A07 Articolo Orpheu 100
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MARCO BUCAIONI
da
Università della Tuscia, Viterbo
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Resumo: Faz-se uma resenha das traduções italianas publicadas de Álvaro de Campos e de
José de Almada Negreiros; analisam-se as duas versões mais correntes da tradução da Ode
Marítima, uma de Antonio Tabucchi e outra de Orietta Abbati/Piero Ceccucci sublinhando e
go
comentando as divergências; tenta-se estabelecer algumas peculiaridades da poesia de Almada
Negreiros, a partir dos exemplos d’A Cena do Ódio e de Mima Fataxa, ambas no prelo pela
tradução de quem escreve.
Es
Não é novidade alguma que Fernando Pessoa obteve fortuna editorial, crítica e de
público na Europa e no mundo. A Itália, não constituindo excepção nisto, é aliás um
dos países em que o maior poeta português do século XX atraiu mais atenção por parte
dos tradutores, das editoras e dos académicos. É quase redundante, neste contexto,
s
figura de intelectual quer em Portugal, quer em Itália, e com certeza a pessoa que mais
contribuiu para a “exportação” da figura e da obra de Fernando Pessoa para Itália. Com
igual certeza podemos e temos que afirmar que Tabucchi, especialmente nos últimos
anos, não esteve sozinho nesta tarefa de tradução pessoana para italiano: muitos
iç
talvez o único autor português, a par do prémio Nobel Saramago, conhecido pelo
vasto público italiano.
Em consequência disto, a parte da obra em verso de Fernando Pessoa que podemos
chamar poesia modernista, quase toda contida na obra do heterónimo engenheiro
Álvaro de Campos, já tem uma história de traduções e de edições diferentes em Itália.
As duas mais importantes, contudo, são a tradução do próprio Antonio Tabucchi,
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contida parcialmente dentro da célebre antologia pessoana Una sola moltitudine
da
(TABUCCHI, A., 1978), e depois publicada em separado, na sua totalidade (até à
data), no volume Poesie di Álvaro de Campos (TABUCCHI, A., 1993) e a mais recente
de Piero Ceccucci e Orietta Abbati, incluída na antologia de bolso em dois volumes
da poesia pessoana, debaixo do título Il mondo che non vedo, e publicada pela BUR
ta
(que contém poesia ortónima) (CECCUCCI, P., 2009) e Un’affollata solitudine (que
contém poesia heterónima), também publicada pela BUR (CECCUCCI, P., 2012).
Existem outras publicações que contêm parcialmente ou inteiramente (até à data)
go
a obra de Campos1. A razão pela qual, contudo, as primeiras duas edições citadas
são consideradas mais importantes é simples: são as únicas duas edições publicadas
por chancelas prestigiadas de projecção nacional, e que efectivamente se encontram
a todo o momento no mercado, tendo-se encarregado a Adelphi de reimprimir e
Es
distribuir quer a antologia quer a publicação independente com a poesia de Campos
continuamente desde a sua primeira publicação. Nesta comunicação vão ser analisadas
as duas traduções da Ode Marítima de Tabucchi e de Ceccucci/Abbati, tomando este
poema como simbólico de toda a produção de Campos, sendo o maior do ponto
de vista material e um dos mais significativos e marcantes do período modernista
s
português.
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A mesma sorte não tiveram, misteriosamente (ou não), os autores que, na segunda
década do século XX, integraram o cenáculo literário a que Pessoa pertencia: José de
Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro. Certo é que o principal e mais conceituado
promotor da fama de Pessoa em Itália, o acima referido Antonio Tabucchi, não fez
iç
muito para que o público italiano ganhasse conhecimento destas duas figuras (o
que aconteceu, em geral, com o resto da literatura portuguesa tout-court). Em geral,
Ed
parece que mesmo os que dedicaram uma parte consistente da sua actividade ao
estudo e/ou à tradução de Fernando Pessoa, concentraram-se muito nele, ignorando
o resto, o que, considerando a vastidão, a heterogeneidade e a profundidade do legado
pessoano, talvez seja mais do que justificável.
Pelo que diz respeito a Almada Negreiros, um possível obstáculo à sua tradução e
publicação no estrangeiro pode ter sido o facto de ainda não terem passado os setenta
anos desde o falecimento do autor, necessários para que, segundo a lei portuguesa, os
1 A primeira foi a de Luigi Panarese, Poesia di Fernando Pessoa, Milano, Lerici Editori, 1967.
A POESIA MODERNISTA PORTUGUESA EM ITALIANO.AS TRADUÇÕES DA ODE MARÍTIMA ... 119
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juntamente com alguns textos de ficção (A Engomadeira) (organizado por Valeria
da
Tocco, com tradução de Valeria Tocco, Andrea Ragusa, Mauro La Mancusa) (ambas
publicadas pelas Edizioni dell’Urogallo de Perúgia). No plano editorial da mesma,
consta para este ano a publicação do volume da poesia, contendo toda a obra poética
de Almada, com tradução de Manuel Masini, de Andrea Ragusa e de quem escreve.
ta
Antes destas publicações, as únicas obras de Almada disponíveis em Itália eram uma
publicação separada d’A Invenção do Dia Claro (ALMADA NEGREIROS, J., 2000)
e uma recolha de manifestos do modernismo português, organizada e traduzida
go
por Valeria Tocco (TOCCO, V., 2002), de que constavam os seguintes manifestos
almadianos: Manifesto Anti-Dantas e per esteso, Ultimatum futurista alle generazioni
portoghesi del XX secolo.
Ambas as traduções da Ode Marítima (no caso da de Antonio Tabucchi, quer a
Es
contida em Una sola moltitudine, quer a outra) são publicadas em edição bilíngue.
Pelo que diz respeito à tradução de Antonio Tabucchi, aqui referir-nos-emos à edição
de 1993.
Ambas as traduções são, como era de esperar, muito cuidadosas e competentes.
Numa primeira leitura, temos que sublinhar como, de modo geral, as duas traduções
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são muito parecidas uma com a outra, não apresentando superficialmente grandes
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frequente é o caso de haver palavras ou inteiras frases numa das duas línguas que
têm um correspondente quase literal na outra, isto é, em que se usam palavras ou
Ed
fragmentos que têm claramente uma origem comum. Regra geral, os dois tradutores
têm a tendência para acompanhar este andamento, usando sempre que possível
palavras cujo material morfemático remonta claramente à origem comum. Nestes
casos todos, que porventura são a maioria estatística do português para o italiano, os
dois tradutores têm tendência para comportar-se da mesma forma.
A maioria das divergências entre as duas traduções encontra-se, por outro lado,
nos restantes casos: os que obrigam o tradutor italiano a buscar uma palavra ou uma
frase que não têm correspondência directa etimológica em português.
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uma grande vaga poético-narrativa que anuncia, prepara e alcança o seu clímax para
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só depois nas últimas páginas voltar ao “sentado” (desas-)sossego inicial, o conceito
de cio («do mundo, ebriedade do diverso!») talvez seja o verdadeiro motor que inicia
a acção toda e a alimente até ao pretendido clímax.
A escolha de Tabucchi para a sua tradução recai no italiano fregola, que
ta
correctamente traduz o estado de excitação e de disponibilidade para o acasalamento
de certos mamíferos; e, tal como o português, pode ser usado também em sentido não
literal3. Mantendo esta escolha feliz na esmagadora maioria dos casos em que aparece
go
a palavra cio, contudo, Tabucchi decidiu por três vezes optar por uma tradução
diferente: temos duas vezes foia (TABUCCHI, A., 1993: 83/95) e uma vez calore
(IDEM: 93), dentro da expressão «gata com cio», que assim fica «gatta in calore». De
facto, é mais comum, em italiano, usar esta palavra, quando, no dia a dia, queremos
Es
referir-nos ao estado dos mamíferos supracitados. É evidente que a palavra calore não
podia ser utilizada no resto dos casos, especialmente se sem referência explícita a um
animal, pois ela também traduz a palavra portuguesa calor, e acabaria portanto por
engendrar ambiguidade na versão italiana. O que é menos evidente são as razões que
devem estar por trás da escolha de foia, por duas vezes, sem que haja nada que force a
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2 Na medida em que o Campos da Ode Marítima chega a desejar ser chicoteado, violado e até rasgado pelas
mãos e pelos corpos dos seus piratas de sonho, ousando cantar a violação das mulheres, Almada responde
cantando sodomia e lesbianismo, entre outras práticas sexuais, em Mima Fataxa e referindo-se várias vezes
Ed
a sensações explicitamente sexuais n'A Cena do Ódio. Além da superfície, porém, estes poemas e as demais
odes maiores de Campos são percorridos por um “cio” não necessariamente material, enquanto “histérico
entusiasmo” para com os vários aspectos da vida e da actividade modernas, como a navegação moderna, o
comércio, as grandes cidades e o cosmopolitismo em geral.
3 «Fregola, [fré-go-la], s.f., 1 Stato di eccitazione degli animali che si ripete con regolarità periodica in
concomitanza con la fase della riproduzione: essere, andare, entrare in f.; avere la f., ‖ SIN. calore, estro, 2
fig. Bramosia, voglia ardente e ostinata: ora gli è venuta la f. dell'automobile, ‖ Mania: la f. della pulizia».
(Dicionário Hoepli)
fregola[fré-go-la] s.f., 1 Eccitazione sessuale degli animali durante il periodo della riproduzione SIN foia:
andare in f.; estens. volg., stato di sovreccitazione sessuale, 2 fig. Desiderio eccessivo, smania di qlco. SIN
frenesia: avere la f. di fare qlco. (Dicionário Sabatini Coletti)
4 Estro […], 4 BIOL Nelle femmine dei Mammiferi, il periodo dell'ovulazione che le rende predisposte
A POESIA MODERNISTA PORTUGUESA EM ITALIANO.AS TRADUÇÕES DA ODE MARÍTIMA ... 121
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de Álvaro de Campos. Mesmo assim, Abbati/Ceccucci optam também uma vez por
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foia, exactamente na mesma posição em que Tabucchi propõe esta tradução pela sua
segunda vez (id.: 95 e CECCUCCI, P., 2012: 411), onde temos nos dois casos «di cui
sopravvive la foia» que traduz «cujo cio sobrevive».
Outra palavra-chave do poema sem um correspondente etimológico directo em
ta
italiano é longe, usado como substantivo, em Campos com L maiúsculo. Na primeira
ocorrência, que acontece com um adjectivo («o Puro Longe»), Tabucchi escolhe
traduzir com «la Pura Lontananza» (TABUCCHI, A., 1993: 79), enquanto Abbati/
go
Ceccucci preferem «il Puro Lungi» (CECCUCCI, P., 2012: 393). A seguir, os tradutores
mantêm a sua escolha («Lontananza» vs. «Lungi», 81 e 397 respectivamente), mas
logo depois Tabucchi decide mudar: ele propõe agora «Largo» (89) enquanto Abbati/
Ceccucci mantêm «Lungi» (405) para depois, quase no fim, também Tabucchi propor
Es
«Lungi» (107). Apesar de mais corrente, a proposta de Abbati/Ceccucci parece
menos imediata em italiano: enquanto lontananza é substantivo neutro e comum
para substantivar o que é longínquo, lungi é uma palavra que tem raro uso como
substantivo, criando um efeito de registo datado.
Oscilações encontram-se ainda na tradução do português vapor enquanto
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propõe piroscafo que, nas duas traduções, traduz também o paquete, que aparece no
começo do poema.
De entre os nomes de embarcações, assinalamos ainda a diferente escolha feita para
traduzir o português naus: por um lado «caravelle» (TABUCCHI, A., 1993: 125) e
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por outro o mais neutro «navi» (CECCUCCI, P., 2012: 447) que geralmente significa
navios. Certo é que nenhum dos tradutores escolhe traduzir à letra, pois existiria uma
Ed
palavra que se refere exactamente a uma nau em italiano: caracca5. Por outro lado,
certo é, também, que a esmagadora maioria dos italianos não conhece esta palavra, ao
all'accoppiamento e alla riproduzione: e. venereo (Dicionário Hoepli)
1 Esaltazione creativa dell'artista, del poeta, sinonimo: ispirazione: e. musicale, 2 Bizza, capriccio: gli è venuto
l'e. di scrivere, 3 biol. e. sessuale, nelle femmine dei mammiferi, attivazione del desiderio (Dicionário Sabatini
Coletti)
5 «caracca, [ca-ràc-ca], s.f. (pl. -che), ST Grossa nave a vela, da guerra o da carico, munita di due o tre alberi,
con un castello a prua e uno a poppa e armata di cannoni, usata dai Portoghesi e dai Genovesi dal XIV al XVII
sec». (Dicionário Hoepli)
«caracca [ca-ràc-ca] s.f. (pl. -che), Grande nave a vela con due o tre alberi, due castelli, armata di cannoni,
usata da genovesi e portoghesi nei secc. XIII-XVI». (Dicionário Sabatini Coletti)
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naus tem o mérito claro de ligar desde logo à época dos Descobrimentos, usando uma
da
palavra de uso comum em italiano. Navi, pelo contrário, sendo mais parecido com
o original por causa do som, não tem qualquer conotação histórica, sendo o que os
linguistas chamam de versão não marcada do substantivo.
Outra coisa interessante a assinalar é a diferente tradução da palavra negro, referida
ta
a ser humano. Enquanto Tabucchi tem negri e negre (TABUCCHI, A., 1993: 85),
Abbati/Ceccucci têm neri e nere (CECCUCCI, P., 2012: 403), mais em linha com o
politicamente correcto da altura.
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Depois desta rápida revista, é claro que, para qualquer italiano, a palavra fregola
é mais prontamente e menos ambiguamente identificada como cio do animal, com
valor sexual, e portanto da forma pretendida por Álvaro de Campos. Sendo a tradução
de Tabucchi anterior à de Ceccucci, não percebemos a exigência desta mudança.
Es
No caso de Almada Negreiros, esta análise concentrar-se-á em dois poemas: Mima
Fatáxa – Sinfonia Cosmopolita e Apologia do Triângulo Feminino e A Cena do Ódio,
sendo os dois poemas longos mais iconoclastas e vulcânicos dentro da obra poética
deste autor.
O texto de Almada é muito diferente da poesia de Campos. De alguma forma, Almada
s
usa palavras mais “difíceis” do que Campos, ao menos do ponto de vista do tradutor. É
õe
evidente o gosto pelo exótico, pelo marginal, pelo pouco usual, que leva Almada a fazer
escolhas lexicais que nos levam continuamente a uma pesquisa incessante.
Nos dois casos em questão, embatemos com um Almada mais experimental, mais
exigente do que o Campos da Ode Marítima. Se, por um lado, Ceccucci assinala na
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sua introdução (CECCUCCI, P., 2012: LXXXIV) que Fernando Pessoa muitas vezes
joga com a língua, torcendo a gramática para os seus fins, e assim dificultando a tarefa
Ed
s
No entanto, da análise já efectuada das traduções publicadas, o que ressalta é, em ambos
da
os casos, uma preocupação de rigor e a tentativa de, sempre que possível, seguir de
muito perto o texto. Da tradução mais recente transparece, a certos passos, uma certa
preocupação em actualizar o registo, particularmente no que diz respeito a termos
mais eruditos, o que nem sempre acontece, havendo por exemplo recurso a um tipo de
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vocabulário que caíra em desuso já aquando da publicação desta tradução.
Bibliografia final
go
ALMADA NEGREIROS, José de (2000). L’invenzione del giorno chiaro: Pisa, ETS.
ALMADA NEGREIROS, José de (2001). Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim.
ALMADA NEGREIROS, José de (2014). Prosa d’avanguardia, Perugia: Edizioni
Es
dell’Urogallo.
ALMADA NEGREIROS, José de (2014). Nome di battaglia, Perugia: Edizioni
dell’Urogallo.
PESSOA, Fernando (1979). Una sola moltitudine, Milano: Adelphi. (volume
primo)
s
secondo)
PESSOA, Fernando (1993). Poesie di Álvaro de Campos, Milano: Adelphi.
PESSOA, Fernando (2009). Il mondo che non vedo. Poesie ortonime, Milano: BUR.
PESSOA, Fernando (2012). Un’affollata solitudine. Poesie eteronime, Milano: BUR.
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