As Condições para A Diversidade Urbana
As Condições para A Diversidade Urbana
As Condições para A Diversidade Urbana
Introdução
Morte e Vida das Grandes Cidades (Jacobs, 2009) foi publicado um ano após a inau-
guração de Brasília, marco da arquitetura e do urbanismo Modernista, e é, sem
dúvida, seu trabalho mais conhecido e influente. Teceu profundas críticas ao urba-
nismo modernista e expressou ideias divergentes da prática e teoria urbanas então
vigentes, ideias essas que, hoje, são amplamente aceitas (Netto, 2016). Arquitetos
como Jan Gehl (2013) reafirmam seu legado, propagando e perpetuando suas ideias
sobre as características de vizinhanças bem-sucedidas, a necessidade de diversidade
de usos e a importância de olhos na rua.
No entanto, como a própria Jacobs recomenda, suas ideias precisam ser cons-
tantemente testadas e desafiadas. Nesse sentido, são poucos os estudos que buscam
validar ou refutar empiricamente suas proposições. Marshall (2012) nota que, apesar
de dois desses estudos terem sido publicados ainda na década de 1970 (Schmidt,
1977; Weicher, 1973) e seus resultados não terem sido muito animadores, a imensa
maioria dos trabalhos que revisaram a obra de Jacobs reafirmam suas ideias sem
mencionar a existência de evidências que as suportem ou contradigam. A própria
ideia da importância da diversidade de usos para a segurança e a vitalidade urbanas,
cuidadosamente construída por Jacobs e amplamente difundida por urbanistas no
mundo inteiro desde então (ver, por exemplo, Alexander, Ishikawa, & Silverstein,
1977; e Gehl, 2013), tem encontrado resultados contraditórios. Se, por um lado,
há ampla evidência de que ela esteja efetivamente associada à vitalidade urbana e ao
movimento de pedestres (Cervero & Kockelman, 1997; Netto, Vargas, & Saboya,
2012; Saboya, Netto, & Vargas, 2015; Sung, Lee, & Cheon, 2015), por outro
também tem sido consistentemente associada à ocorrência de crimes (Greenberg
& Rohe, 1984; Stucky & Ottensmann, 2009), inclusive no Brasil (Monteiro &
Cavalcanti, 2017; Saboya, Banki, & Santana, 2016). Além disso, a operacionali-
zação da medida de diversidade empregada nesses trabalhos também representa uma
limitação importante, conforme explicaremos mais adiante.
Diante desse quadro, este artigo tem o objetivo de investigar a relação entre
a ocorrência de crimes, utilizada como proxy de bairros mal-sucedidos, como fez
Jacobs (2009), e as condições para a diversidade urbana defendidas por ela: diver-
sidade de usos do solo, tamanho médio das quadras e densidade populacional.1
O estudo empírico foi realizado para as três cidades catarinenses mais populosas
1 Jacobs (2009) também argumenta sobre a importância da diversidade de idades das edificações.
Entretanto, devido à dificuldade de conseguir esse dado para as três cidades estudadas, não foi
possível considerá-lo para o estudo empírico deste artigo.
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2 Para Florianópolis, consideramos sua área conurbada, que funciona como um único sistema
urbano, e inclui, além da capital, São José, Palhoça e Biguaçu.
3 Dados do Censo ibge de 2010.
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Onde:
DS = Diversidade segundo a entropia de Shannon;
S = Número total de tipos de uso do solo;
i = tipo de uso do solo i;
pi = proporção do uso do solo do tipo i.
Jost (2006) alerta para o fato de que esse índice apresenta problemas quando
comparamos áreas com distintas quantidades de usos. Por exemplo, uma unidade
territorial (um bairro ou setor censitário) com oito usos do solo igualmente distri-
buídos possuiria um ds equivalente a 2,08, enquanto outra com 16 usos também
igualmente distribuídos teria uma diversidade igual a 2,77. Apesar de possuir igual
homogeneidade na distribuição, mas o dobro da quantidade de espécies, a diver-
sidade segundo a fórmula de Shannon para a segunda unidade territorial é apenas
33% superior à primeira. Isso acontece porque a fórmula não é uma função linear,
o que não permite dizer que uma área com diversidade igual a quatro é duas vezes
mais diversa que uma com diversidade igual a 2,0. Essa seria uma característica
importante e desejável de um índice de diversidade para que sua interpretação
fizesse sentido no contexto dos estudos urbanos, bem como para análises estatísticas
que exijam essa linearidade de escala.
Outro índice comum, o de Gini-Simpson (Jost, 2006), é calculado de acordo
com a seguinte fórmula:
Onde:
DGS = Diversidade de Gini-Simpson, variando de 0 a 1, sendo 0 a mais baixa diver-
sidade (apenas 1 uso do solo) e 1 a mais alta (uma grande quantidade de usos do
solo, aproximando-se do infinito, igualmente distribuídos).
S = Número total de tipos de uso do solo;
i = tipo de uso do solo i;
pi = proporção do uso do solo do tipo i.
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Onde:
DTD = Diversidade Real (True Diversity), que representa o valor equivalente à quan-
tidade total de usos (riqueza) que uma área teria caso todos os seus usos fossem
igualmente distribuídos (proporcionalidade);
DGS = Diversidade de Gini-Simpson.
Dessa forma, as unidades territoriais exemplificadas acima teriam índices 8 e 16, res-
pectivamente, respeitando a proporcionalidade entre os resultados e diferenciando
áreas mais diversas e menos diversas, superando a simples proporção igualitária dos
usos. Proporções desiguais penalizam o valor máximo possível, que corresponde à
quantidade total de usos do solo. Assim, um setor com quatro usos do solo distri-
buídos desigualmente – por exemplo, 50%, 20%, 20% e 10% – teria um índice de
Diversidade Real menor que 4 (nesse caso, 2,94).
Entretanto, no caso dos usos do solo, em que um deles é tão predominante nas
cidades (na Área Conurbada de Florianópolis, acf, por exemplo, o uso residencial
corresponde a 91,12% do total de endereços), há dúvidas sobre a adequação de
valorizar excessivamente a proporcionalidade de usos em detrimento da riqueza
simples, isto é, da quantidade total de usos diferentes presentes em uma determi-
nada unidade territorial.
A figura 1 a seguir ilustra diferentes combinações de usos e suas respectivas
medidas de diversidade segundo a riqueza de usos e os índices de Shannon e Gini-
Simpson True Diversity. Além disso, incluímos também a porcentagem não residen-
cial que, apesar de não ser a rigor uma medida de diversidade, é comumente usada
para estimá-la.
Por esses motivos, trabalhamos com quatro medidas diferentes de diversidade, de
modo a confrontar os resultados obtidos. Se os resultados alcançados com cada uma
delas convergirem, teremos maior convicção sobre sua correção; em caso de discre-
pâncias, elas poderão ser analisadas em mais detalhes, considerando as propriedades
de cada medida e o que, exatamente, elas estão capturando do fenômeno.
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Método
A intenção inicial da pesquisa foi investigar as três cidades mais populosas de Santa
Catarina: Joinville, Florianópolis (capital) e Blumenau, nessa ordem. No entanto,
considerando a intensa relação socioespacial entre Florianópolis e suas cidades vizi-
nhas, este estudo considerou as quatro cidades que compõem a Área Conurbada de
Florianópolis (acf ): São José, Palhoça e Biguaçu, além da capital. Portanto, foram
analisadas 6 cidades, sendo que aquelas que compõem a acf foram consideradas um
único sistema urbano.
Essa abrangência, se por um lado permite uma boa capacidade de generalização
dos resultados, por outro impõe algumas dificuldades operacionais, especialmente
no que diz respeito à disponibilidade de dados, que devem abarcar todas as cidades.
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Unidade de análise
A opção pelo Censo e pelo cnefe como fonte de dados nos levou a utilizar as
unidades territoriais de coleta do ibge. Para este estudo, optamos pelo setor censi-
tário, definido pelo ibge como “a unidade de controle cadastral formada por área
contínua, integralmente contida em área urbana ou rural, cuja dimensão, número
de domicílios e de estabelecimentos permitam ao recenseador cumprir suas ativi-
dades em um prazo determinado” (ibge, 2010c). Essa unidade territorial parece
adequada também de um ponto de vista teórico, uma vez que possui escala maior
que trechos ou ruas, que poderiam não captar a diversidade proporcionada por usos
dentro de uma distância facilmente caminhável, e menor do que bairros inteiros,
que poderiam prejudicar a resolução da análise, misturando partes da cidade muito
diferentes.
Além disso, considerando que Jacobs (2009) desenvolve seus argumentos
pensando na cidade, optamos por excluir os setores rurais, considerando para este
estudo apenas os setores urbanos, entendidos pelo ibge como aqueles dentro do
perímetro urbano, categorizados em área urbanizada de vila ou cidade, área não
urbanizada de vila ou cidade e área urbana isolada (ibge, 2010b).
Variáveis
A lista completa de variáveis dependentes, independentes e de controle usadas
no trabalho pode ser vista no tablela 1.
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fonte dos
variáveis tipo medida dados
Densidade
Independente Quantidade de moradores por hectare (hab/ha) Censo ibge
populacional
flo: pmf
Tamanho das Tamanho médio das quadras (segmentos de joi: pmj
Independente
quadras ruas entre duas intersecções) (em metros) blu: Open Street
Map
tabela 1 | Variáveis empregadas na pesquisa
obs.: pmf: prefeitura municipal de florianópolis; pmj: prefeitura municipal de joinville
fonte: elaborado pelos autores
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4 Abigeato (furto de gado), abigeato (tentado), furto, furto (tentado), furto de coisa comum,
furto de coisa comum (tentado), furto qualificado, homicídio, homicídio (tentado), homicídio
culposo, homicídio culposo na direção de veículo automotor, latrocínio, perturbação do trabalho
ou sossego alheio abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos, perturbação do trabalho
ou sossego alheio, perturbação do trabalho ou sossego alheio (tentado), posse de drogas, posse de
drogas (tentado), roubo, roubo (tentado), roubo (sequestro relâmpago), tráfico de drogas, tráfico
de drogas (tentado), violação de domicílio, violação de domicílio (tentado), violação de domicílio
durante a noite ou em lugar ermo ou com emprego de violência/arma ou em 2 ou mais pessoas.
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sentido norte-sul a partir das margens do Rio Itajaí-açu, que cruza a cidade. A sul e
a norte, o relevo caracteriza-se pela presença de áreas montanhosas.
Joinville
Joinville é a maior cidade do estado, com 112.611 hectares, população de 515.288
habitantes (ibge, 2018) e densidade de 4,58 hab/ha. A cidade é sede da Região
Metropolitana do Norte/Nordeste Catarinense, que possui aproximadamente 1,34
milhão de habitantes, caracterizando-se como uma das mais populosas regiões
metropolitanas de Santa Catarina. O Rio Cachoeira, que percorre o centro da
cidade, direciona as principais vias no sentido norte-sul, e aflui à Baía da Babitonga,
configurando um território predominantemente plano, com extensas áreas de
manguezais. A área central urbanizada se distribui no sentido norte-sul, enquanto
porções residenciais unifamiliares significativas se encontram no leste da cidade,
voltados para a baía, e porções industriais e de serviços de grande porte nas regiões
norte e próximas à rodovia br-101.
Resultados
Renda per capita renda -0,23 -0,06 -0,17 -0,02 0,07 0,03
Porcentagem não-
porcNResid 0,34 0,19 0,20 0,28 0,29 0,37
residenciais
Diversidade de usos divGiniTD 0,32 0,18 0,20 0,30 0,30 0,37
Ocorrência de crimes
De maneira geral, os mapas das duas variáveis dependentes são muito similares
(figura 2), sem grandes diferenças entre os padrões de crimes observados. De fato,
as correlações entre as duas variáveis são de 0,84 para a acf, 0,96 para Blumenau
e 0,95 para Joinville, confirmando as impressões obtidas com a análise visual. As
maiores diferenças, como seria de se imaginar, acontecem nas áreas centrais, nas
quais há maior discrepância entre a quantidade total de endereços e a população
residente, modificando as taxas de crimes. Mesmo assim, apenas em Joinville essa
diferença pode ser percebida nos mapas, com as áreas mais centrais visivelmente
com maiores taxas de crimes por habitantes.
figura 2 | Mapa de taxa de crimes por 1000 habitantes para as três áreas
urbanas e Mapa de taxa de crimes por 1000 endereços para as três
áreas urbanas
fonte: elaboraçao própria sobre dados do cnefe (ibge, 2010a) censo ibge (ibge, 2010b) e
mpsc (2016)
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Os mapas não mostram um padrão claro e recorrente para os três conjuntos urbanos.
No entanto, é possível indicar uma tendência, ainda que não muito acentuada, das
maiores taxas de crimes se concentrarem nas áreas mais centrais e nas mais perifé-
ricas. Esse padrão é mais claro em Joinville, mas é possível observá-lo também, com
menor força, na acf e em Blumenau. Neste último ele é menos visível, mas ainda
assim parece se manifestar em todas as regiões da cidade, com exceção da porção
sudeste, onde há uma região inteira de maiores taxas criminais se estendendo do
centro à periferia, sem essa área de menor taxa de criminalidade entre elas.
Ao fazermos uma análise geral desses setores com alta taxa de criminalidade,
observamos que parte deles possui uma área de vegetação extensa, o que pode
influenciar para cima a taxa de crimes pela baixa quantidade de população e ende-
reços. Por outro lado, alguns desses setores se destacam, principalmente, por se
tratarem de áreas reconhecidas como mais perigosas e sujeitas a maior criminali-
dade, principalmente por estarem relacionadas com o tráfico de drogas, que abre
portas para outros tipos de crimes (roubo, furto, homicídio, latrocínio...), como é o
caso de alguns assentamentos informais.
Chama a atenção também a taxa de 112.800 crimes por mil habitantes e 5.198
crimes por mil endereços do setor correspondente ao aterro da baía sul, na região
central de Florianópolis. Essa área abriga equipamentos urbanos importantes, tais
como a rodoviária municipal, a estação de tratamento de esgoto da Companhia
Catarinense de Águas e Esgoto (casan) e o principal terminal de ônibus urbano da
cidade, além de amplas avenidas, canteiros e o remanescente de um parque projetado
por Roberto Burle Marx que, entretanto, nunca chegou a ser completamente apro-
priado pela população. Pela figura 3 é possível perceber que a área é de baixíssima
densidade e composta por edificações isoladas, com pouca permeabilidade com o
espaço público e separada por avenidas largas e de intenso movimento. Além disso,
separa-se do centro mais consolidado, ainda que esteja fisicamente unido a ele.
Tanto a pequena quantidade de habitantes e de endereços, como a alta quantidade
de fluxos de passagem (o que fornece alvos para os criminosos), contribuem para
as altas taxas de crimes observadas. Entretanto, basta uma observação simples da
forma construída dessa área para perceber o porquê: baixíssima apropriação em
comparação com o tamanho da área, grandes distâncias entre os (poucos) atratores e
concentradores de pessoas, dificuldade de vigilância natural e abundância de espaços
propícios a servirem como esconderijos. Esse espaço completamente antiurbano
parece, portanto, corroborar os argumentos de Jacobs de que espaços com vitalidade
e diversidade de usos são os mais seguros.
Um exame mais cuidadoso da distribuição de roubos e furtos nessa área mostra
que a maior parte deles está concentrada junto aos equipamentos, que é realmente
onde acontecem os maiores fluxos de pessoas. Com os dados disponíveis, é impos-
sível afirmar com certeza se as taxas de crimes por pessoa também seriam maiores
nesses locais; entretanto, considerando-se a enorme diferença no tráfego de pedes-
tres, é muito provável que as taxas nesses locais sejam menores do que nas porções
menos movimentadas do aterro. Outro local que chama a atenção, apesar de não
possuir nenhum equipamento imediatamente ao lado, é o ponto de início das
pontes, em que essas funcionam como um viaduto que passa sobre outra avenida.
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Outro setor da acf que chamou a atenção é aquele em que está localizado o
Aeroporto Internacional Hercílio Luz. Ele aparece como altamente criminogênico
nas análises de crimes/endereço e crimes/habitantes, porém se destaca por ser um
setor de alta renda, com alta diversidade de usos e baixa densidade populacional.
Em Joinville, ambos os mapas de crimes mostram padrões parecidos. Alguns
setores se destacam visualmente por sua extensa área territorial, como é o caso das
áreas ao norte da cidade, apesar de representarem pouco, relativamente, da área
construída. Quando analisadas pela concentração de áreas censitárias diferentes que
mais se destacam, evidenciam-se a área central da cidade e duas porções para o leste
da cidade, superior e inferior ao centro. Ambas possuem áreas intercaladas de taxas
altas e médias de crimes, com predominância de uso residencial unifamiliar.
Renda
A distribuição das camadas de renda em Blumenau e Joinville obedecem de maneira
clara à clássica relação centro-periferia, segundo a qual as camadas mais ricas loca-
lizam-se próximas ao centro, e as mais pobres na periferia, embora com algumas
poucas exceções. Em Florianópolis esse padrão é parcialmente quebrado: ainda que
boa parte dos setores de alta renda esteja localizada na porção central do mapa,
que corresponde à área continental e ao centro fundador de Florianópolis, também
podemos observar que existem setores com a mesma característica em porções
extremas da acf, como por exemplo, Jurerê Internacional, ao Norte da Ilha, Lagoa
da Conceição e Campeche, ao Leste, Bosque das Mansões, em São José, e a Pedra
Branca, em Palhoça, ambos a Oeste do mapa. Por outro lado, fica clara a concen-
tração de população de baixa renda na parte oeste da acf, abrangendo São José,
Palhoça e Biguaçu. De maneira geral, esses setores habitados pela população de alta
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renda não coincidem com os setores destacados como os mais criminogênicos, que
acontecem, prioritariamente, nas áreas de baixa renda (figura 4).
figura 4 | Mapa de renda per capita média para as três áreas urbanas
fonte: elaboraçao própria sobre dados do ibge (2010b)
Para a acf, a correlação mais forte encontrada foi entre a taxa de crimes por endereço
e a porcentagem de endereços não-residenciais (0,34). Ainda que seja considerada
estatisticamente uma correlação positiva moderada, indica que há uma tendência
em haver maior número de ocorrências criminais em um setor censitário que possui
alta proporção de usos não-residenciais. Vale ressaltar que não é o fator diversidade
de usos, mas sim a incidência de usos comerciais, serviços e industriais que apa-
recem associados à criminalidade neste caso. Isso poderia estar atrelado à questão da
atratividade de diferentes usuários para esses locais, pois usos não-residenciais faci-
litam o anonimato de um potencial criminoso em meio aos diferentes transeuntes.
Isso contradiz, em parte, a visão propagada por Jacobs (2009), segundo a qual essa
intensa utilização do espaço público traria, eminentemente, maior segurança.
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Em Blumenau, verificamos que os setores com maiores taxas, tanto de crimes por
habitantes quanto de crimes por endereços, estão bastante dispersos. No entanto,
quando comparamos com os mapas de usos não residenciais e com o índice Ginitd,
observamos uma leve concentração de setores com altos valores para essas quatro
variáveis (porcentagem de usos não residenciais, índice Ginitd, taxas de crimes por
habitantes e por endereços) ao longo do rio, o que pode ser confirmado, em parte,
pela análise estatística, que chegou a valores de correlação próximos a 0,18 para
crimes por endereço e entre 0,21 a 0,30 para crimes por habitantes (em ambos os
casos com significância estatística em nível de confiança de 95%, apesar de valores
baixos a moderados).
Para Joinville, ambos os mapas de diversidade de usos (Gini True Diversity) e
proporção de usos não residenciais mostram correspondências claras com os mapas
de taxas de crimes. Temos a área central e suas ramificações, que representam as
porções mais diversificadas, com acréscimo dos setores ao norte. Essas áreas ao
norte são pouco ocupadas e nelas predominam os serviços de grande porte, como
empresas e centros comerciais, que possuem escoamento pela br 101 e pequenas
áreas com residências unifamiliares.
As correlações confirmam essa impressão visual: locais com maiores proporções
de usos não residenciais e com maior diversidade de usos (Gini td) possuem maior
potencial de ocorrências de crimes, tanto nas taxas por endereços (r=0,20 para
ambas as medidas de usos do solo) quanto por habitantes (r=0,37, também para
ambas as medidas).
Analisando as correlações obtidas para os três conjuntos urbanos, vemos que,
em geral, setores com maior diversidade de usos e menor incidência de uso residen-
cial estão associados a taxas de crimes maiores, ou seja, setores com presença mais
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Densidade populacional
Os mapas de distribuição da densidade populacional mostram padrões ligeiramente
diferentes para os três conjuntos urbanos (figura 7). A acf mostra um padrão radial
mais claro, apesar do caráter disperso da ocupação, com concentração nas áreas
centrais, abrangendo tanto a parte insular quanto a continental. A exceção é uma
área mais densa localizada a nordeste, correspondente ao Balneário dos Ingleses, e
outra no sudoeste da Ilha, correspondente ao Bairro da Tapera. Em Blumenau, as
maiores densidades populacionais estão localizadas próximas ao Rio Itajaí-açu, prin-
cipalmente ao sul, em setores mais centrais. Em contraposição, os setores mais peri-
féricos, principalmente ao norte da cidade, abrangem quadras maiores, resultado do
relevo montanhoso e, consequentemente, da ocupação mais rarefeita. Em Joinville a
maior concentração populacional localiza-se em uma parte periférica, com o centro
principal com baixa densidade, e outra área de densidade média a sudeste.
figura 7 | Densidade populacional para os três conjuntos urbanos
com grandes taxas de crimes. Muitos desses setores correspondem a áreas pouco
urbanizadas, com casas isoladas e grandes empresas, indústrias e galpões, como já
comentado acima, que se destacam visualmente pelo tamanho de seus setores e
quadras.
Esse achado contradiz uma crença de parte da população e, até mesmo, de
estudiosos do tema (ver, por exemplo, Acioly e Davidson, 1998) de que maiores
densidades estariam associadas a maiores taxas de crimes, e de que áreas menos
densas, com grandes parques, áreas vazias e casas isoladas estariam associadas a
maior segurança. Por outro lado, corroboram os argumentos de Jacobs (2009).
De maneira geral, vemos que o tamanho médio das quadras da acf possui uma
relação inversa aos outros pontos citados anteriormente, em especial a densidade
populacional, ou seja, quanto maior é esta, menores são as quadras desses locais.
Tanto a análise visual quanto as correlações encontradas (variando de r=-0,05 a
r=0,03) mostram que não há relação direta entre o tamanho médio das quadras nos
setores censitários e as taxas de crimes por endereços ou por habitantes.
Conclusões
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Este estudo testou três dos quatro geradores de diversidade defendidos por Jacobs
(2009) que, segundo ela, seriam em grande parte responsáveis por vizinhanças bem-
-sucedidas, nos três conjuntos urbanos mais populosos de Santa Catarina, totali-
zando seis cidades. A unidade territorial adotada foi a mais desagregada para a qual
todos os dados estavam disponíveis, os setores censitários do ibge.
Com relação às diferentes medidas de diversidade de usos do solo, encontramos
alta correlação entre a porcentagem de usos não residenciais e o índice de Gini
True Diversity (aproximadamente 0,98), bem como entre este e a riqueza de usos
detalhada (usos 2; correlação aproximadamente igual a 0,8). Portanto, essas três
medidas são altamente correlacionadas entre si, e a riqueza de usos com 6 classes é
a que menos se correlaciona com as demais (na faixa de 0,42). Ao mesmo tempo, a
tabela 1 mostra que esta última é a que possui menor correlação com a ocorrência de
crimes, indo de r=0,11 a r=0,24. Sendo assim, os resultados indicam que a diversi-
dade de usos gerais expressa pela simples quantidade de usos (análoga ao conceito de
diversidade primária de Jacobs, que se baseia na riqueza de usos) possui influência
fraca na ocorrência de crimes e, mesmo assim, em sentido inverso ao que Jacobs
(2009) argumentou existir.
Cabe destacar que as correlações entre criminalidade e diversidade de usos, ainda
que moderadas, são bastante significativas quando estamos lidando com um objeto
de estudo tão complexo como o espaço urbano. Padrões espaciais e relações sociais
são resultados de contingências, de valores culturais, de aspectos ambientais etc.,
além da atuação ininterrupta de agentes produtores desse espaço. Entretanto, as
análises mais pormenorizadas sugerem que, em escalas mais ampliadas, as preo-
cupações de Jacobs (2009) sobre a relação das edificações com os espaços públicos
parecem fazer sentido.
Por outro lado, os resultados encontrados para a densidade populacional corro-
boram os argumentos de Jacobs (2009) de que esse fator está associado a maior
segurança. Isso foi observado para os três conjuntos urbanos, com relativa estabili-
dade entre eles. Já o fator tamanho médio de quadras não parece ser tão decisivo na
manutenção de áreas mais vitais.
Um aspecto importante, que pode ser visto como uma limitação do presente
estudo, é a não consideração, por absoluta inexistência de dados nessa escala de
abrangência, sobre os fluxos de pessoas nas diferentes áreas da cidade, que não são
diretamente captados nem pela quantidade de endereços nem pela quantidade de
residentes, apesar de ambas as variáveis fornecerem uma aproximação. Esse fator
poderia compor uma terceira taxa de crimes a ser confrontada como as outras duas
com as variáveis independentes. É possível que gerasse resultados diferentes, no
sentido de que áreas com maior fluxo de pedestres, apesar de ter altas quantidades
absolutas de crimes (pela maior quantidade de alvos), tenham menores taxas quando
esse número de crimes é dividido pela quantidade de pedestres, por exemplo.
Entretanto, essa consideração não teria influência sobre os crimes cometidos contra
edificações residenciais e não residenciais. Outra limitação foi a não consideração
sobre a sazonalidade na ocupação ocasionada pelo turismo, especialmente na acf,
que aumenta bastante sua população nos meses do verão. Para pesquisas futuras
uma suposta influência dessa flutuação sobre a ocorrência de crimes poderia ser
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Agradecimentos
Referências bibliográficas