Aventura Bruta em Versos Sublimacao e Me
Aventura Bruta em Versos Sublimacao e Me
Aventura Bruta em Versos Sublimacao e Me
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
São Paulo
2014
LÍVIA SANTIAGO MOREIRA
São Paulo
2014
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL
DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU
ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A
FONTE.
Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
160 f.
RC467
Nome: Lívia Santiago Moreira
Título: Aventura bruta em versos: sublimação e melancolia na obra de Ana Cristina
César
Aprovado em:
Banca Examinadora:
Ao Prof. Daniel Kupermann, não só pelo apoio neste trabalho, mas também por
abrir meus horizontes e pela generosidade ao ensinar;
Aos Profs. Ana Cecília Carvalho, Ana Cleide Guedes Moreira, Elisa Cintra, Maria
Lívia Moretto e Nelson da Silva Junior, por compartilharem seus conhecimentos e
acompanharem minha trajetória.
Aos queridos amigos de sempre: Ana Paula Guilherme, Cássia Reis, Daniel
Werneck, Elisa Massa, Felipe Bier, Frederico Coutinho, Júlia Dorigo, Júlia Goyatá,
Kirlian Siqueira, Letícia Barreto, Maria Luisa Freitas, Mariana Camilo de Oliveira,
Mário Corra, Marina Maria, Mônica Toledo, Patrícia Lúcio, Paulo Henrique Amaral,
Rafael Prosdocimi, Raul Duarte, Theo Duarte, Viviane Andrade, Vitor Duarte, pela
companhia que faz a vida ficar colorida e possível, é muito o amor que tenho por vocês!
Aos novos e indispensáveis amigos, Aline Souza Martins, Georgia Nunes, Mateus
Soares, e, especialmente, Gabriela Rodrigues, que se transformaram em minha família
em São Paulo.
A Rodolfo Moreira Neto e Ana Dalva, Sandra Godinho e João Motta, por todo
cuidado, carinho e leveza.
Aos meus queridos irmãos, Guilherme e Leandro, pela cumplicidade e pela alegria
que trazem pra minha vida: Marininha, Bruninho e a esperada Gabriela.
Aos alunos e pacientes que tanto me ensinaram.
RESUMO
In order to better approach our central question, ―how the sublimation occurs in
melancholy‖, we are going to take writing as a sublimatory model, which pointedly
demonstrates the mechanisms that we will try to describe. We have chosen as object of
analysis for this theoretical investigation, the work of Ana Cristina César, artist from
Rio de Janeiro, iconic in Brazil‘s 1970s poetry. The particularity of her writing is the
intertwining with her personal life, whose fictional autobiography surfaces what we
believe to be a melancholic discourse. Through a systematic reading of the author‘s
literary and biographical legacy, which covers a variety of genres and forms, such as
collections of poetry, diaries, as well as translations, we will persecute the connections
and outcomes in the processes of sublimation and melancholy. We are going to do an
acute examination of the Freudian metapsychology of melancholy, the concept of
pulsional defusion as well as sublimation, in an attempt to understand the relationship
between the topic, dynamic, and economic dimensions. Such achievements will not be
possible without the contributions of post-Freudian scholars, such as Klein, Winnicott,
Lambotte, and Rosenberg, whose works will be our theoretical apparatus. Our analysis
observed the particularity of the researche that embrace both the fields of psychology
and literature. We have reached the conclusion that when the sublimatory process uses
the ―work of melancholy‖, not grief, the risk of pulsional defusion increases. Through
the investigation of the temporal dimensions and the ideal instances that possess proper
characteristics in melancholy, we observed that there is a specificity of sublimation in
this condition.
Introdução.........................................................................................................12
Capítulo I - A sublimação......................................................................................27
Considerações finais.............................................................................................169
Anexos:
Desenhos – Portsmouth-Colchester...................................................................172
Bibliografia............................................................................................................180
Sete chaves
Ana C.
Introdução
Naufrágil
Ana C.1
1
(CÉSAR, 2008, p.178).
13
2
Ana Cecília Carvalho, em A Poética do suicídio em Sylvia Plath (2003), parece lançar luz sobre a
delicada relação entre a vida, escrita e suicídio não só em Plath, mas também em outros artistas como
David Foster Wallace e Ana Cristina César.
3
Nesta carta analisada pelos autores, encontraremos a hipótese freudiana sobre uma sublimação da pulsão
de morte.
15
4
Segundo Joel Birman, a pulsão de morte seria responsável por um terceiro descentramento efetuado pela
teoria psicanalítica, tendo sido o primeiro, a noção de inconsciente e o segundo, a noção de narcisismo.
In: BIRMAN, J. Freud e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
16
e este é investido como algo separado de si. A dor dessa perda está relacionada com a
dor de existir, de saber-se sozinho no mundo.
Costurando fragmentos
Junto a esta introdução, faremos uma primeira inserção na vida e obra de Ana
Cristina César. Nesta breve apresentação da autora, intitulada ―Atrás dos olhos de Ana
C.‖, traremos à tona os termos que serão discutidos ao longo da dissertação através de
um ensaio com as possíveis interpretações sobre a função e o efeito psíquico da escrita
para a poeta.
Finalmente, nosso último capítulo, ―No entre-lugar do eu: a obra de Ana Cristina
César‖, se debruçará, com os recursos metapsicológicos adquiridos ao longo desta
trajetória, sobre o trabalho da poeta Ana Cristina César. Esperamos encontrar elementos
que nos permitam tensionar e iluminar a teoria até então conhecida sobre os limites da
sublimação, bem como sua participação na construção ou no desencadeamento de uma
melancolia.
5
Neste trabalho buscaremos fazer um exercício do que é chamado por Luis Cláudio Figueiredo de um
pensamento complexo em psicanálise que, ao invés de subtrair a contribuição de uma escola psicanalítica
em função de outra, busca-se os pontos em que cada uma delas irá suplementar a outra, e assim, tentar
compreender as múltiplas facetas do fenômeno clínico que sustenta nossa atividade teórica.
19
Ana Cristina César, poeta carioca nascida em 1952, é um ícone da poesia marginal
brasileira, do movimento de contracultura dos anos 1970, herdeira de uma tradição
poética que vai de Mallarmé, Baudelaire, Whitman, Dickinson, até T.S Eliot, Mansfield,
Plath, Bishop, Bandeira e Drummond. A poesia chamada "confessional", ou
autobiografia ficcional era um modelo no qual ela se encontrou e trabalhou para
imprimir seu estilo.
A literatura aparece muito cedo na vida de Ana C. Filha de um editor de revista e de
uma professora de literatura, aos quatro anos, antes mesmo de saber escrever, ela já
fazia poemas que foram ditados e registrados por sua mãe. Ela andava de um lado para
o outro do sofá recitando poemas enquanto sua mãe os escrevia. Aos sete anos teve seu
primeiro poema publicado. Ana C.(1992, p.82) nos conta:
6
Armando Freitas Filho foi o depositário do acervo de Ana C., por vontade expressa da poeta. Junto à
família, um ano após a sua morte, começa a organizar o primeiro arranjo desse material que será
publicado como Inéditos e dispersos (1998), livro onde encontramos na contracapa a frase por nós citada.
20
Estou atrás
7
Poema escrito em 28-05-69. (CÉSAR, 1998, p.51,)
8
Título do ensaio publicado em 1979, resultado da pesquisa realizada durante o curso de mestrado em
comunicação na UFRJ. (CÉSAR, 1999).
9
A palavra sentido aqui pode ser entendida tanto como percepção quanto como direção e significado.
21
da bomba aspirante que se nutre paradoxalmente do vazio que ela mesma provoca‖, que
nos fala Lambotte (1997.p.63).
Pensamos, com a autora, que ―a imagem do corpo se constrói na relação identifica
tória com o outro e na caução que este traz à experiência que a criança atravessa‖
(LAMBOTTE, 1997, p. 205). Observamos no sujeito melancólico:
Ana C. parecia buscar uma maneira de se defender dos efeitos que sua própria poesia
produzia em si. Os poemas de títulos sugestivos, como ―O último adeus I‖, ―O último
adeus II‖, ―O último adeus III‖, ―Contagem regressiva‖, ―Nada, Esta espuma‖, e ―Fogo
do final‖ − sendo este o último poema de A teus pés(1982∕1992) − são contrapostos ao
que ela chamou de ―cadernos terapêuticos‖. Ela escreve:
É interessante o que a poeta aponta aqui: haveria dois tipos de escrita, uma mais
próxima do ―fogo do final‖ e outra, mais próxima da contenção. Como indicou
Carvalho (2003), haveria uma escrita pulsional e uma escrita do recalque. Entendemos,
desse modo, que os cadernos terapêuticos teriam a função de curar aquilo que a própria
escrita (pulsional) teria provocado. Três meses antes de sua morte, Ana Cristina
22
10
Poema escrito em 13-06-83.
11
Poema escrito em 15-07-83. Ana C. morre em 28 de outubro de 1983
12
Ana C. neste poema, como em muitos outros, toma como suas as palavras dos poetas que lê. Seu texto
produz um labirinto que leva o leitor a buscar as referências aludidas, na esperança de desvendar os
segredos da poeta. A referência aqui é ao poema de Manoel Bandeira chamado ―Pousa a Mão na Minha
Testa‖: Não te doas do meu silêncio: ∕Estou cansado de todas as palavras. ∕ Não sabes que te amo? ∕Pousa
a mão na minha testa: ∕Captarás numa palpitação inefável ∕O sentido da única palavra essencial ∕- Amor.
23
Você se importaria de ler algo sórdido? Não, não é bem algo sórdido,
pelo contrário, é uma página importante que testemunha a obsessão de
registrar todos os pormenores de uma mente e todo o desenrolar da
história do pensamento. Eu me curvo e me escondo ante o que escrevi
ao me entregar totalmente a esta obsessão. E sinto inclusive o infeliz
medo da tua leitura, mas fico subitamente feliz porque percebo que
deste medo posso fazer outros textos que tematizem o medo e depois
falem do texto que escrevi para aplacar o medo e dos outros textos que
escrevi para aplacar os primeiros textos. (CÉSAR, 2008, p.114)
Ou seja, uma leitura ferencziana nos indica que aquilo que teria valor traumático
seria ―a impossibilidade de a criança atribuir sentido à dor produzida por não encontrar
13
Lendo Kristeva, a autora considera que ―isso se deve ao fato de que, sendo irredutível aos sentimentos,
o afeto no seu duplo aspecto de fluxo energético e de inscrição psíquica – embora fora da linguagem,
traduz-se com uma extraordinária fidelidade. Como a verbalização dos afetos tem uma economia
diferente da economia das ideias, ela não os torna conscientes, mas faz com que eles operem duplamente:
de um lado, redistribuem a ordem da linguagem e dão origem a um estilo. Por outro lado, apresentam o
inconsciente em personagens e atos que representam, na enunciação, as moções pulsionais proibidas e
transgressivas‖. Somos lembrados ainda que, para Freud, a literatura é ―uma encenação dos afetos no
nível intersubjetivo (os personagens) e no nível intralinguístico (o estilo).‖ (CARVALHO, 2003, p.170)
24
O escritor, ao, e para, criar, precisa se aproximar daquilo que será transformado
(emoções, afetos, intensidades, representações) ficando, assim, novamente confrontado
com experiências que procuram sentidos e destinos. A criação e a arte podem promover
uma abertura de espaços psíquicos mais livres, onde as experiências podem ser
transformadas, além de serem capazes de representar algo para o artista e também para
o fruidor. Contudo, como podemos suspeitar através de Ana C., o processo criativo não
é sem riscos para aquele que cria, como também não o é para aquele que se utiliza dele.
Pelo contrário, provoca reaberturas que podem ser traumáticas, mas que ao mesmo
tempo, podem ser metabolizadas e simbolizadas. Ana Cristina César (1998, p.33)
escreve:
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal
25
A palavra janela aparece várias vezes em sua obra, sendo um importante significante
que nos remete ao dentro e o fora, à moldura, ao não lugar, ao enquadre, ao alcance da
vista, à privacidade e à alteridade, ao mundo externo e ao mundo interno. De acordo
com Lambotte (1997), o suicídio por defenestração (deixar-se cair ou lançar-se pela
janela) é próprio da melancolia. A janela funciona como a metáfora do olhar do
materno, olhar que não teria devolvido a imagem do eu que deveria ali ser refletida,
depositada. ―A defenestração do melancólico se assevera no impulso do sujeito de unir-
se o nada, que ele, desde sempre, presume subsistir atrás das coisas‖ (MASSA, 2012,
p.86). Como desenvolveremos no segundo capítulo ―A melancolia‖, a criança irá
identificar-se com o objeto do olhar perdido de uma mãe deprimida, aquele que não
reflete o que vê, mas se perde no horizonte ilimitado e não representável.
27
Cap. I A Sublimação
Ana C. 14
Na obra póstuma Antigos e Soltos (2008), olhamos, pela fresta das páginas, o
processo criativo de Ana C. Testemunhamos as diversas versões de um mesmo poema,
os cortes e edições, as mudanças de termos, um apagamento leve de palavra que ainda
se deixa entrever, a caneta em fúria que escurece nossa visão. Em uma de suas cartas
Ana C. pergunta se os seus cortes nos poemas seriam atos-falhos. Trazemos aqui um
exemplo, sem a edição final que calaria os versos suprimidos, pertencente à sessão
―Prontos, mas rejeitados‖, escrito enquanto Ana Cristina César ainda era jovem:
Metalinguagem Falida
14
(CÉSAR, 2008, p.22)
28
As frases cortadas parecem ter uma função que não é somente estética. O que
significaria para a autora os cortes serem atos falhos? Em outro poema escreve: ―o
desespero precisa ser discreto, soletrado numa pequena esquina (2008, p.232). O
programa estético de Ana C. vai em direção ao fragmentário, ao impessoal; escrever até
que não haja mais resquícios de subjetividades. Então, ―como conviver com o ato de
escrever ?‖ (CÉSAR, 2008, p.108)
É ao conceito freudiano de sublimação que iremos recorrer para entender a relação
entre criação e criador, entre a sexualidade, a necessidade de refreamento da
sexualidade e ao mesmo tempo, a importância da ressexualização da pulsão.
Agora que você chegou não preciso mais me roubar. E como farei com
os versos que escrevi?
Ana C.15
15
(CÉSAR, 1998, p.181). A segunda estrofe foi escrita em setembro de 1983. A terceira estrofe está em
César, (2008, p.66)
16
Segundo Strachey, Freud teria destruído o artigo metapsicológico sobre a sublimação junto a outros
trabalhos em 1915. (Cf.: KUPERMANN, 2003, p.65)
29
ter sido totalmente definida por Freud e ao mesmo tempo ser indispensável ao edifício
teórico da psicanálise, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo.
A inquietação de Freud com a arte está presente desde as cartas à Fliess 17 até os
últimos textos, nos mostrando que o acertado conhecimento intrapsíquico que os
escritores criativos demonstravam continuaram a trazer a compreensão interna (insight)
que a psicanálise se esforçava para alcançar.
Freud declara inúmeras vezes tanto que a psicanálise não conseguiria explicar o
gênio nem o artista, quanto que não caberia a ela fazê-lo. Em o ―Interesse da psicanálise
do ponto de vista da ciência da estética‖ (1913) ele nos diz:
Essas assertivas freudianas sempre funcionaram como uma espécie de ressalva que
permitia com que ele fizesse, com menos resistência, exatamente aquilo que havia dito
não ser possível ou até mesmo permitido. Sarah Kofman (1996) nos demonstra essa
tendência ao longo da obra freudiana e nos alerta para a diferença entre o que ele dizia e
aquilo que fazia em relação às interpretações de obras de arte, como vemos no ―Édipo
Rei‖, ―A Gradiva‖, Leonardo da Vinci, Dostoievski, entre outros. Ainda segundo a
autora, podemos identificar o método desenvolvido para se aproximar da obra de arte
que é fruto de inspiração e investigação.
O método freudiano consistiria em partir do efeito de afeto produzido pela obra sobre
o fruidor para voltar ao afeto experimentado inicialmente pelo artista – o que nos leva a
interrogar sobre os meios que foram capazes de produzir transformações de afeto neste
e no fruidor. Tais meios procedem de uma combinatória simbólica que o artista domina.
17
Em carta de 15 de outubro de 1897, Freud escreve para Wilhem, Fliess sobre suas descobertas sobre a
interpretação do sonho e reconhece em si mesmo o fenômeno Edípico. Neste contexto, cito:
―Passou-me fugazmente pela cabeça a ideia de que a mesma coisa estaria também na base de Hamlet.
Não estou pensando na intenção consciente de Shakespeare, mas creio, ao contrário, que um
acontecimento real tenha estimulado o poeta a criar sua representação, no sentido de que seu inconsciente
compreendeu o inconsciente de seu herói.‖. (Carta 71, p.283)
30
A arte, que é uma espécie de jogo simbólico, permite uma alteração econômica ao
transformar o afeto. Em ―Leonardo da Vinci e uma Recordação de infância‖ (1910,
p.98) lemos:
sexualidade infantil – esquema parecido com o que veremos anos depois no estudo
sobre Leonardo da Vinci em 1910. O recalque da disposição sexual infantil pode
resultar na perversão, no sintoma neurótico e na sublimação. O sintoma seria uma obra
de arte não compartilhada, ao passo que esta deve ser compartilhada. O recalque deveria
inibir o sexual infantil, mas também deixar um resto de libido destinado à sublimação.
Este mecanismo ainda não exclui o risco de que a inibição predomine.
Segundo Freud, as forças que motivam os artistas são os mesmos conflitos que se
traduzem em neuroses e incentivam a sociedade a construir suas instituições. Isto é, a
tentativa do mecanismo mental é a de aliviar o indivíduo das tensões nele criadas por
suas necessidades, o que em parte pode se dar extraindo-se satisfação do mundo
externo. Porém, para se obter satisfação no mundo real, é necessário possuir controle
sobre ele. Os impulsos afetivos são regularmente frustrados pela realidade, o que leva a
uma nova tarefa de encontrar meios de manejar sua insatisfação. A maneira encontrada
pelo artista é representar como realizadas suas fantasias mais pessoais, plenas de desejo,
mas elas só se tornarão obras de arte quando passarem por uma transformação que
atenua o que nelas é ofensivo, oculta sua origem pessoal e, ao obedecerem às leis da
beleza, seduzem outras pessoas com uma gratificação prazerosa.
Em ―Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen‖ (1906), vemos como são submetidos à
investigação os sonhos das personagens criadas por escritores imaginativos no curso de
uma história ficcional.18 Sobretudo, neste texto, Freud manifesta sua admiração pelos
escritores e poetas que, aparentemente sem esforço, possuem um conhecimento acertado
dos processos psíquicos.
Sabemos da preferência explícita pela literatura como forma de arte, especialmente
pelos clássicos como Goethe e Shakespeare19. Contudo, teremos que lembrar que Freud
elegeu um poeta contemporâneo a ele, Arthur Schnitzler (1986-1931), como seu
―duplo‖ (Doppelgängerscheu). Em uma carta apaixonada ao poeta (CF. KON, 1996)
escreve:
18
Às voltas com a questão da arte e da criação, atento às implicações que a arte moderna teria para a
psicanálise, Green questiona se a psicanálise nos modelos freudianos seria capaz de interpretar a arte
moderna. (GREEN, 1971)
19
Entre os autores mais citados por Freud estão: Sófocles, Heine, Ibsen, Flaubert, Rabelais, Zola, Diderot,
Bocage, Oscar Wilde, Bernard Shaw, Dostoievski, Molière, Swift, Homero, Horácio, Macaulay, Tasso,
Hoffmann, Schiller, Mark Twain, Aristófanes, Thomas Mann, Stefan Zweig, Hebbel, Galsworthy,
Cervantes, Hesíodo, entre outros. (KOFMAN, 1996, p.28)
32
A carta confirma o que Baas (2001, p.115) diz: ―é o artista que interessa a Freud,
mais que o amador da arte, na elaboração do processo sublimatório‖. Entretanto, Freud
está mergulhado nesse lugar de apreciador, de leitor da arte. Depois da ―Gradiva‖, ele
descobre que os sonhos inventados por um escritor serão suscetíveis às mesmas
interpretações que os sonhos reais, e assim, na produção do poeta estão em jogo os
mesmos mecanismos do trabalho de elaboração do sonho.
―Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen‖ (1906) é um texto divisório; ali, Kofman
(1996, p.59) nos diz que ―Freud teria passado de uma atitude de admiração frente aos
artistas para uma certa desilusão. A obra de arte muda do status de modelo
paradigmático confirmador do conhecimento psicanalítico: ela própria se torna objeto
de investigação.‖21
Kofman (1996) nos conta um detalhe curioso da história entre psicanálise e arte.
Quando se buscou um comentário de Jensen, autor da Gradiva, sobre a interpretação
feita de sua obra, o autor respondeu de mau humor que as negava. O que não abalou
Freud em suas convicções, ao contrário, ele diz que não há nada estranho para nós que o
autor desconheça o seu próprio saber. ―Mas o que pode ser o psiquismo, ele próprio,
senão um texto, para poder ser ―representado‖ por um texto? Não é só o texto da obra
que estrutura a vida do escritor em um texto, ao estruturar os seus fantasmas?‖
(KOFMAN,1996,p.57) A conclusão que encontramos neste artigo é que:
20
In: Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud (Rio de Janeiro, Imago, 1989, vol.3, pp 430-431.
21
O conhecimento endopsíquico do artista adquirido por Freud na Gradiva mostra que o ―artista não sabe
verdadeiramente o que diz e diz mais do que acredita estar dizendo: Platão já expulsava os poetas de sua
cidade ideal, entre outros motivos por esse.‖ (KOFMAN, 1996, p.28)
33
22
O termo estético será entendido não só pela categoria do belo, mas também das sensações, como Freud
descreve em ―O estranho‖ (1919).
34
A imagem acima faz parte de uma história que foi desenhada e escrita por Ana C.
ainda criança (Cf: CÉSAR, 1998, p.18). Nos chama atenção o fato de que sua primeira
tentativa de suicídio foi lançando-se ao mar, por volta de um mês antes de sua morte.
Ao contrário da análise que Freud faz dos escritores, na história da poeta ainda criança,
não existem heróis e a princesa se atira no mar.
Em ―A moral sexual civilizada e doença nervosa moderna‖ (1908),um eterno mal
estar fica instituído, uma vez que é necessário abrir mão da satisfação imediata e sofrer
a operação de mudança na relação com o objeto primordial de amor. Essa intervenção,
renúncia à qual todo sujeito precisa passar para tornar-se um ser parte da cultura,
implica uma retirada da libido investida no objeto, uma dessexualização e uma posterior
escolha por um alvo não sexual. A entrada na cultura seria um efeito da sublimação,
assim como também toda produção cultural. A capacidade de sublimação, o que levaria
a alguns serem artistas ou escolher esse destino da pulsão não é totalmente esclarecida
por Freud (1908, p.193)
35
(...) A essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro,
não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro,
chama-se de capacidade de sublimação. (...) Entretanto, não é possível
ampliar indefinidamente esse processo de deslocamento, da mesma
forma que em nossas máquinas não é possível transformar todo o
calor em energia mecânica. Para a grande maioria das organizações
parece ser indispensável certa quantidade de satisfação sexual direta, e
qualquer restrição dessa quantidade, que varia de indivíduo para
indivíduo, acarreta fenômenos que, devido aos prejuízos funcionais e
ao seu caráter subjetivo de desprazer, devem ser considerados como
uma doença. (1908,p.153, grifos nossos)
No trabalho sobre Leonardo da Vinci, Freud (1910, p.120) nos dirá que ―a repressão
quase total de uma vida sexual real não oferece as condições mais favoráveis para o
exercício das tendências sexuais sublimadas‖ Neste trabalho ele faz uma faz uma
patografia – um estudo sobre a mente a partir da obra e dos dados biográficos
disponíveis – do artista. A atividade de pesquisa no início da vida desse artista é
interpretada por Freud como a sublimação de sua curiosidade sexual. Segundo ele, a
relação muito próxima entre Leonardo e sua mãe, bem como sua origem ilegítima,
teriam tido uma influência decisiva no destino do artista e sua obra:
Apesar da sublimação ter sido apontada como uma alternativa ao sintoma psíquico,
vemos que as atividades sublimatórias de Leonardo da Vinci estão acompanhadas de
sofrimento desde o início da vida, aparecendo na inibição de suas produções, na
dificuldade de realização sexual e nos sintomas obsessivos. Dessa forma, mesmo sendo
considerado como especial na sua capacidade de sublimar, Da Vinci também tinha uma
―tendência especial para a repressão dos instintos‖ (FREUD, 1910, p.123). A
sublimação não era uma forma de cura para seus sintomas.
A tendência homossexual do pintor seria um tipo de escolha narcísica de objeto que
ocorreu devido à impossibilidade de aceitar a perda do vínculo libidinal com a mãe.
Com o temor desta ameaça, ―o menino reprime seu amor pela mãe; coloca-se em seu
lugar, identificando-se com ela, e toma a si próprio como um modelo a que devem
assemelhar-se os novos objetos de seu amor‖ (FREUD, 1910, p.92). Assim, os jovens
parceiros representariam duplos de si mesmo. Neste momento da obra freudiana ainda
não havia uma distinção entre autoerotismo e narcisismo.
Observa-se, neste caso, como a atividade científica ganha mais interesse que a
artística com o passar dos anos, como se esta o aproximasse mais de respostas e de uma
tentativa de elaboração daquilo que seriam suas investigações sexuais infantis. Eissler
em seu estudo sobre Leonardo, supõe uma espécie de circuito de ―evacuação do
traumatismo‖ olho-mão, uma vez que não há uma impressão que Leonardo não deva
passar imediatamente para o desenho. Assim como em uma aproximação com Goethe
também haveria uma espécie de
Essa característica de ter que anotar tudo que via, transformar tudo em poesia, era
também uma característica de Ana C., que andava sempre com um caderninho na mão.
Para Laplanche, essa ―evacuação do traumatismo‖, mencionada anteriormente,
trataria-se de uma simbolização:
A relação do artista com seu pai também aparece como fator importante em sua obra.
Com Lage (2008) destacamos a curiosa afirmação de Freud de que essa relação seria
repetida no tratamento que dava aos seus trabalhos:
A idealização ―é um processo que diz respeito ao objeto; por ela, esse objeto, sem
qualquer alteração de sua natureza, é engrandecido e exaltado na mente do indivíduo. A
idealização é possível tanto na esfera da libido do eu quanto na da libido objetal.‖
(FREUD, 1914, p.111) Por outro lado, a sublimação ―é um processo que diz respeito à
libido objetal e consiste no fato de se dirigir no sentido de uma finalidade diferente e
afastada da satisfação sexual‖ (FREUD, 1914, p.111). Somos lembrados, portanto, que
o ideal do eu exige a sublimação dos instintos libidinais, mas não pode fortalecê-la.
Encontraremos aqui a formação do agente psíquico especial que compara e mede
constantemente o eu real pelo eu ideal. A sublimação ―é uma saída, uma maneira pela
qual essas exigências podem ser atendidas sem envolver repressão‖ (FREUD, 1914,
p.112, grifos nossos). Então, se esta não envolve o recalque, poderia ser,
paradoxalmente, dependente dele para acontecer? De acordo com Baas (2001):
23
A escrita poderia ser aquilo que, em um segundo momento se transformaria em uma fonte indireta da
pulsão? Teriamos assim um novo fluxo, uma excitação da libido que pode ser recompositora da quota
narcísica, aumentar a quantidade de pulsão de vida no aparelho psíquico. Mas assim, também pode ser
fator de transbordamento libidinal- uma vez reativado pelo processo da escrita.
41
Freud ainda desenvolve seus argumentos a partir das relações prazer-desprazer que
ditam o princípio do prazer que rege a primeira teoria pulsional.
Ana C.24
24
(CÉSAR, 2008, p.344)
42
sujeito. Mas quais seriam os elementos que nos permitiriam mapear os possíveis
destinos da desfusão pulsional decorrente do processo sublimatório?
Desconfiamos que a desfusão pulsional empreendida pela sublimação poderia levar
ao recrudescimento da força do superego reconhecidamente tirânico na melancolia.
Como nos mostra Kupermann (2010, p. 202),
Cap. II A Melancolia
Uma arte
Elizabeth Bishop 28
Este capítulo será dedicado à metapsicologia relacionada aos termos que compõem a
problemática melancólica. Retomaremos a obra de Ana C. no quinto capítulo, após
termos trazido à tona elementos que nos permitirão pensar sobre a especificidade do
processo sublimatório – a escrita – para esta poeta.
objeto de investimento libidinal e não somente a força recalcante. Freud (1914) postula
então, um novo conflito psíquico: a libido do objeto é contraposta a uma libido do ego.
Contudo, essa formulação se torna problemática, uma vez que o conflito não obedece ao
sistema anterior no qual as pulsões tinham naturezas diferentes. É em ―Sobre
narcisismo: uma introdução‖ (1914) que tal conceito é apresentado e justificado através
da análise das seguintes fontes: as psicoses, a vida mental das crianças, a vida mental
dos povos primitivos, a distribuição da libido no adoecimento orgânico, a hipocondria e
a observação da vida erótica dos sexos.
Freud ao analisar as neuroses de transferência – histeria, neurose obsessiva –
observa que há um investimento de libido em objetos externos e uma ligação com a
realidade que de modo algum é cortada totalmente. Um paciente que sofre de histeria ou
neurose obsessiva tem a relação com as pessoas e as coisas do mundo externo retidas na
fantasia, ou tem seus objetos da memória substituídos por objetos reais. Ele pode
também misturar esses dois e ainda renunciar ―[...] à iniciação das atividades motoras
para a obtenção de seus objetivos relacionados àqueles objetos‖ (FREUD, 1914,p.90).
Nas parafrenias, categoria que incluía as esquizofrenias e as paranóias, parecia haver
uma retração da libido para o mundo interno sem que houvesse uma substituição do
mundo externo na fantasia: ―Quando realmente as substitui, o processo parece ser
secundário e constituir parte de uma tentativa de recuperação, destinada a conduzir a
libido de volta a objetos‖ (FREUD, 1914, p.91). A libido que se afastou do mundo
externo é dirigida de volta ao ego: esse retorno chamamos de narcisismo secundário. A
megalomania, que é característica dos estados esquizofrênicos, irá apontar para um
afastamento da libido do mundo externo que ficará retida no ego. Freud nos diz que ela
não é uma criação nova, mas uma ampliação e amostra mais clara de uma condição
existente anteriormente. Segundo ele: ―Isso nos leva a considerar o narcisismo que
surge através da indução de catexias objetais, como sendo secundário, superposto a um
narcisismo primário que é obscurecido por influências diferentes‖(FREUD, 1914, p.91).
Haveria um primeiro momento, quando o corpo do bebê é investido auto- eroticamente,
e um segundo momento de investimento em objetos externos. Contudo, ―somente
quando há catexia objetal é que é possível discriminar uma energia sexual – a libido –
de uma energia dos instintos do ego‖ (FREUD, 1914, p.92) Assim, Birman (2006,
p.127) afirma:
Na vida mental das crianças e dos povos primitivos, encontramos traços isolados do
que seria uma megalomania: a ―onipotência de pensamentos‖ – o que confere poder de
realidade aos desejos e atos mentais – e a confiança no poder mágico das palavras,
crença que serve como princípio lógico de explicação do mundo externo. Freud nos
mostra que há uma antítese entre a libido do ego e a objetal: quanto mais uma é
utilizada, mais a outra se esvazia.
No adoecimento orgânico, a libido e o interesse do ego partilham o mesmo destino,
os investimentos libidinais são retirados de volta para o ego do enfermo e colocados
para fora quando ele se recupera. Enquanto está adoecido, os investimentos libidinais
aos objetos amorosos e ao mundo externo são retirados, concentrando-se no órgão que
sofre. Na hipocondria, por exemplo, acontece um processo mórbido de afastamento da
libido de seus objetivos, uma vez que o órgão doente não apresenta mudanças
observáveis organicamente.
Sobre a vida erótica dos seres humanos, Freud (2014) nos diz:
O ser humano teria, originalmente, dois objetos sexuais, ele próprio e a mulher que
dele cuida. Assim, ele postula que ―a existência de um narcisismo primário em todos, o
qual, em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante‖ (FREUD, 1914, p.105).
Os objetos de amor serão escolhidos de acordo com o tipo narcisista ou o tipo
anaclítico. No tipo narcisista, escolha objetal privilegiada na melancolia, a pessoa amará
o que ela própria é, o que ela foi, o que gostaria de ser, ou alguém que foi uma vez parte
dela mesma. No tipo anaclítico a pessoa pode amar a mulher que a alimenta, o homem
que a protege, bem como os substitutos dessa função que tomarão seu lugar (FREUD,
1914, p.107). O narcisismo primário infantil será refreado em detrimento das aquisições
culturais que impõem uma renúncia ao prazer e aos privilégios concedidos à criança. A
repressão, antes exercida pelo ego, será desempenhada pelo amor-próprio do ego, noção
50
essa que incluiria o investimento libidinal no ego. O narcisismo nos leva a questionar as
origens da formação do eu e sobre as condições dadas para os seus primeiros
investimentos objetais, isto é, de onde foi que eles partiram, uma vez que é preciso que
exista um eu sujeito da ação. Freud (1914) diz:
O eu, segundo Garcia-Roza (1996, p.150), ―antes de ser um agente de ligação ele é
um efeito dela. Não há eu anterior à ligação‖. Já Ribeiro (2000) irá nos dizer que essa
ação específica é criadora, ao mesmo tempo, do narcisismo e do eu. O autor irá situar a
ação específica na identificação feminina primária, que se refere à identificação precoce
com a mãe29.
Reconhecemos o aparelho psíquico como um dispositivo que tem o objetivo de
dominar as excitações, as quais podem ocasionar desprazer ou desenvolver patologias.
Para tanto, a elaboração psíquica30auxilia no escoamento das excitações e a nova ação
psíquica mencionada deve estar relacionada a essa tentativa. Os impulsos libidinais
terão o destino da repressão se entrarem em conflito com as ideias éticas e culturais do
indivíduo. Tal repressão ainda não terá um caráter intelectual: ela provém do ego, ou do
amor próprio deste, reconhece em si os padrões de exigência aos quais deverá se
submeter. Isto é, o ego fixa para si um ideal pelo qual mede seu ego real. A formação de
um ideal se torna um fator que condiciona a repressão. O que é projetado como sendo
ego ideal é o ―substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o próprio
ideal‖ (FREUD, 1914, p.111).
29
―Essa "nova ação psíquica" que é a identificação primária, na medida em que é incapaz de cobrir a
totalidade do que foi vivenciado sob a forma auto-erótica, acarreta obrigatoriamente a formação de um
resto constitutivo de um primeiro núcleo inconsciente e, consequentemente, inaugura a primeira oposição
entre o recalcado e as forças recalcantes. Esses primeiros momentos de formação do eu se confundem,
então, com um narcisismo totalmente impregnado de feminilidade, o que nos leva a pensar que não é
tanto a mulher que é narcísica por excelência, como queria Freud, mas que o narcisismo é,
originariamente, feminino por excelência‖ (RIBEIRO, 2000, pp. 47-48).
30
Ao contrário de Laplanche, preferimos o termo ―elaboração psíquica‖ ao termo perlaboração.―A
expressão elaboração é utilizada por Freud para designar, em diversos contextos, o trabalho realizado pelo
aparelho psíquico com o fim de dominar as excitações que chegam até ele e cuja acumulação ameaça ser
patogênica. Este trabalho consiste em integrar as excitações no psiquismo e em estabelecer, entre elas,
conexões associativas. (LAPLANCHE, PONTALIS, 1988, p.196)
51
O eu e as instâncias ideais
31
Como veremos a seguir, a introjeção deve ser diferenciada da incorporação, ambas resultando em uma
identificação.
53
externos nesse primeiro momento é considerado uma identificação. Ela aparece como
uma tentativa de apreensão do objeto para satisfazer o id. Será a interferência da
realidade (que demonstra que o objeto de escolha amorosa não está disponível sempre
que o sujeito o reivindicar) que irá fazer com que o ego busque formas de domesticar e
introjetar o objeto. A identificação, ou seja, ter dentro de si o que antes era externo e
muitas vezes frustrante, é uma forma de manutenção do objeto de amor. Freud (1923,
p.43) nos diz que ―pode ser que essa identificação seja a única condição em que o id
pode abandonar os seus objetos‖. Seguimos nosso raciocínio com Freud (1923, p.44):
32
Empregamos os termos ―ego‖ e ―eu‖ sem nenhuma diferença a ser privilegiada.
54
Veremos que o supereu também mantém essa ambígua posição, ele faz parte do eu
e tem uma existência separada dele. O eu é sujeito e objeto, uma parte diferenciada do
id que, também é vista por esse como objeto. O eu precisa que o ambiente (geralmente a
mãe) lhe permita acreditar que o objeto de que ele necessita para aliviar seu desconforto
e atender à sua necessidade (como o leite) poderá ser achado-encontrado sempre que
dele se necessitar, como nos mostra Winnicott (1975). A crença mágica de que se opera
com todo o poder no mundo deve ser, a princípio, reforçada para que, posteriormente, o
pequeno sujeito seja confrontado não com sua onipotência, mas com sua limitação,
incompletude, insuficiência e castração. O princípio de realidade e a interdição de um
terceiro irão impossibilitar que o pequeno sujeito mantenha o mesmo tipo de relação
que desfrutava com o objeto, período onde espera-se que haja um acolhimento do
ambiente e onde ainda não está clara a separação entre a díade mãe-bebê. É essa
separação dolorosa que irá precipitar a formação do que chamamos de ―eu-ideal‖: o
bebê buscará uma referência que indique quem ele era antes da separação ou o quê teria
garantido a relação anterior. Aquele que antes acreditava ser o único objeto de
investimento materno irá dar-se conta de que além dele, existem muitos outros, com
necessidades, interesses e desejos diferentes. O pequeno passa a observar o ambiente na
busca de um modelo ou referencial, quando então, começa a se configurar um romance
familiar, uma criação de fantasias que oferecem narrativas que expliquem o mundo e o
lugar no qual se está inserido. O sujeito cria para si um ideal que será uma referência de
comparação entre quem se é, o que se imagina ser e o que acredita dever ser, isto é,
quais parâmetros são precisos alcançar para que seja possível obter reconhecimento e
amor.
A criação do ideal do eu passa por um processo que se assemelha ao mecanismo
sublimatório: o objeto externo que não pode mais ser investido – o pai com o qual se
identifica – deverá ser elevado a um ideal, tendo em mente a injunção ―seja como seu
pai, mas até certo ponto‖, uma vez que o acesso à mãe pertence a ele. Esse processo de
identificação ao pai também envolve uma dessexualização da pulsão antes de se ter,
com o retorno da libido, a introjeção do objeto em uma instância diferente do eu – o
superego e o ideal do ego. Na literatura psicanalítica, eles ora aparecem separados, ora
como facetas de um mesmo destino de objeto. O pai, é simultaneamente o modelo
de identificação, e aquele que limita, censura e pune o sujeito.
55
O ego precisa avaliar os objetos ou conteúdos que podem ser investidos sem a
restrição de uma consciência moral. Os conteúdos que causam uma perturbação na
representação de eu que foi oferecida pelo outro – e que agora o eu faz de si – caso não
possam ser aceitos, encontrarão o destino da repressão. A especialização dentro do
próprio ego, uma forma de auto-observação, será correlata das restrições feitas pelos
33
Teremos que levar em conta a força da atividade crítica do eu desde os tempos mais iniciais e retomar
algumas das considerações de Freud que já foram feitas a esse respeito, uma vez que na teorização sobre a
primeira tópica psíquica não encontramos referências nítidas aos períodos do desenvolvimento em que se
daria essa separação entre o eu e sua instância crítica. De acordo com Figueiredo (2012), quando o outro
não puder ser introjetado de maneira a vir fazer parte do eu ele se tornará o elemento não digerível que
encontraremos no ―Supraeu‖, um superego arcaico que ainda está distante da função moralizadora e
normativa, que aparece de forma aterrorizadora e disruptiva como as vozes que assediam o sujeito. De
acordo com o autor ―as identificações que compõem o supra-eu são justamente as funções intersubjetivas
que não passaram por processos de introjeção eficazes − ou seja, foram incorporadas‖. A incorporação
aqui é entendida no sentido de elementos que não puderam ser assimilados e permanecem como um corpo
estranho interno, uma ―cripta‖, como M. Torok e N. Abraham nos falam em ―A casca e o núcleo‖ (1995).
Insistimos junto a Figueiredo e Ferenczi que o id e o superego são mais arcaicos que o ego.
56
34
O complexo de castração, aqui explicado brevemente, descreve como a criança é confrontada com
questões sobre sua própria identidade sexual e suas escolhas amorosas. Tanto o menino quanto a menina
buscarão dar respostas ao enigma da diferença anatômica entre os sexos. Segundo Freud, o menino,
tomado pela angústia de castração, irá abrir mão do seu primeiro objeto de amor incestuoso para não
sofrer a retaliação de ter seu órgão genital ―amputado‖ – como presumiu ter acontecido com as meninas.
A menina, sob a influência da inveja do pênis, sente a ausência desse órgão como um dano que ela
buscará compensar, negar ou reparar. O complexo de castração está, nos dois casos, intimamente ligado
ao complexo de Édipo. Enquanto no menino ele coloca fim ao complexo de Édipo, na menina, ele será
seu ponto de partida.
57
35
Melanie Klein observa em sua clínica com crianças que a origem do superego seria muito anterior à
proposta por Freud em 1923. O sentimento de culpa, norteador da percepção e introjeção do outro, seria
decorrente da posição depressiva, como veremos adiante.
58
é ele que promove a ligação dessa pulsão de agressão, de destruição, mesmo que para
isso uma parte do eu seja sacrificada. O superego encontra-se numa posição
intermediária entre o id e o mundo externo, reunindo em si as influências do passado e
do presente. Dessa forma, a origem do superego é pulsional36, embora suas aspirações
sejam as mais altas e distantes da vontade de satisfação imediata provinda do id. Nas
palavras de Freud (1923, p. 54): ―o combate que outrora lavrou nos estratos mais
profundos da mente, e que não chegou ao fim devido à rápida sublimação e
identificação, é agora continuado numa região mais alta (...)‖. Isto é, o ego adota os
mesmos métodos de defesa contra as exigências do mundo externo e interno e ambos o
ameaçam com a aniquilação, ―mas a sua defesa contra o inimigo interno é
particularmente inadequada‖ (FREUD, 1938, p 229). O ego, por ter sido igual ao id,
sofre com os ataques do id que permanecem como ameaças, mesmo que tenham sido
temporariamente dominados.
Freud, em ―O mal-estar na civilização‖(1930), nos diz que poderíamos
considerar que a criança desenvolva quantidades consideráveis de agressividade contra
a autoridade, geralmente pai e mãe, que irão inibir este impulso. A criança se vê
obrigada a renunciar à satisfação dessa ―agressividade vingativa e encontra uma saída
para esta situação economicamente difícil com o auxílio de mecanismos familiares‖
(FREUD, 1930, p.153). É através da identificação que a criança irá resolver esta
situação, ao incorporar a si a autoridade inatacável. É interessante percebermos como os
papéis são distribuídos nesse momento: a autoridade se transformará no superego da
criança, porém, exercerá a posse de toda a agressividade que a criança gostaria de
exercer contra a própria figura de autoridade, sendo que o ego da criança adquirirá o
papel da autoridade que foi assim degradada. Para Freud (1930, p.153), ―o
relacionamento entre o superego e o ego constitui um retorno, deformado por um
desejo, dos relacionamentos reais existentes entre o ego, ainda individido, e o objeto
externo‖. Relembramos aqui a importância das primeiras relações objetais, modelos que
serão determinantes das futuras relações intersubjetivas. O ego está a todo tempo sendo
fragilizado em suas forças e submetido a diversas exigências, vindas da realidade
externa, do superego e do id. Freud (1938, p.230) diz que:
36
Conforme afirma Marta Rezende Cardoso. In: Superego. São Paulo: Editora Escuta, 2002.
59
Estamos diante de um sério risco para o sujeito nesse momento, a ―dominação das
tensões‖, a partir de 1920, implica não só evitar o aumento ou diminuição da tensão –
observando assim o Princípio de Constância dentro aparelho psíquico. Freud nos indica
que qualquer excitação ou exigência de trabalho dentro deste aparelho pode ser
percebida como desprazer – sendo que a tendência à qual o aparelho psíquico visa é
aquela que aniquila as tensões produzidas no seu interior37. Pretendemos seguir as
consequências dessa operação no aparelho psíquico e para isso trazemos um argumento
de Freud que referencia nossa investigação:
37
A ideia de um narcisismo de morte se impõe a nós, como indicado por André Green (1988).
61
A Desfusão pulsional
38
Delouya (2000, p.130) nos lembra que ―a sublimação está presente, vinculando-se ao ideal desde o
inicio da vida como resultado da pulsão de morte na purificação do eu-prazer‖.
62
Assim, ―uma vez que tenhamos admitido a ideia de uma fusão das duas classes de
instintos uma com a outra, a possibilidade de uma desfusão – mais ou menos completa –
se impõe a nós‖ (FREUD, 1923, p.56). Entretanto, Freud (1923, p.56) nos diz que
[...] tal hipótese não lança qualquer luz sobre a maneira pela qual as
duas classes de instintos se fundem, misturam e ligam uma com a
outra, mas que isto se realiza de modo regular e de modo muito
extensivo constitui pressuposição indispensável à nossa concepção.
Foi através da noção de fusão e desfusão dos instintos que Freud pôde compreender
os fenômenos do masoquismo e do sadismo. O princípio que antes tinha como objetivo
a ausência total de excitação no aparelho psíquico é alterado pela intromissão das
pulsões de vida e se torna princípio do prazer. Isto é, o princípio do Nirvana pertencente
às pulsões de morte é modificado através da interferência das pulsões de vida e da
libido. Eros representa as exigências da vida e age sobre a tendência à inércia e à
desorganização. O princípio do prazer também se sujeita a modificações e, ao adequar-
se ao mundo externo, transforma-se em princípio da realidade. Contudo, a maneira pela
qual uma pulsão se transforma na outra não nos é clara, não sabemos o que determina a
quantidade de pulsão de morte que irá se submeter ao princípio do prazer e aquela que
permanecerá desfusionada, resistindo às mudanças.
O masoquismo se apresenta de três formas: ―como condição imposta à excitação
sexual, como expressão da natureza feminina e como norma de comportamento‖
(FREUD, 1924, p.201). Iremos nos deter sobre o último, conhecido como masoquismo
moral, onde identificamos o sentimento inconsciente de culpa em sua maior parte.
Apesar de o termo sentimento inconsciente parecer incorreto, uma vez que não falamos
em sentimentos inconscientes, este parece ser, para Freud, o melhor modo de descrevê-
lo. No masoquismo moral, observamos um afrouxamento da vinculação das pulsões, a
63
sexualidade ou libido parece estar mais afastada dos seus propósitos de obter prazer.
Entretanto, veremos que a satisfação será obtida de maneira sádica pelo superego:
O sadismo que deveria ser expresso para o mundo externo retorna contra o eu, uma
vez que o princípio da realidade e as normas culturais exigem que as tendências
destrutivas do indivíduo sejam impedidas de se realizar:
Para Freud (1924), o masoquismo moral é uma prova da existência da fusão dos
instintos e o perigo que ele apresenta reside no fato de ter sua origem na pulsão de
morte. O instinto de destruição que não pôde ser totalmente voltado para fora, atua na
destruição do próprio eu, encontrando nisso uma satisfação libidinal sádica. Desse
modo, o superego atua com severidade contra o eu, pois conhece os desejos profundos
desse. Segundo Delouya (2000, p. 132), a consequência da desintrincação pulsional é
―um acúmulo interno de agressividade ou destrutividade das pulsões de morte que, não
encontrando vias de descarga motora externa, agem a serviço do ideal e contra o eu‖.
A necessidade de punição tem como par e é explicada pelo sentimento de culpa que
surge quando os ataques do superego ao ego encontram motivos para acusá-lo.
Lembramos aqui que os desejos inconscientes podem ser sempre reconhecidos pela
instância crítica e censora que sabe tudo sobre eles, uma vez que o superego é uma
diferenciação do próprio eu. De acordo com Freud(1930, p.156), ―o sentimento de culpa
é uma expressão tanto do conflito devido à ambivalência, quanto da eterna luta entre
Eros e o instinto de destruição ou morte‖.
Ele diz:
Em ―O Ego e o Id‖ (1923, p.57), lemos que ―[...] a ambivalência é um fenômeno tão
fundamental que ela mais provavelmente representa uma fusão instintual que não se
completou‖. Nesse texto, o exemplo oferecido para pensarmos a oposição entre as duas
classes de instintos, a pulsão de vida e a pulsão de morte, é o do amor e do ódio –
polaridades de cada pulsão. A observação clínica nos mostra que o amor sempre está
acompanhado de ódio e que o ódio pode se transformar em amor e vice versa.39
Contudo, quando pensamos no mecanismo de transformação de amor em ódio,
pressupomos que existiria na mente, no ego ou no id, ―uma energia deslocável, a qual,
neutra em si própria, pode ser adicionada a um impulso erótico ou destrutivo
qualitativamente diferenciado e aumentar a sua catexia total.‖ (1923, p.59) Para Freud
(1923, p. 60),
Essa questão nos parece importante, já que a energia necessária para a transformação
do amor em ódio provém da libido dessexualizada. Vemos também como os instintos
destrutivos são menos plásticos, o que nos leva a pensar que eles buscam caminhos já
trilhados anteriormente, como seria o caso da agressividade presente no agente censor
do eu. Freud (1923, p 61) continua:
39
Klein (1937, p.347) sublinha a necessidade de trabalharmos a interação entre o amor e o ódio desde os
momentos mais arcaicos de funcionamento psíquico. A compreensão do papel desempenhado pelos
impulsos destrutivos nessa interação seria capaz de mostrar como os sentimentos de amor e as tendências
de reparação se desenvolvem em ligação com os impulsos agressivos, ou apesar deles. Retomaremos esse
ponto no terceiro capítulo deste trabalho.
65
40
A reação terapêutica negativa que tem como obstáculo o sentimento inconsciente de culpa é um fator
que ―tem de ser levado em conta em muitíssimos casos, talvez em todos os casos graves de neurose‖
(FREUD, 1923, p.66). Como as pulsões de morte agem da forma mais silenciosamente possível, talvez o
aspecto moral seja o disfarce perfeito para que a morte opere: morre-se pela honra, pelos ideais, sofre-se
por vergonha, etc...
66
As inúmeras variações dos quadros melancólicos nos impelem a uma escuta que
busque entender quais seriam os fundamentos constitucionais dessa patologia, quais os
seus modos privilegiados de defesa e de relações objetais, enfim, sua dinâmica,
economia e tópica envolvidas. Como veremos, as dimensões do outro que foram
introjetadas, identificadas e incorporadas deverão ser consideradas na composição da
problemática melancólica, uma vez que o conflito psíquico na melancolia está
localizado entre o ego e o superego. Concordamos com Lambotte (1997, p.392):
do luto: o desejo de recuperar algo que foi perdido. Trataria-se de uma perda na vida
pulsional, isto é, consistiria em luto por perda da libido. (Cf: FREUD, 1895, p.223) Os
efeitos desse processo seriam a inibição psíquica com empobrecimento pulsional e
sofrimento. Para explicar estas manifestações, Freud supõe que o aparelho psíquico, ao
se defrontar com uma grande perda da quantidade de excitação, se defende através de
uma espécie de ―retração para dentro‖ na esfera psíquica, que produz efeitos sobre as
quantidades de excitação contíguas. Como uma hemorragia interna, um
empobrecimento da excitação se instala no depósito da libido que agora está livre,
manifestando-se nas outras funções, diz Freud (1985, p.227): ―Essa retração para dentro
atua de forma inibidora, como uma ferida, num modo análogo ao da dor‖. A dor foi
considerada por ele como uma pseudopulsão, reforçando o caráter econômico de
urgência que deve ser observado nesse fenômeno.
Sobre a dor psíquica, Cintra (2000, p.62) nos lembra que na teorização freudiana o
primeiro envelope psíquico, o chamado ―escudo pára-excitação‖ foi atravessado em um
ponto, de onde parte um fluxo de excitações invadindo o aparelho psíquico, da periferia
para o centro. Contudo, a dor não virá da ruptura dessa camada protetora, mas do
acúmulo de energia interna que vem ao encontro da energia invasora para tentar
imobilizá-la através de um processo de ligação. A ligação limita o fluxo da energia
livre, buscando representações que possibilitarão a operação do processo secundário.
Esse primeiro envelope psíquico mantém num sistema fechado interno o aumento
pulsional até o ponto onde a descarga se torna necessária. A descarga pulsional só é
possível através da presença e disponibilidade do objeto. O que provocaria a dor seria o
encontro da energia quiescente interna que tenta dominar a energia livre que vem de
fora. A dor não seria decorrente do aumento absoluto de energia, mas do encontro da
energia livre com a energia mobilizada de dentro para fazer o bloqueio e a ligação da
que vem de fora. A energia que atravessa o pára-excitação deixa passar uma excitação
que dependendo da sua intensidade e natureza, produz ou o prazer de excitação da pele
e dos órgãos do sentido e motricidade ou a dor.
Anos depois, em ―Luto e melancolia‖ (1917[1915]) compreendemos que a
melancolia compartilha de várias condições externas presentes no luto. Quando ocorre o
fato de um ente querido falecer, ou um grande amor acabar, o mundo externo se torna
vazio e sem apelo, não há disposição para realizar novas atividades e as funções
orgânicas como o sono e a fome podem ficar alteradas. Essas reações não são
70
No luto normal a libido investida no objeto amoroso que foi perdido será aos poucos
desvinculada, desligada. O doloroso processo de desfazer ligações deixa o eu inibido e
desinteressado pelo mundo externo. Isso demonstra como o ego não abandona
facilmente uma posição libidinal, nem mesmo quando um substituto já está presente. A
libido que é retirada do objeto se volta para o eu e, quando terminado o trabalho do luto,
o ego fica novamente livre para investir em outros objetos. Na melancolia, além do
desinteresse e inibição, observamos uma diminuição da auto-estima que acompanha a
perda do objeto de amor. Freud (1917[1915], p.280) nos dirá que ―no caso da
melancolia, a insatisfação com o ego constitui, por motivos de ordem moral, a
característica mais marcante‖. A baixa-estima e as auto-acusações do melancólico
seriam frutos de uma ―identificação narcísica‖ com o objeto perdido, objeto
introjetado42que era ao mesmo tempo amado e odiado. ―Dessa forma, uma perda objetal
se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa
separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado por uma
identificação‖ (FREUD, 1917[1915], p.282).
O mecanismo conhecido como ―identificação narcísica‖ é um processo que visa
apreender o objeto dentro de si para que sua ausência não seja sinônimo de catástrofe. A
identificação narcísica traz consigo a relação – sempre ambivalente – que se mantinha
41
A capacidade de amar, assim como de sublimar dos melancólicos são temas que geralmente carregam
uma polêmica – já que esse trecho do texto freudiano é tomado na sua literalidade. Moreira (2002) nos
ajuda pensar este ponto. Segundo a autora, ―quando estamos melancólicos perdemos a capacidade de
amar parcialmente, ficamos na posição de desamparo dos bebês, um verdadeiro bebê melancólico, que
pede amor do tipo oral e fusional, intenso e incondicional. Mas quando saímos do processo mais
excessivo, patológico, de melancolia, podemos recuperar a capacidade de amar como adultos, como
relações de objeto, sem precisar fundir com o outro; recuperamos a capacidade de nos amara nós mesmos
também, sem fusão, guardando certa distância do outro e reconhecendo ele como objeto com existência
própria‖. (MOREIRA, 2014, comunicação pessoal)
42
A introjeção será considerada como um processo de apropriação e consequente expansão psíquica,
enquanto a incorporação será correlata da impossibilidade de assimilação do que é trazido pelo mundo
externo, pelo objeto.
71
43
Contra-investimento é um ―processo econômico postulado por Freud como suporte de numerosas
atividades defensivas do ego. Consiste no Investimento pelo ego de representações, atitudes, etc.,
susceptíveis de impedirem o acesso à consciência e à motilidade das representações e desejos
inconscientes. O termo pode igualmente designar o resultado mais ou menos permanente desse processo‖.
(LAPLANCHE, PONTALIS, 1988, pp.144-145)
72
Para Freud (Cf.: 1915, p.182), temos que considerar três elementos como pré-
condições necessárias à melancolia: a perda do objeto, a regressão da libido ao ego – e
com ela a identificação narcísica – e a ambivalência de sentimentos. Para as duas
primeiras condições deve ter estado presente uma forte fixação no objeto amado, e
contraditoriamente, a catexia objetal deve ter tido pouco poder de resistência. Sobre a
ambivalência e a identificação narcísica, Freud (1915, p.184) diz:
44
Pensaremos mais à frente em uma ambivalência primária, relacionada aos fatores constitucionais e uma
ambivalência secundária, referente às experiências reais, derivada da problemática edípica.
73
O objeto que proporciona prazer nos atrai e nós o amamos. Inversamente, se ele for
fonte de desprazer, há um esforço do eu para aumentar a distância entre si e o outro,
repetindo o modelo de fuga dos estímulos aversivos externos. Esse objeto que é repelido
é também odiado. De acordo com Freud (1915, p.160),
garantir sua permanência, e uma outra parte, que se transforma no objeto perdido, que
critica e julga. O eu, diante da necessidade de desligar-se de seus objetos de amor,
precisa efetuar um dessexualização da libido que se ligava aos antigos objetos para
depois investir em novos objetos. No entanto, seria esse o mecanismo responsável por
uma desfusão pulsional que se infiltraria deixando marcas na instância crítica desse
tempo tão arcaico?
Freud (1917[1915], p.282) nos mostra como na perturbação melancólica podemos
obter uma compreensão a respeito da constituição do eu, onde uma parte do eu se coloca
contra a outra, julga-a e a toma como seu objeto: ―Dessa forma, uma perda objetal se
transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa
separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação‖.
Lembramos que, ―no caso da melancolia, a insatisfação com o ego constitui, por
motivos de ordem moral, a característica mais marcante‖ (1917[1915], p.280).
A partir do momento em que se pode perceber a existência do objeto existe a
possibilidade de uma ferida narcísica – que poderá ser parcialmente cicatrizada com o
ideal do eu (Cf: MOREIRA, 2002). Essa ferida narcísica primordial que recorre a uma
instância superior para se conter também confere a ela poderes especiais de observação
e censura. É o superego que irá avaliar se o eu está de acordo com o ideal de eu. O
objeto, por ser um elemento externo e variar na qualidade e quantidade de seu cuidado e
presença, precisa entrar dentro de um circuito de ordenações previsíveis e capazes de
contenção. O eu, passivo e submetido às vontades tanto do objeto quanto do id, tem
como recurso a transformação da atitude passiva em ativa, atribuindo a si mesmo a
responsabilidade pelo que venha acontecer com o objeto. Como observado na
megalomania e na onipotência de pensamentos presentes nas patologias narcísicas, o
ego toma para si a responsabilidade pelos destinos dos objetos que estão ao seu lado.
Como vimos anteriormente, tanto a instância crítica quanto o sentimento de culpa são
trazidos por Freud ao longo da primeira tópica como tributários do complexo edípico. A
culpa seria o resultado dos sentimentos ambivalentes em relação ao objeto de amor que
75
45
Esse termo parece ter sido usado pela primeira vez por Octave Manonni. Ele entendia a identificação
como um processo inconsciente sendo que a sua conscientização produziria uma desidentificação. Só
seria possível saber a que se está identificado no momento em que não se está mais identificado ao objeto.
Manonni (1987/1994) chama atenção para o fato da identificação ser um tipo de pensamento que não
necessita de justificativa, pois a causa permanece sempre obscura; ela só vem a ser consciente quando o
sujeito desidentifica-se.
46
Na onipotência de pensamentos, ainda não está clara a distinção dentro e fora, eu e outro. O sentimento
de onipotência é um importante fator na estruturação do sujeito, pois é preciso num primeiro momento
acreditar que as ações do mundo externo são efeitos do próprio desejo, ou seja, é preciso que exista um
ambiente que propicie ao pequeno sujeito a ilusão de que ele cria os objetos da realidade.
76
amor. As auto-recriminações surgem também como uma forma de punição dessa culpa
por ter feito o outro desaparecer. Como ele não sabe por quê, é ao seu corpo e suas
características pessoais que recorre, buscando a origem do que poderia ter repelido a
mãe, justificado o abandono47. Um dos maiores sofrimentos do melancólico é sentir que
ele não teve nenhum poder de influência sobre a decisão do outro, que ele não foi
motivo para a felicidade da mãe nem foi capaz de despertar seu amor (um amor
―suficiente‖), mas o contrário disso. Vertzman (2002, p.74) nos ajuda a pensar a culpa:
47
Freud (1923) nos conta como na reação terapêutica negativa estaria em jogo um sentimento de culpa
tão poderoso que impediria o paciente de se beneficiar de sua melhora. Freud sempre fazia menção ao
―complexo melancólico‖ para tentar compreender esse fenômeno clínico – a reação terapêutica negativa –
que subverte todas as noções anteriores sobre a teoria e a técnica.
77
inversão de papeis: temendo o afastamento e a morte daquele que é responsável pelo seu
cuidado, o bebê passa a se adequar ao ambiente que o acolhe, e não o contrário – cujo
corolário seria a ideia da ―mãe suficientemente boa‖. A progressão traumática de que
nos fala Ferenczi (1933, p.103) é um modelo de entendimento do destino que virá a ter
essa composição subjetiva especial, que parece ser composta somente de id e superego.
Essa compreensão será retomada na análise da obra de Ana C.
O ódio, não podendo ser dirigido ao exterior, retorna para o eu ameaçando-o de
desintegração. Essa ameaça de aniquilamento geraria as ―agonias impensáveis‖ deque
nos fala Winnicott, as quais têm a cisão como mecanismo de defesa básico para
enfrentá-las. O ódio direcionado ao interior do psiquismo não funcionaria apenas como
a voz que desautoriza, recrimina e dilacera o eu, mas também como uma força cuja
potência desfaz as ligações construídas, desconstrói unidades e pode contaminar o
psiquismo – que passa a convocar as lembranças penosas e transformar em fragmentos
vexatórios a memória e a narrativa da história de si construída.
Pensamos que o sentimento inconsciente de culpa que está na base da resistência
mais poderosa ao tratamento analítico seria tributária do primeiro momento de
separação, da culpa arcaica relacionada à possibilidade de destruição do outro, um que
se diferencia do eu, mas faz parte do mesmo. Sabemos que a diferenciação é um
processo lento que irá envolver o já mencionado mecanismo de identificação de forma
que esse outro seja metabolizado e passe a compor os traços diretrizes do eu. Contudo,
iremos perceber que esse mecanismo de introjeção inclui o risco de uma ―incorporação‖
do objeto externo, que será mantido encapsulado, enquistado numa ―cripta‖ (TOROK,
ABRAHAM, 1987)48 que impede sua movimentação, a transformação do estranho em
familiar. Compreendemos que a tentativa de supressão do ódio que seria responsável
tanto por uma retaliação do objeto quanto pela distinção necessária entre o eu e o objeto
externo produz uma dinâmica delicada.
48
De acordo com os autores (TOROK, ABRAHAM, 1987, p.239), ―na tópica, essa cripta corresponde a
um lugar definido. Não é nem o Inconsciente dinâmico, nem o Ego da introjeção. Seria antes como um
território encravado entre os dois, espécie de Inconsciente artificial, instalado no próprio seio do Ego. A
existência de tal túmulo tem por efeito obturar as paredes semipermeáveis do Inconsciente dinâmico.
Nada deve filtrar para o mundo exterior. É ao Ego que retorna a função de guardião do cemitério. Ele se
mantém plantado ali para fiscalizar as idas e vindas da família próxima que pretende – por razões diversas
– ter acesso ao túmulo. Se ele consentir em introduzir aí os curiosos, os prejudiciais, os detetives, será
para lhes poupar falsas pistas e túmulos fictícios. Aqueles que tem direito à visita serão objetos de
manobras e de manipulações variadas. Eles também serão constantemente mantidos presentes no interior
do Ego. Vê-se que a vida de um guardião de túmulo – por ter que compor com essa multidão diversa –
deve ser feita de malícia, de astúcia e de diplomacia. Seu lema: para esperto, esperto e meio‖.
79
A poeta dizia que as cartas e biografias são mais arrepiantes que a literatura, ela
manifestava um desejo de que suas cartas fossem publicadas. Em outro momento, em
março de 1977 termina uma carta para Clara Alvim, outra professora de literatura de
quem fica amiga, assim: ―Desculpa o estilo – morro pela boca, por essa boca. Me sinto
triste e a palavra vilipendia minha tristeza. Me escreve? Beijos‖(CÉSAR, 1999b, p.25).
O significado de ―vilipendiar‖ é ―tratar alguém com desprezo, considerar (algo ou
80
alguém) como vil, indigno, sem valor‖ (HOUAISS, 2001, p.2662). A palavra
recrudesceria a tristeza da escritora? Retomaremos essa discussão no capítulo 5.
Será que o resultado da ambivalência primária estaria mais próximo da vergonha e a
ambivalência secundária estaria mais próxima da culpa? Florence (1994, p.131) aponta
que a melancolia está ligada aos modos mais arcaicos de ambivalência, isto é, ―a
identificação melancólica reconduz aos modos mais arcaicos da ambivalência, cliva o
eu em uma parte sádica, identificada com o objeto, e em uma parte perseguida
pela fantasia do objeto‖, o que nos leva a entender a rigidez do ideal melancólico. Sobre
esse ponto Vertzman (2009, p.171) contribui dizendo que:
Uma das diferenças centrais entre vergonha e culpa diz respeito ao tipo de reparação
que cada uma convoca: enquanto a culpa deve ser reparada e expiada, a primeira não
consegue fazê-lo. Consideramos diferentes tipos de sublimações, as que partem da
tentativa de reparação da vergonha e as que buscam reparar a culpa. Esta última estaria
na origem de algumas sublimações que mantêm uma relação muito próxima entre o
81
objeto perdido que deveria ser abandonado e o objeto que será recriado, reinvestido na
sublimação49, o que encontramos na poesia de Ana C.
O sentimento de vergonha é aterrador após o acesso melancólico. Na fase maníaca,
a fusão do eu com o superego, a liberação da censura e da libido permitem ao Eu fazer
coisas que antes estavam fora de sua possibilidade, estavam inibidas, mais que
recalcadas. Dar-se a ver fazendo o que o superego proíbe, ser olhado sem os
mecanismos de defesa usuais – a culpa, a tristeza, a inibição – potencializa o sentimento
de vergonha, que parece não ter expiação. O sofrimento do eu, o seu esmagamento, é
visível pela apatia e desespero que aparecem quando a fase maníaca passa. A
profundidade da depressão pós-crise pode, muitas vezes, ser maior que o estado anterior
que teria precipitado a defesa maníaca, um processo que se retroalimenta e aprisiona o
sujeito que perde cada vez mais a capacidade de construir narrativas e dar sentido à
vida. O adoecimento físico aparece como uma camuflagem dessa vergonha que irá se
sobrepor à culpa inconsciente, a qual gera a necessidade de punição do eu pelo
Superego. Nos trabalhos de Vertzman (2009, 2012) a noção de perdão aparece como
tentativa de mitigar essa vergonha.
Pensamos que no melancólico existe uma dupla fonte de irrupção pulsional, tanto a
que vem do próprio trabalho de desinvestimento do objeto como também da ferida
deixada pelo objeto perdido. Cintra (2000, p.140) nos diz que:
49
O que nos levará a fazer uso da compreensão kleiniana que entende a sublimação como um processo
que está diretamente relacionada à necessidade de reparação.
82
Portanto, o trabalho do luto, ele mesmo, poderia ser contaminado pelo trabalho
subreptício da pulsão de morte − o que nos remete à ―pura cultura da pulsão de morte‖
encontrada no superego melancólico − superego reconhecidamente tirânico e sádico.
Perguntamos uma vez mais, seria esse excesso mortífero o que comprometeria a
constituição ―plena‖ do eu e impediria o sujeito de se apropriar dos outros recursos
oferecidos pelo ambiente? Veremos que segundo a interpretação de autores como
Rosenberg e Lambotte, o eu do melancólico teria sido presa das pulsões de morte que
não foram suficientemente neutralizadas por falta de uma energia erótica em quantidade
suficiente. O ferimento narcísico não torna possível o represamento da libido que escoa
pelo buraco vazio que aparece no lugar da imagem integrada do corpo que deveria ter
sido oferecida pelo outro. É Lacan quem irá nos oferecer as ferramentas para pensar a
função do olhar e do espelhamento na constituição subjetiva.
A contribuição de Lacan (1949) sobre o estádio do espelho nos auxilia a pensar como
se daria a formação do ego e a apropriação da identidade através do olhar que um
terceiro oferece à criança. Segundo Lacan (1949, p.100), o estádio do espelho
Como nos aponta a autora, o eu ideal desses pacientes está contaminado por uma
verdade que aparece cedo demais, a verdade de que a relação com o Outro 50 é um logro,
um engano; o sujeito melancólico não caiu na ilusão vital da relação ao Outro que lhe
teria atribuído uma identidade. Essa relação estará refletida na maneira como esse
sujeito se relacionará com o mundo:
As queixas colocadas tais como: não vale a pena fazer o que quer que
seja, já que não há sentido, não há verdade, etc., e que se justificam
num primeiro nível a apatia melancólica, denunciam sem dúvida o
efeito catastrófico do logro de que o sujeito foi vítima e pelo qual
recusa agora se deixar tomar. Mais ainda, se esta recusa traduz, como
vimos, o único modo de defesa que lhe foi possível elaborar, é de um
verdadeiro traumatismo que se trataria para o melancólico, de um
modo de reação estrutural ao qual ele não podia escapar, não mais que
o podia modificar [...] (LAMBOTTE,1997,p.391).
50
O ―grande Outro‖ é a própria referência ao simbólico, uma noção ―concebida como um espaço de
significantes que o sujeito encontra desde seu ingresso no mundo [...]. O Outro vai se tornar mais
especificamente o lugar ‗onde se constitui o eu que fala‘. [...] O movimento do desejo procede da
articulação do sujeito com o Outro e do Outro com o sujeito, razão por que o lugar do Outro se encontra
como lugar do único possível da verdade‖. (KAUFMANN, 1996, pp.385-387)
84
51
Green (1988) nomeou como a "Mãe Morta" e ao que Lacan chamou de "suicídio do
objeto"52. A criança percebe que seu objeto de investimento se tornou opaco e sem vida,
é um morto, um nada que apareceu no lugar de onde vinha o cuidado e o afeto. O efeito
é de uma verdadeira catástrofe narcísica, de uma ferida no eu que não sabe mais qual é o
seu referencial. O pequeno sujeito irá então buscar mecanismos defensivos para não
sucumbir à dilaceração de sua imagem corporal e à hemorragia libidinal que escoa pela
ferida narcísica.
Lambotte (1997) nos diz ainda que não só o sujeito efetua uma identificação
narcísica, mas o sujeito identifica-se com o nada que ficou no lugar do objeto de amor,
identifica-se com o próprio movimento de partida do objeto. As auto-acusações e o
discurso do ―não ser nada‖ podem ser entendidas agora como título da identidade desses
sujeitos que sabem, mais do que todos, sobre o logro da identificação necessário para a
constituição da vida. Esses sujeitos não param de denunciar essa verdade que lhes
apareceu cedo demais, que as relações estão fadadas, que a vida é só um jogo, e que a
morte é mais próxima do que se imagina. O discurso niilista vem como um anteparo a
esses sujeitos que buscam se proteger a todo tempo de uma nova catástrofe e, por isso,
antecipam o término de suas relações e se mantêm mais afastados do mundo, embora o
veja com uma lucidez mortífera.
O recurso que esses sujeitos possuem é o da negatividade, o de acreditarem que nada
é para eles, que nada vale a pena, que as coisas não fazem sentido. A negatividade do
melancólico muitas vezes é aproximada ao mecanismo descrito por Freud como
(Verleugnung), o desmentido ou desautorização – típicos da perversão. O melancólico
não deixa de perceber as diferenças na realidade (a diferença anatômica entre os sexos,
51
―A transformação na vida psíquica, no momento do luto súbito da mãe que desinveste brutalmente seu
filho, é vivida por ele como uma catástrofe. Por outro a lado, porque sem nenhum aviso prévio o amor foi
repentinamente perdido. O trauma narcisista que esta mudança representa não precisa ser longamente
demonstrado. É preciso, no entanto, sublinhar que ele constitui uma desilusão antecipada e que provoca,
além da perda de amor, uma perda de sentido, pois o bebê não dispõe de nenhuma explicação para dar
conta do que aconteceu. É claro que considerando-se como centro do universo materno, ele interpreta essa
decepção como a consequência de suas pulsões para com o objeto.[...] Depois da criança ter tentado uma
vã reparação da mãe absorta por seu luto, que lhe fez sentir a medida de sua impotência, depois de ter
vivido a perda do amor da mãe e a ameaça da perda da própria mãe e que lutou contra a angústia através
de diversas maneiras ativas, entre elas a agitação, a insônia ou os terrores noturnos, o Eu vai pôr em ação
uma série de defesas de outra natureza. A primeira e a mais importante será um movimento único com
duas vertentes: o desinvestimento do objeto materno e a identificação inconsciente com a mãe morta‖.
(GREEN, 1988, p.248 e 249)
52
Essa ideia aparece no seminário sobre a transferência, onde lemos: ―um remorso de um certo tipo,
desencadeado por um desenlace que é da ordem do suicídio do objeto. Um remorso, portanto, a propósito
de um objeto que entrou, de algum modo, no campo do desejo e que, por sua ação, ou por qualquer risco
que correu na aventura, desapareceu‖ (LACAN, 1961/1992, p. 380).
85
por exemplo), o mecanismo que ali reconhecemos assemelha-se ao ―eu sei, mas, mesmo
assim ...‖ , que nos explica Mannoni (1973). O tipo de desmentido ou recusa que
aparece no discurso melancólico é o de que as coisas do mundo existem, mas nenhuma
delas lhe diz respeito.
A melancolia coloca em primeiro plano o Eu, esta instância que representa o sujeito e
é responsável pela mediação entre seus conteúdos internos e a exigência da realidade
externa. Dentre as maneiras que o melancólico encontra para lidar com sua particular
composição subjetiva estão os mecanismos defensivos conhecidos como inibição,
negativismo, a identificação ao nada, o masoquismo moral, a sexualização do
pensamento, a mania – além, é claro, da identificação narcísica.
Vemos como o complexo melancólico aciona defesas que vêm em auxílio desse eu
que se transformou e é o alvo de uma ―pura cultura da pulsão de morte‖. A instância
crítica que acusa o eu precisa ser calada, é necessário reinvestir nos objetos externos e
liberar os canais de fluxo da libido. A chamada ―virada maníaca‖, a qual muitas vezes
acompanha a melancolia diz respeito a essa tentativa precária de sobrevivência do eu. O
que encontramos na mania é o pólo oposto da melancolia, onde a realidade externa é
superinvestida, todos os objetos do mundo externo (e interno) têm o potencial de se
desdobrar em múltiplos sentidos e a energia dispensada ao eu para suas atividades
parece ser ilimitada. As censuras são diminuídas, novos arranjos são experimentados,
antigos ideais e projetos são retomados e reinvestidos. De acordo com Freud (1933
[1932], p.80): ―o ego liberado, maníaco, permite-se uma satisfação verdadeiramente
desinibida de todos os seus apetites. Aqui estão acontecimentos ricos em enigmas não
solucionados‖. É interessante para nós o fato de que o mais importante trabalho de
tradução de Ana Cristina César foi o poema de Katherine Mainsfield chamado ―Bliss‖,
palavra que se refere ao êxtase que dá o tom da mania.
Na crise melancólica vemos o supereu se tornar um complemento do eu totalmente
distinto, tratando-o como puro objeto, enquanto na mania, de maneira inversa,
encontramos uma fusão do eu com o supereu, que se tornam uma instância única;
86
53
Pensamos que a auto-recriminação, a auto-depreciação característica da melancolia pode adquirir várias
"máscaras". Poderíamos reconhecer uma auto-depreciação nos sujeitos que anulam o seu desejo, seja
porque acreditam que o seu desejo é mortífero para os outros ou porque não acreditam ser possível haver
87
algo que valha a pena (no que escutamos por trás, será que o sujeito não merece nada, ou só merece o
nada?). Talvez não tenhamos que nos ater nas auto-depreciações literais do sujeito, cuja caricatura seria o
auto-flagelamento.
88
A diferença entre a ilusão e o logro ―está notadamente no engano, pela palavra ou pelo gesto, de uma
54
sedução que consiste em dar ao falso a aparência do verdadeiro. O logro é desta ordem. Da mesma forma,
o sujeito melancólico não pára de denunciar o logro e, em primeiro lugar, o logro da identidade na medida
em que ele ―sabe‖ a ilusão da relação ao Outro‖. (LAMBOTTE, 1997, p.392)
90
para o ―suicídio do objeto‖, uma última tentativa de representação daquilo que foi
vivido na primeira infância. Encontramos raciocínio semelhante também em Ferenczi
(1934/2011, p.127, grifos do autor) 55:
55
Kupermann em seu artigo ―A progressão traumática‖ (2006) nos esclarece um pouco mais sobre a
leitura ferencziana: ―Em ―Reflexões sobre o trauma‖, Ferenczi ilustra a clivagem psíquica como a reação
do ―homem abandonado pelos deuses‖, que ―escapa totalmente à realidade e cria para si um outro mundo
no qual, liberto da gravidade terrestre, pode alcançar tudo o que quiser‖ . Cria-se, dessa maneira, um anjo
da guarda desencarnado que virá em socorro do sujeito traumatizado pelo isolamento a que se viu
submetido. Porém, no limite, essa saída poderá conduzir ao suicídio, já que anjos da guarda tendem a se
mostrar, mais cedo ou mais tarde, impotentes.
92
que Ferenczi observou como o efeito nocivo de um amadurecimento precoce, não esteja
distante do que estamos descrevendo: um desvio na rota do desenvolvimento psíquico
da criança que teve que tornar-se sábia para cuidar de si e da mãe que não dispõe de
recurso psíquico para a maternagem. Sobre essa verdade que o melancólico chega perto
demais, Kupermann (2008, p.153) nos lembra com Ferenczi que:
A problemática que estamos descrevendo nos permite pensar que a relação entre a
escritora Ana C. e sua obra traz a marca dessa divisão.
Na melancolia observa-se que o estilhaçamento do eu ideal faz com que sujeito
forme um ideal todo-potente, impossível, em relação ao qual estará sempre em
defasagem, em déficit, oferecendo-se submissamente aos ataques do superego, das
vozes que o acusam, que o humilham e massacram. Ferenczi (1990, p. 143) nos diz que,
Tanto a clínica do luto quanto a própria concepção de trabalho de luto parecem não
nos oferecer todas as ferramentas para pensarmos o problema da melancolia. A ideia de
um ―trabalho de melancolia‖ nos é cara ao empreendermos a busca de uma
compreensão mais específica do problema. Sob os auspícios dos teóricos anteriormente
mencionados iremos, a seguir, buscar em Rosenberg (2003) noções que iluminarão os
aspectos obscuros que fazem parte da constelação de causas e efeitos da melancolia.
O acesso de melancolia seria uma crise que tem início com um aumento notável da
raiva e do sadismo antes escamoteados pelo investimento ―narcisista-idealizante‖ do
objeto depois da perda do objeto amoroso. Ora, se como vimos, a sublimação depende
de uma força agressiva, de uma destrutividade para ocorrer, pensamos que este aumento
da raiva e do sadismo melancólico possa sofrer também a interferência do processo
sublimatório em si.
De acordo com Rosenberg (2003), através da introjeção-identificação o eu é
convocado a usar sua própria libido, sendo que ele irá, ao mesmo tempo, – ao se
oferecer como objeto de amor ao isso – receber um aporte libidinal maior por parte
deste último. O que, em última instância, decidiria o êxito ou a falha do trabalho de
melancolia é a balança econômica entre o que se ganha e o que se perde. O problema é
que, a libido a mais que vem do id pode servir para aumentar a força do superego,
aumentando seu sadismo contra o eu – lembramos que o supereu tem suas raízes no id,
o que complica ainda mais a dinâmica. Ademais, o eu, estando identificado à parte má
do objeto, gasta ou perde esta energia com seu próprio masoquismo; e ainda, o eu, ao
ser objeto de investimento de satisfação do id, tem que se submeter a ele, tentando
atender a suas exigências de satisfação imediata, gastando novamente energia para
construir defesas contra esse novo vínculo. Desse modo,
56
A ―introjeção: parece-nos ser um processo correlativo à projeção que faz com que o eu abrigue em si
mesmo aquilo que foi introjetado e que pode ser a qualquer momento reprojetado sem que o eu seja, ele
próprio, profundamente modificado por isso. [...] A identificação é apenas um introjeto abrigado no eu;
ela é uma transformação, uma remodelagem do próprio eu a partir do modelo do objeto.[...] sendo que
essa remodelagem do próprio eu pode se tornar, em alguns casos, um traço de caráter definitivo do eu‖.
(ROSENBERG, 2003, p.146)
57
Pensamos aqui numa ferida que é reaberta incessantemente e que solicita um contra-investimento
extraordinariamente elevado. ―O complexo da melancolia se comporta como uma ferida aberta, de todos
97
A relação entre a reintrincação pulsional, ou a refusão pulsional, nos leva então aos
primeiros momentos da constituição subjetiva. Acreditamos que a distensão do tempo
produzida por uma necessidade que não foi atendida e deixou o pequeno sujeito no
desamparo, chegando a produzir nele um sentimento de desesperança, deixaria um traço
marcante sobre o qual encontraremos um trilhamento mais profundo que aquele
os lados atrai energias de investimento (que chamamos de ―contra - investimentos‖ no caso das neuroses
de transferência) e esvazia o Eu até o completo empobrecimento; com facilidade pode se mostrar
resistente ao desejo de dormir do Eu. Um fator provavelmente somático, que não se explica de forma
psicogênica, apresenta-se na atenuação que costuma ocorrer nesse estado depois que anoitece. Ligada a
essas observações está a questão de se não bastaria uma perda no Eu, sem consideração do objeto, para
produzir o quadro da melancolia, e se um empobrecimento tóxico direto da libido do Eu não poderia
resultar em certas formas de doença. (FREUD,1915[1917/2010, p.186)
58
Freud em ―O problema econômico do masoquismo‖ (1924) nos diz que a pulsão de morte é em grande
parte emanada para o exterior, mas uma outra parte não participa do deslocamento para o exterior, é nela
que devemos reconhecer o masoquismo erógeno.
98
produzido pelas marcas de experiências satisfatórias. Essa dimensão que será explorada
mais a frente. A pulsão de morte terá mais território do que a de vida, uma vez que o
masoquismo de vida teria tido que intervir numa proporção diferente àquela que
veríamos em outros tipos de constituição subjetiva. A desfusão pulsional marca, desde o
início, esse psiquismo, fazendo com que as ligações se tornem mais fracas e o medo da
perda iminente. A pulsão de morte, que não se transformou em grito e choro – não tinha
esperança suficiente para emitir o chamado –, foi silenciada, habitando para sempre um
núcleo de desespero calado que pode, a qualquer momento, ser revivido. O paradoxo tal
qual destaca Rosenberg (2003, p.188) é que, ―quanto mais a pulsão de vida é gasta
defensivamente em um esforço de auto-conservação, mais diminui ou esgota-se sua
capacidade de alimentar um movimento progressivo-expansivo, que é o único que pode
conservar, a longo prazo, a vida‖.
Não há uma intrincação nem desintrincação absolutas e não se trataria de uma
mistura que transformaria as pulsões em uma só. Sabemos que é a possibilidade de
desintrincação que garante a continuidade da vida, a diversidade e a variedade. Freud
(1940[1938],p.174) nos diz que esse acordo e esse antagonismo das duas pulsões
fundamentais conferem justamente aos fenômenos da vida toda a diversidade que lhes é
própria. O interessante é que a intrincação pulsional sem intermédio do objeto é
impossível: ―uma união-fusão direta das próprias pulsões é incompatível com sua
heterogeneidade. Seu antagonismo, aliás, só pode ser revelado no terreno do objeto‖.
(ROSENBERG, 2003, p.161) De acordo com o autor, é em um terceiro terreno de
encontro – com exceção do masoquismo erógeno primário, da problemática do
narcisismo primário e da constituição do eu primário – que a libido tem como tarefa
tornar inofensiva a pulsão de morte.
Abraham (1911/1970, p.41), mesmo sem possuir o conceito de narcisismo, nos
oferece uma sofisticada explicação do fenômeno:
59
É interessante a proposta do autor sobre o investimento homossexual ser uma proteção, uma defesa
contra a melancolia: ―A comunidade do tipo de investimento narcisista entre homossexuais e os
melancólicos faz com que a homossexualidade possa representar uma defesa contra a melancolia. Mas ela
pode representar mais do que isso: parece-nos que faz parte do tratamento do melancólico que a
homossexualidade (manifesta ou não) possa representar o eixo pelo qual podemos fazer evoluir o tipo de
investimento narcisista para um investimento objetal propriamente dito. A homossexualidade sendo, na
análise, uma das vias reais da regressão ao investimento de objeto ao narcisismo, ela pode também ser a
via de ―retorno‖, a via de objetificação do tipo de investimento. (ROSENBERG, 2003, p. 132)
100
A identificação irá oferecer a saída para o eu que fica imobilizado entre duas
impossibilidades, a de desinvestir o objeto e a de continuar a existir. Conhecemos a
101
2.4.1 A clivagem
O escritor e filósofo francês Blanchot afirma que ―o artista mais talentoso, cada
vez que se empenha numa nova obra, fica desamparado e como que privado de si
mesmo‖ (BLANCHOT, 1984, p. 142). De acordo com Kupermann (2006), será a
emergência do abandono o que irá causar a chamada ―confusão de línguas‖ 60 entre os
adultos e a criança, fazendo com que a última, se desamparada, seja obrigada a se haver
com o enigma que viria com a culpa que é transmitida pela linguagem própria dos
adultos, a linguagem da paixão. Em suas palavras:
60
Ferenczi (1933/1984) insiste que o importante é que a criança, ainda com uma personalidade em
desenvolvimento, ao invés de se defender, introjeta aquilo que a ameaça. Para o autor, a época da
identificação, referida por Freud, é um estágio de amor objetal passivo, ou o estágio da ternura. Neste
estágio somente ocorreriam características de amor objetal na fantasia, pois, por mais que as crianças
imaginem-se ocupando o lugar de um progenitor, elas não poderiam ir além do estágio da ternura. Se
nesta fase um adulto impõe à criança outra forma de amor que elas não desejam e nem podem concretizar,
um amor objetal erótico, ocorre a confusão de "línguas" entre criança/adulto‖. (PINHEIRO, 1996, p. 52).
103
De acordo com Rosenberg (2003, p.169), a lógica de criação do supereu não estaria
muito distante daquela que encontramos na clivagem:
O grau extremo de desintrincação que ainda é compatível com a vida parece ser a
clivagem de objeto61 e a clivagem do eu. A clivagem é uma decomposição da entidade
que conhecemos como ―eu‖, um corte, uma fenda – que corresponderia a uma das
formas mais extremadas da ação da pulsão de morte no interior do aparelho psíquico.
Essa desintrincação pulsional
61
A clivagem do objeto é um ―mecanismo descrito por Melanie Klein e por ela considerado como a defesa
mais primitiva contra a angústia: o objeto, visado pelas pulsões eróticas e destrutivas, cinde-se num
―bom‖ e num ―mau‖ objeto, que terão então destinos relativamente independentes no jogo das introjeções
e das projeções. A clivagem do objeto opera particularmente na posição paranóide-esquizóide, em que
incide sobre objetos parciais. Reencontra-se na posição depressiva, em que incide então sobre o objeto
total‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1988, p.144).
104
O que iremos ver é que a identificação pela regressão narcisista não leva a uma
tomada de consciência verdadeira. Tanto no trabalho de luto quanto no de melancolia o
objeto morre enquanto tal. Segundo Rosenberg (2003, p.140)o investimento narcisista
de objeto ―estando ligado à idealização do objeto, no melancólico certamente, essa
105
A relação do sadismo superegóico aparece em sua maioria das vezes como um efeito
da introjeção das vozes parentais, o que poderia levar à suposição de que o tratamento
dispensado à criança nesses casos sempre aconteça sob a égide de alguma forma de
violência parental. Contudo, iremos perceber que, em diversos casos, que o ambiente
externo cuidou para que tudo se passasse bem para aquele bebê que representa o
narcisismo reeditado dos pais. Como Freud (1914) nos diz, à ―Majestade o bebê‖ são
dadas as condições que muitas vezes os pais não tiveram na infância, sendo que estes
procuram escapar ao destino de reproduzir, com o filho, o que os seus próprios pais
fizeram com eles. O dramático será perceber que, mesmo com todo o cuidado e atenção
dos pais para fugir às determinações familiares o filho pode, ainda sim, padecer de um
sofrimento narcísico, trazendo à tona o que é estranhamente familiar. Lambotte (2000,
p.72) nos diz que
Podemos pensar aqui em uma identificação que acontece entre o superego dos pais
com o superego dos filhos, o que os levaria a reencenar os conflitos paternais que tanto
se buscou controlar ou superar. Veríamos assim que uma transmissão transgeracional do
trauma poderia representar uma faceta da compulsão à repetição e da neurose de
destino. A ―escolha da neurose‖ nesses casos seria ainda menos livre, quase uma
contradição entre termos.
Daremos prosseguimento ao nosso trabalho, trazendo a contribuição trazida por
Klein (1940) sobre o período arcaico de constituição do ego, demonstrando que a
elaboração de uma ―posição depressiva‖ é central a todo desenvolvimento psíquico
humano. Lambotte (1997) também aponta a necessidade de se investigar o que ela
107
(CÉSAR,2008,p.120)
possam destruir o seu objeto de amor, ou seja, ―objeto bom‖. Portanto, a situação
primordial para a análise dos sentimentos de amor e de ódio é a relação do bebê com a
mãe, uma vez que ela é simultaneamente o primeiro objeto de amor e de ódio do bebê.
A criança ama a mãe quando ela a alimenta, alivia sua fome e oferece o prazer sensual
que é obtido pela estimulação da boca pelo seio. A gratificação que é assim percebida
constitui parte essencial da sexualidade da criança e é sua expressão inicial. De maneira
oposta, quando o bebê sente o desconforto da fome, não tem seus desejos e
necessidades físicas atendidas, ou quando sente dor, sentimentos de agressividade e
ódio surgem ao mesmo tempo em que o bebê é tomado por impulsos de destruir a
mesma pessoa que é objeto de todos os seus desejos. A criança ainda não sabe que o
objeto contra o qual ela nutre ambos sentimentos é o mesmo. A partir do momento em
que essa compreensão se dá, ela se vê compelida a reparar os danos que pode ter
causado ao objeto amado. O sentimento de culpa surge, nesse panorama, onde
acontecem as primeiras atividades mentais reconhecidas como pensamento imaginativo
e na construção da fantasia que acompanha os sentimentos e vivências do bebê. O
mundo interno ―seria o lugar dos objetos do superego que, por outro lado, representam
dentro do psiquismo as funções intersubjetivas exercidas pelos objetos primários‖
(FIGUEIREDO, 2012, p.257).
Conforme o pensamento kleiniano (1937, p.389) as fantasias destrutivas possuem
uma equivalência a verdadeiros desejos de morte. Isto é, para o bebê, é como se aquilo
que desejou nas suas fantasias realmente tivesse acontecido, o que tem consequências
importantíssimas para o desenvolvimento do eu, uma vez que é como se ―realmente
tivesse destruído o objeto de seus impulsos destrutivos e continuasse a destruí-lo‖. O
sujeito teme uma retaliação, pois acredita que as armas empregadas para destruir o
objeto também se voltam contra si mesmo.
O bebê irá buscar se defender dessas fantasias destrutivas com fantasias onipotentes
de caráter restaurador, entretanto, o medo de ter destruído o objeto do qual mais ama e
depende não consegue ser eliminado. Esses conflitos básicos afetam profundamente a
força da vida emocional e o desenvolvimento do indivíduo adulto. Segundo a autora
(KLEIN,1940, p.394):
pesados para uma criança suportar. Uma vez tornados menos intensos e mais fáceis de
controlar, o desejo de fazer a reparação pode se expressar construtiva e criativamente.
Essa possibilidade também pode ser observada na análise de adultos. Em ―Uma
contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos‖, ela nos diz que:
reparação, ela poderá ser dispensada da sua função narcisante. Contudo, essa separação
também pode gerar a sensação de estranho que o duplo traz. Kofman (1996, p.140) nos
diz que a arte seria um duplo, e como todo duplo ele aparece para preservar ou defender
o original, mas num segundo momento, ele se torna aquilo que é capaz de destruí-lo, ele
se torna o representante da morte:
[...] parte da dificuldade na arte é que ela deve satisfazer tanto o anseio
por um objeto ideal e por um self fundido com esse objeto como a
necessidade de restaurar um objeto inteiro realisticamente percebido,
uma mãe superada não fundida com o self. Adrian Stokes sugere que
o sentimento particular de ser arrastado para dentro de uma obra de
arte e nela ficar envolvido contém elementos da fusão pré-depressiva
com o objeto ideal. Mas o artista também tem de emergir disso para
ser de algum modo criativo.
A autora também irá fazer uma análise sobre Richard Holmes, um escritor de
biografias – que nos é muito útil para pensar a dimensão autobiográfica na obra de Ana
C. Ele irá descrever o processo de escrever uma biografia
biografia como algo que tem dois estágios principais. O primeiro deles
é o relacionamento ficcional vivo e uma identificação profunda, uma
forma de identificação que ele chama também de ―auto-projeção‖. Ele
diz que, em certo sentido, isso é um estado mental pré-biográfico, pré-
literário, que é motivação essencial para seguir os passos de alguém.
(In: SEGAL, 1993, p. 108).
(SEGAL, 1993. p. 108). Ou seja, até mesmo para conseguirmos falar sobre a pessoa a
ser biografada, é preciso, depois da identificação com ela ou sua obra, uma
desidentificação. Para esse biógrafo,
Desse modo, por mais que busquemos os dados biográficos de Ana C., sabemos que
a nossa leitura envolve uma construção, que foi facilitada pelo efeito que sua poesia nos
causou, isto é, sabemos que a obra de arte não se resume ao artista.
Concordamos com Segal (1993, p. 104) que, ―é um paradoxo que a obra do artista
seja nova e, no entanto, surja da ânsia de recriar ou restaurar. Esse paradoxo é inerente
ao simbolismo‖. Como sabemos por Freud (1908), o artista é um devaneador, mas ele
volta à realidade externa, nunca a deixa inteiramente. Segal (1993, p.105) irá falar
sobre a diferença entre o artista e o artesão:
―Interpretação dos sonhos‖ (1900) de Freud teria começado a ser escrita por volta dessa
idade e Klein também se torna analista nesse período. Assim, a autora considera que ―a
criatividade artística é uma maneira de expressar e elaborar as ansiedades da posição
depressiva. Sugiro, também, que isso depende da aceitação da própria mortalidade‖
(SEGAL, 1998.p.136).
Seguiremos a indicação de Segal e iremos pensar a relação da melancolia e da
sublimação com o tempo. Antes, porém, falaremos um pouco sobre algumas
compreensões winnicotianas necessárias para o desenvolvimento de nosso argumento.
“Seu olho enxerga, mas seu corpo não.” Você não reparou ainda que
daqui não apago o desejo escuro, a cara metade do meu rosto, de fio
a pavio com furor de luta preso numas mãos bem brancas.
Ana C. (1998, p.143)
Para obter a resposta, temos de nos voltar para nossa experiência com
pacientes psicanalíticos que podem reportar-se a fenômenos bastante
primitivos e, apesar disso, verbalizá-los (quando acham que podem
fazê-lo) sem que isso constitua agravo à delicadeza do que é pré-
119
Ele sugere que o que o bebê vê quando olha o rosto da mãe é a si mesmo. ―em outros
termos, a mãe está olhando para o bebê e aquilo com que ela se parece se acha
relacionado com o que ela vê ali‖ (WINNICOTT, 1975, p.154). Esse seria o curso
esperado dos eventos. Para os bebês que olham e não veem a si mesmos, quando a mãe
reflete o próprio humor ou a rigidez de suas defesas, há consequências, sendo que a
primeira delas envolve a capacidade criativa. Lemos,
Ana C.
A patologia narcísica nos mostra como o sujeito melancólico sabe sobre o tempo e
suas regras implacáveis, as quais não podemos escapar. Sua consciência trágica sobre a
transitoriedade da vida torna familiar a proposição memento mori (lembre-se da morte).
Paralelamente, a imobilidade psíquica produzida é uma tentativa de capturar o objeto do
passado no presente para que, assim, o futuro, ou melhor, a partida, se aproxime.
Mesmo que este desempenhe o papel de denunciador do poder do tempo, o melancólico
tenta se eximir de sua ação através da retirada de seus investimentos na realidade. Esta
consciência da verdade produz uma dificuldade ainda maior para o estabelecimento de
vínculos afetivos, uma vez que o abandono do objeto já está anunciado para ele em voz
alta: análoga àquela do coro, que antecipa o destino do herói grego nas tragédias e
conhecendo a tendência melancólica dos artistas, poderíamos perguntar se a obra de arte
seria uma forma de realizar essa captura. Como entenderíamos a relação tão estreita que
encontramos entre a melancolia e a criação artística? A criação artística é um destino da
pulsão capaz de promover laço social, seria então pela via da sublimação que o sujeito
melancólico buscaria restaurar sua ligação com o outro e promover o encantamento de
seu mundo externo e interno? A fim de responder estes questionamentos, centrais a esta
investigação, elencamos esta passagem de Kristeva (1987, pp.5-6), a qual sinaliza um
possível caminho:
Kell, por sua vez, em O Tempo e o cão (2009) retoma a noção de ―duração‖ tal qual
apresenta Bergson em Matéria e Memória (1990):
Essa ideia já foi observada por Abraham (1911/1970), alertando-nos para um limite
que, quando ultrapassado, impede o sujeito de criar; portanto, poderíamos entender
então, que a sublimação na melancolia envolveria mais riscos este. Em suas palavras,
O que o autor nos aponta é que existe uma relação direta entre a sublimação
―forçada‖ e o quadro depressivo que se estabelece depois. Aqui chegamos a um ponto
semelhante ao pensamento de Schneider (1990), que reafirma a condição paradoxal, a
qual temos perseguido ao longo de nossas considerações:
objeto‖ que lhes é deficiente, motivo pelo qual não conseguem fazer o trabalho do luto?
Ou ainda, seria através do reconhecimento alcançado com a sublimação que a ferida
narcísica poderia cicatrizar? O objetivo final de uma análise seria da ordem da
sublimação? Seria o luto do ideal todo poderoso o que permitiria que a sublimação na
melancolia viesse a reconfigurar a estrutura desse sujeito para formas mais livres e
criativas, a ―rir de si mesmo‖?
De acordo com Kupermann (2010, pp.202-203):
Assim nos perguntamos mais uma vez: o que permite a um sujeito fazer humor e a
outro ficar petrificado na resignação melancólica? Para Kupermann (2003), o elemento
diferenciador também estaria ligado ao modo de identificação. Seria preciso identificar-
se somente ―até certo ponto‖ com o pai, índice mínimo que mitigaria a força e a tirania
do superego.
Mijolla-Mellor (2011, p.47), por sua vez, parece apontar para uma positividade do
trabalho de sublimação a partir do momento em que o ideal do eu possa ser relativizado:
objetivos da pulsão de vida, como nos diz Freud em ―O ego e o id‖. Destacamos uma
importante pergunta para se compreender a escrita de Ana C.: estando o sujeito
identificado com o objeto perdido, o que encontraríamos no produto sublimatório seria
o eco da voz desse objeto? Ou seria a sublimação que permitiria a elaboração do luto,
promovendo uma satisfação libidinal que reconstitui a reserva de libido narcísica?
Encontramos esperanças de um destino menos sombrio nas palavras de Schneider
(1990, pp.408-409):
Lembramos aqui da busca incessante de Ana C. por uma palavra única. Pensamos
que é, então, com o modelo do trabalho de luto e de melancolia que iremos entender as
diferentes implicações do processo criativo.
Na sublimação, há o tempo do investimento, do desinvestimento e do reinvestimento.
O primeiro é o momento de expansão da energia libidinal para um objeto do mundo
externo, isto é, uma resposta, um destino para a força da pulsão que busca em que se
satisfazer. Devemos considerar, então, que é preciso haver uma energia inicial, um
narcisismo primário para que, depois, por transbordamento da libido, ou uma vontade
de expansão (seriam diferentes?), o eu emita seus ―pseudópodes‖ – na metáfora do
psiquismo como uma mônoda amebóide – para alcançar este objeto do mundo externo.
Subsequentemente, temos o momento de retirada do investimento feito a tal objeto,
uma dessexualização ou desligamento da libido vinculada a ele. É aqui que localizamos
o ―trabalho de luto‖, o qual faria uso da potência de desligamento, de desobjetalização
da pulsão de morte. Será, portanto, através da pulsão de morte que a energia, antes
investida no objeto externo (ou em uma representação, uma ideia), ficará livre e irá se
recolher no eu.
É aqui, nessa segunda fase, que acreditamos estar a fonte dos diferentes modos de
sublimação. O que as diferenciaria seriam as maneiras como se processarão o trabalho
de luto e o trabalho de melancolia. Entenderemos que, nos dois casos, a energia que
128
aproximemos aqui do que Klein (1940) entendia como sublimação, ou seja, ela estaria
ao lado das reparações que o eu faz ao objeto de amor, sempre ambivalente.
Acreditamos que alguns tipos de sublimação deixam o ego mais exposto ao trabalho
de pulsão de morte. O que permitiria ou não uma refusão pulsional fora da ordem do
masoquismo seria o ―tempo de elaboração‖ do processo sublimatório. A especificidade
da sublimação na melancolia está referida à intensidade de investimento no objeto. O
eu melancólico, contaminado pela ―bílis negra‖, não pode se privar do prazer
encontrado no investimento narcísico ao objeto. Novas identificações narcísicas seriam
precipitadas pela necessidade de recolher para si o máximo de libido para contrapor
aquela que se esvai. Na melancolia, o trabalho do luto necessário à sublimação fica
suspenso no tempo, uma vez que o sujeito entra em conflito entre abrir mão do objeto
investido em função de outro investimento que poderia ser prazeroso, o qual, porém, é
percebido como uma nova possibilidade de abandono. Pontalis (1991, p.143) nos fala
sobre os efeitos da separação do objeto:
Uma das variáveis importantes para observarmos o que compõe essa economia
psíquica, a qualidade estética que Freud suspeita estar envolvida na fusão e desfusão, é
o tempo de resposta do objeto (ambiente) aos apelos do pequeno sujeito. É a
constatação da morte que gera a noção de temporalidade e, para saber-se vivo, é preciso
que um outro ofereça cuidados, um espaço psíquico, uma voz e um olhar capaz de
reconhecer no corpo que pode ser apenas carne, um sujeito.
Freud (1950[1895]), ao propor a ideia de uma primeira experiência de satisfação, já
inclui o tempo nessa dinâmica psíquica. Retomemos, por exemplo, a primeira mamada
mítica: ela seria um ponto de partida, a primeira experiência que imprime traços e
ranhuras no aparelho psíquico. O apaziguamento da fome e do desconforto provocado
pelas necessidades vitais básicas produz uma marca, um prazer, que será buscado
incessantemente. O tempo entre a primeira mamada e o retorno da fome leva o pequeno
sujeito a buscar as primeiras impressões daquilo que trouxe saciedade, alívio, nutrição,
conforto – o que propiciou uma descarga da excitação que é seguida de prazer (no
modelo da primeira tópica). A experiência de satisfação com o objeto que ainda não se
sabe externo ou interno reaparecerá sob a forma de uma ―alucinação‖. Essa seria a
tentativa arcaica de representação do objeto que deveria retornar e atender às exigências
do recém-nascido. Para Winnicott (1994), esse momento compõe o cuidado da mãe
suficientemente boa, que irá buscar adequar-se aos ritmos e ―especificidades‖ do bebê
de modo a satisfazê-lo, mas deve também ser capaz de suportar sua angústia, a sua
frustração e a de seu filho, oferecendo recursos psíquicos (nomeação, cuidado,
pensamento, metabolismo das emoções) que permitem que o psiquismo em formação
131
seja colocado em marcha pela necessidade de representação das experiências, para que,
aos poucos, ele possa interagir com o ambiente e se comunicar com ele.
Convocamos aqui a noção winnicottiana da experiência de ilusão-desilusão, em que
o objeto é, ao mesmo tempo, criado e encontrado: esta alucinação que busca recriar o
objeto de satisfação deveria ser logo acompanhada pela apresentação do mesmo (no
caso do bebê, o seio) pela mãe, reforçando no bebê a sensação de existência no mundo.
Nessa primeira tentativa de sublimação, o objeto que fez a sua marca – que traçou
caminhos de ―facilitação‖ – será relembrado, mas a recuperação dessa ―memória‖
implica necessariamente uma transformação e uma perda. Segundo Freud (1950[1895]),
o objeto é na verdade reencontrado, uma vez que a busca que teria o poder de apaziguar
todas as dores, é o que move o desejo, faz decolar o psiquismo. Com Rosenberg (2003)
entendemos que quando o objeto que nutre, que criou uma certa constância e
expectativa no bebê, falha, vemos aparecer uma ―masoquismo guardião de vida‖ como
forma de tornar suportável o desprazer (que deveria ser apenas temporário) trazido pela
frustração. A capacidade de adiamento, de substituição, de renúncia à satisfação
imediata é fundamental para a constituição psíquica. Como vimos, a investida da pulsão
de vida no momento de desprazer permitiria o adiamento traria uma capacidade de
suportar o tempo que levará para o objeto retornar – no modelo proposto, a próxima
mamada.
Contudo, entendemos que haveria um ―tempo ótimo‖, um ritmo próprio a cada
indivíduo que determinaria suas singulares necessidades – sendo esta a chave de
entendimento necessária à função da mãe suficientemente boa, que não sabem que
protegem o filho de seu próprio inconsciente. A tarefa da maternagem é mais complexa
do que pode a princípio parecer, a ansiedade de uma performance perfeita pode
distanciá-la de suas emoções contraditórias, o que pode produzir formações reativas que
comprometerão a capacidade de introjeção do bebê. De acordo com Mannonni (1992,
p.202),
em seu trabalho sobre o barroco alemão – estética que realizaria ao máximo a tensão
melancólica – expõe as implicações do apelo alegórico:
De acordo com Rosenberg, ―se há uma fixação ao objeto é para impedir uma
desintrincação pulsional e, com ela, como vimos, uma regressão mais profunda‖.
(ROSENBERG, 2003, p.191) Aqui entenderíamos a relação de proximidade na
melancolia com o objeto primário que é fonte da dor psíquica. Ater-se a esse objeto –
fixação ao objeto e também ao modo de relação de objeto ( no caso da melancolia, oral
canibalista) – conservando-o no objeto sublimado, talvez seja ainda uma forma de
evitar uma desintrincação maior, essa regressão mais profunda. Segundo ele,
Nos deparamos novamente com o limite da sublimação, limites que são impostos
pela relação dinâmica e econômica da fusão e desfusão pulsional.
fala da união pulsional antes de falar do eu. (Cf: ROSENBERG, 2003, p.201) Iremos
então pensar com o autor: ―Podemos colocar a questão de saber se a vitória final da
pulsão de morte não é o esgotamento dessa capacidade do eu, de desviar em proveito
próprio uma parte da pulsão de morte‖. (ROSENBERG, 2003, p.200) Talvez o autor
esteja dizendo que, a vitória da pulsão de morte é a ausência da capacidade
sublimatória.
Tomaremos a análise que Freud fez do escritor Dostoievski para investigar um pouco
mais o entrelaçamento da sublimação e pulsão de morte, para que, assim, possamos
passar para a análise da relação entre a escrita e a subjetividade no caso particular da
poeta Ana Cristina César.
138
Para Freud, uma vez a culpa apaziguada, a satisfação pode sucedê-la, isto é, após
castigar-se no jogo a libido estaria livre para a satisfação através do processo
sublimatório da escrita. Mas nos perguntamos aqui, satisfação de qual instância? Do eu,
do id, ou do supereu?
criativo. A curiosa dinâmica observada nos mostra que a criação só lhe era possível na
miséria. Será que os castigos – entre eles o jogo e a miséria – pagavam a dívida do eu
para com o Superego, permitindo a ligação da energia de morte através do masoquismo
deixando novamente livre a energia para a criação, para o investimento em outros
objetos? A escrita para Dostoievski seria o final do ciclo ou ainda faria parte deste jogo
mortífero e silencioso que estaria operando no interior de seu psiquismo? Isto é, os
ataques do superego, reforçados pela desfusão pulsional resultante da sublimação
promoveriam uma destruição lenta e subreptícia de seu mundo interno? Assim, as
palavras que ganhariam liberdade e seriam transformadas a partir dos conteúdos
psíquicos disponíveis ao escritor iriam aos poucos se aproximando do ponto do
indizível, onde a palavra encontra seu limite representacional, a palavra vira também
uma coisa com a qual ele joga. O jogo pelo jogo, o texto pelo texto, no final, talvez,
fossem a máxima punição – o (re)encontro com o não sentido, realizando, assim, o
objetivo da pulsão de morte.
A sublimação aparece como uma das primeiras saídas que nos vem à mente para a
necessária ―objetificação‖ que deveria ser produzida pelo trabalho de melancolia.
Contudo, vemos com Green (1983/1990, p. 258) que o objeto artístico também pode ser
investido narcisicamente: [...] não há então nada de surpreendente em podermos
encontrar no âmago da sublimação um objeto narcisista que se referiria pois, ao sublime
tal qual o eu o experimenta para o seu próprio prazer [...] Talvez por isso a escrita
funcione nesse limite tênue entre aquilo que pode curar e o que pode ferir, envenenar. A
palavra estará investida de modo distinto na melancolia:
a melancolia termina seu curso após certo lapso de tempo sem deixar
atrás de si alterações aparentes e grosseiras, caráter que partilha com o
luto. Neste, sabemos que o tempo era necessário para que fosse
executado em detalhe o comando da prova de realidade, trabalho após
o qual o eu pode liberar sua libido do objeto perdido. Podemos pensar
que a palavra está ocupada, durante a melancolia, por um trabalho
análogo; em ambos os casos, o processo escapa, do ponto de vista
econômico, a nossa compreensão (ROSENBERG, 2003, p.126).
Do ponto de vista topológico, temos que nos perguntar entre quais sistemas psíquicos
acontece o trabalho de melancolia. Freud (1917[1915]/2010, p.190) pergunta: ―dos
processos psíquicos dessa afecção, o que ainda se passa relacionado aos investimentos
objetais inconscientes abandonados, e o que relacionado a seu substituto por
identificação, dentro do eu?‖. Para ele, a resposta fácil e rápida seria
140
Prosa, poesia, confissão ou escritura do eu? Não, biografia. Aqui, nossa preocupação
será pensar, através da sublimação, nos graus variados de proximidade com o que
chamamos de fonte pulsional. Contudo, não pretendemos afirmar o que seria necessário
para que o mergulho nas letras não seja um naufrágio. Inicialmente, acreditamos na
importância da contraposição, a qual elenca, de um lado, o diário, os cadernos
terapêuticos e a adução técnica, e, de outro, a poesia, e a tradução literária. No entanto,
tais limites parecem ser quebrados e Ana C. transforma tudo em ficção. Quanto aos
temas e motivos que percorrem sua poética estão o silêncio, a morte, o mar e o nada. Ao
lermos a poeta, temos a impressão de que seria possível reconstituir os passos que
marcaram toda sua trajetória, culminando em seu suicídio. Em um texto publicado um
ano após a morte de Ana C. sua, por exemplo, Heloisa Buarque de Hollanda
(1984/2013, p.451), sua amiga e mentora, escreve: ―Enterneço-me com a amiga,
embaraço-me com a obra que, agora, desdobra-se em recorrentes bilhetes, avisos, sinais.
Sofro com a descoberta de uma anotação escrita no hospital pouco antes de sua morte:
estou sirgando, mas o velame foge‖. Desse modo, compreendemos, à luz de Sontag
(apud. VIEGAS, 1998, p.41), que ―não se pode interpretar a obra a partir da vida, mas
pode-se, a partir da obra, interpretar a vida‖.
A estreia literária de Ana C. aconteceu muito cedo: aos 7 anos teve suas primeiras
poesias publicadas no ―Suplemento Literário‖ de um jornal carioca. Qual teria sido o
efeito dessa relação tão íntima e intensa com a palavra escrita desde os primeiros anos
de vida? A partir da biografia podemos identificar que a poesia é o modelo privilegiado
de comunicação com sua mãe, o que se reproduzirá em seu estilo de escrita, na
multiplicidade de vozes que parecem buscar uma conversa ao longo de seus versos. Seu
142
biógrafo, Moriconi, nos diz que, no início, a poesia era arte ouvida, como aquela, de
cunho religioso, lida e contada na igreja que sua família frequentava. Segundo ele,
Sua identidade de poeta a deixava em conflito, como se estivesse presa a ela e não
pudesse escapar. Em um poema de 68, aos16 anos, Ana C escreve:
Neste interlúnio
Sou um dilúvio ou me afogo.
[...]
Neste interlúnio
Sou fagulha ou hulha inerte
Enorme berne entra corpo adentro,
Poetas quietos entreolhando
Coisas coisas que falecem
Neste interlúnio,
Sou coisa ou poeta. (CÉSAR,1998,p.32)
Mas o fato é que viveria sempre, até morrer, o conflito entre o tesão
por uma vida literária mais próxima ou inteiramente mergulhada no
ritmo nervoso dos jornais e da profissionalização editorial. Quando
estava na universidade, sonhava sair dela. Quando estava fora, queria
voltar. (MORICONI,1996, p.26)
Fico quieta.
Não escrevo mais. Estou desenhando numa vila
que não me pertence.
Não penso na partida. Meus garranchos são hoje
e se acabaram.
Perdi um trem. Não consigo contar a história completa.[...]
Eu não sei focar ali no jardim, sobre a linha do seu rosto, mesmo que
seja por displicência estudada, a mulher difícil que não se abandona
para trás, para trás, palavras escapando, sem nada que volte e retoque
e complete.
Explico mais ainda: falar não me tira da pauta;
Vou passar a desenhar; para sair da pauta
(CÉSAR,1980, p.95)
Em uma carta para Clara Alvim, Ana menciona como seus pais foram brilhantes na
infância e criaram os filhos com grandes expectativas, utilizando-se também da figura
do cais, a qual se repete inúmeras vezes em sua obra:
[...] Estou percebendo agora que sou briguenta, faço birras, apostas,
leilões... Percebo e continuo a querer brigar: minha mãe (e meu pai
também) foram crianças/jovens extremamente brilhantes (minha mãe
foi 1ª aluna de neolatinas, ganhou bolsa pra França; meu pai era
fodíssimo, passava fome, mas já aos 6 anos ganhava bolsa no
primário, tendo aprendido a ler sozinho, na bíblia, acompanhando as
leituras diárias dos cultos da família protestante[...] Foram, mas hoje
são classe média arrochada, trabalhando demais. Criaram pelo menos
dois em três filhos para gênio, pensaram(pensam?) ―você vai
continuar e conseguir o que eu tive vontade, mas não capacidade...‖
Os três filhos precisam de muita análise, só dois estão fazendo (não
exatamente os dois de cima).
144
Ana C. anuncia, desde o início, a vontade de que suas cartas fossem publicadas.
Fazia diversas versões e as reescrevia várias vezes, exercitando o estilo íntimo e
confessional, dando tratamento estético à fala que pedia contato. Para ela ―escrever
cartas é mais misterioso do que se pensa‖ (CÉSAR, 1999a, p.202).
Em Cenas de abril (1979) lemos diversos trechos de um eu lírico que se remói: ―Falo
o tempo todo em mim‖; ―aguardo crises agudas de remorsos‖; ―Querido diário:
vergonha ricocheteia‖ (CÉSAR, 1979/1992). É neste livro que encontramos a série de
poemas ―Último adeus, I, II e III‖. No mesmo ano, publica Correspondência Completa
(1979/1992) um livreto no qual escreve uma longa carta para alguém que não
conhecemos e assina como Júlia, uma das poucas personagens que cria, contudo, cita
Gil, seu namorado da época:
Apesar de não ser possível a confissão dos sentimentos, eles estão lá, escamoteados
pela técnica. Numa carta de dezembro de 1979, sonha com sua maior interlocutora e
figura materna, Heloísa Buarque de Hollanda, professora responsável por lhe dar
projeção nacional ao incluí-la na antologia 26 poetas hoje, de 1976:
Meu pai embarcou hoje. Fiquei sozinha e católica. [...] Queria mudar
tudo na minha cara. Sonhei que você era minha mãe. Há crises de
identidade etc. Não ligo mais para os Grandes Monumentos da
História, nada me emociona, esqueci o frisson europeu, bola![...]
Estou bem. SOS. Beijos. Ana. (CÉSAR,1999b, p.84, grifos nossos)
62
Cunha Lima (1993) investiga de quais poemas e autores são tomados, versos, títulos e estrutura. Aqui a
referência vem de Manuel Bandeira, do poema ―O impossível carinho‖: Escuta, eu não quero contar o
meu desejo/ Quero apenas contar-te minha ternura/ Ah se em troca de tanta felicidade que me dás/ Eu
pudesse repor/ – Eu soubesse repor – / No coração despedaçado/ As mais puras alegrias de tua infância.
145
Já em fevereiro de 1980, conta que adotou de vez seu ―nome de guerra‖: Ana C. Lá
também comenta o que escreveu num ensaio sobre Caetano Veloso: ―a poesia quer é
virar prosa; o ensaio quer virar poesia‖. Neste momento, ela está lendo ―Inveja e
Gratidão‖ (1946), de Klein, e diz: ―é aterrador. Tomo cada linha ao pé do ouvido e fico
paralítica de medo‖ (CÉSAR, 1999b, p.40). Em março, comenta sua correspondência
com Clara Alvim, indicando momentos de inércia e depois intensa produção:
caderno, Ana C. ensaia o que podemos chamar de uma tradução literária de suas
próprias palavras, a qual por vezes, leva a uma completa alteração do sentido. Por
exemplo, ―surrupiando‖ – que significa tomar posse de algo que não é seu – é traduzido
por ―disappearing into nothingness‖ – que, em uma tradução livre, significa
―desaparecendo no nada‖. Um desenho que vira palavra que gera ainda outra. Será que
traduzir-se poderia ter algum efeito terapêutico? A possibilidade de usar de outro
vernáculo e outra gramática ampliaria a chance de nomeação dos afetos que buscam
expressão? Este mis en abyme, promoveria mudanças de perspectiva que gerariam
novas experiências de elaboração para o eu?
Em certo momento, Ana C. pensou em rasgar todos os livros e fazer com eles uma
colagem. Mais tarde, ela revela:
Eu fiz uma versão da minha história bem sem conteúdos para você.
Mas eu tenho tara por conteúdos, só a técnica é capaz de me salvar.
Deleuze explica. EXISTEM SIM, mas não interessam, acho que só
servem para eu ruminar de vez em quando um drama qualquer. Não
sei se saio do drama à custa de conteúdos ou à custa de montar na
moto. Acho que o 1º.., mas estou louca pelo 2º. Me dá nervoso!
[...] Estou com umas ganas horríveis de escrever, leve, são os
conteúdos que me atrapalham.
Mais P.S Conteúdos pode ser que não existam, mas existem as 2as
intenções...
Mais P.S Percebo que o lance de anotações tipo agendinha tem a ver
com uma certa briga entre o fora e dentro, registro e psicologia,
cenografia e interioridade. Registrar com um muxoxo de quem não
147
A passagem acima nos demonstra o ímpeto de criar uma escrita leve, sem o peso de
seus conteúdos, que não fosse sempre uma imersão em seu universo interior. Um tempo
depois, escreverá novamente sobre esse empuxo a uma escrita de si:
O tempo fecha.
Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos
que não largam! Minhas saudades ensurdecidas
por cigarras! O que faço aqui no campo
declamando aos metros versos longos e sentidos?
Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não
sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida:
Agora sou profissional. (1982/1992, p. 9)
todas muito orais, muito próximas de uma certa voz que a gente ouve,
para as engravatadas primeiras linhas do livro mais recente. .[...]. As
primeiras frases do livro engravatado diz: ― LM se viu dentro do carro,
no meio do trânsito na Lagoa, indo em direção do túnel Rebouças‖
enquanto a outra diz: ―Sobre o suicídio: preciso tomar uma decisão
entre pedra ou vidro, estilhaça ou espatifa, porque todas as palavras
não cabem num livro‖. (CÉSAR,1999, p.241,)
entre um poema e outro, aprendi a ouvir uma prosa de voz íntima, que
fala como quem conversa intimamente com o interlocutor, que se
apega às exclamações e aos murmúrios da intimidade, e que pede
emprestado da conversa a despreocupação com a continuidade lógica
e com a sintaxe rigorosa, desobedecendo as regras de
desenvolvimento expositivo, à mercê de toda sorte de interferências
meio fora de controle, de associações meio súbitas, de interrupções e
parênteses que quebram às vezes irremediavelmente , as primeiras
sequências. Uma sintaxe infantil, às vezes levemente estropiada e
cortada por diminutivos. Uma dicção com um jeitinho[...]Passeios
pelo arbitrário[...] E uma história toda estilhaçada em que se localiza
uma maior dificuldade: ‗As coisas são assim, repetidas, superpostas,
entremeadas de, maior dificuldade de ir separando elas com
travessões, parênteses, aspas, maior ainda de ir inventando a
existência delas com nomes.‖ (CÉSAR, 1999.p.242)
A teus pés (1982/1992) foi o último livro escrito por Ana C. Nele, ao contrário dos
anteriores, observamos como sua escrita foi ficando mais condensada. Existe uma
economia particular das palavras: ao mesmo tempo em que algumas delas parecem ter
um peso maior, outras nos soam simples e despretensiosas, apenas registros. É como se
já não se pudesse dizer muita coisa, como se tivesse a sensação de que já falou demais,
já foi suficiente a quantidade de chaves oferecidas para desvendarmos seu mistério. A
prosa vira cada vez mais poesia, a voz vai se calando e, aos poucos, a fragmentação e o
desligamento se infiltram no texto:
149
Vacilo da Vocação
A escrita telegráfica nos lembra que as palavras custam caro. Escrito por volta de um
mês antes de sua morte, o poema parece trazer uma esperança de que as coisas poderiam
ter sido diferentes. Lemos:
Parece que há uma saída exatamente aqui onde eu pensava que todos
os caminhos terminavam. Uma saída de vida. Em pequenos passos,
apesar da batucada. Parece querer deixar rastros. Oh yeah parece
deixar. Agora que você chegou não preciso mais me roubar. E como
farei com os versos que escrevi?
Datado de 23-7-83
(CÉSAR, 1998, p.181)
A saída de vida seria incompatível com os versos escritos? Seria possível não
escrever? Um pouco mais tarde um de seus versos nos diz: ―Não adianta. [...] Alegria!
Algoz inesperado‖ (CÉSAR, 1998, p.192).
Ana C. continuava a escrever mesmo em um estado de profunda depressão. Em 2 de
outubro de 83, período em que entra no mar com a intenção de não mais voltar, é
publicado, no ―Folhetim‖ da Folha de São Paulo, ―Contagem Regressiva‖, o qual
antecipa: ―os poemas são para nós uma ferida‖ (CÉSAR,1998,p.164). Estes são seus
versos finais:
[...]
Não há ninguém que me interesse e meus versos
São apenas para exatamente esta pessoa que dei-
xou de vir
ou chegou tarde, sorrateira, de forma que não
150
posso,
gritar ao microfone com os olhos presos nos seus
olhos
baixos, porque não te localizo e as luzes da ribalta
confundem a visão, te arranco, te arranco do
papel,
materializo a minha morte, chego tão perto que
chego
a desaparecer-me, indecência, qualquer coisa de
excessivamente
oferecida, oferecida, me pasmo de falar para quem
falo,
com que alacridade
sento aqui neste banco dos réus, raso,
e procuro uma vez mais ouvir-te respirando
no silêncio que se faz agora
minutos e minutos de silêncio, já.
(CÉSAR,1998,p.164).
Carvalho (2003), ao investigar a vida e obra de Silvia Plath, percebeu dois tipos de
escrita, uma do recalque, que organiza, contém e separa os conteúdos representacionais
e outra, pulsional, que trabalha muito perto da fonte pulsional, revelando o limite
representacional da escrita. Derrida (1995) também faz uma distinção entre o escrito e a
escritura, sendo esta última aquela que promove uma torção na linguagem, que
localizamos mais próxima a esta escrita pulsional de que nos fala a teórica. A dimensão
da escrita como phármacon, desenvolvida por Carvalho (2003) nos auxiliará a pensar
em uma divisão que também encontramos em Ana Cristina César, por um lado, uma
criação do "fogo do final", por outro a dos "cadernos terapêuticos". De acordo com
Carvalho (2003, p.103):
De acordo com esta noção, o perigo da escrita está justamente no fato dela poder
mudar, sempre, de um pólo para outro, de remédio a veneno. Ao longo da obra de Ana
C., percebemos uma fragmentação que corresponde ao espírito de sua época, contudo, o
fato do objeto de fragmentação ser o próprio eu, não é sem consequências para esse que
se desdobra em outras vozes e, depois, parece não saber mais qual é a sua. Dentre os
152
O texto de Ana C., para Souza (2010, p.73), esbarraria em dois gêneros
propostos por Bakhtin: o "auto-informe" e a "confissão". O primeiro estaria
condicionado àquilo que o autor pode dizer a si mesmo, sem contar com o ponto de
vista do outro – o que contaminaria a enunciação. Não poderia haver uma preocupação
estética em um auto-informe, uma vez que os elementos estéticos têm seu fundamento
no valor dado pelo outro, ou seja, todo acabamento estético estaria fundamentado no
olhar do outro. Se o sujeito da enunciação realiza esse acabamento, ele conclui sua
própria existência, tarefa impossível, já que essa conclusão seria dada por um ato de
criação artística, a qual abriria a vida à existência, e não o contrário.
O auto-informe daria lugar à confissão a partir do momento em que o caráter
puramente individual e solitário do ato criativo se rompe. O enunciado se transformaria
em uma forma de súplica que parte do sujeito para fora dele. Esta, por sua vez, é
caracterizada per se a uma permanência inacabada, isto é, há uma abertura que faz com
que o pedido vá se fragmentando em direção a um futuro não predeterminado do
acontecimento. No entanto, não seria possível um auto-informe puro, já que ele
153
implicaria na solidão absoluta e no silêncio. Desse modo, Bakthin irá referir-se às duas
categorias como uma só: auto-informe-confissão.
O diário íntimo deveria, portanto, funcionar como esse espaço pessoal do auto-
informe, fora do alcance do olhar e da exigência do outro. Porém, se essa separação com
o outro acarreta em uma despersonalização, ao invés de um despojamento ou uma
desidentificação, pode ser que essa função se torne difícil. O tratamento estético viria
para garantir o contorno do eu fragilizado. Assim, buscaria-se evitar a dinâmica do tudo
ou nada, a solidão ou a súplica absolutas. Certa vez, quando perguntaram a Ana C.
como havia sido a experiência de começar a escrever, e se esta teria sido um diário, ela
responde:
De acordo com Blanchot (1984), o diário íntimo que imaginamos ser desprovido de
regras, onde se pode escrever tudo e registrar o dia a dia, está preso a uma cláusula:
deve-se respeitar o calendário. Vemos aqui, novamente, o recurso buscado através do
controle do tempo:
O diário escrito por Ana C. marcaria a separação com o corpo da mãe, pois estaria
desprendido daquela que escrevia para ela. Observamos um movimento de mão dupla:
há tanto uma necessidade constante de registro íntimo, quanto a necessidade de trazer
esses conteúdos para seu fazer literário. Desse modo, ela evitaria o rompimento total
154
Não acho que a poesia esconda, acho que a poesia revela, pelo
contrário. Ela não esconde uma verdade por trás ou uma via íntima
por trás. Mas é também a dificuldade de quem produz, quer dizer,
sempre, quando você escreve, tem sempre uma história que não pode
ser contada, entende, que é basicamente história, história da nossa
intimidade, a nossa história pessoal. Essa história não pode ser
contada. Se você conseguir contar sua história pessoal e virar
literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou.[...] Mesmo que
eu pegue um diário, como tentei fazer, mesmo assim, continua a haver
uma história que não pode ser contada. É um tormento e, de repente, é
engraçado também, Você não pode contar...[...] Esse mistério você
pode chorar em cima dele, soluçar em cima dele, de repente, você
pode achar interessante.(CÉSAR,1999 a, pp.262-263)
Crítica e tradução (1999a) foi um livro que reuniu diversos trabalhos, entre eles, sua
dissertação de mestrado na PUC-RJ, que se tratou de uma pesquisa de filmes
documentários sobre autores ou obras literárias produzidas no Brasil, intitulada:
―Literatura não é documento‖. Nesta edição, foram reunidos os ―Escritos no rio‖, sessão
que traz artigos publicados em vários jornais e outros órgãos da imprensa ao longo entre
os anos de 1970 e 80. Além desses, estão incluído os ―Escritos na Inglaterra‖, que
trazem a tradução do Conto ―Bliss‖, de Katherine Mansfield, com suas anotações sobre
155
Um dos livros mais lidos por Ana C. foi Fragmentos de um discurso amoroso, de
Barthes (1981, p.10). Entre seus grifos, encontramos:
63
Sabemos que a sensação de êxtase, um ―excesso inquietante‖ é característica dos
estados maníacos. Não entraremos nos detalhes do conto ―Bliss‖, mas achamos
interessante o fato de que, após o falecimento de Ana C., sua mãe tenha feito a tradução
desse trabalho.
Não é gratuita a multiplicidade de vozes no texto de Ana C. Ao trazer para seu texto
a voz de outros autores, há uma dissolução da ideia de autor e temos que incluir a
63
Ana C. (1999 a, pp. 249-250) em setembro de 82, escreve para o ―Jornal Leia Livros‖ um artigo com o
título ―Excesso inquietante‖, no qual lemos: ―as mulheres são um pouco doidas e o homens um pouco
menos‖. [...] Será que a solução é o fincar-pé masculino, que afirma, dá forma, tem causa e lugar – no
máximo?[...]É isso aí, literatura é de um material como que estrangeiro, que nos separa dessa
proximidade do sentimento bruto, nos descola de nós e da língua de nossas pessoas.‖
157
possibilidade de que o texto estaria referindo apenas a ele mesmo e às relações lógicas –
e poéticas – do mundo literário. O eu lírico não é nunca capturável, escorrega para a
página de outros livros, línguas e diários.
Como nos aponta Souza (1999), a lírica fragmentada de Ana C. é uma marca de seu
tempo, onde o que aparece nas poesias é a questão da identidade, das ambiguidades de
gênero e do desejo. Sua poesia faz uma espécie de denuncia irônica da construção do
texto e do próprio sujeito da enunciação, a qual narra sua autobiografia, através de um
refinado manejo de técnicas e uma contínua sedução.
Os efeitos de época são vividos pelos pais e a cultura, responsáveis por oferecer um
suporte para aquele que nela ingressa. A fusão entre arte e vida, diário e não diário,
autobiografia e ficção, confissão e segredo, em Ana C., têm nela um efeito subjetivo,
para além de ser um estilo representante de uma época. Treze dias antes de falecer, ela
escreve:
Não quero agora computar as perdas. Perder é uma lenha. Lá fora está
sol, quem escreve deixa um testemunho. Reesquentando. Joguei fora
algumas coisas já escritas porque não era o testemunho que eu queria
deixar. É outro. Outro agora. Acredite se puder. [...] Chega desse lero,
Poesia virá quando puder. Por enquanto, Filho, é isso aí apenas. Saí ao
sol onde tentei um do-in, me sinto exaurida. Lembra que o diário era
alimento cotidiano? Que importa a má fama, depois que estamos
mortos? Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho.
Diário não tem graça, mas esquenta, pega-se de novo a caneta
abandonada, e o interlocutor é fundamental. Escrevo para você sim.
Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa um rastro
prateado.64
Leiam se forem capazes.
(CÉSAR,1998,p. 201, grifos da autora)
Quando traçamos as pistas que Ana C. nos deixa em seu texto e buscamos as
referências que ela faz, não sabemos se aquele outro poema deveria ser considerado em
sua totalidade, como um eco de sua voz. Temos a impressão de que esse recurso fosse,
para além da intertextualidade, um modo de colocar nas palavras de outros poetas os
afetos que sente, mas não pode dizer. Como traduz em um poema: ―É ilícito, para não
dizer fatal, ser pessoal, e indesejável‖ (CÉSAR, 2008, p.445). Nos lembramos aqui da
64
Aqui encontramos a citação de um poema de Sylvia Plath intitulado "Sleepers", de 1959. Na segunda
estrofe, podemos ler: "Curtained with yellow lace./Through the narrow crack/Odors of wet earth rise./The
snail leaves a silver track." In: Plath, Sylvia. Collected Poems. London: Faber and Faber, 1981, p. 122-
123. Agradecemos à Ana Cecília Carvalho pela referência.
158
descoberta da teoria literária de Ana C.: se cortar o início e o final, resta o mistério. Ela
cria uma personagem, um duplo de si, que é e não é ela. Em rascunhos encontrados
post-mortem lemos as preocupações acerca da relação entre o real e o ficcional, sempre
presente nas reflexões da poeta:
Através desses rascunhos, vemos o trabalho de construção lógica sobre a escrita, sua
proximidade ou distância com o real e com o que se vive. O ser se perde no poema ou
nele se constrói? Perguntamos também com Lambotte (1997, p.103):
Ana C. está entre dois mundos, habita uma ponte entre o mundo externo, que
parece falar uma língua diferente da sua, e um interno, cujas chaves de decifração foram
perdidas por ela mesma, e é como se só fosse possível existir enquanto se está pensando
(Cf: DERRIDA,1995). Um de seus poemas mais conhecidos diz:
aparece. Ele pergunta: ―Tem alguém aqui?‖ e ela responde: ―Aqui!!‖.O discurso de Eco
precisa da palavra de Narciso. Mas ele, fascinado com a sua imagem refletida na
superfície do lago, não pode se arriscar a perdê-la novamente, sendo capturado pela
visão de seus próprios contornos, estranhos a ele. Ao depender de um outro para
conseguir dizer algo seu, a palavra é realmente de quem? A fala de Eco terá sempre
raízes na palavra do outro.
Lambotte (1997, p.101) nos auxilia a pensar um pouco mais sobre o eu do
melancólico:
Identificamos, na poesia de Ana C., essa ―compulsão a pensar‖ ora descrita. Essa
característica melancólica traz uma predisposição, uma espécie de vocação para o
trabalho com o pensamento e, também, para o trabalho artístico – ambas presentes na
vida da poeta. Contudo, essa consciência pode levar a um constante confronto com essa
dimensão do não-sentido que acompanha a evidência de que o texto é apenas uma
construção, nas palavras de Ana C.:
desligando as representações dos afetos. Nos lembramos que as tragédias são sempre
anunciadas pelo coro, o que não chega a impedir ou alterar o destino do herói.
Nos últimos poemas de Ana C. aparece a ideia da escrita como testemunho, como
veremos a seguir. A ―Pasta Rosa‖ cuidadosamente organizada, assemelha-se àquela
encontrada após a morte da poeta Emily Dickinson, com uma extensa coleção de
poemas não publicados.
Ditar poemas para a mãe que escreve. Essa cena não é trivial, pelo contrário, esse
―evento-tela‖ parece ter uma importância central na vida e na obra de Ana C. Segundo
Lambotte (1997, p. 352), um evento-tela é um evento lógico que responderia melhor à
resignação apática do melancólico e daria a seu discurso um semblante de justificação.
Ela nos diz que, se ―lhes acontece atribuir ao evento a causa de seu estado, é por uma
espécie de lógica formal desafetivizada, sem a qual eles permaneceriam suspensos no
tempo, faltosos de uma narrativa que se deixaria construir‖.
162
por Freud, em que a impossibilidade de desligamento faz com que a sombra do objeto
caia sobre o eu:
Mecha branca
Amor, isto não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e sou eu
que te seguro (é de noite? estivemos juntos e sozinhos?), caio das
páginas nos teus braços, teus dedos me entorpecem, teu hálito, teu
pulso, mergulho dos pés à cabeça, delícia, e chega –
Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente deslizando,
chega de passado em vídeo-tape impossivelmente veloz, repeat,
164
repeat, repeat. Toma este beijo só para você e não me esquece mais.
Trabalhei o dia inteiro e agora me retiro, agora repouso minhas cartas
e traduções de muitas origens, me espera uma esfera mais real que a
sonhada, mais direta, dardos e raios à minha volta, Adeus! Lembra
minhas palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo, e parto, eu
incorpóreo, triunfante, morto. (CÉSAR, 1982/1992, p.111)
Abandonar a poesia seria fazer o mesmo como objeto de amor (morto-vivo), o qual
ela tenta fazer reviver, chamar para a conversa e se mostrar. Esse abandono talvez não
tenha sido possível por causa dos remorsos melancólicos que viriam, retaliação ou
retorno da libido que continha a violência necessária para romper o vínculo tão
fortemente estabelecido. A potência desidealizadora e desterritorializadora da arte pode
ter promovido esse movimento, mas pode também ter desencadeado um efeito oposto.
Para os sujeitos que elegeram a identificação narcísica como modelo privilegiado de
investimento, a separação tem por consequência a despersonalização e o despertar das
agonias impensáveis, nas quais o sujeito se defrontaria com a parte nadificada da sua
imagem refletida por um espelho cego. Lemos em Ana C.:
Eu penso
A dor visível do poema/ a luz prévia
Dividida
Mas calo a superfície negra
Pânico iminente do nada
(CÉSAR,1998,p.88)
Através de uma de suas cartas, sabemos que Ana C. (1969, p. 269) Esteve bastante
investida no texto de Foucault ―O que é um autor?‖ Ali, o filósofo, ao examinar a
―função autor‖, afirma: ―é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita‖.
Diante desta afirmação, a noção de obra problematiza-se tanto quanto a individualidade
do autor. Nesta esteira de pensamento, Blanchot (2011, p. 95) diz que, ―talvez a arte
exija que se brinque com a morte, talvez introduza um jogo, um pouco de jogo, onde
não existe mais recurso nem controle‖.
Pensamos na relação particular criada por Ana C. com a figura das mãos que
―contornavam sua sintaxe‖, isto é, um suporte identitário teria vindo através das mãos
165
maternas, e não de seu olhar, que estava na folha branca do papel. O corpo do poema
seria o espelho onde teria sido possível se reconhecer, fragmentar, inventar, se desfazer
e refazer. A leitura que Souza (2008, p.52) faz de sua lírica se aproxima do que temos
articulado:
―Toda a mulher fala com o corpo, se comunica com o corpo‖, diz Ana C. (CÉSAR,
1999, p.272.) A voz feminina, traz a marca do corpo, mas também do real, do silêncio
que se oculta por trás dela. Em depoimento dado em 1990, Heloisa Buarque de
Hollanda comenta alguns aspectos da poesia de Ana C.:
Fragmento I
Efusão de palavras
Aventura de registrar a fenda
Desistir da fluência
De todos os truques
Da bruta castidade.
Fragmento 2
Fragmento 3
efusão de palavras
Aventura de registrar a fenda
Desistir da fluência
De todos os truques
Da bruta castidade
(me reconheciam em versos naquele tempo)
qualquer coisa tua me lembra
A mãe difícil percorrer
Naquele tempo
As outras formas
pureza recusada
a dúvida a pele
que refaço
Fragmentos 4
efusão de palavra
aventura
bruta castidade
(me reconheciam)
lembrar a mãe
percorrer
aquele tempo (em versos)
Fragmentos 5
efusão
aventura
bruta
(reconhecer)
a mãe
difícil
tempo
Fragmentos 6
aventura
bruta
(em versos)
169
Considerações finais
Nos perguntamos ao longo deste trabalho sobre o que faz com que um sujeito tenha
sua linha de desenvolvimento psíquico preservada enquanto outros, não.
Compreendemos que aquele que nos precede, e é responsável pela maternagem, é
também o outro que irá produzir traumatismos, veicular intensidades que irão exceder a
capacidade do pequeno sujeito de metabolizar o que é trazido junto dos cuidados.
Assim, nos atentamos aos elementos que impedem o aproveitamento dos recursos e os
benefícios que poderiam ter sido obtidos através de novas experiências positivas com o
mundo: a ligação da pulsão de morte através da pulsão de vida.
A fim de levarmos a cabo nossos objetivos traçados, teremos que considerar também
a existência de diferentes tipos de sublimação. Haveria aquelas que não trariam risco
para o sujeito, como vimos com Mijolla-Mellor (2010). Para ela, a sublimação se trata
de uma escolha, consciente ou inconsciente, assim como a escolha da
neurose. Kupermann (2003), a partir do paradigma do humor, nos mostra como a
170
Imbuídos da noção de que a sublimação é mediada pelo eu, de que a obra de arte é
um objeto narcísico, e de que é exatamente a instância egóica que está comprometida no
conflito com o superego na melancolia, teremos que levar em consideração os efeitos da
sombra do objeto na arte. O artista pode se confrontar com elementos que estavam
silenciados, protegidos por poderosos mecanismos de defesa e contaminados pela
pulsão de morte, como, por exemplo, a identificação ao nada e ao movimento
evanescente de desaparição do objeto, o que causa, retroativamente, um efeito
iatrogênico.
Assim, a tentativa de ―registrar a fenda‖ com as palavras acaba produzindo, por fim,
uma aventura bruta, em versos.
172
ANEXOS
173
174
175
176
177
178
179
180
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