Aventura Bruta em Versos Sublimacao e Me

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

LÍVIA SANTIAGO MOREIRA

Aventura bruta em versos: sublimação e


melancolia na obra de Ana Cristina César

São Paulo
2014
LÍVIA SANTIAGO MOREIRA

Aventura bruta em versos: sublimação e


melancolia na obra de Ana Cristina César

Dissertação apresentada ao Instituto de


Psicologia da Universidade de São Paulo
como parte dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em Psicologia Clínica.

Área de Concentração: Psicologia Clínica

Orientador: Prof. Dr. Daniel Kupermann

São Paulo
2014
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL
DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU
ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A
FONTE.

Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Moreira, Lívia Santiago.

Aventura bruta em versos: sublimação e melancolia na obra de


Ana Cristina César / Lívia Santiago Moreira; orientador Daniel
Kupermann. -- São Paulo, 2014.

160 f.

Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em


Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Clínica) – Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo.

1. Psicologia clínica 2. Sublimação 3. Melancolia 4. Escrita 5.


Desfusão pulsional 6. César, Ana Cristina I. Título.

RC467
Nome: Lívia Santiago Moreira
Título: Aventura bruta em versos: sublimação e melancolia na obra de Ana Cristina
César

Dissertação apresentada ao Instituto de


Psicologia da Universidade de São Paulo
como parte dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em Psicologia Clínica.

Aprovado em:

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Daniel Kupermann Instituição: USP


Julgamento: _________________________Assinatura: _____________________

Prof. Dr.a Ana Cleide Guedes Moreira Instituição : UFPA


Julgamento: _________________________Assinatura: _____________________

Prof. Dr. Nelson da Silva Jr. Instituição: USP


Julgamento: _________________________Assinatura: _____________________
DEDICATÓRIA

À Ana Cecília Carvalho, Elisa Massa, e Mariana Camilo,


com admiração e amizade.

À Sandra Godinho Santiago, pela poesia.


AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Daniel Kupermann, não só pelo apoio neste trabalho, mas também por
abrir meus horizontes e pela generosidade ao ensinar;

Aos Profs. Ana Cecília Carvalho, Ana Cleide Guedes Moreira, Elisa Cintra, Maria
Lívia Moretto e Nelson da Silva Junior, por compartilharem seus conhecimentos e
acompanharem minha trajetória.

Ao Prof. Luís Cláudio Figueiredo, pelas preciosas indicações bibliográficas.

A Daniel Delouya, pela escuta cuidadosa e diferenciada.

Aos Prof.s da Universidade Federal de Minas Gerais, Antônio Teixeira, Cassandra


Pereira, Guilherme Massara Rocha, Maria Teresa Carvalho , Paulo César Ribeiro
Carvalho, Oswaldo França Neto e Riva Satovski, pela inspiração para a pesquisa, a
clínica e a psicanálise.

Ao querido amigo e brilhante revisor Thiago Moyano, fundamental para a


conclusão deste trabalho.

Aos queridos amigos de sempre: Ana Paula Guilherme, Cássia Reis, Daniel
Werneck, Elisa Massa, Felipe Bier, Frederico Coutinho, Júlia Dorigo, Júlia Goyatá,
Kirlian Siqueira, Letícia Barreto, Maria Luisa Freitas, Mariana Camilo de Oliveira,
Mário Corra, Marina Maria, Mônica Toledo, Patrícia Lúcio, Paulo Henrique Amaral,
Rafael Prosdocimi, Raul Duarte, Theo Duarte, Viviane Andrade, Vitor Duarte, pela
companhia que faz a vida ficar colorida e possível, é muito o amor que tenho por vocês!

Aos novos e indispensáveis amigos, Aline Souza Martins, Georgia Nunes, Mateus
Soares, e, especialmente, Gabriela Rodrigues, que se transformaram em minha família
em São Paulo.

Aos colegas e amigos de orientação, Daniel Vitorelo, Denise Goldfajn, Lucas


Bulamah, Nadeje Pereira, Priscila Robert, Tatiana Cunha e Thiago Abrantes, pela
animada interlocução e pelo acolhimento.

Às indispensáveis Cecília Gontijo Leal, Julia Faria Campos, Letícia Moreira e


Mariana Theodorica, pelo amor praticamente incondicional.

À família Santiago e à família Moreira, por tudo, sempre.

A Rodolfo Moreira Neto e Ana Dalva, Sandra Godinho e João Motta, por todo
cuidado, carinho e leveza.

Aos meus queridos irmãos, Guilherme e Leandro, pela cumplicidade e pela alegria
que trazem pra minha vida: Marininha, Bruninho e a esperada Gabriela.
Aos alunos e pacientes que tanto me ensinaram.
RESUMO

Para abordar nossa pergunta ―como se dá a sublimação na melancolia‖, tomaremos a


escrita como modelo sublimatório, acreditando que ela demonstraria, com maior nitidez,
os mecanismos que buscaremos descrever. Escolhemos como objeto de nossa
investigação teórica, a obra de Ana Cristina César ─ artista carioca, ícone da poesia dos
anos 70 no Brasil. A particularidade de sua escrita é o entrelaçamento com sua vida,
cuja autobiografia ficcional traz o que acreditamos ser um discurso melancólico.
Através de uma leitura sistemática do legado literário e biográfico da autora, cuja escrita
transitou entre cartas, poemas, diário e tradução, investigaremos os enlaces e desenlaces
entre sublimação e melancolia. Faremos um exame apurado da metapsicologia
freudiana da melancolia, do conceito de desfusão pulsional e da sublimação, tentando
entender a relação entre as dimensões tópica, dinâmica e econômica. A fim de melhor
atingir nossos objetivos traçados, buscamos nosso aporte teórico também nas obras de
autores pós-freudianos que se dedicaram ao tema, como, por exemplo, Klein, Winnicott,
Lambotte e Rosenberg. Foi realizada uma análise, observando a singularidade da
pesquisa que inclui o campos da literatura e da psicanálise. Descobrimos que o processo
sublimatório, quando faz uso do ―trabalho de melancolia‖, e não do trabalho de luto,
aumenta o risco de desfusão pulsional. A partir da investigação da dimensão temporal e
das instâncias ideais que possuem características próprias na melancolia, observamos
que há uma especificidade da sublimação nesta afecção.

Palavras-chave: 1. Psicologia clínica 2. Sublimação 3. Melancolia 4. Escrita 5. Desfusão


pulsional 6. César, Ana Cristina.
ABSTRACT

MOREIRA, L.S. Unfinished adventure in verse: sublimation and melancholy in the


literature of Ana Cristina Cesar. 2014. 200f. Dissertação (Mestrado) – Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2014.

In order to better approach our central question, ―how the sublimation occurs in
melancholy‖, we are going to take writing as a sublimatory model, which pointedly
demonstrates the mechanisms that we will try to describe. We have chosen as object of
analysis for this theoretical investigation, the work of Ana Cristina César, artist from
Rio de Janeiro, iconic in Brazil‘s 1970s poetry. The particularity of her writing is the
intertwining with her personal life, whose fictional autobiography surfaces what we
believe to be a melancholic discourse. Through a systematic reading of the author‘s
literary and biographical legacy, which covers a variety of genres and forms, such as
collections of poetry, diaries, as well as translations, we will persecute the connections
and outcomes in the processes of sublimation and melancholy. We are going to do an
acute examination of the Freudian metapsychology of melancholy, the concept of
pulsional defusion as well as sublimation, in an attempt to understand the relationship
between the topic, dynamic, and economic dimensions. Such achievements will not be
possible without the contributions of post-Freudian scholars, such as Klein, Winnicott,
Lambotte, and Rosenberg, whose works will be our theoretical apparatus. Our analysis
observed the particularity of the researche that embrace both the fields of psychology
and literature. We have reached the conclusion that when the sublimatory process uses
the ―work of melancholy‖, not grief, the risk of pulsional defusion increases. Through
the investigation of the temporal dimensions and the ideal instances that possess proper
characteristics in melancholy, we observed that there is a specificity of sublimation in
this condition.

Keywords: 1. Clinical Psychology; 2. Sublimation; 3. Melancholy; 4. Writing; 5.


Defusion; 6. César, Ana Cristina.
Sumário

Introdução.........................................................................................................12

Costurando fragmentos .......................................................................................17

Atrás dos olhos de Ana C. .....................................................................................19

Capítulo I - A sublimação......................................................................................27

1.1. Um final feliz para a pulsão?.........................................................................28

1.2. Notas sobre o risco de uma desfusão pulsional ............................................41

Capítulo II - A melancolia .....................................................................................46

2.1. À guisa de uma introdução à melancolia .......................................................46

2.2. Uma psiconeurose narcísica ..........................................................................67

2.2.1. Ambivalência, culpa, vergonha e masoquismo .......................................74

2.3. A problemática especular ..............................................................................82

2.3.1. Os mecanismos defensivos da melancolia ..............................................85

2.4. O trabalho de melancolia...............................................................................94

2.4.1. A clivagem .............................................................................................101

Capítulo III- Ampliando a visão

3.1. Contribuições Kleinianas: posição depressiva, sentimento de culpa,


reparação e sublimação ..............................................................................................108

3.2. Contribuições Winnicottianas: a criatividade, o núcleo silencioso do eu e o


rosto como espelho .......................................................................................116
Capítulo IV – Imóvel tóxico do tempo: melancolia e sublimação em
perspectiva....................................................................................................................121

4.1. Sobre Dostoievski, a culpa e a escrita .......................................................138

Capítulo V – No entre-lugar do eu: a obra de Ana Cristina César

5.1. No interior da palavra.................................................................................141

5.2. Preciso voltar aos cadernos terapêuticos....................................................151

5.3. Quem escreve deixa um testemunho..........................................................161

Considerações finais.............................................................................................169

Anexos:

Desenhos – Portsmouth-Colchester...................................................................172

Dentro da ―Pasta Rosa‖ ....................................................................................175

Bibliografia............................................................................................................180
Sete chaves

Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha


grande história passional, que guardei a sete
chaves, e meu coração bate incompassado entre
gaufrettes. Conta mais essa história, me
aconselhas como um marechal do ar fazendo
alegoria. Estou tocada pelo fogo. Mais um
roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher
moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro os versos, desta festa ─ com
arbítrio silencioso e origem que não confesso─
como quem apaga seus pecados de seda, seus três
monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas.

Ana C.

A teus pés, 1982


12

Introdução

Meu amor águas

Naufrágil

Ana C.1

Esta pesquisa é fruto de inquietações trazidas pelos projetos de pesquisa ―A


sublimação e seus limites‖ e ―Uma investigação do espaço literário‖, orientadas pelos
professores Ana Cecília Carvalho, Guilherme Massara Rocha e Oswaldo França Neto.
Estendendo-se ao longo dos anos de 2004 a 2008, ela foi financiada pelo CNPQ e
FAPEMIG. No Curso de Especialização em Teoria psicanalítica da Universidade
Federal de Minas Gerais, sob orientação da Profa. Ana Cecília Carvalho, defendemos
nossa monografia ―Sublimação e melancolia na constituição do eu‖ (2010). A
investigação sobre os limites da sublimação continua a colocar em questão algumas das
concepções que temos sobre o fazer artístico. Uma imersão nos escritos da poeta Ana
Cristina César nos levou pensar que ainda haveria muito a ser pesquisado sobre o efeito
do processo criativo no artista e no fruidor.
A psicanálise, através do conceito de sublimação, nos permite dessacralizar as obras
de arte uma vez que sabemos a ‗origem bastarda‘ da sua criação. As grandes
descobertas da psicanálise, o inconsciente e a sexualidade, não excluiram o processo
criativo de uma análise. A arte parecia ser o último reduto excluído da luta de forças
entre as pulsões, da sexualidade e da ferida narcísica que o homem sofreu com a noção
de inconsciente: não somos senhores de nossa própria casa. A possibilidade de análise
de um artefato cultural, ao contrário do que se pensa, não interfere no valor nem na
capacidade que elas têm de nos afetar. A compreensão de que a sexualidade e seus
derivados podem se infiltrar em todos os lugares, inclusive ou principalmente nas artes,
nos mostra a luta contínua entre pulsão, de vida e de morte, o caráter particular da
pulsão – perversa e polimorfa – e a primazia do outro no surgimento do aparelho
psíquico. Freud (1914∕1987, p.221) nos diz:

1
(CÉSAR, 2008, p.178).
13

O psicanalista sabe que está trabalhando com forças altamente


explosivas e que precisa avançar com tanta cautela e escrúpulo quanto
um químico. Mas quando foram os químicos proibidos, devido ao
perigo, de manejar substâncias explosivas, que são indispensáveis, por
causa de seus efeitos?

Os elementos para a alquimia de nosso trabalho apresentam dificuldades no manejo


destas ―substâncias explosivas‖. Investigar a sublimação e a melancolia é pisar em um
terreno não muito seguro, já que ambos dão margem a diversas interpretações. Além
disso, a interface entre psicanálise e literatura deve acontecer de forma que os dois
campos sejam enriquecidos, como se houvesse uma ―fertilização recíproca da
psicanálise com a arte‖ (KON, 1996, p.208). É preciso atenção e sensibilidade para
garantir que não haja excessos nem para um lado – como as interpretações que retiram
toda a subjetividade do autor, onde este está morto e só a escrita fala – nem para outro–
que hiper-interpreta o texto, considerando-o uma tela de projeção autobiográfica,
ignorando os elementos de transformação e criação que o texto possui.
Carvalho (2001) ressalta a importância da psicanálise para definir os limites e pensar
a interação entre vida e obra, principalmente nos artistas que se mantiveram muito
próximos das experiências vividas que alimentaram sua escrita – que aqui tomamos
como paradigma da sublimação. Antes de buscar delimitações, nos manteremos no
limiar que permite a aproximação a esta área esfumaçada entre sujeito e objeto, onde
não sabemos o que cria a escrita, como ela é criada e qual seria o efeito da escrita para
aquele que a criou. Acreditamos que a particularidade da escrita que encontramos nos
textos de Ana C., por se tratar de uma autobiografia ficcional, nos coloca ainda mais
próximos dos elementos que compõem o complexo melancólico e a atividade
sublimatória. Carvalho (2001, p.260) esclarece:

se é verdade, portanto, como pretende uma certa tendência da crítica


literária, que o eu que fala no texto, ao ser incessantemente inventado,
composto e recomposto, assumindo posições diversas e nomes que se
multiplicam e se reduplicam, não pode ser equivalente à pessoa do
escritor, isto apenas ressalta a necessidade de se examinar a função
que a escrita teria para aquele que escreve, especialmente aqueles que
terminaram a vida com o suicídio. Nesse sentido, é importante
investigar os relativos distanciamentos e aproximações que
movimentam a produção textual da fonte que a originou, a fim de que
esse exame possa nos revelar algo a respeito da potencialidade ao
mesmo tempo funcional e disfuncional da escrita. É aqui que a
psicanálise pode ser convocada para ajudar a esclarecer a natureza
desses limites, que dizem respeito à função da escrita como
sublimação e à especificidade da poética auto-biográfica, definida
14

aqui, como trabalho de fertilização cruzada, não só entre vida e


escrita, mas também entre textos que são escritos e reescritos, em que
a vida é rememorada, desmembrada e ficcionalizada: trabalho de
reconstrução e desconstrução, no qual se vislumbra uma
destrutividade potencial.2

O discurso melancólico que escutamos no texto de Ana C. – nos leva a investigar


como se dá o processo da criação artística para quem a vida ficou muito ―perigosa para
viver‖. Por apoiar-se naquilo que está nas origens do aparelho psíquico – a linguagem e
a capacidade representacional –, a literatura iluminará o percurso que irá responder
nossa maior questão: qual seria o estatuto da sublimação na melancolia?
Acompanhamos Metzger e Silva Jr. (2010) em suas análises sobre o tema. De acordo
com eles,

A escrita literária parece exigir do sujeito um grande esforço de


abstração. Seu ‗material de trabalho‘ é particularmente abstrato, isto é,
afastado de suportes empíricos, se comparado às outras artes, como a
música, dança pintura e teatro por exemplo. Esse material,
particularmente na poesia do séc. XX é o próprio „eu do escritor, que
deve ser tomado „como um objeto‟”. Talvez esta exigência de uma
extrema renúncia erótica, associada ao reinvestimento o Eu fundado
na libido narcísica sejam particulares à metapsicologia da criação
literária. Tal metapsicologia é, sem dúvida, próxima àquela da
melancolia. A desfusão pulsional inerente a este tipo de sublimação,
desabilitaria, nesse caso, psiquismo para uma refusão completa da
pulsão de vida com a pulsão de destruição, como no caso aventado por
Freud na carta à Marie Bonaparte da investigação.3 Pelo contrário, em
tal situação de cultura pura da pulsão de morte, o funcionamento da
palavra enquanto representação-coisa poderia levar o desejo de
negação ao seu extremo, isto é, à concretização suprema do ―não‖ no
ato suicida, tal como encontramos na biografia de alguns poetas e
escritores com intensa produção literária. Aqui temos uma hipótese
metapsicológica do que pode estar em jogo em casos como esses. (p.
579, grifos nossos)

Em consonância com estes autores compreendemos que exista uma proximidade,


uma relação muito íntima entre a metapsicologia da sublimação – a escrita,

2
Ana Cecília Carvalho, em A Poética do suicídio em Sylvia Plath (2003), parece lançar luz sobre a
delicada relação entre a vida, escrita e suicídio não só em Plath, mas também em outros artistas como
David Foster Wallace e Ana Cristina César.
3
Nesta carta analisada pelos autores, encontraremos a hipótese freudiana sobre uma sublimação da pulsão
de morte.
15

particularmente – e da melancolia. Destacamos as noções de identificação narcísica, os


ideais, o trabalho do luto e a fusão e desfusão pulsionais na problemática em questão. O
eu é quem recolhe a libido investida no objeto e, é pelo eu que esta libido passará ao ser
sublimada. Temos aí colocados os termos de nossa investigação freudiana, a qual
buscará subsídios teóricos na psicanálise e na literatura.
Onde na primeira tópica acreditávamos que o aparelho psíquico havia encontrado um
destino menos conflituoso para satisfazer a exigência da pulsão, constatamos que,
também na via sublimatória, pode-se ver as marcas da pulsão de morte. Diante da
consequência do descentramento radical apresentado pela formulação da pulsão de
morte4, percorreremos os momentos em que o trabalho de sublimação do ego resulta em
uma desfusão dos instintos e numa liberação dos instintos agressivos no superego, como
no fenômeno do sentimento inconsciente de culpa – presente tanto na melancolia como
na reação terapêutica negativa.
A melancolia foi uma afecção central para Freud pensar o narcisismo e, em
decorrência disso, alterar sua teoria das pulsões. Assim como o caso do ―Homem dos
Lobos‖ nos alertou para a presença dos mecanismos de defesa pertencentes aos três
eixos diagnósticos – neurose, perversão e psicose –, a melancolia também requer, para
sua investigação, uma capacidade de ver o apagamento da linha divisória entre neurose
e psicose. A nitidez dos limites desaparece com a manifestação de sofrimentos e
sintomas que ora se parecem com um, ora com outro. Com Freud, consideramos a
melancolia como uma psiconeurose narcísica e, assim como ele aponta em ―Luto e
Melancolia‖ (1917[1915]), existem muitas perguntas que ainda precisam ser
respondidas. Gostaríamos de nos aproximar da melancolia de forma que, devido a sua
patoplastia, não seja absorvida pelas outras entidades nosográficas.
Na melancolia a perda do objeto de amor primordial, apesar de fazer parte do
desenvolvimento psíquico de todos, passa a ter uma consequência diferente daquela que
a entende apenas como a primeira castração; a qualidade da relação de objeto anterior à
separação será determinante no modo de enfrentamento dessa dolorida divisão, desse
afastamento. A melancolia estaria relacionada ao traumatismo de uma abrupta
separação, nesse primeiro momento onde o pequeno sujeito já esboça o mundo exterior

4
Segundo Joel Birman, a pulsão de morte seria responsável por um terceiro descentramento efetuado pela
teoria psicanalítica, tendo sido o primeiro, a noção de inconsciente e o segundo, a noção de narcisismo.
In: BIRMAN, J. Freud e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
16

e este é investido como algo separado de si. A dor dessa perda está relacionada com a
dor de existir, de saber-se sozinho no mundo.

Para nos aproximar cada vez mais da problemática da melancolia e da sublimação


envolvidas em nosso trabalho, iremos aprofundar a análise sobre o ―trabalho de
melancolia‖, que foi definido por B. Rosenberg (2003, p.143) como uma ―tentativa de
liquidar o investimento narcisista do objeto‖, mas considerando que é ele que permitiria
um deslocamento sobre outro objeto, ―mesmo que este último seja sempre investido de
modo narcisista‖.
Perseguiremos as respostas sobre como é possível ao melancólico criar. Qual o efeito
do trabalho criativo numa subjetividade com ―transtornos narcísico-identitários‖
(ROUSSILLON, 2011; FIGUEIREDO, 2014), especificamente, os melancólicos?
Haveria uma especificidade na dinâmica sublimatória do sujeito melancólico? A arte
seria para esse sujeito uma solução reparadora de seu eu, permitiria modos mais livres
de organização ou pelo contrário, seria promotora de sofrimento subjetivo? A literatura
moderna levaria o eu a um ponto de indizível do qual não seria mais possível o retorno,
ou seria através dessa promoção da indeterminação e do fragmentário que se poderia
constituir um vazio em torno do qual o sujeito poderia construir o novo, se refazer,
mesmo que de modo transitório? Investigaremos se seria o objetivo ou o efeito da
sublimação a criação de um espaço vazio dentro do sujeito, para que ele não sucumba
ao mortífero da estagnação, na determinação invariável de si. Nos questionaremos se
esse mesmo espaço seria, paradoxalmente, o extremo da desconstrução que não
encontraria mais equivalência no mundo, significando para o sujeito um deserto, um
exílio. Essa economia paradoxal será encontrada ao longo de todo o nosso trabalho.
Observaremos na obra de Ana C. assim como em seus contemporâneos, uma escrita
que problematiza o público e o privado, que ficcionaliza o íntimo e o confessional – um
registro da experiência de fragmentação do homem moderno. Apesar de um ―espírito
do tempo‖ em comum, acreditamos que a consequência da escrita para essa artista tenha
nuances específicas importantes para pensarmos as diversas modalidades de
sublimação, bem como o efeito da criação sobre um eu melancólico.
Na próxima sessão, delinearemos o percurso escolhido para melhor apresentar as
questões centrais desse trabalho.
17

Costurando fragmentos

Junto a esta introdução, faremos uma primeira inserção na vida e obra de Ana
Cristina César. Nesta breve apresentação da autora, intitulada ―Atrás dos olhos de Ana
C.‖, traremos à tona os termos que serão discutidos ao longo da dissertação através de
um ensaio com as possíveis interpretações sobre a função e o efeito psíquico da escrita
para a poeta.

Na sequência, em ―A sublimação‖, primeiro capítulo deste trabalho, retraçaremos o


caminho desta noção na obra freudiana, aqui subdividida em dois momentos.
Primeiramente, ―Um final feliz para a pulsão?‖ apresenta as primeiras discussões que o
fundador da psicanálise aponta em seus ensaios. Já em ―Notas sobre o risco de uma
desfusão pulsional‖, buscamos entender as alterações sofridas com o advento da
segunda teoria pulsional. Ademais, trechos selecionados da obra de Ana C serão
incluídos a fim de, aos poucos, familiarizar o leitor com o estilo e o conteúdo de sua
escrita.

O segundo capítulo, ―A Melancolia‖, foi estruturado da seguinte maneira: para que


se prepare o campo, ―À guisa de uma introdução à melancolia‖ tem por objetivo
discorrer sobre alguns conceitos chave, fundamentais na elaboração de um pensamento
sobre tal afecção. Entre eles estão o narcisismo, as instâncias ideais e a noção de
desfusão pulsional, retomada mais a frente.

Subsequentemente, em ―Uma psiconeurose narcísica‖, iremos buscar os primeiros


momentos em que Freud abordou a melancolia até chegar ao texto clássico escrito em
1915 e publicado em 1917, ―Luto e melancolia‖. No entanto, será em ―O ego e o id‖
(1923) que encontraremos os subsídios para o aprofundamento da constelação de
conceitos que fazem parte do universo da melancolia (e da sublimação), tais como a
identificação, ambivalência, culpa, vergonha e masoquismo.

Na ―Problemática especular‖, acompanharemos a leitura que Lambotte (1997) faz do


―estádio do espelho de Lacan‖, objetivando compreender a importância dos primeiros
momentos da constituição subjetiva. Desta feita, em ―Trabalho de melancolia‖, à luz de
Rosenberg (2003), lidaremos com a possibilidade de articular a problemática
melancólica através da noção de ―destacabilidade do objeto‖. Assim, retomaremos a
18

discussão sobre o superego, a fusão e desfusão pulsionais, o sentimento inconsciente de


culpa, o masoquismo, bem como sobre a clivagem, elementos que possuem
singularidade nessa patologia. Para tal, buscaremos suporte para nossas argumentações
nos autores pós-freudianos, tais como Lambotte, J. Lacan, Ferenczi, Kupermann,
Rosenfeld, Vertzman, Cintra, Moreira, Green, entre outros.

Imbuídos de uma consciência sobre a complexidade do tema, o terceiro capítulo,


―Ampliando a visão‖, convoca as contribuições de Melanie Klein e D. Winnicott na
expectativa de avançarmos no debate em torno da sublimação na melancolia.5
Discutiremos brevemente, então, a análise que Freud (1928[1927]) fez do escritor
Fiódor Dostoievski.

―Imóvel tóxico do tempo: melancolia e sublimação em perspectiva‖, quarto capítulo


desta dissertação, pensará, sob os auspícios dos debates anteriores, na dimensão do
tempo, fator que acreditamos ser fundamental no entendimento da desfusão pulsional
tanto na melancolia quanto na sublimação.

Finalmente, nosso último capítulo, ―No entre-lugar do eu: a obra de Ana Cristina
César‖, se debruçará, com os recursos metapsicológicos adquiridos ao longo desta
trajetória, sobre o trabalho da poeta Ana Cristina César. Esperamos encontrar elementos
que nos permitam tensionar e iluminar a teoria até então conhecida sobre os limites da
sublimação, bem como sua participação na construção ou no desencadeamento de uma
melancolia.

As páginas conclusivas deste texto revisitarão nossa hipótese em busca de traçar


considerações finais e possíveis questionamentos a serem perseguidos, tanto em relação
a este arcabouço teórico, quanto no que tange à fortuna crítica da autora

5
Neste trabalho buscaremos fazer um exercício do que é chamado por Luis Cláudio Figueiredo de um
pensamento complexo em psicanálise que, ao invés de subtrair a contribuição de uma escola psicanalítica
em função de outra, busca-se os pontos em que cada uma delas irá suplementar a outra, e assim, tentar
compreender as múltiplas facetas do fenômeno clínico que sustenta nossa atividade teórica.
19

Atrás dos olhos de Ana C.

Ana Cristina César, poeta carioca nascida em 1952, é um ícone da poesia marginal
brasileira, do movimento de contracultura dos anos 1970, herdeira de uma tradição
poética que vai de Mallarmé, Baudelaire, Whitman, Dickinson, até T.S Eliot, Mansfield,
Plath, Bishop, Bandeira e Drummond. A poesia chamada "confessional", ou
autobiografia ficcional era um modelo no qual ela se encontrou e trabalhou para
imprimir seu estilo.
A literatura aparece muito cedo na vida de Ana C. Filha de um editor de revista e de
uma professora de literatura, aos quatro anos, antes mesmo de saber escrever, ela já
fazia poemas que foram ditados e registrados por sua mãe. Ela andava de um lado para
o outro do sofá recitando poemas enquanto sua mãe os escrevia. Aos sete anos teve seu
primeiro poema publicado. Ana C.(1992, p.82) nos conta:

eu era menina e já escrevia memórias, envelhecida. O tempo se fazia


ao contrário. De noite não dormia enquanto meus olhos viam as luzes
dos automóveis velozes no teto. Quando me virava de bruços vinha o
diabo e me furava as costas com o punhal de prata. As Mãos se
interrompiam à meia-noite quando chegava o anjo mais escuro que o
silêncio.

O tempo se fazia ao contrário, ―o tempo é a economia de uma escrita". (DERRIDA,


1995, p.220).
Armando Freitas Filho − amigo íntimo de Ana C. e também escritor – nos fala que
Ana C. encarava a modernidade e ―talvez por isso tenha morrido cedo − pura passagem
permanente − muitas asas e um desdém pelo que poderia ser raiz‖ (1998) 6.
O projeto literário de Ana C. aparece enunciado no poema que se intitula ―Estou
atrás‖. O título alude tanto a uma busca quanto a uma posição − estar atrás do espelho
da palavra.

6
Armando Freitas Filho foi o depositário do acervo de Ana C., por vontade expressa da poeta. Junto à
família, um ano após a sua morte, começa a organizar o primeiro arranjo desse material que será
publicado como Inéditos e dispersos (1998), livro onde encontramos na contracapa a frase por nós citada.
20

Estou atrás

Do despojamento mais inteiro


Da simplicidade mais erma
Da palavra mais recém-nascida
Do inteiro mais despojado
Do ermo mais simples
Do nascimento a mais da palavra 7

A busca pelo ideal literário de se aproximar do ponto de nascimento a mais da


palavra irá cobrar um preço alto. Chegar perto do a mais do nascimento da palavra é
buscar aquilo que está para lá deste. Buscar esse além implica fazer morrer a palavra
para que depois ela possa renascer. Como Ícaro que voou perto demais do sol e teve
derretidas suas asas feitas de cera de abelhas e penas de gaivotas, a poeta talvez tenha
ultrapassado o ponto do limite que garantiria a sua integridade. Ir além desse ponto é
arriscar a queda mortal. Existe uma radicalidade na poesia de Ana C., sendo essa,
talvez, a marca que a distanciava de seus companheiros de geração. Sua poesia se
assemelha a uma escrita confessional e autobiográfica, mas a poeta nos avisa:
―Literatura não é documento‖ (1979)8. Quais teriam sido os efeitos desse modo especial
de literatura que produz uma ―autobiografia ficcional‖?
Ana C. trabalhou intensamente para buscar uma voz própria em sua escrita. A voz
encontrada é capaz de seduzir o leitor a sentir-se muito íntimo, quase cúmplice e
testemunha de uma história de paixão e, também, de silêncios. Sua escrita ficcionalizava
o confessional e a autobiografia, confundindo seu leitor que acredita fazer parte do
diálogo ao qual a escritora convida, ao mesmo tempo em que se esquiva. Vida e obra
parecem a todo tempo se confundir. Talvez Ana C. tenha trazido à superfície do corpo
do poema a experiência radical do encontro com o não sentido9. O ficcional terminaria
por revelar-se: a verdade seria uma ficção.
De acordo com Lambotte (1997), o eu do melancólico teria sido presa das pulsões de
morte que não foram suficientemente neutralizadas por falta de uma energia erótica em
quantidade suficiente. O ferimento narcísico não torna possível o represamento da
libido, escoando pelo buraco vazio que aparece no lugar da imagem integrada do corpo,
a qual deveria ter sido oferecida pelo outro. A dinâmica aqui se parece com a ―imagem

7
Poema escrito em 28-05-69. (CÉSAR, 1998, p.51,)
8
Título do ensaio publicado em 1979, resultado da pesquisa realizada durante o curso de mestrado em
comunicação na UFRJ. (CÉSAR, 1999).
9
A palavra sentido aqui pode ser entendida tanto como percepção quanto como direção e significado.
21

da bomba aspirante que se nutre paradoxalmente do vazio que ela mesma provoca‖, que
nos fala Lambotte (1997.p.63).
Pensamos, com a autora, que ―a imagem do corpo se constrói na relação identifica
tória com o outro e na caução que este traz à experiência que a criança atravessa‖
(LAMBOTTE, 1997, p. 205). Observamos no sujeito melancólico:

um comportamento destinado a evitar, não o objeto como tal, mas a


ilusão de identidade que ele supõe e da qual o sujeito jamais se tornou
cúmplice. Ou seja, à falta de uma imagem especular suficientemente
investida, o melancólico se esforçaria em atenuar esta falha de ilusão
ou de imaginário− e, por isso mesmo, de desejo − negando
vigorosamente tudo o que se assemelharia a logro e mentira, frente a
uma verdade encontrada muito cedo: a da irredutível ficção que define
o sujeito. (1997, p.207, grifos no original)

Ana C. parecia buscar uma maneira de se defender dos efeitos que sua própria poesia
produzia em si. Os poemas de títulos sugestivos, como ―O último adeus I‖, ―O último
adeus II‖, ―O último adeus III‖, ―Contagem regressiva‖, ―Nada, Esta espuma‖, e ―Fogo
do final‖ − sendo este o último poema de A teus pés(1982∕1992) − são contrapostos ao
que ela chamou de ―cadernos terapêuticos‖. Ela escreve:

Preciso começar de novo o caderno terapêutico.


Não é como o fogo do final. Um caderno
terapêutico é outra história. É deslavada. Sem
luvas. Meio bruta. É um papel que desistiu de
dar recados. Uma imitação da lavanderia com
suas maquinas a seco e suas prensas a vapor. Um
relatório do instituto nacional do comércio,
ríspido mas ditoso, inconfessadamente ditoso.
Nele eu sou eu e você é você mesmo. Todos nós.
Digo tudo com ais à vontade. E recolho os restos
das conversas, ambulância. Trottoir na casa.
Umas tantas cismas. O terapêutico não se faz de
inocente ou de rogado. Responde e passa as
chaves. Metálico, estala na boca, sem cascata.
E de novo.(CÉSAR, 1982/1992, p.53)

É interessante o que a poeta aponta aqui: haveria dois tipos de escrita, uma mais
próxima do ―fogo do final‖ e outra, mais próxima da contenção. Como indicou
Carvalho (2003), haveria uma escrita pulsional e uma escrita do recalque. Entendemos,
desse modo, que os cadernos terapêuticos teriam a função de curar aquilo que a própria
escrita (pulsional) teria provocado. Três meses antes de sua morte, Ana Cristina
22

pergunta em um poema: ―a poesia pode esperar?‖ (CÉSAR, 1998, p.175)10 A resposta


vem em outro poema escrito no mês seguinte: ―Não, a poesia não pode esperar‖
(CÉSAR, 1998,p.76)11. Em ―Contagem Regressiva‖, escrito no período de 1982 a 1983
escreve: ―Os ramais piscam: ‗estou cansado de todas as palavras‘12. O que se entrevê
aqui é que o esforço de composição poética, o qual busca uma originalidade e estilo
próprio irá cobrar um preço que será pago com o próprio corpo da artista. Ana C.
escreve: "Os poemas são para nós uma ferida‖. (CÉSAR, 1998, p.164)
De acordo com elaborações freudianas, a dor é o afeto representante da melancolia.
A dor psíquica, em analogia à somática, seria como uma ferida que concentra para si
todos os investimentos e esforços do corpo para que o tecido rompido seja reconstruído.
A ferida narcísica que encontramos nos melancólicos seria um esgarçamento do tecido
psíquico que carece de sentido para se reestruturar e se recompor. Como seria possível
reconstruir, então, essa rede esburacada de sentidos? Imaginamos que o outro, ou a
linguagem, através da oferta de palavras que nomeiam a experiência seria capaz de nos
oferecer material para essa tecelagem. Contudo, os versos dizem:

Estas areias pesadas são linguagem.

Qual a palavra que


Todos os homens sabem?(CÉSAR, 1998, p.124)

A investigação da escrita e sua função na vida de escritoras suicidas como Ana


Cristina César, e lembramos aqui também de Virgínia Wolf, Silvia Plath, Florbela
Espanca, Paul Celan, David Foster Wallace, e outros tantos, nos leva a perguntar junto a
Carvalho: ―em vez de uma suposta precariedade da estrutura do eu, o que estaria em
jogo aqui não seria a precariedade da escrita, ou seja, seus limites como recurso
sublimatório?‖ (2003, p.170) Segundo a autora:

é forçoso relacionar a precariedade da escrita a algum conflito


emocional, não é para ressaltar a ―divisão do eu‖ ou sua suposta
―condição esquizóide‖, e sim para mostrar que a indissociação entre a
movimentação pulsional dessa escrita e o trabalho das forças
defensivas que se lhe contrapõem resulta em uma tensão ligada aos

10
Poema escrito em 13-06-83.
11
Poema escrito em 15-07-83. Ana C. morre em 28 de outubro de 1983
12
Ana C. neste poema, como em muitos outros, toma como suas as palavras dos poetas que lê. Seu texto
produz um labirinto que leva o leitor a buscar as referências aludidas, na esperança de desvendar os
segredos da poeta. A referência aqui é ao poema de Manoel Bandeira chamado ―Pousa a Mão na Minha
Testa‖: Não te doas do meu silêncio: ∕Estou cansado de todas as palavras. ∕ Não sabes que te amo? ∕Pousa
a mão na minha testa: ∕Captarás numa palpitação inefável ∕O sentido da única palavra essencial ∕- Amor.
23

limites da representação. As marcas dessa tensão estarão presentes no


domínio da escrita, embora não se possa dizer que a escrita liquidará o
conflito afetivo que a produziu. 13

Acreditamos que a escrita de Ana C. tem o efeito de produzir um traumatismo, uma


vez que a palavra fica destituída dos seus poderes de nomear a experiência. Talvez seja
também por esse motivo, que ela convoca o leitor a todo o momento a ser sua
testemunha. A poeta escreve:

Você se importaria de ler algo sórdido? Não, não é bem algo sórdido,
pelo contrário, é uma página importante que testemunha a obsessão de
registrar todos os pormenores de uma mente e todo o desenrolar da
história do pensamento. Eu me curvo e me escondo ante o que escrevi
ao me entregar totalmente a esta obsessão. E sinto inclusive o infeliz
medo da tua leitura, mas fico subitamente feliz porque percebo que
deste medo posso fazer outros textos que tematizem o medo e depois
falem do texto que escrevi para aplacar o medo e dos outros textos que
escrevi para aplacar os primeiros textos. (CÉSAR, 2008, p.114)

De acordo com Kupermann (2008, p.174), o processo criativo comporta um efeito


de desterritorialização que pode ser sentida como um desamparo, potencialmente
traumatizante. Em suas palavras,

a questão se torna mais complexa pelo fato de que os efeitos de


desterritorialização promovida pelas pulsões no psiquismo tendem a
ser experimentados como produtores de um estado de desamparo
(Hilflosigkeit) traumatizante para as subjetividades, sendo que o
paradoxo reside no fato de que esse mesmo estado de desamparo seria
a condição para a criação de novos territórios existenciais.

Ou seja, uma leitura ferencziana nos indica que aquilo que teria valor traumático
seria ―a impossibilidade de a criança atribuir sentido à dor produzida por não encontrar

13
Lendo Kristeva, a autora considera que ―isso se deve ao fato de que, sendo irredutível aos sentimentos,
o afeto no seu duplo aspecto de fluxo energético e de inscrição psíquica – embora fora da linguagem,
traduz-se com uma extraordinária fidelidade. Como a verbalização dos afetos tem uma economia
diferente da economia das ideias, ela não os torna conscientes, mas faz com que eles operem duplamente:
de um lado, redistribuem a ordem da linguagem e dão origem a um estilo. Por outro lado, apresentam o
inconsciente em personagens e atos que representam, na enunciação, as moções pulsionais proibidas e
transgressivas‖. Somos lembrados ainda que, para Freud, a literatura é ―uma encenação dos afetos no
nível intersubjetivo (os personagens) e no nível intralinguístico (o estilo).‖ (CARVALHO, 2003, p.170)
24

um terceiro capaz de testemunhar e acolher seu sofrimento. Quando há esse


reconhecimento, o trauma não se torna patogênico‖ (KUPERMANN, 2008, p.152).
A libido necessária para a criação é a mesma que carrega a história dos caminhos
percorridos dentro do aparelho psíquico com suas ligações, fixações, condensações,
deslocamentos e desligamentos. Escreve Ana C.(1998, p.87):

as palavras escorrem como líquidos


lubrificando passagens ressentidas.

O escritor, ao, e para, criar, precisa se aproximar daquilo que será transformado
(emoções, afetos, intensidades, representações) ficando, assim, novamente confrontado
com experiências que procuram sentidos e destinos. A criação e a arte podem promover
uma abertura de espaços psíquicos mais livres, onde as experiências podem ser
transformadas, além de serem capazes de representar algo para o artista e também para
o fruidor. Contudo, como podemos suspeitar através de Ana C., o processo criativo não
é sem riscos para aquele que cria, como também não o é para aquele que se utiliza dele.
Pelo contrário, provoca reaberturas que podem ser traumáticas, mas que ao mesmo
tempo, podem ser metabolizadas e simbolizadas. Ana Cristina César (1998, p.33)
escreve:

Talvez me irrite pisar no impisável


E a morte deve ser muito mais gostosa
Recheada com marchemélou
Uma lâmpada queimada me contempla

A poesia de Ana Cristina, ao mesmo tempo em que procurou ir ao limite da palavra,


também procurou se defender dos efeitos dessa escrita, através dos chamados ―cadernos
terapêuticos‖. A esperança de que uma escrita de contenção pudesse sustentar o trabalho
do que chamamos de ―escrita ferida‖ acabou não sendo suficiente para conter o
transbordamento pulsional ocasionado por ela. Lemos o poema intitulado ―Fagulha‖ da
série ―Do diário, não diário- Inconfissões‖ (1998, p.41):

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal
25

A escrita de Ana C. talvez tenha fragilizado os mecanismos de defesa que poderiam


oferecer uma proteção em relação à verdade mortífera do nada sobre o qual se erige a
própria identidade. ―Não quero mais a fúria da verdade.‖ (CÉSAR, 1992, p.76), diz o eu
da enunciação, e em outro poema: ―Não volto às letras, que doem como uma catástrofe.
Não escrevo mais.‖ (CÉSAR, 1992, p.77)
Pensamos que o encontro com o limite representacional da palavra na escrita poética
levaria, assim, a um (re)encontro com o nada, espelho vazio com o qual o sujeito
melancólico se depara nos primeiros tempos de sua constituição subjetiva. A ―estranha
familiaridade‖ (Unheimlich) com a dimensão necessária do engano, da ficção necessária
para a identificação do eu com a imagem que lhe é atribuída pelo olhar do outro, traria à
tona a dificuldade experimentada por esses sujeitos de tomar consciência de seu corpo,
de seu espaço e de seus limites. Ana C., ao buscar ―o nascimento a mais da palavra‖,
encontra a própria morte da palavra, que não mais representa e nem comunica. O buraco
aparece como um abismo que não mais possuirá contorno nem moldura. O risco de tal
empreendimento estético é a irreversibilidade de tamanha desconstrução, uma vez que o
buraco se assoma à ferida psíquica responsável por, paradoxalmente, promover o ato
criativo.
Seguiremos a análise de nossa pesquisa após comentarmos o poema escrito mais de
quatorze anos antes da morte de Ana Cristina César. O poema assombra o leitor que irá
se deparar com o vazio produzido pela própria escrita. Vemos como ali, a função
representativa da palavra é colocada em xeque, sendo que seu caráter ilusório aparece
através da repetição ad nauseam da palavra ―janela‖. A busca do ideal literário
encontrou, ao fim, a palavra enquanto coisa, palavra cuja forma não garante mais o
sentido. Sentido que, talvez, fosse o próprio motivo de toda a busca. Ao lermos esse
poema, escrito em fevereiro de 1969, sofremos um efeito de tensão e desconstrução,
resultado que ganha ainda mais intensidade através da significação que só podemos lhe
dar a posteriori, após sabermos que a escritora se lançou para a morte, da janela de seu
quarto:

Ela ficava olhando pela janela


vertendo seu único olho pela janela
com o pé em cima da janela
Ela ficava olhando pela janela
O dia inteiro o olho, o pé, a janela
em cima embaixo pelos lados da janela
26

Ela ficava olhando pela janela


um dia ela cansou de olhar e fechou a janela
mas era dura e não fechava a janela
Ela ficava olhando pela janela
às vezes tentava mas logo esquecia da janela
que sempre aberta com um olho e um pé a janela
Ela ficava olhando pela janela
até que seus pensamentos dissociaram a janela
que caiu inteiriça, e era uma caída janela
Ela ficava olhando pela janela
que não era, nem existia como janela:
Ela ficava olhando pelo buraco
(CÉSAR, 1998, p.49)

A palavra janela aparece várias vezes em sua obra, sendo um importante significante
que nos remete ao dentro e o fora, à moldura, ao não lugar, ao enquadre, ao alcance da
vista, à privacidade e à alteridade, ao mundo externo e ao mundo interno. De acordo
com Lambotte (1997), o suicídio por defenestração (deixar-se cair ou lançar-se pela
janela) é próprio da melancolia. A janela funciona como a metáfora do olhar do
materno, olhar que não teria devolvido a imagem do eu que deveria ali ser refletida,
depositada. ―A defenestração do melancólico se assevera no impulso do sujeito de unir-
se o nada, que ele, desde sempre, presume subsistir atrás das coisas‖ (MASSA, 2012,
p.86). Como desenvolveremos no segundo capítulo ―A melancolia‖, a criança irá
identificar-se com o objeto do olhar perdido de uma mãe deprimida, aquele que não
reflete o que vê, mas se perde no horizonte ilimitado e não representável.
27

Cap. I A Sublimação

A animalidade dos signos me inquieta. Versos a galope descem alamedas a


pisotear-me a alma ou batem asas entre pombos pardos da noite.

Ana C. 14

Na obra póstuma Antigos e Soltos (2008), olhamos, pela fresta das páginas, o
processo criativo de Ana C. Testemunhamos as diversas versões de um mesmo poema,
os cortes e edições, as mudanças de termos, um apagamento leve de palavra que ainda
se deixa entrever, a caneta em fúria que escurece nossa visão. Em uma de suas cartas
Ana C. pergunta se os seus cortes nos poemas seriam atos-falhos. Trazemos aqui um
exemplo, sem a edição final que calaria os versos suprimidos, pertencente à sessão
―Prontos, mas rejeitados‖, escrito enquanto Ana Cristina César ainda era jovem:

Metalinguagem Falida

Não posso não posso mais falar do ato de escrever


Não há mais metáforas para o ato de escrever
Me sinto morta ao redigir o ato de escrever
Me sinto ___ porca ao lamber o ato de escrever
Se falo no poema. No sujeito do ato de escrever
Não há como conviver com o ato de escrever
Não há mais como aguentar
Não há como resolver o aflito ato de escrever
Na mãe. No desejo na paisagem nos bichos
Vejo apenas metáforas para o ato de escrever
reflexos falidos problemas antigos
me castigo, me ausento, me evito esse problema
no jardim
obsessivamente
por toda parte obsessivamente já começa
ocupa obsessivo metade da minha vida
e é preciso que obsessivo saia da outra metade
para dar lugar enfim ao ato de foder
(CÉSAR, 2008, p.108, grifos nossos, traços no original)

14
(CÉSAR, 2008, p.22)
28

As frases cortadas parecem ter uma função que não é somente estética. O que
significaria para a autora os cortes serem atos falhos? Em outro poema escreve: ―o
desespero precisa ser discreto, soletrado numa pequena esquina (2008, p.232). O
programa estético de Ana C. vai em direção ao fragmentário, ao impessoal; escrever até
que não haja mais resquícios de subjetividades. Então, ―como conviver com o ato de
escrever ?‖ (CÉSAR, 2008, p.108)
É ao conceito freudiano de sublimação que iremos recorrer para entender a relação
entre criação e criador, entre a sexualidade, a necessidade de refreamento da
sexualidade e ao mesmo tempo, a importância da ressexualização da pulsão.

1.1 Um final feliz para a pulsão?

Não, amor, isto não é literatura.

Agora que você chegou não preciso mais me roubar. E como farei com
os versos que escrevi?

Ostento biográficas palavras embora maneta e sem luneta. Tarde


demais esse amor sem dedos.

Ana C.15

A sublimação é um conceito utilizado por Freud para explicar o processo criativo e a


capacidade do sujeito de abrir mão dos seus desejos sexuais diretos e egoísticos em
função da cultura. Entretanto, ao longo da obra freudiana não encontramos um texto
exclusivamente dedicado à ela16. Alguns leitores da obra freudiana consideram a
sublimação apenas como uma noção, alegando que uma falta de formalização e uma
forte aproximação com conceitos aos quais se misturaria – como formação reativa,
sintoma, e a simbolização – não a permitiria ser elevada a um conceito. Mijolla-Mellor
(2011, p.37) nos diz que a noção de sublimação ocupa uma posição paradoxal por não

15
(CÉSAR, 1998, p.181). A segunda estrofe foi escrita em setembro de 1983. A terceira estrofe está em
César, (2008, p.66)
16
Segundo Strachey, Freud teria destruído o artigo metapsicológico sobre a sublimação junto a outros
trabalhos em 1915. (Cf.: KUPERMANN, 2003, p.65)
29

ter sido totalmente definida por Freud e ao mesmo tempo ser indispensável ao edifício
teórico da psicanálise, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo.
A inquietação de Freud com a arte está presente desde as cartas à Fliess 17 até os
últimos textos, nos mostrando que o acertado conhecimento intrapsíquico que os
escritores criativos demonstravam continuaram a trazer a compreensão interna (insight)
que a psicanálise se esforçava para alcançar.
Freud declara inúmeras vezes tanto que a psicanálise não conseguiria explicar o
gênio nem o artista, quanto que não caberia a ela fazê-lo. Em o ―Interesse da psicanálise
do ponto de vista da ciência da estética‖ (1913) ele nos diz:

A psicanálise esclarece satisfatoriamente alguns dos problemas


referentes às artes e aos artistas, embora outros lhe escapem
inteiramente. No exercício de uma arte vê-se mais uma vez uma
atividade destinada a apaziguar desejos não gratificados – em primeiro
lugar do artista e, subsequentemente, de sua assistência ou
espectadores. As forças motivadoras dos artistas são os mesmos
conflitos que impulsionam outras pessoas à neurose e incentivam a
sociedade a construir instituições. De onde o artista retira sua
capacidade criadora não constitui questão para a psicologia. (FREUD,
1913, p.222)

Essas assertivas freudianas sempre funcionaram como uma espécie de ressalva que
permitia com que ele fizesse, com menos resistência, exatamente aquilo que havia dito
não ser possível ou até mesmo permitido. Sarah Kofman (1996) nos demonstra essa
tendência ao longo da obra freudiana e nos alerta para a diferença entre o que ele dizia e
aquilo que fazia em relação às interpretações de obras de arte, como vemos no ―Édipo
Rei‖, ―A Gradiva‖, Leonardo da Vinci, Dostoievski, entre outros. Ainda segundo a
autora, podemos identificar o método desenvolvido para se aproximar da obra de arte
que é fruto de inspiração e investigação.
O método freudiano consistiria em partir do efeito de afeto produzido pela obra sobre
o fruidor para voltar ao afeto experimentado inicialmente pelo artista – o que nos leva a
interrogar sobre os meios que foram capazes de produzir transformações de afeto neste
e no fruidor. Tais meios procedem de uma combinatória simbólica que o artista domina.

17
Em carta de 15 de outubro de 1897, Freud escreve para Wilhem, Fliess sobre suas descobertas sobre a
interpretação do sonho e reconhece em si mesmo o fenômeno Edípico. Neste contexto, cito:
―Passou-me fugazmente pela cabeça a ideia de que a mesma coisa estaria também na base de Hamlet.
Não estou pensando na intenção consciente de Shakespeare, mas creio, ao contrário, que um
acontecimento real tenha estimulado o poeta a criar sua representação, no sentido de que seu inconsciente
compreendeu o inconsciente de seu herói.‖. (Carta 71, p.283)
30

A arte, que é uma espécie de jogo simbólico, permite uma alteração econômica ao
transformar o afeto. Em ―Leonardo da Vinci e uma Recordação de infância‖ (1910,
p.98) lemos:

Uma natureza generosa deu ao artista a capacidade de exprimir seus


impulsos psíquicos mais secretos, aqueles que ele próprio não
percebe, por meio das obras de arte que ele cria, e essas obras têm um
efeito poderoso sobre aqueles que não conhecem o artista e
igualmente ignoram a fonte de emoção que sentem (...). Entretanto, se
considerarmos as profundas transformações pelas quais uma
impressão da vida de um artista deve passar antes de estar autorizada a
contribuir para um trabalho artístico, seremos forçados a manter em
limites muito modestos o direito à certeza da demonstração.

A sublimação faz referência à definição química do processo definido como uma


passagem direta de um corpo, sem intermédio líquido, do estado sólido ao gasoso.
(LAPLANCHE, 1989, p.11). Outro sentido do termo sublimação é o que implica a
passagem por um limiar ou de um "limite‖ (limens) (MIJOLLA-MELLOR, 2011, p.41).
Limites que devemos reconhecer na economia e na dinâmica sublimatória. Trata-se de
um processo onde a transformação dos elementos psíquicos vigora e o aumento de valor
atribuído ao material sublimado viria da sua distância do sexual, da sua capacidade de
formar laço social e parte das nossas pulsões virarem ternura. (MIJOLLA-MELLOR,
2011, p.41). Com Kofman (1996, p.186) acreditamos que apesar da noção de valor
incluída no termo, a sublimação é um conceito metapsicológico e não moral.
Para Freud, a pulsão ou energia libidinal seria suscetível de transitar das atividades
sexuais para as atividades não sexuais e a sua referência à valorização social nos leva a
questionar se ela é determinante para definir as atividades sublimatórias. ―O que está em
questão será a utilidade para a sociedade, será, de modo mais profundo o
reconhecimento pelo outro ou pelos outros, será o valor de comunicação e até mesmo o
valor de linguagem‖? (LAPLANCHE, 1989, p. 12)
Em ―Os três ensaios sobre a sexualidade infantil” (1905), conhecemos o caráter
perverso polimorfo da pulsão sexual. São apresentados alguns componentes da
sexualidade, a qual é sempre parcial e busca uma organização. Torna-se claro como o
objeto da satisfação sexual é contingente, sendo necessária uma rede de significações
para unir a pulsão e o objeto. A sublimação aparece no segundo ensaio, aproximada à
noção de formação reativa às fantasias histéricas e também como defesa contra o caráter
do erotismo anal. (Cf. FREUD, 1905, p. 183) Aqui são apresentados três destinos para a
31

sexualidade infantil – esquema parecido com o que veremos anos depois no estudo
sobre Leonardo da Vinci em 1910. O recalque da disposição sexual infantil pode
resultar na perversão, no sintoma neurótico e na sublimação. O sintoma seria uma obra
de arte não compartilhada, ao passo que esta deve ser compartilhada. O recalque deveria
inibir o sexual infantil, mas também deixar um resto de libido destinado à sublimação.
Este mecanismo ainda não exclui o risco de que a inibição predomine.
Segundo Freud, as forças que motivam os artistas são os mesmos conflitos que se
traduzem em neuroses e incentivam a sociedade a construir suas instituições. Isto é, a
tentativa do mecanismo mental é a de aliviar o indivíduo das tensões nele criadas por
suas necessidades, o que em parte pode se dar extraindo-se satisfação do mundo
externo. Porém, para se obter satisfação no mundo real, é necessário possuir controle
sobre ele. Os impulsos afetivos são regularmente frustrados pela realidade, o que leva a
uma nova tarefa de encontrar meios de manejar sua insatisfação. A maneira encontrada
pelo artista é representar como realizadas suas fantasias mais pessoais, plenas de desejo,
mas elas só se tornarão obras de arte quando passarem por uma transformação que
atenua o que nelas é ofensivo, oculta sua origem pessoal e, ao obedecerem às leis da
beleza, seduzem outras pessoas com uma gratificação prazerosa.
Em ―Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen‖ (1906), vemos como são submetidos à
investigação os sonhos das personagens criadas por escritores imaginativos no curso de
uma história ficcional.18 Sobretudo, neste texto, Freud manifesta sua admiração pelos
escritores e poetas que, aparentemente sem esforço, possuem um conhecimento acertado
dos processos psíquicos.
Sabemos da preferência explícita pela literatura como forma de arte, especialmente
pelos clássicos como Goethe e Shakespeare19. Contudo, teremos que lembrar que Freud
elegeu um poeta contemporâneo a ele, Arthur Schnitzler (1986-1931), como seu
―duplo‖ (Doppelgängerscheu). Em uma carta apaixonada ao poeta (CF. KON, 1996)
escreve:

18
Às voltas com a questão da arte e da criação, atento às implicações que a arte moderna teria para a
psicanálise, Green questiona se a psicanálise nos modelos freudianos seria capaz de interpretar a arte
moderna. (GREEN, 1971)
19
Entre os autores mais citados por Freud estão: Sófocles, Heine, Ibsen, Flaubert, Rabelais, Zola, Diderot,
Bocage, Oscar Wilde, Bernard Shaw, Dostoievski, Molière, Swift, Homero, Horácio, Macaulay, Tasso,
Hoffmann, Schiller, Mark Twain, Aristófanes, Thomas Mann, Stefan Zweig, Hebbel, Galsworthy,
Cervantes, Hesíodo, entre outros. (KOFMAN, 1996, p.28)
32

Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações,


parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições
antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus
próprios. [...] Carta de 14 de maio de 1922. (FREUD apud KON, 1996,p.38-
20
39)

A carta confirma o que Baas (2001, p.115) diz: ―é o artista que interessa a Freud,
mais que o amador da arte, na elaboração do processo sublimatório‖. Entretanto, Freud
está mergulhado nesse lugar de apreciador, de leitor da arte. Depois da ―Gradiva‖, ele
descobre que os sonhos inventados por um escritor serão suscetíveis às mesmas
interpretações que os sonhos reais, e assim, na produção do poeta estão em jogo os
mesmos mecanismos do trabalho de elaboração do sonho.
―Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen‖ (1906) é um texto divisório; ali, Kofman
(1996, p.59) nos diz que ―Freud teria passado de uma atitude de admiração frente aos
artistas para uma certa desilusão. A obra de arte muda do status de modelo
paradigmático confirmador do conhecimento psicanalítico: ela própria se torna objeto
de investigação.‖21
Kofman (1996) nos conta um detalhe curioso da história entre psicanálise e arte.
Quando se buscou um comentário de Jensen, autor da Gradiva, sobre a interpretação
feita de sua obra, o autor respondeu de mau humor que as negava. O que não abalou
Freud em suas convicções, ao contrário, ele diz que não há nada estranho para nós que o
autor desconheça o seu próprio saber. ―Mas o que pode ser o psiquismo, ele próprio,
senão um texto, para poder ser ―representado‖ por um texto? Não é só o texto da obra
que estrutura a vida do escritor em um texto, ao estruturar os seus fantasmas?‖
(KOFMAN,1996,p.57) A conclusão que encontramos neste artigo é que:

O poeta, [...] concentra sua atenção no inconsciente de sua própria


alma, aguça o ouvido para todas as virtualidades e lhes confere
expressão artística, ao invés de recalcá-las pela crítica consciente. Ele
aprende pelo interior de si mesmo o que nós aprendemos pelos outros:
quais são as leis que regem a vida do inconsciente; mas ele não tem a
menor necessidade de exprimí-las ou de percebê-las claramente;
graças à tolerância de sua inteligência, elas são incorporadas às suas
criações. Nós extraímos essas leis da análise de suas obras, da mesma
maneira que desenredamos dos casos mórbidos reais (...) Ou ambos, o

20
In: Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud (Rio de Janeiro, Imago, 1989, vol.3, pp 430-431.
21
O conhecimento endopsíquico do artista adquirido por Freud na Gradiva mostra que o ―artista não sabe
verdadeiramente o que diz e diz mais do que acredita estar dizendo: Platão já expulsava os poetas de sua
cidade ideal, entre outros motivos por esse.‖ (KOFMAN, 1996, p.28)
33

poeta e o médico, compreenderam mal o inconsciente, ou nós dois o


compreendemos muito bem.‖ (FREUD,1906,p.93)

Em ―Escritores criativos e devaneios‖ (1907) Freud se pergunta se devemos procurar


traços de atividade imaginativa já na infância. Pode-se dizer que, na brincadeira, toda
criança se comporta como um escritor criativo, pois constrói um mundo próprio e
reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade. A antítese do
brincar não é o que é sério, mas o que é real. A irrealidade do mundo imaginativo dos
escritores permite que aquilo que presenciamos como expectadores nos cause prazer, o
que não aconteceria caso fosse realidade. A fantasia criada por um escritor criativo
funciona como a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. Os
desejos encontrados podem ser eróticos ou são do tipo que elevam a personalidade.
A tese que permite a comparação da criação poética como devaneio diz que uma
forte experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma
experiência anterior (infância). Essa recordação dá origem a um desejo que encontra
realização na obra. A própria obra revela ocasiões motivadoras do presente e da
lembrança antiga. O indivíduo que devaneia oculta suas fantasias dos demais porque
sente ter razão para se envergonhar das mesmas, acreditando que seu relato causaria
repulsa. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e
disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético22, que nos
oferece na apresentação de suas fantasias. Freud nos diz que o efeito produzido por uma
obra literária é a libertação de tensão em nossas mentes, talvez porque ela permita que
nos deleitemos com nossos próprios devaneios, sem autoacusações. Quando as fantasias
se tornam exageradamente profusas e poderosas, estão presentes as condições para o
desencadeamento da neurose. Nossos sonhos noturnos são fantasias, nos quais os
desejos reprimidos e seus derivados são realizados através da distorção onírica. (CF:
FREUD, 1907, p.154) Nas histórias dos escritores criativos analisados por Freud, há
sempre um herói a quem nada pode acontecer.
Em uma coletânea póstuma que reúne a obra de Ana C. encontramos uma narrativa
ilustrada pela mesma na qual podemos perceber, como em um movimento antecipatório,
a temática do suicídio e da morte. Vemos:

22
O termo estético será entendido não só pela categoria do belo, mas também das sensações, como Freud
descreve em ―O estranho‖ (1919).
34

A imagem acima faz parte de uma história que foi desenhada e escrita por Ana C.
ainda criança (Cf: CÉSAR, 1998, p.18). Nos chama atenção o fato de que sua primeira
tentativa de suicídio foi lançando-se ao mar, por volta de um mês antes de sua morte.
Ao contrário da análise que Freud faz dos escritores, na história da poeta ainda criança,
não existem heróis e a princesa se atira no mar.
Em ―A moral sexual civilizada e doença nervosa moderna‖ (1908),um eterno mal
estar fica instituído, uma vez que é necessário abrir mão da satisfação imediata e sofrer
a operação de mudança na relação com o objeto primordial de amor. Essa intervenção,
renúncia à qual todo sujeito precisa passar para tornar-se um ser parte da cultura,
implica uma retirada da libido investida no objeto, uma dessexualização e uma posterior
escolha por um alvo não sexual. A entrada na cultura seria um efeito da sublimação,
assim como também toda produção cultural. A capacidade de sublimação, o que levaria
a alguns serem artistas ou escolher esse destino da pulsão não é totalmente esclarecida
por Freud (1908, p.193)
35

Esse instinto (instinto sexual) coloca à disposição da atividade


civilizada uma extraordinária quantidade de energia, em virtude de
uma singular e marcante característica: sua capacidade de deslocar
seus objetivos sem restringir consideravelmente a sua intensidade. A
essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não
mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro, chama-
se capacidade de sublimação.

É necessário o refreamento dos instintos, mas, com isso, corre-se o risco do


adoecimento nervoso. O aparelho psíquico, comparado com uma máquina, só pode
transformar um tanto de energia:

(...) A essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro,
não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro,
chama-se de capacidade de sublimação. (...) Entretanto, não é possível
ampliar indefinidamente esse processo de deslocamento, da mesma
forma que em nossas máquinas não é possível transformar todo o
calor em energia mecânica. Para a grande maioria das organizações
parece ser indispensável certa quantidade de satisfação sexual direta, e
qualquer restrição dessa quantidade, que varia de indivíduo para
indivíduo, acarreta fenômenos que, devido aos prejuízos funcionais e
ao seu caráter subjetivo de desprazer, devem ser considerados como
uma doença. (1908,p.153, grifos nossos)

No trabalho sobre Leonardo da Vinci, Freud (1910, p.120) nos dirá que ―a repressão
quase total de uma vida sexual real não oferece as condições mais favoráveis para o
exercício das tendências sexuais sublimadas‖ Neste trabalho ele faz uma faz uma
patografia – um estudo sobre a mente a partir da obra e dos dados biográficos
disponíveis – do artista. A atividade de pesquisa no início da vida desse artista é
interpretada por Freud como a sublimação de sua curiosidade sexual. Segundo ele, a
relação muito próxima entre Leonardo e sua mãe, bem como sua origem ilegítima,
teriam tido uma influência decisiva no destino do artista e sua obra:

A repressão sexual que se estabeleceu depois dessa fase de sua


infância levou-o a sublimar sua libido na ânsia de saber e estabelecer
sua inatividade sexual para o resto de sua vida. [...] É provável que
uma outra pessoa não tivesse conseguido livrar da repressão a maior
parte da libido sublimando-a numa sede de conhecimentos; sob as
mesmas influências teria sofrido perturbação permanente de sua
atividade intelectual ou adquirido uma disposição incoercível para a
neurose obsessiva. (FREUD, 1910, p.123)
36

Apesar da sublimação ter sido apontada como uma alternativa ao sintoma psíquico,
vemos que as atividades sublimatórias de Leonardo da Vinci estão acompanhadas de
sofrimento desde o início da vida, aparecendo na inibição de suas produções, na
dificuldade de realização sexual e nos sintomas obsessivos. Dessa forma, mesmo sendo
considerado como especial na sua capacidade de sublimar, Da Vinci também tinha uma
―tendência especial para a repressão dos instintos‖ (FREUD, 1910, p.123). A
sublimação não era uma forma de cura para seus sintomas.
A tendência homossexual do pintor seria um tipo de escolha narcísica de objeto que
ocorreu devido à impossibilidade de aceitar a perda do vínculo libidinal com a mãe.
Com o temor desta ameaça, ―o menino reprime seu amor pela mãe; coloca-se em seu
lugar, identificando-se com ela, e toma a si próprio como um modelo a que devem
assemelhar-se os novos objetos de seu amor‖ (FREUD, 1910, p.92). Assim, os jovens
parceiros representariam duplos de si mesmo. Neste momento da obra freudiana ainda
não havia uma distinção entre autoerotismo e narcisismo.
Observa-se, neste caso, como a atividade científica ganha mais interesse que a
artística com o passar dos anos, como se esta o aproximasse mais de respostas e de uma
tentativa de elaboração daquilo que seriam suas investigações sexuais infantis. Eissler
em seu estudo sobre Leonardo, supõe uma espécie de circuito de ―evacuação do
traumatismo‖ olho-mão, uma vez que não há uma impressão que Leonardo não deva
passar imediatamente para o desenho. Assim como em uma aproximação com Goethe
também haveria uma espécie de

[…] conversão imediata em verso de toda e qualquer experiência


sensível, como se a poesia surgisse diretamente de todas as impressões
cotidianas. Em última análise, vemos que o modelo do traumatismo é
também um modelo de defesa contra o traumatismo. Defesa ou
elaboração? Defesa ou simbolização?(LAPLANCHE, 1989,p.187)

Essa característica de ter que anotar tudo que via, transformar tudo em poesia, era
também uma característica de Ana C., que andava sempre com um caderninho na mão.
Para Laplanche, essa ―evacuação do traumatismo‖, mencionada anteriormente,
trataria-se de uma simbolização:

De fato deveríamos conceber a elaboração artística, essa elaboração


no desenho (desenho teria que se distinguir da pintura), como
37

elaboração ao mesmo tempo do ataque interno e do ataque externo, do


que Freud chama a excitação e do que chama ou do que se traduz por
estímulo. […]Pois bem, poder-se-ia dizer que a simbolização na obra
de arte desfaz esta distinção, desfaz até a relação metafórica entre o
externo e o interno. Ela reúne o externo e o interno para retomá-los
num outro nível de símbolo.(LAPLANCHE, 1989,p.190)

A obra comportaria, então, essa função de elaboração, ao ser o que permite um


tratamento daquilo que seria potencialmente traumático.
No estudo de 1910 há sempre uma oposição entre a sublimação artística que acontece
em um tempo mais tardio – ligada à alegria de viver – e a sublimação intelectual,
originária – que anima, mas também paralisa a criação artística. A ―inspiração‖ é
considerada um outro pólo da sublimação que permitiu Laplanche trilhar novas pistas
sobre Leonardo. Lemos em ―Sublimation ou Inspiration‖ (1999):

[…] a criação é como que perfurada pelo vetor de conhecimento […]


e como a criação vem do indivíduo ela é narcísica, mas isso que o
chama e o orienta, é um vetor vindo do outro. […] E tudo que o
sujeito pode fazer é ficar aberto ao trauma e para o trauma.
(LAPLANCHE, 1999, p.331, tradução livre)

A relação do artista com seu pai também aparece como fator importante em sua obra.
Com Lage (2008) destacamos a curiosa afirmação de Freud de que essa relação seria
repetida no tratamento que dava aos seus trabalhos:

Para Leonardo, o reflexo de sua identificação com o pai foi prejudicial


para sua pintura. Freud entende que Leonardo tratava sua criação
como seu pai outrora tratou a dele, ou seja, restabelece-se uma
similaridade entre a relação do artista com o pai e a relação do filho
com sua criação. Ele reconhece, também, nessa impossibilidade de
concluir, a presença de ―ambições enormes, difíceis de satisfazer‖, que
podem ser a manifestação da outra face dessa identificação: o desejo
de superar o pai. (LAGE, 2008, p.77)

A sublimação pode ser estimulada pelo ideal, no entanto, sua execução é


independente de tal estímulo. A formação de um ideal aumenta as exigências do eu,
constituindo o fator mais poderoso a favor da repressão. Freud nos mostra como somos
levados a confundir a formação desse ideal e a sublimação, sendo necessária uma
diferenciação entre eles.
38

A idealização ―é um processo que diz respeito ao objeto; por ela, esse objeto, sem
qualquer alteração de sua natureza, é engrandecido e exaltado na mente do indivíduo. A
idealização é possível tanto na esfera da libido do eu quanto na da libido objetal.‖
(FREUD, 1914, p.111) Por outro lado, a sublimação ―é um processo que diz respeito à
libido objetal e consiste no fato de se dirigir no sentido de uma finalidade diferente e
afastada da satisfação sexual‖ (FREUD, 1914, p.111). Somos lembrados, portanto, que
o ideal do eu exige a sublimação dos instintos libidinais, mas não pode fortalecê-la.
Encontraremos aqui a formação do agente psíquico especial que compara e mede
constantemente o eu real pelo eu ideal. A sublimação ―é uma saída, uma maneira pela
qual essas exigências podem ser atendidas sem envolver repressão‖ (FREUD, 1914,
p.112, grifos nossos). Então, se esta não envolve o recalque, poderia ser,
paradoxalmente, dependente dele para acontecer? De acordo com Baas (2001):

A lógica desta relação entre sublimação e recalque torna-se muito sutil


e bastante enigmática, pois, compreende-se bem, a pulsão sexual é
sublimada, mas o caráter sexual é recalcado. Que é portanto a pulsão
sexual depurada de toda a sexualidade? (2001, p.117)

O autor mostra como é difícil a tarefa de descrever o mecanismo sublimatório. A


pulsão sexual é sublimada e o que nela havia de caráter sexual será recalcado. Embora o
conceito de pulsão de morte só apareça em 1920, poderíamos dizer que a pulsão
depurada de toda a sexualidade é a pulsão de morte.

Assim, a lógica da sublimação apresenta-se como um curto-circuito do


recalque, e, portanto, da rede associativa e simbólica que constitui a
mediação habitual para a descarga pulsional. (2001, p. 118)

Veremos no segundo capítulo ―A melancolia‖, como a formação do ―agente


psíquico especial‖ e a sublimação estão intrinsecamente relacionadas.
Retomando, Freud nos diz que a sublimação pode ser estimulada pelo ideal. A
problemática mistura e indiferenciação na compreensão dos termos eu ideal e ideal do
eu ao longo de sua obra nos permite questionar: quem estimularia ou exigiria a
sublimação, o eu ideal ou o ideal do eu? Talvez uma sublimação estimulada pelo eu
ideal esteja próxima do desenvolvimento acelerado de habilidades nas crianças que
precisam amadurecer rapidamente.
39

Sabemos que a tradição considera o ideal do eu o ponto referencial da sublimação,


sendo ele a parte ―benéfica‖ que acompanharia o superego. Contudo, quais seriam as
consequências de uma sublimação nascida do eu que busca uma reparação, do eu
idealizado ou fragmentado? Se esta questão se sustenta, poderíamos imaginar, desde
aqui, que os destinos da sublimação se dividiriam entre aqueles que estariam mais
próximos da fonte pulsional e aqueles que estariam mais distante desse centro, e do
risco de transbordamento pulsional.
Em um trecho do último poema de ―A teus pés‖ (1982∕1992), que se intitula ―O fogo
do final‖, o eu lírico busca explicações e motivos que poderiam justificar algo que não
chega a ser dito, que aparece apenas como negativo, mas produz vertigem:

Vertigem das alturas.


Você está errado: não é o romance da longa vida
que começa. Não foi nossa razão que deu com os
burros n‘água. Nem o frio na espinha dentro do
ar engarrafado no aterro do Flamengo. Rush.
Não foi a pressa. O estabanamento na escada em
espiral. O livro que falta na estante e no entanto
deveria ficar lá onde está. A amizade recente com
o carteiro do Brasil, que entra vila adentro e bate
na janela e me entrega o envelope pelo nome. Os
grunhidos do ciúme. Minhas escapadas pelo
grande mundo, suas retiradas para dentro da
sólida mansão. Não foi nada disso. Então o quê?
(CÉSAR,1992.p.52-53)

A obra de Ana C. será ilustrativa da problemática que queremos investigar e


retomaremos os pontos aqui levantados no quinto capítulo.
A pulsão pode ser descrita como aquilo que dá início a um movimento e uma
quantidade de trabalho. Encontramos em Freud a distinção de dois termos bem
próximos para dizer de uma excitação que precisa ser contida: Reiz – para o externo,
estimulação – e Erregung para o interno, excitação. De qualquer modo, Laplanche
(1989) lembra que a pulsão se origina de uma excitação interna, numa força constante
da qual o aparelho não consegue fugir. Desse modo, ela deve estar na origem das
elaborações, ―elaborações estas, que colocam em funcionamento um certo número de
dispositivos que resultam em descarga pulsional e outras que incidem sobre a própria
pulsão: os destinos pulsionais‖. (LAPLANCHE, 1989, p.14)
40

Em ―Os instintos e suas vicissitudes” (1915) entendemos a sublimação como um dos


destinos da pulsão, que envolve um processo de dessexualização visando um alvo não
sexual. Outros possíveis destinos da pulsão são: a reversão ao seu oposto, o retorno em
direção ao próprio eu do indivíduo e a repressão.
Freud nos mostra que a pulsão (Trieb) deve ser analisada em alguns aspectos: a meta,
o objeto, a fonte e o impulso. Ali ele retoma a definição de 1905 que diz que a pulsão é
―o representante psíquico das excitações que se originam no interior do corpo‖
(FREUD, 1915, p.142).
A meta imediata da pulsão é evidentemente a satisfação, ou seja, redução da tensão
provocada no início pela excitação. A sublimação supõe uma mudança da meta através
de uma espécie de etapa intermediária entre a satisfação libidinal direta e a satisfação
que será inibida em seus objetivos.
O objeto é aquilo em que e por meio do que a pulsão pode atingir sua meta. O objeto
é o que há de mais variável, a ―contingência do objeto‖ é um aspecto que
Freudressaltava: a escolha objetal não é dada a partir de uma determinação biológica.
Ela conta com aspectos da história do sujeito que podem fazer com que a pulsão se fixe
ou não. Assim, a articulação entre meta e objeto está no centro do problema da
sublimação. Onde antes parecia haver, portanto, apenas uma mudança das metas, a
dessexualização, vemos que a sublimação é um processo global que envolve, ao mesmo
tempo, a meta e o objeto.
A fonte se refere ao processo somático que se localiza num órgão ou numa parte do
corpo e cuja excitação é representada, na vida psíquica, pela pulsão. Freud diz que toda
exigência de trabalho para a vida psíquica tem sua origem no corpo e nas zonas
erógenas. As fontes podem ser diretas e indiretas – sendo que ―qualquer processo
somático, qualquer modificação difusa, qualquer ação, ainda que psíquica, pode, num
segundo tempo, tornar-se ‗fonte‘ da pulsão sexual‖23 (LAPLANCHE,1989, p.17). Sobre
o impulso (Drang), dizemos que ele é quase a própria pulsão (Trieb) – aquilo que
impele a uma ação, aquilo que introduz uma urgência talvez irreprimível. O impulso é
definido como ―o fator motor da pulsão, a quantidade de força ou a medida de exigência
de trabalho que ela representa‖. (FREUD, 1915, p.142) Nesse artigo metapsicológico,

23
A escrita poderia ser aquilo que, em um segundo momento se transformaria em uma fonte indireta da
pulsão? Teriamos assim um novo fluxo, uma excitação da libido que pode ser recompositora da quota
narcísica, aumentar a quantidade de pulsão de vida no aparelho psíquico. Mas assim, também pode ser
fator de transbordamento libidinal- uma vez reativado pelo processo da escrita.
41

Freud ainda desenvolve seus argumentos a partir das relações prazer-desprazer que
ditam o princípio do prazer que rege a primeira teoria pulsional.

1.2 Notas sobre o risco de uma desfusão pulsional

Estaria eu à beira de me acometer no infinito?

Ana C.24

Foi através da clínica, da observação de fenômenos como a compulsão à repetição,


masoquismo e a reação terapêutica negativa que Freud questionou o princípio de prazer
que regia o primeiro dualismo pulsional. A descoberta trazida em ―Além do princípio
do prazer‖ (1920) nos diz que qualquer excitação, ou exigência de trabalho dentro do
aparelho psíquico pode ser percebida como desprazer, ou seja, a tendência à qual esse
sistema visa é aquela que aniquila as tensões produzidas no seu interior. A partir da
segunda teoria pulsional proposta em 1920 estamos sob a égide do Princípio do
Nirvana, que busca a ausência de qualquer excitação dentro do aparelho psíquico. O
surgimento da vida seria a causa de sua continuação e, ao mesmo tempo, do esforço no
sentido da morte. Partimos do pressuposto de que pulsão de vida e pulsão de morte
estão sempre interligadas, ou melhor, estão fusionadas, intrincadas.

Com a compreensão adquirida no estudo do narcisismo, do luto e da melancolia,


Freud procura solucionar, com a segunda teoria das pulsões, a enigmática
dessexualização que envolve o processo sublimatório. A libido dessexualizada retorna
ao eu, que será agora objeto de investimento, para que, posteriormente, a libido possa
novamente investir em outros objetos, compartilhados socialmente. Segundo
Kupermann (2010, p.202):

A sublimação é descrita como um processo no qual, em um primeiro


tempo, o sujeito experimenta um desligamento dos objetos que, até
então, mereceram o investimento da sua "libido do objeto" (ou
"sexual), o que implica, portanto, uma dessexualização, a libido
sexual desligada voltando-se ao ego, tornando-se "libido do ego" ou

24
(CÉSAR, 2008, p.344)
42

"narcísica". Mas essa introversão da libido é, também – por meio de


um mecanismo muito pouco elucidado que só pode ser nomeado
de trabalho de luto –, a condição para que o sujeito crie novos objetos
de investimento que venham a adquirir valor social, metamorfoseando
a libido do ego mais uma vez em libido sexual, ou seja, promovendo
uma sexualização.

O processo de desinvestimento dos objetos, designado como ―trabalho do luto‖, é


reconhecido no interior do mecanismo de constituição do eu e no sublimatório, bem
como na melancolia. Porém, enquanto a sublimação também aponta para a possibilidade
de uma mudança do objeto e do alvo da pulsão, a melancolia demonstra a incapacidade
de realizar com sucesso o trabalho do luto, não sendo possível se desligar do objeto de
amor no qual investia. O resultado dessa impossibilidade é a internalização do objeto
através de uma identificação narcísica.
Para Freud (1923), o eu em constituição passaria por algo parecido com o que
encontramos na melancolia. Em o ―Ego e o Id” (1923), o eu é formado através desse
processo no qual a libido teve que se desligar de um objeto ao qual se encontrava
identificado e retornar ao eu. A retirada dessa energia que antes era destinada ao objeto
implica um represamento de energia no eu. O período de narcisismo é descrito deste
modo; a libido do objeto é transformada em libido do eu, sendo que esse eu será
investido como se fosse um objeto25. De acordo com Freud, o processo de
desinvestimento da libido, isto é, a dessexualização necessária ao trabalho do luto para
que haja o desligamento da libido ao objeto, não acontece sem riscos ao aparelho
psíquico. Nesse momento, haveria a ameaça de uma desfusão pulsional, que libertaria as
pulsões destrutivas dentro do aparelho psíquico e colocaria em perigo o eu.
Uma vez que a sublimação promove o desligamento dos nossos objetos de
investimento, como entender a desfusão pulsional contida nesse mecanismo e sua
participação na constituição do eu, onde é preciso se desligar do objeto de amor?
Encontraríamos uma implicação da sublimação na constituição do eu melancólico?
Seria a sublimação a responsável pela construção de um discurso melancólico?
25
Como iremos desenvolver no item ―O narcisismo‖, Freud (1914) nos indica que é necessária uma ―nova
ação psíquica‖ para que o eu possa se estruturar: ―Posso ressaltar que estamos destinados a supor que uma
unidade comparável ao eu não pode existir no indivíduo desde o começo; o eu tem de ser desenvolvido.
Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo necessário que algo seja
adicionado ao autoerotismo ― uma nova ação psíquica ―a fim de provocar o narcisismo.‖ (FREUD,
1914, p.92) Vemos com Lacan que a constituição do eu se daria através da imagem do corpo que chega
através do Outro; esta imagem permitiria a unificação do corpo fragmentado do momento auto-erótico.
Tal leitura sugere uma correspondência entre a ―nova ação psíquica‖ e o ―estádio do espelho‖, formulado
por Lacan em ―O estádio do espelho como formador da função do eu‖ (1949).
43

As duas classes de pulsões, de vida e de morte26, são igualmente conservadoras.


Freud (1923) traz um argumento que nos parece ser central para nossa investigação:

A transformação da libido do objeto em libido narcísica que assim se


efetua, obviamente implica numa dessexualização – uma espécie de
sublimação, portanto (...) teremos de considerar se outras vicissitudes
instintuais27 não podem resultar também dessa transformação; se, por
exemplo, ela não pode ocasionar uma desfusão dos diversos instintos
que se acham fundidos. (FREUD, 1923, p.44-45)

A clínica da melancolia nos aparece como um lugar privilegiado de investigação do


processo sublimatório e dos possíveis destinos da desfusão pulsional. Ela também nos
oferece um campo de observação do funcionamento das instâncias ideais, fundamentais
para a compreensão da constituição do sujeito, dos seus modos de distribuição da libido
e do próprio mecanismo sublimatório. Segundo Mijolla-Mellor (2010):

A sublimação está, na verdade, ligada ao investimento de um tempo


futuro e ao trabalho para se conseguir isso. Essa é a razão pela qual se
pode legitimamente aproximar a sublimação destes momentos de
reelaboração identificatória que constituem o trabalho de luto, o do
humor, o tempo do período de latência, bem como o da cura
psicanalítica. De fato, se o ideal de eu está conforme o objetivo
original (segundo Freud, tornar-se como o pai), é com qualquer
espécie de atividade relacionada a esse fim que ele incita o eu, na
medida em que essa atividade é suscetível de resgatar uma imagem
identificatória valorizada para o eu. Assim sendo, a idealização vai
introjetar identificações inconscientes emprestadas dos objetos do
Édipo sem que ele tenha tido a menor elaboração do tipo sublimatório,
enquanto a sublimação trabalha sobre o luto do próprio eu, mais
precisamente, sobre o luto do eu-ideal todo poderoso. (MIJOLLA-
MELLOR, 2010, p.503)

Com efeito, deveríamos pensar em diferentes tipos de sublimação a partir do


momento em que são diversas as formas de arranjos da constituição subjetiva. Teremos
que considerar também que as consequências da sublimação serão diferentes para cada
26
Procuraremos considerar a complexidade trazida pelo novo dualismo pulsional de 1920, como analisa
Figueiredo (1999). O autor nos demonstra como a pulsão de morte, Tanatos, corre o risco de se tornar
uma noção generalista, e até mesmo imprecisa, quando entendida simplesmente como destrutividade e
ódio, numa lógica dualista. Da mesma forma entenderemos Eros: ―Se Eros procura ligações, há formas de
Eros que produzem desligamentos e os dois movimentos podem ser absolutamente simultâneos‖. (1999,
p.33)
27
Nossa edição das Obras Completas de Freud permite um equívoco de tradução nesse momento. Onde
se lê instinto, deveria-se ler pulsão. Lembramos também que os termos fusão e desfusão pulsional
também são traduzidos por intrincação e desintrincação.
44

sujeito. Mas quais seriam os elementos que nos permitiriam mapear os possíveis
destinos da desfusão pulsional decorrente do processo sublimatório?
Desconfiamos que a desfusão pulsional empreendida pela sublimação poderia levar
ao recrudescimento da força do superego reconhecidamente tirânico na melancolia.
Como nos mostra Kupermann (2010, p. 202),

Porém é sabido que o circuito da sublimação, uma vez interrompido,


pode comportar outras vicissitudes. A libido dessexualizada sofre uma
arriscada desfusão pulsional, promovendo a presença, no eu, da pulsão
de morte desligada, que será utilizada para o movimento,
necessariamente agressivo, de constituição de novos objetos de
investimento sexual. No entanto, se a criação se mostra inviável, em
função da impossibilidade de realização do trabalho de luto – devido à
eleição, pelo sujeito traumatizado, da idealização do objeto perdido –,
a pulsão de morte, ao invés de contribuir para o movimento de
desterritorialização necessário aos processos sublimatórios, alimenta o
superego, incrementando sua fúria sádica e mortífera. "Já que o
trabalho de sublimação do ego resulta numa desfusão dos instintos e
numa liberação dos instintos agressivos no superego", escreve Freud,
"sua luta contra a libido expõe-no ao perigo de maus-tratos e morte"
(Freud, [1923] 1980: 73-74). É apenas nesse sentido que a chamada
dessexualização própria ao processo sublimatório transforma-se em
narcisismo de morte, característico da melancolia.

Assim, vemos que a dessexualização necessária à sublimação pode transformar-se em


narcisismo de morte, como na melancolia. Mas poderemos dizer que a sublimação
produz uma melancolização no sujeito ou seria necessário, antes, uma pré-disposição
em sua constituição subjetiva para determinar quais seriam os destinos da sublimação?
Nossa hipótese é a de que a sublimação que cria e transforma irá retomar a maneira
pela qual se deu a constituição do eu psíquico, suas primeiras relações de objeto e as
marcas que essas primeiras experiências imprimiram no eu. Buscarmos entender ao
longo deste trabalho, o que se passa nesse processo.

[...] além do fato de que somente se abra a sujeitos capazes de


escrever, a via da escritura se revela perigosa. Se pode morrer porque
algumas coisas nunca tenham sido ditas. Mas também pode-se morrer
porque tenham sido ditas, porque tenham sido "mal" ditas., ou "mal
escutadas, ou "mal" recebidas. . Assim, haveriam maneira boas e
maneira más de dizer, bons e maus interlocutores, escrituras
salvadoras e escrituras fatais. Acreditando ajustar o destino do horror,
certos textos não fazem mais que precipitar nele a seus
autores. Alguns textos mas não todos. Enquanto as
"sublimações" fiquem à distância do trauma, parecem ter uma função
vital. Permitem "tolerar o intolerável", "pensar para não morrer".
Permitem ao escritor suportar. Mas a escritura de si pode também
45

acercar-se das queimaduras da infância, desembocar sobre uma


exposição pública do ódio sentido por outras vítimas, reavivar a
vergonha e a culpabilidade. O que se passa então?(ROSENBLUM,
2002, p.148)

No próximo capítulo, ―A melancolia‖, passaremos, inicialmente, pelos caminhos


trilhados nos primeiros momentos de formação do eu, para então, entender a
especificidade de uma subjetividade melancólica.
46

Cap. II A Melancolia

Uma arte

A arte de perder não tarda aprender;


tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que o perdê-las não traz desastre.

Perca algo a cada dia. Aceita o susto


de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.

Pratica perder mais rápido mil coisas mais:


lugares, nomes, onde pensaste de férias
ir. Nenhuma perda trará desastre.

Perdi o relógio de minha mãe. A última,


ou a penúltima, de minhas casas queridas
foi-se. Não tarda aprender, a arte de perder.

Perdi duas cidades, eram deliciosas. E,


pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
continente. Sinto sua falta, nenhum desastre.

- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente


amado), mentir não posso. É evidente:
a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre.

Elizabeth Bishop 28

Este capítulo será dedicado à metapsicologia relacionada aos termos que compõem a
problemática melancólica. Retomaremos a obra de Ana C. no quinto capítulo, após
termos trazido à tona elementos que nos permitirão pensar sobre a especificidade do
processo sublimatório – a escrita – para esta poeta.

2.1 À guisa de uma introdução à melancolia: narcisismo, instâncias ideais,


desfusão pulsional

28 Tradução de Horácio Costa.


47

A partir da introdução do conceito de narcisismo na obra de Freud, foi possível


pensar em uma outra dinâmica na distribuição econômica da libido, a qual coloca em
movimento o aparelho psíquico. No primeiro dualismo pulsional temos, de um lado, as
pulsões sexuais e, do outro, o instinto de auto-conservação. O ego, neste primeiro
momento, é considerado uma instância deslibidinizada, responsável pelo recalque das
pulsões libidinais. As pulsões do ego agem de acordo com os interesses de auto-
conservação, ligados à preservação da espécie. As pulsões sexuais são movidas pela
libido e buscam objetos que promovam satisfação, desvinculados da ordem da
necessidade.
O narcisismo aparece, inicialmente, relacionado à homossexualidade masculina. A
homossexualidade, como Freud apontou em ―Leonardo da Vinci‖ (1910), seria um tipo
de escolha narcísica de objeto que ocorreu devido à impossibilidade de aceitar a perda
do vínculo libidinal com a mãe. Diante dessa ameaça, ―o menino reprime seu amor pela
mãe; coloca-se em seu lugar, identificando-se com ela, e toma a si próprio como um
modelo a que devem assemelhar-se os novos objetos de seu amor‖ (FREUD, 1910,
p.92).
Já em ―Totem e tabu‖ (1913), o narcisismo aparece como uma estrutura permanente
na história libidinal do sujeito e não somente como uma fase evolutiva passageira. O
narcisismo faria parte da estruturação do ego, instância essa capaz de unir as pulsões
dispersas do momento auto-erótico anterior. A estruturação do ego se daria através de
uma relação com as figuras parentais que, ao investir libidinalmente no corpo do bebê,
transformam o auto-erotismo originário em um narcisismo primário. Esse narcisismo
primário nos conta que o investimento no eu ocorre antes que seja possível um
investimento em um objeto externo, seja por transbordamento da libido que foi
concentrada no eu, ou por uma necessidade de expansão que seria da ordem de uma
ousadia do sujeito, uma expansão criativa (KUPERMANN, 2003). A libido, parte então,
do eu em direção a um objeto externo, sendo que este eu, ainda indiferenciado de seu
ambiente, experimenta com essa escolha de objeto, uma satisfação libidinal que é
imperativa do Id – instância psíquica de onde partem as pulsões. Quando não é mais
possível o investimento libidinal no objeto externo, a libido retorna ao ego. Com Freud
nos lembramos de que a libido nunca quer abrir mão de nenhuma satisfação. A pulsão
que é destinada a encontrar satisfação toma agora o eu como objeto de investimento,
mas para tanto, é necessário um trabalho de dessexualização dessa libido que estava
investida no objeto externo para que ela possa retornar ao eu. Agora o ego também é
48

objeto de investimento libidinal e não somente a força recalcante. Freud (1914) postula
então, um novo conflito psíquico: a libido do objeto é contraposta a uma libido do ego.
Contudo, essa formulação se torna problemática, uma vez que o conflito não obedece ao
sistema anterior no qual as pulsões tinham naturezas diferentes. É em ―Sobre
narcisismo: uma introdução‖ (1914) que tal conceito é apresentado e justificado através
da análise das seguintes fontes: as psicoses, a vida mental das crianças, a vida mental
dos povos primitivos, a distribuição da libido no adoecimento orgânico, a hipocondria e
a observação da vida erótica dos sexos.
Freud ao analisar as neuroses de transferência – histeria, neurose obsessiva –
observa que há um investimento de libido em objetos externos e uma ligação com a
realidade que de modo algum é cortada totalmente. Um paciente que sofre de histeria ou
neurose obsessiva tem a relação com as pessoas e as coisas do mundo externo retidas na
fantasia, ou tem seus objetos da memória substituídos por objetos reais. Ele pode
também misturar esses dois e ainda renunciar ―[...] à iniciação das atividades motoras
para a obtenção de seus objetivos relacionados àqueles objetos‖ (FREUD, 1914,p.90).
Nas parafrenias, categoria que incluía as esquizofrenias e as paranóias, parecia haver
uma retração da libido para o mundo interno sem que houvesse uma substituição do
mundo externo na fantasia: ―Quando realmente as substitui, o processo parece ser
secundário e constituir parte de uma tentativa de recuperação, destinada a conduzir a
libido de volta a objetos‖ (FREUD, 1914, p.91). A libido que se afastou do mundo
externo é dirigida de volta ao ego: esse retorno chamamos de narcisismo secundário. A
megalomania, que é característica dos estados esquizofrênicos, irá apontar para um
afastamento da libido do mundo externo que ficará retida no ego. Freud nos diz que ela
não é uma criação nova, mas uma ampliação e amostra mais clara de uma condição
existente anteriormente. Segundo ele: ―Isso nos leva a considerar o narcisismo que
surge através da indução de catexias objetais, como sendo secundário, superposto a um
narcisismo primário que é obscurecido por influências diferentes‖(FREUD, 1914, p.91).
Haveria um primeiro momento, quando o corpo do bebê é investido auto- eroticamente,
e um segundo momento de investimento em objetos externos. Contudo, ―somente
quando há catexia objetal é que é possível discriminar uma energia sexual – a libido –
de uma energia dos instintos do ego‖ (FREUD, 1914, p.92) Assim, Birman (2006,
p.127) afirma:

entre desamparo e onipotência oscila a subjetividade humana de


acordo com a leitura freudiana do eu e do narcisismo, indicando ao
49

mesmo tempo a fragilidade daquela e a sua pretensão divinizante. (...)


O eu seria então a construção sólida pela qual o sujeito procura
proteger-se do descentramento radical em todas as suas dimensões,
isto é, o inconsciente, o desejo, a pulsão, o outro.

Na vida mental das crianças e dos povos primitivos, encontramos traços isolados do
que seria uma megalomania: a ―onipotência de pensamentos‖ – o que confere poder de
realidade aos desejos e atos mentais – e a confiança no poder mágico das palavras,
crença que serve como princípio lógico de explicação do mundo externo. Freud nos
mostra que há uma antítese entre a libido do ego e a objetal: quanto mais uma é
utilizada, mais a outra se esvazia.
No adoecimento orgânico, a libido e o interesse do ego partilham o mesmo destino,
os investimentos libidinais são retirados de volta para o ego do enfermo e colocados
para fora quando ele se recupera. Enquanto está adoecido, os investimentos libidinais
aos objetos amorosos e ao mundo externo são retirados, concentrando-se no órgão que
sofre. Na hipocondria, por exemplo, acontece um processo mórbido de afastamento da
libido de seus objetivos, uma vez que o órgão doente não apresenta mudanças
observáveis organicamente.
Sobre a vida erótica dos seres humanos, Freud (2014) nos diz:

Assim como a libido objetal inicialmente ocultava de nossa


observação a libido do ego, também em relação à escolha de objeto
nas crianças de tenra idade (e nas crianças em crescimento) o que
primeiro notamos foi que elas derivavam seus objetos sexuais de suas
primeiras experiências de satisfação.(FREUD, 1914, p.103)

O ser humano teria, originalmente, dois objetos sexuais, ele próprio e a mulher que
dele cuida. Assim, ele postula que ―a existência de um narcisismo primário em todos, o
qual, em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante‖ (FREUD, 1914, p.105).
Os objetos de amor serão escolhidos de acordo com o tipo narcisista ou o tipo
anaclítico. No tipo narcisista, escolha objetal privilegiada na melancolia, a pessoa amará
o que ela própria é, o que ela foi, o que gostaria de ser, ou alguém que foi uma vez parte
dela mesma. No tipo anaclítico a pessoa pode amar a mulher que a alimenta, o homem
que a protege, bem como os substitutos dessa função que tomarão seu lugar (FREUD,
1914, p.107). O narcisismo primário infantil será refreado em detrimento das aquisições
culturais que impõem uma renúncia ao prazer e aos privilégios concedidos à criança. A
repressão, antes exercida pelo ego, será desempenhada pelo amor-próprio do ego, noção
50

essa que incluiria o investimento libidinal no ego. O narcisismo nos leva a questionar as
origens da formação do eu e sobre as condições dadas para os seus primeiros
investimentos objetais, isto é, de onde foi que eles partiram, uma vez que é preciso que
exista um eu sujeito da ação. Freud (1914) diz:

Posso ressaltar que estamos destinados a supor que uma unidade


comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o
ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali
se encontram desde o início, sendo necessário que algo seja
adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de
provocar o narcisismo. (FREUD,1914,p.92)

O eu, segundo Garcia-Roza (1996, p.150), ―antes de ser um agente de ligação ele é
um efeito dela. Não há eu anterior à ligação‖. Já Ribeiro (2000) irá nos dizer que essa
ação específica é criadora, ao mesmo tempo, do narcisismo e do eu. O autor irá situar a
ação específica na identificação feminina primária, que se refere à identificação precoce
com a mãe29.
Reconhecemos o aparelho psíquico como um dispositivo que tem o objetivo de
dominar as excitações, as quais podem ocasionar desprazer ou desenvolver patologias.
Para tanto, a elaboração psíquica30auxilia no escoamento das excitações e a nova ação
psíquica mencionada deve estar relacionada a essa tentativa. Os impulsos libidinais
terão o destino da repressão se entrarem em conflito com as ideias éticas e culturais do
indivíduo. Tal repressão ainda não terá um caráter intelectual: ela provém do ego, ou do
amor próprio deste, reconhece em si os padrões de exigência aos quais deverá se
submeter. Isto é, o ego fixa para si um ideal pelo qual mede seu ego real. A formação de
um ideal se torna um fator que condiciona a repressão. O que é projetado como sendo
ego ideal é o ―substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o próprio
ideal‖ (FREUD, 1914, p.111).

29
―Essa "nova ação psíquica" que é a identificação primária, na medida em que é incapaz de cobrir a
totalidade do que foi vivenciado sob a forma auto-erótica, acarreta obrigatoriamente a formação de um
resto constitutivo de um primeiro núcleo inconsciente e, consequentemente, inaugura a primeira oposição
entre o recalcado e as forças recalcantes. Esses primeiros momentos de formação do eu se confundem,
então, com um narcisismo totalmente impregnado de feminilidade, o que nos leva a pensar que não é
tanto a mulher que é narcísica por excelência, como queria Freud, mas que o narcisismo é,
originariamente, feminino por excelência‖ (RIBEIRO, 2000, pp. 47-48).
30
Ao contrário de Laplanche, preferimos o termo ―elaboração psíquica‖ ao termo perlaboração.―A
expressão elaboração é utilizada por Freud para designar, em diversos contextos, o trabalho realizado pelo
aparelho psíquico com o fim de dominar as excitações que chegam até ele e cuja acumulação ameaça ser
patogênica. Este trabalho consiste em integrar as excitações no psiquismo e em estabelecer, entre elas,
conexões associativas. (LAPLANCHE, PONTALIS, 1988, p.196)
51

Assim, vemos como as instâncias ideais desempenham um papel fundamental na


dinâmica psíquica, sendo, particularmente importantes para iluminar o complexo
melancólico e o processo sublimatório. A seguir, buscaremos obter uma melhor
compreensão interna, também, sobre as dimensões tópicas e econômica destas.

O eu e as instâncias ideais

As instâncias ideais são testemunhas do papel que o outro adulto desempenha na


constituição subjetiva. A alteridade é compreendida como algo que antecede o sujeito e
o traumatiza, no entanto, esse é exatamente o processo que o constituirá. A chamada
―condição antropológica universal‖ do humano − o desamparo e dependência do bebê
ao outro cuidador – implica uma passividade radical frente ao outro. O outro precede o
sujeito, o constitui, o traumatiza e exige dele trabalho –que podemos entender como
exigência de trabalho psíquico de simbolização, elaboração e transformação daquilo que
vem desse outro e excede ao sujeito. Há uma dimensão da constituição subjetiva que
encontra uma ―abertura permanente e inevitável ao outro, em sua alteridade que sempre
ultrapassará, por princípio, a nossa possibilidade de recepção, acolhimento e
compreensão e que, no entanto, como expressão do sofrimento, nos exige alguma
resposta‖ (COELHO JUNIOR e FIGUEIREDO, 2012. p. 32). Essa relação com a
alteridade, a qual implica constantes traumatismos, pode ser considerada mais tributária
das pulsões de morte, do excesso que não é simbolizado, promovendo rupturas e
desligamentos. Contudo, sabemos que esse último é também responsável por colocar
em marcha o psiquismo, evitando o enrijecimento das ligações e o narcisismo mortífero,
como nos propõe Green (1988).
A exigência de representação trazida pela pulsão traz junto de si o protótipo das
relações objetais de um sujeito. É diante da condição imposta ao pequeno sujeito, o
qual, ao nascer, está em total dependência do cuidador adulto – que pensamos o
surgimento das relações objetais e das representações. O bebê carece de recursos que o
possibilitem dominar as excitações criadas tanto pelo corpo, através das exigências
vitais como a fome e a sede, mas também das contingências ambientais como o frio,
calor, luz, sons, enfim, vários estímulos que precisam ser identificados para que possam
ser manejados e dominados pelo sujeito. A representação de um eu com contornos e
52

limites que diferenciem o que é o externo, o não-eu, e o interno, se dá aos poucos. O


surgimento do eu depende da relação do sujeito com o outro que dele cuida, seu
primeiro objeto de investimento amoroso. Esse papel de cuidador é, na maioria das
vezes, realizado pela mãe. A condição de desamparo da criança ao nascer requer da mãe
inferências sobre as necessidades do filho. O leite e o seio oferecidos apaziguam, num
primeiro momento, o corpo que se debate com o excesso de estímulos que lhe chegam
de uma só vez. Freud (1895, p.336-337) nos diz como a primeira mamada seria a
primeira experiência de satisfação do bebê. O bebê tentará reencontrar esse mesmo
alívio sentido com a contenção física de seu corpo, a oferta de alimento e calor numa
próxima vez que sentir fome. Essa experiência tem a intensidade de produzir um traço
mnêmico no prematuro aparelho psíquico, que será retomado, como uma tentativa de
alucinar o objeto que ofereceu conforto e satisfação das exigências corporais. Talvez
não fosse descabido pensar que esse esforço psíquico de representação de um estímulo
para que a pulsão possa aí procurar se satisfazer pode ser considerado como a primeira
forma de sublimação da pulsão dentro do aparelho psíquico.
O ego prematuro começa a buscar ligações entre as experiências percebidas e formar
representações delas. Para que seja possível se organizar internamente é necessário
encontrar objetos aos quais a pulsão possa se ligar. A satisfação pulsional decorre da
possibilidade de aliviar o excesso desgovernado de tensão produzido pelas fontes
pulsionais e pelo exterior, desse modo, o eu que se forma poderá prever e controlar os
estímulos externos. Esta fase do desenvolvimento psíquico é conhecida como fase oral,
e a apreensão do mundo pelo bebê é dada por mecanismos de introjeção e projeção.
Freud diz (1923, p.43): ―A princípio, na fase oral primitiva do indivíduo, a catexia do
objeto e a identificação são, sem dúvida, indistinguíveis uma da outra (...)‖. O
canibalismo, por exemplo, seria, a um só tempo, amor e destruição do objeto. Através
do protótipo da relação oral o objeto é ingerido, sendo que os modos como esta primeira
identificação se dá poderão influenciar as identificações secundárias31. Os investimentos
aos objetos surgem do id. O ego, posteriormente, irá se sujeitar a esses desejos ou
tentará reprimi-los. O id percebe as tendências eróticas como necessidades, isto é, não
se trata de um instinto natural que irá encontrar um objeto certo para se satisfazer. A
ordem da necessidade será contaminada pelo investimento psíquico realizado pela
entrada do outro nos primórdios da vida. Com efeito, o investimento em objetos

31
Como veremos a seguir, a introjeção deve ser diferenciada da incorporação, ambas resultando em uma
identificação.
53

externos nesse primeiro momento é considerado uma identificação. Ela aparece como
uma tentativa de apreensão do objeto para satisfazer o id. Será a interferência da
realidade (que demonstra que o objeto de escolha amorosa não está disponível sempre
que o sujeito o reivindicar) que irá fazer com que o ego busque formas de domesticar e
introjetar o objeto. A identificação, ou seja, ter dentro de si o que antes era externo e
muitas vezes frustrante, é uma forma de manutenção do objeto de amor. Freud (1923,
p.43) nos diz que ―pode ser que essa identificação seja a única condição em que o id
pode abandonar os seus objetos‖. Seguimos nosso raciocínio com Freud (1923, p.44):

[...] pode-se dizer que essa transformação de uma escolha objetal


erótica numa alteração do ego constitui também num método pelo
qual o ego pode obter controle sobre o id e aprofundar suas relações
com ele – à custa, é verdade, de sujeitar-se em grande parte às
exigências do id. Quando o ego assume as características do objeto,
ele está-se forçando, por assim dizer, ao id como um objeto de amor e
tentando compensar a perda do id, dizendo: Olhe, você também pode
me amar; sou semelhante ao objeto.

É interessante acompanharmos que quando uma pessoa precisa abandonar um


objeto sexual, ―muito amiúde se segue uma alteração de seu ego que só pode ser
descrita como instalação do objeto dentro do ego, tal como ocorre na melancolia.‖
(FREUD, 1923, p.43, grifos nossos) Esse processo de identificação que ocorre nas fases
iniciais de desenvolvimento ―torna possível supor que o caráter do ego é um precipitado
de catexias objetais abandonadas e que ele contém a história dessas escolhas de objeto‖
(FREUD, 1923.p.43). O ego é formado através desse processo no qual a libido teve que
se desligar de um objeto ao qual se encontrava identificado e retornar ao eu. O retorno
ao eu dessa energia, que antes era destinada ao objeto, implica um represamento de
energia no eu. O período de narcisismo, como vimos, é descrito deste modo: a libido do
objeto é transformada em libido do eu, sendo que esse ego será investido como se fosse
um objeto32.
França Neto (2005) nos mostra como o psiquismo surge a partir de paradoxos: a
identificação é, ao mesmo tempo, representação (interno) e objeto (externo). Ou seja,

o eu instaurado e constituído por identificações é ao mesmo tempo


interno (ele é uma diferenciação do isso, sendo então constituído por
representações catexizadas) e externo (visto e tratado como um objeto
propriamente dito). Ou seja, na identificação, ou no ponto de
identificação, iguala-se interno e externo, o que é outra situação
paradoxal. (FRANÇA NETO, 2005, p. 97)

32
Empregamos os termos ―ego‖ e ―eu‖ sem nenhuma diferença a ser privilegiada.
54

Veremos que o supereu também mantém essa ambígua posição, ele faz parte do eu
e tem uma existência separada dele. O eu é sujeito e objeto, uma parte diferenciada do
id que, também é vista por esse como objeto. O eu precisa que o ambiente (geralmente a
mãe) lhe permita acreditar que o objeto de que ele necessita para aliviar seu desconforto
e atender à sua necessidade (como o leite) poderá ser achado-encontrado sempre que
dele se necessitar, como nos mostra Winnicott (1975). A crença mágica de que se opera
com todo o poder no mundo deve ser, a princípio, reforçada para que, posteriormente, o
pequeno sujeito seja confrontado não com sua onipotência, mas com sua limitação,
incompletude, insuficiência e castração. O princípio de realidade e a interdição de um
terceiro irão impossibilitar que o pequeno sujeito mantenha o mesmo tipo de relação
que desfrutava com o objeto, período onde espera-se que haja um acolhimento do
ambiente e onde ainda não está clara a separação entre a díade mãe-bebê. É essa
separação dolorosa que irá precipitar a formação do que chamamos de ―eu-ideal‖: o
bebê buscará uma referência que indique quem ele era antes da separação ou o quê teria
garantido a relação anterior. Aquele que antes acreditava ser o único objeto de
investimento materno irá dar-se conta de que além dele, existem muitos outros, com
necessidades, interesses e desejos diferentes. O pequeno passa a observar o ambiente na
busca de um modelo ou referencial, quando então, começa a se configurar um romance
familiar, uma criação de fantasias que oferecem narrativas que expliquem o mundo e o
lugar no qual se está inserido. O sujeito cria para si um ideal que será uma referência de
comparação entre quem se é, o que se imagina ser e o que acredita dever ser, isto é,
quais parâmetros são precisos alcançar para que seja possível obter reconhecimento e
amor.
A criação do ideal do eu passa por um processo que se assemelha ao mecanismo
sublimatório: o objeto externo que não pode mais ser investido – o pai com o qual se
identifica – deverá ser elevado a um ideal, tendo em mente a injunção ―seja como seu
pai, mas até certo ponto‖, uma vez que o acesso à mãe pertence a ele. Esse processo de
identificação ao pai também envolve uma dessexualização da pulsão antes de se ter,
com o retorno da libido, a introjeção do objeto em uma instância diferente do eu – o
superego e o ideal do ego. Na literatura psicanalítica, eles ora aparecem separados, ora
como facetas de um mesmo destino de objeto. O pai, é simultaneamente o modelo
de identificação, e aquele que limita, censura e pune o sujeito.
55

O superego traz consigo as vias afetivas da ambivalência de sentimentos em


direção às figuras parentais e de autoridade. O superego só será pensado como uma
instância psíquica a partir de 1923, em ―O ego e o id‖, contudo, já podemos encontrar
na primeira tópica a presença de um agente censor33. Iremos localizar também em Freud
a presença de um superego arcaico, apesar desta ser reconhecida majoritariamente
apenas como herdeira do complexo de Édipo. Freud (1917[1915]) nos diz em ―A pulsão
e seus destinos‖:

Aqui estamos familiarizados com o agente comunitário denominado


‗consciência‘; vamos incluí-lo, juntamente com a censura da
consciência e do teste da realidade, entre as principais instituições do
ego, e poderemos provar que ela pode ficar doente por sua causa
própria. ((1917[1915]), p.280, grifos nossos)

A consciência da criança desde cedo é desenvolvida a partir da relação com seus


objetos de amor, suas condutas são avaliadas de forma a evitar a perda da estima dos
objetos amados, como lemos a seguir:

Os tormentos causados pelas censuras da consciência correspondem


precisamente ao medo da perda de amor, por parte de uma criança,
medo cujo lugar foi tomado pelo agente moral. Por outro lado, se o
ego resistiu com êxito à tentação de fazer algo que, para o superego,
seria censurável, ele sente-se elevado em sua auto-estima e fortalecido
em seu orgulho, como se houvesse feito alguma preciosa aquisição.
(FREUD, 1938, p 236).

O ego precisa avaliar os objetos ou conteúdos que podem ser investidos sem a
restrição de uma consciência moral. Os conteúdos que causam uma perturbação na
representação de eu que foi oferecida pelo outro – e que agora o eu faz de si – caso não
possam ser aceitos, encontrarão o destino da repressão. A especialização dentro do
próprio ego, uma forma de auto-observação, será correlata das restrições feitas pelos

33
Teremos que levar em conta a força da atividade crítica do eu desde os tempos mais iniciais e retomar
algumas das considerações de Freud que já foram feitas a esse respeito, uma vez que na teorização sobre a
primeira tópica psíquica não encontramos referências nítidas aos períodos do desenvolvimento em que se
daria essa separação entre o eu e sua instância crítica. De acordo com Figueiredo (2012), quando o outro
não puder ser introjetado de maneira a vir fazer parte do eu ele se tornará o elemento não digerível que
encontraremos no ―Supraeu‖, um superego arcaico que ainda está distante da função moralizadora e
normativa, que aparece de forma aterrorizadora e disruptiva como as vozes que assediam o sujeito. De
acordo com o autor ―as identificações que compõem o supra-eu são justamente as funções intersubjetivas
que não passaram por processos de introjeção eficazes − ou seja, foram incorporadas‖. A incorporação
aqui é entendida no sentido de elementos que não puderam ser assimilados e permanecem como um corpo
estranho interno, uma ―cripta‖, como M. Torok e N. Abraham nos falam em ―A casca e o núcleo‖ (1995).
Insistimos junto a Figueiredo e Ferenczi que o id e o superego são mais arcaicos que o ego.
56

pais, pelo princípio de realidade e pela cultura de um modo geral. A condição de


formação do superego seria dada a partir do momento em que é exigida da criança uma
renúncia aos seus objetos de amor.
A criança encontra-se dentro do romance familiar, vivenciando o complexo de Édipo
que é composto por sentimentos ambivalentes de amor e ódio aos pais. Será necessário,
então, encontrar uma forma ou uma resposta para os conflitos que surgem desse
romance (FREUD, 1910, p.155)34. A bissexualidade pré-existente deverá dar lugar a
uma identificação com uma das figuras parentais e o objeto de amor primordial se
tornará um objeto de impossível realização. Assim, temos que o ideal com o qual o eu
se identificava não é mais condizente com o que é percebido por ele. De certa forma, a
ideia anteriormente construída para si, referente a quais atributos ou qualidades seriam
necessários para que o eu se sentisse amado por seu objeto, permanecerá como um
ponto impossível de ser alcançado. O que é impossível aparece como um ideal e o
sentimento de plenitude e completude que o eu experimentou no seu período narcísico
continua sendo buscado.
Diante desses desafios que encontramos na formação do eu, os pais vêm ao auxílio
das crianças contra os perigos externos, mas exigem em troca um temor, chamado por
Freud de ―temor pela perda do amor‖. Este temor fica explícito e é decisivo no
complexo de Édipo: a criança se sente ameaçada tanto no seu narcisismo quanto na sua
relação com aquele que é sua ligação com a cultura. É neste contexto que Freud (1923,
p.51) entende o superego como o herdeiro do complexo de Édipo, pois tanto os objetos
de amor com os quais o eu se ligava, quanto o ideal que tinha de si (o amor ao eu que é
investido como objeto) serão abandonados, não sem antes serem instalados no
psiquismo em uma instância diferente do eu, o superego. Assim, como vimos, a função
que os pais exerciam de avaliação moral, de censura, limitação, crítica e julgamento,
será incluída no eu sob a forma de um ideal em relação ao qual o eu se orientará, isto é
um ―ideal do eu‖. A antiga forma de auto-representação de um eu que teria sido perfeito

34
O complexo de castração, aqui explicado brevemente, descreve como a criança é confrontada com
questões sobre sua própria identidade sexual e suas escolhas amorosas. Tanto o menino quanto a menina
buscarão dar respostas ao enigma da diferença anatômica entre os sexos. Segundo Freud, o menino,
tomado pela angústia de castração, irá abrir mão do seu primeiro objeto de amor incestuoso para não
sofrer a retaliação de ter seu órgão genital ―amputado‖ – como presumiu ter acontecido com as meninas.
A menina, sob a influência da inveja do pênis, sente a ausência desse órgão como um dano que ela
buscará compensar, negar ou reparar. O complexo de castração está, nos dois casos, intimamente ligado
ao complexo de Édipo. Enquanto no menino ele coloca fim ao complexo de Édipo, na menina, ele será
seu ponto de partida.
57

e se torna modelo de auto-comparação é considerada o ―eu ideal‖. Segundo Freud


(1923, p.54):

Se o ego não alcançou êxito em dominar adequadamente o complexo


de Édipo, a catexia energética do último, originando-se do id, mais
uma vez irá atuar na formação reativa do ideal do ego. A comunicação
abundante entre o ideal e esses impulsos instintuais do Ics soluciona o
enigma de como é que o próprio ideal pode, em grande parte,
permanecer inconsciente e inacessível ao ego.

Em linhas gerais, esse é, o caminho da libido que encontramos no desenvolvimento


de um psiquismo essencialmente neurótico. Contudo, entendemos que, antes da
problemática edípica, existe um conjunto de circunstâncias a serem percebidas,
interações que serão determinantes nos futuros modos de relação com o mundo e seus
objetos. Assim, retomamos Freud (1923, p.64):

Temos afirmado repetidamente que o ego é formado, em grande parte,


a partir de identificações que tomas o lugar de catexias abandonadas
pelo id; que a primeira dessas identificações sempre se comporta
como uma instância especial no ego e dele se mantém à parte sob a
forma de um superego; enquanto que posteriormente, à medida que
fica mais forte, o ego pode tornar-se mais resistente às influencias de
tais identificações. O superego deve sua posição especial no ego, ou
em relação ao ego, a um fator que deve ser considerado sob dois
aspectos: por um lado, ele foi a primeira identificação, uma
identificação que se efetuou enquanto o ego era muito fraco; por
outro, é o herdeiro do complexo de Édipo e, assim, introduziu os
objetos mais significativos no ego.[...] Ele (o superego) constitui uma
lembrança da antiga fraqueza e dependência do ego, e o ego maduro
permanece sujeito à sua dominação. Tal como a criança esteve um dia
sob a compulsão de obedecer aos pais, assim o ego se submete ao
imperativo categórico de seu superego.

Aqui inferimos que o superego, ou a função superegóica, já aparece nos primeiros


momentos da constituição psíquica. Ele seria o efeito retroativo da pulsão de morte
enviada ao mundo externo e ao mesmo tempo a primeira identificação – os restos do
objeto anteriormente investido que agora são colocados dentro de si. Sublinhamos essa
ideia, trazida anteriormente, de que se trataria de uma identificação que ocorre num
período em que o eu ainda é frágil35. A economia paradoxal do superego mostra que ao
mesmo tempo em que o superego surge como um produto ou efeito da pulsão de morte,

35
Melanie Klein observa em sua clínica com crianças que a origem do superego seria muito anterior à
proposta por Freud em 1923. O sentimento de culpa, norteador da percepção e introjeção do outro, seria
decorrente da posição depressiva, como veremos adiante.
58

é ele que promove a ligação dessa pulsão de agressão, de destruição, mesmo que para
isso uma parte do eu seja sacrificada. O superego encontra-se numa posição
intermediária entre o id e o mundo externo, reunindo em si as influências do passado e
do presente. Dessa forma, a origem do superego é pulsional36, embora suas aspirações
sejam as mais altas e distantes da vontade de satisfação imediata provinda do id. Nas
palavras de Freud (1923, p. 54): ―o combate que outrora lavrou nos estratos mais
profundos da mente, e que não chegou ao fim devido à rápida sublimação e
identificação, é agora continuado numa região mais alta (...)‖. Isto é, o ego adota os
mesmos métodos de defesa contra as exigências do mundo externo e interno e ambos o
ameaçam com a aniquilação, ―mas a sua defesa contra o inimigo interno é
particularmente inadequada‖ (FREUD, 1938, p 229). O ego, por ter sido igual ao id,
sofre com os ataques do id que permanecem como ameaças, mesmo que tenham sido
temporariamente dominados.
Freud, em ―O mal-estar na civilização‖(1930), nos diz que poderíamos
considerar que a criança desenvolva quantidades consideráveis de agressividade contra
a autoridade, geralmente pai e mãe, que irão inibir este impulso. A criança se vê
obrigada a renunciar à satisfação dessa ―agressividade vingativa e encontra uma saída
para esta situação economicamente difícil com o auxílio de mecanismos familiares‖
(FREUD, 1930, p.153). É através da identificação que a criança irá resolver esta
situação, ao incorporar a si a autoridade inatacável. É interessante percebermos como os
papéis são distribuídos nesse momento: a autoridade se transformará no superego da
criança, porém, exercerá a posse de toda a agressividade que a criança gostaria de
exercer contra a própria figura de autoridade, sendo que o ego da criança adquirirá o
papel da autoridade que foi assim degradada. Para Freud (1930, p.153), ―o
relacionamento entre o superego e o ego constitui um retorno, deformado por um
desejo, dos relacionamentos reais existentes entre o ego, ainda individido, e o objeto
externo‖. Relembramos aqui a importância das primeiras relações objetais, modelos que
serão determinantes das futuras relações intersubjetivas. O ego está a todo tempo sendo
fragilizado em suas forças e submetido a diversas exigências, vindas da realidade
externa, do superego e do id. Freud (1938, p.230) diz que:

(...) desponta em nós a compreensão de que essa tentativa precoce de


represar o instinto sexual, um partidarismo tão decidido por parte do
incipiente ego em favor do mundo externo, em oposição ao mundo

36
Conforme afirma Marta Rezende Cardoso. In: Superego. São Paulo: Editora Escuta, 2002.
59

interno, ocasionado pela proibição da sexualidade infantil, não pode


deixar de ter efeito na disposição posterior do indivíduo para com a
cultura. As exigências instintivas forçadas a afastar-se da satisfação
direta são compelidas a ingressar em novos caminhos que conduzem à
satisfação substituta, e, no curso desses detours, podem tornar-se
dessexualizadas e a sua vinculação com seus objetivos instintivos
originais pode tornar-se frouxa.

Neste ponto, encontramos dentro do próprio mecanismo da constituição do eu os


pressupostos necessários para a sublimação e elementos característicos da melancolia: a
dessexualização da pulsão, o conflito com o superego e a identificação com o objeto
perdido. Teremos que considerar a noção de pulsão de morte em sua radicalidade para
compreender o complexo melancólico. Dessa forma, quando o ego utiliza os
investimentos objetais lançados pelo id, isto é, quando a energia objetal se transforma
em libido narcísica – uma vez que o eu se tornou objeto de amor do id através de uma
identificação – , ele ―está trabalhando em oposição aos objetivos de Eros e colocando-se
a serviço de impulsos instintuais opostos‖ (FREUD, 1923, p. 61). Isso porque ―o ego,
sublimando um pouco da libido para si próprio e para seus propósitos, auxilia o id em
seu trabalho de dominar as tensões‖ (FREUD, 1923, p.63). Essas noções serão de
fundamental importância para a investigação do problema que levantamos sobre o
processo de sublimação na melancolia, que será pensado através da obra de Ana
Cristina César.
Freud nos indica que é na perturbação melancólica que melhor podemos obter uma
compreensão a respeito desse elemento da constituição do eu humano, onde uma parte
do ego se coloca contra a outra, julga-a e a toma como seu objeto: ―uma perda objetal se
transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa
separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação‖.
O superego atua como o representante do id que possui as forças de Eros e Tanatos
lutando dentro dele. Será necessário nos aproximarmos, ainda mais, da relação entre o
eu e o supereu, instâncias que reúnem movimentos – dinâmicos, tópicos e econômicos –
necessários para a compreensão do mecanismo da sublimação na melancolia. Freud nos
que o ego retira libido do id e transforma as catexias objetais deste em estruturas do ego.
De uma maneira que ainda nos é obscura, com a ajuda do superego, ele se vale das
experiências de época passadas armazenadas no id:

para com as duas classes de instintos, a atitude do ego não é imparcial.


Mediante seu trabalho de identificação e sublimação, ele ajuda os
instintos de morte do id a obterem controle sobre a libido, mas, assim
60

procedendo, corre o risco de tornar-se objeto dos instintos de morte e


de ele próprio perecer. A fim de poder ajudar desta maneira, ele teve
que acumular libido dentro de si; torna-se assim o representante de
Eros e, doravante, quer viver e ser amado (FREUD, 1923, p.73, grifos
nossos).

Estamos diante de um sério risco para o sujeito nesse momento, a ―dominação das
tensões‖, a partir de 1920, implica não só evitar o aumento ou diminuição da tensão –
observando assim o Princípio de Constância dentro aparelho psíquico. Freud nos indica
que qualquer excitação ou exigência de trabalho dentro deste aparelho pode ser
percebida como desprazer – sendo que a tendência à qual o aparelho psíquico visa é
aquela que aniquila as tensões produzidas no seu interior37. Pretendemos seguir as
consequências dessa operação no aparelho psíquico e para isso trazemos um argumento
de Freud que referencia nossa investigação:

A transformação da libido do objeto em libido narcísica que assim se


efetua, obviamente implica numa dessexualização – uma espécie de
sublimação, portanto (...) Teremos de considerar se outras vicissitudes
instintuais não podem resultar também dessa transformação; se, por
exemplo, ela não pode ocasionar uma desfusão dos diversos instintos
que se acham fundidos. (FREUD, 1923, p.44-45, grifos nossos)

Encontramos aqui a confluência dos termos que identificamos no conjunto de nossa


questão. Como vimos no capítulo ―A sublimação‖, a desfusão pulsional é incluída em
sua dinâmica em 1923, indicando destinos para a pulsão, antes insuspeitos.

Após a sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de


unir a totalidade da agressividade que com ele se achava combinada, e
esta é liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à
destruição. Essa desfusão seria a fonte do caráter geral de severidade e
crueldade apresentado pelo ideal. (1923, p. 71, grifos nossos)

A problemática da desfusão pulsional que vemos aqui estará presente ao longo de


todo o trabalho. Será através da noção de desfusão e refusão pulsional que tentaremos
entender os mecanismos tanto da sublimação, quanto da melancolia.

37
A ideia de um narcisismo de morte se impõe a nós, como indicado por André Green (1988).
61

A Desfusão pulsional

A desfusão pulsional é a protagonista de nossa problemática da sublimação e da


melancolia. Se acreditamos com Freud que o trabalho de sublimação implica em uma
desfusão dos instintos que antes se encontravam ligados, precisamos entender o por quê
isso se dá, qual é a dinâmica e a economia da fusão e desfusão pulsional no aparelho
psíquico. Veremos com Lambotte (1997) e Rosenberg (2003) que a melancolia seria um
derivado das pulsões de morte não suficientemente neutralizadas. Será o exemplo
freudiano principis da desfusão pulsional, a saber, masoquismo moral, que irá nos
mostrar como se dá, para o melancólico, a relação entre suas instâncias psíquicas e os
objetos do mundo externo.
Com Freud, acompanhamos as formulações sobre a sublimação até a introdução da
noção de pulsão de morte e constatamos a importante descoberta de que o trabalho de
sublimação acarreta uma desfusão dos instintos que estavam ligados, colocando em
risco a vida do eu. Diante desta colocação, somos levados a analisar os momentos em
que se faz necessário o ―trabalho de sublimação do ego‖, momentos em que o trabalho
de dessexualização da libido pode incorrer em graves consequências para o eu. Tanto a
formação do eu como o processo de identificação, o trabalho de luto e a identificação
narcísica na melancolia envolvem mecanismos de dessexualização da libido que estão
diretamente relacionados com a desfusão pulsional, mencionada acima. A sublimação e
a melancolia compartilham então, de elementos que estão interligados e precisam ser
investigados desde as origens da constituição do sujeito38. Como veremos, os elementos
desfusionantes por excelência, são a sublimação, a identificação, o masoquismo, a
ambivalência e o trauma.
É em ―O problema econômico do masoquismo‖ (1924) que serão desenvolvidas as
noções de fusão e desfusão pulsionais. Neste artigo, Freud é levado a analisar como o
princípio do prazer se relaciona com as pulsões de morte e as pulsões de vida. O prazer
e o desprazer não poderiam mais ser referidos a um fator quantitativo, mas sim,
qualitativo. Em suas palavras:

38
Delouya (2000, p.130) nos lembra que ―a sublimação está presente, vinculando-se ao ideal desde o
inicio da vida como resultado da pulsão de morte na purificação do eu-prazer‖.
62

Se pudéssemos dizer o que é essa característica qualitativa, estaríamos


muito mais avançados na psicologia. Talvez seja o ritmo, a sequência
temporal de mudanças, elevações e quedas na quantidade de
estímulo. Não sabemos. (FREUD, 1924, p.200, grifos nossos)

Assim, ―uma vez que tenhamos admitido a ideia de uma fusão das duas classes de
instintos uma com a outra, a possibilidade de uma desfusão – mais ou menos completa –
se impõe a nós‖ (FREUD, 1923, p.56). Entretanto, Freud (1923, p.56) nos diz que

[...] tal hipótese não lança qualquer luz sobre a maneira pela qual as
duas classes de instintos se fundem, misturam e ligam uma com a
outra, mas que isto se realiza de modo regular e de modo muito
extensivo constitui pressuposição indispensável à nossa concepção.

Seguiremos a pista indicada por ele:

[...] teremos de considerar se outras vicissitudes instintuais não podem


resultar também dessa transformação (sublimação); se, por exemplo,
ela não pode ocasionar uma desfusão dos diversos instintos que se
acham fundidos. (FREUD, 1923, pp.44-45)

Foi através da noção de fusão e desfusão dos instintos que Freud pôde compreender
os fenômenos do masoquismo e do sadismo. O princípio que antes tinha como objetivo
a ausência total de excitação no aparelho psíquico é alterado pela intromissão das
pulsões de vida e se torna princípio do prazer. Isto é, o princípio do Nirvana pertencente
às pulsões de morte é modificado através da interferência das pulsões de vida e da
libido. Eros representa as exigências da vida e age sobre a tendência à inércia e à
desorganização. O princípio do prazer também se sujeita a modificações e, ao adequar-
se ao mundo externo, transforma-se em princípio da realidade. Contudo, a maneira pela
qual uma pulsão se transforma na outra não nos é clara, não sabemos o que determina a
quantidade de pulsão de morte que irá se submeter ao princípio do prazer e aquela que
permanecerá desfusionada, resistindo às mudanças.
O masoquismo se apresenta de três formas: ―como condição imposta à excitação
sexual, como expressão da natureza feminina e como norma de comportamento‖
(FREUD, 1924, p.201). Iremos nos deter sobre o último, conhecido como masoquismo
moral, onde identificamos o sentimento inconsciente de culpa em sua maior parte.
Apesar de o termo sentimento inconsciente parecer incorreto, uma vez que não falamos
em sentimentos inconscientes, este parece ser, para Freud, o melhor modo de descrevê-
lo. No masoquismo moral, observamos um afrouxamento da vinculação das pulsões, a
63

sexualidade ou libido parece estar mais afastada dos seus propósitos de obter prazer.
Entretanto, veremos que a satisfação será obtida de maneira sádica pelo superego:

A consciência e a moralidade surgiram mediante a superação, a


dessexualização do complexo de Édipo; através do masoquismo
moral, porém, a moralidade mais uma vez se torna sexualizada, o
complexo de Édipo é revivido e abre-se o caminho para a regressão,
da moralidade para o complexo de Édipo. (FREUD,1924, p.211)

O sadismo que deveria ser expresso para o mundo externo retorna contra o eu, uma
vez que o princípio da realidade e as normas culturais exigem que as tendências
destrutivas do indivíduo sejam impedidas de se realizar:

A destrutividade que retorna do mundo externo é também assumida


pelo superego, sem qualquer transformação desse tipo, e aumenta seu
sadismo contra o ego. O sadismo do superego e o masoquismo do ego
suplementam-se mutuamente e se unem para produzir os mesmos
efeitos. (FREUD,1924, p.212)

Para Freud (1924), o masoquismo moral é uma prova da existência da fusão dos
instintos e o perigo que ele apresenta reside no fato de ter sua origem na pulsão de
morte. O instinto de destruição que não pôde ser totalmente voltado para fora, atua na
destruição do próprio eu, encontrando nisso uma satisfação libidinal sádica. Desse
modo, o superego atua com severidade contra o eu, pois conhece os desejos profundos
desse. Segundo Delouya (2000, p. 132), a consequência da desintrincação pulsional é
―um acúmulo interno de agressividade ou destrutividade das pulsões de morte que, não
encontrando vias de descarga motora externa, agem a serviço do ideal e contra o eu‖.
A necessidade de punição tem como par e é explicada pelo sentimento de culpa que
surge quando os ataques do superego ao ego encontram motivos para acusá-lo.
Lembramos aqui que os desejos inconscientes podem ser sempre reconhecidos pela
instância crítica e censora que sabe tudo sobre eles, uma vez que o superego é uma
diferenciação do próprio eu. De acordo com Freud(1930, p.156), ―o sentimento de culpa
é uma expressão tanto do conflito devido à ambivalência, quanto da eterna luta entre
Eros e o instinto de destruição ou morte‖.
Ele diz:

Quanto ao sentimento de culpa, temos de admitir que existe antes do


superego e, portanto, antes da consciência também. Nessa ocasião, ele
é expressão imediata do medo da autoridade externa, um
reconhecimento da tensão existente entre o ego e essa autoridade. É o
64

derivado direto do conflito entre a necessidade do amor da autoridade


e o impulso no sentido da satisfação instintiva, cuja inibição produz a
inclinação para a agressão. (FREUD,1930, p.161,grifos nossos)

Em ―O Ego e o Id‖ (1923, p.57), lemos que ―[...] a ambivalência é um fenômeno tão
fundamental que ela mais provavelmente representa uma fusão instintual que não se
completou‖. Nesse texto, o exemplo oferecido para pensarmos a oposição entre as duas
classes de instintos, a pulsão de vida e a pulsão de morte, é o do amor e do ódio –
polaridades de cada pulsão. A observação clínica nos mostra que o amor sempre está
acompanhado de ódio e que o ódio pode se transformar em amor e vice versa.39
Contudo, quando pensamos no mecanismo de transformação de amor em ódio,
pressupomos que existiria na mente, no ego ou no id, ―uma energia deslocável, a qual,
neutra em si própria, pode ser adicionada a um impulso erótico ou destrutivo
qualitativamente diferenciado e aumentar a sua catexia total.‖ (1923, p.59) Para Freud
(1923, p. 60),

[...] parece uma concepção plausível que essa energia deslocável e


neutra, que é sem dúvida, ativa tanto no ego quanto no id, proceda do
estoque narcísico de libido – que ela seja Eros dessexualizado. (Os
instintos eróticos parecem ser em geral mais plásticos, mais facilmente
desviados que os instintos destrutivos)

Essa questão nos parece importante, já que a energia necessária para a transformação
do amor em ódio provém da libido dessexualizada. Vemos também como os instintos
destrutivos são menos plásticos, o que nos leva a pensar que eles buscam caminhos já
trilhados anteriormente, como seria o caso da agressividade presente no agente censor
do eu. Freud (1923, p 61) continua:

Se essa energia deslocável é libido dessexualizada, ela também pode


ser descrita como energia sublimada, pois ainda reteria a finalidade
principal de Eros – a de unir e ligar– na medida em que auxilia no
sentido de estabelecer a unidade ou tendência à unidade, que é
particularmente característica do ego.

39
Klein (1937, p.347) sublinha a necessidade de trabalharmos a interação entre o amor e o ódio desde os
momentos mais arcaicos de funcionamento psíquico. A compreensão do papel desempenhado pelos
impulsos destrutivos nessa interação seria capaz de mostrar como os sentimentos de amor e as tendências
de reparação se desenvolvem em ligação com os impulsos agressivos, ou apesar deles. Retomaremos esse
ponto no terceiro capítulo deste trabalho.
65

Como dito anteriormente, quando o ego é o intermediador que transforma a libido


erótica em libido do ego – tornando-se o objeto amoroso único –, ele se coloca a serviço
não de Eros, mas de Tanatos. As pulsões de vida buscam nos defender contra a
destrutividade e a agressividade das pulsões de morte, seja ela dirigida ao interior ou ao
exterior do eu. Elas nos convidam à reinvenção, ao rearranjo, à fala, à desalienação, à
ligação das representações e afetos.
Rosenberg (2003) em ―Masoquismo guardião de vida e masoquismo de morte‖,
indica que seria necessário uma espécie de masoquismo primário para que o aparelho
psíquico possa se constituir. A ideia é que a capacidade do bebê de sustentar um
desprazer irá permitir a espera pelo retorno do objeto de satisfação fazendo com que as
frustações do ambiente e o desprazer do desamparo trazidos pelas pulsões anárquicas
não paralisem o pequeno sujeito. Ao poder sustentar um desprazer por um certo período
de tempo, as primeiras representações e fantasias são criadas, retoma-se o traço deixado
sulcado no aparelho psíquico pelo objeto. Recorremos a esse traço para buscar
representar aquilo que não está mais ali. Como vimos, a possibilidade de representação
do objeto ausente que era fonte de apaziguamento e prazer é sentido como uma
alucinação.
O masoquismo como guardião de vida é um paradoxo. Entretanto, ―o masoquismo
moral é aquele ao qual as neuroses recorrem mais habitualmente quando o masoquismo
se lhes é necessário‖ (ROSENBERG, 2003, p.40). O autor propõe uma separação entre
a culpa e o masoquismo moral, na qual a primeira desempenharia uma transformação do
sadismo em masoquismo e sua forma extrema seria encontrada na reação terapêutica
negativa, em que o eu não se sentirá culpado, mas doente – reafirmando a relação entre
esse sentimento de culpa e a necessidade de punição40. Já o masoquismo é ―a melhor
proteção contra a destrutividade, e em primeiro lugar contra a destrutividade interna,
mas pode se tornar seu instrumento privilegiado‖. (ROSENBERG, 2003, p.118) Iremos
discutir no item ―O trabalho de melancolia‖, as ideias desse autor, as quais nos serão
muito úteis para pensar a especificidade da sublimação na melancolia, o que nos
permitirá perceber elementos importantes na obra de Ana Cristina César.

40
A reação terapêutica negativa que tem como obstáculo o sentimento inconsciente de culpa é um fator
que ―tem de ser levado em conta em muitíssimos casos, talvez em todos os casos graves de neurose‖
(FREUD, 1923, p.66). Como as pulsões de morte agem da forma mais silenciosamente possível, talvez o
aspecto moral seja o disfarce perfeito para que a morte opere: morre-se pela honra, pelos ideais, sofre-se
por vergonha, etc...
66

Na próxima sessão, traremos a definição que Freud dá à melancolia e buscaremos


nos autores pós-freudianos as noções que expandirão nossa compressão sobre os termos
dessa pesquisa.
67

2.2 Uma psiconeurose narcísica

Para aqueles a quem a melancolia devasta, escrever sobre ela só teria


sentido se o escrito viesse da melancolia. Tento lhes falas falar de um abismo
de tristeza, dor incomunicável que às vezes nos absorve, em geral de forma
duradoura, até nos fazer perder o gosto por qualquer palavra, qualquer ato,
o próprio gosto pela vida. Esse desespero não é uma aversão, que
pressuporia capacidades de desejar e de criar, de forma negativa, claro, mas
existentes em mim. Na depressão, o absurdo de minha existência, se ela está
prestes a se desequilibrar, não é trágico: ele me parece evidente,
resplandecente e inelutável. Donde vem esse sol negro? De que galáxia
insensata seus raios invisíveis e pesados me imobilizam no chão, na cama, no
mutismo, na renúncia. (KRISTEVA, 1989,p.11)

Os gregos percebiam a melancolia como a verdadeira natureza do ser. Freud


(1917[1915]) nos dizia que o melancólico seria aquele que não fazia mais que, talvez,
apreender a verdade com mais acuidade que aqueles que não o são.
Assim, talvez tenhamos nas saídas encontradas na melancolia, algumas respostas que
poderão iluminar tanto a clínica das afecções narcísicas − que requer modos de
intervenção distintos da que encontramos no paradigma neurótico clássico−, quanto a
própria clínica da neurose. Acreditamos que as diferentes matrizes clínicas encontram-
se em uma base de sustentação comum, um solo − muitas vezes movediço − que parece
trazer à tona os momentos e os impasses arcaicos da constituição psíquica. A
localização nosográfica da melancolia também se assenta em um terreno não muito
seguro. Deparamo-nos com uma profusão de interpretações sobre a problemática do
chamado ―complexo melancólico‖ proposto por Freud (1917[1915]). Ora considerada
uma psicose, ora misturada a concepções da tradição psiquiátrica, o que as dissonâncias
nos mostram é que precisamos nos mover lentamente para alcançar aquilo que a
especificidade do discurso melancólico coloca em relevo. Nas palavras de Lambotte
(1997, p.11)

Com efeito, como abordar a melancolia se, já disposta entre as


psicoses, ela apela aos princípios gerais de explicação tanto
psiquiátricos quanto psicanalíticos? Considerar a melancolia como
uma psicose, a despeito das múltiplas formas sintomáticas de que ela
pode revestir, não contribui para fazer progredir sua compreensão, se
não, ao contrário, contribui para banalizar o modo de aproximação a
ela.
68

As inúmeras variações dos quadros melancólicos nos impelem a uma escuta que
busque entender quais seriam os fundamentos constitucionais dessa patologia, quais os
seus modos privilegiados de defesa e de relações objetais, enfim, sua dinâmica,
economia e tópica envolvidas. Como veremos, as dimensões do outro que foram
introjetadas, identificadas e incorporadas deverão ser consideradas na composição da
problemática melancólica, uma vez que o conflito psíquico na melancolia está
localizado entre o ego e o superego. Concordamos com Lambotte (1997, p.392):

Assim, pois, atrás das explicações metapsicológicas da melancolia


precedentes, da insuficiência das representações originárias da
primeira tópica freudiana − às quais voltaremos em termos de
significantes – a impossível imagem narcísica da segunda tópica, e do
modelo lacaniano que remete a organização psíquica do sujeito a um
tempo especular, perfila-se uma outra perspectiva, dinâmica desta vez,
que permite apreender as fontes e as relações energéticas específicas
de tais processos.

Assim, para seguirmos na releitura das contribuições ao tema, traremos alguns


argumentos que irão nortear nossa aproximação à melancolia, a representante
privilegiada da categoria das ―psiconeuroses narcísicas‖:

O comportamento do supereu deveria, contrariamente ao que ocorreu


até o momento, ser levado em consideração em todas as formas de
doença psíquica. À espera disso, sempre podemos postular que deve
haver afecções que repousam em um conflito entre o eu e o supereu. A
análise nos autoriza a admitir que a melancolia é um caso exemplar
deste grupo; gostaríamos muito de poder dar a este gênero de
distúrbios o nome de ‗psiconeuroses narcísicas‘. Com efeito, não seria
absolutamente contraditório com nossos sentimentos que encontremos
motivos para separar estados como a melancolia das outras psicoses.
Mas agora assinalemos que podemos aperfeiçoar nossa fórmula
genética simples sem deixá-la ruir. A neurose de transferência
corresponde ao conflito entre o eu e o isso, a neurose narcísica ao
conflito entre o eu e o supereu, a psicose entre o eu e o mundo
exterior. Certamente que não podemos dizer de imediato se
efetivamente adquirimos conhecimentos novos ou se somente
enriquecemos nosso formulário, mas penso que esta possibilidade de
aplicação nos deve encorajar a manter em vista nossa partição do
aparelho psíquico em um eu, um supereu e um isso. (FREUD,
1924.p.192)

A primeira obra freudiana que tratou do assunto foi o ―Rascunho G‖ (1895),


considerado, por ele mesmo, uma apreciação prematura no que se refere às observações
clínicas do fenômeno. Ali, ele observa que o afeto correspondente à essa patologia é o
69

do luto: o desejo de recuperar algo que foi perdido. Trataria-se de uma perda na vida
pulsional, isto é, consistiria em luto por perda da libido. (Cf: FREUD, 1895, p.223) Os
efeitos desse processo seriam a inibição psíquica com empobrecimento pulsional e
sofrimento. Para explicar estas manifestações, Freud supõe que o aparelho psíquico, ao
se defrontar com uma grande perda da quantidade de excitação, se defende através de
uma espécie de ―retração para dentro‖ na esfera psíquica, que produz efeitos sobre as
quantidades de excitação contíguas. Como uma hemorragia interna, um
empobrecimento da excitação se instala no depósito da libido que agora está livre,
manifestando-se nas outras funções, diz Freud (1985, p.227): ―Essa retração para dentro
atua de forma inibidora, como uma ferida, num modo análogo ao da dor‖. A dor foi
considerada por ele como uma pseudopulsão, reforçando o caráter econômico de
urgência que deve ser observado nesse fenômeno.
Sobre a dor psíquica, Cintra (2000, p.62) nos lembra que na teorização freudiana o
primeiro envelope psíquico, o chamado ―escudo pára-excitação‖ foi atravessado em um
ponto, de onde parte um fluxo de excitações invadindo o aparelho psíquico, da periferia
para o centro. Contudo, a dor não virá da ruptura dessa camada protetora, mas do
acúmulo de energia interna que vem ao encontro da energia invasora para tentar
imobilizá-la através de um processo de ligação. A ligação limita o fluxo da energia
livre, buscando representações que possibilitarão a operação do processo secundário.
Esse primeiro envelope psíquico mantém num sistema fechado interno o aumento
pulsional até o ponto onde a descarga se torna necessária. A descarga pulsional só é
possível através da presença e disponibilidade do objeto. O que provocaria a dor seria o
encontro da energia quiescente interna que tenta dominar a energia livre que vem de
fora. A dor não seria decorrente do aumento absoluto de energia, mas do encontro da
energia livre com a energia mobilizada de dentro para fazer o bloqueio e a ligação da
que vem de fora. A energia que atravessa o pára-excitação deixa passar uma excitação
que dependendo da sua intensidade e natureza, produz ou o prazer de excitação da pele
e dos órgãos do sentido e motricidade ou a dor.
Anos depois, em ―Luto e melancolia‖ (1917[1915]) compreendemos que a
melancolia compartilha de várias condições externas presentes no luto. Quando ocorre o
fato de um ente querido falecer, ou um grande amor acabar, o mundo externo se torna
vazio e sem apelo, não há disposição para realizar novas atividades e as funções
orgânicas como o sono e a fome podem ficar alteradas. Essas reações não são
70

consideradas patológicas quando não se prolongam no tempo. Na melancolia, o trabalho


de luto não se completa.
Entre os traços distintivos da melancolia, encontramos, segundo Freud
(1917[1915],p.276):

[...] desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo


mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e
qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a
ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-
envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição41.

No luto normal a libido investida no objeto amoroso que foi perdido será aos poucos
desvinculada, desligada. O doloroso processo de desfazer ligações deixa o eu inibido e
desinteressado pelo mundo externo. Isso demonstra como o ego não abandona
facilmente uma posição libidinal, nem mesmo quando um substituto já está presente. A
libido que é retirada do objeto se volta para o eu e, quando terminado o trabalho do luto,
o ego fica novamente livre para investir em outros objetos. Na melancolia, além do
desinteresse e inibição, observamos uma diminuição da auto-estima que acompanha a
perda do objeto de amor. Freud (1917[1915], p.280) nos dirá que ―no caso da
melancolia, a insatisfação com o ego constitui, por motivos de ordem moral, a
característica mais marcante‖. A baixa-estima e as auto-acusações do melancólico
seriam frutos de uma ―identificação narcísica‖ com o objeto perdido, objeto
introjetado42que era ao mesmo tempo amado e odiado. ―Dessa forma, uma perda objetal
se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa
separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado por uma
identificação‖ (FREUD, 1917[1915], p.282).
O mecanismo conhecido como ―identificação narcísica‖ é um processo que visa
apreender o objeto dentro de si para que sua ausência não seja sinônimo de catástrofe. A
identificação narcísica traz consigo a relação – sempre ambivalente – que se mantinha

41
A capacidade de amar, assim como de sublimar dos melancólicos são temas que geralmente carregam
uma polêmica – já que esse trecho do texto freudiano é tomado na sua literalidade. Moreira (2002) nos
ajuda pensar este ponto. Segundo a autora, ―quando estamos melancólicos perdemos a capacidade de
amar parcialmente, ficamos na posição de desamparo dos bebês, um verdadeiro bebê melancólico, que
pede amor do tipo oral e fusional, intenso e incondicional. Mas quando saímos do processo mais
excessivo, patológico, de melancolia, podemos recuperar a capacidade de amar como adultos, como
relações de objeto, sem precisar fundir com o outro; recuperamos a capacidade de nos amara nós mesmos
também, sem fusão, guardando certa distância do outro e reconhecendo ele como objeto com existência
própria‖. (MOREIRA, 2014, comunicação pessoal)
42
A introjeção será considerada como um processo de apropriação e consequente expansão psíquica,
enquanto a incorporação será correlata da impossibilidade de assimilação do que é trazido pelo mundo
externo, pelo objeto.
71

com o objeto de amor. A ambivalência de sentimentos, assim, colore a introjeção que é


feita do objeto perdido. Várias equações podem ser pensadas a partir daí. Uma delas diz
respeito à cisão entre os sentimentos contraditórios que são dirigidos ao objeto, mas
que, por este estar agora ―habitando‖ o interior psíquico do melancólico, é atacado na
sua porção que está identificada ao ego − desse modo entenderíamos as auto-acusações,
o auto-envilecimento, as recriminações melancólicas. Através da melancolia, Freud
(1917[1915]) entende que o ego só pode atentar contra a própria vida se dirigir para si
mesmo toda a agressividade que dirigiria a um objeto externo, isto é, tratar a si mesmo
como tal. Esse mecanismo ocorre devido ao retorno ao eu do investimento da libido que
estava dirigida para o exterior, ligada ao objeto. Se não fosse a operação de
identificação com o objeto (mais especificamente, com a sua faceta odiada) que se
efetua nesse momento, o ego ainda seria aquele que se auto-preservaria e buscaria as
condições para evitar a dor e buscar o prazer.
Na melancolia, o luto vivido pode ser reativo à perda de um objeto real, mas parece
estar mais relacionado à uma perda de natureza ideal. Nessa condição, pode-se saber até
quem, mas não o que foi perdido nesse alguém. Segundo Freud (1917[1915], p.278),
―isso sugeriria que a melancolia está de alguma forma relacionada a uma perda objetal
retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a
respeito da perda‖. Como dissemos, no luto, o teste da realidade se processa aos poucos
e seu penoso trabalho libera aos poucos a libido do objeto perdido. Já na melancolia, o
complexo funciona como uma ferida aberta que exige um contra-investimento43 muito
alto para que o eu não seja esvaziado de toda a sua energia libidinal. Diferentemente do
luto simples e do luto patológico, há uma perda de auto-estima que acompanha a
tristeza, isto é, existe uma alteração no eu. As auto-recriminações e as auto-acusações
dos melancólicos seriam ―[...] recriminações feitas a um objeto amado, que foram
deslocadas desse objeto para o ego do próprio paciente.‖ (1917[1915], p.280) O que
muitas vezes é chamado de um ―delírio de inferioridade‖ seria uma tentativa de atacar o
objeto de amor que se tornou um objeto abandônico e por essa razão é odiado pelo eu. A
relação objetal é desfeita quando após a escolha objetal – uma ligação da libido a um

43
Contra-investimento é um ―processo econômico postulado por Freud como suporte de numerosas
atividades defensivas do ego. Consiste no Investimento pelo ego de representações, atitudes, etc.,
susceptíveis de impedirem o acesso à consciência e à motilidade das representações e desejos
inconscientes. O termo pode igualmente designar o resultado mais ou menos permanente desse processo‖.
(LAPLANCHE, PONTALIS, 1988, pp.144-145)
72

objeto particular – se segue um desapontamento proveniente desse objeto de amor. Essa


dinâmica nos será cara para a apreciação da obra de Ana Cristina César.
Diante da ruptura da relação de amor, o eu precisa haver-se com a perda do objeto.
Esse processo é descrito por Freud (1917[1915], p.281) do seguinte modo:

A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada.


Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para
o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada,
mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto
abandonado. Assim, a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde,
daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um
objeto, o objeto abandonado.

Para Freud (Cf.: 1915, p.182), temos que considerar três elementos como pré-
condições necessárias à melancolia: a perda do objeto, a regressão da libido ao ego – e
com ela a identificação narcísica – e a ambivalência de sentimentos. Para as duas
primeiras condições deve ter estado presente uma forte fixação no objeto amado, e
contraditoriamente, a catexia objetal deve ter tido pouco poder de resistência. Sobre a
ambivalência e a identificação narcísica, Freud (1915, p.184) diz:

Esse conflito devido à ambivalência, que por vezes surge mais de


experiências reais, por vezes mais de fatores constitucionais, não deve
ser excluído entre as pré-condições da melancolia.44Se o amor pelo
objeto – o um amor que não pode ser renunciado, embora o próprio
objeto o seja – se refugiar na identificação narcisista, então o ódio
entra em ação nesse objeto substitutivo, dele abusando, degradando-o,
fazendo-o sofrer, e tirando satisfação sádica de seu sofrimento.

Lembramos que a ambivalência de sentimentos está presente desde as primeiras


identificações. Na gênese do amor construída por Freud em ―O Instinto e suas
vicissitudes‖ (1915), reconhecemos a fase de incorporação como a primeira de muitas,
onde o amor é compatível com a abolição da existência separada do objeto. Qualquer
separação é percebida como desprazer e pode então despertar angústia e ódio no eu, que
irá atacar o objeto que provocou o mal-estar. Isto é,

Quando a fase puramente narcisista cede lugar à fase objetal, o prazer


e o desprazer significam relações entre o ego e o objeto. Se o objeto se
torna fonte de sensações agradáveis, estabelece-se uma ânsia(urge)
motora que procura trazer objeto para mais perto do ego e incorporá-
lo ao ego. (1915, p.158)

44
Pensaremos mais à frente em uma ambivalência primária, relacionada aos fatores constitucionais e uma
ambivalência secundária, referente às experiências reais, derivada da problemática edípica.
73

O objeto que proporciona prazer nos atrai e nós o amamos. Inversamente, se ele for
fonte de desprazer, há um esforço do eu para aumentar a distância entre si e o outro,
repetindo o modelo de fuga dos estímulos aversivos externos. Esse objeto que é repelido
é também odiado. De acordo com Freud (1915, p.160),

O ego odeia, abomina e persegue, com intenção de destruir, todos os


objetos que constituem uma fonte de sensação desagradável para ele,
sem levar em conta que significam uma frustração quer da satisfação
sexual, quer da satisfação das necessidades auto-preservativas.
Realmente, pode-se asseverar que os verdadeiros protótipos da relação
de ódio se originam não da vida sexual, mas da luta do ego para
preservar-se e manter-se.

Os ataques brutais da instância crítica que são deferidos ao eu melancólico visam,


então, dois alvos: o outro que foi responsável pelo abandono – mas agora faz parte do
eu – e o próprio eu. Esses ataques teriam a finalidade de punir dois responsáveis de uma
só vez. Lemos em Freud:

Descobrimos que as autocensuras com que esses pacientes


melancólicos se atormentam a si mesmos da maneira mais impiedosa,
aplicam-se, de fato, a outra pessoa, o objeto sexual de que se tornou
sem valor para eles por sua própria falha. (FREUD, 1917[1916-
1917], p. 498, grifos nossos.)

Na ambiguidade da expressão ―sua própria falha‖, lemos a consideração das duas


possibilidades mencionadas acima. A primeira tratar-se-ia da culpabilização do eu pelo
abandono do objeto de amor que era, ao mesmo, tempo amado e odiado, fator sobre o
qual insistiremos. A segunda se refere ao mencionado pouco ―poder de resistência do
investimento objetal‖, isto é, o objeto não suportou o investimento que lhe era
requisitado, tendo a vertente do ódio vencido a do amor. A fragilidade do investimento
ao objeto é uma condição da melancolia que encontramos também nas fases iniciais da
vida do sujeito. As alterações percebidas na qualidade dessa primeira relação com o
outro que é simultaneamente o objeto de investimento e fonte de identificação podem
trazer consequências significativas para o eu que se constitui. Vimos com Freud que a
necessidade de separação do objeto de amor é uma renúncia à qual todo o ser humano é
submetido para que possa entrar na cultura. Essa separação acarreta uma transformação
no eu. O eu se divide em uma parte, que busca resguardar o objeto dentro de si e
74

garantir sua permanência, e uma outra parte, que se transforma no objeto perdido, que
critica e julga. O eu, diante da necessidade de desligar-se de seus objetos de amor,
precisa efetuar um dessexualização da libido que se ligava aos antigos objetos para
depois investir em novos objetos. No entanto, seria esse o mecanismo responsável por
uma desfusão pulsional que se infiltraria deixando marcas na instância crítica desse
tempo tão arcaico?
Freud (1917[1915], p.282) nos mostra como na perturbação melancólica podemos
obter uma compreensão a respeito da constituição do eu, onde uma parte do eu se coloca
contra a outra, julga-a e a toma como seu objeto: ―Dessa forma, uma perda objetal se
transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa
separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação‖.
Lembramos que, ―no caso da melancolia, a insatisfação com o ego constitui, por
motivos de ordem moral, a característica mais marcante‖ (1917[1915], p.280).
A partir do momento em que se pode perceber a existência do objeto existe a
possibilidade de uma ferida narcísica – que poderá ser parcialmente cicatrizada com o
ideal do eu (Cf: MOREIRA, 2002). Essa ferida narcísica primordial que recorre a uma
instância superior para se conter também confere a ela poderes especiais de observação
e censura. É o superego que irá avaliar se o eu está de acordo com o ideal de eu. O
objeto, por ser um elemento externo e variar na qualidade e quantidade de seu cuidado e
presença, precisa entrar dentro de um circuito de ordenações previsíveis e capazes de
contenção. O eu, passivo e submetido às vontades tanto do objeto quanto do id, tem
como recurso a transformação da atitude passiva em ativa, atribuindo a si mesmo a
responsabilidade pelo que venha acontecer com o objeto. Como observado na
megalomania e na onipotência de pensamentos presentes nas patologias narcísicas, o
ego toma para si a responsabilidade pelos destinos dos objetos que estão ao seu lado.

2.2.1 Ambivalência, culpa, vergonha e masoquismo

Como vimos anteriormente, tanto a instância crítica quanto o sentimento de culpa são
trazidos por Freud ao longo da primeira tópica como tributários do complexo edípico. A
culpa seria o resultado dos sentimentos ambivalentes em relação ao objeto de amor que
75

é também fonte de identificação. O desejo de ocupar o lugar do pai, o qual é amado e


temido, leva o eu a reprimir suas tendências agressivas, que tomam a forma de um
sentimento de culpa. É somente na segunda tópica psíquica que localizaremos o
sentimento de culpa ao lado das pulsões destrutivas no eu. Pensamos que, na
melancolia, o complexo de Édipo reatualiza as perdas originárias, isto é, ―perde-se‖
novamente o objeto de amor ou algo ligado ao ideal onde antes o eu se refugiava. O eu
que se responsabilizou pela partida do objeto de amor para obter algum domínio e
contenção da situação de desamparo pode se ver aprisionado a uma identificação com o
objeto que está na origem da formação do próprio eu, impossibilitado de desidentificar-
se45. Vimos que a consequência dessa operação é o eu se colocar a serviço das pulsões
do id. No tempo do complexo de Édipo, a perda do objeto de amor encontra novamente
um terreno de ambivalência de sentimentos, onde o eu irá novamente ficar em dívida
com o outro, se culpando através da instância crítica superegóica – que agora contém o
ideal do eu. Assim, podemos dizer que o sentimento de culpa que é anterior ao
complexo de Édipo encontra, nesse último, a ocasião para se reeditar. Sabemos que o
ego busca evitar, de todas as formas, a perda de seu objeto de amor ao identificar-se
com ele, mas quais seriam os elementos que permitiriam ao eu desidentificar-se desse
objeto incorporado?

Após esse processo conhecido como complexo melancólico, o superego, a instância


crítica do eu, pode ser visto na sua faceta mais terrível: uma ―pura cultura da pulsão de
morte‖. (Cf: FREUD, 1917 [1915], passim) A culpa do melancólico, então, estaria
referida tanto à responsabilidade pela ausência do objeto quanto pelos seus desejos
proibidos. Contudo, no melancólico haveria um desejo primário mais urgente, o desejo
de ser. Veremos com Vertzman (2002, 2009) que o desejo de ser traz ao mesmo tempo a
culpa de sê-lo. Se o objeto não está mais lá, como antes ou como o eu precisava que ele
estivesse, então, o eu em constituição, por estar vivenciando o período da onipotência de
pensamentos46 irá atribuir a si a causalidade do movimento de afastamento do objeto de

45
Esse termo parece ter sido usado pela primeira vez por Octave Manonni. Ele entendia a identificação
como um processo inconsciente sendo que a sua conscientização produziria uma desidentificação. Só
seria possível saber a que se está identificado no momento em que não se está mais identificado ao objeto.
Manonni (1987/1994) chama atenção para o fato da identificação ser um tipo de pensamento que não
necessita de justificativa, pois a causa permanece sempre obscura; ela só vem a ser consciente quando o
sujeito desidentifica-se.
46
Na onipotência de pensamentos, ainda não está clara a distinção dentro e fora, eu e outro. O sentimento
de onipotência é um importante fator na estruturação do sujeito, pois é preciso num primeiro momento
acreditar que as ações do mundo externo são efeitos do próprio desejo, ou seja, é preciso que exista um
ambiente que propicie ao pequeno sujeito a ilusão de que ele cria os objetos da realidade.
76

amor. As auto-recriminações surgem também como uma forma de punição dessa culpa
por ter feito o outro desaparecer. Como ele não sabe por quê, é ao seu corpo e suas
características pessoais que recorre, buscando a origem do que poderia ter repelido a
mãe, justificado o abandono47. Um dos maiores sofrimentos do melancólico é sentir que
ele não teve nenhum poder de influência sobre a decisão do outro, que ele não foi
motivo para a felicidade da mãe nem foi capaz de despertar seu amor (um amor
―suficiente‖), mas o contrário disso. Vertzman (2002, p.74) nos ajuda a pensar a culpa:

O elemento impossível de ser introjetado, como notado, é a culpa


edípica do adulto. A criança não possui vocabulário para correlacionar
a linguagem da mímesis com o crime da sexualidade, entretanto, ela é
capaz de assumir todos os outros aspectos da culpa, tais como a
comiseração, a imputação compulsiva de responsabilidade a si, a
percepção de ter cometido um ato condenável, dentro da sua forma de
usara linguagem. [...]a culpa passional do adulto é degradada no
universo psíquico da criança tornando-se culpa por ser. Percebo
alguma afinidade entre esta modalidade paradoxal de culpa e a culpa
narcísica, definida por Freud como angústia diante da perda do amor
parental. [..] O apego que a criança adquire pela nova posição advém
do fato de que foi através da culpa de ser que ela pôde se separar
paradoxalmente do outro, que ela pôde assumir sua única identidade
possível, que ela pôde reconhecer a presença de um desejo a ela
dirigido.

Segundo o autor (2002), a culpa é o índice que permite ao sujeito se identificar.


Quando o outro adulto não reconhece o pequeno sujeito como alguém com necessidades
próprias, estaremos face a uma desautorização que atua na capacidade de dar sentido e
no próprio sentido do existir. Em suas palavras,

Quando a onipotência introjetiva não encontra qualquer elemento no


mundo que a sustenta — neste caso o reconhecimento por parte de um
terceiro — ocorre um curto-circuito na construção do sentido. Quando
o desmentido atinge uma área onde a afirmação de si seja prioritária,
neste caso a verdade das próprias sensações, o que é desmentido é o
próprio sujeito. Para que o desmentido seja performativo e o trauma
se efetive não é necessário que este terceiro emita sentenças
específicas a respeito da criança. Basta que não a encare como uma
pessoa com necessidades próprias. A ausência de reconhecimento
característica do trauma não é um problema senso perceptivo. Diante
dos obstáculos típicos da vida, o infans escuta precocemente que ele
deve se adequar ao mundo tal qual ele é, que nada pode fazer para
transformá-lo, que o único modo de existir é na quietude, que deve

47
Freud (1923) nos conta como na reação terapêutica negativa estaria em jogo um sentimento de culpa
tão poderoso que impediria o paciente de se beneficiar de sua melhora. Freud sempre fazia menção ao
―complexo melancólico‖ para tentar compreender esse fenômeno clínico – a reação terapêutica negativa –
que subverte todas as noções anteriores sobre a teoria e a técnica.
77

aceitar prontamente aquilo que lhe é oferecido. O traumatizado se


agarra à ideia de que tudo que lhe ocorre é fruto de um destino que
nada quer e que precisa utilizá-lo como intérprete para provar o seu
poder. (VERTZMAN,2002,p.69)

Veremos mais adiante como a dimensão do desmentido está presente de diversas


formas na melancolia.
De acordo com Vertzman (2002), o masoquismo seria o testemunho de uma falha da
estrutura neurótica. A diferença entre a culpa e o masoquismo estaria no seu lugar de
satisfação. A culpa viria depois da satisfação libidinal que tem um objeto próprio. Na
culpa e na consciência moral, iremos observar o sadismo acrescido do supereu – ao qual
o eu se submete. No masoquismo moral o acento recairia, contrariamente, sobre o
masoquismo do próprio eu, que irá reclamar uma punição – seja do supereu ou do
exterior propriamente dito.
Pensamos que a ambivalência em relação à figura paterna seria distinta daquela que
observamos na relação mãe-filho. A separação necessária com o objeto primordial de
amor – sabemos com Klein (1940) – gera angústias paranóides e também depressivas. O
objeto que passa a ser percebido como distinto do eu, surge como um objeto total que
contém, dentro de si, tanto as partes boas (nutrição, cuidado, amor) quanto as partes más
(frustração, abandono, ódio). Podemos entender, assim, que haveria uma ambivalência
―primária‖ relacionada a um momento constitutivo arcaico, cuja resultante seria o ―ser
ou não ser‖. A ambivalência ―secundária‖, relativa ao complexo Édipo e sua dissolução,
estaria direcionada ao desejo inconsciente, aos desejos incestuosos – cuja realização
exacerbaria a culpa de se estar ocupando o lugar do pai, superando-o – e aos desejos que
vão na direção oposta aos modelos estabelecidos pelo ideal do eu.
De acordo com França Neto (2005,p. 101) ―é a vertente do ódio direcionada ao pai
que também é amado que precipita no sujeito um sentimento de culpa potencialmente
paralisante‖. Entretanto, pensamos que o ódio da ambivalência ―primária‖ é tão ou
mais mortificador do que aquilo que chamamos aqui de ambivalência secundária. Na
neurose obsessiva, a onipotência de pensamentos engendra um mecanismo ritualístico
que tem como objetivo afastar ou dificultar a realização mágica dos pensamentos
violentos que aparecem na fantasia de aniquilamento do outro. Na melancolia, ela
assoma ao eu a culpa pelo destino do objeto, atuando como defesa frente à falta de
controle sobre o objeto de amor. A presença ou a ausência do objeto passam a ser
interpretadas como efeito ou resposta aos movimentos do esboço de eu que busca
regularidade e constância para se configurar. Desse modo, vemos acontecer uma
78

inversão de papeis: temendo o afastamento e a morte daquele que é responsável pelo seu
cuidado, o bebê passa a se adequar ao ambiente que o acolhe, e não o contrário – cujo
corolário seria a ideia da ―mãe suficientemente boa‖. A progressão traumática de que
nos fala Ferenczi (1933, p.103) é um modelo de entendimento do destino que virá a ter
essa composição subjetiva especial, que parece ser composta somente de id e superego.
Essa compreensão será retomada na análise da obra de Ana C.
O ódio, não podendo ser dirigido ao exterior, retorna para o eu ameaçando-o de
desintegração. Essa ameaça de aniquilamento geraria as ―agonias impensáveis‖ deque
nos fala Winnicott, as quais têm a cisão como mecanismo de defesa básico para
enfrentá-las. O ódio direcionado ao interior do psiquismo não funcionaria apenas como
a voz que desautoriza, recrimina e dilacera o eu, mas também como uma força cuja
potência desfaz as ligações construídas, desconstrói unidades e pode contaminar o
psiquismo – que passa a convocar as lembranças penosas e transformar em fragmentos
vexatórios a memória e a narrativa da história de si construída.
Pensamos que o sentimento inconsciente de culpa que está na base da resistência
mais poderosa ao tratamento analítico seria tributária do primeiro momento de
separação, da culpa arcaica relacionada à possibilidade de destruição do outro, um que
se diferencia do eu, mas faz parte do mesmo. Sabemos que a diferenciação é um
processo lento que irá envolver o já mencionado mecanismo de identificação de forma
que esse outro seja metabolizado e passe a compor os traços diretrizes do eu. Contudo,
iremos perceber que esse mecanismo de introjeção inclui o risco de uma ―incorporação‖
do objeto externo, que será mantido encapsulado, enquistado numa ―cripta‖ (TOROK,
ABRAHAM, 1987)48 que impede sua movimentação, a transformação do estranho em
familiar. Compreendemos que a tentativa de supressão do ódio que seria responsável
tanto por uma retaliação do objeto quanto pela distinção necessária entre o eu e o objeto
externo produz uma dinâmica delicada.

48
De acordo com os autores (TOROK, ABRAHAM, 1987, p.239), ―na tópica, essa cripta corresponde a
um lugar definido. Não é nem o Inconsciente dinâmico, nem o Ego da introjeção. Seria antes como um
território encravado entre os dois, espécie de Inconsciente artificial, instalado no próprio seio do Ego. A
existência de tal túmulo tem por efeito obturar as paredes semipermeáveis do Inconsciente dinâmico.
Nada deve filtrar para o mundo exterior. É ao Ego que retorna a função de guardião do cemitério. Ele se
mantém plantado ali para fiscalizar as idas e vindas da família próxima que pretende – por razões diversas
– ter acesso ao túmulo. Se ele consentir em introduzir aí os curiosos, os prejudiciais, os detetives, será
para lhes poupar falsas pistas e túmulos fictícios. Aqueles que tem direito à visita serão objetos de
manobras e de manipulações variadas. Eles também serão constantemente mantidos presentes no interior
do Ego. Vê-se que a vida de um guardião de túmulo – por ter que compor com essa multidão diversa –
deve ser feita de malícia, de astúcia e de diplomacia. Seu lema: para esperto, esperto e meio‖.
79

Quando o suporte identitário, a função de cuidado e o espelhamento oferecido pelo


objeto materno não possuem qualidades que o permitiria ser introjetado – compondo
assim o narcisismo e a auto-estima – o eu pode ver-se aprisionado a esse outro, incapaz
de deixá-lo partir, se separar. É o objeto investido narcisicamente que precipita uma
identificação que irá garantir para o eu a presença do outro, embora esse outro venha
cindido em suas partes boas e más. O eu também irá sofrer uma cisão, e a parcela má
identificada ao eu será tratada como se fosse um objeto externo, explicando as auto-
acusações e recriminações que podem chegar ao ponto extremo de um ―delírio de
inferioridade‖, como nos diz Freud. A parcela boa parece não ter a força de doação de
vida necessária para combater o superego que se tornou uma ―cultura pura da pulsão de
morte‖, podendo ainda, paradoxalmente, funcionar como a energia de vida que irá
sexualizar o sofrimento trazido pela culpa. Aqui trazemos, brevemente, a voz de Ana C.
em uma carta escrita para Maria Cecília Fonseca, em junho de 1976:

Eu só queria dizer que estou ciente de uma grande solidão, falta de


laços, [...] Acho que a distância me tira a vergonha de falar da solidão.
É difícil falar disso tudo pra alguém perto, fica parecendo um apelo,
um pedido, uma velada exigência ou reclamação. Como explicar para
alguém perto que me sinto sozinha e que isso não significa que não
somos amigos, não significa que não gosto de ninguém, não oculta
uma reclamação?(talvez ocultasse se eu formulasse tudo isso.) (Era
isso que eu queria dizer na primeiríssima e rejeitada folha e não
consegui. Está dito, enfim.) Sei é que com as pessoas que estão aqui
perto eu me sinto muito insegura. Deve ser estranho pra você receber
cartas minhas tão flutuantes. Na minha cabeça parece que em cada
carta transmito uma coisa diferente. Essa instabilidade intensa também
é real, é cotidiana. Essa solidão que eu falo não é fato novo: ficou
evidente, privado, inescapável. Antes era escamoteado, público,
irremediável. Acho que eu tenho curiosidade de saber se todas essas
coisas minhas são tão públicas assim. Até que ponto todo mundo
percebe, Cecília?(CÉSAR, 1999b, p. 116)

A poeta dizia que as cartas e biografias são mais arrepiantes que a literatura, ela
manifestava um desejo de que suas cartas fossem publicadas. Em outro momento, em
março de 1977 termina uma carta para Clara Alvim, outra professora de literatura de
quem fica amiga, assim: ―Desculpa o estilo – morro pela boca, por essa boca. Me sinto
triste e a palavra vilipendia minha tristeza. Me escreve? Beijos‖(CÉSAR, 1999b, p.25).
O significado de ―vilipendiar‖ é ―tratar alguém com desprezo, considerar (algo ou
80

alguém) como vil, indigno, sem valor‖ (HOUAISS, 2001, p.2662). A palavra
recrudesceria a tristeza da escritora? Retomaremos essa discussão no capítulo 5.
Será que o resultado da ambivalência primária estaria mais próximo da vergonha e a
ambivalência secundária estaria mais próxima da culpa? Florence (1994, p.131) aponta
que a melancolia está ligada aos modos mais arcaicos de ambivalência, isto é, ―a
identificação melancólica reconduz aos modos mais arcaicos da ambivalência, cliva o
eu em uma parte sádica, identificada com o objeto, e em uma parte perseguida
pela fantasia do objeto‖, o que nos leva a entender a rigidez do ideal melancólico. Sobre
esse ponto Vertzman (2009, p.171) contribui dizendo que:

O melancólico apresenta-se como portador de um código moral


bastante rígido, que não apenas servirá para instrumentalizar a critica
mordaz que dirige aos outros, como também – e sobretudo – a si
próprio. Há nele uma preocupação permanente com a noção de
ridículo, tanto no que se refere ao ser ridículo quanto ao próprio
ridículo da vida. Ele está ligado a um código moral.

A vergonha diz respeito ao sentimento de não estar à altura de nossas pretensões, a


partir da proposta de Vertzman (2009), ela está relacionada com o olhar (ser olhado),
sendo que os sentimentos de desgosto ou desprezo por si são projetados no outro. A
vergonha é relativa ao que se é e suscita o desejo de transformação, mas é imperdoável,
não pode ser expiada. Para o autor,

o sujeito depressivo da contemporaneidade sofre com a vergonha. O


papel importante que o olhar do outro ocupa em sua vida remete para
a questão da subjetividade exteriorizada, também perceptível na
melancolia, mas de forma diferente. Na depressão, a presença do outro
é perturbadora porque apontaria para alguma coisa em que ele seria
falho, em que não teria tido a performance esperada, ainda que não
tenha clareza sobre sua falha. Na melancolia, a exterioridade é de
outra ordem. O outro sabe tudo sobre ele, ele é quase transparente e,
portanto, não haveria interioridade. Ele não sabe o que é o segredo.
(VERTZMAN, 2009, grifos nossos)

Uma das diferenças centrais entre vergonha e culpa diz respeito ao tipo de reparação
que cada uma convoca: enquanto a culpa deve ser reparada e expiada, a primeira não
consegue fazê-lo. Consideramos diferentes tipos de sublimações, as que partem da
tentativa de reparação da vergonha e as que buscam reparar a culpa. Esta última estaria
na origem de algumas sublimações que mantêm uma relação muito próxima entre o
81

objeto perdido que deveria ser abandonado e o objeto que será recriado, reinvestido na
sublimação49, o que encontramos na poesia de Ana C.
O sentimento de vergonha é aterrador após o acesso melancólico. Na fase maníaca,
a fusão do eu com o superego, a liberação da censura e da libido permitem ao Eu fazer
coisas que antes estavam fora de sua possibilidade, estavam inibidas, mais que
recalcadas. Dar-se a ver fazendo o que o superego proíbe, ser olhado sem os
mecanismos de defesa usuais – a culpa, a tristeza, a inibição – potencializa o sentimento
de vergonha, que parece não ter expiação. O sofrimento do eu, o seu esmagamento, é
visível pela apatia e desespero que aparecem quando a fase maníaca passa. A
profundidade da depressão pós-crise pode, muitas vezes, ser maior que o estado anterior
que teria precipitado a defesa maníaca, um processo que se retroalimenta e aprisiona o
sujeito que perde cada vez mais a capacidade de construir narrativas e dar sentido à
vida. O adoecimento físico aparece como uma camuflagem dessa vergonha que irá se
sobrepor à culpa inconsciente, a qual gera a necessidade de punição do eu pelo
Superego. Nos trabalhos de Vertzman (2009, 2012) a noção de perdão aparece como
tentativa de mitigar essa vergonha.
Pensamos que no melancólico existe uma dupla fonte de irrupção pulsional, tanto a
que vem do próprio trabalho de desinvestimento do objeto como também da ferida
deixada pelo objeto perdido. Cintra (2000, p.140) nos diz que:

A tendência do melancólico a cobrir-se com a sombra do objeto, a


assumir esta sombra sobre si, é um exemplo claro de transformação de
investimento em desinvestimento, uma vez que a sombra nada mais é
que a face do objeto que virou as costas, que des-investiu o sujeito.
Assumindo de um lado a sombra do objeto, e de outro, criando um Eu
Ideal que concentra em si um brilho fálico e absoluto, o melancólico
descaracteriza tanto a luz quanto o escuro, criando uma dissociação
que destitui tanto a luz quanto a sombra, de seus poderes fecundantes.

A autora também nos ajuda a compreender um pouco mais o desinvestimento aos


objetos presente na melancolia quando afirma que:

Este desinvestimento produz o sem-sentido, ao mesmo tempo que é


preciso considerar que o desinvestimento nunca é uma simples
retirada completa do investimento mas ocorre deixando ―restos
desorganizados do sentido perdido...é [um estado] persecutório e
cheio de remorsos melancólicos. Este sem-sentido que pode ser vivido

49
O que nos levará a fazer uso da compreensão kleiniana que entende a sublimação como um processo
que está diretamente relacionada à necessidade de reparação.
82

de uma forma passiva, e paradoxalmente, impassível ou ativa,


caracteriza a experiência do ‗buraco negro‘, e corresponde à vivência
de ser amaldiçoado ou danado, para lá de toda a esperança, de ser um
prisioneiro da perdição (CINTRA,2000, p.122).

Portanto, o trabalho do luto, ele mesmo, poderia ser contaminado pelo trabalho
subreptício da pulsão de morte − o que nos remete à ―pura cultura da pulsão de morte‖
encontrada no superego melancólico − superego reconhecidamente tirânico e sádico.
Perguntamos uma vez mais, seria esse excesso mortífero o que comprometeria a
constituição ―plena‖ do eu e impediria o sujeito de se apropriar dos outros recursos
oferecidos pelo ambiente? Veremos que segundo a interpretação de autores como
Rosenberg e Lambotte, o eu do melancólico teria sido presa das pulsões de morte que
não foram suficientemente neutralizadas por falta de uma energia erótica em quantidade
suficiente. O ferimento narcísico não torna possível o represamento da libido que escoa
pelo buraco vazio que aparece no lugar da imagem integrada do corpo que deveria ter
sido oferecida pelo outro. É Lacan quem irá nos oferecer as ferramentas para pensar a
função do olhar e do espelhamento na constituição subjetiva.

2.3 A problemática especular

A contribuição de Lacan (1949) sobre o estádio do espelho nos auxilia a pensar como
se daria a formação do ego e a apropriação da identidade através do olhar que um
terceiro oferece à criança. Segundo Lacan (1949, p.100), o estádio do espelho

é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a


antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da
identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem
despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que
chamaremos de ortopédica – e para armadura enfim assumida de uma
identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu
desenvolvimento mental.

Assim, a partir do olhar materno totalizante e de seu narcisismo, o ego do bebê


começará a se formar. Contudo, o ego melancólico não teria encontrado no outro o
suporte para o reconhecimento de si mesmo e seu lugar de existência. Incapaz ―[...] de
romper os laços que parecia ter tão fortemente instaurado, o melancólico não renunciou
83

a um ideal tão selvagemente defendido e, em vez de deixá-lo esvanecer-se, devorou-o


para conservá-lo para sempre‖ (LAMBOTTE, 2000, p.79). A relação com seu próprio
corpo ficará comprometida, como explica Lambotte (2000, p.81)

Dotado de um rosto que não reconhece e de um corpo aguçado pelo


vazio, o melancólico dá a impressão de dissociar-se, como se sua
intimidade obedecesse a forças estranhas e para ele permanecesse, por
conseguinte, inacessível. Na marca do espelho, lugar das primeiras
identificações estruturantes, indicados pelos paradoxos freudianos
deixados sem resposta, foi ali, sem dúvida que o olhar do melancólico
adquiriu definitivamente essa hebetude que o caracteriza, por falta de
um outro olhar que, numa troca benevolente, lhe teria permitido tomar
por sua a imagem à sua frente.

Como nos aponta a autora, o eu ideal desses pacientes está contaminado por uma
verdade que aparece cedo demais, a verdade de que a relação com o Outro 50 é um logro,
um engano; o sujeito melancólico não caiu na ilusão vital da relação ao Outro que lhe
teria atribuído uma identidade. Essa relação estará refletida na maneira como esse
sujeito se relacionará com o mundo:

As queixas colocadas tais como: não vale a pena fazer o que quer que
seja, já que não há sentido, não há verdade, etc., e que se justificam
num primeiro nível a apatia melancólica, denunciam sem dúvida o
efeito catastrófico do logro de que o sujeito foi vítima e pelo qual
recusa agora se deixar tomar. Mais ainda, se esta recusa traduz, como
vimos, o único modo de defesa que lhe foi possível elaborar, é de um
verdadeiro traumatismo que se trataria para o melancólico, de um
modo de reação estrutural ao qual ele não podia escapar, não mais que
o podia modificar [...] (LAMBOTTE,1997,p.391).

Para Lambotte (1997), a especificidade do discurso melancólico está no ponto de


definição dessa "estrutura", a qual acontece em um tempo pré-especular, antes da
criança entrar na fase do espelho, ou melhor, no momento em que ela estava
conquistando sua imagem e seu desejo. Segundo a autora, a mãe é responsável por
investir com seu olhar a imagem da criança que iria identificar-se através desse
espelhamento que a mãe faz. O melancólico padece de um abandono daquele objeto que
ele já tinha percebido que estava ‗por ali‘. O que descrevemos aqui se assemelha ao que

50
O ―grande Outro‖ é a própria referência ao simbólico, uma noção ―concebida como um espaço de
significantes que o sujeito encontra desde seu ingresso no mundo [...]. O Outro vai se tornar mais
especificamente o lugar ‗onde se constitui o eu que fala‘. [...] O movimento do desejo procede da
articulação do sujeito com o Outro e do Outro com o sujeito, razão por que o lugar do Outro se encontra
como lugar do único possível da verdade‖. (KAUFMANN, 1996, pp.385-387)
84

51
Green (1988) nomeou como a "Mãe Morta" e ao que Lacan chamou de "suicídio do
objeto"52. A criança percebe que seu objeto de investimento se tornou opaco e sem vida,
é um morto, um nada que apareceu no lugar de onde vinha o cuidado e o afeto. O efeito
é de uma verdadeira catástrofe narcísica, de uma ferida no eu que não sabe mais qual é o
seu referencial. O pequeno sujeito irá então buscar mecanismos defensivos para não
sucumbir à dilaceração de sua imagem corporal e à hemorragia libidinal que escoa pela
ferida narcísica.
Lambotte (1997) nos diz ainda que não só o sujeito efetua uma identificação
narcísica, mas o sujeito identifica-se com o nada que ficou no lugar do objeto de amor,
identifica-se com o próprio movimento de partida do objeto. As auto-acusações e o
discurso do ―não ser nada‖ podem ser entendidas agora como título da identidade desses
sujeitos que sabem, mais do que todos, sobre o logro da identificação necessário para a
constituição da vida. Esses sujeitos não param de denunciar essa verdade que lhes
apareceu cedo demais, que as relações estão fadadas, que a vida é só um jogo, e que a
morte é mais próxima do que se imagina. O discurso niilista vem como um anteparo a
esses sujeitos que buscam se proteger a todo tempo de uma nova catástrofe e, por isso,
antecipam o término de suas relações e se mantêm mais afastados do mundo, embora o
veja com uma lucidez mortífera.
O recurso que esses sujeitos possuem é o da negatividade, o de acreditarem que nada
é para eles, que nada vale a pena, que as coisas não fazem sentido. A negatividade do
melancólico muitas vezes é aproximada ao mecanismo descrito por Freud como
(Verleugnung), o desmentido ou desautorização – típicos da perversão. O melancólico
não deixa de perceber as diferenças na realidade (a diferença anatômica entre os sexos,

51
―A transformação na vida psíquica, no momento do luto súbito da mãe que desinveste brutalmente seu
filho, é vivida por ele como uma catástrofe. Por outro a lado, porque sem nenhum aviso prévio o amor foi
repentinamente perdido. O trauma narcisista que esta mudança representa não precisa ser longamente
demonstrado. É preciso, no entanto, sublinhar que ele constitui uma desilusão antecipada e que provoca,
além da perda de amor, uma perda de sentido, pois o bebê não dispõe de nenhuma explicação para dar
conta do que aconteceu. É claro que considerando-se como centro do universo materno, ele interpreta essa
decepção como a consequência de suas pulsões para com o objeto.[...] Depois da criança ter tentado uma
vã reparação da mãe absorta por seu luto, que lhe fez sentir a medida de sua impotência, depois de ter
vivido a perda do amor da mãe e a ameaça da perda da própria mãe e que lutou contra a angústia através
de diversas maneiras ativas, entre elas a agitação, a insônia ou os terrores noturnos, o Eu vai pôr em ação
uma série de defesas de outra natureza. A primeira e a mais importante será um movimento único com
duas vertentes: o desinvestimento do objeto materno e a identificação inconsciente com a mãe morta‖.
(GREEN, 1988, p.248 e 249)
52
Essa ideia aparece no seminário sobre a transferência, onde lemos: ―um remorso de um certo tipo,
desencadeado por um desenlace que é da ordem do suicídio do objeto. Um remorso, portanto, a propósito
de um objeto que entrou, de algum modo, no campo do desejo e que, por sua ação, ou por qualquer risco
que correu na aventura, desapareceu‖ (LACAN, 1961/1992, p. 380).
85

por exemplo), o mecanismo que ali reconhecemos assemelha-se ao ―eu sei, mas, mesmo
assim ...‖ , que nos explica Mannoni (1973). O tipo de desmentido ou recusa que
aparece no discurso melancólico é o de que as coisas do mundo existem, mas nenhuma
delas lhe diz respeito.

2.3.1 Dos mecanismos defensivos da melancolia

A melancolia coloca em primeiro plano o Eu, esta instância que representa o sujeito e
é responsável pela mediação entre seus conteúdos internos e a exigência da realidade
externa. Dentre as maneiras que o melancólico encontra para lidar com sua particular
composição subjetiva estão os mecanismos defensivos conhecidos como inibição,
negativismo, a identificação ao nada, o masoquismo moral, a sexualização do
pensamento, a mania – além, é claro, da identificação narcísica.
Vemos como o complexo melancólico aciona defesas que vêm em auxílio desse eu
que se transformou e é o alvo de uma ―pura cultura da pulsão de morte‖. A instância
crítica que acusa o eu precisa ser calada, é necessário reinvestir nos objetos externos e
liberar os canais de fluxo da libido. A chamada ―virada maníaca‖, a qual muitas vezes
acompanha a melancolia diz respeito a essa tentativa precária de sobrevivência do eu. O
que encontramos na mania é o pólo oposto da melancolia, onde a realidade externa é
superinvestida, todos os objetos do mundo externo (e interno) têm o potencial de se
desdobrar em múltiplos sentidos e a energia dispensada ao eu para suas atividades
parece ser ilimitada. As censuras são diminuídas, novos arranjos são experimentados,
antigos ideais e projetos são retomados e reinvestidos. De acordo com Freud (1933
[1932], p.80): ―o ego liberado, maníaco, permite-se uma satisfação verdadeiramente
desinibida de todos os seus apetites. Aqui estão acontecimentos ricos em enigmas não
solucionados‖. É interessante para nós o fato de que o mais importante trabalho de
tradução de Ana Cristina César foi o poema de Katherine Mainsfield chamado ―Bliss‖,
palavra que se refere ao êxtase que dá o tom da mania.
Na crise melancólica vemos o supereu se tornar um complemento do eu totalmente
distinto, tratando-o como puro objeto, enquanto na mania, de maneira inversa,
encontramos uma fusão do eu com o supereu, que se tornam uma instância única;
86

aparentemente é como se o supereu tivesse perdido a sua força ou estivesse fundido no


eu. Com as palavras de Freud (1933 [1932], p.79-80),

(...) durante um surto melancólico seu supereu se torna super severo,


insulta, humilha e maltrata o pobre eu, ameaça-o com os mais duros
castigos, recrimina-o por atos do passado mais remoto, que haviam
sido considerados, à época, insignificantes (...). O supereu aplica o
mais rígido padrão de moral ao eu indefeso que lhe fica à mercê; (...)
Em determinadas formas da doença (mania), na verdade, passa-se algo
de tipo contrário, nos intervalos; o eu encontra-se em um estado
beatífico de exaltação, celebra um triunfo, como se o supereu tivesse
perdido toda a sua força ou estivesse fundido no eu (...).

O maníaco suspende os ataques ao objeto perdido que está identificado ao eu,


entretanto, permanece sem o conhecimento do que foi levado na perda. Este conteúdo
inconsciente permanece tanto na mania quanto na melancolia. Não poder saber o que foi
perdido – uma vez que o que se perdeu (o eu, ―a coisa‖) não pode ser representado por
ter ocorrido num tempo onde a linguagem ainda não existia e a separação do eu ainda
não havia se concluído – serviria ainda de estímulo para a fuga de ideias que aparecem e
aceleram o pensamento e que podem chegar a construções delirantes. Deriva também
daí a confusão nosográfica que localiza a melancolia como psicose, uma vez que o
delírio pode ser interpretado como o fator distintivo definitivo da recusa da realidade.
No entanto, Lambotte (1997) nos lembra que antes de uma negação da realidade, da não
aceitação da castração, o melancólico é aquele que foi castrado desde o início, estando
muito mais próximo da realidade que a simples neurose. A mania expressa justamente a
tentativa de se reencontrar com a verdade que ele já descobriu precocemente. Através
do delírio o sujeito cria novamente para si as condições de separação precária entre o
mundo externo e interno, entre o que está delimitado pelo seu corpo e o que pertence ao
mundo externo. O indivíduo pode experimentar a onipotência de pensamentos,
elemento fundamental na sua constituição que foi frustrado, ele é – talvez pela primeira
vez – o centro do mundo. Essa megalomania se opõe às tendências persecutórias do eu e
a euforia garante que o sentimento de exceção não seja o de ser o excluído, o culpado, o
que precisa de expiação.
Como vimos anteriormente, um dos fenômenos observados na clínica dos pacientes
melancólicos é a auto-recriminação53 melancólica que nos traz aspectos que

53
Pensamos que a auto-recriminação, a auto-depreciação característica da melancolia pode adquirir várias
"máscaras". Poderíamos reconhecer uma auto-depreciação nos sujeitos que anulam o seu desejo, seja
porque acreditam que o seu desejo é mortífero para os outros ou porque não acreditam ser possível haver
87

reconhecemos no ―masoquismo moral‖. Rosenfeld (2003) nos fala como o masoquismo


seria uma tentativa do sujeito suportar uma culpa que é insuportável. O desprazer
incomensurável produzidos pelo sentimento de culpa inconsciente deverá ser
sexualizado, e, assim, através da inversão do desprazer em prazer masoquista, o sujeito
se protegeria contra o colapso psíquico. Esse masoquismo moral incluirá e dará um
destino, funesto, para as vozes do que foi chamado por Figueiredo (2012) de ―Supraeu‖,
isto é, a dimensão mais arcaica do psiquismo.
Um dos sintomas necessários da melancolia é a anestesia psíquica. A mencionada
anestesia pode ser traduzida em uma fala que é recorrente entre os pacientes
melancólicos: ―Não vale a pena fazer isto ou aquilo, afinal, nada tem importância‖. De
acordo com Cintra (2000, p.44):

[...] pode-se afirmar que o ferimento narcísico polarizou para si


próprio toda a energia psíquica possível, na tentativa de elaborar a
dolorosa perda de valor, mas este luto parece não poder se cumprir: a
certeza imaginária da interrupção do contato afetivo, da instalação
iminente do desamparo é tão grande que é preciso encená-la
imediatamente, para abreviar a angustiante espera. É preciso convocar
o estado gelado para reduzir a dor de esperá-lo. Não há possibilidade
de substituir a relação afetiva atual por outra, em que haja fluxo de
amor.

A anestesia psíquica nos mostra como o sujeito melancólico se defende do


sofrimento provocado pela necessidade de lidar com o que vem do mundo externo e do
mundo interno – ―o perigo de vida‖, de voltar a perder algo que já foi perdido, mas não
se sabe. A perda de um vínculo tão precoce é sentida como uma morte e o medo de um
novo arrombamento faz com que o sujeito se mantenha a todo tempo em posição
defensiva de espera por essa verdadeira catástrofe que ele acredita estar fadada a
acontecer novamente. É como se não fosse possível cicatrizar-se, e a inibição, o
congelamento, a desafetação aparecem para minimizar a dor. Nas palavras de Freud
(1917[1915]/2010, p.175)

Mas a inibição melancólica nos parece algo enigmático, pois não


conseguimos ver o que tanto absorve o doente. O melancólico ainda
nos apresenta uma coisa que falta no luto: um extraordinário
rebaixamento da autoestima, um enorme empobrecimento do Eu. No
luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio
Eu.

algo que valha a pena (no que escutamos por trás, será que o sujeito não merece nada, ou só merece o
nada?). Talvez não tenhamos que nos ater nas auto-depreciações literais do sujeito, cuja caricatura seria o
auto-flagelamento.
88

Como a escolha de objeto do melancólico é aquela do tipo narcísico, esse outro


escolhido (como em uma neurose de destino) estará sempre em uma posição que o
ameaça, uma vez que o sujeito depende do espelhamento nele para se reconhecer. A
experiência vivida é a de um exílio, onde a aproximação afetiva é uma ameaça e o
distanciamento alimenta a inibição e o estado de congelamento produzido para evitar a
dor. Abraham (1970, p.42) nos diz que a

inibição mental parece ser o primeiro sintoma a se manifestar. [...]


Refiro-me particularmente à tendência de 'negação da vida'. Os graus
mais altos de inibição, especialmente – isto é, o estupor depressivo –
representam uma morte simbólica. O paciente, exatamente como se
não estivesse mais vivo, não reage mesmo à aplicação de fortes
estímulos externos.

A ―paisagem psíquica‖ do melancólico é de agressividade e concretude, sem cor. A


inibição característica do melancólico já aparecia nas figuras da melancolia na
antiguidade – inibição que se assemelha à preguiça e poderia ser traduzida nos termos
medievais conhecidos como acídia e tristitia . Como já não o era naquele tempo, essa
―preguiça‖ não deveria ser tratada como um pecado capital ou uma falta moral. Ela seria
antes, o efeito de uma paralisação frente a um ideal impossível, ela ilustra o medo de
que o chão desapareça debaixo dos pés ao se mover. O filósofo Agamben (2007, p.30),
para pensar a relação do fazer humano na cultura ocidental, recorre ao conceito de
melancolia, desde sua apropriação pela igreja católica até Freud. Para ele. ―a preguiça é
uma consequência da acídia e não sua essência. Na clássica figuração da Melencolia de
Dürer, o gesto de deixar cair a cabeça sobre uma mão está significando o desespero e
não o sono‖. Agamben (2007, p.32) também ressalta tanto a relação com o gênio quanto
a dimensão inalcançável do ideal:

Ao mesmo tempo em que a sua tortuosa intenção abre espaço à


epifania do inapreensível, o acidioso dá testemunho da obscura
sabedoria segundo a qual só a quem já não tem esperança foi dada a
esperança, e só quem, de qualquer maneira, não poderá alcançá-las
foram dadas metas a alcançar. Tão dialética é a natureza do seu
―demônio do meridiano‖: assim como se pode dizer da doença mortal,
que traz em si a possibilidade da própria cura, também daquela se
pode afirmar que a maior desgraça é nunca tê-la tido‖.
89

A paralisia e a imobilidade estariam referidas à certeza da inadequação de qualquer


ação sua, da impossibilidade de atender às exigências erigidas – sendo estes, motivos
adicionais para mais castigos superegóicos. De acordo com Lambotte (1997, p.392):

De fato, parece que para o sujeito melancólico a que nos prendemos


até o momento, e atrás do qual se perfila a estrutura específica que
tentamos esclarecer, não se trata de ultrapassar a ilusão da
intersubjetividade, nem de preferir desaparecer a confrontar-se com
ela, mas de se defender contra o logro da intersubjetividade no sentido
do engano e, em consequência, de rechaçar todo investimento
afirmando que ele está trucado antecipadamente54.

Um modo de defesa próprio do sujeito melancólico chamado comumente de


negativismo, será utilizado de uma forma original na melancolia: é mister apontar que
este não se trata do mesmo processo encontrado na psicose e na esquizofrenia. O mundo
melancólico é desencantado, desafetivizado, sem esperança, onde se torna difícil ser
surpreendido com a trivialidade das coisas que poderiam ser tomadas como belas. Como
vimos, o melancólico não irá desconsiderar que os outros existem, que a vida pode ser
prazerosa e possuir sentido, por outro lado, o que vemos nessa figura melancólica é a
impossibilidade do melancólico de sentir que aquilo que será encontrado na realidade
externa diga respeito a ele. Sobre este ponto, pensamos que este tipo de defesa poderia
funcionar como uma formação reativa a um primeiro momento em que o sujeito
acreditou, onipotentemente, que seria ele quem teria provocado a destruição do objeto.
Ao mesmo tempo, vemos que este tipo de negação refere-se à fragilidade do suporte
externo que por algum motivo não teria sido capaz de metabolizar os elementos
destrutivos e devolvê-los de forma mais integrada. Lambotte (1997, p.21) irá definir
onde se posiciona a recusa do melancólico:

Entre o recalque e a foraclusão, o tipo de recusa que o sujeito


melancólico opõe à realidade encontrará talvez sua expressão no
desmentido, termo que, sem negar a existência da coisa, nega
entretanto, que ela diga respeito no que quer que seja ao sujeito. E
atrás da negação se perfila a alternativa melancólica no que esta deve
ao ideal ou à morte, ou seja, ao tudo ou ao nada da desaparição do
outro que o sujeito assume sob a figura da falta. Não resta mais que
encerrar um tal desenvolvimento, na medida em que o sujeito ignora
que continua a viver os efeitos de uma catástrofe à qual não se podem

A diferença entre a ilusão e o logro ―está notadamente no engano, pela palavra ou pelo gesto, de uma
54

sedução que consiste em dar ao falso a aparência do verdadeiro. O logro é desta ordem. Da mesma forma,
o sujeito melancólico não pára de denunciar o logro e, em primeiro lugar, o logro da identidade na medida
em que ele ―sabe‖ a ilusão da relação ao Outro‖. (LAMBOTTE, 1997, p.392)
90

aplicar as categorias da linguagem, e a referência ao destino substitui


desde então a experiência do real, na convicção de deter a verdade: a
da morte.

Assim, podemos imaginar que a interação do melancólico com o outro estará


comprometida com essa dimensão do ―desmentido‖. A possibilidade de uma relação
com o outro será desmentida, uma vez que o outro primordial imprimiu a marca da
ausência (ou do excesso) que não permitiu ao ego melancólico criar seu contorno e se
ver como uma unidade capaz de receber investimentos do mundo externo. Perguntamos
com Lambotte (1997. p. 391) :

Ora, não seria precisamente a concepção do sujeito melancólico não


poder encarar as relações sociais senão a título da exclusão que viria
responder ao inevitável mal-entendido sobre o qual elas repousam?

A melancolia é um estado no qual o sujeito se vê distante de suas relações com o


mundo e com os outros. Nela, a solidão é símbolo das pulsões de morte, as quais
procuram desfazer todos os elos, a representação que se constrói para atribuir um novo
sentido à vida (cujo objetivo é desligar toda a energia que estava ligada) e retirar dos
objetos o investimento garantidor de vínculo. A agressividade que não pôde ser
externalizada se volta contra o eu e funciona também como um agente de ataque às
construções representacionais. A ausência de sentido também poderia ser um efeito
dessa desconstrução promovida pela agressividade, movimento que, ao acionar a pulsão
de vida para conter a destruição do eu, acaba sexualizando o próprio não sentido e a dor
que acompanha o desinvestimento – a do trabalho de luto, por exemplo, acabaria se
tornando masoquismo moral. O suicídio aparece como mais uma tentativa de contenção
da dor que se assoma ao eu. Paradoxalmente, ele também é uma tentativa do sujeito
escapar de sua dor. De acordo com Lambotte (1997, p.374):

Mais agressividade voltada contra si, o suicida exige, sem dúvida a


energia especifica da passagem ao ato que dá a esta última sua
significação. Adiantamos anteriormente, a propósito da defenestração
melancólica, o impulso do sujeito de juntar-se ao nada suposto
subsistir atrás das coisas como um testemunho de sua verdade
recoberta e, consequentemente inacessível; e é numa verdadeira
identificação imaginária ao nada que o sujeito atravessa a moldura
vazia para enfim apoderar-se da verdade que ele sabia desde sempre.

O suicídio seria o último recurso do sujeito para finalmente conseguir uma


representação do nada ao qual se identificou. A morte derradeira seria o destino trágico
91

para o ―suicídio do objeto‖, uma última tentativa de representação daquilo que foi
vivido na primeira infância. Encontramos raciocínio semelhante também em Ferenczi
(1934/2011, p.127, grifos do autor) 55:

O desprazer cresce e exige uma válvula de escape. Tal possibilidade é


oferecida pela autodestruição, a qual, enquanto fator que liberta da
angústia, será preferida ao sofrimento do mundo. O mais fácil de
destruir em nós é a consciência, a coesão das formações psíquicas
numa entidade: é assim que nasce a desorientação psíquica. (A
unidade corporal não obedece tão prontamente ao princípio de
autodestruição).

No melancólico, a oposição sistemática previne o risco da decepção que este sujeito


sabe – com horror – não poder dominar novamente. Distanciar-se do mundo e de si
seria uma possibilidade do melancólico escapar à morte real pelo suicídio, morte esta
que significaria o fim de uma ―lógica da evidência‖ (Cf: LAMBOTTE, 1997, p. 362). A
análise em primeira pessoa que Kristeva (1989) faz do que ela chamou de ―sol negro‖,
ilustra o que disseram os autores supracitados. Nas palavras da autora, ―brotadas da
melancolia‖:

Em suma, uma existência desvitalizada que, embora às vezes exaltada


pelo esforço que faço para continuá-la, a cada instante está prestes a
oscilar para a morte. Morte vingança ou morte liberação, doravante ela
é o limite interno do meu abatimento, o sentido impossível dessa vida,
cujo fardo, da cada instante, me parece insustentável, salvo nos
momentos em que me mobilizo para enfrentar o desastre. Vivo uma
morte viva, carne cortada, sangrante, tornada cadáver, ritmo
diminuído ou suspenso, tempo apagado ou dilatado, incorporado na
aflição... Ausente do sentido dos outros, estrangeira, acidental à
felicidade ingênua, eu tenho de minha depressão uma lucidez
suprema, metafísica. Nas fronteiras da vida e da morte, às vezes tenho
o sentimento orgulhoso de ser a testemunha da insensatez do Ser, de
revelar o absurdo dos laços e dos seres. (KRISTEVA,1989,p.12)

Deste modo, vemos que a tentativa de nomeação da experiência catastrófica acontece


com parcos recursos, uma vez que a prematuração psíquica não permite uma rede
representacional que contemple o traumatismo da experiência (com o outro). Talvez, o

55
Kupermann em seu artigo ―A progressão traumática‖ (2006) nos esclarece um pouco mais sobre a
leitura ferencziana: ―Em ―Reflexões sobre o trauma‖, Ferenczi ilustra a clivagem psíquica como a reação
do ―homem abandonado pelos deuses‖, que ―escapa totalmente à realidade e cria para si um outro mundo
no qual, liberto da gravidade terrestre, pode alcançar tudo o que quiser‖ . Cria-se, dessa maneira, um anjo
da guarda desencarnado que virá em socorro do sujeito traumatizado pelo isolamento a que se viu
submetido. Porém, no limite, essa saída poderá conduzir ao suicídio, já que anjos da guarda tendem a se
mostrar, mais cedo ou mais tarde, impotentes.
92

que Ferenczi observou como o efeito nocivo de um amadurecimento precoce, não esteja
distante do que estamos descrevendo: um desvio na rota do desenvolvimento psíquico
da criança que teve que tornar-se sábia para cuidar de si e da mãe que não dispõe de
recurso psíquico para a maternagem. Sobre essa verdade que o melancólico chega perto
demais, Kupermann (2008, p.153) nos lembra com Ferenczi que:

A aquisição precoce de um saber e de uma maturidade própria dos


adultos cobra, portanto, um preço alto, o da insensibilidade como
comprometimento da capacidade de afetar e de ser afetado pelo outro,
que se faz acompanhar pela impossibilidade de expressão dos afetos
de amor e de ódio e por uma consequente diminuição da potência para
se afirmar de modo singular e, no limite, também da vontade de viver.

Observamos aqui como em um primeiro momento o conhecimento da verdade


produz um amadurecimento, que colocará em risco a vida do sujeito. As consequências
dessa precocidade serão devastadoras. A criança que entra em sofrimento com seu
desamparo e não é acolhida a tempo acaba por perder a esperança de que algum dia o
objeto de amor voltará. De acordo com Vertzman (2002), uma das consequências mais
notáveis do trauma é a dissolução das correlações anteriores entre o eu e o que podemos
denominar de vida sentimental:

A pessoa divide-se num ser psíquico de puro saber que observa os


eventos a partir de fora, e num corpo totalmente insensível. Na medida
em que o ser psíquico ainda é acessível aos sentimentos, incide todo o
seu interesse no único sentimento que subsiste de todo o processo, isto
é, o que o agressor sente. (FERENCZI, 1990, p. 142).

A problemática que estamos descrevendo nos permite pensar que a relação entre a
escritora Ana C. e sua obra traz a marca dessa divisão.
Na melancolia observa-se que o estilhaçamento do eu ideal faz com que sujeito
forme um ideal todo-potente, impossível, em relação ao qual estará sempre em
defasagem, em déficit, oferecendo-se submissamente aos ataques do superego, das
vozes que o acusam, que o humilham e massacram. Ferenczi (1990, p. 143) nos diz que,

Considerado de um outro ponto de vista, o da indestrutível pulsão de


auto-conservação, o mesmo processo deveria ser descrito desta
maneira: quando se abandonou qualquer esperança de ajuda por parte
de uma terceira pessoa, e sente-se as próprias forças de autodefesa
totalmente esgotadas, nada mais resta senão esperar pela clemência do
agressor. Se me submeto tão completamente à vontade dele que deixo
93

de existir, se, portanto, não me oponho a ele, talvez me conceda salvar


a própria vida...

Como dissemos, a formação do ego implica em um abandono do objeto de amor.


Esse passa a se tornar parte do ego, isto é, uma dessexualização já está presente neste
momento. A energia que é retirada dos objetos é investida no ego, fica represada
narcisicamente. Os passos seguintes para a formação de um sujeito são, de certo modo,
reedições desse desinvestimento para um posterior investimento. No ego melancólico,
algo aconteceu nesse processo, sendo possível, a posteriori, observar a patologia
narcísica que se desenvolve. Acreditamos que a desfusão pulsional, desde a origem da
constituição do sujeito psíquico, tem um papel nessa composição especial de
subjetividade, em que a pulsão de morte ficaria mais ―resistente‖ às possíveis investidas
da pulsão de vida. A ―identificação ao nada‖ que encontramos na melancolia, como
descreve Lambotte (1997, p.374), pode ter sido precipitada por essa desfusão pulsional.
Por que não foi possível ao sujeito melancólico nenhum outro tipo de identificação que
desse o suporte a um ideal que o sustentasse? Seguimos a indicação da autora:

[...] para o que concerne ao sujeito melancólico, nos poderíamos


perguntar se esta colocação à parte da comunidade que ele se empenha
em justificar racionalmente, e que se apoia numa desapropriação dos
afetos e do desejo na origem de sua relação ao outro, não foi a causa
de uma intrincação insuficiente dos dois tipos de pulsões, intrincação
na qual a pulsão de morte conservaria ainda uma grande autonomia. E
na medida em que os dois tipos de pulsão são indiscerníveis no início
da formação do aparelho psíquico, poderíamos pensar que a pulsão de
morte insuficientemente ligada, por um lado, e na impossibilidade de
ser projetada para o exterior, por outro lado, tenha colocado a pulsão
de vida a serviço da auto-destruição no prazer repetitivo da erotização.
(LAMBOTTE, 1997, p. 315)

Nas observações feitas até o presente momento, constatamos como a construção do


ego implica uma ―sublimação da pulsão‖ que estava investida nos primeiros objetos de
amor. Encontramos nos sujeitos melancólicos uma relação patológica com seus objetos
de amor perdidos e uma relação particular com os ideais identificatórios. A clínica da
melancolia irá nos mostrar que a especificidade do discurso melancólico implica outros
modos de aproximação do analista.

Se tomarmos, entretanto, a noção de resistência em sua vertente


positiva como indicadora do nosso caminho, podemos supor que o
objetivo destes sujeitos é fazer da nossa presença o testemunho ocular
94

de uma verdade que se esconde na aparente uniformidade de seus


relatórios diários. Eles usam o olhar do analista como garantia de que
suas ações, sensações e sentimentos formam conjuntos que podem ser
reconhecidos como sendo suas vidas. Este reconhecimento que, para
muitos, é imediato e pré-reflexivo, só ocorre, quando ocorre, após
muito labor. Aquilo que é o ponto de partida de muitos percursos
analíticos e que deve ser desconstruído para que ele se dê, não o é em
absoluto para estas pessoas. Um sentimento de estranheza radical em
relação a si as invade. O vazio que as acomete parece localizar-se na
própria ideia de ser, o que acarreta numa falta de consistência da
imagem narcísica e numa percepção de futilidade e indiferença quanto
às próprias ações. (VERTZMAN, 2002, p.60)

Tanto a clínica do luto quanto a própria concepção de trabalho de luto parecem não
nos oferecer todas as ferramentas para pensarmos o problema da melancolia. A ideia de
um ―trabalho de melancolia‖ nos é cara ao empreendermos a busca de uma
compreensão mais específica do problema. Sob os auspícios dos teóricos anteriormente
mencionados iremos, a seguir, buscar em Rosenberg (2003) noções que iluminarão os
aspectos obscuros que fazem parte da constelação de causas e efeitos da melancolia.

2.4 O trabalho de melancolia

Por encontrarmos muita afinidade entre nosso raciocínio e o trabalho desenvolvido


por Rosenberg (2003), iremos desenvolver aqui seu argumento sobre a diferença entre o
trabalho de luto e o ―trabalho de melancolia‖ a fim de avançarmos em nossa
investigação. O ―trabalho de melancolia‖, o de luto e, também o da sublimação possuem
nuances que devem ser consideradas na investigação de nosso tema. Indicamos aqui o
que parece estar na centralidade de nossa discussão:

o sucesso do trabalho de melancolia repousa na possibilidade da


passagem do sadismo desintrincado pulsionamente do melancólico ao
masoquismo, um processo equivalente a uma reintrincação pulsional.
Tudo isso introduz a questão mais geral das relações entre melancolia
e masoquismo que é preciso rever do ponto de vista do trabalho da
melancolia. (ROSENBERG,2003, p.153)

Enquanto no luto normal a ―destacabilidade‖ do objeto está assegurada, na


melancolia o trabalho do luto complica-se. Somos levados a pensar que para ser
possível o desapego ao objeto é necessário um outro tipo de trabalho – o trabalho de
95

melancolia . Iremos definir assim a diferença entre o trabalho de luto e o trabalho de


melancolia: no primeiro, trata-se de realizar o desapego do objeto perdido enquanto no
trabalho de melancolia deve-se, antes que o desapego seja possível, assegurar a
mencionada ―destacabilidade do objeto‖. O trabalho de melancolia será definido então
como ―o trabalho psíquico elaborativo da ―não-destacabilidade‖. Este trabalho tem
como objetivo liquidar o investimento narcisista do objeto.
A não-destacabilidade, por sua vez, está ligada ao investimento narcisista de objeto e
―torna-se praticamente a predisposição à melancolia, já que, é ela que torna impossível
o trabalho do luto‖ (ROSENBERG, 2003, p. 129). É a escolha de objeto do tipo
narcisista que irá precipitar a identificação narcísica – movimento que tenta garantir a
presença do objeto dentro de si. Tal ―destacabilidade do objeto‖ está relacionada com a
possibilidade de uma desidentificação.
O trabalho de melancolia compreende, então: uma elaboração da destacabilidade
antes que o desapego do objeto seja possível; uma tentativa de liquidar o investimento
narcisista de objeto ao menos à medida que permitirá um deslocamento sobre outro
objeto, mesmo que esse último seja sempre investido de modo narcisista; uma tentativa
de ligar a raiva do objeto, cujo aumento provocou o acesso melancólico.
Sobre a relação entre a escolha narcisista, a qual fundaria a não-destacabilidade do
objeto, o autor diz:

Investir narcisisticamente um objeto é investir-se a si mesmo por meio


do objeto, ou, se preferirmos, investir-se a si mesmo no espelho do
objeto. Se isso é verdade, desinvestir o objeto quer dizer de fato
desinvestir-se a si mesmo: aceitar que o objeto está perdido é perder-
se a si mesmo. A melancolia experimenta a perda do objeto como uma
perda de si, como um desinvestimento narcisista de si.
(ROSENBERG, 2003, p.129)

Observamos que, para além das considerações sobre a ambivalência e a raiva


contidas na melancolia ou voltar-nos para o sadismo melancólico, a questão
fundamental que o trabalho de melancolia deve resolver é aquela da desintrincação. De
acordo com o autor, o problema fundamental com o qual nos deparamos na melancolia
é a desfusão pulsional extrema. O sucesso ou o fracasso do trabalho de melancolia
estaria condicionado ao fato de Eros conseguir ou não ligar a pulsão de destruição, de se
conseguir um nível de reintrincação pulsional que seja suficientemente bom para que o
acesso de melancolia se interrompa. O trabalho de melancolia seria bem sucedido no
96

momento em o sadismo desintrincado pulsionalmente passaria ao masoquismo, o que


seria o equivalente a um processo de reintrincação pulsional (CF: ROSENBERG, 2003,
pp. 151-153). Acompanhamos a hipótese do autor:

o trabalho de melancolia pode resultar no reinvestimento de um


(novo) objeto(externo), de uma outra pessoa, contanto que a introjeção
evolua e se transforme em identificação, e que assim, a culpa com
relação ao objeto perdido seja vivida. 56As duas coisas estão ligadas.
Aliás, sabemos, e Freud não deixou de observar que é a culpa que
transforma o sadismo em masoquismo. (ROSENBERG, 2003,p.147)

O acesso de melancolia seria uma crise que tem início com um aumento notável da
raiva e do sadismo antes escamoteados pelo investimento ―narcisista-idealizante‖ do
objeto depois da perda do objeto amoroso. Ora, se como vimos, a sublimação depende
de uma força agressiva, de uma destrutividade para ocorrer, pensamos que este aumento
da raiva e do sadismo melancólico possa sofrer também a interferência do processo
sublimatório em si.
De acordo com Rosenberg (2003), através da introjeção-identificação o eu é
convocado a usar sua própria libido, sendo que ele irá, ao mesmo tempo, – ao se
oferecer como objeto de amor ao isso – receber um aporte libidinal maior por parte
deste último. O que, em última instância, decidiria o êxito ou a falha do trabalho de
melancolia é a balança econômica entre o que se ganha e o que se perde. O problema é
que, a libido a mais que vem do id pode servir para aumentar a força do superego,
aumentando seu sadismo contra o eu – lembramos que o supereu tem suas raízes no id,
o que complica ainda mais a dinâmica. Ademais, o eu, estando identificado à parte má
do objeto, gasta ou perde esta energia com seu próprio masoquismo; e ainda, o eu, ao
ser objeto de investimento de satisfação do id, tem que se submeter a ele, tentando
atender a suas exigências de satisfação imediata, gastando novamente energia para
construir defesas contra esse novo vínculo. Desse modo,

Para resultar nessa ligação da destrutividade, na reintrincação


pulsional, o eu utiliza sua própria libido narcisista57 e compreendemos

56
A ―introjeção: parece-nos ser um processo correlativo à projeção que faz com que o eu abrigue em si
mesmo aquilo que foi introjetado e que pode ser a qualquer momento reprojetado sem que o eu seja, ele
próprio, profundamente modificado por isso. [...] A identificação é apenas um introjeto abrigado no eu;
ela é uma transformação, uma remodelagem do próprio eu a partir do modelo do objeto.[...] sendo que
essa remodelagem do próprio eu pode se tornar, em alguns casos, um traço de caráter definitivo do eu‖.
(ROSENBERG, 2003, p.146)
57
Pensamos aqui numa ferida que é reaberta incessantemente e que solicita um contra-investimento
extraordinariamente elevado. ―O complexo da melancolia se comporta como uma ferida aberta, de todos
97

melhor o papel da introjeção-identificação quando pensamos que por


meio dela é o próprio eu que é atacado , o que lhe representa uma
solução indubitável para investir sua libido narcisista na ligação da
destrutividade que é depositada nele. Essa dissipação de libido
narcisista representa um grande perigo para o eu, podendo esgotar-se
com a tarefa, esvaziar-se de sua libido narcisista e assim sentir-se ele
mesmo tão desvalorizado (e culpado) que o suicídio torna-se a última
solução que lhe resta. (ROSENBERG, 2003, p.151)

Entendemos então que a reintrincação pulsional distingue o trabalho de melancolia,


que busca fazer a passagem do auto-sadismo para o masoquismo. Esse ponto é
fundamental: ―a ligação pela libido da pulsão de morte é a definição que Freud dá ao
masoquismo erógeno primário e sabemos que o masoquismo erógeno58, sendo uma das
formas do masoquismo, é ao mesmo tempo a essência de todas as outras formas‖
(ROSENBERG, 2003, p.153). Se Freud afirmou várias vezes a existência da intrincação
e a utilizou abundantemente para a reinterpretação pulsional dos fenômenos basais
como a ambivalência, a regressão, a identificação, e certamente, o sadismo e o
masoquismo, ele não descreveu o processo da ligação das duas pulsões. Sobre esse
ponto, Freud (1923, p.158) nos diz:

Reconhecemos duas pulsões fundamentais e deixamos a cada uma o


seu próprio objetivo. Saber como as duas se misturam no processo de
vida, como a pulsão de morte é colocada a serviço das intenções do
Eros, sobretudo quando a pulsão se volta para o exterior como
agressão, eis aqui tarefas que estão reservadas à pesquisa futura. Não
iremos além do ponto onde uma tal perspectiva se abre para nós.

A relação entre a reintrincação pulsional, ou a refusão pulsional, nos leva então aos
primeiros momentos da constituição subjetiva. Acreditamos que a distensão do tempo
produzida por uma necessidade que não foi atendida e deixou o pequeno sujeito no
desamparo, chegando a produzir nele um sentimento de desesperança, deixaria um traço
marcante sobre o qual encontraremos um trilhamento mais profundo que aquele

os lados atrai energias de investimento (que chamamos de ―contra - investimentos‖ no caso das neuroses
de transferência) e esvazia o Eu até o completo empobrecimento; com facilidade pode se mostrar
resistente ao desejo de dormir do Eu. Um fator provavelmente somático, que não se explica de forma
psicogênica, apresenta-se na atenuação que costuma ocorrer nesse estado depois que anoitece. Ligada a
essas observações está a questão de se não bastaria uma perda no Eu, sem consideração do objeto, para
produzir o quadro da melancolia, e se um empobrecimento tóxico direto da libido do Eu não poderia
resultar em certas formas de doença. (FREUD,1915[1917/2010, p.186)
58
Freud em ―O problema econômico do masoquismo‖ (1924) nos diz que a pulsão de morte é em grande
parte emanada para o exterior, mas uma outra parte não participa do deslocamento para o exterior, é nela
que devemos reconhecer o masoquismo erógeno.
98

produzido pelas marcas de experiências satisfatórias. Essa dimensão que será explorada
mais a frente. A pulsão de morte terá mais território do que a de vida, uma vez que o
masoquismo de vida teria tido que intervir numa proporção diferente àquela que
veríamos em outros tipos de constituição subjetiva. A desfusão pulsional marca, desde o
início, esse psiquismo, fazendo com que as ligações se tornem mais fracas e o medo da
perda iminente. A pulsão de morte, que não se transformou em grito e choro – não tinha
esperança suficiente para emitir o chamado –, foi silenciada, habitando para sempre um
núcleo de desespero calado que pode, a qualquer momento, ser revivido. O paradoxo tal
qual destaca Rosenberg (2003, p.188) é que, ―quanto mais a pulsão de vida é gasta
defensivamente em um esforço de auto-conservação, mais diminui ou esgota-se sua
capacidade de alimentar um movimento progressivo-expansivo, que é o único que pode
conservar, a longo prazo, a vida‖.
Não há uma intrincação nem desintrincação absolutas e não se trataria de uma
mistura que transformaria as pulsões em uma só. Sabemos que é a possibilidade de
desintrincação que garante a continuidade da vida, a diversidade e a variedade. Freud
(1940[1938],p.174) nos diz que esse acordo e esse antagonismo das duas pulsões
fundamentais conferem justamente aos fenômenos da vida toda a diversidade que lhes é
própria. O interessante é que a intrincação pulsional sem intermédio do objeto é
impossível: ―uma união-fusão direta das próprias pulsões é incompatível com sua
heterogeneidade. Seu antagonismo, aliás, só pode ser revelado no terreno do objeto‖.
(ROSENBERG, 2003, p.161) De acordo com o autor, é em um terceiro terreno de
encontro – com exceção do masoquismo erógeno primário, da problemática do
narcisismo primário e da constituição do eu primário – que a libido tem como tarefa
tornar inofensiva a pulsão de morte.
Abraham (1911/1970, p.41), mesmo sem possuir o conceito de narcisismo, nos
oferece uma sofisticada explicação do fenômeno:

Em resultado da repressão do sadismo, surgem a depressão, a


ansiedade e a auto-acusação. Contudo, se for obstruída uma fonte tão
importante de prazer, da qual fluem os instintos ativos, tem de haver
um reforço das tendências masoquistas. O paciente adotará uma
atitude passiva e obterá prazer em seu sofrimento e em pensar
continuamente sobre si próprio. Desta maneira, mesmo o mais
profundo sofrimento de melancolia contém uma fonte oculta de
prazer.
99

De um lado temos o conflito ambivalente e a identificação narcísica, do outro, a raiva


e o sadismo. Rosenberg (2003) localiza na raiva a evidência das fontes primárias da
estrutura melancólica. A raiva é erotizada – ligada por investimento libidinal narcisista
– e vivenciada sobre a forma de sadismo. Segundo ele, a ambivalência do melancólico
seria de uma qualidade diferente daquela habitual nos neuróticos e mesmo no obsessivo.
A ―formidável raiva" do melancólico pelo objeto seria uma herança e um vestígio da
agressividade implicada na constituição do objeto primário – o que nos mostra
novamente a relevância das contribuições kleinianas acerca da posição depressiva, que
apresentaremos no próximo item. É característica da melancolia a compensação dessa
raiva destruidora do objeto pelo investimento narcisista –idealizador do mesmo. A
predisposição à melancolia seria constituída, então, não somente por tal investimento,
mas também ―por um conjunto constituído pela raiva ao objeto e pelo investimento
narcisista de objeto‖ 59 (ROSENBERG, 2003, p. 143). Assim, nos diz o autor,

realiza-se no acesso melancólico o que podemos chamar de


imperativo categórico do melancólico, imperativo que sempre fundou
sua organização psíquica e que se afirma novamente: Não odiarás nem
destruirás o objeto, porque com ele destruirás a ti mesmo!
(ROSENBERG, 2003, p. 143)

A partir de Rosenberg (2003), compreendemos que, no trabalho do luto a via do


inconsciente ao pré-consciente não está obstruída enquanto que no trabalho de
melancolia o pré-consciente está como que apartado. Ao passo que trabalho do luto é
possível alcançar o desapego do objeto através dessa integração entre pré-
consciente/consciente, o trabalho de melancolia ―é obrigado a passar por uma outra via
para eliminar essa barreira que impede o conflito de se integrar no pré-consciente[...]
utilizando vias que lhe são particulares e características‖ (ROSENBERG, 2003, p. 128,
grifos do autor). Nos lembramos que a sublimação não passa pelo recalque e é
estimulada pelo ideal. Retomamos a discussão tópica com Freud:

Portanto, na melancolia trava-se inúmeras batalhas em torno do


objeto, nos quais ódio e amor lutam entre si, um para desligar a libido

59
É interessante a proposta do autor sobre o investimento homossexual ser uma proteção, uma defesa
contra a melancolia: ―A comunidade do tipo de investimento narcisista entre homossexuais e os
melancólicos faz com que a homossexualidade possa representar uma defesa contra a melancolia. Mas ela
pode representar mais do que isso: parece-nos que faz parte do tratamento do melancólico que a
homossexualidade (manifesta ou não) possa representar o eixo pelo qual podemos fazer evoluir o tipo de
investimento narcisista para um investimento objetal propriamente dito. A homossexualidade sendo, na
análise, uma das vias reais da regressão ao investimento de objeto ao narcisismo, ela pode também ser a
via de ―retorno‖, a via de objetificação do tipo de investimento. (ROSENBERG, 2003, p. 132)
100

do objeto, o outro, para manter essa posição da libido contra o ataque.


Não podemos situar essas lutas em outro sistema que não o Ics, a
região dos traços mnemônicos das coisas (em oposição aos
investimentos de palavras). Lá também ocorrem as tentativas de
desligamento do luto, mas nesse último nada impede que esses
processos continuem pela via normal até a consciência, através do
Pcs. Esse caminho se acha bloqueado para o trabalho da melancolia,
talvez devido a muitas causas ou à ação conjunta de causas. A
ambivalência constitucional pertence, em si, ao reprimido; as
vivencias traumáticas com o objeto podem ter ativado outro material
reprimido. Assim, tudo que diz respeito a esses conflitos da
ambivalência permanece subtraído à consciência, até que sobrevém o
desenlace característico da melancolia. (FREUD, 1917[1915]/ 2010,
p.191)

O trabalho de melancolia deveria garantir a possibilidade de se efetuar a escolha de


um objeto diferente, visando à liquidação de um investimento narcisista mesmo que
esse novo objeto seja, como o antigo, assim investido. Veríamos, na repetição dos
acessos melancólicos, o trabalho de melancolia que por um deslocamento arduamente
realizado leva à reedição do seu modo de investimento privilegiado. O que se esperaria
como objetivo com esses pacientes é a ―objetificação‖ tanto quanto possível de seu
investimento, isto é, transformar a maior quantidade possível em investimento do tipo
objetal anaclítico. A elaboração viria através de uma identificação que tornaria o
trabalho de melancolia possível. A retirada da libido para o eu e a transformação que se
seguem permitem que a ambivalência se torne consciente, uma vez que ela se tornou um
conflito entre as instâncias intrapsíquicas. O problema é que a identificação – onde o ser
substitui o ter – parece ser a única via de elaboração possível. Freud (1917[1915]/2010,
p.192) nos mostra as dificuldades encontradas no caminho do melancólico:

Assim, tudo que diz respeito a esses conflitos da ambivalência


permanece subtraído à consciência, até que sobrevém o desenlace
característico da melancolia. Ele consiste, como sabemos, em que o
investimento libidinal ameaçado abandona finalmente o objeto, mas
apenas a fim de se retirar para o lugar do Eu, de onde havia partido.
Refugiando-se do Eu, o amor escapa à eliminação. Após essa
regressão da libido, o processo pode se tornar consciente e é
representado na consciência como um conflito entre uma parte do Eu
e a instância crítica.

A identificação irá oferecer a saída para o eu que fica imobilizado entre duas
impossibilidades, a de desinvestir o objeto e a de continuar a existir. Conhecemos a
101

relação da identificação com a desintrincação pulsional, principalmente através do


superego. Este, como sabemos,

nasceu de fato por identificação com o modelo paternal. Toda


identificação deste gênero tem a característica de uma dessexualização
ou mesmo de uma sublimação. Ora , parece que em semelhante
transposição ocorre também uma desunião pulsional. O componente
erótico não tem mais, depois da sublimação, a força para ligar a
totalidade da destruição que ali se associava, e essa última torna-se
livre como tendência à agressão e à destruição. É dessa desunião que o
ideal, em geral, [o supereu] retiraria seu traço de dureza e crueldade,
aquele do dever imperativo. (FREUD,1923)

O trabalho de melancolia para oferecer uma possibilidade de saída para o


melancólico deve garantir um investimento objetal através do reencontro de um novo
objeto, ao mesmo tempo que propicia o desapego com o objeto perdido. Não seria esse
movimento a própria sublimação? Com efeito, na criação, assim como no
reinvestimento melancólico, os traços do antigo objeto permanecerão disfarçados e
transformados no novo objeto. Localizamos aqui também os elementos que irão colocar
limites à sublimação.
A seguir, iremos discutir um mecanismo defensivo que complica ainda mais a
elaboração e a unidade do eu. Os conflitos também podem ser manejados através de
uma divisão que irá separar o eu em partes, cada uma dela respondendo a uma
exigência, interna ou externa. Por isso, a noção de clivagem nos será cara para seguir a
investigação da melancolia.

2.4.1 A clivagem

Na teoria freudiana, clivagem é um mecanismo que só será tratado a fundo na


segunda teoria pulsional. Na definição de Laplanche e Pontalis (1988, p.101), a
clivagem do ego é uma expressão usada por Freud

para designar um fenômeno muito particular que ele vê operar


sobretudo no fetichismo e nas psicoses: a coexistência, no seio do ego,
de duas atitudes psíquicas para com a realidade exterior na medida em
que esta vem contrariar uma exigência pulsional: uma tem em conta a
realidade, a outra nega a realidade em causa e coloca em seu lugar um
102

produto do desejo. Estas duas atitudes persistem lado a lado sem se


influenciarem reciprocamente.

Encontraremos uma proximidade entre a identificação narcísica e o mecanismo de


clivagem. Florence (1994, p.131) irá nos dizer que o próprio de uma identificação
narcísica ―é conservar um vínculo em que o objeto e o eu são os duplos um do
outro. [...] Ela é a mais primitiva e mais importante em seus efeitos: ela constitui o
próprio e suas clivagens‖. Com Ferenczi (1931, p.76-77), a clivagem do eu também será
pensada em relação ao abandono, e ao desamparo:

Tem-se nitidamente a impressão de que o abandono acarreta uma


clivagem da personalidade. Uma parte da sua própria pessoa começa a
desempenhar o papel da mãe ou do pai com a outra parte, e assim
torna o abandono nulo e sem efeito‖. No entanto, o resultado
produzido é o de uma cisão na qual a parte sensível se encontra
brutalmente destruída, enquanto a outra parte ―sabe tudo, mas nada
sente‖.

O escritor e filósofo francês Blanchot afirma que ―o artista mais talentoso, cada
vez que se empenha numa nova obra, fica desamparado e como que privado de si
mesmo‖ (BLANCHOT, 1984, p. 142). De acordo com Kupermann (2006), será a
emergência do abandono o que irá causar a chamada ―confusão de línguas‖ 60 entre os
adultos e a criança, fazendo com que a última, se desamparada, seja obrigada a se haver
com o enigma que viria com a culpa que é transmitida pela linguagem própria dos
adultos, a linguagem da paixão. Em suas palavras:

Como efeito deste abandono, e por não poder prescindir do amor do


agressor (por sua vez objeto privilegiado de amor da criança), a
solução psíquica encontrada é a incorporação do agressor bem como
de seu sentimento de culpa enigmático, que dá origem a uma clivagem
através da qual a criança procura proteger a si própria.
(KUPERMANN, 2006)

60
Ferenczi (1933/1984) insiste que o importante é que a criança, ainda com uma personalidade em
desenvolvimento, ao invés de se defender, introjeta aquilo que a ameaça. Para o autor, a época da
identificação, referida por Freud, é um estágio de amor objetal passivo, ou o estágio da ternura. Neste
estágio somente ocorreriam características de amor objetal na fantasia, pois, por mais que as crianças
imaginem-se ocupando o lugar de um progenitor, elas não poderiam ir além do estágio da ternura. Se
nesta fase um adulto impõe à criança outra forma de amor que elas não desejam e nem podem concretizar,
um amor objetal erótico, ocorre a confusão de "línguas" entre criança/adulto‖. (PINHEIRO, 1996, p. 52).
103

De acordo com Rosenberg (2003, p.169), a lógica de criação do supereu não estaria
muito distante daquela que encontramos na clivagem:

Assim, a criação da instância supereu está no interior do aparelho


psíquico como o núcleo masoquista erógeno-primário, mas está no
exterior do eu como está a pulsão de morte derivada projetada para o
exterior. Do ponto de vista do eu, é uma espécie de projeção fora de
si. Mas uma projeção, se assim podemos dizer, no interior do aparelho
psíquico, uma espécie de projeção interna. Certamente, o eu sacrifica
para isso uma parte de si que irá se tornar uma outra instância no
aparelho psíquico, mas com esse sacrifício ele próprio se encontra ao
abrigo dos efeitos diretos e destruidores da pulsão de morte.

O grau extremo de desintrincação que ainda é compatível com a vida parece ser a
clivagem de objeto61 e a clivagem do eu. A clivagem é uma decomposição da entidade
que conhecemos como ―eu‖, um corte, uma fenda – que corresponderia a uma das
formas mais extremadas da ação da pulsão de morte no interior do aparelho psíquico.
Essa desintrincação pulsional

coloca a libido diante de um objeto não estruturado, não diferenciado


dentro de si mesmo, um objeto que a libido só pode investir em tudo
ou nada, e em tudo, e imediatamente. O investimento pode ser tão
massivo que o sujeito tem dificuldade em se sentir diferente do objeto
e sente-se, antes, investido-invadido pelo objeto. Depois desse
investimento massivo, direto, não mediado, o sujeito vive uma
formidável excitação que se torna rapidamente insuportável. Esses
dois lados da intrincação pulsional, por um lado, a recusa e a clivagem
do eu, obra de uma pulsão de morte desintrincada e, por outro, o
investimento massivo e a excitação insuportável, obra de uma libido
desintrincada, são certamente os dois aspectos complementares do
quando que os psicóticos apresentam. (ROSENBERG, 2003,p.166)

A recusa funcionaria como uma fronteira – a clivagem do eu – que protegeria o eu e


lhe forneceria um setor objetal compatível com suas capacidades de trabalho.

O objeto recusado, é evidente que, se ele era a fonte de grande


excitação, é porque era um objeto muito investido , portanto um
objeto de uma importância capital para o eu. Não acreditamos que
mesmo a recusa mais bem-sucedida possa apagar completamente um
objeto tão importante para o eu sem deixar pelo menos o sentimento

61
A clivagem do objeto é um ―mecanismo descrito por Melanie Klein e por ela considerado como a defesa
mais primitiva contra a angústia: o objeto, visado pelas pulsões eróticas e destrutivas, cinde-se num
―bom‖ e num ―mau‖ objeto, que terão então destinos relativamente independentes no jogo das introjeções
e das projeções. A clivagem do objeto opera particularmente na posição paranóide-esquizóide, em que
incide sobre objetos parciais. Reencontra-se na posição depressiva, em que incide então sobre o objeto
total‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1988, p.144).
104

inconsciente de uma falta, de uma privação, de um lugar vazio


conservado em negativo, se assim podemos dizer, a forma de um
objeto recusado. Acreditamos que o sentimento correspondente a esse
lugar vazio não seria suportável se não fosse contra-investido de
maneira masoquista. Acreditamos que toda recusa é acompanhada de
uma vivencia masoquista inconsciente, masoquismo que liga e domina
o sofrimento inconsciente do vazio do objeto recusado. Acreditamos
que a vivência masoquista que supomos com relação ao objeto
recusado seja um esboço de elaboração sem o qual nossas
psicoterapias de psicóticos teriam pouca chance de sucesso.
(ROSENBERG, 2003, p. 197, grifos nossos.)

Uma das figuras do movimento de intrincação e desintrincação pulsional é a negação


e, consequentemente, seus predecessores, a expulsão, a projeção. A pulsão de morte é o
elemento que coloca o outro a uma distância suportável, uma vez que cria uma boa
relação entre a libido e seu objeto e permite a elaboração do desejo ao evitar o conluio
entre o desejo e seu objeto – como seria o caso de algumas passagens ao ato na psicose.
Assim, mesmo na neurose, há necessariamente a presença da pulsão de morte: ―A
mudez da pulsão de morte na neurose é a obra de uma intrincação pulsional que teve
sucesso‖ (ROSENBERG, 2003, p. 167).
Novamente somos confrontado com o caráter paradoxal do trabalho de melancolia.
No luto, é necessário primeiramente um reinvestimento e até mesmo um
superinvestimento do objeto. Observamos, no enlutado, a onipresença do objeto em seu
cotidiano e em seus sonhos. Já no trabalho de melancolia, para que o desinvestimento
narcisista se dê, o objeto deverá ser rebaixado e depreciado na tentativa torná-lo indigno
de investimento. O trágico é que esse objeto que precisa ser rebaixado é introjetado,
sendo que o ataque a si mesmo disfarça o ataque que é feito contra o objeto. Mas,
entendemos com Freud (1917[1915]/2010, p.174) que,

a solicitação desta [tarefa do trabalho de luto] não pode ser atendida


imediatamente. É cumprida aos pouco, com grande aplicação de
tempo e energia de investimento, e enquanto isso a existência do
objeto perdido se prolonga na psique. Cada uma das lembranças e
expectativas em que a libido se achava ligada ao objeto é enforcada e
superinvestida, e em cada uma sucede o desligamento da libido.

O que iremos ver é que a identificação pela regressão narcisista não leva a uma
tomada de consciência verdadeira. Tanto no trabalho de luto quanto no de melancolia o
objeto morre enquanto tal. Segundo Rosenberg (2003, p.140)o investimento narcisista
de objeto ―estando ligado à idealização do objeto, no melancólico certamente, essa
105

desvalorização tem como objetivo atacar a idealização do objeto, torná-la impossível‖.


Ou seja, metapsicologicamente, o autor nos mostra que

trata-se de mobilizar o ideal do eu do sujeito para destruir a


idealização do objeto, torná-la impossível; incongruente com esse
ideal de eu. Mas não se deve esquecer que esse ataque, desvalorizando
o objeto, passa pela introjeção do objeto, o que faz com que aquilo
que vemos clinicamente seja uma desvalorização, um menosprezo de
si que dão a impressão de que esse ideal do eu do sujeito esmaga esse
último, enquanto na realidade ele está mobilizado para esmagar o
objeto (mortalmente). (ROSENBERG, 2003, p.140)

Vemos que tanto o ideal do eu quanto o supereu estão em jogo e a desvalorização do


objeto é acompanhada também da culpabilização do mesmo, não somente do eu. O eu,
por sua vez, se sente culpado e também culpa o outro buscando de algum modo o
controle ativo do que foi vivido passivamente. O ideal do eu atua na destruição do
objeto pela desvalorização e o supereu ―acusa o objeto de apresentar-se como tendo
valor quando só se trata de fingimento‖ (ROSENBERG, 2003, p. 141). A acusação da
impostura do objeto pelo superego é interessante. Nesse momento de acusação do
objeto, observamos novamente a ideia de logro apresentada por Lambotte (1997). O eu
poderia assim dizer: ―Não sou eu, é o outro que é falho‖. Talvez resida aí o efeito
terapêutico que percebemos nos sujeitos que podem reconhecer conscientemente no
outro quem falhou, quem faltou na hora dos cuidados, desidentificando-se com o objeto.
Paradoxalmente, culpar o outro, atacar o outro (externo) é um caminho para que a
identificação com o ausente possa acontecer.
A descrição que estamos tentando fazer do discurso melancólico parece estar
próxima do que Joseph (1992) chamou ―o vício pela quase morte‖. No artigo
homônimo, não se buscou examinar o valor defensivo do vício, mas há um outro
aspecto que se quer mencionar:

Trata-se de algo relacionado com a tortura e sobrevivência. Nenhum


dos pacientes que tenho em mente como estando particularmente
incluídos nesse grupo viciado tem, na realidade, uma história de
infância muito ruim, embora psicologicamente, num certo sentido,
eles quase certamente tiveram – como por ex. uma falta de contato
caloroso e de compreensão verdadeira, e algumas vezes um progenitor
muito violento. No entanto, na transferência, temos a impressão, como
indiquei, de estarem sendo empurrados para o limite das coisas, e
tanto o paciente como o analista sentem-se torturados. A partir da
dificuldade que esses pacientes sentem de esperar e de tomar
consciência de descontinuidades ou mesmo do tipo mais simples de
culpa, fiquei com a impressão de que eles sentiram essas experiências
106

potencialmente depressivas na tenra infância como uma dor terrível


que se transformava em tormento, e que tentaram evitá-la, assumindo
eles próprios o tormento, infringindo dor mental a si mesmos e
edificando-a num mundo de excitação perversa, o que
necessariamente milita contra qualquer progresso real em direção à
posição depressiva. É muito difícil para nossos pacientes achar que é
possível abandonar esses terríveis deleites pelos prazeres incertos dos
relacionamentos reais. (JOSEPH,1992, p.143, grifos nossos)

A relação do sadismo superegóico aparece em sua maioria das vezes como um efeito
da introjeção das vozes parentais, o que poderia levar à suposição de que o tratamento
dispensado à criança nesses casos sempre aconteça sob a égide de alguma forma de
violência parental. Contudo, iremos perceber que, em diversos casos, que o ambiente
externo cuidou para que tudo se passasse bem para aquele bebê que representa o
narcisismo reeditado dos pais. Como Freud (1914) nos diz, à ―Majestade o bebê‖ são
dadas as condições que muitas vezes os pais não tiveram na infância, sendo que estes
procuram escapar ao destino de reproduzir, com o filho, o que os seus próprios pais
fizeram com eles. O dramático será perceber que, mesmo com todo o cuidado e atenção
dos pais para fugir às determinações familiares o filho pode, ainda sim, padecer de um
sofrimento narcísico, trazendo à tona o que é estranhamente familiar. Lambotte (2000,
p.72) nos diz que

É de fato uma identificação falhada que se trata quando, para além do


pai austero e piedoso, o filho descobre ‗tudo o que há por trás, sem
ousar no entanto, sabê-lo‘. Como compreender a imagem de um pai
ideal que deixa transparecer, apesar de sua real sabedoria, a angústia
existencial que o filho se apressa em ligar a erros supostos, a partir de
pedacinhos incompreensíveis escapados ao acaso?

Podemos pensar aqui em uma identificação que acontece entre o superego dos pais
com o superego dos filhos, o que os levaria a reencenar os conflitos paternais que tanto
se buscou controlar ou superar. Veríamos assim que uma transmissão transgeracional do
trauma poderia representar uma faceta da compulsão à repetição e da neurose de
destino. A ―escolha da neurose‖ nesses casos seria ainda menos livre, quase uma
contradição entre termos.
Daremos prosseguimento ao nosso trabalho, trazendo a contribuição trazida por
Klein (1940) sobre o período arcaico de constituição do ego, demonstrando que a
elaboração de uma ―posição depressiva‖ é central a todo desenvolvimento psíquico
humano. Lambotte (1997) também aponta a necessidade de se investigar o que ela
107

chamou de ―fase depressiva constitutiva‖, para entendermos a relação entre a


sublimação e a melancolia. Ela pergunta:

[...] não seria legítimo interrogar-se sobre a pertinência das sequelas


de uma fase depressiva constitutiva, originalmente, da sublimação,
vestígio da efetuação do luto dos objetos desaparecidos?
(LAMBOTTE, 2000, p.86)

A característica inerente à pulsão é a de substituir um objeto por outro em busca de


satisfação, sendo esta, sempre impossível. Nesse sentido, a pulsão se confundiria com a
própria capacidade sublimatória, que faz com que o circuito pulsional busque novos
modos de encontrar a satisfação. Ao melancólico é colocado o mesmo desafio que é
posto à sublimação: em ambos os casos há um objeto que não mais pode ser investido.
Contudo, o melancólico é impossibilitado de desinvestir o seu objeto de amor, sob o
risco de perder a si mesmo no processo. Perguntamos com Schneider (1990, p.415):

A escritura não é a própria melancolia? Interpretação depreciativa e


interminável de si por si mesmo, projeto vão de falar de um assunto
vão: si mesmo? Foi "um humor melancólico que – confia Montaigne,
que inicialmente enfiou-me na cabeça esse sonho de me meter a
escrever". Como se estivesse em jogo, mais que um motivo sobre o
qual muito se escreveu, o próprio movente da escritura, sua condição
íntima. No sentido da medicina do século dezesseis, a melancolia, o
humor negro, estado de despojamento de si mesmo leva
incontestavelmente a escrever.[...]Se não se manifesta profunda
demais, engolindo o eu que escreve no desmoronamento do eu vazio,
a melancolia leva a escrever, a acariciar amorosamente o oco do
próprio ser, a preencher o vazio de si mesmo com a escritura de mim.

Reiteramos a questão: como e quanto da capacidade de sublimação dos melancólicos


se encontraria comprometida? Observamos que o processo criativo está presente nos
sujeitos melancólicos, mas qual seria a diferença na economia e na dinâmica da
sublimação nesses sujeitos? Esperamos traçar ao longo do trabalho os elementos que
respondam a essas questões.
108

Cap III - Ampliando a visão: Klein e Winnicott

Mãe se escreve com M maiúsculo


máscula forma de perder

a mulher já dada e tida e viva apesar


de mim apenas por querer

a leitura amarga dessa letra


projeto ressentido de viver

como escrevê-la se existir não cabe


na culpada dúvida do ser?

(CÉSAR,2008,p.120)

3.1Contribuições Kleinianas: posição depressiva, sentimento de culpa, reparação e


sublimação.

O artigo ―Amor culpa e Reparação‖ (1937) é fundamental no desenvolvimento das


ideias propostas mais elaboradamente por Klein sobre a posição depressiva do aparelho
psíquico, tal qual em seus artigos: ―Uma contribuição para a psicogênese dos estados
maníaco-depressivos‖ (1935) e ―O luto e sua relação com os estados maníaco-
depressivos‖ (1940). Klein (1937, p.347) preferia usar o termo posição ao termo fase,
compreendendo que assim seria capaz de abarcar toda a organização psíquica, a
natureza das relações de objeto, as fantasias, as defesas, bem como todas as implicações
das mudanças que ocorrem no desenvolvimento do ego. Ela sublinha a necessidade de
trabalharmos a interação entre o amor e o ódio desde os momentos mais arcaicos de
funcionamento psíquico. A compreensão do papel desempenhado pelos impulsos
destrutivos nessa interação seria capaz de mostrar como os sentimentos de amor e as
tendências de reparação se desenvolvem em ligação com os impulsos agressivos, ou
apesar deles.
Para compreendermos a posição depressiva, devemos considerar a importância do
sentimento de ambivalência que o melancólico mantém com o objeto perdido. A criança
ainda incapaz de suportar a mínima frustração à sua demanda, a percebe como uma
traição e ataca o objeto que foi responsável pelo seu desprazer. A partir do momento em
que o objeto total é percebido, isto é, quando a criança concebe que, o mesmo objeto
que é fonte de amor e apaziguamento, também é aquele que frustra, surgem ansiedades
e dor diante da possibilidade de que as tendências agressivas dirigidas ao ―objeto mau‖
109

possam destruir o seu objeto de amor, ou seja, ―objeto bom‖. Portanto, a situação
primordial para a análise dos sentimentos de amor e de ódio é a relação do bebê com a
mãe, uma vez que ela é simultaneamente o primeiro objeto de amor e de ódio do bebê.
A criança ama a mãe quando ela a alimenta, alivia sua fome e oferece o prazer sensual
que é obtido pela estimulação da boca pelo seio. A gratificação que é assim percebida
constitui parte essencial da sexualidade da criança e é sua expressão inicial. De maneira
oposta, quando o bebê sente o desconforto da fome, não tem seus desejos e
necessidades físicas atendidas, ou quando sente dor, sentimentos de agressividade e
ódio surgem ao mesmo tempo em que o bebê é tomado por impulsos de destruir a
mesma pessoa que é objeto de todos os seus desejos. A criança ainda não sabe que o
objeto contra o qual ela nutre ambos sentimentos é o mesmo. A partir do momento em
que essa compreensão se dá, ela se vê compelida a reparar os danos que pode ter
causado ao objeto amado. O sentimento de culpa surge, nesse panorama, onde
acontecem as primeiras atividades mentais reconhecidas como pensamento imaginativo
e na construção da fantasia que acompanha os sentimentos e vivências do bebê. O
mundo interno ―seria o lugar dos objetos do superego que, por outro lado, representam
dentro do psiquismo as funções intersubjetivas exercidas pelos objetos primários‖
(FIGUEIREDO, 2012, p.257).
Conforme o pensamento kleiniano (1937, p.389) as fantasias destrutivas possuem
uma equivalência a verdadeiros desejos de morte. Isto é, para o bebê, é como se aquilo
que desejou nas suas fantasias realmente tivesse acontecido, o que tem consequências
importantíssimas para o desenvolvimento do eu, uma vez que é como se ―realmente
tivesse destruído o objeto de seus impulsos destrutivos e continuasse a destruí-lo‖. O
sujeito teme uma retaliação, pois acredita que as armas empregadas para destruir o
objeto também se voltam contra si mesmo.
O bebê irá buscar se defender dessas fantasias destrutivas com fantasias onipotentes
de caráter restaurador, entretanto, o medo de ter destruído o objeto do qual mais ama e
depende não consegue ser eliminado. Esses conflitos básicos afetam profundamente a
força da vida emocional e o desenvolvimento do indivíduo adulto. Segundo a autora
(KLEIN,1940, p.394):

O desejo de controlar o objeto, a gratificação sádica de dominá-lo e


humilhá-lo, de sobrepujá-lo, o triunfo sobre ele, podem participar com
tanta força do ato de reparação (realizado através de pensamentos,
atividades ou sublimações) que o círculo ―benigno iniciado por esse
ato se rompe. Os objetos que deveriam ser restaurados se transformam
110

novamente em perseguidores e os medos paranóides voltam à tona.


Esses medos reforçam os mecanismos de defesa paranóides (de
destruir o objeto) assim como os mecanismos maníacos( de controlá-
lo ou mantê-lo em animação suspensa, e assim por diante). A
reparação em progresso então é prejudicada ou anulada ―
dependendo da intensidade com que esses mecanismos são ativados.
Como consequência do fracasso do ato de reparação, o ego se vê
obrigado a recorrer constantemente a defesas obsessivas e maníacas.

Desse modo, compreendemos que, quando o indivíduo percebe impulsos de ódio em


si mesmo contra alguém que ama, sente-se culpado ou preocupado. Esses sentimentos
se manifestam disfarçadamente e são fonte de perturbação nas nossas relações pessoais,
como observamos nas várias nuances de insatisfação consigo mesmo ou no que é
conhecido popularmente como ―baixa-estima‖. Segundo Klein (1937, p.350), eles
teriam suas raízes no sentimento ―inconsciente‖ de culpa:

Esse sentimento surge do medo inconsciente de ser incapaz de amar


os outros de verdade ou de forma suficiente e, principalmente, de não
conseguir dominar seus próprios impulsos agressivos: essas pessoas
têm medo de ser um perigo para aqueles que amam.

A semelhança do que aqui é descrito com o que observamos em pacientes


melancólicos é notável, já que a diminuição da auto-estima e o auto-envilecimento são
condições para a melancolia. Lemos em um poema de Ana C. (1998, p.171):

Não sei te amar, não sei por que você


pediu mais dinheiro, não me conheço mais, me perco,
quero que façam meu horóscopo, que digam ―você é
assim‖, goste-se ou reeduque-se, como é que vou
gostar? de mim, de você? Você não puxa de volta o
fio que diz que tem, não persegue um assunto, diz
―boa tarde‖, não diz como antigamente ―não chora‖.

Há um avanço muito importante no desenvolvimento quando surgem, na mente do


bebê, os conflitos de amor e de ódio e o medo de perder o objeto amado. Os sentimentos
de culpa e de sofrimento aparecem como um elemento novo na emoção do amor, uma
vez que a criança irá se preocupar tanto com o objeto quanto com seu destino, a partir
das ações (mesmo que fantasiadas) que foram por ela produzidas. Ademais, ela também
se sente compelida a fazer sacrifícios a fim de reparar, e restaurar, as pessoas que foram
feridas em sua fantasia. Percebemos que existe uma capacidade de se identificar com o
outro, de se colocar no lugar deste e perceber o que ele estaria sentindo, o que é um
111

elemento importante para os verdadeiros sentimentos de amor. É interessante perceber


que, nessa operação de buscar reparar o outro, realiza-se no presente, algo que gostaria-
se de ter realizado no passado, o que possui também um caráter reparador para o próprio
eu.
O sentimento de culpa e a necessidade de reparação estão profundamente ligados à
emoção do amor. A resolução do conflito entre amor e ódio arcaicos nos dará
indicações de como o indivíduo maneja suas relações amorosas posteriores. Se a culpa
for extremamente forte, pode ser que isso leve ao afastamento ou rejeição da pessoa
amada, pois, é o medo de que ela possa morrer em decorrência dos ataques que lhe são
feitos em fantasia (como foi inicialmente a mãe), que torna intolerável a dependência
em relação a essa pessoa (Cf: KLEIN, 1937, p.362). Observa-se como a criança busca a
sua independência em relação à mãe e se regozija com suas primeiras conquistas e
êxitos que, de certa forma, a apazigua de não precisar tanto daquela pessoa que lhe é
fundamental. Na fantasia inconsciente da criança, a mãe protetora que está sempre ali
para realizar os cuidados necessários e satisfazer as suas vontades é tomada como uma
parte inseparável, desse modo, a morte da mãe amada implicaria a morte do próprio
sujeito. Segundo Klein (1937, p.362), ―quando esses sentimentos e fantasias são fortes
demais, a ligação com as pessoas amadas pode se tornar um fardo insuportável‖.
O que encontramos como saídas possíveis para essas dificuldades é a redução da
capacidade de amar, negando-a ou suprimindo-a, passando a evitar as emoções ―mais
fortes‖. Outra saída também pode ser o deslocamento do investimento amoroso para
objetos inumanos, como a ciência, os animais, coleções de objetos, entre outros. É
possível também encontrarmos casos onde existe uma grande dependência em relação
ao objeto amoroso, o qual pode funcionar como uma fuga da responsabilidade pelas
próprias ações. Nesse caso, observa-se que o amor é fundamental contra o sentimento
de culpa e vários tipos de medo: é necessário que a pessoa amada certifique para o
indivíduo que o ama e através dos sinais de sua afeição indique que ele não é ―mau‖,
que seus impulsos destrutivos não tiveram efeito mortal.
Para Klein, o sentimento de culpa é um incentivo fundamental para a criatividade e o
trabalho em geral. Contudo, ele pode inibir as atividades produtivas caso seja muito
intenso. A observação da análise de crianças através do brincar, por exemplo,
demonstra que, quando os medos são atenuados, a atividade criativa aumenta e os
impulsos destrutivos se reduzem. Nesse escopo, ocorre uma diminuição gradual do
sentimento de culpa e da ansiedade em torno da morte da pessoa amada, que eram muito
112

pesados para uma criança suportar. Uma vez tornados menos intensos e mais fáceis de
controlar, o desejo de fazer a reparação pode se expressar construtiva e criativamente.
Essa possibilidade também pode ser observada na análise de adultos. Em ―Uma
contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos‖, ela nos diz que:

ao lidarmos com a etiologia, parece essencial não nos limitarmos a


encarar a disposição da libido apenas como tal. É preciso também
estudá-la em conexão com as primeiras relações do sujeito com seus
objetos externos e internalizados, reflexão que implica compreender
os mecanismos de defesa desenvolvidos gradualmente pelo ego ao
lidar com suas diversas situações de ansiedade. (1935, p.309)

Os efeitos mortíferos da pulsão de morte são especialmente visíveis na compulsão à


repetição, nos imperativos tirânicos do superego, no masoquismo moral, nos sonhos
repetitivos da neurose traumática, na reação terapêutica negativa, na impossibilidade de
representação, no desligamento, na inércia, no princípio do nirvana. Cintra (2011)
aponta que na melancolia a ordem do superego seria a de purificar e destruir, sendo esta
purificação a separação total das qualidades positivas daquelas que são negativas e, em
seguida, tentar destruir aquilo que foi considerado ruim. A relação ambivalente se torna
assim, ainda mais terrível.
Observamos, na teoria kleiniana, uma constante busca para compreender como os
processos arcaicos e infantis permanecem no indivíduo adulto. O sentimento de culpa
deve ser investigado na sua complexidade, uma vez que constatamos a sua importância
no funcionamento mental e a sua capacidade de interferir em diversos aspectos da vida
de um indivíduo. Se este sentimento está na base dos processos criativos, poderíamos
dizer, então, que a criação é alimentada pelo núcleo melancólico do sujeito. Todos esses
elementos corroboram nossa hipótese de que a sublimação irá retomar a maneira pela
qual se dá a constituição do eu psíquico, suas primeiras relações de objeto e as marcas
que essas primeiras experiências imprimiram no eu. O sentimento de culpa tem uma
especial tendência de se disfarçar e intrometer-se em processos que lhe parecem
estranhos. Na coletânea póstuma encontramos um poema escrito no período de 1982-
1983, Ana C.(1998, p.174) escreve:

Tento até o velho golpe:


recitar poemas para tua indiferença.
Cabotina. Agarrada num rabo-de-cavalo.
―Teus versos agora me tocam menos
Que você‖. Tua mão vacila.
Não é de cera
113

Até que um dia com a unha


tira a lasca do rosto e descubro
A identidade da morta por debaixo.
É porque tem que chegar. Perto do coração
não tem palavra?

Como vimos anteriormente, a sublimação é pensada junto ao mecanismo de


reparação. De acordo com Laplanche e Pontalis (1988, p.581), tal mecanismo descreve
como o ego procura ―reparar os efeitos produzidos no seu objeto de amor pelos seus
fantasmas destruidores‖, desempenhando um papel fundamental no trabalho do luto e
na sublimação. A reparação, então, seria tributária da posição depressiva e está
intrinsecamente ligada a sentimentos de culpa.
Segal (1993, p. 95) analisa o artigo sobre arte, ―Situações de ansiedade infantil
refletidas numa obra de arte e no impulso criador‖ (1929), onde Klein se volta para o
impulso criador. Lá, ela analisa uma jovem pintora sueca, Ruth Kjar, acometida por
depressões recorrentes e sentia seu interior ser invadido por um espaço vazio, sendo
compelida a pintar exatamente pela intolerância ao espaço vazio que havia sido deixado
na parede por um quadro removido. Neste exemplo, será estabelecida uma direta relação
entre a origem do impulso criador e a necessidade de reparação. Segal (1993, p. 96)
acha interessante esse artigo preceder imediatamente ao trabalho de Klein sobre a
formação de símbolos, uma vez que, em sua opinião, a formação de símbolos seria a
própria essência da criatividade artística.
A partir do artigo kleiniano ―Uma abordagem psicanalítica da estética‖ (1952), Segal
(1993) irá sugerir que o impulso artístico está diretamente relacionado à posição
depressiva, ou melhor, entenderíamos a criação como uma necessidade de se recriar o
que sente nas profundezas de seu mundo interno. Seria ―a percepção interna do
sentimento mais profundo da posição depressiva – o sentimento de que seu mundo
interno está estilhaçado – é que leva o artista a precisar recriar algo que seja sentido
como um mundo completamente novo. Isso é o que todo grande artista faz – cria um
mundo‖, que pertence exclusivamente à obra (SEGAL, 1993, p. 96). A autora nos diz,
contudo, que, o trabalho de reparação do artista nunca é concluído. Outra observação
que nos parece importante é a de que ―alguns artistas sentem de modo particularmente
poderoso que a obra adquire existência quase independente‖, e um aspecto importante
da reparação é deixar que a obra se vá – a doação que o sujeito faz de sua obra para o
mundo(SEGAL, 1993, p.106). Isto é, mesmo se a obra conseguir fazer o trabalho de
114

reparação, ela poderá ser dispensada da sua função narcisante. Contudo, essa separação
também pode gerar a sensação de estranho que o duplo traz. Kofman (1996, p.140) nos
diz que a arte seria um duplo, e como todo duplo ele aparece para preservar ou defender
o original, mas num segundo momento, ele se torna aquilo que é capaz de destruí-lo, ele
se torna o representante da morte:

Esses duplos são constitutivos do verdadeiro ser do artista e de sua


identidade: pois o fato de que este tenha de se desdobrar, se repetir, se
representar, implica uma não-presença de si, uma insatisfação
originária, a morte imanente à vida, a ausência de origem simples e
plena. É por isso que, além do prazer preliminar devido ao ―prêmio de
sedução‖ oferecido pela beleza da obra, além do prazer decorrente da
supressão da inibição, a arte proporciona ao artista, assim como ao
público, um prazer narcísico análogo que o sonho dá. Com a
diferença de que por meio dela pode se tornar universal, graças à
identificação. Por isso Green (1994) pode designar a arte, com toda
razão, como um objeto transnarcísico.

Segal (1993, p.108) nos oferece mais argumentos importantes:

[...] parte da dificuldade na arte é que ela deve satisfazer tanto o anseio
por um objeto ideal e por um self fundido com esse objeto como a
necessidade de restaurar um objeto inteiro realisticamente percebido,
uma mãe superada não fundida com o self. Adrian Stokes sugere que
o sentimento particular de ser arrastado para dentro de uma obra de
arte e nela ficar envolvido contém elementos da fusão pré-depressiva
com o objeto ideal. Mas o artista também tem de emergir disso para
ser de algum modo criativo.

A autora também irá fazer uma análise sobre Richard Holmes, um escritor de
biografias – que nos é muito útil para pensar a dimensão autobiográfica na obra de Ana
C. Ele irá descrever o processo de escrever uma biografia

biografia como algo que tem dois estágios principais. O primeiro deles
é o relacionamento ficcional vivo e uma identificação profunda, uma
forma de identificação que ele chama também de ―auto-projeção‖. Ele
diz que, em certo sentido, isso é um estado mental pré-biográfico, pré-
literário, que é motivação essencial para seguir os passos de alguém.
(In: SEGAL, 1993, p. 108).

Ele diz ainda que ―o verdadeiro processo biográfico começa precisamente no


momento e nos lugares em que essa forma ingênua de amor e identificação sucumbe. O
momento de desilusão pessoal é o momento de recriação impessoal, objetiva.‖
115

(SEGAL, 1993. p. 108). Ou seja, até mesmo para conseguirmos falar sobre a pessoa a
ser biografada, é preciso, depois da identificação com ela ou sua obra, uma
desidentificação. Para esse biógrafo,

o colapso da idealização e da identificação induziu nele o mais negro


desalento, mas foi também o momento de criação. Holmes
posteriormente fala de outra descoberta: a de que o sujeito individual
de uma biografia é uma quimera.[...] ‗é nesse sentido que toda
evidencia biográfica real é evidência em ―terceira pessoa‖ – evidência
que é testemunhada. [...] Nesse sentido o biógrafo está continuamente
sendo excluído, ou alijado, da comunicação ficcional que estabeleceu
com seu sujeito.(SEGAL, 1993, p.108, grifos nossos).

Desse modo, por mais que busquemos os dados biográficos de Ana C., sabemos que
a nossa leitura envolve uma construção, que foi facilitada pelo efeito que sua poesia nos
causou, isto é, sabemos que a obra de arte não se resume ao artista.
Concordamos com Segal (1993, p. 104) que, ―é um paradoxo que a obra do artista
seja nova e, no entanto, surja da ânsia de recriar ou restaurar. Esse paradoxo é inerente
ao simbolismo‖. Como sabemos por Freud (1908), o artista é um devaneador, mas ele
volta à realidade externa, nunca a deixa inteiramente. Segal (1993, p.105) irá falar
sobre a diferença entre o artista e o artesão:

Em primeiro lugar, ele tem uma consciência aguda de suas realidades


internas, da realidade interna que busca expressar. Mas uma apreensão
de uma realidade interna caminha sempre com a dificuldade de
diferenciar o que é interno do que é externo e, portanto, também com
um senso da realidade externa – uma diferença básica entre
criatividade e delírio. O artista deve ter uma destacada percepção da
realidade do potencial e das limitações de seu instrumento, limitações
que tanto usa como tenta superar. Ele não é só um sonhador, mas um
artesão supremo. O artesão pode não ser um artista, mas um artista
deve ser um artesão. E por via de regra ele está vivamente ciente
disso.

Ela enumera um grande número de artistas que pararam de criar ou morreram em


torno da idade de 37 anos, contudo, aqueles que conseguiram ultrapassar a crise,
pareceram amadurecer e mudar o método e estilo de trabalho, vivendo até idade
avançada, a exemplos de Picasso e Henry Moore. A autora também indica que no adeus
à junventude e à infância representada pela crise de meia-idade é necessária uma nova
elaboração das ansiedades depressivas, sendo que a perspectiva da própria morte deve
ser encarada realisticamente. Seria a necessidade de resolver conflitos internos que
forçariam alguns artistas a começar a criar somente após a crise de meia-idade. A
116

―Interpretação dos sonhos‖ (1900) de Freud teria começado a ser escrita por volta dessa
idade e Klein também se torna analista nesse período. Assim, a autora considera que ―a
criatividade artística é uma maneira de expressar e elaborar as ansiedades da posição
depressiva. Sugiro, também, que isso depende da aceitação da própria mortalidade‖
(SEGAL, 1998.p.136).
Seguiremos a indicação de Segal e iremos pensar a relação da melancolia e da
sublimação com o tempo. Antes, porém, falaremos um pouco sobre algumas
compreensões winnicotianas necessárias para o desenvolvimento de nosso argumento.

3.2 Contribuições Winnicottianas: a criatividade, o núcleo silencioso do eu e o


rosto como espelho

“Seu olho enxerga, mas seu corpo não.” Você não reparou ainda que
daqui não apago o desejo escuro, a cara metade do meu rosto, de fio
a pavio com furor de luta preso numas mãos bem brancas.
Ana C. (1998, p.143)

Para o psicanalista e pediatra Winnicott, suas observações do crescimento infantil


indicaram que o essencial era viver de forma criativa. Não nos surpreende o fato de que
a noção de pulsão de morte encontrou resistência no pensamento deste autor. Para ele,
o chamado ―verdadeiro self‖ seria resultado de um êxito repetido da função materna,
quando ela responde ao gesto espontâneo ou à alucinação sensorial do bebê. A criança
precisa ouvir o eco de seu movimento no mundo, sentir que alterou a realidade de
alguma forma, contudo, seria preciso a preservação de um espaço que não poderia ser
invadido por esse outro cuidador. Segundo Winnicott, haveria um núcleo secreto no
coração do psiquismo, um elemento que não seria comunicável, cuja preservação é
preciosa – o que vai contra a regra fundamental da psicanálise: ―tudo dizer‖. Em um
poema escrito em janeiro de 1982, lemos:

[...]retomo o caderno terapêutico depois de ter dito que a minha cura


era ―falar tudo‖, que me desse e me viesse, e assim, angustiada com a
partida que me cala ou um flanco de mim, escrevo como quem fala
tudo,[...] senti que meu compromisso era com a mulheres, com o colo
delas, e só secundariamente com ele, com um apelo da realidade
muda.[...] Volto para a casa de mamãe, e tenho de suportar a angústia
de ter que me emudecer até a Mary voltar(CÉSAR, 1998, p.135).
117

Voltando à teoria winnicotiana, cada atividade feita pelo bebê e o trabalho de


tradução da mãe possibilitarão que as vivências, uma a uma, entrem na esfera de
onipotência do bebê. A formação de uma unidade depende da experiência de ser contido
e de conter, relacionada ao conhecido modelo canibalista que Freud localiza na fase
oral. Ali, é feita uma transposição para o psíquico das primeiras formas de interação
com o mundo, que se dá através da boca, dos lábios, língua e seio. A partir dessas
experimentos o bebê irá buscar seus equivalentes simbólicos, desse modo, o tampar e
encaixar pinos nos buracos amplia o espaço que servirá de piso para as futuras
brincadeiras mais complexas. Se tudo corre bem, o interesse do bebê se amplia e ele
estará pronto para essas novas simbolizações que envolvem o brincar e o falar. A partir
daí, poderá encontrar narrativas para ilustrar suas histórias, chegando, assim, à
simbolização secundária. É quando se pode localizar a psique no corpo que o pequeno
sujeito pode experimentar o ―gesto espontâneo‖, movimentos estes que fazem com que
ele se aproprie das sensações correspondentes a essa etapa inicial. As necessidades
corporais são aos poucos transformadas em vontades do ego e as experimentações
físicas levam a uma elaboração imaginativa.
O sentimento de ser real é acompanhado de uma capacidade cada vez maior de
suportar as rupturas da continuidade da vida e as experiências reativas do eu que é
submetido a seu ambiente. Caso esses processos iniciais fracassem, uma alternativa de
sobrevivência do eu é o isolamento. A necessidade constante de reação a um ambiente
hostil resulta em uma perda temporal do ―sentimento contínuo de existir‖ e provoca
angústias impensáveis, primitivas. Essas agonias primitivas incluirão o medo de
retornar a ―um estado não integrado; cair para sempre; perda do conluio psicossomático,
fracasso da despersonalização, perda do senso do real; perda da capacidade de
relacionar-se com objetos‖. (Cf: WINNICOTT,1963, p.72) Winnicott irá afirmar que o
medo do colapso é o medo de um colapso que já foi experienciado. Ele é um temor da
agonia original que provocou a organização de defesa que o paciente apresenta. A
importante indicação desse psicanalista irá mostrar que é preciso dizer para o paciente
que aquilo que é o seu maior temor, já aconteceu. Entendemos, assim, que a antecipação
dos términos de suas relações e em última instância, da morte, seriam formas de se
defender desse colapso, ao qual o sujeito acredita não ser capaz de sobreviver. Em suas
palavras:
118

Existem momentos em que se precisa dizer a um paciente que o


colapso, do qual o medo lhe destrói a vida, já aconteceu. Trata-se de
um fato que se carrega consigo, escondido no inconsciente.[...] Neste
contexto especial , o inconsciente quer dizer que a integração do ego
não é capaz de abranger algo. O ego é imaturo demais para reunir
todos os fenômenos dentro da área da onipotência
pessoal. (WINNICOTT, 1963, p.72)

Sabemos que as intrusões que provocam o reagir acontecem sempre, mas,


encontramos problemas quando elas ultrapassam a competência integrativa da criança
levando a um ―transbordamento da para-excitação‖ – da energia necessária para se
defender do excesso que perturba o eu.
A percepção espaço-tempo depende de uma integração do eu. A compartimentação,
os elementos dissociados, dispersos e espalhados, dizem respeito a uma não integração.
A continuidade leva a um sentimento de existir e à autonomia. Para o autor, o
tratamento se daria pela possibilidade de se experimentar, talvez pela primeira vez, o
que não teria acontecido na época da infância. Contudo, o medo da desintegração, da
perda da identidade, da sua diluição em um mundo sem limites leva o sujeito a acionar
seus mecanismos de defesa.
O texto de Lacan sobre o estádio do espelho (1949) influenciou diretamente o
pensamento winnicottiano, no entanto, para ele, o psicanalista não teria considerado o
espelho em termos do rosto da mãe do modo como ele próprio viria fazê-lo. Assim, de
acordo com Winnicott (1975, p.153),

nas primeiras fases do desenvolvimento emocional do bebê humano,


um papel vital é desempenhado pelo meio ambiente, que, de fato, o
bebê ainda não separou de si mesmo. Gradativamente, a separação
entre o não-eu e o eu se efetua, e o ritmo dela varia de acordo com o
bebê e com o meio ambiente. As modificações principais realizam-se
quanto `a separação da mãe como aspecto ambiental objetivamente
percebido. Se ninguém ali está para ser mãe, a tarefa desenvolvimental
do bebê torna-se infinitamente complicada.

A função do ambiente envolve o segurar, o manejar e a apresentação de objetos.


Winnicott (1975) se pergunta: ―Quando o bebê olha para o rosto da mãe ao mamar, o
que ele olha ali?‖ Ele nos diz que,

Para obter a resposta, temos de nos voltar para nossa experiência com
pacientes psicanalíticos que podem reportar-se a fenômenos bastante
primitivos e, apesar disso, verbalizá-los (quando acham que podem
fazê-lo) sem que isso constitua agravo à delicadeza do que é pré-
119

verbal, não verbalizado e não-verbalizável, exceto, talvez, na poesia.


(1975, p.154)

Ele sugere que o que o bebê vê quando olha o rosto da mãe é a si mesmo. ―em outros
termos, a mãe está olhando para o bebê e aquilo com que ela se parece se acha
relacionado com o que ela vê ali‖ (WINNICOTT, 1975, p.154). Esse seria o curso
esperado dos eventos. Para os bebês que olham e não veem a si mesmos, quando a mãe
reflete o próprio humor ou a rigidez de suas defesas, há consequências, sendo que a
primeira delas envolve a capacidade criativa. Lemos,

A capacidade criativa começa a atrofiar-se e, de uma ou de outra


maneira, procuram outros meios de obter algo de si mesmos de volta,
a partir do ambiente. [...]Alguns bebês não abandonam inteiramente a
esperança e estudam o objeto e fazem tudo o que é possível para ver
nele algum significado que ali deveria estar, se apenas pudesse ser
sentido. Alguns bebês, tantalizados por esse tipo de relativo fracasso
materno, estudam as variáveis feições maternas, numa tentativa de
predizer o amor da mãe, exatamente como todos nós estudamos o
tempo. O bebê rapidamente aprende a fazer uma previsão: ―Por
enquanto, posso ficar seguro, esquecer o humor da mãe e ser
espontâneo, mas , a qualquer momento, o rosto dela se fixará ou seu
humor dominará; minhas próprias necessidades pessoais devem então
ser afastadas, pois, de outra maneira, meu eu (self) central poderá ser
afrontado‖. (WINNICOTT, 1975, p.155)

Também nos diz que, na direção da patologia, encontra-se a predizibilidade; quando


precária, o bebê é forçado aos limites de sua capacidade de permitir acontecimentos.
Isso irá acarretar uma ameaça de caos, o bebê, então, organizará a retirada ou passará a
olhar o mundo apenas para poder se defender dele. ―Um bebê tratado assim crescerá
sentindo dificuldades em relação a espelhos e sobre o que o espelho tem a oferecer. Se o
rosto da mãe não reage, então o espelho constitui algo a ser olhado, não a ser
examinado‖ (1975, p. 155).
―O brincar e a realidade‖ (1975) traz uma série de casos em que Winnicott interpreta
a função do rosto tanto em casos clínicos como em artistas. O exemplo privilegiado
nesse ensaio é o de Francis Bacon, levando-se em conta que ele na maior parte de seu
trabalho, pinta rostos que nos parecem totalmente deformados. Bacon declarava que era
fundamental para a apreciação de sua arte que suas pinturas fossem emolduradas em
vidro, pois assim, ao contemplá-las, as pessoas não veriam apenas uma pintura, mas
poderiam, de fato, ver-se a si mesmos.
120

O leitor a essa altura estará pensando em Francis Bacon. Refiro-me


aqui, não ao Bacon que disse: ‗Um rosto belo é uma recomendação
silenciosa‘ e ‗Essa é a melhor parte da beleza, que um quadro não
pode exprimir‘, mas ao exasperador, perito e desafiador artista de
nossa época que continua a pintar o rosto humano significantemente
deformado. (...) esse Francis Bacon moderno está-se vendo no rosto da
mãe, mas com uma peculiaridade nele, ou nela, que enlouquece tanto
a ele quanto a nós. Nada conheço da vida particular do artista e o trago
à baila apenas porque ele força sua presença em qualquer debate atual
sobre o rosto e sobre o eu (self). Os rostos de Bacon parecem-me
muito afastados da percepção real; olhando para os rostos, parece-me
que ele empreende um penoso esforço no sentido de ser visto, que está
na base do olhar criativo. Vejo que vinculo a percepção e percepção,
ao postular (no indivíduo) um processo histórico que está na
dependência de ser visto: Quando olho sou visto; logo existo. Posso
agora me permitir olhar e ver. Olho agora criativamente e sofro a
minha a percepção e também percebo. Na verdade, protejo-me de não
ver o que ali não está para ser visto (a menos que seja
cansado).(WINNICOTT,1975, p.157)

A representação dos objetos possibilita sua ausência, além de manter presente


naquele que deles se lembra os elementos que estão relacionados a ele. A representação
permite o acesso, mesmo que na fantasia – e de modo limitado – aos benefícios e aos
afetos que eram sustentados pelo objeto. Assim, a palavra é vital para a sobrevivência
da mãe no sujeito; a mãe só pode ―morrer‖ (desaparecer) sem matar a palavra caso sua
vivacidade tenha animado o pequeno em constituição. É preciso que o bebê sinta que
ele tem uma existência separada, que seus movimentos articulados ou não, violentos ou
amorosos produzem alteração nesse mundo que ainda pode ser precária a separação
entre o externo e o interno. É preciso que a mãe não morra psiquicamente, que a vida e
sua inexorável transitoriedade não sejam uma ameaça para aquela que deveria garantir
ao outro que vale a pena entrar no jogo da vida, no fort da, no vai e volta dos objetos,
nas idas e vindas da libido. A brincadeira para o pequeno só será possível se a mãe topa
também entrar, propondo a brincadeira sem esperar ser a vencedora ou a melhor,
adaptando-se à realidade e a fantasia do bebê, ao seu ritmo e seu descompasso.
Entendemos com Winnicott que a neutralização suficiente da pulsão de morte é feita por
essa mãe que possui a energia libidinal e o espaço psíquico para incluir um outro que
não é ela, mas depende quase exclusivamente dela nos primeiros momentos de vida.
121

Capítulo IV . Imóvel tóxico do tempo: melancolia e sublimação em perspectiva

“Quisera dividir o corpo em heterônimos” − medito aqui no chão,


imóvel tóxico do tempo”.

Ana C.

A patologia narcísica nos mostra como o sujeito melancólico sabe sobre o tempo e
suas regras implacáveis, as quais não podemos escapar. Sua consciência trágica sobre a
transitoriedade da vida torna familiar a proposição memento mori (lembre-se da morte).
Paralelamente, a imobilidade psíquica produzida é uma tentativa de capturar o objeto do
passado no presente para que, assim, o futuro, ou melhor, a partida, se aproxime.
Mesmo que este desempenhe o papel de denunciador do poder do tempo, o melancólico
tenta se eximir de sua ação através da retirada de seus investimentos na realidade. Esta
consciência da verdade produz uma dificuldade ainda maior para o estabelecimento de
vínculos afetivos, uma vez que o abandono do objeto já está anunciado para ele em voz
alta: análoga àquela do coro, que antecipa o destino do herói grego nas tragédias e
conhecendo a tendência melancólica dos artistas, poderíamos perguntar se a obra de arte
seria uma forma de realizar essa captura. Como entenderíamos a relação tão estreita que
encontramos entre a melancolia e a criação artística? A criação artística é um destino da
pulsão capaz de promover laço social, seria então pela via da sublimação que o sujeito
melancólico buscaria restaurar sua ligação com o outro e promover o encantamento de
seu mundo externo e interno? A fim de responder estes questionamentos, centrais a esta
investigação, elencamos esta passagem de Kristeva (1987, pp.5-6), a qual sinaliza um
possível caminho:

O passado do melancólico nunca passa. Também não passa o do


poeta, o permanente historiado não necessariamente de sua história
real como de eventos simbólicos que levaram seu corpo à significação
ou, na verdade, aqueles que ameaçam sobrecarregar, transbordar sua
consciência. [...] O artista: a testemunha mais intima da melancolia e a
mais poderosa lutador contra a abdicação simbólica que o envolve -
até que a morte venha e o suicídio imponha sua triunfante conclusão
sobre o vazio e perda do objeto[...].

Desse modo, compreendemos a partir das proposições da autora que ―somente a


sublimação resiste à morte‖ (KRISTEVA, 1989, p.97). No entanto, o que temos tentado
demonstrar neste trabalho é uma certa desconfiança no que tange às consequências que
a sublimação, entendida no contexto criativo, possa trazer. Como veremos em nossa
122

análise de Ana C., esta agiria como um phármacon (CARVALHO, 2003):


simultaneamente, nem remédio, nem veneno. Conforme nos indica Carvalho (2003), em
A poética do suicídio em Sylvia Plath, o processo criativo em geral e a escrita literária,
em particular, se realizam sobre a dupla face remédio/veneno da sublimação, tal qual o
―phármacon‖ descrito por Platão e trabalhado por Derrida (2005) em A farmácia de
Platão.
A libido necessária para a criação é a mesma que carrega a história dos caminhos
percorridos dentro do aparelho psíquico, junto com suas ligações, fixações,
condensações, deslocamentos e desligamentos. O escritor, ao, e para, criar, precisa se
aproximar daquilo (das emoções, afetos, intensidades, representações e silêncios) que
será transformado, ficando, assim, novamente confrontado com experiências que
procuram sentidos e destinos. A criação, como podemos suspeitar, não é sem riscos para
aquele que cria, nem para aquele que dela se utiliza. Ela provoca reaberturas que podem
ser traumáticas, as quais também podem ser metabolizadas e simbolizadas.
A temporalidade é construída junto à noção de unidade do eu. Mesmo que se queira
satisfazer imediatamente os desejos, a percepção do tempo convoca a necessidade de
que estes se estendam para um futuro, o que, em si, configura uma relação paradoxal
entre ambas categorias. Bianchi (1992) propõe um ―trabalho do tempo‖, o qual seria
definido nos seguintes termos:

O trabalho do tempo implica todo um conjunto de renúncias narcísicas


que podem ser opostas, termo a termo, aos desejos infantis de ser-
tudo, de ser-por-todo-o-tempo, de ser investido sem obrigação de
reciprocidade, de dispor do objeto, etc. A prova de realidade imposta
pelo escoar da vida não visa mais diferenciar as manifestações que
provêm de "dentro", mas, de maneira mais geral, reconhecer a Lei do
tempo – a qual, por mais que atinja o Eu e seu corpo, não deixa de
impor-se como uma realidade exterior – livrar da onipotência infantil
que volta com tanta facilidade, desde que a vida foge e o narcisismo
está ameaçado, onipotência mágica que tende a manter intacto,
preservado do tempo e da destruição, este "dentro" que pretende
conhecer apenas a lei do prazer (BIANCHI, 1992, p.118).

Kell, por sua vez, em O Tempo e o cão (2009) retoma a noção de ―duração‖ tal qual
apresenta Bergson em Matéria e Memória (1990):

Para Bergson, a duração implica a sensação subjetiva de


indivisibilidade no movimento de nosso corpo, tanto no espaço quanto
no tempo. A duração é uma espécie de ilusão necessária para manter o
sentimento de (alguma) continuidade em nossa existência; ilusão, sim,
porque se o movimento fosse realmente indivisível, o instante não
123

existiria. Mas a duração, medida psicológica da vivência do tempo,


não se define pela mera soma de todos os instantes. ―Ali onde ritmo
do movimento é bastante lento para se ajustar aos hábitos de nossa
consciência [...] não sentimos a qualidade percebida decompor-se
espontaneamente em estímulos repetidos e sucessivos, ligados entre si
por uma continuidade interior? (BERGSON apud KELL, 2009,p.138-
139)

Levando-se tais considerações supracitadas em conta, surgem questionamentos


quanto à peculiar relação do melancólico com o tempo no processo sublimatório. Talvez
a fragmentação, como sugere Bianchi, seja uma das características dessa modalidade
específica. Lemos:

A fragmentação do sentido que transparece na fragmentação do


discurso e dos atos reflete a prevalência da experiência arcaica de
descontinuidade oposta àquela, insuficiente, da continuidade – a
descontinuidade afetiva, dimensão da perda repetida. A negação do
tempo assinala que lhe é, inconscientemente, atribuída qualidade de
substrato dos traumatismos, fragmentado ele próprio, tendo perdido o
sentido, enquanto portador do irreparável (passado ou por vir).[...]Não
vejo que o tempo poderia trazer para mim, a não ser catástrofes
(BIANCHI, 1992, p. 116).

Nos lembramos aqui da colocação de Mijolla-Mellor (2010) de que a sublimação


está sempre relacionada com o investimento em um tempo futuro. A sublimação seria
uma via impossibilitada para o sujeito melancólico ou ela seria uma alternativa de
rearranjo subjetivo e de flexibilização dos ideais erigidos? Teremos de considerar que as
consequências da sublimação são diferentes para cada sujeito, porém quais seriam os
elementos que nos permitiriam mapear os possíveis destinos da desfusão pulsional
decorrente deste processo?
Quais os efeitos de uma sublimação estimulada por um ideal todo poderoso – como
aquele que é edificado pelo melancólico? Chasseguet-Smirguel (1992) ilumina um
pouco essa questão, ao afirmar que,

[...] o processo de criação é unicamente guiado pelo Ideal do Ego, as


sublimações não continuando em razão das falhas de identificação, se
bem que nós nos achamos diante do paradoxo seguinte: quanto mais
os sujeitos sentem dolorosamente o afastamento entre seu Ego e seu
Ideal, ou temem a revelação, mais eles serão tentados a utilizar a
criação para completar aquilo que eles vivem como uma falha tão
mais importante entre seu Ego e seu Ideal (falha ilusoriamente negada
às vezes) que eles não puderam integrar valiosamente suas
identificações. Estas lacunas em seu Ego, causadas por identificações
defeituosas, produzem precisamente uma perturbação na realização de
124

sublimações. Sendo então o objetivo da obra o de completar


magicamente estas lacunas, resultaria disso que um número
considerável de criações – em diversos domínios – obedeceria a uma
processo fundamentado sobre o Ideal do Ego sem modificação íntima
das pulsões. (CHASSEGUET-SMIRGUEL, 1992, p.93)

Segundo a autora, a sublimação seria afetada pelos modos identificatórios e,


paradoxalmente, procuraria reparar as possíveis falhas existentes nesse eu. Sabemos
que, na melancolia, a perda do objeto acarretou a perda do próprio eu do sujeito. Algo
se passou na história de vida do melancólico que fez com que sua identidade ficasse
totalmente dependente de um suporte externo, o que poderia explicar a proximidade que
iremos encontrar entre Ana C. e sua obra. Só se existe no olhar do outro, e, na ausência
deste, a ferida narcísica que se abre pode não mais se fechar. Quanto maior for o
ferimento narcísico, maior será o impulso de repará-lo. Lemos ainda que

O processo de criação por indivíduos propensos, por seu Ideal do Ego,


a criar sem sublimação correspondente de suas pulsões, e o processo
dos que chegam a uma sublimação adequada, parece-me, não
diferirem quanto aos fins buscados. Com efeito, em todos os casos, o
ato criado é promovido, a meu ver, pelo desejo (narcísico) de
reencontrar a completude perdida e representa, pois, também ele, em
certo nível, um meio de chegar aos reencontros do Ego e do
Ideal. Quanto mais profunda for a ferida resultante da inadequação
entre as aspirações narcísicas e a representação do Ego real, mais
imperiosa será a necessidade de ativação dos meios para preencher a
fatal lacuna. Logo, se pode daí deduzir que os problemas de
identificação ocupam aqui o lugar central. (CHASSEGUET-
SMIRGUEL, 1992, p. 85)

Essa ideia já foi observada por Abraham (1911/1970), alertando-nos para um limite
que, quando ultrapassado, impede o sujeito de criar; portanto, poderíamos entender
então, que a sublimação na melancolia envolveria mais riscos este. Em suas palavras,

Antes que se estabeleça o verdadeiro estado de depressão, muitos


pacientes apresentam uma energia acima do normal em suas
atividades e maneira de vida. Frequentemente sublimam de uma
maneira forçada a libido que não podem dirigir para seu verdadeiro
propósito. Fazem isso a fim de fechar os olhos para o conflito
existente dentro deles e desviar o estado mental depressivo que está
tendendo a irromper na conciência. Esta atitude muitas vezes é bem
sucedida durante longos períodos, mas nunca o é completamente. A
pessoa tem de combater influências perturbadoras durante um longo
tempo nunca pode desfrutar de paz ou segurança dentro de si mesma.
Qualquer situação que exija uma decisão definida no campo da libido
provocará um súbito colapso de seu equilíbrio psíquico, que ele
125

manteve tão laboriosamente. Quando o estado de depressão se


desencadeia, os seus interesses anteriores (sublimações) cessam de
repente e isso conduz a um estreitamento de seu panorama mental, o
qual pode tornar-se tão pronunciado a ponto de atingir o
monoideísmo. (ABRAHAM, 1911/1970, p.41-42, grifos nossos)

O que o autor nos aponta é que existe uma relação direta entre a sublimação
―forçada‖ e o quadro depressivo que se estabelece depois. Aqui chegamos a um ponto
semelhante ao pensamento de Schneider (1990), que reafirma a condição paradoxal, a
qual temos perseguido ao longo de nossas considerações:

Só a escritura consola da impossibilidade de escrever. É preciso ir


mais longe nos enunciados manifestos pela melancolia. Ou, então,
para uma melancolia radical. Se tudo está dito, para que consagrar,
depois destas linhas desiludidas, centenas de páginas a dizer ainda? A
queixa do melancólico é sua única linguagem. Como se o tudo
está dito, ao invés de condenar antecipadamente o projeto literário e
de arruinar seu desfecho, formasse sua trama secreta e o recurso
último. Como se só se tornasse escritor aquele que deve escrever para
calar a certeza de que tudo está dito e para descobrir o que já lá está
com um novo dizer; como se estivesse intimado a apagar o escrito
demais, o sempre precedente. Talvez só aqueles para quem não
existem a amargura de chegar tarde demais e a obsessão de passar
sempre ao largo possam dispensar o escrever. Só aqueles se sabem
ultrapassados, saturados e invadidos pelo estranho têm o desejo da
primeira vez e o gosto do próprio. (SCHNEIDER, 1990, p.421)

Vemos então que é criada uma necessidade de sublimar, de escrever, justamente


porque existe algo que precisa ser elaborado, um núcleo de vazio que insiste e ameaça
tomar conta do sujeito. A escrita marca tanto a tentativa de elaboração do luto quanto a
impossibilidade de realizá-lo. Freud nos diz que, na melancolia, o trabalho do luto não é
possível de ser completado, contudo, Lambotte (1997) nos atenta para a necessidade de
não a investigarmos apenas como uma pseudoclínica do luto. O que se passa é uma
identificação do eu com o objeto e a vontade de se paralisar o tempo. Na antiguidade, a
melancolia era associada ao planeta Saturno e o deus Chronos da mitologia grega, deus
canibal que engole seus filhos. O melancólico sabe, talvez mais do que ninguém, sobre
a transitoriedade da vida: ele está imbuído de uma constante assunção da inevitabilidade
das perdas. A vontade, na melancolia, é de sair do tempo, onde as coisas estariam ambas
preservadas e mortas. Assim, como pensar o investimento em um tempo futuro para
esses sujeitos? Seria através da sublimação que o sofrimento pela iminência da perda
poderia se amenizar? A sublimação forçaria ou promoveria a ―destacabilidade do
126

objeto‖ que lhes é deficiente, motivo pelo qual não conseguem fazer o trabalho do luto?
Ou ainda, seria através do reconhecimento alcançado com a sublimação que a ferida
narcísica poderia cicatrizar? O objetivo final de uma análise seria da ordem da
sublimação? Seria o luto do ideal todo poderoso o que permitiria que a sublimação na
melancolia viesse a reconfigurar a estrutura desse sujeito para formas mais livres e
criativas, a ―rir de si mesmo‖?
De acordo com Kupermann (2010, pp.202-203):

O trabalho humorístico de desidealização impõe-se, portanto, como o


avesso do incremento do potencial mortífero do superego promovido
pela idealização do objeto, oferecendo-se, efetivamente, como
paradigma do processo sublimatório. A guinada promovida pelo dito
humorístico do previsível desespero paralisante para a elaboração
criadora pode ser ilustrada pelo refrão popular: seria trágico... se não
fosse cômico.

Assim nos perguntamos mais uma vez: o que permite a um sujeito fazer humor e a
outro ficar petrificado na resignação melancólica? Para Kupermann (2003), o elemento
diferenciador também estaria ligado ao modo de identificação. Seria preciso identificar-
se somente ―até certo ponto‖ com o pai, índice mínimo que mitigaria a força e a tirania
do superego.
Mijolla-Mellor (2011, p.47), por sua vez, parece apontar para uma positividade do
trabalho de sublimação a partir do momento em que o ideal do eu possa ser relativizado:

O movimento de restabelecimento ou de reconstrução do ego dentro


do ego constitui um modelo fecundo que dá conta tanto do luto
necessário em relação ao ideal como trabalho que se segue quando o
ego pode se propor ao amor do superego lhe dizendo: "Veja, você
pode me amar, me pareço de tal forma coma a imagem ideal de ti
mesmo que você perdeu..." Mas a diferença de formato vem do fato
que não é ele, mas o que ele faz, ou melhor, dizendo o que ele
busca nessa aliança, mas que ainda não é possuidor, que o ego se
propõe ao superego como objeto de substituição. (Grifos da autora)

Nessa via de entendimento, a possibilidade de reconstrução do eu viria através do


luto do ideal todo poderoso, o eu se ofereceria ao superego como uma criança se deixa
cuidar pelo pai. Contudo, sabemos que essa negociação feita entre as instâncias
psíquicas compromete o eu a ficar numa posição de precário equilíbrio entre as
exigências do id, do Superego e da realidade externa. Quando o eu se oferece como
objeto de amor para o id (que é a raiz do superego), ele está se colocando contra os
127

objetivos da pulsão de vida, como nos diz Freud em ―O ego e o id‖. Destacamos uma
importante pergunta para se compreender a escrita de Ana C.: estando o sujeito
identificado com o objeto perdido, o que encontraríamos no produto sublimatório seria
o eco da voz desse objeto? Ou seria a sublimação que permitiria a elaboração do luto,
promovendo uma satisfação libidinal que reconstitui a reserva de libido narcísica?
Encontramos esperanças de um destino menos sombrio nas palavras de Schneider
(1990, pp.408-409):

Os melancólicos são grandes otimistas. Sob uma constante


depreciação do presente e uma rejeição exasperada do passado, eles
entretêm a secreta esperança de um futuro verdadeiramente novo. Não
conseguem separar as coisas, na parte da desilusão que reconhecem
nas coisas a fazer (agenda) uma repetição do irremissível (actum
agere), e, na manutenção da palavra, o dizer do já dito. (dictum
dicere). O melancólico carrega consigo uma ilusão pela qual não ficou
de luto, uma ilusão em oco, a de uma palavra nova em folha, que
falaria de um mundo novo em folha, bem verdadeiro, bem
meu. (Grifos nossos)

Lembramos aqui da busca incessante de Ana C. por uma palavra única. Pensamos
que é, então, com o modelo do trabalho de luto e de melancolia que iremos entender as
diferentes implicações do processo criativo.
Na sublimação, há o tempo do investimento, do desinvestimento e do reinvestimento.
O primeiro é o momento de expansão da energia libidinal para um objeto do mundo
externo, isto é, uma resposta, um destino para a força da pulsão que busca em que se
satisfazer. Devemos considerar, então, que é preciso haver uma energia inicial, um
narcisismo primário para que, depois, por transbordamento da libido, ou uma vontade
de expansão (seriam diferentes?), o eu emita seus ―pseudópodes‖ – na metáfora do
psiquismo como uma mônoda amebóide – para alcançar este objeto do mundo externo.
Subsequentemente, temos o momento de retirada do investimento feito a tal objeto,
uma dessexualização ou desligamento da libido vinculada a ele. É aqui que localizamos
o ―trabalho de luto‖, o qual faria uso da potência de desligamento, de desobjetalização
da pulsão de morte. Será, portanto, através da pulsão de morte que a energia, antes
investida no objeto externo (ou em uma representação, uma ideia), ficará livre e irá se
recolher no eu.
É aqui, nessa segunda fase, que acreditamos estar a fonte dos diferentes modos de
sublimação. O que as diferenciaria seriam as maneiras como se processarão o trabalho
de luto e o trabalho de melancolia. Entenderemos que, nos dois casos, a energia que
128

retorna ao eu traz consigo traços do objeto abandonado, bem como as características do


vínculo que se estabelecia com tais objetos.
No entanto, o que percebemos é que a escolha de objeto está diretamente interligada
ao tipo de composição subjetiva. A escolha objetal de tipo narcísico revela que o eu
precisa de um objeto que o espelhe, que garanta sua existência. A problemática
identitária entra em jogo, uma vez que a retirada da libido desses objetos pode incorrer
em uma identificação narcísica, típica da melancolia – como vimos anteriormente. O
que se observa é que o trabalho de luto, o qual seria necessário para a próxima etapa do
processo sublimatório, ficará comprometido já que desfazer-se do objeto desfacelaria
aquilo que garante a unidade do eu. Dessa forma, o dolorido trabalho de luto
intensificaria a ferida narcísica ou a fragilidade do eu que precisa de um duplo pra
existir. Como ficaria, então, o processo sublimatório quando o trabalho do luto não
acontece como esperado (um desligamento gradual do investimento no objeto)?
O segundo momento da sublimação, quando a libido volta ao eu, poderia levar a uma
espécie de contaminação ou envenenamento do eu pela pulsão de morte que é liberada
pelo próprio processo. Se a libido que mantém a unidade do eu possui pouco poder de
resistência, a interferência da pulsão de morte poderia fragilizar ainda mais os
elementos que o compõem, fazendo com que outros mecanismos defensivos capazes de
evitar ou conter a despersonalização e a desintegração do eu sejam necessários. Como
sabemos, a identificação narcísica é um desses mecanismos, trazendo para o interior do
eu o objeto ao qual deveria ter-se desvinculado. As consequências dessa problemática
irão aparecer no terceiro momento da sublimação, o reinvestimento libidinal a um outro
objeto destituído de seu caráter sexual (embora saibamos que ele está relacionado ao
primeiro), objeto compartilhável com os outros membros da cultura. No último tempo
da sublimação a problemática da fusão, desfusão e refusão pulsional, bem como a
identificação e desidentificação ocupam a centralidade da discussão. Mesmo quando o
trabalho de luto é bem realizado iremos perceber a influência do objeto que foi
sublimado. A sublimação aqui seguiria o modelo do sonho e seus processos primário e
secundário, onde veríamos a deformação, o disfarce e o tratamento estético daquilo que
irá reaparecer então transformado, burlando a censura. Agora, quando o ―trabalho de
melancolia‖ se faz necessário, pensamos que a criação ou a transformação presente no
processo criativo se mantenha muito mais próxima desse objeto identificado
narcisicamente ao eu. A criação, nesses casos, teria uma função importante de
espelhamento, de suporte identitário, de composição de subjetividade. Talvez nos
129

aproximemos aqui do que Klein (1940) entendia como sublimação, ou seja, ela estaria
ao lado das reparações que o eu faz ao objeto de amor, sempre ambivalente.
Acreditamos que alguns tipos de sublimação deixam o ego mais exposto ao trabalho
de pulsão de morte. O que permitiria ou não uma refusão pulsional fora da ordem do
masoquismo seria o ―tempo de elaboração‖ do processo sublimatório. A especificidade
da sublimação na melancolia está referida à intensidade de investimento no objeto. O
eu melancólico, contaminado pela ―bílis negra‖, não pode se privar do prazer
encontrado no investimento narcísico ao objeto. Novas identificações narcísicas seriam
precipitadas pela necessidade de recolher para si o máximo de libido para contrapor
aquela que se esvai. Na melancolia, o trabalho do luto necessário à sublimação fica
suspenso no tempo, uma vez que o sujeito entra em conflito entre abrir mão do objeto
investido em função de outro investimento que poderia ser prazeroso, o qual, porém, é
percebido como uma nova possibilidade de abandono. Pontalis (1991, p.143) nos fala
sobre os efeitos da separação do objeto:

Separar-se, desunir-se do objeto e de si, desligar-se do semelhante ao


idêntico, medir incessantemente a distancia entre a coisa possuída e a
palavra que a designa, e que ao designá-la diz de imediato que ela não
está ali. Dessa distancia, por sua vez, tentamos fazer uma coisa.
Procuramos provas de que ela poderia, de que deveria não ter-se
produzido, de que nos fez sofrer um prejuízo que não temos como
tolerar. Queixamo-nos de todas as separações de que fomos vitimas.
Não nos cansamos de fixá-las no tempo: uma partida, uma morte, uma
negligencia – tantos abandonos, outras tantas ofensas. Conferíamo-
lhes uma imagem e um lugar: uma casa imóvel de seus odores, que já
não existem; um olhar de mãe que se voltou para outro lugar (pior:
para dentro dela mesma, onde não estávamos); um nadinha qualquer
que, para nós, era tudo de que precisávamos.

Sabemos que a representação está sempre deslocada do real em diversos níveis,


impostura que o melancólico denuncia; não se pode enganar uma demanda através de
uma presença que não está lá – a alucinação. A fragilidade da constituição desses
sujeitos nos leva a pensar que num primeiro momento a sublimação pode funcionar
como um remédio para a dor de existir. Entretanto, são trazidos à tona, através da
sublimação, tanto conteúdos da memória que são representação, quanto aqueles que se
mantiveram apenas como percepção, como ―representação-coisa‖. Conteúdos
recalcados emergem no processo sublimatório, o que, além de obrigar o sujeito a se
confrontar com esses conteúdos que podem ser disruptivos, ajudam a somar a
quantidade de elementos iatrogênicos a ele. Vemos o contorno de um modo masoquista
130

de composição subjetiva, que encontrou uma saída através da inversão da economia


psíquica que esperaríamos encontrar, evitar o desprazer e a dor e buscar a satisfação.
Como seria possível promover a reinversão desse quadro?
De acordo com Freud (1924, p. 200),

O prazer e o desprazer, portanto, não podem ser referidos a um


aumento ou diminuição de uma quantidade (que descrevemos como
‗tensão devida a estímulo‘), embora obviamente muito tenham a ver
com esse fator. Parece que eles dependem, não desse fator
quantitativo, mas de alguma característica dele que só podemos
descrever como qualitativa. Se pudéssemos dizer o que é essa
característica qualitativa, estaríamos muito mais avançados em
psicologia. Talvez seja o ritmo, a sequência temporal de mudanças,
elevações e quedas na quantidade de estímulo. Não sabemos. (Grifos
nossos)

Uma das variáveis importantes para observarmos o que compõe essa economia
psíquica, a qualidade estética que Freud suspeita estar envolvida na fusão e desfusão, é
o tempo de resposta do objeto (ambiente) aos apelos do pequeno sujeito. É a
constatação da morte que gera a noção de temporalidade e, para saber-se vivo, é preciso
que um outro ofereça cuidados, um espaço psíquico, uma voz e um olhar capaz de
reconhecer no corpo que pode ser apenas carne, um sujeito.
Freud (1950[1895]), ao propor a ideia de uma primeira experiência de satisfação, já
inclui o tempo nessa dinâmica psíquica. Retomemos, por exemplo, a primeira mamada
mítica: ela seria um ponto de partida, a primeira experiência que imprime traços e
ranhuras no aparelho psíquico. O apaziguamento da fome e do desconforto provocado
pelas necessidades vitais básicas produz uma marca, um prazer, que será buscado
incessantemente. O tempo entre a primeira mamada e o retorno da fome leva o pequeno
sujeito a buscar as primeiras impressões daquilo que trouxe saciedade, alívio, nutrição,
conforto – o que propiciou uma descarga da excitação que é seguida de prazer (no
modelo da primeira tópica). A experiência de satisfação com o objeto que ainda não se
sabe externo ou interno reaparecerá sob a forma de uma ―alucinação‖. Essa seria a
tentativa arcaica de representação do objeto que deveria retornar e atender às exigências
do recém-nascido. Para Winnicott (1994), esse momento compõe o cuidado da mãe
suficientemente boa, que irá buscar adequar-se aos ritmos e ―especificidades‖ do bebê
de modo a satisfazê-lo, mas deve também ser capaz de suportar sua angústia, a sua
frustração e a de seu filho, oferecendo recursos psíquicos (nomeação, cuidado,
pensamento, metabolismo das emoções) que permitem que o psiquismo em formação
131

seja colocado em marcha pela necessidade de representação das experiências, para que,
aos poucos, ele possa interagir com o ambiente e se comunicar com ele.
Convocamos aqui a noção winnicottiana da experiência de ilusão-desilusão, em que
o objeto é, ao mesmo tempo, criado e encontrado: esta alucinação que busca recriar o
objeto de satisfação deveria ser logo acompanhada pela apresentação do mesmo (no
caso do bebê, o seio) pela mãe, reforçando no bebê a sensação de existência no mundo.
Nessa primeira tentativa de sublimação, o objeto que fez a sua marca – que traçou
caminhos de ―facilitação‖ – será relembrado, mas a recuperação dessa ―memória‖
implica necessariamente uma transformação e uma perda. Segundo Freud (1950[1895]),
o objeto é na verdade reencontrado, uma vez que a busca que teria o poder de apaziguar
todas as dores, é o que move o desejo, faz decolar o psiquismo. Com Rosenberg (2003)
entendemos que quando o objeto que nutre, que criou uma certa constância e
expectativa no bebê, falha, vemos aparecer uma ―masoquismo guardião de vida‖ como
forma de tornar suportável o desprazer (que deveria ser apenas temporário) trazido pela
frustração. A capacidade de adiamento, de substituição, de renúncia à satisfação
imediata é fundamental para a constituição psíquica. Como vimos, a investida da pulsão
de vida no momento de desprazer permitiria o adiamento traria uma capacidade de
suportar o tempo que levará para o objeto retornar – no modelo proposto, a próxima
mamada.
Contudo, entendemos que haveria um ―tempo ótimo‖, um ritmo próprio a cada
indivíduo que determinaria suas singulares necessidades – sendo esta a chave de
entendimento necessária à função da mãe suficientemente boa, que não sabem que
protegem o filho de seu próprio inconsciente. A tarefa da maternagem é mais complexa
do que pode a princípio parecer, a ansiedade de uma performance perfeita pode
distanciá-la de suas emoções contraditórias, o que pode produzir formações reativas que
comprometerão a capacidade de introjeção do bebê. De acordo com Mannonni (1992,
p.202),

A mãe ansiosa tem por modelo a "boa mãe", modelo impossível de


atingir, e com toda razão: pois o que é uma boa mãe? Em todo caso é
uma mãe que jamais tem sentimentos hostis para com os filho. Na
mãe idealizante, é o filho que receberá a carga esmagadora de
assemelhar-se ao filho modelo. [...] A mãe idealizante, sempre
decepcionada, vê-se obrigada a sentir que odeia seu filho e a entrever
o desejo de morte, o que a coloca em luta contínua consigo mesma
[...].
132

Queremos colocar em relevo o intervalo entre o surgimento da necessidade e o


aparecimento do objeto (a mãe), localizando aí a capacidade de esperança e,
consequentemente, de desesperança, elementos centrais na vida do sujeito.
Quando pensamos com Winnicott (1975) que o espaço transicional seria o lugar onde
se processa o criar, uma perturbação desse espaço incidiria diretamente sobre o ato de
criação. Pensamos que algumas qualidades do processo criativo são determinadas pelas
primeiras experiências com os objetos. Kupermann (2008) ressalta uma dimensão do
criar que necessita, sempre, de uma energia destrutiva, da agressividade para desfazer os
modelos rígidos previamente determinados e poder, então, fazer outra coisa com esses
elementos, esses fragmentos. A pulsão de morte seria essa energia destruidora
fundamental para a transformação do objeto, da matéria. O processo criativo poderia
então operar dentro de um espaço que seria mais ou menos expandido. Primeiro o
sujeito deveria ter confiança suficiente no mundo externo que o permita destruí-lo para
que depois ele seja reconstruído em outros moldes (em palavra, linguagem). Contudo, o
reinvestimento libidinal daquilo que ficou fragmentado precisa dar-se também pelo
modelo da mencionada temporalidade envolvida na satisfação trazida pelo objeto
cuidador.
A mencionada alucinação, a imaginação que recria o objeto perdido é seguida pelo
desprazer da urgência advinda da necessidade. O ―masoquismo de vida‖ aparece em
auxílio ao eu para que seja possível suportar o desprazer. Contudo, se o objeto não
aparece, o tempo entre a urgência e a satisfação ultrapassa os recursos sublimatórios do
sujeito. A consequência desse desencontro é a desesperança – uma das marcas da pulsão
de morte –, a descrença de que o objeto irá retornar. Tragicamente, como último
recurso psíquico – se ainda podemos considerá-la como recurso –, a desesperança surge
para garantir que o sujeito não se frustre tanto de uma próxima vez. É a certeza de que
alguém virá que permite ao sujeito expandir cada vez mais esse espaço transicional que
é criado entre o mundo interno e o mundo externo. Winnicott sugere que o padrão dos
fenômenos transicionais começam a surgir por volta dos quatro meses e duram até cerca
do primeiro ano de vida. Sobre eles Winnicott (1975, p.14) nos diz

Introduzi os termos ‗objetos transicionais‘ e ‗fenômenos transicionais‘


para designar a área intermediária de experiência, entre o polegar e o
ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a
criatividade primária e a projeção do que já foi introjetado, entro o
desconhecimento primário de dívida e o reconhecimento desta.
133

O espaço transicional permite a expansão dos recursos psíquicos que protegem o


sujeito da ―dureza‖ e concretude do mundo externo, como a fantasia, a criatividade e a
imaginação. Contudo, vemos que esse mundo é também o princípio de realidade que
retira o sujeito de suas fantasias e pensamentos extremamente aterrorizantes e
angustiantes. A desesperança, pensamos, neutralizaria a fertilidade do momento
alucinatório anterior, fazendo com que, progressivamente, o pensamento e os modos de
relação com os objetos sejam cada vez mais concretos, sem possibilidade de
relativização, retradução ou elaboração.
No lugar da alegria descuidada da criança, vemos a possibilidade da invasão da
pulsão de morte que irá intensificar a voz tirânica do superego, contaminar e desfazer os
elos narrativos construídos com as representações. Se tomarmos o exemplo do humor
para compreender o mecanismo dinâmico do conflito que ora buscamos descrever,
vemos, como ressalta Kupermann (2003), que a função do superego pode ser
radicalmente outra da que costumamos fazer referência. O superego trata o eu como
uma criança que precisa de acolhimento e as coisas que pareciam penosas ou vexatórias
trivializam-se. Talvez o que observamos no humor seja o exemplo do que o mecanismo
maníaco busca alcançar, uma supressão da força tirânica do superego e uma
recomposição do ego que foi tão diminuído, fragmentado, esvaziado.

Se o objetivo de Eros é estabelecer sempre maiores unidades, o


fragmento seria, então, tributário da pulsão de morte. ―Eros estabelece
unidades que lhe sirvam como elementos ainda ―maiores‖ unidades
em um movimento integrador que implica uma temporalidade, já que
é ―sempre‖ renovado‖. (ROSENBERG, 2003, p.181)

Mas se o objetivo final da pulsão de morte é a destruição da vida, também é verdade


que esse objetivo só pode ser realizado através da desconstrução e da quebra das
relações entre as unidades construídas pela pulsão de vida. A desconstrução de uma
unidade faz com que encontremos os elementos-unidades que a constituíam e iremos
observar que os dois movimentos, o progressivo e o regressivo, só podem ser realizados
com a participação das duas pulsões, juntamente com a intrincação pulsional que é
sempre presente, necessária.
A estética fragmentária é uma das características marcantes da poesia de Ana C. e
também a encontramos num dos primeiros poetas modernos, Baudelaire, que é citado e
traduzido por Ana C. A noção de alegoria que aparece em sua poesia parece ser uma
figura capaz de traduzir a relação do melancólico com a palavra. O filósofo Benjamin,
134

em seu trabalho sobre o barroco alemão – estética que realizaria ao máximo a tensão
melancólica – expõe as implicações do apelo alegórico:

esta é justamente a essência da profunda meditação melancólica: seus


objetos últimos, onde ela acredita, de forma mais total, assegurar-se
do mundo depravado, transformando-se em alegoria, preenchem e
negam o nada no qual se apresentam, da mesma forma que, no fim, a
intenção não se mobiliza na contemplação fiel das ossadas, mas volta,
infiel, para a ressurreição. (BENJAMIN apud KRISTEVA,1987)

Vemos nessa figura, novamente, o negativismo melancólico descrito por Lambotte


(1997) e a impossibilidade do luto. Acreditamos que a análise feita por Kell (2009)
sobre Baudelaire está em sintonia com a que fazemos de Ana C.. De acordo com ela:

Por meio do recuo poético à alegoria, que evoca os fragmentos do


objeto perdido não pelo uso da metáfora, mas da metonímia, o poeta
aborda a dor provocada pela passagem do tempo. A passagem voraz
do tempo é presença constante na poesia de Baudelaire. [...]A
observação freudiana conduz a uma pergunta em relação ao projeto
estético de Baudelaire: teria ele escolhido a alegoria como forma
predominante de expressão poética por razões formais, ou sua
compulsão simbolizadora (―tout pour moi deviant allégorie‖) pode ser
considerada como tentativa de cura para o vazio depressivo em que o
poeta já estava, de antemão, instalado? A pergunta, embora
irrespondível, merece ser formulada: a melancolia teria sido, em
Baudelaire, o motor de sua estratégia poética ou o custo subjetivo de
seu projeto estético de dar conta da modernidade por meio da
emancipação frente as vivências, e consequentemente da destruição do
imaginário? (KELL, 2009, p.184-185, grifos nossos)

Sabemos que o próprio poeta Baudelaire se considerava um melancólico e


acreditamos que seu fazer poético não está desvinculado dessa sua condição. Fazemos
coro à pergunta já feita por Carvalho (2003) e agora por Kell (2009) como o projeto
estético do artista interfere no seu psiquismo? Novamente, Kell nos ajuda a pensar essa
questão:

Usar o símbolo no lugar em que deveriam estar as representações de


coisas: seria o caso de perguntar se, para esses depressivos que se
protegem do vazio ao se interessar por grandes estruturas simbólicas,
tudo também se torna alegoria. No caso de Baudelaire, a poesia foi o
terreno do predomínio do simbólico sobre as formações do
imaginário. O risco de tal empreitada não é estético: é psíquico.
(KELL, 2009, pp.184-185, grifos nossos)
135

Aqui reconhecemos a lógica circular, que sai da tentativa de representação do objeto


para o encontro do objeto na palavra enquanto coisa. Este risco psíquico pode ser
também exposto nos seguintes termos, como nos aponta Rosenberg (2003, p. 188):
―Quanto mais pulsão de vida é gasta defensivamente para opor-se à desconstrução e à
regressão vindas da pulsão de morte, menos ela é capaz de construção, de síntese e de
inovação‖. Lembremos que as duas classes de pulsão são conservadoras, mas ―quanto
mais a definição de pulsões se distancia do modelo dos instintos, mais as pulsões
adquirem um valor historicizante, isto é, de exigência incontornável de historicidade
dirigida à vida psíquica‖ (ROSENBERG, 2003, p. 185). De acordo com Freud, a
ligação é o objetivo de Eros, isto é, estabelecer sempre maiores unidades:

Uma das diferenças fundamentais entre as duas pulsões com relação


ao seu caráter conservador realiza-se na identidade do passado
conservado: quanto à pulsão de morte, trata-se de restabelecer um
estado anterior, um passado, idêntico àquele que existia, pela
destruição de tudo o que aconteceu posteriormente; no que se refere à
pulsão de vida, trata-se de conservar o passado integrando-os nas
organizações – unidades mais amplas, mesmo que essa integração só
possa acontecer à custa de certa transformação. Para a pulsão de vida,
a conservação do passado só pode se dar, portanto, por um movimento
integrador que é um passo adiante, uma expansão da vida que está na
natureza de Eros [...] (ROSENBERG, 2003,p.183)

Assim, na pulsão de vida há uma remanescência do passado no presente. A pulsão de


morte também representa uma tendência do passado em reinstaurar-se, isto é, ele
acrescenta a essa remanescência do passado uma espécie de resistência ativa que o
passado opõe ao seu desaparecimento.

Uma intrincação pulsional relativamente bem-sucedida torna assim


ativa e indestrutível a remanescência no presente. Podemos imaginar
que sem a pulsão de morte a potencialidade de ligação da pulsão de
vida teria a tendência não somente de transformar o passado, mas de
apagá-lo, reconduzindo assim a historicidade da vida psíquica a uma
mudança de ―presentes‖ puros e descontínuos, o que equivaleria a
uma anulação de seu valor historicizante (ROSENBERG, 2003, p.
184).

O panorama que se apresenta nos mostra a dificuldade da realização do trabalho de


melancolia, da mudança do tipo de investimento, que poderia ser entendida também
como um movimento progressivo, que pode enfim perceber o outro objeto como total.
Na segunda teoria pulsional Freud entende que a regressão é correlativa à desintrincação
pulsional. Em ―O ego e o id‖ (1923) Freud diz:
136

Para generalizar rapidamente, poderíamos supor que o sentido de uma


regressão da libido, por exemplo, da fase genital à fase anal, repousa
sobre uma desunião pulsional, e que, inversamente, o progresso da
primeira fase genital à fase genital definitiva tem como condição um
aporte de componentes eróticos.

De acordo com Rosenberg, ―se há uma fixação ao objeto é para impedir uma
desintrincação pulsional e, com ela, como vimos, uma regressão mais profunda‖.
(ROSENBERG, 2003, p.191) Aqui entenderíamos a relação de proximidade na
melancolia com o objeto primário que é fonte da dor psíquica. Ater-se a esse objeto –
fixação ao objeto e também ao modo de relação de objeto ( no caso da melancolia, oral
canibalista) – conservando-o no objeto sublimado, talvez seja ainda uma forma de
evitar uma desintrincação maior, essa regressão mais profunda. Segundo ele,

[...] o progresso de uma fase a outra está ligado a ―um aporte de


componentes eróticos‖. [...] mas vimos que, esse aporte de Eros-libido
não é o mesmo, dependendo de se impede a regressão ou se favorece a
passagem de uma fase à outra: isso acontece na economia interna da
pulsão de vida, na dialética interna entre Eros como (auto)
conservador ou Eros-libido, fazendo progredir nossas relações
objetais. [...] essa economia interna da pulsão de vida, que faz
prevalecer ou a característica anti-regressiva ou ainda a característica
progressiva do sentido pulsional das organizações psíquicas depende,
por sua vez, da economia da intrincação pulsional, isto é, da força
respectiva, em um dado momento, da pulsão de vida e da pulsão de
morte uma em relação à outra. (ROSENBERG, 2003, p.191-192)

Nos deparamos novamente com o limite da sublimação, limites que são impostos
pela relação dinâmica e econômica da fusão e desfusão pulsional.

Sabemos o que acontece quando investimentos demasiado maciços


absorvem a libido que se dirige ao objeto e esvaziam perigosamente o
eu de uma libido narcisista de que ele tem necessidade para se
defender dos ataques do interior; sabemos também o que acontece no
retorno maciço da pulsão de destruição do exterior, como na
melancolia. Essa condição paradoxal poderia ser traduzida por esta
fórmula: o ser humano só existe se consegue desviar suas pulsões de
seus alvos, ao menos em grande parte. É muito improvável que ele
possa existir se tiver demasiado sucesso nessa tarefa. (ROSENBERG,
2003, p.202)

Nessas patologias em que a violência e a morte espreitam, a identidade do eu está


ameaçada, por essa razão, seria falso dizer que é o eu que desvia uma parte da pulsão de
morte. O eu é ele mesmo o resultado de uma intrincação pulsional que irá condicionar
sua existência, como vimos em ―O problema econômico do masoquismo‖ (1924), Freud
137

fala da união pulsional antes de falar do eu. (Cf: ROSENBERG, 2003, p.201) Iremos
então pensar com o autor: ―Podemos colocar a questão de saber se a vitória final da
pulsão de morte não é o esgotamento dessa capacidade do eu, de desviar em proveito
próprio uma parte da pulsão de morte‖. (ROSENBERG, 2003, p.200) Talvez o autor
esteja dizendo que, a vitória da pulsão de morte é a ausência da capacidade
sublimatória.
Tomaremos a análise que Freud fez do escritor Dostoievski para investigar um pouco
mais o entrelaçamento da sublimação e pulsão de morte, para que, assim, possamos
passar para a análise da relação entre a escrita e a subjetividade no caso particular da
poeta Ana Cristina César.
138

4.1 Sobre Dostoievski, a culpa e a escrita.

Freud (1928[1927]), em sua análise sobre Dostoievski, nos mostra a relação


complicada do escritor com o jogo e a humilhação. O romancista, aparentemente, só
escrevia após perder tudo no jogo, quando parecia não haver mais saída. Ele implorava
a sua esposa para que o desprezasse, sendo que o ―jogo era para ele um meio de castigar
a si mesmo.‖ (FREUD, 1928[1927], p.220) Sua companheira percebia a existência de
um ciclo que se repetia, ela observara que a produção literária, somente o que podia
salvá-los da pobreza, não se realizava nunca com tanta naturalidade do que quando
tinham perdido tudo e entregado suas últimas economias ao credor.

Naturalmente, ela não compreendia a conexão. Quando o sentimento


de culpa dele ficava satisfeito pelos castigos que se havia infligido, a
inibição incidente sobre seu trabalho se tornava menos grave e ele se
permitia dar alguns passos ao longo da estrada do sucesso (FREUD,
1928[1927], p.220).

Para Freud, uma vez a culpa apaziguada, a satisfação pode sucedê-la, isto é, após
castigar-se no jogo a libido estaria livre para a satisfação através do processo
sublimatório da escrita. Mas nos perguntamos aqui, satisfação de qual instância? Do eu,
do id, ou do supereu?

Rosenberg (2003) pergunta se seria o masoquismo moral que tornaria possível a


criação nesse escritor. O apaziguamento da culpa seria sempre masoquista, assim,
algumas pessoas só suportariam sua culpa se em certos momentos de sua vida fosse
possível um investimento masoquista que o permitiria suportá-la e apaziguá-la.

No ―ciclo do jogo‖ de Dostoiévski, tivemos uma primeira fase em que


a satisfação do jogo e a culpa se seguem e são indistintas; uma
segunda fase de masoquismo moral na qual a satisfação é culpa
erotizada, e isso provavelmente porque a culpa é demasiado intensa
para ser suportada, a não ser que investida masoquistamente; uma
terceira fase, enfim, onde a culpa é seguida pela satisfação
sublimatória (ROSENBERG, 2003, p.47).

O caminho da agressividade dentro do aparelho psíquico talvez encontre na


―satisfação sublimatória‖ um outro modo de atuação mais sutil, clandestino, e também
mais mortífero. Clandestino porque fora da lei do princípio do prazer: evitar a dor e
buscar o prazer. Em Dostoievski, o masoquismo moral parece ser inerente ao processo
139

criativo. A curiosa dinâmica observada nos mostra que a criação só lhe era possível na
miséria. Será que os castigos – entre eles o jogo e a miséria – pagavam a dívida do eu
para com o Superego, permitindo a ligação da energia de morte através do masoquismo
deixando novamente livre a energia para a criação, para o investimento em outros
objetos? A escrita para Dostoievski seria o final do ciclo ou ainda faria parte deste jogo
mortífero e silencioso que estaria operando no interior de seu psiquismo? Isto é, os
ataques do superego, reforçados pela desfusão pulsional resultante da sublimação
promoveriam uma destruição lenta e subreptícia de seu mundo interno? Assim, as
palavras que ganhariam liberdade e seriam transformadas a partir dos conteúdos
psíquicos disponíveis ao escritor iriam aos poucos se aproximando do ponto do
indizível, onde a palavra encontra seu limite representacional, a palavra vira também
uma coisa com a qual ele joga. O jogo pelo jogo, o texto pelo texto, no final, talvez,
fossem a máxima punição – o (re)encontro com o não sentido, realizando, assim, o
objetivo da pulsão de morte.

A sublimação aparece como uma das primeiras saídas que nos vem à mente para a
necessária ―objetificação‖ que deveria ser produzida pelo trabalho de melancolia.
Contudo, vemos com Green (1983/1990, p. 258) que o objeto artístico também pode ser
investido narcisicamente: [...] não há então nada de surpreendente em podermos
encontrar no âmago da sublimação um objeto narcisista que se referiria pois, ao sublime
tal qual o eu o experimenta para o seu próprio prazer [...] Talvez por isso a escrita
funcione nesse limite tênue entre aquilo que pode curar e o que pode ferir, envenenar. A
palavra estará investida de modo distinto na melancolia:

a melancolia termina seu curso após certo lapso de tempo sem deixar
atrás de si alterações aparentes e grosseiras, caráter que partilha com o
luto. Neste, sabemos que o tempo era necessário para que fosse
executado em detalhe o comando da prova de realidade, trabalho após
o qual o eu pode liberar sua libido do objeto perdido. Podemos pensar
que a palavra está ocupada, durante a melancolia, por um trabalho
análogo; em ambos os casos, o processo escapa, do ponto de vista
econômico, a nossa compreensão (ROSENBERG, 2003, p.126).

Do ponto de vista topológico, temos que nos perguntar entre quais sistemas psíquicos
acontece o trabalho de melancolia. Freud (1917[1915]/2010, p.190) pergunta: ―dos
processos psíquicos dessa afecção, o que ainda se passa relacionado aos investimentos
objetais inconscientes abandonados, e o que relacionado a seu substituto por
identificação, dentro do eu?‖. Para ele, a resposta fácil e rápida seria
140

que a ―representação inconsciente (da coisa) do objeto é abandonada


pela libido‖. Mas na realidade essa representação é constituída de
inúmeras impressões singulares (traços inconscientes delas) e a
execução dessa retirada da libido não pode ser um evento
momentâneo, e sim, como no luto, um processo demorado, de lento
progresso. É difícil dizer se começa em muitos lugares ao mesmo
tempo ou se comporta alguma sequência determinada; nas análises
pode-se frequentemente verificar que ora esta, ora aquela recordação é
ativada, e que as queixas sempre iguais, fatigantes em sua monotonia,
têm origem numa fundamentação inconsciente, diferente a cada vez.
Se o objeto não tem para o Eu uma grande significação, reforçada por
mil nexos, então sua perda não é capaz de produzir luto ou melancolia.
Portanto, a característica de executar passo a passo o desligamento da
libido deve ser atribuída igualmente ao luto e à melancolia, baseia-se
provavelmente na mesma situação econômica e serve às mesmas
tendências. (FREUD, 1917[1915]/2010, p.191).

Somente quando um objeto possui um grande valor afetivo é que as manobras


melancólicas fazem de tudo para evitar a sua perda. A desafetação e a anestesia, as
quais muitas vezes caracterizam a afecção, se contrapõem à intensidade dos sentimentos
nutridos pelo objeto amoroso. Por isso, até mesmo a retirada da libido da representação
inconsciente do objeto está comprometida.

Exercitando os conceitos e dinâmicas discutidos até esse momento do trabalho, nos


dedicaremos agora à obra de Ana Cristina César.
141

Capítulo V – No entre-lugar do eu: a obra de Ana Cristina César

5.1. No interior da palavra

Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.


Memórias de Copacabana. Santa Clara às três da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
(CÉSAR,1982/1992, p.7)

Prosa, poesia, confissão ou escritura do eu? Não, biografia. Aqui, nossa preocupação
será pensar, através da sublimação, nos graus variados de proximidade com o que
chamamos de fonte pulsional. Contudo, não pretendemos afirmar o que seria necessário
para que o mergulho nas letras não seja um naufrágio. Inicialmente, acreditamos na
importância da contraposição, a qual elenca, de um lado, o diário, os cadernos
terapêuticos e a adução técnica, e, de outro, a poesia, e a tradução literária. No entanto,
tais limites parecem ser quebrados e Ana C. transforma tudo em ficção. Quanto aos
temas e motivos que percorrem sua poética estão o silêncio, a morte, o mar e o nada. Ao
lermos a poeta, temos a impressão de que seria possível reconstituir os passos que
marcaram toda sua trajetória, culminando em seu suicídio. Em um texto publicado um
ano após a morte de Ana C. sua, por exemplo, Heloisa Buarque de Hollanda
(1984/2013, p.451), sua amiga e mentora, escreve: ―Enterneço-me com a amiga,
embaraço-me com a obra que, agora, desdobra-se em recorrentes bilhetes, avisos, sinais.
Sofro com a descoberta de uma anotação escrita no hospital pouco antes de sua morte:
estou sirgando, mas o velame foge‖. Desse modo, compreendemos, à luz de Sontag
(apud. VIEGAS, 1998, p.41), que ―não se pode interpretar a obra a partir da vida, mas
pode-se, a partir da obra, interpretar a vida‖.
A estreia literária de Ana C. aconteceu muito cedo: aos 7 anos teve suas primeiras
poesias publicadas no ―Suplemento Literário‖ de um jornal carioca. Qual teria sido o
efeito dessa relação tão íntima e intensa com a palavra escrita desde os primeiros anos
de vida? A partir da biografia podemos identificar que a poesia é o modelo privilegiado
de comunicação com sua mãe, o que se reproduzirá em seu estilo de escrita, na
multiplicidade de vozes que parecem buscar uma conversa ao longo de seus versos. Seu
142

biógrafo, Moriconi, nos diz que, no início, a poesia era arte ouvida, como aquela, de
cunho religioso, lida e contada na igreja que sua família frequentava. Segundo ele,

ditava seus poemas à mãe, que os punha em forma caligráfica. A mão


da mãe era o veículo pelo qual Ana podia expressar-se.[...] Adulta,
repetia sem cessar o movimento de escrever, como um tique nervoso.
Gesto de escrever com mão vazia, fechada sobre si mesma como se
empunhasse o lápis, percorrendo a superfície que estivesse mais
próxima, mesa de bar, espaldar da cadeira, as próprias pernas.
(MORICONI, 1996, p.75)

Sua identidade de poeta a deixava em conflito, como se estivesse presa a ela e não
pudesse escapar. Em um poema de 68, aos16 anos, Ana C escreve:

Neste interlúnio
Sou um dilúvio ou me afogo.
[...]
Neste interlúnio
Sou fagulha ou hulha inerte
Enorme berne entra corpo adentro,
Poetas quietos entreolhando
Coisas coisas que falecem
Neste interlúnio,
Sou coisa ou poeta. (CÉSAR,1998,p.32)

Moriconi (1996) confirma nossa impressão de que a literatura havia se tornado um


objeto ambivalente para Ana C., o qual, ao mesmo tempo, a movia e aprisionava. Ele
diz:

Mas o fato é que viveria sempre, até morrer, o conflito entre o tesão
por uma vida literária mais próxima ou inteiramente mergulhada no
ritmo nervoso dos jornais e da profissionalização editorial. Quando
estava na universidade, sonhava sair dela. Quando estava fora, queria
voltar. (MORICONI,1996, p.26)

Nossa expectativa era encontrar uma implicação diferente no investimento de cada


modalidade de escrita, mas vemos que no processo de composição da maioria deles, há
uma exigência extrema de perfeição e um grande pavor do fracasso. Ainda nas palavras
do biógrafo:

Redigia seus artigos após longos períodos de fermentação e estudos


desproporcionalmente prolongados diante do tamanho e do nível de
exigência efetivamente esperado deles. Mas isso mostra a importância
que consumiam para a autora. E o grau de exigência que se colocava a
143

si própria. Vivia atormentada pelo senso de responsabilidade. A cada


tarefa intelectual com que se defrontava, apavorava-se com a
possibilidade do fracasso (MORICONI, 1996, p. 27).

Os dois períodos que esteve na Inglaterra foram de intensa produção. A primeira


viagem em 1969-70 tratou-se de um intercâmbio pelo Rotary, e, a segunda, em 1979-80,
teve como motivo um mestrado sobre teoria e prática de tradução literária. Na
correspondência que mantinha com amigos no Brasil, temos notícia do que estava
lendo, os filmes aos quais assistia e os relacionamentos que mantinha. É nesse período
que produz um caderno de escritos e desenhos, na tentativa de, talvez, ―sair da pauta‖,
como diz ela. Percebemos ali uma forte ligação entre os temas de suas cartas, poemas e
tradução. Suas aventuras amorosas, as descobertas acadêmicas, a melancolia e a solidão
dão o tom de seus escritos. Lemos:

Fico quieta.
Não escrevo mais. Estou desenhando numa vila
que não me pertence.
Não penso na partida. Meus garranchos são hoje
e se acabaram.
Perdi um trem. Não consigo contar a história completa.[...]
Eu não sei focar ali no jardim, sobre a linha do seu rosto, mesmo que
seja por displicência estudada, a mulher difícil que não se abandona
para trás, para trás, palavras escapando, sem nada que volte e retoque
e complete.
Explico mais ainda: falar não me tira da pauta;
Vou passar a desenhar; para sair da pauta
(CÉSAR,1980, p.95)

Em uma carta para Clara Alvim, Ana menciona como seus pais foram brilhantes na
infância e criaram os filhos com grandes expectativas, utilizando-se também da figura
do cais, a qual se repete inúmeras vezes em sua obra:

[...] Estou percebendo agora que sou briguenta, faço birras, apostas,
leilões... Percebo e continuo a querer brigar: minha mãe (e meu pai
também) foram crianças/jovens extremamente brilhantes (minha mãe
foi 1ª aluna de neolatinas, ganhou bolsa pra França; meu pai era
fodíssimo, passava fome, mas já aos 6 anos ganhava bolsa no
primário, tendo aprendido a ler sozinho, na bíblia, acompanhando as
leituras diárias dos cultos da família protestante[...] Foram, mas hoje
são classe média arrochada, trabalhando demais. Criaram pelo menos
dois em três filhos para gênio, pensaram(pensam?) ―você vai
continuar e conseguir o que eu tive vontade, mas não capacidade...‖
Os três filhos precisam de muita análise, só dois estão fazendo (não
exatamente os dois de cima).
144

... imagino poemas à beira do cais... sempre o cais, não há despedidas


no aeroporto (CÉSAR,1999,p.19).

Ana C. anuncia, desde o início, a vontade de que suas cartas fossem publicadas.
Fazia diversas versões e as reescrevia várias vezes, exercitando o estilo íntimo e
confessional, dando tratamento estético à fala que pedia contato. Para ela ―escrever
cartas é mais misterioso do que se pensa‖ (CÉSAR, 1999a, p.202).
Em Cenas de abril (1979) lemos diversos trechos de um eu lírico que se remói: ―Falo
o tempo todo em mim‖; ―aguardo crises agudas de remorsos‖; ―Querido diário:
vergonha ricocheteia‖ (CÉSAR, 1979/1992). É neste livro que encontramos a série de
poemas ―Último adeus, I, II e III‖. No mesmo ano, publica Correspondência Completa
(1979/1992) um livreto no qual escreve uma longa carta para alguém que não
conhecemos e assina como Júlia, uma das poucas personagens que cria, contudo, cita
Gil, seu namorado da época:

Não estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura,


entende?62
Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para
desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada
verso oculta sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o
hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos. Já Mary me lê
toda como literatura pura, e não entende as referências diretas.
(CÉSAR, 1980, p.90)

Apesar de não ser possível a confissão dos sentimentos, eles estão lá, escamoteados
pela técnica. Numa carta de dezembro de 1979, sonha com sua maior interlocutora e
figura materna, Heloísa Buarque de Hollanda, professora responsável por lhe dar
projeção nacional ao incluí-la na antologia 26 poetas hoje, de 1976:

Meu pai embarcou hoje. Fiquei sozinha e católica. [...] Queria mudar
tudo na minha cara. Sonhei que você era minha mãe. Há crises de
identidade etc. Não ligo mais para os Grandes Monumentos da
História, nada me emociona, esqueci o frisson europeu, bola![...]
Estou bem. SOS. Beijos. Ana. (CÉSAR,1999b, p.84, grifos nossos)

62
Cunha Lima (1993) investiga de quais poemas e autores são tomados, versos, títulos e estrutura. Aqui a
referência vem de Manuel Bandeira, do poema ―O impossível carinho‖: Escuta, eu não quero contar o
meu desejo/ Quero apenas contar-te minha ternura/ Ah se em troca de tanta felicidade que me dás/ Eu
pudesse repor/ – Eu soubesse repor – / No coração despedaçado/ As mais puras alegrias de tua infância.
145

Já em fevereiro de 1980, conta que adotou de vez seu ―nome de guerra‖: Ana C. Lá
também comenta o que escreveu num ensaio sobre Caetano Veloso: ―a poesia quer é
virar prosa; o ensaio quer virar poesia‖. Neste momento, ela está lendo ―Inveja e
Gratidão‖ (1946), de Klein, e diz: ―é aterrador. Tomo cada linha ao pé do ouvido e fico
paralítica de medo‖ (CÉSAR, 1999b, p.40). Em março, comenta sua correspondência
com Clara Alvim, indicando momentos de inércia e depois intensa produção:

Respondi a Clara: fui razoavelmente sincera e contei que estava


fazendo NADA (o nada assumia uma dimensão quase filosófica, ah,
ah), e que na certa ia continuar a fazer nada, que eu era
constitucionalmente uma escritora, mas nunca seria de verdade, sei lá
o que mais, ah sim, que a modernidade me perseguia e eu gostava do
cantinho inglês, aventuras apenas ao alcance da mão, e uma preguiça
divina, enfim...[...]
[...] depois de um lapso no ócio eu tinha virado uma suave máquina de
produção, decidida a trazer um caldo precioso todo escrito em
inglês...(CÉSAR,1999b, p.46)

No ano seguinte, vieram as publicações de Porthsmouth- Colchester (1980) e Luvas


de Pelica (1980) – todas elas editadas e diagramas pela própria autora. Ela fala como
escrever pode provoca remorsos:

Passei a tarde toda na gráfica. O coronel implicou outra vez com as


ideias mirabolantes da programação. Mas isso é que é bom. Escrever é
a parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro.
Vou fazer um curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do
texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O prazer
é anterior, boboca‖(CÉSAR,1979,p.89).

O primeiro tratou-se de um pequeno livro, no formato de caderno de desenho, em


que a poesia parece ter sido, de certo modo, apresentada naquelas formas que sugerem
um jogo de decifração. Ela tenta achar ―a medida exata entre o acaso e a estrutura‖, e
anota: ―Quero que você fique olhando, reconhecendo cada tracinho‖ (CÉSAR,1979).
Para as figuras que aparecem, ela apresenta uma legenda que nos leva a tentar
identificar as possíveis derivações de sentido para as silhuetas. O caderno escrito em
inglês e português possui uma textura diferente e a impressão reproduz sua letra cursiva,
o que nos aumenta a sensação de intimidade. Ali, é possível considerar tanto os
desenhos quanto o trabalho estético como uma forma lúdica, quase infantil, de escrita.
Lemos: ―Less afraid but still cautious‖ (Com menos medo, mas ainda cautelosa). Neste
146

caderno, Ana C. ensaia o que podemos chamar de uma tradução literária de suas
próprias palavras, a qual por vezes, leva a uma completa alteração do sentido. Por
exemplo, ―surrupiando‖ – que significa tomar posse de algo que não é seu – é traduzido
por ―disappearing into nothingness‖ – que, em uma tradução livre, significa
―desaparecendo no nada‖. Um desenho que vira palavra que gera ainda outra. Será que
traduzir-se poderia ter algum efeito terapêutico? A possibilidade de usar de outro
vernáculo e outra gramática ampliaria a chance de nomeação dos afetos que buscam
expressão? Este mis en abyme, promoveria mudanças de perspectiva que gerariam
novas experiências de elaboração para o eu?
Em certo momento, Ana C. pensou em rasgar todos os livros e fazer com eles uma
colagem. Mais tarde, ela revela:

[...] Se acalmou um pouco o ataque de artes plásticas. Conheci uma


menina que está expondo uma coisa genial no Institute of
Contemporary Arts, quadrinhos que sobem pela parede da escada com
pedaços incompletos dela mesmo.[...] fiquei lendo Caderno B,
especialmente sinopse de novela, se você tira o que vem antes ou
depois fica mensagem secreta para iniciados, lendo essas sinopses
descobri minha teoria da literatura. (CÉSAR,1999b, p.80)

O segundo livro, Luvas de Pelica (1980), é um breve diário de viagem, bastante


peculiar, que, com apenas 33 páginas, ao invés de descrever o desenvolvimento de uma
esperada sucessão de movimentos e descobertas, expressa imobilidade, o não ir, ou
melhor, nas palavras de HOLLANDA (apud. CÉSAR, 2013, p. 443), ―o exercício de
escrever inúmeras cartas para o ponto de partida, a empenhadíssima construção de um
espaço silencioso, em vez da conquista e da exploração do mundo‖ (HOLLANDA apud
CÉSAR, 2013, p.443). Em outra conversa com sua amiga, lemos:

Eu fiz uma versão da minha história bem sem conteúdos para você.
Mas eu tenho tara por conteúdos, só a técnica é capaz de me salvar.
Deleuze explica. EXISTEM SIM, mas não interessam, acho que só
servem para eu ruminar de vez em quando um drama qualquer. Não
sei se saio do drama à custa de conteúdos ou à custa de montar na
moto. Acho que o 1º.., mas estou louca pelo 2º. Me dá nervoso!
[...] Estou com umas ganas horríveis de escrever, leve, são os
conteúdos que me atrapalham.
Mais P.S Conteúdos pode ser que não existam, mas existem as 2as
intenções...
Mais P.S Percebo que o lance de anotações tipo agendinha tem a ver
com uma certa briga entre o fora e dentro, registro e psicologia,
cenografia e interioridade. Registrar com um muxoxo de quem não
147

pudesse derramar. Mas para não ficar neo-realista só vale se a tensão


passar. Tem mais aí? Ai, um batonzinho. [...]
Prometo que a próxima carta será sem estilo. Às vezes acho que sou
louca mansa, mas não, é apenas um brinquedo. (CÉSAR, 1999b, p.62-
63)

A passagem acima nos demonstra o ímpeto de criar uma escrita leve, sem o peso de
seus conteúdos, que não fosse sempre uma imersão em seu universo interior. Um tempo
depois, escreverá novamente sobre esse empuxo a uma escrita de si:

O tempo fecha.
Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos
que não largam! Minhas saudades ensurdecidas
por cigarras! O que faço aqui no campo
declamando aos metros versos longos e sentidos?
Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não
sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida:
Agora sou profissional. (1982/1992, p. 9)

Em um de seus artigos, publicado em setembro de 1982, Ana C. comenta sobre


Ângela Melim, uma escritora cuja particularidade é escrever cada vez mais prosa, Ana
C. diz que chega a se assustar com a diferença entre o então atual trabalho da poeta e
seus livros anteriores. De acordo com ela, os primeiros são de prosas breves que se
misturam com poemas,

todas muito orais, muito próximas de uma certa voz que a gente ouve,
para as engravatadas primeiras linhas do livro mais recente. .[...]. As
primeiras frases do livro engravatado diz: ― LM se viu dentro do carro,
no meio do trânsito na Lagoa, indo em direção do túnel Rebouças‖
enquanto a outra diz: ―Sobre o suicídio: preciso tomar uma decisão
entre pedra ou vidro, estilhaça ou espatifa, porque todas as palavras
não cabem num livro‖. (CÉSAR,1999, p.241,)

O comentário no artigo posiciona sua escrita íntima em contraposição a uma prosa


engravatada, que não faz qualquer esforço de transgressão da língua. Nas palavras
dirigidas à outra, escutamos as preocupações artísticas de Ana C. É impossível deixar de
notar a temática suicidária que habita sua poética. Sobre seu ofício, ela escreve:
148

entre um poema e outro, aprendi a ouvir uma prosa de voz íntima, que
fala como quem conversa intimamente com o interlocutor, que se
apega às exclamações e aos murmúrios da intimidade, e que pede
emprestado da conversa a despreocupação com a continuidade lógica
e com a sintaxe rigorosa, desobedecendo as regras de
desenvolvimento expositivo, à mercê de toda sorte de interferências
meio fora de controle, de associações meio súbitas, de interrupções e
parênteses que quebram às vezes irremediavelmente , as primeiras
sequências. Uma sintaxe infantil, às vezes levemente estropiada e
cortada por diminutivos. Uma dicção com um jeitinho[...]Passeios
pelo arbitrário[...] E uma história toda estilhaçada em que se localiza
uma maior dificuldade: ‗As coisas são assim, repetidas, superpostas,
entremeadas de, maior dificuldade de ir separando elas com
travessões, parênteses, aspas, maior ainda de ir inventando a
existência delas com nomes.‖ (CÉSAR, 1999.p.242)

Seus primeiros escritos se apresentam menos fragmentados, com tom rimado de


prosa, mas já existe a busca de uma desconstrução na escrita, uma potência que só se
acentua ao longo de sua obra. Segundo Kofman (1996, p.135), ―seria a sua arte que
daria forma ao psiquismo do artista, e não seu psiquismo que viria à luz através de sua
arte.‖ Em uma vertente mais salutar da que viemos trabalhando, ela nos diz que:

Pelo jogo dos processos psíquicos inconscientes, o jogo dos afetos em


sua transformação, o das representações na combinatória, o artista
tenta repetir o que a criança faz através de suas brincadeiras, antes que
a razão e o julgamento lhe venham impor coações. O homem
―reverenciado‖ que é o artista no fundo não é mais do que uma criança
que dá aos outros homens a alegria de poder reencontrar, eles também,
o paraíso da infância. (KOFMAN, 1996, p.134)

A teus pés (1982/1992) foi o último livro escrito por Ana C. Nele, ao contrário dos
anteriores, observamos como sua escrita foi ficando mais condensada. Existe uma
economia particular das palavras: ao mesmo tempo em que algumas delas parecem ter
um peso maior, outras nos soam simples e despretensiosas, apenas registros. É como se
já não se pudesse dizer muita coisa, como se tivesse a sensação de que já falou demais,
já foi suficiente a quantidade de chaves oferecidas para desvendarmos seu mistério. A
prosa vira cada vez mais poesia, a voz vai se calando e, aos poucos, a fragmentação e o
desligamento se infiltram no texto:
149

Vacilo da Vocação

Precisaria trabalhar ─ afundar ─


─ como você ─ saudades loucas ─
Nesta arte ─ ininterrupta ─
De pintar ─

A poesia não ─ telegráfica ─ ocasional─


Me deixa sola ─ solta ─
À mercê do impossível ─
─ do real.

(CÉSAR, 1982/1992, p.29)

A escrita telegráfica nos lembra que as palavras custam caro. Escrito por volta de um
mês antes de sua morte, o poema parece trazer uma esperança de que as coisas poderiam
ter sido diferentes. Lemos:

Parece que há uma saída exatamente aqui onde eu pensava que todos
os caminhos terminavam. Uma saída de vida. Em pequenos passos,
apesar da batucada. Parece querer deixar rastros. Oh yeah parece
deixar. Agora que você chegou não preciso mais me roubar. E como
farei com os versos que escrevi?

Datado de 23-7-83
(CÉSAR, 1998, p.181)

A saída de vida seria incompatível com os versos escritos? Seria possível não
escrever? Um pouco mais tarde um de seus versos nos diz: ―Não adianta. [...] Alegria!
Algoz inesperado‖ (CÉSAR, 1998, p.192).
Ana C. continuava a escrever mesmo em um estado de profunda depressão. Em 2 de
outubro de 83, período em que entra no mar com a intenção de não mais voltar, é
publicado, no ―Folhetim‖ da Folha de São Paulo, ―Contagem Regressiva‖, o qual
antecipa: ―os poemas são para nós uma ferida‖ (CÉSAR,1998,p.164). Estes são seus
versos finais:

[...]
Não há ninguém que me interesse e meus versos
São apenas para exatamente esta pessoa que dei-
xou de vir
ou chegou tarde, sorrateira, de forma que não
150

posso,
gritar ao microfone com os olhos presos nos seus
olhos
baixos, porque não te localizo e as luzes da ribalta
confundem a visão, te arranco, te arranco do
papel,
materializo a minha morte, chego tão perto que
chego
a desaparecer-me, indecência, qualquer coisa de
excessivamente
oferecida, oferecida, me pasmo de falar para quem
falo,
com que alacridade
sento aqui neste banco dos réus, raso,
e procuro uma vez mais ouvir-te respirando
no silêncio que se faz agora
minutos e minutos de silêncio, já.

(CÉSAR,1998,p.164).

A leitura deste poema produz ressonâncias em nosso núcleo de desamparo. O desejo


de desaparecer entrevisto nestes versos alude ao mundo interno de um sujeito
melancólico, aquele que não teve sua imagem devolvida pelo outro que dele se ocupou.
É necessário que este outro seja arrancando do papel, o que materializa a própria morte.
Nestas circunstâncias, o que se pode fazer é buscar a respiração, mesmo que seja em um
silêncio que se prolonga e estanca o tempo.
Investigaremos um pouco mais as diferentes modalidades de escrita e quais seriam
seus efeitos na dinâmica psíquica de Ana Cristina César.
151

5.2. Preciso voltar aos cadernos terapêuticos

Carvalho (2003), ao investigar a vida e obra de Silvia Plath, percebeu dois tipos de
escrita, uma do recalque, que organiza, contém e separa os conteúdos representacionais
e outra, pulsional, que trabalha muito perto da fonte pulsional, revelando o limite
representacional da escrita. Derrida (1995) também faz uma distinção entre o escrito e a
escritura, sendo esta última aquela que promove uma torção na linguagem, que
localizamos mais próxima a esta escrita pulsional de que nos fala a teórica. A dimensão
da escrita como phármacon, desenvolvida por Carvalho (2003) nos auxiliará a pensar
em uma divisão que também encontramos em Ana Cristina César, por um lado, uma
criação do "fogo do final", por outro a dos "cadernos terapêuticos". De acordo com
Carvalho (2003, p.103):

Derrida nos lembra que, na visão platônica, a doença natural é


comparada a um organismo vivo que é preciso deixar desenvolver-se
segundo suas normas e formas próprias, seus ritmos e articulações
específicas. Dentre os movimentos do corpo, o melhor movimento é o
natural, aquele que, espontaneamente, nasce de dentro, por sua própria
ação. O caráter nocivo do phármacon provém, portanto, do fato de
que, vindo de fora e contrariando a vida natural, ele é o elemento
estranho que desvia o curso normal da vida. Essas noções são
introduzidas no momento em que Platão propõe a escrita como
phármacon. Contrário à vida, o escrever, phármacon, apenas desloca
e até mesmo irrita o mal. Sendo exterior à memória, que é interior, ele
a afeta e a hipnotiza no seu ―dentro‖. Platão mantém assim, tanto a
exterioridade da escritura, como seu poder maléfico de penetração,
capaz de afetar ou de infectar o mais profundo. A escrita como
phármacon é um suplemento perigoso que ―entra por arrombamento
exatamente naquilo que gostaria de não precisar dele e que, ao mesmo
tempo, se deixa romper, violentar, preencher e substituir‖. Derrida
ressalta, finalmente, que a escrita – não tendo essência ou valor
próprio, podendo sempre mudar de sentido, ora sendo remédio, ora
sendo veneno – joga no simulacro e pode servir tanto à vida quanto à
morte, residindo, aí, a fragilidade da sua proteção

De acordo com esta noção, o perigo da escrita está justamente no fato dela poder
mudar, sempre, de um pólo para outro, de remédio a veneno. Ao longo da obra de Ana
C., percebemos uma fragmentação que corresponde ao espírito de sua época, contudo, o
fato do objeto de fragmentação ser o próprio eu, não é sem consequências para esse que
se desdobra em outras vozes e, depois, parece não saber mais qual é a sua. Dentre os
152

escritos de Ana Cristina César havia os poemas, a tradução, as cartas, os ensaios e os


―cadernos terapêuticos‖, ou jornais íntimos, como chamava. Os cadernos terapêuticos,
ao que nos parece, teriam a função de curar aquilo que a própria escrita produziu. O fato
de Ana C. querer transformar o anti-literário em literário, o diário, a carta, bem como o
desenho em literatura, nos leva a pensar que esta aproximação de sua obra com sua
intimidade fez com que o próprio caderno terapêutico tenha perdido sua função de ser,
ou melhor, a autora parece não mais ser capaz de encontrar um lugar para soltar seus
"ais à vontade", um terreno todo seu. O caráter ficcional da autobiografia parece ter
simultaneamente ganhando espaço e invadido, contaminado aquele que não deveria ser
apenas simulacro. Observamos em Antigos e soltos (2008) como os cortes de palavras
incidiam em especial naquelas que carregavam uma grande carga de afeto, o que parecia
conferir ao poema, maior grau de pessoalidade. Esse efeito é o mesmo de um segredo,
de algum mistério a ser desvendado. Contudo, ela escreve: "te apresento a mulher mais
discreta do mundo, essa que não tem nenhum segredo". Lemos em Ana C. uma escrita
que vai se tornando telegráfica. Sua escrita demonstra um desligamento e uma
fragmentação que transformam o ganho estético em prejuízo do artista. Acreditamos
que seu estilo a tenha levado para um ponto em que o sucesso de sua obra significaria
também sua falência (Cf: CARVALHO,2003).

O texto de Ana C., para Souza (2010, p.73), esbarraria em dois gêneros
propostos por Bakhtin: o "auto-informe" e a "confissão". O primeiro estaria
condicionado àquilo que o autor pode dizer a si mesmo, sem contar com o ponto de
vista do outro – o que contaminaria a enunciação. Não poderia haver uma preocupação
estética em um auto-informe, uma vez que os elementos estéticos têm seu fundamento
no valor dado pelo outro, ou seja, todo acabamento estético estaria fundamentado no
olhar do outro. Se o sujeito da enunciação realiza esse acabamento, ele conclui sua
própria existência, tarefa impossível, já que essa conclusão seria dada por um ato de
criação artística, a qual abriria a vida à existência, e não o contrário.
O auto-informe daria lugar à confissão a partir do momento em que o caráter
puramente individual e solitário do ato criativo se rompe. O enunciado se transformaria
em uma forma de súplica que parte do sujeito para fora dele. Esta, por sua vez, é
caracterizada per se a uma permanência inacabada, isto é, há uma abertura que faz com
que o pedido vá se fragmentando em direção a um futuro não predeterminado do
acontecimento. No entanto, não seria possível um auto-informe puro, já que ele
153

implicaria na solidão absoluta e no silêncio. Desse modo, Bakthin irá referir-se às duas
categorias como uma só: auto-informe-confissão.
O diário íntimo deveria, portanto, funcionar como esse espaço pessoal do auto-
informe, fora do alcance do olhar e da exigência do outro. Porém, se essa separação com
o outro acarreta em uma despersonalização, ao invés de um despojamento ou uma
desidentificação, pode ser que essa função se torne difícil. O tratamento estético viria
para garantir o contorno do eu fragilizado. Assim, buscaria-se evitar a dinâmica do tudo
ou nada, a solidão ou a súplica absolutas. Certa vez, quando perguntaram a Ana C.
como havia sido a experiência de começar a escrever, e se esta teria sido um diário, ela
responde:

Não, eu escrevia poesia, sempre escrevi poesia, mas poesia incomoda


muito. Poesia é muito grilante. Tem um lado grilante da poesia. Ela
não comunica. Isso que você está queixando, que não comunica, acho
que é um fato... [...] Então eu acho que a tentativa de ir para o
diário...[...] Havia duas coisas separadas. Havia o diário, onde eu
podia escrever minhas verdades, minhas inquietações, minhas aflições
pessoais, minhas confissões pessoais, meus amores, e havia poesia,
que era uma outra coisa, e que eu não entendia direito o que era. Até
que começaram a se aproximar os dois, entendeu?[...] Percebi que no
ato de escrever a intimidade ia se perder mesmo. A poesia tendia,
queria revelar e o diário não conseguia revelar. Aí as duas coisas
foram se cruzando. (CÉSAR, 1999 a, p.270)

De acordo com Blanchot (1984), o diário íntimo que imaginamos ser desprovido de
regras, onde se pode escrever tudo e registrar o dia a dia, está preso a uma cláusula:
deve-se respeitar o calendário. Vemos aqui, novamente, o recurso buscado através do
controle do tempo:

Escrever um diário íntimo é colocarmo-nos momentaneamente sob a


proteção dos dias comuns, colocar a escrita sob essa proteção, e é
também protegermo-nos da escrita submetendo-a a essa regularidade
feliz que nos comprometemos a não ameaçar. [...] Escrever em cada
dia, sob a garantia desse dia e para lembrar a si próprio, é uma
maneira cômoda de escapar quer ao silêncio, quer ao que há de
extremo na palavra. (BLANCHOT, 1984, pp.193-195)

O diário escrito por Ana C. marcaria a separação com o corpo da mãe, pois estaria
desprendido daquela que escrevia para ela. Observamos um movimento de mão dupla:
há tanto uma necessidade constante de registro íntimo, quanto a necessidade de trazer
esses conteúdos para seu fazer literário. Desse modo, ela evitaria o rompimento total
154

com o objeto de amor e, ao mesmo tempo, chamaria a atenção do leitor (e da sua


primeira leitora), para seus conteúdos internos. Em Ana C., há uma repetição, a fala
simples teve que ser transformada em poesia pela sábia criança que tinha uma mãe
professora de literatura; a escrita simples teria um empuxo para ser obra. O estilo que
torna inseparável vida e obra talvez faça uma analogia com a comunicação que é
facilitada por esta transformação – uma relação fusional é criada em decorrência disso.
O espaço poético é um lugar paradoxal, de encontro e afastamento da língua do outro.
Em um depoimento de Ana C., lemos:

Não acho que a poesia esconda, acho que a poesia revela, pelo
contrário. Ela não esconde uma verdade por trás ou uma via íntima
por trás. Mas é também a dificuldade de quem produz, quer dizer,
sempre, quando você escreve, tem sempre uma história que não pode
ser contada, entende, que é basicamente história, história da nossa
intimidade, a nossa história pessoal. Essa história não pode ser
contada. Se você conseguir contar sua história pessoal e virar
literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou.[...] Mesmo que
eu pegue um diário, como tentei fazer, mesmo assim, continua a haver
uma história que não pode ser contada. É um tormento e, de repente, é
engraçado também, Você não pode contar...[...] Esse mistério você
pode chorar em cima dele, soluçar em cima dele, de repente, você
pode achar interessante.(CÉSAR,1999 a, pp.262-263)

Vemos aqui como a função do auto-informe-confissão não está destituída da sua


potência de promover aberturas, não ficando encerrada em si mesma. Ana C., continua
em seu depoimento:

Eu queria me comunicar. Eu queria jogar minha intimidade, mas ela


foge eternamente. Ela tem um ponto de fuga.[...]Eu acho que existe
uma palavra não falada, mas no sentido mais da... da alegria.[...]Na
literatura, sempre haverá uma coisa que escapa. Então, não dá nem
mais pra chorar em cima disso. A gente pode, inclusive, se alegrar
com isso. (CÉSAR, 1999 a, pp.260-261)

Crítica e tradução (1999a) foi um livro que reuniu diversos trabalhos, entre eles, sua
dissertação de mestrado na PUC-RJ, que se tratou de uma pesquisa de filmes
documentários sobre autores ou obras literárias produzidas no Brasil, intitulada:
―Literatura não é documento‖. Nesta edição, foram reunidos os ―Escritos no rio‖, sessão
que traz artigos publicados em vários jornais e outros órgãos da imprensa ao longo entre
os anos de 1970 e 80. Além desses, estão incluído os ―Escritos na Inglaterra‖, que
trazem a tradução do Conto ―Bliss‖, de Katherine Mansfield, com suas anotações sobre
155

suas escolhas lexicais. Finalmente, o compêndio também traz traduções de poemas


como os de Sylvia Plath, Emily Dickinson, Anthony Barnet e Marianne Moore. ―A
tarefa do tradutor‖ de Walter Benjamin (1923) foi escrito no mesmo ano de ―O ego e o
Id‖, de Freud. O tradutor, segundo o filósofo, precisa se haver com o vazio que se abre
na tentativa de representar, em outra língua, o significado da palavra original. Podemos
pensar que tanto a fonte de origem quanto o termo traduzido são interpretações. A
palavra da língua de saída aparece para representar o que não está mais ali, e também
para representar o que tem lugar somente no mundo interno de alguém. A tarefa do
tradutor, portanto, ―corporifica‖ a hiância que existe entre eu e outro. O exercício de
encontrar a melhor palavra – aquela impossível de atravessar o abismo que existe entre
duas línguas – transparece nos próprios textos de Ana C., os quais também podem ser
lidos como traduções de si mesma. A tarefa de tradução é da ordem de uma
impossibilidade, em uma acepção extrema, o que o tradutor faz é escrever um novo
poema.
Nos primeiros momentos da vida, a linguagem chega através do outro, que oferece os
cuidados da maternagem. É o outro e a cultura em que se vive que oferecem as
possibilidades de significação dessas experiências. Lembramos aqui do ruído que pode
acontecer nesta troca que se dá entre o adulto e a criança. Como vimos, para Ferenczi
(1923), há um caráter traumatizante nesta conversa, o adulto, sua sexualidade e seu
inconsciente irão sempre exceder a capacidade de representação da criança, que fala a
língua da ternura, e não a da paixão.
Na tradução do conto de Katherine Mainsfield, ―Bliss‖, por exemplo, Ana C.
justifica a tradução desta palavra – que não tem correspondência exata no português –
por ―êxtase‖, e não felicidade:

Êxtase sugere a sensação de uma espécie de suprema alegria


paradisíaca, que só pode ser sentida em ocasiões muito especiais: em
momentos de satisfação na relação mãe/bebê, em outras relações
apaixonadas ―primitivas‖, em fantasias homossexuais, no êxtase
religioso, e, muito raramente, na ―vida real‖, nos relacionamentos com
os adultos. Poder-se-ia dizer que o êxtase é, basicamente, uma emoção
imaginária cheia de força e do poder próprios do imaginário.
(CÉSAR,1999a , p.323)
156

Para Benjamin, o tradutor é aquele que salta o abismo (UberSetzer) entre o eu e o


outro, o abismo da distância e do tempo. De acordo com Seligmann-Silva (2011,
p.13), ―o território niilista aberto pelo tradutor é também o terreno de onde brota a
melancolia‖ e , precisamente por isso, ―habita nelas (nas línguas), antes de mais nada, o
tremendo e originário perigo de qualquer tradução: que os portões de uma língua tão
alargada e bem dominada acabem por se fechar, encerrando o tradutor no seu silêncio‖.
Aqui, nos lembramos também de Blanchot (2001), para quem o grande trabalho do
escritor estaria

em seu modo de impor silêncio ao interminável, seu modo de crivar o


infinito, como se houvesse uma fala incessante, um universo infinito
de palavras, ritmos, frases encadeadas, uma linguagem ininterrupta à
qual cabe ao escritor cortar, impor silencio emudecer. (BLANCHOT
apud MALUFE, 2006, p.44)

Um dos livros mais lidos por Ana C. foi Fragmentos de um discurso amoroso, de
Barthes (1981, p.10). Entre seus grifos, encontramos:

Quando acontece de me abismar, é que não há mais lugar para mim


em parte alguma, nem na morte. A imagem do outro – à qual estava
colado e vivia – não existe mais; ora é uma catástrofe (fútil) que
parece me afastar para sempre, ora é uma felicidade excessiva que me
faz recuperá-la; de qualquer modo, separado ou dissolvido, não sou
recolhido em lugar nenhum; diante de mim, nem eu, nem você, nem
um morto, nada mais a falar. [...] Não será o abismo um aniquilamento
oportuno? Não me seria difícil ler nele não um repouso, mas uma
emoção. Disfarço meu luto sob uma fuga; me diluo, desmaio para
escapar a esta compacidade, a essa obstrução, que me torna um sujeito
responsável: saio: é o êxtase.

63
Sabemos que a sensação de êxtase, um ―excesso inquietante‖ é característica dos
estados maníacos. Não entraremos nos detalhes do conto ―Bliss‖, mas achamos
interessante o fato de que, após o falecimento de Ana C., sua mãe tenha feito a tradução
desse trabalho.
Não é gratuita a multiplicidade de vozes no texto de Ana C. Ao trazer para seu texto
a voz de outros autores, há uma dissolução da ideia de autor e temos que incluir a

63
Ana C. (1999 a, pp. 249-250) em setembro de 82, escreve para o ―Jornal Leia Livros‖ um artigo com o
título ―Excesso inquietante‖, no qual lemos: ―as mulheres são um pouco doidas e o homens um pouco
menos‖. [...] Será que a solução é o fincar-pé masculino, que afirma, dá forma, tem causa e lugar – no
máximo?[...]É isso aí, literatura é de um material como que estrangeiro, que nos separa dessa
proximidade do sentimento bruto, nos descola de nós e da língua de nossas pessoas.‖
157

possibilidade de que o texto estaria referindo apenas a ele mesmo e às relações lógicas –
e poéticas – do mundo literário. O eu lírico não é nunca capturável, escorrega para a
página de outros livros, línguas e diários.
Como nos aponta Souza (1999), a lírica fragmentada de Ana C. é uma marca de seu
tempo, onde o que aparece nas poesias é a questão da identidade, das ambiguidades de
gênero e do desejo. Sua poesia faz uma espécie de denuncia irônica da construção do
texto e do próprio sujeito da enunciação, a qual narra sua autobiografia, através de um
refinado manejo de técnicas e uma contínua sedução.
Os efeitos de época são vividos pelos pais e a cultura, responsáveis por oferecer um
suporte para aquele que nela ingressa. A fusão entre arte e vida, diário e não diário,
autobiografia e ficção, confissão e segredo, em Ana C., têm nela um efeito subjetivo,
para além de ser um estilo representante de uma época. Treze dias antes de falecer, ela
escreve:

Dia 16 de outubro de 1983

Não quero agora computar as perdas. Perder é uma lenha. Lá fora está
sol, quem escreve deixa um testemunho. Reesquentando. Joguei fora
algumas coisas já escritas porque não era o testemunho que eu queria
deixar. É outro. Outro agora. Acredite se puder. [...] Chega desse lero,
Poesia virá quando puder. Por enquanto, Filho, é isso aí apenas. Saí ao
sol onde tentei um do-in, me sinto exaurida. Lembra que o diário era
alimento cotidiano? Que importa a má fama, depois que estamos
mortos? Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho.
Diário não tem graça, mas esquenta, pega-se de novo a caneta
abandonada, e o interlocutor é fundamental. Escrevo para você sim.
Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa um rastro
prateado.64
Leiam se forem capazes.
(CÉSAR,1998,p. 201, grifos da autora)

Quando traçamos as pistas que Ana C. nos deixa em seu texto e buscamos as
referências que ela faz, não sabemos se aquele outro poema deveria ser considerado em
sua totalidade, como um eco de sua voz. Temos a impressão de que esse recurso fosse,
para além da intertextualidade, um modo de colocar nas palavras de outros poetas os
afetos que sente, mas não pode dizer. Como traduz em um poema: ―É ilícito, para não
dizer fatal, ser pessoal, e indesejável‖ (CÉSAR, 2008, p.445). Nos lembramos aqui da

64
Aqui encontramos a citação de um poema de Sylvia Plath intitulado "Sleepers", de 1959. Na segunda
estrofe, podemos ler: "Curtained with yellow lace./Through the narrow crack/Odors of wet earth rise./The
snail leaves a silver track." In: Plath, Sylvia. Collected Poems. London: Faber and Faber, 1981, p. 122-
123. Agradecemos à Ana Cecília Carvalho pela referência.
158

descoberta da teoria literária de Ana C.: se cortar o início e o final, resta o mistério. Ela
cria uma personagem, um duplo de si, que é e não é ela. Em rascunhos encontrados
post-mortem lemos as preocupações acerca da relação entre o real e o ficcional, sempre
presente nas reflexões da poeta:

penso relações em forma de:


-indagação constante: qual a relação entre o texto e o real: o poema
fala do real? O real vive ou morre no poema? posso possuir o real pelo
texto?
-trajetória não-linear (diálogos entre textos) em direção à aceitação do
paradoxo: o ser perde-se no poema mas ao mesmo tempo é no texto
que se constrói o ser
->perder o real (escrevê-lo) é recuperá-lo do silêncio (ganhá-lo)
- diálogo/debate entre a consciência do paradoxo e o desejo de
solucioná-lo, evitá-lo, ganhar ou perder, e não ganhar e perder
simultaneamente.
- real ->sentimentos do sujeito, as relações sociais, a paisagem. Qual o
estatuto do real (ser) no texto? O ser se perde no poema (nele morre)
ou nele se constrói (vive)? O poema dissipa ou produz?

(CÉSAR apud. MALUFE, 2006, p.44)

Através desses rascunhos, vemos o trabalho de construção lógica sobre a escrita, sua
proximidade ou distância com o real e com o que se vive. O ser se perde no poema ou
nele se constrói? Perguntamos também com Lambotte (1997, p.103):

Que lugar ocupa a partir de então, no seio da série de proposições


lógicas, o sujeito melancólico? Ou, mais exatamente, atrás de que
função preenchida pelo ―eu‖ se dissimula ele? Pode ele ainda
apreender-se em um discurso que se sabe destinado a recobri-lo?

E ainda, será que a dimensão de reparação que encontramos no processo


sublimatório ficaria comprometida, uma vez que a tentativa de construção do eu-lírico
no texto reitera a ficção da construção do próprio eu? Tentamos responder com as
palavras da autora:

Assim que o sujeito se sinta ―existir‖ em um movimento, isso não lhe


indica o lugar que ele ocupa neste movimento, na medida em que ele
só apreende aí o aspecto fugidio, o momento da interrogação. Deixe-
se ele encadear no fluxo do pensamento ou tenha ele mesmo
provocado o curso, o ―eu‖ do enunciado parece só pertencer à
formulação do relato descritivo, o que se encontra, aliás, confortado
no sentimento experimentado pelo melancólico – e de que ele nos faz
159

partilhar – de expor uma história que não seria sua. (LAMBOTTE,


1997, p.104):

Ana C. está entre dois mundos, habita uma ponte entre o mundo externo, que
parece falar uma língua diferente da sua, e um interno, cujas chaves de decifração foram
perdidas por ela mesma, e é como se só fosse possível existir enquanto se está pensando
(Cf: DERRIDA,1995). Um de seus poemas mais conhecidos diz:

olho muito tempo o corpo de um poema


até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue nas gengivas
(CÉSAR,1982/1992,p.59)

Identificamos com Lambotte (1997), um modo de pensar próprio do melancólico,


bastante paradoxal: ele é submetido tanto à pressão das ideias, quanto à ruptura dessas
associações que se precipitam em um circuito lógico sem fim, que termina por voltar-se
sobre ele mesmo. Para ela, haveria um ―fechamento de circuito‖, isto é, não se trataria
de uma falta de argumento, mas a sucessão de encadeamentos lógicos acabam levando o
sujeito a seu ponto de partida, ao momento que deflagrou as associações. O
melancólico, então, estaria situado entre dois espaços vazios: um círculo lógico, que
―contribuiria para transformar o mundo sensível em um conjunto de relações; e outro,
definido pelo que o sujeito revela de sua interioridade, contribuiria para tornar
inapreensível um ego votado ao desvanescimento‖ (LAMBOTTE,1997,p.99). É a
vivência desse ―entre-dois-vazios‖ que faz com que o corpo do melancólico lhe escape e
seja percebido como estranho a ele mesmo, além disso, esse entre-dois faz com que seu
discurso lhe pareça ‗soar falso‘ e originar-se de algum outro.
Dessa forma, o discurso melancólico compreende um conflito entre a mistura
das vozes do supereu e a tentativa de expressão do ego, o que parece reproduzir o
castigo de Eco, personagem do mito de Narciso. Eco era uma bela ninfa que foi punida
pelos deuses por querer ter sempre a última palavra. Ela, então, teria somente as últimas
palavras do outro para expressar-se. Apesar da limitação imposta, Eco ainda consegue
se apropriar da fala do outro para se comunicar e ser ouvida. Ela tenta traduzir sua
intenção amorosa com Narciso através de um jogo com as perguntas que o belo rapaz
faz da beira de um lago. Na versão de Ovídio, é quando Narciso está perdido que Eco
160

aparece. Ele pergunta: ―Tem alguém aqui?‖ e ela responde: ―Aqui!!‖.O discurso de Eco
precisa da palavra de Narciso. Mas ele, fascinado com a sua imagem refletida na
superfície do lago, não pode se arriscar a perdê-la novamente, sendo capturado pela
visão de seus próprios contornos, estranhos a ele. Ao depender de um outro para
conseguir dizer algo seu, a palavra é realmente de quem? A fala de Eco terá sempre
raízes na palavra do outro.
Lambotte (1997, p.101) nos auxilia a pensar um pouco mais sobre o eu do
melancólico:

O ―eu‖ do melancólico não é um ―eu‖ atributivo que deveria o


fundamentado de sua existência à consciência de sua atividade; é um
―eu‖ irônico que só pode pensar-se em função do próprio movimento
do pensamento, um ―eu‖ que se especifica unicamente pelo
movimento que se dirige a apreendê-lo, da mesma forma que este
movimento se dirige a apreender todas as coisas. Isto é dizer também
que ele desafia toda a origem ao querer constituí-la, que ele não se
apreende senão em um movimento e que ele repousa unicamente no
encadeamento indefinido de proposições lógicas umas em relação às
outras.

Identificamos, na poesia de Ana C., essa ―compulsão a pensar‖ ora descrita. Essa
característica melancólica traz uma predisposição, uma espécie de vocação para o
trabalho com o pensamento e, também, para o trabalho artístico – ambas presentes na
vida da poeta. Contudo, essa consciência pode levar a um constante confronto com essa
dimensão do não-sentido que acompanha a evidência de que o texto é apenas uma
construção, nas palavras de Ana C.:

Infelizmente ou talvez felizmente – é esse o mistério [...] – um texto é


só texto, ele não é pele, ele não é mãos se tocando, ele não é hálito, ele
não é dedos [...] Acho que existem várias maneiras de você lidar com
esse problema de que o texto é texto. Existe, de repente, uma
consciência trágica: o texto é só texto, nada mais que texto. Que
tragédia!
(CÉSAR,1999a , p.265-266)

É no não lugar, no entre, que o eu melancólico existe, o que, paradoxalmente, o


protege da dinâmica do ―tudo ou nada‖: ―Sou coisa ou poeta‖. Pensamos que esse entre
lugar está relacionado com o segundo momento da sublimação, entre o desinvestimento
e o novo investimento libidinal. Na melancolia, esse segundo momento da sublimação
seria mais prolongado, deixando mais tempo para a pulsão de morte se infiltrar e operar,
161

desligando as representações dos afetos. Nos lembramos que as tragédias são sempre
anunciadas pelo coro, o que não chega a impedir ou alterar o destino do herói.

Nos últimos poemas de Ana C. aparece a ideia da escrita como testemunho, como
veremos a seguir. A ―Pasta Rosa‖ cuidadosamente organizada, assemelha-se àquela
encontrada após a morte da poeta Emily Dickinson, com uma extensa coleção de
poemas não publicados.

5.3. Quem escreve deixa um testemunho

Não querida, não é preciso correr assim do que


Vivemos. O espaço arde. O perigo de viver.

Não, esta palavra


O encarcerado só sabe que não vai morrer,
Pinta as paredes da cela.
Deixa rastros possíveis, naquele curto espaço.
E se entala.
Estalam as tábuas do chão, o piso se rompe, e todo sinal é
uma profecia.
Ou um acaso de que se escapa incólume, a cada minuto. Este é meu
testemunho.

Acabo de fazer uma grande descoberta. Se olho fixamente para um objeto


qualquer durante algum tempo, esse objeto não se move. Pelo contrario fica
na mesma posição que antes. Este fato me levou a algumas considerações
extraordinárias. Estou convencida de que se trata de um processo nunca
antes pensado pelo ser humano. Preciso de tempo para desenvolver minhas
pesquisas. Talvez haja tempo depois que eu sair deste C.T.I. infame onde sou
obrigada a viver.
(CÉSAR, 1998, p.203)

Ditar poemas para a mãe que escreve. Essa cena não é trivial, pelo contrário, esse
―evento-tela‖ parece ter uma importância central na vida e na obra de Ana C. Segundo
Lambotte (1997, p. 352), um evento-tela é um evento lógico que responderia melhor à
resignação apática do melancólico e daria a seu discurso um semblante de justificação.
Ela nos diz que, se ―lhes acontece atribuir ao evento a causa de seu estado, é por uma
espécie de lógica formal desafetivizada, sem a qual eles permaneceriam suspensos no
tempo, faltosos de uma narrativa que se deixaria construir‖.
162

De acordo com a psicanalista francesa, o melancólico está suspenso ao ideal do eu


essencialmente materno. Ela nos lembra sobre o paradoxo da afirmação da negação, que
faz da compulsão a negar do sujeito – a afirmação do nada como identidade –, não
somente a ―tradução da falha especular, mas também a recusa ativa de toda assimilação
a qualquer modelo suscetível de manchar o referencial ideal que lhe serve de
moldura.[...]‖(LAMBOTTE,1997, p.333). Isto é, o dizer não seria uma possibilidade de
existir pelo jogo e pela força da negação, que opera uma diferenciação e uma oposição
ao outro. Pensamos que o jogo poético de Ana C. está ligado a esta dimensão, há
sempre um outro ao qual se referencia, o leitor, os poetas que traduz e os eu-líricos das
poesias que consome. A poeta faz diversas referências ao poema ―Ao leitor‖ de
Baudelaire, escrito em As flores do mal (1861/2011, p.30): ―leitor hipócrita, - meu
semelhante, - meu irmão.‖ Esse trecho também aparece em outro poeta que habita suas
estantes e suas páginas, T.S. Eliot. Em The wasteland, a referência se repete no poema
intitulado: ―The buriel of the dead‖ (O enterro dos mortos): You! Hypocrite lecteur! –
mon semblable, - mon frére! Temos aqui um exemplo do labirinto e do mis en abyme a
que nos referimos: assim, no jogo de decifração, deveríamos ler os sinais de despedida
que aparecem e se repetem como uma anunciação ou então, essa própria construção
seria responsável por uma ―poética do suicídio‖, como aponta Carvalho (2003).
Acreditamos que ambos os fenômenos não se excluam em Ana C..
Como vimos, encontramos sempre uma indicação deste outro que funciona
como um apoio identificatório e, com o trabalho poético, há uma transformação, uma
alteração desse material que vem daquele e passa a fazer parte do eu-enunciador de seus
poemas. O entrelaçamento entre o real e o ficcional, entre o eu e o outro, sugere que a
voz da poeta aparece em negativo, que foi mantida secreta, resistindo ao movimento
fusional, o qual aparece na cena em que não sabemos quem está de fato escrevendo. A
relação com aquela que primeiro teria ―traduzido suas palavras‖ e, depois, com o leitor,
garante um mínimo de identificação. Lambotte (1997, p. 342) nos relembra que: ―sem
identificação, nada de imagem, apenas uma moldura vazia, ou ao menos uma moldura
que encerra uma paisagem sem interesse e cujo relevo se deve situar no pano de fundo
inacessível. O investimento e identificação com a atividade de escrita é feita sob o
modelo de apoio narcísico, o que pensamos ter tornado difícil para Ana C. operar uma
desidentificação, tornando-se dela dependente para a estruturação de sua identidade. No
poema abaixo, não conseguimos deixar de pensar no mecanismo melancólico descrito
163

por Freud, em que a impossibilidade de desligamento faz com que a sombra do objeto
caia sobre o eu:

Mecha branca

A despigmentação da tua palavra


Me incita, me entristece

Acho que atrai alguma sombra minha


Algum elo da nossa fraqueza

Essa despigmentação irregular


Que nos atiça
É antes uma sombra recriada uma forma ainda de esperar

Quando não esperamos mais ─ e nem ainda ─


Escondo a tua sombra nesta mão
(CÉSAR,2008,p.95)

Retomamos a noção do bebê sábio de Ferenczi (1933), que precisa amadurecer


rápido demais para cuidar de si e do outro que seria responsável por ele, à custa do
sofrimento que acompanhará a impossibilidade de metabolizar o experienciado, bem
como da marca do desamparo que lhe é impressa. O encantamento promovido pela
habilidade com as palavras teria condicionado a poeta a usar suas palavras para garantir
a presença do objeto amado, que aparece, desta maneira, como testemunha das suas
experimentações artísticas. Se no início havia uma brincadeira de palavras, mais tarde, o
jogo se torna sério. A simples presença do seu corpo não teria sido suficiente para
convocar o afeto que precisava. Era preciso um esforço de composição para conseguir
abaixar o jornal que o pai lia, ou entrar para a pasta de composições escolares de sua
mãe. ―Me leva no seu giz‖ (CÉSAR,2008,p.143), escreve. A criança tenta entrar no
universo materno através das letras, do livro. Como exemplo desse jogo de
espelhamento, escolhemos o poema abaixo, que começa com um verso tomado de Walt
Whitman (1989):

Amor, isto não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e sou eu
que te seguro (é de noite? estivemos juntos e sozinhos?), caio das
páginas nos teus braços, teus dedos me entorpecem, teu hálito, teu
pulso, mergulho dos pés à cabeça, delícia, e chega –
Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente deslizando,
chega de passado em vídeo-tape impossivelmente veloz, repeat,
164

repeat, repeat. Toma este beijo só para você e não me esquece mais.
Trabalhei o dia inteiro e agora me retiro, agora repouso minhas cartas
e traduções de muitas origens, me espera uma esfera mais real que a
sonhada, mais direta, dardos e raios à minha volta, Adeus! Lembra
minhas palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo, e parto, eu
incorpóreo, triunfante, morto. (CÉSAR, 1982/1992, p.111)

Abandonar a poesia seria fazer o mesmo como objeto de amor (morto-vivo), o qual
ela tenta fazer reviver, chamar para a conversa e se mostrar. Esse abandono talvez não
tenha sido possível por causa dos remorsos melancólicos que viriam, retaliação ou
retorno da libido que continha a violência necessária para romper o vínculo tão
fortemente estabelecido. A potência desidealizadora e desterritorializadora da arte pode
ter promovido esse movimento, mas pode também ter desencadeado um efeito oposto.
Para os sujeitos que elegeram a identificação narcísica como modelo privilegiado de
investimento, a separação tem por consequência a despersonalização e o despertar das
agonias impensáveis, nas quais o sujeito se defrontaria com a parte nadificada da sua
imagem refletida por um espelho cego. Lemos em Ana C.:

Eu penso a face do poema/ a metade na página


Partida
Mas calo a face dura
Flor apagada no sonho

Eu penso
A dor visível do poema/ a luz prévia
Dividida
Mas calo a superfície negra
Pânico iminente do nada
(CÉSAR,1998,p.88)

Através de uma de suas cartas, sabemos que Ana C. (1969, p. 269) Esteve bastante
investida no texto de Foucault ―O que é um autor?‖ Ali, o filósofo, ao examinar a
―função autor‖, afirma: ―é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita‖.
Diante desta afirmação, a noção de obra problematiza-se tanto quanto a individualidade
do autor. Nesta esteira de pensamento, Blanchot (2011, p. 95) diz que, ―talvez a arte
exija que se brinque com a morte, talvez introduza um jogo, um pouco de jogo, onde
não existe mais recurso nem controle‖.
Pensamos na relação particular criada por Ana C. com a figura das mãos que
―contornavam sua sintaxe‖, isto é, um suporte identitário teria vindo através das mãos
165

maternas, e não de seu olhar, que estava na folha branca do papel. O corpo do poema
seria o espelho onde teria sido possível se reconhecer, fragmentar, inventar, se desfazer
e refazer. A leitura que Souza (2008, p.52) faz de sua lírica se aproxima do que temos
articulado:

A poesia de Ana C. , assim como a produção de vários colegas de sua


geração, é a poesia do corpo: esse é o território por onde a poeta pode
conceber seu drama, longe da repressão do desejo. Tal marca indica
outro aspecto: a dissolução do sujeito. Paz defende que a crítica do
tempo da utopia, realizada pelo corpo e pela imaginação, é também a
crítica do sujeito: o poeta não é mais um ator, e sim, um ―momento de
convergência das diferentes vozes que confluem para o texto...(o
sujeito é uma cristalização mais ou menos fortuita da linguagem‖. A
voz do poeta é a voz de ninguém, a voz da outridade.

De acordo com Winnicott (2000, p.403), é através da dimensão corporal que


poderemos pensar na simbolização primária. A sublimação depende da simbolização
secundária que, por sua vez, possibilita os processos secundários. Para Freud, o eu é
uma superfície corporal, assim, é preciso a construção de um corpo capaz de suportar as
angústias de liquefação, de desaparecimento no nada. Inicialmente, é o corpo materno
que deve envolver o pequeno sujeito, oferecendo uma experiência corporal que garanta
a continuidade do existir, condição necessária para a diferenciação do eu/não- eu. A
importância do corpo na obra da poeta nos leva a pensar numa escrita que buscava, no
texto, ―mãos se tocando‖ com luvas de pelica. Esse corpo é erotizado e tornado presente
no poema, ele incomoda, seduz e atinge o leitor. Quase se pode sentir seu cheiro: ―Lavei
os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... Ai que enjôo me dá o
açúcar do desejo‖ (CÉSAR, p.63). Na leitura de Malufe (2006, p.44) os versos de Ana
C.

são sensualmente corporificados, uma linguagem que gruda no corpo,


que toca corporalmente quem lê. Aqui talvez esteja o principal afecto
feminino da linguagem para Ana C.: o ―grudar" no corpo, o
corporificar. Grudar no corpo é também grudar no corpo da letra o
movimento, o ritmo, o tempo, a velocidade. Tornar presente. Tornar
perceptível as forças de um movimento que, até então, ninguém
sentia.
166

A vitalidade desse empreendimento enriquece ainda mais a obra de Ana C. É como


se impulsionasse ou forçasse uma presentificação do corpo no tempo: ―é agora, nessa
contramão‖ (CÉSAR, 1982, p.15). Mais uma vez o movimento paradoxal da escrita, que
ao mesmo tempo que constrói por partes um corpo no poema, também o desfaz, o
estilhaça, fragmenta. Para Castelo Branco (1995, p.91), haveria na escrita feminina um
saber especial:

Saber da falta, do vazio, é um saber feminino e um saber precioso.


Talvez dada sua inexorabilidade – terrível, porque faz saber que além
dos objetos, além das construções, além da fantasia há o nada ou não
há nada. Conviver com esse nada, saber dos limites, este é um saber
feminino [...]. Zombar da onipotência, do sujeito fulgurante, pleno e
onipotente, elas sabem, e sabem o peso e o preço de tanto fulgor, tanta
plenitude e tanta onipotência.

―Toda a mulher fala com o corpo, se comunica com o corpo‖, diz Ana C. (CÉSAR,
1999, p.272.) A voz feminina, traz a marca do corpo, mas também do real, do silêncio
que se oculta por trás dela. Em depoimento dado em 1990, Heloisa Buarque de
Hollanda comenta alguns aspectos da poesia de Ana C.:

[...] Essa coisa do feminino nela era a possibilidade do segredo. Esse


segredo em termos de pacto, um pacto que ela fazia com o leitor, um
pacto que ela fazia com o autor, um pacto que ela fazia com o
tradutor, ela vivia de pactos. Um "pacto" que eu estou falando, no
sentido do ser... um segredo. Quando você faz um pacto , o pacto é um
segredo seu, é uma coisa irracional, um pacto de morte. Você faz um
pacto, é um compromisso cego; não é um acordo, é diferente. Isso é o
que ela faz com o leitor. Se você está a fim de fazer acordo, vai ler
outra pessoa. Se você não fizer um pacto com ela, não serve. Acordo
ela não faz. E aí a tradução fica muito atraente, porque a tradução é
outro pacto. Eu vou descobrir o que o outro não me disse. Eu vou ficar
por trás daquela palavra, é uma coisa assim.

(HOLLANDA in: VIEGAS, 1998, p.131-132)

Na poesia de Ana C., a dimensão do corpo se expressa na sonoridade das palavras,


no ritmo, na entonação. Lemos o texto e somos lidos por ele. Assim, vislumbramos que
a obra que se pretende autoral, precisa entrar em contato com a radicalidade dos efeitos
que a alteridade produziu para que, finalmente, seja possível a diferenciação do que é
Eu e o que é o outro, através do estilo. Para isso, contudo, seria necessária uma
desidentificação, é ―preciso justamente que sejamos nós mesmos para nos descobrirmos
167

identificados ao outro. Desta maneira, sendo inconsciente a identificação, é impossível


torná-la consciente de outro modo que não seja desidentificando-se‖ (MANNONNI,
1994, p.175). Mannonni (1994, p.185) nos diz também que ―a literatura, o teatro ou o
cinema são como exercícios de identificação para o autor, os atores e o espectador‖.
A sublimação implica um laço social, isto é, a pulsão que tem esse destino, se não
visa o compartilhamento, certamente o promove, uma vez que tenta possibilitar um tipo
de comunicação que não será feita somente pela via do entendimento racional, mas
principalmente pela via dos afetos e das emoções. A fim de concluir esta sessão,
gostaríamos de incluir os poemas da série ―Fragmentos1,2,3,4,5,6,‖ os quais, ao nosso
ver, representam todo o argumento aqui desenvolvido. Nela série, observamos a
desconstrução do eu, as tentativas de reconhecimento, a mãe, a condensação da palavra,
bem como a fragmentação que foi produzida ao longo do processo criativo. Palavra
puxa palavra, uma ideia traz outra: deixamos então que esses versos amarrem, por si só,
nossos objetivos centrais:

Fragmento I

Efusão de palavras
Aventura de registrar a fenda
Desistir da fluência
De todos os truques
Da bruta castidade.

(Nem me reconheciam em versos naquele tempo)


Qualquer coisa tua me lembra
A mãe difícil percorrer
Naquele tempo

As mesmas formas de pureza recusada:


A dúvida
A pele que refaço

Fragmento 2

Curta efusão de palavras


Aventura tímida de registrar a fenda
Desistir da fluência
De todos os truques
Da bruta castidade que me aflige
( me reconheciam em versos naquele tempo)
Porque talvez qualquer coisa tua me lembre
A mãe que era difícil percorrer
Naquele tempo
preservar
As mesmas formas da pureza recusada─
Nela reside a dúvida
A pele que refaço
168

Fragmento 3

efusão de palavras
Aventura de registrar a fenda
Desistir da fluência
De todos os truques
Da bruta castidade
(me reconheciam em versos naquele tempo)
qualquer coisa tua me lembra
A mãe difícil percorrer
Naquele tempo
As outras formas
pureza recusada
a dúvida a pele
que refaço

Fragmentos 4

efusão de palavra
aventura
bruta castidade
(me reconheciam)
lembrar a mãe
percorrer
aquele tempo (em versos)

Fragmentos 5

efusão
aventura
bruta
(reconhecer)
a mãe
difícil
tempo

Fragmentos 6

aventura
bruta
(em versos)
169

Considerações finais

Nos perguntamos ao longo deste trabalho sobre o que faz com que um sujeito tenha
sua linha de desenvolvimento psíquico preservada enquanto outros, não.
Compreendemos que aquele que nos precede, e é responsável pela maternagem, é
também o outro que irá produzir traumatismos, veicular intensidades que irão exceder a
capacidade do pequeno sujeito de metabolizar o que é trazido junto dos cuidados.
Assim, nos atentamos aos elementos que impedem o aproveitamento dos recursos e os
benefícios que poderiam ter sido obtidos através de novas experiências positivas com o
mundo: a ligação da pulsão de morte através da pulsão de vida.

O tema da desfusão pulsional ocupou um lugar fundamental em nossa discussão,


uma vez que, como observado, esta é constitutiva do processo sublimatório, colocando
o ego em perigo de maus tratos e morte. Através da desfusão e refusão pulsional, foi
possível explicar o fenômeno do masoquismo moral, elemento que, para Freud
(1917[1915]), distingue a melancolia do trabalho de luto. Desse modo, é a relação
especial entre o ego e o superego que caracterizam o complexo melancólico.

Nos estudos sobre a melancolia, trabalhamos especialmente na tensão entre dois


modos, aparentemente distintos, de se compreender o fenômeno: de um lado, entende-se
que a perda do objeto de amor é elemento constitutivo do sujeito, a falta em torno da
qual se erigiria o eu. De outro, a perda do objeto de amor primordial, apesar de fazer
parte do desenvolvimento psíquico de todos, passa a ter uma consequência diferente
para alguns sujeitos. Vimos que a qualidade da relação de objeto, anterior à separação
eu/outro, é um elemento determinante no modo de enfrentamento dessa dolorida
divisão. A melancolia está, portanto, relacionada ao traumatismo de uma abrupta
separação que ocorre quando o pequeno sujeito já esboça o mundo exterior, e este é
investido como algo separado de si.

A fim de levarmos a cabo nossos objetivos traçados, teremos que considerar também
a existência de diferentes tipos de sublimação. Haveria aquelas que não trariam risco
para o sujeito, como vimos com Mijolla-Mellor (2010). Para ela, a sublimação se trata
de uma escolha, consciente ou inconsciente, assim como a escolha da
neurose. Kupermann (2003), a partir do paradigma do humor, nos mostra como a
170

sublimação possui uma capacidade de promover uma desidealização e uma


desterritorialização do eu, o que, além de possuir uma dimensão política, por ser rebelde
à norma e ―não resignado‖, traria a possibilidade do sujeito encontrar formas mais
criativas de satisfação, as quais garantem a individualidade e um ganho narcísico. Já
Silva Jr. (2011) e Carvalho(2003) nos apontam para os limites e os perigos da desfusão
pulsional que acompanham a sublimação. Estas estariam muito próximas da fonte de
irrupção pulsional, que transbordaria além do limite (limens) de sua contenção. As
primeiras seriam tributárias da pulsão de vida, enquanto as últimas, da pulsão de morte.
Ressaltamos que a pulsão de morte não é sempre sinônimo de destruição. Sua atuação,
entendida como desligamento e desobjetalização, como postula Green (), é o que
permite ao eu não se enrijecer em um narcisismo mortífero. O desligamento promovido
por ela é importante para o desinvestimento do mundo externo, permitindo o sono, o
recolhimento da libido e a redistribuição da energia libidinal.

Imbuídos da noção de que a sublimação é mediada pelo eu, de que a obra de arte é
um objeto narcísico, e de que é exatamente a instância egóica que está comprometida no
conflito com o superego na melancolia, teremos que levar em consideração os efeitos da
sombra do objeto na arte. O artista pode se confrontar com elementos que estavam
silenciados, protegidos por poderosos mecanismos de defesa e contaminados pela
pulsão de morte, como, por exemplo, a identificação ao nada e ao movimento
evanescente de desaparição do objeto, o que causa, retroativamente, um efeito
iatrogênico.

A análise do material estudado nos levou a entender que a situação de exílio


promovida, tanto pela melancolia, quanto pela experiência da escrita, poderá ser
justamente o que permitirá ao escritor melancólico, se aventurar em novos amores, e
não somente naquele que lhe serviu de referência, impossível de ser abandonado.
Através do ―silêncio, do exílio e da astúcia‖, o sujeito passaria a existir em um ―entre
lugar‖, nas pontes que saltam o abismo aberto pela experiência da linguagem,
reproduzindo a dinâmica melancólica. Contudo, ao encará-lo, ele se paralisa:
tragicamente encontra o nada como seu novo objeto de amor. O artista nos sugere que
essas fissuras sobre as quais se constrói a ficção, de si e do mundo, carregam a
esperança de que o cais seria apenas um ponto de partida, e não a sentença de chegada.
171

Gostaríamos de estender a compreensão do processo sublimatório para além do


paradigma neurótico. O destino da pulsão que é a sublimação traz consigo resíduos-ecos
dos objetos que amamos. No caso de Ana Cristina César, percebemos que a busca por
uma palavra única cobrou o preço de não se poder mais apenas dizer. Em seu fazer
literário, há um reencontro com aquilo que já se sabia ferido, uma poesia cuja urgência
não prevê espera; no final, o poema ―fagulha‖ se transforma em fogo, contudo,
consumindo aquilo de que se alimenta.

Entendemos então, que as sublimações que fazem uso do trabalho de melancolia – e


não do trabalho de luto – estão mais sujeitas aos efeitos da pulsão de morte, decorrentes
da desfusão pulsional. O objeto que será reinvestido continuará a ser um objeto
narcísico, que teria a função de espelho, de duplo do sujeito. Esse espelhamento pode
funcionar como continente, mas pode, também, esgarçar ainda mais a trama do eu,
trazendo à tona os objetos cindidos, em um luto que não se completa, mas reabre a
ferida narcísica. A construção de uma outra versão de si nos poemas poderia ser
reparadora, todavia, vimos como ela também pode promover um maior estranhamento
de si. O autor pode não se reconhecer naquilo que fez, ou pode dizer e saber mais do
que queria. O que foi perdido permanece inconsciente, mesmo com todas as respostas
encontradas.

Assim, a tentativa de ―registrar a fenda‖ com as palavras acaba produzindo, por fim,
uma aventura bruta, em versos.
172

ANEXOS
173
174
175
176
177
178
179
180

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