2023_RobertaPinheiroAsse_VCorr
2023_RobertaPinheiroAsse_VCorr
2023_RobertaPinheiroAsse_VCorr
Versão Corrigida
São Paulo
2023
ROBERTA PINHEIRO ASSE
Versão Corrigida
São Paulo
2023
1
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Asse, Roberta
A844c NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL
RESSOA ENTRECatalogação
VOZES DASna CIÊNCIAS
Publicação SOCIAIS SOBRE AS
CULTURAS DA INFÂNCIA.
Serviço INÊS,
de Biblioteca DE ROGER MELO E MARIANA
e Documentação
MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade /deRoberta
Asse; orientador Maria Zilda da Cunha - São Paulo,
São Paulo
2023.
183 f.
Asse, Roberta
A844c NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL
RESSOADissertação
ENTRE VOZES (Mestrado)-
DAS CIÊNCIASFaculdade deSOBRE
SOCIAIS Filosofia,
AS
Letras eDA
CULTURAS Ciências
INFÂNCIA. Humanas
INÊS, daDE Universidade
ROGER MELO E de São
MARIANA
Paulo. Departamento
MASSARANI, SEM FAVOR, de Letras
ENTROU NA Clássicas
RODA. e/ Vernáculas.
Roberta
Área orientador
Asse; de concentração: Estudos
Maria Zilda da Comparados
Cunha - SãodePaulo,
Literaturas de Língua Portuguesa.
2023.
183 f.
___________________________________________________
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
2
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
ASSE, Roberta Pinheiro. Na ciranda polifônica, a literatura infantil ressoa entre
vozes das ciências sociais sobre as culturas da infância. Inês, de Roger Mello
e Mariana Massarani, sem favor, entrou na roda. Dissertação (Mestrado) apre-
sentada ao Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portugue-
sa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre.
Banca Examinadora
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
2
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
AGRADECIMENTOS
Susana Ventura,
Ana Margarida,
Manuel Sarmento,
David Buckingham
À criança que fui e aos meus pais e irmãos, por terem me cuidado e construído
Às minhas filhas, por terem me relembrado e por recriarem comigo, todo dia.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
3
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
RESUMO
ASSE, Roberta Pinheiro. Na ciranda polifônica, a literatura infantil ressoa entre vo-
zes das ciências sociais sobre as culturas da infância. Inês, de Roger Mello e Mariana
Massarani, sem favor, entrou na roda. 2023. 183 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
4
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
ABSTRACT
ASSE, Roberta Pinheiro. Na ciranda polifônica, a literatura infantil ressoa entre vo-
zes das ciências sociais sobre as culturas da infância. Inês, de Roger Mello e Mariana
Massarani, sem favor, entrou na roda. 2023. 183 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023.
The present work, under consideration of views of childhood arising from the
social sciences and comparative studies of the Portuguese language, associated
with the procedure of listening to children’s voices and analytical readings of il-
lustrated books, proposes reflections on contemporary children’s literature. The
comparative path is guided by studies by Brazilian researchers Tania Carvalhal
and Sandra Nitrini and, in the field of social sciences, we rely on the research of
Daniel Goldin, David Buckingham and Manuel Sarmento, who bring important
contributions. The analyzed works are due to two moments of this research – a
trip to Portugal, with a view to consulting a collection relevant to the purposes of
this investigation, and the book Inês (2015), by Roger Mello and Mariana Massa-
rani, selected as the main corpus, due to of its paradoxical simple and complex
density, and its favoring access to childhood. In this way, it is attested how the
reading of books, whose languages are found in hybrid and fruitful dialogues, can
reflect visions that consider the full interpretive and recreative capacity of readers.
Thus, an unprecedented critical fortune is composed about a part of contemporary
children’s literature, contextualized in order to demonstrate a network of forma-
tive agents, arising from different areas of knowledge, transformed into plurisig-
nificant artifacts in dialogue with children’s cultures.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
5
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................. 8
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
6
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
6.2.1. Convite a partir do lúdico: a experiência
e a palavra poética como jogo ...................................................... 83
6.2.3. A personagem “em positivo”: a perspectiva a partir do que a
criança é em oposição ao que ela não pode ....................................... 90
6.2.3. Narradora, personagem e leitor: a voz a partir
do ponto de vista infantil............................................................ 95
6.2.4. Elementos verbais e figurativos: a presença metonímica
do gesto e da oralidade............................................................... 103
6.2.5. O trânsito de representações entre os tempos da narrativa
e o tempo do leitor: a referência simbólica e a ausência dela................ 110
6.2.6. A visão infantil embrenhada da poética e da narrativa
não-linear: o olhar para o adulto e o exercício do juízo “sem valor”....... 119
6.2.7. A percepção e a complementaridade narrativa entre texto
e imagem na abordagem dos temas difíceis........................................ 125
6.2.8. Simbolizar e cerimoniar: a importância do rito de passagem......... 135
REFERÊNCIAS................................................................................ 150
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
7
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
INTRODUÇÃO
TÉLIO, 2019). Com estas palavras, a educadora Lydia Hortélio1 amplifica e re-
capazes de gerar “uma nova ordem e visão de mundo”, encontra ainda ressonância
1 Declaração da educadora e musicista Lydia Hortélio em teaser da Ocupação Lydia Hortélio - Itaú Cul-
tural, evento ocorrido em São Paulo de julho a agosto de 2019: https://www.youtube.com/watch?v=rXB-
juD3Qtbc, visitado em 03 de setembro de 2019.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
8
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
nos estudos sociais sobre as infâncias, principalmente nas áreas da sociologia e da
Sob o cabedal teórico das ciências sociais, a infância tem sido abordada como
categoria social do tipo geracional, cuja essência se manifesta por meio das lin-
específicos, assim como na produção de culturas com base nas relações entre as
A criança começa a ser cada vez mais pensada a partir do que ela é, do
que ela sabe, do que ela pode, das suas competências, das suas formas
de construir cultura, do modo como ela elabora sistemas ideológicos,
não necessariamente coincidente com o dos adultos; faz isso no mun-
do social em relação aos adultos, nas relações entre crianças. Essa é a
grande transformação nos últimos, digamos, 25, 35 anos no máximo,
no pensamento sobre a infância: a criança é pensada a partir da positi-
vidade das suas próprias características. (SARMENTO, 2016, p. 7)
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
9
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
as histórias. Essa multiplicidade e expansão pressupõem um leitor capaz de criar e
Um trabalho, com essa ampla proposição e com o viés comparatista que o for-
quais redes comparativas puderam ser tecidas com base nos elementos teóricos e
pesquisa. São eles: Daniel Goldin, editor mexicano autor do livro Os dias e os li-
vros, (São Paulo: Pulo do gato, 2012); David Buckingham, professor britânico, au-
tor de várias publicações importantes na área das mídias culturais para crianças;
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
10
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Manuel Sarmento, sociólogo e professor português, autor e organizador de cole-
tâneas importantes sobre a visão sociológica das infâncias e das culturas infantis.
esta pesquisa, em que aplicam seus pontos de vista diretamente ao livro e à lite-
ratura. O capítulo 2 traz um recorte dos pontos das entrevistas conectados à nos-
sa defesa, mas houve uma contribuição mais ampla que pode ser verificada nas
voz, em que ele coloca que alguns escritores podem ser a voz de algumas crianças.
sem limites, do qual alguns livros de nossa época são resultado e o atualizam, ao
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
11
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
incorporar a complexidade das descobertas sobre as infâncias que alguns adul-
tos estão prontos para vivenciar todos os dias, abertos à diversidade das crianças
com quem convivemos e às crianças que fomos. Esses livros são de falar, inventar,
brincar, fingir, imaginar, olhar entre buracos e páginas, vazar além das margens,
esconder segredos, sofrer, perdoar, redimir, ler palavras invisíveis, e o que mais
aqui traz a sociologia e antropologia da infância, pode ser também para o rom-
pimento com propostas como a participação social e política das crianças como
de crítica das crianças para escolha autônoma dos produtos e cultura a que estão
Com atenção aos estudos das vozes infantis – por meio da escuta e da parti-
cipação das crianças – como ponto central de onde partem os pensamentos dos
livros alinhados com o objetivo de nossa análise. Para esta recolha, revisitamos
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
12
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
uma pesquisa empírica realizada entre os anos 2012 a 2015, em alguns territórios
teórica como a que vimos realizar nesta dissertação, no capítulo 3, e essas vozes
Com base no estudo e tessitura dos fios teórico e metodológico relacionados, ve-
vros ilustrados portugueses premiados e traduzidos para várias línguas, nos quais
podemos verificar características de projeto literário alinhadas com as visões das in-
fâncias e dos leitores estudadas aqui. A escolha acontece não apenas pela recepção
celebrada desses livros por diversos públicos, mas também pelas referências com-
Após um breve panorama geral, este capítulo 4 traz a análise comparativa de duas
obras: Andar por aí, de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso (São Paulo: Edito-
ra 34, 2017) e O meu avô, de Catarina Sobral (Lisboa: Editora Orfeu Mini, 2014).
namos a obra Inês, dos autores brasileiros Roger Mello e Mariana Massarani. Esta
tes, na obra, abertos para o universo vasto do simbólico, levando em conta os diá-
logos entre leitores, leituras, tecnologias e contextos diversos das infâncias, com
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
13
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
As análises de livros desenvolvidas nesta dissertação acontecem dentro do re-
de maneira articulada entre texto e imagens” (VAN DER LINDEN, 2011, p. 8),
ticipação cada vez mais plural do leitor criador. Esta é uma das várias conexões
cias, demonstradas por esta pesquisa, e para cuja contemplação panorâmica con-
referido, em que as artes assumem novos papéis e espaços, por meio das novas
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
14
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
mídias; e a criança, novos papéis diante dos grupos sociais e de si mesma, muitas
O trajeto aqui descrito, percorrido para a tessitura da rede que materializa este
versos em suas naturezas e origens, assim como giros de pontos de vista, próprios
ilustrado em que o verbal e o visual jogam com o design que o códex comporta;
valores equivalentes, dono de sua voz em sintonia com as demais, sem hierarquia,
conectados pelas mãos e passos para fazer “a roda girar” e ativar a mágica que a
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
15
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 1 • LITERATURA COMPARADA E LITERATURA
INFANTIL: ABRIGOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
bem dar o tom da ciranda e ser chão para que ela aconteça, são a literatura com-
lhe atribui a professora brasileira Tania Franco Carvalhal, para quem essa ciência,
de estruturação da obra.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
16
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Ao colocarmos neste trabalho o desafio de análise da literatura infantil, parti-
cularmente, recortada aqui por um foco no livro ilustrado e suas múltiplas lin-
rada, esse trabalho usufrui dos métodos analíticos de comparação entre a litera-
Será possível verificar, nas análises trabalhadas nos próximos capítulos desta pes-
quisa, manifestações artísticas criadas para alguns livros que só poderiam acon-
tecer com base na visão, por parte dos autores e editoria, de um leitor capaz de
3 Calvin S. Brown, sobre as relações entre música e literatura, desde 1948, de Th. Munro; The arts and
their interrelations (1949), o volume editado por James Thorpe, Relations of literary study: essays on inter-
disciplinary contributions e Interrelations of literature, editado por Barricelli & Gibaldi, em 1982 (CARVA-
LHAL, 2006, p. 73).
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
17
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Esses trabalhos expressam a tendência comum de ultrapassar fronteiras,
sejam elas nacionais, artísticas ou intelectuais, mas igualmente de explo-
rar o imbricamento da literatura com outras formas de expressão artís-
tica e outras formas de conhecimento. Acentua-se, então, a mobilidade
da literatura comparada como forma de investigação que se situa “entre”
os objetos que analisa, colocando-os em relação e explorando os nexos
entre eles, além de suas especificidades. (CARVALHAL, 2006, p. 74)
podemos entender que os resultados de análises sobre ele, com base na perspec-
seus conceitos formadores. À medida que, para a gênese de alguns desses livros,
esses conceitos podem contribuir para literaturas, outras artes e ciências de varia-
das naturezas, sendo tais livros, como temos visto, objetos construídos com usu-
esta pesquisa, diante de outros livros e mídias em que as informações são vincu-
ladas – e não são poucas, considerando que a pesquisa acontece sobre produções
ção das detecções possíveis, o que nos leva à percepção clara da comparação como
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
18
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
objetivos a que se propõe. Em síntese, a comparação, mesmo nos estu-
dos comparados, é um meio, não um fim. (CARVALHAL, 2006, p. 7)
estão alicerçados pelas ideias de Daniel Goldin, Manuel Sarmento e David Buckin-
gham. Para além dos textos publicados pelos três teóricos, foram realizadas entre-
vistas com dois deles. O instrumento entrevista foi entendido aqui como impor-
tante para a abordagem direta da visão sociológica desses autores voltada para a
literatura infantil especificamente, conexão que costuma aparecer diluída nos tex-
tos já publicados por eles. Do terceiro teórico, Daniel Goldin, é possível conhecer
bem as ideias que relacionam livro e literatura aos campos das reflexões e inter-
rios países, e também pela atuação acadêmica como professor emérito da Univer-
sidade de Londres, no Reino Unido. Buckingham também dirigiu o Centre for the
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
19
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A entrevista com o professor Manuel Sarmento, que aconteceu virtualmente
e David Buckingham com uma causa muito bem justificada que pressupõe a
das condições da presença e ação das crianças nas sociedades. Um dos pontos
pação infantis, métodos que permitem a aproximação e fusão das mais diversas
ações sociais realizadas pelos adultos com a genuína necessidade e cultura das
registros empíricos são observados por este mestrado em diálogo com as mani-
em toda a pesquisa.
Inês foi a obra escolhida como corpus, ou objeto para análise neste trabalho,
aqui colocadas como literatura infantil contemporânea, aquela que, como arte-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
20
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
linguagens plurais que permitem leituras diversas, e procura abrir espaços livres
oral de Inês de Castro. A obra é aqui visitada na intenção de verificar como ela
bólicos do artefato com o leitor apropriado de sua cultura infantil, seus pontos
Peter Hunt em Crítica, teoria e literatura infantil (2010) chama a atenção para
a leitura do texto produzido para a criança. Segundo suas ideias há três tipos de
leitura que podem ser realizadas: “o adulto que lê um livro destinado a adultos, o
a crianças.” (HUNT, 2010, p. 78). Sob tal visão, os processos de percepção, aten-
respeito da leitura do texto pelo adulto e pela criança, o que nos remete para o ob-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
21
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Desse modo é que compreendemos a literatura infantil – uma literatura de re-
cepção não apenas para crianças, mas também para jovens e adultos, como a tra-
sa da FFLCH-USP. Ou seja, mesmo escrita por adultos, ela está direcionada para
uma experiência literária que presume um leitor com repertórios e cultura dife-
rente dos adultos. Nessa seara entram componentes importantes, que são a ideia
fazer dela, a literatura infantil é um conceito inevitável, sem parentesco com outros
Nas produções literárias recentes que trazem como inspiração temática os mi-
cente ao repertório popular, e o que é possível inovar sem quebrar o vínculo que
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
22
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
as faz serem reconhecidas como a mesma história. Na obra Inês, um dos nossos
lho cuidadoso dos autores que, por meio desse recurso, autores apropriam-se de
uma voz infantil, cria construções de linguagem com poesia, simplicidade e deli-
caráter tentacular, serão abordadas ao longo da pesquisa, a tempo. Cabe aqui le-
que tenha algum conhecimento de quaisquer aspectos das narrativas que deram
atribuída à arte na sua forma mais profunda, durante as discussões nos encon-
alunos levantou a questão, que circulava no ambiente da crítica não formal, apli-
Refletindo sobre esta visão importante, é possível entender que Inês isenta-se des-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
23
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A atemporalidade pode ainda ser percebida não apenas a partir da cronologia da
narrativa, na busca do fio que une um começo a um final, mas também do fio que
inteireza no presente, como é próprio das crianças e difícil para os adultos, como
nos provoca Clarice Lispector (1920-1977) em seu texto Menino a bico de pena:
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
24
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
anteriores. Mais uma vez, o foco direciona-se para a forma interpretativa que da-
para quem o estudo da influência deve partir de sua identificação, ou seja, saber-
mos se ela existe ou não realmente, para depois criarmos um meio interpretativo
dessa influência no texto que é objeto de estudo. Associa-se a isto outro conceito
importante que é o da originalidade, definido, como lembra Nitrini, por Paul Va-
léry. Segundo ele, a originalidade viria com duas significações: aquilo que é imagi-
marca própria de um texto mesmo que ele seja resultado de uma intertextualidade
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
25
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
portanto, da vocação do comparativo – ao recontar a história ancestral de Inês de
Castro, inspiração para muitos outros textos de variadas épocas e gêneros. Nes-
cursos para a presença de temas difíceis. Sem deixar de lembrar a relação compa-
rativa central, já citada, que faz emergir as várias concepções de infância com base
personagem Inês, o mito literário da obra corpus deste trabalho, e perceber ecos
diálogos competentes dessas obras com diversas artes e recursos lúdicos com ga-
•
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
26
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 2 • LITERATURA E CIÊNCIA E CIÊNCIA E
LITERATURA: O ELO EM FORTALECIMENTO E O LIMITE
EM PERMANÊNCIA
Este capítulo vem convidar três pensadores das áreas das ciências sociais,
desta pesquisa. Eles são chamados, assim, para participarem da “roda”, munidos
sensíveis. Vale iniciar com uma breve apresentação de cada um desses pesquisa-
dores, para depois entrarmos em contato com tais ideias recolhidas por meio de
a esta pesquisadora.
infância e está sendo cada vez mais aceita até mesmo por alguns psicólogos.”
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
27
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
discutem seus pensamentos apropriando-se também de suas experiências como
por isso oferece direitos e poderes ao leitor. A partir desse território liberado da
entre si nas leituras do livro com suas sabedorias particulares e uma troca equi-
crianças deixou de ser uma literatura para ser ouvida e acatada, para uma lite-
tude e dependência – para uma visão sociológica, em que a infância é uma cate-
goria social do tipo geracional e as crianças são membros ativos da sociedade, su-
jeitos das instituições às quais pertencem. Atores sociais com identidade diferente
(2002, p. 3): “É da ordem da diferença e não do deficit que tratamos, quando fala-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
28
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
David Buckingham questiona a visão da infância como exclusão, vista por
ele como a construção cultural dominante, criada pelos adultos, que pode ser
observada por meio da representação nas mídias ao longo dos tempos. Como
mento se fazem entender enquanto pesquisadores das infâncias acerca das ques-
levisão, cinema, games) podem e devem ser aplicadas aos livros também.”
Sarmento, “antecipar muitas das questões que, mais tarde, o pensamento socioló-
5 Referência a obras de Lewis Carroll, Edward Lear e J.M. Barrie, segunda metade do séc. XIX.
6 Para compreensão clara das vozes em diálogo, as transcrições dos trechos das entrevistas estão grafa-
das em cores diversas. As falas do Prof. David Buckinham estão grafadas na cor azul, e as do Prof. Manuel
Sarmento estão grafadas na cor marrom. Recurso aplicado apenas neste capítulo 2.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
29
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
nos traz, ao andar do tempo, dar conta do que é a realidade vigente das crianças e
da infância, das suas vidas, dos seus modos de se ver o mundo. E, de alguma manei-
ra, o trabalho sociológico tem uma função de ancorar aquilo que são intuições e insi-
chegamos à questão da voz: um autor adulto pode, ou está capacitado para ser a
ressalva:
mental exatamente reverter as imagens feitas, esta linguagem muito usada, e criar
uma outra forma discursiva, um outro modo de expressão no mundo dos outros na
Sarmento: “ser a voz de uma parte das crianças, não de todas as crianças.
efetivamente configuram mundos, que são muito próximos e inspirados nos infan-
tis. Em uma medida que não diria representativos, mas muito próximos. Desde a
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
30
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Portugal há também alguns, como Paulo Siqueira Paz, por exemplo, “os meninos a
volta da fogueira” 7. E também da própria pintura: Miró, Paul Klee, são pintores que
procuraram na infância uma parte importante da sua inspiração.(...) mas creio que
a procura de uma empatia com o pensamento infantil, é por vezes um projeto que
lação entre a literatura e as visões para as infâncias pode nos trazer algumas res-
produzidos para crianças são criados por adultos; e, sendo assim, estão fadados a
refletir as ideias prevalecentes que os adultos de uma época têm sobre a infância.
(...) Podemos dizer o mesmo sobre as produções contemporâneas (...), não é de sur-
preender que nos livros infantis contemporâneos vejamos crianças mais poderosas,
menos inocentes, mas elas também estão mais ameaçadas e ‘em risco’ maior do que
víamos em livros escritos há 50 ou 100 anos. Creio que isso também valha para as
autor adulto pode ser a voz das infâncias de seu tempo – Buckingham responde:
fala em nome da criança (temos alguns bons exemplos no Reino Unido: Michael
Rosen, Malorie Blackman), mas creio que eles jamais poderão ser a voz das crian-
ças. Retomo o argumento de Jacqueline Rose a respeito: acredito que haja uma la-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
31
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Sobre a aproximação entre livros e leitores e características de linguagem na
relação com o real, como se instaura o diálogo da literatura com as visões das in-
ria é algo que se tenta avaliar desde há muito tempo, há quase um século, a partir
de obras de referência ou similares de Bakhtin, por exemplo, que acho que é o autor
leitor, que acrescenta sentido, que faz as sínteses, que faz as articulações, e por isso
mesmo consegue completar a obra. Suponho que uma boa parte da literatura con-
temporânea segue esta via de fazer com que os fios de sentido sejam finalmente teci-
te da leitura que ela faz, e da transcrição que faz daquilo que lê ou que leem, em
relação à sua vida. Para isso, é fundamental que haja abertura da parte dos adul-
tos para participação das crianças. No entanto, esse papel não é meramente passi-
vo, não é apenas um papel de escuta, é muito mais que isso, é uma escuta ativa, é
no caso crianças pequenas que não leem, mas que ouvem histórias e são capa-
zes de acrescentar pontos aos contos, como se diz no ditado popular. As crianças
são sempre capazes de acrescentar pontos aos contos, desde que os contos sejam
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
32
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
disponibilizados pelos adultos, que tenham essa função de articulação e viabiliza-
Sarmento: “Eu acho que as culturas da infância têm como um dos seus pilares
âncora para uma fortíssima resiliência das crianças mais vulneráveis em situações
de maior dificuldade. Hipotetiso que muito dessa resiliência infantil, que é muito
mais visível entre as crianças do que entre os adultos, isto é, há muito mais crianças
possibilidade que tem de se transpor para outro espaço e tempo, e nessa transposi-
pela força que os dá ser um outro personagem, em um outro lugar, escapando ima-
Esta é uma função de toda a humanidade, não é uma coisa que seja específica
no espaço e no tempo, digamos assim. No entanto nas crianças isso é muito vivo, e
mais que isto, é alguma coisa que é verdadeiramente estruturante daquilo que são
dos universos infantis, assim como as expressões livres pelas crianças, importa-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
33
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
utilizarmo-nos do termo inspirado por Goldin (2012). A partir dessa per-
fazer da literatura?
no mundo sobre o que seria a produção linguística das crianças enquanto forma
de afirmação de uma cultura infantil própria, foi feita no Brasil por Florestan
Fernandes, quando ele estudou as trocinhas no Bom Retiro, no centro de São Pau-
lo, (...) e verificou também imensas outras formas, digamos, de reafirmação, de es-
outro aspecto que me parece também bastante interessante: verificar de que modo é
mas sim uma cultura verdadeiramente infantil. Isto é, criada e geneticamente origi-
nada na produção das crianças em seus processos. Mas realmente talvez seja o caso
esses fragmentos literários construídos pelas crianças. (...) É um desafio muito inte-
ressante a perseguir.”
sor Sarmento está sendo materializado de maneira experimental por autores di-
cias de seu tempo, como será verificado no decorrer deste trabalho. Tais autores,
aliados às propostas de suas casas editoriais, parecem estar, como cita Sarmento,
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
34
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
envolvidos com projetos literários que procuram abarcar e navegar por todas as
rico, será indicado no futuro pelas leituras feitas por crianças e adultos, que por
sua diversidade e natureza experencial não são possíveis de medir com exatidão,
embora seja indiscutível a importância de seus registros. É com foco nas leituras
como instrumentos validantes que cabe aqui, com ênfase e alinhamento às res-
Para este trabalho, a contribuição dos sociólogos por meio de suas reflexões
teóricos elencados aqui, serão objeto de investigação nos capítulos que seguem,
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
35
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
que hão de chamar mais integrantes agentes para compor essa roda.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
36
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 3 • ENTRE O INATINGÍVEL E O DETALHE
AO ALCANCE DA MÃO
Este capítulo vem girar a “roda do ponto de vista” e entregá-la para as crianças.
Como fonte para essa verificação foram retomados materiais de pesquisa re-
diversos livros ilustrados com crianças em comunidades do interior nas cinco re-
veis para uma relação aberta para e com o leitor criança, características que serão
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
37
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
participação nas leituras em voz alta e para manipular os livros com autonomia.
Essas duas verificações durante as experiências até 2015 foram disparadoras das
deste mestrado e ingresso, em 2019: por que alguns livros conseguem estabelecer
não? Por que os livros costumam ser objeto de resistência como pertencentes ou
teórico metodológico para a devida análise; e foi nesse sentido que revisitamos
tal experiência – para nós deveras expressiva. Entendemos ser elo de grande im-
portância as vozes das crianças, suas representações acerca de uma literatura cria-
díamos também ser a observação algo que vai além do verbal, pois engendra ma-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
38
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Sob esta ótica, a escuta motivada pela leitura de obras literárias pode qualifi-
car a presença do mediador de leitura como algo quase mágico: ora invisível, ora
Por meio dessas vozes infantis identificamos linhas de ideias e expressões que
– “como faz uma arara.” (leitura do livro). E igual faz o periquito e as mari-
tira que ela conseguiu! Eu já tentei mil vezes e nunca deu. (Marivone, 11 anos)
– Não quero falar... É que eu não entendi essa parte. (João, 7 anos)
– Minha irmã sabe fazer tudo que essa moça do livro faz. Mas ela foi embo-
8 A escuta e observação das infâncias, inter-relacionada com as artes, usufruindo dos métodos da
antropologia, podem ser vistos em outros projetos no Brasil e no mundo, como por exemplo da autora
Sonia Kramer, que produz literatura de registro; da pesquisadora Gabriela Romeu, produzindo documen-
tários em várias mídias; do projeto Território do Brincar e do pesquisador Jan Willem-Bult, no âmbito das
produções audiovisuais.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
39
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
(rindo muito) – Que coisa esquisita tem aqui nesse livro! (imagens de cocô
de animais) Acho que você não vai querer ver não. (Cledson, 6 anos)
– Não sabia que nesse livro podia ter uma história parecida com a minha.
– Acho que você não entendeu. Isso pode ser um pato e um coelho, depende
– A pessoa que escreveu esse livro esqueceu de pôr o pai para resolver essas
(Lindalva, 4 anos)
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
40
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Entre os muitos aspectos que podemos captar e refletir com base em manifes-
tações das crianças como essas citadas acima, optamos por destacar dois, cujos
“preferidos”:
é possível verificar semelhanças entre “os rumos das conversas” que interessam
bastante a essa abordagem à medida que, por meio dessas manifestações, é pos-
vidas e contadas pelas crianças. Uma das equivalências acontecidas muitas vezes
mando, falando ao mesmo tempo, e passaram a exagerar nas descrições dos ani-
mais e nos perigos das situações em que eles os haviam visto. Enquanto uma me-
nina de 9 anos contava ter visto uma sucuri dentro de um “toco de pau”, Miguel,
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
41
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
– Eu vi um tamanduá.
– Na minha casa.
gestos:
– Ele me disse que não pode amanhã porque tem que cuidar do filhotinho.
– É mentira!
Era Madalena, de 8 anos, que sorriu com os olhos arregalados. Quando todos
como frutos da interação entre os pares, da provocação pela imagem criada pelo
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
42
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
formal do discurso, que permite que a criança simultaneamente ‘na-
vegue entre dois mundos’ – o real e o imaginário – explorando as suas
contradições e possibilidades. (SARMENTO, 2002, p. 11)
Esse navegar entre o real e a imaginação parece ser tão fluido que não marca
tempo nem transição. Foram várias as vezes que, em conversa sobre uma situação
gerida pela criança com quem eu conversava, e fui interrompida: “– Você sabe
que isso não existe, né?” ou “– Você sabia que isso é mentira?”. Mesmo frustrada
por ter minha personalidade brincante exposta, respondi que sim, reconhecendo
Outra observação relevante dentro das narrativas que transitam entre o real
e imaginação, são aquelas onde o adulto é parte da narrativa e sua inserção reve-
la pontos de vista infantis que às vezes reviram nossa percepção sobre os adultos,
no Pará: uma menina de 12 anos contou em um grupo comigo e com outras crian-
ças sobre a tia dela, que nas ocasiões em que o tio, seu marido, passava a noite fora
por causa da ida à cidade para fazer compras, ela percebia que um homem ronda-
va sua casa e algumas vezes chegava a bater na porta. Uma noite, a tia abriu a por-
de casinha, e às vezes eles “faziam ter” um moço boto na brincadeira, além das
figuras tradicionais pai, mãe e familiares. Quando tem boto, tem também alguma
mulher grávida. “O boto que é o menino mais bonito”, ela cochichou sorrindo.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
43
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A transposição da história ouvida pelas crianças para o jogo simbólico revela
de Sarmento:
Florestan Fernandes também percebe essa aquisição das culturas adultas pelas
Diante dessas vivências, dentro dos contextos da pesquisa, nos demos con-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
44
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
a formulação seria: Esse real é acontecido ou imaginado? Diz-nos Sarmento: “o
crianças
• é necessário quebrar preconceitos como: “O livro não é para mim.” “Os livros
são difíceis.”, “O livro fala de coisas que eu não sei.”. Para tanto, uma possibilidade
(2016). Esse é um dos poderosos meios de aproximar os livros das crianças, à me-
• perceber que as crianças costumam não julgar os livros, no que tange a ava-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
45
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
há espaço respeitoso para suas manifestações, a criança pode despertar em si a
percepção de que todos temos histórias, e o livro é mais uma forma, entre outras
tantas, de contá-las. Não se trata de um objeto restrito aos “letrados”, mas sim um
um de todos nós.
histórico de transformações – tal como vimos nos referindo acerca das visões de
infância; modos de vínculo das crianças com obras literárias; a produção inventi-
va que mobiliza intenso diálogo entre as artes (visual, verbal, do design gráfico) e
o universo lúdico e imaginário dos infantes que é engendrado por aspectos rela-
do, podem gerar instrumentalização para reunir livro e leitor, assim como a trans-
ça a partir do que ela não sabe ou interpreta da mesma maneira que os adultos.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
46
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
É possível considerar que vivemos um momento de ebulição de ideias e ex-
Como criadores e leitores de histórias dentro e fora dos livros, a nós adul-
tos, seguramente, cabe procurar conhecer mais das crianças e de suas culturas
infantis. Desse aprendizado sem fim, pode nascer o fazer de linguagens cujos
códigos possam ser experimentados por todas as crianças, com base em sua na-
do jogo simbólico.
Por querer ser para todos, essa roda não pode fechar. Convidaremos, então,
mais adultos, criadores de livros e leitores com culturas diversas para diversificar
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
47
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 4 • POR MEIO DA LINGUAGEM REINVENTADA –
“A NOVA LITERATURA INFANTIL PORTUGUESA”
Este capítulo vem girar novamente a “roda do ponto de vista” e mirá-la na pro-
deadora, ávida por um olhar teórico sobre seus materiais, este capítulo trata de
desse alcance podemos citar autores da nova geração, como Catarina Sobral, Isa-
bel Minhós, Ana Pessoa, Bernardo Carvalho e Joana Estrela, entre outros, todos
reconhecidos com premiações em vários países onde seus livros são publicados.
Suas casas editoriais, como a editora portuguesa Planeta Tangerina recebeu, du-
rante a 50ª edição da Feira de livros infantis de Bolonha, o prêmio BOP – Bologna
Prize for the Best Children’s Publishers of the year, sendo reconhecida como a
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
48
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
melhor editora de livros infantis europeia de 2013.
base nos vários fatores ligados ao contexto político, social e econômico do país,
quando o fim da ditadura salazarista abre espaço para novas políticas de incen-
tivo à leitura, dentro e fora do sistema escolar, como o PNL (Plano Nacional de
Leitura), vigente no país desde 2006, que tem sido fator de aumento de volume na
circulação de livros.
arte livre. É possível verificar movimentos parecidos em vários países que sofre-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
49
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
É relevante citar que as publicações que referenciamos aqui como parte dessa
nova geração portuguesa não são procedentes do conjunto amplo do mercado edi-
de países diversos onde tais livros foram traduzidos e publicados, demonstra a ori-
É consenso entre a crítica e a academia que é Manuela Bacelar, uma das me-
e no partido, parece ter havido a inauguração de uma linguagem que vem ga-
diálogo com os leitores mais diversos. Essa detecção, que pode ser confirmada
propostas de projeto
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
50
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
características podemos relacionar a liberdade e autenticidade com que aplicam
industrial até a recepção pelo leitor. Podemos entender essa materialização com
base na diversidade da formação entre os autores (muitos deles oriundos das áre-
direitos de edição de seus livros para uma variedade grande de países e cultu-
ras, como Espanha, Brasil, Itália, Reino Unido, Coreia do Sul e Japão. Além disso,
que tornam os livros da editora capazes de transitar com sucesso pelos universos
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
51
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
leitores e críticos, segundo observa a professora Ana Margarida Ramos:
A editora que ainda mantém o núcleo duro que a formou, assim como
o processo de criação de livro em conjunto, o que explicará o seu su-
cesso junto dos leitores de diferentes idades, mas também junto da
crítica especializada e da própria academia. [...], a Planeta Tangerina
tem vindo a diversificar a sua oferta editorial, [...], sem abdicar de uma
componente experimental, nomeadamente em termos de novos for-
matos (álbum sem texto, narrativas paralelas, mix-and-match books,
não ficção, livro-jogo, livro interativo, etc.) que a caracterizou desde a
sua génese. (RAMOS, 2015, 218)
Planeta Tangerina, Pato Lógico, Orpheu Mini e Bruaá, entre outras, pode levar à
e no Brasil pela Companhia das Letrinhas, e Daqui ninguém passa (2014), de Ber-
dos: Para onde vamos quando desaparecemos? (2011), de Isabel Minhós e Madale-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
52
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A valorização de propostas cada vez mais complexas, do ponto de vista
da estrutura narrativa, da interação com o leitor, plenas de referências
intertextuais eruditas, por exemplo, não é obstáculo à valorização da
sua dimensão lúdica. (RAMOS, 2018, p. 157)
Podemos alinhar essa dimensão lúdica experenciada nesses livros com aquela
de nas naturezas das soluções encontradas por esses autores, embora tão diversas
Ou seja, mais uma vez podemos entender que por meio do lúdico, da brin-
para esta construção é central: “O jogo simbólico desempenha, deste modo e des-
de a mais tenra idade, uma função nuclear na construção do sentido pelas crian-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
53
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Função central, como nomeia Sarmento, e também processual, segundo Gol-
din, se observarmos o jogo simbólico como práticas do faz de conta da vida real
ferentes pontos de vista que vêm reforçar a ideia de que, a partir dos livros aber-
tos à participação do leitor, as leituras podem ser cada vez mais um brincar com
Com base nas reflexões acerca dos levantamentos desta pesquisa, podemos ar-
gumentar que alguns livros portugueses referenciados neste trabalho lançam mão
de sentidos sob a perspectiva estudada até aqui. É possível dizer que esse é um
dos pontos que os vincula ao sucesso que vêm experimentando, alguns aceitos e
lidos em mais de 29 línguas (Planeta Tangerina). São recursos como, por exem-
através de pequenos detalhes como por exemplo desenhos nas bordas das pági-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
54
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
fidelidade e de divulgação dos textos, como na criação de universos
subversivos e paródicos, pelo uso criativo e inovador — às vezes sub-
versivo e com intenções simultaneamente lúdicas e didáticas — da
língua, explorando todas as suas potencialidades (gráficas e visuais,
sonoras, rítmicas e melódicas, semânticas, simbólicas...), pelo recur-
so ao humor, obtido através da utilização dos mais diversos tipos de
cómico, muitas vezes combinados entre si, pela recriação de universos
próximos dos infantis — casa, família, escola — promovendo o reco-
nhecimento e a identificação dos leitores com os ambientes e situações
retratadas, pela emergência, sobretudo nos últimos anos, de universos
e temáticas fraturantes, às vezes perturbadores e polémicos, como os
ligados à morte, à violência ou ao sexo. (RAMOS, 2015, p. 213)
portuguesas, o avanço dos estudos das ciências socias e as visões sobre as infân-
anos mil e novecentos. “Essa é a grande transformação nos últimos, digamos, 25,
vés da literatura, tão importante para nossa abordagem, que os livros con-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
55
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
aprofundamento da reflexão foram selecionadas duas obras que, assim como Inês,
• Andar por aí, de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso, Editora 34, 2017.
tugueses dessa geração estão presentes nas duas obras: chapados de cor, persona-
ria ora como observador, ora como participante. Cada menino vai nos conduzir
por um trajeto acompanhado pelos seus avôs, ambos senhores “descolados”, com
Nas duas narrativas há a presença de outro adulto além dos avôs, que fazem
no, que é várias vezes citada pelo narrador, mora junto com o menino e o avô, e
Em Andar por aí, o texto é uma sequência de frases curtas, com alternâncias
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
56
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
quando estamos diante de estímulos sensoriais em movimento, como é o caso do
• Andar por aí, de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso, Editora 34, 2017.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
57
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Ao abrir o livro o leitor é surpreendido pela imagem de um grande pássaro
planta de uma cidade. As duas percepções simultâneas são facilitadas pela simpli-
que o formato do pássaro é inteiro e forte o suficiente para não haver dúvida do
que se trata. Um pássaro pode ser uma cidade e uma cidade pode ser um pássaro.
que vai acontecer ao longo de todo o livro: a condução do leitor, pelo narrador,
caminho com detalhes ora sensoriais, ora objetivos; ora regrado, ora livre; ora
percurso do leitor, que transpassa todo o livro até chegar na 3ª capa, onde somos
dade do livro, essa linha pode ser o apoio para um dedinho que vai seguir o mapa,
achar caminhos no meio da lógica desordenada que a cidade nos invoca ou con-
no branco até o piso mudar de padrão? Esses e muitos brincares estão sugeridos
vazios e as linhas sugerem o caos urbano, aquele que se faz e refaz nos detalhes e
na visão do todo.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
58
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 3: Páginas 6 e 7 da obra Andar por aí
Fonte: Martins e Matoso, 2017.
de vista, vozes do narrador criança, por meio de soluções que só poderiam ser
curar estar no lugar de uma criança, conectar-se com seus contextos, deslocan-
das cores e patterns que ajudam a ambientar o momento da narrativa como frio,
dos demais personagens e dos equipamentos urbanos, de acordo com suas im-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
59
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Nesse ponto vale destacar a representação da relação de confiança e cuidado
entre o menino e o avô durante toda a caminhada pelo livro, através do uso de
livro brinca com escalas e posição dos personagens na página para sensoriar a ex-
zes muito perto um do outro (na sequência linear), outras longe (um no topo da
página outro no rodapé). Finalmente, na página dupla central, o avô olha para
criança, e a protege com sua presença, enquanto o menino também confia nessa
ser percebida também pela variação de escala entre o menino e o avô, onde em
aparece cada vez maior à medida que a virada das páginas avança. O menino é
tos quanto à sua inserção no espaço urbano ou sua gradativa assimilação como
pertencente ao lugar e ao contexto onde ele está, e onde ele confirma no texto ser
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
60
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
lugar de caminhadas frequentes para ele, passíveis de reconhecimentos familiares
Esse movimento dos personagens pelo campo gráfico da página pode nos reme-
ter a um jogo de tabuleiro e, se for, tem um ápice nas páginas 20 e 21, em que nos-
forma, pela organização dos traços pretos – traços aos quais o leitor já está familia-
rizado desde o início do livro – que são também objeto de brincadeira pelo meni-
no. O avô desenhado confirma a presença protetora, mesmo sem ele estar presente
nesta cena da maneira como até agora foi representado pela narrativa.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
61
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
O objeto com o qual o menino brinca nessa dupla de páginas pode ser a calça-
aberto, o sem fim do desenho que vaza das margens para o ar suspenso em torno
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
62
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
O meu avô nos convida a participar do ponto de vista infantil já na capa, em
que já intuímos ser o avô, por causa do título. Título este composto por letras
o que nos ajuda a esperar por um avô ou por um livro divertido e inusitado. Uma
capa uniforme no lay-out, forte. O olhar atento do menino para o adulto, em con-
para essa figura. Vamos abrir o livro, ele deve estar inteiro lá dentro!
Vamos conhecer o avô inteiro sim, mas só na página 6. Até lá, seremos apre-
retrato minucioso para detalhes soltos, um jeito de ver próprio do olhar infantil.
São cenários equidistantes, cada um em uma das páginas da dupla, que dispõem
demos supor que o narrador revela o que conhece e espelha o que não conhece
sobre o que pode ser a casa do Sr. Sebastião, por meio da imaginação ou da me-
avô e, portanto, o menino pode ou não conhecer o lugar que ele mostra ao leitor.
A partir da página 12, na qual aparece pela primeira vez a cor amarela, no livro,
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
63
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
em equidistância a comparação entre Sr. Sebastião e avô, convidando o leitor a
prestar atenção aos detalhes das imagens e relacioná-las com o texto verbal para
adultos, já que o Sr. Sebastião não tem boca e seus olhos são pontos abertos e
atentos, enquanto que os do avô podem ser como quisermos, escondidos atrás
dos óculos. O avô também não tem boca, mas o cachimbo e o bigode podem nos
os distinguem, contribuem para que o leitor possa criar identidade com pessoas,
páginas pares (esquerda) do livro, e do avô nas páginas ímpares (direita), desde
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
64
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
a dupla 8-9 até a 32-33, tornando confortável e enredado o jogo da comparação,
Até o final do livro (páginas 34-35), quando a inversão se faz: o avô aparece na
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
65
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A brincadeira se justifica aqui por pelo menos dois motivos: o primeiro é
mos provocar que nosso interlocutor erre uma resposta diferente da sequência
na página final esquerda, sob a luz do poste que ilumina avô, neto e cachorro,
nos dizendo que já é noite. Sim, aqui, na dupla final, o leitor precisa procurar o
aprendemos que é onde eles moram, lá nas primeiras páginas do livro). O cená-
que a cena sugere ao retratar avô e neto fora do prédio. Liberdade e cumplicidade
que menino e adulto compartilham nos quadros retratados em todo o livro, mui-
tas vezes com a presença do cachorro, símbolo de companhia afetiva, que aqui
podemos visualizar como “detalhe de avô”, ou como elemento que pode provocar,
perado e variado do cachorro no campo das páginas, podendo criar uma narrati-
coisa de trabalho, aqui é retratado “pela metade”, o que pode ser lido nesta ima-
Após esse breve olhar investigativo sobre essas duas obras, com ênfases nos re-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
66
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
do leitor e em diálogo com vozes infantis, fica ainda uma questão curiosa a res-
peito deles: a coincidência da figura do avô como personagem eleito para par da
não apenas pela semelhança em algumas descrições sobre eles feitas pelos narra-
dores em ambos os livros, mas também por como a questão geracional aparece
infância como classe geracional, ainda vista por grupos de adultos sob o espectro
do limite, das incapacidades das crianças. Tal visão pode ser também aplicada à
classe geracional dos idosos, onde os limites de capacidade são motivo de exclu-
são da atividade social. Nos livros analisados, criança e adulto quebram juntos
seus limites, não se importam com eles e por isso oferecem a si a liberdade que
os adultos, representados pelo Sr. Sebastião e pela mãe, não conseguem oferecer
nessa observação dos livros contemporâneos, dizer que autores como Catarina
nos contar.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
67
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Se pudermos pensar ainda mais na representação e representatividade das
neira a conseguir que personagens como Anne Frank e Harry Potter sejam ines-
vemos. O que nos cabe aqui é a constatação, portanto, da literatura como arte que
o peculiar e o universal, ser capaz de afirmar a ideia de que a maioria das crian-
ças, cada uma em relação com seu próprio contexto, podem sim ser mais capazes
dos, e até discursos, tomando os termos usados por Buckingham. Do tempo que
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
68
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
vivemos podemos dizer que assistimos a grandes desequilíbrios, muitas vezes ba-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
69
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 9: Crianças brincando de ciranda
Fonte: Arquivo próprio
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
70
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 5 • INTERVALO
tuais e teóricos que apoiam as análises, no capítulo seguinte, do livro Inês (corpus
serida nos contextos histórico, social e produtivo da publicação da obra, além dos
A singularidade a que a Profa. Maria Zilda da Cunha se refere, fica ainda mais
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
71
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
qualitativa do mundo e ficamos conscientes de um mundo que se for-
ça sobre nós. Ao mesmo tempo, é o ponto de partida e o campo de
testagem para nossas especulações – as mais imaginativas. A percep-
ção está na porta de entrada da investigação e do conhecimento, exata-
mente por ser insistente, incontestável, incontrolável e, eminentemen-
te, falível. (CUNHA, 2009, p. 38)
dora se desloca entre a procura por colocar-se no lugar do leitor criança, ajustar
adulta afetada por repertórios prévios. Colocar-se no lugar da criança, se é que isso
tados de consciência pouco acessíveis aos adultos, além da liberdade para as mani-
Florestan Fernandes, o pensador francês Roger Bastide reflete sobre esse limite:
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
72
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
se mostram novamente os limites, como na divertida formulação de Thomas
Nagel conclui que um ser humano não é capaz de trocar de lugar com
um morcego, que essa transferência imaginária é impossível: “Até onde
eu consigo imaginar (e não vai muito longe), isso só me diz como seria
me comportar como se comporta um morcego. Mas a questão não é
essa. Quero saber como é ser um morcego para um morcego. (WOOD,
2008, p. 143)
rando que a história se passa nos anos de 1350, não havia sequer a concepção de
tes eram vistos como mini-adultos, sem diferenciação de tratamento nos ambien-
tes doméstico e social. Esse entendimento será considerado nas análises da traje-
aqui vale traçar um paralelo com a investigação de Daniel Goldin em seu capítulo
infância, com base em Robert Darnton11, sobre a perspectiva dos contos de fadas
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
73
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
estamos inseridos e, por distância, torna difícil imaginarmos. “Darnton qualifica-
va essa existência com três adjetivos: sórdida, brutal e breve.” (GOLDIN, 2006, 68)
Como princípio, o processo de análise aqui admitido toma a obra como corpo
leituras diversas.
critérios de análise sugeridos nas obras de Van der Linden, Para ler o livro ilustra-
12 A análise aqui proposta parte do pressuposto que, para a realização de Inês, toda a cadeia de produ-
ção do livro esteve envolvida e integrada para o resultado que temos disponível para o leitor e, portanto,
o aprofundamento das investigações visualizando ao mesmo tempo o todo e suas partes justificam-se. A
prática desta integração entre etapas e profissionais não é unânime em todas as editoras, mas vem tornan-
do-se cada vez mais, a partir dos resultados positivos e premiações de livros que assim foram produzidos,
em que a integração de soluções que envolvem a materialidade do livro e conteúdos artísticos e literários
geram inovações nas relações de texto e imagem, projetos gráficos e aplicação de recursos da indústria
gráfica – impressão e materiais diversos. É importante também observar que, a partir dos anos 80, quan-
do os processos produtivos passam a acontecer nas plataformas digitais, os autores e editores ganham
acuidade e domínio no controle dos detalhes e decisões de projeto, já que a arte-final é gerada no compu-
tador, por eles mesmos ou sob sua supervisão direta.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
74
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
• Sintaxe: movimento, ritmo, composição, quebras página simples/página du-
Aqui é possível traçar sincronias complementares com três princípios que po-
dem basear a experiência analítica sob a perspectiva das relações entre a lógica, a
ética e a estética. São “três princípios segundo os quais, no mínimo três faces do
(por exemplo; uso da linguagem visual, cores, formas, volume, movimento, dis-
receptor.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
75
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
operação do pensamento, elaboradas por Pierce13:
três subdivisões dentro de cada uma dessas matrizes.” (SANTAELLA, 1993, p. 42),
intensidade das cargas de representação e símbolo que as imagens dos livros es-
13 Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo e matemático, fundou uma filosofia científica em cujo bojo
se encontra a Semiótica. “Em seu caminho de investigação, procurou encontrar o que cada ciência desenvol-
ve para chegar a princípios comuns, seus métodos e mecanismos de raciocínio, chegando à conclusão de que
todos os métodos de investigação originados nesses mecanismos desenvolvem-se por meio de signos, não
somente de signos simbólicos, pois todo raciocínio envolve uma mistura de ícones, índices e símbolos. Ao
chegar a tal conclusão, a Semiótica passou a ser para ele a própria Lógica.” (CUNHA, 2009, 55)
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
76
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
O capítulo 6, a seguir, contempla a análise detalhada do livro Inês a partir dos
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
77
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 10: Crianças brincando de ciranda
Fonte: Arquivo próprio
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
78
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CAPÍTULO 6 • INÊS: DA ORALIDADE ANCESTRAL AO LUGAR
DA VOZ NARRATIVA INFANTIL
Inês é nossa convidada para estar no meio da roda, brincar no centro, enquanto
A obra é um livro ilustrado, na concepção aludida por Van der Linden (2011),
6.1 Morfologia
A capa dura e o formato horizontal (27,5 x 20,5 cm) remetem ao livro clássi-
para uma aproximação com o ambiente antigo em que se passa a história, assim
Inês de Castro.
De fato, a obra não deixa de ser uma narrativa de memória, um reconto por
meio da voz da filha de Inês, que é a narradora e revisita o mito literário, a partir
do seu ponto de vista. Com 48 páginas, a obra foi impressa em papel espesso, 150
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
79
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
As cores predominantes são o vermelho, preto, branco, kraft, azuis e verdes,
conduz o leitor. Mariana Massarani faz uso da cor, em Inês, para compor estados
de pretos e brancos que assumem a mesma hierarquia das outras cores. Preto e
branco são traço e ponto focal, mas não são sombra nem luz, e sim preenchimen-
Mondego que teria sido banhado pelas lágrimas e pelo sangue de Inês, “levando
à criação de uma Fonte das Lágrimas, onde uma alga vermelha persiste, teimosa,
como prova do sacrifício de Inês”, como conta Lilia Schwarcz no posfácio da edi-
ção de 2015.
los fatos que compõem a história. Cores escuras com pouco contraste chegam a
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
80
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
difíceis, enquanto superfícies claras e leves, com poucas cores e contrastes suaves,
As texturas provocadas pelas grandes áreas de tinta PVA e pelo traço do lápis
A exceção nota-se nas páginas onde não há texturas de cor, mas apenas a ho-
mogeneidade dura do papel kraft cru: nessas páginas, a ilustradora deu preferên-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
81
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Há um cuidado especial na escolha pelos enquadramentos feitos pela autora
var tal cuidado, por exemplo, quando o personagem Pedro aparece grande e cen-
tribui para que a atenção do leitor se volte para ele; assim como também nos gru-
formato em página dupla, ou ainda nos personagens que aparecem em meio cor-
FIGURA 13: Pagina 21 da obra Inês FIGURA 14: Pagina 19 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015. Fonte: Mello e Massarani, 2015.
FIGURA 15: Pagina 22 da obra Inês FIGURA 16: Pagina 20 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015. Fonte: Mello e Massarani, 2015.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
82
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Ao folhearmos o livro como um todo, podemos perceber indícios de época nas
quer espaço, levar o leitor para longe ou trazer a história para perto.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
83
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A capa, sem dúvida, cumpre um papel no envolvimento físico com o
livro, pois, embora não se possa olhá-la enquanto se lê, ela o define
como objeto a ser apanhado, deixado de lado e talvez conservado ao
longo do tempo. (POWERS, 2003;7)
de uma fila e quem sabe fazer parte dela, entrar. A princípio a procura não termi-
Então, o jeito é procurar mais, abrir o livro, virar a página. Segundo a escritora e
momento em que você vira a página é uma suspensão. Você tem que criar um
acontecimento da mesma forma como se você virasse uma esquina, né?” Em Inês,
Segue a procura pelo motivo da junção de tanta gente. O olhar pode en-
tão identificar o fio da fila, e seguir conduzido até encontrar o final, onde está
14 Exposição “Linhas de Histórias – O Livro Ilustrado em Sete Autores”, Sesc Santo André, agosto de
2017. https://www.youtube.com/watch?v=4r4aiIXLYiU
15 Referência ao personagem da série de livros Onde está Wally?, HANDFORD Martin, Editora Martins
Fontes, 2016, em que o leitor é convidado a encontrar o personagem no meio de imagens formadas por
uma grande quantidade de informações graficamente similares.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
84
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Este encontro gera uma pausa na narrativa que começou. Ou será apenas o final
do título iniciado lá na primeira capa? O título do livro está na fila. Ou a fila faz
parte do título?
fila, e abrirmos o livro “ao contrário”, de maneira a visualizar lado a lado a quarta
trário, começando pelo final, encontramos a outra guarda e... mais fila! O livro
aberto “do lado das capas” amplia as dimensões da fila, amplia a dimensão do
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
85
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
vermelho. As figuras humanas são chapadas, sem volume, sombra ou perspectiva,
na hierarquia das informações. Desse modo, o conjunto das capas e guardas an-
so, sem luz, sujeira adensada pelas fumaças de grafite que o lápis 6B gera e que
foram mantidas, talvez mesmo com esse propósito. A densidade deste vermelho
é tanta, sugere grossuras de tinta tanta, que deve ser difícil se mover nesta fila de
pelo livro, criada pela conexão entre conteúdos narrativos e materialidade. Ela
pressupõe uma movimentação para as leituras que pode envolver, entre outras,
de uma linguagem que “não é unívoca nem transparente” (GOLDIN, 2006, p. 82),
e por isso permite que o outro a recrie. Ao abrir este espectro de possibilidades
No caso particular desta leitura das capas e guardas de Inês, o aspecto que ga-
veremos adiante.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
86
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
a oportunidade de se expressarem ludicamente a partir dos seus po-
tenciais individuais, sobretudo de forma espontânea; é uma forma de
dar-lhes voz e ouvi-las; do ponto de vista dos adultos, um caminho ex-
pressivo para canalizar emoções e desenvolver habilidades, tão essen-
ciais para seu autoconhecimento. (FRIEDMAN, 2013, p. 71)
que o aspecto lúdico de um livro não suporta comprometimento com sua lite-
“todo o valor por ser incompatível com a certeza.” (AGAMBEN, 2005, p. 117).
da cultura das infâncias. Se lembrarmos da citação pela professora Péo (item 4.2
dessa dissertação) sobre a diferença entre brincar e jogar, para os brasileiros (PE-
REIRA, 2019, p. 16), podemos investigar ainda mais a natureza do lúdico no li-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
87
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Segundo Lydia Hortélio, em entrevista ao Instituto Tear em 2014, a essência do
periência lúdica não precisa nem sequer acontecer para que a narrativa seja com-
mada extra, cuja conquista pode gerar maior poder do registro da experiência na
No âmbito da materialidade do livro, de modo geral, toda capa tem seu papel
de embalagem. Quando fechado, ela é vista e revisitada muitas vezes. Como su-
porte para a imagem que imprime, ela tem também seu papel de prenúncio ou
sedução na direção do porvir dos conteúdos que embala. Sob esse ponto de vista,
a capa de Inês seduz no primeiro olhar, pelo espaço preenchido por pessoas vesti-
das com roupas da era dos reis e princesas que, se observados com mais demora,
estão em atitudes ou posturas tão diversas quanto suas próprias aparências, por
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
88
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
vezes curiosas e engraçadas, na expectativa por um motivo que os trouxe ali, e
A mesma capa, revisitada após a leitura do livro, ganha novas camadas de sen-
tido. Agora, o leitor sabe que a fila é para o beija-mão de Inês, e as atitudes ex-
Dando continuidade à observação das capas, outro papel que é exercido pela
fila de pessoas é a figuração da expressão “em cada uma de nós” que aparece no
texto da quarta capa, escrito por Lilia Moritz Schwarcz: “Toda vez que queremos
dar uma coisa por acabada, dizemos: ‘Inês é morta.’ Roger Mello e Mariana Mas-
Convite para o leitor entrar na fila? O texto aproxima Inês de cada um de nós
faz também por meio da expressão “poema em forma de livro”. O texto da quarta
capa anuncia que este livro vem revisitá-la, retrazê-la, refazê-la, entregar de volta.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
89
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
6.2.3. A personagem “em positivo”: a perspectiva a partir do que a
um espaço vazio que acalma e prepara: Inês – aplicação do nome na borda direita,
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
90
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Ela é uma menina e carrega um bebê no colo, um bebê que com ela forma um
Inclinadas, estão com pena? Todos os olhos fechados não oferecem resposta além
gem criança, estando cada qual em planos separados na imagem, escuro e claro
a ideia de infância com a qual a obra Inês conversa. Aquela que, nas palavras do
em negativo – que não fala, que não pode, que não sabe.” que dá lugar a um novo
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
91
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A imagem da página 2 pode provocar no leitor uma sensação diversa da acima
referida. Cumpre lembrar que os múltiplos olhares para a mesma imagem cons-
tão ricamente tecida quanto incompleta. A associação de sentidos, vale dizer, es-
gina 2 –, que pode conduzir o leitor para uma semiose no sentido da coalisão
pode ser olhada como origem de uma cadência de anteparos pretos que só aca-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
92
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
baixo, apoiando a silhueta da personagem. Será que este grupo silencioso pode-
ria representar a presença adulta disponível para cuidados para a menina com
um bebê? Olhos fechados como sinal de expressão de suas próprias dores com-
o ponto de cor vibrante da dupla. Pulso simbólico de sentimentos intensos por vir.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
93
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Nas páginas 4 e 5, o fundo neutro inteiro continua, vindo da página virada,
escuro um objeto branco e modular formado por figuras simbólicas, que pode-
Quanto aos signos icônicos, que Pierce distingue dos ícones, já pos-
suem um grau de atualização sígnica, no sentido de intentar, represen-
tar-se a si mesmo com signo. Esses oferecem parâmetros para a análise
de algumas formas de linguagem. São as imagens, os diagramas e as
metáforas. (CUNHA, 2009, p. 64)
prenuncia a grande quantidade de relações simbólicas que esta história vai tra-
zer. Como todo, a forma do objeto remete a simbologias medievais, tais como os
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
94
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
efeito que efetivamente produz). Há uma gama de possibilidades: desde
contemplação estética (primeiridade) até a ação intempestiva de fechar
um livro (interpretante energético) ou uma reflexão e compreensão in-
telectual do signo (interpretante lógico). (CUNHA, 2009, p. 143)
vista infantil
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
95
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Dar a voz narrativa a uma personagem criança para recontar uma história tra-
dicional, de cujo centro temático irradiam morte, ciúme e traição, e por isso po-
deria ser entendida como inacessível para as crianças, é a força principal desta
gens que compõem o livro, de olhares abertos para o universo vasto do simbólico,
ção que apresenta (e representa) este “eles” ao leitor, na página ao lado. A inter-
do – “eles” – (cada um com seu coração aplicado nos corpos) e há também um rei,
entre os dois, que, por meio de seu olhar fechado e sisudez sem sorriso, demons-
tando-se como “escondida no meio de outras coisas”. Por “coisas” vamos conhecer e
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
96
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
associar aquelas relacionadas na frase seguinte: curva de brisa, alga vermelha, briga
significantes, objetos e detalhes que fazem parte do cotidiano das crianças, é pró-
prio do que chamamos de cultura das infâncias. A transformação costuma ser li-
em sequência sem obedecer a uma linha sintática dentro do texto, o autor imita
longo do texto, por vezes alteradas em um ganhar de novos sentidos, como uma
brincadeira de trocadilhos (brisa por briga, alga por algo), mas, como representa-
ção em imagem, vão aparecer apenas na página que encerra a história, quando o
s
Curva de bri a, alga vermelha, bri ga de passarinho. (p. 6)
Briga de brisa, curva de passarinho. Algo vermelha. (p. 13)
Briga vermelha, curva de alga. (p. 22)
Podemos dizer que esta apropriação, feita pelos autores, de elementos da natu-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
97
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
podem ainda ser ampliadas quando observamos este trazer através da dimensão
introdução de Inês, uma história de origem remota, pode ser capaz de estabelecer
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
98
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
é possível fazer leituras com teor de transcendência, à medida que o texto levanta
nascer. A escolha, pelo autor, das palavras “andava escondida” sugere um estar onde
tem movimento (andar) e brincadeira (esconde), enquanto não se está visível. Esta
no meio de outras coisas quando ainda não era uma vez” é um enunciado literário e
poético suficientemente aberto para ser lido sem sugerir identidade com nenhuma
aqui, por hora, a título de exemplo: a personagem pode estar em outro plano es-
2006, p. 36). O que há é o espaço para a recriação: “O espaço construído por meio
e este outro pode ser outro leitor e também os autores do livro, por que não? –
16 Toma-se aqui, como “realidade”, para as crianças, “o efeito da segmentação, transposição e recriação
feita no ato de interpretação de acontecimentos e situações. O que torna a vida uma aventura continua-
mente reinvestida de possibilidade.” (SARMENTO, 2002, 13).
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
99
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
trazemos a abordagem social das infâncias e podemos ver emergir, na variedade
narrativa, pelo mesmo leitor. Este, na evolução de suas experiências com os livros
pode acontecer no âmbito das relações da criança com a cultura e com a arte, es-
como meio, ainda dentro da concepção geral das infâncias como categoria social:
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
100
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
conhecimento do mundo, (...) corresponde a um resgate do sensível na
interação com a natureza e com os outros. O imaginário infantil é um
fator de conhecimento, e não uma incapacidade, marca de imaturida-
de ou um erro. (SARMENTO, 2002, p. 16).
inícios consagrados dos contos de fadas clássicos, o “Era uma vez”. Porém, a frase é
não se trata de um texto integrante do cânone estabelecido, e também por não conter
o fantástico, um dos atributos que define estes contos, em que os andamentos e ações
que vive, é natural que o ser humano tenha precisado sempre de mediadores má-
gicos.” que existem “entre ele e a possível realização de seus sonhos, ideais, aspira-
ções.” (COELHO, 2012, p. 85). Por outro lado, a associação ao imaginário dos con-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
101
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
É válido dizer, com Bettelheim, que eles (os contos de fadas) suscitam
as eternas perguntas filosóficas, e supor que as respostas que dão são
apenas índices, que suas mensagens podem conter soluções, mas que
estas nunca são explícitas? Estou convencido de que é certo o que ele
sustenta se falarmos das crianças de hoje. (GOLDIN, 2006, p. 70).
é apenas das crianças que tratamos quando tratamos das crianças.” (SARMENTO,
2002, p. 16), também entusiasma a Profa. Nelly Coelho, com base na detecção de
que este resgate é necessário, principalmente como amparo, diante dos cenários
políticos, sociais e privados controversos que vivemos, com efeitos negativos para
o desenvolvimento infantil:
A referência aos contos maravilhosos ou de fadas evocada pelo “Era uma vez”
pode ser, portanto, acolhida, e ganha valor à medida que a voz infantil se coloca
importância à sua própria história, aquela que começa por contar, a partir de dado
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
102
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
acrescenta ao texto, com verossimilhança, um ritmo narrativo que a torna presen-
gesto e da oralidade
seus jogos de voz e memória, quando ele “busca o equilíbrio entre a situação pre-
o livro propor recontar uma história tradicional de transmissão oral, cuja origem
o agora do reconto por uma nova voz, que se junta a outras tantas que preenche-
Profa. Maria Zilda da Cunha resgata o medievalista Zumthor17 para levantar esta
17 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
103
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
O jogo de paradigmas em constante conexão com múltiplas janelas de significa-
do, artisticamente trabalhados por meio de uma linguagem polifônica, parece for-
tificar as asas da literatura infantil para voos cada vez mais ilimitados, sem nunca
Seguindo pistas até aqui examinadas, damos continuidade à nossa leitura ana-
lítica, trazendo agora um olhar atento para os recursos gráficos, das páginas 6 e 7
da obra Inês.
cos, apoiando visualmente a atmosfera provocada pelo “Era uma vez”, no tex-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
104
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A diagramação chama a atenção no que se refere à quebra de linhas e disposi-
ção das frases. Sendo o texto uma prosa poética, a forma resultante da diagrama-
ção pode provocar similaridade com a forma comum às poesias de quatro versos.
Se pensarmos na leitura em voz alta, ela contribui inclusive para a cadência fo-
posicionamento da frase “eu ainda não era uma vez.” Ela fecha uma espécie de
18 Concebida por Firmin Didot, e produzida em 1784 pela Fundição Didot, a tipografia Didot é
considerada a primeira tipografia romana neoclássica. Ela apresenta o eixo vertical bem marcado,
alto contraste na espessura das hastes e serifas ultra-finas e perpendiculares às hastes. Seu desenho,
em busca de uma beleza racional, obedece à rígidas proporções matemáticas e se afasta de tipografias
similares à caligrafia.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
105
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Convivências paradoxais, em contraste e harmonia, tal como a história que
ção visual entre o bloco de texto e imagem pode ser verificada principalmente nas
páginas 13, 40, e na dupla 42-43, quando as personagens Beatriz e Inês aparecem
gina anterior a elas. Na página 40, por exemplo, o traço que desenha Inês é claro
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
106
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Variações como essa, que exploram a relação entre as sensações visuais e aque-
densidade, como movimento e cores, ao longo de todo o livro, como será aborda-
Dois homens usando coroas – o que remete iconicamente à ideia de que eles
são monarcas – e uma mulher sem coroa. Os olhares entre o casal, os sorrisos su-
figura do rei, monoforma no meio do casal, impõe-se séria, carrancuda, olhar fixo
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
107
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Os olhos dos três os aproxima, por semelhança e alinhamento. Ela carrega o
coração no rosto, rente aos olhos, invertido, pequeno, o que podemos relacionar
ou à forma da lágrima e choro vermelho que há de vir por causa do amor impe-
dido. Ele carrega o coração no peito, bem maior que o dela, intenso. De costas,
ele esconde o coração da vigília do rei. Ela o exibe, sem o ver ela própria.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
108
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
presença do amor na cena “de quando eles se conheceram”, e pode conectar o
leitor à história pela imagem e suas janelas de sentidos. Pelo texto, sabemos que a
A coroa, as botas e o cavalo são silhuetas pretas que, logo no primeiro olhar,
podem ser associadas visualmente entre si pela forma e cor, um vínculo formal
que pode acontecer também do ponto de vista semântico: são três elementos que
O ponto focal da ilustração, a cruz, iluminada pela cor amarela – que pouco
rei, ela pode simbolizar poder e ocupa um lugar de força visual perante os cora-
val e monárquico são as vestes dos personagens. Elas contribuem para a hierarquia
entre eles, atribuindo maior força visual à figura do rei, adornado e destacado pela
cor roxa. Podemos perceber o trabalho de associação entre ficção e realidade reali-
zado pela ilustradora que, com base na pesquisa e entendimento da cultura da épo-
ca, simplifica o traço sem deixar de ser fiel à referência real da época.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
109
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
6.2.5. O trânsito de representações entre os tempos da narrativa
narradora revelam similaridade entre si. Eles estão se recebendo, braços abertos,
e homem, filha narradora e seu pai. No texto, a ausência de artigo na frase “Meu
da página: cachorro, cavalo, javali, lebre, pássaro e cervo, todos coloridos, assim
como o manto de Pedro: vermelho, cor que retorna na gotícula de sangue do ja-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
110
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
análise, intensifica a cena ao mesmo tempo que se apresenta como signo pluris-
Na segunda frase do texto que compõe esta dupla das páginas 8 e 9, o artigo
definido “o” retoma Pedro, mas já estamos em outro tempo da narrativa, um tem-
mento da voz narrativa que relembra o passado. Tempo, portanto, também des-
Embora a narradora ainda não “era uma vez”, o “era” do primeiro verso já marca
o espaço épico. É também pelo tempo verbal que o tempo da narrativa se desdo-
bra: no verso “Olha o Pedro voltando da caça!”, o imperativo evoca tanto diálogo
ação esta que está acontecendo no momento da leitura. Esse jogo linguístico e vi-
dentro da história, sem a necessidade de uma lógica linear para que o entendi-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
111
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
e também nos demais capítulos, que aqui aparece de maneira singular ao traba-
rativa quanto no jogo dos tempos diversos: o cão de caça e o javali da página 8,
assim como o cavalo, estão no tempo da chegada de Pedro, que é recebido pela
no tempo da caça, da qual nada o texto diz: da caça só sabemos que teve como
resultado um javali abatido, fato contado pela imagem. A flecha, arma emprega-
da, ajuda o leitor a se situar no tempo histórico: é anterior a armas de fogo. O ca-
dáver do animal talvez evoque a contradição com a vida que emana do encontro
entre pai e filha. Entre eles, nesse agora que se presentifica, não há morte: ela está
2017, p. 223). Por isso o animal é relacionado à fecundidade, aos ritmos da vida,
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
112
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
diurno, de tudo que é solar. Símbolo de prudência, velocidade, prontidão: caracte-
suas formas. Este é o mundo do grande mistério, onde a vida se refaz através da
por serem velozes. Sol e Lua, dia a noite, velozes. O tempo é veloz. Assim como
o voo do pássaro. Este, por sua vez, é por si só também sinônimo de mensagem
dos céus, de presságio, da relação e equilíbrio entre céu e terra. Mas este pássaro,
vezes como fadas, como aquelas dos contos de faz de conta. Segundo Chevalier e
Gheerbrant (2017, p. 107), no azul, cor mais profunda das cores, também a mais
fria e mais pura, “o olhar mergulha sem encontrar qualquer obstáculo, perdendo-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
113
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 39: Página 16 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.
criança-leitora, que simboliza a cor azul assim como simboliza, veremos a seguir,
olhos fechados, como se as histórias ali já tivessem se encerrado: ela não vê, es-
pera; já não sente, está; não há mais espaço para novas cores. A última foi incor-
porada. É assim que Inês será também representada adiante, aproximando o azul
da significância do luto e da morte. Está já morta para Pedro e Inês? O olho dele
presença simbólica que confere unidade à obra. A representação desse olhar pas-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
114
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
cercado de morte tem tons sombrios (marrom, kraft e preto, principalmente), en-
não brancos, apresentando somente os traços, como se fosse preparada uma folha
Esse mesmo contraste entre dois tempos, duas realidades, destaca-se em pares
O pai de Pedro não queria que ele visse Inês nunca mais.
Nem o cardeal,
nem os conselheiros,
nem o povo,
nem ninguém queria.
Só eu e meus irmãos, ou não teríamos nascido.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
115
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Embora iluminado, a posição de Pedro na ilustração revela obediência, respei-
to, além de tristeza e luto. Luto pelo quê? Por Constança ou pela decisão do rei?
Pedro estava cercado, qual Hamlet, de luto, escuridão e dor. A luz em Pedro, traz
tensão – texto verbal e imagem engendram uma significação capaz de levar o lei-
caso também na página 29, da sua memória. Para dar conta desses dois tempos,
filhos que ainda viriam. Do pretérito perfeito próprio das narrativas em primeira
pessoa e do imperfeito ao qual pertence o “era uma vez”, saltamos para o futuro
tudo que chamaram de traição e adultério, a menina está. Ela é presente. Metalin-
guisticamente, podemos perceber aqui mais um jogo, a fim de que o leitor possa
identificar o olhar sem juízo de valor da narradora. O fato é que nós conhecemos
A obra Inês consegue, com maestria, através da voz da menina narradora, su-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
116
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
mesmo tempo a uma criança em um contexto medieval e contemporâneo, ofe-
com as ideias e visões que brotam da sua narrativa poética e fragmentada, cheia
Sob a ótica medieval, pode ser uma criança-adulta em miniatura a quem nada
é poupado, com responsabilidades no mesmo nível dos adultos e cuja vida e par-
ticipação na sociedade tem pouco valor, como nos relata o historiador Phillippe
Ariès (1960) sobre a visão predominante sobre as crianças até o século XIII e XIV,
Ao mesmo tempo, ela pode ser também criança contemporânea, dona de seus
saberes e culturas que a permitem posicionar-se diante dos fatos, agente no con-
texto da comunidade a que pertence: não a da Idade Média, mas esta, a nossa,
temas, mesmo os mais difíceis, segundo seu repertório próprio, muitas vezes de
maneira lúdica, imaginativa, e dele se fortalece para dar o apoio afetivo àqueles
que ama e a si própria, a cada presente e cada situação de amor e dor que relata
terior, enquanto juízo de valor, a esse moralismo intensificado ao longo dos sécu-
Um dos recursos de linguagem que o autor usa para conseguir o trânsito en-
dito e evita discriminações (CUNHA, 2009, p. 114) como verificamos no item 6.2.4.
Assim como recontar atualiza a fábula ou, em aspecto mais amplo, o mito lite-
cena presente, a fim de contribuir para o que ela quer contar daquele momento
específico, sem que passado e futuro sirvam como justificativas ou simples mar-
cos temporais na cronologia dos fatos. Nesse viés, escrita e leitura seriam faces de
voz desta narradora? A resposta pode vir de uma reflexão amplificadora sobre o
mito como narrativa para crianças pequenas, colocada pela professora Maria José
verdadeira voz infantil não precisa do passado. O mito? Fica disponível para ser
tempo presente, que pode, por que não, conter o mito em si, como ela totaliza
esta visão, o espaço do texto é para ser decodificado, e não mais entendido (do
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
118
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
6.2.6. A visão infantil embrenhada da poética e da narrativa
gada à visão infantil apropriada pelo livro. Sobre o fundo neutro, kraft, os olhos
é sutil, parecendo querer unir texto e traço no discurso que, agora, é histórico.
vozes: ouvintes que questionam, que interpelam, que ouvem a história contada,
assim como o leitor. Cria-se, assim, uma rede afetiva com aquele que escuta a his-
animais indiciado pela posição das patas. O conteúdo verbal coloca-se alinhado à
zando também a comitiva e sua origem: vieram de Castela, como conta a História
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
119
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
narradora nessa fila, movimento similar daqueles observados nas capas e páginas
de guarda.
mãe da narradora. Pedro está ali, a certa distância, e observa o cortejo. Um diá-
logo, sem marcas de enunciação (como verbos, travessões e aspas) na página 11,
Em potência, o diálogo parece ser travado entre uma criança e um adulto, uma
vez que essa voz deixa transparecer juízo de valor ao relacionar Constança como
agora, ele movimenta o olhar à procura de Inês. Ela também está na comitiva.
seja posto no mesmo tom sereno dos demais temas, e deixa espaços para excluir
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
120
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Inês é diferente das demais amas. Sua proximidade com o jumento, único
entre os cavalos, talvez possa ser vista como uma leitura visual da personagem:
VALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 94). Mas tal proximidade pode ser entendida
como negativa: o jumento traz os pertences da princesa. Seria Inês também pro-
priedade dela?
Na voz da menina, o sorriso que a moça deu quando o príncipe fez a carrua-
gem parar não tem maldade, como não tem traição no sorriso que Pedro dá em
curva, passarinho, algo e vermelha, que agora tem alterada sua classe gramatical:
aqui é verbo que torna rubra a face de Inês. O contraste de um sentido lógico
para os novos pares de palavras corrobora para o sentido que o vermelho pare-
brisa, curva de passarinho”. Tal amor só tem como testemunha o olhar do cavalo.
Podemos observar, além disso, a hibridez de tempos narrativos, uma vez que
esses instantes poéticos assumem tendência ao eterno presente das coisas, modo
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
121
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
e efeito próprios do gênero lírico. O pretérito, marcando a distância da coisa nar-
rada, manifesta-se na prosa narrativa. Isso não quer dizer que não há um tempo
narrativa, mesmo que estes sejam cronologicamente anteriores a ela. Assim, mes-
que incorpora as vivências ao livre jogo das significações, graças ao qual se opera
fantil, mais facilmente seduzido pelos encantos e distrações. Assim como referen-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
122
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 42: Páginas 12 e 13 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.
12, mas sabemos, pela cronologia natural dos fatos: cada página abriga um tempo,
em que a narradora olha para trás, para o passado. Ela imagina então aquela cena
figurada? Sonha? Idealizaria ela tal acontecimento, ou busca olhar o amor do ca-
vêm as imagens e palavras que compõem o material ao qual o leitor tem acesso.
estigmatizados não têm lugar, o que não quer dizer que não haja consciência e
percepções por parte dela, criança apoderada e articuladora de seus saberes. Para
“Pedro, o Desobediente”
“Pedro, o Confuso [...]”
“Pedro, o Mentiroso, foi é encontrar Inês”
“Pedro, o Apressado, bateu em disparada.”
“Até que Pedro, o Resoluto, alcançasse a torre.”
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
123
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 43: Páginas 14 e 15 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.
tor a participar com ela de um jogo de palavras que evocam significados que nem
sempre caem bem à expectativa de qualidades de um pai (ou de um rei), mas que
alcunhas lúdicas, mantendo intacta a afetividade sobre a qual todo o texto está
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
124
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A compreensão dos fatos e papéis dos adultos pela narradora, por meio da afe-
pontos que permite o reconto de um mito que traz temas tão difíceis trabalhados
com beleza e diálogo conectados com as culturas infantis. Trata-se, sem dúvida,
de uma recriação do mito literário de Inês de Castro que enfatiza aspectos hu-
manos, vistos não com distanciamento histórico, mas com uma aproximação que,
contínuo e linear, as imagens são sempre descontínuas. Apenas com o texto visu-
al, não há como avaliar quanto tempo se passou entre as duas ilustrações.” (NI-
obras como Inês, na qual (a) a narrativa perde seu caráter linear e contínuo nas
deixar transparecer a passagem do tempo, uma vez que distorce o tempo crono-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
125
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
narrativa” (NIKOLAJEVA; SCOTT; 2001, p. 221). Na obra, parece existir não só a
ção comum pelas crianças. Nesse sentido, estaríamos pensando a infância aproxi-
“O hiato entre voz e linguagem (como aquele entre língua e discurso, potência e
ato) pode abrir o espaço da ética e da pólis precisamente porque não existe um
árthos, uma articulação entre phoné e logos.” (AGAMBEN, 2018, p. 16). O filóso-
si. Agamben (2018, p. 111) parte de uma concepção de história “sempre acompa-
nhada de uma certa experiência do tempo que lhe está implícita, que a condicio-
De fato, a leitura inicial das autoras (NIKOLAJEVA; SCOTT; 2001, p. 221) está
ses curtas a elipses longas, respectivamente. Sua obra Livro ilustrado: palavras e
portanto, que dizeres como “alternar cenas e resumos acelera ou desacelera a nar-
rativa.” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 221) não dão conta dos tempos e níveis discursi-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
126
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Em um livro ilustrado, na maioria das vezes, os padrões de duração ver-
bal e visual estão em conflito. A combinação temporal mais comum é o
resumo verbal (tempo da história mais longo que o tempo do discurso)
e a pausa visual (tempo da história zero, tempo do discurso indefinida-
mente longo). Enquanto as palavras incentivam o leitor a continuar, as
imagens exigem que paremos e dediquemos um tempo considerável à
leitura da ilustração. (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2001, p. 221)
Podemos entender que essa dinâmica pode ser posta em questão, por exemplo,
senta Pedro e Inês. Entre a menina e o casal, um rio. Interessante observar, nessa
perspectiva, a posição dos dois peixes que, embora o nítido movimento das águas,
de rosto, modificado aqui por um traço mais infantil, rascunho quase, inclusive
ainda sem alguns elementos que são incorporados à história, como a Lua e os
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
127
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Na matéria verbal, descobrimos: os peixes cochicham. Mas o quê? Comentam
para representar essa triste notícia: são os peixes os mensageiros, forma fantasio-
sa que visa, talvez, amenizar a primeira das duas situações de morte e luto que a
narrativa apresenta.
A morte poderia ser vista, então, como a curva de rio? Cachoeira, catarata ou
foz? Como uma etapa de uma vida. Será por isso que a menina sorri, mesmo com
está escondida dos irmãos e se perde em si mesma, como ela narra dentro do
nho nas mãos. Ao virar da página, na dupla vermelha 32 e 33, ela vem encontrar
a mãe perto da fonte. O movimento dos cabelos sugere que ela chegou correndo.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
128
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Vemos os conselheiros do rei que cercam Inês, de quem não temos os rostos, só
parte do corpo suficiente para identificá-los como homens da corte. Mas a maté-
registros originais, além de outros cujo nome a História não se recorda. Texto e
imagem deixam evidente a presença testemunhal dos filhos para a cena dramáti-
ca. Um dos conselheiros empunha uma adaga, a menina não sabe qual: “Álvaro,
Pero ou Diogo [...]”. O rio do tempo, que não sabemos se vem ou se vai, de azul se
torna vermelho.
ta dupla de páginas, salvo poucas folhas em azul e verde. Nesse painel, o verme-
única de olhos abertos. À frente dela, corre um rio rubro e opaco, vindo da ferida
xes. O pássaro preso nas mãos escapa: o universo escapa, perde-se o tempo e o
espaço. Inês também tem os olhos fechados. Sua súplica, de “tristes e piedosas
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
129
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
mais que a própria morte a magoava” (CAMÕES, 1980; 252, Canto III, 124-5),
Conta a lenda que a Fonte das Lágrimas, no rio Mondego, foi formada pelas
lágrimas derramadas pela morte de Inês; que o sangue que jorrou do ferimento
água, “reservatório de vida”, carrega dele seus sentidos: “a alga simboliza uma
vida sem limite e que nada pode aniquilar, a vida elementar, o alimento primor-
tido per se, evocando-se aí sua dimensão com o sagrado, aquilo que transcende
a experiência biológica do sujeito, fazendo dele, ser mortal, também ser cultural.
que é hoje.” (ELIADE, 2016, p. 11, grifo do autor). Em Inês, não apenas o mito
guês: “Agora Inês é morta.” Recurso intertextual esperado, sua inclusão não se dá
(ser, não está, porque a morte, de forma certa e definitiva, é) que muda do preté-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
130
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
o momento em que a expressão é apresentada, movimento que parece sugesti-
refere usualmente à coroa que Inês de Castro recebeu postumamente, mas aqui o
momento é anterior à coroação. Nesse ponto, é tarde para quê? Para tudo talvez,
para o universo que escapava de suas mãos de pequena menina, que perdeu não a
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
131
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A partir de agora, o mundo está azul para ela. Frio, imenso vazio. Importante
enquanto, ao mesmo tempo, a ilustração parece pedir licença poética para con-
fundir os filhos da rainha com anjos que velam o corpo da mãe, o ventre adorado.
desenterrar um cadáver não foge da lógica? Entretanto, a decisão que parte do rei
não é questionada. Vê-se a força da ordem pela postura e dedo em riste. Na outra
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
132
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Na página par, Inês está sentada, porém a cor da pele informa: ela está morta.
O céu é extensão da morte de Inês, inteiro azul, vazio. Essa última observação,
embora aparentemente óbvia, não é: somente nessas duas cenas o céu é retratado
azul. Representação realista ou licença poética? Não é assim também a vida? Por
Pedro, o Justo.
O cavalo negro, que outrora trouxe o javali morto, agora traz pai e filha, que se
entreolham no mesmo olhar de soslaio que cruza a obra como linguagem e estilo.
querem ver a coroação da rainha morta. Percebe-se como as duas cenas parecem
Por fim, na cena da página 39, vemos uma multidão se aproximando da rai-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
133
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
semblantes são os mais variados: de lágrimas de luto a olhares de piedade, temor,
talvez. Alguns olhos estão fechados, por respeito ou oração. O rei Pedro, mistu-
rado à multidão, vigia toda a ação. Todos esses elementos minimizam, mas não
ocultam, a presença da morte na cena. Ela está ali, sentada, a morte e Inês, ambas
coroadas no trono, Inês não apenas morta, o azul nos lembra, mas já em processo
de putrefação, sugeridos nos aspectos das mãos, rosto, marcas que não são só do
e esperança em diálogo com o fato narrado, até o final do livro, como se verá no
seu campo de brinquedo e cultura infantil. Essa confiança, que envolve conheci-
dobramentos dos mais complexos, é instrumento para a visão das infâncias que
o nosso tempo e suas transformações impostas nos exige, e para o qual Buckin-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
134
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Não podemos trazer as crianças de volta ao jardim secreto da infância ou
encontrar a chave mágica que as manterá para sempre presas entre seus
muros. As crianças estão escapando para o grande mundo adulto – um
mundo de perigos e oportunidades onde as mídias eletrônicas desempe-
nham um papel cada vez mais importante. Está acabando a era em que
podíamos esperar proteger as crianças desse mundo. Precisamos ter a co-
ragem de prepará-las para lidar com ele, compreendê-lo e nele tornar-se
participantes ativas, por direito próprio. (BUCKINGHAM, 2000, p. 295)
passagem
corpo. Toca amavelmente os cabelos da mãe. Tem os olhos fechados, o que pode ser
interpretado de várias maneiras, como por exemplo na crença popular, que diz que
os gatos fecham os olhos para dizer “te amo”; ou ainda como maneira de visualizar
memórias. Inês está inteira azul — a morte, quando toma para si, toma por com-
pleto —, com exceção dos cabelos, roupas e coroa: tudo é enfeite, embalagem.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
135
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
A cena mescla o tom de afeto da filha para com a mãe com o grotesco da situa-
destaque na fila dos súditos trazem insígnias no pescoço, apontando suas tradi-
ções, com destaque para a cruz semelhante à que o rei Adolfo trazia na página 7.
Quase oculto ele se mistura ao fundo vermelho. Seria esse momento também
uma vingança para a menina — como o é para o pai — ela, que até pouco trazia
indica que a filha o soltou, como quem deixa ir, pássaro e mãe?
histórias serem tão importantes para a humanidade, responde que elas podem re-
Claro que é “preciso distinguir entre mitos que têm a ver com a seriedade da vida,
vivida em termos da ordem social ou natural, e histórias que lidam com alguns
mitólogo cita os contos de fadas, histórias que, mesmo apresentando algumas ve-
zes final feliz, tratam dos obstáculos que ocorrem no percurso, espécies de ceri-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
136
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
uma boa razão para aceitar que crescer, afinal de contas, tem o seu
lado agradável. Muitas das histórias dos irmãos Grimm representam a
menininha paralisada. Todas aquelas matanças de dragões e travessias
de limiares têm a ver com a ultrapassagem da paralisação. Os rituais
das primitivas cerimônias de iniciação têm sempre uma base mitoló-
gica e se relacionam à eliminação do ego infantil, quando vem à tona
o adulto, seja menina ou menino. A coisa é mais dura para o menino,
já que para a menina a passagem se dá naturalmente. Ela se torna mu-
lher, quer tenha essa intenção, quer não tenha, mas o menino precisa
ter a intenção de se tornar um homem. (CAMPBELL, 1991, p. 237)
Esse rito de passagem, dirá Campbell, falta aos jovens contemporâneos, distancia-
dos que estão do(s) mito(s), seus sentidos e significações, pelo esvaziamento das ce-
colo da mãe, na imagem da página 39. O beija-mão, para a menina, pode ser aqui
vida de Inês para a morte, da condição de filha de Inês para não mais.
acolhe nosso olhar, vemos Inês representada a um só traço, aquela “que depois de
ser morta foi rainha” (CAMÕES, 1980, p. 249, canto 118-8). Inês, com coroa e asas,
descalça, sorriso no rosto, figura-se livre, inteira, intacta. Ela está acompanhada
pelo pássaro. Era ela o pássaro, o tempo todo? A mãe pássaro que a filha tentou
proteger na brincadeira com seus irmãos e depois precisou soltar, quando testemu-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
137
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 50: Páginas 40 e 41 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.
aponta outro rito: o velório da rainha. Se alinhavarmos essa dupla com a anterior
terro ritualiza a separação. À esquerda Inês está recuperada e livre do azul escu-
O segundo, a Lua, pela primeira vez crescente dentre as seis vezes em que é repre-
sentada ao longo da obra. Na anterior, página 23, ela aparece na sua face nova, como
que se fosse aquele o início de um novo ciclo depois de tanta adversidade. Tal leitura
pode ser feita à luz do afirmado por Campbell (1991) acerca de ritos de passagem
da vida infantil para a vida adulta. “As fases da Lua e o crescente evocam a morte e a
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
138
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Uma das formas mais características dos movimentos da Lua: símbolo,
ao mesmo tempo, da mudança e da restituição das formas, o crescente
lunar está ligado à simbologia do princípio feminino, passivo, aquáti-
co. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2017, p. 300)
Inês, pode ser crescente ou minguante, a depender da posição em que é vista, como o
amor, “fogo que arde sem se ver”. Quiseram matar sua vida, mas quiseram mais “Ma-
tar do firme amor o fogo aceso.” (CAMÕES, 1980; 252, canto III, 123-4). De Artémis/
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
139
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FIGURA 52: Páginas 42 e 43 da obra Inês
Fonte: Mello e Massarani, 2015.
sozinha na página direita, separada do resto do livro e do passado que ficou atrás,
por uma página de azul infinito enfeitada com as algas que estavam com as coisas
sível, nessa comparação, assinalar como a percebemos maior, com o mesmo ves-
tido, e, agora, com mangas emendadas. Os cabelos, antes trançados, estão soltos;
do luto. Algo que, pela força da linguagem, subverte a célebre expressão popular:
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
140
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
As expressões e posições do corpo da menina, inclusive quando comparada
no livro, com um novo status da personagem, aquela que deixa de ser predomi-
nantemente a filha de Pedro e Inês, para ser ela mesma, identificada pelo nome
pela primeira vez, no final do livro (página 42), quando é chamada de Beatriz.
Beatriz”).
— Beatriz!
Alguém me chamou.
— Alguém me chamou?
A voz que chama por Beatriz é a mesma voz que chamou por Inês na pági-
ao mesmo tempo, abre novo nível do discurso narrativo, como já foi lido em ou-
tros trechos. A diferença aqui é que Beatriz, sozinha, desdobra os níveis de sua
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
141
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
em outras passagens da história esses desdobramentos eram sutis, no que diz res-
peito a tempos verbais, por exemplo, agora os interdiscursos estão claros: é como
Por meio dessa perspectiva, o mito literário de Inês é construído também sob
co, invertendo o apelo da explicação fantasiosa da cor do rio, isto é, que as lá-
grimas derramadas por sua morte teriam criado a Fonte das Lágrimas e que “as
razão do fato real: as algas, o sangue de Inês, o sangue de Beatriz. Morre o mito
pre chorou”.
Não se trata de julgar ou estabelecer limites ao mito literário, mas antes ampliar
cor” evoca a totalidade do tempo, o que se confirma a seguir, no “antes andava es-
reforça a ideia de seguir em frente, mas sem tirar os olhos de tudo que foi.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
142
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Antes de virar a página 43, que encerra a história, o leitor atento vai observar
que Beatriz não está sozinha: o pássaro que esteve em suas mãos, na cabeça do
pai, na paragem da quinta, no trono da rainha morta, no voo da mãe, está ali, no
canto superior direito da página. Longe, guardião. Foi ele que a chamou?
A página 44 traz uma imagem que pontua o final. Depois dela, posfácio e bio-
grafias. Trata-se de uma página inteira vermelha, chapado sem textura, sem lugar
nem tempo, onde duas figuras femininas desenhadas a traço conversam. A histó-
ria de Inês em sua sobrevivência. Atestada pela via das conversas informais, dos
tes, das artes transparentes e ocultas presentes nessa página, e para além dela.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
143
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
as infâncias e livros de literatura infantil recentes, com vista às mutações que viven-
principalmente nas áreas de pesquisa das ciências sociais e da produção literária. Pu-
demos registrar alguns modos de manifestação das narrativas para a infância e con-
tribuições para o seu fazer como testemunho de uma ampliação inovadora das expe-
riências que uma literatura polifônica para a infância pode criar ao longo dos tempos.
que tecem o enredo para consolidação da tese de que a literatura infantil tem sido
res de sentidos. Através da voz de Beatriz, essa personagem narradora que revela,
transita e compartilha seu poder infantil agigantado com os leitores, foi possível
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
144
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
espelhar imagens das infâncias como as investigamos, que hão de disseminar sua
Daniel Goldin:
diversos formatos, assim como do pensamento das ciências sociais, tem sido a
e observação das vozes das crianças. Por meio da relação entre resultados de
do elenco de cronistas que nos premiam com textos que já fazem parte do pa-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
145
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
envolver em situações que nos leva, como leitores, a nos reconhecer e participar
alguns adultos que, em sintonia com culturas infantis, são capazes de criar e ex-
pandir a partir do existente. Estes livros luzem a mágica de ser janela aberta para
cruzar vento entre realidades e imaginações. Vento forte que sustenta, e nele é
publicações editoriais, que tem sido colocado como contraponto para as ideias
a literatura não se realiza, como arte que é, ao preocupar-se com limites pres-
vivida e revisitada para a concepção de sua obra, se ele assim o quiser. Sob esse
Algumas razões a partir das quais esse pensamento se solidifica são compreensí-
veis, e bons livros já foram criados a partir dessa premissa. Porém, as reflexões expos-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
146
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
conhecer e aprender sobre a universalidade e as particularidades do destinatário, ao
com o universo de cada novo projeto de livro – e aqui nos referimos ao projeto do
livro como um todo, desde a concepção até a arte-final pronta para ser lida. Ao longo
desta pesquisa, foi possível perceber que é sobre esse campo tão livre a ponto de caber
a escolha pela relação com outros – como condição para que seja vivo e possa trans-
e como esta carta será recebida, é efeito da natureza de qualquer exposição públi-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
147
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Considerando o cabedal das pesquisas sobre a literatura e seu caráter mutan-
Por enquanto, podemos entender que esta “converseira” pode deixar seu eco
nero. Que não se tema esclarecer uma ciência pela outra.”, com a crença de que a
crianças possam se tornar adultos que machuquem menos uns aos outros.
do livro Os dias e os livros, de Daniel Goldin, escrito por Ana Maria Machado:
ção efetuada pelo leitor, já que a linguagem não é unívoca nem transparente, e
com isso dá direitos e poderes a quem lê. Esse diálogo potencial entre adultos e
crianças por meio da literatura infantil representa uma esperança. Como nenhu-
ma outra criação cultural pode propiciar uma redefinição da relação entre eles, a
res não mais baseada no autoritarismo adulto.” Cientes de que podemos celebrar
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
148
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Contribuir para os estudos sobre literatura infantil e suas possíveis relações com
universo além das suas páginas. Literatura infantil, literatura, é arte que se origi-
abre novamente, para o leitor deste texto sobre literaturas, infâncias e exercícios
imaginativos.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
149
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
REFERÊNCIAS
teoria
ELIADE, M. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2016.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
150
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
FERNANDES, F. [1946]. As Trocinhas do Bom Retiro: contribuição ao estudo folclóri-
HORTÉLIO, L. Criança, natureza, cultura infantil. 2016. Disponível em: http:// www.me-
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo
HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac
Naify, 2010.
2010.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
151
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
2016. Disponível em: https://acasaredonda.com.br/artigos/artigo-de-teste. Acesso
POWERS, A. Era uma vez uma capa. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
lhores leitores cada vez mais cedo. Revista ROALE Sede de Ler. UFF, Ano 5, n.5,
set. 2018.
leira (Pub), Quem Está na Escuta: Diálogos, Reflexões e Tocas com Especialistas
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
152
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
pedagogias interculturais na infância. Petrópolis: Vozes, 2012.
VAN DER LINDEN, S. Para ler o livro ilustrado. Trad. Dorothee de Bruchard.
WOOD, J. Como funciona a ficção. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac
Naify, 2008.
Letras, 1993.
obras literárias
LISPECTOR, C. Menino a bico de pena. In: Felicidade clandestina: contos. Rio de Ja-
MARTINS, I. M.; MATOSO, M. Andar por aí. São Paulo: Editora 34, 2017.
MARTINS, I. M.; MATOSO, M. Enquanto meu cabelo crescia. Lisboa: Planeta Tange-
rina, 2010.
2014.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
153
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
MELLO, R.; MASSARANI, M. Inês. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2015.
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
154
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
ANEXO – ENTREVISTAS
Roberta: Seu trabalho tem sido uma contribuição muito importante para as
reflexões sobre as relações entre crianças e a mídia, sob a perspectiva das visões
David Buckingham: Claro! Os livros são mídia! Não tem nenhum sentido –
comerciais, são lidos por diferentes públicos… Todas as questões críticas aplicá-
veis às demais mídias (televisão, cinema, games e por aí vai) podem e devem ser
mídias, como lugar dos discursos produzidos por adultos para crianças, e chama
em que esses discursos são publicados. Sobre essa produção o senhor cita títulos
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
155
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
importantes da “Era de ouro” da literatura infantil. Na sua opinião, entre a pro-
com as visões das infâncias de nossa época, incluindo a do ponto de vista da so-
inclusive) produzidos para crianças são criados por adultos; e, sendo assim, estão
fadados a refletir as ideias prevalecentes que os adultos de uma época têm sobre a
infância. Então, na literatura inglesa, por um lado, podemos ver ‘clássicos’ como
Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, como uma história de fantasia
‘atemporal’, mas, por outro, ele reflete ideias específicas da época em que foi escri-
to sobre a infância (e, por extensão, sobre a idade adulta). Podemos dizer o mes-
Harry Potter. Por um lado, eles se valem de um gênero de literatura infantil muito
mas esse mundo também reflete aspectos do mundo moderno, por exemplo, os
respectivos papéis das crianças e dos adultos, ou das meninas e meninos, e (tal-
vez menos diretamente) também ideias sobre ‘raça’. Apesar de seu sucesso inter-
de certa maneira. Contudo, não é de surpreender que nos livros infantis contem-
porâneos vejamos crianças mais poderosas, menos inocentes, mas elas também
estão mais ameaçadas e ‘em risco’ maior do que víamos em livros escritos há 50
ou 100 anos. Creio que isso também valha para as perspectivas críticas emprega-
ensaio que escrevi a respeito, considerando as mudanças nas visões críticas sobre
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
156
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
uma autora britânica para a infância muito popular, Enid Blyton. Nesse ensaio,
investigo como a mudança na recepção crítica de seus livros reflete, de modo ge-
Roberta: Em seu texto “Crescer na era das mídias eletrônicas”, o senhor afir-
inatas das crianças, elas são definidas principalmente em termos do que não são
e do que não conseguem fazer.”(, pg. 29), gostaria que o senhor comentasse se
David Buckingham: Sim, embora eu ache que devamos ter cuidado aí!
como sendo mais poderosas e mais ‘agentes’ do que costumavam ser, enquanto os
porém, não é necessariamente uma grande novidade: as crianças dos anos 1950
em Enid Blyton são muito ‘agentes’, e os adultos, com frequência, estão ausentes
nas histórias dela. Existe também o perigo de que a criança ‘poderosa’ seja uma
uma forma de levar a criança leitora para dentro o texto, como se a estivessem
bajulando, ou fazendo-a ficar do lado do autor, mas essa pode ser uma mudança
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
157
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
bem superficial. Do mesmo modo, acho que os autores para a infância podem
reivindicar uma fala em nome da criança (temos alguns bons exemplos no Reino
Unido: Michael Rosen, Malorie Blackman), mas creio que eles jamais poderão ser
que haja uma lacuna intransponível entre o autor adulto e a criança leitora.
Roberta: Durante o webnário organizado pelo Colégio Santa Cruz, de São Pau-
produção das mídias pelas crianças. Considerando que, no Brasil, assim como em
David Buckingham: Como disse antes, não vejo nenhuma lógica em sepa-
rar os livros das outras mídias educacionais. Tenho passado grande parte da mi-
nha carreira defendendo que as crianças deveriam estudar mídia – ‘educação mi-
diática’. No entanto, esse não é um argumento a favor de uma matéria à parte nas
escolas. Melhor que isso, creio que precisamos repensar como ensinamos cultura
vros, televisão, mídia digital etc.). Para mim, isso significa que precisamos repen-
toda a gama de mídia, mas também precisamos estender os conceitos críticos que
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
158
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
(representação, produção, público) aos livros. Então, por exemplo, os professores
precisam pedir aos estudantes que pensem criticamente sobre como os livros re-
torial funciona, como os livros são apresentados nesse mercado e como são lidos
audiência e criação de significados pelas crianças diante dos conteúdos que elas
deixar de lado a questão mercadológica, por que o livro em formato digital não
rativos audiovisuais?
David Buckingham: Não acho que seja uma boa ideia pensar sobre as re-
que ocorre, conforme cada novo meio ou tecnologia surge, é uma ampliação do
repertório de opções. Uma nova mídia simplesmente não substitui uma antiga:
ou um semelhante por diferentes canais, mas não se trata de uma batalha com
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
159
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
relacionamos com os filmes. E essas coisas também mudam com o tempo: por
exemplo, nos últimos dez anos, cada vez mais pessoas escutam conteúdos falados
vro impresso é um fenômeno histórico específico. Pode ser que, afinal, desapare-
ça, mas parece mais provável que a maneira como usamos os livros mude, porque
tes. Se você considerar o quanto os games evoluíram nos últimos trinta anos, eles
satisfeito. Acho que o mesmo precisa acontecer com os livros digitais – então, os
2. E
ntrevista Prof. Manuel Sarmento
novembro.2020
Roberta: A primeira pergunta diz respeito a esta conexão que eu tenho pro-
visão atual das infâncias cada vez mais apropriadas da própria cultura. O que eu
gostaria de ouvir do senhor são possíveis reflexões sobre o papel da literatura para
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
160
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Sarmento: Muito bem. Antes de ter desenvolvido a ciência, que se ocupa das
infância, numa iniciativa que procura sobretudo focar a criança enquanto ator e
escrevia sobre crianças e dizia coisas definitivas sobre as crianças. Eu penso que
nossos dois países, Brasil e Portugal, são privilegiados por terem um grupo mui-
mas também as crianças concretas, as crianças com vínculos, as crianças que so-
nham, as crianças que preferem as suas frases sempre originais, capazes de alterar
aquilo que são as imagens do senso comum. Isso é muito importante, em muitos
no Brasil, o João Cabral de Melo Neto, e tantos outros, tantos outros mesmo. Es-
critoras como a Clarice Lispector, por exemplo. E em Portugal, com vários: tem
Fernando Pessoa, o Herberto Helder, o Ruy Belo, e tantos escritores que de fato
aprendido com essa produção literária. No entanto seu registro discursivo é dife-
rente, seus objetivos são distintos. A sociologia da infância, assim como qualquer
outra das ciências sociais, tem que fazer provas das afirmações que faz, e permi-
tir a sua constituição e sua ligação através de argumentos que sejam sustentáveis
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
161
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
teoricamente e empiricamente validados. E portanto são discursos que efetiva-
mente não são suscetíveis de serem reduzidos um ao outro, exercem funções es-
pecíficas e tem um contributo específico. Suponho que isso continuará a ser assim.
Creio que a literatura antecipa muitas das questões que, mais tarde, o pensamento
ponho também que a literatura, que parte do momento próprio que é produzida,
nos traz, ao andar do tempo, dar conta do que é a realidade vigente das crianças
e da infância, das suas vidas, dos seus modos de se ver o mundo, e que há, diga-
mos, um atraso relativo do trabalho sociológico sobre esse mesmo, essa mesma
rar aquilo que são intuições e insights, imagens produzidas pela literatura, e trans-
Digo que se complementam, mas temos que estar atentos e crer que viveremos
Roberta: Muito obrigada! É interessante porque nos meus estudos eu tenho en-
tendido a sociologia também como precursora para literatura. Essa posição, ela pode
variar também? Estamos vindo de um histórico, aqui no Brasil, de livros que respon-
diam a uma necessidade didatizante, a uma literatura muito ligada à educação, à ne-
cessidade de educar. Esse rompimento aconteceu há pouco tempo, ainda está aconte-
ela olha mais para esse leitor em sua dimensão integral humana, e também para a re-
especial. Eu entendo que nós vamos ver muitos livros revolucionários nesse próximo
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
162
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
ciclo de dez anos, a partir dessa nova visão das infâncias.
Sarmento: Eu acredito que seja assim, que haja essa reciprocidade, sobretu-
do na literatura para crianças. Creio que hoje, uma parte importante dos escritores
para além daquilo que é sua experiência existencial e para além daquilo que são
que somos, muito sós no mundo, das apreciações das relações interpessoais. Esta-
va a pensar na literatura não na medida para crianças, mas as que, enfim, evocam
como personagem. E isso é simples desde muito tempo, século XIX ao século atual,
e portanto creio que nesse sentido exista um antigo descompasso entre aquilo que
são as partes teóricas emitidas pela sociologia da infância, e pelos estudos da infân-
cia, e aquilo que são os insights e as intuições, e imagens produzidas pela literatura.
Mas compreendo isso que está a dizer, acho que sim, isso de alguma forma tem
Roberta: Isso tem muito a ver com essa minha segunda pergunta: na sua
der o imaginário infantil dentro do contexto das diferenças e não por déficit em
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
163
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
relação ao imaginário adulto. O imaginário é natural do ser humano, e a diferença,
adulto pode, ou está capacitado para ser a voz das crianças do seu tempo?
Sarmento: Eu acho que será sempre. Poderá ser a voz de uma parte das crian-
ças, não de todas as crianças. E não apenas um literato, um escritor. Em outras áreas
inspirados nos infantis. Em uma medida que não diria representativos, mas mui-
to próximos. Desde a música, basta lembrar o Heitor Villa-Lobos sobre isso, mas
também lembrar muitas das cantigas em torno de heróis: “o meu cavalo só falava
inglês” assim como diz Chico Buarque, e outros cantores no Brasil, e em Portugal
há também alguns, como Paulo Siqueira Paz por exemplo, “os meninos a volta da
fogueira”1. E também da arte, da própria pintura. Miró, o Paul Klee, são pintores
que procuraram na infância uma parte importante da sua inspiração. Mas a litera-
tura sim, não utilizaria esta palavra, mas creio que a procura de uma empatia com o
talvez mais do que na ficção mas certamente que este é um projeto que é possível
linguagem muito usada, e criar uma outra forma discursiva, um outro modo de ex-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
164
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Roberta: Entendo ser uma questão ainda em aberto a relação da ficção com
dente da idade. A questão que me veio muito desta reflexão sobre os imaginários e
a busca da linguagem é: uma literatura que esteja em diálogo com as visões das in-
Sarmento: Eu acho que as culturas da infância tem como um dos seus pilares
âncora para uma fortíssima resiliência das crianças mais vulneráveis em situações
quase uma semana do fenômeno natural ocorrido, foi retirada dos escombros
uma criança de sete ou oito anos que estava viva, e que sorria no momento em
que era resgatada. Ela passou fome, ela teve efetivamente um sofrimento enorme,
isolada, portanto sem contato com nenhuma criança nem nenhum adulto, sem
capacidade de ser avistada, e no entanto resistiu. Hipotetiso que muito dessa resi-
liência infantil, que é muito mais visível entre as crianças do que entre os adultos,
isto é, há muito mais crianças que se salvam passados dias de acontecimentos trá-
gicos, como terremotos, tsunamis e outras situações extremas, elas têm essa ca-
bilidade que as crianças têm de se transpor para outro espaço e tempo, e nessa
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
165
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
escapando imaginariamente ao sofrimento atroz. Isso é também visível, muito cla-
dade. Perante a pobreza, perante a violência, esta resiliência é alguma coisa ab-
solutamente notável. Esta é uma função de toda a humanidade, não é uma coisa
que seja específico das crianças. Todos os homens e mulheres sonham, imaginam
crianças isso é muito vivo, e mais que isto, é alguma coisa que é verdadeiramente
estruturante daquilo que são as suas condições de existência, porque pelo imagi-
pressos. Em uma entrevista para uma iniciativa que se chama “De olho no pla-
no São Paulo”, de 2011, o senhor coloca uma ideia que pra mim é muito espe-
cial, onde o senhor fala do papel do adulto nos processos de decisão das crianças:
dida podemos aplicar essa ideia à leitura, seja à leitura de livros ou à leitura dos
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
166
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Sarmento: Muito bem, eu acho que... não sei se é o seu tema da dissertação,
tenta avaliar desde há muito tempo, há quase um século, a partir de obras de refe-
rência ou similares de Bakhtin, por exemplo, que acho que é o autor que mais clara-
da literatura polifônica, capaz, portanto, de fazer ouvir múltiplas vozes que só são
centa sentido, que faz as sínteses, que faz as articulações, e por isso mesmo consegue
completar a obra. Suponho que uma boa parte da literatura contemporânea segue
esta via de fazer como que os fios de sentido sejam finalmente tecidos pela leitura.
como a literatura que é suscetível de ser reconstruída pela criança, a partir exata-
mente da leitura que ela faz, e da transcrição que faz daquilo que lê ou que lêem, no
caso das crianças pequenas, em relação à sua vida. É verdade que literatura infantil
tem sido sobretudo estudada pelo lado da sua produção, daquilo que são os para-
digmas, daquilo que em alguns casos são, por exemplo, os elementos arquetípicos
estruturantes, daquilo que é o imaginário, daquilo que são os cânones, daquilo que
são as rupturas desses cânones. Existe uma abundante literatura científica sobre li-
vros escritos para crianças e que é bastante interessante no conjunto. Mas são muito
menos – na minha universidade esta é uma área que tem obtido um desenvolvi-
saber como é que as crianças recebem os livros, como é que elas interpretam, como
é que elas articulam com sua própria experiência. E eu creio que pensar exatamente
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
167
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
uma obra polifônica a partir da voz das crianças é um projeto de pesquisa de gran-
de interesse e qualidade e se Roberta puder fazê-lo seria ótimo e outras pessoas po-
aqui, e outros autores também, tem procurado fazer a escuta dos dois lados: a es-
cuta que antecede a criação da obra, então procurando criar as relações da ficção
com o livro pronto, conseguir verificar leituras que acolham essa ressignificação
pelas crianças. E cada uma é uma, então é muito difícil, né? Cada criança é um
mais panorâmico.
Sarmento: Deixa eu falar um pouco sobre isto também! Acho que sim, isso
mos enquanto ação influente das crianças no contexto da população com outras
crianças e com os adultos. A participação infantil não é uma coisa que possa ser
considerada como algo que se reduz ao grupo de pais. As crianças vivem na so-
ciedade, com seus pais, com professores, com outros adultos, há diferença... Vi-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
168
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
E nesse sentido é fundamental que haja abertura da parte dos adultos para
participação das crianças. No entanto, esse papel não é meramente passivo, não
é apenas um papel de escuta, é muito mais que isso, é uma escuta ativa, é uma
reestruturação essa que aceita portanto uma outra lógica, não da opção, seja ge-
racional, seja de classe, seja de gênero, seja o que for, mas de criação, digamos,
piciar essa verdadeira configuração da vida em comum. Nesse sentido que nós
portante no ato da leitura, e sobretudo no caso crianças pequenas que não lêem,
mas que ouvem histórias e são capazes de acrescentar pontos aos contos, como
crianças são sempre capazes de acrescentar pontos aos contos, desde que os con-
tos sejam disponibilizados pelos adultos, que tenham essa função de articulação e
Pois é, minha última pergunta tem tudo a ver com isso. A partir do momento
derar a literatura também como parte de uma produção cultural infantil, como
são os jogos, como são as brincadeiras? E se sim, como o fazer infantil pode con-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
169
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Sarmento: Muito bem, nós estamos a falar até agora sobretudo da literatura
feita pelos adultos para as crianças, mas é importante também lembrar o fato de
dos. Os primeiros estudos no mundo sobre o que seria a produção linguística das
crianças enquanto forma de afirmação de uma cultura infantil própria, foi feita no
Brasil por Florestan Fernandes, quando ele estudou as trocinhas no Bom Retiro,
tural dos adultos, mas que foram preservados na evolução do brincar das crianças.
que modo é que os jogos e as linguagens das crianças são produtoras efetivamente
ratura infantil, não no sentido de uma literatura configurante, uma cultura adulta
para as crianças, mas sim uma cultura verdadeiramente infantil. Isto é, criada e
nima. Quer dizer, hoje um livro para crianças produzido por uma autora, por um
autor, tem a marca de sua autoria. O caso das crianças tem uma cultura coletiva de
pares, como é a cultura popular em geral, como é a arte popular, em geral. É uma
produção feita não propriamente por um sujeito individual, mas continuamente re-
criada nas nossas interpartes e por isso mesmo feitas por um sujeito coletivo, sejam
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
170
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.
Roberta: Sim! Estou procurando lembrar se existe algum exemplo de um
livro que já conseguiu transpor esse fazer ou essa cultura linguística das crianças,
mos pessoas em teses com interesse nesses fragmentos. Mas realmente talvez seja
Roberta: Nós temos bons trabalhos de registro, eu acho que nisso nós esta-
Eu acho que um desafio que ainda está em busca é a transposição dessas cultu-
NA CIRANDA POLIFÔNICA, A LITERATURA INFANTIL RESSOA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE AS CULTURAS DA INFÂNCIA.
171
INÊS, DE ROGER MELLO E MARIANA MASSARANI, SEM FAVOR, ENTROU NA RODA.