Sobre
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Sobre
Versão corrigida
São Paulo
2016
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS COMPARADOS DE
LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
Versão corrigida
São Paulo
2016
Versão corrigida
RAMOS, Samira dos Santos.
Título: Entre a espera e a jornada: as representações do feminino na literatura infantil
brasileira como metáfora social
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. José Nicolau Gregorin Filho Instituição: Universidade de São Paulo - USP
Profª Maria dos Prazeres Santos Mendes Instituição: Universidade de São Paulo -USP
Prof. José Maria Rodrigues Filho Instituição: Universidade de Mogi das Cruzes - UMC
Para toda a minha família, especialmente para minhas irmãs, Nara, Soraya, Sara e Liana,
espelhos mágicos de minha alma.
E para minhas muitas crianças, Larissa, Gabriel A., Isabela, Vitor, Gabriel S., Marina,
Guilherme, Ruth, Raphael, Maysa, Geovana, Juan e Ana,
que como sobrinhos, enteados e filhos,
me ensinaram a contar histórias.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Dr. José Nicolau Gregorin Filho, por sua generosa acolhida, por partilhar
conhecimento e estimular meu crescimento intelectual, por estimular meus passos e guiá-los
com agudeza intelectual e de espírito, nunca perdendo a benignidade ante meus anseios e
temores a cada bifurcação do caminho trilhado nesta pesquisa.
Às professoras Dra. Maria dos Prazeres Santos Mendes e Dra. Maria Zilda da Cunha por
ensinarem-me a enxergar além das fronteiras do meu conhecimento seguro; por olharem meu
projeto com sensibilidade e carinho; por suas inestimáveis contribuições ao meu
desenvolvimento crítico frente a um objeto tão complexo que é literatura infantil; por suas
sugestões nas aulas e na participação no exame de qualificação, que enriqueceram
sobremaneira este projeto.
À professora Dra. Regina Stela Barcelos Machado, por todo o aprendizado que me levou a
trilhar o caminho dos contos populares. E por sua generosidade e carinho.
Aos meus professores Suely Amaral, Leila Cristina Dér, Clécio Torres, Alfredina Nery, que
na graduação em Letras suscitaram em mim o entendimento das relações sociais como um
aspecto essencial ao estudo da língua e linguagem.
Às minhas colegas Ms. Ecila Mabelini e Ms. Camila Castro, pelo apoio, auxílio, interesse e
carinho pelo meu projeto.
Ao maestro Juan Carlos Rodriguez Latorre, por sua amizade, por sua sabedoria, por seu
conhecimento em literatura popular e erudita, cultura, arte e política que compartilhou nas
aulas de espanhol.
Aos professores, diretores e alunos das escolas que atuo e atuei durante esta pesquisa,
principalmente da escola rural E.M. Pastor Manoel Eustáquio Damacena, que me auxiliaram e
apoiaram com paciência, acompanhando com alegria minhas conquistas e oferecendo
possibilidades de pesquisa e material de leitura.
Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar!
Deus criou a mulher e junto com ela criou a
fantasia. Foi assim que uma vez a Verdade desejou
conhecer um palácio por dentro e escolheu o mais
suntuoso de todos, onde vivia o grande sultão Haroun Ak-
Raschid.
[...]
A Verdade buscou pelo mundo as vestes mais
lindas que pôde encontrar: veludos e brocados, bordados
com fios de todas as cores do arco-íris. Enfeitou-se com
magníficos colares de pedras preciosas, anéis, brincos e
pulseiras do mais fino ouro e perfumou-se com a essência
de rosas. Cobriu o rosto com um véu bordado de fios de
seda dourados e prateados e voltou, é claro, ao palácio do
sultão Haroun Ak-Raschid
Quando o chefe da guarda viu aquela mulher
deslumbrante como a Lua, perguntou quem ela era.
E ela respondeu, com voz doce e melodiosa:
- Eu sou a Fábula e gostaria muito de
encontrar-me, se possível, com o sultão deste palácio.
[...]
Malba Tahan
RESUMO
RAMOS, Samira dos Santos. Between the waiting and the journey: the feminine
representations in Brazilian children's literature as a social metaphor. 2016. 137 f.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2016.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
II – A ESPERA... .................................................................................................................... 64
2.1 Da donzela travestida à donzela transformada ........................................................................................64
2.2 A Princesa e o século ..................................................................................................................................71
2.2.1 As princesas dos contos tradicionais do Brasil ..........................................................................................72
2.3 As princesas do século XX .........................................................................................................................73
2.4 As novas princesas .....................................................................................................................................82
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 131
ANEXOS................................................................................................................................ 135
ANEXO A – Notícia do Jornal New York Times sobre a ‘controvérsia’ causada pela recepção da obra King
& King no EUA .............................................................................................................................................. 136
ANEXO B – Notícia da Revista Exame (versão on-line), sobre o livro A princesa e a costureira ............... 137
12
INTRODUÇÃO
Todas as obras forneciam material muito rico para discussão e já haviam sido
exaustivamente exploradas em discussões acadêmicas. E mais, apesar de serem reeditadas
continuamente, todas foram escritas entre o final da década de 1970, toda a década de 1980 e
início da década de 1990, perfazendo 15 anos entre a princesa de História Meio ao Contrário
(1978) e a princesa de Entre a Espada e a Rosa (1992).
Surgia mais uma preocupação: se eram princesas da década de 1980, escolher
como corpora essas obras nos daria uma literatura atual, por serem continuamente
republicadas, mas com mais de 30 anos. Foi iniciada a busca por novas princesas.
Em primeiro momento, chegamos às produções audiovisuais para crianças que
tinham princesas como protagonistas, como Frozen (2013), filme de animação da Disney
inspirado no conto A rainha da neve, de Hans Christian Andersen, The Princess and the Frog
(2009), adaptação do conto O Príncipe Sapo, e Tangled (2010), adaptação de Rapunzel,
ambos coletados pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. Além de Brave (2012), produzido
pelo estúdio Pixar, que traz uma princesa nórdica. Tínhamos um boom de princesas
europeias/norte-americanas nas telas brasileiras, com velhas histórias, mas novas formas de
contar e novos projetos axiológicos. Na literatura infantil brasileira, tive contato com duas
publicações recentes de Ana Maria Machado: A princesa que escolhia (2006) e Uma, duas,
três princesas (2014).
Porém, os corpora necessitavam de um recorte pontual. Assim, alguns critérios
foram definidos: optamos por obras em que a jovem princesa fosse protagonista e que o
enredo envolvesse preparação para a vida adulta através de uma jornada em busca da
identidade e da realização. Compusemos os corpora com três obras: A rainha e as irmãs,
conto popular recolhido por Câmara Cascudo presente na obra Contos Tradicionais do Brasil,
de 1955, Procurando Firme, originalmente publicado em 1984, de Ruth Rocha e Uma, duas,
três princesas, de Ana Maria Machado, publicação original em 2013.
A escolha se justifica porque além de apresentarem princesas em jornada, são três
obras de grande circulação, de autores reconhecidos, republicadas continuamente, com ampla
distribuição em bibliotecas e escolas. Essas características as validam como obras que detém
valores aceitáveis por toda uma rede crítica (autores, editores, selecionadores, professores,
pais), responsável por mediar relação entre a obra destinada ao público infantil e seu leitor, a
própria criança.
15
1
CÂNDIDO, 1980, p. 24.
2
CARVALHAL, 2006, p.86
16
...Num tempo em que não havia Tempo, um grupo que, para garantir a
sobrevivência de seu povo, desenvolveu símbolos e sons mágicos que representavam o que
havia ao seu redor. Com o tempo, essa magia foi tornando-se mais forte, conseguindo até
mesmo trazer seres, objetos, ações que estavam longe à presença de quem a usava,
extrapolando o próprio tempo, fazendo viver o que já havia acontecido ou que ainda
aconteceria.
Seria realmente desafiante e, provavelmente, considerado pouco acadêmico contar
assim os resultados das pesquisas desenvolvidas nesse capítulo. Pouco acadêmico porque
reduzir conceitos tão amplos a uma imagem pode ser enganador e nos induzir ao erro. E
também porque se entende que representar conceitos abstratos através de uma narrativa que os
concretize geralmente é necessário quando leitor não possui condições de assimilar esses
conceitos através da linguagem abstrata. Fora isso, só a arte tem esse prazer.
Essas afirmações são parte da discussão desenvolvida na primeira e segunda parte
deste capítulo, visto que nossa pesquisa retorna às concepções de linguagem como ordenadora
e significadora da realidade para compreender como se organizam as relações que levam a
literatura infantil fazer parte – ou não – da construção de um novo espírito feminino3 em
nossa época.
Para tanto, será necessário revisarmos algumas das teorias de linguagem e
literatura, especificamente a questão da representação literária e das relações entre literatura e
sociedade, entendendo que ciências como a sociologia, mitologia e antropologia podem
contribuir para a análise literária em curso, visto que parte dos corpora é formado por obra da
literatura popular oral. Em seguida, discutiremos a natureza e função da literatura infantil,
passando pela questão do público e privado na educação e na leitura.
3
Usamos o vocábulo espírito, nesta dissertação, como sinônimo de ideia predominante, tendência. Assim, um
novo espírito feminino deve ser entendido como o ideário sobre a mulher que permeia todo o conjunto de
estudos, obras, relações, mídias, leis, que se pautam por uma mesma tendência construída por diferentes esferas
do conhecimento, influenciando a cultura, as estruturas de pensamento, a comunicação, as relações sociais em
determinada época. Contudo, compreendemos que esse espírito incide mais rapidamente sobre o discurso sobre
o feminino do que sobre as práticas sociais.
18
Se a questão da mimesis na literatura nunca foi pacífica, tornando ora aceitável ora
não aceitável o termo representação literária, cada vez mais a filosofia nos afasta da
possibilidade de que a literatura possa ser uma representação da realidade, visto que até o
conceito de realidade já não é mais óbvio.
Encontramo-nos em um momento em que a antirrepresentação torna-se um dos
principais objetos de estudo na literatura. As pesquisas sobre o suporte também são
preponderantes. No momento, debruçamo-nos mais sobre a forma do que sobre o conteúdo.
Esta pesquisa, no entanto, explora outro caminho que não é absolutamente novo:
as relações entre a sociedade e a literatura. É sob essa ótica que esta pesquisa se configura,
porque ainda que não saibamos o que é o real, temos certa percepção dele. E a literatura,
através tanto da forma como do conteúdo, nos ajuda a significar e compreender o que
chamamos de realidade.
As concepções de língua e linguagem sofreram grande transformação nos últimos
dois séculos. E com isso, o estudo da literatura. Foi necessário desnaturalizar a compreensão
que tínhamos de linguagem após se conceber a língua como um sistema em que o significante
é arbitrário em relação ao significado, sem laço natural com a realidade 4 - discussões
ampliadas pela concepção dialógica da linguagem5.
4
Cf conceitos de significado e significante conforme Ferdinand Saussure, linguista e filosofo suíço.
5
Cf concepção de linguagem discutida na obra de Mikhail Bakhtin, filósofo russo.
19
Apesar de não ser mais possível acreditar que a linguagem possa “representar ou
expressar um real prévio, criar, inventar ou produzir um objeto que seja autossuficiente, ou
pelo contrário, reabsorvido e utilizado pelo real concreto6” seu ponto de partida ainda é o real
que se pretende dizer. Porém “falha sempre ao dizê-lo, mas ao falhar diz outra coisa,
desvenda um mundo mais real do que aquele que pretendia dizer7” Ou seja, ainda que não
represente o real, não se desvincula do que entendemos por realidade, mesmo quando nos
propomos a fazê-lo.
Isto porque:
Representar o que poderia ter acontecido é sugerir o que poderá acontecer, é
revelar possibilidades irrealizadas do real. E é nesse sentido que a literatura
pode ser revolucionária: por manter viva a utopia, não como o imaginário
impossível mas como o imaginável possível. (PERRONE-MOISÉS, 1990, p.
108)
6
PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 104.
7
PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 104.
8
PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 108.
20
9
CÂNDIDO, 1980, p. 12
21
Sobre a relação dialógica entre o artista e o grupo, Cândido afirma que não se
pode ignorar o processo comunicativo, integrador e bitransitivo por excelência, ao falar da
arte, pois:
Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as
pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas, agindo, permitem
por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando repercussão
no grupo. As relações entre o artista e o grupo se pautam por esta
circunstância e podem ser esquematizadas do seguinte modo: em primeiro
lugar, há necessidade de um agente individual que tome a si a tarefa de criar
ou apresentar a obra; em segundo lugar, ele é ou não reconhecido como
criador ou intérprete pela sociedade, e o destino da obra está ligado a esta
circunstância; em terceiro lugar, ele utiliza a obra, assim marcada pela
sociedade, como veículo das suas aspirações individuais mais profundas.
(CÂNDIDO, 1980, p. 25)
O autor ressalva que não se tratam de dois tipos, posto que cada obra apresentará
uma proporção variável dessas duas categorias, porém a predominância de uma ou outra torna
a distinção possível de ser mantida. Esta distinção tem base em dois fenômenos sociais que o
autor considera gerais e importantes: a integração e a diferenciação.
A integração é o conjunto de fatores que tendem a acentuar no indivíduo ou
no grupo a participação nos valores comuns da sociedade. A diferenciação,
ao contrário, é o conjunto dos que tendem a acentuar as peculiaridades, as
diferenças existentes em uns e outros. São processos complementares, de
que depende a socialização do homem; a arte, igualmente, só pode
sobreviver equilibrando, à sua maneira, as duas tendências referidas.
(CÂNDIDO, 1980, p. 23)
22
10
PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 106.
23
O trabalho do interprete está ligado ao culto e a cultura, tendo atos e forças ativas
desta última, tudo que adquire forma “deve ser consagrado por uma interpretação para que se
torne ‘são’, e possa, a todo o instante, tornar-se ‘sagrado’, a partir dessa interpretação; toda
ação cultural é, finalmente, um ato de culto; [...] 11” Os rituais, as narrativas sagradas, os mitos
fazem parte desse trabalho de interpretar a realidade.
11
JOLLES, 1976, p. 23.
24
Para exemplificar como a função social “comporta o papel que a obra desempenha
no estabelecimento de relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais,
na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade 14”, Cândido afirma que os
episódios da Odisséia, ao serem cantados nas festas gregas:
12
CÂNDIDO, 1980, p. 45.
13
CÂNDIDO, 1980, p. 45
14
CÂNDIDO, 1980, p. 46.
25
Dessa forma, ainda que o desígnio consciente da obra apresente certo sistema de
ideias, esta não deve ser a função propulsora da análise, visto que depende da recepção, e não
apenas da intenção ao produzir a obra, para que a função ideológica obtenha êxito expressivo.
De forma geral, as manifestações artísticas dos grupos primitivos, principalmente
as literárias, relacionam-se a satisfação emocional de necessidades do grupo, estando
15
CÃNDIDO, 2000, p. 46.
16
CÂNDIDO, 1980, p. 46.
26
1.2 Mais uma vez era uma vez – natureza e função do conto na literatura infantil
17
Oswald Arnold Gottfried Spengler. historiador e filósofo alemão.
27
uma linguagem culta que não existiria para o homem primitivo e ainda não estaria ao alcance
da criança. Não possuiriam um pensamento claro e distinto, impedindo-os de obter o
conhecimento resultante de uma experiência intelectual comunicada através das fórmulas,
leis, conceitos, esquemas. A certeza imediata do homem primitivo e da criança se daria
proporcionada pelas várias classes de intuição, entre elas a iluminação, experiência de vida,
inspiração, visão artística, entre outras, comunicadas através comparação, da imagem, do
símbolo18.
Sob esse conjunto de ideias, Coelho afirma que se torna fácil compreender a
função da literatura como transmissora de valores desde suas origens.
Tendo em vista as peculiaridades da mente popular (rudimentar) e da infantil
(imatura), compreende-se que a linguagem poética (ou literatura em geral)
tivesse sido utilizada, desde os primórdios (através dos rituais, por exemplo),
para transmitir padrões de pensamento ou de conduta às diferentes
comunidades. Uma vez que tais valores ou padrões (de natureza social, ética,
política, artística, econômica, religiosa, etc.) são essencialmente abstratos,
dificilmente poderiam ser compreendidos ou assimilados por mentes que
vivem muito próximas da natureza sensorial, do concreto e, como tal,
propensas a conhecerem as coisas através das emoções e da experiência
concreta. [...] Daí a importância que a linguagem literária assumiu, para os
homens, desde os primórdios da civilização. Ela é a linguagem da
representação, linguagem imagística que, como nenhuma outra, tem o poder
de concretizar o abstrato (e também o indizível), através de comparações,
imagens, símbolos, alegorias, etc. (COELHO, 2000a, p. 43).
18
COELHO, 2000a.
28
Nesta concepção, obra, autor e sociedade agem uns sobre outros. A literatura para
crianças, no entendimento que fundamenta esta dissertação, não foge a essa concepção.
Porém, devido à crítica, publicação e circulação da literatura infantil não depender
diretamente do público a que é dirigida, podemos dizer que a ação da sociedade sobre a
literatura para crianças será ainda mais distinguível neste sistema de influências recíprocas.
Para tanto, não é qualquer forma de texto que tornaria essa função social nítida,
visto que a literatura pode atuar como integradora ou diferenciadora de um grupo, como
vimos. Necessitar-se-á de uma forma que seja integradora, que se disponha a expressar os
sentimentos e valores da sociedade de forma que toda criança possa vir a se identificar. A
forma literária adequada seria o conto.
As narrativas que deram origem aos contos populares estão presentes nas
sociedades ao menos há 3.200 anos19. Porém, o Conto, como uma forma literária, foi
determinado com a fixação da literatura oral em texto escrito, visto que a coletânea Kinder-
und Hausmärchen dos irmãos Grimm reunira toda a diversidade de empregos da palavra
conto em um conceito unificado, que passou a ser referência nas pesquisas sobre o conto
ulteriores ao século XIX20. Essa estreita relação entre a oralidade e o Conto não pode ser
ignorada, posto que “é costume atribuir-se a uma produção literária a qualidade de Conto
sempre que ela concorde mais ou menos (para usar deliberadamente uma expressão vaga)
com o que se pode encontrar nos contos de Grimm21”.
E o acontecimento mágico é uma dessas características:
19
Manuscrito egípcio achado no século XIX por Mrs. D’Orbeney. (COELHO, 2008, p. 36)
20
JOLLES, 1976.
21
JOLLES, 1976, p. 182.
29
Temos, por um lado, uma forma a cujo respeito se afirmou que ela se esforça
por narrar um fato ou um incidente impressionante, de tal modo que se
julgue estar na presença de um acontecimento real e ser esse incidente mais
importante, aparentemente, do que os personagens que o vivem. (JOLLES,
1976, p. 192)
22
COELHO, 2000a , p. 52.
23
CÂNDIDO, 1980.
24
CÂNDIDO, 1980, p. 52.
30
O conto tem sua própria coerência interna que não aceita a moral e os valores da
sociedade de forma mecânica e reducionista. E é através da disposição mental que rege e
determina essa Forma, que é a ideia de que tudo deva se passar conforme nossa expectativa,
que o universo se transforma no Conto. Essa disposição, Jolles chama de ética do
acontecimento ou moral ingênua.
Jolles explica que o conto não segue a ética filosófica, mas pauta-se em uma ética
própria, que torna necessário que as injustiças sejam corrigidas no conto, em que o bom e o
justo serão valorados de acordo com nosso juízo sentimental absoluto.
Neste aspecto, o Conto opõe-se radicalmente ao acontecimento real como é
observado de hábito no universo. É muito raro que o curso das coisas
satisfaça às exigências da moral ingênua, é muito raro que seja “justo”; logo,
o Conto opõe-se ao universo da “realidade”. Entretanto, esse universo da
realidade não é aquele onde se reconhece nas coisas um valor essencial
universalmente válido; é, antes, o universo em que o acontecimento contraria
as exigências da moral ingênua, o universo que experimentamos
ingenuamente como imoral. Pode-se dizer que a disposição mental do Conto
exerce aí a sua ação em dois sentidos: por uma parte, toma e compreende o
universo como uma realidade que ela recusa e que não corresponde à sua
ética do acontecimento; por outra parte, propõe e adota um outro universo
que satisfaz a todas as exigências da moral ingênua. (JOLLES, 1976, p. 200)
fidelidade à narrativa, afirmando que não se pode quebrar um ovo sem que parte da clara
fique aderida à casca e que a fidelidade seria não quebrar a gema do ovo25.
Podemos afirmar que quando contamos que uma donzela que era maltratada por
sua família torna-se a escolhida pelo jovem herói e vive feliz para sempre, estamos falando
dos valores conforme o faz Jolles, no qual a moral ingênua estabelece a necessidade de
justiça. Neste caso, temos o valor que é estabelecido através da fidelidade que encontramos,
como dito por Jacob Grimm, na parte da gema do ovo.
Os valores apresentados no conto, nesta teoria, nem sempre caminham ao lado da
virtude. Nos contos populares, a justiça precede a moral e a bondade, como Jolles explicita
através da narrativa do Gato de Botas, em que o rapaz consegue a fortuna através das
maquinações do Gato, que vão de mentiras a engolir o bruxo que não lhe fizera mal. É a
moral ingênua que se satisfaz com o enredo, pois o rapaz recebera apenas um gato de
herança, enquanto seus irmãos ficaram em posse de bens de valor. A justiça se estabelece por
ser precisamente o gato, que era a herança sem valor, quem propicia a reparação da injustiça
que o irmão mais novo havia sofrido.
Porém, há também os valores que se estabelecem com a parte do conto aderida a
casca. Na mesma história, quando dizemos que o príncipe escolheria a princesa em
obediência ao desejo do pai e que a donzela foi à festa no palácio em uma carruagem de ouro,
localizamos valores que não são universais. Apresentam valores que podem ser localizados no
tempo e no espaço. O clima medieval determina uma provável origem europeia, que é
evocada pelos termos príncipe, castelo, carruagem. A carruagem é um veículo que representa
riqueza em determinado momento histórico, o príncipe casar-se para obedecer ao pai é um
valor já em desuso, terminando por localizá-lo também em um determinado tempo.
Paralelamente, podemos comparar o cenário e tempo da história com o conto
Oochigeaskw, que Regina Machado apresenta como Uma “cinderela” algonquin (conto das
Primeiras Nações da América do Norte)26. Na narrativa, um homem viúvo vivia na aldeia
com as três filhas. A moça mais nova, maltratada pelas irmãs, calça mocassins velhos e veste-
se de folhas e conchas para passar pelo teste de tentar ver o rapaz invisível que vivia com uma
irmã em uma tenda afastada. O rapaz chega em seu trenó, que tem cordas feitas do arco-íris,
25
JOLLES, 1976, p. 188.
26
MACHADO, Regina, 2004.
32
com seu arco, que tem cordas feitas de estrelas da Via-Láctea, o espírito do caminho. A moça
casa-se com o rapaz.
Nesse conto temos o mesmo tipo de reparação de injustiça que satisfaz a moral
ingênua, mas revestido com valores de um determinado grupo, reconhecível pelos detalhes de
organização social, vestimenta, meio de transporte, moradia, comportamento esperado da
personagem, valorização de determinado aspecto como virtude. Comparando as duas
narrativas, podemos perceber que na segunda, é o aspecto místico do rapaz – ser invisível e
dirigir um trenó com corda feita de arco-íris, ter um arco com corda feita de estrelas –,
enquanto na primeira é a posição social elevada – ser príncipe – que os qualificam como pares
para as moças que merecem uma reparação às injustiças sofridas. Essas qualificações nos
indicam quais valores são privilegiados como virtude em cada grupo produtor da narrativa.
Poderíamos propor aí um paralelo com a colocação de Darnton (1984), que afirma
que os narradores camponeses adaptavam o cenário de seus relatos ao seu próprio meio,
mantendo os elementos principais intatos27.
Para o historiador, os contos:
Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes transformações,
em diferentes tradições culturais. Longe de expressarem as imutáveis
operações do ser interno do homem, sugerem que as próprias mentalidades
mudaram. (DARNTON, 1986, p. 26).
27
DARNTON, 1986.
28
DARNTON, 1986.
33
Botas, observemos a leitura realizada deste conto por Darnton29: inicialmente localiza o tempo
e o lugar em que Perrault escreveu seus contos – França, final do século XVII. A injustiça
sofrida pelo menino mais novo, nos termos de Jolles, aqui aparece como uma prática comum
da época na França, fazendo parte dos costumes dos camponeses, assim como da nobreza, que
o filho primogênito herdasse a maior parte dos bens para que o patrimônio não fosse
fragmentado.
Discutindo o tema do camponês que vende o filho ao diabo, Darnton afirma que:
O conto não apenas proporciona divertimento. Dramatiza a luta pelos
recursos escassos, que opunha os pobres aos ricos, os “pequenos” (menu
peuple, petites gens) aos “grandes” (les gros, les grands). Algumas versões
tornam o comentário social explícito, colocando o demônio no papel de um
seigneur, e concluindo, no final: “E assim o servo comeu o patrão”.
(DARNTON, 1986, p. 50)
29
DARNTON, 1986.
30
COELHO, 2000a, p. 54.
34
Enfim, Jolles trata dos valores que se organizam através de uma lógica que só se
estabelece no conto. Darnton trata dos valores sociais que aproximam o conto da sociedade
que o narra, proporcionando a identificação que fará com que o grupo valide os valores de
conduta humana que o conto apresenta. E Coelho trata de como os valores sociais e de
conduta humana apresentados na obra são apreendidos pela criança.
Podemos, no mesmo conto, analisar esses diferentes aspectos sem divergir, pois o
conto popular trata, ao mesmo tempo, do eu e do outro, do individual e do coletivo, do local e
do universal. Por isso a importância dessa estrutura narrativa até hoje nas sociedades,
possibilitando leituras por diversas ciências, da literatura à psicanálise.
Tratemos então da questão axiológica na literatura infantil hoje, para entendermos
quais aspectos axiológicos do conto popular podem ser mantidos quando falamos de uma
literatura autoral.
31
PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 104
35
para adultos, existe a intenção de que não se ignore que o objeto de estudo é uma obra de arte.
Coelho (2000a) afirma que “A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte:
fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra 32”.
Reafirmar este ponto é necessário devido à desvalorização que a literatura infantil
sofreu (e sofre). Comparada à literatura para adultos, literatura infantil foi entendida durante
muito tempo como uma arte menor, tanto por ser destinada à criança em uma sociedade
adultocêntrica, como por ter intrinsecamente um viés pedagógico.
A literatura infantil é um processo de comunicação que faz parte da prática social,
não sendo possível esperar que ela se mantenha absolutamente apartada da sociedade que a
produz e a significa. Neste contexto, pode ser transformadora ou mantenedora de valores,
ideologias, padrões, desde que não se mantenha alheia às transformações de paradigmas que
vêm ocorrendo na sociedade.
Contudo, este viés não significa que a literatura infantil seja pedagógica, que
ensine as coisas da vida, como colocou Perrroti (1990). Ainda que história da literatura
infantil apresente momentos que estiveram próximos a este modelo – como exemplo, os
contos da Condessa de Ségur, que são parte de uma literatura que se propunha a retratar o
realismo cotidiano, conforme também se propôs o naturalismo e o realismo no século passado
– este é um modelo de produção literária para crianças que se pretende ultrapassado. A nova
literatura infantil se propõe ao cumprimento da função literária, definida por Gregorin Filho
(2011a) como lúdica, catártica, pragmática, cognitiva e libertadora.
Essas funções podem ser cumpridas de diversas formas, uma delas, que pode ser
considerada uma potência vital da literatura infantil, é a de fazer pensar, ou seja, a formação
da consciência crítica. Como exemplo, temos as obras de Ruth Rocha, conhecidas como
histórias de reis, os quatro volumes O reizinho Mandão (1978), O rei que não sabia de nada
(1980), O que os olhos não veem (1981) e Sapo vira rei vira sapo (Ou a volta do reizinho
Mandão) (1982), que publicados no período de governo militar no Brasil, usam um padrão
narrativo que lembra o conto de fadas para falar e alertar sobre os problemas vividos na
época.
32
COELHO, 2000a, p. 27.
36
Falar sobre poder e arbítrio para as crianças durante a ditadura militar, além de
perigoso, é um ato formativo, libertador e, é claro, ideológico. Assim como a obra de Bojunga
ao tratar dos problemas sociais e Colasanti, do universo feminino.
Obstante a isso, existe uma censura em torno da literatura infantil que pode ser
considerada um fator de propulsão ou de atraso à apresentação de novas leituras de mundo.
Isso devido à estreita relação da produção literária brasileira com os mecanismos
governamentais e educacionais.
Falamos em propulsão ou atraso porque a literatura infantil termina por estar
condicionada aos valores que a sociedade compreende como aceitáveis. A obra só chegará ao
público ao qual se dirige se os valores que permeia forem aceitos pelos editores,
selecionadores do governo, professores, pais. E compreender que valores são esses não é
absolutamente algo simples nos dias atuais. Primeiro, pela questão do que é público e o que é
privado, questão essa que incide diretamente sobre a literatura infantil. Segundo, pela
mudança de valores que vem acontecendo em nossa sociedade.
33
ARENDT, Hannah. La condition de l’homme moderne. Paris: Calmann-Lévy, 1961.
34
PERROTTI, 1990, p. 87
37
35
PERROTTI, 1990, p. 92-3
36
PERROTTI, 1990, p. 95.
38
Temos então uma estrutura de produção que passa por valores aceitos pela
sociedade para serem reproduzidos na escola. Esta, por sua vez, censura - ou ainda censuram
em nome da educação - a produção literária. O público de destino terá acesso apenas às obras
que representem os mesmos valores privilegiados pela sociedade em seu discurso, mesmo não
sendo os valores privilegiados na prática social em que esses mesmos alunos estão imersos.
Outro aspecto que se relaciona tanto com a questão do privado/público como com
os discursos sobre as questões axiológicas é o aspecto do mundo virtual. Temos aí um grande
campo de pesquisa ainda em desenvolvimento sobre como o público e o privado se
confundem, integram-se, tornam-se híbridos37.
E nesse universo virtual, os fatos e opiniões são valorados pelo leitor/receptor e
podem se tornar públicos se ele assim o desejar, transformando cada leitor em um potencial
produtor ou divulgador de informações e opiniões.
Todo esse aspecto é importante para essa pesquisa visto que através do mundo
virtual, os valores sociais são expostos de forma individual por sujeitos que há menos de duas
décadas teriam sua opinião restringida ao seu círculo social. Essa opinião agora se torna
publicável e acessível a um público bem mais extenso. E o conteúdo dessa produção, que
também passa do privado ao público, versa sobre a diversidade e o racismo, a intolerância e a
defesa da vida, o machismo e as novas concepções de gênero, validando o que Coelho (2000)
afirma ser a coexistência de valores tradicionais e emergentes em nossa sociedade.
37
A literatura infantil também vem se apropriando deste campo, porém é uma discussão ampla que, a priori, não
contribui com a dissertação em curso.
38
2000a; 2000b; 2008.
39
Individualidade consciente de si e da
Individualismo e suas verdades absolutas
responsabilidade em relação ao outro.
são a base do Sistema. O poder é das
Consciência que todo indivíduo é parte do
minorias privilegiadas.
todo (humanidade, sociedade, natureza)
Esta tabela é baseada nos textos e tabelas apresentados por Coelho (2000a, 2000b) com redação
sintetizada para esta dissertação.
39
Haja vista as tentativas dos parlamentares ligados às igrejas evangélicas no Brasil de manutenção de valores
cristãos enquanto lei, desde tentar dificultar o acesso ao aborto para vítimas de abuso sexual a impedir a votação
da legislação que garante o direito ao uso do nome social por transexuais e travestis.
40
Na literatura infantil, os paradigmas apresentados por Coelho (tabela 1) também já fazem parte do discurso
das obras contemporâneas, pois como já foi dito anteriormente, a venda de livros para os programas do governo
estreita a relação entre as diretrizes educacionais vigentes e o mercado editorial de literatura para crianças. Se
antes as questões sobre diversidade cultural eram pouco recorrentes nessa literatura, hoje abundam narrativas
com essa temática.
41
Livros que apresentam novos modelos de núcleo familiar, que abordam a questão das representações de poder,
assim como os outros paradigmas emergentes, são cada vez mais comuns nesse mercado. Porém, aparecem
41
por algumas esferas da sociedade ora mantém discursos que já caminham para as gavetas do
desuso, mas que ainda são recorrentes no imaginário cultural.
Dessa forma, quando os valores tradicionais estão presentes na obra, estão tão
intrínsecos no imaginário que não o questionamos, como por exemplo, as mulheres que
sempre aparecerem de vestido nas obras e aceitamos naturalmente essa informação visual,
mesmo que seja muito mais comum que as mulheres ao nosso redor usem calça no cotidiano.
Ou ter sempre uma avó na cozinha. Ou a figura da criança inocente. Não obstante, novos
comportamentos e padrões de pensamento vão sendo privilegiados na literatura, com
propostas geradas a partir da redescoberta e reinvenção do passado ou da representação das
alterações do sistema social que vivemos.
Como já explicitou Cândido, ainda que o autor tenha a intenção de mostrar
determinado aspecto da realidade, e que o auditor ou leitor deseje que o autor lhe mostre
determinado aspecto da realidade, a função ideológica “— tomado o termo no sentido amplo
de um desígnio consciente, que pode ser formulado como idéia, mas que muitas vezes é uma
ilusão do autor, desmentida pela estrutura objetiva do que escreveu 42”, ou seja, ainda que a
intenção do autor seja discutir um valor emergente ou tradicional, o âmago do significado da
obra não residirá aí, visto que a intenção do autor não necessariamente será compreendida no
momento da recepção.
Entretanto, se não como função ideológica, os novos valores já são perceptíveis
nas obras contemporâneas porque a literatura, além de ser arauto de mudanças e
interpretadora de novas realidades, é uma linguagem na qual a sociedade, o autor, a obra são
parte de um sistema de influências recíprocas, como afirma Cândido. Assim, é esperado que
as obras em circulação correspondam ao discurso social emergente. Isto porque os destinos do
autor e da obra estão vinculados à legitimação destes pela sociedade.
Neste contexto, a literatura infantil pode vir a proporcionar a possibilidade de
visualizar uma sociedade pautada em um novo discurso, em novos valores, que nos faça
sonhar com o diferente. Pode nos apresentar a falta ou nos mostrar completos, como colocou
principalmente em obras paradidáticas, em que a literatura está a serviço da construção de algum desses novos
valores e o plano da expressão deixa de ser prioritário. Entre uma obra paradidática e uma obra de literatura
infantil, que mantém um viés pedagógico, além da intenção do autor, estará justamente o plano da expressão, que
será valorado de acordo com o critério do que é artístico em vigor na época em que o texto circulará na
sociedade, critério este que também é culturalmente construído.
42
CÂNDIDO, 2001, p. 56.
42
Perrone-Moisés. E cada criança que tem acesso à literatura, seja em casa ou na escola, será
apresentada a uma nova forma de ver e valorar o mundo, ainda que não tenha consciência
disso.
Em um país com tanta diversidade social e cultural como o Brasil, falaremos
ainda durante muitos anos em valores emergentes. Pois se alguns desses valores já parecem
estar estabelecidos na sociedade, é só desviarmos os olhos dos grandes centros urbanos,
mesmo para a periferia desses, para nos darmos conta que o que o discurso ainda não é parte
da prática.
É através da comparação entre o discurso proposto na obra de arte – que
sensibiliza, emociona, faz viver junto – e a vivência de seu cotidiano que o leitor/receptor terá
a possibilidade de forjar um novo caminho. É nesse momento que a literatura infantil pode
alertar ou transformar a consciência crítica de seu leitor/receptor, como deve também ser
sua função na contemporaneidade, conforme afirmam Coelho (2000a) e Gregorin Filho
(2011a).
Espera-se que novas propostas de representação do feminino sejam encontradas
nas produções contemporâneas da literatura infantil dispostas a formar criticamente o leitor,
acompanhando todo o movimento de valorização do gênero e, por conseguinte, as alterações
nas relações de poder.
Assim como a linguagem pode dar significado aos processos sociais, ela também
é de fundamental importância nos processos de significação do indivíduo. Lola Luna, ao falar
da questão do feminino na literatura, nos apresenta algumas reflexões sobre linguagem,
literatura e formação do indivíduo:
Pero cuando aprendemos a leer aprendemos también a imitar modelos y
modos de lectura, procurándose nuestra adhesión o repulsa a los mundos
representados según um sistema axiológico de valores que va configurando
nuestro pensamiento. [...] Sabemos que con el lenguaje, um sistema social de
signos, se forma nuestro pensamento simbólico. Un pensamiento alimentado
por una prolongada <neotenia> que parece diferenciarnos como especie
sapiens y que tiene su origen iniciático en la infância, cuando comenzamos a
estructurar la experiência del mundo y a darle sentido. Es también entonces
cuando el niño o la niña comienzan a narrar su novela de formación del
43
43
COELHO, 2000b.
45
44
CAMPBELL, 1990, p.108
46
sistemas de alta cultura, foram fundamentais para a perda do poder simbólico feminino na
organização social ocidental.
Já o modelo que considera uma relação hierárquica entre o homem e a mulher
nasce na Antiguidade, tendo Galeno como responsável pela versão final de um pensamento
alicerçado por Aristóteles45, que acreditava em um papel distinto da mulher e do homem na
geração:
Enquanto a mulher seria a sede e o vetor da causa material da geração,
caberia ao homem o poder da causa formal. Sendo essas causas concebidas
de maneira hierárquica na ontologia aristotélica – isto é, a causa formal
sendo considerada superior e a causa material, inferior –, a superioridade
masculina estaria propriamente inscrita em ato na própria geração dos seres,
já que sem a forma de nada valeria a matriz feminina na sua materialidade
bruta. Seria aquela, pois, que imprimiria definitivamente seu traço sobre
esta, produzindo então uma hierarquia indelével entre o ser masculino e o ser
feminino no ato da geração. (BIRMAN, 2001, p. 37-8)
45
BIRMAN, 2001, p. 37.
46
BIRMAN, 2001, p. 40.
47
Sexo Único. Birman (2001) afirma que o desenvolvimento da biologia no século XIX e da
genética no século XX, enunciou as diferenças através de marcas naturais essenciais, em que
a essência do ser homem ou ser mulher teria caráter estritamente biológico. A ontologia dos
dois sexos estabeleceu-se através do sexo somático, cromossômico e hormonal:
Enfim, nesses diferentes registros da natureza e em diversos níveis de
complexidade do organismo, a diferença sexual foi estabelecida como
essência intransponível, de maneira que o ser do homem e o da mulher se
impuseram definitivamente como um determinismo insofismável da
natureza. (BIRMAN, 2001, p. 44).
47
BIRMAN, 2001, p. 47
48
BIRMAN, 2001, p. 49
49
BIRMAN, 2001.
48
50
BIRMAN, 2001, p. 51
51
BIRMAN, 2001, p. 51.
52
BIRMAN, 2001, p. 51.
49
De acordo com Coelho54, durante o século XII, Maria passa a ser o supremo
modelo de mulher, em contraposição a Eva. De um lado, a esposa, mãe, filha ideal, à imagem
de Maria, de outro, a mulher que leva o homem ao pecado, que se rebela, à imagem de Eva.
Retornando a história da mulher, registra-se que estas foram queimadas como
feiticeiras, reclusas em convento, internadas como loucas, expostas à prostituição e à
violência por não aceitarem o julgo de uma figura masculina que lhe dariam segurança e
proteção mediante obediência inconteste de um par com força espiritual e social suficiente
para encaminhá-las: o clero, o pai, o esposo, o filho.
Se retomarmos o paradigma de pensamento cartesiano-newtoniano conjugado à
construção da diferença de sexos biológica, seria aceitável que houvesse um sexo frágil e um
forte, que as características femininas fossem contrárias às masculinas, devido à natureza do
homem e da mulher serem distintas.
53
BIRMAN, 2001.
54
COELHO, 2000b.
50
55
COELHO, 2000b, p.89
51
Para que passemos ao panorama de obras e à análise dos corpora, são necessárias
algumas discussões precedentes, para que a análise comparativa dos contos não ocorra apenas
56
SCOTT,1995
57
SCOTT,1995, p. 86
58
SCOTT, 1995, p. 88
52
Quando o símbolo está presente na obra literária, devemos observar que apesar da
aparente permanência, os valores que este símbolo representa sofrem alteração de acordo com
o tempo, sociedade e cultura em que tem representação.
O símbolo da princesa é assim definido por Chevalier:
PRÍNCIPE, PRINCESA
O príncipe simboliza a promessa de um poder supremo, a primazia entre
seus iguais, qualquer que seja o domínio da questão: um príncipe das letras,
das artes, das ciências; a princesa dos poetas. O Príncipe Encantado desperta
a Bela Adormecida e a Princesa Distante faz sonhar os jovens. Ele exprime,
por outro lado, as virtudes régias no estado de adolescência, ainda não
dominadas nem exercidas. Uma ideia de juventude e de radiância está ligada
à de príncipe. Ele faz mais o gênero do herói do que o do sábio. A ele
pertencem os grandes feitos, mais do que a manutenção da ordem. O
príncipe e a princesa são a idealização do homem e da mulher, no sentido da
beleza, do amor, da juventude, do heroísmo. Nas lendas, o príncipe é
frequentemente vítima de feiticeiras, que o transformam em mostro ou
animal e ele somente recupera a sua forma de príncipe sob o efeito do amor
heroico. Por exemplo, em A Bela e a Fera, o príncipe simboliza a
metamorfose de um eu inferior em um eu superior pela força do amor. A
qualidade de príncipe é a recompensa por um amor total, ou seja,
absolutamente generoso. [...] (CHEVALIER, 2007, p. 744)
Observe que a princesa simboliza a beleza. Mas o valor do que é beleza se altera
de acordo com o espaço e o tempo em que o símbolo aparece. Nesse estudo, é necessária a
desconstrução da aparente neutralidade dos termos relacionados ao símbolo príncipe,
princesa, como beleza, virtude, amor, heroísmo. Compreender que o amor romântico tal qual
conhecemos hoje é também uma construção histórico-social, e que anteriormente esse
sentimento esteve vinculado a outros paradigmas, como o que naturalizava as relações
homoafetivas na Grécia Antiga, nos mostra que o estudo do símbolo não deve desvincular-se
do tempo e sociedade em que a obra que o resgata foi/é veiculada.
Como vimos em Chevalier (2007), a princesa é o símbolo das virtudes ainda em
formação. Quando combinado esse símbolo com o caráter formativo e ideológico de uma
53
literatura produzida por adultos para crianças, ou ainda, como o caso dos contos populares,
produzidas por adultos para adultos, mas selecionadas e reformuladas para a veiculação entre
as crianças, temos aí não o que são as mulheres na sociedade ou o que desejam os homens que
as mulheres sejam. Temos a representação de mulher ideal de cada sociedade sendo projetada
na geração posterior através do símbolo, que reafirma no imaginário da criança os valores que
o acompanham.
Essa dedução se valida pela escolha dos temas e pela demora da entrada de novos
valores nessa literatura. Se um valor ou padrão ainda estiver em discussão na sociedade,
raramente será encontrado na literatura para os pequenos, mesmo que os temas já estejam
presentes em suas vidas.
Este é o caso da homoafetividade. Para entender como a sociedade cerceia
produções literárias para crianças ampliam valores e padrões, vejamos o caso de duas obras:
uma, holandesa, outra, brasileira. Em ambas, as autoras retomam o símbolo do
príncipe/princesa para contar histórias de amor. A escolha por essas personagens nos diz
sobre a força desse símbolo em nosso imaginário e em como a atualização dos valores que o
símbolo representa pode responder ou não aos valores sociais vigentes, com indicadores de
aceitação ou de repúdio à obra.
59
Ainda não há publicação em Língua Portuguesa.
60
Material completo em anexo.
61
Material completo em anexo.
55
62
AZEVEDO, 1997.
57
Para o autor, fazer referência ao herói nos contos populares já nos leva a uma
preposição mitológica, visto que o herói é uma figura paradigmática por princípio, posto que
“Através dele, o homem arcaico conhece sua própria origem, aprende o que deve fazer, o
sentido da vida e dos costumes etc. E a trajetória do herói mítico representa esse referencial, o
modelo concreto, comportamental e existencial a ser seguido 63”. Contudo, nos explica que
para que o modelo responda a expectativa da comunidade, deverá ser admirado, causar
crédito, admiração e afinidade, independente da idade e do gênero das pessoas. Para tanto,
deverá:
1) ser conciso, amplo e genérico e 2) estar afinado com os valores culturais
do grupo. Mesmo sendo superior e invencível, o herói também precisa ser
humano. Quanto mais singular, idiossincrático e específico ele for, maior
será a probabilidade da não identificação por parte da plateia, o que
significaria o não preenchimento de seu papel enquanto modelo.
O que legitima o herói é a sua afinidade com a cultura e a visão de mundo (e
do humano) da comunidade que representa. [...] (AZEVEDO, 1997, p. 101)
Um herói que represente valores que não são aceitos pela comunidade não a
representará, não servirá como modelo. Essa compreensão é extremamente importante, pois
novamente chegamos à questão axiológica: o herói só será legitimado como modelo se tiver
afinidade com a visão de mundo da sociedade em que a obra é veiculada, no tempo em que é
veiculada.
Outra importante colocação de Azevedo é sobre a razão da busca do herói no
conto popular. Enquanto herói mítico coloca o bem da comunidade à frente de seus interesses
pessoais, o herói do conto popular é motivado por que Jolles (1976) chamou de moral
ingênua. A personagem busca restabelecer a ordem e reverter “a injustiça inicial colocada
63
AZEVEDO, 1997, p.101.
58
pelo enredo64”, porém atua “subjetiva e afetivamente; obedece ao livre arbítrio e não a
princípios abstratos pré-estabelecidos; é parcial e visa, acima de tudo, seus próprios
interesses65.” Isso porque o conto obedece à disposição mental do ser humano, não se
relacionando à história de uma comunidade, como representação de seu povo, como faz o
mito.
Azevedo (1997) resume o que entenderemos aqui por herói nas narrativas
populares e será nosso ponto de partida para compreendermos a jornada da princesa na
literatura infantil que se baseia nessas narrativas:
Em resumo, pode-se dizer que os heróis de narrativas populares são, em
geral 1) paradigmáticos por princípio; 2) vivem em lugares genéricos, longe
daqui, há muito tempo atrás; 3) muitas vezes são identificados apenas como
o príncipe, o rei, a princesa, a bruxa etc. Mesmo quando nomeados,
apresentam nomes comuns, João, Maria ou Pedro, nomes que qualquer um
poderia ter; 4) nem sempre apresentam aspectos físicos determinados ou
substantivos, mas sim genéricos e adjetivos: são bonitos ou feios, fortes ou
fracos, espertos ou tolos, bons ou maus, sortudos ou azarados. Essas
características subjetivas permitem a identificação de qualquer leitor (a
esfera pessoal, é diretamente influenciada pelas emoções: às vezes nos
sentimos bonitos; outras vezes, feios; em certas ocasiões agimos com
firmeza; em outras, fraquejamos etc.); 5) estão envolvidos em aventuras que
remetem a questões humanas bastante amplas: a busca do auto-
conhecimento (quantos heróis não pedem a benção do pai e, em seguida,
partem para “conhecer o mundo”? Ou então, perseguidos, fogem de casa e
veem-se obrigados a enfrentar riscos e desafios? Ou ainda, sozinhos no
mundo, após a morte do pai, partem em busca da sorte?); a busca do parceiro
amoroso (os casamentos de príncipes e princesas; a libertação do herói,
transformado por causa de um feitiço, etc.); a luta pela sobrevivência (a
busca do tesouro e da fortuna); a luta contra o mal que impede o amor e
ameaça a sobrevivência (monstros, castelos mágicos, bruxas etc.).
(AZEVEDO, 1997, p.103)
64
Azevedo, 1997, p.102.
65
Azevedo, 1997, p. 102.
59
estabelecidos. E isso acontece por o conto tornar o maravilhoso a única realidade plausível em
sua estrutura, regulado pela moral ingênua, como já vimos em Jolles.
Assim, no conto é possível que o aldeão se torne rei porque queremos que ele se
torne. Por que achamos que todos devem ter a oportunidade de realizar-se. Mesmo que isso
vá contra realidade. A moça pobre torna-se princesa porque queremos que a aldeã seja a
escolhida do príncipe. Porque desejamos que o amor seja mais importante do que as alianças
de poder.
Na literatura infantil, se retornarmos à obra Rey y Rey (HAAN; NIJJLAND,
2004), os príncipes se casam sem nenhum estranhamento ou impedimento porque as autoras e
parte da sociedade deseja que seja assim. Porém, o casamento entre dois homens ainda não é
um valor aceitável para um grupo grande de pessoas, mesmo em países que a lei já
determinou sua legalidade. Assim, se nossos valores pessoais nos orientarem entender que as
pessoas devem encontrar o amor e a felicidade acima de qualquer coisa, o herói será um
representante da busca pela felicidade, condição humana que torna sua busca genérica. Se
nossos valores pessoais nos orientarem que a relação entre dois homens é inadmissível, e a
generalização de sua busca como uma busca pelo amor tornar-se-á incompreensível ao leitor,
distanciando-o da aceitação e identificação com o herói.
Definido o herói, compreendamos a profundidade da simbologia da jornada, outra
importante questão a ser analisada nessa pesquisa. Para tanto, retornemos a Chevalier:
O simbolismo da viagem, particularmente rico, resume-se no entanto na
busca da verdade, da paz, da imortalidade, da procura e da descoberta de um
centro espiritual [...] as viagens são igualmente [...] a serie de provas
preparatórias para a iniciação [...] Nos sonhos e nas lendas as viagens sob
aterra significam penetração no domínio esotérico; a viagem aérea e celeste,
o acesso ao domínio do esoterismo. [...] A viagem exprime um desejo
profundo de mudança interior, uma necessidade de experiências novas, mais
do que um deslocamento físico. [...] A viagem ao inferno representa uma
descida às origens [...] ou uma descida ao inconsciente. (CHEVALIER,
2007, p. 951-952)
66
CAMPBELL, 1990, p.138.
60
busca do herói mítico, afirma que há heróis que escolhem realizar a empreitada e outros que
são levados a realizá-la.
Num tipo de aventura, o herói se prepara responsavelmente e
intencionalmente para realizar a proeza. Por exemplo, Atena ordenou a
Telêmaco, filho de Ulisses: “Vá procurar o seu pai”. Essa busca do pai é
uma aventura heroica superior, para os jovens. É a aventura de procurar seu
próprio horizonte, a sua própria natureza, a sua própria fonte. Você se
comprometeu nisso intencionalmente. (CAMPBELL, 1990, p. 137)
67
CAMPBELL, 1990, p.138.
61
Eros e Psique
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Por outro lado, essa atualização pode ocorrer no plano da narrativa na literatura
infantil contemporânea. As mesmas verdades gerais que interessam ao ser humano serão
contadas em novas narrativas, mas seus heróis deverão representar os valores da comunidade
atual para que ocorra a identificação entre o herói e o leitor, como vimos anteriormente nesse
tópico.
Justificado o posicionamento a respeito do herói, da jornada, da espera e
representação dessa jornada na literatura, optou-se por compor os corpora com obras que
63
trouxessem princesas que se preparam para a jornada, saem com intenção de cumprir seu
objetivo, partem com suas próprias identidades, revigorando a jornada do herói sob a
perspectiva da iniciação feminina que deixa a paralização da espera da aceitação de sua
natureza para colocar-se a caminho do autoconhecimento.
64
II – A ESPERA...
Nem tudo sempre foi paralização feminina na literatura popular. Outro padrão
feminino que é bastante recorrente nas literaturas tradicionais em todo o mundo é o da
donzela/princesa guerreira. Apesar de não compor os corpora principais em análise, não falar
65
sobre essa jornada seria um grande lapso ao tratarmos de representação feminina na literatura
e no conto popular.
Nos contos populares, muitas vezes temos moças/princesas que se travestem de
homem para fugir de uma situação de violência, como o casamento forçado, a pobreza, o
incesto, ou ainda, assumindo o lugar do filho varão na falta deste.
Assim acontece no rimance popular português A donzela que vai à guerra, aqui
apresentado através da adaptação de António Torrado (1981) e com ilustrações de Madalena
Raimundo. Esta narrativa escrita em versos foi adaptada do cancioneiro de Almeida Garrett
(1799-1854) e apresenta origem castelhana, com versões registradas desde o século XVI 68.
Nesta narrativa, em tempos de guerra entre a França e Aragão, D. Duardos, que
contava com sete filhas, queixa-se de sua triste sina de não poder guerrear nem contar com
filho varão que o fizesse. Guiomar, sua filha mais velha, apresenta-se então para substituir o
pai. No trecho abaixo, temos a desconstrução do feminino em um diálogo entre a donzela e
seu pai:
68
TORRADO, 1981.
66
Após essa prova, a voz a orienta a vestir-se de homem e seguir para um reino
próximo. Lá se emprega como jardineiro e torna-se amigo do príncipe, que caminha pelo
jardim todos os dias. E novamente são os olhos que denunciam sua condição feminina.
O príncipe vai aconselhar-se com sua mãe, usando o bordão Minha Mãe do
Coração, / Os olhos de Gomes matam, / De mulher sim, d’homem não!. Apesar da rainha
tentar dissuadi-lo, o príncipe segue em sua convicção. Assim, a mãe o orienta a levar Maria
em uma caçada e dormir abaixo do jasmineiro encantado, pois as folhas caem em cima dos
homens e as flores em cima das mulheres. Porém, com a intervenção do cavalo encantado, o
príncipe acorda coberto de flores.
O cavalo intervém ainda quando o príncipe tenta levar Maria para o banho de rio,
fazendo com que os dois o persigam, quando a chama para jantar, orientando-a a sentar-se na
cadeira alta e tomar a sopa quente, e quando o príncipe joga-lhe uma laranja, orientando
Maria a fechar as pernas como um homem invés de abri-las para tentar aparar a fruta com a
saia, como faria uma mulher.
Maria tem o segredo revelado quando o príncipe passa a mão por seu busto
enquanto a moça dormia, após não resistir ao sono, visto que foi obrigada a permanecer no
mesmo quarto que o príncipe por três noites, passando duas noites sem dormir para não ser
descoberta.
O príncipe exige que Maria se case com ele. Porém o cavalo revela a Maria que
ele mesmo é encantado e que irá se casar com ela assim que o feitiço for quebrado. Maria,
orientada pelo cavalo, pede ao rei que se organize uma cavalhada em homenagem a Santo
Antônio.
Após três apresentações de um cavaleiro misterioso, que aparece num dia vestido
de prata, no segundo vestido de ouro e no terceiro de diamante, vencendo todos os combates,
Maria é transportada para a garupa do cavaleiro com ajuda mágica e retorna a casa da floresta,
que após a quebra do encantamento, transforma-se em um lindo palácio, no qual o casal será
feliz para sempre.
Como podemos perceber nessa breve exposição, diferente do conto A donzela que
vai à guerra, no conto Maria Gomes não existe uma explicação lógica para que a moça tenha
que se travestir de homem. Enquanto Guiomar tem necessidade de representar a família na
batalha entre a França e Aragão, Maria apenas segue os comandos da voz misteriosa.
68
69
CAMPBELL, 1990, p. 87.
70
70
GRILLO, 1993.
71
MACHADO, Regina, 2004.
71
encanto se desfaz e ela volta a ser uma mulher horripilante, ossuda e desengonçada. Porém o
rapaz reconhece em seus olhos a mulher de antes, permanecendo ao seu lado.
Trazer essas duas histórias nos serve para entender que há na literatura popular
outros registros de representações do feminino e do masculino que persistiram ao tempo, mas
não tiveram a mesma expansão e divulgação. Os valores da comunidade e a identificação com
os heróis podem ser reguladores nestes casos. Ainda que apresentem conflitos da condição
humana, apresentar uma princesa feia que permanece feia ou um príncipe que usa como
artimanha passar-se por mulher conflita com os padrões desejáveis na maior parte das
sociedades.
Um importante romance brasileiro retoma a donzela guerreira em sua narrativa.
Em Grande sertão: Veredas, de Graciliano Ramos, a personagem Diadorim traveste-se de
homem para acompanhar um grupo de jagunços e vingar a morte de seu pai. Riobaldo,
narrador-personagem que durante todo o tempo convive com Diadorim e que sente uma
amizade incomum e certa atração pelo companheiro, só descobre momentos antes da morte
dela que se tratava de uma mulher.
A jornada da mulher que se traveste/transforma diz muito dos novos paradigmas
femininos na atualidade, sobre a apropriação de campos antes tidos como exclusivamente
masculinos. Porém, como pudemos ver, não há atualização de valores nessa jornada, visto
que o conto popular e o conto da literatura contemporânea trazem aspectos muito parecidos
do feminino. Apenas o conto Maria Gomes diferencia-se. Ou seja, existem contos tradicionais
que representam as mulheres de forma submissa e pouco atuante como existem contos que as
representam como autônomas e capazes de buscar a própria realização.
Nada obstante, são narrativas que donzela/princesa sai em jornada passando-se
por homem. Assim, apesar de serem de valiosa contribuição para nossa discussão, visto que
as personagens ultrapassam os limites que as definições sociais, culturais, simbólicas de
gênero impõem, essas obras não fazem parte dos corpora principais dessa dissertação.
jornada do caçador que persegue o cervo, essas donzelas/princesas não sabem para onde se
dirigem. São surpreendidas pela transformação de seu mundo.
Geralmente, a sua finalidade maior está na realização amorosa, enquanto a
garantia da subsistência virá como uma complementação lógica da vida de casada. Para que
esse casamento se realize, no entanto, os aspectos fundamentais da boa esposa devem
aparecer em suas ações e no aspecto físico. A pureza, a beleza, a resignação (às vezes um
pouquinho de coragem), o trabalho doméstico perfeito, o cuidado com os desejos do cônjuge.
Naturalmente, essa divisão não abrange todos os contos, como os em que o papel
do príncipe e da princesa inverte-se, o que ocorre em A princesa Jia, ou que a princesa
escolhe o pretendente encantado, passando pelas provas para encontrar a felicidade, como em
O Veado de Plumas.
Nesses contos, como vimos anteriormente, a lógica é regida pelo pensamento
mágico e pela moral ingênua. Não questionamos o fato de o rapaz aceitar o casamento para
estabelecer-se financeiramente porque esse casamento é a ação que vai terminar com injustiça
inicial posta no conto: a pobreza, a fome, a necessidade de autoafirmação perante a família ou
a comunidade (um irmão mais novo que enfrenta a zombaria dos mais velhos, por exemplo).
Também não questionamos a escolha da princesa em não reagir à situação de perigo, como no
caso d’A Princesa do Sono-Sem-Fim ou pôr-se voluntariamente em perigo, com em O
príncipe Lagartão. Assim como acreditamos que o amor acontecerá, acreditamos no amor à
primeira vista, afinal essa é uma condição para que haja realmente um final feliz, ou seja, que
o conto atenda nossa disposição mental e seja metáfora das realizações importantes para a
condição humana.
De maneira geral, podemos afirmar que os contos que apresentam princesas na
coletânea Contos Tradicionais do Brasil se organizam de acordo com a lógica interna dos
contos populares, apresentam as temáticas que dizem respeito à condição humana,
atualizando algumas questões culturais e regionais, mas mantendo os valores medievais e
modernos na representação das personagens feminina.
Muitos autores retornaram à imagem da princesa nos últimos cem anos. Porém, se
74
72
LOBATO, 2014, p. 217.
75
bondade. Traz um espelho mágico para Emília e esclarece que os sete anões vivem com ela no
castelo. Todas essas qualidades, e mais o reconhecimento da princesa pelos amigos que a
salvaram, nos apresenta os valores esperados de uma princesa clássica. Na obra de Lobato,
novamente é Emília quem humanizará a situação, quando o espelho responde que a boneca
contadora das histórias mais bonitas é a Marquesa de Rábico, título recebido pela boneca
após seu casamento com um leitão. A fala do espelho faz a boneca suspirar e calar. Narizinho
percebe que é de tristeza, por já ser casada e não poder casar-se com o espelho73.
Narizinho também casa-se no decorrer da história. Depois de visitar o Reino das
Águas Claras, o peixe, que é príncipe e rei ao mesmo tempo, cai de amores pela menina e,
algum tempo depois, pede-a em casamento. É interessante perceber que toda vez que a
menina Narizinho está no Reino, existe um momento de transformação dada pela
confecção/escolha do vestido. Enquanto na história da Cinderela o vestido é a condição para
que a Borralheira tenha a noite de princesa, em Reinações de Narizinho, o vestido assume a
função de tirar Narizinho da condição de criança e passá-la à princesa, tornando-a um ser
encantado como os seres ao redor. Quando entra no salão de baile acompanhada pelo
príncipe, os fidalgos exclamam: “Como é linda![...] Com certeza é filha única da Fada dos
Sete Mares74”. Esse contrato de aceitação do Faz-de-Conta permite que aceitemos a escolha
da menina de casar-se e, ainda mais, de casar-se com um peixe. Este não se transformará em
um príncipe, como no conto A Bela e a Fera, ele já é príncipe e seu reino é o das águas. E a
naturalidade com que a menina aceita o fato nos faz duvidar da nossa própria naturalidade em
não aceitá-lo, como podemos observar no diálogo entre Dona Benta e Narizinho:
- Casar com quem, menina? Que história de casamento é essa?...
- Sim, vovó! Fui pedida em casamento e aceitei. Vou casar-me com o
Príncipe Escamado.
Tia Nastácia arregalou os olhos para Dona Benta, que por sua vez tinha os
olhos arregalados para a menina.
Narizinho riu-se de tanto olho arregalado e continuou:
- De que é que se espantam? Se toda gente se casa, por que não posso casar-
me também?
- Sim, minha filha – respondeu Dona Benta com pachorra. – Todos se
casam, não há dúvida. Eu me casei, sua mãe se casou. Mas todos se casam
com gente da mesma igualha. É muito diverso disso de casar com um
peixe...
- Dobre a língua, vovó! Escamado é príncipe. Se se tratasse aí de um peixe
73
LOBATO, 2014, p. 218
74
LOBATO, 2014, p. 32
76
vulgar de lagoa, vá que vovó falasse. Mas meu noivo é um grande príncipe
das águas...
- Mas não é criatura da nossa espécie, menina.
- E que tem isso? A Emília, que é uma boneca, não se casou tão bem com
Rabicó, que é leitão? Acho as suas ideias muito atrasadas, vovó...
Dona Benta volveu os olhos para Tia Nastácia.
- Já não entendo estes meus netos. Fazem tais coisas que o sítio está virando
livro de contos da Carochinha. Nunca sei quando falam de verdade ou de
mentira. Este casamento com peixe, por exemplo, está me parecendo
brincadeira, mas não me admirarei se um belo dia surgir por aqui um
marido-peixe, nem que essa menina me venha dizer que sou bisavó de uma
sereiazinha...
A negra benzeu-se com ambas as mãos.
- Credo! Até parece bruxaria... Mas se chegar esse tempo, sinhá, mecê que
trate de arranjar outra cozinheira. Assim catacega como sou, tenho medo de
escamar e fritar um bisneto de mecê pensando que é alguma traíra...
(LOBATO, 2014, p.123-4)
Assim, temos em Lobato tanto a manutenção dos valores das princesas clássicas
quanto à possibilidade de novas princesas, que como Narizinho, são desafiadoras, apresentam
ideias próprias, rompem com os paradigmas, fazem escolhas subversivas. Porém, esse escrito
da década de 1930 permaneceria encubado em nossa literatura infantil durante mais de
quarenta anos até o surgimento de outras princesas que fizessem justiça à herança de
Narizinho.
A trama continua com o casamento, a visita do Príncipe Escamado e a posterior
viuvez da menina, que primeiro acredita que o príncipe desaprendeu a nadar e se afogou e
depois cogita que foi comido pelo Gato Félix, outra personagem estrangeira ao sítio que
aparece na história.
A partir da segunda metade do século XX, os movimentos feministas também
colaboraram para que a princesa moderna (de Perrault, Grimm e Andersen), não fosse vista
com bons olhos. A criticidade do papel da mulher na sociedade foi estendida para as obras
infantis, compreendendo que as representações oferecidas à criança não atendia a expectativa
da nova mulher que estava em construção no discurso social75.
Entre o final da década de 1970 e início da década de 1990, inclusive as
produções audiovisuais para crianças exploraram essas personagens sob novas óticas. Os
75
No entanto, nas prateleiras coexistem as princesas modernas e contemporâneas, através do tributo à história
clássica e sua verdade geral, da dessacralização dessas histórias pela paródia e outros recursos de linguagem, e
da permanência do símbolo com valores diferentes do das narrativas populares, em novas narrativas.
77
Estúdios Disney, com grande aceitação no mercado brasileiro, lançaram durante esse período
The Little Mermaid (1989), Beauty and the Beast (1991) e Aladdin (1992), em que,
respectivamente, há uma princesa desobediente; uma moça que gosta de ler e nega-se a casar
com um jovem atraente e promissor em sua comunidade, apaixonando-se por uma fera; e uma
princesa que foge do palácio por vontade de experimentar novas vivências e conhecer o
mundo, não se casando com um príncipe.
Neste interim, nossa literatura já estava abastecida com novas representações de
princesas graças a autoras e autores como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Marina
Colasanti, Pedro Bandeira e Flávio de Souza, além de tantos outros que colaboraram com
novas perspectivas e valores para o símbolo príncipe/princesa em obras destinadas às
crianças.
Em História Meio Ao Contrário, de Ana Maria Machado, originalmente publicada
em 1978, temos uma princesinha que nasce linda como um raio de sol e durante toda a
história aparece em ações secundárias, ofuscada pela Pastora, personagem que participa
ativamente da aventura.
Durante a trama, o rei ordena que matem o dragão que rouba a noite, prometendo
a mão da princesa em casamento. Neste momento, temos um discurso significativo na fala da
Pastora, que afirma “Eu que não quero casar com um desconhecido só porque ele é bom de
briga...76”. A crítica ao sentimento de honra da mulher em ser dada como prêmio ao campeão,
tão comumente encontrada nas narrativas medievais, inicia-se aí.
A princesa, por sua vez, durante toda a narrativa expressa sua opinião apenas na
repetição da frase Deve ser lindo!, enquanto escuta a descrição de como o dragão se apropria
do dia, reforçando sua imagem de donzela romântica e sendo duramente repreendida pelo
Cale a boca, menina, ralhado pela mãe, que por sua vez, também não tem participação
expressiva na história.
É no final, no entanto, que a princesa reverterá essa situação. Com a volta do
Príncipe após o combate, o rei dispõe-se a cumprir a promessa de dispor sua filha, ainda que o
dragão não tenha morrido. E a Princesa surpreende:
– Meu real pai, peço desculpas. Mas se o casamento é meu, quem deve
resolver sou eu. Só caso com quem eu quiser e quando eu quiser. O Príncipe
76
MACHADO, 2005.
78
é muito simpático, valente, tudo isso. Mas nós nunca conversamos direito. E
eu ainda quero conhecer o mundo. Até hoje eu nem sabia que o sol voltava
todo dia tão bonito. Tem muita coisa que eu ainda quero saber. Isso de ficar
a vida inteira fechada num castelo é muito bonito, mas eu vi que aqui fora,
nesses campos e nesses bosques, tem muita coisa mais. Não quero me casar
agora.
Foi um deus nos acuda. O Rei gritou, urrou, esbravejou. A Rainha
explicou que todas as princesas das histórias se casam com os príncipes que
vencem dragões e os gigantes. E que os dois vivem felizes para sempre.
Não adiantou nada. A Princesa olhava a Pastora, via como era bonita
aquela moça de olhar firme e cabeça levantada, e insistia:
- Nada disso. Minha história quem faz sou eu. (MACHADO, 2005, p. 44)
dos bosques. Por fim, a moça retorna à floresta, torna-se toda corsa, e passa a pastar próximo
ao castelo.
Poderíamos contrapor aí duas imagens: na primeira a mulher enquanto natureza, a
corsa. A sintonia com a terra, as flores, os pássaros, a agilidade da corrida, a liberdade e a
língua da floresta pertencem a essa imagem. Não lhe pertence o segredo da palavra. Essa
imagem, o príncipe quer matar.
A segunda imagem é a da mulher enquanto construção social, a princesa, com seu
palácio, roupas, joias. Pertence-lhe também o quarto trancado e os passos cambaleantes. Não
lhe pertence o segredo da palavra. A esta, o príncipe deseja amar.
A questão da voz apresenta-se novamente nesse conto. Nem como corsa nem
como moça a fala pertence à figura feminina. O homem tem a chave e a fala. O desequilíbrio
de poder na sociedade está bem representado.
Para não abrir mão de sua essência, que é ser corsa, a moça/corsa/quase princesa
abre mão da felicidade conjugal, que nos paradigmas sociais modernos seria o único objetivo
da mulher. Mas não podemos afirmar que abre mão do amor, já que se põe a pastar na janela
do príncipe.
Temos nisto um paradoxo que poderia dizer sobre a condição feminina neste
século: tentar conciliar as contradições entre a corsa e a princesa – entre escolher e ser
escolhida, entre seguir em jornada, livre para explorar a floresta, ou permanecer na
imobilidade da espera pelo príncipe, presa num quarto do palácio – e terminar pastando
perante a janela.
Na obra Procurando Firme, de Ruth Rocha (1984), já de início temos uma
conversa com o leitor, através de um prólogo que simula o diálogo entre o narrador e um
ouvinte. Este último já não aguenta histórias “chatíssimas, que a princesa fica a vida inteira
esperando o príncipe encantado77”. Através do diálogo, nós já podemos constatar o desgaste
do estereótipo de princesa clássica veiculado nas décadas anteriores. E essa princesa clássica
que será desconstruída na obra, através de Linda Flor.
77
ROCHA, 1984, p 8
80
Essa obra será estudada mais profundamente no próximo capítulo, visto que
encontramos na narrativa uma importante jornada que discute a formação e a expectativa de
realização da princesa.
Pedro Bandeira, em O Fantástico Mistério de Feiurinha (1986), traz as princesas
após vinte e cinco anos de casadas, todas com o sobrenome dos maridos, que pertencem à
família Encantado. Na obra, as princesas invadem a casa de um escritor para exigir que ele as
ajude a recuperar a história de Feiurinha, uma princesa que desapareceu, juntamente com
todos os vestígios de sua história. Para elas, é claro que a personagem desapareceu porque sua
história foi esquecida e temem que isso possa acontecer com suas histórias também.
A obra usa a paródia, a desconstrução do estereótipo de princesa através do riso,
para prestar um tributo aos contos de fadas, contando uma nova história com todos os
elementos de um conto clássico, ao mesmo tempo em que alerta para a importância da
manutenção desses contos.
Porém, a tentativa de rompimento, talvez para efeito cômico, não rompe ou inova
a concepção de feminino. A dicotomia mulher jovem/velha está claramente colocada aí,
contrapondo a virtuosidade da mulher jovem à inveja e mesquinhes da mulher velha.
Reafirma a imagem dual da mulher: passam de boas e belas para megeras desgastadas com o
tempo, ainda que mantenham algumas das características às identificavam: o sono da Bela
Adormecida, a beleza de Branca de Neve, sem complexidade de sentimentos ou pensamentos,
fixando-as em um caráter frívolo e volúvel. O estereótipo desconstruído, de princesa bondosa,
educada, generosa, é substituído por outro estereótipo de mulher: rancorosa, invejosa, falsa,
competitiva.
Apenas Chapeuzinho Vermelho, que não se casou, livra-se um pouco desse
destino. Porém, é constante a afirmação de que tem quilos a mais e que isso é o que a mantém
solteira. Isso tampouco aproxima a obra das discussões sobre o feminino da época.
Entretanto, conforme Lajolo (1989), o papel feminino torna-se expressivo quando
é Jerusa, a empregada do escritor contatado pelas princesas para recuperar a história de
Feiurinha, que se lembra da história e a narra. Temos um exemplo de voz feminina
ressignificando o mundo.
Em seu livro Príncipes e Princesas, sapos e lagartos: histórias modernas de
tempos antigos, de 1989, Flávio de Souza desconstrói a imagem das princesas clássicas
através da ironia.
81
São diversas princesas espalhadas na narrativa longa, nas curtas e nas curtíssimas.
A crítica à princesa clássica e aos valores modernos permeia toda a obra, às vezes de forma
mais ácida, como na Princesa Silvana do Reino de Vronka, que mantém um eterno sorriso no
rosto e ganha todos os concursos de miss-simpatia, quando na verdade tem um defeito na
face.
A princesa da Brondolândia, após cansar-se de aguardar na torre, salva a si mesma
para enfim descobrir que seu salvamento não representava desafio o suficiente e termina por
encenar um dragão, com a ajuda do lagarto que anteriormente guardava sua torre, para chamar
a atenção de um príncipe e finalmente casar-se.
Outra princesa importante na análise da obra é Úrsula da Bronislávia, que nasceu
não correspondendo aos padrões e escandaliza o reino ao ir viver feliz para sempre rodeada de
odaliscas em um castelo a beira-mar.
Seguem-se princesas como Linda do Laço-de-Fita, que envelhece na janela,
esperando um príncipe que corresponda aos seus altos padrões de beleza e perfeição. Além de
outras tantas, que mostram como as princesas e os finais felizes podem ser plurais. A jornada
da Princesa Miranda, na narrativa longa, poderia ser analisada mais profundamente também,
visto que a princesa, durante vários desencontros, foge de casa e, após sua volta, é sequestrada
junto a outras princesas, tem papel ativo em seu próprio salvamento, se junta ao circo,
tornando-se cantora, para pôr fim encontrar o amado e morrer. Porém são poucas as decisões
tomadas conscientemente. Durante toda a narrativa, a princesa é empurrada pelo destino e sua
coragem é determinada através da necessidade em fazer o imprescindível para sobreviver.
Terminando aqui este breve panorama de obras do século XX, podemos afirmar
que a pluralidade de representações responde aos questionamentos sociais quanto aos padrões
femininos impostos até a metade do século. E a literatura infantil responde a esses
questionamentos desconstruindo padrões principalmente através do riso e da ironia, excluindo
Marina Colasanti, que utiliza o que Nelly Novaes Coelho (2000a) chamou de linha do
maravilhoso metafórico (ou simbólico).
82
A Princesa que Escolhia (2006) e Uma, duas, três princesas (2014) são obras
recentes de Ana Maria Machado. A autora, que discute o feminino em muitas obras,
novamente retoma a princesa para apresentar novos padrões na literatura infantil brasileira.
Isso porque as narrativas, para além da intertextualidade com os contos de fadas
clássicos, trazem a formação de princesinhas que, através do conhecimento adquirido em
diversas mídias, do livro à internet, encontram novos caminhos para o progresso de seus
reinos.
No primeiro livro, A princesa que escolhia (2006), principia com a princesa que
deixa de ser obediente e é posta de castigo em uma torre, onde descobre que o mundo é maior
do que imaginava. Lá faz amizade com os filhos do jardineiro, lê histórias e recebe
informações através de livros e da internet. Após resolver um problema do reino, recebe o
direito à liberdade e a permissão de poder escolher sempre. Usa esse direito para escolher das
próprias roupas aos amigos, escolher suas atitudes e uma profissão. Escolhe inclusive o
direito de dar direito de escolha aos seus súditos, através do parlamentarismo. O tema do amor
aparece já com uma ideia de amor confluente, quando a princesa reencontra o filho do
jardineiro e começam um namoro.
O narrador finaliza:
E a princesa?
Nem sei se ainda vive por lá e se ainda manda em alguma coisa. Sei que
ainda está com o filho do jardineiro.
Também não sei se os dois viveram felizes para sempre. Mas posso garantir
que estão muito felizes... É que os dois se escolhem a cada dia...
E quando alguém pergunta à princesa se ela se arrepende de não ter casado
com um príncipe, ela responde:
- De jeito nenhum. Eu tenho o que sempre quis. Sei que não escolhi um
príncipe. Mas acho que escolhi um princípio. Só um jeito de começar.
A continuação, agora, é com eles. Podem ter alguns problemas, mas muitas
vezes são felizes. (MACHADO, 2006, p.34)
Outra mudança de valores está no destino da mulher deixar de ser definido pela
natureza para tornar-se uma construção de suas escolhas. E, ao escolher o próprio destino,
abre mão do felizes para sempre com um príncipe, para construir uma relação que se principia
a cada escolha, trazendo felicidade através da ação, da disposição em construir com o outro,
apesar dos problemas.
É interessante perceber que essa obra não tem uma narrativa próxima aos contos
populares, apenas usa de suas personagens. Isso porque o conflito principal do texto é a
própria educação da princesa, problematizando-a através de pequenos embates enfrentados
em diferentes fases da vida, sempre reforçando a necessidade de se fazer uma escolha. Com
isso, a obra termina por ser exemplar em excesso.
Uma, duas, três princesas (2014), apresenta temática parecida, porém tem o
enredo mais elaborado e o desfecho mais surpreendente, causando a impressão que a A
princesa que escolhia (2006) era um preâmbulo, uma apresentação dessa nova imagem de
princesa.
A narrativa em Uma, duas, três princesas já se aproxima mais da narrativa
popular, pois o enredo envolve a jornada não de uma, mas das três princesas. Durante todo o
tempo a autora retoma as matrizes populares para aproximar e distanciar o universo proposto
com o universo popular.
A questão de gênero está posta desde o início: novamente há um rei que não teve
filhos varões, como ocorre nas narrativas de donzela guerreira. Porém, ao invés de esperar
casá-las ou que assumissem a figura masculina em um contratempo, o rei, aconselhado pela
esposa, leva ao parlamento a necessidade de modernizar as leis: possibilitar que as princesas
sejam herdeiras e regentes do reino.
A partir dessa proposta, o que temos é uma interessante discussão que se inicia
sobre os motivos presentes nos contos populares. Ao mesmo tempo em que a autora constrói
uma nova representação de feminino, ela desconstrói o pensamento mágico e a moral ingênua
como lógicas aceitáveis em sua narrativa.
Aprofundaremos a discussão dessa obra no capítulo a seguir.
84
III – A JORNADA...
78
CASCUDO, 2000, p. 16
79
Informações coletadas no website da autora, no endereço http://www.ruthrocha.com.br/biografia. Acesso em
26/jun/2016.
80
Informações coletadas no website da autora, no http://www.anamariamachado.com/biografia. Acesso em
26/jun/2016.
85
Luna (1996) nos chama atenção à questão da ideologia sexual nas práticas
discursivas e geradoras de sentido, indicando que devemos ter “atención, sin embargo, a los
modelos de análisis, pues a veces éstos llevan implícitos una ideología sexual sólo
aparentemente neutra81”. Nesta pesquisa, temos a figura da princesa em obras produzidas por
mulheres e analisada por uma mulher investigando como a literatura infantil relaciona-se com
a transformação do espírito feminino na sociedade. Dessa forma, é inevitável que se leia como
uma mulher a imagem da mulher na escrita da mulher.
E afirmar que a leitura realizada por uma mulher se difere da leitura realizada por
um homem nos leva a velhos conceitos correntes em nossa sociedade. Ou seja, mesmo na
escrita acadêmica as relações de poder são marcadas pelo gênero, pois se enunciar que a
leitura é feita como uma mulher impõe à pesquisa um caráter subjetivo, significa que
neutralidade seria a característica de uma leitura objetiva, que como sabemos, não existe.
Esta afirmativa se faz necessária para que desconstruamos o caráter objetivo e
imparcial da análise, pois ainda que o estudo não seja sobre representação feminina, toda
análise é construída dentro de determinado sistema de analogias e de representações de
mundo. Dessa forma, esta análise é carregada de ideologia, assim como toda enunciação, nos
diria Bakhtin.
Posto isso, comecemos apresentando as três obras compõem os corpora desta
dissertação, que pretende propor, através de uma análise comparativa, um estudo das
representações do feminino nos contos populares e nas obras da literatura infantil brasileira
em que a princesa aparece como uma personagem em transição, identificando a perpetuação e
renovação dos valores atribuídos ao gênero feminino em cada obra.
81
LUNA, 1996, p. 13.
86
82
Sobre o registro dos contos, o pesquisador explica que: “Na colheita das histórias, fixei, não o local do
nascimento do narrador, mas a cidade em que maior número de anos residiu, onde passou sua infância, onde
ouviu e registrou na memória os contos que transmitiu. A linguagem dos narradores foi respeitada noventa por
cento. Nenhum vocábulo foi substituído. Apenas não julguei indispensável grafar muié,, prinspo, prinspa, timive,
terrive. Conservei a coloração do vocabulário individual, as imagens, perífrases, intercorrências. Impossível será
a ideia do movimento, o timbre, a representação personalizada das figuras evocadas, institivamente feita pelo
narrador. Os colaboradores tinham níveis de culturais mais diversos. Foram desde a senhora ao ginasiano, da
cozinheira à ama analfabeta, da velha mãe de criação ao jardineiro efêmero, com as idades de doze a setenta e
cinco anos, Fernando-Luís e Manuel Galdino Pessoa”. (CASCUDO, 2000, p. 16)
87
Chegamos então à jornada da pequena princesa, que não foi solicitada a ir buscar
os irmãos, mas percebendo que nenhum dos dois voltava, teimou com o seu pai/caçador e foi
em busca dos meninos. Porém, chegando ao pomar, apesar da fome e da sede, a princesa
senta-se no chão e come seu pão seco e a água de um cabacinho. Após terminar a refeição e
rezar, continua o percurso e encontra um castelo gigantesco e vazio. Enche a cabaça com a
água fervente do poço na entrada do castelo e retorna:
Quando ia saindo do pomar viu duas estátuas nos lados da estrada e muitas
outras espalhadas. A menina parou e reparou que as estátuas eram os dois
irmãos seus. Não sabia o que fazer quando se lembrou que levava a Água-
da-Vida no cabacinho. Tirou-o da cintura, destapou e deixou cair umas gotas
em cima das duas estátuas. Assim que a água bateu em cima da pedra, esta
estremeceu e os dois moços voltaram a ser gente, abraçando a irmã. O
caçador fez muita festa quando os viu voltar em paz e a salvamento.
(CASCUDO, 2000, p. 102)
Depois do retorno e de uma breve explicação que os três príncipes usavam gorros
para esconder as estrelas na testa, o enredo começa a se desenvolver rapidamente: a criada,
agora uma pedinte, pede abrigo e, ao reconhecer os meninos, conta a eles que são filhos do
rei. Esses perdoam a criada e partem em busca da mãe no convento em que ela estava presa.
O rei, cego de tanto chorar, oferece recompensa a quem apresentar a cura. Os filhos levam a
Água-da-Vida ao castelo e a princesa pede licença e molha os olhos do pai. Quando o rei
volta a enxergar e oferece aos meninos o que quiserem, os três retiram o gorro, se ajoelham e
pedem o reconhecimento e a benção do pai. As tias pulam por uma janela se espatifando nos
lajedos e o rei premia o caçador e a criada, depois segue com os filhos e a corte para pedir o
perdão à esposa, que o concede e passam a viver muito felizes.
Procurando Firme (1984), de acordo com a apresentação feita por Ruth Rocha, é
“Uma história que parece história de fadas mas não é. Também parece história para criança
pequena mas não é83”. Foi publicado originalmente em 1984, pela editora Nova Fronteira.
83
ROCHA, 1984, p. 5.
88
Ou seja, uma descrição clássica do que se espera de uma princesa. Assim como
são clássicas as tarefas com as quais ela se ocupava. De acordo com o narrador, que aparece
por diversas vezes em diálogo com o ouvinte, a princesa se ocupava com atividades sem
funcionalidade objetiva, ou seja, atividades que não poderiam se transformar em trabalho, mas
garantiriam um casamento vantajoso. Aulas de canto, de bordado, poesia, flores de marzipã.
Ocupava o tempo e esperava que o príncipe viesse derrotar o dragão para casar-se com ela.
Seu irmão, príncipe, conforme seu destino, deixa o castelo. E a princesa Linda
Flor continua à espera. Até que, por fim, começam a aparecer os pretendentes reais. Logo de
início, a princesa fica desapontada com o primeiro pretendente, que parece arrogante Linda
Flor recusa-se a mostrar como é prendada e, posteriormente, recusa-se a casar. Outro
pretende se apresenta e a princesa mantém a mesma postura.
84
No prólogo e durante todo o texto se apresentam diálogos entre o narrador e um ouvinte, que em nenhum
momento é apresentado. Os diálogos são informais e acrescentam explicações metalinguísticas e metatextuais,
além da crítica à conduta das personagens e aos contos de fadas tradicionais.
85
ROCHA, 1984, p. 7
89
Este é o parágrafo final do livro. A saída para jornada ao exterior do castelo torna-
se a própria conclusão da jornada interior dessa princesa.
86
MACHADO, 2014, p. 10
87
MACHADO, 2014, p. 17
91
mensagem pela internet, reafirmando sua preocupação e pedindo que mandassem logo a
segunda irmã.
A segunda irmã tinha sido menos preparada que a primeira. Havia lido menos,
mas escutara as histórias que a mais velha contava. Assim, procura ganhar ajuda mágica
ajudando velhinhas, anões, dividindo seu lanche com um velhinho, recolhendo passarinhos
caídos do ninho, protegendo formigueiros, livrando coelhos da armadilha, quase soltando
carneiros do vizinho, enfim, recorrendo a vários recursos que os contos populares costumam
usar para premiar a bondade com o auxílio mágico. Quando nada funciona, beija um sapo,
mas esse não vira príncipe, a princesa termina por adoecer e pede que enviem a irmã mais
nova.
A última princesa estava ainda menos preparada, pois não estudara tanto e
também não conhecia tantas histórias, mas usou o recurso que acumulava todos os
conhecimentos humanos desde a época das cavernas até as descobertas recentes: a internet.
Quando sai em busca da cura, começa a intervir nas histórias clássicas, atrapalhando a
continuidade dos enredos, até que enfurece todo o reino, recebendo críticas sobre o mau uso
das informações coletadas na internet, da necessidade de obter conhecimento além dos
desenhos televisivos, enfim, da má educação que o rei deu às garotas.
Então os ministros voltam a chamar a princesa mais velha, que lia e “não tinha
apenas olhos de azeitona. Conhecia o que fica em pé quando o resto desmorona88”. A princesa
então afirma que acreditar que a doença é encantamento demonstra falta de conhecimento e
manda buscar um especialista que tenha tido uma formação múltipla, isto é, “estudado em
tudo que é canto, com livro, escola, professor, laboratório, televisão e computador 89”. Dá
certo. O pai e a irmã do meio são curados. A irmã mais nova vai para a escola e, nas palavras
do narrador:
E a mais velha:
Viveu feliz para sempre? Quase.
Mas ficou para sempre livre da obrigação de seguir tudo igualzinho a como
já estava escrito. E de fazer tudo repetido.
Por isso viveu feliz às vezes.
Como todo mundo, teve dias de riso e dias de choradeira. Mas ficou para
sempre curiosa e inventadeira. (MACHADO, 2014, p. 39).
´
88
MACHADO, 2014, p. 37
89
MACHADO, 2014, p. 37
92
90
Dessas invariantes, Coelho (2000a) elenca seis sempre presentes nos contos: situação de crise ou mudança;
aspiração, obediência ou desígnio; viagem; obstáculos ou desafios; mediação auxiliar e conquista, que podem
ser repetir ao longo da narrativa.
93
As princesas, uma a
3– A princesinha parte Linda Flor parte para
uma, partem em busca
Viagem em busca dos irmãos correr o mundo
da cura.
Fazer a jornada
4– resistindo a não O próprio
Obstáculos comer as frutas do desconhecimento e
e Desafios pomar nem beber a credulidade.
agua do rio.
Mediação natural: a
criada que reconhece e Mediação natural: o
identifica as crianças chamado dos ministros à
5– como os príncipes primeira princesa
Mediação perdidos. novamente.
Mediação mágica: a Mediação mágica: não
Água-da-Vida que faz o há.
rei voltar a enxergar
Não obstante, há nas obras aspectos que são passiveis de análise comparada, visto
que o objetivo dessa pesquisa é compreender como a representação da princesa e de sua
jornada se alterou no último século na literatura infantil brasileira. Para isso, analisaremos a
jornada em três aspectos: a formação, a saída do estado de espera para o movimento da
jornada e os aspectos valorizados na jornada.
3.4.1 Formação
Neste tópico analisamos a relação das princesas com as outras personagens que
fazem parte das situações iniciais do enredo, anteriores à jornada. Iniciemos pelas relações
com as outras figuras femininas das narrativas.
Em A rainha e as irmãs, temos outras quatro mulheres: a rainha, que é escolhida
pelo rei por sua promessa de dar-lhe filhos com estrelas de ouro na testa, as duas irmãs, que se
corroem de inveja e agem com maldade ao mandar matar os sobrinhos para tentar roubar o
marido da mais nova, mesmo tendo sido acolhidas no castelo, e a criada, que apesar de levar
as crianças para a morte, prefere deixá-las na floresta, abstendo-se de definir o futuro dos
bebês, por fim, conscientiza-se do mal que causou e, com a inspiração divina, revela a
verdade.
Na rainha, temos a imagem da mulher submissa que é passiva às suas desventuras
e será premiada ao final com a felicidade ao perdoar toda a injustiça que sofreu. Perde seus
filhos um a um, depois perde o marido, submete-se a prisão no convento e por fim, perdoa.
Fora a promessa, em nenhum momento ela apresenta fala ou ação que a ajude a manter o
controle de sua própria história.
Essa personagem nos remete diretamente a formação feminina esperada durante a
Idade Moderna, como pudemos ver na citação em Emílio ou Da Educação, conforme
apresentada em capítulo anterior. A rainha, que tinha como maior desejo ser mãe, corresponde
tanto a imagem ilibada de Maria, a grande mãe na Idade Média, quanto à concepção
construída pela biologia e psicologia após a Revolução Francesa, de que há na mulher uma
vocação natural para a maternidade. Ou seja, não é a representação da mulher em qualquer
tempo, mas do feminino ideal na sociedade moderna.
95
Nas irmãs, temos a imagem da mulher amarga, invejosa, cruel. Participam da vida
conjugal da irmã, mas, por não conseguirem a felicidade através de um casamento vantajoso,
não suportam a felicidade alheia. Um aviso sinistro do conto às moças casadoiras, que não se
deve confiar nem na própria irmã, que as mulheres são fracas de caráter desde a Eva. É a
representação do mal feminino, tanto enquanto símbolo, que desde as narrativas primordiais
descrevem a inveja, a intriga e a traição como intrínsecas à natureza feminina, como enquanto
exemplo do que não seguir, visto que as irmãs são punidas no final.
Na personagem da criada, temos uma imagem recorrente no conto popular: o
poder da voz e da memória feminina. Seu papel é fundamental no conto. Quando a criada
utiliza a fala, o dizer, para pôr no eixo o que seus atos ajudaram a tirar, revelando a identidade
e a história das crianças, ela passa da servidão a uma mentira ao domínio da verdade.
Lajolo (1989), ao discutir a voz da mulher na literatura infantil, afirma que o
contato prolongado das mulheres com as crianças no lar tornou-as narradoras por excelência.
O que propiciou que a mulher pudesse contar sua própria história e ressignificando-a.
Sherazade usa a narrativa como arma de resistência e sobrevivência. No conto, a criada é a
representação do poder da voz. Ela usa a narrativa como um ato de redenção, que a levará a
viver em paz consigo mesma e, surpreendentemente, garantirá um meio de subsistência na
velhice.
Em Procurando Firme, temos uma rainha que é a imagem da mulher que conhece
seu lugar no mundo e quer mantê-lo tal como está. Orienta a filha a ser uma boa esposa e faz
questão que ela mostre seus dotes. Sugere que a filha faça aulas de desmaio, pois é
conveniente que a mulher saiba desmaiar na hora certa. É retratada de forma fútil e meio tola,
contrapondo-se ao que a filha irá se tornar.
A princesa Linda Flor inicia seguindo os passos da mãe para então opor-se
totalmente ao modelo oferecido. Durante a narrativa, as reações da mãe vão do estranhamento
ao horror. Quando a moça diz que não pretende agradar o príncipe, os pais se assustam pela
quebra das convenções: “A mãe mais o pai de Linda Flor ficaram brancos de susto 91”. Em
seguida, a fala da mãe indica a tentativa de orientar Linda Flor: “Então a mãe pediu com
91
ROCHA, 1984, p. 23
96
jeitinho: - Linda Florzinha, minha filha, vai buscar os desenhos chineses que você fez pra
mostrar pro moço, vai...92”.
Suas aparições seguintes demonstram todo o choque perante o novo
comportamento da filha:
“A rainha, que já vinha chegando, parou horrorizada:
- Aprendendo berro?
E a rainha desmaiou ali mesmo, mas ninguém se incomodou muito porque a
rainha adorava desmaiar” (ROCHA, 1984, p. 31)
Por fim, apresenta seus receios quanto à jornada que filha pretende iniciar: “- Mas
minha filha – gaguejou a rainha – onde é que já se viu? E os perigos? E os dragões? E as
mulas-sem-cabeça?93”.
Na obra, os valores da mãe são os mesmos valores que a princesa busca
ultrapassar. A mãe é a representação da estagnação social da mulher na esfera familiar e na
sociedade. A princesa é a representação da quebra desse modelo.
Já em Uma, duas, três princesas, no início a rainha já tem voz. É através do
conselho dela que o rei envia o pedido para que as filhas possam assumir a sucessão. Ainda
que o narrador diga inicialmente que nesse reino a mulher não poderia governar, a rainha
demonstra o poder através do diálogo com o marido. Em nenhum momento a falta do filho
homem torna-se um problema entre o casal, não havendo penitência nem tristeza da rainha.
As princesas não seguem o modelo da mãe, que desaparece durante o restante do enredo, mas
têm seus caminhos abertos por ela.
Outro grupo de personagens importantes são os irmãos. A princesinha salva seus
irmãos mais velhos por não ser impulsiva como eles e não comer a fruta do pomar. Sua
função é cuidar, preservar a família resistindo aos desejos que os irmãos não foram capazes de
resistir. Linda Flor, por sua vez, usa os instrutores dos irmãos e busca partir em jornada como
ele partiu. Percebe que seu destino de espera, por ser mulher, é menos interessante que o
destino do irmão, como homem. E a jornada das princesas em Uma, Duas, Três Princesas, só
é possível pela falta de um irmão, que dispara a mudança no reino. Assim, a jornada de todas
92
ROCHA, 1984, p. 24-25
93
ROCHA, 1984, p. 33
97
Em nenhum momento, as atitudes do rei são julgadas pelo narrador. Durante todo
o texto, a figura masculina cumpre seu papel social: inicialmente, jovem e viril, casa-se para
ter filhos, protege seu território, desfaz-se da esposa que ama por não ser apropriada. Já mais
velho, aparece como uma triste figura cega pelas injustiças sofridas. E é a própria sorte que o
rei chora. Mesmo o perdão pelo mal que fizera à esposa é suavizado por ser um mal que fizera
enganado.
A princesa cura a cegueira do pai com a Água-da-Vida conseguida através de suas
virtudes. Se retomarmos a perspectiva de qualidade na educação feminina durante a idade
moderna, a princesinha é naturalmente o ideal proposto por Rousseau em Emílio ou Da
Educação, em que agradar e ser útil, fazer-se amar e honrar, educar os jovens e cuidar dos
grandes, aconselhar, consolar, tornar a vida agradável e doce ao homem são os deveres das
mulheres que deveriam ser ensinados desde a infância95.
Se a busca da princesa é por cuidar da família e curar o pai, em Procurando
Firme, o rei que é pai de Linda Flor, cumpre apenas a função paterna em todo o texto. É sua
figura que está relacionada à filha. Durante todo o enredo assusta-se, irrita-se, espanta-se e
94
CASCUDO, 2000, p. 102
95
ROUSSEAU, 2004, p. 527
98
urra de ódio, tentando direcionar a filha à expectativa de final feliz que é o casamento. Porém
suas intervenções e interditos são enfrentados com rebeldia pela princesa:
A mãe e o pai de Linda Flor ficaram brancos de susto... Afinal, se a filhinha
deles não agradasse os moços que apareciam para salvá-la, como é que ela ia
arranjar casamento? Então o pai virou fera:
- Ande logo, menina, vai preparar um vatapazinho pro moço. Já e já!
- Olha aqui pai, eu até posso fazer vatapá, sarapatel, caruru, qualquer coisa,
mas tire o cavalinho da chuva que com esse príncipe eu não vou casar.
(ROCHA, 1984, p. 23)
Assim, Linda Flor já não corresponde aos ideais de educação feminina da Idade
Moderna, pois sua reposta negativa ao casamento demonstra que os valores de obediência e
devoção filial acima da própria vontade estão superados nesta obra.
Já as princesas da obra de Ana Maria Machado saem em busca da cura do pai,
assim como a princesinha de A rainha e as Irmãs. Porém, essa busca não está vinculada ao
amor filial, mas a necessidade de provar-se competente para suceder o pai. O mal assola todo
o reino e o próprio rei cai doente. A partir desse ponto, as princesas não estão mais vinculadas
nem ao pai nem a mãe. Nem mesmo umas às outras, pois cada uma delas sai em jornada
sozinha. Contudo, quando as coisas começam a dar errado, é a educação oferecida pelo rei e
pela rainha que sofre críticas: “[na carta de leitor do jornal Notícias do Reino] Nosso reino
está perdido. É muito preocupante que Suas Majestades tenham educado tão mal as princesas.
Agora as consequências caem sobre todos nós96”.
Percebe-se nas obras uma progressão crescente de importância da imagem da
mãe, que passa a ter voz, ao mesmo tempo em que a imagem do pai apresenta uma progressão
decrescente. Podemos observar que se antes a família girava em torno da figura paterna,
respeitando todas as suas necessidades e interditos, o que encontramos nas obras mais
recentes é a desobediência e o apagamento dessa função.
Outro ponto a ser discutido ainda nesse tópico é a mudança na educação feminina.
Como já vimos, na Idade Moderna, a educação feminina consistia em instruir a mulher a
tornar a vida do homem mais cômoda. Sobre a princesinha de A Rainha e as irmãs, apesar de
em nenhum momento o texto explicitar sua criação na casa do caçador, é comum aos contos
populares que as ações da princesa sejam a própria definição de sua personalidade. A princesa
96
MACHADO, 2014, p. 35.
99
preocupa-se com os irmãos e segue para buscá-los; ao fim da jornada, come apenas seu pão
seco e a água do cabacinho, rezando após comer, não explora o castelo, atendo-se a busca pela
Água-da-Vida; perdoa a criada, salva o pai e ajoelha-se pedindo sua benção. Em suas atitudes
temos zelo, modéstia, abnegação, resistência ao pecado, fé, caridade, devoção filial.
Durante o conto, a princesinha não se relaciona diretamente com nenhuma das
personagens femininas. Porém, a princesa é um espelho da mãe: bela, resignada, modesta,
controlada, ligada à família. É ela a heroína com quem o leitor deverá se identificar, conforme
nos orienta Coelho:
Lembra a psicanálise que a criança é levada a se identificar com o herói bom
e belo, não devido a sua bondade e beleza, mas por sentir nele a própria
personificação de seus problemas infantis: seu inconsciente desejo de
bondade e beleza e, principalmente, sua necessidade de segurança e
proteção. (COELHO, 2000a, p. 55)
97
COELHO, 2000a, p.55. Grifos do autor.
98
COELHO, 2000a, p.55
100
Quando sai em sua jornada, a princesa usa as habilidades conquistadas nas aulas
com os instrutores dos irmãos, reunindo a estas os saltos de balé. Temos aí uma proposta de
educação em que as mulheres tenham autonomia para correr o mundo, aprendendo mais do
que as prendas para ser boa esposa e dona de casa.
Essa proposta, em meados da década de 1980, já não era revolucionária, visto que
as mulheres já frequentavam a escola pública em salas mistas, por exemplo. Mas o nível de
consciência da educação que o texto propõe, quando a princesa diz precisar estar preparada
para comandar, ainda é uma conquista que nem mesmo os dias atuais garantem à mulher.
Esteja visto a quantidade de mulheres em cargos de comando ainda ser muito inferior à
quantidade de homens nesses cargos.
Outro ponto é a princesa aprender a se defender. Quando Linda Flor aprende a se
defender para correr o mundo, não é a violência contra o gênero feminino que está em
questão, visto que seu irmão passou pelo mesmo treinamento. Porém, a não permissão da
saída da princesa do castelo ainda é um eco do paradigma de família como proteção feminina
em uma sociedade que dividia as mulheres entre mulheres do lar e mulheres da rua. Em
nome de sua defesa, sendo considerada como o sexo frágil, toda a autonomia feminina foi
negada durante séculos.
Por sua vez, as princesas, em Uma, Duas, Três Princesas, já não apresentam mais
essa discussão sobre o cuidado com a jornada, um discurso superado em nossa sociedade em
que a mulher já usufrui o direito – e mesmo tem necessidade – de ir e vir sem a proteção
familiar, ainda que, na prática, a segurança seja precária. A educação das princesas deve ser
equiparada a dos príncipes em conhecimento científico. Às meninas foi oferecido o
101
computador, os livros, vídeos e fotos até que “Aprenderam muitas coisas diferentes. Viram
vídeos emocionantes, de muitas terras e gentes99”. Nessa obra, a educação pode ser elencada
como o tema principal, e vai de encontro a uma das preocupações de nossa
contemporaneidade, independentemente de gênero e faixa etária: as múltiplas fontes de
informação, a informação rápida, a confiabilidade da internet, a transformação de informação
em conhecimento.
A função pedagógica é intrínseca à literatura infantil e, se entendermos a literatura
nos parâmetros apresentados por Perrone-Moisés, em que a literatura reflete e refrata a
realidade para que possamos enxergar nesta o que falta ou o que poderia ser 100, podemos
concluir que, se a educação pretende preparar o ser para conviver plenamente em sua
sociedade, a observação de como são representadas a família e a educação das princesas na
literatura infantil nos orienta a entender, através do motivo e dos aspectos da jornada, o que é
considerado a realização, o final feliz feminino contemporâneo e como se acredita que
devemos preparar as crianças, especialmente as meninas, para alcançá-lo.
A princesinha do conto popular busca a reconstituição familiar. A Linda Flor
busca liberdade. E as três princesas buscam a competência. Analisemos agora como as
princesas saem do estado de espera para assumir o movimento de busca, iniciando sua
jornada.
No conto recolhido por Câmara Cascudo, não temos muitas informações da vida
da princesinha antes de sair em jornada: “O caçador criou os três enjeitados com todo o mimo.
Já estavam crescidinhos. A menina ajudava em casa e os dois iam com o caçador para as
matas101”. Essa é toda a informação disponível. O serviço doméstico ao encargo da menina e a
caça ao encargo dos meninos.
A saída da menina para a jornada se dá devido à preocupação fraterna, pois, “não
vendo os dois manos voltarem, disse ao caçador que ia também em busca dos perdidos. O
99
MACHADO, 2014, p 10.
100
PERRONE-MOISÉS, 1990.
101
CASCUDO, 2000, p. 101.
102
caçador só faltou chorar de desespero, mas a menina teimou e foi 102”. A necessidade da
jornada não parte de uma vontade pessoal. E o interdito do pai/caçador é causado pelo medo
de perder os três filhos, pois quem partia em busca da Água-da-Vida jamais retornava.
A teimosia da princesa é antes abnegação com a própria segurança em prol do
cuidado com os irmãos do que desobediência. A princesinha espera por dois ciclos de sete
dias por seus irmãos e sua jornada é movida pela necessidade de encontrá-los. Por não haver
outra pessoa para buscá-los, visto que o caçador apresenta seu temor desde que avisa para os
meninos não seguirem por aquele caminho, a princesinha se põe em jornada.
São as faltas e problemas familiares que ela precisa reverter. E sua jornada coloca
em curso o descobrimento da própria identidade como filha. O estado de espera da menina é
rompido pela necessidade de agir para garantir a continuidade de uma esfera gerenciada
principalmente pela mulher, como vimos no capítulo inicial: o espaço particular, o lar.
Aspecto diverso pode ser vislumbrado na jornada de Linda Flor, que confronta os
pais e afronta ao reino com sua decisão de correr o mundo. A princesa tem o estado de espera
rompido pelo seu inconformismo em mudar de papel, de filha para esposa, dentro da esfera
familiar. Sair da condição de filha para assumir a condição de esposa seria o caminho
naturalizado para a condição feminina na sociedade. Ao não aceitar os pretendentes, Linda
Flor rompe o paradigma da espera paralisada.
Retomando a afirmação de Campbell, de que a princesa paralisada necessita do
beijo do príncipe para aceitar deixar a infância e assumir seu papel como mulher, Linda Flor,
ao não encontrar o companheiro a contento, não paralisa a espera do príncipe certo, mas
começa a agir em preparação para a jornada.
Vejamos que a possibilidade do amor não está absolutamente descartada. A
própria princesa explica que é mais divertido correr o mundo como os príncipes fazem e “se
eu tiver que casar com alguém eu encontro por aí, que o mundo é bem grande e deve estar
cheio de príncipes pra eu escolher”103. Porém, sua busca não é pelo amor, pois no último
parágrafo a princesa sai à procura de não sei o quê, mas procurando firme. Está posta aí a
necessidade da jornada de Linda Flor: conquistar o direito de sair em jornada.
102
CASCUDO, 2000, p. 101
103
ROCHA, 1984, p. 32.
103
Como podemos ver, há toda uma descaracterização dos aspectos femininos que a
identificam como princesa clássica. O corte dos cabelos, que antes serviam para que os
príncipes subissem na torre, a falta do vestido, que é símbolo marcante de feminilidade, a
perda da brancura da pele. Todas essas alterações são pistas da mudança da princesa que a
fará entrar em movimento, em jornada. Seu desejo é também seguir os passos do irmão, como
a princesinha do conto popular, porém não para salvá-lo, mas para aventurar-se em novas
experiências, antes negadas a ela:
- É isso mesmo, correr o mundo! Eu estou muito cansada de ficar neste
castelo esperando que um príncipe qualquer venha me salvar. Eu acho muito
mais divertido sair correndo o mundo como os príncipes fazem. E se eu tiver
que casar com alguém eu encontro por aí, que o mundo é bem grande e deve
estar cheio de príncipes pra eu escolher. (ROCHA, 1984, p. 32)
104
Na frase “Sem príncipes, mas com três princesas, que jeito?”, está implícita a
ideia que já que não há príncipes, as princesas terão que bastar. E o sucesso da empreitada
há mais coisa em jogo que a saúde do pai e do reino. A jornada é prova de capacidade, de
igualdade de competência feminina. Partem em busca da cura como os príncipes fariam. E é
essa repetição do modelo que faz com que a primeira princesa nem tente encontrar a solução,
deduzindo que apenas a irmã mais nova conseguirá desvendar o mistério, como
tradicionalmente acontece nos contos populares com três príncipes-irmãos. E, mesmo, como
acontece no conto A rainha e suas irmãs, em que apenas a princesa, que é também irmã mais
nova, conseguirá a Água-da-Vida.
Enquanto a princesinha do conto popular tem que usar de teimosia para sair em
jornada, é esperado que as três princesas saiam, cumpram a missão e retornem. Existe nessa
narrativa um rito de passagem no qual o sucesso da jornada será também a comprovação da
105
que aparece na ilustração como sendo formado por três figuras masculinas, é quem convoca
novamente a princesa mais velha. E ela, como solução, chama um especialista, o que assume
uma conotação masculina104, apesar de não aparecer nenhuma figura na ilustração.
Contudo, existe no texto uma mudança importante em relação às outras duas
obras: a princesinha de A rainha e suas irmãs encontra seu reconhecimento como filha na
esfera familiar. Linda Flor luta na esfera familiar pelo direito de agir fora dessa esfera. Já as
três princesas apresentam conflitos que se desenrolam fora do lar. Suas jornadas partem do lar
para ganhar as ruas do reino. Mas as três princesas obtiveram o direito de agir na esfera da
sociedade através da concessão feita por figuras masculinas, não por um direito conquistado
no grito, como no caso de Linda Flor.
No conto popular, a princesinha tem que subir por uma trilha até o alto de um
monte. Lá encontra um pomar em que não se podem comer as frutas, assim como não se pode
beber a água do rio, sob a pena de tornar-se pedra. A Água-da-Vida ferve em um poço na
entrada de um castelo suntuoso. Porém, apenas ao leitor detém essa informação, visto que
acompanhou a jornada dos príncipes. Nenhuma dessas informações é dada anteriormente a
princesa.
Nesse conto, temos diversos aspectos que podemos encontrar na literatura oral por
todo o mundo. Das Wasser des Lebens105, conto recolhido pelos Grimm, temos também três
príncipes que partem em busca da Água-da-Vida para curar o pai, sendo que o mais novo é
traído pelos irmãos. O próprio Cascudo (2000) mapeia em seu comentário sobre os contos
como essas repetições terminam por nos levar as narrativas primordiais.
[...] Difícil será não ser encontrado o episódio nas literaturas orais da Europa
e da Ásia, subsequentemente, América. Os árabes levaram ao Egito e à
península ibérica de onde o recebemos. Está, como era de se esperar, nas
“Mil e Uma Noites”, nas aventuras do príncipe Ferid. Toda a África
setentrional o conheceu. É o Mt. 707 de Aarne-Thompson, The Three
104
Esta conotação masculina se dá devido ao artigo um ser masculino. Entretanto, o adjetivo substantivado
especialista apresenta gênero uniforme e o artigo masculino um generaliza inclusive o gênero da palavra que ele
acompanha.
105
Conto publicado na obra Kinder- und Hausmärchen, número 91 na edição padronizada (KHM 91).
107
assim por diante106. Podem dar abrigo, ser guardião de um objeto mágico procurado ou de
uma pessoa. Algumas vezes apresentam características como a da ilha de Circe: um lugar de
onde não se pode sair facilmente, fazendo com que o herói tenha que provar seu valor.
Contudo, a princesa não se sente seduzida em explorá-lo, como nos fica claro no
texto: “Encontrou um palácio que era uma babilônia de grande, sem vivalma. Logo na entrada
estava um poço com uma água fervendo. A menina encheu o cabacinho e tocou para trás 107”.
Ao descrever o palácio como uma babilônia de grande, o narrador nos oferece uma
perspectiva de tudo o que poderia ser explorado naquele lugar. Porém, novamente a princesa
mantém-se centrada em seu objetivo. Em nenhum momento ela obtém aconselhamento ou
ajuda mágica. Todos os recursos para vencer o desafio já são características da princesa, que
nasce bonita como os amores e, assim, virtuosa, visto que a beleza física, nos contos
populares, relaciona-se diretamente à beleza da alma.
Por fim, a princesa reconhece seus irmãos transformados em estátuas, usa
algumas gotas da Água-da-Vida para trazê-los de volta à forma humana. Eles a abraçam e o
caçador festeja a volta dos três. A família foi restaurada. Cumprida a sua missão em cuidar
para que os irmãos retornassem a salvo, está terminada a jornada individual da princesa. A
partir desse momento, sua jornada será partilhada com os irmãos.
Convém lembrar que a jornada da princesinha teve os mesmos obstáculos que as
de seus irmãos. E a falha dos príncipes e sucesso da princesa se deu por eles não resistirem à
tentação, enquanto ela resistiu. Temos aí a representação de um modelo recorrente na cultura
judaico-cristã: é aceitável que o homem seja naturalmente suscetível ao pecado, seja da gula
ou da luxúria, enquanto a mulher deve saber resistir a eles. Este modelo foi reforçado pela
teoria da diferença sexual natural, em que a moral da mulher seria biologicamente moldada.
Dessa forma, apesar de apresentar a jornada que coloca uma personagem feminina
em movimento, essa jornada é voltada à família e determinada pelos valores morais
concebidos como femininos nas sociedades patriarcais cristãs.
A jornada da princesa que possibilita à família o retorno da convivência, pois
através da conquista da Água-da-Vida, salva os irmãos e cura o pai. Apesar de sua teimosia
106
Por exemplo, casa ou castelo encantado aparece nos contos Veado de Plumas, Maria Gomes e A Banda da
Coroa, todos parte da mesma coletânea Contos Tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo.
107
CASCUDO, 2000, p.101.
109
108
ROCHA, 1984, p.22
109
ROCHA, 1984, p. 23
110
110
ROCHA, 1984, p. 21.
111
ROCHA, 1984, p. 24.
112
CHEVALIER, 2007, p. 154
111
Por sua vez, os cabelos das mulheres diziam sobre sua condição espiritual e
social, pois
Como a cabeleira é uma das principais armas da mulher, o fato de que esteja
a mostra ou escondida, atada ou desatada, é, com frequência, um sinal de
disponibilidade, de desejo de entrega ou de reserva de uma mulher [...] Na
Rússia, uma única trança levava apenas as jovens, é símbolo de virgindade, a
mulher casada leva duas tranças. (CHEVALIER, 2007, p. 155)
113
CASCUDO, 2000, p. 12
114
CASCUDO, 2000, p.12
115
OLIVEIRA MARTINS, Quadro das Instituições Primitivas, 2ª ed., 1893, p. 27. Apud CASCUDO, 2000, p.
13.
112
E a saída da princesa, que por sua vez, além de usar os aprendizados que buscou
com os instrutores do irmão, usa também seus aprendizados como donzela, ao desviar-se do
dragão com os saltos de balé:
Ela não quis levar muita bagagem, para não ficar pesada. Saiu de
madrugada, bem cedinho. Passou pela porta da frente e lá se foi a princesa,
correndo, passando rasteira, jogando pedras. Quando chegou perto do dragão
deu três pulos, que ela tinha aprendido no balé, chegou perto do muro, deu
um salto com vara, passou por cima da muralha, empurrou para a margem do
fosso uma canoa que estava perto, remou com força e foi sair do outro lado.
Pulou na margem, acenou para as pessoas que estavam olhando do castelo e
se foi, pelo mundo, procurando não sei o quê, mas procurando firme!
(ROCHA, 1984, p.36)
116
Todos os símbolos podem ser conferidos na obra de Chevalier (2007), exceto o fosso. Usou-se então a ideia
da água que preenche o fosso como obstáculo, visto que o fosso vazio ofereceria o desafio da descida e escalada,
enquanto o fosso repleto de água eleva esta a condição de obstáculo.
114
Este trecho nos apresenta a terceira princesa e suas convicções. Ela prefere a
internet à um livro mudo e acredita que informação é conhecimento. Assim, passa a interferir
117
Apesar da partilha do pão ser um tema recorrente no conto popular, não se apresenta nas obras mais
conhecidas no Brasil.
118
MACHADO, 2014, p. 23.
115
nas histórias com a melhor das intenções. Avisa ao lobo para ele não ir à casa da vovó, pois o
caçador está por perto. Esbarra em uma velha que vendia maças e quebra o espelho mágico,
acabando com a história. Come a abóbora que levaria Cinderela ao baile. Troca o sapato de
cristal por um pé de bota, fazendo o príncipe procurar um gato. Encontra um feijão e o entrega
“a uma rainha em busca de uma verdadeira princesa que pudesse casar com um príncipe meio
bobo que deixava os outros escolherem sua noiva. 119”, impedindo o João de subir ao castelo
do gigante e encontrar a galinha dos ovos de ouro. E a interferência da princesa torna-se alvo
de crítica através das cartas de leitores no jornal Notícias do Reino.
Como se pode perceber, essa longa sequência apresenta ampla intertextualidade.
O nome das histórias não é citado, mas a referência aos contos clássicos de Perrault, Grimm e
Andersen, Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e os sete anões, A gata borralheira, O
gato de botas, A princesa e a ervilha, João e o pé de feijão, são facilmente reconhecíveis,
desde que o leitor tenha tido acesso a essas obras.
A mistura das histórias é criticada através das cartas. Porém, mais do que um
recurso para mostrar a incompetência da princesa em resolver o problema, as cartas do leitor
nos remetem à moral da história:
As recentes trapalhadas das princesas em busca do fim do encantamento que
caiu sobre nosso reino acabam sendo tão prejudiciais quanto o próprio feitiço
em si. Não basta navegar na internet. É necessário saber se dá para acreditar
no que a gente encontra quando navega.
Venho, pela presente, protestar contra a ação da princesa mais nova, que
pensa que sabe uma porção de coisas mais não sabe nada. Será que ninguém
nunca explicou a ela que não adianta ficar só assistindo a desenhos
animados? (MACHADO, 2014, p. 34-35)
119
MACHADO, 2014, p. 32.
116
120
CHEVALIER, 2007, p. 1016.
117
infantil para colocá-lo entre os homens em seu grupo social, a transição da menina ocorria
com a primeira menstruação.
Posto que há poucas informações a respeito nas culturas mais antigas, Campbell
nos informa como se dá a passagem de menina a mulher nas culturas primárias de hoje:
Mas qual é a sua iniciação? Normalmente é sentar-se no recesso de uma
cabana, por alguns dias, e tomar consciência de quem é ela. [...] Ela se senta
lá. Agora é uma mulher. E o que é uma mulher? Uma mulher é um condutor
de vida. A vida surpreendeu-a. A mulher é tudo o que importa à vida:
conceder o nascimento e a nutrição. (CAMPBELL, 1990, p. 87)
Temos uma transição que ocorre na esfera familiar, ainda que tenha relevância
social, visto que a menina passa de filha à possível esposa, responsável por gerar e nutrir os
filhos.
Em Uma, Duas, Três Princesas (2014), a passagem à vida adulta assume contorno
diverso à apresentada por Campbell. O processo de mudança da princesa começa com uma
busca, um desafio, assim como as jornadas masculinas. Mas a resposta da princesa ao desafio
é a espera. O tempo na estalagem se assemelha, em omissão narrativa, ao sono da Bela
Adormecida ou ao encantamento da Branca de Neve. Nos três casos temos a informação –
dormiu, morreu, hospedou-se na estalagem – e o enredo passa a tratar de outras personagens.
Nas histórias clássicas, deste momento em diante, a figura do príncipe assume a centralidade
das ações, superando os desafios para chegar à princesa desacordada. Na obra de Ana Maria
Machado, passamos a acompanhar a jornada das outras duas princesas.
Branca de Neve e a Bela Adormecida despertam com o beijo do príncipe para a
vida adulta, encontrando a felicidade eterna através do casamento e do amor romântico. A
princesa de olhos de azeitona desperta com o convite dos ministros, que demostram confiança
em sua capacidade, levando-a a assumir a posição de comando para a qual foi preparada,
encontrando a realização ao ficar livre da obrigação de seguir os modelos impostos, e assim,
“por isso viveu feliz às vezes. Como todo mundo, teve dias de risos e dias de choradeira. Mas
ficou para sempre curiosa e inventadeira121”.
Se compararmos a paralisação da princesa na estalagem ao retiro que Campbell
afirma ser a iniciação feminina, podemos ver como convergente a necessidade de mudança de
121
MACHADO, 2014, P. 39
118
consciência que ambas as passagens propõem. Nos dois casos, a mulher e a princesa já estão,
respectivamente, física e socialmente preparadas para o novo papel, mas precisam descobrir
em si mesmas essa nova potencialidade.
Já as convergências entre Procurando Firme (1984) e Uma, Duas, Três Princesas
(2014), estão na não repetição da jornada masculina quando as princesas saem para correr o
mundo. Linda Flor busca com os instrutores os saberes que não lhe foram oferecidos e que
possibilitariam sua jornada: saber se defender e saber comandar. Mas usa também três pulos
que havia aprendido no balé para se desviar do dragão122.
A princesa dos olhos de azeitona foi educada para comandar. Os ministros sabem
disso, pois “Mandaram buscar a princesa que lia. Ela não tinha apenas olhos de azeitona.
Conhecia o que fica em pé quando o resto desmorona. 123” E mesmo tendo a competência,
precisou da paralisação, parte do rito de iniciação feminino, para retornar e enfrentar seu novo
lugar como mulher: tomar decisões sem seguir os modelos já estabelecidos.
Esse discurso pode ser um caminho para vislumbrarmos a nova representação
feminina que foi se consolidando entre o final do século passado e o início deste. Enquanto a
princesinha de A rainha e as irmãs já carregava em si todas as virtudes que a fizeram ter
sucesso na jornada, Linda Flor desconstruiu seu modelo e, literalmente, berrou para que
pudesse realizar sua escolha de sair para correr o mundo como o irmão, as princesas de Uma,
Duas, Três Princesas já possuem o acesso à educação necessária e o direito de correr o
mundo. Seu desafio está em tomar consciência de seu novo papel social, abandonando a
necessidade de seguir os modelos e passando a fazer suas próprias escolhas.
122
ROCHA, 1984, p. 36
123
MACHADO, 2014, p. 37
119
Uma criança que desejou chegar a um lago que diziam ser encantado. Quando
teve idade para se pôr a caminho, precisou cruzar a floresta, o deserto, o mar e a montanha. A
cada novo horizonte, ia entendendo como era pequena sua aldeia, lugar que antes fora toda a
sua realidade.
Por muitas vezes desejou desviar-se e explorar um cenário, mas sabia que cada dia
caminhado em outra direção a afastava dois dias das águas que imaginava cristalinas,
seduzindo-a desde sempre.
Chegou às margens, mas descobriu que o lago que fora seu objetivo agora só
poderia lhe dar o benefício do descanso do corpo e da alma, reabastecendo-se para a viagem.
Não poderia ali construir sua morada sabendo que conhecia pouco mais do que o caminho que
seus pés marcaram em um mundo que descobriu ser vasto, vasto.
Não foi possível explicar de outra forma todas as angústias que envolveram o
processo de escrita desta dissertação. Compreender as relações entre a literatura infantil, a
sociedade e a construção da concepção de feminino passa por uma grande quantidade de
teorias, que ora são confluentes ora não o são. A crítica literária é um campo de muitos
caminhos e poucas certezas.
No entanto, se refizermos o percurso, perceber-se-á que assim como a criança que
buscava o lago, trilhamos um longo percurso. E apesar de haver outras trilhas, talvez mais
curtas ou mais floridas, esta jornada possibilitou olhar diversos horizontes.
Na epigrafe, temos parte de um conto de Malba Tahan, pseudônimo do escritor
brasileiro Júlio Cesar de Mello e Souza, Uma fábula sobre a fábula. No conto, temos a
Verdade, como personificação feminina, que ao tentar entrar no palácio do sultão, é barrada
pelo grão-vizir. Então a Verdade veste-se grosseiramente, voltando à porta do palácio, dessa
vez apresentando-se como Acusação. Novamente é barrada. Consegue finalmente entrar no
palácio quando retorna, luxuosamente vestida e apresentando-se como Fábula.
A escolha desta epigrafe se deu pela compreensão que, sob o nome de Fábula,
mais do que a Verdade pode penetrar em nossos palácios interiores. E para além da roupagem,
é importante conhecer o convidado que adentra.
120
124
JOLLES, 1976.
121
nova obra faz com que reconheçamos nessas obras da literatura infantil a mesma intenção
integradora de valores que é comum ao conto popular.
Em Campbell, Jolles, e Cândido – ressalvando que suas teorias partem e chegam a
pontos diferentes – temos em comum a compreensão da importância da linguagem para dar
significado e interpretar a crença, o trabalho, as relações sociais. O mito, a religião e a
literatura oral são parte deste trabalho de significação da realidade nas culturas primárias,
estendendo-se de certo modo também para as culturas complexas através do imaginário
cultural.
Para compreender como essas significações atingem o imaginário sobre o
feminino, fomos ao conto popular, inicialmente apontando os pontos de convergência entre a
mentalidade do homem primitivo e a da criança. Desta convergência, justificaram-se as
regularidades que fizeram com que o conto popular terminasse por fazer parte da literatura
infantil clássica.
Um novo horizonte se apresentou, através dos diferentes aspectos axiológicos que
o conto pode apresentar. O primeiro, exposto através da obra de Jolles, nos indica que há uma
disposição mental no conto que faz com que este se organize através da ética do
acontecimento, ou moral ingênua. Nesta lógica, os valores apresentados no conto são regidos
menos pela virtuosidade das ações do que pela necessidade que as injustiças sejam reparadas.
Um segundo aspecto seria o apresentado por Darnton, que afirma que o conto
pode ser um documento histórico da mentalidade do homem comum, pois apresenta os
valores do povo que o produz ou que o narra, através da adaptação do conto ao próprio
ambiente cultural.
Coelho aparentemente concilia ambas as teorias ao afirmar que o conto é
importante para a formação da criança à medida que o maniqueísmo que polariza as
personagens entre boas e más, feias e belas, auxiliam que a criança compreenda os valores
sociais e de conduta humana presentes na sociedade através das categorias de valor perenes
que encontra nos contos populares, cabendo a cada sociedade definir o conteúdo rotulado
como bom ou mau, belo ou feio.
No entanto, as posições dos três autores, apesar de divergentes, não são
necessariamente opostas. Como já exposto, conclui-se que Jolles trata dos valores que se
organizam através de uma lógica que só se estabelece no conto. Darnton trata dos valores
sociais que aproximam o conto da sociedade que o narra, proporcionando a identificação que
122
fará com que o grupo valide os valores de conduta humana que o conto apresenta. E Coelho
trata de como ambos os valores – sociais e de conduta humana – apresentados na obra são
apreendidos pela criança.
Numa outra parte do percurso, discutimos os valores na literatura infantil,
começando com a função e o valor da própria literatura para crianças, que constantemente
temos a necessidade de reafirmar como literatura, como arte. Consideramos que a literatura
infantil hoje tem função lúdica, catártica, pragmática, cognitiva e libertadora, mas
explicitamos como a sociedade cerceia a produção literária para crianças.
Discutimos o espaço público e privado e suas relações com a criança e, por
conseguinte, desta com a literatura. Problematizamos a literatura infantil em meio ao
confinamento cultural da infância ao espaço escolar. Espaço este que é também o principal
alimentador e censurador do mercado de livros infantis, pois através dos programas de
compra do governo padronizam-se as produções de literatura para crianças.
Sobre o espaço virtual, discussão ampla em nossa sociedade hoje, restringimo-nos
a apontar sua importância na produção e documentação de opiniões e informações, dispondo
um registro dos valores correntes na sociedade hoje fora do discurso social vigente.
Coelho, no âmbito da literatura infantil, explica essa mudança de valores, que
foram principiadas por uma mudança de padrão de pensamento ocorrida após as descobertas
científicas da Física no século passado. O mundo, que antes interpretávamos através da
concepção newtoniana-cartesiana, passa a ser compreendido sob a perspectiva da física
relacional einsteiniana. Essa mudança de padrão, como vimos, altera os valores sociais.
Divididos entre tradicionais e emergentes, ambos os valores podem ser
vislumbrados hoje coexistindo em nossa sociedade. Essas mudanças de valores vão alterando
ora o discurso ora a prática social, até que permeiem o discurso vigente e alterem esferas
como a legislação e os meios educacionais.
A mudança na concepção do feminino altera os valores da base da sociedade, que
é a família. O desequilíbrio das relações homem-mulher faz com que a autoridade do homem
passe a ser questionada, assim como a anterior certeza de que a mulher deveria restringir-se à
esfera do lar.
Essas mudanças aparecem na literatura infantil tanto por suas relações com a
educação, seja pelo mercado desta ser alimentado pelo sistema educacional, devendo ser
coerente com o discurso vigente, seja porque a literatura infantil é escrita por adultos para
123
apresentar certa visão de mundo para crianças. E o autor, como parte da sociedade também é
influenciado por ela.
Ainda assim, o âmago da significação da obra não está na função ideológica, pois
esta é condicionada ao processo de recepção que a intenção do autor não conseguirá garantir.
Novamente estamos no âmbito da literatura como um sistema de influências
recíprocas entre sociedade, autor, obra, porém, ao falar desse sistema agindo na literatura
infantil, devemos manter em vista que a sociedade é aí dividida em dois grupos: o grupo dos
adultos, que determinam e cerceiam os valores a serem apresentados, legitimando ou não o
autor e obra, e o grupo das crianças, que se espera que receba, internalize e aja a partir desses
valores, tornando-se o novo grupo de adultos da próxima geração. A influência da literatura
infantil na sociedade não é imediata, mas é determinante para criar um novo sistema
axiológico e imaginário social, que partem do discurso da geração que produz a obra para
influenciar a prática da geração que a recebe.
Esta afirmação só faz sentido se aceitarmos que cada criança que tem acesso à
literatura terá sua interpretação da realidade ampliada, possibilitando novas formas de ver e
valorar a realidade perceptível, transformando sua consciência crítica, que acreditamos ser
uma das funções da literatura infantil na contemporaneidade.
A representação do feminino na literatura participa desse movimento de novas
construções simbólicas na sociedade, visto que o os símbolos do feminino na literatura e na
sociedade, ao serem desnaturalizados, nos revelam uma carga ideológica que é mantenedora
da relação homem-mulher. E buscar uma nova identidade de feminino, como afirma Luna, é
uma busca de linguagem.
Por isso, em outro cenário, procuramos compreender como essas construções e
representações do feminino se deram historicamente, como os símbolos foram preenchidos de
determinados valores.
Podemos considerar que o esvaziamento simbólico do poder feminino se dá já nos
grupos primitivos caçadores e na agricultura de alta cultura, após a invenção do arado. A
Teoria do Sexo Único, desenvolvida na Grécia Antiga por Galeno dando continuidade ao
pensamento de Aristóteles, alimentou a ciência e o imaginário cultural durante mais de um
milênio. Dele, a concepção do homem como o sexo perfeito e da mulher como o sexo
imperfeito, hierarquizando as relações de poder.
124
Por sua vez, Linda Flor tem o estado de espera rompido ao não aceitar a mudança
de papel, de filha para esposa, mantendo-se apenas na esfera familiar. Sua jornada é
intencional e é motivada pela necessidade de autonomia, conhecimento e possibilidade de
escolha de um novo destino. A narrativa terminar no início da sua jornada indica-nos que se
pôr em movimento é mais importante do que definir para onde a jornada a levará.
Consideramos que o conto é um tributo ao fim da imobilidade social feminina.
Um terceiro movimento temos em Uma, Duas, Três Princesas. Nesta obra, as
princesas já possuem o direito de seguir em jornada e, quando o reino necessita de resposta a
um problema, terminam por ter a responsabilidade da jornada. A paralisação ocorre durante a
jornada. A Princesa dos olhos de azeitona paralisa pela necessidade de seguir modelos, pela
falta de confiança em si mesma. A Princesa de olhos de avelã é paralisada por sua crença no
auxílio sobrenatural. E a Princesa de olhos de jabuticaba é paralisada por seus pares, não sem
razão, visto que suas ações prejudicam outras histórias.
O rito de passagem para a vida adulta da princesa de olhos de azeitona acontece
na paralisação após sua saída, quando ela precisa confrontar suas certezas para passar a
confiar em seu conhecimento.
Sobre a representação das figuras femininas e a esfera social em suas ações se
desenrolam, pudemos perceber que apenas em Uma, Duas, Três Princesas as personagens
apresentam conflitos que já se desenrolam fora do lar. Representar a mulher fora da esfera
privada, respondendo pelo governo do reino, nos aponta que os valores emergentes já estão se
estabelecendo na literatura infantil. Nas outras obras, esfera familiar ainda é central no
conflito, seja pela necessidade de reconhecimento como filha ou pela luta pelo direito de agir
fora da esfera familiar.
Os aspectos valorizados como virtude em cada jornada nos apontam ainda mais
como as representações do feminino na literatura infantil foram se alterando para acompanhar
a mudança de valores na sociedade.
A princesa de A rainha e as irmãs apresenta uma jornada, que como já foi
exposto, está voltada à família, os valores morais e seu papel social são muito próximos aos
concebidos como femininos nas sociedades patriarcais cristãs. No conto, salva os irmãos e
cura o pai. E seu heroísmo é caracterizado por sua modéstia, seu autocontrole, sua fé, seu
cuidado e devoção filial.
129
Linda Flor deixa sua imagem de donzela prendada à espera do príncipe guiada
pela imagem de sua mãe, matrona que resguarda os bons costumes – para representar o
feminino no mundo, amparada pelos mesmos conhecimentos obtidos por seu irmão, enquanto
homem, agregados aos seus próprios conhecimentos obtidos enquanto mulher. A condição
feminina do final do século XX é representada em sua saída para a jornada. Sai da esfera do
lar e se junta ao irmão na esfera social.
Uma, Duas, Três Princesas (2014), a Princesa dos olhos de azeitona já está
preparada para o novo papel na sociedade, mas precisa descobrir em si essa potencialidade.
Mesmo tendo a competência, precisa da paralisação, parte do rito de iniciação feminino, para
retornar e enfrentar seu novo lugar como mulher. Seu desafio está em tomar consciência de
seu novo papel social, abandonando a necessidade de seguir os modelos e passando a fazer
suas próprias escolhas.
Entretanto, nessa alteração de jornada, existe um contrapeso às conquistas do
espaço e da esfera pública. Nelly Novaes Coelho, discutindo o maravilhoso e a formação do
espírito infantil, afirma que a psicanálise tem concluído que os significados simbólicos nos
contos estão ligados aos dilemas do homem ao longo do processo de amadurecimento
emocional e a finalidade dessas histórias seria “confirmar a necessidade de se suportar a dor
ou correr riscos para se conquistar a própria identidade. O final feliz acena como a esperança
no fim das provações ou ansiedades125”.
A princesinha do conto popular foi muito feliz com sua família no final do conto.
Linda Flor, no fim da obra, parte em busca de algo que nem mesmo sabia o que era. A
princesa dos olhos de azeitona teve dias de riso e dias de choradeira. Apesar de iniciarem com
era uma vez, as novas representações de realização feminina não se concluem com o felizes
para sempre. O que é para sempre é a busca, a capacidade de reinventar-se. Uma empreitada
necessária, mas que não deixa de ser desalentadora em comparação aos contos de fadas, que
nos comunicava que apesar de todos os desafios, tudo daria certo no final.
Por fim, é notável que as três obras poderiam traduzir-se na imagem criada por
Friedrich Nietzsche em Das três metamorfoses126, em que o espírito se muda em camelo, o
125
COELHO, 2000a, p. 57
126
NIETZSCHE, 1989.
130
127
MACHADO, 2014, p. 39.
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ANEXOS
136
ANEXO A – Notícia do Jornal New York Times sobre a ‘controvérsia’ causada pela
recepção da obra King & King no EUA
137