2023_RobertaPinheiroAsse_VCorr

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 174

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

ROBERTA PINHEIRO ASSE

Na ciranda polifônica, a literatura infantil ressoa entre vozes

das ciências sociais sobre as culturas da infância. Inês, de Roger Mello

e Mariana Massarani, sem favor, entrou na roda.

Versão Corrigida

São Paulo

2023
ROBERTA PINHEIRO ASSE

Na ciranda polifônica, a literatura infantil ressoa entre vozes

das ciências sociais sobre as culturas da infância. Inês, de Roger Mello

e Mariana Massarani, sem favor, entrou na roda.

Dissertação de Mestrado apresentada


ao Programa de Estudos Comparados
de Literaturas de Língua Portuguesa da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo,
como parte dos requisitos para obtenção
do título de Mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Zilda da


Cunha

Versão Corrigida

São Paulo
2023

1
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Asse, Roberta
A844c NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL
RESSOA ENTRECatalogação
VOZES DASna CIÊNCIAS
Publicação SOCIAIS SOBRE AS
CULTURAS DA INFÂNCIA.
Serviço INÊS,
de Biblioteca DE ROGER MELO E MARIANA
e Documentação
MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade /deRoberta
Asse; orientador Maria Zilda da Cunha - São Paulo,
São Paulo
2023.
183 f.
Asse, Roberta
A844c NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL
RESSOADissertação
ENTRE VOZES (Mestrado)-
DAS CIÊNCIASFaculdade deSOBRE
SOCIAIS Filosofia,
AS
Letras eDA
CULTURAS Ciências
INFÂNCIA. Humanas
INÊS, daDE Universidade
ROGER MELO E de São
MARIANA
Paulo. Departamento
MASSARANI, SEM FAVOR, de Letras
ENTROU NA Clássicas
RODA. e/ Vernáculas.
Roberta
Área orientador
Asse; de concentração: Estudos
Maria Zilda da Comparados
Cunha - SãodePaulo,
Literaturas de Língua Portuguesa.
2023.
183 f.

1. literatura infantil contemporânea. 2. estudos


sociais sobre (Mestrado)-
Dissertação as infâncias. 3. culturas
Faculdade das
de Filosofia,
infâncias.
Letras 4. literatura
e Ciências comparada
Humanas da e outras
Universidade áreas do
de São
Paulo.
conhecimento. I. dade
Departamento Cunha,
Letras
Cunha, Maria Zilda,
Zilda,e orient.
Clássicas
Maria II.
Vernáculas.
orient. II.
Área de concentração: Estudos Comparados de
Título.
Literaturas de Língua Portuguesa.

1. literatura infantil contemporânea. 2. estudos


sociais sobre as infâncias. 3. culturas das
infâncias. 4. literatura comparada e outras áreas do
conhecimento. I. da Cunha, Maria Zilda, orient. II.
Título.
ENTREGA DO EXEMPLAR CORRIGIDO DA DISSERTAÇÃO
Termo de Anuência da orientadora

Nome da aluna: Roberta Asse


Data da defesa: 05/04/2023
Nome da professora orientadora: Profa. Dra. Maria Zilda da Cunha

Nos termos da legislação vigente, declaro ESTAR CIENTE do conteúdo deste


EXEMPLAR CORRIGIDO elaborado em atenção às sugestões dos membros
da comissão Julgadora na sessão de defesa do trabalho, manifestando-me
plenamente favorável ao seu encaminhamento ao Sistema Janus e publicação
no Portal Digital de Teses da USP.

São Paulo, 03/06/2023

___________________________________________________

Profa. Dra. Maria Zilda da Cunha

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
2
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
ASSE, Roberta Pinheiro. Na ciranda polifônica, a literatura infantil ressoa entre
vozes das ciências sociais sobre as culturas da infância. Inês, de Roger Mello
e Mariana Massarani, sem favor, entrou na roda. Dissertação (Mestrado) apre-
sentada ao Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portugue-
sa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre.

Aprovado em 05 de abril de 2023

Banca Examinadora

Profa. Dra. Ana Margarida Ramos Instituição: Universidade de Aveiro

Profa. Dra. Susana Ramos Ventura Instituição: Universidade de São Paulo

Profa. Dra. Lígia Regina Máximo Instituição: Universidade Paulista


Cavalari Menna

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
2
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
AGRADECIMENTOS

Às mestras e mestres que me concederam a honra de estar junto e aprender tanto,

Maria Zilda, por tudo e tanto,

Susana Ventura,

Ana Margarida,

Manuel Sarmento,

David Buckingham

e a todos que de muitas formas estão neste trabalho.

Ao grupo de vagalumes e nossos estudos de literaturas infantis.

Às crianças todas que me ensinam sempre, especialmente à Valentina.

À criança que fui e aos meus pais e irmãos, por terem me cuidado e construído

juntos o que vive nessas páginas.

Às minhas filhas, por terem me relembrado e por recriarem comigo, todo dia.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
3
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
RESUMO

ASSE, Roberta Pinheiro. Na ciranda polifônica, a literatura infantil ressoa entre vo-
zes das ciências sociais sobre as culturas da infância. Inês, de Roger Mello e Mariana
Massarani, sem favor, entrou na roda. 2023. 183 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023.

O presente trabalho propõe reflexões acerca da literatura infantil contempo-


rânea sob consideração de visões de infâncias advindas das ciências sociais e dos
estudos comparados de língua portuguesa, associados ao procedimento de escuta
de vozes infantis e de leituras analíticas de livros ilustrados. A via comparatista
é orientada por estudos das pesquisadoras brasileiras Tania Carvalhal e Sandra
Nitrini e, no âmbito das ciências sociais, contamos com as pesquisas de Daniel
Goldin, David Buckingham e Manuel Sarmento, que trazem importantes con-
tribuições. As obras analisadas devem-se a dois momentos desta pesquisa – um
deslocamento para Portugal, perspectivando consulta a um acervo pertinente
aos propósitos desta investigação, e a obra Inês (2015), de Roger Mello e Mariana
Massarani, selecionada como corpus principal, em razão de sua paradoxal sim-
ples e complexa densidade, e o seu favorecimento ao acesso às infâncias. Desse
modo, atesta-se como a leitura de livros, cujas linguagens encontram-se em hí-
bridos e profícuos diálogos, pode refletir visões que consideram a plena capa-
cidade interpretativa e recriadora dos leitores. Compõe-se assim uma fortuna
crítica inédita acerca de uma parte da literatura infantil contemporânea, con-
textualizada de maneira a demonstrar uma rede de agentes formadores, advin-
dos de diversas áreas do saber, transformados em artefatos plurissignificantes em
diálogo com as culturas infantis.

Palavras-chave: literatura infantil contemporânea; estudos sociais sobre as


infâncias; culturas das infâncias; literatura comparada; Inês, Roger Mello e Mariana
Massarani

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
4
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
ABSTRACT

ASSE, Roberta Pinheiro. Na ciranda polifônica, a literatura infantil ressoa entre vo-
zes das ciências sociais sobre as culturas da infância. Inês, de Roger Mello e Mariana
Massarani, sem favor, entrou na roda. 2023. 183 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023.

The present work, under consideration of views of childhood arising from the
social sciences and comparative studies of the Portuguese language, associated
with the procedure of listening to children’s voices and analytical readings of il-
lustrated books, proposes reflections on contemporary children’s literature. The
comparative path is guided by studies by Brazilian researchers Tania Carvalhal
and Sandra Nitrini and, in the field of social sciences, we rely on the research of
Daniel Goldin, David Buckingham and Manuel Sarmento, who bring important
contributions. The analyzed works are due to two moments of this research – a
trip to Portugal, with a view to consulting a collection relevant to the purposes of
this investigation, and the book Inês (2015), by Roger Mello and Mariana Massa-
rani, selected as the main corpus, due to of its paradoxical simple and complex
density, and its favoring access to childhood. In this way, it is attested how the
reading of books, whose languages are found in hybrid and fruitful dialogues, can
reflect visions that consider the full interpretive and recreative capacity of readers.
Thus, an unprecedented critical fortune is composed about a part of contemporary
children’s literature, contextualized in order to demonstrate a network of forma-
tive agents, arising from different areas of knowledge, transformed into plurisig-
nificant artifacts in dialogue with children’s cultures.

Keywords: contemporary children’s literature; social studies on childhoods; chil-


dhood cultures; comparative literature; Inês, Roger Mello and Mariana Massarani

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
5
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................. 8

CAPÍTULO 1 • LITERATURA COMPARADA E LITERATURA INFANTIL:


ABRIGOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS........................................ 16

CAPÍTULO 2 • LITERATURA E CIÊNCIA E CIÊNCIA


E LITERATURA: O ELO EM FORTALECIMENTO E O LIMITE
EM PERMANÊNCIA ........................................................................ 27

CAPÍTULO 3 • ENTRE O INATINGÍVEL E O DETALHE


AO ALCANCE DA MÃO.................................................................... 37
3.1. Recolhas de vozes .................................................................. 39
3.2. Breves reflexões a partir da escuta e observação das crianças ...... 45

CAPÍTULO 4 • POR MEIO DA LINGUAGEM REINVENTADA –


“A NOVA LITERATURA INFANTIL PORTUGUESA”............................... 48
4.1. “A nova literatura infantil portuguesa”.................................... 48
4.2. A multidisciplinaridade, o lúdico e a simplicidade
como propostas de projeto....................................................... 50
4.3. A voz infantil........................................................................ 55

CAPÍTULO 5 • INTERVALO ............................................................ 71


5.1. Critérios de análise................................................................ 74
5.1.1. Primeira camada................................................................ 74
5.1.2. Segunda camada ................................................................ 75

CAPÍTULO 6 • INÊS: DA ORALIDADE ANCESTRAL


AO LUGAR DA VOZ NARRATIVA INFANTIL........................................ 79
6.1 Morfologia............................................................................ 79
6.2 Sintaxe e semântica................................................................. 83

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
6
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
6.2.1. Convite a partir do lúdico: a experiência
e a palavra poética como jogo ...................................................... 83
6.2.3. A personagem “em positivo”: a perspectiva a partir do que a
criança é em oposição ao que ela não pode ....................................... 90
6.2.3. Narradora, personagem e leitor: a voz a partir
do ponto de vista infantil............................................................ 95
6.2.4. Elementos verbais e figurativos: a presença metonímica
do gesto e da oralidade............................................................... 103
6.2.5. O trânsito de representações entre os tempos da narrativa
e o tempo do leitor: a referência simbólica e a ausência dela................ 110
6.2.6. A visão infantil embrenhada da poética e da narrativa
não-linear: o olhar para o adulto e o exercício do juízo “sem valor”....... 119
6.2.7. A percepção e a complementaridade narrativa entre texto
e imagem na abordagem dos temas difíceis........................................ 125
6.2.8. Simbolizar e cerimoniar: a importância do rito de passagem......... 135

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................ 144

REFERÊNCIAS................................................................................ 150

ANEXO – ENTREVISTAS.................................................................. 155


Entrevista Prof. David Buckingham................................................. 155
Entrevista Prof. Manuel Sarmento ................................................. 160

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
7
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
INTRODUÇÃO

A criança não sabe menos, ela sabe outra coisa.


Clarice Cohn

“Estamos diante da revolução que falta, que é a revolução da criança!” (HOR-

TÉLIO, 2019). Com estas palavras, a educadora Lydia Hortélio1 amplifica e re-

presenta vozes de reconhecimento e ocupação, por pensamentos e movimentos

diversos vindos de várias áreas do conhecimento, para as infâncias contemporâ-

neas. “É a revolução do brincar, do restabelecimento do ser humano com toda a

sua grandeza.”, complementa a musicista.

Essa percepção pode ser comparada com a da professora, pesquisadora e crítica

literária Nelly Novaes Coelho:

Parece evidente que o caminho da invenção/construção da nova or-


dem que há de vir passará pela educação, pela formação cultural/ética/
existencial das novas gerações. (...) Há uma “revolução silenciosa” em
marcha. É só atentarmos para a efervescência de pesquisas em todas
as áreas de conhecimento ou entrarmos no mundo da literatura de on-
tem e de hoje, e veremos que há uma nova visão de mundo em gesta-
ção. (COELHO, 2012, p. 102)

De fato, a perspectiva de uma significativa mudança em curso, com dimensões

capazes de gerar “uma nova ordem e visão de mundo”, encontra ainda ressonância

1 Declaração da educadora e musicista Lydia Hortélio em teaser da Ocupação Lydia Hortélio - Itaú Cul-
tural, evento ocorrido em São Paulo de julho a agosto de 2019: https://www.youtube.com/watch?v=rXB-
juD3Qtbc, visitado em 03 de setembro de 2019.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
8
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
nos estudos sociais sobre as infâncias, principalmente nas áreas da sociologia e da

antropologia, que propõem um alargamento das fronteiras do campo disciplinar

predominado pela psicologia, medicina e ciências da educação, para configurar

uma abordagem renovada nos planos teórico, epistemológico e metodológico.

Sob o cabedal teórico das ciências sociais, a infância tem sido abordada como

categoria social do tipo geracional, cuja essência se manifesta por meio das lin-

guagens de linguagens singulares, nas quais confluem o imaginário e entendi-

mentos particulares do cotidiano vivido para a criação de significados próprios.

Esses saberes infantis manifestam-se na relação com os contextos universais e

específicos, assim como na produção de culturas com base nas relações entre as

próprias crianças, e entre as crianças e os adultos. Nesse contexto:

A criança começa a ser cada vez mais pensada a partir do que ela é, do
que ela sabe, do que ela pode, das suas competências, das suas formas
de construir cultura, do modo como ela elabora sistemas ideológicos,
não necessariamente coincidente com o dos adultos; faz isso no mun-
do social em relação aos adultos, nas relações entre crianças. Essa é a
grande transformação nos últimos, digamos, 25, 35 anos no máximo,
no pensamento sobre a infância: a criança é pensada a partir da positi-
vidade das suas próprias características. (SARMENTO, 2016, p. 7)

Enquanto observamos tais mudanças de caráter revolucionário nas visões sobre

as infâncias, a maioria dos críticos, leitores atentos e pesquisadores da literatura in-

fantil são consensuais sobre a presença de livros inovadores e propositores de expe-

riências literárias multiplicadas. No acervo de publicações contemporâneas para as

infâncias, as experiências devem-se aos recursos que renovam e expandem lingua-

gens em todos os elementos compostos do códex e sua natureza de suporte para

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
9
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
as histórias. Essa multiplicidade e expansão pressupõem um leitor capaz de criar e

recriar leituras com base nesses livros.

Das relações possíveis entre estes movimentos que envolvem, de um lado, as

vozes e visões das infâncias e, de outro, a literatura infantil, levantou-se a hipótese

de que há implicações e influências importantes entre eles e nos efeitos inovado-

res que ambos têm demonstrado.

Com base nessa detecção, e considerando como pressuposto, historicamente

comprovado, a relação retroalimentada entre as ideias empreendidas a respeito das

infâncias e as produções literárias culturais destinadas a elas, este trabalho procura,

diante do cenário atual em efervescência, revisitar e compreender as atualizações da

literatura contemporânea como cultura manifesta e desencadeante de novas culturas.

Um trabalho, com essa ampla proposição e com o viés comparatista que o for-

ja, levou-nos a buscar fundamentos teóricos nos estudos de literatura comparada,

os quais orientam perscrutar relações entre a literatura e outras áreas do conheci-

mento e o diálogo profícuo que se estabelece entre as diferentes artes. Contando

com ensinamentos das pesquisadoras Tania Carvalhal e Sandra Nitrini, apresen-

tamos, no capitulo 1 deste trabalho, uma breve sinalização desses fundamentos e

quais redes comparativas puderam ser tecidas com base nos elementos teóricos e

literários trazidos e estudados.

Ainda no âmbito das formulações teóricas, no capítulo 2, trazemos as vozes

de três pesquisadores da área das ciências sociais, cujos pensamentos publicados

até então suportam e justificam parte significativa da hipótese levantada nesta

pesquisa. São eles: Daniel Goldin, editor mexicano autor do livro Os dias e os li-

vros, (São Paulo: Pulo do gato, 2012); David Buckingham, professor britânico, au-

tor de várias publicações importantes na área das mídias culturais para crianças;

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
10
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Manuel Sarmento, sociólogo e professor português, autor e organizador de cole-

tâneas importantes sobre a visão sociológica das infâncias e das culturas infantis.

David Buckingham e Manuel Sarmento concederam entrevistas exclusivas a

esta pesquisa, em que aplicam seus pontos de vista diretamente ao livro e à lite-

ratura. O capítulo 2 traz um recorte dos pontos das entrevistas conectados à nos-

sa defesa, mas houve uma contribuição mais ampla que pode ser verificada nas

transcrições integrais disponibilizadas no anexo desta dissertação.

Um dos pontos abordados com Sarmento durante a entrevista diz respeito à

voz, em que ele coloca que alguns escritores podem ser a voz de algumas crianças.

Sarmento complementa com a condição do indivíduo, e também a do contexto: a

voz literária é resultado de um conjunto múltiplo de movimentos de significação

que transpassam o dentro e o fora do indivíduo sem precisar atravessar fronteiras.

A leitura (e a escrita) é sempre um fato social e, portanto, historica-


mente determinado, que se inscreve na profundidade de sua biogra-
fia afetiva. Como tal, é uma faceta a mais de complexos processos de
constituição de sujeitos e comunidades. Não pode ser compreendida
separada de ambos. (GOLDIN, 2006, p. 128)

É da natureza dessa capacidade de alguns autores transformarem em livro a

voz e as identidades do ser de algumas crianças, de maneira a criar sensações e

percepções sobre as infâncias em todos os leitores, é que se trata a investigação

desenvolvida aqui: um olhar apurado para projetos de livros infantis contempo-

râneos, que aplicam os mais diversos repertórios sensíveis, científicos e tecnoló-

gicos, a engendrar no jogo que a literatura propõe ao ser simultaneamente par-

ticular e universal. Um processo tão antigo quanto o próprio livro, histórico e

sem limites, do qual alguns livros de nossa época são resultado e o atualizam, ao

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
11
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
incorporar a complexidade das descobertas sobre as infâncias que alguns adul-

tos estão prontos para vivenciar todos os dias, abertos à diversidade das crianças

com quem convivemos e às crianças que fomos. Esses livros são de falar, inventar,

brincar, fingir, imaginar, olhar entre buracos e páginas, vazar além das margens,

esconder segredos, sofrer, perdoar, redimir, ler palavras invisíveis, e o que mais

vier. “O livro ilustrado é um milagre.”, disse Nazaré de Souza2, livreira da Hipopo-

matos na Lua, em Sintra, Portugal, maio de 2022.

A contribuição dos legados de outras áreas do saber para a literatura, como

aqui traz a sociologia e antropologia da infância, pode ser também para o rom-

pimento de dogmas ou valores que não encontram validação dentro de novos

contextos. Pensadores como Sarmento, Goldin e Buckingham inspiram esse rom-

pimento com propostas como a participação social e política das crianças como

pertencentes a uma classe geracional com direito a escuta, projetos e voto em

suas comunidades, por Sarmento; equivalência de poderes entre adultos e crian-

ças através da leitura e seu potencial civilizatório e hospitaleiro, facilitador dos

encontros consigo e com o outro, por Goldin; e instrumentalização da capacida-

de crítica das crianças para escolha autônoma dos produtos e cultura a que estão

e da qual são sujeitos, por Buckingham.

Com atenção aos estudos das vozes infantis – por meio da escuta e da parti-

cipação das crianças – como ponto central de onde partem os pensamentos dos

cientistas sociais elencados, e também como ponto irradiador para a concepção

de alguns livros contemporâneos, incorporamos na rede comparativa desta pes-

quisa pontos de vista de crianças, observados em encontros com um conjunto de

livros alinhados com o objetivo de nossa análise. Para esta recolha, revisitamos

2 Declaração da livreira Nazaré de Souza, em entrevista em maio de 2022.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
12
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
uma pesquisa empírica realizada entre os anos 2012 a 2015, em alguns territórios

das cinco regiões do Brasil. Os resultados registrados aguardavam uma mirada

teórica como a que vimos realizar nesta dissertação, no capítulo 3, e essas vozes

ecoarão nas rodas de nossas reflexões.

Com base no estudo e tessitura dos fios teórico e metodológico relacionados, ve-

rificamos e demonstramos, em alguns livros selecionados, a presença e a articula-

ção das vozes pesquisadas em comparação com livros da produção contemporânea

da literatura infantil e juvenil de língua portuguesa. Essa análise comparativa está

desenvolvida nos capítulos 4 e 6: o primeiro tem como objeto um conjunto de li-

vros ilustrados portugueses premiados e traduzidos para várias línguas, nos quais

podemos verificar características de projeto literário alinhadas com as visões das in-

fâncias e dos leitores estudadas aqui. A escolha acontece não apenas pela recepção

celebrada desses livros por diversos públicos, mas também pelas referências com-

parativas importantes que podemos criar a partir da observação de literaturas pro-

duzidas em língua portuguesa dentro de um contexto cultural diverso do brasileiro.

Após um breve panorama geral, este capítulo 4 traz a análise comparativa de duas

obras: Andar por aí, de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso (São Paulo: Edito-

ra 34, 2017) e O meu avô, de Catarina Sobral (Lisboa: Editora Orfeu Mini, 2014).

No âmbito da literatura infantil e juvenil brasileira, para o capitulo 5, selecio-

namos a obra Inês, dos autores brasileiros Roger Mello e Mariana Massarani. Esta

escolha pautou-se pela presença de atributos e desdobramentos plurissignifican-

tes, na obra, abertos para o universo vasto do simbólico, levando em conta os diá-

logos entre leitores, leituras, tecnologias e contextos diversos das infâncias, com

possibilidade de abordagem desses aspectos todos, na sua relação com os concei-

tos trazidos e estudados em todos os capítulos anteriores.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
13
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
As análises de livros desenvolvidas nesta dissertação acontecem dentro do re-

corte, que abarca as publicações contemporâneas no Brasil e em Portugal, e se

enquadram na categoria que chamamos de livro ilustrado, cuja “narrativa se faz

de maneira articulada entre texto e imagens” (VAN DER LINDEN, 2011, p. 8),

pois verbal e visual se complementam e compõem a narrativa e as mensagens em

integração. Em Portugal, o termo atribuído é álbum, ou livro-álbum.

As literaturas produzidas dentro desse recorte têm-se apresentado como pro-

duções envolvidas em um movimento vivo pela criação de narrativas para a par-

ticipação cada vez mais plural do leitor criador. Esta é uma das várias conexões

que se pode estabelecer entre a literatura e as visões contemporâneas das infân-

cias, demonstradas por esta pesquisa, e para cuja contemplação panorâmica con-

tribui muito o enunciado da antropóloga Clarice Cohn:

Quando a cultura passa a ser entendida como um sistema simbólico, a


ideia de que as crianças vão incorporando-a gradativamente ao apren-
der “coisas” pode ser revista. A questão deixa de ser apenas como e
quando a cultura é transmitida em seus artefatos (sejam eles objetos,
relatos ou crenças), mas como a criança formula um sentido do mun-
do que a rodeia. Portanto, a diferença entre as crianças e os adultos
não é quantitativa, mas qualitativa; a criança não sabe menos, ela sabe
outra coisa.(...) A questão, para a antropologia, não é saber em que
condição cognitiva a criança elabora sentidos e significados, e sim a
partir de que sistema simbólico o faz. (COHN, 2005, p. 33)

Com base em tais observações do cenário da produção literária para a infân-

cia e tais premissas fundamentadoras, este trabalho oferece contribuição e fun-

damento teórico e empírico para entendimentos sobre o fluxo interdisciplinar

referido, em que as artes assumem novos papéis e espaços, por meio das novas

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
14
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
mídias; e a criança, novos papéis diante dos grupos sociais e de si mesma, muitas

vezes deslocada em função dos vazios desocupados pelos adultos. Assim,

discursos que fundamentam a formação de leitores (...) supõem que é


por meio da leitura que se dará uma transformação das pessoas. Implí-
cita ou explicitamente, esperam que, ao serem formados como tais, os
leitores ampliem ou modifiquem sua capacidade para estabelecer rela-
ções com eles mesmos e com outras pessoas e instituições, e, portanto,
ainda que de maneira colateral, ajudem a transformar (ou a manter) o
entorno social. (GOLDIN, 2006, p. 126)

O trajeto aqui descrito, percorrido para a tessitura da rede que materializa este

trabalho, pode ser visualizado como engenho da colaboração de pensamentos di-

versos em suas naturezas e origens, assim como giros de pontos de vista, próprios

da natureza das comparações. Diante dessa imagem, pareceu-nos enriquecedor

lançar mão de uma personalidade lúdica para a ornamentação e organização

do corpo da dissertação, em alinhamento com o valor da ludicidade abordado

aqui, tão importante no universo infantil; na ambiência das brincadeiras popula-

res, próprias de performance orais e de participação coletiva; na feitura do livro

ilustrado em que o verbal e o visual jogam com o design que o códex comporta;

ou até no universo construído para esta pesquisa. Trouxemos então a metáfora

da brincadeira de roda, à moda da ciranda, onde cada colaborador pertence com

valores equivalentes, dono de sua voz em sintonia com as demais, sem hierarquia,

conectados pelas mãos e passos para fazer “a roda girar” e ativar a mágica que a

literatura é capaz de catalisar e expandir.

“Por isso leitores e pesquisadores, faz favor de entrar na roda!”

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
15
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 1 • LITERATURA COMPARADA E LITERATURA
INFANTIL: ABRIGOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

Por isso literatura comparada, faz favor de entrar na roda.

As primeiras a serem chamadas para participar e compor a roda, porque sa-

bem dar o tom da ciranda e ser chão para que ela aconteça, são a literatura com-

parada e a literatura infantil.

A investigação proposta por este mestrado articula-se sob o cabedal teórico e

metodológico da Literatura Comparada. Tomamos aqui uma das acepções que

lhe atribui a professora brasileira Tania Franco Carvalhal, para quem essa ciência,

é a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a com-


paração da literatura com outras esferas da expressão humana.
Assim compreendida, a literatura comparada é uma forma específi-
ca de interrogar os textos literários na sua interação com outros tex-
tos, literários ou não, e outras formas de expressão cultural e artística.
(CARVALHAL, 2006, p. 74)

O exercício da análise comparativa, de acordo com os estudos da professora

com base no levantamento de linhas de pensamento de várias escolas nacionais e

internacionais ao longo da História, pressupõe articulações muito além das simi-

laridades ou aproximações entre textos. Conduzem para apontamentos de cone-

xões que possibilitem a configuração de órbitas iluminadoras em torno do texto,

como a migração de temas, motivos e mitos, a busca de referências de fontes e

sinais de influências, aspectos comuns a um mesmo sistema literário e processos

de estruturação da obra.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
16
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Ao colocarmos neste trabalho o desafio de análise da literatura infantil, parti-

cularmente, recortada aqui por um foco no livro ilustrado e suas múltiplas lin-

guagens, é possível compreender a importância da disponibilidade de um campo

amplo para a tessitura de movimentos e relações que envolvem desde o legado

histórico, até a recepção e a materialidade do livro.

Desse modo, em vista da necessidade de tal amplitude, o estudo comparado é a

via teórico-metodológica que abriga os instrumentos e mecanismos para engen-

drar a profundidade necessária na pesquisa desenvolvida aqui, principalmente

quando a busca central, entre os vãos das narrativas, é a relação interdisciplinar

da literatura infantil com as ciências sociais em que as visões sobre as infâncias

são objeto de reflexão. Ou seja, dentro da concepção geral da literatura compa-

rada, esse trabalho usufrui dos métodos analíticos de comparação entre a litera-

tura infantil e outras áreas do saber, ou ainda, dos estudos interdisciplinares, ao

procurar registrar influências dos pensamentos contemporâneos da sociologia e

antropologia da infância, principalmente, nas produções literárias para crianças.

Será possível verificar, nas análises trabalhadas nos próximos capítulos desta pes-

quisa, manifestações artísticas criadas para alguns livros que só poderiam acon-

tecer com base na visão, por parte dos autores e editoria, de um leitor capaz de

interpretá-las e experienciá-las com inteireza e diversidade.

Segundo Tania Franco Carvalhal, o avanço dos estudos comparados de caráter

interdisciplinar é recente, acontecido através de obras decisivas publicadas na se-

gunda metade do século XX3:

3 Calvin S. Brown, sobre as relações entre música e literatura, desde 1948, de Th. Munro; The arts and
their interrelations (1949), o volume editado por James Thorpe, Relations of literary study: essays on inter-
disciplinary contributions e Interrelations of literature, editado por Barricelli & Gibaldi, em 1982 (CARVA-
LHAL, 2006, p. 73).

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
17
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Esses trabalhos expressam a tendência comum de ultrapassar fronteiras,
sejam elas nacionais, artísticas ou intelectuais, mas igualmente de explo-
rar o imbricamento da literatura com outras formas de expressão artís-
tica e outras formas de conhecimento. Acentua-se, então, a mobilidade
da literatura comparada como forma de investigação que se situa “entre”
os objetos que analisa, colocando-os em relação e explorando os nexos
entre eles, além de suas especificidades. (CARVALHAL, 2006, p. 74)

Sob a luz dessa concepção, ao olharmos para o livro infantil contemporâneo,

podemos entender que os resultados de análises sobre ele, com base na perspec-

tiva dos estudos comparados interdisciplinares, dão conta da multiplicidade de

seus conceitos formadores. À medida que, para a gênese de alguns desses livros,

esses conceitos podem contribuir para literaturas, outras artes e ciências de varia-

das naturezas, sendo tais livros, como temos visto, objetos construídos com usu-

fruto de combinações de ferramentas diversas do saber humano.

Durante os aprofundamentos das análises dos livros literários elencados para

esta pesquisa, diante de outros livros e mídias em que as informações são vincu-

ladas – e não são poucas, considerando que a pesquisa acontece sobre produções

concomitantes ao tempo da pesquisadora – é comum a descoberta ou retomadas

de avanço nas ramificações de análise, provocadas pelos espelhamentos comparati-

vos. É perceptível, no exercício da pesquisa de pares, o impulso frequente na evolu-

ção das detecções possíveis, o que nos leva à percepção clara da comparação como

método, mais do que objeto ou objetivo, como nos ressalta Carvalhal:

Pode-se dizer, então, que a literatura comparada compara não pelo


procedimento em si, mas porque, como recurso analítico e interpre-
tativo, a comparação possibilita a esse tipo de estudo literário uma
exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance dos

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
18
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
objetivos a que se propõe. Em síntese, a comparação, mesmo nos estu-
dos comparados, é um meio, não um fim. (CARVALHAL, 2006, p. 7)

Para a construção de análises suficientemente vastas a que nos propomos, a

seleção minuciosa e fundamentada das trilhas comparativas que vão compor o

patrimônio analítico das obras é primordial.

No âmbito do diálogo entre áreas do saber, os fundamentos das ciências sociais

estão alicerçados pelas ideias de Daniel Goldin, Manuel Sarmento e David Buckin-

gham. Para além dos textos publicados pelos três teóricos, foram realizadas entre-

vistas com dois deles. O instrumento entrevista foi entendido aqui como impor-

tante para a abordagem direta da visão sociológica desses autores voltada para a

literatura infantil especificamente, conexão que costuma aparecer diluída nos tex-

tos já publicados por eles. Do terceiro teórico, Daniel Goldin, é possível conhecer

bem as ideias que relacionam livro e literatura aos campos das reflexões e inter-

câmbio com outras áreas do conhecimento, temas principais de suas publicações.

A entrevista com o professor David Buckingham aconteceu por e-mail em ou-

tubro de 2020, posteriormente traduzida para o português por uma profissional

especialista. As respostas do professor aos pontos levantados giraram em torno

da observação do livro como mídia, e da recepção das crianças a esse produto

cultural. Mídia e recepção têm sido os principais objetos de estudo do professor

em sua carreira. Suas reflexões o colocam como um dos principais especialistas

mundiais no tema, pelas suas publicações em livros traduzidos e editados em vá-

rios países, e também pela atuação acadêmica como professor emérito da Univer-

sidade de Loughborough e professor visitante do King’s College, além da Univer-

sidade de Londres, no Reino Unido. Buckingham também dirigiu o Centre for the

Study of Children, Youth and Media da Universidade de Londres.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
19
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A entrevista com o professor Manuel Sarmento, que aconteceu virtualmente

em novembro de 2020, foi gravada e transcrita. A abordagem inicial girou em

torno das possibilidades de inter-relações entre a literatura e a sociologia da in-

fância, considerando os estudos teóricos publicados e disseminados por ele e seu

grupo no Departamento de Ciências Sociais da Educação, do Instituto de Educa-

ção da Universidade do Minho, em Portugal.

Durante as entrevistas, são notórios os engajamentos de Manuel Sarmento

e David Buckingham com uma causa muito bem justificada que pressupõe a

evolução geral do mundo com base no reconhecimento do papel e da melhora

das condições da presença e ação das crianças nas sociedades. Um dos pontos

centrais de seus argumentos comuns estão na importância da escuta e partici-

pação infantis, métodos que permitem a aproximação e fusão das mais diversas

ações sociais realizadas pelos adultos com a genuína necessidade e cultura das

crianças. Para hospedar essas vozes de participação, este trabalho revisita um

projeto de escuta de crianças com base nas metodologias antropológicas, cujos

registros empíricos são observados por este mestrado em diálogo com as mani-

festações literárias em análise. Essas manifestações, dentro da pesquisa, estão

representadas como um conjunto de obras publicadas em um dos contextos do

atual cenário editorial português e um corpus escolhido entre publicações bra-

sileiras com características alinhadas com os fundamentos trazidos e estudados

em toda a pesquisa.

Inês foi a obra escolhida como corpus, ou objeto para análise neste trabalho,

porque apresenta características que conversam com as propostas do que estão

aqui colocadas como literatura infantil contemporânea, aquela que, como arte-

fato literário/objeto cultural/experiência multimodal, apropria-se de recursos de

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
20
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
linguagens plurais que permitem leituras diversas, e procura abrir espaços livres

para a recriação e interação do leitor. A obra literária parte de textos original-

mente não acessíveis ao universo infantil, que compõem a história de tradição

oral de Inês de Castro. A obra é aqui visitada na intenção de verificar como ela

reflete a elaboração capaz de plasmar as questões que conectam os núcleos sim-

bólicos do artefato com o leitor apropriado de sua cultura infantil, seus pontos

de vista particularizados e universais, alinhando-se com olhares para as infâncias

através da escuta e da abertura de lugar para suas vozes e imaginários.

Peter Hunt em Crítica, teoria e literatura infantil (2010) chama a atenção para

a leitura do texto produzido para a criança. Segundo suas ideias há três tipos de

leitura que podem ser realizadas: “o adulto que lê um livro destinado a adultos, o

adulto que lê um livro destinado a crianças e a criança que lê um livro destinado

a crianças.” (HUNT, 2010, p. 78). Sob tal visão, os processos de percepção, aten-

ção e entendimento, constituintes do ato da leitura, estão, de certa maneira, asso-

ciados à ideia de recepção do texto literário.

São diversas as características que configuram o texto para as infâncias, entre as

quais estão as linguagens verbal, visual, tipográfica, a materialidade do livro que

o multiplica como obra de composição artística e semântica. Hunt lembra-nos a

respeito da leitura do texto pelo adulto e pela criança, o que nos remete para o ob-

jetivo desta pesquisa, pois,

nossas referências e intenções são decisivas. É claro que os leitores


adultos nunca podem compartilhar as mesmas referências que as
crianças, em termos de experiência de leitura e vida. O menos eviden-
te é que só raramente compartilhem o mesmo propósito na leitura.
(HUNT, 2010, p. 79)

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
21
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Desse modo é que compreendemos a literatura infantil – uma literatura de re-

cepção não apenas para crianças, mas também para jovens e adultos, como a tra-

balhamos na área de Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portugue-

sa da FFLCH-USP. Ou seja, mesmo escrita por adultos, ela está direcionada para

uma experiência literária que presume um leitor com repertórios e cultura dife-

rente dos adultos. Nessa seara entram componentes importantes, que são a ideia

de linguagem literária e a abordagem que o texto faz de um determinado tema.

Estamos diante de um dos mais interessantes aspectos dessa literatura: a própria

definição do conceito. “De certo modo, portanto, a literatura é o que escolhemos

fazer dela, a literatura infantil é um conceito inevitável, sem parentesco com outros

tipos de literatura, embora possa sobrepor-se a eles.” (HUNT, 2010, p. 90).

Na leitura e abordagem de um texto literário para a infância, é importante que

tenhamos em mente o elemento da interpretação. Hunt, ao refletir a respeito do

processo interpretativo, traz à baila a intertextualidade, que, assim como a recep-

ção, são elementos constitutivos da literatura comparada:

Ao identificar o sentido que o leitor gera, também devemos considerar


a intertextualidade, ou seja, o que se passa entre textos em termos de
alusão e gênero. O que encontramos num texto depende de como o
lemos; e, por sua vez, depende do que os vários gêneros de literatura
infantil permitem que ele seja. (HUNT, 2010, p. 109)

Nas produções literárias recentes que trazem como inspiração temática os mi-

tos ou contos clássicos, os autores, ao recompor o texto tradicional em narrativa

texto-imagem, trabalham com o limite entre o que os fideliza ao original, perten-

cente ao repertório popular, e o que é possível inovar sem quebrar o vínculo que

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
22
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
as faz serem reconhecidas como a mesma história. Na obra Inês, um dos nossos

objetos de análise nesta pesquisa, a principal inovação é a introdução do ponto

de vista infantil através da voz narrativa: o texto é composto em primeira pessoa,

no qual a narradora e personagem é a filha criança do casal Inês e Pedro. O traba-

lho cuidadoso dos autores que, por meio desse recurso, autores apropriam-se de

uma voz infantil, cria construções de linguagem com poesia, simplicidade e deli-

cadeza, sem deixar de abordar temas difíceis componentes da história original.

As intertextualidades a partir das narrativas originais, assim como outras de

caráter tentacular, serão abordadas ao longo da pesquisa, a tempo. Cabe aqui le-

vantar o caráter de atemporalidade permanente na obra: não se requer do leitor

que tenha algum conhecimento de quaisquer aspectos das narrativas que deram

origem ao artefato. Ele completa-se em si, do ponto de vista da mensagem, e ao

mesmo tempo é capaz de provocar inferências diversas, qualidade discutida e

atribuída à arte na sua forma mais profunda, durante as discussões nos encon-

tros da disciplina A Literatura Infantil e Juvenil em Língua Portuguesa: Suportes e

Múltiplas Linguagens4, na FFLCH-USP. Na ocasião de uma das aulas, o grupo de

alunos levantou a questão, que circulava no ambiente da crítica não formal, apli-

cada a um conjunto de livros publicados na última década, que estariam propon-

do a introjeção excessiva de memória no leitor criança, dono de “pouco passado”.

Refletindo sobre esta visão importante, é possível entender que Inês isenta-se des-

ta atribuição ao permitir, com seus recursos narrativos, leituras diversas que se

completam com ou sem o conhecimento prévio de seu texto inspirador.

4 A Literatura Infantil e Juvenil em Língua Portuguesa: Suportes e Múltiplas Linguagens, disciplina da


pós-graduação da área de Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa da FFLCH-USP, mi-
nistrada pela Prof. Dra. Maria Zilda da Cunha e pelo Prof. Dr. José Nicolau Gregorin Filho durante o
segundo semestre de 2018.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
23
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A atemporalidade pode ainda ser percebida não apenas a partir da cronologia da

narrativa, na busca do fio que une um começo a um final, mas também do fio que

percorre o momento da leitura. O ritmo da narrativa não exige resgates de memó-

ria na busca de sentidos. Consideram a atualidade do leitor durante a leitura, sua

inteireza no presente, como é próprio das crianças e difícil para os adultos, como

nos provoca Clarice Lispector (1920-1977) em seu texto Menino a bico de pena:

“Como conhecer jamais o menino? (...) Quanto a mim, olho, e é inútil:


não consigo entender coisa apenas atual, totalmente atual. (...) Sei que
é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o
papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele
vive”. (LISPECTOR, 1969)

É importante ressaltar que a desnecessidade do conhecimento prévio dos tex-

tos de origem não exclui que, ao conhecê-las e ambientá-las, o leitor poderá

acrescentar novas dimensões de significado para os textos verbal e imagético lidos, e

ainda despertar, através da interação com o imaginário público, o sentimento de per-

tencimento ao legado herdado do passado como patrimônio cultural. A leitura

pode, sem dúvida, incrementar o potencial de diálogo na relação adul-


to-criança. (...) cumpre funções primárias e funções sociais complexas,
que ativa a memória e a imaginação(...) é sempre uma forma de fazer
visível, de catalisar ou modificar o continuum entre um indivíduo e os
demais. (GOLDIN, 2006, p. 133)

As ideias de Goldin podem ser conectadas às de Sandra Nitrini em Literatu-

ra Comparada (2010), quando a autora define o conceito de intertextualidade

e os diferentes modos que se originam da relação do texto com outros textos

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
24
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
anteriores. Mais uma vez, o foco direciona-se para a forma interpretativa que da-

mos a determinada obra ou texto literário:

Há, portanto, três elementos em jogo: o intertexto (o novo texto), o


enunciado estranho que foi incorporado e o texto de onde este último
foi extraído. E há dois tipos de relações a considerar na problemática in-
tertextual: as relações que ligam o texto de origem ao elemento que foi
retirado, mas agora já modificado no novo contexto, e as relações que
unem este elemento transformado ao novo texto, ao texto que o assimi-
lou. Assim, a análise de uma obra literária buscará inicialmente avaliar
as semelhanças que persistem entre o enunciado transformador e o seu
lugar de origem, e, em segundo lugar, ver de que modo o intertexto ab-
sorveu o material do qual se apropriou. (NITRINI, 2010, p. 109)

Ao conceito de intertextualidade, podemos associar a influência e a recepção.

Ambos os elementos tratam do exercício da leitura e de como o leitor absorve essa

leitura. Sandra Nitrini evoca, ao definir “influência”, as ideias de Claudio Guillén,

para quem o estudo da influência deve partir de sua identificação, ou seja, saber-

mos se ela existe ou não realmente, para depois criarmos um meio interpretativo

dessa influência no texto que é objeto de estudo. Associa-se a isto outro conceito

importante que é o da originalidade, definido, como lembra Nitrini, por Paul Va-

léry. Segundo ele, a originalidade viria com duas significações: aquilo que é imagi-

nado sem modelo e a segunda – aqui, de maneira particular muito importante – a

marca própria de um texto mesmo que ele seja resultado de uma intertextualidade

ou ainda, influência de um outro texto anterior.

O livro selecionado como objeto principal de análise nesta dissertação, Inês,

é, em sua própria origem temática, um objeto de intenso caráter intertextual – e,

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
25
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
portanto, da vocação do comparativo – ao recontar a história ancestral de Inês de

Castro, inspiração para muitos outros textos de variadas épocas e gêneros. Nes-

ta análise, o método comparativo com foco na interdisciplinaridade, permitiu a

investigação da obra com abrangência bastante ampla, ao abraçar pontos de vis-

ta variados como, por exemplo: o da cultura escrita, ao comparar o texto com os

clássicos e com o mito de tradição oral; da narrativa de imagem, comparando os

elementos simbólicos da ilustração com elementos da tradição simbólica de outras

artes, principalmente as artes plásticas; dos contextos sociais e políticos, vindos

das disciplinas de História, referenciando épocas pelas quais a narrativa transita,

contribuindo para a verossimilhança textual e gráfica nas representações diversas,

como moda, objetos, termos e expressões; da comparação entre gêneros literários,

considerando a presença marcante da poesia e lirismo no texto híbrido, como re-

cursos para a presença de temas difíceis. Sem deixar de lembrar a relação compa-

rativa central, já citada, que faz emergir as várias concepções de infância com base

na construção da personagem narradora, que serão aprofundadas no capítulo 6.

Durante o deslocamento da pesquisa em Portugal, foi possível visitar o lar da

personagem Inês, o mito literário da obra corpus deste trabalho, e perceber ecos

dos mais diversos e ramificados no imaginário de pessoas de idades e contextos

diferentes, e seu caráter de permanência e renovação. Além dessa experiência, a

estadia em estágio na Universidade de Aveiro permitiu verificar, nos encontros

com os acervos e com a pesquisa e crítica acadêmicas sobre os livros ilustrados

contemporâneos portugueses. Serão aprofundados, no capítulo 4, a presença de

diálogos competentes dessas obras com diversas artes e recursos lúdicos com ga-

nhos significativos no manejo de uma linguagem de natureza universal.

Prontos e de mãos dadas com as mestras cirandeiras? Então,“Vamos todos cirandar!”


NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
26
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 2 • LITERATURA E CIÊNCIA E CIÊNCIA E
LITERATURA: O ELO EM FORTALECIMENTO E O LIMITE
EM PERMANÊNCIA

Por isso Daniel, David e Manuel, faz favor de entrar na roda!

Este capítulo vem convidar três pensadores das áreas das ciências sociais,

cujas ideias contribuem fortemente com a fundamentação teórica metodológica

desta pesquisa. Eles são chamados, assim, para participarem da “roda”, munidos

de suas visões sobre as infâncias contemporâneas e pressupostos com potencial

de ressignificar leituras, bem como de incentivar fazeres literários inovadores e

sensíveis. Vale iniciar com uma breve apresentação de cada um desses pesquisa-

dores, para depois entrarmos em contato com tais ideias recolhidas por meio de

leituras e de entrevistas concedidas por Manuel Sarmento e David Buckingham

a esta pesquisadora.

Em comum, Manuel Sarmento, Daniel Goldin e David Buckingham partem

da percepção das infâncias como construção social: “A ideia de que a infância

é uma construção social é hoje um lugar-comum na história e na sociologia da

infância e está sendo cada vez mais aceita até mesmo por alguns psicólogos.”

(BUCKINGHAM, 2000, 19).

Essas construções sofrem variações significativas ao longo da História, segun-

do já anunciava Philippe Ariès (1960), de acordo também com interesses da com-

posição dos complexos sociais, políticos e econômicos de cada época.

Ao voltarem seus olhares para as infâncias contemporâneas, sobre bases con-

ceituais oriundas das ciências sociais, os autores aqui elencados apresentam e

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
27
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
discutem seus pensamentos apropriando-se também de suas experiências como

pesquisadores das infâncias, onde a escuta de crianças é método, e atribui credi-

bilidade aos pressupostos levantados, dada às possibilidades de demonstração e

aplicação das ideias propostas.

Daniel Goldin, editor mexicano, aborda as transformações das concep-

ções de infâncias relacionadas com a literatura, investigando a qualidade de

instrumento da literatura no estabelecimento de novas relações entre crianças

e adultos. Para ele, a literatura infantil contemporânea possibilita a recriação

por parte de quem lê, através de uma linguagem polifônica e multiplicada, e

por isso oferece direitos e poderes ao leitor. A partir desse território liberado da

linguagem, é possível uma aproximação entre adultos e crianças, contribuintes

entre si nas leituras do livro com suas sabedorias particulares e uma troca equi-

parada da experiência leitora. Segundo Goldin (2006, p.59): “A literatura para

crianças deixou de ser uma literatura para ser ouvida e acatada, para uma lite-

ratura que busca ou propicia, de diversas formas, o diálogo, a participação ativa

das crianças no mundo.”

Manuel Sarmento, sociólogo português, fundamenta a passagem da ideia

da infância como tempo de silêncio, de incapacidades e transição para a vida

adulta – mini-adulto, vazio a ensinar, confinamento sem vida pública, incomple-

tude e dependência – para uma visão sociológica, em que a infância é uma cate-

goria social do tipo geracional e as crianças são membros ativos da sociedade, su-

jeitos das instituições às quais pertencem. Atores sociais com identidade diferente

dos adultos, com formas próprias de significação do mundo. Segundo Sarmento

(2002, p. 3): “É da ordem da diferença e não do deficit que tratamos, quando fala-

mos do imaginário infantil, por relação com o dos adultos.”

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
28
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
David Buckingham questiona a visão da infância como exclusão, vista por

ele como a construção cultural dominante, criada pelos adultos, que pode ser

observada por meio da representação nas mídias ao longo dos tempos. Como

exemplo, observa as ideias de infância reveladas nos livros da Era de Ouro da

literatura5. Buckingham propõe que as mesmas diferenças que segregam podem

ser objeto de construção de novos comportamentos, em que adultos e crianças

assumem posições inéditas diante dos novos contextos, e aprofunda possibilida-

des diante do consumo das mídias eletrônicas:

A tentativa de proteger as crianças restringindo o acesso às mídias


está destinada ao fracasso. Ao contrário, precisamos agora preparar
as crianças para lidar com essas experiências, e, ao fazê-lo, temos
de parar de defini-las simplesmente em termos do que lhes falta.
(BUCKINGHAM, 2000, p. 32, grifo do autor)

Como ponto de partida para os conteúdos das entrevistas, Buckingham e Sar-

mento se fazem entender enquanto pesquisadores das infâncias acerca das ques-

tões sobre a mídia e literatura.

Para Buckingham6: “todas as questões críticas aplicáveis às demais mídias (te-

levisão, cinema, games) podem e devem ser aplicadas aos livros também.”

A literatura em geral, em especial a infantil, tem a propriedade de, para

Sarmento, “antecipar muitas das questões que, mais tarde, o pensamento socioló-

gico vai tratar, trabalhar e investigar, e produzir conhecimento próprio. A literatura

5 Referência a obras de Lewis Carroll, Edward Lear e J.M. Barrie, segunda metade do séc. XIX.
6 Para compreensão clara das vozes em diálogo, as transcrições dos trechos das entrevistas estão grafa-
das em cores diversas. As falas do Prof. David Buckinham estão grafadas na cor azul, e as do Prof. Manuel
Sarmento estão grafadas na cor marrom. Recurso aplicado apenas neste capítulo 2.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
29
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
nos traz, ao andar do tempo, dar conta do que é a realidade vigente das crianças e

da infância, das suas vidas, dos seus modos de se ver o mundo. E, de alguma manei-

ra, o trabalho sociológico tem uma função de ancorar aquilo que são intuições e insi-

ghts, imagens produzidas pela literatura, e transformar em conhecimento suscetível

a prova, teórica e empiricamente validados.”

Sarmento concorda que a colaboração também pode acontecer no sentido in-

verso, quando absorvermos o conhecimento científico como inspirador para a

criação artística. Ao pensarmos em como essa apropriação pode se manifestar,

chegamos à questão da voz: um autor adulto pode, ou está capacitado para ser a

voz das crianças do seu tempo?

Sarmento: “o meu cavalo só falava inglês”.

Ao “sim” que poeticamente acompanha a referência a Chico Buarque, segue a

ressalva:

Sarmento: “este é um projeto que é possível para alguns escritores. E é funda-

mental exatamente reverter as imagens feitas, esta linguagem muito usada, e criar

uma outra forma discursiva, um outro modo de expressão no mundo dos outros na

relação com a natureza e com a sociedade.”

Do mesmo modo, na visão do professor, os adultos criadores podem

Sarmento: “ser a voz de uma parte das crianças, não de todas as crianças.

E não apenas um literato, um escritor. Em outras áreas da produção artística, e

portanto na construção estética do conhecimento, digamos assim, a construção do

conhecimento a partir de uma visão sensível da vida, outras expressões artísticas

efetivamente configuram mundos, que são muito próximos e inspirados nos infan-

tis. Em uma medida que não diria representativos, mas muito próximos. Desde a

música, basta lembrar o Heitor Villa-Lobos (...) e outros cantores no Brasil, e em

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
30
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Portugal há também alguns, como Paulo Siqueira Paz, por exemplo, “os meninos a

volta da fogueira” 7. E também da própria pintura: Miró, Paul Klee, são pintores que

procuraram na infância uma parte importante da sua inspiração.(...) mas creio que

a procura de uma empatia com o pensamento infantil, é por vezes um projeto que

se exprima na literatura, na poesia, talvez mais do que na ficção, mas certamente

que este é um projeto que é possível para alguns escritores.”

Para o professor David Buckingham, o olhar sobre o processo histórico da re-

lação entre a literatura e as visões para as infâncias pode nos trazer algumas res-

postas no que diz respeito aos personagens e às histórias:

Buckingham: “O ponto é que quase todos os textos de mídia (livros inclusive)

produzidos para crianças são criados por adultos; e, sendo assim, estão fadados a

refletir as ideias prevalecentes que os adultos de uma época têm sobre a infância.

(...) Podemos dizer o mesmo sobre as produções contemporâneas (...), não é de sur-

preender que nos livros infantis contemporâneos vejamos crianças mais poderosas,

menos inocentes, mas elas também estão mais ameaçadas e ‘em risco’ maior do que

víamos em livros escritos há 50 ou 100 anos. Creio que isso também valha para as

perspectivas críticas empregadas na discussão sobre literatura infantil.”

À questão da voz na literatura, (mesma pergunta feita a Sarmento) – se um

autor adulto pode ser a voz das infâncias de seu tempo – Buckingham responde:

Buckingham: “acho que os autores para a infância podem reivindicar uma

fala em nome da criança (temos alguns bons exemplos no Reino Unido: Michael

Rosen, Malorie Blackman), mas creio que eles jamais poderão ser a voz das crian-

ças. Retomo o argumento de Jacqueline Rose a respeito: acredito que haja uma la-

cuna intransponível entre o autor adulto e a criança leitora.”

7 Referência à música Os meninos de Huambo, de Paulo de Carvalho

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
31
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Sobre a aproximação entre livros e leitores e características de linguagem na

relação com o real, como se instaura o diálogo da literatura com as visões das in-

fâncias contemporâneas; como se faz essa busca? À primeira questão, Sarmento

volta-se à participação infantil.

Sarmento: “Em questão da participação do leitor na produção da obra literá-

ria é algo que se tenta avaliar desde há muito tempo, há quase um século, a partir

de obras de referência ou similares de Bakhtin, por exemplo, que acho que é o autor

que mais claramente, a partir sobretudo do estudo do romance de Dostoiévski, fun-

damenta a ideia da literatura polifônica, capaz, portanto, de fazer ouvir múltiplas

vozes que só são suscetíveis se a gente qualificá-las e articulá-las pelo trabalho do

leitor, que acrescenta sentido, que faz as sínteses, que faz as articulações, e por isso

mesmo consegue completar a obra. Suponho que uma boa parte da literatura con-

temporânea segue esta via de fazer com que os fios de sentido sejam finalmente teci-

dos pela leitura.

Eu acho que isso é muito interessante também pensar ao nível da criança, em

como a literatura é suscetível de ser reconstruída pela criança, a partir exatamen-

te da leitura que ela faz, e da transcrição que faz daquilo que lê ou que leem, em

relação à sua vida. Para isso, é fundamental que haja abertura da parte dos adul-

tos para participação das crianças. No entanto, esse papel não é meramente passi-

vo, não é apenas um papel de escuta, é muito mais que isso, é uma escuta ativa, é

uma intervenção envolvedora da participação das crianças.

Esses papeis são também muito importantes no ato da leitura, e sobretudo

no caso crianças pequenas que não leem, mas que ouvem histórias e são capa-

zes de acrescentar pontos aos contos, como se diz no ditado popular. As crianças

são sempre capazes de acrescentar pontos aos contos, desde que os contos sejam

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
32
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
disponibilizados pelos adultos, que tenham essa função de articulação e viabiliza-

ção da participação das crianças.”

O segundo foco da questão para o professor Manuel Sarmento:

Sarmento: “Eu acho que as culturas da infância têm como um dos seus pilares

efetivamente esta transfiguração imaginária do real. Isto é motivo, ou se calhar, a

âncora para uma fortíssima resiliência das crianças mais vulneráveis em situações

de maior dificuldade. Hipotetiso que muito dessa resiliência infantil, que é muito

mais visível entre as crianças do que entre os adultos, isto é, há muito mais crianças

que se salvam passados dias de acontecimentos trágicos, como terremotos, tsunamis

e outras situações extremas, e isso se deve à sua capacidade imaginária, isto é: a

possibilidade que tem de se transpor para outro espaço e tempo, e nessa transposi-

ção que se chama imaginária, garantirem as condições de sua própria sobrevivência,

pela força que os dá ser um outro personagem, em um outro lugar, escapando ima-

ginariamente ao sofrimento atroz.

Esta é uma função de toda a humanidade, não é uma coisa que seja específica

das crianças. Todos os homens e mulheres sonham, imaginam e transpõem a ima-

ginar o imaterial, são capazes portanto de produzir outras formas de se transporem

no espaço e no tempo, digamos assim. No entanto nas crianças isso é muito vivo, e

mais que isto, é alguma coisa que é verdadeiramente estruturante daquilo que são

as suas condições de existência, porque pelo imaginar a criança está continuamente

a refazer a sua experiência de vida, ampliando ou revendo, a criança faz a constru-

ção de culturas de pares e das culturas infantis.”

Ao vislumbrarmos a grande quantidade de possibilidades das manifestações

dos universos infantis, assim como as expressões livres pelas crianças, importa-

-nos a perspectiva do livro contemporâneo como suporte “hospitaleiro” – para

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
33
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
utilizarmo-nos do termo inspirado por Goldin (2012). A partir dessa per-

cepção, perguntamos: em que medida o fazer infantil pode contribuir para o

fazer da literatura?

Sarmento (sorrindo): “É importante lembrar o fato de que as crianças são

produtoras de formas de linguagem que se podem configurar, se não na literatura,

pelo menos em fragmentos específicos esteticamente criados. Os primeiros estudos

no mundo sobre o que seria a produção linguística das crianças enquanto forma

de afirmação de uma cultura infantil própria, foi feita no Brasil por Florestan

Fernandes, quando ele estudou as trocinhas no Bom Retiro, no centro de São Pau-

lo, (...) e verificou também imensas outras formas, digamos, de reafirmação, de es-

truturação, de recriação de parlendas, quadras, etc. de forma original. E esse é um

outro aspecto que me parece também bastante interessante: verificar de que modo é

que os jogos e as linguagens das crianças são produtoras efetivamente de dualidades

expressivas, suscetíveis de constituir estes fragmentos de uma literatura infantil, não

no sentido de uma literatura configurante, uma cultura adulta para as crianças,

mas sim uma cultura verdadeiramente infantil. Isto é, criada e geneticamente origi-

nada na produção das crianças em seus processos. Mas realmente talvez seja o caso

de fazermos olhos para essa forma de produção linguística, identificando, portanto,

esses fragmentos literários construídos pelas crianças. (...) É um desafio muito inte-

ressante a perseguir.”

Sob a perspectiva da pesquisa deste mestrado, o desafio sugerido pelo profes-

sor Sarmento está sendo materializado de maneira experimental por autores di-

versos com habilidades multidisciplinares, em conexão com as visões das infân-

cias de seu tempo, como será verificado no decorrer deste trabalho. Tais autores,

aliados às propostas de suas casas editoriais, parecem estar, como cita Sarmento,

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
34
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
envolvidos com projetos literários que procuram abarcar e navegar por todas as

esferas de gênese e efeito do livro para as infâncias.

A permanência ou efemeridade desse acervo inovador, do ponto de vista histó-

rico, será indicado no futuro pelas leituras feitas por crianças e adultos, que por

sua diversidade e natureza experencial não são possíveis de medir com exatidão,

embora seja indiscutível a importância de seus registros. É com foco nas leituras

como instrumentos validantes que cabe aqui, com ênfase e alinhamento às res-

postas do professor Manuel Sarmento, a visão propositiva de Daniel Goldin para

uma percepção tecida a fios de tempo pela observação histórica:

Desde logo, devemos lançar mão da história da leitura, procurando


que se converta em uma história geral dos usos da linguagem, a fim de
dar conta de duas continuidades habitualmente separadas: a continui-
dade entre a linguagem escrita e a oral (dizendo de outra forma, entre
ler, escrever e falar) e a continuidade entre o espaço privado e o espa-
ço público. Só assim poderemos compreender historicamente o senti-
do do silêncio e do dito, do compartilhado e do reservado, da forma
como as palavras escritas vão readquirindo corpo nos atos e vivências
de crianças e adultos. (GOLDIN, 2012, p. 57)

Para este trabalho, a contribuição dos sociólogos por meio de suas reflexões

durante as entrevistas, confirma a ideia de que vivemos um momento no qual a

visão das infâncias está em profunda transformação e suas diretrizes influenciam

diretamente uma parte da literatura em produção, assim como a literatura tam-

bém é capaz de alimentar a composição científica dessas visões. Os aspectos que

caracterizam essa literatura, tão desbravadora quanto a ciência praticada pelos

teóricos elencados aqui, serão objeto de investigação nos capítulos que seguem,

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
35
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
que hão de chamar mais integrantes agentes para compor essa roda.

“Sozinha eu não fico

Nem hei de ficar

Pois eu tenho as crianças, as ciências e as artes

Para ser meu par!”

“Por isso Manuel, Daniel e David, faz favor de ficar na roda

digam um verso bem bonito

sem adeus nem vá se embora!”

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
36
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 3 • ENTRE O INATINGÍVEL E O DETALHE
AO ALCANCE DA MÃO

Por isso criançada, faz favor de entrar na roda.

Este capítulo vem girar a “roda do ponto de vista” e entregá-la para as crianças.

Através da escuta e da participação ativa no giro entoado pelas palavras ciran-

deiras, procuramos posicionamentos empáticos a fim de nos aproximarmos dos

pontos de vista e das linguagens infantis de comunicação e percepção do mundo.

As reflexões e experiências levantadas contribuem para a validação da hipótese

levantada neste mestrado ao verificar alguns comportamentos e interações de di-

versas crianças em experiência com o livro e com as histórias.

Como fonte para essa verificação foram retomados materiais de pesquisa re-

sultantes da carreira desta pesquisadora como mediadora de leitura, autora e

ilustradora, assim como atuante no projeto Criadeira de Histórias, entre os anos

2012 e 2015. Esses materiais são resultados de registros de conversas e leituras de

diversos livros ilustrados com crianças em comunidades do interior nas cinco re-

giões do Brasil. Os livros selecionados são todos ilustrados, de temática e autorias

diversas, e tiveram nossa atenção e interesse por acreditarmos estarem disponí-

veis para uma relação aberta para e com o leitor criança, características que serão

investigadas com detalhes nos capítulos que seguem.

Durante as interações com os grupos e com os livros, foi possível verificar a

constância de duas manifestações relevantes, pelas crianças, em todos os en-

contros: as obras de preferência e as obras de rejeição costumam ser as mesmas,

inclusive entre grupos de diferentes idades; e a resistência, pelas crianças, para

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
37
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
participação nas leituras em voz alta e para manipular os livros com autonomia.

Essas duas verificações durante as experiências até 2015 foram disparadoras das

perguntas que provocaram posteriormente a elaboração da proposta de pesquisa

deste mestrado e ingresso, em 2019: por que alguns livros conseguem estabelecer

conexões e conversas com os leitores de maneira fluida e espontânea, e outros

não? Por que os livros costumam ser objeto de resistência como pertencentes ou

parte das culturas cotidianas pelas crianças?

Importante citar que o material de pesquisa, aqui referido, aguardava espaço

teórico metodológico para a devida análise; e foi nesse sentido que revisitamos

tal experiência – para nós deveras expressiva. Entendemos ser elo de grande im-

portância as vozes das crianças, suas representações acerca de uma literatura cria-

da para elas, daí, inseri-las nesta ciranda de entoação polifônica.

Essas experiências foram propiciadas por dinâmicas organizadas em formato

de rodas de conversa e/ou leituras de livros, em locais em que as crianças convi-

viam e brincavam, costumeiramente, fora da escola. Optou-se por criar situações

de conforto e espontaneidade para ambientar manifestações livres nas interações

entre elas próprias e nós – adultos pesquisadores. Concepções da antropologia da

infância nos orientavam a buscar uma interação em forma de conversa. Enten-

díamos também ser a observação algo que vai além do verbal, pois engendra ma-

nifestações que acontecem nos silêncios, nos movimentos do corpo e em outros

comportamentos observáveis. Para Sarmento:

Serão várias as funções, finalidades e responsabilidades do adulto.


Será mediador, por vezes. Outras vezes um facilitador. Outras, um in-
terniente, um co-participante ativo, o que é mais que uma facilitação
da percepção das crianças. (SARMENTO, 2011, entrevista)

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
38
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Sob esta ótica, a escuta motivada pela leitura de obras literárias pode qualifi-

car a presença do mediador de leitura como algo quase mágico: ora invisível, ora

provocador e participante, mas sempre sensível e cuidadoso.8

3.1. Recolhas de vozes

Por meio dessas vozes infantis identificamos linhas de ideias e expressões que

traziam em si referências construídas por elas, suscitadas pelos encontros com os

livros, com base em memórias e repertórios culturais:

– A mulher desse livro fala igual a minha mãe! (Janaína, 8 anos)

– “como faz uma arara.” (leitura do livro). E igual faz o periquito e as mari-

tacas também, né? (Rafael, 7 anos)

(sobre uma personagem de um livro conduzir um barco sozinha): – Men-

tira que ela conseguiu! Eu já tentei mil vezes e nunca deu. (Marivone, 11 anos)

– Não quero falar... É que eu não entendi essa parte. (João, 7 anos)

– Minha irmã sabe fazer tudo que essa moça do livro faz. Mas ela foi embo-

ra e eu não quero ler porque me dá saudades dela. (Ester, 8 anos)

8 A escuta e observação das infâncias, inter-relacionada com as artes, usufruindo dos métodos da
antropologia, podem ser vistos em outros projetos no Brasil e no mundo, como por exemplo da autora
Sonia Kramer, que produz literatura de registro; da pesquisadora Gabriela Romeu, produzindo documen-
tários em várias mídias; do projeto Território do Brincar e do pesquisador Jan Willem-Bult, no âmbito das
produções audiovisuais.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
39
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
(rindo muito) – Que coisa esquisita tem aqui nesse livro! (imagens de cocô

de animais) Acho que você não vai querer ver não. (Cledson, 6 anos)

– O monstro que eu vi embaixo da ponte é parecido com esse. (Vitor, 5 anos)

– Não sabia que nesse livro podia ter uma história parecida com a minha.

De quando eu fui na praia, sabe? (Ester, 8 anos)

– Acho que você não entendeu. Isso pode ser um pato e um coelho, depende

da hora que eu quiser. (Rafael, 7 anos)

– A pessoa que escreveu esse livro esqueceu de pôr o pai para resolver essas

coisas. (Mariana, 9 anos)

– Quando eu vi um camelo não era assim. O meu tinha glitter aqui ó.

(Lindalva, 4 anos)

Ao procurarmos aprendizados a partir das manifestações das crianças, é pres-

suposto ter em vista a ressalva de Daniel Goldin:

Parece-me que, se queremos dar conta da forma como as crianças se


constituem como sujeitos a partir do contato com a literatura, deve-
mos colocar o acento na apropriação, (...) pois, como em todo proces-
so de definição da identidade, tanto a apropriação quanto o repúdio
são significativos. De fato, não podemos esquecer que ambos se dão
numa multiplicidade de práticas culturais, e não somente durante a
leitura silenciosa de um livro. (GOLDIN, 2012, p. 58)

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
40
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Entre os muitos aspectos que podemos captar e refletir com base em manifes-

tações das crianças como essas citadas acima, optamos por destacar dois, cujos

reflexos ou interpretações artísticas de alguma maneira estão presentes nos livros

“preferidos”:

Identidade e pertencimento: Costuma ser encantadora a ideia de se ver na nar-

rativa de um livro, ou experimentar a representação de uma parte de si ou daquilo

que de alguma maneira já se experimentou ou faz parte do imaginário do grupo a

que se pertence. O estranhamento, muito bem-vindo, também pareceu acontecer por

meio da identidade com a vivência de fantasias, medos e outros sentimentos, pro-

vocando um olhar renovado para sem-nomes, por meio do diferente, do inesperado.

Trânsito entre realidade e imaginação: Durante os diálogos com as crianças,

é possível verificar semelhanças entre “os rumos das conversas” que interessam

bastante a essa abordagem à medida que, por meio dessas manifestações, é pos-

sível perceber suas maneiras de compreensão e transfiguração das histórias ou-

vidas e contadas pelas crianças. Uma das equivalências acontecidas muitas vezes

nos encontros foi também um tipo de “prova de engajamento”: trata-se do trânsi-

to entre a realidade e a imaginação. Ao acontecer durante os diálogos, foi um si-

nal de que as crianças se envolveram pelos conteúdos da conversa e do encontro.

Um dos exemplos memoráveis aconteceu na comunidade de Cuiabá-mirim,

região do pantanal do Mato Grosso. Crianças de várias idades contavam sobre

os bichos da região. À medida que lembravam de suas histórias, iam se entusias-

mando, falando ao mesmo tempo, e passaram a exagerar nas descrições dos ani-

mais e nos perigos das situações em que eles os haviam visto. Enquanto uma me-

nina de 9 anos contava ter visto uma sucuri dentro de um “toco de pau”, Miguel,

de 5 anos, levantou-se, parou de pé no meio da roda e disse:

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
41
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
– Eu vi um tamanduá.

– É mesmo? Onde? – perguntou a pesquisadora.

– Na minha casa.

Outra criança começou a falar. Miguel a interrompeu, chamando a atenção por

gestos:

– Tia, tia, ele foi me visitar.

– Ah, eu gostaria de conhecer um tamanduá! – comentou a pesquisadora.

– Ele me disse que não pode amanhã porque tem que cuidar do filhotinho.

– Então vamos encontrar com ele hoje? – a pesquisadora perguntou.

– É que o filhotinho está nascendo agora.

Miguel olhava para a pesquisadora fixamente, sério. Houve um silêncio, como

que pensando, e um susto por um grito:

– É mentira!

Era Madalena, de 8 anos, que sorriu com os olhos arregalados. Quando todos

riram, ela deitou no colo da pesquisadora, e deu uma grande gargalhada.

Em seguida, Miguel ficou sério e continuou:

– Eu vi uma onça. Foi na minha casa, ela.

Observações como esta são como o próprio mecanismo da literatura em mo-

vimento. Podemos inclusive verificar a palavra, as frases, os sentidos, os enredos,

como frutos da interação entre os pares, da provocação pela imagem criada pelo

outro e recriada no narrador ou na voz que o posiciona.

A alteração da lógica formal não significa que as crianças tenham um


pensamento ilógico. Pelo contrário, essa alteração estando patente na
organização discursiva das culturas da infância (especialmente no que
respeita ao jogo simbólico), é coesistente com uma organização lógica

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
42
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
formal do discurso, que permite que a criança simultaneamente ‘na-
vegue entre dois mundos’ – o real e o imaginário – explorando as suas
contradições e possibilidades. (SARMENTO, 2002, p. 11)

Esse navegar entre o real e a imaginação parece ser tão fluido que não marca

tempo nem transição. Foram várias as vezes que, em conversa sobre uma situação

fantasiosa, onde me entreguei para a continuidade de uma história imaginada su-

gerida pela criança com quem eu conversava, e fui interrompida: “– Você sabe

que isso não existe, né?” ou “– Você sabia que isso é mentira?”. Mesmo frustrada

por ter minha personalidade brincante exposta, respondi que sim, reconhecendo

um momento de teste, por parte do meu interlocutor, para verificar a possibilida-

de de uma adulta confundir as coisas, ou não saber brincar.

Outra observação relevante dentro das narrativas que transitam entre o real

e imaginação, são aquelas onde o adulto é parte da narrativa e sua inserção reve-

la pontos de vista infantis que às vezes reviram nossa percepção sobre os adultos,

como adultos. Um exemplo acontecido em uma das ilhas fluviais de Abaetetuba,

no Pará: uma menina de 12 anos contou em um grupo comigo e com outras crian-

ças sobre a tia dela, que nas ocasiões em que o tio, seu marido, passava a noite fora

por causa da ida à cidade para fazer compras, ela percebia que um homem ronda-

va sua casa e algumas vezes chegava a bater na porta. Uma noite, a tia abriu a por-

ta e atirou nele. Quando o marido chegou, na manhã seguinte, encontrou um boto

morto no quintal. Tempos depois, a tia descobriu que estava grávida.

A menina, depois de terminar a história, contou que a turma gostava de brincar

de casinha, e às vezes eles “faziam ter” um moço boto na brincadeira, além das

figuras tradicionais pai, mãe e familiares. Quando tem boto, tem também alguma

mulher grávida. “O boto que é o menino mais bonito”, ela cochichou sorrindo.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
43
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A transposição da história ouvida pelas crianças para o jogo simbólico revela

a compreensão da lenda tradicional popular do boto amazônico, seu vínculo

com a realidade dos adultos, o papel de cada personagem e a desimportância

das lacunas explicativas; e também a transposição para a brincadeira, tudo em

trânsito fluido entre o real e o imaginário. Ao que podemos associar as ideias

de Sarmento:

Para as crianças, no âmbito do jogo simbólico (...), o objeto referenciado


não perde a sua identidade própria e é, ao mesmo tempo, transmutado
pelo imaginário: a criança pode passar a ser um astronauta, ou um índio,
ou um gato, sem deixar de ser ela própria, assim como o toco de uma
vassoura se transmuta numa espada, ou num cavalo, sem que a criança
perca a noção da identidade de origem. (SARMENTO, 2002, p. 10)

Florestan Fernandes também percebe essa aquisição das culturas adultas pelas

culturas infantis enquanto sociais:

O interessante nesses brinquedos, é que, justamente por causa da


ação despersonalizada sofrida no tempo e através dos vários grupos
infantis, de criança a criança, se referem mais a funções sociais, a en-
tes gerais, do que a pessoas ou atos indicados a dedo, reconhecíveis.
(FERNANDES, 1946, p. 247)

Diante dessas vivências, dentro dos contextos da pesquisa, nos demos con-

ta da necessidade de cuidar de alguns termos para as conversas, e deixamos de

usar a palavra “realidade” como contraponto à “imaginação”, para usar a palavra

“acontecido”. Tudo para a criança é real. Ou seja, se fosse necessária a pergunta,

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
44
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
a formulação seria: Esse real é acontecido ou imaginado? Diz-nos Sarmento: “o

‘real’, para as crianças, é o efeito da segmentação, transposição e recriação feita no

acto de interpretação de acontecimentos e situações.” (SARMENTO, 2002, p. 10).

3.2. Breves reflexões a partir da escuta e observação das

crianças

Cumprimos ressaltar as reflexões que dessa experiência investigativa vieram

provocar para novos fazeres e novos olhares de pesquisa:

• é necessário quebrar preconceitos como: “O livro não é para mim.” “Os livros

são difíceis.”, “O livro fala de coisas que eu não sei.”. Para tanto, uma possibilidade

é, por meio de apresentações, inventar, juntamente com as crianças, situações que

facultem o estabelecimento de identidade e pertencimento, as quais envolvam as

crianças e seus contextos, seus conteúdos simbólicos e os elementos poéticos e

materiais do livro – ou vice-versa.

• a compreensão de que os aspectos lúdicos do livro, aqueles que vão da mate-

rialidade, passando pelos jogos de linguagem, pelas inversões de sentido, e che-

gando ao inesperado, tornam o livro e a experiência leitora aptos a fazerem par-

te do brincar universal aqui representado pelos pensamentos de Lydia Hortélio

(2016). Esse é um dos poderosos meios de aproximar os livros das crianças, à me-

dida que elas passam a reconhecê-lo como um brinquedo de imaginação aberto

à participação dela própria, como é familiar nas brincadeiras do corpo e da vida

cotidiana, que já fazem parte de suas culturas.

• perceber que as crianças costumam não julgar os livros, no que tange a ava-

liações de qualidade. Simplesmente acolhem ou rejeitam.

• reconhecer que, ao perceber-se em uma situação em que é escutada, na qual

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
45
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
há espaço respeitoso para suas manifestações, a criança pode despertar em si a

percepção de que todos temos histórias, e o livro é mais uma forma, entre outras

tantas, de contá-las. Não se trata de um objeto restrito aos “letrados”, mas sim um

objeto lúdico de possibilidades de interações infinitas e pertencentes a qualquer

um de todos nós.

Em suma, esta face de nossa investigação desvela relações estabelecidas entre

livro e leitor; os diálogos e aproximações entre eles e a remetência a um momento

histórico de transformações – tal como vimos nos referindo acerca das visões de

infância; modos de vínculo das crianças com obras literárias; a produção inventi-

va que mobiliza intenso diálogo entre as artes (visual, verbal, do design gráfico) e

o universo lúdico e imaginário dos infantes que é engendrado por aspectos rela-

cionados a pertencimento e identidade.

Podemos dizer que a escuta de crianças e aprendizados científicos, nesse senti-

do, podem gerar instrumentalização para reunir livro e leitor, assim como a trans-

formação da visão das infâncias, a partir do potencial positivo do saber infantil

e sua capacidade de ação na sociedade, pode e deve substituir a visão da crian-

ça a partir do que ela não sabe ou interpreta da mesma maneira que os adultos.

Goldin, ao refletir sobre o tema aponta-nos:

Vincular as histórias da infância e da literatura infantil é escrever a


história do sentido extraído da literatura pelas crianças e, ao mesmo
tempo, a história do significado que a literatura deu a inúmeros ges-
tos, a vidas que não foram resgatadas por nenhum discurso; vidas que
devemos intuir a partir de vagos indícios, pois um dos maiores proble-
mas que a pesquisa historiográfica enfrenta nesse campo é a escassa
existência de testemunhos ou fontes históricas. (GOLDIN, 2012, p. 57)

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
46
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
É possível considerar que vivemos um momento de ebulição de ideias e ex-

perimentações sobre as diversas personalidades que o livro contemporâneo ma-

nifesta, em dinâmica transformação a partir do diálogo com os contextos que o

provocam para existir. Há de se considerar, entre esses contextos, que a literatura

pode ser instrumento de poder para as crianças, de vivência e percepções do real

através da imaginação e da experiência leitora ativadas pelas linguagens que con-

seguimos criar em um livro.

Como criadores e leitores de histórias dentro e fora dos livros, a nós adul-

tos, seguramente, cabe procurar conhecer mais das crianças e de suas culturas

infantis. Desse aprendizado sem fim, pode nascer o fazer de linguagens cujos

códigos possam ser experimentados por todas as crianças, com base em sua na-

tureza humana, independente da idade e demais recortes classificatórios. Lin-

guagens descendentes da memória sensorial, da expressão pelo gesto e pela voz,

do jogo simbólico.

Por querer ser para todos, essa roda não pode fechar. Convidaremos, então,

mais adultos, criadores de livros e leitores com culturas diversas para diversificar

e enriquecer ainda mais a roda aberta, no capítulo seguinte.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
47
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 4 • POR MEIO DA LINGUAGEM REINVENTADA –
“A NOVA LITERATURA INFANTIL PORTUGUESA”

Por isso adultos todos, faz favor de entrar na roda!

Este capítulo vem girar novamente a “roda do ponto de vista” e mirá-la na pro-

dução de livros infantis contemporâneos em Portugal, como um deslocamento

para o fortalecimento dos demonstrativos da pesquisa.

Enquanto o capítulo anterior tratou de uma revisita à uma pesquisa desenca-

deadora, ávida por um olhar teórico sobre seus materiais, este capítulo trata de

uma visita a um acervo e crítica especializada, para estabelecer um olhar de reco-

lha e breve reflexão a partir da experiência do estágio desta pesquisadora na Uni-

versidade de Aveiro, sob a condução da professora Ana Margarida Ramos.

4.1. “A nova literatura infantil portuguesa”

Nas últimas décadas, Portugal tem vivido um momento de intensa produção

literária para crianças e jovens, com reconhecimento internacional relevante

em significativa parte de suas publicações, principalmente no que tange ao li-

vro ilustrado, que em Portugal é designado “livro-álbum”. Como demonstrativo

desse alcance podemos citar autores da nova geração, como Catarina Sobral, Isa-

bel Minhós, Ana Pessoa, Bernardo Carvalho e Joana Estrela, entre outros, todos

reconhecidos com premiações em vários países onde seus livros são publicados.

Suas casas editoriais, como a editora portuguesa Planeta Tangerina recebeu, du-

rante a 50ª edição da Feira de livros infantis de Bolonha, o prêmio BOP – Bologna

Prize for the Best Children’s Publishers of the year, sendo reconhecida como a

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
48
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
melhor editora de livros infantis europeia de 2013.

Este “boom” pode ser analisado como consequência – ou oportunidade – com

base nos vários fatores ligados ao contexto político, social e econômico do país,

quando o fim da ditadura salazarista abre espaço para novas políticas de incen-

tivo à leitura, dentro e fora do sistema escolar, como o PNL (Plano Nacional de

Leitura), vigente no país desde 2006, que tem sido fator de aumento de volume na

circulação de livros.

A partir de 1974, de acordo com José António Gomes, as mudanças


políticas e sociais vividas em Portugal tiveram impacto na cultura, em
geral, e na literatura para a infância e juventude, em particular, que
cresceu consideravelmente, assistindo-se, nas palavras do autor, “ao
chamado boom da literatura para jovens em Portugal”, tendo este tipo
de criação literária e artística encontrado “condições para um fôlego
renovado, num ambiente de liberdade, e num contexto em que au-
mentou o número de realizações de várias ordens, directa ou indirec-
tamente relacionadas com o universo infantil. (RAMOS, 2019, p. 151)

O sistema democrático abriu espaço também para a quebra do compromisso

didatizante do livro, com experimentações inovadoras no campo da ilustração e

da construção não-linear das narrativas, compondo livros cujo primórdio vem da

arte livre. É possível verificar movimentos parecidos em vários países que sofre-

ram regimes ditatoriais, inclusive no Brasil, assim como o reflexo, na produção

publicada após a abertura política, de referências estéticas e temáticas vindas das

produções simultâneas em países estrangeiros democráticos. Parece ser só então,

depois da experimentação inspirada no fazer internacional, que os grupos nacio-

nais passam a propor novas soluções e identidades próprias.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
49
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
É relevante citar que as publicações que referenciamos aqui como parte dessa

nova geração portuguesa não são procedentes do conjunto amplo do mercado edi-

torial do país. A observação do acervo e a vinculação às premiações e quantidade

de países diversos onde tais livros foram traduzidos e publicados, demonstra a ori-

gem desses livros em pequenas publicadoras e estúdios com propostas editoriais

particulares, que acolheram autores com projetos literários desbravadores.

É consenso entre a crítica e a academia que é Manuela Bacelar, uma das me-

lhores ilustradoras nacionais para a infância, considerada a precursora do livro-

-álbum em Portugal. Desde suas publicações e aquelas que a seguiram no tempo

e no partido, parece ter havido a inauguração de uma linguagem que vem ga-

nhando complexidade semântica e simplicidade sintática a ponto de estabelecer

diálogo com os leitores mais diversos. Essa detecção, que pode ser confirmada

em boa parte da crítica literária especializada do país, apresenta-nos diante de

uma literatura de “tessitura polifônica”, com “uma variedade de vozes originais,

criadoras de narrativas originais que pertencem a essa nova geração.” (RAMOS,

2021), que trabalha de maneira multidisciplinar. Tais características alinham-se

com aquelas as quais esse mestrado atribui responsabilidades como ferramentas

de ampliação da conexão da literatura contemporânea com os leitores, e por isso

são objeto desse estudo, postas em perspectiva a seguir.

4.2. A multidisciplinaridade, o lúdico e a simplicidade como

propostas de projeto

Ao conhecer a gênese de formação dos grupos editoriais e de autores que

estão produzindo o que estamos aqui nomeando de “a nova literatura infan-

til portuguesa”, é possível verificar características comuns entre eles, e a essas

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
50
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
características podemos relacionar a liberdade e autenticidade com que aplicam

determinados recursos e conceitos aos projetos de livros de maneira coletiva e

multidisciplinar. É possível verificar, nos livros, resultados de pensamentos inte-

grados, de forma e conteúdo, que considera desde os limites da produção técnica

industrial até a recepção pelo leitor. Podemos entender essa materialização com

base na diversidade da formação entre os autores (muitos deles oriundos das áre-

as de design, artes plásticas e comunicação) e sua vocação para testar possibilida-

des do livro-álbum e novas experiências em diversos gêneros.

Como exemplo, podemos tomar a descrição da professora Ana Margarida Ra-

mos sobre a casa editorial Planeta Tangerina:

Inicialmente criada como ateliê de design, a Planeta Tangerina foi fun-


dada em 1999 por quatro amigos da área do design de comunicação.
Em 2006, lançaram-se na aventura da publicação de livros infantis e,
a partir daí, nunca mais pararam. As suas publicações, a maioria ál-
buns, com e sem texto, caracterizam-se pela articulação entre texto e
imagens, destinando-se tanto a crianças como a adultos que apreciam
livros-objeto bem cuidados. (RAMOS, 2015; 218)

A Planeta Tangerina e algumas outras editoras portuguesas têm vendido os

direitos de edição de seus livros para uma variedade grande de países e cultu-

ras, como Espanha, Brasil, Itália, Reino Unido, Coreia do Sul e Japão. Além disso,

têm sido reconhecidas com premiações internacionais importantes, como o Pré-

mio BOP, recebido em 2013 na Feira de Bolonha, a mais importante no cenário

da literatura infantil no mundo.

Ainda sobre a Planeta Tangerina, podemos observar características peculiares

que tornam os livros da editora capazes de transitar com sucesso pelos universos

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
51
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
leitores e críticos, segundo observa a professora Ana Margarida Ramos:

A editora que ainda mantém o núcleo duro que a formou, assim como
o processo de criação de livro em conjunto, o que explicará o seu su-
cesso junto dos leitores de diferentes idades, mas também junto da
crítica especializada e da própria academia. [...], a Planeta Tangerina
tem vindo a diversificar a sua oferta editorial, [...], sem abdicar de uma
componente experimental, nomeadamente em termos de novos for-
matos (álbum sem texto, narrativas paralelas, mix-and-match books,
não ficção, livro-jogo, livro interativo, etc.) que a caracterizou desde a
sua génese. (RAMOS, 2015, 218)

A observação de um conjunto selecionado de livros publicados pelas editoras

Planeta Tangerina, Pato Lógico, Orpheu Mini e Bruaá, entre outras, pode levar à

percepção de semelhanças no campo da linguagem ao aproximarmos o uso va-

riante de recursos de natureza lúdica aplicados à materialidade do livro: Livro

Clap (2014), de Madalena Matoso, publicado em Portugal pela Planeta Tangerina

e no Brasil pela Companhia das Letrinhas, e Daqui ninguém passa (2014), de Ber-

nardo Carvalho e Isabel Minhós, publicado em Portugal pela Planeta Tangerina

e no Brasil pela SESI; e também a propostas abertas para construção de significa-

dos: Para onde vamos quando desaparecemos? (2011), de Isabel Minhós e Madale-

na Matoso, publicado em Portugal pela Planeta Tangerina e no Brasil pela Tor-

desilhinhas e Enquanto meu cabelo crescia (2010), de Isabel Minhós e Madalena

Matoso, publicado em Portugal pela Planeta Tangerina e no Brasil pela Editora

Peirópolis. Todos apresentam, inclusive, a presença de várias dimensões lúdicas

ao mesmo tempo, no mesmo livro.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
52
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A valorização de propostas cada vez mais complexas, do ponto de vista
da estrutura narrativa, da interação com o leitor, plenas de referências
intertextuais eruditas, por exemplo, não é obstáculo à valorização da
sua dimensão lúdica. (RAMOS, 2018, p. 157)

Podemos alinhar essa dimensão lúdica experenciada nesses livros com aquela

levantada com profundidade na análise do livro brasileiro Inês, no capítulo 6 des-

ta dissertação, a fim de confirmar a perspectiva da universalidade e humanida-

de nas naturezas das soluções encontradas por esses autores, embora tão diversas

em sua personalidade material.

Ou seja, mais uma vez podemos entender que por meio do lúdico, da brin-

cadeira como linguagem universal (HORTELIO, 2014), que as novas linguagens

nos livros conversam livremente em seu ambiente co-criador, com a diversidade

dos leitores humanos brincantes.

Nós, brasileiros, herdamos duas palavras para significar o fenôme-


no lúdico. Consideramos o brincar e o jogar de forma distinta. [...] O
brincar é aqui focado como uma expressão que nasce no corpo e se
prolonga em movimentos de “sentido”. (PEREIRA, 2003)

Por meio dessa observação da professora de educação infantil Péo, podemos

desenhar um alinhamento entre o pensamento da educação, da sociologia e dos

estudos da literatura ao percebermos o consenso de que é no exercício dessa in-

teração que a criança constrói sentidos. Segundo Sarmento, a função do brincar

para esta construção é central: “O jogo simbólico desempenha, deste modo e des-

de a mais tenra idade, uma função nuclear na construção do sentido pelas crian-

ças.” (SARMENTO, 2012, p. 14)

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
53
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Função central, como nomeia Sarmento, e também processual, segundo Gol-

din, se observarmos o jogo simbólico como práticas do faz de conta da vida real

em muitos de seus contextos e aspectos: “Sem dúvida, ao contar histórias, ofere-

cemos às crianças um arsenal de vivências e de personagens para brincar de viver.”

(GOLDIN, 2006, p. 46)

Traçamos até aqui um percurso de costura entre conceitos aproximados de di-

ferentes pontos de vista que vêm reforçar a ideia de que, a partir dos livros aber-

tos à participação do leitor, as leituras podem ser cada vez mais um brincar com

as infinitas camadas do objeto livro, onde o corpo e a imaginação são agentes do

trânsito entre o real e o imaginário, e das transformações pela experiência da des-

coberta e da criação de sentidos na fantasia e na vida vivida e interpretada.

Com base nas reflexões acerca dos levantamentos desta pesquisa, podemos ar-

gumentar que alguns livros portugueses referenciados neste trabalho lançam mão

de recursos capazes de criar o ambiente para a ludicidade infantil e a construção

de sentidos sob a perspectiva estudada até aqui. É possível dizer que esse é um

dos pontos que os vincula ao sucesso que vêm experimentando, alguns aceitos e

lidos em mais de 29 línguas (Planeta Tangerina). São recursos como, por exem-

plo, o uso de texto escrito à mão, ou recortado, ou desenhado, ao invés do uso

da tipografia convencional; formas simples de sobreposição de campos de cores

próximas às primárias, chapadas, compondo imagens muito simples e facilmen-

te identificáveis com pessoas ou naturezas diversas; humor; narrativas paralelas

através de pequenos detalhes como por exemplo desenhos nas bordas das pági-

nas ou personagens animais silenciosos e observadores.

Em termos mais específicos, a escrita para a infância mantém o inte-


resse pela reescrita da tradição oral, tanto em termos de procura de

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
54
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
fidelidade e de divulgação dos textos, como na criação de universos
subversivos e paródicos, pelo uso criativo e inovador — às vezes sub-
versivo e com intenções simultaneamente lúdicas e didáticas — da
língua, explorando todas as suas potencialidades (gráficas e visuais,
sonoras, rítmicas e melódicas, semânticas, simbólicas...), pelo recur-
so ao humor, obtido através da utilização dos mais diversos tipos de
cómico, muitas vezes combinados entre si, pela recriação de universos
próximos dos infantis — casa, família, escola — promovendo o reco-
nhecimento e a identificação dos leitores com os ambientes e situações
retratadas, pela emergência, sobretudo nos últimos anos, de universos
e temáticas fraturantes, às vezes perturbadores e polémicos, como os
ligados à morte, à violência ou ao sexo. (RAMOS, 2015, p. 213)

Se para a nossa pesquisa importam também as conexões na linha do tempo,

vale sinalizar a simultaneidade do movimento inovador nas produções literárias

portuguesas, o avanço dos estudos das ciências socias e as visões sobre as infân-

cias contemporâneas, eventos importantes a ocorrer desde a década de 70 dos

anos mil e novecentos. “Essa é a grande transformação nos últimos, digamos, 25,

35 anos no máximo, no pensamento sobre a infância: a criança é pensada a partir

da positividade das suas próprias características.” (SARMENTO, 2016, p. 7)

Assim como no Brasil, a inter-relação literatura-ciência pode ser atribuída

como um dos disparadores para a crescente sofisticação das linguagens e a valori-

zação das vozes infantis nos livros da produção livresca em Portugal.

4.3. A voz infantil

É também no cuidado, apropriação e representação das vozes infantis atra-

vés da literatura, tão importante para nossa abordagem, que os livros con-

temporâneos portugueses merecem um olhar em sua tomada temática. Para

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
55
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
aprofundamento da reflexão foram selecionadas duas obras que, assim como Inês,

podem ser nomeadas como artefatos plurissignificantes.

Neste tópico a análise se dá com foco no recorte do recurso literário da voz,

e não compreende aprofundamentos de outras expressões do livro em seu todo,

como será visto em Inês (capítulo 6).

Os livros selecionados são:

• O meu avô, de Catarina Sobral, Editora Orfeu Mini, 2014.

• Andar por aí, de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso, Editora 34, 2017.

Os recursos pontuados no tópico anterior como característicos nos livros por-

tugueses dessa geração estão presentes nas duas obras: chapados de cor, persona-

gens representados com pouca perspectiva (representação em 2D), simplicidade

de formas e padrões, humor, narrativas paralelas por meio de detalhes da ilustra-

ção, são exemplos.

Em comum e relevante para nossa análise, ambos os livros são escritos em

primeira pessoa, e o narrador é um personagem criança, que nos conta a histó-

ria ora como observador, ora como participante. Cada menino vai nos conduzir

por um trajeto acompanhado pelos seus avôs, ambos senhores “descolados”, com

comportamentos livres e afetuosos com seus netos, e admirados por eles.

Nas duas narrativas há a presença de outro adulto além dos avôs, que fazem

um certo contraponto aos comportamentos deles: em O meu avô trata-se do Sr.

Sebastião, o vizinho muito ocupado; e em Andar por aí trata-se da mãe do meni-

no, que é várias vezes citada pelo narrador, mora junto com o menino e o avô, e

só aparece na narrativa verbal.

Em Andar por aí, o texto é uma sequência de frases curtas, com alternâncias

e sobreposições de temas, criando um ritmo parecido com o do pensamento

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
56
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
quando estamos diante de estímulos sensoriais em movimento, como é o caso do

argumento temático desse livro: um passeio pela cidade.

• Andar por aí, de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso, Editora 34, 2017.

FIGURA 1: Capa da obra Andar por aí


Fonte: Martins e Matoso, 2017.

FIGURA 2: 2ª capa e página 1 da obra Andar por aí


Fonte: Martins e Matoso, 2017.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
57
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Ao abrir o livro o leitor é surpreendido pela imagem de um grande pássaro

formado por sinais e linhas que remetem à configuração de um mapa ou uma

planta de uma cidade. As duas percepções simultâneas são facilitadas pela simpli-

cidade e obviedade dos desenhos de prédios e carros e árvores, ao mesmo tempo

que o formato do pássaro é inteiro e forte o suficiente para não haver dúvida do

que se trata. Um pássaro pode ser uma cidade e uma cidade pode ser um pássaro.

Sim! E com essa imagem multissignificante, a dupla inicial antecipa a brincadeira

que vai acontecer ao longo de todo o livro: a condução do leitor, pelo narrador,

por um trajeto onde imaginação e realidade estão em conexão e em trânsito. Um

caminho com detalhes ora sensoriais, ora objetivos; ora regrado, ora livre; ora

chão, ora espaço sem dimensão, aproximando o leitor da percepção e criação de

uma narrativa apropriada de um olhar infantil.

A partir do pescoço do pássaro, inaugura-se um fio condutor da leitura e do

percurso do leitor, que transpassa todo o livro até chegar na 3ª capa, onde somos

recebidos novamente pelo mesmo pássaro, espelhado em relação ao primeiro, ou

seja: ambos os pássaros olham para dentro do livro. Se pensarmos na materiali-

dade do livro, essa linha pode ser o apoio para um dedinho que vai seguir o mapa,

achar caminhos no meio da lógica desordenada que a cidade nos invoca ou con-

vida. Ou será aquele desenho de calçada onde brincamos de pisar só no preto ou

no branco até o piso mudar de padrão? Esses e muitos brincares estão sugeridos

pelo livro na composição do texto fragmentado, como o é um fluxo de pensa-

mento, em concordância rítmica com a composição de páginas onde os cheios e

vazios e as linhas sugerem o caos urbano, aquele que se faz e refaz nos detalhes e

na visão do todo.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
58
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 3: Páginas 6 e 7 da obra Andar por aí
Fonte: Martins e Matoso, 2017.

Na rua não há teto. Sopra o vento.

Às vezes chove, às vezes faz sol.

Na rua não há paredes. Há estradas, muros e lugares,

mas o mundo é enorme (acho que não tem fim).

Em Andar por aí observamos as autorias a trabalharem com olhares, pontos

de vista, vozes do narrador criança, por meio de soluções que só poderiam ser

criadas por alguns autores capazes de praticar o exercício de posicionar-se, pro-

curar estar no lugar de uma criança, conectar-se com seus contextos, deslocan-

do pontos de vista para uma perspectiva infantil e suas múltiplas capacidades de

percepção e fabulação. Essa preocupação e cuidado aparece por exemplo no uso

das cores e patterns que ajudam a ambientar o momento da narrativa como frio,

quente, chuvoso, por exemplo; na variação dos tamanhos do menino e do avô,

dos demais personagens e dos equipamentos urbanos, de acordo com suas im-

portâncias e destaque no momento do trajeto.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
59
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Nesse ponto vale destacar a representação da relação de confiança e cuidado

entre o menino e o avô durante toda a caminhada pelo livro, através do uso de

vários recursos de caráter lúdico e descomprometido com a realidade; ou seja, o

livro brinca com escalas e posição dos personagens na página para sensoriar a ex-

periência do personagem e do leitor durante o passeio, sugerindo e subvertendo

medos, sustos, desconhecidos. O texto avisa, logo na página 8, sobre o avô:

Nunca vira o pescoço, nunca espera por mim,

nunca me dá grande atenção.

Já sei que é assim, e assim é que é bom.

As imagens, na primeira metade do livro, compõem o menino e o avô às ve-

zes muito perto um do outro (na sequência linear), outras longe (um no topo da

página outro no rodapé). Finalmente, na página dupla central, o avô olha para

o neto. Tais movimentos podem retratar um avô que confia e dá autonomia à

criança, e a protege com sua presença, enquanto o menino também confia nessa

proteção, ao afastar-se e deixar-se levar pelas distrações que o caminho oferece.

É nessa relação sugerida que se abrem as oportunidades de divagação, observação

e experimentação do personagem e sua cidade. Essa autonomia e liberdade pode

ser percebida também pela variação de escala entre o menino e o avô, onde em

alguns momentos o menino é quase do mesmo tamanho do avô, ou o menino

aparece cada vez maior à medida que a virada das páginas avança. O menino é

também por vezes representado na ilustração com tamanhos fora de escala em

relação aos demais elementos gráficos da página, principalmente quando se trata

de situações imaginárias, sugerindo, de maneira simbólica, diferentes sentimen-

tos quanto à sua inserção no espaço urbano ou sua gradativa assimilação como

pertencente ao lugar e ao contexto onde ele está, e onde ele confirma no texto ser

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
60
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
lugar de caminhadas frequentes para ele, passíveis de reconhecimentos familiares

e descobertas renovadas a cada passeio.

A verdade é que, por andar sempre na frente,

o meu avô nem sonha o que eu passo lá atrás...

Porque acontece de eu ter de me agarrar a cordas para me salvar,

ter de atravessar pontes prestes a cair,

ter de me esconder de um tigre esfomeado...

Esse movimento dos personagens pelo campo gráfico da página pode nos reme-

ter a um jogo de tabuleiro e, se for, tem um ápice nas páginas 20 e 21, em que nos-

so protagonista aparece sozinho pela primeira e única vez, envolvido na brincadei-

ra de seguir os desenhos do chão. Neste desenho, o corpo do avô é sugerido como

forma, pela organização dos traços pretos – traços aos quais o leitor já está familia-

rizado desde o início do livro – que são também objeto de brincadeira pelo meni-

no. O avô desenhado confirma a presença protetora, mesmo sem ele estar presente

nesta cena da maneira como até agora foi representado pela narrativa.

FIGURA 4: Páginas 20 e 21 da obra Andar por aí


Fonte: Martins e Matoso, 2017.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
61
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
O objeto com o qual o menino brinca nessa dupla de páginas pode ser a calça-

da, o espaço neutro e tridimensional, o papel branco escrito e ilustrado do livro

aberto, o sem fim do desenho que vaza das margens para o ar suspenso em torno

do livro, para o qualquer lugar, para a cidade existente. Objeto-brinquedo signifi-

cante, com potencial não-utilitário:

O mundo interno das crianças emprega parâmetros de uma realidade


percebida por ela, que não coincidem necessariamente com as leis que
regem a dimensão material do objeto externo. O caráter externo do
objeto torna-se menor, quase se dissolvendo diante da vitalidade mais
profunda que o objeto passa a revelar pela interação imaginativa e cor-
poral entre a criança e seu brinquedo. Nesse justo momento, passos
vão sendo dados para experiências subjetivas em níveis cada vez mais
profundos, em que desaparecem as divisões entre o que está dentro e
o que está fora, comunicando a experiência do ser. O brincar opera
nessa unidade subjetiva, mobilizando sensações e sentimentos que se
expressam através do corpo. Não há percepção gratuita – tudo o que é
percebido torna-se um desafio que compromete e compõe os primei-
ros degraus para o desenvolvimento da consciência. (PEREIRA, 2016)

• O meu avô, de Catarina Sobral, Editora Orfeu Mini, 2014.

FIGURA 5: Capa da obra O meu avô


Fonte: Sobral, 2014.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
62
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
O meu avô nos convida a participar do ponto de vista infantil já na capa, em

que o enquadramento da imagem nos posiciona na altura de uma criança peque-

na e nos permite conhecer o personagem menino inteiro e uma parte do adulto,

que já intuímos ser o avô, por causa do título. Título este composto por letras

desenhadas com uma linguagem gráfica integrada ao conjunto completo da capa,

o que nos ajuda a esperar por um avô ou por um livro divertido e inusitado. Uma

capa uniforme no lay-out, forte. O olhar atento do menino para o adulto, em con-

junto com a elegante calça listrada, sapato e guarda-chuva, desperta a curiosidade

para essa figura. Vamos abrir o livro, ele deve estar inteiro lá dentro!

Vamos conhecer o avô inteiro sim, mas só na página 6. Até lá, seremos apre-

sentados a um conjunto de detalhes, representados com uma técnica de sobre-

posição de chapados de quatro cores de combinação incomum. Trata-se de um

retrato minucioso para detalhes soltos, um jeito de ver próprio do olhar infantil.

São cenários equidistantes, cada um em uma das páginas da dupla, que dispõem

em uma relação de comparação o ambiente do avô e do Sr. Sebastião. Aqui po-

demos supor que o narrador revela o que conhece e espelha o que não conhece

sobre o que pode ser a casa do Sr. Sebastião, por meio da imaginação ou da me-

mória.Vamos saber na sequência da narrativa que o Sr. Sebastião é o vizinho do

avô e, portanto, o menino pode ou não conhecer o lugar que ele mostra ao leitor.

A dupla de páginas 4 e 5 inaugura uma série subsequente e comparativa entre

os dois personagens, revelando no texto e na imagem peculiaridades de ambos

os personagens, por meio de uma linguagem lúdica oriunda do que entendemos

como pontos de vista infantis.

A partir da página 12, na qual aparece pela primeira vez a cor amarela, no livro,

o texto passa a se referir apenas ao avô, enquanto a imagem continua compondo

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
63
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
em equidistância a comparação entre Sr. Sebastião e avô, convidando o leitor a

prestar atenção aos detalhes das imagens e relacioná-las com o texto verbal para

continuar a brincadeira de compará-los e conhecê-los cada vez mais, à medida

que as páginas viram.

FIGURA 6: Paginas 4 e 5 da obra O meu avô


Fonte: Sobral, 2014.

Apesar das silhuetas parecidas, não há como confundir os dois personagens

adultos, já que o Sr. Sebastião não tem boca e seus olhos são pontos abertos e

atentos, enquanto que os do avô podem ser como quisermos, escondidos atrás

dos óculos. O avô também não tem boca, mas o cachimbo e o bigode podem nos

ajudar a declarar seu ar sorridente. A simplicidade da caracterização gráfica de

ambos os personagens, aliada ao cuidado da aplicação de poucos elementos que

os distinguem, contribuem para que o leitor possa criar identidade com pessoas,

vizinhos e avôs de seu convívio ou memória, construindo elos de identidade en-

tre o leitor e o livro.

A sequência da narrativa proposta estabelece a presença do Sr. Sebastião nas

páginas pares (esquerda) do livro, e do avô nas páginas ímpares (direita), desde

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
64
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
a dupla 8-9 até a 32-33, tornando confortável e enredado o jogo da comparação,

permitindo ao leitor concentrar-se nos pontos divergentes e nas leituras múlti-

plas, sem precisar quebrar o ritmo.

FIGURA 7: Paginas 18 e 19 da obra O meu avô


Fonte: Sobral, 2014.

Até o final do livro (páginas 34-35), quando a inversão se faz: o avô aparece na

página esquerda e Sr. Sebastião na direita.

FIGURA 8: Paginas 34 e 35 da obra O meu avô


Fonte: Sobral, 2014.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
65
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A brincadeira se justifica aqui por pelo menos dois motivos: o primeiro é

a graça de brincar de enganar, aquela que, depois de muitas repetições, tenta-

mos provocar que nosso interlocutor erre uma resposta diferente da sequência

a que vinha acostumado; o segundo é o fechamento do ciclo da história, a volta

ao começo, a conclusão do dia que começou lá no início do livro e acaba aqui

na página final esquerda, sob a luz do poste que ilumina avô, neto e cachorro,

nos dizendo que já é noite. Sim, aqui, na dupla final, o leitor precisa procurar o

Sr. Sebastião e encontrá-lo inesperadamente no canto superior direito da pági-

na, dentro de seu apartamento no primeiro andar do prédio número 17 (como já

aprendemos que é onde eles moram, lá nas primeiras páginas do livro). O cená-

rio retratado de um ângulo panorâmico maior do que todos os outros do livro, de

maneira que os personagens aparecem pequenos, amplia a sensação de liberdade

que a cena sugere ao retratar avô e neto fora do prédio. Liberdade e cumplicidade

que menino e adulto compartilham nos quadros retratados em todo o livro, mui-

tas vezes com a presença do cachorro, símbolo de companhia afetiva, que aqui

podemos visualizar como “detalhe de avô”, ou como elemento que pode provocar,

com o leitor, uma “brincadeira de encontrar” por meio do posicionamento ines-

perado e variado do cachorro no campo das páginas, podendo criar uma narrati-

va lúdica paralela à narrativa principal.

Em contraposição, o Sr. Sebastião, sempre “dentro”, ainda atento a qualquer

coisa de trabalho, aqui é retratado “pela metade”, o que pode ser lido nesta ima-

gem no sentido literal e metafórico.

Após esse breve olhar investigativo sobre essas duas obras, com ênfases nos re-

cursos que fazem delas artefatos plurissignificantes abertos à participação ativa

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
66
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
do leitor e em diálogo com vozes infantis, fica ainda uma questão curiosa a res-

peito deles: a coincidência da figura do avô como personagem eleito para par da

criança narradora. Esses personagens e suas representações nos interessam aqui

não apenas pela semelhança em algumas descrições sobre eles feitas pelos narra-

dores em ambos os livros, mas também por como a questão geracional aparece

na relação que se estabelece entre a criança e o idoso.

Um dos pilares da sustentação teórica trazida aqui pela sociologia é a visão da

infância como classe geracional, ainda vista por grupos de adultos sob o espectro

do limite, das incapacidades das crianças. Tal visão pode ser também aplicada à

classe geracional dos idosos, onde os limites de capacidade são motivo de exclu-

são da atividade social. Nos livros analisados, criança e adulto quebram juntos

seus limites, não se importam com eles e por isso oferecem a si a liberdade que

os adultos, representados pelo Sr. Sebastião e pela mãe, não conseguem oferecer

ou aproveitar, ancorados em suas responsabilidades. O cuidado dos avôs com os

netos é afetivo, não controlador, e a proteção acontece através da presença. Afeto

e presença exercidos e recebidos por ambos, criança e idoso, na mesma medida.

Todos são autoridades de mesma hierarquia no quesito cuidar do outro e de si.

Se relembrarmos do ponto colocado no capítulo anterior sobre características

dos personagens em resposta às visões das infâncias de cada tempo, poderíamos,

nessa observação dos livros contemporâneos, dizer que autores como Catarina

Sobral, Isabel Minhós e Roger Mello estão transfigurando em suas literaturas

uma relação de poderes mais equilibrada entre personagens adultos e crianças,

em que as histórias podem se desenrolar sem a necessidade de isolar a criança ou

posicionar o adulto na condição de controle. Se sim, o tempo e as leituras hão de

nos contar.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
67
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Se pudermos pensar ainda mais na representação e representatividade das

crianças como aspecto importante de alguns livros contemporâneos e seu caráter

universal, de recepção internacional, sejam os produzidos em Portugal, no Brasil

ou demais produtores no mundo, devemos abordar também o desafio a que tais

livros respondem, de rompimento com as ideias de generalização das crianças.

Esse é um desafio clássico da literatura, e que alguns autores enfrentaram de ma-

neira a conseguir que personagens como Anne Frank e Harry Potter sejam ines-

quecíveis e aproximados a ponto de fazerem parte do que somos ou de como nos

vemos. O que nos cabe aqui é a constatação, portanto, da literatura como arte que

ocupa ao mesmo tempo e também se desloca entre o particular e o público, entre

o peculiar e o universal, ser capaz de afirmar a ideia de que a maioria das crian-

ças, cada uma em relação com seu próprio contexto, podem sim ser mais capazes

e agentes do que se supõe, em sua própria história e também como participante

da história do outro, à medida que a elas são oferecidas oportunidades de partici-

pação para que essa ação aconteça.

Ocorre aí um processo de autoconfirmação: o modo como pensamos


sobre as crianças nos leva a agir com elas de determinadas formas, e
isso tende a produzir o comportamento que confirma o modo como
pensamos sobre elas. Talvez as crianças não sejam capazes de agir de
forma diferente simplesmente por falta de oportunidades. Por isso se
pode dizer que o discurso tende a produzir comportamentos, mais do
que apenas refleti-los. (BUCKINGHAM, 2000, p. 283)

É instrumentalizado da consciência do seu tempo que o autor transforma um

tema em literatura alinhada com contextos que trazem e produzem significa-

dos, e até discursos, tomando os termos usados por Buckingham. Do tempo que

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
68
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
vivemos podemos dizer que assistimos a grandes desequilíbrios, muitas vezes ba-

nalizados e reduzidos a dicotomias empobrecidas do ponto de vista intelectual. A

análise de algumas obras da literatura contemporânea para as infâncias nos pode

permitir enxergá-las como locomotivas em direção a equilíbrios entre vozes de

proteção e liberdade, através de um diálogo ao mesmo tempo poético e acolhedor,

disruptivo e aproximador entre crianças e adultos.

“Vamos todos cirandar!

Vamos dar a meia volta

Volta e meia vamos dar.”

E nos reencontrar no giro da roda ao cantar e brincar com linguagens univer-

sais de livros portugueses e brasileiros.

“Vitória, vitória, acabou-se a história?”

“ – Não! Batam palmas pra chamar

Que mais um pouco vai começar!”

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
69
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 9: Crianças brincando de ciranda
Fonte: Arquivo próprio

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
70
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 5 • INTERVALO

Preparação da roda para a entrada de Inês –


descrição dos instrumentos de análise do livro.

Este capítulo 5 abre espaço para a reunião e descrição de instrumentos concei-

tuais e teóricos que apoiam as análises, no capítulo seguinte, do livro Inês (corpus

selecionado para trabalho nessa dissertação), além daqueles já enunciados e es-

tudados nos capítulos anteriores.

Cabe enfatizar o desafio particular destas análises, estando a pesquisadora in-

serida nos contextos histórico, social e produtivo da publicação da obra, além dos

desafios naturais atrelados a quaisquer pesquisas,

é muito importante lembrar que, em todo ato de análise, ocupamos a


posição do interpretante dinâmico – algo é efetivamente experencia-
do. Analisar significa interpretar. Mas uma semiose só pode ser vista do
ponto de vista do analista – posição lógica do interpretante dinâmico –
como um evento singular em um ato de interpretação. Isso significa que
o signo é mais geral que o intérprete. Em virtude disso, não há leitor mo-
delo ou ideal. [...] Saber que estamos na posição de interpretante dinâ-
mico significa ter a humildade de reconhecer que toda e qualquer inter-
pretação singular é sempre incompleta e falível. (CUNHA, 2009, p. 24)

A singularidade a que a Profa. Maria Zilda da Cunha se refere, fica ainda mais

acentuada se levarmos em conta que a interpretação se dá através da percepção:

A percepção é a atividade que se realiza pelo exercício dos órgãos dos


sentidos; é o meio pelo qual entramos em contato com a rica textura

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
71
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
qualitativa do mundo e ficamos conscientes de um mundo que se for-
ça sobre nós. Ao mesmo tempo, é o ponto de partida e o campo de
testagem para nossas especulações – as mais imaginativas. A percep-
ção está na porta de entrada da investigação e do conhecimento, exata-
mente por ser insistente, incontestável, incontrolável e, eminentemen-
te, falível. (CUNHA, 2009, p. 38)

Nesse sentido, os caminhos de interpretação, em nosso trabalho, ocorrem sob

uma dinâmica: a de estar em constante movimento empático em que a pesquisa-

dora se desloca entre a procura por colocar-se no lugar do leitor criança, ajustar

medidas e olhares, com profundos desejos e intenções de inferir possíveis pontos

de vista infantis, e a procura de suas próprias percepções e de entendimentos como

adulta afetada por repertórios prévios. Colocar-se no lugar da criança, se é que isso

é possível, é um exercício de maior dificuldade, ao exigir inteireza e atualidade, es-

tados de consciência pouco acessíveis aos adultos, além da liberdade para as mani-

festações da linguagem. No prefácio para As trocinhas do Bom Retiro, do brasileiro

Florestan Fernandes, o pensador francês Roger Bastide reflete sobre esse limite:

E nós, os adultos, vivemos também dentro de nossas próprias frontei-


ras [...] Se deixarmos cair sobre seus divertimentos (das crianças) um
olhar amigo, não é para eles que olhamos, mas através deles, para as
imagens nostálgicas de nossa infância desaparecida. Para estudar a
criança, é preciso tornar-se criança [...]; é preciso penetrar além do
círculo mágico que dela nos separa, em suas preocupações, suas pai-
xões, é preciso viver o brinquedo. (BASTIDE, 1943, p. 230)

Se pensarmos nos recursos de linguagens criados pela literatura neste mesmo

esforço de aproximação – fonte para a literatura de ficção, infantil ou não – logo

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
72
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
se mostram novamente os limites, como na divertida formulação de Thomas

Nagel9 sobre um famoso dilema na filosofia da consciência:

Nagel conclui que um ser humano não é capaz de trocar de lugar com
um morcego, que essa transferência imaginária é impossível: “Até onde
eu consigo imaginar (e não vai muito longe), isso só me diz como seria
me comportar como se comporta um morcego. Mas a questão não é
essa. Quero saber como é ser um morcego para um morcego. (WOOD,
2008, p. 143)

Estas reflexões ganham um caráter ainda mais vaporoso se retomarmos a inten-

ção de observar a cultura da infância da personagem principal, em Inês. Conside-

rando que a história se passa nos anos de 1350, não havia sequer a concepção de

infância como a temos atualmente10. Os registros históricos sugerem que os infan-

tes eram vistos como mini-adultos, sem diferenciação de tratamento nos ambien-

tes doméstico e social. Esse entendimento será considerado nas análises da traje-

tória, ações e falas da personagem, no capítulo da análise específica do livro. Por

aqui vale traçar um paralelo com a investigação de Daniel Goldin em seu capítulo

A invenção da criança: divagações em torno da história da literatura infantil e da

infância, com base em Robert Darnton11, sobre a perspectiva dos contos de fadas

como retratos de um mundo de brutalidade crua, onde a condição humana esta-

va inserida em uma existência pouco adiantada do processo civilizatório, no qual

9 What is it like to be a bat?, in Mortal questions, 1974.


10 A concepção de infância aqui referida “tem suas origens no que Philpppe Ariès chama de descobri-
mento da infância, ou seja, o momento em que se começou a perceber a infância como um estado singular
e se conferiu um tratamento especial aos menores. É um processo longo, no qual a escola substitui a coa-
bitação como um meio de aprendizagem.”(GOLDIN, 2006; 58). Esta concepção está intrinsecamente liga-
da à ascensão da classe burguesa e a valorização da família nuclear na estrutura social, constantes até hoje.
11 Robert Darnton. O grande massacre de gatos e outros episódios na história da cultura francesa. 1984.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
73
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
estamos inseridos e, por distância, torna difícil imaginarmos. “Darnton qualifica-

va essa existência com três adjetivos: sórdida, brutal e breve.” (GOLDIN, 2006, 68)

5.1. Critérios de análise

Como princípio, o processo de análise aqui admitido toma a obra como corpo

integral e articulado, considerando que todos os seus aspectos estão interligados12

na construção em rede da narrativa e da mensagem: projeto gráfico, materialida-

des, intertextualidades, recursos narrativos, texto, imagem, representações, signi-

ficações provocadas a partir dos signos e recursos para recriação e interação de

leituras diversas.

5.1.1. primeira camada

Em uma primeira camada, os aspectos referenciados foram organizados em

critérios de análise sugeridos nas obras de Van der Linden, Para ler o livro ilustra-

do (2006), e também a de Maria Nikolajeva e Carole Scott, Livro ilustrado, pala-

vras e imagens (2011):

• Morfologia: formato, volume, cores, luzes e sombras, texturas, recursos gráfi-

cos, técnicas de ilustração, enquadramentos.

12 A análise aqui proposta parte do pressuposto que, para a realização de Inês, toda a cadeia de produ-
ção do livro esteve envolvida e integrada para o resultado que temos disponível para o leitor e, portanto,
o aprofundamento das investigações visualizando ao mesmo tempo o todo e suas partes justificam-se. A
prática desta integração entre etapas e profissionais não é unânime em todas as editoras, mas vem tornan-
do-se cada vez mais, a partir dos resultados positivos e premiações de livros que assim foram produzidos,
em que a integração de soluções que envolvem a materialidade do livro e conteúdos artísticos e literários
geram inovações nas relações de texto e imagem, projetos gráficos e aplicação de recursos da indústria
gráfica – impressão e materiais diversos. É importante também observar que, a partir dos anos 80, quan-
do os processos produtivos passam a acontecer nas plataformas digitais, os autores e editores ganham
acuidade e domínio no controle dos detalhes e decisões de projeto, já que a arte-final é gerada no compu-
tador, por eles mesmos ou sob sua supervisão direta.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
74
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
• Sintaxe: movimento, ritmo, composição, quebras página simples/página du-

pla, paginação, pontos de vista, design gráfico.

• Semântica: referências simbólicas, referências iconográficas, intertextualida-

de, recurso narrativo.

Aqui é possível traçar sincronias complementares com três princípios que po-

dem basear a experiência analítica sob a perspectiva das relações entre a lógica, a

ética e a estética. São “três princípios segundo os quais, no mínimo três faces do

objeto em estudo devem ser consideradas: a da significação ou representação, a

da referência e a da interpretação.” (CUNHA, 2009, p. 88). Este paralelo pode en-

tão ser sintetizado da seguinte maneira:

• Significação ou representação: permite a exploração do interior da obra em

três aspectos: o das qualidades e sensorialidade de suas propriedades internas

(por exemplo; uso da linguagem visual, cores, formas, volume, movimento, dis-

posição e distribuição espacial); o de seu contexto: o aqui e agora; e aquilo que

tem de geral, convencional, cultural.

• Referência: permite que possamos compreender o que as mensagens que

povoam a obra querem dizer, ao que se referem e ao que se aplicam.

• Interpretação: examinar os efeitos que as obras podem despertar no

receptor.

5.1.2. segunda camada

Dentro dos critérios Sintaxe e Semântica, permeados pela significação ou re-

presentação, referência e interpretação, habitam os signos, que levam à segunda

camada de derivação de critérios, agora trazidos da semiótica. Nesta camada, são

consideradas aqui, para a análise, categorias dos conhecimentos ou modos de

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
75
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
operação do pensamento, elaboradas por Pierce13:

Primeiridade: está relacionada à ideia de indeterminação, acaso, es-


pontaneidade, potencialidade, presentidade.
Secundidade: está relacionada à ideia de força bruta, ação/reação.
Terceiridade: está relacionada à ideia de generalidade, continuidade,
crescimento e devir. (CUNHA, 2009, p. 57)

Destas categorias fenomenológicas – Primeiridade, Secundidade e Terceiri-

dade – e das classificações de signos de Peirce, a saber: “1. não-representativas,

2. figurativas, 3. representativas ou simbólicas; e, num segundo nível, chegou a

três subdivisões dentro de cada uma dessas matrizes.” (SANTAELLA, 1993, p. 42),

ativaremos uma atenção especial à subdivisão proposta para o item 3, devido à

intensidade das cargas de representação e símbolo que as imagens dos livros es-

colhidos evocam. A saber:

3.1. As imagens participam de simples qualidades ou Primeiras


Primeiridades;
3.2. Os diagramas representam as relações – principalmente relações
diáticas ou relações assim consideradas – das partes de uma coisa, uti-
lizando-se de relações análogas em suas próprias partes.
3.3. As metáforas representam o caráter representativo de um signo,
traçando-lhe um paralelismo com algo diverso. (...) Em síntese, a ima-
gem é uma similaridade na aparência, o diagrama, nas relações, e a
metáfora, no significado. (SANTAELLA, 1993, p. 44)

13 Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo e matemático, fundou uma filosofia científica em cujo bojo
se encontra a Semiótica. “Em seu caminho de investigação, procurou encontrar o que cada ciência desenvol-
ve para chegar a princípios comuns, seus métodos e mecanismos de raciocínio, chegando à conclusão de que
todos os métodos de investigação originados nesses mecanismos desenvolvem-se por meio de signos, não
somente de signos simbólicos, pois todo raciocínio envolve uma mistura de ícones, índices e símbolos. Ao
chegar a tal conclusão, a Semiótica passou a ser para ele a própria Lógica.” (CUNHA, 2009, 55)

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
76
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
O capítulo 6, a seguir, contempla a análise detalhada do livro Inês a partir dos

critérios descritos e estudados nesse capítulo 5, assim como resgata e inter-rela-

ciona os demais conceitos teóricos trabalhados em todos os demais capítulos.

Descansados e instrumentalizados para uma roda renovada, vamos dar as

mãos e cirandar no capítulo 6!

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
77
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 10: Crianças brincando de ciranda
Fonte: Arquivo próprio

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
78
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 6 • INÊS: DA ORALIDADE ANCESTRAL AO LUGAR
DA VOZ NARRATIVA INFANTIL

Por isso Livro, faz favor de entrar na roda!

Inês é nossa convidada para estar no meio da roda, brincar no centro, enquanto

cirandamos a observá-la e com ela conversar a partir de diferentes pontos de vista.

A obra é um livro ilustrado, na concepção aludida por Van der Linden (2011),

como já comentamos, de autoria de Roger Mello e ilustrações de Mariana Massa-

rani, Companhia das Letrinhas, 2015.

A análise morfológica será melhor contemplada com um olhar voltado para a

concretude do objeto e as suas possibilidades de interação leitora; as análises sin-

táticas e semânticas serão descritas em um trajeto leitor sequenciado e pontuado

pela virada das folhas e encontros sucessivos com a página dupla.

6.1 Morfologia

A capa dura e o formato horizontal (27,5 x 20,5 cm) remetem ao livro clássi-

co, bem como a um álbum de fotografias ou memórias. A referência contribui

para uma aproximação com o ambiente antigo em que se passa a história, assim

como para a evocação do clássico tradicional onde habita a história original de

Inês de Castro.

De fato, a obra não deixa de ser uma narrativa de memória, um reconto por

meio da voz da filha de Inês, que é a narradora e revisita o mito literário, a partir

do seu ponto de vista. Com 48 páginas, a obra foi impressa em papel espesso, 150

ou 170 g, compondo um volume que suporta bem a capa dura.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
79
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
As cores predominantes são o vermelho, preto, branco, kraft, azuis e verdes,

que se alternam em associações inusitadas e de resultado estético forte, contri-

buindo, principalmente quando aplicadas como fundos, para o posicionamento e

troca de ambientes e cenários ao longo da narrativa, acentuando atmosferas sen-

síveis que suportam e correspondem às diversas situações pelas quais a história

conduz o leitor. Mariana Massarani faz uso da cor, em Inês, para compor estados

de espírito, variações de humor e sentimentos. Momentos de tristeza e silêncio

têm fundo escuro, um marrom indefinido e sujo, apoio para a predominância

de pretos e brancos que assumem a mesma hierarquia das outras cores. Preto e

branco são traço e ponto focal, mas não são sombra nem luz, e sim preenchimen-

to e forma, respectivamente. O vermelho tem, sem dúvida, uma força importante

para a composição da variação de temperamentos ao longo de todo o livro. O

ápice está na página onde acontece o assassinato de Inês e, na página seguinte,

tinge Pedro por inteiro. Sangue e raiva.

Além de aspectos destacados como esse, a onipresença do vermelho nas capas

e guardas, reforça a relação simbólica com a alga vermelha e o derramamento de

sangue, que está especialmente manifestado na história clássica, através do rio

Mondego que teria sido banhado pelas lágrimas e pelo sangue de Inês, “levando

à criação de uma Fonte das Lágrimas, onde uma alga vermelha persiste, teimosa,

como prova do sacrifício de Inês”, como conta Lilia Schwarcz no posfácio da edi-

ção de 2015.

A contribuição da cor se faz também por meio de diferentes intensidades de

claros e escuros, que se organizam em sintonia com as sensações despertadas pe-

los fatos que compõem a história. Cores escuras com pouco contraste chegam a

embaçar a leitura e aprofundar a dor ou confusão de determinados momentos

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
80
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
difíceis, enquanto superfícies claras e leves, com poucas cores e contrastes suaves,

oferecem alívio e leveza nos momentos agradáveis da história.

As texturas provocadas pelas grandes áreas de tinta PVA e pelo traço do lápis

6B provocam a possibilidade da percepção em camadas na página, planos de

chão e céu que sustentam as cenas.

FIGURA 11: Paginas 12 e 13 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

A exceção nota-se nas páginas onde não há texturas de cor, mas apenas a ho-

mogeneidade dura do papel kraft cru: nessas páginas, a ilustradora deu preferên-

cia ao posicionamento de desenhos predominantemente brancos e pretos, soltos

do enquadramento da página, atribuindo um efeito dramático que enfatiza as so-

lidões e as tensões sugeridas no texto que compartilha a página.

FIGURA 12: Paginas 10 e 11 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
81
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Há um cuidado especial na escolha pelos enquadramentos feitos pela autora

e ilustradora e pelo designer gráfico, incluindo os blocos de texto como parte da

imagem. Esse trabalho de composição amplia, reduz, estende ou compacta as in-

formações em um jogo de hierarquia que guia o olhar do leitor. Podemos obser-

var tal cuidado, por exemplo, quando o personagem Pedro aparece grande e cen-

tralizado ou posicionado na lateral da margem externa do livro, recurso que con-

tribui para que a atenção do leitor se volte para ele; assim como também nos gru-

pos de personagens, posicionados lado a lado, aproveitando a horizontalidade do

formato em página dupla, ou ainda nos personagens que aparecem em meio cor-

po, ultrapassando os limites das margens superiores ou inferiores, completando

e enfatizando os aspectos de suspense ou sombrios do texto, e oferecendo espaço

além do fio da página para a criação de continuidades pelo leitor.

FIGURA 13: Pagina 21 da obra Inês FIGURA 14: Pagina 19 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015. Fonte: Mello e Massarani, 2015.

FIGURA 15: Pagina 22 da obra Inês FIGURA 16: Pagina 20 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015. Fonte: Mello e Massarani, 2015.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
82
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Ao folhearmos o livro como um todo, podemos perceber indícios de época nas

vestimentas dos personagens e em alguns elementos soltos, trabalhadas nos ní-

veis 1. não-representativa e 2. figurativas, como as armaduras e o castelo.

Nota-se que os cenários, ao contrário, não apresentam caracterização de referên-

cias temporais evidentes: isto concorre com momentos de ausência de cenários.

Tal estratégia contribui para um deslocamento temporal ou para uma atempo-

ralidade da obra – qualidade levantada na introdução e na sequência deste capí-

tulo – ao colocar os acontecimentos em um não lugar, trazer a cena para qual-

quer espaço, levar o leitor para longe ou trazer a história para perto.

6.2 Sintaxe e semântica

6.2.1. Convite a partir do lúdico: a experiência e a palavra

poética como jogo

O viés analítico permitido pelas vias da sintaxe e da semântica propicia-nos

um convite a partir do lúdico, pela experiência estética e pela palavra poética

como jogo. A narrativa desse livro começa na primeira capa:

FIGURA 17: Capa da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
83
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A capa, sem dúvida, cumpre um papel no envolvimento físico com o
livro, pois, embora não se possa olhá-la enquanto se lê, ela o define
como objeto a ser apanhado, deixado de lado e talvez conservado ao
longo do tempo. (POWERS, 2003;7)

O aglomerado de gentes convida o leitor a aproximar-se, vir olhar, procurar o

motivo do agrupamento. No momento seguinte, pode-se perceber a configuração

de uma fila e quem sabe fazer parte dela, entrar. A princípio a procura não termi-

na porque o motivo do aglomerado não está claro. O convite ao leitor se renova.

Então, o jeito é procurar mais, abrir o livro, virar a página. Segundo a escritora e

ilustradora Angela Lago, em entrevista para o projeto Linha de Histórias,14 “esse

momento em que você vira a página é uma suspensão. Você tem que criar um

acontecimento da mesma forma como se você virasse uma esquina, né?” Em Inês,

tem acontecimento neste virar, e pode ser inesperado: a fila continua.

Diferentemente de observar uma tela, vira-se uma página com a mão –


e livros se prestam a várias formas de manuseio e manipulação. Não
há nada de novo nisso, mas é gratificante descobrir que tais técnicas
continuam deleitando os leitores. (POWERS, 2003, p. 134)

Segue a procura pelo motivo da junção de tanta gente. O olhar pode en-

tão identificar o fio da fila, e seguir conduzido até encontrar o final, onde está

um trono e uma rainha, com um homem, entre aquelas gentes, beijando-lhe a

mão. A rainha é traço, sem destaque, misturada à multidão. Um tipo de Wally15.

14 Exposição “Linhas de Histórias – O Livro Ilustrado em Sete Autores”, Sesc Santo André, agosto de
2017. https://www.youtube.com/watch?v=4r4aiIXLYiU
15 Referência ao personagem da série de livros Onde está Wally?, HANDFORD Martin, Editora Martins
Fontes, 2016, em que o leitor é convidado a encontrar o personagem no meio de imagens formadas por
uma grande quantidade de informações graficamente similares.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
84
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Este encontro gera uma pausa na narrativa que começou. Ou será apenas o final

do título iniciado lá na primeira capa? O título do livro está na fila. Ou a fila faz

parte do título?

FIGURA 18: Guardas da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Se voltarmos para a primeira capa, conferir o título que continua parado na

fila, e abrirmos o livro “ao contrário”, de maneira a visualizar lado a lado a quarta

e a primeira capas, acontece de novo:

FIGURA 19: 4a e 1a capas da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

A fila aumenta, agora para a esquerda. Se abrirmos o livro de novo ao con-

trário, começando pelo final, encontramos a outra guarda e... mais fila! O livro

aberto “do lado das capas” amplia as dimensões da fila, amplia a dimensão do

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
85
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
vermelho. As figuras humanas são chapadas, sem volume, sombra ou perspectiva,

o que as colocam no mesmo plano do vermelho, fundindo-os e equiparando-os

na hierarquia das informações. Desse modo, o conjunto das capas e guardas an-

tecipa a importância do vermelho e compõe com o preto fio um resultado den-

so, sem luz, sujeira adensada pelas fumaças de grafite que o lápis 6B gera e que

foram mantidas, talvez mesmo com esse propósito. A densidade deste vermelho

é tanta, sugere grossuras de tinta tanta, que deve ser difícil se mover nesta fila de

figuras planas e silenciosas (com algumas poucas murmurantes).

A introdução divertida descreve uma das possibilidades de leitura sugerida

pelo livro, criada pela conexão entre conteúdos narrativos e materialidade. Ela

pressupõe uma movimentação para as leituras que pode envolver, entre outras,

virada de páginas, retornos, inversão de sequência. Trata-se de uma das muitas

dinâmicas que o livro contemporâneo retoma ou inaugura, a partir da produção

de uma linguagem que “não é unívoca nem transparente” (GOLDIN, 2006, p. 82),

e por isso permite que o outro a recrie. Ao abrir este espectro de possibilidades

de leituras e recriações, o livro pressupõe encontros com um leitor participativo,

que lê de maneira multidimensional, interage e transforma, apoiado na ativação

de sua própria cultura infantil.

No caso particular desta leitura das capas e guardas de Inês, o aspecto que ga-

nha importância dentre as demais características do livro é o da ludicidade, que

também aparece ao longo do livro no trabalho com a linguagem verbal, no uso

poético de trocas de letras e significados por meio da repetição de palavras, como

veremos adiante.

O lúdico, visto como um fenômeno, do latim phaenomenon, significa


“aparição, coisa que aparece” (...) do ponto de vista das crianças, revela

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
86
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
a oportunidade de se expressarem ludicamente a partir dos seus po-
tenciais individuais, sobretudo de forma espontânea; é uma forma de
dar-lhes voz e ouvi-las; do ponto de vista dos adultos, um caminho ex-
pressivo para canalizar emoções e desenvolver habilidades, tão essen-
ciais para seu autoconhecimento. (FRIEDMAN, 2013, p. 71)

Em sintonia com o conceito da linguagem aberta para recriação pelo leitor,

aludido por Goldin (2006; 82), em um primeiro momento podemos considerar

que o aspecto lúdico de um livro não suporta comprometimento com sua lite-

racia. A ludicidade acontece no campo da experiência, que é livre, e pode perder

“todo o valor por ser incompatível com a certeza.” (AGAMBEN, 2005, p. 117).

Apesar dessa visão da experiência, por si, satisfazer respostas à investiga-

ção da natureza do lúdico nos livros contemporâneos para as infâncias, é possí-

vel derivar e enriquecer os entendimentos a partir de conceitos das linguagens

da cultura das infâncias. Se lembrarmos da citação pela professora Péo (item 4.2

dessa dissertação) sobre a diferença entre brincar e jogar, para os brasileiros (PE-

REIRA, 2019, p. 16), podemos investigar ainda mais a natureza do lúdico no li-

vro: brincadeira ou jogo?

Para Johan Huizinga, em seu livro Homo Ludens,

o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de


certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras
livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de
um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e
de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana”.
HUIZINGA, 1938, p. 14)

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
87
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Segundo Lydia Hortélio, em entrevista ao Instituto Tear em 2014, a essência do

brincar é a espontaneidade, a inteireza do ser no momento presente: “Brincar é o

último reduto de espontaneidade que a humanidade tem.”

Reiterando como associações ao lúdico do livro os conceitos de liberdade,

descomprometimento e espontaneidade, o brincar parece se aproximar mais da

natureza em questão do que o jogo, principalmente se considerarmos que a ex-

periência lúdica não precisa nem sequer acontecer para que a narrativa seja com-

preendida em todos os seus aspectos. Quando acontece é um presente, uma ca-

mada extra, cuja conquista pode gerar maior poder do registro da experiência na

memória e na ramificação de significados. Por meio do brincar,

nossos sentidos assimilam, produzem e são continentes de conheci-


mentos significativos da nossa existência. (...) O mundo interno das
crianças emprega parâmetros de uma realidade percebida por ela,
que não coincidem necessariamente com as leis que regem a dimen-
são material do objeto externo. O caráter externo do objeto torna-se
menor, quase se dissolvendo diante da vitalidade mais profunda que
o objeto passa a revelar pela interação imaginativa e corporal entre a
criança e seu brinquedo. (PEREIRA, 2019, p. 16)

No âmbito da materialidade do livro, de modo geral, toda capa tem seu papel

de embalagem. Quando fechado, ela é vista e revisitada muitas vezes. Como su-

porte para a imagem que imprime, ela tem também seu papel de prenúncio ou

sedução na direção do porvir dos conteúdos que embala. Sob esse ponto de vista,

a capa de Inês seduz no primeiro olhar, pelo espaço preenchido por pessoas vesti-

das com roupas da era dos reis e princesas que, se observados com mais demora,

estão em atitudes ou posturas tão diversas quanto suas próprias aparências, por

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
88
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
vezes curiosas e engraçadas, na expectativa por um motivo que os trouxe ali, e

que ainda nem sabemos, enquanto leitores, qual é.

A mesma capa, revisitada após a leitura do livro, ganha novas camadas de sen-

tido. Agora, o leitor sabe que a fila é para o beija-mão de Inês, e as atitudes ex-

pressas pelas figuras da fila transformam-se de maneiras ainda mais inusitadas.

Permanece o silêncio, algum murmúrio ou burburinho.

Dando continuidade à observação das capas, outro papel que é exercido pela

fila de pessoas é a figuração da expressão “em cada uma de nós” que aparece no

texto da quarta capa, escrito por Lilia Moritz Schwarcz: “Toda vez que queremos

dar uma coisa por acabada, dizemos: ‘Inês é morta.’ Roger Mello e Mariana Mas-

sarani mostram que, ao contrário, a rainha Inês vive em cada um de nós e em

cada detalhe deste poema em forma de livro.”

FIGURA 20: Recorte da ilustração da capa da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Convite para o leitor entrar na fila? O texto aproxima Inês de cada um de nós

pela evocação da expressão popular; ao antecipar as qualidades poéticas do livro, o

faz também por meio da expressão “poema em forma de livro”. O texto da quarta

capa anuncia que este livro vem revisitá-la, retrazê-la, refazê-la, entregar de volta.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
89
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
6.2.3. A personagem “em positivo”: a perspectiva a partir do que a

criança é em oposição ao que ela não pode

FIGURA 21: Verso da guarda e página 1 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

O preenchimento total do campo da primeira dupla do livro pela cor do kraft é

capaz de estancar o movimento vivenciado nas capas e chamar para a travessia de

um espaço vazio que acalma e prepara: Inês – aplicação do nome na borda direita,

quase virando a página – a história vai começar.

FIGURA 22: Páginas 2 e 3 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Sim, a história vai começar. A página da esquerda ilumina-se em fundo bran-

co para a passagem da narradora, ou de uma das personagens, ainda não se sabe.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
90
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Ela é uma menina e carrega um bebê no colo, um bebê que com ela forma um

todo corpo, em postura serena.

Um grupo de adultos dá passagem: cinco desformas de preto profundo, que

emolduram rostos de expressão melancólica, compõem figuras que lembram

membros de instituições religiosas, com aspecto quase sombrio. Estão de luto?

Inclinadas, estão com pena? Todos os olhos fechados não oferecem resposta além

da indiferença. Unidas, as cinco formam um fundo plano e escuro para a forma

clara da menina que passa, tão alheia quanto determinada.

A expressão que emana do grupo de adultos, a outra que emana da persona-

gem criança, estando cada qual em planos separados na imagem, escuro e claro

– positivo e negativo – oferecem ocasião para a abertura de um simulacro com

a ideia de infância com a qual a obra Inês conversa. Aquela que, nas palavras do

sociólogo Manuel Sarmento, é fruto de “uma ruptura com um retrato da infância

em negativo – que não fala, que não pode, que não sabe.” que dá lugar a um novo

“pensamento sobre a infância: a criança é pensada a partir da positividade das

suas próprias características.” (SARMENTO, 2016, p. 7)

FIGURA 23: Simulação de fundo preto para a página 2 da obra Inês


Fonte: Arquivo próprio.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
91
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A imagem da página 2 pode provocar no leitor uma sensação diversa da acima

referida. Cumpre lembrar que os múltiplos olhares para a mesma imagem cons-

titui exercício imprescindível para as bases de construção do pensamento apre-

sentado neste trabalho, em que o livro contemporâneo é composto de maneira

a permitir a recriação pelo leitor capaz de desafiá-lo em face da pluralidade de

leitura de códigos que o livro propicia, no sentido de favorecer uma percepção

tão ricamente tecida quanto incompleta. A associação de sentidos, vale dizer, es-

tará ligada, seguramente, ao arcabouço de repertórios do leitor, e essa dinâmica

leitora potencializa inferências abdutivas, que motivarão a busca de sentidos e a

intelecção necessária para as relações das leituras do livro e do mundo.

A primeira função do símbolo é a de reunir: o indivíduo com ele mes-


mo, com os outros, com o Divino e com os diferentes reinos da natu-
reza. A análise intelectual do símbolo é somente possível junto com a
intuição e a percepção global da história na qual está integrado [...].
Assim, o símbolo torna-se vivo, inolvidável e profundamente dinâmi-
co para aquele que aceita sua íntima presença.
O símbolo é operativo: trata do significado que é produzido ou per-
cebido a partir de um estado de espírito, e provoca um novo estado.
(FRIEDMAN, 2005, p. 83)

Aponta-se aqui um olhar – também possível a partir da mesma imagem da pá-

gina 2 –, que pode conduzir o leitor para uma semiose no sentido da coalisão

dos planos, ao contrário de uma separação. Se tomarmos como guias os planos

horizontais, a linha de rostos adultos acima da personagem criança, linha que

pode ser olhada como origem de uma cadência de anteparos pretos que só aca-

bam no chão, podemos visualizar um campo de proteção, vindo de cima para

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
92
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
baixo, apoiando a silhueta da personagem. Será que este grupo silencioso pode-

ria representar a presença adulta disponível para cuidados para a menina com

um bebê? Olhos fechados como sinal de expressão de suas próprias dores com-

partilhadas, sinal de comunhão e reverência às crianças que passam?

FIGURA 24: Simulação de fundo branco para a página 2 da obra Inês


Fonte: Arquivo próprio.

Quaisquer que sejam as respostas ou interpretações surgentes, o valor da

criança “positiva” continua presente.

A página 3 retoma a neutralidade da dupla anterior (verso da guarda e página

1) repetindo o fundo kraft, e a trajetória horizontal do andar da menina na página

lateral, ao alinhar todas as informações em um único espaço centralizado na altura

da página. Entre as informações, um coração representado de maneira figurativa é

o ponto de cor vibrante da dupla. Pulso simbólico de sentimentos intensos por vir.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
93
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Nas páginas 4 e 5, o fundo neutro inteiro continua, vindo da página virada,

para apoiar informações técnicas. Ao lado da dedicatória, brilha sobre o plano

escuro um objeto branco e modular formado por figuras simbólicas, que pode-

mos chamar de signos icônicos:

FIGURA 25: Páginas 4 e 5 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Quanto aos signos icônicos, que Pierce distingue dos ícones, já pos-
suem um grau de atualização sígnica, no sentido de intentar, represen-
tar-se a si mesmo com signo. Esses oferecem parâmetros para a análise
de algumas formas de linguagem. São as imagens, os diagramas e as
metáforas. (CUNHA, 2009, p. 64)

Juntos, estes signos familiares à cultura popular formam um penduricalho que

prenuncia a grande quantidade de relações simbólicas que esta história vai tra-

zer. Como todo, a forma do objeto remete a simbologias medievais, tais como os

encontrados em escudos e estandartes. A imagem convida o leitor participativo a

realizar associações brincantes sem compromisso com enredos:

A complexidade desses signos – que envolvem imprecisão, acaso, qua-


lidades, sensações – evidentemente não garante que o intérprete capte
toda a carga informacional (aquilo que o signo está apto a produzir e o

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
94
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
efeito que efetivamente produz). Há uma gama de possibilidades: desde
contemplação estética (primeiridade) até a ação intempestiva de fechar
um livro (interpretante energético) ou uma reflexão e compreensão in-
telectual do signo (interpretante lógico). (CUNHA, 2009, p. 143)

Prepare-se! Evoque seu imaginário, seu repertório e histórias

próprias. Balance o penduricalho de imagens e ouça o tilintar do

último som alheio, antes da história começar!

Entram na roda, a narradora, a personagem e o leitor: a voz, o

ponto de vista infantil.


FIGURA 26: Detalhe da p.5 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.

6.2.3. Narradora, personagem e leitor: a voz a partir do ponto de

vista infantil

FIGURA 27: Páginas 6 e 7 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Quando eles se conheceram,

eu andava escondida no meio de outras coisas.

Curva de brisa, alga vermelha, briga de passarinho.

Eu ainda não era uma vez.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
95
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Dar a voz narrativa a uma personagem criança para recontar uma história tra-

dicional, de cujo centro temático irradiam morte, ciúme e traição, e por isso po-

deria ser entendida como inacessível para as crianças, é a força principal desta

obra e o motivo da escolha para a discussão que se propõe aqui.

A narrativa composta pelo texto imagético está permeada de pontos de vista

infantis. Considera-se aqui “pontos de vista infantis” a apropriação, pelas lingua-

gens que compõem o livro, de olhares abertos para o universo vasto do simbólico,

do literal, do poético e filosófico, tantas vezes sem o filtro de um repertório pré-

vio e determinante, mas com o frescor e a surpresa do encontro, comoção e es-

banjamento das primeiras experiências. Olhares para os detalhes, os vazios, para

os silêncios, para os ditos e os “querer dizer”.

Quando eles se conheceram,


O trecho inicial do texto, o começo da história, nos traz um “eles”, e é a ilustra-

ção que apresenta (e representa) este “eles” ao leitor, na página ao lado. A inter-

-relação do texto com a imagem é fundamental para o entendimento integral da

mensagem, em acordo com a estrutura narrativa proposta pelo livro ilustrado. É

pela imagem que se processa a associação de significado: há um casal apaixona-

do – “eles” – (cada um com seu coração aplicado nos corpos) e há também um rei,

entre os dois, que, por meio de seu olhar fechado e sisudez sem sorriso, demons-

tra não estar satisfeito com o enamoramento.

eu andava escondida no meio de outras coisas.


A sequência volta a fala da narradora para si própria, de maneira poética, apresen-

tando-se como “escondida no meio de outras coisas”. Por “coisas” vamos conhecer e

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
96
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
associar aquelas relacionadas na frase seguinte: curva de brisa, alga vermelha, briga

de passarinho: três partes de um contexto em que está e atua a personagem.

Curva de brisa, alga vermelha, briga de passarinho.


O resgate de memória e a transformação em imagem ou palavra de elementos

significantes, objetos e detalhes que fazem parte do cotidiano das crianças, é pró-

prio do que chamamos de cultura das infâncias. A transformação costuma ser li-

vre e entrelaçada ao imaginário, coletivo ou individual, fruto de associações entre

a experiência e o repertório social e cultural adquirido pelas crianças. Ao citá-los

em sequência sem obedecer a uma linha sintática dentro do texto, o autor imita

este resgate e transformação próprios das crianças, e convida os leitores a praticar

a mesma visualização. Os três elementos (brisa, alga e passarinho) reaparecem ao

longo do texto, por vezes alteradas em um ganhar de novos sentidos, como uma

brincadeira de trocadilhos (brisa por briga, alga por algo), mas, como representa-

ção em imagem, vão aparecer apenas na página que encerra a história, quando o

leitor já tiver criado suas próprias brisas e algas e passarinhos.

s
Curva de bri a, alga vermelha, bri ga de passarinho. (p. 6)
Briga de brisa, curva de passarinho. Algo vermelha. (p. 13)
Briga vermelha, curva de alga. (p. 22)
Podemos dizer que esta apropriação, feita pelos autores, de elementos da natu-

reza ou objetos para participarem como símbolo metonímico de todo um contex-

to, é uma característica de comunicação própria das crianças. Tais significações

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
97
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
podem ainda ser ampliadas quando observamos este trazer através da dimensão

destes objetos como brinquedos:

O brinquedo é uma materialização da historicidade contida nos ob-


jetos, que ele consegue extrair por meio de uma manipulação parti-
cular. Enquanto, na verdade, o valor e o significado do objeto antigo
ou do documento é função de sua antiguidade, ou seja, do seu presen-
tificar e tornar tangível um passado mais ou menos remoto, o brin-
quedo, desmembrando e distorcendo o passado ou miniaturizando o
presente, [...] presentifica e torna tangível a temporalidade humana em
si, o puro resíduo diferencial entre o “uma vez” e o “agora não mais”.
(AGAMBEN, 2005, p. 87)

Atribui-se à brisa, à alga e ao passarinho a qualidade de patrimônio, ao mesmo

tempo coletivo – em sua “antiguidade” – e individual – por meio da “manipu-

lação particular” – , em diálogo entre o passado e o presente, efeito que, nesta

introdução de Inês, uma história de origem remota, pode ser capaz de estabelecer

ligações entre o tempo da narradora e o do leitor, aproximando-os. Ao longo do

texto, as repetições do trio de elementos (brisa, alga e passarinho) associado ao

recurso do trocadilho, como já citado, estreita ainda mais a vestimenta da palavra

como brinquedo: ao trocar uma letra – “manipulação particular” – a palavra ini-

cial ganha novo significado e dá novo sentido ao contexto – “presentifica” – e re-

vela sua temporalidade, sua capacidade brincante de diferenciar-se entre o “uma

vez” e o “agora não mais.” (AGAMBEN, 2005, p. 87)

Ainda sobre o trecho do texto que inicia a história, na página 6,

eu andava escondida no meio de outras coisas.


Eu ainda não era uma vez.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
98
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
é possível fazer leituras com teor de transcendência, à medida que o texto levanta

pensamentos sobre a origem da personagem, ou de seu estado antes de ser, de

nascer. A escolha, pelo autor, das palavras “andava escondida” sugere um estar onde

tem movimento (andar) e brincadeira (esconde), enquanto não se está visível. Esta

simplicidade que aparece na composição textual – que é cuidada em profundidade

e proposição de camadas de significado – provoca uma aproximação ao que

podemos considerar um olhar infantil: afinidades justas para questões abstratas a

partir do repertório disponível no momento daquela experiência. “Estar escondida

no meio de outras coisas quando ainda não era uma vez” é um enunciado literário e

poético suficientemente aberto para ser lido sem sugerir identidade com nenhuma

crença existente na realidade, ou repertório do leitor baseado na sua experiência16.

A conexão de sentido acontece em possibilidades diversas como as que surgem

aqui, por hora, a título de exemplo: a personagem pode estar em outro plano es-

piritual, pode ser um elemento da natureza misturado às algas, brisas e passari-

nhos, pode pré-existir na própria imaginação. Não há resposta: “A dimensão que

os livros iluminam é a da incompletude e da promessa de acalmá-la.” (GOLDIN,

2006, p. 36). O que há é o espaço para a recriação: “O espaço construído por meio

da palavra escrita garante os consensos implícitos e explícitos e, ao mesmo tempo,

as formas explícitas e implícitas do dissenso tolerado. [...] O outro recria porque a

linguagem não é unívoca nem transparente.” (GOLDIN, 2006, p. 82).

Se extrapolarmos as vias abertas de leituras diversas a partir de um posiciona-

mento do leitor não só em relação a si próprio, mas também em relação ao outro –

e este outro pode ser outro leitor e também os autores do livro, por que não? –

16 Toma-se aqui, como “realidade”, para as crianças, “o efeito da segmentação, transposição e recriação
feita no ato de interpretação de acontecimentos e situações. O que torna a vida uma aventura continua-
mente reinvestida de possibilidade.” (SARMENTO, 2002, 13).

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
99
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
trazemos a abordagem social das infâncias e podemos ver emergir, na variedade

de leituras possíveis, a diversidade de significações com base em de uma única

narrativa, pelo mesmo leitor. Este, na evolução de suas experiências com os livros

e literacias, apreende e conforma-se com a incompletude a que Goldin se refere, e

pode vivenciar a permanência de duas ou mais leituras, em um exercício de em-

patia e descobertas de si como ser social. Segundo Sarmento,

a revisão dos fundamentos teleológicos e do linearismo evolutivo da tra-


dição desenvolvimentista (cf. Burman, 1994; Sousa, 1996), tem permi-
tido abrir novas perspectivas interpretativas [...] que põe em questiona-
mento a concepção da criança como um ser essencialmente narcísico e
egocêntrico, para considerar a dimensão relacional e interacional cons-
titutiva da ação infantil, o que conduz, por exemplo, à interpretação do
jogo simbólico não como uma projeção de um self auto-centrado, mas
à exploração da mudança do ponto de vista ou de condições de exis-
tência, como forma de apreensão do mundo. (SARMENTO, 2002, p. 9)

Deste entendimento, o interesse levantado aqui é como a percepção do outro

pode acontecer no âmbito das relações da criança com a cultura e com a arte, es-

pecialmente a literária. Estudos a partir do enunciado de traços identificadores de

uma “gramática das culturas da infância”, inclusive, apontam para o imaginário

como meio, ainda dentro da concepção geral das infâncias como categoria social:

Em contraponto com uma visão determinista da recepção cultural


pelas crianças, o estudo do imaginário infantil, no quadro das cultu-
ras da infância, como modo de apropriação alternativa da realidade
social, poderá inserir-se no âmbito da abertura a novas abordagens
epistemológicas a que somos convidados perante a crise dos para-
digmas legados pela modernidade. A incorporação do imaginário no

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
100
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
conhecimento do mundo, (...) corresponde a um resgate do sensível na
interação com a natureza e com os outros. O imaginário infantil é um
fator de conhecimento, e não uma incapacidade, marca de imaturida-
de ou um erro. (SARMENTO, 2002, p. 16).

Por conseguinte, o teor transcendente aqui referido ganha uma aproximação

com o imaginário popular, sutilizando-o, ao resgatar, de maneira intertextual, os

inícios consagrados dos contos de fadas clássicos, o “Era uma vez”. Porém, a frase é

subvertida, provocando um estranhamento capaz de provocar novos significados:

Eu ainda não era uma vez.


A história que será contada não é um conto de fadas tradicional, considerando que

não se trata de um texto integrante do cânone estabelecido, e também por não conter

o fantástico, um dos atributos que define estes contos, em que os andamentos e ações

da narrativa estão permeados por mediadores mágicos, como distingue a Profa.

Nelly Novaes Coelho: “Limitado pela materialidade de seu corpo e do mundo em

que vive, é natural que o ser humano tenha precisado sempre de mediadores má-

gicos.” que existem “entre ele e a possível realização de seus sonhos, ideais, aspira-

ções.” (COELHO, 2012, p. 85). Por outro lado, a associação ao imaginário dos con-

tos de fadas é justificada, considerando ainda a definição da mesma autora: “gira em

torno de uma problemática espiritual/ética, existencial, ligada à realização interior

do indivíduo, basicamente por intermédio do Amor.” (COELHO, 2012, p. 85). Ade-

mais, estamos sendo introduzidos, como leitores, em um ambiente medieval, onde

estão presentes os arquétipos das figuras monárquicas e suas atribuições de poder.

A evocação, no texto introdutório de Inês, ao conto de fadas, predispõe a natu-

reza e identificação da obra com o gênero:

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
101
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
É válido dizer, com Bettelheim, que eles (os contos de fadas) suscitam
as eternas perguntas filosóficas, e supor que as respostas que dão são
apenas índices, que suas mensagens podem conter soluções, mas que
estas nunca são explícitas? Estou convencido de que é certo o que ele
sustenta se falarmos das crianças de hoje. (GOLDIN, 2006, p. 70).

Em concomitância com as reflexões filosóficas a que Goldin se refere, aborda-

mos o ambiente do sensível, do transcendente que, assim como a Sarmento: “Não

é apenas das crianças que tratamos quando tratamos das crianças.” (SARMENTO,

2002, p. 16), também entusiasma a Profa. Nelly Coelho, com base na detecção de

que este resgate é necessário, principalmente como amparo, diante dos cenários

políticos, sociais e privados controversos que vivemos, com efeitos negativos para

o desenvolvimento infantil:

A ciência está sendo levada a reconsiderar o sobrenatural, a aceitar o


mistério, a buscar um novo sentido para a transcendência e a remode-
lar a face do próprio Deus. (...) Enfim, estamos vivendo um momento
propício à volta do maravilhoso, (...) É por meio dessa perspectiva que
os contos de fadas, as lendas, os mitos, entre outros, também deixaram
de ser vistos como “entretenimento infantil” e vêm sendo redescober-
tos como autênticas fontes de conhecimento do home e seu lugar no
mundo.” (COELHO, 2012, p. 23)

A referência aos contos maravilhosos ou de fadas evocada pelo “Era uma vez”

pode ser, portanto, acolhida, e ganha valor à medida que a voz infantil se coloca

como elemento fundamental da narrativa, reverenciando-a, assim como atribui

importância à sua própria história, aquela que começa por contar, a partir de dado

momento. Outro aspecto interferente na construção da voz da narradora, e que

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
102
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
acrescenta ao texto, com verossimilhança, um ritmo narrativo que a torna presen-

te de maneira muito expressiva, é a configuração da tradição oral, obtida por meio

de recursos selecionados que agregam expressividade à elaboração estética.

6.2.4. Elementos verbais e figurativos: a presença metonímica do

gesto e da oralidade

A forma poética presente no texto, há pouco observada, suas cadências e jogos

de palavras podem ser associados ao ritmo entoado do contador de histórias e

seus jogos de voz e memória, quando ele “busca o equilíbrio entre a situação pre-

sente da transmissão e todo o passado da tradição.” (CUNHA, 2009, p. 112). A in-

corporação dessas qualidades formais ao discurso está em sintonia com o fato de

o livro propor recontar uma história tradicional de transmissão oral, cuja origem

é medieval, avivando o movimento constante entre o passado do conto original e

o agora do reconto por uma nova voz, que se junta a outras tantas que preenche-

ram a trajetória que fizeram a história chegar a nós.

Dentro do capítulo, não à toa nomeado Paradigma I (CUNHA, 2009, p. 109), a

Profa. Maria Zilda da Cunha resgata o medievalista Zumthor17 para levantar esta

qualidade também como quebra de barreira entre o erudito e o popular, no senti-

do de identificação da cultura geral e do leitor:

O conjunto polifônico de vozes (no sentido bakhtiniano) faz ressoar da


Idade Média um princípio do texto poético, permitindo derrubar a dico-
tomia popular/erudito, evitando discriminações. O texto se tece na trama
das relações humanas múltiplas que, sem dúvida, na experiência vivida
foram tão discordantes quanto contraditórias. (CUNHA, 2009, p. 114)

17 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
103
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
O jogo de paradigmas em constante conexão com múltiplas janelas de significa-

do, artisticamente trabalhados por meio de uma linguagem polifônica, parece for-

tificar as asas da literatura infantil para voos cada vez mais ilimitados, sem nunca

deixar de alimentar-se com raízes do humano, seja ele criança ou não.

Seguindo pistas até aqui examinadas, damos continuidade à nossa leitura ana-

lítica, trazendo agora um olhar atento para os recursos gráficos, das páginas 6 e 7

da obra Inês.

FIGURA 28: Página 6 da obra Inês FIGURA 29: Exemplo de iluminura


Fonte: Mello e Massarani, 2015. de livro medieval
Fonte: https://ensinarhistoria.
com.br/

A página que introduz a história nos acolhe com a suavidade e delicadeza da

cor e dos adornos florais posicionados em moldura, fazendo referência às ilu-

minuras dos livros medievais, manuscritos e livros de contos de fadas clássi-

cos, apoiando visualmente a atmosfera provocada pelo “Era uma vez”, no tex-

to, discutido anteriormente. Os adornos em traços simples e livres, sem rigor

figurativo, aproximados do desenho infantil – características que compõem o

estilo artístico do trabalho da ilustradora – harmonizam com o tom da voz in-

fantil da narradora e com o contexto de descrições poéticas sobre um lugar.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
104
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A diagramação chama a atenção no que se refere à quebra de linhas e disposi-

ção das frases. Sendo o texto uma prosa poética, a forma resultante da diagrama-

ção pode provocar similaridade com a forma comum às poesias de quatro versos.

Se pensarmos na leitura em voz alta, ela contribui inclusive para a cadência fo-

nética da leitura. A similaridade com a forma poética é enfatizada também pelo

posicionamento da frase “eu ainda não era uma vez.” Ela fecha uma espécie de

estrofe, na situação do quarto verso, seguido de um vazio a ser preenchido pela

surpresa provocada pela subversão do termo familiar.

O texto é diagramado utilizando uma fonte clássica – fonte


Didot18 –, que é serifada e tem como característica, no desenho,

a diferença significativa de espessuras de fios, resultando em al-

ternâncias de cheios e vazios. A fonte, do ponto de vista do con-

forto da leitura, não funciona bem sobre fundos escuros, quando

acontece a mistura das menores espessuras com estas cores (pá-

gina 11, por exemplo). Porém, como elemento compositor dos

blocos de texto, é capaz de criar variações delicadas de pesos vi-

suais que contrastam com os traços pretos e intensos das ilustra-

ções, contribuindo com a distinção visual entre texto e imagem.

Em outras palavras, considerando blocos de texto e áreas de ima- FIGURA 30:


amostra
gem como campos de informação, a cada dupla de páginas fica
da fonte Didot
clara a hierarquia e também o diálogo entre eles, sendo o texto o Fonte: https://
www.linotype.
campo claro e delicado, e a imagem o campo denso e forte. com

18 Concebida por Firmin Didot, e produzida em 1784 pela Fundição Didot, a tipografia Didot é
considerada a primeira tipografia romana neoclássica. Ela apresenta o eixo vertical bem marcado,
alto contraste na espessura das hastes e serifas ultra-finas e perpendiculares às hastes. Seu desenho,
em busca de uma beleza racional, obedece à rígidas proporções matemáticas e se afasta de tipografias
similares à caligrafia.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
105
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Convivências paradoxais, em contraste e harmonia, tal como a história que

deu origem a este livro.

FIGURA 31: Recorte


da p. 18 da obra Inês
Fonte: Mello e
Massarani, 2015.

FIGURA 32: Recorte


da p. 22 da obra Inês
Fonte: Mello e
Massarani, 2015.

O contraste apresenta variações de intensidade ao longo do livro, de acordo

com o momento da história e sua semiose. A menor intensidade, ou a aproxima-

ção visual entre o bloco de texto e imagem pode ser verificada principalmente nas

páginas 13, 40, e na dupla 42-43, quando as personagens Beatriz e Inês aparecem

sozinhas, só traço. O efeito dessa aproximação na sensação gerada ao leitor é a de

leveza, delicadeza e até de alívio em relação às informações mais aglutinadas da pá-

gina anterior a elas. Na página 40, por exemplo, o traço que desenha Inês é claro

como os arranjos das letras. Voam juntos.

FIGURA 33: Recorte


da p. 13 da obra Inês
Fonte: Mello e
Massarani, 2015.

FIGURA 34: Recorte


da p. 40 da obra Inês
Fonte: Mello e
Massarani, 2015.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
106
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Variações como essa, que exploram a relação entre as sensações visuais e aque-

las sugeridas pelos significados textuais e imagéticos, estabelecem uma dinâmica

de experiências de leitura em movimento a cada virada de página. Esse recur-

so pode ser observado também na aplicação de outros aspectos gráficos além da

densidade, como movimento e cores, ao longo de todo o livro, como será aborda-

do no decorrer deste trabalho.

FIGURA 35: Páginas 6 e 7 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

A página da direita apresenta (e representa) o “eles” a quem o texto se refere,

complementando a mensagem trazida pelo texto por meio de associações simbó-

licas e recursos visuais que revelam características importantes de cada persona-

gem e da relação entre eles.

Dois homens usando coroas – o que remete iconicamente à ideia de que eles

são monarcas – e uma mulher sem coroa. Os olhares entre o casal, os sorrisos su-

geridos em seus rostos, associados à presença da imagem de corações, um no ros-

to dela e outro no peito dele, revela e evidencia um apaixonamento entre eles. A

figura do rei, monoforma no meio do casal, impõe-se séria, carrancuda, olhar fixo

no homem, em sinal de vigília e repreensão.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
107
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Os olhos dos três os aproxima, por semelhança e alinhamento. Ela carrega o

coração no rosto, rente aos olhos, invertido, pequeno, o que podemos relacionar

a muitos significados, como ao prenúncio das dificuldades de um amor proibido;

ou à forma da lágrima e choro vermelho que há de vir por causa do amor impe-

dido. Ele carrega o coração no peito, bem maior que o dela, intenso. De costas,

ele esconde o coração da vigília do rei. Ela o exibe, sem o ver ela própria.

FIGURA 36: Detalhe da página 7 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

O coração é um símbolo forte o suficiente para ajudar, junto com os demais

elementos, a narrar a condição do casal em uma única imagem.

[...] é por força de uma ideia na mente do usuário que o símbolo se


relaciona com seu objeto. Ele não está ligado àquilo que representa
através de alguma similaridade (caso do ícone), nem por conexão ca-
sual, fatual, física, concreta (caso do índice). A relação entre o símbolo
e seu objeto se dá através de uma mediação, normalmente uma asso-
ciação de ideias que opera de modo a fazer com que o símbolo seja in-
terpretado como se referindo àquele objeto. Essa associação de ideias
é um hábito ou lei adquirida que fará com que o símbolo seja tomado
como algo diferente dele. (SANTAELLA,1993, p. 44)

Ao pensarmos o fazer destas associações pelo leitor criança, é possível dizer

que a primeira dupla de páginas que dá início à narrativa introduz a ideia e a

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
108
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
presença do amor na cena “de quando eles se conheceram”, e pode conectar o

leitor à história pela imagem e suas janelas de sentidos. Pelo texto, sabemos que a

narradora não estava lá.

A coroa, as botas e o cavalo são silhuetas pretas que, logo no primeiro olhar,

podem ser associadas visualmente entre si pela forma e cor, um vínculo formal

que pode acontecer também do ponto de vista semântico: são três elementos que

vão ajudar a afastar o casal.

O ponto focal da ilustração, a cruz, iluminada pela cor amarela – que pouco

aparece em todo o livro e aqui destaca-se especialmente em contraste com sua

cor oposta, o roxo de fundo –, reivindica significado. Pendurada no pescoço do

rei, ela pode simbolizar poder e ocupa um lugar de força visual perante os cora-

ções dos dois opostos.

O elemento que mais contribui para a introdução do leitor no ambiente medie-

val e monárquico são as vestes dos personagens. Elas contribuem para a hierarquia

entre eles, atribuindo maior força visual à figura do rei, adornado e destacado pela

cor roxa. Podemos perceber o trabalho de associação entre ficção e realidade reali-

zado pela ilustradora que, com base na pesquisa e entendimento da cultura da épo-

ca, simplifica o traço sem deixar de ser fiel à referência real da época.

FIGURA 37: Imagem ilustrativa com trajes da época


Fonte: https://www.pinterest.co.kr/pin/436427020135306926/?autologin=true

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
109
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
6.2.5. O trânsito de representações entre os tempos da narrativa

e o tempo do leitor: a referência simbólica e a ausência dela

FIGURA 38: Páginas 8 e 9 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Meu pai era Pedro.


Olha o Pedro voltando da caça!
Aparecendo juntas pela primeira vez, as imagens de Pedro e a personagem

narradora revelam similaridade entre si. Eles estão se recebendo, braços abertos,

ambos com sorriso no rosto. O movimento denota saudade, alegria na chegada.

Mais uma vez se percebe a complementaridade entre o texto e a imagem: menina

e homem, filha narradora e seu pai. No texto, a ausência de artigo na frase “Meu

pai era Pedro.” desautoriza a particularização da personagem, mesmo se tratan-

do de uma narrativa de fundo histórico. Universaliza-se, portanto, pai e criança,

aproximados em traço e ausência de cores, conexão intensificada pelos fundos

neutros onde retornam os tons de kraft. Em contraste estão os outros elementos

da página: cachorro, cavalo, javali, lebre, pássaro e cervo, todos coloridos, assim

como o manto de Pedro: vermelho, cor que retorna na gotícula de sangue do ja-

vali e na coleira do cão. A presença do vermelho, como temos visto ao longo da

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
110
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
análise, intensifica a cena ao mesmo tempo que se apresenta como signo pluris-

significante: do poder do manto à autenticidade do sangue.

Universalmente considerado como o símbolo fundamental do princí-


pio da vida, com sua força, seu poder e seu brilho, o vermelho, cor do
fogo e de sangue, possui, entretanto, a mesma ambivalência simbólica
destes últimos, sem dúvida, em termos visuais, conforme seja claro ou
escuro. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2017, p. 944)

Na segunda frase do texto que compõe esta dupla das páginas 8 e 9, o artigo

definido “o” retoma Pedro, mas já estamos em outro tempo da narrativa, um tem-

po dentro do tempo, um tempo metaficcional, isto é, trata-se de um desdobra-

mento da voz narrativa que relembra o passado. Tempo, portanto, também des-

dobrado, ao iniciar-se o momento de contar a história da narradora e de seus pais.

Embora a narradora ainda não “era uma vez”, o “era” do primeiro verso já marca

o espaço épico. É também pelo tempo verbal que o tempo da narrativa se desdo-

bra: no verso “Olha o Pedro voltando da caça!”, o imperativo evoca tanto diálogo

com o leitor quando a presentificação da ação por meio da contação da criança,

ação esta que está acontecendo no momento da leitura. Esse jogo linguístico e vi-

sual, proposto pelos autores, apropria-se de um tipo de manifestação própria das

crianças, próprio do brincar, compondo no livro passagens de encontro e distan-

ciamento do leitor com o ir e vir da ação, do sonho e da memória da narradora

dentro da história, sem a necessidade de uma lógica linear para que o entendi-

mento da narrativa completa aconteça. Palavras brincantes, unidas poeticamente

com o cuidado de deixar vazios a serem preenchidos pelos leitores, é um recurso

da ludicidade característica de alguns livros contemporâneos, já colocados neste

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
111
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
e também nos demais capítulos, que aqui aparece de maneira singular ao traba-

lhar com o tempo da leitura, com o tempo da vida, do momento e da imaginação.

Tempo em movimento, sincronizado com o jogo simbólico infantil,

a criança incorpora no tempo presente, o tempo passado e o tempo


futuro, numa sincronização de diacronias que altera a linearidade
temporal, possibilita a recursividade e garante a simultaneidade de
factos cronologicamente distintos. A criança repete a história ‘era uma
vez...’ e presentifica esse passado cada vez que se identifica com o he-
rói que ‘então eu era...’, cometendo o futuro antecipado do acontecido.
(SARMENTO, 2002, p. 10)

Os outros elementos da dupla de páginas 8 e 9 colaboram tanto na ação nar-

rativa quanto no jogo dos tempos diversos: o cão de caça e o javali da página 8,

assim como o cavalo, estão no tempo da chegada de Pedro, que é recebido pela

narradora. Na página 9, estamos em outro tempo: os três animais fogem, estão

no tempo da caça, da qual nada o texto diz: da caça só sabemos que teve como

resultado um javali abatido, fato contado pela imagem. A flecha, arma emprega-

da, ajuda o leitor a se situar no tempo histórico: é anterior a armas de fogo. O ca-

dáver do animal talvez evoque a contradição com a vida que emana do encontro

entre pai e filha. Entre eles, nesse agora que se presentifica, não há morte: ela está

aguardando, ao lado, paciente. Tal leitura parece se confirmar do ponto de vista

da escolha dos animais da página 9 e suas analogias simbólicas: o cervo, animal

maior e destacado, é frequentemente “comparado à árvore da vida por causa da

sua alta galhada, que se renova periodicamente.” (CHEVALIER, GHEERBRANT,

2017, p. 223). Por isso o animal é relacionado à fecundidade, aos ritmos da vida,

ao seu crescimento e renascimentos, aspecto cíclico da natureza. Símbolo de luz,

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
112
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
diurno, de tudo que é solar. Símbolo de prudência, velocidade, prontidão: caracte-

rísticas, sabemos, próprias de um rei.

A lebre, em praticamente todas as culturas antigas, está relacionada às

imagens da Lua e sua simbologia ligada à Terra-Mãe, às “águas fecundantes e

regeneradoras, ao da vegetação, ao da renovação perpétua da vida sob todas as

suas formas. Este é o mundo do grande mistério, onde a vida se refaz através da

morte.” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2017, p. 540).

Ambos, lebre e cervo, são símbolos de anunciação, vistos como mensageiros,

por serem velozes. Sol e Lua, dia a noite, velozes. O tempo é veloz. Assim como

o voo do pássaro. Este, por sua vez, é por si só também sinônimo de mensagem

dos céus, de presságio, da relação e equilíbrio entre céu e terra. Mas este pássaro,

coincidentemente ou não, é azul, como aquele de Maeterlinck, entendidos muitas

vezes como fadas, como aquelas dos contos de faz de conta. Segundo Chevalier e

Gheerbrant (2017, p. 107), no azul, cor mais profunda das cores, também a mais

fria e mais pura, “o olhar mergulha sem encontrar qualquer obstáculo, perdendo-

-se até o infinito”. Até o “para sempre” ilusório.

Imaterial em si mesmo, o azul desmaterializa tudo aquilo que dele


se impregna. É o caminho do infinito, onde o real se transforma em
imaginário. Acaso não é o azul a cor do pássaro da felicidade, o pássa-
ro azul, inacessível embora tão próximo? Entrar no azul é um pouco
fazer como Alice, a do País das Maravilhas: passar para o outro lado
do espelho. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2017, p. 107, grifo dos
organizadores)

Prenúncio do que virá? Signos que antecipam as pulsões de vida e morte de

tudo o que respira? Prenúncio similar talvez se veja na página 16 de Inês:

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
113
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 39: Página 16 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Embora a morte de Constança só seja anunciada na página 18, a ilustração da

página 16 antecipa o tempo da diegese, favorecendo a significação por parte da

criança-leitora, que simboliza a cor azul assim como simboliza, veremos a seguir,

a cor vermelha. Constança é representada inteira na cor azul mais escuro e de

olhos fechados, como se as histórias ali já tivessem se encerrado: ela não vê, es-

pera; já não sente, está; não há mais espaço para novas cores. A última foi incor-

porada. É assim que Inês será também representada adiante, aproximando o azul

da significância do luto e da morte. Está já morta para Pedro e Inês? O olho dele

permanece, mesmo diante da rainha morta, de soslaio, como se buscasse obser-

var outro espaço, outra face.

Em Pedro, o olhar de soslaio se repete ao longo da narrativa, reforçando uma

presença simbólica que confere unidade à obra. A representação desse olhar pas-

sa então a significar por si só, independente da matéria textual, assim como as

cores. Postas em contraste, elas podem contribuir para explicitar em paralelo o

contraste entre uma narrativa idealizada e um cenário político instável: o mundo

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
114
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
cercado de morte tem tons sombrios (marrom, kraft e preto, principalmente), en-

quanto personagens e outros elementos da página recebem tons claros, quando

não brancos, apresentando somente os traços, como se fosse preparada uma folha

toda em branco esperando as cores, as palavras, os sentimentos e histórias.

Esse mesmo contraste entre dois tempos, duas realidades, destaca-se em pares

de páginas como 28 e 29:

FIGURA 40: Páginas 28 e 29 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Nesta dupla de páginas, ilustração e texto verbal rompem a unidade temporal

e se desdobram: de um lado, o branco ilumina apenas Pedro no cenário do palá-

cio cercado de luto e tristeza, enquanto de outro, o branco se integra ao espaço do

campo, refúgio ensolarado de Inês e dos quatro filhos.

O pai de Pedro não queria que ele visse Inês nunca mais.
Nem o cardeal,
nem os conselheiros,
nem o povo,
nem ninguém queria.
Só eu e meus irmãos, ou não teríamos nascido.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
115
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Embora iluminado, a posição de Pedro na ilustração revela obediência, respei-

to, além de tristeza e luto. Luto pelo quê? Por Constança ou pela decisão do rei?

Pedro estava cercado, qual Hamlet, de luto, escuridão e dor. A luz em Pedro, traz

tensão – texto verbal e imagem engendram uma significação capaz de levar o lei-

tor a compreender a cena como parte da imaginação da narradora, ou, como é o

caso também na página 29, da sua memória. Para dar conta desses dois tempos,

o tempo da narrativa mais uma vez se desdobra, projetando naquele passado os

filhos que ainda viriam. Do pretérito perfeito próprio das narrativas em primeira

pessoa e do imperfeito ao qual pertence o “era uma vez”, saltamos para o futuro

do pretérito. Na voz da criança narradora, o texto enumera então, cronologica-

mente, os irmãos, para depois mesclar os dois pretéritos em um verso poetica-

mente desconstrutor simultâneo da gramática cotidiana e da narrativa infantil

tradicional: “Agora sim, agora eu era uma vez.”

Primeiro Afonsinho, depois eu, depois João, depois Dinis.


Agora sim, agora eu era uma vez.
Não antes, não no começo da narrativa, mas agora, como consequência disso

tudo que chamaram de traição e adultério, a menina está. Ela é presente. Metalin-

guisticamente, podemos perceber aqui mais um jogo, a fim de que o leitor possa

identificar o olhar sem juízo de valor da narradora. O fato é que nós conhecemos

a saga de Inês de Castro, assim somos capazes de perceber a divergência que se

coloca em face de preconceitos historicamente sedimentados e a forma como a

narradora relata a história pelo seu ponto de vista.

A obra Inês consegue, com maestria, através da voz da menina narradora, su-

gerir olhares sobrepostos sobre os fatos e personagens que parecem pertencer ao

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
116
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
mesmo tempo a uma criança em um contexto medieval e contemporâneo, ofe-

recendo ao leitor a possibilidade de quebra na distância do tempo e a identidade

com as ideias e visões que brotam da sua narrativa poética e fragmentada, cheia

de vazios a serem preenchidos.

Sob a ótica medieval, pode ser uma criança-adulta em miniatura a quem nada

é poupado, com responsabilidades no mesmo nível dos adultos e cuja vida e par-

ticipação na sociedade tem pouco valor, como nos relata o historiador Phillippe

Ariès (1960) sobre a visão predominante sobre as crianças até o século XIII e XIV,

período em que os fatos historicamente conhecidos sobre Pedro e Inês acontece-

ram. A menina-medieva cuida dos irmãos, do pai, é cúmplice de adultério, en-

frenta a violência e lida com a morte de várias maneiras.

Ao mesmo tempo, ela pode ser também criança contemporânea, dona de seus

saberes e culturas que a permitem posicionar-se diante dos fatos, agente no con-

texto da comunidade a que pertence: não a da Idade Média, mas esta, a nossa,

a Idade do leitor atual. A menina-contemporânea percebe e interpreta todos os

temas, mesmo os mais difíceis, segundo seu repertório próprio, muitas vezes de

maneira lúdica, imaginativa, e dele se fortalece para dar o apoio afetivo àqueles

que ama e a si própria, a cada presente e cada situação de amor e dor que relata

com serenidade e poesia.

Podemos entender a voz da narradora como a de uma criança singular na re-

presentação e no contexto diegético representado: criança tanto medieval quanto

contemporânea, criança-rapsoda: narradora e lírica de vários tempos e de um an-

terior, enquanto juízo de valor, a esse moralismo intensificado ao longo dos sécu-

los que viriam depois desta história que nunca acabou.

Um dos recursos de linguagem que o autor usa para conseguir o trânsito en-

tre tais visões aparentemente opostas é a oralidade, a toada dos contadores de


NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
117
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
história, dos trovadores medievais, enunciando aos gritos e versos os tempos da poe-

sia e da narrativa. Rapsodos, enfim. Poético que derruba a dicotomia popular/eru-

dito e evita discriminações (CUNHA, 2009, p. 114) como verificamos no item 6.2.4.

Assim como recontar atualiza a fábula ou, em aspecto mais amplo, o mito lite-

rário, a narrativa de Inês parece reivindicar um lugar sempre no tempo presente,

mesmo nos momentos em que a narradora evoca o passado e provoca o futuro na

cena presente, a fim de contribuir para o que ela quer contar daquele momento

específico, sem que passado e futuro sirvam como justificativas ou simples mar-

cos temporais na cronologia dos fatos. Nesse viés, escrita e leitura seriam faces de

um mesmo processo que atualiza o mito literário de Inês de Castro. Atualizado,

quanto da história ancestral como a conhecemos tradicionalmente sobrevive na

voz desta narradora? A resposta pode vir de uma reflexão amplificadora sobre o

mito como narrativa para crianças pequenas, colocada pela professora Maria José

Palo, em aula especialmente dedicada ao Grupo de Pesquisa de Produções Literá-

rias Culturais para Crianças e Jovens (PLCCJ – FFFLCH/USP) em 19.09.2019: “A

verdadeira voz infantil não precisa do passado. O mito? Fica disponível para ser

recriado entre gerações, no diálogo entre crianças e adultos.”.

Para a professora, a leitura pela criança costuma ser sensorial e se realiza no

tempo presente, que pode, por que não, conter o mito em si, como ela totaliza

ao discorrer sobre o livro contemporâneo na mesma aula citada acima: “O livro

é uma superfície criadora, ao re-enunciar imagens e narrativas considerando a

natureza da voz da criança e a sensorialidade imprevisível da sua percepção. Sob

esta visão, o espaço do texto é para ser decodificado, e não mais entendido (do

ponto de vista simbólico). [...] O que importa é o instante durativo, o momento

da leitura, sem passado nem futuro.”

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
118
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
6.2.6. A visão infantil embrenhada da poética e da narrativa

não-linear: o olhar para o adulto e o exercício do juízo “sem valor”

FIGURA 41: Páginas 10 e 11 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Voltamos à dupla 10 e 11 para observar uma outra camada de significado li-

gada à visão infantil apropriada pelo livro. Sobre o fundo neutro, kraft, os olhos

do leitor precisam se esforçar para ler o conteúdo verbal: novamente o contraste

é sutil, parecendo querer unir texto e traço no discurso que, agora, é histórico.

Totalmente histórico? Não. A pequena narradora agora desdobra-se em outras

vozes: ouvintes que questionam, que interpelam, que ouvem a história contada,

assim como o leitor. Cria-se, assim, uma rede afetiva com aquele que escuta a his-

tória, rede hospitaleira que convida o leitor a participar, a pertencer.

Traços a lápis grafite compõem elementos a remeter ao movimento do andar de

animais indiciado pela posição das patas. O conteúdo verbal coloca-se alinhado à

imagem, configura lugar ordenado na fila de cavaleiros e carruagem, contextuali-

zando também a comitiva e sua origem: vieram de Castela, como conta a História

oficial. As fraturas na linearidade narrativa são motivadas pelas interpelações do

ouvinte-imaginário, lembrando o leitor do fato de não se tratar da História oficial.

A posição do texto na página parece sinalizar tal questão ao situar a voz da

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
119
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
narradora nessa fila, movimento similar daqueles observados nas capas e páginas

de guarda.

Uma carruagem veio de Castela.


É aqui que estamos, neste tempo e neste lugar. A comitiva chega, trazendo a

mãe da narradora. Pedro está ali, a certa distância, e observa o cortejo. Um diá-

logo, sem marcas de enunciação (como verbos, travessões e aspas) na página 11,

diluído na narrativa, presentifica-se também na fila da comitiva. Estratégia que

reforça a duplicação do tempo: o medieval e o universal, o de agora, o de sempre.

Em potência, o diálogo parece ser travado entre uma criança e um adulto, uma

vez que essa voz deixa transparecer juízo de valor ao relacionar Constança como

mãe da narradora. Mas é Inês quem aparece primeiro; só depois a princesa.

Trouxe Inês para ser ama da princesa Constança.


Princesa Constança?
É, esposa de meu pai.
Ah, sua mãe.
Não, minha mãe era Inês,
essa moça que sorriu quando o príncipe fez a carruagem parar.
Assim como o leitor deve buscar o contraste entre tipografia e cor de fundo,

agora, ele movimenta o olhar à procura de Inês. Ela também está na comitiva.

Percebe-se um espiar discreto por entre frestas da carruagem da princesa. A lin-

guagem poética da criança permite que o tema do triângulo amoroso/adultério

seja posto no mesmo tom sereno dos demais temas, e deixa espaços para excluir

de possíveis leituras os juízos de valores tradicional e culturalmente construídos.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
120
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Inês é diferente das demais amas. Sua proximidade com o jumento, único

entre os cavalos, talvez possa ser vista como uma leitura visual da personagem:

o jumento é símbolo de paz, pobreza, humildade, paciência e coragem (CHE-

VALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 94). Mas tal proximidade pode ser entendida

como negativa: o jumento traz os pertences da princesa. Seria Inês também pro-

priedade dela?

Na voz da menina, o sorriso que a moça deu quando o príncipe fez a carrua-

gem parar não tem maldade, como não tem traição no sorriso que Pedro dá em

retorno: ao contrário, este se assemelha ao sorriso espontâneo diante de quais-

quer situações cordiais.

Pedro sorriu sem pressa.


O cavalo de Pedro sorriu pro capim.
Briga de brisa, curva de passarinho.
Algo vermelha. Inês, minha mãe.
O jogo poético referido na página 13 retorna aqui nas palavras briga, brisa,

curva, passarinho, algo e vermelha, que agora tem alterada sua classe gramatical:

aqui é verbo que torna rubra a face de Inês. O contraste de um sentido lógico

para os novos pares de palavras corrobora para o sentido que o vermelho pare-

ce agora construir, aquele tradicionalmente presente na rosa ou no coração ver-

melhos: o amor, sentimento que surge proibido e inesperado, ou seja, “briga de

brisa, curva de passarinho”. Tal amor só tem como testemunha o olhar do cavalo.

Este, observando de soslaio, manterá seguro o segredo de Pedro e Inês.

Podemos observar, além disso, a hibridez de tempos narrativos, uma vez que

esses instantes poéticos assumem tendência ao eterno presente das coisas, modo

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
121
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
e efeito próprios do gênero lírico. O pretérito, marcando a distância da coisa nar-

rada, manifesta-se na prosa narrativa. Isso não quer dizer que não há um tempo

no texto lírico. Ao contrário: o tempo ali é outro, exclusivo.

A despeito da “presença intemporal” que infunde aos eventos, o poe-


ma lírico não é temporalmente neutro. Além do ritmo ou da cadência,
que comporta, como medida interna, um tempo diferenciado, a ex-
pressão lírica sofre uma dupla intromissão do tempo, seja na tonalida-
de afetiva, geralmente repassada pelo sentimento de oposição entre o
transitório e o permanente, seja nos registros temáticos que o evocam
diretamente. (NUNES, 2013, p. 10, grifo do autor)

Se nos gêneros épico e dramático o tempo vem associado à fluidez da ação,

sendo indissociáveis dos eventos que o preenchem, nessas intromissões líricas a

narradora parece também se colocar como inseparável dos acontecimentos da

narrativa, mesmo que estes sejam cronologicamente anteriores a ela. Assim, mes-

cla-se recursos e efeitos do épico e do lírico, preenchendo os eventos de uma “to-

nalidade afetiva que incorpora os eventos às vivências de um Eu, e sem o ritmo,

que incorpora as vivências ao livre jogo das significações, graças ao qual se opera

o retorno reflexivo da linguagem sobre si mesma.” (NUNES, 2013, p. 10)

Sabemos: esse desdobramento do tempo indica que há um tempo no nível do

discurso e um tempo no nível dos acontecimentos, em que a narradora se cons-

trói indo de um tempo a outro, movimento próprio do pensar, em especial o in-

fantil, mais facilmente seduzido pelos encantos e distrações. Assim como referen-

cialidade e imaginação se cruzam, cruzam-se também diferentes tempos e níveis

do discurso, possibilitando um olhar mais esvaziado de juízos de valor.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
122
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 42: Páginas 12 e 13 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Na página 13, a menina dança feliz, e também “testemunha” a cena da página

12, mas sabemos, pela cronologia natural dos fatos: cada página abriga um tempo,

em que a narradora olha para trás, para o passado. Ela imagina então aquela cena

figurada? Sonha? Idealizaria ela tal acontecimento, ou busca olhar o amor do ca-

sal sem configurar a transgressão por estarem juntos?

Independente da resposta, é a criança quem toma a frente do relato. É dela que

vêm as imagens e palavras que compõem o material ao qual o leitor tem acesso.

Na elaboração a respeito dos adultos, pela narradora, valores pré-concebidos ou

estigmatizados não têm lugar, o que não quer dizer que não haja consciência e

percepções por parte dela, criança apoderada e articuladora de seus saberes. Para

sugestionar inferências a respeito de Pedro, ela brinca com as palavras, e propõe

alcunhas com as quais ela ludicamente sobrenomeia e adjetiva o pai.

“Pedro, o Desobediente”
“Pedro, o Confuso [...]”
“Pedro, o Mentiroso, foi é encontrar Inês”
“Pedro, o Apressado, bateu em disparada.”
“Até que Pedro, o Resoluto, alcançasse a torre.”
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
123
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 43: Páginas 14 e 15 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Aqui, o autor faz um uso inteligente desse recurso: utiliza-se da linguagem

como instrumento de brincadeira apropriado pela narradora para falar de um pai

cuja personalidade é instável na busca por adaptar-se às situações às quais ele é

submetido ao longo da história. Ao atribuir alcunhas, a narradora convida o lei-

tor a participar com ela de um jogo de palavras que evocam significados que nem

sempre caem bem à expectativa de qualidades de um pai (ou de um rei), mas que

ficam suavizadas com o teor da brincadeira e da ironia até. O recurso aproxima

Pedro como humano imperfeito, com comportamentos variantes nomeados pelas

alcunhas lúdicas, mantendo intacta a afetividade sobre a qual todo o texto está

embrenhado. A própria narradora vai, adiante, confessar:

“Conheci muitos dos nomes do meu pai.


Pedro, o Cruel.
Pedro, o Cru.
Pedro isso.
Pedro aquilo.
Só Pedro.”

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
124
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A compreensão dos fatos e papéis dos adultos pela narradora, por meio da afe-

tividade e da observação livre e isenta, focada no tempo presente de cada acon-

tecimento, associada à brincadeira poética e linguística é, sem dúvida, um dos

pontos que permite o reconto de um mito que traz temas tão difíceis trabalhados

com beleza e diálogo conectados com as culturas infantis. Trata-se, sem dúvida,

de uma recriação do mito literário de Inês de Castro que enfatiza aspectos hu-

manos, vistos não com distanciamento histórico, mas com uma aproximação que,

embora ficcional, constrói-se nas bases dos afetos.

6.2.7. A percepção e a complementaridade narrativa entre texto

e imagem na abordagem dos temas difíceis

“Quanto tempo dura a ação de uma imagem?” (NIKOLAJEVA e SCOTT, 2011,

p. 218). Sabemos que a relação entre o tempo do discurso e o tempo da narrati-

va muda conforme o gênero e os efeitos sugestionados pela constituição do livro.

Quando se fala em complementaridade narrativa entre texto verbal e imagem, fa-

la-se também dos efeitos buscados e provocados.

“Enquanto o texto verbal, embora possa conter elipses temporais, é um tanto

contínuo e linear, as imagens são sempre descontínuas. Apenas com o texto visu-

al, não há como avaliar quanto tempo se passou entre as duas ilustrações.” (NI-

KOLAJEVA; SCOTT, p. 218). Apesar de correta, a citação parece não se aplicar a

obras como Inês, na qual (a) a narrativa perde seu caráter linear e contínuo nas

intromissões e liberdades temporais e (b) as imagens são capazes, a seu modo, de

deixar transparecer a passagem do tempo, uma vez que distorce o tempo crono-

lógico na mescla de passado e presente, sonho/imaginação e realidade.

Aparentemente, em Inês, não podemos “considerar uma imagem como pausa

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
125
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
narrativa” (NIKOLAJEVA; SCOTT; 2001, p. 221). Na obra, parece existir não só a

complementaridade entre as duas instâncias, mas também a desconstrução delas,

incorporando uma lógica (cronológica e fabular) inerente à forma de representa-

ção comum pelas crianças. Nesse sentido, estaríamos pensando a infância aproxi-

mados das ideias de Agamben (2018), ao observar os limites da linguagem (o que

justifica, no caso do objeto de nossa análise, o caráter híbrido do livro-ilustrado):

“O hiato entre voz e linguagem (como aquele entre língua e discurso, potência e

ato) pode abrir o espaço da ética e da pólis precisamente porque não existe um

árthos, uma articulação entre phoné e logos.” (AGAMBEN, 2018, p. 16). O filóso-

fo entende que nossa humanidade nasce de um experimentum linguae que esca-

pa ao puramente gramatical, representacional, a partir de uma pressuposição de

si. Agamben (2018, p. 111) parte de uma concepção de história “sempre acompa-

nhada de uma certa experiência do tempo que lhe está implícita, que a condicio-

na e que é preciso, portanto, trazer à luz.”

De fato, a leitura inicial das autoras (NIKOLAJEVA; SCOTT; 2001, p. 221) está

calcada em uma teoria literária tradicional, entendida aqui como um esquema

representacional que vai do realismo ao fantástico, ou melhor dizendo: de elip-

ses curtas a elipses longas, respectivamente. Sua obra Livro ilustrado: palavras e

imagens, aqui referenciada, é originalmente de 2001, obra teórica pioneira que

atravessa um tempo relativamente longo (e complexo), se pensarmos o universo

digital que se abriu e se ampliou ao longo dessas duas décadas. Compreende-se,

portanto, que dizeres como “alternar cenas e resumos acelera ou desacelera a nar-

rativa.” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 221) não dão conta dos tempos e níveis discursi-

vos que se abrem em Inês. Como escrevem as autoras:

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
126
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Em um livro ilustrado, na maioria das vezes, os padrões de duração ver-
bal e visual estão em conflito. A combinação temporal mais comum é o
resumo verbal (tempo da história mais longo que o tempo do discurso)
e a pausa visual (tempo da história zero, tempo do discurso indefinida-
mente longo). Enquanto as palavras incentivam o leitor a continuar, as
imagens exigem que paremos e dediquemos um tempo considerável à
leitura da ilustração. (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2001, p. 221)

Podemos entender que essa dinâmica pode ser posta em questão, por exemplo,

nas páginas a seguir:

FIGURA 44: Páginas 18 e 19 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Enquanto a página par apresenta a menina narradora, a página ímpar apre-

senta Pedro e Inês. Entre a menina e o casal, um rio. Interessante observar, nessa

perspectiva, a posição dos dois peixes que, embora o nítido movimento das águas,

nadam em direções opostas. No alto da página, o brasão que aparece na página

de rosto, modificado aqui por um traço mais infantil, rascunho quase, inclusive

ainda sem alguns elementos que são incorporados à história, como a Lua e os

peixes, elementos universais para significar transição, movimento e fluidez.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
127
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Na matéria verbal, descobrimos: os peixes cochicham. Mas o quê? Comentam

a morte de Constança. Novamente, texto e imagem cruzam linhas cronológicas

só possíveis na imaginação da menina, assim como o recurso mimético escolhido

para representar essa triste notícia: são os peixes os mensageiros, forma fantasio-

sa que visa, talvez, amenizar a primeira das duas situações de morte e luto que a

narrativa apresenta.

A morte poderia ser vista, então, como a curva de rio? Cachoeira, catarata ou

foz? Como uma etapa de uma vida. Será por isso que a menina sorri, mesmo com

a matéria verbal apresentando evento tão melancólico (e essencial) do enredo?

Em contrapartida, na segunda situação de morte retratada no livro, também

ilustrada em página dupla, não há eufemismo algum:

FIGURA 45: Páginas 32 e 33 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Na dupla de páginas 30 e 31, anterior a esta que vemos acima, a menina-filha

está escondida dos irmãos e se perde em si mesma, como ela narra dentro do

contexto de uma brincadeira de esconde com os irmãos. Ela guarda um passari-

nho nas mãos. Ao virar da página, na dupla vermelha 32 e 33, ela vem encontrar

a mãe perto da fonte. O movimento dos cabelos sugere que ela chegou correndo.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
128
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Vemos os conselheiros do rei que cercam Inês, de quem não temos os rostos, só

parte do corpo suficiente para identificá-los como homens da corte. Mas a maté-

ria verbal nos fornece os nomes:

Diogo. Pero. Álvaro.


Eram eles Diogo Lopes Pacheco, Pero Coelho e Álvaro Gonçalves, vindos dos

registros originais, além de outros cujo nome a História não se recorda. Texto e

imagem deixam evidente a presença testemunhal dos filhos para a cena dramáti-

ca. Um dos conselheiros empunha uma adaga, a menina não sabe qual: “Álvaro,

Pero ou Diogo [...]”. O rio do tempo, que não sabemos se vem ou se vai, de azul se

torna vermelho.

A lâmina entrou macia pela barriga de Inês.


O passarinho, que coisa, me escapou.
— Inês!
Agora não.
Agora Inês é morta.
Além do branco e preto, nenhuma outra cor além do vermelho é utilizada nes-

ta dupla de páginas, salvo poucas folhas em azul e verde. Nesse painel, o verme-

lho não significa nada além de morte. Os irmãos choram. A irmã-narradora é a

única de olhos abertos. À frente dela, corre um rio rubro e opaco, vindo da ferida

aberta na barriga de Inês. Atrás, o rio avermelhando, ainda transparente de pei-

xes. O pássaro preso nas mãos escapa: o universo escapa, perde-se o tempo e o

espaço. Inês também tem os olhos fechados. Sua súplica, de “tristes e piedosas

vozes,/Saídas só da mágoa e saudade/ Do seu Príncipe e filhos, que deixava,/Que

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
129
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
mais que a própria morte a magoava” (CAMÕES, 1980; 252, Canto III, 124-5),

não surtiu efeito à misericórdia do rei.

Conta a lenda que a Fonte das Lágrimas, no rio Mondego, foi formada pelas

lágrimas derramadas pela morte de Inês; que o sangue que jorrou do ferimento

fez crescer, por ali, algas vermelhas.

Enquanto signo, as algas são, culturalmente, em sua relação com o elemento

água, “reservatório de vida”, carrega dele seus sentidos: “a alga simboliza uma

vida sem limite e que nada pode aniquilar, a vida elementar, o alimento primor-

dial.” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2017, p. 30). Assim, o mito cria-se em sen-

tido per se, evocando-se aí sua dimensão com o sagrado, aquilo que transcende

a experiência biológica do sujeito, fazendo dele, ser mortal, também ser cultural.

“É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no

que é hoje.” (ELIADE, 2016, p. 11, grifo do autor). Em Inês, não apenas o mito

literário de Inês de Castro é recriado/recontado/relido, como há uma aparente

estrutura mítica que se reflete na linguagem, combinando forma e conteúdo na

significação dos textos — e já não falamos apenas de um texto, mas de todos os

textos que corroboram para que este texto exista.

O último verso da página resgata a expressão mais conhecida do mito portu-

guês: “Agora Inês é morta.” Recurso intertextual esperado, sua inclusão não se dá

de forma encaixada: há um ruído, uma ruptura, quebra. O tempo do verbo ser

(ser, não está, porque a morte, de forma certa e definitiva, é) que muda do preté-

rito imperfeito para o presente. Do mito ao rito, à presentificação de um mistério,

à memória de uma vítima, sacrifício inocente. A recitação, escreveu o mitólogo

Mircea Eliade (2016, p. 15), provoca a presença real do herói.

É interessante perceber não apenas o uso do recurso intertextual em si, mas

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
130
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
o momento em que a expressão é apresentada, movimento que parece sugesti-

vamente afirmar mais dor e afeto do que raiva ou ressentimento: a expressão se

refere usualmente à coroa que Inês de Castro recebeu postumamente, mas aqui o

momento é anterior à coroação. Nesse ponto, é tarde para quê? Para tudo talvez,

para o universo que escapava de suas mãos de pequena menina, que perdeu não a

rainha, mas a mãe.

FIGURA 46: Páginas 34 e 35 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

FIGURA 47: Túmulo de Inês de Castro no Mosteiro de Alcobaça, Portugal.


Fonte: Arquivo próprio.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
131
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A partir de agora, o mundo está azul para ela. Frio, imenso vazio. Importante

observar novamente a dualidade entre o azul e o vermelho, cores que parecem, ao

longo de toda narrativa, conflitarem enquanto matizes e significados. A página

par faz referência evidente ao túmulo de Inês de Castro no Mosteiro de Alcobaça,

enquanto, ao mesmo tempo, a ilustração parece pedir licença poética para con-

fundir os filhos da rainha com anjos que velam o corpo da mãe, o ventre adorado.

Pedro é presente gigante, curvado, silencioso marido e protetor. Entretanto, na

página ímpar, uma nova faceta do rei é representada, tomado de vermelho.

Pedro, o Vingativo, acabou com o silêncio:


Desenterrem Inês!
O recurso, há pouco jocoso, agora revela uma peripécia na trama. A atitude de

desenterrar um cadáver não foge da lógica? Entretanto, a decisão que parte do rei

não é questionada. Vê-se a força da ordem pela postura e dedo em riste. Na outra

mão, a espada. Há poder na sua posição, autoridade. Desenterram-na, portanto, e

apesar da aparente imagem grotesca, Inês é representada como a rainha póstuma

que é: sentada em trono, carregada por enlutados.

FIGURA 48: Páginas 36 e 37 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
132
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Na página par, Inês está sentada, porém a cor da pele informa: ela está morta.

O céu é extensão da morte de Inês, inteiro azul, vazio. Essa última observação,

embora aparentemente óbvia, não é: somente nessas duas cenas o céu é retratado

azul. Representação realista ou licença poética? Não é assim também a vida? Por

outro lado, na terra, ardem ainda as paixões. O tempo no presente e o diálogo

com um interlocutor, em última análise o próprio leitor, renovam a leitura que

enfatiza a presentificação da ação narrativa.

Vejam só o corpo de Inês seguindo num cortejo pra Coimbra.


Pedro olha sua rainha morta.
Ele sorri Beatriz e eu sorrio Pedro.
A alcunha que o rei alcança agora aos olhos da filha tem agora outro tom:

Pedro, o Justo.
O cavalo negro, que outrora trouxe o javali morto, agora traz pai e filha, que se

entreolham no mesmo olhar de soslaio que cruza a obra como linguagem e estilo.

Parecem cúmplices, como se soubessem que, de aqui em diante, como quiseram

as forças superiores à humana, seriam sem Inês.

E todos vieram a tempo de ver a rainha morta ser coroada.


Na página ímpar, o mundo em luto, escuro, reunião de gente comum. Todos

querem ver a coroação da rainha morta. Percebe-se como as duas cenas parecem

se movimentar em direções opostas, como se fossem mesmo duas direções dife-

rentes: a da realeza e a do povo.

Por fim, na cena da página 39, vemos uma multidão se aproximando da rai-

nha recém-coroada, beijando-lhe a mão em sinal de reverência e lealdade. Os

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
133
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
semblantes são os mais variados: de lágrimas de luto a olhares de piedade, temor,

alguns enviesados de canto de olho, em um ou outro podemos ler rancor, nojo

talvez. Alguns olhos estão fechados, por respeito ou oração. O rei Pedro, mistu-

rado à multidão, vigia toda a ação. Todos esses elementos minimizam, mas não

ocultam, a presença da morte na cena. Ela está ali, sentada, a morte e Inês, ambas

coroadas no trono, Inês não apenas morta, o azul nos lembra, mas já em processo

de putrefação, sugeridos nos aspectos das mãos, rosto, marcas que não são só do

tempo, mas da degradação do corpo.

Todos esses elementos contribuem para amenizar a dureza da situação brutal e

dolorosa, sem dissimular ou ocultá-la. As escolhas, pelos autores, pela utilização

dos recursos textuais e gráficos abertos à participação do leitor e diversidade de

leituras, como analisamos aqui, podem despertar aspectos sensíveis de redenção

e esperança em diálogo com o fato narrado, até o final do livro, como se verá no

próximo item. O que tratamos aqui, do ponto de vista da abordagem de temas

difíceis, ou fraturantes, como se diz em Portugal, é um posicionamento de Roger

Mello e Mariana Massarani, assim como alguns autores e livros contemporâneos,

como adultos confiantes nas capacidades e habilidades da criança, como leitora e

pessoa em constante construção, para conhecer, experienciar e criar identidades

ou rejeições, intertextualidades, transposições para a realidade ou imaginação,

referenciar seus próprios repertórios ou até acrescentar e requintar pedrinhas do

seu campo de brinquedo e cultura infantil. Essa confiança, que envolve conheci-

mentos multidisciplinares e consciência artística plenos, ao saber considerar des-

dobramentos dos mais complexos, é instrumento para a visão das infâncias que

o nosso tempo e suas transformações impostas nos exige, e para o qual Buckin-

gham nos convida a participar e preparar:

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
134
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Não podemos trazer as crianças de volta ao jardim secreto da infância ou
encontrar a chave mágica que as manterá para sempre presas entre seus
muros. As crianças estão escapando para o grande mundo adulto – um
mundo de perigos e oportunidades onde as mídias eletrônicas desempe-
nham um papel cada vez mais importante. Está acabando a era em que
podíamos esperar proteger as crianças desse mundo. Precisamos ter a co-
ragem de prepará-las para lidar com ele, compreendê-lo e nele tornar-se
participantes ativas, por direito próprio. (BUCKINGHAM, 2000, p. 295)

6.2.8. Simbolizar e cerimoniar: a importância do rito de

passagem

Na cena da página 39, a menina narradora aparece integrada ao corpo da mãe,

retorno ao paraíso perdido, estado de plenitude: quando eu e ela éramos apenas um

corpo. Toca amavelmente os cabelos da mãe. Tem os olhos fechados, o que pode ser

interpretado de várias maneiras, como por exemplo na crença popular, que diz que

os gatos fecham os olhos para dizer “te amo”; ou ainda como maneira de visualizar

memórias. Inês está inteira azul — a morte, quando toma para si, toma por com-

pleto —, com exceção dos cabelos, roupas e coroa: tudo é enfeite, embalagem.

FIGURA 49: Páginas 38 e 39 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
135
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A cena mescla o tom de afeto da filha para com a mãe com o grotesco da situa-

ção, o macabro ato de beijar a mão de um cadáver. Os dois personagens em maior

destaque na fila dos súditos trazem insígnias no pescoço, apontando suas tradi-

ções, com destaque para a cruz semelhante à que o rei Adolfo trazia na página 7.

No alto do trono, o passarinho de Beatriz aparece pousado, universo que é.

Quase oculto ele se mistura ao fundo vermelho. Seria esse momento também

uma vingança para a menina — como o é para o pai — ela, que até pouco trazia

o pássaro como universo controlado entre as mãos? Ou o pássaro sobre o trono

indica que a filha o soltou, como quem deixa ir, pássaro e mãe?

Em O poder do mito, Campbell (1991), ao ser questionado sobre o porquê das

histórias serem tão importantes para a humanidade, responde que elas podem re-

presentar uma aventura de descobrimento que contribui para o processo de ama-

durecimento de um leitor jovem, por exemplo, tornando-se assim uma “aventu-

ra arquetípica”, como na Ilíada ou na Odisseia. Trata-se de oferecer modelos de

experiência e desenvolvimento para o leitor, ajudando-o em momentos de crise.

Claro que é “preciso distinguir entre mitos que têm a ver com a seriedade da vida,

vivida em termos da ordem social ou natural, e histórias que lidam com alguns

motivos semelhantes, mas se destinam apenas a entreter.” (CAMPBELL, 1991). O

mitólogo cita os contos de fadas, histórias que, mesmo apresentando algumas ve-

zes final feliz, tratam dos obstáculos que ocorrem no percurso, espécies de ceri-

mônias de iniciação para se tornar um adulto e/ou uma pessoa melhor.

Histórias de fadas são para crianças. Elas frequentemente falam de


uma menininha que não quer crescer e se tornar uma mulher. Ela
hesita diante da crise desse limiar de passagem. Então adormece, en-
quanto o príncipe ultrapassa todas as barreiras e vem fornecer a ela

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
136
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
uma boa razão para aceitar que crescer, afinal de contas, tem o seu
lado agradável. Muitas das histórias dos irmãos Grimm representam a
menininha paralisada. Todas aquelas matanças de dragões e travessias
de limiares têm a ver com a ultrapassagem da paralisação. Os rituais
das primitivas cerimônias de iniciação têm sempre uma base mitoló-
gica e se relacionam à eliminação do ego infantil, quando vem à tona
o adulto, seja menina ou menino. A coisa é mais dura para o menino,
já que para a menina a passagem se dá naturalmente. Ela se torna mu-
lher, quer tenha essa intenção, quer não tenha, mas o menino precisa
ter a intenção de se tornar um homem. (CAMPBELL, 1991, p. 237)

Esse rito de passagem, dirá Campbell, falta aos jovens contemporâneos, distancia-

dos que estão do(s) mito(s), seus sentidos e significações, pelo esvaziamento das ce-

lebrações, das cerimônias simbólicas em comunidade que marquem transformações

importantes de todas as vidas, como a passagem da infância para a adolescência.

Dessa concordância com esse pressuposto de Campbell, podemos compreen-

der, a despeito da morbidade, a naturalidade e afeto da composição da filha no

colo da mãe, na imagem da página 39. O beija-mão, para a menina, pode ser aqui

um tipo de cerimônia de despedida, de recuperação da imagem de uma mãe que

desapareceu depois de uma situação chocante e confusa. Um rito de passagem da

vida de Inês para a morte, da condição de filha de Inês para não mais.

Após a cena do beija-mão, a página 40 alivia-nos, uma calma plana verde-água

acolhe nosso olhar, vemos Inês representada a um só traço, aquela “que depois de

ser morta foi rainha” (CAMÕES, 1980, p. 249, canto 118-8). Inês, com coroa e asas,

descalça, sorriso no rosto, figura-se livre, inteira, intacta. Ela está acompanhada

pelo pássaro. Era ela o pássaro, o tempo todo? A mãe pássaro que a filha tentou

proteger na brincadeira com seus irmãos e depois precisou soltar, quando testemu-

nhou e confirmou sua morte? (páginas 30 a 33)

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
137
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 50: Páginas 40 e 41 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Na página ímpar, a família volta enlutada. O cenário remete aos ambientes de

melancolia anteriores, com tons de marrom e cinza. O manto sobre os cavalos

aponta outro rito: o velório da rainha. Se alinhavarmos essa dupla com a anterior

e nossa leitura de sentidos, assim como o beija-mão ritualiza a despedida, o en-

terro ritualiza a separação. À esquerda Inês está recuperada e livre do azul escu-

ro da morte. À direita, a família enlutada, todos unidos compondo um conjunto

compacto e apoiados em si.

Dois pontos parecem interessar na representação: primeiro, o olhar entre pai e

filha, de cumplicidade e afeto, enquanto a menina tenta preservar o sorriso paterno.

O segundo, a Lua, pela primeira vez crescente dentre as seis vezes em que é repre-

sentada ao longo da obra. Na anterior, página 23, ela aparece na sua face nova, como

que se fosse aquele o início de um novo ciclo depois de tanta adversidade. Tal leitura

pode ser feita à luz do afirmado por Campbell (1991) acerca de ritos de passagem

da vida infantil para a vida adulta. “As fases da Lua e o crescente evocam a morte e a

ressureição.” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2017, p. 563). Dentre as fases, nenhu-

ma se aproxima mais em número de crenças e significações do que a crescente:

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
138
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Uma das formas mais características dos movimentos da Lua: símbolo,
ao mesmo tempo, da mudança e da restituição das formas, o crescente
lunar está ligado à simbologia do princípio feminino, passivo, aquáti-
co. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2017, p. 300)

Nenhuma vida é inteira de felicidade. A Lua, como lembra o “brasão” de Pedro e

Inês, pode ser crescente ou minguante, a depender da posição em que é vista, como o

amor, “fogo que arde sem se ver”. Quiseram matar sua vida, mas quiseram mais “Ma-

tar do firme amor o fogo aceso.” (CAMÕES, 1980; 252, canto III, 123-4). De Artémis/

Diana à Virgem Maria, o crescente simboliza o nascimento e a castidade. Para os

mulçumanos, seria a imagem do paraíso, símbolo igualmente de ressurreição, pois:

O crescente não é uma figura acabada, embora quase o seja. Difere da


esfera fechada. Os teólogos muçulmanos dizem que o crescente é, ao
mesmo tempo, aberto e fechado, expansão e concentração, O contor-
no, no justo momento de fechar-se sobre si mesmo, se detém e deixa
ver uma abertura. Da mesma forma, o homem não é prisioneiro da
perfeição do plano divino... O signo do crescente aparece sobretudo
como um emblema de ressurreição. Parece fechar-se, estrangular-se,
mas eis que há uma abertura para o espaço livre, ilimitado. Assim, a
morte parece fechar-se sobre o homem, mas ele renasce numa outra
dimensão, infinita. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2017, p. 300)

FIGURA 51: Detalhe da página 5 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
139
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 52: Páginas 42 e 43 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.

Ao nos aproximarmos da sequência final de páginas que figuram cerimoniais

de passagem e fechamentos de ciclos de vida e da história, notamos ser a última

dupla um rito de identificação da menina-narradora, agora crescida. Ela aparece

sozinha na página direita, separada do resto do livro e do passado que ficou atrás,

por uma página de azul infinito enfeitada com as algas que estavam com as coisas

de onde ela veio, antes de “ser uma vez.”

A representação da menina, na página 43, remete àquela da página 13. É pos-

sível, nessa comparação, assinalar como a percebemos maior, com o mesmo ves-

tido, e, agora, com mangas emendadas. Os cabelos, antes trançados, estão soltos;

a jovem encontra-se cercada de um entorno que antes era branco infinito. Há um

horizonte, um chão, a menina caminha sobre a água vermelha – o choro, o san-

gue, a tinta das algas.

Apesar da pouca idade para menarca, ao perder a mãe, torna-se possível ao

leitor a hipótese de ser o sentido do episódio uma face da construção da persona-

gem-narradora, seu amadurecimento, e, encaminhando-a para um final redentor

do luto. Algo que, pela força da linguagem, subverte a célebre expressão popular:

“Inês é morta”. Há para seguir um vívido fluxo de rio.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
140
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
As expressões e posições do corpo da menina, inclusive quando comparada

com as do personagem Pedro, reforçam a ideia de uma menina em crescimento

ao longo da narrativa e ao longo das páginas do livro. Esse crescimento culmina,

no livro, com um novo status da personagem, aquela que deixa de ser predomi-

nantemente a filha de Pedro e Inês, para ser ela mesma, identificada pelo nome

pela primeira vez, no final do livro (página 42), quando é chamada de Beatriz.

Esse encontro com a própria identidade é coincidente com o final da narrativa,

momento em que Beatriz parece entrar no seu próprio Mondego.

Antes de me chamarem Beatriz eu andava escondida


no meio de outras coisas.
Percebemos que o resgate já referenciado sobre a expressão “andava escondida

no meio de outras coisas” retorna aqui em um tempo narrativo mais “ajustado”,

além da presença do nome, direcionado a um Outro (“Antes de me chamarem

Beatriz”).

— Beatriz!
Alguém me chamou.
— Alguém me chamou?
A voz que chama por Beatriz é a mesma voz que chamou por Inês na pági-

na 32? Seria Pedro? A repetição da frase — “Alguém me chamou.” e “Alguém me

chamou?” — evoca o atendimento imediato a um chamado da menina-jovem e,

ao mesmo tempo, abre novo nível do discurso narrativo, como já foi lido em ou-

tros trechos. A diferença aqui é que Beatriz, sozinha, desdobra os níveis de sua

presença, explicitamente por meio da pontuação estilisticamente expressiva. Se

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
141
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
em outras passagens da história esses desdobramentos eram sutis, no que diz res-

peito a tempos verbais, por exemplo, agora os interdiscursos estão claros: é como

se a narradora estivesse sozinha com seus próprios pensamentos até o chamado e,

depois, ao perguntar, possibilita o diálogo com o leitor como se o convidasse para

participar ou continuar a história.

Novamente rapsódico, à moda dos trovadores, dos poetas, das crianças.

Por meio dessa perspectiva, o mito literário de Inês é construído também sob

o viés da transgressão, da superação: ele retorna ao fato em si, movimento cícli-

co, invertendo o apelo da explicação fantasiosa da cor do rio, isto é, que as lá-

grimas derramadas por sua morte teriam criado a Fonte das Lágrimas e que “as

algas vermelhas que crescem no rio Mondego são lágrimas do sangue


de Inês”. Para a Beatriz do final do livro, “o velho Mondego sempre chorou
dessa cor”. O motivo, a explicação, “Porque... Se lembra?”, perde-se nas reti-
cências e no tempo: “Antes de me chamarem Beatriz eu andava escondi-

da no meio de outras coisas”. A mudança de percepção a partir do amadu-


recimento, o motivo do rio ser vermelho transforma-se ou complementa-se pela

razão do fato real: as algas, o sangue de Inês, o sangue de Beatriz. Morre o mito

no instante, eterniza-se desde o passado sem origem, contido na expressão “sem-

pre chorou”.

Não se trata de julgar ou estabelecer limites ao mito literário, mas antes ampliar

os sentidos da própria realidade humana, origem e fim de todos os mitos. Além

disso, o movimento de expansão ganha matizes poéticas: o “sempre chorou dessa

cor” evoca a totalidade do tempo, o que se confirma a seguir, no “antes andava es-

condida no meio de outras coisas”. O olhar de soslaio de Beatriz, enquanto anda,

reforça a ideia de seguir em frente, mas sem tirar os olhos de tudo que foi.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
142
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Antes de virar a página 43, que encerra a história, o leitor atento vai observar

que Beatriz não está sozinha: o pássaro que esteve em suas mãos, na cabeça do

pai, na paragem da quinta, no trono da rainha morta, no voo da mãe, está ali, no

canto superior direito da página. Longe, guardião. Foi ele que a chamou?

FIGURA 53: Página 44 da obra Inês


Fonte: Mello e Massarani, 2015.

A página 44 traz uma imagem que pontua o final. Depois dela, posfácio e bio-

grafias. Trata-se de uma página inteira vermelha, chapado sem textura, sem lugar

nem tempo, onde duas figuras femininas desenhadas a traço conversam. A histó-

ria de Inês em sua sobrevivência. Atestada pela via das conversas informais, dos

relatos e narrativas que circularam oralmente, dos registros em diferentes supor-

tes, das artes transparentes e ocultas presentes nessa página, e para além dela.

“Digamos um verso bem bonito

Adeus, e vamos se embora!”

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
143
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa investigação até aqui permitiu aproximações comparativas, consonantes e

dissonantes, entre algumas das vozes, visões e pensamentos contemporâneos sobre

as infâncias e livros de literatura infantil recentes, com vista às mutações que viven-

ciamos em face das revoluções e transformações paradigmáticas das últimas décadas,

principalmente nas áreas de pesquisa das ciências sociais e da produção literária. Pu-

demos registrar alguns modos de manifestação das narrativas para a infância e con-

tribuições para o seu fazer como testemunho de uma ampliação inovadora das expe-

riências que uma literatura polifônica para a infância pode criar ao longo dos tempos.

Por meio da metodologia da análise comparativa (CARVALHAL, 2006), ao

mesmo tempo desdobrada e coesa, foram elencadas contribuições fundamentais

que tecem o enredo para consolidação da tese de que a literatura infantil tem sido

espaço de manifestações artísticas de caráter multidisciplinar. Essas manifesta-

ções estão profundamente ligadas à percepção das infâncias contemporâneas e

suas culturas capazes de interagir com os livros com recriação e inteireza.

Sob a luz dessas visões imbricadas, as análises comparativas das publicações

selecionadas para este trabalho puderam demonstrar um panorama geral da pro-

dução recente de livros-álbum em Portugal, celebrada internacionalmente, em

que pudemos verificar aplicação de recursos morfológicos, sintáticos e semân-

ticos alinhados com os conceitos da criança leitora participante. O corpus Inês,

obra plurissignificante, permitiu uma análise comparativa com desdobramentos

de experiências leitoras e multifacetadas entre conceitos formadores e irradiado-

res de sentidos. Através da voz de Beatriz, essa personagem narradora que revela,

transita e compartilha seu poder infantil agigantado com os leitores, foi possível

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
144
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
espelhar imagens das infâncias como as investigamos, que hão de disseminar sua

força e poesia das mais diversas, para além do livro.

Esse conjunto de obras selecionadas, assim como o contexto ao qual per-

tencem, está em sintonia com o conceito de espaço de invenção, indicado por

Daniel Goldin:

A literatura para crianças que se assume verdadeiramente como litera-


tura, ou seja, como um território liberado da linguagem, permite não
só recordar o passado de cada homem no sentido etimológico do ter-
mo re-cordis, “passar pelo coração”: permite abrir um espaço em que
a criança nos invente, ou, pelo menos, nos possibilite uma maior liber-
dade para construir um mundo que desterre a violência, que estabeleça
um equilíbrio maior entre as potências de poder. (GOLDIN, 2006, p. 85)

Considerando que um dos pilares da construção dessas literaturas em seus

diversos formatos, assim como do pensamento das ciências sociais, tem sido a

transposição da voz, representação e participação infantil, a pesquisa não po-

deria deixar de acolher e dar espaço generoso e cuidado para a manifestação

e observação das vozes das crianças. Por meio da relação entre resultados de

pesquisa com crianças leitoras e todos os demais conteúdos inter-relacionados

durante o trabalho, foi possível confirmar hipóteses e sugestões sobre alguns

comportamentos e interações de diversas crianças em experiência com alguns

livros e com suas histórias.

Como inspiradora ou gênese, a escuta do outro e de si sempre foi combustí-

vel para a escrita literária. Nenhuma novidade, se lembrarmos principalmente

do elenco de cronistas que nos premiam com textos que já fazem parte do pa-

trimônio imaterial brasileiro, incorporando aos personagens jeitos de falar e se

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
145
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
envolver em situações que nos leva, como leitores, a nos reconhecer e participar

como parte do cenário proposto nos textos.

Observar, aprender e ler com as crianças é uma atitude política e de cone-

xão entre grupos sociais de importância equivalente nos contextos da socieda-

de como um todo, em toda sua diversidade. Que livros e experiências literárias

podem nascer dessa proposta? Observamos aqui respostas encantadoras em for-

matos surpreendentes, ligadas às habilidades sensíveis, lúdicas e conscientes de

alguns adultos que, em sintonia com culturas infantis, são capazes de criar e ex-

pandir a partir do existente. Estes livros luzem a mágica de ser janela aberta para

cruzar vento entre realidades e imaginações. Vento forte que sustenta, e nele é

possível voar, ir e voltar. Livros que participam da formação de leitores de mun-

dos, além de livros.

Há um pensamento tradicional que guia alguns trabalhos importantes nas

publicações editoriais, que tem sido colocado como contraponto para as ideias

relacionadas aqui. Trata-se do chamado endereçamento, em que se acredita que

a literatura não se realiza, como arte que é, ao preocupar-se com limites pres-

supostos por particularidades do destinatário, leitor, usuário, vidente, impactado,

como quisermos. Parte-se do pressuposto de que a expressão autêntica do autor

só acontece se for livre, e a visão sobre as infâncias que recepcionam ou acolhem

sua obra restringe-se à experiência memorial da própria infância do autor, aquela

vivida e revisitada para a concepção de sua obra, se ele assim o quiser. Sob esse

pensamento, o livro é uma carta com remetente, sem destinatário.

Algumas razões a partir das quais esse pensamento se solidifica são compreensí-

veis, e bons livros já foram criados a partir dessa premissa. Porém, as reflexões expos-

tas nessa pesquisa podem ajudar a compreensão (e apropriação da atitude) de que

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
146
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
conhecer e aprender sobre a universalidade e as particularidades do destinatário, ao

invés de desidentificá-lo, não limita a liberdade criativa. Ainda permanece na esfera

da criação livre a transformação de repertórios, experiências e aprendizados em suas

relações com o outro, com a comunidade. Ao contrário, ao conectar esses repertórios

desdobráveis e tentaculares, este conhecimento pode provocar um efeito de ampliação

de possibilidades na busca pelas linguagens e recursos inovadores e comprometidos

com o universo de cada novo projeto de livro – e aqui nos referimos ao projeto do

livro como um todo, desde a concepção até a arte-final pronta para ser lida. Ao longo

desta pesquisa, foi possível perceber que é sobre esse campo tão livre a ponto de caber

a escolha pela relação com outros – como condição para que seja vivo e possa trans-

formar-se até o sem-limite da recepção – que a inovação e conquistas atribuídas aos

livros da nova geração de autores portugueses, e de artefatos como Inês, acontecem.

Cabe aqui, portanto, um entendimento propositivo: ao invés de endereçar a

carta a um destinatário desconhecido, podemos dizer que alguns livros contem-

porâneos endereçam uma carta para TODAS as crianças e TODOS os leitores. Se

e como esta carta será recebida, é efeito da natureza de qualquer exposição públi-

ca, e da recepção da arte.

Vale lembrar, como já colocado aqui, o entendimento desta pesquisa de que a

recepção diz respeito a um movimento de interação com o contexto, onde a arte

é sujeito e objeto de transformações de caráter universal e particular. Se estamos

falando de literatura, Daniel Goldin contribui:

A palavra escrita é o instrumento mais poderoso para atribuir sentido,


mas, inevitavelmente, está aberta a novos significados. Não apenas por
sua essência polissêmica, mas porque o sentido só é extraído do contin-
gente e para o contingente. (GOLDIN, 2012, p. 167)

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
147
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Considerando o cabedal das pesquisas sobre a literatura e seu caráter mutan-

te e regenerativo, profundamente imbricada dos e pelos deslocamentos humanos,

já evoluímos historicamente e criamos o suficiente para podermos abrir mão da

necessidade cansativa de classificar e enquadrar literaturas. Como diz a escritora

Maria Valéria Rezende, literatura só tem duas: a ruim e a boa.

Por enquanto, podemos entender que esta “converseira” pode deixar seu eco

nesse ponto, com desafios suficientemente fortes e com potencial transformador,

que envolvem poder e empatia. Que se façam novos olhares e aprofundamentos!

Compartilhemos o chamado com Roger Bastide no prefácio de As trocinhas do

Bom Retiro: “Temos necessidade de que se multipliquem as pesquisas deste gê-

nero. Que não se tema esclarecer uma ciência pela outra.”, com a crença de que a

literatura é capaz de manipular fórmulas mágicas de crescimento para que mais

crianças possam se tornar adultos que machuquem menos uns aos outros.

Tomaremos para encerramento a chamada de esperança do trecho do prefácio

do livro Os dias e os livros, de Daniel Goldin, escrito por Ana Maria Machado:

“A literatura infantil contemporânea tem sido observada considerando a recria-

ção efetuada pelo leitor, já que a linguagem não é unívoca nem transparente, e

com isso dá direitos e poderes a quem lê. Esse diálogo potencial entre adultos e

crianças por meio da literatura infantil representa uma esperança. Como nenhu-

ma outra criação cultural pode propiciar uma redefinição da relação entre eles, a

partir de um território liberado da linguagem, com uma redistribuição de pode-

res não mais baseada no autoritarismo adulto.” Cientes de que podemos celebrar

juntos o bom do tempo em que chegamos, retomando Goldin: “a evolução da li-

teratura(...), busca ou propicia, de diversas formas, o diálogo, a participação ativa

das crianças no mundo.” (GOLDIN, 2012, p. 59).

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
148
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Contribuir para os estudos sobre literatura infantil e suas possíveis relações com

outras artes e saberes é perceber que a literatura é um movimento que abrange um

universo além das suas páginas. Literatura infantil, literatura, é arte que se origi-

na e expressa no pensamento social, histórico, político e cultural. Aqui, a roda se

abre novamente, para o leitor deste texto sobre literaturas, infâncias e exercícios

imaginativos.

“Por isso, Leitor, faz favor de estar nesta roda!”. Sempre.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
149
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
REFERÊNCIAS

teoria

AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da his-

tória. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. Rio de

Janeiro: Guanabara, 1960.

BUCKINGHAM, D. Crescer na era das mídias eletrônicas. Trad. Gilka Girar-

dello e Isabel Orofino. São Paulo: Loyola, 2000.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1991.

CARVALHAL, T. F. Literatura comparada. São Paulo, Ática, 2006.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Cos-

ta e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.

COELHO, N. N. A literatura infantil. 7. ed. São Paulo: Moderna, 2012.

COHN, C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

CUNHA, M. Z. Na tessitura dos signos contemporâneos: novos olhares para a litera-

tura infantil e juvenil. São Paulo: Paulinas: Humanitas, 2009.

DARNTON, R. O grande massacre de gatos e outros episódios na história da cultura

francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

ELIADE, M. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2016.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
150
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FERNANDES, F. [1946]. As Trocinhas do Bom Retiro: contribuição ao estudo folclóri-

co e sociológico dos grupos infantis”. In: FERNANDES, Florestan. Folclore e mudança

social na cidade de São Paulo. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1979.

FRIEDMANN, A. Linguagens e culturas infantis. São Paulo: Cortez, 2013.

FRIEDMANN, A. O universo simbólico da criança: olhares sensíveis para a infância.

Petrópolis: Vozes, 2005.

GOLDIN, D. Os dias e os livros: divagações sobre a hospitalidade da leitura. São

Paulo: Pulo do Gato, 2012.

HORTÉLIO, L. Ocupação Lydia Hortélio. YouTube, 15 de julho de 2019. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=rXB-juD3Qtbc. Acesso em: 03 de setembro de 2019.

HORTÉLIO, L. Criança, natureza, cultura infantil. 2016. Disponível em: http:// www.me-

moriasdofuturo.com.br/admin/arquivos/arq_2_128.pdf. Acesso em: 13 de janeiro de 2023.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo

Monteiro e Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva, 2001.

HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac

Naify, 2010.

NIKOLAJEVA, M.; SCOTT, C. Livro ilustrado: palavras e imagens. Trad. Cid

Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

NITRINI, S. Literatura comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP,

2010.

NUNES, B. O tempo na narrativa. São Paulo: Loyola, 2013.

PEREIRA, M. A. Brincar: uma linguagem de conhecimento. A Casa Redonda,

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
151
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
2016. Disponível em: https://acasaredonda.com.br/artigos/artigo-de-teste. Acesso

em: 27 de agosto de 2019.

POWERS, A. Era uma vez uma capa. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

RAMOS, A. M. Innovation and Experimentation in Portuguese Picturebooks.

Conferência Centrum Badań Literatury dla Dzieci i Młodzieży. Universidade

de Wrocław. 18 out. 2021.

RAMOS, A. M. Desafios da leitura do livro ilustrado pós-moderno: formar me-

lhores leitores cada vez mais cedo. Revista ROALE Sede de Ler. UFF, Ano 5, n.5,

set. 2018.

RAMOS, A. M. 6x6: um balanço da literatura infantil portuguesa contemporânea.

Revista de Lenguas y Literaturas Catalana, Gallega y Vasca, no 20, pp. 211-222.

CIDTFF – Universidade de Aveiro, Portugal. 2015.

RAMOS, A. M.; MATTOS, M. S. Viagens à volta do mundo: uma proposta de lei-

tura – entre Portugal e Brasil – para a promoção da interculturalidade. Metamor-

foses, Rio de Janeiro, vol. 15, número 2, p. 155-174, 2019.

SANTAELLA, L. Palavra, imagem e enigma, art. Revista USP, nº 16, 1993.

SARMENTO, M. J. Entrevista: Retrato em Positivo. In: Mapa da Infância Brasi-

leira (Pub), Quem Está na Escuta: Diálogos, Reflexões e Tocas com Especialistas

que dão Vez e Voz às Crianças. São Paulo: Blucker, 2016.

SARMENTO, M. J. De olho no plano São Paulo. YouTube, 2011. Disponível em ht-

tps://www.youtube.com/ watch?v=v8yUzVy_IcY. Acesso em: 13 de janeiro de 2023.

SARMENTO, M. J. Culturas infantis e interculturalidade. In: Produzindo

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
152
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
pedagogias interculturais na infância. Petrópolis: Vozes, 2012.

SARMENTO, M. J. Imaginário e culturas da infância. Centro de Estudos da

Criança. Universidade do Minho. Braga, Portugal, 2002.

VAN DER LINDEN, S. Para ler o livro ilustrado. Trad. Dorothee de Bruchard.

São Paulo: Cosac Naify, 2011.

WOOD, J. Como funciona a ficção. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac

Naify, 2008.

ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia. das

Letras, 1993.

obras literárias

CAMÕES, L. Os Lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980.

LISPECTOR, C. Menino a bico de pena. In: Felicidade clandestina: contos. Rio de Ja-

neiro: Rocco, 1969.

MARTINS, I. M.; MATOSO, M. Andar por aí. São Paulo: Editora 34, 2017.

MARTINS, I. M.; MATOSO, M. Enquanto meu cabelo crescia. Lisboa: Planeta Tange-

rina, 2010.

MARTINS, I. M.; MATOSO, M. Para onde vamos quando desaparecemos? Lisboa:

Planeta Tangerina, 2011.

MARTINS, I. M.; CARVALHO, B. P. Daqui ninguém passa. Lisboa: Planeta Tangerina,

2014.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
153
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
MELLO, R.; MASSARANI, M. Inês. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2015.

MATOSO, M. Livro Clap. Lisboa: Planeta Tangerina, 2014.

SOBRAL, Catarina. O meu avô. Lisboa: Orfeu Negro, 2014.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
154
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
ANEXO – ENTREVISTAS

1. Entrevista Prof. David Buckingham


outubro.2020
Tradução Chris Ritchie

Roberta: Seu trabalho tem sido uma contribuição muito importante para as

reflexões sobre as relações entre crianças e a mídia, sob a perspectiva das visões

das infâncias como construção social, e suas representações. Podemos considerar

o livro de literatura, em suas formas diversas, impressa e eletrônica, como parte

deste universo midiático, objeto dos seus estudos?

David Buckingham: Claro! Os livros são mídia! Não tem nenhum sentido –

seja na área de pesquisa ou de educação – separar os livros das outras mídias. Os

livros representam o mundo, contam histórias, usam diferentes linguagens (in-

cluindo-se figuras, em livros infantis), são publicados e vendidos por sociedades

comerciais, são lidos por diferentes públicos… Todas as questões críticas aplicá-

veis às demais mídias (televisão, cinema, games e por aí vai) podem e devem ser

aplicadas aos livros também.

Roberta: Em seu livro “Crescer na era das mídias eletrônicas”, o senhor

aponta a literatura infantil, ao lado de programas infantis para televisão e outras

mídias, como lugar dos discursos produzidos por adultos para crianças, e chama

a atenção para as relações de interesse e condicionamentos, conduzidas por vi-

sões das infâncias impregnadas por ideologias descendentes do período histórico

em que esses discursos são publicados. Sobre essa produção o senhor cita títulos

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
155
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
importantes da “Era de ouro” da literatura infantil. Na sua opinião, entre a pro-

dução de literatura infantil contemporânea há livros que têm conseguido diálogo

com as visões das infâncias de nossa época, incluindo a do ponto de vista da so-

ciologia? Quais seriam as características desses livros?”

David Buckingham: O ponto é que quase todos os textos de mídia (livros

inclusive) produzidos para crianças são criados por adultos; e, sendo assim, estão

fadados a refletir as ideias prevalecentes que os adultos de uma época têm sobre a

infância. Então, na literatura inglesa, por um lado, podemos ver ‘clássicos’ como

Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, como uma história de fantasia

‘atemporal’, mas, por outro, ele reflete ideias específicas da época em que foi escri-

to sobre a infância (e, por extensão, sobre a idade adulta). Podemos dizer o mes-

mo sobre as produções contemporâneas. Um exemplo óbvio seriam os livros do

Harry Potter. Por um lado, eles se valem de um gênero de literatura infantil muito

bem estabelecido (uma ‘história de escola’) e nos levam a um mundo de fantasia;

mas esse mundo também reflete aspectos do mundo moderno, por exemplo, os

respectivos papéis das crianças e dos adultos, ou das meninas e meninos, e (tal-

vez menos diretamente) também ideias sobre ‘raça’. Apesar de seu sucesso inter-

nacional, eles são também bastante específicos culturalmente (bastante ‘ingleses’)

de certa maneira. Contudo, não é de surpreender que nos livros infantis contem-

porâneos vejamos crianças mais poderosas, menos inocentes, mas elas também

estão mais ameaçadas e ‘em risco’ maior do que víamos em livros escritos há 50

ou 100 anos. Creio que isso também valha para as perspectivas críticas emprega-

das na discussão sobre literatura infantil. Estou anexando a estas respostas um

ensaio que escrevi a respeito, considerando as mudanças nas visões críticas sobre

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
156
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
uma autora britânica para a infância muito popular, Enid Blyton. Nesse ensaio,

investigo como a mudança na recepção crítica de seus livros reflete, de modo ge-

ral, a mudança das preocupações da época.

Roberta: Em seu texto “Crescer na era das mídias eletrônicas”, o senhor afir-

ma: “Mesmo com toda a ênfase pós-romântica na sabedoria e na compreensão

inatas das crianças, elas são definidas principalmente em termos do que não são

e do que não conseguem fazer.”(, pg. 29), gostaria que o senhor comentasse se

quando a literatura acontece na direção de subverter essa visão, atribuindo às

infâncias o poder de apropriação de seus saberes e equiparando poderes adul-

to-crianças, estamos falando de um deslocamento do ponto de vista. Um autor

adulto pode ser a voz das infâncias de seu tempo?

David Buckingham: Sim, embora eu ache que devamos ter cuidado aí!

Acho que em livros infantis contemporâneos você encontra crianças retratadas

como sendo mais poderosas e mais ‘agentes’ do que costumavam ser, enquanto os

adultos têm maiores propensões a serem destituídos ou ridicularizados, ou sim-

plesmente marginalizados. (Vejo isso acontecendo na ‘televisão jovem’, conforme

trato em um ensaio no meu website sobre o programa adolescente Skins.) Isso,

porém, não é necessariamente uma grande novidade: as crianças dos anos 1950

em Enid Blyton são muito ‘agentes’, e os adultos, com frequência, estão ausentes

nas histórias dela. Existe também o perigo de que a criança ‘poderosa’ seja uma

espécie de figura símbolo, ou mesmo uma fantasia de bem-estar – usada como

uma forma de levar a criança leitora para dentro o texto, como se a estivessem

bajulando, ou fazendo-a ficar do lado do autor, mas essa pode ser uma mudança

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
157
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
bem superficial. Do mesmo modo, acho que os autores para a infância podem

reivindicar uma fala em nome da criança (temos alguns bons exemplos no Reino

Unido: Michael Rosen, Malorie Blackman), mas creio que eles jamais poderão ser

a voz das crianças. Retomo o argumento de Jacqueline Rose a respeito: acredito

que haja uma lacuna intransponível entre o autor adulto e a criança leitora.

Roberta: Durante o webnário organizado pelo Colégio Santa Cruz, de São Pau-

lo, em setembro de 2020, o senhor incentivou, dos educadores para os leitores, o

estímulo à sistematização do processo de leitura crítica das mídias, assim como da

produção das mídias pelas crianças. Considerando que, no Brasil, assim como em

muitos países do mundo, a escola é o espaço de aproximação e formação livro-leitor,

como podemos aplicar estas sugestões também ao livro e às experiências literárias?

David Buckingham: Como disse antes, não vejo nenhuma lógica em sepa-

rar os livros das outras mídias educacionais. Tenho passado grande parte da mi-

nha carreira defendendo que as crianças deveriam estudar mídia – ‘educação mi-

diática’. No entanto, esse não é um argumento a favor de uma matéria à parte nas

escolas. Melhor que isso, creio que precisamos repensar como ensinamos cultura

e comunicação mais amplamente, de um modo que inclua todas as mídias (li-

vros, televisão, mídia digital etc.). Para mim, isso significa que precisamos repen-

sar o ‘inglês’, ou o ensino da nossa língua nativa e da literatura. Precisamos incluir

toda a gama de mídia, mas também precisamos estender os conceitos críticos que

descrevi para todas as formas culturais. Os professores de inglês são obviamen-

te bons em ensinar o idioma, embora tenham que expandir e adaptá-lo a outras

linguagens. Mas eles também precisariam aplicar conceitos mais ‘sociológicos’

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
158
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
(representação, produção, público) aos livros. Então, por exemplo, os professores

precisam pedir aos estudantes que pensem criticamente sobre como os livros re-

presentam o mundo, como são produzidos e consumidos, como o mercado edi-

torial funciona, como os livros são apresentados nesse mercado e como são lidos

por grupos de leitores distintos.

Roberta: Não são poucas as ocasiões em que o senhor levanta a necessida-

de de reconhecermos os limites da nossa percepção sobre as possibilidades da

audiência e criação de significados pelas crianças diante dos conteúdos que elas

acessam e com os quais interagem. Dentro do que podemos saber e procurando

deixar de lado a questão mercadológica, por que o livro em formato digital não

conquista o gosto do novo leitor familiarizado com a alfabetização midiática e da

intertextualidade transmidiática, em comparação com os games e conteúdos inte-

rativos audiovisuais?

David Buckingham: Não acho que seja uma boa ideia pensar sobre as re-

lações entre as mídias em termos de uma ‘batalha’, ou uma série de batalhas. O

que ocorre, conforme cada novo meio ou tecnologia surge, é uma ampliação do

repertório de opções. Uma nova mídia simplesmente não substitui uma antiga:

os usos da antiga podem mudar (nós as usamos de diferentes modos, em diferen-

tes contextos, com diferentes propósitos), e podemos acessar o mesmo contexto

ou um semelhante por diferentes canais, mas não se trata de uma batalha com

vencedores e perdedores. A televisão, por exemplo, não substituiu o cinema, nem

mesmo o formato cultural característico do longa-metragem – embora (ao lado

de outras mudanças sociais) tenha mudado definitivamente o modo como nos

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
159
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
relacionamos com os filmes. E essas coisas também mudam com o tempo: por

exemplo, nos últimos dez anos, cada vez mais pessoas escutam conteúdos falados

em áudio de alcance global, via podcasts mais do que por radiotransmissão. À

medida que o repertório de opções de mídia se amplia, instala-se um processo de

mudança conforme as coisas vão encontrando novos lugares. A tecnologia do li-

vro impresso é um fenômeno histórico específico. Pode ser que, afinal, desapare-

ça, mas parece mais provável que a maneira como usamos os livros mude, porque

hoje há outras possibilidades para se acessar o mesmo tipo de conteúdo. Os livros

em formato digital estão, a meu ver, em um estágio relativamente inicial de de-

senvolvimento: no geral, não são muito ‘interativos’, nem visualmente interessan-

tes. Se você considerar o quanto os games evoluíram nos últimos trinta anos, eles

se tornaram muito mais complexos e sofisticados, e deixam o usuário muito mais

satisfeito. Acho que o mesmo precisa acontecer com os livros digitais – então, os

veremos tornarem-se uma forte alternativa para outras formas de mídia.

2. E
 ntrevista Prof. Manuel Sarmento

novembro.2020

Roberta: A primeira pergunta diz respeito a esta conexão que eu tenho pro-

curado fazer, como pesquisadora, entre as visões da sociologia das infâncias e

das culturas infantis, com a literatura contemporânea. Eu entendo que a literatu-

ra contemporânea tem procurado criar respostas, através da arte, imbricados da

visão atual das infâncias cada vez mais apropriadas da própria cultura. O que eu

gostaria de ouvir do senhor são possíveis reflexões sobre o papel da literatura para

crianças, em diálogo com os seus pensamentos como pesquisador e sociólogo.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
160
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Sarmento: Muito bem. Antes de ter desenvolvido a ciência, que se ocupa das

crianças e da infância, os estudos da criança, os estudos da infância, o se ouvir da

infância, numa iniciativa que procura sobretudo focar a criança enquanto ator e

sujeito de cultura, já a literatura há muito tempo se inclinava sobre as crianças,

escrevia sobre crianças e dizia coisas definitivas sobre as crianças. Eu penso que

nossos dois países, Brasil e Portugal, são privilegiados por terem um grupo mui-

to significativo de poetas, sobretudo no século XX, que dedicaram parte da sua

obra à infância: sobre o que a infância parece ocultar do futuro, do amadureci-

mento, em alguns casos mesmo, de uma espécie de regeneração da humanidade,

mas também as crianças concretas, as crianças com vínculos, as crianças que so-

nham, as crianças que preferem as suas frases sempre originais, capazes de alterar

aquilo que são as imagens do senso comum. Isso é muito importante, em muitos

poetas, como Carlos Drummond de Andrade, evidentemente o Manoel de Barros,

no Brasil, o João Cabral de Melo Neto, e tantos outros, tantos outros mesmo. Es-

critoras como a Clarice Lispector, por exemplo. E em Portugal, com vários: tem

Fernando Pessoa, o Herberto Helder, o Ruy Belo, e tantos escritores que de fato

tem páginas absolutamente imortais sobre a infância e cujas imagens e metáforas

são extraordinariamente imbuídas de uma visão profunda daquilo que é a vida

das crianças, e seu modo de se comportar e de agir e de pensar, e nesse senti-

do muito desafiante naquilo que é o conhecimento científico produzido sobre as

infâncias e as crianças. Eu portanto tenho que a infância tem de alguma forma

aprendido com essa produção literária. No entanto seu registro discursivo é dife-

rente, seus objetivos são distintos. A sociologia da infância, assim como qualquer

outra das ciências sociais, tem que fazer provas das afirmações que faz, e permi-

tir a sua constituição e sua ligação através de argumentos que sejam sustentáveis

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
161
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
teoricamente e empiricamente validados. E portanto são discursos que efetiva-

mente não são suscetíveis de serem reduzidos um ao outro, exercem funções es-

pecíficas e tem um contributo específico. Suponho que isso continuará a ser assim.

Creio que a literatura antecipa muitas das questões que, mais tarde, o pensamento

sociológico vai tratar, trabalhar e investigar, e produzir conhecimento próprio. Su-

ponho também que a literatura, que parte do momento próprio que é produzida,

nos traz, ao andar do tempo, dar conta do que é a realidade vigente das crianças

e da infância, das suas vidas, dos seus modos de se ver o mundo, e que há, diga-

mos, um atraso relativo do trabalho sociológico sobre esse mesmo, essa mesma

situação. E, de qualquer maneira, o trabalho sociológico tem uma função de anco-

rar aquilo que são intuições e insights, imagens produzidas pela literatura, e trans-

formar em conhecimento suscetível a prova, teórica e empiricamente validados.

Digo que se complementam, mas temos que estar atentos e crer que viveremos

todos muito acerca do tempo, principalmente aqui o tempo da produção literária,

até virar argumento sobre a infância.

Roberta: Muito obrigada! É interessante porque nos meus estudos eu tenho en-

tendido a sociologia também como precursora para literatura. Essa posição, ela pode

variar também? Estamos vindo de um histórico, aqui no Brasil, de livros que respon-

diam a uma necessidade didatizante, a uma literatura muito ligada à educação, à ne-

cessidade de educar. Esse rompimento aconteceu há pouco tempo, ainda está aconte-

cendo, e a literatura se reconecta aos caminhos da arte. Ao se aproximar mais da arte,

ela olha mais para esse leitor em sua dimensão integral humana, e também para a re-

presentação do personagem criança. E aí, a sociologia vem com um alimento muito

especial. Eu entendo que nós vamos ver muitos livros revolucionários nesse próximo

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
162
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
ciclo de dez anos, a partir dessa nova visão das infâncias.

Sarmento: Eu acredito que seja assim, que haja essa reciprocidade, sobretu-

do na literatura para crianças. Creio que hoje, uma parte importante dos escritores

que escrevem principalmente para crianças, ou que todos os escritores procuram

para além daquilo que é sua experiência existencial e para além daquilo que são

suas tendências estéticas, buscam compreender a criança e recorrem, enfim, à li-

teratura científica. Estava a falar, quando falei do papel precursor da literatura na

criação de intuições sobre a infância, da especial sensibilidade da literatura àquilo

que somos, muito sós no mundo, das apreciações das relações interpessoais. Esta-

va a pensar na literatura não na medida para crianças, mas as que, enfim, evocam

a criança, introduzem a criança, a configuram com metáforas ou eventualmente

como personagem. E isso é simples desde muito tempo, século XIX ao século atual,

e portanto creio que nesse sentido exista um antigo descompasso entre aquilo que

são as partes teóricas emitidas pela sociologia da infância, e pelos estudos da infân-

cia, e aquilo que são os insights e as intuições, e imagens produzidas pela literatura.

Mas compreendo isso que está a dizer, acho que sim, isso de alguma forma tem

reciprocidade na literatura para crianças, na preocupação de que muitos escritores

e escritoras escrevem para as crianças, a perceberem as crianças, e por isso mesmo

se fundamentarem também daquilo que é a literatura científica para além da psi-

cologia e do seu movimento, e das outras áreas do conhecimento sobre a infância.

Roberta: Isso tem muito a ver com essa minha segunda pergunta: na sua

obra, percebemos muito presente um chamado para que passemos a compreen-

der o imaginário infantil dentro do contexto das diferenças e não por déficit em

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
163
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
relação ao imaginário adulto. O imaginário é natural do ser humano, e a diferença,

quando estamos falando de crianças, poderia ser um deslocamento do ponto de

vista e uma linguagem de comunicação peculiar. A minha pergunta é: um autor

adulto pode, ou está capacitado para ser a voz das crianças do seu tempo?

Sarmento: Eu acho que será sempre. Poderá ser a voz de uma parte das crian-

ças, não de todas as crianças. E não apenas um literato, um escritor. Em outras áreas

da produção artística, e portanto na construção estética do conhecimento, digamos

assim, a construção do conhecimento a partir de uma visão sensível da vida, outras

expressões artísticas efetivamente configuram mundos, que são muito próximos e

inspirados nos infantis. Em uma medida que não diria representativos, mas mui-

to próximos. Desde a música, basta lembrar o Heitor Villa-Lobos sobre isso, mas

também lembrar muitas das cantigas em torno de heróis: “o meu cavalo só falava

inglês” assim como diz Chico Buarque, e outros cantores no Brasil, e em Portugal

há também alguns, como Paulo Siqueira Paz por exemplo, “os meninos a volta da

fogueira”1. E também da arte, da própria pintura. Miró, o Paul Klee, são pintores

que procuraram na infância uma parte importante da sua inspiração. Mas a litera-

tura sim, não utilizaria esta palavra, mas creio que a procura de uma empatia com o

pensamento infantil, é por vezes um projeto que se exprima na literatura, na poesia,

talvez mais do que na ficção mas certamente que este é um projeto que é possível

para alguns escritores. E é fundamental exatamente reverter as imagens feitas, esta

linguagem muito usada, e criar uma outra forma discursiva, um outro modo de ex-

pressão no mundo dos outros na relação com a natureza e com a sociedade.

1 Referência à música Os meninos de Huambo, de Paulo de Carvalho

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
164
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Roberta: Entendo ser uma questão ainda em aberto a relação da ficção com

a realidade, a transposição desse imaginário infantil. No seu artigo “O imaginário

e as culturas da infância”, de 2002, o senhor aborda a transposição imaginária do

real como um jogo simbólico, que é característico da natureza humana indepen-

dente da idade. A questão que me veio muito desta reflexão sobre os imaginários e

a busca da linguagem é: uma literatura que esteja em diálogo com as visões das in-

fâncias contemporâneas está em busca de que características de linguagem e que

relação com o real, na sua opinião?

Sarmento: Eu acho que as culturas da infância tem como um dos seus pilares

efetivamente esta transfiguração imaginária do real. Isto é motivo, ou se calhar, a

âncora para uma fortíssima resiliência das crianças mais vulneráveis em situações

de maior dificuldade. Recentemente houve um terremoto na Turquia, e passado

quase uma semana do fenômeno natural ocorrido, foi retirada dos escombros

uma criança de sete ou oito anos que estava viva, e que sorria no momento em

que era resgatada. Ela passou fome, ela teve efetivamente um sofrimento enorme,

isolada, portanto sem contato com nenhuma criança nem nenhum adulto, sem

capacidade de ser avistada, e no entanto resistiu. Hipotetiso que muito dessa resi-

liência infantil, que é muito mais visível entre as crianças do que entre os adultos,

isto é, há muito mais crianças que se salvam passados dias de acontecimentos trá-

gicos, como terremotos, tsunamis e outras situações extremas, elas têm essa ca-

pacidade de se manter que se deve à sua capacidade imaginária, isto é: a possi-

bilidade que as crianças têm de se transpor para outro espaço e tempo, e nessa

transposição, que se chama imaginária, garantirem as condições de sua própria

sobrevivência, pela força que os dá ser um outro personagem, em um outro lugar,

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
165
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
escapando imaginariamente ao sofrimento atroz. Isso é também visível, muito cla-

ramente, nas crianças das classes populares em situação de ódio, de vulnerabili-

dade. Perante a pobreza, perante a violência, esta resiliência é alguma coisa ab-

solutamente notável. Esta é uma função de toda a humanidade, não é uma coisa

que seja específico das crianças. Todos os homens e mulheres sonham, imaginam

e se transpõem a imaginar o imaterial, são capazes portanto de produzir outras

formas de se transporem no espaço e no tempo, digamos assim. No entanto nas

crianças isso é muito vivo, e mais que isto, é alguma coisa que é verdadeiramente

estruturante daquilo que são as suas condições de existência, porque pelo imagi-

nar a criança está continuamente a refazer a sua experiência de vida, ampliando

ou revendo, a criança faz a construção de culturas de pares e das culturas infantis.

Roberta: A experiência leitora costuma oferecer oportunidades aos desdo-

bramentos dessa imaginação, ou dessa transposição, como o senhor chama, no

tempo e no espaço, e ainda há muito a ser explorado quando pensamos no livro.

Entendo que a literatura para crianças contemporânea experimenta provocar

participações do leitor, através da interatividade, seja nos livros digitais ou im-

pressos. Em uma entrevista para uma iniciativa que se chama “De olho no pla-

no São Paulo”, de 2011, o senhor coloca uma ideia que pra mim é muito espe-

cial, onde o senhor fala do papel do adulto nos processos de decisão das crianças:

“Trata-se de um posicionamento de trânsito entre funções ou responsabilidades.

Onde o adulto entra como mediador, facilitador ou coparticipante ativo.” A partir

dessa visão e nomenclaturas tão esclarecedoras, minha pergunta é: em que me-

dida podemos aplicar essa ideia à leitura, seja à leitura de livros ou à leitura dos

contextos, do mundo/do universo onde a criança está inserida?

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
166
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Sarmento: Muito bem, eu acho que... não sei se é o seu tema da dissertação,

mas é certamente um tema extraordinariamente interessante para produzir.

Em questão da participação do leitor na produção da obra literária é algo que se

tenta avaliar desde há muito tempo, há quase um século, a partir de obras de refe-

rência ou similares de Bakhtin, por exemplo, que acho que é o autor que mais clara-

mente, a partir sobretudo do estudo do romance de Dostoiévski, fundamenta a ideia

da literatura polifônica, capaz, portanto, de fazer ouvir múltiplas vozes que só são

suscetíveis se a gente qualificá-las e articulá-las pelo trabalho do leitor, que acres-

centa sentido, que faz as sínteses, que faz as articulações, e por isso mesmo consegue

completar a obra. Suponho que uma boa parte da literatura contemporânea segue

esta via de fazer como que os fios de sentido sejam finalmente tecidos pela leitura.

Eu acho que isso é muito interessante também pensar ao nível da criança. Em

como a literatura que é suscetível de ser reconstruída pela criança, a partir exata-

mente da leitura que ela faz, e da transcrição que faz daquilo que lê ou que lêem, no

caso das crianças pequenas, em relação à sua vida. É verdade que literatura infantil

tem sido sobretudo estudada pelo lado da sua produção, daquilo que são os para-

digmas, daquilo que em alguns casos são, por exemplo, os elementos arquetípicos

estruturantes, daquilo que é o imaginário, daquilo que são os cânones, daquilo que

são as rupturas desses cânones. Existe uma abundante literatura científica sobre li-

vros escritos para crianças e que é bastante interessante no conjunto. Mas são muito

menos – na minha universidade esta é uma área que tem obtido um desenvolvi-

mento significativo – são muito menos de fato os estudos que se preocupam em

saber como é que as crianças recebem os livros, como é que elas interpretam, como

é que elas articulam com sua própria experiência. E eu creio que pensar exatamente

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
167
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
uma obra polifônica a partir da voz das crianças é um projeto de pesquisa de gran-

de interesse e qualidade e se Roberta puder fazê-lo seria ótimo e outras pessoas po-

derão eventualmente ouvi-los. É um desafio muito interessante a perseguir.

Roberta: Obrigada! Eu concordo, e esse trabalho que eu tenho desenvolvido

aqui, e outros autores também, tem procurado fazer a escuta dos dois lados: a es-

cuta que antecede a criação da obra, então procurando criar as relações da ficção

com a realidade, entender a diversidade de contextos com as crianças, e depois,

com o livro pronto, conseguir verificar leituras que acolham essa ressignificação

pelas crianças. E cada uma é uma, então é muito difícil, né? Cada criança é um

universo, então é difícil termos essa compreensão em um modelo um pouquinho

mais panorâmico.

A ideia do deslocamento do adulto como mediador, como facilitador, eu en-

tendo que é uma diretriz preciosa para nós...

Sarmento: Deixa eu falar um pouco sobre isto também! Acho que sim, isso

não é apenas a respeito da leitura, e nem tampouco da produção literária. Isso

envolve outros contextos. A participação infantil só faz sentido se a considerar-

mos enquanto ação influente das crianças no contexto da população com outras

crianças e com os adultos. A participação infantil não é uma coisa que possa ser

considerada como algo que se reduz ao grupo de pais. As crianças vivem na so-

ciedade, com seus pais, com professores, com outros adultos, há diferença... Vi-

vem na cidade, têm as noções de vizinhança, vivem nas comunidades, etc. e no

entanto, a sua participação, isto é, a capacidade de ser mais influente, só é válida

se for influente para o conjunto das situações em que a criança se estabelece.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
168
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
E nesse sentido é fundamental que haja abertura da parte dos adultos para

participação das crianças. No entanto, esse papel não é meramente passivo, não

é apenas um papel de escuta, é muito mais que isso, é uma escuta ativa, é uma

intervenção envolvedora da participação das crianças. O papel do facilitador ou

mediador é absolutamente determinante em todos os processos participativos.

Lógico, pensando muito a participação das crianças a partir da configuração dos

contextos de participação, e por isso mesmo da reestruturação das vozes sociais,

reestruturação essa que aceita portanto uma outra lógica, não da opção, seja ge-

racional, seja de classe, seja de gênero, seja o que for, mas de criação, digamos,

de espaços comunicacionais abertos e suscetíveis efetivamente, de maneira a pro-

piciar essa verdadeira configuração da vida em comum. Nesse sentido que nós

estamos a trabalhar e a pensar a participação das crianças. E é também muito im-

portante no ato da leitura, e sobretudo no caso crianças pequenas que não lêem,

mas que ouvem histórias e são capazes de acrescentar pontos aos contos, como

se diz no ditado popular “Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”. Essas

crianças são sempre capazes de acrescentar pontos aos contos, desde que os con-

tos sejam disponibilizados pelos adultos, que tenham essa função de articulação e

viabilização da participação das crianças.

Roberta: “Acrescentar pontos aos contos” é poético. Muito bonito!

Pois é, minha última pergunta tem tudo a ver com isso. A partir do momento

que reconhecemos as culturas infantis, nos aproximamos delas, podemos consi-

derar a literatura também como parte de uma produção cultural infantil, como

são os jogos, como são as brincadeiras? E se sim, como o fazer infantil pode con-

tribuir para o fazer da literatura?

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
169
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Sarmento: Muito bem, nós estamos a falar até agora sobretudo da literatura

feita pelos adultos para as crianças, mas é importante também lembrar o fato de

que as crianças são produtoras de formas de linguagem que se podem configu-

rar, se não na literatura, pelo menos em fragmentos específicos esteticamente cria-

dos. Os primeiros estudos no mundo sobre o que seria a produção linguística das

crianças enquanto forma de afirmação de uma cultura infantil própria, foi feita no

Brasil por Florestan Fernandes, quando ele estudou as trocinhas no Bom Retiro,

no centro de São Paulo, e verificou uma série de parlendas, lenga-lengas, quadras,

muitas delas tradicionais, que entretanto se proveram, digamos, da memória cul-

tural dos adultos, mas que foram preservados na evolução do brincar das crianças.

E verificou também imensas outras formas de, digamos, de reafirmação, de estru-

turação, de recriação dessas parlendas, dessas quadras, etc. de forma original. E

esse é um outro aspecto que me parece também bastante interessante: verificar de

que modo é que os jogos e as linguagens das crianças são produtoras efetivamente

de dualidades expressivas, suscetíveis de constituir estes fragmentos de uma lite-

ratura infantil, não no sentido de uma literatura configurante, uma cultura adulta

para as crianças, mas sim uma cultura verdadeiramente infantil. Isto é, criada e

geneticamente originada na produção das crianças em seus processos.

Em geral, encontraríamos essas descrições, esses fragmentos numa forma anô-

nima. Quer dizer, hoje um livro para crianças produzido por uma autora, por um

autor, tem a marca de sua autoria. O caso das crianças tem uma cultura coletiva de

pares, como é a cultura popular em geral, como é a arte popular, em geral. É uma

produção feita não propriamente por um sujeito individual, mas continuamente re-

criada nas nossas interpartes e por isso mesmo feitas por um sujeito coletivo, sejam

crianças, sejam as comunidades, ou os povos na produção dessa sua cultura própria.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
170
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Roberta: Sim! Estou procurando lembrar se existe algum exemplo de um

livro que já conseguiu transpor esse fazer ou essa cultura linguística das crianças,

não estou lembrando de nenhum, não sei se o senhor se lembra de algum, se

Portugal já conseguiu. É um desafio imenso, né? Porque o traço da autoria sem-

pre estará presente.

Sarmento:Certamente. Eu acho que é muito interessante fazer essas recolhas

e desenvolver esses trabalhos. Florestan Fernandes é o mais clássico e encontra-

mos pessoas em teses com interesse nesses fragmentos. Mas realmente talvez seja

o caso de fazermos olhos para essa forma de produção linguística, identificando,

portanto, esses fragmentos literários construídos pelas crianças.

Roberta: Nós temos bons trabalhos de registro, eu acho que nisso nós esta-

mos muito bem...

Eu acho que um desafio que ainda está em busca é a transposição dessas cultu-

ras no formato do livro, no formato da literatura, em um livro que não é de regis-

tro. Essa resposta acho que ainda estamos procurando.

NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
171
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.

Você também pode gostar