CATHARINA Pedro Paulo Uma Colec A o Duas

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Gilda Santos, Ida Alves,

Andreia Castro (org.)

gentes e
paisagens
luso-brasileiras
gentes e paisagens
luso-brasileiras
gentes e paisagens
luso-brasileiras
real gabinete português de leitura

Gilda Santos, Ida Alves, Andreia Castro (org.)

Polo de Pesquisas Luso-Brasileiras PPLB


20 anos
2022 © Numa Editora
2022 © Real Gabinete Português de Leitura

Conselho editorial
Adriana Maciel
Júlio Diniz
Lia Duarte Mota
Luiz Guilherme Fonseca
Raïssa de Góes

Edição: Adriana Maciel


Produção editorial: Jul
Revisão: Karine Troncoso e Marcus Groza
Projeto gráfico e diagramação: Mari Taboada

Edição financiada pelo Real Gabinete Português de Leitura

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

G337 Gentes e paisagens luso-brasileiras / organizado por Gilda Santos,


Ida Alves, Andreia Castro. - Rio de Janeiro : Numa Editora, 2023.
584 p. : il. ; 16cm x 23cm.
Inclui bibliografia e índice.
ISBN: 978-65-87249-90-2
1. Cultura. 2. Gentes. 3. Paisagens. 4. Brasil. 5. Portugal. I. Santos,
Gilda. II. Castro, Andreia. III. Alves, Ida. IV. Título.
2023-1118 CDD 306
CDU 316.7

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410


Índice para catálogo sistemático:
1. Cultura 306
2. Cultura 316.7
Dedicamos este livro a:

António Gomes da Costa


Presidente do Real Gabinete Português de Leitura entre 1992 e 2016,
que acolheu o surgimento do PPLB.

Francisco Luiz Borges Silveira


Secretário do pioneiro Centro de Estudos,
que anteviu seu futuro dinâmico.

Orlando Inácio
Coordenador do RGPL, cujo apoio técnico,
ao longo dos anos, revelou-se imprescindível ao PPLB.
Sumário

parte i Pórtico

Duas luminosas décadas do PPLB 13


francisco gomes da costa

Um percurso profícuo 15
gilda santos
ida alves
andreia castro

Um movimento perpétuo: as relações luso-brasileiras 21


luís filipe castro mendes

parte ii “de memórias secretas e lisuras serenas”:


figuras emblemáticas no diálogo luso-brasileiro

Um pensar Camões 31
luis maffei

Uns querem letra, outros feguras: metateatralidade na dramaturgia


de António Prestes 49
marcio ricardo coelho muniz

De iluminado a romântico: Filinto Elísio para além das arcádias 67


paulo motta oliveira

Marcos Portugal (1762-1830) – nascido português, falecido brasileiro:


entre o mito e a realidade 77
david cranmer
Domingos Borges de Barros (1779-1855): tecendo laços entre Paris,
Lisboa e o Brasil 91
vanda anastácio

D. Carlota Joaquina, retratos de uma rainha mal-amada 119


patrícia telles

Imagens do Brasil na obra de Garrett 137


maria aparecida ribeiro

Helena: o romance brasileiro de Garrett 155


maria helena santana

Os artifícios do veneno em Almeida Garrett: a propósito


do romance de D. Jorge e Juliana 165
sandra boto

Alfredo Gallis (1859-1910), entre o naturalismo e o romance libertino 185


leonardo mendes

Carlos Malheiro Dias, um escritor luso-brasileiro 203


jorge luís dos santos

À procura da beleza: o exílio de António Botto 219


maria lúcia outeiro fernandes

Exílio – gentes em movimento: Maria Archer, seus escritos e lutas 237


maria izilda santos de matos

Intercâmbios culturais e afetivos de Cecília Meireles com


escritores portugueses 259
ana maria lisboa de mello

Ensaio sobre a cegueira: a imagem (fulgurante e lacunar)


como forma de resistência 281
ângela beatriz de carvalho faria
parte iii “de palavras incandescentes de tantos povos e de tantas gentes”:
percursos interculturais luso-brasileiros

Os primórdios da literatura na imprensa manuscrita de Portugal:


o Folheto de Lisboa e o Mercúrio Histórico de Lisboa 303
socorro de fátima pacífico barbosa

Trajectórias de intelectuais nos dois mundos 325


maria manuela tavares ribeiro

Jardim Botânico do Rio de Janeiro no período joanino 335


claudia braga gaspar

João VI e a “missão artística francesa”:


desconstruindo um mito historiográfico 347
guilherme frazão conduru

Dar voz ao silêncio. O papel da imprensa na construção da identidade


feminina na “pré-história” da história das mulheres
(século XIX e inícios do século XX) 367
irene vaquinhas

Pontes luso-brasileiras no CLEPUL: projeto Almanaque de Lembranças,


alínea “Senhoras” da Bahia 389
vania pinheiro chaves

Laços espaciais de geograficidade entre a novíssima literatura portuguesa


contemporânea e o neorregionalismo brasileiro 419
márcia manir miguel feitosa

Antes e além da memória: o império e a tragédia do desenvolvimento


em algumas narrativas brasileiras e portuguesas do século XX 435
mario lugarinho
O Atlântico como ponte: diálogos sobre o espaço lusófono
(do Índico ao Pacífico) 447
luciana salles e jéssica zambello

Farsa: línguas, corpos, encontros e desencontros 467


madalena vaz pinto e luis camilo osorio

Turismo literário em Portugal e no Brasil: recursos, modalidades


e oportunidades 479
sílvia quinteiro e maria josé marques

Trânsitos transatlânticos: processos criativos luso-brasileiros


no cinema do séc. XXI 493
paulo cunha

Paisagens entrecruzadas pela materialidade digital: deslocamentos,


afetos e memória em Portugal e Brasil 505
cristiane costa dias

Colecionismo luso e suas reverberações na coleção Ferreira das Neves


do museu D. João VI-EBA-UFRJ 521
marize malta

Uma coleção, duas livrarias: a coleção econômica de Laemmert


e António Maria Pereira 539
pedro paulo garcia ferreira catharina

parte iv “de diversidades e diálogos tantos”

Saudações 561
Memorial – 20 anos do PPLB 575
pedro paulo garcia ferreira catharina*

Uma coleção, duas livrarias: a Coleção Econômica


de Laemmert e António Maria Pereira

A coleção literária em pauta neste capítulo, que circulou nos últimos anos do
século XIX e primeiros do século XX, traça um dos inúmeros percursos inter-
culturais efetuados ao longo dos séculos entre Portugal e Brasil, porém com
uma particularidade que merece ser imediatamente destacada: a triangulação
com outras culturas, especialmente com a cultura francesa – no oitocentos,
dominante no mapa intelectual da República Mundial das Letras (CASANO-
VA, 1999) –, por meio de traduções para o português de romances e narrativas
que compõem a coleção.
Uma abordagem inicial da Coleção Econômica da livraria-editora Laem-
mert & C. se deu no âmbito de uma investigação desenvolvida na Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro.1 Da elaboração do projeto à investigação in loco,
quando se pôde ter efetivamente em mãos os livros,2 a primeira evidência ao

* Professor Associado do Departamento de Letras Neolatinas e do Programa de Pós-Gradua-


ção em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8104-1773.
1. Este capítulo parte de uma investigação realizada em 2017, com apoio do Programa de Apoio
à Pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil, cujos resultados parciais foram publica-
dos em 2019 pela Revista Diacrítica, da Universidade do Minho – Portugal (DOI: https://doi.
org/10.21814/diacritica.313).
2. Em todos os casos consultados, os livros encontravam-se encadernados com capa dura e, em
geral, podados de suas capas originais, anterrostos, versos do anterrosto, folhas de rosto e pá-

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examinar os romances da Coleção Econômica Laemmert foi que não se trata-
va de uma coleção originalmente produzida por essa editora brasileira. Ales-
sandra El Far, desde 2014, já havia assinalado que se tratava de “uma parceria
com a casa de comércio de livros de A. M. Pereira, sediada em Portugal” (EL
FAR, 2014, p. 67), parceria que podemos entender como uma estratégia edito-
rial eficaz (OLIVERO, 1999, p. 115-158) por parte da Livraria Laemmert. Naque-
le momento de sua história, a editora investia na publicação de obras literá-
rias, após a morte, em 1893, do editor Baptiste-Louis Garnier, que dominava o
mercado literário brasileiro (HALLEWELL, 2012 [1985], p. 217-248 e p. 254-255).
A parceira portuguesa possuía vasta experiência na área, que havia acumula-
do desde sua criação, em 1848 (PEREIRA, 1998), inclusive em diversos acordos
comerciais com o Brasil.
Como figura no verso das folhas de rosto dos exemplares consultados, a
Coleção Econômica Laemmert era impressa em Lisboa, na Typographia e Ste-
reotypia Moderna, situada no Beco dos Apóstolos, n. 11, que havia sido adqui-
rida pela livraria-editora de António Maria Pereira, em sua segunda geração,
à época. Segundo Hallewell (2012 [1985], p. 260-261), no fim do século XIX,
os livros impressos fora do país ainda saíam mais baratos do que os impres-
sos aqui, o que permitia baixar o preço do produto brasileiro, tornando-o
bem acessível. A Typographia e Stereotypia Moderna foi uma das primeiras
em Portugal a possuir máquinas a vapor, o que significava, “em termos em-
presariais, uma boa economia de escala e a possibilidade de um maior con-
trolo sobre a qualidade gráfica das edições” (PEREIRA, 1998, p. 68). A editora
portuguesa oferecia, assim, uma boa opção de negócio para a editora brasi-
leira. Além disso, quando afirmo que não se tratava de uma coleção original
da Casa Laemmert, significa também que a empresa de António Maria Pe-
reira não funcionava apenas como a tipografia que imprimia os livros para a
Laemmert, mas era ela própria a criadora da coleção, cujos tradutores eram
portugueses. Na verdade, a coleção atendia ao mesmo tempo dois mercados

ginas finais contendo anúncios – elementos preciosos para o pesquisador que valoriza, como
Donald McKenzie (2018 [1986]), os suportes e a materialidade dos livros, e para quem “as for-
mas produzem sentidos” (CHARTIER, 1994, p. 13).

540 • gentes e paisagens luso-brasileiras


livreiros: o do Brasil pelo selo Laemmert, e o de Portugal pela Livraria de An-
tónio Maria Pereira que a produzia e distribuía em Portugal, mas também no
Brasil, pelo que foi possível depreender ao longo da investigação. Daí o título
proposto para este capítulo: Uma coleção, duas livrarias.
Cabe lembrar que, à época do lançamento da Coleção Econômica Laem-
mert, os editores já não eram mais os irmãos Eduardo (1806-1880) e Henri-
que (1812-1884) Laemmert, fundadores da empresa e responsáveis pela livra-
ria-editora desde a década de 1830. Eduardo se desligara da firma em 1877 e
morreu em 1880; Henrique faleceu em 1884; a empresa foi então refundada
em 1891 pelos herdeiros e sócios Gustave Massow, Egon Widmann Laemmert,
Carlos Mattfeld e Arthur Sauer, com o nome Laemmert & Companhia, tendo
aberto filiais em São Paulo e em Pernambuco (HALLEWELL, 2012 [1985], p.
272-273; MACHADO, 2012, p. 111-112 e p. 130-132) – o que é possível notar ao se
observar o lançamento paulatino dos números da própria Coleção Econômi-
ca, pois a partir de 1897, com o volume 17 (o romance Os dois rivais, do escri-
tor francês Armand Lapointe), os anúncios trazem não mais a indicação “Rio
de Janeiro – S. Paulo” (como aparecia até o volume 16, Lise Fleuron, do escritor
francês Georges Ohnet), mas “Rio de Janeiro – S. Paulo – Pernambuco”, pois a
firma havia ampliado o raio de distribuição e circulação dos livros da coleção
e do catálogo da livraria como um todo.
Do lado português, não se tratava também de António Maria Perei-
ra (1824-1880), o fundador da livraria-editora criada em 1848, em Lisboa. O
acordo com a Laemmert para a Coleção Econômica se dá na gestão do filho,
também chamado António Maria Pereira, nascido em 1856 e morto em julho
de 1898, tendo atuado como editor apenas após a morte do pai, em 1880. É en-
tão no período do segundo António Maria Pereira que a editora vai se tornar
a maior de Portugal, com um catálogo invejável contendo nomes, entre inú-
meros outros, de escritores de alto quilate e ampla penetração entre os leitores
portugueses, como Camilo Castelo Branco, Pinheiro Chagas, Eça de Queirós,
Ramalho Ortigão, Teófilo Braga, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro (PEREI-
RA, 1998, p. 69-70).
Pai e filho inscrevem-se numa forte tradição de intercâmbio cultural e de
comércio editorial com o Brasil, como demonstra a pesquisadora Valéria Au-

uma coleção, duas livrarias • 541


gusti, que se debruçou sobre a história do Grêmio Literário Português do
Belém do Pará, a constituição de seu acervo e suas relações comerciais (AU-
GUSTI, 2016; 2009). Eles se tornam, de pai para filho, grandes mediadores
culturais (SILEM, 2005, p. 301), responsáveis pela comercialização e difusão de
bens culturais entre Portugal e Brasil, ao longo do século XIX; e, no caso que
aqui interessa, o de uma coleção de livros que envolve fortemente uma tercei-
ra cultura, a francesa, essa mediação serve para mostrar que as identidades
nacionais são construídas em espaços abertos a hibridizações, jamais portado-
res de uma cultura “pura” (COOPER-RICHET, 2013, p. 190), logo, envolvendo
também as traduções, ainda que estas tragam marcas de dominação cultural
(CASANOVA, 2015).
O primeiro livreiro da “dinastia” portuguesa fornecia livros entre 1868 e
1872 para a instituição paraense, assim como para os Gabinetes da Bahia e do
Rio de Janeiro. Segundo consta no livro Parceria A. M. Pereira; crônica de uma
dinastia livreira, escrito pela filha do terceiro António Maria Pereira, Antónia
Maria Pereira, seu bisavô teria sido sócio do Gabinete Português de Leitura do
Maranhão, do Gabinete Português de Leitura da Bahia, do Gabinete Português
de Leitura de Pernambuco, além de sócio honorário do Gabinete Português de
Leitura do Rio de Janeiro (1998, p. 53-55). Cabe ressaltar, no escopo deste estudo,
que desde o primeiro António Maria Pereira, a aposta principal da livraria-e-
ditora portuguesa, atenta ao gosto do seu público, concentrou-se na tradução
de livros estrangeiros, principalmente franceses (1998, p. 24-25), como demons-
tra Valéria Augusti (2016; 2013; 2009) nos estudos que empreende do acervo do
Grêmio Literário Português do Pará. Esse fato constitui um dado importante
para compreender a Coleção Econômica Laemmert e o acordo entre as casas
editoras portuguesa e brasileira, nos últimos anos do século XIX.

A coleção em sua materialidade

Na falta de contratos firmados entre as duas empresas, ainda não encontrados,


a análise material dos volumes da coleção foi importante para tentar entender
como se deu essa parceria editorial – e não apenas comercial. Ela permitiu
comprovar que, nos acervos de instituições, os livros podiam pertencer tanto

542 • gentes e paisagens luso-brasileiras


ao selo brasileiro quanto ao português. As duas “irmãs”, como sugiro chamá-
-las, possuem a mesma identidade editorial, na qual são trocados o nome e a
cidade da editora nas capas e nas folhas de rosto, e, no caso desta última, tam-
bém o sinete editorial – para a edição de António Maria Pereira, há as iniciais
do nome do editor; para a Laemmert, uma vinheta despersonalizada.

Folhas de rosto do romance O sonho (Le Rêve, 1888), de Émile Zola, vol. 4 da Coleção
Econômica Laemmert e António Maria Pereira (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional).

O projeto gráfico, na maior parte do material consultado, é semelhante:


o anterrosto indicando o nome da coleção, o título da obra e o número do
volume; o verso do anterrosto contendo o nome da editora, as cidades em que
atua, informações sobre a coleção e os números já lançados; a folha de rosto,
como se vê acima, acrescenta às informações já dadas anteriormente os nomes
do autor e do tradutor; o verso da folha de rosto traz o local da impressão,
o nome da tipografia e, por vezes, o ano. Em geral, nas duas versões-irmãs

uma coleção, duas livrarias • 543


dessa mesma coleção, os inícios dos capítulos são encimados por cercaduras
e se concluem com fundos de lâmpada variados. Na maioria dos casos, são as
mesmas decorações, embora isso não seja uma regra absoluta.3
A capa traz uma aquarela do pintor naturalista português Ernesto Condei-
xa, que também se encarregava de capas de outras publicações da editora de
4

António Maria Pereira, como a Revista Illustrada (PEREIRA, 1998, p. 99). Nela,
vemos a representação de uma leitora burguesa, branca, loura e bem-vestida,
confortavelmente recostada em seu sofá, com os pés apoiados numa almofa-
da, em ambiente bem-decorado e aconchegante, no ato da leitura. Na parte
superior da capa, vem o nome da coleção, em letras capitais vermelhas, com-
binando com a cor do vestido da distinta leitora. Na parte inferior, sob os pés
da mulher, o título em capitais, na cor preta, encimado pelo nome do autor,
em tamanho menor e à direita. Sob o título, é discretamente indicado o nome
do tradutor; e, do lado esquerdo, aos pés do aparador, a assinatura do artista-
-ilustrador. Mais abaixo, separado por uma pequena vinheta centralizada, o
nome da editora, sob o qual são designadas as cidades em que atua.
Todos esses elementos gráficos, que constituem um verdadeiro “disposi-
tivo material”, de certo modo atribuem a unidade necessária para que se ob-
tenha um efeito de coleção. No entanto, uma parte importante do que Isabel-
le Olivero denominou “trabalho da coleção” encontra-se ausente da Coleção
Econômica Laemmert/António Maria Pereira. Trata-se de intervenções espe-
cíficas em forma de paratextos, estabelecendo estratégias editoriais que “de-
senham a esfera social de recepção de uma coleção”, como: sistemas de notas
e referências, introduções, prefácios e posfácios, enfim, todo um aparato crí-
tico visando captar um público específico para aquela coleção (1999, p. 126,
tradução minha). No caso da Coleção Econômica, a inexistência desse lado
mais intelectualizado do “trabalho de coleção” deve-se ao fato de ela ser uma
coleção popular, de pequeno formato, impressa em papel de baixa qualidade e
vendida a preço baixo. O público visado era amplo, mas não necessariamente

3. Para melhor visualização, ver outras imagens em CATHARINA, 2019a.


4. Ver: http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/pt/artistas/ver/150/artists. Condeixa tam-
bém pintou o retrato do segundo António Maria Pereira (reproduzido em PEREIRA, 1998, p. 61).

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Capa do romance Vontade (Volonté, 1888), de Georges Ohnet, vol. 11
da Coleção Econômica Laemmert (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional).

culto. A capa (rara, aliás, nos volumes examinados) é colorida, de autoria de


artista famoso; esse detalhe mostra a preocupação do editor em dar um toque
de classe aos pequenos volumes baratos;5 sua uniformidade e repetição em

5. Segundo Pereira, ao discorrer sobre as “edições esplendorosas” da editora, na gestão do segun-


do António Maria Pereira, “a qualidade gráfica de todas as edições – livros, revistas, almanaques
– é excelente, pois AMP faz questão de supervisionar, até ao mínimo detalhe, todas as obras que
a sua tipografia, dotada da maquinaria mais avançada de época, imprime” (1998, p. 103).

uma coleção, duas livrarias • 545


todos os números da coleção garantem ao colecionador a formação de uma
pequena biblioteca regular de “romances dos melhores autores, em volumes
de 240 a 320 pág. a 1$000 réis o volume” – informação que aparece no verso
do anterrosto e também nos anúncios publicados nos jornais brasileiros. Po-
rém, a imagem de uma leitora refinada nem sempre será condizente com os
romances propostos pela coleção, pois muitos dos autores que a constituem
podem ser facilmente encontrados nas páginas dos jornais em anúncios de
“leitura para homens”, nos quais cabiam inclusive Gustave Flaubert com seu
Madame Bovary e Eça de Queirós com O primo Basílio (EL FAR, 2004, p. 195;
MENDES, 2017).6
Há outras maneiras de assegurar o efeito de coleção, que não dependem
da ação direta dos editores, mas que indicam que o que eles conceberam
como uma coleção assim o foi percebido: no acervo da Biblioteca Nacional, é
possível encontrar dois ou três números da Coleção Econômica encadernados
num único volume; ao encaderná-los juntos, o bibliotecário e o encadernador
pouco se importaram com os diferentes nomes das editoras – Laemmert & C.a
Editores ou Livraria de António Maria Pereira Editor – e suas cidades de ori-
gem ou atuação – Rio de Janeiro e S. Paulo; Rio de Janeiro-S. Paulo-Pernam-
buco; ou Lisboa – que aparecem na capa e em outras páginas iniciais do livro,
como foi mostrado. Isso prova que o leitor ou os profissionais da biblioteca
os viam como fazendo parte de uma mesma coleção, indistintamente. Além
disso, no acervo do Real Gabinete Português de Leitura, assim como no da
Biblioteca Nacional, é possível vislumbrar pelo catálogo on-line tanto volumes
da editora portuguesa quanto da brasileira; embora não pareçam estar enca-
dernados juntos, esse fato corrobora a circulação concomitante de ambas as
versões da Coleção Econômica no país.

6. Encontram-se, por exemplo, em pequeno anúncio intitulado “Leitura para homens”, publi-
cado na página 3 do Jornal da Tarde do Rio de Janeiro em 2 de junho de 1879, além de O primo
Basílio, também O crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, e Esposa e Virgem, de Adolphe
Belot – este último sendo um autor publicado na Coleção Econômica. Em anúncio da Livra-
ria do Povo de “Livros baratíssimos”, publicado na página 3 da Gazeta de Notícias do Rio de
Janeiro em 4 de maio de 1886, há, numa longa listagem da categoria “Leitura para homens”, a
presença, por exemplo, de Émile Zola com Germinal et Nana.

546 • gentes e paisagens luso-brasileiras


A irmã brasileira: a Coleção Econômica Laemmert

Como o próprio nome sugere, a Coleção Econômica Laemmert visava atingir


um público vasto, apostando num campo literário (BOURDIEU, 1992) já bas-
tante desenvolvido no fim de século brasileiro, como deixa supor o texto que
compõe alguns dos anúncios que saíram nos jornais brasileiros desde agosto
de 1895. Este, precisamente, se refere ao lançamento do nono volume da co-
leção, Vogando, de Guy de Maupassant: “Não vale hoje a desculpa que não se
pode ler porque o livro é caro! Vinde, pois comprar, para animar os editores
em tão arriscada empresa”.7 Como foi mencionado, os livros propostos tinham
formato pequeno (volumes in-16), com papel de pouca qualidade, em brochu-
ra com capa ilustrada e colorida, indicando o público-alvo: as mulheres. Cus-
tavam barato (1.000 réis no Brasil), saíam mensalmente ou a cada dois meses,
e garantiam conteúdo (obras de 240 a 320 páginas) e qualidade (“os melhores
romances estrangeiros, traduzidos por escritores competentes”).
A Coleção Econômica Laemmert teve início em julho de 1895 e foi en-
cerrada em julho de 1898, enquanto a portuguesa seguiu adiante, como será
visto. Ela foi composta de 29 volumes. Porém, pelo exame material da coleção,
foi possível identificar um total de 33 textos, pois três volumes contêm mais
de um texto: o nº 1, explicitamente identificado: As aventuras de Tartarin de
Tarascon seguidas de Tartarin nos Alpes, de Alphonse Daudet; o nº 9, Vogando,
de Guy de Maupassant, que também traz a novela Senhor Parente, do mesmo
autor, mas não identificada na coleção; e o nº 22, A alma de Pedro, de Georges
Ohnet, que curiosamente traz dois contos do escritor francês Jean Richepin:
A condessa demônio e Traste inútil, também sem qualquer indicação na capa
nem nas páginas iniciais.
Das 33 obras, 30 são de autores franceses, uma de autor inglês, uma de autor
italiano e uma de autor russo.8 Considerando-se o momento da primeira edi-
ção das obras, constata-se um investimento maior dos editores em narrativas e

7. A Notícia (RJ), nº 69 de 20-21 de março de 1896, p. 2.


8. Ver o anexo em CATHARINA, 2019a, p. 102.

uma coleção, duas livrarias • 547


romances contemporâneos, nove tendo sido lançados originalmente na década
de 1890, 14 na década de 1880, cinco na década de 1870, quatro na de 1860 e
apenas um na de 1850. De 33 obras, 12 são de autoria de escritores naturalistas
como os franceses Émile Zola, Guy de Maupassant, Jules e Edmond de Gon-
court, Alphonse Daudet e o russo Ivan Tourgueniev,99 o que sugere a preferência
do público, naquele momento, por essa estética. Contudo, o escritor que mais
se destaca é o francês Georges Ohnet (1848-1918), hoje praticamente esquecido
pela crítica e pelos leitores (CATHARINA; SILVA; SANTOS, 2019b, p. 388-392).
Sua obra, bastante extensa (seu ciclo Les Batailles de la vie [As Batalhas da vida]
conta com mais de 30 romances), era depreciada pelos críticos, que nela não
viam real valor literário, embora tivessem que admitir seu sucesso de público.
Duas décadas antes do lançamento da Coleção Econômica, no mesmo momen-
to em que Émile Zola obtinha grande sucesso de público (mas não ainda de crí-
tica) com seus polêmicos romances naturalistas, alguns de escândalo, e defendia
publicamente o direito de o escritor moderno viver (e enriquecer) de seu tra-
balho, Georges Ohnet, que, ao contrário, propunha obras cujos temas não cau-
savam nenhum debate ao traçar o retrato de uma burguesia abastada que nelas
se sentia acolhida, “fazia a fortuna de seu editor, Paul Ollendorff ” e provocava a
indignação dos críticos que denunciavam esse empreendimento literário mais
comercial como “o triunfo da ‘littérature ohnete’” (trocadilho com “literatura ho-
nesta”. MOLLIER, 2018, p. 83). É o que transparece, por exemplo, no comentário
de Anatole France sobre o romance Vontade, à época de seu lançamento, repro-
duzido em edição do jornal A Federação do Rio Grande do Sul:

A propósito de “Volonté”
A propósito do último romance de Ohnet, autor tão apreciado por uma certa
classe de leitores, fez Anatole France as seguintes observações críticas, dignas de
serem lidas:

9. Cinco entre os dez primeiros volumes da coleção, contendo sete romances e novelas, são
traduções de obras de escritores naturalistas franceses, o que é bem revelador do gosto de uma
época e da aposta dos editores.

548 • gentes e paisagens luso-brasileiras


[...] Li Volonté e julguei-me muito feliz. Não existe uma página, uma linha, uma
palavra, uma sílaba que não me tenha magoado, ofendido, entristecido. Tive von-
tade de chorar sobre ele com todas as musas. Nunca havia lido um tão péssimo
livro; isso mesmo m’o tornou considerável, e concebi pelo autor uma espécie de
admiração. O sr. Ohnet é detestável com igualdade e plenitude; é harmonioso e
dá ideia de um gênero de perfeição.
[...]
Volonté fará as delícias de um grande número de pessoas.
[...]
Não duvideis; haverá mulheres, mulheres encantadoras, que acharão isso bonito
e chorarão.
(A Federação (RS), nº 89, de 18 de abril de 1888, p. 1).

De Georges Ohnet, seis obras compõem a Coleção Econômica Laemmert.


Ele é seguido por Alphonse Daudet e Guy de Maupassant (ambos com quatro
obras), e Émile Zola e Paul Bourget (ambos com duas obras), além de Jean
Richepin (com duas obras curtas). Todos os outros autores franceses – Jules e
Edmond de Goncourt, Octave Féré, Hector Malot, Erckmann-Chatrian, Pier-
re Maël, Armand Lapointe, Maxime Du Camp, Guérin-Ginisty, Adolphe Belot
e Maxime Paz; e os estrangeiros Rider Haggard, Gabriele D’Annunzio e Ivan
Tourgueniev – participam da Coleção Econômica com apenas uma obra.
O fim da Coleção Econômica Laemmert parece ter ocorrido em julho de
1898, por falta de indícios nos periódicos de sua continuidade sob o selo Laem-
mert. Há para essa interrupção duas hipóteses: a morte do editor português
António Maria Pereira, o segundo da dinastia, no dia 27 de julho do mesmo
ano, o que pode ter imposto novo tipo de negociação entre as editoras portu-
guesa e brasileira; e, a mais provável, a promulgação da lei brasileira 946 sobre
direitos autorais, em 1º de agosto de 1898. Seu Art. 19 estabelecia que “todo o
atentado doloso ou fraudulento contra os direitos de autor constitui o crime de
contrafação. Os que cientemente vendem, expõem à venda, têm em seus estabe-
lecimentos para serem vendidos ou introduzem no território da República com
fim comercial objetos contrafeitos, são culpados do mesmo crime”. E o Art. 21
completava: “consideram-se igualmente contrafações: 1) as traduções em língua

uma coleção, duas livrarias • 549


portuguesa de obras estrangeiras, quando não autorizadas expressamente pelo
autor e feitas por estrangeiros não domiciliados na República ou que nela não
tenham sido impressas.” (Coleção de Leis do Brasil, 1898, vol. 1, p. 4).
Ora, sendo a Coleção Econômica Laemmert uma coleção de romances es-
trangeiros traduzidos em Portugal por escritores portugueses, nos termos da
nova lei, ela deve ter se tornado inviável no âmbito do acordo comercial entre
as editoras parceiras. A Livraria Laemmert, naquele momento investindo bem
mais em literatura nacional, vinha paralelamente desenvolvendo outras cole-
ções, a fim de conquistar diferentes fatias do mercado livreiro no Brasil (CA-
THARINA, 2019a, p. 94-95).

A irmã portuguesa: a Coleção Económica de António Maria Pereira

Do outro lado do Atlântico, não estando sujeita à mesma legislação da jovem re-
pública brasileira, a Coleção Económica da Livraria de António Maria Pereira
segue em frente como empreendimento editorial que aposta em livros baratos
e acessíveis a todo público, ao lado de outras coleções como a “Coleção António
Maria Pereira”, a “Nova Coleção Pereira” e “Coleção de Algibeira” (PEREIRA, 1998,
p. 108). Após a morte de António Maria Pereira, o filho, houve um período cha-
mado de “interregno”, que durou até 1920, pois em 1898, António Maria Perei-
ra (1895-1972), o terceiro da linhagem, tinha apenas 3 anos de idade. Nessa fase,
a editora foi dirigida por Henrique Monteiro, um empregado de confiança, que
buscou manter a qualidade gráfica dos livros editados (PEREIRA, 1998, p. 117-118).
Para acompanhar o desenvolvimento da Coleção Económica portuguesa
após julho de 1898, foram examinados alguns exemplares da Coleção António
Maria Pereira que trazem nas páginas iniciais e finais a lista dos números já
publicados e aqueles de outras coleções da casa, como a Coleção Económica.
No livro de contos Relâmpagos, de Armando Ribeiro10 (nº 52 da Coleção
APM), de 1904, a listagem dos romances publicados na Coleção Económica

10. Escritor e jornalista lisboeta, um dos poucos portugueses publicados na Coleção Económica
– volumes 82 e 83, com O Destronado, originalmente publicado em folhetim com o título D.
Afonso IV. O Destronado.

550 • gentes e paisagens luso-brasileiras


atinge seu 87º volume com A ilha revoltada, romance do jornalista e político
de esquerda francês Édouard Lockroy, que narra suas aventuras junto com
Giuseppe Garibaldi, na luta pela unificação da Itália. No exemplar de 1909
de Fitas de Animatógrapho, do escritor português Alberto Pimentel (nº 68
da mesma coleção), A ilha revoltada de Leckroy continua como último nú-
mero publicado. E, no 26º volume da mesma coleção, O Mistério da estrada
de Sintra, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, já em sua 5ª edição em 1913,
a listagem da Coleção Económica permanece inalterada. Na falta de dados
comprobatórios que mostrem o contrário, tudo leva a crer que a Coleção
Económica de António Maria Pereira não propôs novos números após a pri-
meira década do século XX.

Páginas iniciais de O Mistério da Estrada de Sintra, vol. 26 de Coleção António Maria Pereira, 1913.

uma coleção, duas livrarias • 551


A descontinuidade ainda não explicada da Coleção Econômica Laemmert
não impede, todavia, que os romances previstos e publicados pela editora por-
tuguesa de António Maria Pereira continuem a circular no Brasil por meio
dos volumes exportados, dando continuidade ao movimento comercial inicia-
do décadas antes, que traça ao mesmo tempo um percurso intercultural luso-
-brasileiro ao reforçar a identidade cultural entre os dois países, marcada pelo
compartilhamento de bens culturais em eixo transacional (ABREU, 2016). Tal
fato pode ser verificado pela presença dos volumes da Coleção Económica no
catálogo on-line do Real Gabinete Português de Leitura, no qual podem ser en-
contradas, por exemplo, traduções de romances franceses como A montanha do
diabo de Eugène Sue (nº 31 da coleção, com tradução de Luiz Cardoso, de 1898),
Um casamento no Mosteiro, de Alfred Assollant (nº 39 da coleção, com tradução
de Eduardo Braga, de 1899), João Sbogar, de Charles Nodier (nº 47 da coleção,
com tradução de José Sarmento, de 1904), ou o romance português A Dama
das violetas, de Francisco Guimarães Fonseca (nº 64 da coleção, de 1906); esses
exemplares, como havia ocorrido na Biblioteca Nacional, compõem a Coleção
Econômica no acervo do Real Gabinete Português de Leitura, junto com ou-
tros títulos da editora Laemmert que lá se encontram: Serge Panine, de Georges
Ohnet (nº 3 da coleção, com tradução de Luiz Cardoso, de 1895), O sonho, de
Émile Zola (nº 4 da coleção, com tradução de José Sarmento, de 1895), Beatriz,
de Rider Haggard, escritor inglês de romances de aventuras (nº 14 da coleção,
com tradução de Luiz Cardoso, de 1896), Magdalena Férat, de Émile Zola (nº 26
da coleção, com tradução de José Sarmento, de 1898) e Os reis no exílio, de Al-
phonse Daudet (nº 27 da coleção, com tradução de Lourenço Cayolla, de 1898).
Ao serem comparados os dois momentos de publicação da coleção – o que
vai de 1895 até 1898, com a participação da Laemmert e o que dá continuidade
à coleção até o século XX) –, é possível também cotejar o seu “perfil” até seu
encerramento pelo lado brasileiro e o que se desenvolveu na sequência pela
editora de António Maria Pereira.
Dos 87 volumes da coleção contendo 85 obras,11 a maioria esmagadora

11. Há seis volumes da parte de António Maria Pereira que são, na verdade, o segundo volume
de uma mesma obra: Ódio antigo de Georges Ohnet, volumes 34 e 35; Nemrod & Cia, do mes-
mo autor, volumes 64-65; Educação sentimental de Gustave Flaubert, volumes 69-70; O herdei-

552 • gentes e paisagens luso-brasileiras


das traduções permanece sendo de romances e narrativas franceses (66 em 85
obras); entretanto, há um leve aumento de romances russos e ingleses, e a in-
clusão de obras de autores de outras nacionalidades: alemã, austríaca e chine-
sa; nos seus últimos números, a coleção propõe escritores portugueses: além
de Francisco da Rocha Martins (nº 40, com Os párias), que havia sido lançado
anteriormente, há também Armando Ribeiro e Francisco Guimarães Fonseca,
já mencionados, A. Campos (nº 84, com Ninho de amor) e mesmo um brasi-
leiro, o baiano Almachio Diniz (nº 85, com Bodas Negras).
O francês Georges Ohnet continua à frente na preferência das leitoras e dos
leitores, a editora de António Maria Pereira tendo ainda publicado na Coleção
Económica mais cinco romances do escritor, além dos seis do período da par-
ceria com a Laemmert. Os naturalistas, vistos em conjunto, mantêm-se também
em destaque, porém só Guy de Maupassant e Alphonse Daudet ganharam mais
um volume após julho de 1898. Paul Bourget, o mestre do romance psicológico,
mantém-se igualmente com dois volumes. Todos os novos autores publicados
na sequência da coleção constam com apenas um romance. É o caso, apenas
para mencionar alguns, de Michel Lermontoff, Léon Tolstoï, Dostoievski, escri-
tores russos; o general Tcheng-Ki-Tong, chinês; Francis Charles Philips e Lau-
rence Sterne, ingleses; Albert Delpit, Alphonse Karr, André Theuriet, Catulle
Mendès, J. H. Rosny, Joris-Karl Huysmans (que vem engrossar o rol dos natu-
ralistas), Pierre Loti, entre outros escritores franceses que somam um total de 45
nomes, que tiveram suas obras escolhidas para compor a coleção.
Embora a datação das obras adquira um ritmo mais aleatório com o avan-
çar dos números,12 comparativamente, os textos contemporâneos parecem
continuar a ser a preferência da coleção, que oferece ao público, ao final, a
leitura de 85 obras de 64 escritores, mas também de escritoras, como a roman-
cista austríaca Ossip Schubin, com farta produção literária entre as décadas de

ro de Redclyffe da escritora inglesa Charlotte Mary Yongue, volumes 73-74; A filha do Dr. Jaufre
de Marcel Prévost, volumes 78-79; e O Destronado de Armando Ribeiro, volumes 82-83. Já na
parte da Coleção Econômica Laemmert, como havia sido mostrado, havia quatro obras inseri-
das em números da Coleção – uma referida na capa no volume 1 e três não indicadas.
12. Mesmo levando-se em conta aquelas cujos títulos originais e datas de publicação ainda não
foram identificados.

uma coleção, duas livrarias • 553


1880 e 1920, cujos enredos privilegiavam o luxo das classes aristocráticas eu-
ropeias; de sua autoria é o romance A agonia de uma alma, número 42 da co-
leção. Como Georges Ohnet, escritor idealista (SEILLAN, 2011), Ossip Schubin
foi célebre em sua época por suas obras, mas logo esquecida após sua morte.13
Recuando nas décadas, encontram-se ainda a francesa Condessa de Ségur, cé-
lebre por seus livros infantis, que comparece com o número 43 da coleção,
Memórias de um burro, originalmente publicado em 1860; e a inglesa Char-
lotte Mary Yonge, cujo sucesso comercial O herdeiro de Redclyffe, publicado
originalmente em 1853, integra a Coleção Económica em dois volumes. Resta
uma autora ainda não identificada, Marguerite Sevray, com o número 76, A
família Laroche.

Para concluir

O conjunto de 87 volumes contendo 85 obras, em sua maioria romances fran-


ceses traduzidos, forma uma coleção de livros populares – definição que,
aliás, não é fácil de ser estabelecida –,14 pela qualidade material do livro, pelo
preço, mas sobretudo pelos títulos e autores que propõe. Além de alguns no-
mes já consagrados à época, de um passado relativamente recente (Musset,
Mérimée), há os escritores naturalistas (e também os russos – Dostoievski,
Tolstoï, Tourgueniev), que ocupam uma posição ambígua, entre o que Pierre
Bourdieu caracteriza como campo de grande produção e campo de produção
restrita (BOURDIEU, 1971), isto é, que atingem um público vasto e variado ao
mesmo tempo que buscam a qualidade literária. Estes são lidos e reconheci-
dos até os dias hoje, numa condição que pode ser considerada de certo modo
como perene na literatura mundial. Entretanto, boa parte dos nomes e títulos

13. Trata-se de um pseudônimo tomado de empréstimo a um personagem do romance À la


veille de Tourgueniev, nº 19 da Coleção Econômica, traduzido por Lorenço Cayolla com o títu-
lo Um Búlgaro.
14. Para o aprofundamento dessa discussão, remeto aqui para Migozzi (2005); Artiaga (2008);
Couégnas (2008); Compère (2011).

554 • gentes e paisagens luso-brasileiras


veiculados na Coleção Econômica – como, por exemplo, Alexandre Pothey,
André Theuriet, Armand Silvestre, Albert Delpit, Octave Féré, Adolphe Be-
lot, Dubut de Laforest – é francamente alinhada a uma literatura de grande
público, ou popular, abarcando gêneros diversos, advinda dos folhetins e das
páginas dos jornais. Esses autores e suas obras estão hoje quase que completa-
mente esquecidos, são raramente lidos, e alguns, já na época de sua primeira
circulação, eram menosprezados pela crítica. É o caso visto aqui de George
Ohnet, que domina a coleção com 13 títulos de sua série As Batalhas da vida,
e que hoje ninguém mais lê ou conhece. Obras de escritores ditos “sérios”, isto
é, apoiadas num projeto estético, como é o caso dos naturalistas, associam-se,
assim, as obras de apelo mais popular. Em comum, talvez o fato de serem co-
mercialmente rentáveis, seja pela nota de escândalo que às vezes é associada a
nomes como Zola, Daudet, os Goncourt, Richepin ou Belot, com maior poder
de penetração entre o público masculino, seja por, ao contrário, não causarem
nenhum transtorno ao reafirmarem numa língua “adequada” os valores e a
moral burgueses, caso de nomes como Ohnet, cujas obras se afinariam melhor
com a idealização de leitora estampada na capa da coleção.
Lançar luz sobre a Coleção Econômica Laemmert/António Maria Pereira,
presente tanto no acervo da Biblioteca Nacional quanto naquele do Real Ga-
binete Português de Leitura, significa tentar entender um pouco mais de uma
sociedade e de uma época – no caso a Belle Époque tropical (NEEDELL, 1993)
–, por meio das preferências dos leitores ou leitoras portugueses, brasileiros e
estrangeiros que frequentavam os gabinetes de leitura ou compravam os livros
para formar uma coleção. Na esteira do que estudaram Schapochnik (1999)
e Paixão (2012), trata-se de tentar identificar o que lia no Brasil uma fração
média e importante do público literário no final do século XIX e início do
século XX, para além do cânone da elite letrada. Por meio dos autores e textos
reunidos na Coleção Econômica, é possível penetrar mais nos gostos de leitu-
ra dominantes da época que, a coleção dá a entender, eram globalizados, de-
terminados por um circuito cultural que disseminava bens culturais europeus,
sobretudo franceses, promovido por mediadores cujas ações não partilhavam
exatamente as preocupações relativas à formação de uma literatura nacional,
tema que atormentava críticos, acadêmicos e intelectuais.

uma coleção, duas livrarias • 555


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