Artigo 9 Willi
Artigo 9 Willi
Artigo 9 Willi
O MISTÉRIO DO DEUS-HOMEM:
A relação da perfeição com a identidade na
religião cristã.
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo mostrar a relação entre a perfeição e a
identidade que é presente na religião cristã a partir do mistério da encarnação,
segundo o qual Deus não se encontra somente na eternidade, mas também se
apresentou na história e com um corpo próprio. A concepção antropológica e
teológica do cristianismo não pode ignorar a encarnação, centro da religião
cristã, que a diferencia em absoluto das demais religiões, em especial as religiões
orientais, nas quais o caminho para a perfeição se dá pela autoanulação até a
nulidade.
ABSTRACT
This article aims to show the relationship between perfection and identity that
is presented in the Christian religion from the mystery of Incarnation, in which
God is not only in eternity, but also performed in history and with his own
body. The anthropological and theological conception of Christianity cannot
ignore the incarnation, the center of the Christian religion, as distinct at all
other religions, especially Eastern religions, in which the path to perfection is by
self-effacement to annulment.
INTRODUÇÃO
2 É com a encarnação que se efetua também uma nova concepção da realidade enquanto processo:
no judeu-cristianismo se dá o primeiro passo para romper-se a concepção cíclica da realidade, que
era defendida especialmente por Heráclito e os estoicos (ELIADE, 1994, p. 61), mas que era
presente em toda a cultura greco-romana. Como bem demonstra Mircea Eliade, é o judaísmo que
apresenta esta inovação da escatologia, na qual “o tempo tem um começo e terá um fim” (ELIADE, 1995, p.
97), mas é o cristianismo que “vai ainda mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que
Deus encarnou, isto é, que assumiu uma existência humana historicamente condicionada, a
História torna-se suscetível de ser santificada” (ELIADE, 1995, p. 97). “Conferindo ao tempo um
sentido, o cristianismo o tira da insignificância do seu fluir e o institui como história. Não é possível
ver o tempo como “história” na concepção cíclica do tempo, que encontra a sua escansão nos
ritmos da natureza; isso só é possível na perspectiva que os cristãos denominaram escatológica,
onde no fim (eschaton) se realiza o que no início fora anunciado” (GALIMBERTI, 2003, p. 25).
3 Só há estas duas pois todas as 'tentativas' para fora da ortodoxia possuem em suas ideias as
tendências que se levadas até as últimas consequências, alcançam estas duas vias.
4 Jean Guitton bem percebe que tal via possui características específicas: “A escola crítica germinou
na França e era sem dúvida entre nós que tinha mais possibilidade de nascer. Desenvolveu-se em
Paris, como em sua cidade. Com Renan, encontrou as condições mais perfeitas para que fosse, pelo
talento e pelo saber, revestida da maior plausibilidade.” (GUITTON, 1960, p. 102). Ernest Renan
com sua “Vida de Jesus”, de fato “foi o maior exito de livraria do século [XIX]” (GUITTON,
1960, p. 102), mas “em nossos dias, a Vida de Jesus de Renan é de uma insipidez insuportável”
(GUITTON, 1960, p. 77), especialmente pelo fato de que com o desenvolvimento na história das
religiões e de ideologias (como o marxismo), o “mito Jesus” é de uma flexibilidade ainda maior,
servindo especialmente com a “polissimbolizabilidade” (SANTOS, 1959, p. 16) de seus símbolos, tais
como “a ideia da Virgem-Mãe, do Deus-Menino, do pão da vida, como ricos de sentido, sem que
haja necessidade de preocupação com a verdade de tudo isso.” (GUITTON, 1960, p. 79). A
relação entre mito e religião assim aumentou consideravelmente de tal forma que “espíritos como
Mircea Eliade ou Bultmann deram ao mito estatuto novo; dele fizeram uma forma de pensamento
propícia a exprimir a substância da vida espiritual” (GUITTON, 1960, p. 79), de tal forma que não
se pode compreender o estudo das religiões do nosso século sem compreender a influência destes
dois nomes.
5 Diferente da primeira via, “a escola mítica cresceu na Alemanha. Era a terra de eleição para
pensamentos desse tipo; falta ao gênio germânico o senso das matizes. Em compensação, tem a
faculdade de criar abstrações e fazê-las viver.” (GUITTON, 1960, p. 102). Neste sentido temos
Rudolf Bultmann como grande nome, que “parece pensar que o Evangelho apresenta duma
maneira mítica” (GUITTON, 1960, p. 80), além de outros nomes, como o psicólogo suíço
fundador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung, que entende cristo como um arquétipo
historicizado, assim como a própria Trindade e nos Evangelhos, no qual entende um “caráter não
histórico (…) cuja única preocupação era tornar impressionante a figura de Cristo, na medida de
suas possibilidades descritivas.” (JUNG, 1979, p. 41).
6 Leonardo Boff (1972) também expõe uma análise das duas tendências, mas focando-se
especialmente em sua construção histórica a partir das duas escolas teológicas da antiguidade, onde
cada uma tendeu a um caminho. A escola de Alexandria, influenciada pelo platonismo e pela
mística acabou desenvolvendo uma tese onde reduziu-se a humanidade de Jesus frente a sua
divindade, tendo Apolinário de Laodicéia ensinado “que pela encarnação o Logos substituiu o
espírito humano” (BOFF, 1972, p. 201). A escola de Antioquia, sendo influenciada por Aristóteles
desenvolveu a tese onde a união das naturezas em Jesus não seria íntima mas acidental, gerando a
base para a heresia de Nestório (BOFF, 1972, p. 203), segundo a qual seria necessário separar-se o
Jesus-homem e o Jesus-Deus, para preservar-se a humanidade de Cristo. Tais perspectivas parciais,
porém, foram declaradas heréticas e encontrou-se como solução a formulação do Concílio de
Calcedônia: há unidade em Cristo quanto à pessoa, mas há dualidade quanto às naturezas – uma
formulação que deixa espaço para o mistério, mas que “deve ainda hoje ser critério de verdade”
(BOFF, 1972, p. 205).
7 “O termo ebionitas deriva de uma palavra hebraica que significa 'pobres' e designa uma seita de
judeus cristãos ascéticos que sobreviveram à destruição de Jerusalém no ano 70, indo para o leste
do Jordão. Sendo judaizantes, criam na salvação pela obediência à lei, rejeitavam os escritos de
Paulo e davam ênfase às cartas de Tiago e Pedro. Para eles, Jesus era um profeta humano, o novo
Moisés; era o filho de José que, ao ser batizado, foi adotado como Filho de Deus por causa de sua
obediência à lei. Por serem poucos e estarem isolados não subsistiram por muito tempo.” (MATOS,
2008, p. 38). O docetismo provém da influência gnóstica no cristianismo, que criava doutrinas que
negavam o nascimento de Jesus, sendo que “todas estas doutrinas acerca do Salvador recebem o
nome de 'docetismo' – de uma palavra grega [dokéo] que quer dizer 'aparecer', pois o que estas
doutrinas implicam, de um modo ou de outro, era que o corpo de Jesus era uma aparência.”
(GONZÁLEZ, 2011, p. 98).
8 O docetismo é tão antigo que sua força fez com que o Credo possuísse a precisão histórica que
tem, uma vez que “a referência a Pôncio Pilatos não tem o propósito de culpar ao procurador
romano pela crucificação, mas antes procura dar uma data concreta ao que se está falando. Para
alguns dos gnósticos, Jesus não era um ser histórico, mas um mito ou alegoria universal. Por essa
razão o Credo põe data à crucificação” (GONZÁLEZ, 2011, p. 104).
9 Tais duas “linhas racionais” são dois processos da inteligência: “muitas vezes a inteligência
humana toma um fato na experiência e leva-o até seus limites ideais” (GUITTON, 1960, p. 106),
como o faz a primeira via, do Jesus histórico; mas também “muitas vezes (…) partindo desta vez do
ideal, exprime-o a inteligência sob uma metáfora concreta, personifica-o” (GUITTON, 1960, p.
106). Tais são as “duas grandes tendências [que] ganham validade em todos os trabalhos
científicos” (DILTHEY, 2010, p. 23) segundo Wilhelm Dilthey: ou seja, o processo de abstração a
partir do natural, “sede original de todo conhecimento de uniformidades” (DILTHEY, 2010, p.
23), e o processo contrário, “partindo da natureza, porém, o mesmo homem se volta em seguida
retroativamente para a vida, para si próprio” (DILTHEY, 2010, p. 24). A origem do segundo
processo no primeiro explica o fato de que conceitos não existem enquanto realidades físicas, ou
seja, “negar a autonomia existencial do conceito não é ainda negar a existencialidade do esquema
concreto do fato, do qual ele é apenas um esquema de esquema, um esquema abstrato.” (SANTOS,
1959, p. 17).
2 A encarnação do Logos
10 “Digamos isto doutra maneira e dum modo mais pascaliano: 'A Encarnação é um mistério
insondável e todavia somente pela Encarnação é que se pode compreender o fato e o sentido do
Evangelho.'” (GUITTON, 1960, p. 35).
11 Nosso corpo é ao mesmo tempo o meio de agradar a Deus quanto o mecanismo de cedermos às
concupiscências, à nossa “natureza terrena”, que não é o corpo em si mas aquilo de mal que se
apresenta neste e através deste: “O corpo não é instrumento só do pecado, mas também da
salvação.” (WINCKEL, 1985, p. 132). Veja: Cl 3.5-11.
12 Um grande exemplo desta contraposição é Santo Agostinho, que “diante da opinião platônica,
comum em sua época, de que o corpo aprisiona a alma e que esta prisão é a origem dos males da
humanidade (…) discorda de Platão e afirma exatamente o contrário: foi a alma quem pecou e
prejudicou o corpo.” (AZEVEDO JR, 2008, p. 86-87).
13 A força do mistério do Deus-Homem no cristianismo primitivo é um indício de que ambas as
tendências racionalistas que pensam Cristo como “Jesus histórico” ou como “Jesus mítico” são
incompatíveis com a realidade histórica da Igreja, uma vez que tal mistério (da encarnação) não se
apresenta como resultado de um processo religioso tanto quanto um rompimento, por ser
justamente uma “oposição muito consciente às concepções religiosas judaicas e helenísticas do
tempo” (ADAM, 1986, p. 5). Ou seja, o mistério do Deus-Homem não está relacionado com
influências helenísticas (que C. G. Jung supervaloriza, em: JUNG, 1979, p. 6) ou judaicas tanto
quanto é um rompimento com as mesmas: “é impossível explicar o aparecimento dessa fé por
influências judaicas ou pagãs. Nela não há nada de derivado, de secundário; tudo é
verdadeiramente primitivo, é a fé, o credo original” (ADAM, 1986: 5), sendo “escândalo para os
judeus, loucura para os gentios” (I Co 1.23b). Como bem destaca Joseph Ratzinger, o estudioso
judeu Jacob Neusner bem entendeu que Jesus Cristo não muda completamente a lei judaica, mas
acrescenta algo que é o principal no cristianismo, e inaceitável para o judaísmo: ele mesmo
(RATZINGER, 2007, p. 103). Porém, Jesus ultrapassa também a chamada 'Regra de Ouro', a qual
provém “do grade fariseu Hillel, cerca de uma geração antes do nascimento de Cristo, (…) como
evolução progressiva de Lv 19,18.34, em Sabbat 31a: 'O que não desejas para ti, não faças ao teu
próximo'.” (SCHUBERT, 1979, p. 40). Porém, “(…) a Regra de Ouro é expressa em forma
afirmativa por Jesus e em forma negativa por Hillel. Notável diferença. Hillel diz: 'Guarda-te de
prejudicar a teu próximo'; e Jesus: 'O amor que desejarias receber, mostra-o para com teu
próximo'. Oferecer amor é bem mais do que deixar de prejudicar” (JEREMIAS, 1988, p. 8-9). Que
de fato houve influência na formação da religião cristã por parte do helenismo e da paideia grega é
algo inegável, como bem se percebe no estudo de Werner Jaeger (2002), mas a religião do
paganismo para o cristianismo mudou de tal forma que “as palavras 'deus' e até mesmo 'religião'
não tinham o mesmo sentido” (VEYNE, 2011, p. 68).
3 O mistério do Deus-Homem
14Tal aparente contradição é presente mesmo na expectativa messiânica dos judeus, que não
compreendiam o caráter ambivalente do próprio Messias, definindo as diferenças como
possibilidades diversas do futuro – afinal, como conciliar um ser divino que vêm das nuvens (Dn
7.13) e um pobre montado em um jumento (Zc 9.9)? '''A única menção notável a este propósito
encontra-se em Sanhedrim 98a: ''Rabi Iehosua bem Levi (um mestre palestino da segunda metade do
século III d.C.) fez observar uma contradição. Está escrito: 'E eis que com as nuvens do céu ele vem
como um Filho do homem' (Dn 7,13) e, além disto, está escrito: 'Pobre e montado num jumento'
(Zc 9,9). Se eles (os israelitas) o merecerem, então ele virá com as nuvens do céu; se não o
merecerem, virá pobre e montando um jumento''.''' (SCHUBERT, 1979, p. 74).
15 Gilgamesh, herói mitológico mesopotâmico o qual “é mais do que um herói semidivino” (JUNG,
1979, p. 3), era considerado “dois terços deus e um terço homem”, dentro do imaginário mitológico
mesopotâmico, como relatado na Epopeia de Gilgamesh (ANÔNIMO, 2011, p. 95).
16 Neste sentido a perspectiva mítica se apresenta mais atrativa do que a histórica, uma vez que sua
flexibilidade é maior neste ponto, aceitando o que vai além do racional: “A tradição mítica
transcende as experiências individuais e por isso mesmo é, para cada um, mais um desafio do que
uma solução, no trato com a realidade.” (BURKERT, 1991, p. 29).
17 Segundo Leonardo Boff, a admiração é o início da filosofia e da cristologia (BOFF, 1972, p. 156).
Vemos a admiração do povo diante de Jesus em diversos textos dos evangelhos (Mt 4.24, 7.28, 8.27,
9.33b, 13.54-56; Mc 1.22, 2.12, 4.41, 6.23; Lc 2.47, 4.22-23, 4.31, 4.36-37, 5.26, 8.25; Jo 6.42).
18 Mircea Eliade vale-se de Erasmo como exemplo, justamente por este ter sido o representante
teológico da Igreja Católica contra Lutero. Porém, o texto do Elogio a Loucura mostra que Erasmo
não possuía uma visão tão racionalista de Deus quanto pensa-se em geral (como Eliade): “(...) os
devotos, cuja vida não é senão uma imagem e uma meditação contínua da vida celeste, já sentem
na terra um antegozo dessa recompensa deliciosa. (…) Essa é também a parte de loucura que os
justos sentem já na terra, loucura feliz que, longe de lhes ser retirada quando passarem à outra vida,
será, ao contrário, aperfeiçoada, e se tornará aquela loucura inefável que é chamada a bem-
aventurança eterna” (ERASMO, 2010, p. 132).
19 Cf. meu artigo a este respeito: RUPPENTHAL NETO, 2014.
21“Ele não era gnóstico, nem da Nova Era. Ele não era modernista, nem humanista secular. Ele
não era marxista, nem socialista. Ele não era filósofo platônico. Ele não era panteísta brâmane. Ele
não era ariano racista. Ele não era assistente social, nem psicólogo pop, nem mito pagão, nem
mágico. Ele não era democrata nem republicano; na verdade, ele não era norte-americano. Ele não
era libertário, nem monarquista; não era anarquista, nem radical e, tampouco, neoconservador. Ele
não era um homem medieval nem moderno. Ele era judeu” (KREEFT, 2009, p. 19).
grego, significa espírito. Mas como o espírito é o ser real do homem, diferente dos acidentes deste
ser pelo qual o indivíduo é conhecido como Fulano ou Beltrano e tem qualidades ou propriedades
particulares, a palavra atman no uso reflexivo adquire o sentido de 'eu', qualquer que seja a nossa
opinião sobre a natureza desse eu, seja ele físico, psíquico ou espiritual” (COOMARASWAMY,
1992, p. 123). Porém, apesar dessa possibilidade, entende-se atman não como o “ego humano”, mas
como “o Espírito imanente que empresta a si mesmo imparcialmente a qualquer individualidade
sem jamais se tornar ninguém” (COOMARASWAMY, 1992, p. 124), de forma que o Mahtma
torna-se “um morto ambulante, alguém cujo espírito neste momento tem uma morada nas alturas”
(COOMARASWAMY, 1992: 125).
25 A principal crítica de Nietzsche ao cristianismo é de que se trata de uma religião que prega o
26 Jean Daniélou bem percebe essa falha na compreensão de René Guénon do Cristianismo: “O
Cristianismo reconhece perfeitamente a existência de uma simbólica natural, que se liga à religião
cósmica (…) Mas o Cristianismo é precisamente coisa diferente. É uma irrupção de Deus na
História, um acontecimento radicalmente novo. Se a cruz tem uma tal importância para ele, não é,
em primeiro lugar, por causa de seu valor simbólico, é porque Cristo morreu sobre um patíbulo
composto de dois pedaços de madeira. E esse dado histórico está em primeiro lugar. (…) Mas esses
simbolismos são secundários em relação aos fatos históricos. E é essa importância do Cristianismo
como novidade absoluta que Guénon desconhece” (DANIÉLOU, 1964, p. 111-112). Ora, não é à
toa que o kerygma dos cristãos é sobre o que se denominou Evangelho, a 'boa novidade' (Sobre este
termo, veja: RATZINGER, 2007, p. 57-58). Também não é à toa que o historiador francês Marc
Bloch denominava o Cristianismo como uma “religião de historiador”, uma vez que estava baseada
em uma crença histórica datável, diferenciando-se assim das demais religiões. É justamente por isso
que “o problema essencial do cristianismo é determinar quais são as relações entre a fé e a história”
(GUITTON, 1960, p. 38).
27 Como bem mostra Oscar Cullmann, tal tensão é fruto da ideia de que “o fim já está realizado em
Cristo, mas a consumação ainda está no futuro” (CULLMANN, 1968, p. 8) e gera uma situação
complexa mesmo na relação dos cristãos com a política, uma vez que trata-se de um dualismo
cronológico: “O Novo Testamento não afirma nem nega o mundo. O dualismo que encontramos
nele é cronológico entre o Presente e o Futuro. Não é um dualismo helênico entre este mundo e o
outro.” (CULLMANN, 1968, p. 77). A Nova Jerusalém descerá neste mundo, e será este mesmo
mundo que será completamente renovado. “O novo mundo está, a partir de Cristo, germinando e
fermentando dentro do velho mundo” (BOFF, 1973, p. 156).
28 A ressurreição dos santos não será uma simples 'volta à vida' de um cadáver, mas será uma
transformação completa, à semelhança da ressurreição de Cristo, a qual não foi uma simples volta à
vida: “Não como quem volta à vida biológica que tinha antes, a exemplo de Lázaro ou do jovem de
Naim, mas como quem, conservando sua identidade de Jesus de Nazaré, se manifestou totalmente
transfigurado e plenamente realizado em suas possibilidades humanas e divinas. O que aconteceu
não foi a revivificação de um cadáver, mas a radical transformação e transfiguração da realidade
terrestre de Jesus, chamada ressurreição” (BOFF, 1972, p. 135). Assim, a esperança do cristão se
mostra direcionada em um sentido específico: “ressurreição como total transfiguração da realidade
humana espírito-corporal” (BOFF, 1972, p. 149).
próprio Cristo29: “logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive
em mim; e esse viver que, agora, tenha na carne, vivo pela fé no
Filho de Deus...” (Gl 2.20). Porém, este texto Paulo aos Gálatas
não deve ser mal interpretado, e para isto utilizamos a
interpretação de Leclercq:
29 “É verdade que, batizado, vivendo na fé, me torno como Tu? Que a Encarnação de certo modo
se renova em mim e que a vida cristã não é somente a 'imitação de Cristo', mas é Jesus Cristo vivo,
que continua e volta a viver em cada um dos seus?” (LECLERCQ, 1997, p. 32).
vez que seu Espírito habita em nós (1Co 3.16) e através de nós se
mostra agora ao mundo, assim como se mostrou por Cristo, sendo
nós “não somente um outro Cristo (…) mas um novo Cristo”
(LECLERCQ, 1997, p. 59): “No cristianismo, é necessário
procurar esta vida divina, não fora do humano, mas através do
humano. Está no humano sem ser do humano” (LECLERCQ,
1997, p. 40)30.
A tensão no homem não é um elemento necessariamente
negativo, pois se dá justamente pela presença da liberdade
humana, conjuntamente à nova consciência que se cria, mediante
a filiação divina, ideia complexa que pode mais uma vez ser bem
resumida pelo católico J. Leclercq: “É a lei da Encarnação. Eu
continuo a ser plenamente humano. Tu decidiste fazer a tua obra
nos homens mediante a sua colaboração, subordinando-a à ação
do homem. E como continuamos a ser homens, tens necessidade
do nosso concurso para que a tua obra se converta em realidade”
(LECLERCQ, 1997, p. 36). Estando nós em tal situação de
contradição, somos nascidos da carne, mas também de Deus (João
1.13).
6 Eu e o outro
30Como bem afirma Leonardo Boff, a humanidade não é anulada pela vinda da natureza humana,
mas é plenamente realizada na relação com esta: “a perfeição humana reside exatamente em sua
abertura total e infinita a ponto de poder ser repleta de Deus” (BOFF, 1972, p. 202). Tal
compreensão temos especialmente a partir de João Duns Escoto, que percebeu que “o homem
pode, pelo amor, abrir-se de tal modo a Deus e aos outros, que chega a esvaziar-se totalmente de si
mesmo e plenificar-se na mesma proporção, pela realidade dos outros e de Deus” (BOFF, 1972, p.
221).
31 O cristianismo de fato fala na “morte para mim mesmo”, mas isto não ganha a dimensão que
tem nas demais religiões como o budismo. De modo algum o ser humano deve se destruir, mas
distanciar-se de si mesmo para melhor observar a si mesmo e ao outro. Trata-se do paradoxo do
êxtase: “o excessus mentis, que se apresenta como uma perda de si mesmo, uma perda de seu proprium,
como uma 'quase' anulação, leva a mente, na verdade, ao seu ponto mais alto, numa extravagante
conformidade ao Outro, a plenitude do ser. Experiência de todos os amores. Possuir Deus é se
possuir a si mesmo. Não há nada de panteísmo nisso porque o amor faz que, na vontade de que o
outro seja o outro, o amado seja tanto mais ele mesmo quanto mais ele é amado” (CHENU, 2006,
p. 33).
32 Na sua crítica ao cristianismo, Nietzsche propõe que a virtude deve fazer o homem viver até a
morte (NIETZSCHE, 2012, p. 25) e não fazer morrer ainda em vida (NIETZSCHE, 2012, p. 102),
de forma a “viver como cadáver” (NIETZSCHE, 2012, p. 98). O espírito não apenas vivifica, mas
“é a vida que clarifica a própria vida” (NIETZSCHE, 2012b, p. 111). Note-se que a ideia de “viver
como cadáver” (NIETZSCHE, 2012, p. 98) é próxima da doutrina metafísica hindu, na qual o
homem deve buscar ser “um morto ambulante” (COOMARASWAMY, 1992, p. 125), através da
anulação “do ego humano para o Espírito imanente que empresta a si mesmo imparcialmente a
qualquer individualidade sem jamais se tornar ninguém” (COOMARASWAMY, 1992, p. 124).
Seria a anulação do “eu como entidade psicológica” (COOMARASWAMY, 1992, p. 123) em prol
de sua vida enquanto “Eu Superior” (COOMARASWAMY, 1992, p. 122).
33 “(...) não acho que existam duas instituições no universo que contradizem uma à outra tão
34 Quando Agostinho afirma que “Noli foras ire, in teipsum redi: in interiore homine habitat veritas (não vá
fora, entra em ti mesmo: no homem interior habita a verdade)”, não está se referindo a encontrar a
Verdade absoluta dentro do homem, mas o reflexo desta verdade, uma vez que o homem é “imago
Dei (imagem de Deus)”. Desta forma busca realizar o seu desejo: “Deum et animam scire cupio (quero
conhecer a Deus e à alma)”. Assim, quando Deus diz ao homem “deixa-te, entrega-te a Mim, e
gozarás de uma grande paz interior” (TOMÁS DE KEMPIS, 1995, p. 31), não se refere a uma
anulação, uma destruição, mas uma entrega, “um sacrifício contínuo de tudo o que são” (TOMÁS
DE KEMPIS, 1995, p. 31). “'Entra em ti mesmo', exclama o autor da Imitação de Cristo, mas
acrescenta: 'Prepara ao celeste Esposo uma morada digna dele; ele virá e descansará nela, porque
suas delícias são habitar no coração que o chama” (TOMÁS DE KEMPIS apud WINCKEL, 1985,
p. 52). A elevação espiritual deve servir não como elemento pelo qual anulamos a nós mesmo, mas
pelo qual completamos a nós mesmos: é um sistema circular: “O círculo da interioridade é perfeito:
A te proinde incipiat tua consideratio, non solum autem, sed et in te finiatur. (De ti proceda a consideração
sobre ti mesmo, mas não apenas isso, também em ti ela termine)” (CHENU, 2006, p. 33).
Percebemos o universo a partir de nós mesmos, este 'microcosmo', que reflete o macrocosmo, mas
tal espelho apresenta-se sempre embaçado: “Meto-me dentro de mim mesmo e acho aí um mundo!
Mas antes em pressentimentos e obscuros desejos que em realidade e ações vivas. E então tudo
paira a minha volta, sorrio e sigo a sonhar, penetrando adiante no universo” (GOETHE, 2001, p.
22).
35 “Quero amar o próximo não por ele ser eu, mas precisamente por ele não ser eu”
dos discípulos de Jesus) como uma obra-prima: “Alguns historiadores agnósticos acharão pouco
científico estabelecer uma escala de méritos entre as religiões. Mas, no meu modo de ver, isso não é
violar o princípio de neutralidade axiológica – é como reconhecermos a superioridade de certas
criações artísticas ou literárias; superioridade em relação à qual os contemporâneos não foram
menos sensíveis do que nós. Por que a imaginação criadora das religiões não teria, ela também, suas
obras-primas?” (VEYNE, 2011, p. 35-35).
37 Ananda K. Coomaraswamy pensa que o cristianismo deve ser percebido em aproximação com as
demais tradições religiosas: “Portanto, como diz Eckhart, 'todas as escrituras clamam por uma
libertação do eu' e aqui a palavra todas têm de ser tomada no sentido mais amplo possível, porque
esta é a carga que a escritura bramânica, a budista e a islamítica têm de carregar, do mesmo modo
que a cristã” (COOMARASWAMY, 1992, p. 123). Mircea Eliade parece defender uma ideia
semelhante, afirmando que é “inútil insistir nas diferenças entre os 'filhos' que S. Paulo 'gerou na fé'
e os 'filhos de Buda'...” (ELIADE, 1995: 163). G. K. Chesterton, porém, bem destaca o equívoco
destas ideias: “Há uma frase de liberalidade fácil que é proferida muitas vezes em sociedades éticas
e em parlamentos da religião: 'As religiões da terra diferem em ritos e formas, mas são a mesma
coisa naquilo que ensinam'. Isso é falso; é o contrário dos fatos. As religiões da terra não diferem
muito em ritos e formas; elas diferem muito naquilo que ensinam” (CHESTERTON, 2008, p.
212). Seja como for, os estudos mitológicos têm buscado encontrar pontos em comum na
linguagem e mensagem das religiões, especialmente através do estudo dos mitos e símbolos. A
psicanálise freudiana pretendeu apresentar-se como resposta à organização dos mitos tradicionais
(BURKERT, 1991, p. 33), assim como o foi posteriormente a teoria dos arquétipos do inconsciente
coletivo de C. G. Jung (BURKER, 1991, p. 35-36) e por fim o estruturalismo (BURKERT, 1991,
p. 36), que “é a busca de invariantes ou de elementos invariantes entre diferenças superficiais”
(LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 20) de forma a estruturar um sistema na qual entenda-se a mente
humana, uma vez que segundo esta perspectiva “a mente humana, apesar das diferenças culturais
entre as diversas fracções da Humanidade, é em toda a parte uma e a mesma coisa” (LÉVI-
STRAUSS, 1989, p. 33).
38 O amor de Deus se dá na diferenciação: se a todos amasse, se todos lhe fossem iguais, não amaria
dizer a minha opinião. O que devem fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente
despedirem-se do seu próprio corpo, e por conseguinte, ficarem mudos” (NIETZSCHE, 2012, p.
42).
41 O corpo e a alma são separados pela perspectiva grega da natureza humana, mas não na
perspectiva judaica, que tende a distinguir não enquanto partes, mas enquanto dimensões. Uma
visão cristã mais próxima da visão judaica é a de Leonardo Boff: “O homem concreto é a unidade
destas duas dimensões. A tradição chamou de corpo ao homem todo inteiro (corpo e alma)
enquanto limitado e, de alma, ao mesmo homem todo inteiro (corpo e alma) enquanto ilimitado e
aberto para a totalidade das relações. Corpo e alma não são pois duas entidades no homem, mas
duas dimensões e perspectivas do mesmo e único homem” (BOFF, 1972, p. 57). Sendo parte ou
dimensão, o corpo é o que permite ao homem diferenciar-se do outro, por ser seu elemento
limitador – o que não deve ser entendido necessariamente enquanto algo “negativo”.
7 Considerações finais
42 Platão passa no Fédon uma dissociação do homem com seu corpo evidenciado no final do
diálogo, através das seguintes palavras de Sócrates: “(...) não digas em meus funerais que expõe
Sócrates, que conduz Sócrates, que amortalha Sócrates; porque é preciso que saibas, estimado
Críton, que falar impropriamente não é apenas cometer uma falha no que se diz, mas significa
também prejudicar as almas. Deves ter mais coragem e dizer que é meu corpo o que amortalhas, e
faça-o como te agradar e da forma que acreditas ser mais de acordo com as leis” (PLATÃO, 2000,
p. 187). Algo muito parecido é afirmado pelo hindu Ananda K. Coomaraswamy: “Enquanto nós
dizemos 'não me machuque' referindo-nos ao corpo, ou 'eu sei' ou 'a minha alma', o mestre mais
cuidadoso diria 'não machuque este corpo', 'esta mente sabe' ou 'o Espírito que está em mim' ou 'o
Espírito que habita o meu corpo'” (COOMARASWAMY, 1992, p. 89n6). A dissociação entre alma
e corpo na visão dicotômica/tricotômica bivalente de Platão se evidencia tanto no corpo como na
alma na visão tetratômica de Coomaraswamy, que inclui conjuntamente a corpo, alma e espírito,
esta “alma da alma” como nas palavras de Fílon (COOMARASWAMY, 1992, p. 92-93n15).
43 A ressurreição era um dos principais pontos de diferenciação dos judeus em relação aos gregos de
tal forma que mesmo antes do cristianismo, a tentativa de explicar-se a teologia judaica por parte
de judeus para os pagãos criava equívocos na transmissão como, “por exemplo, a doutrina farisaica
da ressurreição dos mortos é transformada por Flávio Josefo numa interpretação da imortalidade
da alma. A sociedade culta helenista e do classicismo tardio, de fato, não compreendia bem o modo
psicossomático de o judaísmo conceber a vida.” (SCHUBERT, 1979, p. 12); esta diferenciação da
concepção judaica da natureza humana em relação ao pensamento grego fez com que a própria
tradução dos textos sagrados ficasse prejudicada: “Ao traduzir, via de regra, os substantivos
hebraicos mais frequentes com as palavras 'coração', 'alma', 'carne' e 'espírito', ocorreram equívocos
de graves consequências. Eles remontam já à antiga tradução grega da Septuaginta e acarretam
uma antropologia dicotômica ou tricotômica, na qual o corpo, a alma e o espírito se encontram em
oposição mútua. É necessário examinar até que ponto, quando passou a usar a língua grega, a
filosofia helênica deturpou e substituiu concepções semítico-bíblicas” (WOLFF, 2007, p. 29).
44 Is 26.19; Rm 8.23; 1Co 15.42-44; Fp 3.21.
45 “Não é para chegarmos à supressão dos desejos que Cristo nos convida à ascese; não se trata de
mortificar e dominar o corpo e a matéria, mas de santificá-los” (WINCKEL, 1985, p. 44).
46 O pecado não é naturalmente humano por ser uma situação. Pecado não é tanto 'ato' como é
'situação'. Desta forma Jesus Cristo de fato “assumiu sim nossa condição humana marcada pelo
pecado” (BOFF, 1972, p. 219), entrando no mundo em “situação de pecado”, feito por nós pecado
(2Coríntios 5.21), mas não pecou (enquanto ato), nem permaneceu em estado de pecado, pois “ele
foi sem pecado” (BOFF, 1972, p. 218). Jesus de fato “assumiu a condição humana marcada pela
alienação fundamental que é o pecado” (BOFF, 1972, p. 218), mas não tinha o núcleo degenerador
dos atos humanos que é consequência do pecado original. Assumiu em definitivo a situação de
pecado quando afasta-se completamente do pai na cruz, fazendo-se maldição e pecado. Sendo
assim, o pecado enquanto ato é resultado da situação pecaminosa (o pecado), mas que foi revertida
por Cristo, que assumiu o pecado para vencê-lo. Com a glória o homem não perderá uma parte de
si com o fim do pecado, mas mudará sua situação para uma união com Deus.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
47Trata-se de um “paradoxo”, como disse Rudolf Bultmann, já que a encarnação é um evento que
se dá na história enquanto “único” mas repete-se em cada cristão (BULTMANN, 1962, p. 101-
102).