Roque - 2012 - O Método Científico

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C.

Roque
O Método Científico
O Método Científico
Antônio C. Roque

Dedução e Indução
Ao longo da história, duas maneiras distintas de raciocínio têm sido usadas para se
chegar a inferências ou conclusões científicas. Esses padrões de raciocínio são chamados de
método dedutivo e de método indutivo.
A melhor maneira de ilustrar os dois métodos é dar exemplos. Vejamos
primeiramente um exemplo de raciocínio dedutivo:

Todos os brasileiros gostam de futebol


Jorge é um brasileiro
________________________________
Portanto, Jorge gosta de futebol

As primeiras duas afirmações são chamadas de “premissas” da inferência, e a


terceira é chamada de conclusão. Esse tipo de raciocínio é chamado de dedutivo porque
tem a seguinte propriedade: se as premissas forem verdadeiras, então a conclusão também
deve ser verdadeira. Em outras palavras, se for verdade que (1) todos os brasileiros gostam
de futebol e (2) Jorge é um brasileiro, a consequência é que é verdade que Jorge gosta de
futebol. Costuma-se expressar isso dizendo que as premissas da inferência implicam a
conclusão. Obviamente, não há nenhuma garantia de que as premissas desse exemplo sejam
verdadeiras. Por exemplo, há muito brasileiros que não gostam de futebol, mas não é isto
que importa aqui. O que torna este tipo de inferência dedutiva é a existência de uma relação
específica entre as premissas e a conclusão, isto é, se as primeiras forem verdadeiras, então
a última também será. Se as premissas são ou não verdadeiras, isto é outro problema que
não afeta a estrutura lógica do esquema acima.
Vejamos agora um exemplo de uma inferência indutiva (Okasha, 2002).

Os cinco primeiros ovos da caixa estavam podres


Todos os ovos da caixa têm o mesmo prazo de validade (marcado na caixa)
________________________________
Portanto, o sexto ovo também estará podre

Esta forma de raciocínio não é dedutiva porque as premissas não implicam a


conclusão. Mesmo que seja verdade que os primeiros cinco ovos estavam podres e que
todos os ovos da caixa tenham o mesmo prazo de validade, não há garantias de que o sexto
ovo também esteja podre. Ele pode estar perfeitamente bom para se comer. Em outras
palavras, é logicamente possível que as premissas dessa inferência sejam verdadeiras e que
a conclusão seja falsa. Portanto, esta inferência não é dedutiva. Ela é chamada de indutiva.

1
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
O problema da metodologia científica constitui um tema de estudo da filosofia da
ciência e um resumo das principais tentativas de se definir o método científico será feito a
seguir.

Grécia antiga
Uma maneira de definir ciência que, provavelmente, foi concebida pela primeira vez
na Grécia antiga e que, de certa forma, perdura até os dias de hoje é a que assume que o
objetivo da ciência é buscar verdades universais.
Para o filósofo grego Platão (429–347 a.C.), as verdades universais existiriam
independentemente daquilo que é percebido pelos sentidos. Segundo Platão, a experiência
sensorial não pode nos revelar a real natureza das coisas e o conhecimento verdadeiro só
pode ser atingido pela razão e reflexão filosófica.
Já o filósofo grego Aristóteles (384–322 a.C.), que foi discípulo de Platão, pensava
de outro jeito. Aristóteles considerava que as verdades universais estão presentes nos
fenômenos e objetos concretos percebidos por nossos sentidos. Além disso, para Aristóteles
a maneira de se chegar ao conhecimento verdadeiro teria necessariamente que partir da
nossa experiência sensorial com os objetos e fenômenos particulares encontrados no dia-a-
dia.
O método científico, para Aristóteles, poderia ser considerado hoje em dia como
uma combinação de indução e dedução:
1. O processo de aquisição de conhecimento começaria com a experiência sensorial;
2. As várias repetições das experiências sensoriais gerariam memórias;
3. A partir dessas memórias, por um processo de intuição, seria possível discernir as
propriedades universais das coisas;
4. Finalmente, essas definições universais seriam usadas como premissas para, através
de demonstrações dedutivas baseadas na lógica, se chegar ao conhecimento sobre o
mundo.

Idade Média
O período que vai da decadência da civilização greco-romana até o nascimento da
ciência moderna, com Galileu, é geralmente considerado como um período negro para a
história da ciência. No entanto, muitos filósofos muçulmanos e cristãos dos séculos IX ao
XV se interessaram pelos problemas do método científico e da validade do conhecimento
(Lindberg, 1992). Muçulmanos como al-Haytham, al-Biruni, al-Khwarizmi, al-Farisi e
Avicenna, e cristãos como Nicolas Oresme, Robert Grosseteste, Duns Scotus, William de
Occam (ou Ockham) e Roger Bacon enfatizaram em seus escritos o valor da
experimentação como uma das ferramentas (a outra seria o raciocínio lógico-dedutivo) para
a verificação da validade de hipóteses. Eles também enfatizaram as virtudes das teorias que
necessitam do menor número possível de hipóteses não provadas (um princípio conhecido
hoje em dia como “navalha de Occam”).

2
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
Os escritos e pensamentos dos filósofos medievais, no entanto, não foram
suficientes para eclipsar a enorme influência de Aristóteles sobre o pensamento científico
dominante durante a Idade Média, principalmente a partir do século XIII (antes disso, a
influência de Platão era maior)1. Embora Aristóteles desse valor à observação e à
experiência, a principal característica do seu método científico era o uso de métodos de
dedução rigorosos baseados na lógica para se chegar a conclusões causais a partir de
premissas de natureza universal. As inúmeras traduções dos textos de Aristóteles, feitas
inicialmente do grego para o árabe e, depois, deste para o latim e as outras línguas
européias, e as interpretações que os escolásticos medievais fizeram deles, acabaram por
desvirtuar as suas idéias. O que se considerava como método aristotélico entre os
escolásticos medievais, alçado à condição de infalível por alguns deles, era puramente a
parte lógico-dedutiva e nem sequer se cogitava a possibilidade da realização de
experimentos para testar as conclusões obtidas por esse método.

Bacon
Talvez seja justo dizer que o prenúncio do nascimento da ciência moderna foi feito
pelo filósofo e jurista inglês Francis Bacon (1561–1626). Bacon propôs que o objetivo da
ciência deve ser o melhoramento da vida do ser humano na terra e que a maneira correta de
se fazer isso é o pelo uso da experimentação (Chalmers, 1993). Em uma série de livros
publicados no começo do século XVII, ele defendeu a causa da ciência empírica e atacou
violentamente o que considerava como perda de tempo com discussões filosófico-
teológicas feitas pelos escolásticos medievais. O tema central do ataque de Bacon aos
escolásticos era a “certeza do conhecimento”. Como podemos ter certeza de que nosso
conhecimento é completamente confiável? Para Bacon, o método dedutivo não tem
condições de garantir certeza sobre os fenômenos da natureza e era essa a razão pela qual
os debates entre os filósofos medievais dos séculos que o precederam se prolongavam
interminavelmente sem nunca chegar a conclusões definitivas. Segundo Bacon, a aplicação
do método indutivo puro, baseado na acumulação de resultados experimentais sobre
fenômenos particulares e sem o uso de hipóteses, seria suficiente para se descobrir todas as
verdades naturais, tanto as de caráter universal como as de caráter particular.
A contribuição de Bacon para o desenvolvimento da ciência reside no fato de que
ele identificou a importância da experimentação formal como uma maneira adequada de se
testar hipóteses. Os seus argumentos tornaram-se extremamente influentes entre a
comunidade de cientistas profissionais que se formou e cresceu rapidamente nos trezentos
anos que se seguiram à sua morte em 1626. A vigorosa campanha de Bacon em favor do
método experimental, aliada ao fato de que nos três séculos seguintes a aplicação desse
método realmente levou a um avanço enorme e sem precedentes em todas as ciências, fez
com que o “método experimental” passasse a ser sinônimo de “método científico”. Um
exemplo disso é a famosa frase do físico alemão Max Planck (1858–1947), dita em uma de

1
A respeito da real influência de Aristóteles sobre o pensamento científico, ver o artigo de Martins (2001).

3
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
suas palestras públicas em 1894: “Os experimentos são a única maneira de conhecimento a
nossa disposição. O resto é poesia, imaginação”.

Positivismo
Nos três séculos que se seguiram a Bacon, os filósofos praticamente aceitavam sem
contestação que as leis da ciência são obtidas pelo método indutivo como simples
generalizações derivadas de uma série de observações. Após o exame e a observação de
vários exemplos de um mesmo fenômeno pode-se concluir, por exemplo, que “todos os
cisnes são brancos” ou que “sempre que houver um relâmpago, um trovão virá em
seguida”.
Isso levou à idéia de que o método científico possui três estágios separados de
operação:
1. Descrição;
2. Indução de generalizações;
3. Testes das generalizações por novas observações do mesmo fenômeno (ou talvez
por experimentos) para verificar se elas permanecem válidas.
Essa visão se manteve dominante entre cientistas e filósofos até mais ou menos o
fim do século XIX. Na realidade, ela dominou as ciências sociais e algumas áreas da
biologia até o século XX, sob o nome de positivismo – nome dado pelo filósofo francês
Auguste Comte (1798– 857), um dos fundadores da sociologia – ou positivismo-lógico –
nome dado pelos filósofos e matemáticos do chamado Círculo de Viena (Alvez-Mazzotti e
Gewandsznajder, 2002). Segundo o positivismo-lógico, só podemos saber se algo é
verdadeiro se for possível demonstrá-lo lógica ou empiricamente. Mesmo nos dias de hoje,
para a maioria dos leigos a ciência consiste em descobrir fatos novos sobre o mundo
simplesmente a partir de observações e experimentações guiadas pela lógica.
No entanto, essa concepção essencialmente linear da ciência, segundo a qual os
dados brutos empíricos podem ser transformados de forma metódica em verdades, não
corresponde de fato à maneira como os cientistas conduzem seus trabalhos. Juntar
evidências para delas inferir generalizações talvez fosse a maneira como muitos biólogos e
naturalistas trabalharam até o fim do século XIX, mas a assim chamada Revolução
Científica do século XVII já tinha mostrado uma maneira muito diferente de se fazer
ciência. Essa era a maneira como os físicos trabalhavam. Para os físicos, a chave do
progresso estava em produzir explicações para os fenômenos e não na proliferação de
generalizações descritivas.

Hume
No plano filosófico, uma importante crítica ao método indutivo foi a formulada pelo
filósofo escocês David Hume (1711–1776): a única garantia que temos para o sucesso do
método indutivo é o seu sucesso no passado. Mas isto, por si só, é uma generalização e
como o próximo exemplo pode contrariar essa generalização particular caímos em um
círculo vicioso em que se tenta justificar uma generalização por outra generalização

4
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
igualmente passível de erro. A indução, portanto, não pode ser justificada racionalmente e
qualquer forma de ciência empírica baseada nela é necessariamente falha. A indução sofre
da falta de certeza de conhecimento garantida pelas disciplinas dedutivas da lógica e da
matemática.

Popper
A mais importante tentativa de resolver o problema levantado por Hume foi a feita
pelo filósofo austríaco naturalizado britânico Karl Popper (1902–1994). Uma das
preocupações iniciais de Popper foi a de encontrar alguma maneira de distinguir entre as
afirmações da ciência e as da metafísica (isto é, entre afirmações que tenham alguma
validade sobre os fenômenos do mundo externo e aquelas que sejam puramente abstratas).
Popper reconheceu, aceitando os argumentos de Hume, que as tentativas de justificar a
ciência em termos lógicos fazendo-se referência à indução levam inevitavelmente ao
fracasso. Ele, entretanto, argumentou que os cientistas não trabalham apenas acumulando
observações sobre um dado fenômeno e depois derivando generalizações delas. Eles
também geram hipóteses sobre a natureza do mundo (algumas vezes, mas não sempre, a
partir de generalizações indutivas) e então submetem essas hipóteses a testes rigorosos.
Esses testes, segundo Popper, não constituem tentativas de provar uma teoria particular
(uma forma de indução), mas sim tentativas de refutar essa teoria.
A prova de algo, de acordo com Popper, é uma coisa logicamente impossível.
Podemos apenas refutar com certeza alguma coisa, pelas mesmas razões que Hume já havia
apontado anteriormente: um único contra-exemplo é suficiente para refutar uma
generalização, enquanto que a prova iria exigir a tarefa impossível de se documentar cada
instância do fenômeno em questão (incluindo, presumivelmente, aquelas que ainda não
ocorreram!). Em outras palavras, os experimentos devem ser desenhados para falsificar ou
refutar a hipótese sob teste e não para demonstrar a sua verdade. Esse procedimento,
segundo Popper, rompe o ciclo vicioso do problema da indução. Ao contrário de ser o vilão
da ciência, o contra-exemplo é precisamente aquilo que o cientista deve procurar: ele é a
própria marca registrada da ciência.
O método de refutação de Popper se encaixa no esquema de raciocínio dedutivo e é,
portanto, justificável logicamente. O exemplo a seguir ilustra isso.

Todas as mil peças de metal testadas até agora conduzem eletricidade


A milésima primeira peça de metal testada não conduz eletricidade
________________________________
Portanto, nem todas as peças de metal conduzem eletricidade

Popper usou o termo “falsificação” para descrever o que os cientistas devem


realmente fazer com suas teorias. Para ele, a principal característica de uma teoria científica
é que ela seja falsificável. Tudo o que não for falsificável, para Popper, seria pseudo-

5
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
ciência. Exemplos de teorias pseudo-científicas para Popper seriam a psicanálise e o
marxismo, pois elas podem fornecer explicações para qualquer evidência empírica.
Já um exemplo de teoria científica seria a teoria da relatividade geral de Einstein.
Einstein usou sua teoria para fazer, em 1915, uma previsão bem definida sobre a deflexão
da luz das estrelas distantes pelo campo gravitacional do Sol. Essa previsão foi testada e
verificada experimentalmente pelos astrônomos em 1919, o que resultou em um enorme
sucesso para a teoria da relatividade geral e levou à sua aceitação pela maioria da
comunidade científica na época; mas se a previsão não tivesse concordado com os dados
empíricos a teoria da relatividade geral teria sido rejeitada.

Críticas a Popper
A concepção popperiana de ciência como um processo de falsificação dominou a
filosofia da ciência durante a primeira metade do século XX e ainda se mantém influente
entre os cientistas. No entanto, com o tempo tornou-se claro que os cientistas nem sempre
seguem o método popperiano. Em algumas ocasiões, eles parecem aceitar hipóteses com
base em poucas evidências, ou mesmo em nenhuma; em outras, eles se recusam a rejeitar
hipóteses mesmo quando os testes experimentais mostram que elas estão erradas.
Um exemplo deste último tipo de procedimento é o seguinte: após a descoberta do
planeta Urano pelo astrônomo inglês William Herschel (1738–1822) em 1781, verificou-se
que sua órbita não era compatível com a previsão feita pela teoria da gravitação de Newton.
Apesar disso, os cientistas daquela época não descartaram a teoria da gravitação
newtoniana. Ao contrário, eles usaram a própria teoria de Newton para prever a existência
de outro planeta ainda não visto. Entre 1843 e 1846, os matemáticos John Adams (1819–
1892), na Inglaterra, e Urbain Le Verrier (1811–1877), na França, calcularam
independentemente qual teria que ser a massa e a órbita desse planeta desconhecido para
que a sua atração gravitacional sobre Urano causasse a perturbação necessária para que a
órbita de Urano se ajustasse aos dados observacionais. Com o auxílio dessa previsão, os
astrônomos descobriram logo em seguida o planeta Netuno.
Este exemplo está longe de ser único. Em geral, os cientistas não abandonam suas
teorias assim que ocorrem erros entre suas previsões e os dados empíricos. Eles
normalmente procuram encontrar maneiras de justificar os erros sem precisar descartar as
teorias.
Na realidade, o princípio popperiano de falseabilidade parece ser muito restritivo e,
se fosse adotado rigorosamente, levaria em pouco tempo a uma crise na ciência: os
cientistas rapidamente ficariam sem hipóteses para testar (e rejeitar) simplesmente porque o
seu conhecimento do mundo é muito limitado.
Outra dificuldade com a concepção popperiana é que o processo de falsificação de
teorias parece se basear na visão de que as relações causais no mundo real são simples
processos do tipo “uma causa, um efeito”. Na realidade, porém, muitos fenômenos do
mundo real são influenciados (causados) por mais de uma variável. Se tentássemos testar a
hipótese de que “uma dieta baseada em porções equilibradas dos vários tipos de alimentos

6
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
diminui a incidência de doenças cardiovasculares em uma população”, por exemplo,
poderíamos acabar concluindo que essa hipótese é falsa. E o motivo poderia ser por não
levarmos em consideração outras variáveis além da dieta como, por exemplo, o tipo de vida
que os indivíduos da população levam, se fazem atividades físicas regularmente, se estão
submetidos a estresses constantes, etc. Essas variáveis influenciam na incidência de
doenças cardiovasculares em uma população e poderiam atuar contra o efeito benéfico da
dieta para a saúde.
Popper foi muito influenciado por disciplinas como a física newtoniana em que a
maioria dos fenômenos têm explicações simples baseadas em uma única causa. Por
exemplo, quando uma maçã se solta de sua árvore a força da gravidade faz com que ela caia
em direção à Terra, independentemente de ser dia ou noite, de estar chovendo ou não, ou de
a maça ser vermelha ou verde.
O problema com as situações do mundo real é que existem muitas variáveis para
confundir. Apenas sob condições experimentais cuidadosamente controladas a regra de
falsificação de Popper seria a melhor regra a ser seguida. Mas mesmo assim, ela só
funcionaria se fôssemos oniscientes e pudéssemos identificar todas as variáveis passíveis de
confundir um experimento antes de começá-lo. Obviamente, se tivéssemos tal capacidade
não haveria necessidade de fazer o experimento (Dunbar, 1996).

Kuhn
Uma proposta de solução para o problema da concepção popperiana de ciência foi
feita pelo norte-americano Thomas Kuhn (1922–1996), um físico que virou historiador da
ciência. Kuhn estava interessado em estudar as causas que levaram os físicos do fim do
século XIX e início do século XX a se recusar a abandonar a chamada física clássica
(basicamente, mecânica newtoniana e teoria eletromagnética de Maxwell), mesmo com o
acúmulo de evidências contra ela. A partir de um estudo detalhado da história da física, ele
concluiu que a ciência caminha de maneira espasmódica, aos arrancos. Grandes novas
idéias dão origem ao que ele chamou de “revoluções científicas”, quando todos os membros
ativos de uma disciplina de repente concordam sobre uma nova abordagem (ou
“paradigma”). Depois que tal “mudança de paradigma” ocorre, todo mundo passa a
trabalhar dentro do que Kuhn chamou de “ciência normal”.
Durante um período de ciência normal, segundo Kuhn, a atividade dos cientistas é
bastante conservadora: eles desenvolvem e estendem as implicações do novo paradigma,
testam as suas diversas implicações e procuram acomodar os fatos experimentais
conhecidos a ele. O objetivo desse período é determinar as “condições de fronteira” do
novo paradigma – os limites de sua aplicabilidade. Com o tempo, no entanto, as previsões
feitas pela nova teoria começarão a ser falseadas. No início, os cientistas não irão
abandonar imediatamente a teoria. Ao contrário, eles vão procurar defendê-la invocando
hipóteses auxiliares ad hoc que expliquem porque a teoria fornece previsões diferentes das
observações empíricas justamente nas circunstâncias em que essas observações são feitas.
Eventualmente, porém, o peso das previsões falsas torna-se tão grande que a teoria tem que

7
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
ser abandonada. Neste ponto, algum cientista sugeriria um novo paradigma, uma revolução
científica ocorreria e todo o ciclo começaria novamente.
Um paradigma, para Kuhn, consiste de duas componentes principais:
• Um conjunto de pressupostos teóricos fundamentais que todos os membros da
comunidade aceitam por um dado período;
• Um conjunto de “exemplares” ou problemas científicos particulares que foram
resolvidos por esses pressupostos teóricos e que aparecem nos livros-texto da
disciplina.
Um paradigma, no entanto, é mais do que isso. Ele é toda uma visão de mundo
compartilhada. Quando os cientistas compartilham um paradigma, eles também concordam
sobre quais são os problemas pertinentes da sua área que devem ser atacados, quais os
métodos que devem ser usados, como devem ser as soluções aceitáveis desses problemas,
etc.

Críticas a Kuhn
A descrição de Kuhn de como os cientistas trabalham nada diz sobre se uma teoria
ou paradigma é correto ou incorreto. Ela meramente diz que os cientistas, como um grupo,
tendem a aceitar ou rejeitar uma nova teoria. Eles podem fazer isso com base no argumento
de que a nova teoria explica as evidências disponíveis melhor que a teoria anterior, ou com
base em alguma razão puramente arbitrária (como crenças políticas ou filosóficas, por
exemplo).
A possibilidade de que uma nova teoria científica seja aceita por razões arbitrárias
leva à conclusão de que as teorias científicas são produto da cultura na qual os cientistas
estão inseridos (relativismo cultural) e não têm qualquer validade externa real.

Kuhn e Popper
A concepção de Kuhn sobre ciência parece estar em contradição direta com a de
Popper e muitos filósofos as vêem como pólos opostos (Rorty, 2000). Popper propõe um
modelo racional, estático para descrever uma mudança de teoria: a evolução da ciência
acontece por refutações sucessivas (pelo método da falsificação) de hipóteses científicas.
Consequentemente, para Popper a ciência é o resultado de um crescimento cumulativo de
hipóteses científicas não refutadas, com a ressalva de que qualquer teoria atualmente não
refutada poderá ser refutada no futuro. O progresso da ciência, segundo Popper, pode ser
entendido como decorrente da aplicação do método dedutivo visando refutar logicamente
uma teoria e apenas esse método pode servir para provocar qualquer escolha ou mudança
de teoria.
A visão de Kuhn, por outro lado, é a de que a ciência deve ser entendida como uma
entidade dinâmica, histórica e social, cujo progresso está fadado a ocorrer de acordo com as
forças psico-sociais internas da ciência. Como uma prática fundamentalmente humana, a
ciência deve ser entendida em seus próprios termos e como o produto de mentes (muitas
vezes irracionais) que compartilham uma comunidade inserida em um contexto histórico

8
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
particular. É o contexto, entendido de maneira ampla, que governa o verdadeiro progresso
da ciência e não a “lógica” do seu método, como Popper propõe.
A visão popperiana corresponde a uma prescrição do que os cientistas deveriam
fazer se quiserem fazer a coisa certa; a visão kuhniana, por outro lado, é mais uma
constatação sobre o que os cientistas fazem de fato na prática.

Lakatos
Muitos filósofos se preocuparam em tentar compatibilizar a visão kuhniana com a
idéia de objetividade e racionalidade da ciência pretendida por Popper. Um possível
argumento para tal consiste na observação de que uma mudança de paradigma kuhniano
somente é feita depois que os cientistas testam exaustivamente o antigo paradigma a ponto
de destruí-lo e de conseguirem encontrar um paradigma melhor para substituí-lo.
Esta é precisamente a interpretação feita pelo filósofo húngaro Imre Lakatos (1922–
1974). Segundo Lakatos, os cientistas parecem se comportar de acordo com a visão
popperiana em algumas ocasiões e de acordo com a visão kuhniana em outras. Para ele, a
aparente contradição entre as duas visões surge apenas porque os filósofos da ciência
falharam em reconhecer que elas envolvem dois tipos radicalmente diferentes de teorias. Os
cientistas, Lakatos sugere, trabalham em um mundo multi-camadas em que algumas teorias
funcionam de uma maneira programática enquanto que outras teorias estão mais voltadas
para os detalhes de como o próprio programa funciona.
Um “programa de pesquisa” fornece aos cientistas as razões para fazer um
experimento particular ou olhar o mundo de uma maneira particular: ele se comporta como
um paradigma kuhniano. Dentro desse programa, os cientistas geram hipóteses subsidiárias
que especificam como o programa funciona na prática: são estas que os cientistas testam
em detalhe e aceitam ou rejeitam segundo o esquema popperiano.
A teoria de Darwin da evolução por seleção natural, por exemplo, constitui um
exemplo de programa de pesquisa para os biólogos: ela os encoraja a interpretar suas
observações de certa maneira e sugere hipóteses particulares para serem testadas. As
hipóteses subsidiárias podem ou não ser corretas, mas suas refutações não são suficientes
para implicar que o arcabouço teórico do programa de pesquisa esteja errado. Elas apenas
nos dizem que o arcabouço teórico não produz seus efeitos exatamente da maneira como se
supunha.
Por exemplo, os biólogos e antropólogos utilizam os registros fósseis disponíveis
para construir teorias sobre quais teriam sido os antepassados dos humanos modernos e
quando o nosso ramo evolutivo teria se separado do de outras espécies. De vez em quando,
devido a novos achados fósseis ou a descobertas da biologia molecular, a árvore evolutiva
do ser humano tem que ser refeita, mas isso não implica que a teoria da evolução tenha que
ser descartada. Ao contrário da crença popular, a teoria da evolução não pode ser rejeitada
por evidências do registro fóssil. O registro fóssil pode apenas nos contar como a evolução
ocorreu e que rotas particulares ela tomou. A rejeição da teoria da evolução só pode vir de

9
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
estudos sobre os mecanismos da evolução (por exemplo, a seleção natural) e isso só pode
ser feito com espécies vivas (Dunbar, 1996).
Lakatos também procurou explicar o porquê da resistência dos cientistas em
abandonar suas teorias argumentando que não há sentido em se rejeitar um programa de
pesquisa apenas porque existem evidências contra ele. Sem um programa de pesquisa não
podemos fazer perguntas ou propor experimentos. Portanto, não há porque abandonar um
programa de pesquisa a menos que exista um melhor para substituí-lo. É melhor continuar
usando o velho programa de pesquisa, mesmo desacreditado, até que um novo programa de
pesquisa apareça. De fato, a melhor maneira de encontrar um novo programa de pesquisa é
continuar testando hipóteses geradas pelo velho programa. Fazendo isso, temos pelo menos
a chance de descobrir algum fato crucial que possa nos levar ao novo programa de
pesquisa.

Modelo hipotético-dedutivo
Independentemente das diferenças entre as concepções sobre o método científico
dos filósofos da ciência do século XX, os trabalhos desses filósofos levaram a mudanças
importantes na maneira de se encarar a ciência em relação à visão empirista dos positivistas
do século XIX. Em particular, eles produziram uma reinterpretação do papel dos modelos e
teorias na ciência e de sua relação com os dados empíricos.
Como já visto acima, os filósofos dos séculos XVIII a XIX interpretavam essa
relação segundo o esquema linear: observações → hipóteses → testes. Neste esquema, o
cientista acumula observações até que tenha garantias suficientes para fazer uma
generalização (uma hipótese) que é testada com novas observações.
A mudança de visão que ocorreu durante o século XX levou a uma concepção
circular de ciência ao invés de linear. Ela envolve dois mundos bem diferentes, mas
paralelos (o mundo teórico, em que reside o programa de pesquisa ou o paradigma, e o
mundo empírico das observações) que estão ligados via um processo de retroalimentação
baseado nos testes experimentais de hipóteses (veja o esquema abaixo).

Essa concepção sobre como a ciência funciona é geralmente conhecida como


“modelo hipotético-dedutivo”, um nome dado pelo filósofo alemão Carl Hempel (1905–
1997). Segundo este esquema, as teorias são essencialmente constructos ou modelos de

10
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
como o mundo funciona. O cientista trabalha dentro de um mundo estritamente teórico
deduzindo consequências que decorrem das hipóteses e premissas do modelo. Em seguida,
ele testa a validade do modelo comparando suas previsões com os dados do mundo real.
Enquanto o modelo produzir previsões que concordam com o que ele observa e mede, o
cientista continua a desenvolvê-lo. Mas quando o modelo falha em prever corretamente os
dados empíricos, o cientista altera o modelo ou procura um melhor. A ciência, portanto,
funciona segundo um processo de retroalimentação: ela aprende com seus próprios erros.
Na realidade, ela funciona de uma maneira genuinamente darwiniana: apenas as teorias que
têm sucesso sobrevivem (Dunbar, 1996).

Feyerabend
Até o momento, nos concentramos nas visões racionalistas sobre a ciência. Não
seria correto terminar esta breve descrição histórica sem mencionar ao menos uma das mais
importantes visões relativistas sobre o método científico ao lado da de Kuhn. De maneira
geral, a visão relativista da ciência sustenta que a avaliação e o prestígio de uma teoria
científica, de um programa de pesquisa ou de uma hipótese é determinada por fatores não
objetivos como cultura, linguagem, política, momento histórico, crenças pessoais,
nacionalismo, gênero, raça, classe social, etc (Alves-Mazzotti e Gewandsznajder, 2002).
Um filósofo que levou a visão relativista até seus extremos foi o austríaco
naturalizado norte-americano Paul Feyerabend (1924–1994). As visões de Feyerabend são
interessantes porque são contrárias a praticamente todas as principais teorias sobre a
filosofia da ciência. Segundo Feyerabend, a filosofia da ciência não tem qualquer valor para
os cientistas porque se preocupa com problemas de lógica e significado que não têm
importância para as vidas profissionais da maioria dos cientistas. Para ele, a ciência é uma
atividade humana, tão complexa e problemática como qualquer outra. Na realidade, ele
argumenta que a ciência como a praticamos tem todas as características da religião: ela
possui um conjunto padrão de crenças às quais seus praticantes devem aderir, caso
contrário caem no ostracismo e são excomungados.
Em função disso, Feyerabend adotou uma postura contra o método científico. Para
ele, não existe um método único para a ciência ou para definir quem é um bom cientista. A
boa ciência é aquela que funciona em um dado momento da história para fazer avançar o
nosso conhecimento, e mesmo a própria definição do que é avançar o conhecimento é
relativa (Smolin, 2008).
Uma crítica importante de Feyerabend diz respeito à maneira como os cientistas
escolhem suas hipóteses. Feyerabend argumenta que os cientistas tendem a rejeitar
prematuramente teorias potencialmente interessantes antes de testá-las e conhecê-las
adequadamente, simplesmente porque elas não se coadunam com as idéias correntes sobre
o mundo. Ao invés de derivar novas hipóteses das teorias científicas atuais, ele sugere que
os cientistas deveriam considerar quaisquer alternativas que lhes ocorram, mesmo que
pareçam extravagantes à primeira vista. Neste sentido, Feyerabend advoga o que ele chama
de “anarquia epistemológica”.

11
5910224 – Evolução dos Conceitos da Física – FFCLRP – USP – Prof. Antônio C. Roque
O Método Científico
A título de conclusão
A descrição feita acima contempla apenas as idéias centrais dos principais filósofos
da ciência até o último quarto do século XX. Para se aprofundar mais no pensamento desses
filósofos, a melhor maneira é ler seus livros diretamente (existem alguns traduzidos para o
português). Também recomenda-se a leitura de textos que apresentem e discutam as
principais correntes contemporâneas sobre a filosofia da ciência, como, por exemplo, a
abordagem cognitiva, o bayesianismo, a sociologia do conhecimento, o empirismo de van
Fraassen, etc (Alvez-Mazzotti e Gewandsznajder, 2002).
Espera-se que esse tipo de leitura mais filosófica, levada em paralelo com as leituras
mais técnicas das áreas científicas especializadas, possa ajudar futuros cientistas
profissionais a situar e compreender melhor a natureza do trabalho científico e a
desenvolver uma visão crítica sobre a ciência enquanto atividade humana.

Referências
1. Alves-Mazzotti, A. J.; Gewandsznajder, F., O Método nas Ciências Naturais e
Sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo-SP: Pioneira Thomson
Learning, 2002.
2. Chalmers, A. F., O Que É Ciência Afinal? São Paulo-SP, Brasiliense, 1983.
3. Dunbar, R. The Trouble with Science. Cambridge, MA: Harvard University Press,
1996.
4. Lindberg, D. C. The Beginnings of Western Science: the European scientific
tradition in philosophical, religious, and institutional context, 600 B.C. to A.D.
1450. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
5. Martins, R. A. Como não escrever sobre história da física – um manifesto
historiográfico. Rev. Bras. Ensino Física, 23:113-129, 2001.
6. Okasha, S. Philosophy of Science: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford
University Press, 2002.
7. Rorty, R. Kuhn, In: Newton-Smith, W. H. (Ed.), A Companion to the Philosophy of
Science Oxford: Blackwell Publishers, 2000.
8. Smolin, L. The Trouble with Physics. London: Penguin, 2008.

Para consultas via internet


• Philosophy of Science Portal: http://en.wikipedia.org/wiki/Portal:Scientific_method
• History and Philosophy of Science: http://www.galilean-library.org/hps.php

12

Você também pode gostar