TESE --luzialvm - quixeramobim
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CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
FORTALEZA
2018.
LUZIA LEILA VELEZ DE MIRANDA
FORTALEZA
2018.
LUZIA LEILA VELEZ DE MIRANDA
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________
________________________________________
________________________________________
________________________________________
Á minha família e a Luiz Velez de
Miranda (in memorian), meu irmão.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador Franck Pierre Gilbert Ribard por todo seu apoio,
comprometimento, carinho e dedicação. Ao Mestre com carinho!
A todos e todas que foram extremamente solidários (as) nesses últimos dias
de escrita – a Lili, pela a tradução feita com todo esmero e carinho; A Emmanuela
Harakassara pelo apoio e solidariedade; e Lailson Silva, muito obrigada pelas suas
leituras e por nossa rede de amizade.
A Jési Firmino por sua colaboração com a leitura atenta e cuidadosa durante
a produção dessa dissertação. Obrigada por compartilhar comigo o seu tempo tão
comprometido com as suas atividades. E Miguel Castro, por toda a sua solidariedade e
carinho.
Meus sinceros agradecimentos a todos e todas que não foram mencionados
aqui, sintam-se contemplados!
RESUMO
From the analysis of the ecclesiastical documentation of baptisms and marriages, this
study investigates the social dynamics and the constitution of the family arrangements
of enslaved subjects and linings in the Quixeramobim Freguesia, Ceará, between the
years 1740 and 1810. The problematization of nuptials and births from the themes of
naturalness, legitimacy, compadrio, legal conditions (free, enslaved and forra) and
qualities (white, brown, black, indian, goat, etc.), allowed us to understand
Quixeramobinense family everyday within the limits and possibilities of the slave
system. For this, we take as theoretical-methodological north the postulates of Social
History and Historical Demography. The analysis of selected social categories allowed
us to understand how the constitutions of social networks of sociabilities and solidarities
expressed through compadrio and unions considered "legitimate" (legitimized by the
Catholic rite of marriage), consensuals, concubinates, consenting sexual relations, or
rapes that came to bear children (perceived through the natural children present in the
baptismal records). In the same way, from the observation of these relations, we
approached the questions involving the dynamics of the worlds of free and slave labor
in the space and time of the Quixeramobim Freguesia.
1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 13
2.2.No meio do caminho, mas fora de rota: a capitania do Ceará nas dinâmicas
ultramarinas. ................................................................................................................. 28
2.4. Mundos do trabalho: mão de Obra livre e escrava no Siará Grande. .............. 50
1. INTRODUÇÃO
1
De acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE de 2018, esse
município possuí 79.081 habitantes, distribuídos em uma área de 3.275,838 km² com uma densidade
demográfica de 21,95 hab./km² e de clima semiárido. Dados retirados do site do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE.
http://ibge.gov.br/cidadesat/painel/historico.php?codmun=231140&search=ceara%7Cquixeramobim%7C
inphographics:-history&lang=, acessado dia 20 de agosto de 2018 às 15h34min
2
PORTO ALEGRE, Sylvia (Org.). Documentos para a História Indígena no Nordeste: Ceará, Rio
Grande do Norte e Sergipe. São Paulo: NHII, USP, 1994, p. 22.
14
6
PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo. Uma história lexical da Ibero-América entre os séculos
XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte. Autentica Editora,
2015, p. 130.
16
lugares sociais, num mundo altamente hierarquizado. Assim, vão surgindo às noções de
branco, crioulo, preto, pardo, mulato, cabra etc. bem como toda uma gama de
vocabulário racial voltado pra formas variadas de mestiçagens, não somente, mas
também para mostrar um afastamento da experiência mais imediata da escravidão.
Dentre essas categorias de qualidade as mais ambíguas são: crioulo, pardo e
mulato. Essas qualidades estão associadas diretamente aos seus três troncos iniciais que
são o índio, o negro e o espanhol ou o português. No período colonial, o termo crioulo
servia para qualificar os filhos de africanos nascidos no Brasil. O pardo é um termo,
quiçá mais complexo de conceituação, uma vez que ele é usado para qualificar não
somente os descendentes de escravos nascidos nas Américas Ibéricas, mas também para
distanciar o sujeito do estigma da escravidão e não tinha, em geral, nenhuma conotação
com a coloração da pele.7 Bem como, esse termo/conceito era para denominar os
mestiços. Voltando para as questões do conceito de qualidade, Eduardo França Paiva
reforça [...].
7
Idem, p. 131-132.
8
Idem, p.159.
17
9
https://familysearch.org/search/collection/list#page=1®ion=CENTRAL_SOUTH AMERICA
18
desde início das conquistas Ibéricas nas Américas, um instrumento de controle religioso
e ao mesmo tempo jurídico. A produção desses documentos eclesiásticos a partir dos
ritos de batismo, casamento e óbito, registrar três momentos significativos da vida do
10
indivíduo: nascimento, infância; casamento, vida adulta; e morte, seu ciclo final. Por
isso, que essas fontes tem tanto valor historiográfico pelo seu poder de captação de
experiências dos indivíduos em vários e significativos momentos de suas vidas.
Uma característica importante desses registros eclesiásticos é o seu caráter
nominativo o que nos possibilitou encontrar uma pessoa em diversos momentos da série
de registros paroquiais.11 De acordo com Ginzburg, esse é “o fio de Ariadne que guia o
investigador no labirinto documental, é aquilo que distingue um indivíduo de outro em
todas as sociedades conhecidas: o nome12”. Esse procedimento intitulado pelo
historiador italiano como método onomástico que tem como guia o nome do indivíduo,
bem como se unindo a um conjunto de evidências que coletamos nesses assentos nos
ajudou na análise e na reconstituição de trajetórias individuais e familiares de homens e
mulheres livres, escravizados e libertos de Quixeramobim capturados nos seus fazeres
cotidianos. Desse modo, foi fundamental as micro-histórias desses sujeitos para a
compreensão das alianças de parentesco e dos seus significados quanto ao arranjo de
sobrevivência.
A nossa pesquisa empírica evocou não somente os registros eclesiásticos de
batismos e casamentos, mas também as cartas de sesmarias que se encontram totalmente
disponibilizadas, para maior comodidade do pesquisador, no formato digital de CD-
ROMS,13 seus trabalhos e documentos foram de suma importância para compor o
arsenal de nossas fontes para o estudo desta Freguesia. Essa documentação do IHG
encontra-se digitalizada e totalmente disponibilizada na íntegra na internet.
As documentações de casamentos e batismos por serem excepcionalmente
ricas de informações nos permitiu mapear a população quixeramobinense nas categorias
analíticas de qualidade, condição, naturalidade, legitimidade, parentescos
10
TORRES, LONDOÑO, Fernando. Paróquia e Comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São
Paulo: Paulus, 1997.
11
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Família e escravidão em uma perspectiva demográfica: Minas Gerais,
Brasil, século XVIII. In: LIBBY, Douglas Cole & FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs). Trabalho Livre,
Trabalho Escravo. Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo, AnnaBlume, 2006.
12
GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: GINZBURG,
Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro,
Brasil. 1991. p.175.
13
https://www.institutodoceara.com.org.br
19
14
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. População e família mestiça nas freguesias de Aracati e
Russas-Ceará, 1720/1820. Tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura
da Universidade Federal de Minas Gerais, 2016, p.47.
21
15
ROCHA, Cristiany Miranda. História de Famílias Escravas: Campinas século XIX. Campinas – SP.
Editora da UNICAMP, 2004, p.22.
22
perspectiva, foi substituído o fardo da raça das costas do negro por outro bastante
pesado, ou seja, o fardo sociológico.
Os estudos subsequentes, seguindo o percurso já empreendido pela
historiografia estadunidense, ainda na década de 1970, passaram a refutar a visão
tradicional de que o cativeiro abortou a família escrava. Kátia Mattoso em sua obra “Ser
escravo no Brasil”16, apresentou os primeiros sinais dessa mudança, ou seja, não deu
tanta importância como os demais para a família conjugal, bem como já lançava um
novo olhar para as relações dos cativos para além do parentesco consanguíneo,
percebendo outras formas de solidariedades significativas desses sujeitos.
Pesquisas de cunho demográfico constataram a presença de núcleos
familiares estáveis de cativos a partir de fontes quantitativas como os antigos sensos
demográficos, documentos eclesiásticos de casamentos, batismos e óbitos, dentre
outros. As evidências empíricas produzidas por esses trabalhos abriam caminhos para o
aprofundamento dessa temática na chamada renovação historiográfica da década de
1980, promovida pela historia social.17 Essas abordagens lançaram novos olhares para a
instituição familiar escrava, até então, invisibilizada pelas lentes do cientificismo racista
e do culturalismo, não menos racista. A utilização de novas fontes, não apenas, fizeram
emergir novas problemáticas e objetos que trouxeram a tona detalhes da vida escrava
até então inéditos. Esse novo olhar para o cotidiano desses sujeitos subalternos restituiu
um tanto da “humanidade que sequer os seus senhores ousaram expropriar que é a
capacidade de criar e viver: sob normas intrínsecas ao humano”.18
A partir de dados demográficos dos registros eclesiásticos de casamentos,
19
batismos e outras ordens documentais, estudos desenvolvidos por Florentino e Góes,
na região cafeeira de Bananal, São Paulo, constatou não somente que era uma prática
corriqueira de muitas famílias escravas se constituírem a partir de uniões formais
através do rito católico. Mas, sobretudo, essa política de casamento fazia parte de um
consenso entre senhores e escravos, haja vista que o papel da família era de fundamental
importância para manter a paz nas senzalas. Essa abordagem trouxe outras perspectivas
de compreensão para as relações entre os sujeitos escravizados e seus senhores, caindo
16
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
17
ROCHA, Cristiany Miranda. História de Famílias Escravas: Campinas século XIX. Campinas, São
Paulo. Editora da UNICAMP, 2004, p.07.
18
FLORENTINO, Manolo Garcia & GÓES, José Roberto. Parentesco e família entre os escravos no
século XIX: um estudo de caso. Revista Brasileira de Estudos de População. Capinas, v. 12, n. ½, p.
151, 1995.
19
FLORENTINO, M. e GÓES, J.R. A Paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de
Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
23
por terra à tese de sujeitos anômicos, incapazes de tomar decisões, negociar suas
liberdades e se rebelarem contra o sistema.
Slenes20 vai além nessa discussão, percebendo que quando os senhores de
escravos ao facilitar ou mesmo incentivar a oficialização dos casamentos para sua
escravaria, essa medida não se configurava como bondade destes para com seus cativos,
nem tampouco seria benignidade do sistema, mas sim, estava dentro de uma lógica
perversa, sendo que ao criar vínculos e estabilidade familiar estes sujeitos estariam
submetidos a frequente ameaça de separação por meio da venda de um parente. Isso
poderia ser usado constantemente por seus senhores como chantagem emocional. Além
disso, a construção de sentimentos parentais era importante, haja vista que esses laços
poderiam ser o fator para acender a centelha da chama da concorrência entre os cativos
por recursos, apesar de mínimos, por se manterem estáveis e, portanto, construir um
futuro. Isso consequentemente se tornaria motivos de conflito e jamais união entre os
escravos e assim, afastando a possibilidade de rebeliões ou mesmo fugas coordenadas.
Essas pesquisas que se consagraram como revisionistas da historiografia da
família escrava e da escravidão brasileira privilegiaram o sudeste do país. Nesses
espaços foram encontrados alguns dos padrões parentais próprios dos escravos de uma
grande plantation e zona de exploração mineira como, por exemplo, o predomínio do
número de homens sobre o número de mulheres. No entanto, nos últimos anos tem
crescido bastante a produção historiográfica sobre essa temática em outras regiões do
país e, sobretudo, na região Nordeste. A escassez de censos nominativos, nessa última
região, intimidou de certo modo pesquisas sobre a formação familiar escravizada do
período colonial.
Apesar de não ser nossa proposta fazer uma cronologia da produção
historiográfica sobre a escravidão e a família escrava, haja vista que além de inviável,
seria também impossível, já que são bem amplos os trabalhos de história local nessa
área. No entanto, traremos aqui apenas alguns estudos que nos ajudarão compor o
suporte teórico e metodológico do nosso estudo. Assim sendo, em nosso espaço de
estudo o Ceará, Elisgardênia Chaves21 desenvolveu uma pesquisa pioneira sobre a
população e família mestiça, com foco na família cativa, nas Freguesias de Aracati e
20
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2011.
21
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. População e família mestiça nas Freguesias de Aracati e
Russas, Ceará, 1720/1820. (Tese de Doutorado em História), Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, 2016.
24
22
SILVA, Rafael Ricarte da. Formação da elite colonial dos Sertões de Mombaça: terra, família e
poder (Século XVIII). (Dissertação de mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História
Social da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010.
25
23
o nome da mãe que provavelmente são provenientes de concubinatos ou mesmo de
uniões consensuais muito comuns no período colonial e posterior a ele. 24
Reiteramos aqui que nosso trabalho buscou seguir os passos apontados pelas
teorias e metodologias da História Social e demografia histórica. Nessa perspectiva,
buscamos compreender por meio dos sujeitos que foram emergindo com a manipulação
de nossas fontes e através de seus nomes, reconstruirmos as suas trajetórias vidas
pessoais e familiares. Esse exercício foi fundamental para compreendermos como foram
tecidas as relações de parentescos e os seus diversos significados que foram sendo
atribuídos a elas, isto é, variando desde arranjos de resistências, sobrevivências a laços
de amizades e afetividades tão profundas que atravessaram gerações. Essas análises
atravessaram todos os capítulos.
Para atender nossa proposta, o texto desta dissertação encontra-se
estruturado em três capítulos. No primeiro capítulo: Conquista e ocupação dos sertões
do Siará Grande: caminhos, trânsito e os mundos do trabalho; apresentamos um breve
panorama histórico da ocupação e do povoamento dessa capitania entre o final do
século XVII e no decorrer do XVIII, tendo em vista a sua conformação social e
econômica resultante da longa e violenta marcha dos agentes coloniais através de
usurpação de terras, extermínios e apressamentos das populações indígenas,
atravessados pelas diversas facetas de resistência desses nativos. Esse processo que se
deu dentro da lógica das políticas coloniais de ocupação e de expansão das fronteiras
agropastoris. Para conectar a Freguesia de Quixeramobim, nesse processo, nossa análise
empírica se deu a partir dos livros de sesmarias e da documentação eclesiástica de
casamentos e batismos. Ao cruzarmos essas fontes foi possível perceber as conexões
dessas políticas coloniais presentes nessa espacialidade, bem como a organização dos
seus mundos do trabalho livre e escravizado. A população quixeramobinense da época
era predominantemente livre, no entanto, foi percebida a presença cativa em todos os
anos do nosso recorte temporal, bem como o seu aumento gradual no decorrer das
23
Concubinato e uniões consensuais deriva da união livre e estável de um homem e uma mulher que não
são casados pelo sacramento da igreja católica, um com o outro, bem pode também vir a ser união ou
relações esporádicas entre os casais.
24
Sobre essas classificações de casais ver: COSTA, Iraci Del Nero da, SLENES, Robert W. e
SCHWARTZ, Stuart B. A família Escrava em Lorena. In: COSTA, Iraci Del Nero da, (Org.). Revista de
Teoria e Pesquisa Econômica, Estudos Econômicos. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas, FIPE, 1870. Sobre as famílias mistas ver: LIBBY, Douglas Cole. Voltando aos registros
paroquiais de Minas colonial: etnicidade em São José do Rio das Mortes, 1780-1810. Revista Brasileira
de História, São Paulo, vol.29 nº 58, 2009. Sobre a legitimidade ver TORRES-LONDOÑO, Fernando. A
outra família: concubinato, igreja e escândalo na colônia. São Paulo: Edições Loiola, 1999.
26
25
FREIRE, Jonis. Família, parentesco espiritual e estabilidade familiar entre cativos pertencentes a
grandes posses de Minas Gerais, século XIX. Afro-Ásia, n. 46, 9-59, 2012, p. 34.
27
26
CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes & NEVES, Frederico de Castro (org.). Capítulos de História
Social dos Sertões. Fortaleza, Plebeu Gabinete de Leitura Editorial, 2007, p. 09.
27
IVO, Isnara Pereiro. O ouro de boa pinta e a abertura das minas da Bahia: sertões conectados,
adaptabilidades e trânsitos culturais no século XVIII. In: PAIVA, Eduardo de França, IVO, Isnara Pereira,
MARTINS, Ilton Cesar, (Orgs). Escravidão, mestiçagens, população e identidades culturais. São
Paulo: Annablume, 2010.
28
Vale ressaltar que a região dos sertões centrais é uma concepção da divisão atual dos espaços
cearenses.
29
VENANCIO, Renato Pinto. Compadrio e redes familiares entre forras de Vila Rica, 1713 – 1804.
Anais, V Jornada Setecentista. Curitiba, 26 a 28 de novembro de 2003.
28
2.2. No meio do caminho, mas fora de rota: a capitania do Ceará nas dinâmicas
ultramarinas.
Por estarem localizados nas regiões mais afastadas das zonas de exploração
agrícola, os espaços sertanejos brasileiros nos primeiros séculos da colonização Ibérica
foram transformados em redutos de resistência indígena. Isso aconteceu, por um lado,
em virtude dos obstáculos climáticos – uma natureza desconhecida e hostil aos agentes
colonizadores – e, por outro, pela a ausência de empenho da coroa em investir nessa
conquista, haja vista essas terras não possuírem riquezas para exploração imediata,
como pau-brasil. Os obstáculos da ocupação só foram vencidos, de acordo com
Valdelice Girão, pela ânsia de encontrar metais preciosos, adquirir novas terras e
escravizar índios.30
Nesse panorama, muitas foram às tentativas sem êxito de ocupação
portuguesa da capitania cearense. Uma das primeiras bandeiras foi liderada pelas tropas
militares de Pero Coelho de Sousa, em 1603. Essa empreitada culminou nos embates
sem sucesso com a ocupação francesa na capitania do Maranhão entre 1604 e 1613. A
seguinte aconteceu logo após a fundação de um forte holandês na barra do atual rio
Ceará, em 1634. Nesse cenário de guerra contra o inimigo externo, desde início do
século XVII, a coroa luso-espanhola “buscava, na medida do possível, apossar-se das
30
GIRÃO, Valdelice Carneiro. As Oficinas ou Charqueadas no Ceará. Fortaleza: Secretaria de Cultura
e Desporto, 1995.
29
suas rivais. A União Ibérica (1580-1640), acordo político entre as coroas lusa e
espanhola, fortaleceu o poderio da Península na corrida contra outras nações europeias
pelas terras além-mar. A defesa do domínio ibérico norteou as decisões internas que
doravante marcaram as políticas administrativas coloniais.
Ao agudizar as disputas por hegemonia territorial entre as principais
potências coloniais, do outro lado do Atlântico, a coroa portuguesa também lutava com
a Espanha para sustentar sua presença na África e em Goa. Nas Américas as disputas
também não cessavam. E assim sendo, os responsáveis pelas políticas colonizadoras de
Portugal tomavam medidas administrativas que mais se adequassem as peculiaridades
dos processos colonizadores de cada região.35
35
VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. Nas Sesmarias histórias de vida e histórias de terras. In: Datas de
Sesmarias do Ceará e índices das Datas de Sesmarias. CD-room N°01. Fortaleza: Expressão
Gráfica/Wave Media, 2006.
36
Idem. P.01.
31
trânsitos, contatos violentos e por vezes amistosos, que os conectavam com as quatro
partes do mundo.
37
JUCÁ NETO, Clovis. A urbanização do Ceará setecentista. As vilas de Nossa Senhora da
Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. Tese de Doutorado – Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007, p. 236.
38
LIMA, Zilda Maria Menezes & GADELHA, Georgina da Silva. O sertão do Ceará e o lugar do
impulso criatório: trilhas, fazendas e vilas. p. 05. https://pt.scribd.com/document/385324500/O-Sertao-
Do-Ceara-e-o-Lugar-Do-Impulso-Criatorio-Trilhas-Fazend.as-e-Vilas. Acesso dia 15 de abril de 2018 às
18 h.
39
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia à vila de índios: vassalagem e
identidade no Ceará colonial – século XVIIII. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2010, p. 63.
33
40
ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. História e direito: sesmarias e conflito de terras entre índios
em freguesias extramuros do Rio de Janeiro (século XVIII). Dissertação (Mestrado em História), Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.
41
DINIZ, Monica. 2005. Op. Cit. P. 2.
34
42
ABREU, Capistrano J. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988, p.
140 e141.
43
CARDOSO, Alírio. A conquista do Maranhão e as disputas atlânticas na geopolítica da União Ibérica
(1596-1626). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, nº 61, p. 317-338. 2011.
44
CHANDLER, Billy Jaymes. Os Feitosas e o sertão dos Inhamuns. Tradução de Alexandre F. Laskey
e Ignácio R. P. Montenegro. Fortaleza: Edições UFC/ Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 10.
45
DINIZ, Mônica. Sesmarias e posse de terras: política fundiária para assegurar a colonização brasileira.
Revista Histórica no. 02. Revista online do Arquivo Público do Estado de São Paulo, Junho de 2005.
46
MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia
social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 63.
35
[...] o gado era geralmente criado solto: como não havia cercas
dividindo as fazendas uma das outras, e existindo
consuetudinariamente uma légua de terra de uso comum entre as
mesmas [...] sucedia certamente que os animais de um proprietário se
misturassem com os dos vizinhos.50
47
Idem, p. 63.
48
VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro, Objetiva, 2000, p. 539.
49
Ver mais sobre essas quentões. In: GERMANI, Guiomar Inez. Condições históricas e sociais que
regulam o acesso a terra no espaço agrário brasileiro. GeoTextos, vol. 2, n. 2, p. 115-147, 2006. SILVA,
Gedeval Paiva; SOUZA, Suzane Tosta. Novos territórios, velhas contradições: a ação do Estado e a
questão agrária. A luta pela terra no acampamento Ojefersson Anagé, Bahia. 2008.
50
MOTT, Luiz. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina, Projeto Petrônio Portella, 2a
Ed. 2010, p. 67.
36
51
OLIVEIRA, Antonio José de. Os Kariri-resistências à ocupação dos sertões dos Cariris Novos no
século XVIII. (Tese de Doutorado em História), Programa de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.
52
PUNTONI, Pedro. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do
sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec, editora da Universidade de São Paulo: Fapesp,
2002, p. 46.
53
DIAS, Leonardo Guimarães Vaz. A guerra dos bárbaros: manifestações das forças colonizadoras e da
resistência nativa na América Portuguesa. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF.
Semestral. 2002, p.04. http://www.clionet.ufjf.br/rehb, acessado em 05 de maio de 2018, às 20h 30.
54
ARAUJO, Maria Soraya Geronazzo. O Muro do Demônio: economia e cultura na Guerra dos
Bárbaros no nordeste colonial do Brasil, séculos XVII e XVIII. 2007. 121 f. Dissertação (Mestrado em
História), Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2007, p. 81.
37
muitos grupos indígenas e, bem como causando uma grande desorganização nas
populações nativas sobreviventes.
A agudização dos pedidos de “sesmarias cearense à administração
portuguesa foi proporcional à expansão pecuarista e a intensificação do extermínio das
populações indígenas”. Assim sendo, a ocupação efetiva desses sertões se deu através
do “binômio fazendeiros e administração portuguesa”, o primeiro oferecia a força e
braço armado e o segundo legitimava a bico de pena violência de toda sorte a população
nativa.55 Portanto, com o apoio e sansão do estado colonial os criadores de gados foram
se constituindo como poder local de mando e desmando.
De acordo com Pinheiro, “analisar a relação entre a doação das cartas de
sesmarias e o avanço da pecuária para o interior é extremamente esclarecedor para se
perceber como o conflito foi se desenhando no território cearense e também a estrutura
fundiária”.56 Desse modo, o imperativo era que essa região tivesse uma ocupação
produtiva para a economia colonial, e como sertões possuíam imensidões de terras essas
deveriam ser aproveitadas para a criação bovina. Assim, os pedidos de cartas de
sesmarias coincidem com a guerra de conquista e ocupação desses espaços na capitania
do Siará Grande.
A pecuária foi atividade que melhor justificava os pedidos de terras para a
coroa portuguesa. Nesse sentido, o aumento dos pedidos de sesmarias esteve
diretamente ligado com a expansão da pecuária e o recrudescimento da guerra contra os
povos nativos. Com o extermínio de boa parte das tribos indígenas ou aldeamento de
outras tantas a disputa entre os agentes coloniais era pelas melhores terras, ou seja, as
que ficavam localizadas próximo aos grandes rios e riachos. E assim, o espaço cearense
foi se desenhando e conectando-se a partir dos seus principais rios como veremos no
tópico seguinte.
55
VIEIRA JÚNIOR, Antonio Otaviano. Op. Cit. p. 30.
56
PINHEIRO, Francisco José. Formação Social do Ceará (1680-1820): o papel do Estado no processo
de subordinação da população livre e pobre. (Tese de Doutorado em História), Programa de Pós-
graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006. P.09.
38
construção de trilhas que mais tarde serviram para conectar esses sertões “por onde se
desenvolveu a marcha do assentamento do interior da capitania, depois escoadouro das
manadas de corte para os mercados consumidores”.57 Bem como foi nos arredores
dessas ribeiras que foram sendo construídos os primeiros povoados, posteriormente
transformados em Freguesias e Vilas.
A escolha dos criadores por áreas ribeirinhas derivava da facilidade de água
e pastagens para seus rebanhos, ou seja, fatores determinantes para essa atividade.
Assim, foram se formando os primeiros núcleos familiares nas proximidades dos
principais rios cearenses. Esses espaços sertanejos, de modo mais direto, foram
conectando-se com dinâmicas econômicas e sociais de outras capitanias primeiramente
pelas rotas das boiadas, já que os rebanhos bovinos eram trazidos, principalmente
Pernambuco, Paraíba e Rio Grande (do Norte) por colonizadores que entraram pela
ribeira do Jaguaribe, uma das mais importantes áreas de ocupação daquele momento.
Segundo Almir Leal de Oliveira, essa expansão agudizou o processo
colonizador definido pelas dinâmicas de povoamento mediadas por sua política
metropolitana.
57
LIMA, Zilda Maria Menezes & GADELHA, Georgina da Silva. O sertão do Ceará e o lugar do
impulso criatório: trilhas, fazendas e vilas, p. 05. https://pt.scribd.com/document/385324500/O-Sertao-
Do-Ceara-e-o-Lugar-Do-Impulso-Criatorio-Trilhas-Fazendas-e-Vilas. Acesso dia 15 de abril de 2018 às
18h.
58
OLIVEIRA, Almir Leal de. A dimensão atlântica da empresa comercial do charque: o Ceará e as
dinâmicas do mercado colonial (1767-1783). In: Anais do I Encontro Nordestino de História Colonial:
Territorialidades, Poder e Identidades na América Portuguesa – séculos XVI a XVIII. Universidade
Federal da Paraíba. João Pessoa, 2006, p. 02.
39
59
GIRÃO, Raimundo. Op. cit. p. 65 e 66.
60
Idem, p. 01.
40
61
JUCÁ NETO, Clóvis Ramiro. Os primórdios da organização do espaço territorial e da vila cearense:
algumas notas. Anais do Museu Paulista, v. 20, n. 1. Janeiro – Junho, 2012, p. 142.
62
HOORNAERT, Eduardo. “O padroado português”. In: História da Igreja no Brasil. Tomo II.
Petrópolis: Vozes, 1979, p. 163-165.
63
Idem! P. 23.
41
das Vilas e Freguesias da Ribeira do Jaguaribe, mas foi uma constante que se fez
presente também nas outras ribeiras dessa capitania como a do Ceará e Acaraú.
A maior ribeira da Capitania do Ceará era a do Jaguaribe e nela estavam
condensados os rios Jaguaribe, Banabuiú, Quixeramobim e Salgado. Quixeramobim
além de ser o nome do rio era também do povoado que se encontrava junto a sua ribeira.
Possuía três vilas: Santa Cruz do Aracati, Vila Real do Crato e a do Icó; e uma
Freguesia, a de São Bernardo das Russas. Por conta dessas dimensões de terras e rios,
essa ribeira despontou com maior número de fazendas. Isso comprova que no decorrer
do século XVIII, o seu processo de ocupação e povoamento foi bastante acelerado. Em
decorrência disso, para manter o controle maior sob os pagamentos de impostos e
dízimos que em 1742 essa ribeira foi dividida em duas: Russas e Icó.
Nesse novo arranjo, ficou de um lado a ribeira das Russas composta pela
Vila de Aracati e a Freguesia de São Bernardo das Russas. Do outro lado a ribeira do
Icó com a Vila do Icó e a Vila do Crato. Quixeramobim, ainda pertencente à Freguesia
de São Bernardo das Russas, estava situado na região central da Ribeira das Russas que
64
NOGUEIRA, Gabriel Parente. 2010, Op. cit. p. 31.
42
era ponto estratégico de cruzamento das estradas que vinham de Granja, Sobral,
Crateús, de Santa Quitéria, e da Paraíba.65
Em 1755 a capitania do Ceará já despontava como uma das mais prósperas
em termos de arrecadação de impostos. Mesmo ela aparecendo com o menor número de
arrecadação comparando-a com as outras duas anexas de Pernambuco, a dizer: Rio
Grande e Paraíba, nesse ano os dízimo chegou ao valor de 1:567$000 réis e na década
seguinte (1764), já alcançava 11:219$00 réis, ou seja, um aumento de aproximadamente
dez vez mais, em apenas uma década.66 E isso gerou mais uma vez uma subdivisão
espacial, haja vista o visível rápido crescimento econômico desse espaço.
65
JUCÁ NETO, Clóvis Ramiro. Os primórdios da organização do espaço territorial e da vila cearense,
algumas notas. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.20. n.1. p. 133-163. jan.- jun. 2012.
66
MENEZES, José Cezar de. Idea da população da capitania de Pernambuco e das suas anexas. Rio
de Janeiro: Officinas Graphicas da biblioteca Nacional. 1923 (v. XL), p. 9.
67
SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. Op. cit. p. 29.
43
população de 7.600 pessoas. 68 A ribeira do Acaraú, formada por duas vilas: Sobral e
Viçosa Real contendo 325 fazendas, 3.404 fogos e 11.220 habitantes. A ribeira do
Jaguaribe contava apenas com uma vila, Aracati e duas Freguesias Russas e
Quixeramobim, havia nelas 240 fazendas, 1.253 fogos e 5.449 pessoas. Por último e não
menos importante, a ribeira do Icó compunha-se de duas vilas: Icó e Crato, 314
fazendas, 2.583 fogos e 9.112 habitantes. A capitania do Siará Grande no final do
século XVIII possuía a seguinte organização: 972 fazendas de gado, 11 vilas e 33.381
habitantes e totalmente ocupada.69
Essa segunda metade do XVIII foi fundamental para a consolidação da
capitania do Ceará no mercado internacional não somente pelo desenvolvimento da
indústria da pecuária e seus derivados, mas também emergência da produção
algodoeira. No decorrer desse processo, verificou-se a “contribuição dos trabalhadores
pobres livres (a maioria mestiços e negros libertos), de índios e de escravos africanos e
seus descendentes”.70
No decorrer do século XVIII, ocorreram significativas mudanças
administrativas e físicas acompanhadas do crescimento populacional e econômico até
então não experimentado nessa capitania. O advento da indústria da pecuária e a
valorização dos seus produtos e derivados, juntamente com o fomento da produção
algodoeira, colocava o Ceará na rota do comércio exportador. Em decorrência disso,
aumentaram o fluxo migratório de agentes de variadas origens e qualidades,
estabelecendo residências uns como proprietários de terras, outros como trabalhadores
livres e escravizados.
trilhas das boiadas através da indústria da pecuária. Ela também obedeceu à lógica de
ocupação e povoamento próximo às ribeiras dos grandes rios e mananciais.
A escolha dos fazendeiros por espaços próximos aos rios ficou bastante
patente nos pedidos das sesmarias de Quixeramobim. Assim, é importante compreender
nesse processo “a simbiose que era necessária entre o homem e a natureza, dado que o
domínio físico ambiental marcava as disputas por lugares privilegiados para a
sobrevivência nos sertões”,71 tendo em vista a sua localização no semiárido e os
constantes de períodos de secas.
Esses lugares com mananciais eram, sobretudo, importantes para os
indígenas que haviam sido expulsos do litoral e a usurpação dessas terras, a seu turno,
geralmente era feita através de grande violência. Ademais, os indícios desses violentos
conflitos por terras entre a população nativa e fazendeiros podem ser percebidos,
também, através das justificativas dos pedidos de cartas de sesmaria. Até por volta dos
anos de 1760, a maioria dos pedidos eram justificados primeiramente por alegar serem
terras devolutas e, sobretudo, para o combate aos indígenas. Se fossem realmente terras
desabitadas por que o enfrentamento e extermínio da população ali residente, ou melhor,
os seus donos naturais? De acordo com Vieira Júnior:
71
MORAES, Ana Paula da Cruz Pereira de. Entre mobilidades e disputas: o sertão do rio Piranhas,
capitania da Paraíba do Norte, 1670-1750. Tese (doutorado), Universidade Federal do Ceará, Centro de
Humanidades, Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História Social, Fortaleza,
2015, p. 36.
72
VIEIRA JÚNIOR. Antonio Otaviano. Op. cit. p. 29.
45
11 9
3 4 5 6 4
2 1 0 0 0
74
Fonte: Datas de Sesmarias do Ceará. digitalização dos volumes editados nos anos de
1920 a 1928 (em CDs-ROM) Fortaleza: Expressão Gráfica/Wave Media, 2006.
73
OLIVEIRA, Antonio José de. Os Kariri-resistências à ocupação dos sertões dos Cariris Novos no
século XVIII. (Tese de Doutorado em História), Programa de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017, p. 117.
74
Datas de Sesmarias do Ceará: digitalização dos volumes editados nos anos de 1920 a 1928 (em CDs-
ROM) Fortaleza: Expressão Gráfica/Wave Media, 2006.
46
sesmarias, apesar de não serem com tanta frequência como na primeira década do
povoamento dessa Freguesia. Indício esse, que nos permite compreender ou pelo menos
conjecturar que todos esses anos foram permeados por conflitos entre esses tais
fazendeiros e os indígenas que habitavam esses espaços.
A listagem cronológica das sesmarias doadas no território que corresponde a
Freguesia de Quixeramobim nos permitiu, também, mapear os nomes das principais
famílias que deram origem à mesma. Os primeiros requerentes foram: Capitão Antônio
Duarte Pinheiro da Rocha e Antônio Pinto Correia; Tenente coronel João da Cunha e
Silva e Agostinho de Rezende; Duarte Pinheiro da Rocha e Antônio Pinto Correia;
Teresa de Jesus e Alferes Francisco Ribeiro de Sousa; Tenente coronel João da Cunha e
Silva e Agostinho de Rezende; Simplício Moura Velho e Manuel Bezerra do Vale. De
acordo com Girão.75 Estas famílias que passaram a ocupar as terras quixeramobinense
vieram através do rio Banabuiú e do rio Jaguaribe. Umas das principais famílias que se
estabeleceram nessa região foram a dos grandes pecuaristas Correia Vieira e a dos
Rodrigues Machado. “Ainda temos as famílias vindas do Icó para a região de Boa
Viagem, formando o clã dos Vedoia Sanches e as famílias vindas de Pernambuco para a
região do Sitiá, o clã dos Queiroz”.76 Os primeiros sesmeiros que se estabeleceram
nesse espaço, ocuparam funções de mando, desempenhando atividades militares e
cumprindo funções de ordenança nas pequenas povoações, então, distantes do braço
colonial.
Esses nomes e sobrenomes perduraram na documentação eclesiástica por
todas as décadas analisadas, em sua maioria como nubentes, padrinhos, pais ou mesmo
donos de escravos. Esses grupos familiares foram se estabelecendo nesse território e se
organizando, a partir de então, de acordo com suas possibilidades econômicas,
construindo suas redes sociais de solidariedades, sociabilidades e sobrevivências nesses
sertões cearenses que, embora estivessem distantes da burocracia colonial, mantinham
conexões com várias outras capitanias e com o comércio internacional.
Para além das famílias que se estabeleceram em solos quixeramobinense no
período colonial, em geral, vindas de diversas partes da atual região Nordeste, nós
encontramos, não na documentação das sesmarias, mas na de batismos e casamentos,
75
GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Fortaleza, 4ª Ed. Edições Universidade Federal do
Ceará, 1984.
76
ALENCAR, Ana Cecília de Freitas. Declaro que sou “Dona”, viúva e cabeça de casal: mulheres
administradoras de bens nos sertões de Quixeramobim (1727-1822). (Dissertação de mestrado em
História), Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2014.
47
última década do XVIII. Respeitando os limites oferecidos pelas fontes, que vão desde o
seu frágil estado de conservação a possíveis perdas de registros ou mesmo de livros
completos pelos padres em suas viagens de desobrigas. Na melhor das hipóteses,
podemos também, conjecturar que essa ausência derivava do estilo de descrição
particular de cada escrivão, e assim, podendo a vir omitir as qualidades dos indivíduos,
ou mesmo se equivocar na transcrição.
Não obstante essas diversas possibilidades de acontecimentos e/ou
incidentes que possam ter ocorrido com esses documentos, o desaparecimento gradual
ou parcial desse grupo social pode está associado ao extermínio de boa parte destes por
suas vulnerabilidades as doenças europeias ou mesmo através dos sangrentos conflitos
por terras que não cessaram na década de 1720, como a historiografia costumou definir
como final da guerra dos “bárbaros”. Ademais, não devemos esquecer que esta
população nativa passou por dinâmicas de mestiçagens e assim, foram modificando suas
qualidades de índio para pardo, cabra, dentre outros léxicos.
Outro dado importante que temos que levar em consideração é a natureza
cíclica das secas nesses espaços. O processo de ocupação dos sertões do Ceará “que se
deu através da expansão da produção pastoril e a consequente e a expulsão e
“pacificação dos índios”, foi marcado por outro elemento: as secas”. 77 A partir desse
prisma, podemos compreender que nos anos de estiagens ou mesmo de poucas chuvas
promoveu mudanças nos cenários sociais e nas suas dinâmicas organizacionais. Assim
sendo, essa questão não pode ser desconsiderada, tendo vista que a segunda metade do
século XVIII até a primeira década do século seguinte foi um momento que mais se
enfrentou longos períodos de estiagens. Os anos de 1772, 1776, 1777-1778, 1784, 1790-
1793, 1804 e 1809 foram drasticamente castigados pela seca extrema. Esses anos foram
atravessados por extremada “miséria, com destaque para a seca de 1790/93 causando
sérias baixas no rebanho”,78 bem como deixou um rastro de fome e mortes da sua
população. Neste contexto, modificou-se a economia, uma vez que ceifou boa parte das
boiadas, reduzindo assim as oficinas de charque, bem como todo o cotidiano dessas
populações sofreu modificações, derivadas desde o aumento de epidemias e migrações
da população para zona litorânea e as serras e consequente redução de nupcialidades e
natalidade.
77
VIEIRA JR. Antônio Otaviano. Op. cit. p. 37.
78
Idem, p. 38.
50
79
CHAVES, Elisgardênia Oliveira. Op. cit. p. 76.
51
80
JÚNIOR, José Ribeiro. Colonização e monopólio no nordeste brasileiro. Companhia Geral de
Pernambuco (1759 – 1780). São Paulo, HUCITEC, 1976, p, 72.
52
limites de nossas fontes, as descrições sobre eles nem sempre vieram seguidas pela
informação da nação de origem, cor/qualidade ou etnia desses sujeitos. Por isso,
tomamos o cuidado de não generalizar, ou seja, não reduzir a categoria escravizada e
forra para apenas as famílias de origem africana e/ou seus descendentes, tendo em vista
que o sistema escravista brasileiro e, claro o cearense, não se restringia exclusivamente
aos sujeitos africanos e seus descendentes mais diretos, mas também aos nativos.
Como a escravização indígena possuía um estatuto de ilegalidade, muitas
foram às estratégias de camuflar essa prática através das descrições documentais. Nos
documentos coloniais brasileiros, podemos encontrar subcategorias para designar de
maneira mais sutil a prática ilegal de escravização de indígenas, sendo que o mais
comum para designar o indígena em situação de cativeiro era como administrado, ou
seja, “o índio submetido à administração particular de um homem livre [...] que
administravam aldeias”.81
Nos assentos de batismos e casamentos de Quixeramobim (1740 - 1810),
não encontramos nenhum indígena administrado ou mesmo em situação propriamente
dita escravizada. No entanto, há 10 casos de indígenas forros82 nos registros de batismos
e nenhum nas atas de casamentos. O caso em que aparece indígena na condição de forro
ocorreu na década de 1740, com o casal João Costa e Leandra, pais de Maria, ambos
alforriados. Na década seguinte, 1750, constam mais dois casais: Thomas e Maria, pais
de Fabrícia; e Estevão e Maria, pais de Antonia, estes registos são pouco descritivos. Os
próximos registros em que constaram nativos como alforriados só voltaram a se
manifestar em 1808. Neste ano, quatro indígenas são registrados como forros, Geraldo
Gomes, Aguida Maria, Francisca Ribeiro e Theresa Maria. Esses dados nos permitem
conjecturar algumas hipóteses. O não registro de indígenas em condição de escravizados
na documentação eclesiástica pode ser uma estratégia de seus donos para disfarçar aos
olhos da legislação vigente, essa prática, uma vez que a mesma não era legalizada. No
entanto, registra-los na condição de forro, sugere que esse era um exercício comum na
prática. Ademais, para ser forro era necessário antes ter sido escravo, bem como
81
PAIVA. Eduardo França. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de
resistência através dos testamentos. Minas Gerais, Annablume, 1995, p. 83.
82
Arquivo Eclesiástico da Paróquia de São Antônio de Quixeramobim, AEPSAQ. Livro de batismos
número 01, 27/02/1757, Estevão e Maria, índios forros, folha 03. Livro de Batismos número 07,
22/08/1808, Geraldo Gomes, índio forro, folha. 77. Livro de Batismos número 07, 12/07/1808, folha. 55,
Aguida Maria, índia forra. Livro de Batismos número 07, 07/04/1808, Francisca Ribeiro, índia forra,
folha. 60. Livro de Batismos número 07, 20/10/1808, Theresa Maria, índia forra, folha. 84.
53
84
PARÉS, Luis Nicolau. Entre duas costas: nações, etnias, portos e tráfico. In: A Formação do
Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da Unicamp, 2006, p. 23 e 26.
85
LIMA, Zilda Maria Menezes & GADELHA, Georgina da Silva. O sertão do Ceará e o lugar do
impulso criatório: trilhas, fazendas e vilas, p. 17. https://pt.scribd.com/document/385324500/O-Sertao-
Do-Ceara-e-o-Lugar-Do-Impulso-Criatorio-Trilhas-Fazendas-e-Vilas. Acesso dia 15 de abril de 2018 as
18 h.
55
Não temos como saber de certo, através de nossas fontes, qual capitania
abastecia de escravos os fazendeiros de Quixeramobim, mas percebemos a majoritária
presença de angolanos nessa espacialidade. Esta constatação também foi feita por
Elisgardênia Chaves nas Freguesias de Russas e Aracati e Déborah Gonçalves Silva na
Freguesia de São Raimundo Nonato no Piauí, podendo vir a ser o mesmo mercado
escravista que abastecia toda a região.86
Igualmente como percebido nos registros de indígenas, a população de
origem africana em Quixeramobim, possui a mesma flutuação por décadas. Podemos
constatar com os dados acima que durante a década de 1790 ocorreu uma queda brusca
nos casamentos envolvendo cativos originários da África. Comparando essa década com
a anterior e posterior, percebemos uma disparidade com esse decréscimo populacional.
E assim, a questão da seca pode ser um dos motivos para explicar essa ausência
populacional.
Os dados demográficos das fontes de batismos e casamentos apresentaram
considerável aumento populacional e da presença da mão de obra africana escravizada
nos solos quixeramobinense entre os anos de 1740 e 1810. Apesar dos indícios
apontarem para o desenvolvimento econômico não apenas desse espaço, mas da
capitania cearense como um todo, no entanto, as estruturas físicas dessa capitania
permaneceram bem modestas. A Freguesia de Quixeramobim, não fugia as normas de
uma sociedade colonial periférica, suas estruturas físicas e administrativas eram
extremamente precárias. Segundo Funes,87 as precariedades estruturais das Vilas e
freguesias cearenses estão diretamente associadas ao modelo administrativo que
derivava do tipo de ocupação e economia implantada pelos portugueses.
88
Idem, p. 106.
89
VIEIRA JR. A. Otaviano. Op. cit. p. 131 e 132.
90
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. Op. Cit. P. 127.
57
91
SILVA, Rafael Ricarte da. 2010, Op. cit. p. 117.
92
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. Op. Cit. p. 123.
93
LUNA, Francisco Vidal, COSTA, Iraci Del Nero da. A presença do elemento forro no conjunto de
proprietários de escravos. In: LUNA, Francisco Vidal, COSTA, Iraci Del Nero da e KLEIN, Herbert S.
Escravidão em São Paulo e Minas Gerais. São Paulo: Edusp, 2009. E PAIVA, Eduardo França.
Escravidão e Universo Cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Op. cit.
94
Pecúlio: porcentagem mínima em dinheiro ou ouro que o escravo ganhava com seu trabalho nas minas
de ouro ou nas vendas nos espaços urbanos durante o período escravista no Brasil.
61
95
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. População e família mestiça nas Freguesias de Aracati e
Russas, Ceará, 1720/1820. 2016, Op. Cit. p. 136.
62
96
NETTO, Rangel Cerceau. População e mestiçagem: a família entre mulatos, crioulos e mamelucos
em Minas Gerais (séculos XVIII e XIX). Op. Cit, p. 166.
97
MOTTA, José Flavio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em
Bananal (1801-1829). São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999, p. 229.
63
juntos sem contrair o matrimônio, ou mesmo das relações esporádicas, mas que vieram
a gerar uma prole.99
A presença de famílias derivadas dos diversos tipos de relações
supramencionadas só foi possível de ser percebida a partir dos dados sobre as
legitimidades/naturalidades das crianças nas atas de batismos. Essas informações foram
reveladoras para percebermos outros arranjos familiares envolvendo as mães solteiras,
concubinas ou mesmo mães que viviam com seus parceiros de vida, mas sem a
legitimação da igreja. É plausível reiterar que as normativas da igreja católica, desde
Concílio de Trento até boa parte do século XX, proibiam ao casal que não oficializasse
a união de batizar seus filhos como legítimos. Portanto, a prole que fosse gerada através
desses tipos de relações, mesmo sendo aceitas pelo rito católico de batismo, era
considerada como “ilegítima” ou natural. Nos registros, aparecia apenas o nome da mãe,
ocultando assim a presença do pai. Medidas essas, que, por seu turno, serviam para
deixar no anonimato a figura paterna, evitando assim, o escândalo flagrante do
concubinato dos seus fieis dizimistas.
Em nosso arcabouço de fontes de casamentos em Quixeramobim, entre os
anos de 1740-1810, catalogamos 701 registros, destes, 135 eram formados por nubentes
em que ambas as partes ou apenas uma delas eram de escravizados e 24 envolvendo
forros. Esses dados nos permitiram compreender que uma das lógicas da formação
familiar, tanto para a população livre, escravizada e liberta, era pelo viés católico.
Nos estudos recentes sobre as famílias coloniais brasileiras é consenso de
que a grande maioria das uniões conjugais nesse período em estudo, não somente em
nosso recorte espacial, mas a nível nacional, se constituíam por via da violência de toda
sorte e também da consensualidade. É plausível lembrar que essa prática, não se
configurava apenas nos arranjos familiares entre os cativos, mas que abrangia a
população de modo geral em especial a pobre livre.
Analisar essas uniões matrimoniais e consensuais através da referida
documentação eclesiástica de casamentos e batismos nos ajudou no entendimento das
99
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. Op. Cit., 2016, p. 213. Sobre classificações de casais e uniões
conjugais ver: COSTA, Iraci Del Nero da; SLENES, Robert W.; e SCHWARTZ, Stuart B. A família
Escrava em Lorena‖. In: COSTA, Iraci Del Nero da (Orgs.). Revista de Teoria e Pesquisa Econômica,
Estudos Econômicos. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE, 1870. Sobre as
famílias mistas, ver: LIBBY, Douglas Cole. Voltando aos registros paroquiais de Minas colonial:
etnicidade em São José do Rio das Mortes, 1780-1810. Revista Brasileira de História, vol. 29 nº. 58.
São Paulo, 2009. Sobre a legitimidade, ver: TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família:
concubinato, igreja e escândalo na colônia. São Paulo: Edições Loiola, 1999.
65
formações das famílias não somente escravizadas e forras, mas também as livres
quixeramobinenses no período colonial. Esses registros eclesiásticos, longe de serem
fontes censitárias, que nos tragam números exatos da população que vivia nesse
espaço/tempo, são ricos em informações do cotidiano.
Assim sendo, nesse segundo capítulo analisamos as uniões classificadas
como “legítimas” pelo rito matrimonial e as demais formas de constituições familiares
consideradas “ilegítimas” ou naturais da população da freguesia de Quixeramobim entre
os anos de 1740 a 1810. O nosso foco principal foi as famílias escravizadas e forras,
haja vista o papel desempenhado por elas na sua reprodução não apenas biológicas,
mas, sobretudo, social.
No primeiro momento, abordaremos as normativas dos casamentos católicos
presentes nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Em seguida,
aprofundaremos, por meio das atas de casamentos, nossas análises nas uniões
formalizadas a partir do rito matrimonial. E por fim, trataremos dos arranjos familiares
através das noções de legitimidade e naturalidade dos filhos da população livre,
escravizada e forra presentes nos registros de batismos.
100
O Concílio de Trento foi o concílio ecuménico mais longo da História da Igreja Católica, e "emitiu o
maior número de decretos dogmáticos e reformas, e produziu os resultados mais benéficos", duradouros e
profundos "sobre a fé e a disciplina da Igreja". Para opor-se ao protestantismo, o concílio emitiu
numerosos decretos disciplinares e especificou claramente as doutrinas católicas quanto à salvação, os
sete sacramentos [como, por exemplo, confirmou a presença de Cristo na Eucaristia), o cânone bíblico
(reafirmou como autêntica a Vulgata] e a Tradição, a doutrina da graça e do pecado original, a
justificação, a liturgia e o valor e importância da Missa [unificou o ritual da missa de rito romano,
abolindo as variações locais, instituindo a chamada "Missa Tridentina"], o celibato clerical, a hierarquia
católica, o culto dos santos, das relíquias e das imagens, as indulgências e a natureza da Igreja. Regulou
ainda as obrigações dos bispos.
66
Ficou decretado que cada Cura passaria a ser responsável pelo registro
de cada Batismo e de cada Matrimônio celebrado em sua Paróquia. A
fórmula do registro foi minuciosamente estabelecida. Era preciso
resguardar um caráter universal e igualitário para os registros de cada
católico101.
101
MARCÍLIO, Maria Luiza. Os registros paroquiais e a História do Brasil. Varia História, nº 31,
janeiro 2004, p. 14.
102
Idem, p. 14.
103
MARCÍLIO, Maria Luiza. Um olhar sobre os registros de casamento da paróquia Nossa Senhora
da Conceição de Franca, São Paulo, século XIX. Dialogus, Ribeirão Preto, v. 11, n. 1-2, p. 37-47,
2015.
104
TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na colônia. São
Paulo: Edições Loyola,1999, p.118.
67
105
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. 2016, Op. Cit. P. 215.
106
GHIRARDI, M. M. Matrimonios y familias en Córdoba 1700-1850. Prácticas y representaciones.
Córdoba, Argentina. Ferreyra Editor; Centro de Estudios Avanzados; Universidad Nacional de Córdoba,
2004.
107
CUNHA, Maísa Faleiros. Casamentos mistos: entre a escravidão e a liberdade. Franca, São
Paulo/Brasil, século XIX. Revista brasileira de Estudos de População, Belo Horizonte, v.34, n.2,
p.223-242. 2017. P. 226.
108
SOUSA, Talyta Marjorie Lira. Casamento misto entre escravos na cidade de Teresina na segunda
metade do século XIX. Revista Historiar, Vol. 04, N. 07, p. 21-39, 2012, p.27.
68
109
LOTT, Mirian Moura. Casamento e família nas Minas Gerais: Vila Rica, 1804-1839. Dissertação de
Mestrado História. Universidade Federal de Minas Gerais: Belo Horizonte, 2004, p. 5.
110 CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia:
Educação, Lei, Ordem e Justiça no Brasil Colonial. In: José Claudinei Lombardi; Dermeval Saviani;
Maria Isabel de Moura Nascimento. (Org.). Navegando pela História da Educação Brasileira.
Campinas – SP: Graf. FE: HISTEDBR, 2006, p. 03.
111
CUNHA, Maísa Faleiros. Casamentos mistos: entre a escravidão e a liberdade Franca-São
Paulo/Brasil, século XIX. Revista brasileira de Estudos de População, Belo Horizonte, v.34, n.2, p.
223-242. 2017. P. 226.
112
Idem, p. 227.
69
Seus senhores lhe não podem impedir o matrimônio, nem o uso dele
em tempo e lugar conveniente, nem por este respeito os podem tratar
pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro, por
ser cativo, ou por ter outro justo impedimento o não possa seguir. 113
A Igreja advertiu que os casamentos não podiam ser impedidos pela vontade
do senhor, assim como “os cônjuges não deveriam ser vendidos isoladamente,
separando-os de acordo com a conveniência do senhor. Apesar disso, as normas da
Igreja eram constantemente desrespeitadas pelos senhores”.115 Essas normativas
também serviam para reforçar a responsabilidade dos senhores em formalizar as uniões
dos seus cativos. E assim, podemos conjecturar, que essa poderia ser uma das causas
para a formalização de casamentos entre cativos através do ritual católico.
Já para a população colonial e imperial brasileira, livre com cabedal, a
legitimação da união, pelo rito católico, mostrou-se como: a “estratégia para garantir
status social, a reprodução do modelo de família preconizado pela Igreja e pelo Estado e
113
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia [...]. São Paulo: Typographia, 1853 p. 303.
114
Ver: VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo:
Typographia, 1853, Livro Quinto, Título XXII, parágrafo 989; Livro Primeiro, Título LXXI, parágrafo
303.
115
CUNHA, Maísa Faleiros. Casamentos mistos: entre a escravidão e a liberdade Franca-São
Paulo/Brasil, século XIX. Revista brasileira de Estudos de População, Belo Horizonte, v.34, n.2, 2017,
p. 227.
70
116
Idem, p. 223.
117
SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperança e recordação na formação da família escrava,
Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1999, p. 158 e 167.
118
GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social. (Porto
Feliz, São Paulo.). Rio de Janeiro: Mauad X, FAPERJ, 2008, p. 158.
71
119
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo:
Companhia da Letras, 1988, p 318.
72
No ano de 1766, uma década após seu casamento, o casal José e Inocência
batizaram pela primeira vez um filho. Como o índice de mortalidade infantil era grande
no período, eles poderiam ter concebido outros rebentos que não chegariam a sobreviver
ao batismo, ou mesmo viveram sem passar por esse rito. Nessa altura, a condição
jurídica de Inocência havia mudado para forra, bem como aparece com o sobrenome
Rodrigues, característica de pessoa livre. Prosseguindo com as informações do registro
de batismo, encontramos os nomes dos avós paternos, no caso, apenas a mãe, Antônia
de Angola, escrava, haja vista os dados sobre o pai estão ilegíveis. Os avós maternos,
Ventura, escravo de Manoel da Costa, e Francisca, índia. Os padrinhos, José e Maria,
ambos solteiros e irmãos, filhos de José Rodrigues da Penha, um sujeito livre.
Essas informações são bastante ricas e nos permite conjecturar diversas
possibilidades para compreender esse universo complexo da sociedade escravista de
Quixeramobim, nos primeiros anos da segunda metade do século XVIII. Analisando o
120
Assentos de casamentos da Freguesia de Quixeramobim, livro 01 (1755-1800), fl. 02 v.
121
Arquivo da Diocese de Santo Antônio de Quixeramobim - Livro batismo, número 02 (1755-1777), Fls.
63 v.
73
caso de Inocência, filha de pai escravizado e mãe indígena, a ata de batismo não faz
menção que sua mãe fosse cativa, logo, seu ventre deveria ser livre por lei. No entanto,
Inocência encontrava-se no registro de casamento como escravizada e no de batismo de
seu filho como alforriada. Portanto, em situação de cativeiro no primeiro registro e
liberta no segundo. O pai de Inocência era um sujeito escravo de Manoel da Costa, mas
ela foi registrada como sendo escrava de Luiz da Costa Leitão. Nesse caso, podemos
sugerir que ela poderia ter sido vendida para esse último senhor, ou mesmo, eles dois
serem parentes, irmãos, ou pai e filho, pois têm o mesmo sobrenome. Bem como Luiz
da Costa Leitão poderia ser o proprietário, mesmo que ilegalmente, da mãe indígena de
Inocência e, assim, o dono de sua prole. Em todo caso, são possibilidades que não
podem ser descartadas.
Não podemos olvidar que a condição jurídica dos indígenas era muito tênue
em todo espaço colonial das Américas: “os colonos produziram um artifício no qual se
apropriaram do direito de exercer pleno controle sobre a pessoa e propriedade dos
mesmos sem que isso fosse caracterizado juridicamente como escravidão”.122 Essa
contestação fica patente em Quixeramobim, quando trazemos o caso de Inocência, filha
de mãe livre e indígena, porém registrada como escravizada.
Outro ponto interessante a ser levado em consideração são as relações de
parentescos entre africanos e indígenas por meio das uniões conjugais e de
miscigenação. Embora sua mãe seja angolana, José poderia ter vindo juntamente com
ela para o Brasil, ou mesmo, nascido aqui, portanto, crioulo. O pai de Inocência era
cativo, não há identificação de sua nação, provavelmente a cor de sua pele era escura e
vivia em união consensual com uma indígena. Como estamos tratando de três gerações
diferentes, uma vez que essa ordem documental nos possibilita esse acompanhamento
através dos nomes, encontramos informações dos avós, pais e filho e, assim sendo, essas
relações no tempo comprovam que desde os primeiros arranjos familiares de africanos
e/ou seus descendentes, que apareceram na Freguesia de Quixeramobim, esse tipo de
união era recorrente.
122
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 137.
74
23/04/1784 Manuel da Costa, esc. Paula Maria, índia. Capitão Mor Manuel
Ferreira
15/2/1802 Máximo Gomes, mulato, esc. Francisca Maria, índia Capitão Pedro Teixera
12/01/1804 Venceslau da Rocha, índio. Ana, Mulata, escrava. Ten. Bento Rego
Bizerra
06/06/1805 Fidelis Cruz índio. Maria Antônia, negra, Pedro Roiz da Costa
esc.
26/11/1807 Domingos Francisco, preto, Maria Mariana, índia. Herdeiros Pe Ant. Fco
esc. I…(ilegível)
25/02/1808 Luiz Correa, índio. Maria, preta, esc Cap. José Pereira
Angola. Cavalcanti
FONTE: Assentos de casamentos da freguesia de Russas (1750-1755), livros 01 e 02. (ADLN). Assentos
de casamentos da freguesia de Quixeramobim - (AEPSAQ) - (1755-1810), livros 01 e 02.
123
PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e
espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Op. cit. p.
177.
124
CHAVES, Elisgadênia Oliveira. Op. cit. p. 75.
76
Para além das questões expostas acima, o que levaria uma pessoa livre a se
unir pelos laços do matrimonio com um (a) escravizado (a)? Os estudos sobre a
escravidão no Brasil, a partir de fontes, perspectivas e recortes diversos, buscaram
algumas explicações para esse fenômeno. Uma das perspectivas que nos ajudou a
pensar, ou mesmo a que mais se aproxima da realidade quixeramobinense no período
colonial, é a de Luna e Klein:
127
CUNHA, Maísa Faleiros. 2017. Op. Cit. p. 228.
128
MACHADO, Cacilda. 2008, Op. cit. p. 166.
78
129
LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Escravismo no Brasil. Op. cit. p. 243.
79
130
LOTT, Mirian Moura. Casamento e relações de afetividade entre escravos: Vila Rica: séculos XVIII e
XIX. Anais da V Jornada Setecentista, Curitiba, 26 a 28 de novembro de 2003, p. 504.
131
Assentos de casamentos da Freguesia de Quixeramobim, Livro 02 (1800-1818), Fls. 112.
132
LOTT, Mirian Moura. Casamento e relações de afetividade entre escravos: Vila Rica: séculos XVIII e
XIX. Anais da V Jornada Setecentista, Curitiba, 26 a 28 de novembro de 2003.
80
133
Sobre essa temática ver em: FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Fortuna e família no
cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; FLORENTINO, Manolo Garcia & Góes, José
Roberto. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c.1850. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres. Posse de
escravos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: FAPESP/Annablume, 1999.
134
LOPES, Janaina Christina Perrayon. Casamentos de escravos e forros nas freguesias da Candelária,
São Francisco Xavier e Jacarepaguá: uma contribuição aos padrões de sociabilidade marital no Rio de
Janeiro (c.1800-c. 1850). Anais do I Colóquio do Laboratório de História Econômica e Social, LAHES,
UFJF. Juiz de Fora, 2005, p. 02.
81
135
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. Op. Cit. p. 236.
136
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. Op. Cit. p. 238.
137
TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na colônia. São
Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 57.
82
138
CERCEAU NETO, Rangel. Um em casa de outro: concubinato, família e mestiçagem na Comarca do
Rio das Velhas (1720-1789). Op. cit. p. 46.
139
VASCONCELLOS, Marcia Cristina de. Mães solteiras escravas no litoral sul-fuminense, século XIX.
Fazendo Gênero 09. Diásporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de agosto de 2010, p. 03.
140
Assentos de Batismos da Freguesia de Quixeramobim (1756 -1802), livros 01 fls 20 e 30 e Livro 02,
(1755-1777), fls. 53v.
83
141
Exposto ou exposta é referente às crianças que foram abandonadas em casas de famílias, onde a
identidade dos pais biológicos ficava no anonimato. Essa medida de expor as crianças na porta de casa de
populares era comum em áreas rurais, como no caso da Freguesia de Quixeramobim, nas zonas mais
urbanizadas havia a roda dos enjeitados.
142
NADALIN, Sergio Odilon. Op. cit. p. 104.
143
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba, séculos
XVIII e XIX. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001, p. 208.
85
144
FARIA, Sheila de Castro. Op. cit. p. 71.
86
representava 0,2% (17) do total, 17,6% (3) eram legítimas, 58,8% (10) naturais e o
restante sem referencia. Para além dos registros que não apresentaram nenhuma
referência sobre a legitimidade e naturalidade dos batizandos, podemos perceber por
meio desses dados tabulados acima, que a lógica predominante é que há uma relação
muito mais acentuada entre ilegitimidade e escravidão.
Os registros de batismos que referenciam a legitimidade e cor/qualidade dos
batizandos escravizados e forros são bastante raros. Para os filhos de escravizados
elencamos o seguinte, dos 263 legítimos: 3,4% crioulos (09); 1% mulatos (03); 0,4%
negro (01); e 0,7% pretos (02). Dentre os 472 naturais: 1% crioulos (05); 1% mulatos
(05); 1% negros (05) e 0,8% pretos (04). Por último e não menos importante, os forros,
computando o total de 17, sendo estes 11,7% mulatos (02) e 17,6% pardos (03).
O casamento católico não foi privilégio apenas para as pessoas livres,
brancas e com cabedal. Ele, também, acontecia em boa parte da população escravizada e
forra na sociedade brasileira e, por conseguinte, na quixeramobinense. Mulheres de
várias etnias, indígenas e “africanas”, tal como “seus descendentes escravos (pretos,
crioulos, pardos, cabras, mulatos, dentre outros), constituíam a maior parcela do
contingente feminino que vivia fora das uniões matrimoniais sacramentadas pela
Igreja”. Elemento este, bastante perceptível no nosso estudo, assim como nos trabalhos
de Rangel Cerceu Neto em Rio das Velhas – MG, entre os anos de (1720 – 1789) e nas
Freguesias de Aracati e Russas (1720 – 1820) de Elisgardênia Chaves.145
Para a realidade do Quixeramobim colonial, uma sociedade escravista e de
economia agropecuarista, as fazendas possuíam poucos cativos. Assim, a relação da
ilegitimidade e a escravidão podem estar associadas à questão espacial e de convívio
nesses pequenos planteis, haja vista que muitos cativos necessitavam buscar em
fazendas vizinhas seus consortes, pois havia pouca disponibilidade onde eles viviam.
Essa perspectiva dialoga com a de Sheila de Castro Faria, quando afirma que...
[...] crioulos casavam menos porque lhes era mais difícil encontrar
parceiros: seus companheiros de cativeiro, africanos, casavam-se entre
si; os demais, parentes próximos, estavam interditados. Quando era
possível ― encontravam parceiros, de outros donos, o matrimônio
estava impossibilitado por imposição senhorial. Respondiam, então,
com a ilegitimidade.146
145
CERCEAU NETO, Rangel. Um em casa de outro: concubinato, família e mestiçagem na Comarca do
Rio das Velhas (1720-1789). Op. cit. p. 43.
146
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Op. cit.
p. 336.
87
147
VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 123.
88
148
TORRES-LONDOÑO, Fernando. Op. cit, p. 59 e 61.
149
PRAXEDES, Vanda Lucia. A teia e a trama da fragilidade humana os filhos ilegítimos em Minas
Gerais, 1770-1840. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003, p. 15.
89
150
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Batismos e compadrio de escravos: Montes Claro (MG) século XIX.
Juiz de Fora, LOCUS: Revista de História, Vol. 03. Nº 01, p. 108 – 115, 1997, p.109.
151
Sobre essa temática ver: SOUZA, Sonia Maria de. Terra, família e solidariedade: estratégias de
sobrevivência camponesa no período de transição, Juiz de Fora (1870-1920). Bauru, São Paulo, Editora
Edusc, 2007. MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da
hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. GUDEMAN, Sthephen e
SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia do século
XVIII, In: REIS, João José (Org.). Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos sobre o negro no
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.
152
FLORENTINO, Manolo; GOÉS, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico
atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
90
155
SILVA, Déborah Gonçalves. Op. cit., 2013.
92
156
GUDEMAN, S.; SCHWARTZ, S. B. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na
Bahia no século XVIII. In: REIS, J. J. (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o
Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense/CNPq, p. 33-59, 1988.
157
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 331.
158
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília:
Edições do Senado Federal, 2007, p. 17.
93
como nos casos de Francisco, pardo, filho de Antônio José e Anna Teresa, batizado com
a devida forma por João Luís Pereira. Outro caso foi de Josefa, filha legítima de
Christovão Gomes de Melo e Maria Francisca, batizada em perigo de morte pelo
Comandante Bento Ferreira Marques em sua Fazenda Jantar.159 E assim sendo, eles
tiveram uma morte assistida aos moldes católicos. Dentre estes batizados nas últimas
horas de vida, há três crianças escravizadas e as demais, livres.
A maior parte desses batismos in periculo mortis foram registrados nos
livros de óbitos. Por isso, a pequena presença de crianças nessas condições em
Quixeramobim, mesmo tendo em vista a alta mortalidade infantil na época.
O alto índice de mortes prematuras de crianças no Brasil colonial contribuiu
para que as autoridades eclesiásticas exigissem certa urgência da população em batizar o
mais cedo possível seus rebentos. As constituições primeiras do Arcebispado da Bahia
possuíam uma normativa em que o batismo de crianças fosse realizado até o oitavo dia
de nascida. Assim, alcançar todos os sujeitos desde a tenra idade independentemente da
sua condição social e jurídica. De acordo com Flávio Motta, para os sujeitos
escravizados no Brasil:
159
Livro de batismo número 07 (24 de abril de 1806 a 26 de dezembro de 1810), Fls. 37 v e 147 v.
Arquivo da Diocese de Quixeramobim, Paroquia de Santo Antônio – ADQPSA.
160
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos vontades livres: posse de cativos e família escrava em
Bananal (1801-1829). São Paulo: FAPESP: Annabume, 1999, p. 56.
161
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. 2016, Op. cit.
94
162
Idem, p. 39.
163
LEBRUN, François. O sacerdócio, o príncipe e a família. In André Burguière e tal. O choque das
modernidades. Ásia, África, América e Europa. V. 3. Lisboa, Terramar, 1998, p. 89.
164
GUDEMAM, Stephen e SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de
escravos na Bahia no século XVIII. In: REIS, João José (org). Escravidão e invenção da liberdade.
Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, p. 33-59, 1988.
165
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Op. cit. p. 26.
95
166
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos. Op. cit. p. 330.
167
LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Escravismo no Brasil. Op. cit. p. 254.
168
Idem, p. 256.
96
169
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Op. Cit.
Op. cit. p. 321.
97
“a necessidade, num mundo hostil, de criar laços morais com pessoas de recursos, para
proteger-se a si e aos filhos”.170
Em estudos realizados na paroquia de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais,
em Curitiba, Paraná, entre os séculos XVIII e XIX por Stuart Schwartz, foi percebido
igualmente predominância pela adesão de padrinhos livres para as crianças
escravizadas, mesmo sendo em um espaço de grandes escravarias, diferentemente da
realidade de Quixeramobim. O referido autor compreende que poderia está implícito
nessa escolha certo reconhecimento social do padrinho livre. Quando o padrinho era
outro escravo, a preferência era por sujeito de plantel diferente do apadrinhado e, em
grande maioria, ocorreram de o padrinho ser livre e a madrinha cativa, demonstrando
assim, a possibilidade de redes de parentesco e sociabilidade para além dos limites das
propriedades.171
Todas essas explicações sobre a escolha de sujeitos livres como padrinhos
devem ser consideradas na análise da realidade das famílias escravizadas e forras em
Quixeramobim. Conferimos nos cargos, títulos e patentes dos padrinhos: 04 padres, 19
capitães, 05 alferes, 01 sargento, 04 ajudantes, 01 comandante e 28 donas. Isto é, 3,3%
dos padrinhos livres escolhidos para apadrinhar crianças escravizadas e forras no nosso
levantamento.
A escolha por pessoas com títulos para padrinhos, também foi percebido nas
famílias livres. Catalogamos 343 capitães, 42 alferes, 08 ajudantes, 27 padres, 94
tenentes e 422 donas, ou seja, 17,4% dos padrinhos das crianças livres possuíam cargos
ou patentes. E, portanto, não foi apenas parte das estratégias de resistência dos cativos, a
escolha de sujeitos com cargos públicos como padrinhos, mas sim da sociedade como
um todo, claro que respeitando os limites e peculiaridades desres e os seus lugares
sociais.
E quando a escolha do compadrio era feita entre iguais em condição social e
jurídica, quais seriam as estratégias dos pais e mães que optavam por padrinhos e
madrinhas companheiros da escravidão? Na Freguesia de Quixeramobim (1740 – 1810),
encontramos 43 casais (padrinhos com madrinhas) escravizados; 19, apenas os
padrinhos cativos; e 20, somente as madrinhas que são escravas. Mesmo sendo minoria,
a escolha por padrinhos escravizados, foram mais de 82 famílias que optaram por este
170
SLENES, Robert W. Senhores e subalternos no Oeste Paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de
(Org.). História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997, p.271.
171
SCHWARTZ, Stuart. Escravos roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC 2001, p. 223.
98
172
RIOS, Ana Maria Lugão. Família e Transição: famílias negras em Paraíba do Sul, (1872-1920).
(Dissertação de Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1990.
99
em que o senhor apadrinhou crianças de sua própria escravaria. Foram eles: Antônio
Bezerra do Vale, Antônio José Fernandes, Gonçalo Nunes Leitão e o Capitão Mor João
Bernardo. Eles apareceram na documentação de batismo sendo proprietários e
padrinhos de: o primeiro de 04, o segundo 06, o terceiro 02 e o quarto de 06 crianças.
Essas práticas iam além do espaço da religião, agindo também no espaço social e
econômico.
A hipótese postulada por Gudeman e Schwartz,173 sobre o comportamento
dos senhores de evitar apadrinhar os filhos dos seus cativos, derivava implicações
morais: uma suposta perda de poder sobre os seus subordinados com essa atitude.
Ademais, a incompatibilidade que havia entre a propriedade escrava e o parentesco
espiritual, ou melhor, o batismo cristão era para existir em paralelo com a escravidão e
não para aboli-la. Tais práticas acabaram por reforçar o componente de
dominação/submissão e ajudaram a debilitar o caráter igualitário do parentesco
espiritual.
Diante do exposto, o que levaria um proprietário de escravo apadrinhar
filhos de suas escravas, como nos quatro casos encontrados em Quixeramobim? Não
podemos descartar o que poderia está implícito na ação de um senhor em apadrinhar um
filho (a) de uma de suas cativas, não de todas. Deveria ser uma forma sutil de dar
proteção e cuidado ao seu filho bastardo e ao mesmo tempo ter sua identidade paterna
preservada no anonimato.
Outra questão que se insere nas peculiaridades da sociedade sertaneja
quixeramobinense é sua religiosidade. A pequena freguesia de Quixeramobim, cuja
população era composta por indígenas, africanos e seus descendentes, a despeito de
existir outras formas de religiosidade, era um espaço de práticas católicas, não apenas
percebidas pela participação da sua população nos sacramentos da Igreja como
casamentos e batismos, aqui analisados. Nos dados das atas batismais, referentes a essa
freguesia, não são raros os que trazem “Nossa Senhora” como madrinha. Desses casos,
04 são de madrinhas de crianças escravizadas e filhas de mães crioulas. A escolha por
madrinhas santas provavelmente representava o gesto inspirado na busca de proteção à
parturiente.174 Seria uma escolha da mãe? Nesse caso, ela já estaria inserida à cultura
173
GUDEMAM, Stephen e SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de
escravos na Bahia no século XVIII. In: REIS, João José (org). Escravidão e invenção da liberdade.
Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.
174
VENÂNCIO, Renato Pinto. O Compadre Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do
século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, p. 273-294, 2006, p. 275.
100
175
LIBBY, Douglas Cole. À procura de alforrias e libertos na freguesia de São José do Rio das Mortes (c.
1750 - c. 1850). In: BOTELHO, Tarcísio R. e LEEUWEN, Marco H. D. Van. (Orgs.). Mobilidade social
em sociedades coloniais e pós-coloniais: Brasil e Portugal, séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte:
Veredas e Cenários, 2009, p. 26 e 27.
176
FUNES, Euripedes. Os Negros no Ceará. In: SOUSA, Simone. Uma Nova História do Ceará.
Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2000.
101
177
CHAVES, Elisgardênia de Oliveira. 2016, Op. cit.p.124.
178
GALDINO, Maria Rakel Amancio. 2013, Op. cit. p. 176 a 178.
179
VASCONCELOS, Márcia Cristina Roma. Família Escrava em Angra dos Reis, (1801-1888). Tese
de Doutorado apresentada no programa de pós-graduação em História Econômica da Universidade de São
Paulo, USP. São Paulo, 2006, p. 145.
102
pia batismal era uma forma segura desses sujeitos terem esse documento comprovativo
da compra ou aquisição, por outras vias, da liberdade de seus filhos, pois assim estaria
bem guardado para o caso de uma futura contestação.
A prática de alforriar na pia batismal foi bastante usual no Brasil durante
todo período escravista. Com o alto índice de concubinatos ou mesmo por outras
formas de ralações consentidas ou de violências, “esse era o caminho usual para pais
reconheceram filhos bastardos e a libertação da criança requeria apenas uma declaração
dos pais e padrinhos”.180
Em Quixeramobim, o primeiro caso de criança forra apareceu em 1769, 29
anos após o inicio do nosso recorte temporal de estudo. Trata-se de Pedro, de três meses
de idade. Esse registro se encontra em estado de conservação bastante danificado,
comprometendo assim, sua leitura e compreensão de várias informações como o nome
da mãe, dos padrinhos e dos mecanismos utilizados para a aquisição da sua liberdade. O
segundo caso apareceu na década seguinte e este está bem legível.
180
LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Escravismo no Brasil. Op. cit. p.284.
181
Arquivo da Diocese de Santo Antônio de Quixeramobim – (ADSAQ), Livro batismo, número 02
(1755-1777), Fls. 124.
103
182
Arquivo da Diocese de Santo Antônio de Quixeramobim, (ADSAQ), Livro batismo, número 03 (1777
- 1780), Fls. 45 v.
104
183
MACHADO, Cacilda. A Trama das Vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia
social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p 74.
105
se buscava “lares que simplesmente pudessem criar aquela criança, dar-lhes condições
de sobrevivência que, provavelmente, não disporia junto aos pais biológicos”. Nesse
caso a questão financeira era a que mais pesava. Todavia, os destinos desses enjeitados
poderiam tomar rumos diferentes. Dependo da casa em que fossem deixadas, essas
crianças poderiam ser recebidas de modos distintos, com sorte poderiam ser aceitas
como filho (a), “tornando-se membro da família, ou aceitação do mesmo como
agregado, tornando-se mão-de-obra auxiliar”, sendo essa última prática mais
recorrente.184
O número de crianças expostas em Quixeramobim, entre os anos de 1740-
1810, não foi insignificante como podemos ver na tabela 07 do capítulo 02, página 86.
Totalizando 141 expostos, sendo 74 meninos e 67 meninas. Nesses registros não há
referencia sobre a filiação das mesmas, haja vista os donos das casas que as recebiam,
não faziam ideia de quem eram. Todos, entretanto, aparecem em condição de livre.
Logo, ao expor o filho ou filha, era garantida a eles a liberdade, caso suas mães
incógnitas fosses escravizadas. As qualidades/cores descritas sobre elas, quando
aparecem na documentação, são as mais variadas possíveis: 18 pardos, 04 mulato, 04
cabras, 01 mameluca, 02 índias, 13 brancas e 01 que se considera branca. Portanto, não
há apenas um perfil único de crianças enjeitadas.
Os pardos são os que mais aparecem entre os enjeitados. Essa categoria é a
mais complexa de compreensão, tendo em vista a sua amplitude de usos. Para Eduardo
França Paiva, essa palavra é a mais difícil de conceituar, pois pardo é sempre superior a
negro, bem como, para uma mãe africana, seus filhos nascidos com outras misturas na
América são “pardos”.
184
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba, séculos
XVIII e XIX. São Paulo: Annablume/Fapesp, 200, p. 218.
185
PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo. Uma história lexical da Ibero-América entre os séculos
XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte. Autentica Editora,
2015, p. 213.
106
expostas que estão descritas como pardas vem de lares de pais negros, crioulos,
indígenas cativos e a exposição desses poderia confirmar a hipótese de que o
adiantamento da alforria dos mesmos viria pelos meios e subterfúgios legais. É válido
também o argumento de que ao serem descritas como pardas é pelo fato delas se
encontrarem em situação de liberdade, uma vez que a categoria de qualidade preta,
negra e crioula era quase exclusiva para a população cativa.
Outro dado interessante para os expostos em Quixeramobim foi à frequência
de crianças abandonadas em uma mesma casa, como demostra a tabela abaixo:
assim, possivelmente não dispunha de recursos. A segunda era forra, mas diante da
experiência na escravidão, minava bastante as possibilidades de ter algum patrimônio,
uma vez que não havia e nem nunca houve políticas de amparo aos saídos do mundo da
escravidão. Portanto, é quase redundante chamar escravo ou forro de pobres, salvo
casos muito particulares como o de Chica da Silva, por exemplo.
Diante das diversas estratégias impressas na prática do abandono de
crianças, podemos concluir que nessa freguesia, este não era feito de modo aleatório,
mas sim de caso pensado e com muitas lógicas subjacentes que o justificavam.
186
ENGEMANN, Carlos. De Laços e de Nós: constituição e dinâmica de comunidades escravas em
grandes plantéis do sudeste brasileiro do Oitocentos. (Tese de Doutorado). Universidade do Estado do
Rio de janeiro, 2006.
187
ENGEMANN, Carlos. , 2006, Op. cit. p. 213.
109
deles chegaram a levar a pia batismal 04 escravos de um mesmo senhor, como segue na
tabela abaixo. Diante desse indício, podemos pensar essas relações travadas também
nessa espacialidade, claro que respeitando as peculiaridades locais.
Caietano da Silva Luz foi o padrinho que mais levou a pia batismal os filhos
de cativos de um mesmo senhor, o capitão-mor José dos Santos Lessa, foram ao todo
quatro. Como os sobrenomes do padrinho e do proprietário são distintos, eles, pelo o
que parece, não são parentes consanguíneos, mas possivelmente amigos ou Caietano era
agregado do referido capitão, supomos. Somente dois dos batizados ocorreram no
mesmo dia, os outros dois são em anos diferentes, em média de um a dois anos de
diferença de um para o outro. Em todo caso, esse padrinho “preferencial” esteve
presente nas dependências ou proximidades da fazenda do referido capitão, pelo menos
nesse curto espaço de tempo de 03 anos. Caetano, também, não apareceu em nenhum
momento nas fontes de batismos e casamento como sendo dono de algum escravo,
assim sendo, seria ele um sujeito de poucas posses e sua relação com o proprietário dos
seus afilhados era vertical? Bem como das 04 crianças apadrinhadas por ele, 03 são
filhas naturais, e duas delas da mesma mãe. Podemos conjecturar que ele poderia vir a
ser pai de algumas delas, uma possibilidade que não pode ser descartada. Nesse caso, o
vinculo que ele teria se estendia a comunidade cativa dessa fazenda e não diretamente
com o senhor.
José Lemos é o segundo na escala de quem mais teve afilhados cativos, de
um mesmo senhor, a saber: três de Aniceto Pereira. Esse referido padrinho e sua família
são os que mais estiveram presentes nos rituais católicos como padrinhos, testemunhas
de casamentos e proprietários de cativos em Quixeramobim (1740 – 1810). Ele é filho
de Luís de Lemos de Almeida e Leonor de Barros, irmão do capitão-mor Manuel
188
Ferreira de Lemos e Maria Ferreira de Lemos. Essa família batizou ao todo 23
crianças de seus cativos. E ele esteve como testemunha em dois casamentos de
escravizados e como proprietário em três. Aniceto Pereira, a seu turno, só apresentou
essas três crianças a pia batismal. Levando em consideração o número de cativos por
senhor ou clã familiar, José de Lemos era um caso bastante particular, pois, possuía a
das maiores escravarias dos sertões quixeramobinense e, portanto, de grande
patrimônio.
Nessas circunstâncias, as redes de compadrios traçadas entre Aniceto
Pereira, seus escravos e José de Lemos, se apresentam bastante complexas, tendo em
vista que o padrinho “preferencial” possuía grandes posses e era de família influente na
188
Livro 01 de casamentos da Freguesia de freguesia de Russas (1740-1755), Arquivo da Diocese de
Limoeiro do Norte - (ADLN). Livros 01 e 02 de casamentos da Freguesia de Quixeramobim (1755-1810).
Livros 01 e 02 de batismos da freguesia de Russas (1740-1755), Arquivo da Diocese de Limoeiro do
Norte (ADLN) e livros 01 ao 08 de batizados da Freguesia de Quixeramobim (1755 -1810).
111
189
ENGEMANN, Carlos. 2006, Op. cit. p. 216.
190
ENGEMANN, Carlos. 2006, Op. cit. p. 218.
112
191
ENGEMANN, Carlos. 2006, Op. cit. p. 219.
113
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
por meio do parentesco ritual com cativos, alianças ou favorecimentos pessoais com
sujeitos livres e de posse.
Ao cruzarmos os dados presentes em nossas documentações, observamos
que as famílias escravizadas se encontravam atadas por laços de parentescos não
somente consanguíneos, mas também ritual. No caso do casamento católico, mesmo que
este não alcançasse toda a comunidade cativa, no entanto, encontramos famílias
nucleares, constituídas por pai, mãe e filhos de escravizados e forros, juntos por
gerações. Em paralelo a esses arranjos familiares formalizados pelo rito católico, havia
outros casais que preferiram outros formatos de uniões por meio da consensualidade,
mas que permaneciam por anos a fio.
Verificamos um número considerável de mães solteiras não somente
escravizadas e libertas, mas também, livres. Esses arranjos familiares buscaram
buscavam formas de sobrevivência, ou mesmo de melhores condições de vida para si e
seus rebentos. Uma dessas estratégias era o compadrio, em sua maioria através das
relações verticais com sujeitos de condição social e jurídica diferente das suas. No
entanto, há em menor quantidade, casos em que a escolha dos pais espirituais dos seus
filhos é pelos companheiros de cativeiro. Buscando assim, nessa última situação,
construir redes de solidariedade com seus iguais, ou mesmo ampliar suas comunidades.
Nas relações de compadrios envolvendo as famílias escravizadas e forras,
elas foram unânimes na preferência por compadres livres. Assim sendo, essa ação pode
ser entendida com estratégia de proteção ou sobrevivência, nesse sistema tão limitante
de direitos humanos.
Dentro das particularidades do sistema escravista quixeramobinense,
constatamos que a escravização não era exclusividade da população africana, ou mesmo
dos seus descendentes. Estende-se à parte da população indígena, mesmo que de
maneira mais disfarçada, pelo menos nas descrições dos documentos eclesiásticos.
Encontramos vários indícios em nossas fontes dessas práticas, constatando assim, uma
fina e tênue linha entre a liberdade e a escravidão dos indígenas presentes nessa
espacialidade.
Mesmo mediante limites e silêncios impostos por nossas fontes,
identificamos a construção dos laços familiares de parentescos consanguíneos, bem
como fortes e duradouras redes de amizades, solidariedade e de vizinhanças entre esses
sujeitos livres, escravizados e libertos da Freguesia de Quixeramobim. Essas relações
analisadas demonstraram quão plural foi a forma de viver dos cativos dessa Freguesia.
115
Bem como nas ações estratégicas forjadas pelo parentesco espiritual, também
fundamentais para o fortalecimento e a construção de laços de afetividade e de
sobrevivência nesses sertões.
Buscamos, através dos questionamentos levantados e das constatações que
chegamos com a realização dessa pesquisa, recompor parte desse passado colonial de
Quixeramobim. E esperamos que as histórias de vidas desses sujeitos históricos, que
atravessaram essa narrativa, tenham sido apresentadas primando pelo respeito às
especificidades humanas, sem que elas possam ser lidas, ou compreendidas como forma
de reforçar preconceitos ou discriminações.
Contudo, mesmo com o crescimento progressivo de pesquisas envolvendo a
temática da escravidão no Brasil, ainda há muito a ser descortinado desse passado,
principalmente, se tratando dos estudos locais que vem sempre surpreendendo com
novas e peculiares revelações desses contextos. Assim sendo, muitas e novas questões
ainda ficaram por ser analisadas na nossa pesquisa, uma vez que além de humanamente
impossível, nunca foi nossa intenção esgotá-las. Para pesquisa futura iremos trabalhar
com os inventários post mortes em diálogo com as fontes eclesiásticas de batismos,
casamentos e óbitos e assim, abordamos questões referentes a cultura material da
Freguesia de Quixeramobim.
116
FONTES DA PESQUISA
192
https://familysearch.org/search
117
Datas de Sesmarias do Ceará: digitalização dos volumes editados nos anos de 1920 a
1928 (em CDs-ROOM) Fortaleza: Expressão Gráfica/Wave Media, 2006.
118
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