Reiki - Estudo Acadêmico

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCar

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS – CECH


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS – PPGCSo

PAULA DE CAMPOS BABENKO

REIKI:

UM ESTUDO LOCALIZADO SOBRE TERAPIAS ALTERNATIVAS,


IDEOLOGIA E ESTILO DE VIDA

SÃO CARLOS
2004
PAULA DE CAMPOS BABENKO

Reiki:

Um estudo localizado sobre terapias alternativas, ideologia e estilo de vida

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre.

Área de Concentração: Relações Sociais, Poder e Cultura.

Orientadora: Profa. Dra. Marina Denise Cardoso.

São Carlos
2004
Ficha Catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar

Babenko, Paula de Campos.


B113re Reiki: um estudo localizado sobre alternativas,
ideologia e estilo de vida / Paula de Campos Babenko. --
São Carlos : UFSCar, 2004.
114 p.

Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São


Carlos, 2004.

1. Antropologia. 2. Antropologia da saúde. 3. Terapias


alternativas. 4. Reiki. I. Título.

CDD: 301 (20a)


ii

FOLHA DE APROVAÇÃO

PAULA DE CAMPOS BABENKO


Reiki: um estudo localizado sobre terapias alternativas, ideologia e estilo de
vida

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre.

Área de Concentração: Relações Sociais, Poder e Cultura.

Aprovação em: 23/09/2003.

Banca Examinadora:

Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – PPGAS
Universidade de São Paulo – USP

Prof. Dr. Luiz Henrique Toledo


Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PPGCSO
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

Profa. Dra. Marina Denise Cardoso


Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PPGCSO
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
iii

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Marina Cardoso, orientadora e amiga, por aceitar a proposta desta


pesquisa e constantemente estimular o aprimoramento e a divulgação dos resultados.

A José Guilherme Magnani e Luiz Henrique Toledo, participantes da banca


avaliadora desta dissertação. A Paul Charles Freston, que juntamente com José
Guilherme Magnani integrou a banca de qualificação. Ambas as leituras mostraram-me
as inúmeras possibilidades e os limites do meu trabalho. Como não considero as
discussões realizadas encerradas, procurei incorporar ao texto algumas das críticas e
sugestões que julguei pertinentes à minha proposta de investigação.

Aos interlocutores em campo serei sempre grata por participarem da construção


desta etnografia, ainda que em graus e momentos diferenciados.

À minha família, por seu amor incondicional e inesgotável apoio. À Lígia e Valdir
Babenko dedico este trabalho. Juntos, ainda que aos tropeços, estamos aprendendo a
conviver com a distância.

Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de


São Carlos, pela oportunidade de realizar o mestrado.

E, finalmente, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo -


FAPESP, pela concessão da bolsa de pesquisa e financiamento deste trabalho.
iv

“Uma coisa é observar as pessoas executando gestos estilizados e


cantando canções enigmáticas que fazem parte da prática dos
rituais, e outra é tentar alcançar a adequada compreensão do que
os movimentos e as palavras significam para elas”.

Victor Turner. O Processo Ritual.


v

RESUMO

BABENKO, P. de C. Reiki: Um estudo localizado sobre terapias alternativas,


ideologia e estilo de vida. Dissertação de Mestrado, 114p. Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, 2004.

Demonstrando como a consolidação das práticas alternativas pode traduzir o gradual


deslocamento da problemática do indivíduo para a esfera das terapias, esta dissertação
analisa o reiki, prática terapêutica alternativa cuja principal característica reside na
adoção de concepções holistas do corpo, da doença e da própria “pessoa”. Evidenciando
o processo de expansão e progressiva institucionalização dessa prática terapêutica, a
etnografia dos espaços reikianos em Campinas/SP aponta para a reestruturação dos
serviços oficiais de atenção à saúde, especialmente do campo da Psicologia, que ao
fundamentar seu discurso na noção de “indivíduo” moderno passa a agregar o reiki à sua
prática clínica.

Palavras Chave: Antropologia. Antropologia da saúde. Terapias alternativas. Reiki.


vi

SUMÁRIO

PARTE I: AS PRÁTICAS TERAPÊUTICAS ALTERNATIVAS ............................................................... 1


1. A acusação da demanda...................................................................................................... 4
2. Sobre a realização da pesquisa........................................................................................... 21
3. O paradigma holístico e a construção do objeto investigado.................................................... 24
PARTE II: A TRAJETÓRIA DO REIKI......................................................................................... 29
4. A redescoberta do reiki e as modificações recebidas no Ocidente............................................. 29
5. O reiki no Brasil ............................................................................................................... 36
PARTE III: O REIKI COMO RITUAL .......................................................................................... 40
6. Fundamentações da prática ............................................................................................... 41
7. O rito de iniciação ............................................................................................................ 48
8. As sessões terapêuticas de purificação ................................................................................ 55
PARTE IV: CIRCUITOS E TRAJETOS ALTERNATIVOS COMO CONTEXTO ETNOGRÁFICO ................... 59
9. Origens da rede alternativa................................................................................................ 59
10. Regulamentação profissional ............................................................................................ 63
11. Circuito reikiano: prática e profissionalização...................................................................... 67
12. Trajetos do reiki ............................................................................................................. 74
13. Os espaços alternativos ................................................................................................... 78
13.1 Os espaços terapêuticos espiritualistas ........................................................................ 81
13.2 Os espaços terapêuticos psicológicos........................................................................... 83
14. O reiki no campo das psicologias alternativas ..................................................................... 84
14.1. O discurso junguiano ............................................................................................... 88
14.2. O discurso gestáltico-terapêutico ............................................................................... 96
CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................................107
BIBLIOGRAFIA CITADA ....................................................................................................... 110
ANEXOS ............................................................................................................................115
PARTE I

AS PRÁTICAS TERAPÊUTICAS ALTERNATIVAS

Um dos fenômenos que tem chamado bastante a atenção durante os últimos anos diz

respeito à formação e disseminação das práticas alternativas1. Sob o ponto de vista

antropológico, embora exista um conjunto substantivo de pesquisas evidenciando tal

expansão, muito pouco tem se falado sobre uma das ênfases abordadas por essas práticas e

que, de uma maneira bastante simplificada, podem ser definidas como medicinas ou terapias

alternativas2, e a sua importância na interpretação e tratamento da doença.

Reputadas por alguns como excentricidade, mas vividas por outros como o exercício

de novos valores, uma das principais características compartilhadas entre os afiliados às

práticas terapêuticas alternativas reside em “novas” percepções do corpo, da doença e da

terapia.

Neste sentido, dentro da cosmologia alternativa3, a passagem da doença à saúde

corresponderia a uma reorientação mais ampla do comportamento dos indivíduos, na medida

em que é transformada a perspectiva pela qual os afiliados a essas terapias passam a organizar

sua visão de mundo, seus relacionamentos interpessoais. Caberia, portanto, identificar os

meios pelos quais as terapias alternativas, ao conformarem um campo de serviços de atenção

1
A denominação práticas alternativas refere-se ao conjunto de práticas de origens diversas, cuja fundamentação
assenta-se em princípios holísticos e que parece ser típico dos estratos médios e intelectualizados da população
urbana. Embora outras denominações como “holísticas” ou “neo-esotéricas” também lhes sejam freqüentemente
associadas, não há um consenso sobre qual seria a maneira mais adequada para definir esse conjunto em sua
totalidade.
2
As medicinas ou terapias alternativas correspondem a uma das vertentes das práticas alternativas que abarca
um conjunto de práticas medicinais terapêuticas fundamentadas predominantemente em preceitos filosóficos
orientais.
3
Aqui entendida como o conjunto de preceitos de origens diversas que compõe o universo simbólico dessas
2

à saúde que é desenvolvido paralelamente ao sistema biomédico4 efetuam essa transformação.

Tendo em vista essas considerações, esta dissertação tomou o reiki como objeto

privilegiado para a realização de suas análises tratando investigar como essa terapia

alternativa vem sendo incorporada aos serviços oficiais de atenção à saúde. Neste sentido,

procurou-se compreender como a constituição e a consolidação das práticas alternativas no

mundo contemporâneo pode traduzir o progressivo deslocamento da problemática do

indivíduo5 para a esfera das terapias.

Para fundamentar tais análises recorreu-se a entrevistas com os afiliados ao reiki6 e as

observações participantes que foram realizadas na cidade de Campinas/SP e que

corresponderam, fundamentalmente, a três etapas etnográficas: (a) a primeira delas, realizada

entre os meses de junho e julho de 2001; (b) a segunda, que correspondeu aos meses de

dezembro de 2002 e março de 2003 e; (c) a terceira, iniciada na última quinzena de junho e

finalizada em agosto de 2003.

práticas alternativas.
4
O sistema médico oficial ou simplesmente modelo biomédico refere-se à teoria e prática médicas
predominantes no Ocidente e amplamente disseminadas em todo o mundo, tendo como sinônimas algumas
expressões que, em geral, definem a medicina como “oficial”, “tradicional”, “científica” e “alopática”. O sistema
médico oficial apresenta dentre suas principais características o foco sobre o ser humano enquanto entidade
essencialmente biológica (Kleinman, 1980).
5
De acordo com Dumont (1985), a passagem da “sociedade tradicional” para a “sociedade moderna” deu-se a
partir de uma “inversão de valores”, onde a noção de “pessoa”, anteriormente associada às “sociedades
tradicionais” e ao princípio de hierarquia social, passou a “coincidir” com a própria noção de “indivíduo”, que
passa a valorizar seu próprio “universo interior” em detrimento da idéia de sociedade. Portanto, se partirmos do
suposto que a categoria “pessoa” é uma lenta construção de cada grupo sobre os seus membros, tem-se que a
“pessoa”, agora transformada em “indivíduo”, torna-se uma expressão localizada das representações coletivas -
no sentido durkeimiano do termo - ou da ideologia - na terminologia dumontiana -, que se traduz na formação de
comportamentos constitutivos dessas “novas personalidades”.
6
Adota-se a denominação afiliados ao reiki para referir-se tanto às pessoas que oferecem serviços relacionados à
sua prática, como a realização de cursos de formação, palestras e workshops; quanto àquelas que apesar de não
terem passado pelo processo de formação em reiki utilizam esses serviços. Dessa denominação mais ampla
deriva um outro termo: reikiano, que ao se referir às pessoas que além de praticarem o reiki também oferecem
seus serviços, em relação ao seu grau de “envolvimento” com o reiki podem ser denominadas: iniciadas, pessoas
que cursam o nível I do reiki; terapeutas reikianos, aqueles que cursam pelo menos os níveis I e II do reiki e que
são “capacitadas” a realizar a aplicação da terapia em si mesmo ou nos outros; e os mestres, pessoas que
cursaram os níveis I, II e III do reiki e que além das aplicações terapêuticas estão aptas a iniciar outras pessoas
nessa prática. A denominação afiliados ao reiki, portanto, refere-se não apenas aos usuários desses serviços, os
também denominados clientes, mas engloba o vasto conjunto de reikianos, que pela sua própria definição abarca
seus iniciados, terapeutas e mestres.
3

No que se refere à estrutura desta dissertação, a análise dos dados etnográficos foi

sistematizada da seguinte maneira: na Parte I, intitulada: As práticas terapêuticas alternativas

são apresentadas algumas considerações sobre a demanda por essas práticas, evidenciadas as

condições em que foi realizada a pesquisa etnográfica e esclarecida a maneira como foi (re)

construído o objeto de investigação. Na Parte II: A trajetória do reiki, conta-se, acima de tudo,

histórias. A história de como o reiki foi descoberto, quais foram os responsáveis por inseri-lo

no Ocidente e, a mais curiosa de todas as histórias, marcada por desencontros, que reconstitui

a chegada do reiki ao Brasil. Na Parte III: O reiki como ritual, são pormenorizados: as

fundamentações desta prática alternativa, os rituais de iniciação e as sessões terapêuticas de

purificação. Como parte desse material foi parcialmente apresentado na monografia de

conclusão de curso da pesquisadora (Babenko, 2001), foram acrescentados dados mais

recentes e melhor elaborados. A Parte IV: Circuitos e espaços alternativos como contexto

etnográfico, assim como a Parte II é repleta de histórias. Histórias contadas por aqueles que

foram os propulsores da rede alternativa7 campineira, histórias sobre como o reiki se

estabeleceu em Campinas, sobre os locais onde são oferecidos serviços e produtos a ele

relacionados, histórias sobre aqueles que só se dirigem às clínicas e centros holísticos para

receber sessões de reiki, histórias sobre aqueles que se tornam profissionais em reiki. Graças a

essas últimas pessoas, inclusive, é que se puderam contar histórias ainda mais curiosas que

revelaram: além dos terapeutas holísticos há mais gente se interessando pelo reiki.

Atendendo à solicitação de parte significativa dos informantes, seus nomes foram

trocados a fim de garantir-lhes o anonimato e evitar algum possível desconforto. A

diversidade dos relatos dos informantes, assim como a análise dos dados etnográficos,

7
O temo rede alternativa refere-se ao conjunto de pessoas que “circulam” pelas salas, clínicas e centros
holísticos, lojas de produtos esotéricos, sítios e chácaras onde são oferecidos os serviços e produtos demandados
por aqueles que se reconhecem “alternativos”, “holísticos”, “esotéricos”, “místicos” ou ainda “neo-esos” e que
apesar de suas heterogeneidades se agrupam em torno de uma regularidade discursiva: o “paradigma holístico”.
4

apontou nas Conclusões Finais aquele que, considerado pressuposto antropológico, serve de

recado à medicina oficial: tolerar é ainda muito pouco, é preciso compreender o outro para

então aprender a conviver com as diferenças.

1. A acusação da demanda

Quando se fala em acusação de demanda há que se reconhecer as suas peculiaridades e

extensões. Em sua grande parte, a clientela dos espaços alternativos justifica a afiliação às

terapias holísticas pela descrença no sistema médico oficial.

De acordo com Luz (1996), o deslocamento epistemológico e clínico da medicina

moderna, da “arte de curar indivíduos doentes” para a “disciplina das doenças”, supôs uma

passagem que se iniciou no final do século XV, com o Renascimento, e foi até o século XVI,

com a Anatomia. Nessa perspectiva, o movimento de ruptura das antigas maneiras de

conceber o organismo humano instaurou uma nova “racionalidade médica”, moderna,

caracterizada pelo enfoque sobre a biologia humana. Depreendeu-se a partir da transformação

da prática clínica uma outra noção de “saúde” (que passou a ser vista como ausência das

doenças) e de “cura” (encarada como a eliminação dos sintomas).

Constatando que desde o Renascimento o ensino da clínica se organizou a partir da

transmissão dos conhecimentos de um professor para seus alunos, Foucault (1978) avaliou

que os casos tratados, ao serem reunidos numa espécie de corpo da nosologia, fizeram com

que a clínica médica se fechasse sobre a totalidade de uma experiência ideal, situação esta que

corresponderia a afirmar que mais importante que o encontro entre o doente e o médico, a
5

prática clínica ocidental moderna objetiva decifrar as doenças que acometem os pacientes,

considerados unicamente como portadores de patologias.

Apesar de não existir uma categoria biomédica explícita de “doença”, Camargo Jr.

(1993) afirmou que há algumas proposições que não estão escritas em lugar nenhum, mas que

operam como uma “teoria das doenças”. Representativa dessa afirmação é a própria noção de

“doença” partilhada entre os médicos. Para a Biomedicina, as doenças correspondem a coisas

de existência concreta, expressas por um conjunto de sinais e sintomas que deve ser buscado

no organismo e corrigido por algum tipo de intervenção medicamentosa.

Embora o questionamento do modelo biomédico de explicação e causa das doenças ter

sido iniciado na literatura, nota-se, de acordo com Luz (1996), que pouco ou quase nada

interferiu nas direções do desenvolvimento teórico e prático da medicina ocidental moderna.

Dentro deste quadro destacam-se pesquisas na área da Antropologia da Saúde que, ao

conjugarem em suas análises fatores psicobiológicos e sócio-culturais, buscam apontar os

limites e a insuficiência do modelo biomédico. A complexidade do objeto desses estudos, para

Tesser e Luz (2002), evidencia a multiplicação de discursos sobre saúde coexistentes, cada

um privilegiando diferentes fatores e sugerindo estratégias de intervenção diversas.

Considerando a “cultura” como dinâmica e heterogênea, a “doença” como uma

experiência subjetiva e a partir de um esforço de relativização da Biomedicina, alguns

antropólogos constatam que dentre os vários sistemas terapêuticos existentes, o modelo

médico científico constitui apenas um deles. Mais do que isso, reiteram a existência de

propostas alternativas ao modelo biomédico no trato das doenças.

Foi nesse contexto que Kleinman (1980; 1988) criticou o pressuposto de que os

referenciais biomédicos não são únicos tampouco universais e propôs que tais categorias

fossem consideradas modelos explanatórios específicos ao contexto ocidental. Assim, afirmou


6

a necessidade de uma mudança paradigmática no desenvolvimento teórico-metodológico das

pesquisas na área da saúde.

O autor então ressaltou a existência das dimensões biológica e cultural da doença

agrupando-as em duas categorias: “patologia” (disease) e “enfermidade” (illness). Patologia

designa alterações de processos biológicos, fundamentados de acordo com a concepção

biomédica. Na dimensão biológica da doença, o funcionamento patológico dos órgãos ou

sistemas fisiológicos ocorre independentemente do seu reconhecimento ou percepção por

parte do indivíduo. Enfermidade, por outro lado, incorpora não somente a experiência e

percepção individual, que são relativas aos problemas decorrentes da patologia, mas também

engloba a reação social à enfermidade e diz respeito aos processos de significação da doença.

Referindo-se à maneira de manifestar e lidar com a experiência do adoecimento, a

enfermidade é anterior à doença, produzida a partir de uma reconstrução técnico-científica do

profissional no encontro com o paciente, a partir de um diálogo em torno do “idioma

culturalmente compartilhado da doença” (Kleinman apud Coelho e Almeida Filho, 2002).

Como todo ato médico pressupõe uma relação que se estabelece entre os que promovem os

cuidados de saúde e aqueles que a eles recorrem, tem-se, no momento em que o paciente

procura tais serviços, a colisão entre duas visões diferentes: patologia de um lado e

enfermidade de outro.

Analisando o fenômeno sob essa perspectiva, uma das questões centrais ao defrontar

médicos e pacientes é o encontro de modelos explanatórios diferenciados, o que foi bastante

desenvolvido nos trabalhos de Kleinman (1980; 1988). Segundo esse autor, a saúde, a

enfermidade e o cuidado compõem partes de um sistema cultural e, como tais, devem ser

entendidos em suas relações mútuas. Por esse motivo, os diversos setores que compõem o

sistema de cuidados à saúde e seus respectivos modelos explanatórios devem ser examinados
7

em suas inter-relações, a fim de que sejam apreendidos a natureza dos mesmos e o modo

como funcionam em determinado contexto.

Tesser e Luz (2002), a esse respeito, afirmam haver alguns elementos envolvidos na

elaboração dos modelos explanatórios. Seriam eles: a etiologia da doença, a duração e

características dos sinais e sintomas iniciais, a fisiopatologia, a evolução natural e o

prognóstico, e o tratamento indicado para o problema. Esses elementos, tal como advertiram

os autores, nem sempre são pensados nessa seqüência ou estão completamente articulados

entre si, podendo inclusive apresentar inconsistências, erros e até mesmo contradições

internas. De toda maneira, essa parece ser a base a que as pessoas recorrem para tentar

explicar as enfermidades que lhes acometem.

Em cada cultura, a doença, a resposta que os indivíduos dão a ela, de que maneira a

experienciam, os que se ocupam em tratá-la estão interconectados nesse sistema de cuidados à

saúde e que também contempla, dentre outros elementos, as crenças sobre a origem das

doenças, as formas de busca e avaliação do tratamento, os papéis desempenhados e as

relações de poder entre todos os envolvidos (Foucault, 1978; Boltanski, 1979; Langdon,

1985). Os pacientes e os agentes de cura, portanto, são componentes básicos desse sistema,

estando imersos num contexto de significados culturais e de relações, não podendo ser

entendidos fora dele.

É por essa razão que “doença”, assim como qualquer outro sistema cultural, deve ser

entendido como um sistema simbólico. Ou, como sustentado por Kleinman (1980), estudos de

nossa própria sociedade e investigações comparativas devem iniciar contemplando a atenção à

saúde como um sistema que é social e cultural na sua origem, estrutura, função e significado.

É assim que a Antropologia da Saúde apresenta sua contribuição, no sentido de

explicitar que todas as atividades relacionadas à atenção à saúde estão inter-relacionadas,


8

tendendo a constituir uma forma socialmente organizada para enfrentar a doença e formar, a

exemplo da religião e da linguagem, um sistema cultural próprio designado “sistemas de

cuidados à saúde” (Kleinman, 1988).

Incluindo a discussão sobre a construção social da realidade abordada por Berger e

Luckman (1983) e, nesse sentido, admitindo que as relações entre os indivíduos são

governadas e legitimadas por regras culturais específicas de cada grupo, retomam-se os

estudos de Kleinman (1980; 1988) e o enfoque sobre a prática clínica oficial moderna.

Ao constatar que as crenças sobre as doenças, os comportamentos exibidos pelas

pessoas doentes, suas expectativas frente ao tratamento e o modo como esses reagem em

relação à família e aos agentes de saúde são todos aspectos da realidade social, o autor sugeriu

que a prática médica “ocorre em” e cria mundos sociais particulares. O autor prosseguiu sua

análise denominando os aspectos da realidade social que permitiriam relacionar saúde aos

aspectos da realidade clínica. Esses aspectos referem-se ao contexto social que influencia o

desenvolvimento da doença e o cuidado clínico, estabelecendo assim uma correlação entre as

realidades clínica e simbólica de um lado, e entre a realidade física e a psicobiológica de

outro. Tal conceituação, pois, torna-se útil para esclarecer não apenas como a prática clínica é

socialmente construída, mas, principalmente, evidenciar como “o mundo social pode ser

clinicamente construído”.

Admitindo que as relações que as comunidades estabelecem com seus serviços de

saúde são um tanto quanto complexas, parece ser de fundamental importância considerar os

múltiplos aspectos culturais que são subjacentes à “doença”, já que, frente à própria dinâmica

dessas interações, está em jogo a legitimação dos serviços de saúde frente à determinada

comunidade.

Observando que o sistema de cuidados à saúde não se limita ao setor oficial, Kleinman
9

(1980) concluiu que esse sistema é composto por três setores: o setor popular, o setor oficial

(ou profissional) e o setor folk (ou tradicional).

O setor popular, em geral o maior dos setores, é aquele em que a família e o grupo

social mais próximo desempenham papel importante. É um espaço eminentemente leigo, onde

a doença começa a ser definida e onde são desencadeados os vários processos terapêuticos de

cura. Já o setor profissional representa a organização formal da prática de saúde e na maior

parte dos casos tem a Biomedicina como referencial. Este é o setor que em certos países, por

ser mais desenvolvido e organizado, submete todas as outras práticas de saúde a sua

autoridade. E, por fim, o setor tradicional que abrange todas as demais práticas de saúde não-

científicas, como, por exemplo: os erveiros, os benzedores, os cultos religiosos de cunho

terapêutico, as terapias alternativas de cura.

Em cada um desses setores, médicos, curados, pacientes e respectivos membros das

famílias possuem diferentes modelos explanatórios para a etiologia das doenças, os sintomas,

o curso e o tratamento das enfermidades. Essas múltiplas explicações são socialmente

construídas e necessitam serem negociadas no processo de cura. Têm-se, pois, que os padrões

de saúde e enfermidade variam não somente em diferentes sociedades, mas também no seu

interior. Contribuem para essas diferenciações a posição socioeconômica e cultural dos

indivíduos.

Seqüenciando a idéia de Kleinman (1988) sobre a “relatividade cultural da

enfermidade”, Good (1994) teceu uma série de críticas à racionalidade biomédica e propôs

um modelo hermenêutico cultural para a prática clínica que, segundo o próprio autor,

possibilita investigar a experiência da enfermidade em diferentes culturas, examinando a

fenomenologia desse processo, os modos pelos quais elas são narradas, os rituais empregados

para reconstruir sua experiência.


10

Para tanto, introduziu a noção de “rede semântica” a fim de relacionar as concepções

de saúde e enfermidade a valores culturais distintos,. Ainda que considerasse a enfermidade

como uma experiência dotada de sentido para cada sujeito particular, o autor ressaltou que,

mesmo assim, é importante considerar a relação existente entre os sentidos individuais e a

rede de significados inerentes a cada contexto cultural mais amplo em que se inserem os

indivíduos. A enfermidade, tomada como rede semântica, realidade construída por meio de

processos de interpretação e significação, se fundamentaria então numa rede de significados

que é socialmente construída.

Dialogando com essa tradição interpretativa, porém muitas vezes a ela se opondo,

surgiu ao longo dos anos de 1980 uma linha de estudos na Antropologia da Saúde que busca

compreender a relação entre as condições de saúde dos indivíduos, as formas de organização

dos sistemas médicos e as forças econômicas e políticas, locais e globais. Com esse objetivo,

parte-se do suposto que as relações e os comportamentos sociais são moldados pela

macroestrutura social e política, gerando significados sociais e experiências coletivas, dentre

os quais se incluem as representações sobre a doença e o saber médico (Coelho e Almeida

Filho, 2002).

Young (1982), ao postular que a distinção entre patologia (disease) e a sua dimensão

experiencial (illness) mostra-se insuficiente para dar conta da dimensão social dos processos

de adoecimento, elaborou uma análise crítica dos modelos propostos por Kleinman (1980;

1988) e Good (1994). Para superar a limitação de tais modelos, que segundo o autor

consideram apenas o indivíduo como objeto e arena dos processos de enfermidade, não

relatando os modos pelos quais as relações sociais os consolidam, propôs a substituição do

esquema “patologia-enfermidade-doença” ao “doença-patologia-enfermidade” que, segundo o

próprio proponente, concederia maior centralidade à “doença”.


11

Coelho e Almeida Filho, concentrando-se na produção desses modelos explanatórios,

concluíram que a Antropologia da Saúde que segue essa linha interpretativa, de fato,

permaneceu limitada às práticas curativas e à perspectiva da saúde sinônima de ausência de

enfermidade. Para esses autores, Kleinman (1980; 1988) manteve-se preso aos pressupostos

que ele mesmo criticou e questionou. Sua visão multidisciplinar da saúde e da enfermidade,

ainda que considerasse a importância concedida às crenças e aos significados culturais, bem

como a proposta de integração dos diversos setores do sistema de cuidados à saúde e dos

respectivos modelos explanatórios, não foi suficiente para deslocar o foco da abordagem

médico-antropológica da enfermidade para a saúde. Em outras palavras, ele não conseguiu

seguir o seu próprio recurso metodológico para discutir as categorias correlatas à enfermidade

e ao cuidado de forma integrada, restringindo-se a analisar a enfermidade em suas relações

com a cura, sem que efetivamente analisasse o conceito de saúde.

Outra crítica dirigida aos estudos de Kleinman8 e Good (1994) está relacionada aos

fatores socioeconômicos dos processos de saúde e da doença. Young (1982) afirmou que

embora Kleinman tenha enfatizado os determinantes sociais dos modelos explanatórios e

Good tenha ressaltado as relações de poder nos discursos e nas práticas médicas, ambos não

compreenderam realmente uma análise desses aspectos em seus trabalhos. Na prática,

concluíram os autores, tanto o modelo explanatório quanto as redes semânticas não

consideraram as relações de poder presentes entre os diversos grupos e classes sociais.

Aos modelos explanatórios de Kleinman, Young acrescentou duas outras formas de

conhecimento da enfermidade, os protótipos e os complexos encadeados. O protótipo, embora

possa expressar relações de causa e efeito, freqüentemente revela associações de semelhança,

limitado a um pequeno círculo de pessoas. O complexo encadeado, por sua vez, diferencia-se

do protótipo por ser produto de forças inconscientes. As declarações dos informantes sobre a
12

enfermidade, de acordo com essa orientação, seriam produtos da combinação entre o modelo

explanatório, o protótipo e o complexo encadeado.

Em continuidade com essa perspectiva crítica levantada por Young (1982), alguns

autores passam a defender o desenvolvimento de uma nova Antropologia da Saúde capaz de

superar a dualidade entre cultura e sociedade, mediante a proposição de uma espécie de teoria

dos sistemas de signos, significados e práticas. Ao mesmo tempo em que essa teoria reforça a

noção de “rede semântica” desenvolvida por Good (1994), ela afirma a necessidade de se

considerar o contexto socioeconômico, político e histórico dos processos de saúde e doença.

Young9, ao contrapor-se a Kleinman (1980; 1988), considerou que “doença” não é um

termo neutro, mas sim que compreende um processo por meio do qual signos biológicos e

comportamentais são significados socialmente como sintomas. Esses sintomas, por sua vez,

são ligados a sintomatologias que se associam a certas etiologias e intervenções, cujos

resultados legitimam tais traduções. Dependendo da posição socioeconômica do enfermo, a

mesma patologia implica diferentes enfermidades, doenças e processos de cura. Nessa

abordagem, e enfermidade e a cura são práticas ideológicas que reproduzem as relações

sociais e os modelos explanatórios, enquanto as redes semânticas, constituem construções

culturalmente determinadas.

Por mais pertinentes que sejam essas críticas à Antropologia da Saúde,

particularmente à norte-americana (ou Antropologia Médica, como freqüentemente é

designada), as contribuições desses estudos são inquestionáveis: os vários anos de prática

clínica, somados aos trabalhos etnográficos, evidenciam que os sistemas de cuidado à saúde,

por constituírem uma forma organizada de enfrentamento da doença, correspondem a

construções culturalmente moldadas e, portanto, diferencialmente referidas nos contextos

8
Ibid.
13

sociais em que se aplicam.

Dessa maneira, frente à constatação de que existem aspectos epistemológicos da

Biomedicina que são desconsiderados pela própria prática clínica, seja na prevenção seja na

terapêutica, parece inevitável responsabilizar a racionalidade médica científica, ela própria,

por seu envolvimento nos problemas que dificultam uma melhor resolução dos dilemas

vividos pela área da saúde. Não é para menos que crescem exponencialmente os estudos que

apontam essa “cegueira paradigmática” da medicina ocidental moderna como um dos

principais motivos pelo qual as terapias não-científicas, para aquém de serem reconhecidas

pela Biomedicina como modelos terapêuticos, serem reconhecidas como misticismo,

charlatanismo ou crendice.

Já há algum tempo fala-se que há algo errado Biomedicina. Falam disso os usuários,

os críticos dos serviços de saúde e os próprios médicos. O que varia nessas narrativas são as

leituras da situação, que apontam causas e estratégias de intervenção distintas para o

problema.

De acordo com Cardoso (1999a), o requisito e a característica básica do modelo

médico-assistencial contemporâneo é sua expansão, quer ela seja diferenciada ou não, tanto

em relação ao provimento interno aos Estados nacionais de assistência básica, quanto a sua

progressiva internacionalização. Portanto, ao verificarmos a considerável expansão dos

serviços médicos, notadamente o alto grau de tecnicismo e sofisticação que os mesmos

passaram a prestar, bem como a progressiva generalização do seu consumo, dois pontos

devem ser observados.

O primeiro deles relaciona-se às contradições geradas pela própria expansão dos

9
Ibid.
14

serviços médicos. De acordo com Singer et al (apud Cardoso10), desde 1970 observa-se que

essa expansão tem se caracterizado pela extensão dos cuidados assistenciais por um lado, e

por uma “tecnificação” e crescimento de especialidades por outro, que, entre outros aspectos,

e a despeito das políticas descentralizadoras e dirigidas para a formulação de programas

comunitários de cuidados médicos, assenta-se sobre um aparato institucional e técnico que

não somente dificulta o acesso aos serviços, mas também recobre um dado de extrema

importância: “se o controle dos índices de mortalidade e o aumento da expectativa de vida

foram alcançados em grandes regiões, devido prioritariamente ao controle de doenças infecto-

contagiosas, houve um aumento significativo da morbidade, representado principalmente

pelas doenças degenerativas cardiovasculares e mentais, cuja etiologia ou é desconhecida ou o

tratamento é antes paliativo que curativo” (Cardoso, 1999a : 03).

De fato, para Birman (apud Cardoso11), dados e informações provenientes da prática

clínica revelam que entre 50 a 70% do atendimento clínico realizado não há constatação de

causalidade orgânica presumida para a explicação de sintomas que os pacientes apresentam.

Esses fatores de “desconhecimento” e “imprecisão diagnóstica e terapêutica”, par a par com a

dificuldade do acesso aos serviços terapêuticos e o caráter autoritário e impessoal do qual se

reveste usualmente a prática clínica, seriam então considerados, tanto pelos pesquisadores,

como pelos próprios usuários, como uma das razões que levariam à permanência das práticas

terapêuticas tradicionais, principalmente aquelas que apresentam também um caráter de

natureza mágico-religiosa.

Falando de experiências concretas, os casos ocorridos com Bernardo e Solange são

representativos desse processo, onde a prática clínica pode ser caracterizada por fatores de

desconhecimento, imprecisão diagnóstica e terapêutica ou ainda onde não há constatação de

10
Ibid.
11
Ibid.
15

causalidade orgânica presumida para a explicação de sintomas que os pacientes apresentam.

Bernardo, 50 anos, sempre foi uma pessoa preocupada com seu estado de saúde.

Mantém uma dieta equilibrada e diariamente pratica exercícios físicos. Apesar desses

esforços, há cerca de três anos teve o princípio de um infarto, provavelmente ocasionado pela

elevação da pressão arterial. Diante da situação colocada, Bernardo inicia uma verdadeira

incursão aos consultórios de médicos particulares buscando encontrar a resposta para o mal

que subitamente lhe acometeu.

Foi durante uma conversa informal que ele relembrou determinada situação ocorrida

no consultório de um renomado cardiologista na cidade de Campinas. Nessa consulta, para a

surpresa de Bernardo que esperava ser apalpado, ter auscultado o coração e os pulmões,

medida a pressão arterial e o pulso; o médico senta-se em sua mesa e começa a digitar os

resultados dos exames laboratoriais do paciente em um banco de dados. Os minutos seguintes

são marcados pela espera: Bernardo, acompanhado do cardiologista, terão que aguardar o

computador analisar os dados e fornecer a prescrição medicamentosa.

Como ocorrido em situações anteriores quando o informante procurou outros dois

cardiologistas, o médico constata que a pressão arterial de Bernardo continua elevada, altera o

medicamento sob a alegação que os remédios atuais não parecem eficazes no combate aos

sintomas e indica uma nova bateria de exames.

O caso de Solange, apesar de ocorrido em outro contexto, no da prestação pública de

serviços médicos, também aponta para o mesmo fato: o descontentamento com a medicina

oficial.

A informante, uma funcionária pública de 37 anos, após sofrer dias seguidos com a

mesma dor no peito, resolve procurar um posto de saúde próximo a sua residência. Durante a

realização do exame clínico Solange explicita a intensidade de sua dor dizendo que em
16

determinados momentos onde as “pontadas” se tornam mais latentes sequer consegue respirar.

A doente também informa que devido aos problemas com a família está com dificuldades

para comparecer ao serviço e, em virtude disso, solicita um atestado médico. Concluído o

exame, o doutor diz não constar nada de grave. Evidenciando o dissenso simbólico entre esse

médico e a paciente, que gostaria que ao menos fosse questionada a natureza dos seus

problemas, o clínico avia a receita e sugere à Solange que retorne para casa e ocupe-se de seus

afazeres.

Na ocasião em que esses informantes foram contatados em uma clínica holística,

pouco adiantou saber a veracidade desses ocorridos. Posteriormente, no decorrer da pesquisa

etnográfica, pôde-se perceber que a clientela dos espaços alternativos freqüentemente

associava sua afiliação às terapias holísticas a alguma experiência decepcionante com a

medicina oficial. Dessa maneira os casos aqui mencionados tornam-se elucidativos de um

vasto conjunto de outros relatos onde fica evidenciada a razão principal pela qual se dá a

demanda por esses serviços.

O segundo ponto a ser considerado em relação aos serviços médicos oficiais, conforme

ressaltado por Cardoso (1999a) é que mesmo com toda a extensão dos serviços médicos

prestados, práticas terapêuticas “locais”, “nativas” ou “populares” não desapareceram, mas

“passaram a constituir serviços terapêuticos paralelos àqueles desenvolvidos pela medicina

cientifica”.

Esse, com efeito, é outro sinalizador da crise instalada na área da saúde: a corrida de

usuários da medicina convencional para as chamadas terapias alternativas, práticas e técnicas

de cura que são distintas do modelo biomédico. Os dados alertam: na França, 82% dos

pacientes superpõem a seus tratamentos na medicina oficial as terapias alternativas. Nos

Estados Unidos, 35% da população já freqüentam consultórios de outros terapeutas que não
17

fazem uso de drogas químicas, os chamados remédios alopáticos.

No Brasil, estima-se que 4 milhões de pessoas lancem mão de alguma forma de terapia

alternativa para tratar das suas doenças. No início de 2000, a Associação Brasileira de

Medicina Complementar calculava existirem cerca de 50 mil terapeutas alternativos (ou

holísticos) em atividade no país. Presume-se também que o mercado de terapias alternativas

movimente aproximadamente 500 milhões de dólares anualmente. Ainda muito pouco em

comparação ao que ocorre nos Estados Unidos, onde perto de 60 milhões de pessoas

engrossam um mercado de 30 bilhões de dólares. É um filão que cresce em torno de 20% ao

ano em todo o mundo. Só para se ter uma idéia, no Brasil há três vezes mais massagistas

corporais que ortopedistas. Existe quase o mesmo número de terapeutas florais e de

cardiologistas. E os cerca de 1300 iridologistas, indivíduos que dizem diagnosticar qualquer

doença pela análise da íris, somam quase a metade dos nefrologistas brasileiros12.

Ainda que exista toda essa demanda pelas práticas terapêuticas alternativas, o fato é

que por estarem fundamentadas em um sistema lógico que difere dos saberes e práticas

médicos oficiais, as terapias alternativas, com exceção da homeopatia e da acupuntura, não

são reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

Ilustrando todo esse mal estar causado pelo exponencial crescimento dessa “outra”

medicina, o CFM pronunciou em vezes consecutivas sua desaprovação no que diz respeito ao

exercício das práticas terapêuticas alternativas.

Foi o que aconteceu na ocasião em que o CFM foi consultado sobre a possibilidade de

criação de um Conselho de Terapeutas Holísticos, Projeto de Lei no 2783/97, do deputado

José de Abreu. Em sua parte conclusiva o relator declarou: “pelo exposto, sou frontalmente

contra esse Projeto de Lei, por julgá-lo desprovido de sustentação técnico-científica e por

12
Revista Veja. São Paulo, edição 1749, ano 35, no 37, janeiro de 2002, p. 97.
18

colaborar para uma maior desatenção à saúde da população brasileira”13 [grifos meus].

Esse parecer, cujas conclusões presumidamente foram norteadas por uma série de

considerações enviesadas e questionáveis, se repetiria três anos mais tarde, quando o

Conselho Federal de Psicologia (CFP) manifesta-se contrariamente à regulamentação da

profissão de “terapeuta holístico”. A argumentação exposta pelo CFP, em conformidade com

o parecer do Projeto de Lei antes citado, foi baseada no seguinte pressuposto: “por entender

que as dúvidas, incertezas e perplexidades, resultantes do mundo do progresso e da

comunicação instantânea, têm causado preocupações e dúvidas que levam as pessoas a

procurar respostas nas mais diversas formas de apoio: religiões, psicofármacos, medicinas ou

terapias chamadas alternativas, estas sem nenhuma metodologia confiável e sem possibilidade

de verificação de resultados, contrariando os mais elementares requisitos da ciência moderna,

(...) conclui-se que as terapias que se intitulam holísticas não têm base científica e, portanto,

não devem ser legalizadas, tampouco postas ao alcance do público”14 [grifos meus].

Frente a essas exposições, o Conselho Federal de Medicina avaliou: “se as terapias

holísticas são resultantes dos fatores ora considerados, resta tratá-las como um fenômeno

social e cultural que deve ser respeitado, desde que não prejudique as pessoas, tirando-lhes a

oportunidade de procurar recursos médicos conhecidos”15. Todavia, prosseguiu o CFM, no

tocante a sua legalização, “consagrá-las legalmente seria um desserviço à Nação”16. Por fim,

os comentários do Conselho, haja vista os argumentos precedentes, concluíram: “pelo que

acaba de ser apresentado, somos de opinião que as terapias holísticas são destituídas de

caráter científico, não devendo haver estímulos facilitadores para sua expansão no meio

social, principalmente se levarmos em conta que são as pessoas humildes e de mais baixo

13
Processo Consulta no 33/97 - CFM, aprovado em 05/06/1997.
14
Processo no 4927/00 - CFM (39/01), aprovado em 14/09/2001.
15
Ibid.
16
Ibid.
19

conteúdo cultural as que se tornam mais vulneráveis às influências e aceitação desses

tipos de mensagens”17 [grifos meus].

Ainda que os pronunciamentos, pareceres e conclusões dos Conselhos Federais de

Medicina e Psicologia desencorajem, ou mais explicitamente sejam contrários ao exercício e à

regulamentação das terapias alternativas, a profissão de terapeuta holístico é considerada por

seus oficiantes como lícita, visto que inexiste Lei que preveja, limite ou impeça a sua prática.

Nesse sentido recorre-se a uma constatação levantada por Magnani (1999) segundo a

qual uma primeira atitude crítica pode ser considerar o interesse pelas práticas alternativas

como um modismo, um fenômeno passageiro. Nessa perspectiva, a afiliação a essas práticas

seria um reflexo da sociedade consumista, não passando de uma bem sucedida estratégia de

marketing para vender determinados serviços. Depreende-se dessa constatação alguns setores,

que de alguma forma se sentem ameaçados pelo sucesso e popularidade de algumas dessas

propostas, principalmente as terapêuticas, investirem contra o que denominam charlatanismo

ou curandeirismo.

Numa abordagem mais analítica, ainda de acordo o mesmo autor, a proposta mais

conhecida é a que lê e interpreta essas práticas na chave do re-encantamento de um mundo

excessivamente secularizado. Sob esse aspecto, a virada do milênio faria se acompanhar de

uma tendência pela busca de novas formas de espiritualidade18, supostamente mais ajustadas

à lógica da sociedade pós-industrial. Dessa chave se desdobrariam duas perspectivas: a que

enquadra o fenômeno como uma alternativa de consumo, ao lado de tantas outras do mercado

religioso ou de bens simbólicos contemporâneos, e a outra, que considera não só os produtos

oferecidos nesse mercado, mas as atitudes a eles relacionadas como típicas da “pós-

17
Processo no 4927/00 - CFM (39/01), aprovado em 14/09/2001.
18
Que se distinguindo de uma conotação mais religiosa passaria a ser vivenciada como a busca pelo
entendimento, pelo “equilíbrio”, pela “ampliação de horizontes”, a fim de atingir-se o autoconhecimento e a
autopercepção. Portanto, daqui para adiante, esta será a referência ao utilizar-se o termo espiritualidade.
20

modernidade”.

A partir desse quadro torna-se necessário esclarecer que, sob o ponto de vista

antropológico, o interesse nessas “novas” práticas terapêuticas, cuja característica principal

reside em “outras” percepções da doença, do corpo e da terapia, distintas às do modelo

biomédico, diz respeito precisamente sobre o que elas podem nos informar a respeito da

conformação sociológica e político-ideológica de alguns estratos populacionais específicos.

Enfocar o surgimento e a difusão das práticas alternativas no contexto urbano sob a

perspectiva dos estudos da religião, contudo, parece não se mostrar produtivo para apreender

as peculiaridades e inovações propostas por essas práticas, pois, apesar das diferenças entre os

sistemas religiosos, todos apresentam uma inserção institucional clara; ao contrário do que

acontece com as distintas disciplinas do universo alternativo, onde a regra parece ser a

justaposição de elementos rituais e doutrinários das mais variadas origens e tradições e a livre

circulação entre elas (Magnani, 1999).

Procurando fugir do viés que freqüentemente caracteriza o boom das terapias

alternativas pela falência das religiões institucionalizadas ou pela crise das “instituições

produtoras de sentido”19, esta dissertação buscou apreender a prática do reiki como geradora

de hábitos e comportamentos, pretendendo sob esse enfoque determinar sua lógica interna por

meio das relações que estabelece com a dinâmica cultural onde está inserida.

19
Id. Ibid.
21

2. Sobre a realização da pesquisa

Os primeiros passos da pesquisa etnográfica centraram-se na busca de um primeiro

ordenamento. Inicialmente foram percorridas as principais ruas de Campinas para que

pudessem ser identificados os espaços alternativos: salas, clínicas e centros holísticos20, lojas

de produtos esotéricos21. Como há de se presumir, tais localidades foram encontradas, grosso

modo, em bairros considerados de classe média e média alta da cidade22. Portanto, data dessa

época a classificação desses espaços, suas normas de funcionamento e a tipologia dos serviços

oferecidos.

Tratou-se na etapa etnográfica seguinte de proceder à identificação dos espaços

terapêuticos reikianos23. Nesse período foram percorridas essas localidades para que

pudessem ser firmados contatos iniciais com os terapeutas que trabalhavam com o reiki. Com

o objetivo de localizar demais participantes desse circuito alternativo24 recorreu-se àqueles

que disponibilizaram folders e cartões pessoais em lojas esotéricas, àqueles que na ocasião

eram afiliados às respectivas entidades representativas25 e aos que divulgaram seus serviços

20
Durante a realização da pesquisa etnográfica foram localizados dezessete espaços alternativos: Achoian Centro
de Pesquisa em Terapias Holísticas, Sun Shine Bioclínica e Terapia Alternativa, CEAT: Centro de Estudos e
Terapia, Regia Barro Honda, Sil Estética e Terapia Alternativa, Instituto Darma, Espaço Adonai, Instituto
Gomes de Expansão da Consciência, Sammasati Centro de Meditação e Terapia, Acqua Moving Centro
Terapêutico, Sedona Terapias Alternativas, Instituto Gonaro Bach, Ziff Health do Brasil, Terapias Corporais:
Mariângela D’Andrea Balistiero, Centro de Terapia Reiki, Energia Pura e a Chácara Plêiades.
21
Para tanto se recorreu freqüentemente a algumas das lojas esotéricas localizadas, dentre as quais destacam-se:
Nova Era Espaço Cultural e Esotérico, Sherazad Comercial LTDA, Sinal de Luz, Elo Místiko, Barro Bonito,
Signus Materiais Esotéricos, Estrela Mística – todas localizadas na região central de Campinas.
22
Especialmente os bairros Chapadão, Taquaral, Cambuí, Guanabara, Alto da Cidade Universitária, Paineiras.
23
Propondo um primeiro recorte na categoria espaços alternativos, os espaços terapêuticos reikianos ou
simplesmente espaços reikianos se referem ao conjunto de salas, clínicas e centros holísticos; consultórios
psicológicos onde são oferecidas sessões de reiki, ou então realizados cursos, palestras, workshops e demais
atividades relacionadas a essa prática terapêutica alternativa.
24
A categoria circuito alternativo (Magnani, 1999) corresponde às diversas localidades comuns ao grupo dos
afiliados ao reiki e que oferecem serviços, treinamento ou produtos especializados nessa prática na cidade de
Campinas.
25
Fundamentalmente a Associação Brasileira de Reiki e Sindicato dos Terapeutas Holísticos.
22

em jornais de circulação local26 e sites na Internet. Foi a partir dessa identificação preliminar

e, principalmente, seguindo a indicação dos próprios informantes, que se puderam localizar

outros reikianos. Buscando reconstituir a maneira como o reiki chegou a Campinas, nessa

etapa foram realizados entrevistas em profundidade com os terapeutas.

Observando por meio da pesquisa etnográfica a expansão do reiki, tornou-se evidente

a mudança na maneira como essa prática passou a ser oferecida. Assim, se no início desta

pesquisa verificava-se que a prática do reiki era restrita a lugares inacessíveis e freqüentados

por uma clientela flutuante, atualmente o reiki se encontra instalado em clínicas e centros

holísticos, empregado em consultórios psicológicos27, todos eles bem localizados,

demandados por uma clientela formada por pessoas provenientes de camadas médias da

sociedade e com alto grau de instrução.

Assim, outro momento da pesquisa correspondeu à descrição etnográfica dos espaços

terapêuticos reikianos, etapa viabilizada pelo acompanhamento das atividades oferecidas

nessas localidades. Durante esse período tornou-se necessária a presença freqüente da

pesquisadora em alguns desses espaços para que, por meio da observação participante da

rotina desses locais e pelo acompanhamento de alguns casos terapêuticos narrados pelos

informantes, e por meio da consultas realizadas, a clientela do reiki fosse contatada.

Constatando-se por meio da pesquisa etnográfica algumas regularidades dos espaços

reikianos e o comportamento de sua clientela, foi fundamental acompanhar algumas das

principais atividades realizadas nessas localidades, descobrir por onde “circulavam” seus

afiliados.

26
Especificamente os jornais Correio Popular, Diário do Povo e a Folha de São Paulo.
27
Visando manter o anonimato dos psicólogos contatados, bem como seus respectivos locais de trabalho, as
clínicas psicológicas acompanhadas durante a realização desta etnografia serão aqui chamadas de Centro de
Atendimento Psicológico, Instituto Árion e o Centro Holos, cuja intervenção terapêutica possui orientação
junguiana. Além dessas localidades recorreu-se também a três consultórios de gestalt-terapeutas.
23

Os últimos momentos da pesquisa etnográfica, portanto, corresponderam à

investigação das motivações demandadas pela clientela do reiki; ou seja, o modo como essa

prática é incorporada ao campo das percepções dos seus afiliados, e os comportamentos

técnico-terapêuticos e mesmo cognitivos que lhes são subjacentes. Por meio dessa etnografia

mais detalhada foi então possível então traçar o perfil dos terapeutas e clientes do reiki e, a

partir disto, estabelecer determinados padrões que permitiram explicar seu comportamento em

termos de “estilo de vida”28, tendo como base de sustentação os circuitos e trajetos29

reikianos.

Conforme revelarão os dados apresentados, uma parte significativa da pesquisa

etnográfica foi baseada em entrevistas com os terapeutas reikianos e sua clientela. Isto porque,

conforme indicou a experiência etnográfica, as sessões de reiki permitem apreender os

discursos elaborados pelos seus afiliados de forma a oferecer a própria possibilidade da

construção de uma leitura antropológica desse processo, de acordo com a definição proposta

por Geertz (1978), em relação à observação etnográfica como “descrição densa”.

Diante disso procurou-se, a exemplo do que fez Cardoso (1999b) em outros contextos,

analisar as entrevistas dos informantes segundo o princípio de que as experiências dos

afiliados ao reiki são expressas por um código simbólico comum a esse grupo, passível de ser

apreendido por meio de relatos singulares dos sujeitos a ele que se submetem. Pretendeu-se,

assim, que o exercício da prática etnográfica, característico da observação antropológica,

encontrasse sua forma adequada de processamento reenviando simultaneamente aos sistemas

simbólicos que orientam as condutas e os comportamentos dos reikianos e o modo como as

redes de relações sociais configuram uma espécie de “campo gravitacional” (Fry e Howe,

28
Para Bourdieu (1983) esse conceito como a maneira segundo a qual cada indivíduo organiza sua vida, isto é,
sua relação individual original para com as crenças, valores e normas da vida cotidiana, assim como a maneira
segundo a qual ele integra as normas do grupo, da classe e da sociedade global a que pertence.
29
Magnani (1999) define por trajeto a prática generalizada de “circular” pelas diversas localidades que são
24

1975) por onde são definidas as relações desses indivíduos entre si e com as práticas

terapêuticas das quais fazem uso e, em decorrência, passam a orientar sua percepção de

mundo.

3. O paradigma holístico e a construção do objeto investigado

Caracterizado pela contínua expansão de suas práticas e o caráter preventivo de suas

intervenções, o campo das terapias alternativas se insere dentro de um “novo paradigma” que

se convencionou chamar New Age Movement, Era de Aquário, Conspiração Aquariana,

Paradigma Holístico ou simplesmente Nova Era.

A expressão Nova Era, de acordo com Amaral (1994), refere-se principalmente a um

campo de discursos em cruzamento onde circulam: os herdeiros da contracultura e suas

propostas de comunidades alternativas; as propostas terapêuticas centradas no processo de

autodesenvolvimento; os afiliados aos movimentos esotéricos30 que mesclam religiões

orientalistas, populares, indígenas e o discurso ecológico de revalorização da natureza. Fora

isso, a New Age assemelha-se a um variado agregado de filosofias naturalistas e incontáveis

práticas místico-ocultistas, todas misturadas numa denominação única. Daí a noção de

“nebulosa místico-esotérica” sugerida por Champion (mimeo).

Por ser portadora de uma diversidade interna, a Nova Era, ao enunciar a convergência

de domínios inusitados e buscando suspender “antigas” dualidades (referentes àquilo que os

informantes definiram como “paradigma ocidental”) sugere um permanente sincretismo.

comuns a determinado grupo social.


30
Tal como observado por Magnani (1999), no campo das religiões e sistemas iniciáticos o termo esotérico serve
25

Ilustrando o alcance desse movimento, afiliam-se à Nova Era pessoas que se

consideram alinhadas ao progresso tecnológico, às comunidades alternativas, às práticas

esotéricas do Oriente e do Ocidente e, como haveria de ser, aquelas que conjugam essas

práticas a novas políticas de recursos humanos ou que se especializam na venda de produtos e

serviços esotéricos.

Os que comungam essa visão holística dispensam os considerados “excessos

ocidentais”, atribuindo aos mesmos a culpa pela maioria das mazelas da vida moderna. Por

outro lado, não dispensam algumas idéias desenvolvidas a partir de teorias científicas,

principalmente aquelas que tentam estabelecer aproximações entre a Física (particularmente a

Quântica) e as filosofias orientais31.

Não se trata, portanto, de abominar ou venerar a Ciência e a tecnologia, porque elas

em si não são consideradas nem benéficas, nem maléficas. Na Nova Era tudo é relacional,

depende-se do uso que se faz. O mais importante para seus adeptos é que ser “alternativo” ou

“holístico” implica em compartilhar essa visão de mundo e, a partir disso, guiar a prática da

espiritualidade para determinadas áreas de interesse, como: a saúde, que passa a considerar o

bem estar físico, emocional e mental diante os processos de adoecimento; as terapias de auto-

ajuda; as práticas diárias de tradições esotéricas orientais; as preocupações com a humanidade

e o meio-ambiente; a valorização das qualidades dos considerados “princípios femininos”

(receptividade, sensibilidade, emotividade, cooperação, compaixão) em oposição aos

“princípios masculinos” (racionalidade, competição e individualização).

A seguir são relacionadas algumas das principais pressuposições entre aquilo que os

adeptos à Nova Era chamam de “paradigma ocidental” e o “paradigma holístico”.

para designar ritos ou elementos doutrinários reservados a membros admitidos a um círculo mais restrito.
26

Tabela 1: Relaciona os pressupostos do paradigma ocidental aos do paradigma holístico

PARADIGMA OCIDENTAL PARADIGMA HOLÍSTICO

Institucionalização da ajuda e dos serviços Encoraja a ajuda individual e o voluntariado como


complemento ao papel do governo. Ressalva a auto-
ajuda e as redes de ajuda mútua

Orientação racional unicamente “masculina” como Princípios racionais e intuitivos, reconhecimento da


modelo linear interação não-linear como modelo de sistemas
dinâmico

Líderes agressivos, seguidores passivos Líderes e seguidores empenhados em um


relacionamento dinâmico, afetando uns aos outros

Esquerda contra direita “Centro radical”, transcendência de antigas


polaridades, de discórdias

A humanidade como conquistadora da natureza, visão A humanidade como participante da natureza. Ênfase
espoliadora dos recursos na conservação, na sanidade ecológica

Ênfase numa reforma externa, imposta Ênfase na transformação do indivíduo como essencial a
uma reforma bem sucedida

Fonte: FERGUSON, 2000.

O relato de Sandra, uma das precursoras da rede alternativa campineira, ilustra a

maneira como os adeptos à Nova Era interpretam o paradigma holístico:

Um alto padrão de vida não faz necessariamente os seres humanos mais felizes ou
tornam o mundo melhor de se viver. (...) Estamos na Era de Aquário, período que
estimula a imaginação e a criatividade. Quando cada um de nós perceber que tem
um potencial muito maior do que imagina, vamos perceber que através da nossa
própria transformação é possível mudar o mundo [grifos meus].

Dentro desse contexto, e de interesse particular para as análises que resultaram nesta

dissertação, há um certo deslocamento da responsabilidade da criação de um mundo melhor

da esfera coletiva para a esfera individual, de maneira que se tornam latentes as

transformações ocorridas com a própria configuração que a noção de “pessoa”32 passa a

adquirir no interior desse movimento: “antes de mudar o mundo é preciso mudar a si próprio”.

Conseqüentemente, ao mesmo tempo em que são propagados tais valores, torna-se cada vez

31
Dentre as quais destacam-se as publicações do físico Capra (1985; 1986).
32
Cf. Mauss, 1974.
27

mais esgotada a crença de que ideais comunitários podem ser alcançados pela via

institucional, que dentre outros possíveis exemplos fazem parte: a burocracia estatal, o

sindicalismo, os partidos políticos e os movimentos vinculados direta ou indiretamente ao

Estado (Oliveira, 2000).

Podendo ser entendido como uma resposta à crise do individualismo em face à crise da

modernidade, o paradigma da Nova Era remontaria então ao final do século XIX,

especificamente ao movimento teosófico, sendo recuperado durante a década de 60, com o

movimento da contracultura. Fundamentado na crítica contundente a alguns valores da

sociedade contemporânea, de acordo com Heelas (1996), esse Movimento se expressaria pela

exacerbação do indivíduo; pela falência das instituições religiosas, educacionais e familiares;

e pelo liberalismo econômico, por meio da formação de novas carreiras e novas

personalidades adequadas às mesmas sob a ótica do utilitarismo.

Sob essa perspectiva, no plano ideológico, as transformações ocorridas com a noção

de “indivíduo”33 implicariam na tentativa de solucionar a contradição básica inerente ao

mundo Ocidental expressa entre os princípios da igualdade (assegurados de maneira formal e

jurídica) e os da diferença (expressão de pessoa); refletidos numa perspectiva mais

psicológica a partir da formulação de uma outra contradição representada pelos princípios da

singularidade e da universalidade.

Quanto à penetração desses princípios na formação das práticas terapêuticas

alternativas, um dos fatores que poderia ser considerado responsável por esse fenômeno diz

respeito às próprias contradições geradas na medicina oficial e que foram detalhadas no item

1 desta dissertação.

Portanto, se a criação e disseminação das práticas terapêuticas alternativas, ao

33
Cf. Dumont, 1985.
28

fundamentarem “novas” concepções de indivíduo-pessoa e de estilos de vida passam a

reorientar as próprias concepções do corpo, da doença e da terapia, elas apontam a

conformação de um novo campo terapêutico que se desenvolve paralelamente àquele

desenvolvido pela medicina científica, mas como forma de minimizar algumas das

contradições anteriormente levantadas e que podem ser sistematizadas da seguinte maneira:

Tabela 2: Relaciona o paradigma biomédico ao paradigma holístico da saúde

PARADIGMA BIOMÉDICO PARADIGMA HOLÍSTICO DA SAÚDE

Tratamento dos sintomas Busca de padrões e causas, mais tratamento dos


sintomas

Especializado Integrado, preocupado com o paciente como um todo

Dor e doenças são negativas por completo Dor e doenças são informações sobre conflitos e
desarmonias

A doença é a deficiência vista como uma coisa, uma A doença ou deficiência vista como um processo
entidade

Ênfase na eliminação dos sintomas, da doença Ênfase na obtenção do bem-estar máximo, “meta-
saúde”

O paciente é dependente O paciente é autônomo

O profissional é a autoridade O profissional é um parceiro terapêutico

Fonte: FERGUSON, 2000.

Esclarecida a maneira como foi construída a linha de investigação desta dissertação,

evidenciando, de fato, como a problemática do indivíduo moderno pode ser deslocada para a

esfera das terapias, caberia agora apresentar a análise dos dados etnográficos e ilustrar como o

processo de incorporação do reiki aos serviços oficiais de saúde vem ocorrendo.


PARTE II

A TRAJETÓRIA DO REIKI

Demonstrando alguns pontos ao longo da trajetória do reiki, aqui serão relatados: o

mito acadêmico-institucional de Mikao Usui; os responsáveis pela difusão dessa prática

terapêutica; as principais modificações ocorridas com a terapia ao ser ocidentalizada,

destacando-se nesta interpretação o modelo de incorporações reikiano e; finalmente, os

precursores dessa prática alternativa no Brasil.

4. A redescoberta do reiki e as modificações recebidas no Ocidente

Embora os informantes considerem Mikao Usui como o redescobridor34 do reiki, os

relatos sobre sua vida e a trajetória dessa prática terapêutica são bastante variados. Dentre as

histórias ouvidas foram identificadas algumas recorrências narrativas de maneira que, dentre

toda a diversidade, será destacada a versão que parece melhor elucidar o modo como o reiki

foi introduzido no Ocidente.

Essa versão conta que no final do século XIX, Mikao Usui, um monge japonês e

estudioso das religiões, percorre parte da China e da Índia buscando descobrir o método de

34
A justificativa utilizada pelos reikianos dizerem que o reiki foi redescoberto é fundamentada na crença em
que, mesmo antes da experiência de Mikao Usui, a “energia curativa universal”, para eles sinônimo de reiki,
sempre foi utilizada por grandes avatares como Buda e Jesus Cristo. Entre os reikianos, inclusive, não são raros
os que consideram Jesus Cristo como o “primeiro reikiano”.
30

cura de Buda. Foi no Japão, em um monastério budista, que ele teria achado alguns

pergaminhos escritos em sânscrito onde lhe foi revelado o método de cura utilizado por esse

avatar.

Frente a sua descoberta, contudo, impôs-se um novo obstáculo: uma coisa era

conhecer os fundamentos da técnica do reiki, a outra era saber como ativar a tão falada

“energia”, necessária à sua aplicação.

Foi com esse intuito que Usui passou um período de vinte e um dias jejuando e

meditando no monte Koriyama, Japão. Para contar o tempo, o monge teria levado consigo

vinte e uma pedras sendo que, a cada dia que passava uma delas era descartada.

Na manhã do vigésimo primeiro dia, Mikao Usui supostamente teria visualizado

alguns projéteis de luz que o atingiram no chakra do terceiro olho (parte frontal da testa, entre

as sobrancelhas). O monge teve uma revelação onde lhe foram mostrado os símbolos35 do

reiki e a maneira como ativá-los. À chamada “energia curativa”

Ao descer o monte aconteceu o que os informantes consideram “os quatro milagres”.

No primeiro deles, o monge teria ferido um dedo do pé enquanto andava. Ao sentar-se e

colocar suas mãos sobre o dedo suas mãos ficaram quentes e o membro foi curado. O segundo

milagre refere-se à situação em que Usui chega a uma casa que servia a peregrinos, localizada

no pé desse mesmo monte. Cansado e faminto, pediu uma refeição completa e, diferentemente

do que acontece a uma pessoa que jejua durante todos esses dias, ele teria comido

normalmente. Como a mulher que lhe serviu sentia uma forte dor de dente, o monge, em um

gesto de retribuição, coloca suas mãos sobre a face da doente. No mesmo instante a dor teria

passado, configurando, assim, o terceiro desses milagres. Voltando para o mosteiro budista,

35
Esses símbolos, ilustrados nas p. 52 e 53 desta dissertação, correspondem a ideogramas chineses que conforme
os níveis de aprendizado são revelados aos alunos por seus próprios mestres. Tais símbolos têm conotação
secreta e pelo que se pôde observar durante a realização dos trabalhos etnográficos, dificilmente são revelados
31

Usui foi informado que seu amigo do monastério estava acamado padecendo de uma crise de

artrite. Como ele também teria sido curado por Usui, reikianos se referem a esse

acontecimento como sendo o quarto milagre.

Depois de ocorridos os quatro milagres, Mikao Usui leva o reiki a um bairro pobre de

Kyoto. Nessa época, no Japão, conforme o relato dos informantes, as pessoas que residiam

nesses bairros eram doentes ou debilitadas, e mantidas com a ajuda do restante da população.

Usui teria morado nesse bairro pobre por vários anos, ministrando curas e ensinando

gratuitamente o reiki. Depois de tratar essas pessoas, Mikao Usui pedia-lhes para começar

uma nova vida. Contudo, ao observar que algumas das pessoas curadas voltavam às ruas para

viver na mendicância, contrariando o que lhes era recomendado, os informantes concluem que

foi a partir desse processo que o monge percebeu que curar o corpo era apenas uma parte do

tratamento proposto pelo reiki e que a cura completa somente ocorreria quando a “energia

reiki” atingisse o corpo, a mente e o espírito dos doentes, restabelecendo-lhes o equilíbrio e a

harmonia. É a partir dessa experiência, inclusive, que os reikianos justificam a cobrança dos

seus serviços, presumindo-se, a partir desses fatos, que as pessoas não serão plenamente

curadas se não pagarem pelos serviços oferecidos.

Interessante observar que quando o reiki chega aos Estados Unidos, por volta de 1938,

a trajetória de Mikao Usui é recriada. Fortemente marcada pelo aspecto cristão e não mais

budista, as referências ao re-descobridor do reiki citam-no agora como um padre católico

formado em teologia pela Universidade de Chicago36 e que ao compreender a maneira pela

qual Jesus Cristo curava teria descoberto a importância da imposição das mãos. Constatada

essa outra versão sobre o “mito” de Mikao Usui, parece inegável que o aspecto cristão

àqueles que não foram iniciados na prática.


36
Willian Rand, reconhecido mestre em reiki, em entrevista à Revista Terapias Alternativas – Conheça Reiki,
São Paulo, edição 1, ano 1, no 1, p. 12 e 13, revelou jamais ter encontrado qualquer evidência que comprovasse a
passagem ou permanência de Mikao Usui nos Estados Unidos.
32

adicionado teve como objetivo melhor introduzir a terapia no Ocidente.

De acordo com a literatura que reconstitui a trajetória do reiki37, Mikao Usui abriu sua

primeira clínica em abril de 1922, na cidade de Tóquio, e três anos depois repetiu o feito,

abrindo outra clínica em Nakano. Em 1926 funda a Usui Shiki Reiki Ryoho, organização

japonesa responsável por transmitir, ainda hoje, os ensinamentos do reiki. Presidida por

Masayoshi Kondo desde 1999, a Usui Shiki Reiki Ryoho estrutura o aprendizado dessa prática

segundo três níveis, sendo o último deles equivalente ao mestrado em reiki38. Mikao Usui

falece em 1930, tendo formado entre dezesseis e dezoito mestres.

Dentre os mestres formados por Usui, os reikianos citam Chujiro Hayashi, um médico

da Marinha japonesa, como seu aluno mais devotado, motivo este que justificaria sua

indicação para tornar-se sucessor do grande mestre39. Hayashi, que montou sua primeira

clínica de reiki em Tóquio, teria detalhado uma série de curas obtidas com o reiki e foi

baseado em seus estudos que criou um sistema de posições para a aplicação dessa terapia. A

esse método que utiliza posições previamente determinadas para proceder às aplicações

terapêuticas, Chujiro Hayashi denominou Reiki Tradicional de Usui40.

Em 1935, Hawayo Takata, uma japonesa naturalizada norte-americana que vivia no

Havaí, chega ao hospital de Maeda, Japão, para se tratar. Após a morte de seu marido,

sofrendo de esgotamentos nervosos e com duas crianças pequenas para tratar, Takata foi

diagnosticada como portadora de uma doença rara no fígado. Como sua saúde não

apresentava melhoras, os médicos detalharam-lhe a necessidade da intervenção cirúrgica, sem

a qual, muito provavelmente, ela não sobreviveria.

37
De Carli, 1999.
38
Detalhamentos do processo de formação do terapeuta em reiki serão discutidos mais adiante, no item 7 desta
dissertação.
39
Maneira pela qual os reikianos referem-se a Mikao Usui.
40
As posições estabelecidas por Chujiro Hayashi, ilustradas nas p. 55, 56 e 57 desta dissertação, são as mesmas
que a maioria dos reikianos utiliza, ainda hoje, em suas sessões terapêuticas.
33

Na noite anterior à operação, Hawayo Takata teria ouvido uma voz que lhe dizia que a

cirurgia não seria necessária. Na manhã seguinte, ao entrar no centro cirúrgico, Takata

novamente ouve a voz que lhe diz as mesmas coisas. Diante da reincidência do ocorrido, a

paciente pergunta ao cirurgião se não há outro método para a sua cura, que não a cirurgia.

Respondendo à indagação de forma positiva, a única ressalva feita pelo médico foi que o

tratamento em questão estava condicionado à permanência da paciente no Japão. O médico

então lhe contou sobre a clínica de Chujiro Hayashi, para onde Takata dirigiu-se

imediatamente. Segundo afirmam os reikianos, após quatro meses estava completamente

curada.

Maravilhada com os resultados obtidos, Takata teria pedido a Chujiro Hayashi que lhe

transmitisse os ensinamentos do reiki. De início foi recusada como aluna por ser estrangeira.

Hayashi não queria que o reiki fosse praticado fora do Japão. Com o passar do tempo sua

solicitação foi aceita.

Hawayo Takata foi iniciada no reiki na primavera de 1936, juntando-se aos agentes de

cura que trabalhavam na clínica de Hayashi, e em 1937 recebeu os ensinamentos do segundo

nível do reiki, retornando em seguida ao Havaí para abrir sua primeira clínica em Kapa.

Obteve então uma licença como massoterapeuta buscando legitimar-se junto às autoridades e

à comunidade local. No inverno de 1938, recebeu os ensinamentos do terceiro nível do reiki.

Em 1941, Takata foi chamada às pressas ao Japão. Quando chega à clínica de Hayashi,

uma surpresa: Chei, esposa de Chujiro, e outros mestres estavam presentes. Chujiro Hayashi

lhes disse que uma grande guerra estava para acontecer e que todas as pessoas envolvidas com

o reiki poderiam desaparecer, já que sua clínica seria fechada. Temendo que os ensinamentos

dessa prática fossem outra vez perdidos, Hayashi escolheu Takata como sua sucessora

fazendo-lhe um único pedido: que não ensinasse os preceitos do reiki sem que cobrasse por
34

isso. Os informantes contam que em maio de 1941, na presença de alguns alunos, Hayashi fez

seu coração parar e morreu.

A grande guerra que Chujiro Hayashi teria previsto foi a Segunda Guerra Mundial, e

tal como se pode presumir, o reiki desapareceu do Japão. Chie Hayashi sobreviveu, mas a sua

casa e a clínica de seu marido foram destruídos. De acordo com os informantes, foi graças a

Takata que o reiki sobreviveu: ministrou cursos primeiramente no Havaí, seguidos nos

Estados Unidos, depois no Canadá até chegar à Europa.

Instruindo seus alunos por intermédio de histórias e exemplos, essa mestra nunca

permitiu que fizessem anotações durante as aulas. Sempre cobrando por seus ensinamentos,

justificava seu procedimento no juramento que havia feito ao seu mestre Chujiro Hayashi.

Apesar disso, em sua clínica, caso um cliente estivesse seriamente doente e precisasse de

muitas sessões, ela formava uma pessoa da família do doente para que pudesse tratá-lo.

Dedicando-se ao reiki durante trinta anos, foi em 1980 que Hawayo Takata e sua aluna

Bárbara Weber Ray fundaram em Atlanta The Reiki Association. Existente até hoje, essa

associação chama-se agora The Radiance Technique International Association.

Hawayo Takata faleceu em dezembro de 1980, tendo iniciado vinte e dois mestres e

indicado como sucessora a neta Phyllis Lei Furumoto, responsável por continuar difundindo o

Reiki Tradicional de Usui no Ocidente.

A partir do falecimento de Takata as técnicas e métodos utilizados no ensino do reiki

sofreram alterações e, conseqüentemente, várias ramificações na terapia começaram a

surgir41.

41
Ilustrando a atual perspectiva do universo reikiano, segue algumas de suas ramificações, maioria delas
predominantemente criada e difundida nos Estados Unidos: Angelic Reiki, Ascension Reiki, Blue Star Reiki,
Brahma-Satya Reiki, Ener Sense-Budho, Golden Age Reiki, Imara Reiki, Jinlap Maitri Reiki, Johrei Reiki,
Karuna Reiki, Kundalini Reiki, Lightarian Reiki, Mari El, Men Chos Reiki, Meridien Reiki, Radiance Technique,
Raku Kai Reiki, Reiki-Do, Reiki Essencial, Reiki Intuitive, Reiki Jin Kei Do, Reiki Mix, Reiki Plus, Reiki Sun Li
35

Nesse mesmo ano, em 1980, os mestres formados por Hawayo Takata fundaram a

American International Reiki Association. Em 1983, após divergências que não foram

pormenorizadas por nenhuma das fontes reikianas, alguns desses mestres, influenciados por

Phyllis Furumoto, se desligaram da The Reiki Association, associação criada por Hawayo

Takata e a própria Furumoto, e criaram uma outra associação denominada The Reiki Alliance.

Bárbara Weber Ray, discípula de Takata, que junto com sua mestre e a respectiva neta

foi uma das fundadoras do antigo The Reiki Association, ao se desentender com Phyllis

Furumoto, neta de Takata, abandonou a denominação reiki e passou a utilizar outra

designação para a mesma prática terapêutica: The Radiance Technique, que se diferencia dos

demais métodos de ensino dessa prática alternativa ao estruturar seu aprendizado em sete

níveis.

Outra vertente terapêutica expressiva na linhagem do reiki foi iniciada com o Raku Kai

Reiki, que originou os métodos: Essential Reiki, Reiki Usui Tibetano, Shamballa Reiki, Reiki

Tibetano, Karuna Reiki. Criado pelo norte-americano Arthur Robertson, o Raku Kai Reiki

adiciona aos preceitos de Mikao Usui algumas práticas filosóficas hinduístas. Visando

potencializar os efeitos do Reiki Tradicional de Usui, esse método utiliza um conjunto de

meditações e técnicas de relaxamento que, por meio do controle da respiração, visam manter a

regularidade do fluxo da “prana”, conceito hindu correspondente ao de “energia vital”,

utilizada pelos os reikianos.

Embora existam diversos sistemas de reiki, ressalta-se que todos eles constituem

derivações dos ensinamentos de Hawayo Takata. Dessa maneira, o Reiki Tradicional de Usui

(linhagem do reiki criada por Chujiro Hayashi e trazida ao Ocidente por Hawayo Takata) é

Chung, Reiki Tradicional Japonês, Reiki Usui Tradicional, Reiki Usui Shiki Ryoho, Reiki Usui Tibetano, Saku
Reiki, Siddheartha Reiki, Brahma Satya Reiki, Seichim Reiki, Shamballa Reiki, Terá-Mai Reiki, Valley Reiki, Wei
Chi Tibetan Reiki.
36

considerado pelos reikianos como o método que mais se aproxima do Usui Shiki Reiki Ryoho

criado por Mikao Usui. A esse respeito, a pesquisa etnográfica comprovou que tal “relação de

proximidade” não estabelece uma relação de rivalidade ou concorrência entre os distintos

sistemas de reiki e, conseqüentemente, entre os terapeutas. Logo, torna-se relevante destacar o

modelo de incorporações do reiki que ao conjugar outras técnicas à sua prática terapêutica

permite que diferenciações internas se estabeleçam.

Diante dessa variedade de sistemas reiki caberia, portanto, tomar alguns deles e

analisar, a fundo, qual é o discurso que lhes serve de fundamento. Em outras palavras, tratar-

se-ia de problematizar a seguinte questão: dentre toda essa diversidade “o que faz do reiki o

reiki?”.

Antes de proceder-se a tal análise, contudo, torna-se relevante reconstituir outra

importante passagem da trajetória do reiki: sua chegada ao Brasil.

5. O reiki no Brasil

Em dezembro de 1983, no Instituto Eric Bern de atendimento psicológico, Rio de

Janeiro, foi realizado o primeiro curso brasileiro de reiki ministrado pelo mestre americano

Steven Cord Saik, representante da The Reiki Association.

Embora a organização do evento estivesse a cargo de alguns psicólogos que

trabalhavam no Instituto, o contato com Steven Cord Saik foi facilitado por uma das clientes

da clínica que, em março do ano de 1983, após conhecer pessoas ligadas ao grupo de Steven
37

Cord Saik, cursou o primeiro nível de reiki nos Estados Unidos42.

Até aqui a história é consensual. As divergências se iniciam quando, depois de

realizado esse curso, foi fundada a Associação Brasileira de Reiki (AB-Reiki). Mais

especificamente a polêmica se instaura depois que Claudete43, presidente dessa Associação,

concede uma entrevista a uma revista destinada aos praticantes e interessados em reiki44.

Nessa entrevista Claudete afirma não apenas que ela e Egídio fundaram a AB-Reiki,

como também admite que ela foi a responsável por organizar o primeiro curso de reiki no

Brasil.

Contrariando as informações dadas pela presidente da AB-Reiki, em resposta a essa

entrevista45, Egídio diz não apenas que ele próprio foi o responsável pela organização do

primeiro curso de reiki no Brasil, mas também reivindica para si a fundação da AB-Reiki,

reconhecendo que na ocasião foi auxiliado por Claudete.

A peculiaridade dessa história revela, por outro lado, alguns aspectos que mais adiante

serão abordados: além de Claudete e Egídio trabalharem juntos no Instituto Eric Bern, Egídio

foi professor de Claudete durante o curso de graduação em Psicologia46.

De qualquer maneira, recentemente esses dois protagonistas pareceram chegar a um

consenso, já que ambos assinaram uma carta destinada aos reikianos, por meio da qual

procuram dar um fim às suas diferenças. As saudações iniciais da carta anunciavam:

“trazemos boas notícias. São coisas que o coração humano demora em aprender: as trevas do

42
Revista Via Reiki. Rio de Janeiro, 3a edição, janeiro de 2003, sessão “Carta ao Leitor”.
43
Em 1988, Claudete tornou-se a primeira mestra em reiki da América do Sul.
44
Revista Via Reiki. Rio de Janeiro, 2a edição, setembro de 2002, entrevista “Veja como tudo começou!”.
45
Revista Via Reiki. Rio de Janeiro, 3a edição, janeiro de 2003, sessão “Carta ao Leitor”.
46
Tratando dessa “aparente coincidência”, o item 14 desta dissertação aborda as correlações entre os preceitos
nos quais está fundamentada a prática do reiki e configuração assumida pelo discurso de algumas linhas
psicológicas.
38

caminho. Esbarrar-se nelas exatamente para saber como retornar ao rumo, à luz”47.

O trecho seguinte, transcrito a partir da mesma fonte, tem o objetivo de ilustrar a

maneira negociada entre Egídio e Claudete para que chegassem ao fim dessa polêmica..

O tempo passou e muitos detalhes ficaram esquecidos. Só não podemos esquecer da


alegria que encheu o nosso coração, quando o Egídio reuniu a nossa equipe e nos
comunicou que estava trazendo ao Brasil o reiki. (...) Coroando este trabalho,
Claudete criou, de fato e de direito, a Associação Brasileira de Reiki, já iniciada
informalmente junto com Egídio, dentro dos princípios que Mikao Usui nos deixou.
(...) Tudo acerca da entrevista de Claudete e da resposta de Egídio já foi esclarecido
em contatos pessoais, na luz, no amor do reiki, como pensamos que dois mestres
reiki devem proceder.

Diante disso parece não haver mais dúvidas entre as atribuições de cada um desses

envolvidos. Assim, o primeiro curso de reiki realizado em 1983, no Rio de Janeiro, foi

organizado por Egídio. A fundação da Associação Brasileira de Reiki em 1989, por outro

lado, teve Claudete à frente.

Criada com o propósito de prover o aperfeiçoamento nessa prática alternativa, a AB-

Reiki, segundo material de divulgação próprio, visa estabelecer padrões de treinamento e

códigos de conduta ética dos seus afiliados que em sua formação e exercício profissional

seguem o denominado Reiki Tradicional de Usui48.

Sediada no município de Niterói, a AB-Reiki é presidida desde sua fundação por

Claudete, a psicóloga que a criou. Serão reikianos reconhecidos pela Associação Brasileira de

Reiki aqueles que realizarem os cursos ministrados na própria associação ou então aqueles

que freqüentarem cursos com os representantes credenciados pela AB-Reiki em outros

estados.

47
Site da Associação Brasileira de Reiki - http://www.ab-reiki.com.br, consultado em 28/05/ 2003.
48
Aqui se torna imprescindível destacar que apesar da Associação Brasileira de Reiki ser a entidade
congregadora dos terapeutas reikianos que seguem a linha Reiki Tradicional de Usui, há outras associações que
visam integrar os praticantes de outras linhas do reiki. Contudo, para efeito de delimitação do objeto investigado,
algumas das etapas etnográficas desta pesquisa centraram-se fundamentalmente na AB-Reiki, e nos terapeutas a
39

Dispostos de acordo com a macro-região onde atuam, os terapeutas credenciados pela

AB-Reiki se organizam em núcleos localizados nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro,

Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e no Distrito Federal. Cada um

desses núcleos estaduais engloba outros núcleos municipais, sendo que, atualmente, existem 7

núcleos no estado de São Paulo, 5 no Rio de Janeiro, 4 em Minas Gerais, 2 no Paraná, 1 no

Mato Grosso, 1 no Distrito Federal e 1 no Rio Grande do Norte49. Desses núcleos municipais

ainda derivam outros sub-núcleos cujo número exato nem mesmo a AB-Reiki consegue

estimar.

Constatando-se por meio da pesquisa etnográfica que além dos reikianos credenciados

pela Associação Brasileira de Reiki ainda existem vários deles que não são afiliados a essa

entidade, Lígia, que já foi a responsável pelo núcleo campineiro da AB-Reiki, revela que em

1998 calculava-se a existência de aproximadamente 400 mestres e mais de 100 mil pessoas

iniciadas nessa prática terapêutica. Embora não tivesse esses dados atualizados, essa mesma

informante acredita que, a cada ano, pelo menos 6000 brasileiros cursem o nível I do reiki.

ela associados, para realizar suas análises.


49
Site da Associação Brasileira de Reiki - http://www.ab-reiki.com.br, consultado em 04/03/2003.
PARTE III

O REIKI COMO RITUAL

Um dos principais recursos teórico-metodológicos que possibilitaram caracterizar a

terapia do reiki foi considerar a sua prática um “ritual”. Para tanto, os estudos de Turner

(1974) e Douglas (1976) constituíram fundamental importância.

O principal fator que justificou caracterizar a prática do reiki um “processo ritual”

deve-se ao fato que os símbolos por ele utilizados (e que são conscientemente manipulados)

são o meio pelo qual os sentimentos, emoções e pensamentos em torno de um objetivo

comum são orientados visando a homogeneização do universo cognitivo dos seus afiliados.

Além disso, como poderá ser observado por meio dos relatos sobre o processo de iniciação e

pela descrição etnográfica das sessões terapêuticas, as pessoas que se submetem aos rituais do

reiki (sejam os iniciáticos sejam ou terapêuticos) admitem curar-se. Nesse sentido é que para

além de considerar a prática do reiki um ritual, que atinge seu ápice nos processos de

iniciação, acrescenta-se a essa consideração o fator que justifica suas sessões terapêuticas: a

“purificação”.

Pretendendo ilustrar como o reiki pode ser considerado um “ritual de purificação” será

descrito a iniciação no reiki e o modo como são realizadas as sessões terapêuticas

purificadoras, ambas fundamentadas nos preceitos dessa prática alternativa – ponto inicial

desta discussão.
41

6. Fundamentações da prática*

Conforme explica Silvana, terapeuta reikiana, o reiki é:

A energia natural, harmônica e essencial a todo ser vivente. É a dádiva da Luz às


criaturas vivas. É a energia vital (ki) direcionada e mantida pela sabedoria
universal (rei). Rei é à sabedoria universal, à Fonte Primeira, ao Deus/Deusa, ao
Criador, Buda, Cristo, Brahnma, à ordem Natural, ao todo. Cada civilização, cada
cultura, conheceu ou conhece por um nome diferente, e ki à energia vital que, assim
como rei, apresenta variantes de acordo com quem a utiliza: os hindus a chamam
de prana, os chineses de chi, os egípcios de ka, os gregos de nefesh, os russos de
bioenergia, os alquimistas de fluido da vida, os cristãos de Luz ou Espírito Santo.

Com base nessas definições, praticantes de distintos sistemas de reiki50 se referem a

essa prática como: a arte da ativação, do direcionamento e da aplicação da energia vital

universal capaz de promover o equilíbrio energético prevenindo as disfunções e

possibilitando as condições necessárias a um completo bem estar. Depreende-se dessa

constatação que dentre toda a multiplicidade de sistemas reiki (que podem ou não conjugar

outras técnicas à prática terapêutica, acrescentar símbolos àqueles tradicionalmente utilizados

pelo Reiki Tradicional de Usui), o que os unifica em torno da mesma denominação é a noção

de “energia vital universal”, comum a todos os sistemas de reiki.

Admitindo que essa “energia vital universal” asseguraria o estado de saúde dos

indivíduos, os praticantes do reiki acreditam ser possível, por meio da imposição das mãos,

ativar, canalizar e equilibrar o “fluxo energético” de determinados pontos localizados ao

longo do corpo (os chamados chakras) que, quando desequilibrados, poderiam originar

alguma doença. Ou seja, o que o reiki propõe-se a fazer, durante as sessões terapêuticas, é

restabelecer o “fluxo energético” daqueles que se submetem a sua utilização, ativando e

*
Parte desse material foi preliminarmente apresentada em Babenko, 2001.
50
Durante a realização da pesquisa etnográfica foram contatados praticantes do Reiki Tradicional de Usui,
42

fortalecendo “energeticamente” o organismo. Dessa maneira, o indivíduo que antes da

aplicação do reiki era acometido por alguma “doença”, após submeter-se às sessões

terapêuticas e ter seus chakras equilibrados acredita curar-se (ou, pelo menos, minimizar

alguns de seus infortúnios).

Os chakras, elementos centrais na prática do reiki, corresponderiam a “centros de

força de energia” que se situariam em diferentes planos, sendo que é por seu intermédio que

circularia a “energia vital”. É isso o que revela o depoimento de Maria Lucia, pedagoga e

reikiana:

É pelos chakras que circula a energia vital. São nesses centros de força que se
concentram o plano terrestre e o plano cósmico. A nossa má alimentação, má
respiração, angústia, depressão, pensamentos negativos, stresse diário e os
problemas hereditários criam bloqueios nos chakras impedindo o fluxo da força
vital através do organismo.

Ainda de acordo com as informações de Maria Lucia existem sete chakras principais

cuja localização associa-se a determinadas partes ou órgãos do corpo. A partir de um ponto

central situado na parte superior da cabeça (o chakra coronário) toda “energia” canalizada

seria então enviada aos demais chakras: frontal, laríngeo, cardíaco, plexo solar, sacro e

básico.

Figura 1: Localização dos chakras

Johrei Reiki, Reiki Tradicional Plus e Kundalini Reiki.


43

Tabela 3: Relaciona os chakras às funções que lhes são correspondentes

CHAKRA FUNÇÕES

Localização: alto da cabeça


Coronário ou Sahashara Influência: ligação com o Universo
Significado: pensamento
Relacionado: sistema nervoso, córtex e glândula pineal
Perturbações físicas: redução da habilidade no controle das dores, da
habilidade física e da capacidade de interagir em grupo
Função psicológica: entendimento
Perturbações psíquicas: alienação, psicose, confusão mental, dificuldades
de aprendizagem
Cor: violeta
Som: nenhum

Localização: meio da testa


Frontal ou Ajna
Influência: equilíbrio da mente
Significado: perceber
Relacionado: testa, têmporas, nariz, ouvidos, olhos
Perturbações físicas: enxaquecas, doenças relacionadas à visão, otite
Função psicológica: autopercepção
Perturbações psíquicas: neurose, retardamento mental
Cor: anil
Som: OM

Laríngeo ou Vishuda
Localização: base da garganta
Influência: aprofundamento do conhecimento
Significado: purificação
Relacionado: garganta, boca, glândula tireóide
Perturbações físicas: dores de garganta, torcicolo
Função psicológica: comunicação e expressão
Perturbações psíquicas: fobias, terror, inibição, rigidez
Cor: azul
Som: HAM

Cardíaco ou Anhata
Localização: meio do peito
Influência: amor incondicional
Significado: intacto
Relacionado: coração, sistema circulatório, pulmões
Perturbações físicas: asma, hipertensão, enfermidades cardíacas,
pulmonares
Função psicológica: amor e auto-expressão
Perturbações psíquicas: indiferença, egoísmo, autismo
Cor: verde
Som: YAM
44

CHAKRA FUNÇÕES

Localização: quatro dedos acima do umbigo


Plexo Solar ou Manipura
Influência: controle das emoções
Significado: jóia lustrosa
Relacionado: pâncreas, fígado, vesícula, baço, estômago, duodeno, cólon,
intestinos
Perturbações físicas: hiper-atividade, úlceras, diabetes, hiperglicemia
Função psicológica: emoções
Perturbações psíquicas: sentimentos de superioridade, egoísmo
Cor: amarelo
Som: RAM

Localização: quatro dedos abaixo do umbigo


Sacro ou Svadhisthana
Influência: sexualidade, reprodução
Significado: doçura
Relacionado: sistemas digestivo e reprodutivo
Perturbações físicas: problemas nos órgãos reprodutores
Função psicológica: desejo e relacionamentos interpessoais
Perturbações psíquicas: ansiedade, ilusão
Cor: laranja
Som: VAM

Localização: períneo ou base da coluna


Básico ou Muladhara
Influência: ligação do homem com a Terra
Significado: raiz, fundamento
Relacionado: espinha dorsal, ossos
Perturbações físicas: obesidade, anorexia, problemas ósseos
Função psicológica: sobrevivência
Perturbações psíquicas: medo, depressão, insegurança
Cor: vermelho
Som: LAM

Fonte: Dados obtidos a partir da etnografia dos espaços terapêuticos psicológicos de Campinas.

Conforme detalhado na Tabela 3, cada chakra estaria relacionado a determinadas

partes ou órgãos do corpo, possuiria uma função psicológica correspondente e associar-se-ia a

supostas perturbações físicas ou psíquicas. O que na prática terapêutica se traduziria da

seguinte maneira: como os chakras estão diretamente ligados a determinadas características

psicológicas e a partes do corpo, qualquer alteração no fluxo energético dos chakras aponta

simultaneamente para problemas físicos ou de natureza psíquica, explica Luis, reikiano há


45

três anos.

Por mais que essas associações beirem a “naturalidade”, uma vez que o “fluxo

energético” de determinadas partes ou órgãos do corpo estaria relacionado ao adequado

exercício das funções que lhes são correspondentes (como os olhos que se relacionam à visão,

a garganta ao aparelho fonador), o fato é que tais correspondências implicam, ou pelo menos

se referem, a atributos de comportamento e personalidade dos indivíduos (de maneira que

aqueles que quiserem evitar problemas no aprendizado devem manter “equilibrado

energeticamente” o chakra coronário, relacionado o cérebro; ou ainda aqueles que buscam

vencer o egoísmo devem estar atentos ao adequado funcionamento do chakra cardíaco,

relacionado ao coração).

Nesse sentido, a “energia” remete à eficácia e torna-se dotada de uma potencialidade

generalizada capaz de produzir efeitos: é ela que enquanto portadora de propriedades mágicas

traduz-se em mana dos afiliados às práticas alternativas e converte-se naquilo que Soares

(1994) denominou moeda cultural do mundo alternativo: é ela quem prepara o terreno

simbólico para o desenvolvimento de uma linguagem comum, independentemente das

diversidades. A esse respeito Cardoso (1999a) constata que a extensão ocupada no campo das

terapias alternativas pelo conceito de “energia” evidencia o princípio holístico em que elas se

baseiam, o qual, aplicado à própria concepção de “doença”, permite entendê-la como um

estado de desequilíbrio seja de ordem interna ou externa ao organismo.

Sugerindo não somente saúde, mas também integração comunitária, comunhão

ecológica, elevação espiritual, a “adequada distribuição de energia” permite então aproximar

indivíduos e grupos que compartilham de determinada concepção de mundo. Operando o

próprio sistema cosmológico sob o qual o universo alternativo está assentado, o conceito de

“energia” parece introduzir novas visões de mundo e reordenar comportamentos.


46

Aqui se relembra a história de Mikao Usui, particularmente o período em que ele

morou no bairro pobre de Kyoto. Naquela ocasião, percebendo que curar as doenças era

apenas uma das proposições do reiki (sendo que o mais importante era deixar a sua “energia”

atingir outros planos, além do físico, para que então ocorresse a mudança pessoal) Usui

formula alguns princípios pelos quais os praticantes do reiki deveriam orientar suas condutas.

Os princípios do reiki, tal como descrito pelos informantes, podem ser enunciados da

seguinte maneira:

Hoje eu conto com todas as minhas bênçãos. Acredita-se que manter um sentimento

de gratidão perante a vida seja viver em abundância: uma vez retomado o caminho natural

fica aberta a via para a abundância e o sucesso em todas as áreas da nossa vida. Dessa

forma o reiki permitiria minimizar bloqueios e restabeleceria a função de “dar e receber

livremente”.

Hoje eu abandono a raiva. Zangar e criticar são considerados atos inúteis, ineficazes e

prejudiciais pelos praticantes do reiki: quando alguém desencadeia a nossa ira ou desejo de

criticar, a forma de reagir corretamente é tentar perceber qual é a parte de nós mesmos que

reage dessa maneira. Geralmente trata-se de uma parte que não temos facilidade em aceitar,

um sentimento reprimido. Os praticantes do reiki consideram que somente quando formos

“unos com o Todo” seremos realizados.

Hoje eu abandono as minhas preocupações. Os nossos pensamentos e emoções são

considerados “energias vivas” com capacidade para atuar nas experiências individuais: se as

nossas preocupações fossem constituídas de pensamentos e emoções de dor e sofrimento, dor

e sofrimento viriam ao nosso encontro e não deveríamos recusá-los. Ao considerarem que as

preocupações constituem uma fuga ao presente, um meio de fugir de nós mesmos, os afiliados

ao reiki acreditam que, por esse motivo, todas as preocupações, razão de nosso sofrimento,
47

devem ser saudavelmente abandonadas.

Hoje eu faço meu trabalho honestamente. Presume-se que trabalhar honestamente

signifique gostar daquilo que se faz. Trabalhos executados em clima de contrariedade ou

ressentimento, nesse sentido, seriam prejudiciais para quem os executa.

Hoje eu sou gentil com todas as criaturas vivas. Por acreditarem que: o seu

semelhante, tudo o que vive, são outras tantas parcelas interdependentes do todo que

integramos, reikianos afirmam que enquanto não nos aceitarmos e respeitarmos nossa

integralidade, não atingiremos a “plenitude do nosso ser”.

A partir da enunciação desses princípios tem-se que as qualidades requeridas aos

praticantes do reiki são: complacência, serenidade, resignação, honestidade e respeito. Ao

afirmarem que “a vivência do presente sem preocupações conduz a uma vida menos tensa”, os

afiliados ao reiki acreditam que somente a contínua transformação do indivíduo possibilita o

crescimento pessoal – daí a necessidade de não somente reafirmar diariamente esses

princípios, mas, principalmente, incorporá-los ao cotidiano: “hoje eu sou, hoje eu abandono,

hoje eu trabalho, hoje eu agradeço”, pois, assim como sugere um desses princípios, e que

parece resumir todo esse conjunto de valores: devemos dar e receber livremente para que nos

sejam abertas as vias de abundância e sucesso em nossas vidas, afirma Maria Lúcia.

Ao disseminar tais princípios morais por meio dos quais são valorizadas condutas

como: manter um sentimento de gratidão à vida, evitar sentimentos de raiva, viver o presente

e não se preocupar com o que está por vir, trabalhar naquilo que se gosta, desenvolver a

autopercepção holística; a prática cotidiana do reiki passa a sugerir aos seus afiliados que

reformulem antigos hábitos e costumes a fim de que sejam alcançadas: receptividade,

sensibilidade, emotividade, cooperação e compaixão, necessárias para que se chegue ao tão

buscado autoconhecimento, chave de toda transformação pessoal e que, assim como proposto
48

por Mikao Usui, constitui-se no verdadeiro caminho para a cura.

7. O rito de iniciação*

O processo de formação em reiki compreende três níveis de aprendizado, cujos

ensinamentos são sempre transmitidos de um mestre para seus alunos. Para se tornar reikiano,

pessoa capacitada a aplicar o reiki em si mesmo e em outras pessoas, deverão ser cursados

minimamente dois estágios, sendo que cada um deles tem a duração de um final de semana.

Para se tornar mestre em reiki, o reikiano deve cursar um terceiro estágio que geralmente se

desdobra em outras duas modalidades.

Os preços desses cursos variam de acordo com o nível de aprendizagem. No primeiro

estágio os valores giram entre R$ 120,00 e R$ 150,00. No segundo, entre R$ 200,00 e

R$ 250,00. No terceiro nível os valores podem chegar a R$ 450,00.

É Regina, mestre em reiki, quem explica de que maneira se estruturam esses cursos:

No nível I, os alunos são sintonizados com a energia do reiki e aprendem a história


e as posições básicas das mãos para o tratamento. O curso também permite um
tempo para os alunos praticarem o reiki em si próprios e nos outros alunos sob
supervisão de um mestre. No nível II, aprendem o método para o envio de reiki à
distância para outras pessoas, plantas e animais, além de receber os símbolos
básicos para potencializar a energia. O nível IIIa é a preparação do candidato a
mestre. É como um estágio onde o aluno desenvolve sua sensibilidade e aprimora o
uso da intuição. Nesse estágio o aluno também é sintonizado com a energia de um
novo símbolo. No nível IIIb é ensinado como sintonizar outras pessoas à energia
reiki e aos símbolos mestres. O aprendizado do reiki não é restrito apenas à
técnica, mas abrange o desenvolvimento pessoal e a expansão da consciência para

*
Parte desse material foi preliminarmente apresentada em Babenko, 2001.
49

chegar à percepção do ser humano integrado ao universo físico e sutil [grifos


meus].

Logo, o processo de formação em reiki é composto por níveis organizados sob uma

lógica que se assemelha à atmosfera maussiana da dádiva. Ao cursar o primeiro nível o aluno

receberá os símbolos básicos e poderá fazer algumas aplicações, supervisionado por um

mestre. No segundo nível de aprendizagem, ao ter acesso a outros símbolos do reiki, o aluno

doará essa “energia” realizando a aplicação em outras pessoas que, inclusive, podem estar a

qualquer distância do reikiano. Cursando o terceiro nível denominado mestrado, o aluno

retribuirá os conhecimentos recebidos iniciando outras pessoas nessa prática.

Um dos rituais do reiki é vivenciado durante o processo de “iniciação” ou

“sintonização à energia universal”. Simbolizando o ponto inicial na trajetória daqueles que

pretendem se tornar reikianos, foi interessante perceber que a realização pontual desse ritual é

antecedida de alguns preparativos.

Nesse sentido, antes mesmo da pessoa passar pela iniciação deve seguir algumas

recomendações que, conforme explicou Cláudio, mestre em reiki, têm como objetivo:

restabelecer a harmonia do indivíduo através de uma purificação mental e da eliminação

natural de toxinas, para que a própria iniciação se desenvolva dentro do seu total potencial.

Dentre as recomendações que devem ser seguidas durante os sete dias anteriores à

iniciação, o mesmo informante cita:

Não comer carne vermelha, se possível evitar fumar, não ingerir bebidas alcoólicas,
manter a mente equilibrada e livre de pensamentos indesejados, refletir sobre a
responsabilidade de se tornar reikiano, estar ciente que após as iniciações a
energia reiki provocará várias transformações na sua vida de ordem energética,
mental e espiritual [grifos meus].

Regina, mestra em reiki, quando indagada sobre a existência de tais prescrições

enfatizou: sempre falo para os meus alunos que para toda ação tem uma reação. É claro que
50

a iniciação traz ótimos benefícios, mas por outro lado, tudo isso tem uma implicação,

acarreta num compromisso.

Por meio desses relatos percebe-se que ao mesmo tempo em que são feitas

recomendações sobre hábitos de consumo que devem ser abandonados, ainda que

temporariamente, a preocupação dos informantes em revelar aos seus alunos quais as

implicações de tornar-se reikiano evidencia que o processo de afiliação ao reiki implica em

determinadas mudanças que se refletirão diretamente no estilo de vida daqueles que a ele se

submetem (não ingerir bebidas alcoólicas, não fumar, não consumir carne vermelha).

Antes de prosseguir torna-se importante enfatizar que a “sintonização à energia

universal”, chamada pelos próprios reikianos de iniciação, ao contrário do que se poderia

imaginar, não ocorre uma única vez, quando a pessoa opta por se afiliar a essa prática

terapêutica e cursar o nível I do reiki: ela acontece em todos os estágios de aprendizagem.

Durante a formação em reiki os afiliados à prática passam por sucessivos rituais onde

a cada novo nível de aprendizado são novamente “sintonizados à energia universal”. A esse

respeito, a prática etnográfica comprovou que entre os reikianos é comum acreditar que com o

avançar dos estágios maiores serão os benefícios proporcionados pelo reiki (o que poderá ser

observado por meio das associações que os reikianos fazem aos símbolos utilizados durante o

ritual de iniciação).

Quanto aos rituais de iniciação propriamente ditos e que são realizado da mesma

maneira em todos os três níveis de aprendizado do reiki, a fala emocionada de alguns

informantes indica que esse processo é vivenciado como um momento bastante especial:

Praticamente ninguém consegue explicar o que acontece racionalmente. (...) Não é,


no entanto, necessário explicar racionalmente uma iniciação, é sim gratificante
constatar a profunda transformação que provoca na vida da maioria das pessoas
[grifos meus].
51

Em que pese todo esse subjetivismo que parece caracterizar os rituais de iniciação

reikiana, ainda sim, os sentimentos de paz e o deslumbramento foram os adjetivos mais

utilizados para descrevê-los.

Conforme relataram alguns informantes, a pessoa que vai receber a iniciação senta-se

numa cadeira com a espinha ereta, pernas descruzadas e mãos em posição de oração à altura

do peito, em frente do chakra cardíaco. O ambiente deve ser o mais sossegado possível,

podendo-se colocar uma música para meditação, incenso e velas. O mestre se posiciona atrás

da pessoa que será iniciada e coloca as mãos sob os seus ombros para criar uma espécie de

ligação. Os símbolos do reiki são traçados com a mão em côncavo, presumindo-se que assim

haverá uma “maior concentração de energia”.

A primeira fase da iniciação consiste em o iniciado inspirar profundamente e reter a


respiração de maneira a abrir o chakra coronário. O símbolo dai-ko-myo é traçado
em cima deste chakra. As mãos do iniciado são levantadas até à altura da testa e
então o mestre sopra do chakra laríngeo até as extremidades da cabeça e das mãos.
Outra vez o iniciado inspira profundamente e retém a respiração. Dessa vez três
símbolos são traçados em cima da cabeça pela seguinte ordem: hon-sha-ze-sho-ne,
sei-hei-ki, cho-ku-rei. Novamente o mestre sopra do chakra laríngeo até as mesmas
extremidades, só que agora as mãos do iniciado são baixas até o chakra coronário.
Enquanto o iniciado novamente inspira, o mestre passa à frente do iniciado, pelo
lado direito.
A segunda fase implica em abrir as mãos da pessoa como um livro, traçar os
mesmos símbolos sobre a palma das mãos pela seguinte ordem: dai-ko-myo, hon-
sha-ze-sho-ne, sei-he-ki, cho-ku-rei batendo três vezes em ambas as mãos, ou no
peito se não for possível nas mãos. Em seguida as palmas das mãos são juntadas e
sopradas, do chakra básico até o chakra cardíaco. Enquanto o iniciado inspira
profundamente retendo a respiração, o mestre volta para trás do iniciado, também
pelo lado direito.
A terceira fase exige que se trace novamente o símbolo dai-ko-myo sobre o chakra
coronário. Em seguida, o mestre lentamente ergue as mãos do iniciado e sopra do
chakra laríngeo até o chakra coronário. Depois, novamente o mestre sopra as mãos
do iniciado, que devem ser colocadas sobre o chakra cardíaco e sobre o chakra do
52

plexo solar51.

Dessa maneira, as iniciações no reiki fundamentam-se em uma série de símbolos cuja

validade é atribuída à união da ação (de mantras, sons) e representação (yantras, desenhos).

Compartilhando a noção que o sentido tem como condição primeira constituir os sistemas de

significações de dado grupo, tem-se, a partir dessa constatação, que a enunciação e evocação

dos símbolos do reiki somente encontram sentido dentro do contexto em que são empregados;

ou seja, durante os rituais de iniciação.

Tabela 4: Relaciona os símbolos do reiki às suas funções

SÍMBOLO FUNÇÕES

Cho-ku-rei

Considerado o símbolo de poder, o cho-ku-rei atuaria na cura do corpo físico. A


revelação deste símbolo, o método de imposição e mãos e a iniciação no reiki
ocorreriam durante o primeiro nível de aprendizado.

Mantra: cho-ku-rei.

Harmonizaria os chakras, relacionando-se ao despertar e à purificação da


“energia”. Selaria a aliança entre a “energia universal” e o homem, ativando a cura
Sei-he-ki
por meio do subconsciente. Sua “energia” trabalharia no corpo emocional e
liberaria a raiva, tristeza, traumas, fobias, medos, frustrações, solidão, angústias e
os apegos.

Além disso, o sei-he-ki teria outras utilidades:

(a) proteção pessoal, (b) purificação dos ambientes, (c) mudança de


comportamento e hábitos negativos ou indesejáveis, como vícios, cacoetes, tiques
nervosos.

Mantra: sei-he-ki.

51
Depoimento prestado em Babenko, 2001.
53

SÍMBOLO FUNÇÕES

Esse símbolo direcionaria a “energia” para atuar sobre o corpo mental. Reikianos
Hon-sha-ze-sho-ne afirmam que com o uso do hon-sha-ze-sho-ne a “energia” pode ser enviada com a
mesma intensidade para qualquer parte do planeta. Quando utilizado esse símbolo
derrubaria as barreiras da distância interpondo-se entre o doador e o receptor de
reiki.

Utilizado para: (a) tratamento dos problemas psicológicos e (b) cura à distância.

Assim como o símbolo sei-he-ki, o hon-sha-ze-sho-ne também é ensinado durante


o segundo nível de aprendizado do reiki.

Mantra: hon-sha-ze-sho-ne.

Dai-ko-myo
No terceiro nível os alunos são sintonizados com a “energia” do dai-ko-myo.

Considerado o símbolo mestre, sua ação trabalharia no corpo espiritual,


amplificando os outros três símbolos do reiki.

Mantra: dai-ko-myo.

Fonte: Dados obtidos a partir da etnografia dos espaços reikianos de Campinas.

Localizados num contexto específico de tempo e espaço, esses rituais induziriam seus

participantes a estados moral, psicológico e mesmo fisiológico diferentes do “normal”. Esse

estado induzido procederia então à associação de idéias e sentimentos permitindo ao reikiano

prosseguir integrado ao seu grupo. Partindo disso, ao constatar que cada vez que um símbolo

é desenhado a existência da “energia reiki” é reafirmada, parece bastante apropriado sugerir

que são os símbolos quem garantem a eficácia desses rituais de iniciação.

Denotativa dessa sugestão é a maneira que os praticantes do reiki concebem esses

símbolos (o que foi indicado na Tabela 4). Acreditando que eles representam uma ascensão no

nível em que irão atuar, de acordo com Cláudio:

Cada símbolo concentra sua ação em determinado corpo vibracional. O símbolo


cho-ku-rei trabalha sobre o corpo físico, o símbolo sei-he-ki trabalha no corpo
emocional, o símbolo hon-sha-ze-sho-ne no corpo mental e o símbolo dai-ko-myo
atua no corpo espiritual. Ao trabalhar com o símbolo dai-ko-myo, o símbolo mestre,
54

se ativa a energia de cura mais poderosa do reiki.

As iniciações no reiki sugerem um período de transição àqueles que a elas se

submetem. Por se tratar de um momento de mudança, supostamente há muita expectativa em

relação ao que está por vir e as reações são diversificadas: felicidade, choro, quentura nas

mãos, tremedeira. Os reikianos reconhecem que ao fim desse processo os iniciados

freqüentemente apresentam sintomas como: diarréia, náuseas, sudorese e coloração alterada

da urina. Tais sintomas, de acordo com os mesmos informantes, simbolizariam um processo

de desintoxicação com duração aproximada de vinte e um dias.

Correspondendo a uma fase de limpeza, por meio da qual as “impurezas” seriam

eliminadas, o processo de desintoxicação representaria uma situação limite, onde o antigo

período é abandonado em detrimento de uma nova fase.

É o que mostra o relato de João, um estudante universitário:

Ao fazer a minha iniciação no reiki tudo começou a mudar. A princípio a minha


intuição aumentou sensivelmente. (...) O grau de stress diminui bastante.(...) Não
deixo de fazer minha auto-aplicação diária. Com ela consigo ter um maior
equilíbrio emocional e mental no dia que se inicia. Quando não faço, com certeza
esse dia será tumultuado [grifos meus].

Ao término de cada iniciação a pessoa torna-se (re) sintonizada à “energia universal” e

então mestre e alunos agradecem à “energia vital”. Nota-se aqui uma das diferenças entre as

práticas alternativas e demais religiões ou seitas: ao contrário do que acontece com os

religiosos, que agradecem e homenageiam deuses e entidades personificadas, os afiliados à

prática do reiki prestam agradecimentos a uma força impessoal, à “energia universal”. Esse

distanciamento de uma visão de divindade separada, pessoal e criadora pela proposição de um

princípio superior e totalizador (Magnani, 1999), como será evidenciado ao longo desta

dissertação, constitui um dos principais elementos ao entendimento da matriz discursiva dos

afiliados à prática do reiki.


55

8. As sessões terapêuticas de purificação*

Alguns reikianos apreciam música durante suas sessões. Essa música é sempre suave e

de baixo volume. A iluminação desses lugares, seguindo essa mesma tendência, é tênue. O

uso de roupas confortáveis, tanto por parte do terapeuta como do paciente, constitui regra.

Durante a sessão são desaconselhados o uso de óculos, sapatos e demais acessórios, como, por

exemplo, bijuterias e relógios.

Conforme se observou durante a realização da etnografia, as palmas das mãos do

reikiano são sempre voltadas para baixo e os cinco dedos mantêm-se unidos e estendidos. As

mãos ficam relaxadas e não exercem pressão sobre o corpo de quem irá receber a aplicação

energética (seja o cliente, seja o próprio reikiano) podendo ser posicionadas diretamente sobre

o corpo da pessoa ou ligeiramente acima dele. A imposição de mãos sob cada ponto ao longo

do corpo tem duração de aproximadamente três minutos e, totalizando, são vinte e três os

pontos que podem ser “energizados” durante as sessões.

O conjunto de Figuras 2 e 3, respectivamente, demonstra as principais posições para a

aplicação frontal e dorsal do reiki em outras pessoas, o conjunto de Figuras 4 e 5 indicam as

posições para a auto-aplicação.

*
Parte desse material foi preliminarmente apresentada em Babenko, 2001.
56

Figuras 2: Posições para aplicação frontal do reiki em outras pessoas

Figuras 3: Posições para aplicação dorsal do reiki em outras pessoas


57

Figura 4: Posições para a auto-aplicação frontal de reiki

Figura 5: Posições para a auto-aplicação dorsal de reiki

Em cada posição, assim como acontece em cada sessão de reiki, as pessoas que

recebem a aplicação energética podem sentir diferentes sensações: calor, frio, vibrações,

ligeiro tremor ou mesmo dormência.

Segue a descrição de uma informante sobre os procedimentos utilizados durante as

sessões de reiki.
58

A sessão começa por trás da pessoa, para as posições na cabeça e garganta. Nesta
posição o terapeuta deve ter cuidado, pois se trata de uma zona extremamente
sensível e, por vezes, as pessoas sentem medo quando há pressão nessa região. Nas
posições do tronco o reikiano pode se mover para uma posição lateral de forma a
aplicar todas as posições comodamente, não havendo necessidade de se mover de
um lado para o outro do corpo, mas sim estender um dos braços. Desloca-se depois
para o lado dos pés do receptor para aplicar as posições dos joelhos e tornozelos.
Na posição da planta dos pés, onde a sessão deve ser terminada, pode ficar de frente
ou de costas para o receptor. Caso pretenda continuar a sessão na zona das costas,
que é opcional, poderá optar por deixar a posição dos pés para o final da sessão.
Outra forma de completar a sessão é varrer com as mãos a energia. Para isso o
reikiano deverá colocar as mãos cerca de vinte centímetros acima do corpo da
pessoa, com as palmas voltadas para baixo e delicadamente fazer o movimento de
varredura várias vezes no sentido “cabeça-pés”. A pessoa deve mover-se lentamente
e beber um copo de água mineral. É também importante explicar ao paciente, antes
ou depois da sessão, que ele pode ficar sujeito a um processo de desintoxicação52.

Buscando fundamentar o método terapêutico oferecido, os terapeutas em reiki relatam

curas nos casos mais diversos: problemas de coração, cancro, doenças de pele, ferimentos

profundos, regeneração de ossos partidos, gripes, cansaço, falta de memória, depressões,

dores de cabeça, problemas de coluna, cólicas menstruais, efeitos de quimioterapia, problemas

psicológicos etc. Os clientes, a esse respeito, afirmaram em sua maioria nunca ter recorrido

unicamente à terapia reikiana quando acometidos por alguma doença grave.

Reikianos inferem que a freqüência das sessões de cura é baseada na gravidade do

caso. Para casos mais simples, como uma dor de ouvido ou dor de cabeça, talvez baste uma

sessão. Para doenças mais sérias a sessão de cura deve ser repetida, ainda que em intervalos

de dias. Essas sessões raramente duram menos que noventa minutos.

52
Depoimento prestado em Babenko, 2001.
PARTE IV

CIRCUITOS E TRAJETOS ALTERNATIVOS COMO CONTEXTO ETNOGRÁFICO

Partiu-se da perspectiva de analisar a “dinâmica do reiki” na cidade de Campinas a

partir da pesquisa etnográfica de determinados espaços alternativos que foram identificados

por meio dos circuitos e trajetos reikianos.

Conforme indicam os dados provenientes da pesquisa etnográfica, pode-se afirmar que

o processo de aquisição de visibilidade, a possibilidade de afiliação sindical, a dinâmica

acelerada da re-configuração dos serviços prestados e a movimentação dos profissionais

reikianos entre os espaços alternativos encontram-se diretamente relacionados com as

concepções de legitimidade que concorrem nesse circuito.

Constatando-se por meio da intensificação dos trabalhos etnográficos que há uma

extensa rede de afiliados ao reiki que circula pelas salas, centros e clínicas holísticas, lojas de

comércio esotérico e, inclusive, consultórios psicológicos, surgiu uma inquietante pergunta:

por onde começar?

9. Origens da rede alternativa

Foi por meio do mapeamento etnográfico, recurso fundamentalmente utilizado para

contatar os terapeutas alternativos, que se descobriu que em meados de 1980 alguns adeptos
60

às práticas alternativas relacionavam-se com centros holísticos norte-americanos.

Sandra, que desde então se encontrava ligada àquilo que definiu como rede da Nova

Era internacional, após participar de algumas palestras e congressos começa a implementar

esforços para vincular em um mesmo circuito os praticantes locais das mais distintas

modalidades alternativas, na ocasião, afiliados a yoga, ao tai-chi-chuan, à macrobiótica, à

parapsicologia, à astrologia.

Em suas palavras, a informante:

Buscava reunir gente que se dedicava à atividade pedagógica independente. Em


geral, gente que trabalhava em sua própria casa, em grupos pequenos, sem possuir
habilitação específica para exercer suas atividades. Pessoas que trabalhavam com
técnicas corporais, com a filosofia, métodos experimentais, de tudo um pouco. (...)
Essa idéia de integrar as pessoas que trabalhavam com diferentes práticas me
empenhou a trabalhar incessantemente. Então, para poder conversar chamamos
mais de 30 pessoas que trabalham nas mais variadas áreas.

Durante a década de 1980, em especial na segunda metade, os espaços alternativos

começam a surgir em Campinas em maior número, o que lhes possibilitou ganhar uma maior

visibilidade dentro daquilo que se pode considerar o período inicial de expansão das práticas

alternativas.

As tentativas de Sandra em criar conexões locais entre praticantes de disciplinas

alternativas e intensificar as relações regionais entre esses praticantes foram seguidas, a partir

de 1986, por sua amiga Lindaura. Para tanto, ambas se valeram de conferências, reuniões

informais e seminários que contaram, inclusive, com a participação de visitantes

internacionais.

Procurando estreitar relações entre aqueles que de certa forma estavam ligados ao

mesmo circuito, difundindo atividades ligadas a um mesmo fim e organizando eventos onde

todos se juntavam em um mesmo espaço físico e participavam das mesmas atividades, essas
61

amigas promoveram o surgimento de uma rede alternativa local.

O perfil dos espaços alternativos que surgiram nessa época era do tipo “esotérico”, e

as atividades realizadas (cursos, workshops, consultas e palestras) tornaram-se mais abertas ao

público em geral, o que pode ser explicado pela promoção regular de atividades realizadas

nessas localidades. Nesse período as técnicas terapêuticas também compareciam dentre os

serviços oferecidos por nesses espaços, apesar de praticadas em menor escala do que

atualmente.

A partir de 1990 o circuito alternativo campineiro se vê transformado por uma

crescente profissionalização e uma progressiva ênfase nos objetivos terapêuticos. Também se

registra uma progressiva diversificação nos serviços oferecidos por cada centro ou clínica

holística. Ao mesmo tempo, se multiplicam os espaços alternativos que outorgam certificados

reconhecidos por centros holísticos norte-americanos, especialmente o título de mestre em

disciplinas alternativas.

Tabela 5: Indica as práticas alternativas oferecidas nos espaços alternativos campineiros

PRÁTICAS ALTERNATIVAS OFERECIDAS NOS ESPAÇOS ALTERNATIVOS CAMPINEIROS


DÉCADA DE 1980 DE 1990 a 2003

Acupuntura, aromaterapia, astrologia, biodança, búzios, Acupuntura, acupuntura eletromagnética, alongamento,


cromoterapia, do-in, florais de Bach, grafologia, aromaterapia, arte arcana (wicca), artes manuais
meditação, hipnose, macrobiótica, naturismo, (confecção de velas, incensos e mandalas), astrologia,
neurolingüística, numerologia, parapsicologia, regressão, biodança, bioenergética, biomagnetismo,
runas, tarot, técnicas de expressão corporal, técnicas de biopranaterapia, búzios, cromoterapia, dança do ventre,
meditação e de relaxamento, terapia de vidas passadas, dança dos orixás, dança educativa e terapêutica, dança
terapias angélicas. sensual, defesa psíquica, do-in, florais (Bach e Saint
Germain), fotos da aura (Kirlian), ginástica laboral,
grafologia, hidroterapia, hipnose, limpeza energética,
massoterapia, neurolingüística, numerologia,
parapsicologia, psicoterapias (reichiana, gestalt-terapia e
junguiana), reflexoterapia, regressão, reiki, RPG, shiatsu,
técnicas de meditação e relaxamento, expressão corporal
e relaxamento, tarot, terapias angélicas, terapia
quântica, terapias expressivas (cores, movimentos,
som), terapia de vidas passadas, vegetoterapia,
yogaterapia hormonal.

Fonte: Dados obtidos a partir da etnografia dos espaços alternativos de Campinas.


62

Nota-se, a partir da Tabela 5, que a intensidade com que surgiram os espaços

alternativos durante a década de 1980 é bem menos intensa do que a observada atualmente.

Em 1996, relembram Sandra e Lindaura, as disciplinas mais populares incluídas no

circuito alternativo de Campinas compreendiam terapias com elementos naturais: florais de

Bach, aromaterapia, cromoterapia, hidroterapia; sistemas de alimentação natural: vegetariano,

macrobiótico; psicoterapias: terapia bioenergética, vegetoterapia, terapia reichiana, terapia

junguiana, programação neurolingüística; disciplinas esotéricas: astrologia, numerologia,

grafologia, tarot; técnicas de movimentos orientais: tai-chi-chuan, yoga, biodança; práticas

terapêuticas fundamentadas em preceitos orientais: moxabustão, shiatsu, reiki, do-in; técnicas

de meditação budista; práticas indígenas: identificadas como xamanismo e outras práticas

pertencentes às mais diversas orientações: dança dos orixás, terapias angélicas, magia pagã

européia etc. Nesse período, devido à clientela demandada, foram intensificados as ofertas de

cursos, palestras e seminários que combinavam várias dessas disciplinas: workshops sobre

meditação com anjos, cursos que enfatizavam a astrologia aplicada aos florais de Bach e

astrologia psicológica.

Assim, de acordo com os relatos dessas informantes e como ilustrado na Tabela 5, a

partir dos anos 1990 há uma reconfiguração da oferta de cursos e atendimentos terapêuticos

no âmbito dos espaços alternativos. Uma parcela crescente de espaços que durante 1980

possuíam um perfil acentuadamente “esotérico” vai pouco a pouco incorporando um número

cada vez maior de técnicas terapêuticas ao leque de atividades oferecidas, promovendo a

ampliação das possibilidades de formação profissional nessa área.


63

10. Regulamentação profissional

Em que pese a repercussão dos inúmeros pareceres do Conselho Federal de Medicina

(CFM) naquilo que diz respeito à não oficialização das práticas alternativas, a opção

encontrada por alguns dos terapeutas da área holística tem sido buscar legitimar seus serviços

por meio da auto-regulamentação profissional.

Seguindo esse caminho, os terapeutas holísticos inicialmente fundaram o Sindicato

dos Terapeutas Holísticos (SINTE)53. Nessa proposta uniram-se inúmeras atividades

profissionais até então não-regulamentadas e aprovou-se um Código de Ética para o grupo.

A conquista mais comemorada, conforme enfatizou a maior parte dos terapeutas

reikianos, foi a promulgação da Lei 1966/97 das Terapias Holísticas e sua regulamentação

pelo Decreto nº 3060/97.

Oficialmente divulgados no auditório da Câmara Federal em Brasília, no dia 06 de

agosto de 1997, foi então que se tornou pública a criação do Conselho Federal de Terapia

Holístico, regularmente constituído como a primeira autarquia da profissão liberal de

terapeuta holístico54. A partir daí seus representantes oficiais passariam a promulgar

resoluções oficiais sobre diversos temas, tais como: as regras básicas voluntárias para o

correto exercício profissional, o reconhecimento de cursos, direitos autorais. Só que agora

tendo a vantagem de se constituírem serviço público outorgado.

53
Devidamente registrado no 3o Registro Civil das Pessoas Jurídicas - São Paulo, CNPJ/MF 68.484.906/0001-
62, Ministério do Trabalho nº 46010.003516/93, publicado no Diário Oficial da União nº 165, de 30 de agosto de
1993, Registro Sindical definitivo publicado no Diário Oficial nº 55, de 21 de março de 1997, p. 5678, ratificado
como Sindicato Nacional pelo Ministério do Trabalho, publicado no Diário Oficial da União de 16/07/98, seção
1, pág. 01, registro No. 46000.002902/97, é uma sociedade civil de direito privado, sem fins lucrativos, de base
territorial nacional, cuja principal atividade é representar legalmente os profissionais Terapeutas Holísticos
autônomos (em suas variadas formas de nomenclatura) do Brasil perante os poderes constituídos, na defesa de
direitos e interesse coletivos e individuais, inclusive em questões judiciais ou administrativas. Atualmente a
entidade é presidida por Henrique Vieira Filho e sediada na cidade de São Paulo.
54
Atualmente os terapeutas holísticos se encontram enquadradas na Classificação Brasileira de Ocupações. A
64

Segundo estimativas do próprio Sindicato dos Terapeutas Holísticos, existem no Brasil

cerca de 150 mil profissionais atuantes nessa área. Dados que realmente impressionam,

principalmente se lembrarmos que, de acordo com a Associação Brasileira de Medicina

Complementar, no início de 2000 existiam 50 mil terapeutas alternativos no país55. Ou seja, se

de fato o SINTE não superestima seus dados, o número de profissionais alternativos no país

cresceu na proporção de 3:1 em um espaço de apenas três anos.

Apostando na adesão voluntária da categoria representada como meio para atingir a

auto-regulamentação profissional, o SINTE afirma que aproximadamente 12 mil terapeutas

alternativos possuem a Carteira de Terapeuta Holístico (CRT) que, de acordo com o próprio

sindicato, corresponde a “um importante diferencial de mercado que atesta a capacitação

profissional e os transforma nos mais prestigiados perante uma clientela crescente em todo o

mundo. Sem nenhuma Lei sequer que os obrigue, quem se candidata à obtenção de CRT está

compromissado estatutariamente à ética e a excelência técnica” [grifos meus].

Preocupado tanto em fiscalizar a prática dos terapeutas alternativos quanto

regulamentar essa profissão, o SINTE adotou uma outra medida nesse sentido: a Certificação

de Conformidade Técnica, atitude que, via de regra, não depende da intervenção dos

organismos governamentais e que segundo a própria entidade possibilitaria identificar os

profissionais que assumirem publicamente o cumprimento das Normas Técnicas Setoriais

Voluntárias (NTSVs).

“Mais do que nortear o terapeuta holístico para qualidade técnica total, as NTSVs

igualmente o harmoniza quanto aos interesses dos clientes e da sociedade brasileira como um

todo. (...) Outro fator primordial é facilitar à sociedade a identificação dos produtos e serviços

em conformidade com as normas específicas, beneficiando ao mesmo tempo aos (sic)

profissão é classificada como autônoma na Tabela de Enquadramento Fiscal sob variados códigos municipais.
65

consumidores com os parâmetros para decisão e aos próprios fornecedores pelo acréscimo de

seu diferencial de mercado e a possibilidade de utilizar novas estratégias de marketing”56.

A esse respeito pode-se dizer que, durante a pesquisa etnográfica, observou-se nas

salas onde ocorriam as sessões terapêuticas que não raro eram expostas certificações de cursos

reconhecidos pelo SINTE e alguns selos de qualidade: como adesivos que estampavam o

logotipo do referido sindicato, autocolantes que diziam: “terapeuta reconhecido pelo SINTE”,

cartões de visita e demais materiais de publicidade onde eram ilustrados os símbolos oficiais

da profissão. A esse respeito constatou-se que ao utilizar essas estratégias os terapeutas eram

imbuídos do propósito de procurar orientar a escolha dos seus clientes, uma vez que, ao expor

tais símbolos que supostamente lhes delegariam credibilidade, presumidamente os clientes

poderiam optar por usufruir serviços realizados por profissionais qualificados e reconhecidos.

O que dentre a imensa diversidade de práticas alternativas e o crescente número de

terapeutas holísticos constitui, certamente, uma forma de diferenciar-se dos demais. Ou,

segundo as definições do próprio Sindicato dos Terapeutas Holísticos: “transparência,

credibilidade, ética, comprometimento, satisfação do cliente, adequação e valorização do

profissional, estas são as propostas da auto-regulamentação da terapia holística. Atuando

como referencial de excelência, a auto-regulamentação promoverá a tão esperada separação

do joio e do trigo, sem perseguir a nada, nem a ninguém, mas valorizando quem as cumpre”57.

Tratar-se-ia então de perguntar: para o Sindicato dos Terapeutas Holísticos quem representa o

joio que deve ser separado do trigo?

55
Para maiores esclarecimentos, ver p. 17 desta dissertação.
56
Site do Sindicato do Terapeutas Holísticos – http://www.sinte.com.br, consultado em 06/07/2003.
57
Ibid.
66

O Sindicato dos Terapeutas Holísticos, em suas NTSVs, considera aptos ao exercício

das terapias alternativas aqueles que possuírem a Carteira de Terapeuta Holístico Credenciado

ao SINTE ou então aqueles que preencherem minimamente um dos requisitos:

1. Possuir diploma de cursos da área reconhecidos pelo MEC ou pelo SINTE58;

2. Possuir diploma de curso superior na área de saúde ou outro a critério exclusivo do

SINTE;

3. Submeter à apreciação do SINTE monografia sobre as técnicas exercidas: texto com

formatação de uma apostila de curso, ensinando ao leitor o que é e como exercer corretamente

cada uma das técnicas que utiliza, incluindo descrição de casos reais e formas de tratamento;

4. Direito adquirido: comprovação de atuação na área há mais de quatro anos, seja por

registro como empregado, autônomo, ou como empresa da área, apresentando os documentos

pertinentes: em caso de empregado, cópia do conteúdo da Carteira de Trabalho. Se

profissional autônomo deve apresentar cópia do ISS contendo a data de início da atividade.

Empresas têm que apresentar o CNPJ e Contrato Social onde seja comprovada a vinculação à

profissão de terapeuta holístico; ou ainda,

5. Apresentar três declarações de pessoas diferentes com firma reconhecida em cartório

atestando sua atuação como terapeuta holístico há mais de quatro anos.

Antes de obter o número definitivo da Carteira de Terapeuta Holístico credenciado ao

SINTE, o terapeuta primeiramente receberá uma Carteira provisória. O número definitivo da

credencial tem a validade de dois anos e o investimento anual para se tornar um profissional

reconhecido pelo Sindicato dos Terapeutas é de R$ 236,15, cujo pagamento pode ser

facilitado em até três vezes. A taxa de renovação bi-anual do número da CRT é de R$ 17,00,

58
A esse respeito pode-se afirmar que ao longo da pesquisa etnográfica não foi constatado qualquer curso
holístico que fosse reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC).
67

acrescida do valor da Guia de Recolhimento de Contribuição Sindical, totalizando R$ 33,1059.

Embora se deva dizer que durante a realização da pesquisa etnográfica menos da

metade dos terapeutas em reiki contatados eram credenciados ao SINTE, essa constatação

aponta para um dado não menos significativo: ao seguirem as NTSVs e almejarem a auto-

regulamentação, alguns terapeutas reikianos, ainda que à sua maneira, dão os primeiros passos

em busca da legitimação profissional.

11. Circuito reikiano: prática e profissionalização

Conforme indica a Tabela 6, os dados relativos ao mapeamento etnográfico realizado

no ano de 2001 revelam que dentre os 6 reikianos localizados: 3 trabalhavam em cômodos de

suas próprias residências, 2 em clínicas ou centros holísticos e 1 psicólogo utilizava o reiki

como terapia complementar à prática clínica.

Tabela 6: Terapeutas reikianos contatados em dois contextos etnográficos

MAPEAMENTO DO REIKI EM CAMPINAS

Local de prestação dos serviços Reikianos

EM 2001 DE 2002 a 2003

Cômodos de residências ou salas comerciais alugadas 03 09

Clínicas e centros holísticos 02 08

Consultórios psicológicos 01 06

Totalização dos contatos (terapeutas reikianos) 06 23

Fonte: Dados obtidos a partir da etnografia dos espaços terapêuticos alternativos de Campinas.

59
Site do Sindicato do Terapeutas Holísticos – http://www.sinte.com.br, consultado em 06/07/2003.
68

Durante o período de 2002 a 2003 foram localizados 23 terapeutas. Desses, 9

ofereciam seus serviços em salas comerciais alugadas, 8 trabalhavam em clínicas ou centros

especializados em terapias alternativas e meditação e outros 6 profissionais conjugavam a

aplicação do reiki à Psicologia.

Tânia, interessada em terapias holísticas há mais de 12 anos, tornou-se reikiana em

1993. Pedagoga por formação, atualmente essa informante é a representante da Associação

Brasileira de reiki em Campinas e foi por seu intermédio que demais participantes do circuito

reikiano foram localizados. Segue fragmento do relato onde ela conta como surgiu seu

interesse por essa prática terapêutica.

Comecei a me interessar por medicina alternativa e ao longo desta busca ouvi


comentários sobre o reiki. Então fui atrás da literatura existente e cheguei até uma
pessoa no Rio de Janeiro que é autor de vários best sellers. Hoje eu reconheço que
essa busca foi válida principalmente porque antes de fazer meu primeiro curso em
reiki, eu busquei informações, estudei, até chegar a essa pessoa. Fiz meu primeiro
nível de reiki no Rio de Janeiro e depois disso fui aluna direta da Claudete60.

Foi assim que Tânia indicou uma psicóloga, também reikiana. Lídia, que é praticante

do budismo tibetano, em 1980 fez uma viagem à Índia. Foi nessa ocasião que conheceu

Claudete, que anos mais tarde seria professora de Tânia, que por sua vez é amiga pessoal de

Lídia.

Claudete e eu conversamos um bocado e trocamos experiências maravilhosas


durante aqueles dias. Afinal, éramos duas brasileiras lá no outro lado do mundo ou
quase lá... Quando retornamos ao Brasil ficamos algum tempo sem nos conversar,
mas depois da vinda de Steven Cord Saik para o Brasil fui convidada pela Claudete
para ajudá-la a organizar palestras sobre reiki, e eu aceitei. No início organizava
regionalmente essas atividades, mas depois de fazer o mestrado foram surgindo
novas oportunidades na cidade para divulgar o reiki e então eu escolhi continuar
com o trabalho apenas por aqui. [grifos meus].

Somente depois de contatar essas informantes foi possível reconstituir as bases da rede
69

reikiana campineira e compreender sua inserção no respectivo circuito nacional.

De acordo com as informações de Tânia e Lídia, a primeira pessoa em Campinas

titulada como mestre em reiki foi a própria Lídia que, durante alguns anos, exerceu o cargo de

representante regional da AB-Reiki. Atualmente ela é a coordenadora do Centro de Terapia

Reiki, principal agência difusora dessa prática terapêutica na cidade.

Conforme se comprovou pela intensificação dos trabalhos etnográficos, essas reikianas

constituem importantes marcos na rede reikiana61 campineira, já que são elas as responsáveis

pela organização das principais atividades associadas ao reiki na cidade. Agrupando pessoas

em verdadeiras redes, Tânia e Lídia ministram cursos, promovem palestras e iniciam pessoas

na prática do reiki.

A rede reikiana campineira é composta em sua maioria por mulheres casadas, na faixa

etária de 30 a 40 anos, profissionais liberais majoritariamente da área de saúde, residentes no

município pelo período mínimo de dez anos.

Exemplificando o que ocorre no interior desse grupo destaca-se o exemplo de

determinada família, caso em que marido, esposa e filho cursaram o mestrado em reiki. Após

finalizar os três níveis de aprendizado nessa prática terapêutica, a esposa abandonou seu

consultório odontológico e atualmente dedica-se exclusivamente ao reiki.

No interior dessa rede também podem ser citados exemplos de filiações em pares,

onde se constata que pais e filhos foram simultaneamente iniciados na prática, casais de

namorados passaram a freqüentar a mesma clínica ou ainda dos amigos que incentivaram

outros amigos a conhecer o reiki.

60
Claudete, como já foi dito, além de fundadora é a atual presidente da Associação Brasileira de Reiki.
61
A rede reikiana refere-se ao grupo de pessoas que “circulam” pelas salas, clínicas e centros holísticos, lojas de
produtos esotéricos, sítios e chácaras onde são oferecidos produtos e serviços demandados pelos afiliados ao
reiki.
70

Podendo ser caracterizada como uma grande mobilização de pequenos grupos

estruturados a partir de diversos locais, unidos em torno do mesmo pensamento e objetivos, e

apresentando características de mobilidade e flexibilidade, as relações que se dão no interior

da rede reikiana não seguem uma estrutura formal de organização, fator que pareceu

favorecer sua expansão. Por não haver a delegação de poderes, não são instituídos líderes no

interior desses grupos, cada um dos seus membros torna-se o centro da sua própria rede cujo

núcleo se encontra em todas as partes.

Estabelecer redes de relacionamentos, nesse contexto, não apenas garante o fluxo das

informações e códigos partilhados, mas também viabiliza o encontro entre pessoas, ainda que

em diferentes momentos e locais, promovendo o reconhecimento dos “outros” enquanto

membros de um mesmo grupo.

Dessa maneira percebe-se que, mais do que promover a união de pessoas em torno de

crenças sobre uma prática terapêutica alternativa, a rede reikiana oferece aos seus afiliados, a

partir da sociabilidade que nela se estabelece, uma rede mais próxima de contatos

interpessoais e trocas de experiências.

Ilustrativo dessa tendência é o texto publicado em um boletim especializado em

medicinas alternativas veiculado no interior do estado de São Paulo, segundo o qual:

Esta arte de cura pela imposição das mãos [reiki], muito além da cura física
proporciona a capacidade de ganhar clareza e percepção mais profundas com
relação a assuntos emocionais e intelectuais, permitindo o caminho para novas
resoluções pessoais e mudanças de comportamento; reforçando a confiança pessoal
e o autofortalecimento”62.

Ou seja, o tratamento proposto pela terapia do reiki não se restringe à cura das

doenças, mas implica também em uma reformulação de hábitos e uma nova percepção do

mundo que não somente enfatiza os valores do indivíduo (autoconfiança, autopercepção etc.),
71

mas também cria novas formas de sociabilidade pela adesão dos afiliados a essas práticas e as

redes de relações que as configuram63.

A afiliação ao reiki, tal como foi observado, evidencia algumas mudanças na forma

pela qual seus praticantes reordenam e re-organizam sua visão de mundo. Sugerindo uma

nova filosofia de vida, por meio da qual pretende-se abandonar antigos costumes e reformular

antigos modos de agir, os entrevistados relatam mudanças nas formas de relacionamentos

pessoais e interpessoais: uma melhor compreensão de si mesmo e de suas responsabilidades,

maior tolerância com as outras pessoas, a ampliação do círculo de amizades; o abandono de

vícios como o álcool e o tabagismo; a adoção de novos padrões alimentares (privilégio de

uma alimentação à base de produtos naturais) e estéticos (predileção por determinados objetos

de decoração obtidos em locais específicos, como lojas e feiras místicas).

Foi por meio de estudos realizados em Buenos Aires que Carozzi (2000), ao investigar

o processo de formação das mais distintas práticas alternativas, avaliou o impacto causado

pelas transformações ocorridas na vida daqueles que a elas se submetiam. A esse propósito a

autora constatou que “a reprodução de situações sociais transformadas dentro de suas redes

aparece como uma forma comum em que esses movimentos consolidam novos marcos

interpretativos. Seu poder de consolidação parece fundado na interação das mesmas

transformações em todas as ações que se realizam dentro das organizações do movimento”64.

A mesma autora prossegue afirmando que essas transformações indicam os mesmos

agentes, as mesmas seqüências de ações, os mesmos códigos e as mesmas palavras como

relevantes para a interpretação. “Dessa maneira, não será unicamente o problema de trabalho

ou de saúde reproduzidos na consulta que influenciarão na intervenção dos problemas, mas

62
Garcia e Berchielli, 2000.
63
Babenko, 2001.
64
Carozzi, 2000 : 45. Livre tradução.
72

todas as situações que o paciente ou seus agregados definam como problemas de trabalho ou

problemas de saúde. Não será apenas a experiência de um workshop que o participante

definirá como uma instância de autotransformação, mas todas as situações que ele próprio

defina como instâncias de aprendizagem, cura ou sanção” (Carozzi, 2000 : 46). Como

conseqüência, quando as situações de transformação se reproduzem tornando-se freqüentes na

experiência daqueles que participam ou assistem à sua representação, seu potencial para

“habitualizar” modos de interpretação, para consolidar marcos interpretativos, enfim, parece

se multiplicar.

Em sua tarefa de re-significação, as situações transformadoras devem se apoiar em

palavras, ações ou elementos de maneira tal que aqueles que a ela se expõem devem conhecê-

la e decodificá-la em um mesmo sentido. Assim, não apenas a situação redefinida deve ser

conhecida como também as transformações que se imprimem devem ser interpretadas em

sentidos convergentes para que dadas impressões sejam compartilhadas, se consolidem como

tais e não se dissolvam em uma miscelânea de interpretações divergentes. A este respeito,

torna-se claro que um conjunto de comportamentos, produtos, valores e símbolos associados a

esse universo começa, por conseqüência, a conformar um padrão, o que na terminologia de

Bourdieu (1983) caracteriza uma certa unidade de propriedades e de práticas, cuja particular

combinação identifica determinado “estilo de vida”.

Conforme proposto por Melucci (1989), os âmbitos de interação constituídos pelas

redes de um movimento constituem um lugar privilegiado para o estudo de sua aplicação e

difusão. Deduz-se, a partir dessa constatação, que a conformação do campo reikiano, inserido

no movimento da Nova Era, é precedido e sustentado pelo estabelecimento de redes que

atuam como laboratórios de transformações sociais e culturais onde se ensaiam novos

comportamentos, maneiras de relacionarem-se, formas de ação e percepção do mundo. As


73

redes que o configuram, nesse sentido, tal como apontado por Fry e Howe (1975) em outros

contextos, constituem arenas em que os sujeitos praticam as trocas que os movimentos

pretendem alcançar e experimentam com novos códigos culturais.

A esse respeito, Rabelo e Alves (2001) afirmam que as experiências adquiridas no

jogo social, bem como os esforços acumulados para intervir neste jogo, são integradas em um

esquema corporal que expressa a modalidade particular de “ser no mundo” do indivíduo

enquanto membro de uma cultura ou de uma classe.

Tomando como referência o conceito bourdiano de habitus65, os autores referem-se ao

corpo, assim investido e representado, como um corpo socializado, resultado de uma história

coletiva que se inscreve nas posturas, nos movimentos, nos gostos, que educa os sentidos e

marca distinções. Ainda de acordo com esses autores, a noção de esquema corporal tem um

papel importante na construção do conceito de habitus, pois “conduz atenção ao corpo como

totalidade de capacidades e disposições integradas a um espaço e temporalidade próprios:

mais que agregado de comportamentos sociais, o habitus é uma potência virtual para

agir e responder às situações que solicitam formas características de mobilização do

corpo, segundo um esquema socialmente constituído”66 [grifos meus].

Sob esse aspecto, assim como o habitus, a posição dos indivíduos inseridos em uma

estrutura social passa a ser re-elaborada no interior de determinada cultura. Na medida em que

essa re-elaboração reflete e varia de acordo com quem as formula, as noções de doença e

prática terapêutica também passam a serem definidas pelo padrão cultural dos sujeitos que

dele fazem parte, que utilizam determinadas características para definir as “suas doenças” e

determinar de que forma as intervenções terapêuticas serão operacionalizadas.

Tal fato implica não somente em reconhecer que é no interior de uma cultura que essas

65
Bourdieu, 1983.
74

formulações e re-elaborações se desenvolvem, mas também na necessidade de dialogar com

os diversos códigos culturais.

12. Trajetos do reiki

A partir da Tabela 667 pode-se proceder a estudos comparativos entre os dados obtidos

no início da pesquisa etnográfica, obtidos em 2001, e os dados posteriormente coletados,

referentes aos anos de 2002 e 2003. Se há cerca de dois anos o mapeamento etnográfico

apontava a existência de reikianos atuando de forma isolada, oferecendo seus serviços em

cômodos de suas próprias residências ou em salas comerciais alugadas, atualmente

vislumbramos o reiki sendo praticado em centros especializados ou então pelos próprios

profissionais do campo terapêutico oficial, por intermédio de psicólogos.

De acordo com os informantes, durante o ano de 2001, a maior parte dos espaços

reikianos se concentrava majoritariamente em bairros de classe média: Taquaral, Parque

Industrial, Chapadão, Cambuí, Nova Campinas e Cidade Universitária.

De agosto de 2002 até o momento em que foi concluída a pesquisa etnográfica,

conforme indicou o mapeamento realizado, os terapeutas reikianos se concentravam nos

mesmos bairros: Cambuí, Taquaral, Chapadão e Cidade Universitária. Segundo a disposição

geográfica de tais localidades tem-se que alguns pólos foram incorporados a esse circuito

(como os bairros Guanabara e Paineiras) e outros, a exemplo do Parque Industrial68,

66
Rabelo e Alves, 2001 : 08.
67
Constando na p. 67 desta dissertação.
68
Dentre os bairros listados, o Parque Industrial é o único que não é caracterizado como sendo característico de
classes médias.
75

deslocaram-se desse eixo.

Ao percorrer algumas das ruas desses bairros, chama a atenção a existência vários

estabelecimentos provedores dos mesmos serviços. Assim, ao andar pelas ruas situadas em

torno da avenida Júlio de Mesquita, no bairro Cambuí, facilmente observam-se centros

especializados em terapias naturais, lojas de produtos esotéricos, consultórios de psicólogos

que conjugam o reiki à prática clínica e alguns centros de meditação.

Essa aglutinação de estabelecimentos prestadores de serviços afins sugere uma

aproximação significativa das manchas, categoria proposta por Magnani (2002). As

atividades e práticas disponíveis dentro dessas áreas limitadas geograficamente “são o

resultado de uma multiplicidade de relações entre seus equipamentos, edificações e vias de

acesso, transformando-se, assim, em ponto de referência físico, visível e público para um

número mais amplo de usuários”69.

No caso mencionado, por mais que as pessoas que se dirijam às mediações do Cambuí

não saibam exatamente quais lojas e centros holísticos irão encontrar, sabem que nessa região

de Campinas, certamente, será ofertada vasta gama de serviços relacionados ao reiki. Assim,

quando alguém deseja submeter-se a sessões terapêuticas, adquirir determinados produtos ou

informar-se a respeito da realização de palestras e workshops, saberá onde achá-los.

Interessante perceber que no interior dessa mancha estruturada por algumas ruas do

Cambuí e adjacências existem locais como a Elo Místiko, uma loja estabelecida na cidade há

mais de 15 anos e que parece constituir não apenas um local onde circula o comércio

esotérico, mas que, sobretudo, constitui um ponto de encontro onde pessoas interessadas em

práticas alternativas podem trocar informações, divulgar eventos e serviços.

Esse pedaço da mancha, tal como constatado por Magnani, configura um ponto de
76

aglutinação para a construção e fortalecimento de relações entre seus freqüentadores. Deriva

dessa constatação o fato de que as pessoas que circulam pela loja Elo Místiko não

necessariamente se conhecem, mas, enquanto filiadas ao circuito alternativo, ou no caso

específico ao grupo dos reikianos, se reconhecem como sendo portadoras dos mesmos

símbolos: freqüentemente são adquiridos CDs como os de Enya e Kitaro; há a predileção

estética por objetos com motivos orientais, pôsteres ilustrativos dos chakras, Mikao Usui,

Chujiro Hayashi e Hawayo Takata; lêem-se os livros de Fritjof Capra e De Carli; a

alimentação procura basear-se em uma dieta com pouca carne vermelha e gordura,

privilegiando-se mel a açúcar, grãos e demais produtos sem a adição de conservantes; poucos

são os fumantes ou aqueles que ingerem bebidas alcoólicas; prefere-se usar roupas em tons

claros; aromatizar a casa com velas e incensos fabricados na chácara Plêiades. Por fim, na

incapacidade de destacar-se todo o conjunto de preferências que caracteriza os reikianos, é

possível afirmar que eles “falam a língua do reiki”, freqüentemente mencionando Mikao Usui

e os demais precursores do reiki, a “energia universal”, os chakras, a autopercepção; trocam

informações sobre os próximos cursos que serão realizados pela AB-Reiki.

Uma configuração semelhante à do bairro Cambuí se aplica à Cidade Universitária.

Diferenciando-se das demais manchas do circuito alternativo campineiro, esse bairro

localiza-se em Barão Geraldo, distrito de Campinas. Devido a sua localização geográfica

transcender os perímetros urbanos da cidade é comum encontrar ao redor dessa localidade

algumas chácaras onde são realizados encontros e confraternizações dos adeptos às práticas

alternativas (como a chácara Plêiades que além de organizar festas oferece algumas práticas

de relaxamento e fabrica incensos, velas e alguns objetos decorativos), além de sítios onde são

cultivados vegetais hidropônicos.

Logo, os familiarizados ao circuito reikiano campineiro saberão que é possível receber

69
Id. Ibid. : 22.
77

sessões de reiki em determinada localidade situada no Cambuí e que durante os finais de

semana poderão se locomover até alguma chácara localizada nos arredores da Cidade

Universitária onde se submeterão a alguma técnica de relaxamento ou poderão adquirir

alimentos cultivados sem o uso de agrotóxicos.

Esses caminhos percorridos pelos afiliados ao reiki correspondem a uma outra

categoria que, como sugere a própria denominação empregada por Magnani (2002), implica

em um trajeto. “É a extensão e principalmente a diversidade do espaço urbano para além do

bairro que colocam a necessidade de deslocamentos por regiões distantes e não contíguas. (...)

Na paisagem mais ampla e diversificada da cidade, trajetos ligam equipamentos, pontos,

manchas, complementares ou alternativos”70.

Mais do que simples definições do espaço urbano, as categorias circuito, mancha,

pedaço, trajeto, correspondem a recortes dos espaços e das estruturas que são apropriadas

pelos participantes das redes do circuito reikiano campineiro. “Reconhecidas a partir da

experiência etnográfica, as categorias são então organizadas e articuladas em sistemas de

relações de tal forma que passam a constituir uma espécie de modelo, capaz de ser aplicado a

contextos distintos daqueles onde foi inicialmente identificado”71.

Como essas categorias remetem a uma noção de totalidade, em cada um desses

recortes é possível ter a certeza de que se está em contato com o mesmo sistema simbólico de

trocas (Magnani72) Também é possível pensar na ampliação ou redução dessas categorias, de

maneira que o circuito reikiano campineiro poderia, dependendo do recorte desejado, ser

reduzido (e, nessa situação, poderíamos mencionar o circuito reikiano espiritualista, o

circuito reikiano psicológico) ou então ampliado (tratando-se assim do circuito reikiano

70
Id. Ibid. : 24.
71
Ibid. : 19.
72
Ibid.
78

paulista, o circuito reikiano brasileiro).

Esse procedimento equivalente a olhar de “perto e de dentro”73, conforme formulado

por Magnani (2002), permite romper com as visões que vislumbram os grandes centros

urbanos como uma entidade à parte de seus moradores, pensados como sendo o resultado de

trocas puramente econômicas, desprovido de ações, atividades, redes de sociabilidade; em

outras palavras, locais onde configuram a impessoalidade ou o anonimato.

13. Os espaços alternativos

Acompanhando a rotina de algumas clínicas e centros holísticos onde o reiki é

praticado74 nota-se que grande parte dos espaços alternativos tende a adotar algumas regras

básicas de funcionamento:

1. As atividades oferecidas nesses lugares são distribuídas entre consultas, cursos, palestras e

workshops.

2. Flexibilidade de horário das atividades em função da disponibilidade de horário do

terapeuta e do cliente.

3. A utilização das acomodações é feita mediante o tipo de atividade demandada, o que

indica que grande parte dos profissionais que trabalham nesses espaços não costuma ter salas

próprias.

4. Sistema de aluguel de salas, onde o pagamento pode constituir-se numa taxa fixa ou num

73
“Olhar de perto e de dentro” corresponde à postura etnográfica proposta por Magnani (2002) ao proceder às
incursões de campo quando se toma como objeto fenômenos localizados essencialmente em centros urbanos.
79

percentual sobre o valor da consulta.

A observação dessas regularidades sugere algumas considerações sobre esses espaços

alternativos. A primeira delas diz respeito à distinção entres as clínicas e centros holísticos e

as salas de terapeutas holísticos, onde os serviços oferecidos são pontuais. A segunda refere-

se à apropriação desses espaços que podem ser caracterizados como um espaço coletivo de

trabalho. E a terceira relaciona-se à dimensão institucional dessas clínicas e centros holísticos,

que parecem garantir uma maior visibilidade do trabalho dos profissionais alternativos, em

contraste com o espaço privado de atendimento realizado na casa do terapeuta ou do cliente,

por exemplo.

Conforme apontou a etnografia realizada, embora a categoria espaços alternativos

configure um primeiro recorte de análise ela não dá conta de explicar a diversidade de

perspectivas e serviços que são oferecidos nesse circuito, já que sob a denominação espaço

alternativo encontra-se reunida uma ampla variedade de atividades e grupos muito

diferenciados entre si e muitas vezes concorrentes de legitimidade profissional.

Assim, com base na oferta de algumas dessas localidades constatou-se que era enorme

a diversidade dos serviços e atividades oferecidas, não sendo raro o profissional articular um

leque de práticas e técnicas bastante diversificado.

No que diz respeito ao atendimento, que a princípio supunha restringir-se às práticas

alternativas, verificou-se que vários desses espaços alternativos incorporam atividades

relacionadas aos saberes médicos oficiais, como o que será evidenciado mediante a inserção

do reiki no campo da Psicologia.

Buscando compreender essa diversidade, centrando-se na ênfase dos serviços

74
Elo Místiko, Núcleo Energia Pura, Chácara Plêiades, Centro de Terapia Reiki, Espaço Adonai, Instituto Árion
e o Centro Holos.
80

oferecidos pelos espaços alternativos foi possível chegar à seguinte tipologia:

1. Lojas esotéricas: embora esses espaços alternativos predominantemente vendam produtos

esotéricos, eventualmente podem ser realizados palestras e cursos esporádicos versando sobre

a temática esotérica em geral. Não oferecem atendimento terapêutico.

2. Espaços terapêuticos: espaços alternativos onde os serviços oferecidos enfatizam o

aspecto terapêutico.

3. Espaços esotérico-terapêuticos: espaços alternativos onde pode haver ou não a venda de

produtos esotéricos e onde as atividades são distribuídas entre atendimentos terapêuticos e

cursos de média ou longa duração sobre temáticas ligadas ao esoterismo ou às práticas

terapêuticas alternativas.

Dentre os espaços alternativos que foram tipificados, os espaços terapêuticos, pelo

caráter dos serviços oferecidos se alinhar mais especificamente ao objeto central desta

dissertação constituíram o lócus privilegiado para a realização das etapas etnográficas

subseqüentes.

Assim, observando-se mais de perto esses espaços terapêuticos, puderam-se destacar

algumas regularidades físicas:

1. Ao contrário dos espaços esotéricos e dos esotérico-terapêuticos, a decoração dos espaços

terapêuticos apresenta um menor conjunto de signos característicos ao universo das práticas

alternativas: cristais, pirâmides, incensos, pêndulos e demais objetos com motivos esotéricos.

2. Diferente do que acontece nos espaços esotérico-terapêuticos a atividade oferecida nos

espaços terapêuticos ocorrem de maneira regular. Eventualmente são programados workshops

e cursos de curta duração que atraem um público maior.

3. A rotatividade dos profissionais que trabalham nos espaços terapêuticos é menor do que a
81

constatada nos demais espaços esotéricos e esotérico-terapêuticos.

4. A clientela dos espaços terapêuticos, se comparada à dos espaços esotéricos e esotérico-

terapêuticos, apresenta pouca rotatividade.

Constatando que mesmo o recorte espaços terapêuticos ainda é insuficiente para

descrever o caráter dos serviços prestados pelos reikianos recorreram-se a mais duas

categorias: os espaços terapêuticos espiritualistas e os espaços terapêuticos psicológicos75.

13.1. Os espaços terapêuticos espiritualistas

Englobando clínicas, centros holísticos e chácaras onde são oferecidas outras práticas

alternativas além do reiki, os espaços terapêuticos espiritualistas parecem adquirir sua

visibilidade mediante a oferta de serviços disponíveis a um público cada vez mais amplo.

Nesse sentido, as localidades mapeadas contam com uma sala de espera onde são

marcadas as sessões terapêuticas, salas de atendimento individual e salas onde acontecem as

atividades coletivas, como palestras, workshops e cursos de formação. Promovendo serviços

de maneira regular, os espaços terapêuticos espiritualistas são freqüentados por grupos

abertos que se organizam sobre uma doutrina mínima: compartilhar de uma visão holística do

mundo. O cadastro de clientes é extenso, composto fundamentalmente por pessoas que

freqüentam esses espaços com alguma regularidade.

Foi pelo acompanhamento freqüente dessas atividades que se tornou possível sugerir

alguns elementos que caracterizam os espaços terapêuticos espiritualistas:


82

1. Além do reiki são oferecidas outras práticas alternativas, possibilitando aos freqüentadores

inúmeros arranjos que visam compor uma síntese pessoal, o que, por outro lado, possibilita

que os próprios serviços oferecidos sejam reformulados constantemente. Elucidativo desse

processo é o próprio reiki, que ao receber a incorporação de outros preceitos e práticas (como

técnicas de meditação e respiração provenientes do hinduísmo) passa a originar outras

vertentes em seu interior.

2. Ainda que a profissionalização dos reikianos que trabalham nessas localidades seja

motivada pelo fato dessa prática constituir “um caminho para a cura”, esses terapeutas

parecem pressupor uma “sensibilidade” anterior que freqüentemente é referenciada a alguma

experiência limite (o que, em termos práticos, corresponde a esses terapeutas sempre narrarem

sua trajetória de vida com expressões: “antes do reiki”, “depois que me tornei reikiano”). A

esse respeito, embora seja correto afirmar que os motivos que levaram os informantes ao

primeiro contato com as práticas alternativas foram os mais variados possíveis, houve a

possibilidade de agrupá-los em algumas categorias: (a) aqueles que devido aos problemas

pessoais ou familiares relacionados à saúde decepcionaram-se com os resultados da medicina

oficial e então procuraram as medicinas alternativas; (b) outros que por “curiosidade”

apreenderam os fundamentos das práticas alternativas e posteriormente freqüentaram algum

curso, passando em seguida a exercê-las; e (c) alguns poucos que associam as práticas

alternativas a fenômenos mediúnicos (interpretando, pois, “ser reikiano” como um “dom”).

3. A trajetória dos clientes inclui uma vasta experimentação religiosa, sendo recorrentes nos

relatos menções a passagens pelo espiritismo e sociedades secretas. Essa constatação não

apresenta novidades no universo das práticas alternativas, visto que os estudos que versam

sobre a Nova Era freqüentemente definem a “errância religiosa” como característica

75
Essas categorias foram primeiramente utilizadas por Tavares (1993) ao investigar alguns circuitos alternativos
cariocas e parisienses.
83

predominante dos adeptos a esse movimento.

Apesar da inconstância dos seus freqüentadores, ao contrário do que pode se supor é

possível identificar que nessas localidades a noção de grupo não está ausente, mas apresenta-

se re-significada. Assim, entre os praticantes do reiki que freqüentam as clínicas e centros

holísticos, o sentimento de pertencimento ao grupo não implica em necessariamente “estar

junto” dos outros, mas sim “estar com”, durante situações pontuais, como durante a realização

de palestras, workshops, cursos de rápida duração. Dessa maneira, o modo pelo qual os

freqüentadores dos espaços terapêuticos espiritualistas orientam suas ações não se prende a

um vínculo identitário rígido, constatação esta que se traduz pela liberdade de escolha entre os

diversos terapeutas, centros holísticos e, ainda, as formas de viver o “sagrado”.

13.2. Os espaços terapêuticos psicológicos

Os espaços terapêuticos psicológicos abarcam o conjunto de consultórios psicológicos

onde também se pratica o reiki.

A distribuição física desses consultórios conta com uma sala de espera onde são

marcadas as consultas, salas onde acontecem as sessões psicoterápicas e a sala onde são

aplicadas as sessões reikianas. Em alguns desses espaços o reiki é oferecido na mesma sala

onde acontecem as sessões terapêuticas.

Constituem características dos espaços terapêuticos psicológicos:

1. Trabalhar com um número limitado de técnicas alternativas terapêuticas, onde o arranjo

pessoal tende a oscilar entre a síntese pessoal do psicólogo e o ecletismo terapêutico.


84

2. A justificação do trabalho terapêutico tende a ser mais “científica”. Embora o discurso

tenha como ponto central a concepção holística da saúde, a base de sua legitimação assenta-se

em teorias da Psicologia, especialmente a gestalt-terapia e a Psicologia junguiana.

3. As orientações de ordem cosmológica, quando adotadas pelo terapeuta, situam-se no

âmbito de uma percepção difusa de espiritualidade, expressas pela busca do

autoconhecimento, da autopercepção, o equilíbrio.

Como o objetivo central desta dissertação é demonstrar como o reiki vem sendo

incorporado ao campo dos serviços médicos oficiais, torna-se fundamental, depois dessa

breve descrição dos espaços terapêuticos reikianos, proceder à análise propriamente dita de

algumas dessas localidades.

14. O reiki no campo das psicologias alternativas

Russo (1993), ao estudar o campo das psicologias alternativas, aponta para as

principais transformações ocorridas com o valor “indivíduo”. Assim, se no plano jurídico o

individualismo implica em igualitarismo e leis universais, segundo uma vertente mais

psicológica, a noção de individualismo torna-se aqui representativa de “singularidade”; ou

seja, acarreta a idéia de opção pessoal, ênfase no espaço interno e nas qualidades de cada um.

Assim, marcada pelas pressões do mundo moderno, a natureza dos problemas

humanos parece se redimensionar obrigando todos a um investimento pessoal. Aparentemente

perdido e premido por exigências do mundo, onde a divisão entre o público e o privado

manifestar-se-ia com doses generosas de ambigüidade, a identidade do homem moderno


85

parece transformar-se rapidamente, sem que as ciências e o universo consensual pudessem dar

conta dessas mudanças, ou, pelo menos, é o que acreditam os teóricos da Sociologia

contemporânea ao apreenderem, sob essa forma, a experiência da modernidade, traduzindo

sob esse aspecto o discurso do senso comum próprio da classe média, que justifica, inclusive,

sua adesão a novas práticas terapêuticas que estariam, aí sim, imbuídas desse propósito, ou

seja, reconfigurar a dimensão do “pessoal” dentro da esfera societária moderna.

Em seu estudo comparativo com a sociedade indiana, Dumont (1985) postula o

individualismo como sendo a ideologia moderna dominante, característica das sociedades

modernas, e o holismo, onde prevaleceriam os valores hierárquicos comuns às sociedades

tradicionais. Para tanto o autor parte das reflexões levantadas por Mauss (1974), que ao

reconstituir o caminho pelo qual se constituiu a “noção do eu” no Ocidente mostrou como as

transformações ocorridas com a categoria “pessoa” se revestiram na vida dos indivíduos

segundo seus direitos, suas religiões, seus costumes.

Fundamentando sua análise a partir da distinção entre as categorias “indivíduo”

(enquanto ser moral e autônomo, característico da sociedade moderna) e “pessoa” (referente

às sociedades tradicionais), Dumont76 demonstra que a passagem da sociedade tradicional

para a sociedade moderna deu-se a partir de uma “inversão de valores” onde a noção de

“pessoa” (anteriormente associada ao princípio de hierarquia social) passou a coincidir-se

com a própria noção de indivíduo (que valoriza seu próprio “universo interior” em detrimento

da idéia de sociedade). Sendo a categoria “pessoa” é uma lenta construção de cada sociedade

sobre seus membros, tem-se que a “pessoa” transformada em “indivíduo” torna-se uma

expressão localizada das representações coletivas (no sentido durkeimiano do termo) ou da

ideologia (na terminologia dumontiana), que se traduz na formação de comportamentos

constitutivos dessas “novas personalidades”.


86

Assim, a formação e disseminação das diferentes práticas alternativas apontam tanto

para a conformação de um campo terapêutico originado como forma de responder ou, pelo

menos, minimizar as contradições geradas no atendimento médico oficial, quanto também

fundamentam novas concepções de “pessoa-indivíduo” e “estilos de vida” que, paralelamente,

re-orientam as concepções de corpo, doença e terapia que aparecerão como uma espécie de

“novo paradigma terapêutico”.

Explorando a singularidade e a diferença como atributos dos indivíduos, enfatizando

as qualidades inerentes a cada um e a auto-responsabilidade pelo que lhes sucede, as práticas

alternativas passam a construir novos valores e atributos de “pessoa” que irão refletir-se no

processo terapêutico, pensado agora a partir do próprio indivíduo e dos planos relacionais nos

quais este se insere, inclusive os cósmicos.

Desta maneira é que o reiki, a exemplo das demais práticas terapêuticas alternativas,

constitui um objeto privilegiado de análise não somente do campo da conformação dos

serviços de saúde, como também oferece uma base para a análise dos parâmetros ideológicos

contemporâneos, uma vez que se constitui um veículo fecundo para uma reflexão acerca da

identificação e consolidação de novas formas de sociabilidade pela adesão dos sujeitos a

comportamentos e “estilos de vida” que aparecem como diferenciadores e construtores de

novas identidades (alternativas) e que, como apontado por Magnani (1999), não podem ser

meramente relacionados a escolhas individuais, tampouco reduzidos a comportamentos

isolados ou mesmo considerados desviantes. Trata-se, de fato, da sua relação com os

processos de ideologização contemporâneos que tendem, ao centrarem-se no indivíduo, a

deslocar os aspectos tanto causais quanto relacionais do seu plano de referência sociológica.

Esse arcabouço teórico será útil na compreensão dos dados referentes à etnografia dos

76
Ibid.
87

espaços terapêuticos psicológicos indicadores de que, dentre as consultas acompanhadas, a

maioria dos casos tratados nesses consultórios diz respeito a questões de ordem pessoal:

associados a problemas conjugais, familiares, amorosos, profissionais. Assim, se a natureza

desses casos relaciona-se a problemas de inadequação ou insatisfação com os

relacionamentos, consecutivamente apontam para a necessidade de mudança pessoal.

Buscando demonstrar a maneira pela qual essa tendência passa a ser assimilada pela

prática clínica oficial, seguem os dados etnográficos obtidos a partir de algumas localidades

onde a prática do reiki é conjugada ao atendimento psicoterápico: o Centro de Atendimento

Psicológico, o Instituto Árion e o Centro Holos, cuja intervenção terapêutica possui

orientação junguiana, além de três consultórios de gestalt-terapeutas.

Referentes às consultas que puderam ser acompanhadas com o consentimento prévio

dos pacientes, às conversas informais que ocorreram nas salas de espera dos consultórios, ou

então, dos casos relatados pelas próprias psicólogas e seus pacientes, esses dados retratam as

atividades cotidianas dessas localidades.

O objetivo desses relatos, aqui organizados sob a forma de consultas e casos

holísticos, é o de oferecer uma descrição de como a prática terapêutica do reiki é

encaminhada, ao mesmo tempo em que se evidencia a natureza dos problemas que ali

chegavam.
88

14.1. O discurso junguiano

1o Caso:

A cliente acaba de se separar do terceiro marido. Relata que todas as separações

correspondem a momentos difíceis e tensos em sua vida. Os motivos que a levaram a tomar a

iniciativa da separação são os mesmos das outras vezes. Alegando que seus antigos maridos

coincidentemente possuíam os mesmos defeitos, descreveu angustiada: não consigo entender

o porquê de tanta má sorte!

Na segunda consulta afirmou estar mais tranqüila e convencida de ter optado

corretamente pela separação. Após quatro aplicações de reiki descreveu o quanto estava se

esforçando para se transformar. Reconheceu que a satisfação pessoal com seus

relacionamentos está condicionada à mudança de suas próprias atitudes. Atualmente avalia

um grande amadurecimento e uma mudança radical no seu modo de ser, principalmente em

relação aos homens.

2o Caso:

O adolescente ingressa na faculdade de direito por influência da família, muito embora

reconheça não ter vocação para a carreira. Admite nutrir grande interesse pelo curso de

agronomia. Depois de iniciar a terapia psicológica (e essa foi a motivação inicial para que o

cliente procurasse o consultório dessa junguiana que também é reikiana) o paciente começa a

questionar sua capacidade de tomar decisões e passa a sentir-se culpado: ele não correspondia

aos anseios de seus pais e, ao mesmo tempo, fazia um curso que não lhe agradava, relembrou

a terapeuta.
89

Com o apoio da namorada começou a receber aplicações de reiki. Afirma que após

seis sessões tomou a decisão de participar sua família sobre a intenção de transferência de

curso na faculdade.

3o Caso:

O cliente afirma passar por problemas em seu relacionamento conjugal. Considerando-

se uma pessoa muito religiosa, para ele a possibilidade de separação significaria uma grande

derrota, principalmente por saber que gostava de sua esposa e ela dele.

Três meses antes da primeira sessão de reiki, o paciente afirmou ter sofrido um infarto

e, em decorrência, quase morrer. Acredita que graças à terapia passou a refletir sobre a vida e

o que lhe aconteceu durante os últimos anos. O paciente relatou nessa mesma oportunidade

que seu relacionamento com a esposa também melhorou, de forma que uma nova esperança

surgiu quando algumas atividades familiares voltaram a serem realizadas em conjunto.

Atualmente, marido e esposa recebem aplicações de reiki.

4o Caso:

Admitindo ser “bastante namoradeira”, há quatro meses a cliente relaciona-se com

determinado parceiro. Entretanto, com o namorado atual, ela afirma que: por algum motivo

desconhecido, sente a necessidade de mudar. Isto porque, dizia ela: sempre quando começo a

namorar me sinto muito animada, mas conforme vai passando o tempo meu interesse pela

outra pessoa, não importa o que faça, sempre acaba diminuindo.

Pouco antes de começar a freqüentar as sessões de reiki, a informante afirmou que seu

namorado era refinado e tinha bom gosto, mas, apesar dele possuir essas qualidades que ela
90

própria reconheceu admirar, o relacionamento parece não mais satisfazê-la: cada pessoa que

namoro preenche apenas uma parte dos meus ideais. Por fim admitiu: sem paz interior não

conseguirei enfrentar a vida e manter um relacionamento duradouro.

Dez meses após a primeira consulta, a cliente admitiu estar com o mesmo namorado,

sentindo-se bem e completa. Ela considera que o reiki ajudou a solidificar seu relacionamento.

5o Caso:

A cliente procurou o reiki devido a complicações renais. Pessoa bastante rígida

consigo mesmo, de acordo com suas próprias definições, disse participar de uma sociedade

mística que lhe exigia tempo e dedicação. Devido ao acúmulo de tarefas requerido por esse

grupo, a informante relatou o surgimento de problemas com seu esposo, que exigia sua

presença nos momentos livres. Admitindo “ir dividida” às atividades de tal grupo, a cliente

sentia-se culpada em deixar o marido sozinho, justamente nos momentos em que poderiam

ficar juntos.

Após algumas aplicações de reiki disse não sofrer mais com as antigas crises renais.

Àquela ocasião também afirmou: ao mesmo tempo em que tento me tornar uma pessoa menos

rígida, percebo que já atingi um maior equilíbrio entre o lado de esposa e as necessidades do

desenvolvimento espiritual. Ela avalia: o mais importante é estar satisfeito com a vida e com

as pessoas que me rodeiam. O sentimento de culpa, de acordo com a terapeuta em reiki, não a

incomoda mais.

Transcrições de algumas das conversas entre os pacientes e a pesquisadora,

complementados na ocasião pelas observações das psicólogas, esses relatos elucidam o modo

como o reiki vem sendo integrado à prática clínica.


91

Dos casos apresentados, duas pessoas admitiram procurar o consultório psicológico

por saberem que naquela localidade era ofertado o reiki. Em 4 dos 5 casos relatados, o reiki

aparece no discurso dos entrevistados configurando uma espécie de agente responsável por

minimizar os problemas que lhes acometiam. A natureza desses casos, ainda que aparecessem

pacientes reclamando de problemas profissionais ou de saúde, diz respeito a problemas com

relações afetivas e conjugais, revelando, portanto, um problema de adequação ou insatisfação

com os relacionamentos e apontando para a necessidade de mudança pessoal.

Por acreditar que a motivação para a realização pessoal seja inata às pessoas, conduzir

o processo de individuação constitui-se o principal eixo da Psicologia analítica junguiana.

Sob esse aspecto, e de acordo com esse ponto de vista, a individuação seria responsável por

levar as pessoas ao autoconhecimento, uma vez que durante este processo integrar-se-iam os

fenômenos conscientes e os inconscientes.

Tal como apontado na entrevista com Patrícia, psicóloga e mestre em reiki: é através

da individuação que a pessoa vai se conhecendo, retirando suas máscaras, retirando as

projeções que antes eram lançadas no mundo externo e integrando-se a si mesma.

As “máscaras” por ela definidas, representativas da persona junguiana,

corresponderiam à nossa imagem pessoal associada a determinado estilo de vida. Somente

pelo reconhecimento daquilo que nos confere “identidade”, ou seja, depois de atingirmos

nosso ego é que poderíamos compreender nossa dinâmica consciente. Ao compreendermos o

que é reprimido por nossa consciência e representado por nossa sombra, seremos então

capazes de confrontá-lo com as projeções que fazemos no sexo oposto que carregamos

conosco, denominadas por Jung de anima/animus (correspondentes simétricos entre os

gêneros feminino e masculino). Estabelecido o equilíbrio entre a persona e o anima/animus

chegar-se-ia ao self, arquétipo junguiano que, por corresponder ao centro de toda


92

personalidade, permitiria os indivíduos atingirem a sua totalidade e a sua individualidade.

Clinicando no Centro de Atendimento Psicológico, localizado em um bairro de classe

média campineira, Patrícia presta serviços na área clínica (atendimento psicoterapêutico a

adolescentes, adultos, casais e famílias), educacional (orientação de pais e familiares junto a

educadores) e aplica terapias alternativas (reiki e biodança). Os pacientes que chegam ao

consultório são encaminhados pela clínica psicológica da própria universidade em que

estudava ou então tomam conhecimento dos serviços prestados graças à divulgação de

material publicitário veiculado no bairro onde é localizada a clínica.

A inovação no atendimento ofertado por Patrícia, e que segundo suas próprias

declarações assegura seu estabelecimento no mercado de trabalho, é dado pela inserção de

alternativas terapêuticas em suas intervenções77.

Se você andar pelo Cambuí perceberá que há um consultório psicológico a cada


duas esquinas. O mercado está muito concorrido e somente se sobressairão aqueles
que se abrirem às novas possibilidades. É preciso se diferenciar dos demais
profissionais, estar capacitado a oferecer novas técnicas durante o tratamento,
pois somente assim teremos alguma possibilidade de sobreviver! [grifos meus].

Dentro desse quadro torna-se sugestivo que ao buscar expandir sua clientela, ainda que

para isso tenha que se diferenciar dos demais terapeutas, a inovação proposta pelo

atendimento dessa psicóloga contribui à formação de novas carreiras no interior dessas

práticas [fenômeno este que Russo (1993), ao referir-se à trajetória profissional dos

psicólogos de linha alternativa, denominou “criar-se a si próprio”].

No caso dos consultórios mencionados, a novidade introduzida no tratamento é

assegurada pela conjugação do reiki às consultas psicológicas. Para tanto junguianos se valem

de uma suposta relação entre os chakras e alguns aspectos psicológicos para explicar

77
Interessante constatar que dentre as três psicólogas que atendem na clínica, essa informante é a que possui a
maior clientela, fato que poderia ser explicado tendo-se em vista o caráter personalizado do seu atendimento.
93

diferentes “distúrbios”78.

Ilustrando essa situação, relata-se o caso de Cibele, uma psicóloga que utiliza um

pêndulo para medir os chakras de seus pacientes antes de proceder às sessões de aplicação do

reiki. Cibele explica os procedimentos utilizados durante esse processo:

O paciente deve estar deitado. O pêndulo deve ser posicionado sobre os chakras e
deve estar o mais próximo possível do corpo do paciente, mas de forma que não
haja contato. (...) Provavelmente o pêndulo se movimentará em forma de círculo.
(...) Poderá se mover para trás e para frente imitando uma elipse ou poderá se
mover em linha reta. O comprimento e a direção do movimento do pêndulo indicam
a quantidade e a direção da energia que flui pelo chakra. Se o pêndulo se
movimentar no sentido horário ele indica um chakra aberto, o que significa que
sentimentos e experiências correspondentes estão equilibrados. Se o pêndulo se
mover em sentido anti-horário significa que o chakra está fechado e o pêndulo
provavelmente indicará algum problema.

Assim, se ao medir o chakra coronário de um paciente e constatar que o pêndulo girou

no sentido anti-horário, o que indicaria suposta descontinuidade no “fluxo energético”

próximo à região superior da cabeça, Cibele infere que por estar com problemas relacionados

à compreensão dos fatos, o paciente pode apresentar desde ligeira confusão mental ou então

revelar determinada predisposição à depressão. Ou então, se ao medir o chakra laríngeo o

pêndulo se movimentar no sentido horário, a terapeuta não hesitará em dizer que o paciente é

uma pessoa equilibrada e que por não apresentar distúrbios significativos ao se expressar, não

apresenta inibição.

Ao associar cada chakra a determinadas funções psicológicas, alguns psicólogos,

como Cibele, parecem reelaborar seu discurso clínico de forma que, a partir de então, aqueles

que quiserem atingir o self ou o equilíbrio e, portanto, não mais serem acometidos por

perturbações de ordem emocional ou psíquica, devem seguir determinadas condutas,

expressas por meio de um código de qualidades que somente se forem seguidas dia a dia

78
A Tabela 3, constando nas p. 43 e 44, indica quais seriam essas correlações.
94

conduzirão ao crescimento pessoal.

Se para a Psicologia de Jung esses valores correspondem a metas que podem ser

atingidas pelos indivíduos (e que nessa abordagem correspondem a seres psicológicos), ao

transpor tal situação para o plano sociológico pode-se entender que esses atributos ou

características da personalidade, mais do que metas a serem cumpridas representam valores

constitutivos da “pessoa” (referindo-se aqui ao sentido maussiano do termo), o que implica

dizer que está presente nessa abordagem que tipos de conduta os indivíduos devem ou não ter

(por exemplo, um indivíduo que tenha seu “fluxo energético normalizado” não apresentará

timidez, inibição, indiferença que, dentre outras características indesejáveis, correspondem a

atributos negativos da “pessoa”).

Assim, pretendendo validar o processo clínico que estaria conjugando, a partir de

agora, práticas alternativas às sessões psicoterápicas, o discurso psicológico passa a elaborar

um “tipo ideal” de conduta a ser seguida por seus afiliados. Nesse sentido, à medida que esse

discurso passa a determinar valores positivos que serão recriados e/ou re-adaptados à esfera

social (busca pelo self, o autocentramento, o “equilíbrio”) tem-se uma gradual modificação no

estilo de vida daqueles que a ele se submetem.

Cibele, que admitiu que seu interesse pelo reiki surgiu quando após submeter-se à

terapia foi curada da asma, ao ser indagada sobre o propósito de fundir a Psicologia e terapias

alternativas em seu consultório disse não admitir abertamente a aplicação do reiki em suas

consultas.

Pesquisadora: Dentre os pacientes que chegam ao seu consultório, em que casos você aplica

ou recomenda a utilização do reiki?

Psicóloga: Acredito que a prática clínica deva se revestir de uma certa empatia. Depois de

determinado tempo de consulta, a convivência delega à relação paciente x terapeuta uma


95

certa dose de confiança [segundo a psicóloga este tempo leva em média um ano para ser

atingido]. Então, dependendo do caso e do paciente, eu sugiro a aplicação do reiki enquanto

terapia complementar ao acompanhamento psicológico.

Pesquisadora: E o que o Conselho Regional de Psicologia diz a respeito dessas chamadas

terapias complementares? Em que estágio se encontra a discussão a respeito de incorporá-

las à prática clínica? Há algum prognóstico?

Psicóloga: Infelizmente o CRP ainda não autorizou a aplicação de reiki. (...) Acredito que

essa aprovação dependa exclusivamente de uma questão de tempo, assim como aconteceu

com a acupuntura. Enquanto isso me preparando intensamente realizando cursos e

estudando bastante. Quero estar pronta para o dia que isso acontecer, mas, por enquanto...

Consegue imaginar o que aconteceria comigo se recomendasse aplicações de reiki a todos

meus pacientes? Certamente perderia minha inscrição!

Conforme indicado pelo discurso da informante, o receio em assumir tal postura

demonstra o temor de ser penalizada pelos órgãos responsáveis pela fiscalização do exercício

da Psicologia. Em contra partida, enquanto espera que o CRP autorize o uso das práticas

alternativas em situações terapêuticas, essa psicóloga junguiana parece valer-se da suposta

correspondência entre a busca do self (segundo a terminologia junguiana) e a “adequada

distribuição de energia” (possibilitada pelas sessões de reiki) para justificar sua intervenção

terapêutica junto à clientela demandada.


96

14.2. O discurso gestaltico-terapêutico

1a Consulta:

Mulher, 26 anos. Estudante do curso de administração de empresas, atualmente realiza

estágio na área de recursos humanos de uma empresa multinacional. Na ocasião da consulta

que foi acompanhada, reconheceu sentir-se insegura quanto ao seu futuro profissional, isto

porque não há certeza de efetivação no emprego.

Comentou a paciente:

Quando surgem situações não muito definidas na minha vida acabo sempre me
desesperando. Passo noites em claro, não consigo comer, trato mal as pessoas. Não
gosto de me sentir assim, de me comportar assim. Quando essas situações passam e
tudo volta ao normal, na maioria das vezes, o que fica é que esse excesso de aflição
de nada adianta, só me consome!

A rejeição de si mesmo é uma negação de quem a pessoa é, explica Dina, uma gestalt-

terapeuta e também reikiana. Auto-rejeição é simultaneamente uma confusão de quem eu sou,

um auto-engano. Quando as pessoas confundem responsabilidade com culpas e deveres, elas

se pressionam e automanipulam; tentam e não são integradas espontaneamente.

Há três meses encorajada por uma amiga a procurar ajuda terapêutica, a paciente

afirmou estar progressivamente se desvencilhando da insegurança. Estou começando a me

conhecer e mais que isto, estou cada vez mais clareando meus objetivos. Acho que desta

forma será mais fácil me aceitar e saber do que eu sou capaz!

Os psicólogos da gestalt-terapia acreditam na importância de uma distinção clara

entre o que a pessoa escolhe e o que é determinado. Pessoas são responsáveis pelo que

escolhem fazer, exemplifica a psicóloga acrescentando que:

Cada pessoa é responsável pelas suas ações no ambiente. Culpar forças exteriores,
97

por exemplo, genéticas ou os pais pelo que a pessoa escolhe é auto-engano. Sentir-
se responsável por algo que a pessoa não escolheu, uma reação típica de vergonha,
também é um engano [grifos meus].

As pessoas são responsáveis por escolhas morais, diz a interlocutora. Durante as

sessões os pacientes devem descobrir o que é moral de acordo com suas próprias escolhas e

valores. Longe de defender que qualquer coisa serve é a própria pessoa que avalia qual são

suas obrigações e a partir disso escolhe e valoriza o que trabalhar, conclui essa psicóloga

que é a responsável pelo Centro de Terapia Reiki em Campinas [grifos meus].

2a Consulta:

Homem, 45 anos, arquiteto. Considera-se envergonhado demais e, de acordo com sua

terapeuta, como reação a essa vergonha passou a se isolar de qualquer interação que não fosse

totalmente positiva.Segue o fragmento de consulta relatada por uma das terapeutas contatadas:

Paciente: Eu não sei o que fazer hoje...

Terapeuta: [somente observa].

Paciente: Eu poderia falar de minha semana.

Terapeuta: Eu me sinto puxada por você. Imagino que você queira que eu o dirija.

Paciente: Sim! E o que há de errado com isso?

Terapeuta: Nada. Só que neste momento eu prefiro não dirigir a consulta.

Paciente: E por que não?

Terapeuta: Você pode se dirigir! A propósito, neste momento eu acredito que você está nos

dirigindo para longe de seu self e eu não quero cooperar com isso.

Paciente: Eu me sinto perdido...


98

Terapeuta: [novamente observa o paciente].

Paciente: Bem, então vamos trabalhar com a minha crença de que eu não posso cuidar de

mim...

De acordo com Dina, nesse momento o paciente realiza um pequeno trabalho frutífero

que conduz à percepção de suas ansiedades e sentimentos de vergonha em resposta ao medo

de não ser aceito pelas outras pessoas. Transcorrido um ano do início da terapia, o

entrevistado, motivado pela própria psicóloga, recebeu a iniciação em reiki. A partir de então

afirmou compreender melhor a intenção das sessões terapêuticas e, de acordo com sua

psicóloga, passou a cooperar consigo mesmo.

3a Consulta:

Mulher, 61 anos. Segundo seu relato foi casada com um jogador de baralho que nunca

esteve presente na educação dos filhos e no simples crescimento e aprimoramento pessoal de si

mesmo. Em sua primeira consulta admitiu que após três anos de jogatina incontrolável, de perder

quase todos os seus bens materiais e, por vezes seguidas, gastar todo o rendimento de sua

aposentadoria com Bingos procurou por auxílio profissional, já que estava cansada de ouvir seus

filhos dizerem-lhe que era viciada em jogos.

De acordo com a terapeuta, após seis meses de tratamento onde foram intercaladas sessões

de atendimento psicológico, aplicações de reiki e a participação em um grupo de mútua-ajuda

formado por compulsivos, a paciente aprendeu a lidar melhor com suas ansiedades, suas

compulsões e hoje está livre do vício dos jogos.


99

4a Consulta:

Mulher, 30 anos, dona de casa. Afirma estar muito brava com sua sogra que, segundo

suas palavras: insiste em querer palpitar sobre a educação dos netos.

Terapeuta: Você está brava, mas parece que há algo mais...

Paciente: [mostra-se interessada na afirmação da terapeuta].

Terapeuta: Você parece enfurecida!

Paciente: E estou! Gostaria de matá-la [referindo-se à sogra].

Terapeuta: Você parece se sentir impotente...

Paciente: E estou.

Terapeuta: Impotência normalmente acompanha ira. Sobre o que você se sente impotente?

Paciente: Por mais que eu faça, não consigo que ela reconheça meus esforços [novamente

referindo-se à sogra].

Terapeuta: E você não aceita isso...

Paciente: Não!

Terapeuta: E há uma intensidade em sua ira que parece ser maior do que a situação pede.

Terapeuta: O que você sente?

Paciente: O mais difícil para mim está sendo enxergar que meu marido não me apóia. Ele

está ao lado da mãe e não do meu.

Terapeuta: Como acontecia com seu pai? [de acordo com a psicóloga isto vem de trabalho

anterior, onde a paciente relatou sobre a relação com seus pais na infância. O trabalho

prossegue com o reviver do dano vivido na relação paterna, já que o pai nunca era receptivo,

esclarece a terapeuta].
100

Paciente: [se cala].

Afirma a psicóloga:

Ao contrário de dizer à paciente que ela deve falar para sua sogra e marido o que
está sentindo, opta-se por fazer o processo inverso. Para resolver este problema
será necessário que a própria paciente chegue à conclusão de que ela precisa falar
o que sente e, acima de tudo, que liberte seus fantasmas passados, originados pelos
traumas da infância.

Essa paciente iniciou seu tratamento de forma distinta do que ocorre com a maioria

dos clientes. Primeiramente recebeu aplicações de reiki e somente após oito sessões,

aproximadamente dois meses após o contato inicial com a terapeuta, é que se submeteu ao

tratamento psicológico.

5a Consulta:

Mulher, 26 anos. Afirmou que há 10 anos sofre de bulimia. Imagine uma adolescente se

prendendo dentro de um casulo enquanto seu mundo se quebrava em mil pedaços? revelou a

informante. Levada por sua mãe a um médico psiquiatra, nossa informante, que continua a ser

medicada com psicotrópicos, realizou terapia em grupo por quase um ano e há quatro meses recebe

aplicações quinzenais de reiki. Declarou ela, a respeito de seu tratamento:

Sinto-me mais feliz, pois busquei em minha consciência esta ajuda, reconheci que de
fato posso me curar e tudo dependerá de mim. Eles [mencionando o psiquiatra e a
psicóloga] me estenderam as mãos e me levantaram e agora é seguir o caminho
[referindo-se à necessidade da continuidade do tratamento proposto pela terapia do reiki].
Não me importa quanto tempo levará, o que quero é olhar as pessoas sem me sentir
diferente delas, mesmo sabendo que ninguém é igual a ninguém [grifos meus].

Estas consultas, a exemplo dos casos apresentados, buscam retratar as atividades diárias de

alguns consultórios. Correspondendo a exemplos do atendimento clínico prestado por gestalt-

terapeutas, as consultas descritas referem-se a casos de pacientes que apresentam problemas


101

relacionados à impotência e insegurança em suas relações interpessoais. A princípio, enquanto nos

casos junguianos os pacientes expressavam situações ou problemas com relacionamentos pessoais,

nos casos gestalticos são salientados problemas de ordem interpessoal (problemas com a sogra,

problemas profissionais etc).

Surgida em meados de 1950, na Alemanha, a Psicologia dos Padrões de Totalidade ou

de Totalidades Significativas (Gestalten)79 foi uma reação à tentativa de se compreender as

experiências psíquico-emocionais por meio de análises atomístico-mecanicistas, tal como

proposto e implementado por Wilhelm Wundt80.

A partir dessa premissa, Fritz Perls, considerado o fundador dessa terapia, sustentava

que o mundo vivencial de um indivíduo só pode ser compreendido por meio da descrição

direta que o próprio indivíduo faz de sua situação única. Do mesmo modo, Perls sustentou que

o encontro do terapeuta com um paciente constitui um encontro existencial entre duas pessoas

e não uma variante do clássico relacionamento médico-paciente (Fadiman e Frager, 1986).

Abandonando a dicotomia “corpo-mente”, a aproximação que Perls faz da teoria da

gestalt-terapia na compreensão da personalidade levou-o a abandonar a idéia da cisão entre

sujeito e objeto, e mesmo da cisão entre organismo e o meio. “Ao invés de considerar que

cada ser humano encontra um mundo que ele experiencia como sendo completamente

separado de si mesmo, Fritz Perls acreditava que as pessoas criam e constituem seus próprios

mundos; o mundo existe para um dado indivíduo como sua própria descoberta para o mundo”

(Duarte e Venâncio, 1995 : 132). Assim, a gestalt-terapia centra-se, fundamentalmente, na

relação do “outro com o meio” e no desenvolvimento das responsabilidades e liberdades

79
Embora não haja equivalente preciso em português para a palavra alemã Gestalt, o sentido mais geral que se
pode dar ao termo corresponde a uma organização específica das partes que constitui um “todo” particular.
80
Dr. Wilhelm Wundt, em 1879, foi o fundador do primeiro laboratório de Psicologia, instalado na Universidade
de Leipzig. Imbuído de uma forte tendência positivista científica, a obra de Wundt pode ser analisada enquanto
importante marco da história contemporânea, principalmente o que tange os saberes do social e o psiquismo
(Duarte e Venâncio, 1995).
102

individuais (Perls, Goodman e Hefferline, 1980.)

Ilustrando a intervenção da gestalt-terapia será citado o caso de outra psicoterapeuta

contatada, Ana. Psicóloga há mais de dez anos, essa interlocutora revelou-se especialmente

atenta à forma pela qual se expressam seus clientes. A psicóloga costuma “fichar” algumas

das informações observadas durante as sessões terapêuticas: registra expressões verbais,

descreve detalhes sobre a linguagem corporal dos seus pacientes.

Indagada sobre tal procedimento a entrevistada buscou respaldo junto ao conceito de

“intencionalidade”, cuja importância é central para a gestalt-terapia. Como consideramos que

todo ato consciente é dotado de alguma intenção, não podemos compreendê-lo à parte do que

é pensado ou pretendido, esclarece Ana. Por esse motivo é que todo ato psíquico deve ser

entendido de acordo com suas próprias motivações, conclui.

Tal pressuposto leva terapeutas como nossa informante a sugerirem que quaisquer

aspectos do comportamento sejam considerados manifestações do “todo”, do “ser global”, da

própria pessoa. Assim, nas situações terapêuticas, o que o paciente faz, como ele se

movimenta, fornece tanta informação a seu respeito quanto o que ele pensa ou o que ele diz.

Os afiliados a gestalt-terapia também acreditam naquilo que denominam “sabedoria

do organismo”. Na teoria de Perls, a noção de “organismo como um todo” é também central

(tanto em relação ao funcionamento intra-orgânico quanto a participação do organismo em

seu meio para criar um campo único de atividades). No contexto do funcionamento intra-

orgânico, Perls insistia em que os seres humanos são organismos unificados e em que não há

nenhuma diferença entre o tipo de atividade física e mental. Fritz Perls definia atividade

mental simplesmente como atividade da pessoa toda que se desenvolve num nível mais baixo

de energia que a atividade física” (Fadiman e Frager, 1986 : 133).


103

Além do holismo intra-orgânico, Perls acentuou a importância de considerar o

indivíduo como parte perene de um campo mais amplo que inclui o organismo e seu meio.

Dessa maneira, os gestalt-terapeutas acreditam que em um indivíduo saudável há um limite

de contato entre ele e o seu meio, e é esse limite que define a relação entre eles. Num

indivíduo saudável esse limite é fluído, sempre permitindo o contato e depois o afastamento

do meio (Perls, 1981). Contatar constitui a formação de uma gestalt, afastar-se representa o

seu fechamento.

Admitindo uma concepção holista onde é enfatizada a autopercepção presente e

imediata que os indivíduos têm de seu meio, esses profissionais consideram “saudáveis”

aqueles que por intermédio da autoconscientização e do reconhecimento da “natureza” do

organismo humano se tornam auto-regulados, autocentrados.

Apontamos aqui a primeira aproximação possível entre a gestalt-terapia e o reiki. Ao

conceberem holisticamente os indivíduos (noção esta que em sua própria formulação já se

apresenta contraditória) ambas terapias qualificam como saudáveis aqueles que além da

ausência de doenças também possuam qualidades que os caracterizem como sendo

“equilibrados” (de acordo com a terapia do reiki) ou então autocentrados e/ou auto-regulados

(segundo a gestalt-terapia).

Encarando as doenças como “uma das várias partes que compõe o todo do indivíduo”,

os afiliados a gestalt-terapia acreditam que seu surgimento corresponda à maneira que o

organismo encontra para enfrentar situações insuportáveis ou conscientemente inconciliáveis,

esclarece Dina, outra informante:

Não significa aí que há uma negação do estado patológico, do sofrimento do


paciente pelo estado em que se encontra. A questão é que a gestalt-terapia trabalha
com um outro enfoque. Constatados os problemas do paciente, admitimos que para
que a doença se manifeste há a necessidade da pessoa organizar-se de determinada
maneira, independentemente da consciência ou inconsciência dela sobre esta
104

organização. Enquanto método terapêutico, a gestalt questiona se não haveria


outras maneiras, outras formas de ser e viver, que poderiam atender melhor e mais
precisamente as necessidades atuais do paciente.

Esse pode ser considerado outro aspecto aproximador das terapias gestaltica e

reikiana. De acordo com o reiki, a inadequada distribuição do “fluxo energético” nos chakras,

decorrente de algumas das atividades e hábitos cotidianos, seria determinante na origem das

doenças. Muito embora a gestalt-terapia não trabalhe em suas bases teóricas segundo os

conceitos de chakras e “energia”, a explicação para a causalidade das doenças parece ter a

mesma origem da explicação reikiana; isto porque, conforme indicado pela entrevistada, os

gestalticos definem as diferentes doenças como sendo processos resultantes de determinados

hábitos e estilos de vida, ou, de acordo com suas próprias definições, resultantes de

determinadas formas de organização. Ou seja, ao constatar e atribuir as causas das doenças,

tanto o reiki quanto a gestalt-terapia parece voltar-se para a singularidade e a diferença dos

indivíduos, enfatizando, ao longo do tratamento terapêutico, as qualidades inerentes a cada

um e a auto-responsabilidade pelo que lhes sucede em detrimento de fatores ou relações

externos.

Referendando essa constatação, uma outra informante, Joana, prossegue dizendo:

A gestalt parte do pressuposto que cada indivíduo é único e inigualável e que o seu
equilíbrio é sua melhor tentativa de se adaptar às pressões do seu meio. (...) Com
isto, da mesma maneira que houve uma organização específica para gerar o
comportamento patológico, parte-se do princípio que estas mesmas forças sejam
capazes de se re-organizar e se adaptar a novos requisitos.

O tratamento clínico proposto por Joana está voltado para a ampliação da consciência

do indivíduo sobre seus habitus, sobre como ele age ou como “se bloqueia” ao tentar alcançar

seu próprio “equilíbrio” (Perls, 1981.).

Considerando a “fuga da conscientização” e a conseqüente “rigidez da percepção e do


105

comportamento” como os maiores obstáculos ao “crescimento individual”, o

acompanhamento de alguns casos clínicos assistidos por psicólogos indicou que a gestalt-

terapia não investiga o passado com a finalidade de procurar traumas ou situações

inacabadas, mas convida o paciente a se conscientizar das situações atuais (Prado Jr., mimeo)

acreditando, sob esse aspecto, que algumas das situações e problemas não resolvidos no

passado surgirão como parte das experiências presentes.

A inabilidade das pessoas para lidar com o “espaço deixado entre o agora e o depois”,

tal como apontado pela gestalt-terapia, seria o fator responsável por levá-las a arquitetar

planos de um futuro mais seguro. Nesse sentido, muito embora a atitude de projetar metas de

longa duração seja recorrente entre seus pacientes, Joana recomenda “precaução” ao agir

desta forma. Acrescenta a psicoterapeuta:

Isto [referindo-se à formulação de expectativas em longo prazo] não apenas desvia a


atenção do presente, criando situações ‘eternamente’ inacabadas, mas também
impede a abertura para o futuro, atrasando o processo de desenvolvimento e
crescimento pessoal.

Ao postularem a contínua transformação do indivíduo como única possibilidade de

obtenção do autocentramento, gestalticos e reikianos consideram a valorização das

“experiências presentes” instrumentos imprescindíveis ao “crescimento individual” (Perls,

Goodman e Hefferline, 1980). Isso, além de aproximar significativamente as terapias, parece

justificar o porquê dos chamados “princípios reikianos” serem incluídos nessas sessões

terapêuticas.

Ao submeter-se ao tratamento gestaltico-reikiano e assimilar o novo discurso clínico,

o indivíduo, via terapia, é “culpabilizado” por suas próprias escolhas, uma vez que, enquanto

sujeito autônomo e autoconsciente, torna-se o principal, senão único, responsável por seus

próprios infortúnios. Frente a um contexto cultural onde existiriam variados sistemas


106

simbólicos concorrentes entre si, e tendo que obrigatoriamente se vincular a um deles para

obter uma interpretação coerente da realidade, o sujeito, “não se dando conta” de seus

relacionamentos pessoais e interpessoais, vai buscar na Psicologia a base para o re-

ordenamento de suas experiências e comportamentos.

Constatando que a gestalt-terapia não passa necessariamente por uma análise do

inconsciente, Prado Junior (mimeo) afirma que ela se transformou numa “técnica de

aprimoramento ou refinamento da consciência de si”. Assim, se a psicanálise clássica

reproduz, como sugere Foucault (1978), a estrutura da direção da consciência, a nova terapia

faz lembrar o estilo do “exercício espiritual”, segundo o qual é abandonada a idéia de

“crescimento por meio da cura”, em favor das falas onde são enfatizados: o “alargamento de

horizontes”, a “consciência em si”, a “multiplicação de possibilidades expressivas”, do

“afinamento da sensibilidade”.

A perspectiva da terapia, ainda de acordo com Prado Junior (mimeo), não mais

subverte o sujeito, ela busca centrá-lo em seu núcleo. É a idéia do “homem total”, da

existência plena e harmoniosa que a gestalt-terapia (a exemplo do reiki) fazem crescer.

Transformada em “arte de viver”, a terapia faz com que o terapeuta abandone seu

compromisso com a ciência e assuma a função de guru, aquele que sabe naturalmente viver.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Revelando que o estado de saúde dos indivíduos está diretamente associado ao seu

universo sócio-cultural, freqüentemente são abordadas na literatura antropológica as

diferentes concepções sobre as doenças, as explicações que lhes são correlatas e os

comportamentos que os indivíduos têm diante delas. Esse foi o objetivo desta dissertação: ao

tomar o reiki como objeto privilegiado de análise procurou-se investigar o modo pelo qual

algumas técnicas e práticas alternativas, fundamentadas em concepções holistas do corpo, da

doença e da própria “pessoa” (e, portanto, distintas às do modelo biomédico) vêm sendo

incorporadas aos serviços oficiais de atendimento à saúde.

Por um lado, a descrição do circuito dessa prática alternativa em Campinas/SP

demonstra que a consolidação dos espaços reikianos obedece à lógica da sua construção, por

meio de redes de relações interpessoais que também são responsáveis por sua organização e

difusão.

Quanto à especificidade da clientela demandada por essa prática terapêutica, o reiki é

procurado predominantemente por mulheres, profissionais liberais da área de saúde, na faixa

dos 30 anos e que inicialmente buscam melhorias de saúde e bem estar pessoal.

Posteriormente, com a participação efetiva em cursos, palestras e demais atividades esse fim é

redefinido e passa a ter por objetivo a busca da ampliação da própria consciência, o auto-

aperfeiçoamento, a espiritualidade, o equilíbrio, a saúde holística. Dessa maneira, tal como se

procurou evidenciar, o tratamento proposto pelo reiki não se restringe à cura das doenças, mas

implica na reformulação de hábitos e em uma nova percepção do mundo que não somente

enfatiza alguns valores do indivíduo, mas também cria novas formas de sociabilidade.

Os dados etnográficos indicam a extensão ocupada pelo reiki: se inicialmente essa


108

terapia era associada às práticas esotéricas, atualmente ela passa a ser ofertada por agentes

especializados. Dos reikianos cuja formação ocorria nos cômodos de suas próprias residências

atualmente vislumbra-se um outro estágio onde se verifica a existência de alguns profissionais

dos serviços oficias de saúde que também utilizam o reiki em suas intervenções.

Evidenciando esse processo, a etnografia dos espaços reikianos em Campinas/SP

apontou para a reestruturação do campo terapêutico oficial, especialmente o da Psicologia,

que apesar de fundamentar seu discurso na noção de indivíduo moderno passa a agregar à

prática clínica terapias holistas, tal como vem ocorrendo com o reiki. Nesse sentido, a

centralidade da análise etnográfica dos espaços terapêuticos psicológicos permitiu investigar

de forma mais detalhada não somente a inserção do reiki nesses espaços, mas principalmente

o fundamento ideológico dessa premissa; ou seja: a exacerbação do individualismo como

valor supremo moderno.

No que diz respeito à incorporação do reiki à Psicologia, um dos fatores que parece

explicar esse processo de incorporação das terapias alternativas aos serviços médicos oficiais

diz respeito à maneira pela qual o atendimento psicológico passa a ser orientado.

De certa maneira, a primeira constatação refere-se à própria forma que assumiu o

discurso psicológico, onde a linguagem cotidiana passa a ser preferida à linguagem científica.

Outra constatação diz respeito à relação médico-paciente e, mais especificamente, à

autonomia que a Psicologia junguiana e a gestalt-terapia delegam aos seus pacientes. Esta

afirmação fundamenta-se a nas próprias situações de consulta, cujo caráter assume uma

função altamente pessoalizante. Convertendo todas as situações vivenciadas à “primeira

pessoa”, enfatizando a “singularidade” e “diferença” de cada um dos seus pacientes, essas

“novas” psicologias referem-se insistentemente àquilo que “eu sou”, ao “que é meu”, às

qualidades, aos defeitos e aos atributos individuais. Desqualificando todo discurso impessoal
109

ou puramente teórico, a linguagem das novas psicologias não é tematizada em si mesma, ela

torna-se ocasião de contato consigo mesmo (Prado Júnior, mimeo).

Embora não se trate aqui de julgar aqui a eficácia de tal estratégia terapêutica, o fato é

que ela oferece uma nova possibilidade para o entendimento das tão faladas “crises

individuais” que, desencadeadas a partir de um contexto cultural onde existiriam vários

sistemas simbólicos concorrentes entre si, obrigariam os indivíduos a se vincular a alguns

desses sistemas para obter uma interpretação coerente da realidade.

Esse discurso, que visa apreender a experiência da pós-modernidade, tal como pôde

ser observado nos relatos dos reikianos, reflete o discurso do senso comum próprio da classe

média que é legitimado pela prática psicológica e justifica, inclusive, a sua afiliação a essas

novas práticas terapêuticas que estariam, aí sim, imbuídas do propósito de reconfigurar a

dimensão do “pessoal” dentro da esfera societária moderna.

Diante disso pode-se dizer a respeito do reiki que já não se trata exatamente de uma

prática alternativa, no sentido de uma utilização restrita a grupos específicos que fariam um

uso exclusivo de terapias não oficiais, mas que, objetivamente, corresponde a uma prática que

elabora verdadeiros modelos para os sujeitos responderem ao mundo, assentada em um

conjunto de valores convencionados como “positivos” à construção da própria “pessoa” e que

visam, sobretudo, desenvolver o auto-equilíbrio, o autodesenvolvimento e a autopercepção.


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SITES

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ANEXOS
Fonte: Divulgação
Anexo 1: Fachada de um centro holístico

Fonte: Divulgação

Anexo 2: Fachada de uma clínica holística


Fonte: Divulgação
Anexo 3: Atividade realizada em um espaço terapêutico espiritualista

Fonte: Divulgação

Anexo 4: Interior de um espaço terapêutico psicológico

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