Cabine C

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“Minha música é venusiana”, afirmava Ciro Pessoa, que infelizmente nos deixou esse ano.

O
ex-membro original dos Titãs e ex-líder da icônica Cabine C sempre primou por um som
delirante. Talvez esse seja o segredo da atemporalidade do único disco lançado pela banda
comandada pelo artista paulistano. ‘Fósforos de Oxford’, esse é o nome do emblemático e
cultuado álbum que, hoje, podemos considerar uma das obras mais importantes do pós-punk
brasileiro. Em tom literato, aloucado e obscuro, Ciro Pessoa, Anna Ruth, Marinella Setti e
Wania Forghieri nos apresentam um LP denso e, mesmo assim, dançante.

Contudo, até chegar à formação que gravou o LP, o Cabine C passou por distintos rearranjos,
debandadas de ex-membros e reconstruções. Nessa conjectura, é relevante lembrar que a
formação original contava com Edgard Scandurra (Ira!), Charles Gavin (Titãs), Sandra Coutinho
(Mercenárias) e Wania Forghieri (tecladista e esposa de Ciro). A primeira modificação nessa
formação original foi no baixo: Sandra saiu e Ricardo Gaspa (Ira!) assumiu as notas graves. A
partir daí, a banda foi adquirindo destaque no cenário paulistano, até que Scandurra e Gaspa
decidiram pela dedicação exclusiva ao Ira!. No mesmo contexto, Charles Gavin também se
afastou do projeto liderado por Ciro (o baterista viria a tocar brevemente no RPM e,
posteriormente, se juntar aos Titãs).

Assim, com a saída de praticamente todos os membros da banda, poderíamos pensar que o
conjunto estivesse chegando ao fim. Porém, Ciro conseguiu reconstruir o Cabine C, convidando
Anna Ruth (baixista) e Marinella Setti (baterista), além de continuar a contar com Wania nos
teclados. Dessa forma, após aproximadamente dois anos, a banda foi aos estúdios para
produzir o umbrátil e indispensável ‘Fósforos de Oxford’. Sua produção foi de Luiz Schiavon,
tecladista do RPM e sócio da gravadora em que o disco foi feito, chamada RPM Discos –
inaugurada pelos membros do homônimo conjunto –, a qual, assim como o Cabine C, também
era estreante. Todavia, o grupo não se sentiu pressionado por ser responsável pelo primeiro
álbum lançado pela produtora, e entregou um trabalho exponencial. Isso ocorreu
principalmente porque a banda estava muito sincronizada e ensaiada, resultando em uma
obra sem gargalos artísticos e com as letras potencializadas por instrumentos em total
sintonia.

Logo na abertura do disco, deparamo-nos com Ciro Pessoa declamando um aluado enredo sob
a trilha de uma valsa acelerada: trata-se da faixa ‘Pânico e Solidão’, baseada no livro
‘Aventuras de Arthur Gordon Pym’, de Edgar Allan Poe. Tal referência é evidente: no referido
romance, o protagonista embarca de forma clandestina em um navio e, aos poucos, a
tripulação vai sendo dizimada, sobrando apenas o personagem principal em total solidão e no
meio do oceano. Levando isso em conta, a canção fica ainda mais genial, pois o ritmo
acelerado em valsa remete, inevitavelmente, ao balançar de um navio. Ou seja, o LP já começa
com uma música de teor poético incrível.

A propósito, ficam muito evidentes as influências de artes além da música nas composições do
Cabine C, como a literatura e o cinema. No que se refere à literatura, o próprio Ciro Pessoa
afirmou que, além de Edgar Allan Poe, os seguintes autores foram importantíssimos para a
manifestação artística do Cabine C: Charles Baudelaire, Antonin Artaud e Arthur Rimbaud.
Quanto ao cinema, ao ouvirmos as canções da banda, percebemos a preocupação na
construção climática das músicas. Um exemplo disso é em ‘Tão perto’: “Entre coqueiros andei
e numa praia parei”. Em composições dessa natureza, Ciro dizia que visualizava (em preto e
branco) a cena cantada. Tal sinestesia só pode ser transmitida aos ouvintes por meio de uma
música que favorece a intenção da letra – o que é totalmente o caso de ‘Tão perto’, assim
como o restante do LP.
Ademais, o tom fúnebre de algumas faixas (como em ‘Lapso de Tempo’) chamou atenção do
público e da crítica, levando a banda a ser chamada de “gótica”, denominação recusada por
Ciro Pessoa. Porém, o teor lúgubre e macabro em algumas canções é inequívoco. Podemos
citar também a excelente ‘Anos’, que, além de manter o clima sombrio, expõe um dos
aspectos mais interessantes do pós-punk: linhas de baixo memoráveis, bem graves e
evidentes.

Outro aspecto de extrema magnitude no disco é a coragem da banda para inserir três (geniais)
canções instrumentais. A primeira delas, ‘A Queda do Solar de Usher’, é uma espécie de valsa
em dedilhados, com a entrada de voz feminina em coral. Quem ouve tal canção pode pensar
imediatamente na influência de Cocteau Twins. No entanto, Ciro Pessoa assegurava que o
fenômeno que ocorreu entre o Cabine C e essa banda britânica foi a sincronicidade: havia
semelhanças entre elas, mas de modo coincidente, como se ambas tivessem sido reflexos de
uma época.

Nesse aspecto, as referências musicais assumidas pelos membros do Cabine C eram conjuntos
como Siouxsie and The Banshees, Talking Heads e The Cure, embora as outras artes
influenciassem de modo mais intenso. Entretanto, mesmo que houvesse uma gama de artistas
das diversas áreas que foram absorvidos pelos membros da banda paulistana, o Cabine C
produziu uma sonoridade nova, desassisada e inovadora. Talvez por isso, seu álbum não fez
sucesso popular à época: estava, de certa forma, à frente. Em suma, trata-se de um LP
indispensável àqueles(as) que curtam pós-punk. Além disso, foi um passo fundamental do
movimento, colaborando para a perpetuação do estilo em nosso país e à chegada de
excelentes bandas no século XXI, como Cães da Madeira e Última Dança.

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