Cartas SantosMarrocos Sobre
Cartas SantosMarrocos Sobre
Cartas SantosMarrocos Sobre
do Rio de Janeiro
1811-1821
Luís Joaquim dos Santos Marrocos
Coordenação do pr oj ec to
Elisabet Carceller Guillamet
pesquisa e revis ã o
Maria Conceição Geada
Estudos
Ana Cristina Araújo
Luís Alves Marques
Digitalização
Elisabet Carceller Guillamet
Estudos
Uma longa despedida. 13
Cartas familiares de Luís Joaquim dos Santos Marrocos
Ana Cristina Araújo
Cartas 1811-1821
Edição das cartas de Luís Joaquim dos Santos Marrocos 71
Critérios de transcrição 73
Índices
Índice cronológico 509
Estava por editar em Portugal1 o conjunto epistolar de Luís Joaquim dos Santos
Marrocos, preservado na Biblioteca da Ajuda, e não poderia haver melhor esco-
lha e ocasião para o mesmo ser apresentado do que no momento em que se
comemora o segundo centenário da ida da corte portuguesa para o Brasil.
A presente edição permite, para além de dar a conhecer o funcionário da
Real Biblioteca que, no cumprimento das suas funções, foi juntar-se à Família
Real no Rio de Janeiro, conhecer a sociedade onde viveu, o espírito da época,
os costumes e as mentalidades, expressos na sua correspondência, de carácter
particular, dirigida maioritariamente ao pai e à irmã.
Deste modo, cumpre-se uma prática que se tem vindo a seguir no sentido de
divulgar e tornar acessível, a todos aqueles que se interessam pela nossa história
e não só aos estudiosos da mesma, o património arquivístico que a Biblioteca da
Ajuda detém à sua guarda e cujo resultado esperamos que venha a contribuir
para um melhor e mais aprofundado conhecimento de um período peculiar da
história do nosso país e da nossa instituição.
Estando reunidos os motivos suficientes e a oportunidade para se apresen-
tar este projecto, o mesmo contou com o esforço e elevada competência profis-
sional da equipa da Biblioteca da Ajuda, com destaque para a Mestre Elisabet
Carceller e Dr.ª Maria da Conceição Geada, sem as quais teria sido impensável
trazer a público a presente publicação. Como teria sido impossível editarmos
esta obra sem a resposta entusiástica da Dr.ª Ana Cristiana Araújo e do Dr. Luís
Marques que contribuíram, com os seus estudos, para um melhor conhecimento
do autor destas cartas.
1
Edição brasileira com a transcrição parcial das «Cartas de Luís Joaquim dos Santos Marrocos, escritas
do Rio de Janeiro à sua família em Lisboa, de 1811 a 1821». Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Saúde. 56 (1934). Publicado em 1939.
9
Os agradecimentos estendem-se, igualmente, ao Dr. Filipe Antunes e à
Dr.ª Isabel Garcia pela preciosa ajuda dada nas transcrições das cartas, mesmo
depois de estarem profissionalmente desligados da Biblioteca da Ajuda.
Finalmente, o devido destaque à Direcção da Biblioteca Nacional de
Portugal, ao Director-Geral, Dr. Jorge Couto e Subdirectora-Geral, Dr.ª Maria
Inês Cordeiro, sensíveis, desde logo, à proposta de edição apresentada e respon-
sáveis pela publicação deste livro.
Uma palavra final de gratidão ao Dr. Francisco Cunha Leão, cujos conselhos
e sugestões foram e serão sempre uma mais-valia.
10 C a rta s d o R i o d e J a n e i r o : 1811-1821
Uma longa despedida.
Cartas familiares de Luís Joaquim dos Santos Marrocos
ana cristina araújo
Universidade de Coimbra | Faculdade de Letras
Luís Joaquim dos Santos Marrocos é um homem sem grande valimento social,
sem obra publicada, e, a avaliar pelos traços do retrato que compõe de si, sem
qualidades notórias. Ambiciona subir na vida e não esconde esse desígnio:
– «vivo na esperança de ser algum dia mais do que sou»1. A aspiração social
existe, mas são poucos os documentos oficiais que reportam a trajectória e as
andanças de sua vida, da qual também não fazem parte feitos extraordinários ou
motivos merecedores de menção pública.
Senhor de um apelido invulgar, Marrocos nasce a 17 de Julho de 1781,
em Lisboa, e morre a 17 de Dezembro de 1838, na cidade do Rio de Janeiro2.
Na altura tinha 58 anos e nenhum testemunho parecia assegurar longevidade à
sua memória pessoal, que abarcava acontecimentos passados em dois séculos,
dois continentes e dois países: Portugal e Brasil.
Nos alvores da idade adulta, circunstâncias imprevistas e decisões difíceis
tinham abalado, profundamente, os destinos da sua família e da sua pátria.
Em tempos de incerteza no continente europeu, com o desenrolar da Guerra
Peninsular (1807-1814), e no decurso de um difícil período de adaptação ao
Brasil, para onde se desloca, na Primavera de 1811, em missão de serviço à
Corte, no Rio de Janeiro, Luís Joaquim dos Santos Marrocos converte a rotina
em matéria de escrita, relatando, regularmente, ao pai e à família episódios,
notícias e acontecimentos da época. Esta copiosa documentação pessoal pode
considerar‑se um testemunho raro e uma fonte extraordinária para o estudo da
sua condição histórica e da de outros homens e mulheres seus contemporâneos.
Os quadros sociais da memória de Luís Joaquim dos Santos Marrocos e as
contingências que ditam o seu papel de observador dos Grandes, da Corte e do
1
BA 54-VI-126, Rio de Janeiro, 24 de Outubro de 1811, p. 84.
2
Para a data de nascimento, veja-se o treslado da certidão passada pelo padre Joaquim Manuel de Carvalho,
prior da igreja paroquial de S. Miguel da Alfama, em 3 de Outubro de 1797 – AUC, Certidões de Idade,
1772-1833, livro XXXV. Para a data da morte, veja-se a notícia de obituário do Jornal de Comércio do Rio
de Janeiro, de 18 do mesmo mês, na introdução de Rodolfo Garcia às «Cartas de Luís Joaquim dos Santos
Marrocos, escritas do Rio de Janeiro à sua família em Lisboa, de 1811 a 1821» (marrocos 1939: 16).
13
governo, e da gente comum e seus hábitos sociais fazem dele um protagonista
oculto de acontecimentos colectivos e um narrador comprometido, com muitas
histórias para contar. Mais do que dar a conhecer um modo de ser e uma forma
de estar, as cartas trazem à superfície um conjunto de factos em processo de
acontecer.
Neste estudo introdutório começamos por salientar, em traços largos,
as características da correspondência: os destinatários, o ritmo da escrita,
a sua materialidade e os múltiplos circuitos que as cartas percorrem, por
correio. Num segundo momento, analisamos a posição do autor em relação
aos seus correspondentes, tentando captar, com a nitidez possível, o retrato de
quem escreve, as suas motivações, laços familiares, redes clientelares e teias
de sociabilidade. Em terceiro lugar, realçamos, no quadro da biblioteca, os
aspectos ligados à cultura, com destaque para o livro e para a leitura. Por fim,
sinalizamos o carácter recorrente da informação sobre a vida social, económica
e política no Rio de Janeiro, com o objectivo de descrever as motivações de quem
quer ser diferente permanecendo o mesmo homem mas não o mesmo sujeito
histórico, antes e depois da Independência do Brasil. Dito de outro modo,
ensaiaremos descortinar em que medida a partilha real e simbólica da terra dá
lugar à demarcação de identidade política.
Muitas informações dispersas – de carácter político, económico, social e
cultural –, igualmente preciosas para a compreensão da época, permanecerão
exteriores a esta leitura, que, sublinhe-se, tem apenas um carácter introdutório.
De qualquer modo, os assuntos contemplados nas cartas, as referências temá
ticas e os campos de nomeação que nelas se inscrevem têm a sua busca bastante
facilitada, dado que esta edição comporta diversos índices analíticos. Em resumo,
este livro disponibiliza ao leitor um conjunto excepcional de cartas, fornece-lhe
um extenso roteiro de mensagens e uma concisa gramática comunicativa, de
molde a melhor vincular as cartas ao seu emissor e às distintas pessoas que, directa
ou indirectamente, intervêm na rede de comunicação que a correspondência
alimenta.
O Maço de Correspondência
14 C a rta s d o R i o d e J a n e i r o : 1811-1821
O papel e as marcas de água
nas cartas de Luís Joaquim dos Santos Marrocos
Luís Alves Marques
Biblioteca da Ajuda
1 Marca de água ou filigrana, desenho ou inscrição que se pode observar numa folha de papel quando obser-
vada à transparência. O desenho é delineado em fio de cobre sobre a superfície onde se forma a folha de
papel. Esta representação em alto-relevo deixa uma marca em baixo-relevo na folha de papel que é visível à
transparência devido ao facto de ter menos material fibroso.
2 Papel avergoado, ou vergé, papel manufacturado numa forma de madeira, cujo fundo é uma teia metálica
constituída por fios horizontais (vergaturas) e verticais (pontusais). Esta forma é mergulhada numa tina
que contém a pasta de fibras vegetais, que se enredam e distribuem sobre a teia metálica à medida que vai
perdendo a água em excesso.
Como acontece com a marca de água, também as vergaturas e os pontusais se podem observar à transparência.
3 Papel velino, papel liso e uniforme, muito semelhante ao pergaminho fino (denominado de Velino), quando
observado à transparência. Este novo aspecto do papel tornou-se possível devido à substituição das anterio-
res vergaturas existentes na forma de madeira, por uma rede/teia metálica mais fina e uniforme (invenção
atribuída a John Barkerville, em meados do século xviii).
Primeiramente manufacturado, este papel passou a ser produzido nos inícios do século xix numa máquina
de superfície lisa, onde as fibras eram espalhadas sobre um tapete em rede metálica, gerando papel em
contínuo.
41
[1]
Esta é feita entre Céu e água, sobre mil aflições, desgostos e trabalhos, quais
nunca pensei sofrer; pois tendo saído da barra de Lisboa com vento de feição,
mal chegámos ao mar largo, nos saltou vento de travessia, que nos impeliu para a
Costa de África: à vista dela passámos as Ilhas dos Açores, e as Canárias, por
meio de bordagens1 retrógradas, que por muitas vezes chegou a suspender‑se de
todo a navegação pelas calmarias podres, misturadas com ventos contrários, que
nos expunha a imensos perigos. Agora estamos na esperança de avistarmos
amanhã a Ilha de Santiago, uma das de Cabo Verde, e por não deixar uma tão boa
ocasião, tenho tenção de saltar em terra, não obstante os maus ares do terreno,
a fim de lançar esta Carta no Correio, por não confiar esta empresa de outrem.
Não é necessário explicar a Vossa Mercê o sumo cuidado, em que tenho passado
estes 27 dias de viagem, considerando em toda a família, sem excepção de pessoa:
estou certo que Vossa Mercê me crê; e muito mais na moléstia da Mãe, e nas ver
tigens súbitas de Vossa Mercê, mas Deus permitirá se não aumente o desarranjo
com a falta de saúde. Eu tenho passado muito incomodado da garganta, boca e
olhos, de maneira que estou em uso de remédios: não tive enjoo algum ao sair da
barra de Lisboa; porém causou‑me a maior compaixão ver o vomitório geral da
gente da Fragata; pois entre 550 pessoas, que aqui há, foram poucas as privilegiadas
do enjoo. De noite não posso dormir mais de uma hora, porque o resto fica‑me
para eu pensar nos lances presentes e futuros da minha vida. Ao oitavo dia de
viagem já era corrupta e podre a água de ração, de maneira que se lançam fora os
bichos para poder beber‑se: tem‑se lançado ao mar muitos barris de carne salgada
podre. Enfim tudo aqui é uma desordem, pela falta de providências em tudo:
todas as cordas da Fragata estão podres, menos as enxárcias; todas as velas estão
avariadas, de sorte que se rasgam com qualquer viração: a tripulação não presta;
e em semelhante estado ficaremos perdidos, se por nossa desgraça formos
acometidos de algum temporal rijo. Não há botica suficiente para os doentes,
pois não consta mais do que de meia dúzia de ervas, sendo aqui as moléstias em
abundância; não há galinhas, nem carnes frescas para eles. Finalmente, para dizer
tudo de uma vez, se eu soubera o estado, em que existe a Fragata Princesa Carlota,
repugnava absolutamente de meter‑me nela e a Livraria, e nisto mesmo fazia um
1
Termo náutico de bordejar: navegar virando de bordo com frequência.
Lu í s J oaq u i m d o s S a n to s M a r r o c o s 77
grande serviço a Sua Alteza Real2. Apesar de tudo isto, confio na misericórdia
Divina, que nos livrará dos riscos, a que estamos expostos; e a cuja Providência
estou entregue com a maior resignação. Vossa Mercê terá a bondade de me
recomendar a todos os da nossa amizade; e espero me inclua nas suas orações,
felicitando‑me com a sua bênção, rogando isto mesmo a minha Mãe e Tia,
a quem não posso explicar a perturbação da minha cabeça, que às vezes chego a
perder o tino, pensando como e quando as chegarei a ver. Espero que Vossa
Mercê me escreva, logo que receber esta, dirigindo‑a para o Rio de Janeiro:
e Sou De Vossa Mercê Filho muito afectuoso e [do] Coração
P. S. Saudades à Mana3 e à Inês: e tendo tanto para dizer ainda, é tal a pressa,
que me obriga a levantar pena, reservando este sossego para o Rio, se Deus
permitir que eu lá chegue.
Em 6.ª feira de Paixão4 às 10 horas da noite, e já com dois recados da Ronda
para que apague a luz5.
2
Dom João, Príncipe Regente.
3
Bernarda Maria da Conceição.
4
12 de Abril de 1811.
5
Nesta carta e na seguinte aparece a indicação da morada do pai: «Paço Real de Nossa Senhora da Ajuda,
Pátio da Ópera Real em Belém – Lisboa».
78 C a rta s d o R i o d e J a n e i r o : 1811-1821
[170]
Recebida a 14 de Dezembro.
Meu prezadíssimo Pai e Senhor do Coração. Estando para sair deste porto
amanhã a Escuna Ninfa, não deixo de me aproveitar da ocasião, para dirigir a
Vossa Mercê estas regrinhas, participando que chegou aqui ultimamente o Navio
Visconde de Monte Alegre sem me trazer Cartas de Vossa Mercê, as quais já me
faltam há muito tempo: por esta razão continuam as minhas queixas, e ainda que
vivo oprimido de muito trabalho, faço toda a diligência para que me não escape
Navio algum, sem que leve Carta minha sendo o objecto principal dar e receber
notícias.
Estimo que Vossa Mercê goze perfeita saúde, e que minha Mãe se ache
melhor da sua grave moléstia; que a Mana e Tia também desfrutem o mesmo
bem. Nós passamos menos mal, quando se não contem certos incómodos, que
ou um ou outro dia se padece, e que pelo costume se não estranham. Todos nos
recomendamos muito, ficando mui confiados na sua amizade e bênção, assim
com da Mãe; sendo com toda a veneração De Vossa Mercê Filho muito
obediente e obrigado [do] Coração