridade da poesia, que confere uma lógica causal a uma so "empírico" das ações obscuras e dos objetos banais. A
ordenação de acontecimentos, sobre a história, condena- ordenação ficcional deixa de ser o encadeamento causal
da a apresentar os acontecimentos segundo a desordem aristotélico das ações "segundo a necessidade e a veros-
empírica deles. Dito de outro modo - e isso é eviden- similhança". Torna-se uma ordenação de signos. Toda-
temente algo que os historiadores não gostam muito de via, essa ordenação literária de signos não é de forma al-
olhar de perto-, a nítida separação entre realidade e guma uma autorrreferencialidade solitária da linguagem.
ficção representa também a impossibilidade de uma ra- É a identificação dos modos da construção ficcional aos
cionalidade da história e de sua ciência. modos de uma leitura dos signos escritos na configura-
A revolução estética redistribui o jogo tornando so- ção de um lugar, um grupo, um muro, uma roupa, um
lidárias duas coisas: a indefinição das fronteiras entre a rosto. É a assimilação das acelerações ou desacelerações
razão dos fatos e a razão das ficções e o novo modo de da linguagem, de suas profusões de imagens ou altera-
racionalidade da ciência histórica. Declarando que o ções de tom, de todas suas diferenças de potencial entre
princípio da poesia não é a ficção, mas um determinado o insignificante e o supersignificante, às modalidades da
arranjo dos signos da linguagem, a idade romântica tor- viagem pela paisagem dos traços significativos dispostos
na indefinida a linha divisória que isolava a arte da juris- na topografia dos espaços, na fisiologia dos círculos so-
dição dos enunciados ou das imagens, bem como aque- ciais, na expressão silenciosa dos corpos. A "ficcionali-
la que separava a razão dos fatos e a razão das histórias. dade" própria da era estética se desdobra assim entre dois
Não que ela tenha, como se diz às vezes, consagrado o polos: entre a potência de significação inerente às coisas
"autotelismo" da linguagem, separada da realidade. Mui- mudas e a potencialização dos discursos e dos níveis de
to pelo contrário. A idade romântica força de fato a lin- significação.
guagem a penetrar na materialidade dos traços através A soberania estética da literatura não é, portanto, o
dos quais o mundo histórico e social se torna visível a si reino da ficção. É, ao contrário, um regime de indistin-
mesmo, ainda que sob a forma da linguagem muda das ção tendencial entre a razão das ordenações descritivas e
coisas e da linguagem cifrada das imagens. É a circula- narrativas da ficção e as ordenações da descrição e inter-
ção nessa paisagem de signos que define a nova ficcio- pretação dos fenômenos do mundo histórico e social.

54 55
Quando Balzac instala o leitor diante dos hieróglifos en- pírica dos acontecimentos, "do que sucedeu". A revolu-
trelaçados na fachada instável e heteródita de La maison ção estética transforma radicalmente as coisas:_<:>testemu-
du chat qui pelote 9 ou o faz entrar, com o herói de A pele nho e a ficção pertencem a um mesmo regime de senti-
de onagro, na loja do antiquário onde se acumulam em do. De um lado, o "empírico" traz as marcas do verda-
desordem objetos profanos e sagrados, selvagens e civi- deiro sob a forma de rastros e vestígios. "O que sucedeu"
lizados, antigos e modernos, que resumem, cada um, um remete pois diretamente a um regime de verdade, um
mundo; quando faz de Cuvier o verdadeiro poeta que regime de mostração de sua própria necessidade. 10 Do
reconstitui todo um mundo a partir de um fóssil, esta- outro, "o que poderia suceder" não tem mais a forma au-
belece um regime de equivalência entre os signos do no- tônoma e linear da ordenação de ações. A "história" poé-
vo romance e os signos da descrição ou da interpretação tica, desde então, articula o realismo que nos mostra os
dos fenômenos de uma civilização. Ele forja essa nova rastos poéticos inscritos na realidade mesma e o artificia-
racionalidade do banal e do obscuro que se contrapõe às lismo que monta máquinas de compreensão complexas.
grandes ordenações aristotélicas e se tornará a nova racio- Essa articulação passou da literatura para a nova arte
nalidade da história da vida material oposta às histórias da narrativa: o cinema. Este eleva a sua maior potência
dos grandes feitos e dos grandes personagens. o duplo expediente da impressão muda que fala e da
Assim se encontra revogada a linha divisória aris- montagem que calcula as potências de significância e os
totélica entre duas "histórias" - a dos historiadores e a valores de verdade. E <?,cinema documentário, o cinema
dos poetas -, a qual não separava somente a realidade que se dedica ao "real" é, neste sentido, capaz de uma in-
e a ficção, mas também a sucessão empírica e a necessi- venção ficcional mais forte que o cinema de "ficção", que
dade construída. Aristóteles fundava a superioridade da se dedica facilmente a certa estereotipia das ações e dos
poesia, que conta "o que poderia suceder" segundo a ne- Úpos característicos. O túmulo de Alexandre de Chris
cessidade ou a verossimilhança da ordenação das ações Marker, objeto do artigo ao qual vocês se referem, fic-
poéticas, sobre a história, concebida como sucessão em- ciona a história da Rússia do tempo dos tsares na época

9 Novela de Balzac, publicada pela primeira vez com esse título em


junho de 1842, na edição Fume de La comédie humaine (Scenes de la vie IO "Mostração", grifo nosso, no original: "monstration", neologismo
privée, tomo I), onde aparece logo após o Prólogo. (N. da T.) do francês. (N. da T.)

56 57
do pós-comunismo através do destino de um cineasta, rias é própria de uma época em que qualquer um é con-
Alexandre Medvedkine. Não faz dele um personagem siderado como cooperando com a tarefa de "fazer" a his-
ficcional, não conta histórias inventadas sobre a URSS. tória. Não se trata pois de dizer que a "História" é feita
Joga com a combinação de diferentes tipos de rastros apenas das histórias que nós nos contamos, mas simples-
(entrevistas, rostos significativos, documentos de arqui- mente que a "razão das histórias" e as capacidades de agir
vo, trechos de filmes documentários e de ficção etc.) para como agentes históricos andam juntas. A política e a ar-
propor possibilidades de pensar essa história. O real pre- te, tanto quanto os saberes, constroem "ficções", isto é,
cisa ser ficcionado para ser pensado. Essa proposição de- rearranjos materiais dos signos e d~s imagens, das rela-
ve ser distinguida de todo discurso - positivo ou nega- ções entre o que se vê e o que se diz, entre o se faz e o
tivo - segundo o qual tudo seria "narrativa", com al- que se pode fazer.
ternâncias entre "grandes" e "pequenas" narrativas. A no- Reencontramos aqui a outra questão que se refere
ção de "narrativa" nos aprisiona nas oposições do real e à relação entre literalidade e historicidade. Os enuncia-
do artifício em que se perdem igualmente positivistas e dos políticos ou literários fazem efeito no real. Definem
desconstrucionistas. Não se trata de dizer que tudo é fic- modelos de palavra ou de ação, mas também regimes de
ção. Trata-se de constatar que a ficção da erà estética de- intensidade sensível. Traçam mapas do visível, trajetórias
finiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e entre o visível e o dizível, relações entres modos do ser,
formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fron- modos do fazer e modos do dizer. Definem variações das
teira entre razão dos fatos e razão da ficção, e que es~es intensidades sensíveis, das percepções e capacidades dos
modos de conexão foram retomados pelos historiador~s corpos. Assim se apropriam dos humanos quaisquer, ca-
e analistas da realidade social. Escrever a história e escre- vam distâncias, abrem derivações, modificam as manei-
ver histórias pertencem a um mesmo regime de verdade. ras, as velocidades e os trajetos segundo os quais aderem
Isso não tem nada a ver com nenhuma tese de realidade a uma condição, reagem a situações, reconhecem suas
ou irrealidade das coisas. Em compensação, é claro que imagens. Reconfiguram o mapa do sensível confundindo
um modelo de fabricação de histórias está ligado a uma a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos
determinada ideia da história como destino comum, ciclos naturais da produção, reprodução e submissão. O
com uma ideia daqueles que "fazem história", e que essa homem é um animal político porque é um animal lite-
interpenetração entre razão dos fatos e razão das histó~ rário, que se deixa desviar de sua destinação "natural"

58 59
pelo poder das palavras. Essa literalidade é ao mesmo tica não são as da identificação imaginária, mas as da de-
tempo a condição e o efeito da circulação dos enuncia- .
smcorporaçao - "I.1terana
, . ,,. li
dos literários "propriamente ditos". Mas os enunciados Não estou seguro de que a noção de utopia dê conta
se apropriam dos corpos e os desviam de sua destinação desse trabalho. É uma palavra cujas capacidades de de-
na medida em que não são corpos no sentido de orga- finição foram completamente devoradas por suas pro-
nismos, mas quase-corpos, blocos de palavras circulan- priedades conotativas: ora o louco devaneio levando à ca-
do sem pai legítimo que os acompanhe até um destina- tástrofe totalitária, ora, ao inverso, a abertura infinita do
tário autorizado. Por isso não produzem corpos coleti- possível que resiste a todas as odusões totalizantes. Do
vos. Antes, porém, introduzem nos corpos coletivos ima- ponto de vista que nos ocupa, o das reconfigurações do
ginários linhas de fratura, de desincorporação. Como se sensível comum, a palavra utopia carrega duas significa-
sabe, isso sempre foi a obsessão dos governantes e dos ções contraditórias. A utopia é o não-lugar, o ponto ex-
teóricos do bom governo, preocupados com a "desclas- tremo de uma reconfiguração polêmica do sensível, que
sificação" produzida pela circulação da escrita. É tam- rompe com as categorias da evidência. Mas também é a
bém, no século XIX, a obsessão dos escritores "propria- configuração de um bom lugar, de uma partilha não po-
mente ditos", que escrevem para denunciar essa literali- lêmica do universo sensível, onde o que se faz, se vê e se
dade que transborda a instituição da literatura e desvia diz se ajustam exatamente. As utopias e os socialismos
suas produções. É verdade que a circulação desses qua- ~tópicos funcionaram com base nessa ambiguidade: por
se-corpos determina modificações na percepção sensível um lado, como revogação das evidências sensíveis nas
do comum, da relação entre o comum da língua e adis- quais se enraíza a normalidade da dominação; por outro,
> tribuição sensível dos espaços e ocupações. Desenham, como proposição de um estado de coisas no qual a ideia
assim, comunidades aleatórias que contribuem para a da comunidade encontraria suas formas adequadas de in-
formação de coletivos de enunciação que repõem e~ corporação, no qual seria portanto suprimida a contes-
questão a distribuição dos papéis, dos territórios e das
linguagens - em resumo, desses sujeitos políticos que
11 Sobre esta questão, permito-me remeter a meu livro Les Noms de
recolocam em causa a partilha já dada do sensível. Mas f'histoire, Paris, Le Seuil, 1992 [edição brasileira: Os nomes da história: um
precisamente um coletivo político não é um organismo ensaio de poética do saber, tradução de Eduardo Guimarães e Eni Puccinelli
ou um corpo comunitário. As vias da subjetivação polí- Orlandi, São Paulo, Educ/Pontes, 1994].

60 61
tação a respeito das relações das palavras com as coisas, 5.
que constitui o núcleo da política. Em A noite dos prole-
Da arte e do trabalho.
tdrios, eu havia analisado desse ponto de vista o encon-
Em quê as práticas da arte
tro complexo entre os engenheiros da utopia e os operá-
12 constituem e não constituem
rios. O que os engenheiros saint-simonianos propu-
nham era um novo corpo real da comunidade, no qual uma exceção às outras práticas
as vias fluviais e os trilhos traçados no chão tomariam o
lugar das ilusões da palavra e do papel. O que os operá-
rios fazem não é opor a prática à utopia, mas devolver a
esta última seu caráter de "irrealidade", de montagem de
palavras e de imagens, próprio para reconfigurar o terri- Na hipótese de uma "fabrica do sensível': o vínculo
tório do visível, do pensável e do possível. As "ficções" entre a prdtica artística e sua aparente exterioridade, ou
da arte e da política são, portanto, heterotopias mais do seja, o trabalho, é essencial. Como o senhor concebe essevín-
que utopias. culo (exclusão, distinção, indiferença .. .)? Pode-se folar do
"agir humano" em geral e nele englobar as prdticas artísti-
cas, ou estas constituiriam uma exceção às outras prdticas?

Pela noção de "fábrica do sensível", pode-se enten-


der primeiramente a constituição de um mundo sensível
comum, uma habitação comum, pelo entrelaçamento de
uma pluralidade de atividades humanas. Mas a ideia de
"partilha do sensível" implica algo mais. Um mundo
"comum" não é nunca simplesmente o ethos, a estadia
comum, que resulta da sedimentação de um determina-
12
Cf. Jacques Ranciere, A noite dosproletários:arquivosdo sonho ope- do número de atos entrelaçados. É sempre uma distri-
rário, tradução de Marilda Pedreira, São Paulo, Companhia das Letras, buição polêmica das maneiras de ser e d:1s"ocupações"
1988. (N. da T.)
n~m espaç~ de possíveis. A partir daí é que se pode co-

62
63
locar a questão da relação entre o "ordinário" do traba- um ao seu lugar. É nessa re-partilha do sensível que con-
lho e a "excepcionalidade" artística. E aqui, mais uma siste sua nocividade, mais ainda do que no perigo dos si-
vez, a referência platônica pode ajudar a colocar os ter- mulacros que amolecem as almas. Assim, a prática artís-
mos do problema. No terceiro livro da República, o fa- tica não é a exterioridade do trabalho, mas sua forma de
zedor de mímesis é condenado não mais apenas pela fal- visibilidade deslocada. A partilha democrática do sensí-
sidade e pelo caráter pernicioso das imagens que propõe, vel faz do trabalhador um ser duplo. Ela tira o artesão do
mas segundo um princípio de divisão do trabalho que já "seu" lugar, o espaço doméstico do trabalho, e lhe dá o
havia servido para excluir os artesãos de todo espaço po- "tempo" de estar no espaço das discussões públicas e na
lítico comum: o fazedor de mímesis é, por definição, um identidade do cidadão deliberante. A duplicação mimé-
ser duplo. Ele faz duas coisas ao mesmo tempo, quando tica à obra no espaço teatral consagra e visualiza essa dua-
o princípio de uma sociedade bem organizada é que cada lidade. E, do ponto de vista de Platão, a exclusão do fa-
um faça apenas uma só coisa, aquela à qual sua "nature- zedor de mímesis vai de par com a constituição de uma
za" o destina. Em certo sentido, isso diz tudo: a ideia do comunidade onde o trabalho está no "seu" lugar.
trabalho não é a de uma atividade determinada ou a de O princípio de ficção que rege o ~egime represen-
um processo de transformação material. É a ideia de uma tativo da arte é uma maneira de estabilizar a exceção ar-
partilha do sensível: uma impossibilidade de fazer "ou- tí;·ti;;: de atribuí-la a uma tekhne, o que quer dizer duas
tra coisa", fundada na "ausência de tempo". Essa "im- coisas: a arte das imitações é uma técnica e não uma
possibilidade" faz parte da concepção incorporada da co- mentira. Ela deixa de ser um simulacro, mas cessa ao
munidade. Ela coloca o trabalho como encarceramento mesmo tempo de ser a visibilidade deslocada do traba-
do trabalhador no espaço-tempo privado de sua ocupa- lho como partilha do sensível. O imitador não é mais o
ção, sua exclusão da participação ao comum. O fazedor ser duplo ao qual é preciso opor a polis onde cada um só
de mímesis perturba essa partilha: ele é o homem do du- faz uma coisa. A arte das imitações pode inscrever suas
plo, um trabalhador que faz duas coisas ao mesmo tem- hierarquias e exclusões próprias na grande divisão entre
po. O mais importante talvez seja o correlato: o fazedor artes liberais e artes mecânicas.
de mímesis c<?:9-fereao princípio "privado". do trabalho O regime estético das artes transforma radicalmen-
uma cena pública. Ele constitui uma cena do comum te essa repartição dos espaços. Ele não recoloca em cau-
com o que deveria determinar o confinamento de cada sa apenas a duplicação mimética em proveito de uma

64 65
imanência do pensamento na matéria sensível. ÇC>loca devir-sensível de todo pensamento e o devir-pensamen-
tal?Jbém em causa o estatuto .neutralizado. dª te.khnc,_~, to de toda materialidade sensível como o objetivo mes-
ideia da técnica como imposição4<:ttr.n.,;i,forma de.pen-:- mo da atividade do pensamento em geral. A arte, assim,
samento a uma matéria inert~. Isto é, faz vir à tona nova- torna-se outra vez um símbolo do trabalho. Ela anteci-
mente a partilha das ocupações que sustenta a repartição pa o fim - a supressão das oposições - que o trabalho
dos domínios de atividade. É essa operação teórica e po- ainda não está em condições de conquistar por e para si
lítica que está no centro das Cartas sobre a educação esté- mesmo. Mas o faz na medida em que é produção, iden-
tica do homem de Schiller. Na esteira da definição kan- tidade de um processo de efetuação material e de uma
tiana do julgamento estético como julgamento sem con- apresentação a si do sentido da comunidade. A produ-
ceito - sem submissão do dado intuitivo à determina- ção se afirma como o princípio de uma nova partilha do
ção conceituai -, Schiller assinala a partilha política, ou sensível, na medida em que une num mesmo conceito os
seja, o que está em jogo nessa operação: a partilha entre termos tradicionalmente opostos da atividade fabrican-
os que agem e os que suportam; entre as classes cultiva- te e da visibilidade. Fabricar queria dizer habitar o espa-
das, que têm acesso a uma totalização da experiência vi- ço-tempo privado e obscuro do trabalho alimentício.
vida, e as classes selvagens, afundadas nas fragmentações Produzir une ao ato de fabricar o de tornar visível, defi-
do trabalho e da experiência sensível. O estado "estéti- ne uma nova relação entre o fazer e o ver. A arte anteci-
co" de Schiller, suspendendo a oposição entre entendi- pa o trabalho porque ela realiza o princípio dele: <!:.trans-
mento ativo e sensibilidade passiva, quer arruinar, com formação da matéria sensível em apresentação a si da co-
uma ideia da arte, uma ideia da sociedade fundada sobre munidade. Os textos do jovem Marx que conferem ao
a oposição entre os que pensam e decidem e os que são trabalho o estatuto de essência genérica do homem só são
destinados aos trabalhos materiais. possíveis sobre a base do programa estético do idealismo
Essa suspensão do valor negativo do trabalho tor- alemão: a arte como transformação do pensamento em
nou-se, no século XIX, a afirmação de seu valor positi- experiência sensível da comunidade. E é esse programa
vo como forma da efetividade comum do pensamento e inicial que funda o pensamento e a prática das "vanguar-
da comunidade. Tal mutação passou pela transformação das" dos anos 1920: suprimir a arte enquanto atividade
da suspensão, própria ao "estado estético", em afirmação separada, devolvê-la ao trabalho, isto é, à vida que ela-
positiva da vontade estética. O romantismo proclama o bora seu próprio sentido.

66 67
Não pretendo dizer com isso que a valorização mo- posição da paisagem do visível, da relação entre o fazer,
derna do trabalho seja somente o efeito do novo modo o ser, o ver e o dizer. Qualquer que seja a especificidade
de pensamento da arte. Por um lado, o modo estéticodo dos circuitos econômicos nos quais se inserem, as práti-
pensamento é bem mais do que um pensamento da arte. cas artísticas não constituem "uma exceção" às outras
É uma ideia do pensamento, ligada a uma ideia da par- práticas. Elas representam e reconfiguram as partilhas
tilha do sensível. Por outro lado, também é preciso pen- dessas atividades.
sar o modo como a arte dos artistas foi definida a partir
de uma dupla promoção do trabalho: a promoção eco-
nômica do trabalho como nome da atividade humana
fundamental, mas também as lutas proletárias para fazer
sair o trabalho da sua noite - de sua exclusão da visibi-
lidade e da palavra comuns. É preciso sair do esquema
preguiçoso e absurdo que opõe o culto estético da arte
pela arte à potência ascendente do trabalho operário. É
como trabalho que a arte pode adquirir o caráter de ati-
vidade exclusiva. Mais atentos do que os desmistifica-
dores do século XX, os críticos contemporâneos de Flau-
bert assinalam o que vincula o culto da frase à valoriza-
ção do trabalho dito sem frase: o esteta flaubertiano é um
quebrador de pedras. Arte e produção poderão se iden-
tificar no tempo da Revolução Russa porque dependem
de um mesmo princípio de repartição do sensível, de
uma mesma virtude do ato que inaugura uma visibilida-
de ao mesmo tempo que fabrica objetos. O culto da ar-
te supõe uma revalorização das capacidades ligadas à
própria ideia de trabalho. Mas esta é menos a descober-
ta da essência da atividade humana do que uma recom-

68 69
11

Sobre o autor

Jacques Ranciere é Professor Emérito de Estética e Política na


Universidade de Paris VIII, onde lecionou de 1969 a 2000. Entre
suas últimas obras publicadas na França, destacam-se L 'inconsciml
esthétique (2001), La fable cinématographique (2001), Le desti II rln
images (2003), Les scenes du peuple (2003), Malaise dans l'esthétiq11t
(2004), La haine de la démocratie (2005), Le spectateur ém//11/'Íf'I'
(2008) e Moments politiques: interventions 1977-2009 (2009). Antl·.,
de A partilha do sensível, teve os seguintes livros publicados no Bra-
sil: A noite dos proletdrios (Companhia das Letras, 1988), Os nornn
da histrJria (Educ/Pontes, 1994), Políticas da escrita (Editora 34,
1995), O desentendimento (Editora 34, 1996) e O mestre ignorante
(Autêntica, 2004). Escreve regularmente para a Folha de S. Paulo e
para a revista Les Cahiers du Cinérna.

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