OrlandoBrandaoMezaUcella DISSERT
OrlandoBrandaoMezaUcella DISSERT
OrlandoBrandaoMezaUcella DISSERT
NATAL/RN
2014
ORLANDO BRANDÃO MEZA UCELLA
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Estudos da Linguagem da
Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre em
Literatura Comparada.
Orientadora:
Tânia Maria de Araújo Lima
NATAL/RN
2014
ORLANDO BRANDÃO MEZA UCELLA
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Tânia Maria de Araújo Lima (Orientadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Lauro Wanderley Meller (Examinador Interno)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
_______________________________________________________________
Prof. Dr. André Monteiro Guimarães Dias Pires (Examinador Externo)
Universidade Federal de Juiz de Fora
eu vim com a nação zumbi
ao seu ouvido falar
quero ver a poeira subir
e muita fumaça no ar
cheguei com meu universo
e aterriso no seu pensamento
trago as luzes dos postes nos olhos
rios e pontes no coração
Rio Grande do Norte em baixo dos pés
e minha mente na imensidão
(adaptado de SCIENCE, 1996)
AGRADECIMENTOS
This work discusses about the relationship between literature and song. In this
sense, in the music scene of Chico Science & Nação Zumbi suggest an
esthetical freedom, approaching songs to oral literature. Linked to that, this
research aims to analyze three songs from the Afrociberdelia (1996) album,
composed by Chico Science & Nação Zumbi, namely: “Mateus Enter”, “O
Cidadão do Mundo” and “Etnia” (the three first songs from this disco). This
analyzis aim to clarify how those songs untie or loose the knots of colonial
segregation (MIGNOLO, 2003). For that, we dialogue with a comprehension of
“creolezation” as used by Glissant (2011; 2005), that studies hybridism from a
post-colonial perspective.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 10
FAIXA 1: Crioulizações em “Mateus Enter” ............................................................ 30
FAIXA 2: As narrativas em “O cidadão do mundo”................................................ 58
Faixa 2.1 – Sobre os personagens: Mateus, pivete e capitão ............................ 58
Faixa 2.2 – Considerações sobre errâncias e crioulizações em “O Cidadão .... 62
do Mundo” ............................................................................................................. 62
Faixa 2.3 – Diálogos de “O Cidadão do Mundo” com a errância ....................... 66
FAIXA 3: Somos todos juntos uma crioulização .................................................... 87
P’REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 108
REFERÊNCIAS CONSULTADAS (geral) ................................................................. 111
REFERÊNCIA CONSULTADA (teses e dissertações sobre Chico Science e o
Mangue Beat)........................................................................................................ 113
GAVETA DE DISCOS .............................................................................................. 115
ANEXOS .................................................................................................................. 117
Letras das canções analisadas .......................................................................... 117
Textos do encarte................................................................................................ 119
Partituras ............................................................................................................. 122
[ENTER]:
Um passo à frente
E você não está mais no mesmo lugar
(SCIENCE, 1996).
INTRODUÇÃO
10
provocar, para depois seguirmos com as análises propostas. Mais adiante,
esclareceremos a perspectiva tomada neste trabalho, considerando as leituras
feitas ao longo desta pesquisa1, e os seus objetivos.
A aproximação entre essas duas artes existe desde os cantos da Pré-
História à música midiatizada, tanto na cultura de matriz africana (com os
griots, os rappers etc.), como na cultura de matriz eurocêntrica (com os
rapisodos ou aedos, trovadores etc.). Na cultura brasileira, a canção tem uma
importância significativa na construção da identidade, sobretudo quando
falamos na canção popular brasileira do final século XIX até o século XXI, e no
que diz respeito à forte influência da sonoridade afro-brasileira, como aponta o
estudo de Muniz Sodré (1998).
Esse vínculo com a tradição oral pode ser visto no Mali. Segundo a
tradição bambara do Komo, as canções rituais e a fala são a exteriorização da
cadência do ritmo, tendo o poder de agir sobre os espíritos “porque sua
harmonia cria movimentos, movimentos que geram forças, forças que agem
sobre os espíritos que são, por sua vez, as potências da ação” (HAMPATÉ-BÂ,
2010, p. 186).
Segundo o autor, a palavra falada tem uma força simbólica mais
expressiva, sendo ela que “tira do sagrado o seu poder criador e operativo”
(idem). Portanto, a fala tem o poder de agir sobre a vida, podendo operar sobre
a cura ou não das pessoas. A fala, nesse sentido, “encontra-se em relação
direta com a conservação ou a ruptura da harmonia no homem e no mundo
que o cerca” (idem). É por esse motivo que “a maior parte das sociedades orais
tradicionais considera a mentira uma verdadeira lepra moral” (idem). Na
introdução do livro História Geral da África – Metodologia e Pré-História da
11
África (2010, p. XLII), Ki-Zerbo afirma que “a música encontra-se de tal modo
integrada à tradição que algumas narrativas somente podem ser transmitidas
sob a forma cantada”.
Para entendermos melhor como essa relação entre música e literatura
ocorre nesse contexto, basta olharmos para os griots ou dieli, espécie de poeta
errantes que vivia andando de comunidade em comunidade cantado/contando
histórias, acompanhado de instrumentos como o korá, o tantã etc. Nesse
contexto, a música nunca é percebida passivamente, autonomamente, de
forma que somente o intérprete vivencie a sua execução. Na cultura africana,
ela “é executada por todo o grupo” (KI-ZERBO, 2010, p. 392). Além disso, sua
percepção é baseada na trilogia canto-música-dança, em que o ouvinte é
convidado “a uma interpretação sintética, na qual a linguística, a história, a
botânica, a psicologia social, a psicologia, a fisiologia, a psicanálise, a religião,
etc., têm todas algo a dizer” (HAMPATÉ-BÂ, 2010, p. 392).
Atualmente, já existem estudos que apontam para esse diálogo entre
literatura e música na cultura africana, como, por exemplo: a dissertação
Letras, Sons E Ecos: A musicalidade na Poesia de José Craveirinha (2012 –
UFRJ), de Michelle Chagas. Nesse trabalho, a autora analisa a musicalidade
dos poemas do escritor moçambicano. Além de estudos brasileiros, há também
estudos africanos nesse viés, como a dissertação: O Som na Palavra, a Música
na Linguagem: A Música na Literatura Cabo-verdiana (2010), de Dário Osvaldo
Dias Furtado, da Universidade de Cabo Verde, entre tantas outras pesquisas
relacionadas.
Diferentemente da cultura africana, a cultural ocidental tinha outras
terminologias e outra noção dessa relação entre texto escrito e cantado. Na
Grécia Antiga, os aedoi e os rapsoidoí, acompanhados do phorminx, entoavam
seus versos. Esse tipo de poema chama-se poema lírico. A ponte entre
literatura e música se fazia mesmo dentro dos enredos das narrativas, como é
o caso de Orfeu. Ele era “o músico e o poeta que, com seu canto, amansava as
feras, animava as pedras, fazia mover árvores e pacificava homens, é símbolo
mítico desta profunda união das duas artes” (SILVA, 1990, p. 173). Outro
exemplo disso são as obras de Homero, Ilíada e Odisseia, as quais são
divididas em cantos. Esta última obra começa com o pedido:
12
Canta para mim, ó musa, o varão industrioso que, depois de
haver saqueado a cidadela sagrada de Tróade, vagueou
errante por inúmeras regiões, visitou cidades e conheceu o
espírito de tantos homens (HOMERO apud D’ ONOFRIO,
1990).
14
Movimento Mangue Bit3 ou Manifesto caranguejos com cérebro, escrito pelo
vocalista do Mundo Livre S/A, Fred ZeroQuatro. O texto do manifesto foi escrito
inicialmente como release para um jornal da época, depois veio a ideia de
transformá-lo em manifesto e, mais adiante, de inseri-lo no encarte do Da lama
ao caos (1994).
A “parabólica enfiada na lama” é anunciada como a imagem-símbolo do
movimento mangue. Estar antenado, nesse contexto, era estar atualizado. A
antena parabólica enfiada na lama, por sua vez, sugere-nos a recepção de
sinal para um ambiente movediço, para um espaço de passagem. Trazendo
essa leitura para a realidade do lugar onde foi produzido, Recife, nas últimas
décadas do século XX, podemos fazer a relação dessa imagem-símbolo com a
expansão urbana da cidade e a destruição do mangue.
Não é difícil de perceber que essa proposta musical ecoa como uma
espécie de antropofagia tropicalista, envolvendo a cultura tradicional e a
moderna. Nas palavras do pesquisador Celso Faveretto, em Tropicália:
Alegoria, Alegria (2000, p. 32), a tropicália incorporava elementos estéticos
distintos, ressignificando a compreensão de cultura e de canção popular,
“segundo a vivência do cosmopolitismo dos processos artísticos, e a
sensibilidade pelas coisas do Brasil”. Esse eco tropicalista pode ser observado
na primeira canção do disco Da lama ao caos (1994), intitulada de “Monólogo
ao pé do ouvido”:
Modernizar o passado
É uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui?
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrôgancia, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios os que destroem o poder
Bravio da humanidade
Viva Zapata!
Viva Sandino!
3 Há três versões, “Mangue bit”, “Mangue beat” ou “Manguebeat”. Inicialmente, foi escrita com
“bit”, expressão norte-americana para indicar a menor unidade de medida de informação
virtual. Em seguida, foi escrita com “beat”, palavra em inglês que significa “batida”, o que
parece ter sido um engano da impressa ao divulgar um evento, mas que acabou sendo mais
usada que a primeira.
15
Viva Zumbi
Antônio Conselheiro
Todos os Panteras Negras
Lampião sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza eles também cantaram um dia.
(SCIENCE, 1994).
4O conceito de rizoma é de Félix Guattari e Gilles Deleuze, e está no livro Mil Platôs (volume
1). O rizoma é um sistema epistemológico que nega uma centralidade, uma hierarquia. Esse
conceito se baseia nas raízes de algumas plantas.
16
vozes, os ritmos, as melodias que concernem às relações estéticas. Nesse
caminho, o autor propõe uma forma de leitura do poema ou de modelo de
análise, visando os elementos da música e do poema:
17
a cultura do outro, ao invés de anular, ele a incorpora (no próximo capítulo,
voltaremos a falar dessa incorporação rizomática do outro).
Por esse motivo, podemos dizer que a Tropicália está em sintonia com o
discurso oswaldiano. Celso Faveretto (2000, p. 25) apropria-se e articula essa
proposta antropofágica para fazer uma leitura da canção, no Tropicalismo:
Mais adiante, esse autor fala que a Tropicália assumiu “as contradições
da modernização sem escamotear as ambiguidades implícitas em qualquer
tomada de posição” (idem). Podemos dizer que uma dessas contradições está
relacionada ao público consumidor desse tipo de canção, que em sua maioria
eram universitários, “tornando-se difícil reconhecer uma postura política
participante ou certo lirismo, que davam a tônica à maior parte das canções da
época” (FAVARETTO, 2000, p. 19-20).
Segundo João Batista de Morais Neto, em Caetano Veloso e o lugar
mestiço da canção (2009, p. 37), “a ideia de devoração é de fundamental
importância à compreensão da cultura brasileira”. Disseminada pelo poeta e
ensaísta Oswald de Andrade, na década de 1920, “essa ideia recupera o ato
dos tupinambás que consistia no ritual de comer-devorar o outro para assimilar
sua potencial energia”. Esse ritual não só pertencia aos costumes dos índios
como também aos africanos. Nas Américas do século XVII, essa prática torna-
se um dos argumentos principais para a coisificação do africano e, desse
modo, legitimação de sua escravidão e comercialização (CLARO, 2012).
A antropofagia descontrói pressupostos da cultura ocidental,
relativizando-os e abrindo espaço para a valorização das culturas periféricas
(NETO, 2009). Nesse ponto, os tropicalistas se aproximavam da cena musical
Manguebeat. Essa busca por diálogos culturais sinaliza, por meio das canções,
uma identidade movediça. A diferença, nas palavras de Caetano Veloso, é que
“o Manguebeat pegou algumas das ideias mais interessantes do Tropicalismo
18
em vez de deitar na sopa do comercialismo que o Tropicalismo também
louvava"5.
Já em outro momento, atravessado por questões socioculturais ligadas à
ditadura militar, o eu-lírico se torna eu-coletivo. No embrulho da contracultura,
poemas e canções lutam em defesa dos ideais preconcebidos durante o Maio
de 68, mas também das ideias anárquicas do poeta antropofágico, como bem
sinaliza o poema “Papo de índio”, de Chacal:
A começar pelo título, “Papo de índio”, esse poema traz uma espécie de
conversa entre índios, ou entre o índio e outro interlocutor que não é
especificado, que pode ser o colonizador. Esse índio conta como foi o encontro
com o colonizador: “veiu uns ômi de saia preta/ cheiu di caixinha e pó branco”.
Também nesse poema, a ênfase na temática antropofágica configura-se como
uma inversão, ou melhor, uma descentralização da história da colonização
brasileira. É a história contada a partir da voz do oprimido, neste caso, o índio.
Nesse poema, fica evidente a temática antropofágica: “aí eles insistiu e nós
comeu eles”; e a oralidade, como: “veiu”, “ômi”, “cheiu”, entre outros exemplos.
Além dos movimentos tratados até o momento, podemos relacionar o
Manguebeat com mais dois movimentos: a Generation Beat e o punk. O
primeiro iniciou-se por volta da década de 1950, nos Estados Unidos, e foi
encabeçado pelo poeta Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Michael McClure e
outros. Conhecida por ser um movimento literário e por ser precursora da
contracultura e dos hippies nas décadas seguintes, a geração Beat também
buscou afinar as relações entre literatura e música. Claudio Willer, estudioso da
Geração Beat, falando dessa afinidade, afirmou que “poesia e música sempre
caminharam juntas. Mas em nenhum movimento literário da modernidade, ou
5
http://musica.terra.com.br/noticias/0,,OI309717-EI1267,00-
Caetano+diz+que+todos+devem+algo+ao+Tropicalismo.html
19
desde o romantismo, a ligação foi íntima. A beat foi sonora. Tem discografia, e
não só bibliografia” (WILLER, 2010, p. 13).
A relação entre o punk e o Manguebeat é apontada pela pesquisadora
Carolina Leão (2002, p. 14): “a ligação com o movimento punk é emblemática
na construção de uma estética mangue por motivos que incluem a política da
juventude, a cultura de consumo e a moda”. Além disso, outra inspiração foi a
produção musical punk da década de 1970, que foi arquitetada por Malcolm
Mclaren. As estratégias de marketing também organizadas por esse produtor
fizeram com que o punk fosse mundialmente conhecido.
As duas figuras mais importantes para a construção da cena musical
Manguebeat, Chico Science e Fred 04, ouviam e faziam um som, no início de
suas carreiras, sob a influência do punk. Eles foram os principais responsáveis
pela criação e pela divulgação da estética mangue, mas Chico Science e Fred
04 não tinham muitos recursos.
***
20
e 14 anos, Chico começou a se interessar por música. Com a venda de
caranguejo, que catavam nos mangues de Olinda (TELES, 2003), ele e seus
amigos conseguiam dinheiro para ir às festas.
Por volta da década de 1980, “surgiu, nos Estados Unidos, uma nova
forma de música, o rap, abreviação de rhythm and poetry”, ou em português,
ritmo e poesia” (TELES, 2003, p. 13). Chico França (ainda não era chamado de
Chico Science) começou a se interessar pelo fenômeno cultural que essa
música desencadeou, pela maneira de vestir, pela dança, pela fala, pela forma
de andar etc. Os artistas envolvidos, os rappers, eram porta-vozes das
minorias, dos excluídos.
Quando Chico começa a trabalhar, ele passa a adquirir LPs de Public
Enemy, L.L Cool J, Afrika Bambaata. Não à toa, a Zulu Nation – Nação Zulu –,
nome do grupo que tocava com Bambaata, influenciou o batismo de Nação
Zumbi, a banda que estava para nascer. É importante lembrar que antes de o
Nação Zumbi se formar, Chico Science cantou em duas bandas: Orla Orbe, em
1987, e, pouco tempo depois, na Loustal6, em 1989, com: Chico Science no
vocal, Lúcio Maia na guitarra e Dengue no baixo. Na primeira e na segunda
bandas, Chico Science já buscava sintonizar sua musicalidade com a cultura
negra norte-americana, especialmente com o rap.
Em 1991, acontece um encontro importante para a cena musical
Manguebeat que faz com que Chico Science conheça o Lamento Negro. Esse
encontro aconteceu quando Science trabalhava na EMPREL (Empresa de
Processamento de Dados da Prefeitura):
6
Menção ao quadrinista francês Jacques Loustal, que o grupo admirava.
21
nesse ano que surgiria pela primeira vez, publicamente, a expressão “mangue”
para se referir a um estilo musical (TELES, 2012). A expressão apareceu em
uma matéria, cujo título era “Sons negros no Espaço Oásis”, publicada em 1º
de junho de 1991, no Jornal Commercio. Nessa matéria Chico Science fala
sobre a proposta do grupo e sobre o que eles estão chamando de sonoridade
mangue:
7
Faz-se necessário destacar que apesar das divergências no que diz respeito à escrita
(manguebit ou manguebeat), é certo que quem decidiu batizar de “mangue” essa proposta
estética foi Chico Science (ver: Teles, 1997, p. 258-260).
22
que ele trabalhasse em alguns jornais da época e nas emissoras TV Jornal e
SBT. A amizade de Fred com Chico acabou por contribuir para a divulgação da
cena musical Mangue, pois Fred acabou ajudando em publicações como a do
texto “Sons negros no Espaço Oásis”: “então jornalista da TV Jornal, [...]
contribuiu para que ele não amargasse um chá de banco, ou uma raquítica
notinha” (TELES, 2012, p. 263).
Podemos perceber sua contribuição musical na composição de canções
como “mangue bit”, primeira canção do disco inaugural da Mundo Livre S/A,
“Samba esquema Noise”, em 1994; ou em canções como “Rio Pontes &
Overdrives”, do Da lama ao caos (1994). Apesar de sua banda ter começado
antes da formação da Nação Zumbi, seu primeiro álbum só foi lançado no
mesmo ano do Da lama ao caos, de CSNZ, em 1994. Os integrantes da Mundo
Livre S/A eram: Fred 04 (cavaquinho, guitarra e vocal), Areia (baixo), Xef Tony
(bateria), Léo D (teclados), Tom Rocha (percussão) e Otto (percussão, ex-
integrante).
Tanto Mundo Livre S/A como Chico Science & Nação Zumbi começaram
a tocar em espaços como “Misty” e “Arte Viva”. No começo da carreira, o
público estranhava um pouco o que se estava fazendo. Além dos músicos,
houve um grupo de amigos que contribuíam para que a cena musical
acontecesse, entre os quais: H.D. Mabuse e Helder Aragão (DJ Dolores), que
ajudaram na arte gráfica e vídeo; e Renato L. e Xico Sá, que ajudaram no
jornalismo musical.
O primeiro show a reunir a turma do Manguebeat foi “Viagem ao Centro
do Mangue”, em 1993. Nesse show, apresentaram-se as bandas Mundo Livre
S/A, Loustal e Chico Science & Lamento Negro, além de toda a diversidade de
ritmos “representada pelo mix de punk, hip hop e cultura popular que
posteriormente seria classificada como manguebeat ou mangue bit, ambos
relacionados com o conceito de movimento e batida” (LEÃO, 2002, p. 17-18).
Essas duas bandas, Mundo Livre S/A e CSNZ, fizeram com que o
Manguebeat estendesse suas raízes para fora do nordeste e até mesmo do
Brasil. É interessante observar que ao fazer isso eles desfazem a imagem
estereotipada da música nordestina que foi reforçada pelo movimento Armorial
de Ariano Suassuna, cuja proposta era a retomada, “no âmbito erudito, de
23
elementos artístico-culturais (musicais, visuais, orais, plásticos e simbólicos)
mantidos quase inertes no sertão árido do Nordeste” (VARGAS, 2007, p. 38).
O que interessava para Ariano era a música que salvaguardasse as
manifestações culturais tradicionais. Enquanto a música desse movimento se
preocupava com uma arte erudita brasileira a partir das raízes populares, o
Manguebeat mudou o foco e ainda acrescentou outros elementos, oferecendo
à cultura afro-brasileira lugar de destaque.
Desse modo, escolhemos como objeto de estudo algumas canções do
disco Afrociberdelia (1996), do grupo Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ)8.
Nesse período, a banda era formada por Chico Science, na voz; Lúcio Maia, na
guitarra; Dengue, no baixo; Pupillo, na bateria; Toca Ogan, nos atabaques; e,
por fim, Jorge dü Peixe, Gira e Gilmar Bola 8, nas alfaias.
Esse álbum é composto por 23 canções, das quais analisaremos apenas
as três primeiras: “Mateus Enter”, “O cidadão do Mundo” e “Etnia”. Para tal
escolha, utilizamos um critério: o da ordem em que as canções aparecem no
álbum, pois, geralmente, um álbum segue uma organização que não é
aleatória, por mais que essa ordem esteja fundada numa perspectiva
mercadológica. Por esse motivo, optamos pelas três primeiras.
Se as letras das canções estudadas são escritas por uma pessoa, os
arranjos musicais possuem mais de um autor: na primeira canção, a autoria é
de Chico Science & Nação Zumbi. Na segunda, são de Chico Science & Nação
Zumbi e Eduardo Bidlovski, e na terceira são de Chico Science e Lúcio Maia. O
que nos interessa observar aqui é a presença de Chico Science nas
composições tanto das letras como dos arranjos das canções escolhidas; e a
abertura para uma construção coletiva do texto poético musical, próprio do
gênero canção.
Por se tratar de canções populares, o elemento sonoro recorre a
repetições e variações de células rítmicas9. Como a melodia, geralmente,
conduz o encadeamento desse tipo de canção, diz-se que ela é o núcleo
responsável pela identidade da canção (TATIT, 1986, p. 1). Logo,
perceberemos que a estrutura melódica das canções de CSNZ se aproximam
8
O nome Chico Science separado da banda, Nação Zumbi, pode ser lido tanto como uma
confirmação da valorização da voz e da letra no contexto da canção popular, como também um
destaque ao principal compositor do grupo.
9 A célula rítmica é a menor parte (rítmica e/ou melódica) de uma ideia musical.
24
do repente e do rap. Sendo assim, decidimos por fazer a transcrição completa
da voz do cantor, para que possam ficar claros alguns pontos que iremos tratar.
Nessa perspectiva de dar mais clareza e contribuir com outras pesquisas,
disponibilizamos, em anexo, a transcrição da cifra da guitarra na primeira
música, e, além disso, na segunda e na terceira canções, a partitura do baixo,
da bateria e da alfaia.
Antes de ser uma exaltação da cultura erudita, a partitura dá acesso à
obra por meio de uma linguagem escrita já consagrada. Além disso, a partitura
permite ter mais informações sobre a canção, mais do que a cifra ou os
diagramas de Luiz Tatit, pois o primeiro exige que o leitor já conheça a canção
previamente e o segundo não representa a parte rítmica, fundamental para as
canções de Chico Science e Nação Zumbi.
Sintonizados com tudo isso, dialogaremos com a libertação estética
proposta por CSNZ e o processo de crioulização. Segundo Édouard Glissant
(2005), a crioulização é o processo pelo qual elementos culturais distintos são
postos em relação. Isso pode ser percebido nas canções de CSNZ por meio
das letras ou dos arranjos musicais. Para explicar melhor esse processo,
Glissant (2005, p. 19-20) toma como exemplo as formas de povoamento da
Neo-América (isso inclui o Brasil), em que os escravos africanos eram
despojados de tudo, de sua cultura, de sua língua, de sua religião, enquanto
que o europeu chega com suas armas, suas famílias, suas religiões, oprimindo
e, consequentemente, marginalizando outras manifestações culturais que não
fossem aceitas.
O processo de crioulização se baseia no que esse autor considera
pensamento rastro/resíduo, ou seja, “um não-sistema de pensamento que não
seja nem dominador, nem sistemático, nem imponente, mas talvez um não-
sistema intuitivo, frágil e ambíguo de pensamento” (GLISSANT, 2005, p. 29).
Nesse ponto, a crioulização se aproxima muito do conceito de rizoma de
Deleuze e Guattari em Mil Platôs (1980)10, em que esse tipo de pensamento
pode ser comparado como uma raiz, porém sem um centro. Na medida em que
se fazem novas relações, as raízes vão se estendendo e assim seguem
adiante quase que de forma aleatória.
10
Faz-se necessário destacar que não iremos nos aprofundar na perspectiva deleuziana (crítica
pós-estruturalista francesa), mas na linha caribenha latino americana.
25
A crioulização toma como pressuposto esse tipo de pensamento, pois
Glissant (2005) considera que, nas formas de povoamento, as culturas e as
relações sociais foram ressignificando suas memórias culturais. Por mais que
os contatos entre as culturas tenham ocorrido de forma desigual, a rede de
relações foi se estendendo ao longo dos séculos. Essas formas de relações
podem ser observadas nas canções populares por meio dos jogos que se faz
com a palavra cantada para representar.
Nesse sentido, estudaremos a poética afrociberdélica de CSNZ (1996) e
como a crioulização se expressa nas três canções selecionadas do disco
Afrociberdelia (1996). Um exemplo claro dessa crioulização está na canção “O
Cidadão do Mundo”, em que é possível perceber duas narrativas distintas as
quais constroem histórias diferentes, mas que trazem à tona a voz do
subalterno, expressa na narrativa, nas metáforas, nas representações,
conforme veremos mais adiante.
Já no plano musical, ficam claras as constantes releituras do maracatu
no decorrer do álbum, que, como veremos mais adiante, tem sua origem
africana ou indígena, como apontam os estudos do professor e pesquisador
Marco Pereira, em Ritmos Brasileiros (2007). Nas palavras de Chico Science,
essas releituras são, ao mesmo tempo, uma forma de atualização do maracatu
e um dos modos de perpetuar a cultura tradicional a partir de uma
reformulação:
Isso quer dizer que quando ele refaz um ritmo, por mais que já não seja
o mesmo, algumas pessoas podem buscar ouvi-lo como era tocado antes. Nas
canções estudadas neste trabalho, podemos perceber o ritmo do maracatu
tanto nas alfaias como nos outros instrumentos. Fazendo isso, Chico Science
põe em evidência a hibridez de suas canções. Esse elemento, por sua vez, foi
foco das análises de um dos livros mais conhecidos a respeito dos trabalhos de
Chico Science & Nação Zumbi, Hibridismos Musicais em Chico Science &
Nação Zumbi (2007), de Herom Vargas. Nesse estudo, o autor explica como as
26
primeiras produções de CSNZ estão sintonizadas com a questão multicultural
brasileira a partir de uma perspectiva de estudo voltada para a cultura
midiática, ou da linguagem das culturas midiáticas, já que sua formação era em
comunicação social.
O que Vargas (2007, p. 92) considera como identidade contrapõe-se à
perspectiva modernista de que ela seria o “produto de uma construção
simbólica que tende a legitimar a ação de determinados grupos sobre a
sociedade, sejam eles dominantes ou de oposição, regionais ou
institucionalizados em estados”. Essa legitimação acaba excluindo as marcas
culturais que não pertencem àquele grupo, por não serem de determinada
tradição que se quer fundante.
No álbum Afrociberdelia (1996), de Chico Science & Nação Zumbi,
essas relações culturais podem ser percebidas nas letras e na musicalidade.
Há uma poesia multifacetada nas canções que iremos estudar. Nelas iremos
perceber que a palavra dilata-se, ressoando consigo identidades culturais e
uma poética afro-brasileira. A palavra cantada por Chico Science (CS) marca
também uma forma de persistência da tradição e, ao mesmo tempo, de diálogo
com a modernização.
Em sintonia com isso, as canções estudadas sugerem uma aproximação
com a concepção de sujeito pós-moderno de Stuart Hall (2001, p. 13), pois ela
“celebra o móvel”. Essa celebração pode ser percebida logo no título do álbum:
o prefixo “afro”, sinalizando a presença da cultura africana; o prefixo “ciber”
lembra o impacto das novas tecnologias, especialmente da internet, naquela
época11; e o sufixo “delia”, que nos remete à “psicodelia”, muito presente na
Geração Beat. Nesse contexto afrociberdélico, podemos dizer que a identidade
pós-moderna é “formada e transformada continuamente em relação às formas
pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que
nos rodeiam”.
Para entendermos melhor a proposta deste trabalho, passaremos a
tratar do que cada capítulo irá abordar. Na “Faixa 1: Crioulizações em ‘Mateus
27
Enter’”12, falaremos do olhar lítero-musical sobre a cultura afro-brasileira. Tendo
como pressuposto teórico o processo de crioulização de Glissant (2005),
trataremos do corpo na letra de “Mateus Enter” e sua relação com o
movimento; e da antropofagia cultural do maracatu e do rock pernambucano,
principalmente. Autores como Herom Vargas (2007), Renato L. e Carolina Leão
(2007), Moisés Neto (2010) e José Teles (2003 e 2012), entre outros, nos
servirão como base para discussão nesse capítulo. Considerando que essa
canção possui um forte direcionamento performático e uma evidente marca do
maracatu, nossa leitura abordará esses e de outros elementos de que tratam a
canção. Desse modo, iremos sugerir algumas leituras possíveis dessa canção.
Pelo caráter híbrido da música popular brasileira e, consequentemente,
das canções da obra em questão, é que buscaremos associar, como já
dissemos, a crioulização tratada por Glissant (2005 e 2011) às canções do
compositor Chico Science, na “Faixa 2: As narrativas em ‘O cidadão do
mundo’”. Nessa faixa, falaremos das duas narrativas e da errância de seus
personagens. A partir disso, apresentaremos como essa dialoga com a cultura
de fronteira de Recife daquela época, tais como os ritmos populares ou
tradicionais, os que dialogam com as novas tecnologias ou não, como o rap e a
embolada, por exemplo. Nesse contexto, apresentaremos uma leitura orientada
pelo olhar de Mignolo (2003).
Já na última faixa, “Faixa 3: Somos todos juntos uma crioulização”,
continuaremos as análises das canções de Chico Science, estudando agora a
canção “Etnia” e seu diálogo plural. Se nas canções anteriores há uma espécie
de “canção de chegada” do maracatu, veremos em seguida, uma canção
entrecortada por duas narrativas, sendo esta última canção apresenta-se como
uma celebração da diversidade cultural.
De modo geral, analisaremos as canções na perspectiva descolonial e
literária. Ao longo dos capítulos, apresentaremos ainda as células rítmicas de
alguns dos ritmos do maracatu presentes nas canções. Em outras palavras,
utilizaremos a forma reduzida do ritmo do maracatu para apresentar nossa
perspectiva das três canções de Chico Science e como ele representa a voz da
12
Ao longo deste trabalho, com a intenção de fazer uma analogia entre a divisão de uma
dissertação em capítulos com a divisão de um disco em faixas e, desse modo, dialogar os
gêneros discursivos em questão, utilizaremos as duas nomenclaturas, ora chamaremos de
capítulos, ora de faixas.
28
periferia a partir de uma linguagem crioulizada, sugerida pelo diálogo da
linguagem verbal com a musical.
29
FAIXA 1: Crioulizações em “Mateus Enter”
Sou eu transistor
Recife é um circuito
O país é um chip
Se a terra é um radio
Qual é a música?
Manguebit
30
(ZEROQUATRO, 1994)
Nesse caso, preferimos abordar apenas de um trecho da canção, já que
se trata de uma breve comparação. Há, nessa canção, uma pergunta que
lembra a do “Monólogo ao pé do ouvido”, que apontamos anteriormente. A
resposta a essa pergunta surge com apenas um verso de uma palavra:
“Manguebit”.
O que queremos apresentando duas canções fora dos objetivos deste
trabalho? Esse é justamente o segundo ponto que gostaríamos de destacar
nas três canções. Podemos perceber que a terceira canção do álbum
Afrociberdelia de CSNZ, “Mateus Enter”, é uma reafirmação da estética
mangue, que vinha se propagando no momento da produção das canções
“Monólogo ao pé do ouvido” e “Manguebit”. Nestas últimas, há um prelúdio da
estética mangue, que irá reverberar dois anos depois na afirmação dos
primeiros versos de “Mateus Enter”: “eu vim com a nação zumbi/ ao seu ouvido
falar”.
Outra marca dessa reverberação é a incorporação da cidade e das
novas tecnologias que surgiam naquele momento, como pode ser visto nos
versos: “Sou eu um transistor/ Recife é um circuito/ O país é um chip”, em
“Manguebit”, e “trago as luzes dos postes nos olhos/ rios e pontes no coração”,
em “Mateus Enter”. Isso sem falar no título das duas canções (já falamos da
expressão “Manguebit”, adiante falaremos de “Mateus Enter”).
Os elementos apresentados até agora demonstram um pouco da relação
que se buscava manter entre as bandas para que a cena musical ganhasse
corpo, ou seja, para que ganhasse espaço na mídia local. Essa união entre os
grupos artísticos acaba trazendo para essa cena o diálogo com outras artes, a
exemplo do cinema, com Baile Perfumado (1996), dirigido por Paulo Caldas e
Lírio Ferreira; das artes plásticas, a exemplo de Felix Farfan e H. D. Mabuse;
da moda entre outras manifestações artísticas, como bem aponta a dissertação
Moda Mangue: a influência do movimento Manguebeat na moda
pernambucana (2006 – PUC/ RJ), de Aline Moreira Monçores.
Outra característica marcante desses diálogos é a presença da cultura
afro-brasileira e das novas tecnologias. Veja como se desenvolve a canção
“Mateus Enter”:
31
eu vim com a nação zumbi
ao seu ouvido falar
quero ver a poeira subir
e muita fumaça no ar
cheguei com meu universo
e aterriso no seu pensamento
trago as luzes dos postes nos olhos
rios e pontes no coração
Pernambuco embaixo dos pés
e minha mente na imensidão
(SCIENCE, 1996)
32
caso, corporifica sua existência. Repare que essa é uma estratégia para
chamar a atenção do ouvinte, deixando a impressão de exclusividade a quem
ouve: “eu vim com a nação zumbi/ ao seu ouvido falar”. É como se o ouvinte
estivesse corpo a corpo com quem canta/fala.
Entretanto, essa relação com o ouvinte é mais do que uma estratégia. O
corpo sonoro (linguístico e musical) dessa canção seduz o ouvinte por
intermédio da ação vocal, ou seja, de sua produção de sentidos. É com isso,
letra e musicalidade, que se cria um espaço cuja intenção é encantar o ouvinte.
Há, portanto, uma persuasão figurativa (TATIT, 1986) em “Mateus Enter”, pois
ocorre a simulação de uma conversa com o ouvinte.
Em outras palavras, ao envolver o ouvinte, o cantor dá a impressão de
que a situação relatada é possível de acontecer, como se estivesse sendo
vivenciada no momento da enunciação. O “eu” expresso no texto não é
necessariamente o enunciador, Chico Science, assim como, também pode não
ser o coenunciador, ouvinte. Tatit (1986) chama isso de “simulacro de locução”.
Podemos dizer que, em “Mateus Enter”, esse simulacro de locução põe o signo
linguístico em movimento, sua semântica torna-se imprecisa. Sendo assim, o
sentido dicionarizado é deslocado para um sentido no campo da sugestão.
Para entendermos melhor como os signos se deslocam nessa canção,
propomos sua divisão temática. Desse modo, podemos demarcar quatro
momentos distintos. Inicialmente, há uma apresentação, um anúncio do que
se vai fazer: “eu vim com a nação zumbi/ ao seu ouvido falar”. Nesse momento,
a voz seduz, convida o leitor a ouvir. Perceba que essa voz não emerge do
silêncio sozinha, ela vem com a nação zumbi. As letras minúsculas “nação
zumbi” dão um duplo sentido: tanto podem aludir à banda, como à influência de
Zumbi dos Palmares na construção da nação brasileira. Dessa forma, o eu-
lírico traz consigo um discurso que não é só seu, é uma construção coletiva.
Não podemos ser ingênuos em pensar que se trata somente de uma
aproximação com seu ouvinte, trata-se também de um grito que traz consigo
uma metáfora, “nação zumbi”, cuja intenção é ressignificar a leitura de uma
cultura marginalizada. Prova disso é a força com que é entoado o primeiro
verso e a mesma força com que entram os outros instrumentos. É como se
estivessem reafirmando seu espaço dentro de um contexto de diferença
colonial.
33
Figura 1: primeiro verso de “Mateus Enter”; Transcrição: Victor Dantas e Natalia
Pinheiro
34
Por esse motivo, a música, como já dissemos, representava a
resistência a um regime de diferença colonial. Podemos dizer que essa
resistência também ocorre por meio do pensamento rastro/resíduo13 e da
crioulização de Glissant (2005).
Em “Mateus Enter”, essa resistência evidencia-se com a afirmação: “eu
vim com a nação zumbi”. Quando esse verso é cantado, as vozes se fundem,
criouliza-se a voz do intérprete, Chico Science, com a voz da nação afro-
brasileira, da Nação Zumbi. A voz humana e a voz dos outros instrumentos
marcam um discurso lítero-musical, emaranhado dessa cultura afro-brasileira.
Nela há uma confirmação do que se vinha fazendo no álbum anterior, Da lama
ao caos (1994). Nesse sentido, o primeiro álbum enfrentou uma polêmica, pois,
como já dissemos, as rádios não tocavam suas músicas e, para completar, não
tinham o apoio do então secretário Ariano Suassuna.
Enquanto Suassuna foi secretário da Cultura do Estado de Pernambuco,
no governo de Miguel Arraes (1994-1998), ele afirmava que a proposta estética
de Chico Science não era música. Portanto, era sintomática a ausência do
Estado no que diz respeito aos incentivos públicos, fossem eles financeiros ou
na participação de shows. Segundo Marsiglia (1995):
13
Glissant (2005) chama de pensamento rastro/resíduo a recriação da cultura dos escravos
africanos a partir, unicamente, dos poderes da memória. Ao longo dos anos, esses escravos
conseguiam manter seus costumes, porém dialogando com outras culturas e gerando
resultados imprevisíveis (mais adiante, retomaremos esse conceito).
14 Disponível virtualmente por meio da Revista Superinteressante de julho de 1995 (ver
referência bibliográfica).
15
Personagem comum tanto no maracatu rural como no maracatu nação.
35
“vai, Mateus” ou “go, Mateus”. A inserção de palavras em inglês tanto no título
da canção, como no nome Chico Science, representa uma das características
principais de suas composições, o diálogo.
No campo musical isso acontece no final do primeiro verso, quando
chega na última sílaba poética (“zumbi”), entra uma guitarra distorcida tocando
um acorde em fá maior, caracterizando a sonoridade do rock; as alfaias
metonímias do maracatu-nação, são acompanhadas da bateria em um ritmo
sincopado.
Ao juntar sonoridades distintas, Science põe em contato os discursos
que cada manifestação cultural traz consigo. Esse contato marca o entre-lugar
do discurso scienciano. Desse modo, o discurso lítero-musical de Chico
Science em Afrociberdelia (1996) não só dá espaço para as vozes de culturas
marginalizadas brasileiras diante de um discurso de conservação, de
cristalização da tradição, como também contribui para a formação de uma voz
da América Latina diante dos elementos culturais que dialogam dentro dessa
obra.
Nas palavras de Silviano Santiago (2000, p. 16):
36
afro-brasileira. É interessante destacar que o fato de as composições de Chico
Science darem ênfase a um discurso não significa excluir o outro. Percebe-se,
nas suas canções, que há um diálogo com o poético entre várias culturas. Um
exemplo disso é a canção “Etnia”: “somos todos juntos uma miscigenação/ e
não podemos fugir da nossa etnia/ índios brancos, negros e mestiços/ nada de
errado em seus princípios/ o seu e o meu são iguais”. Essa atenção à cultura
afro-brasileira é uma tentativa de valorização e não de inversão de uma
hierarquia.
Como já podemos notar, em “Mateus enter”, Chico Science anuncia a
chegada do grupo, CSNZ. É interessante observar que até o momento dos
primeiros versos: “eu vim com a nação zumbi/ ao seu ouvido falar”, há somente
a voz de Chico Science e seguindo o ritmo do maracatu. Ao fazer isso, é como
se ele estivesse marcando um espaço coletivo, do eu-lírico e da Nação Zumbi,
que pode ser interpretado como uma referência ao grupo ou ao Brasil, à nação
dos descendentes de Zumbi dos Palmares.
No segundo momento, diz-se o que quer: “quero ver a poeira subir/ e
muita fumaça no ar”. Nesse caso, é bom lembrar que, em uma canção, a
ligação da palavra com a performance é diferente do que ocorre em um poema.
A letra da canção é feita para ser cantada e segue uma forma relativamente
estável a cada interpretação, ou seja, ela mantém um estilo. Já a maioria dos
poemas escritos também tem uma relativa estabilidade em suas performances,
porém utiliza recursos distintos para a produção de sentido. Como não é
objetivo deste trabalho falar dessas distinções, não vamos entrar em detalhes.
O que pretendemos aqui é apresentar alguns dos recursos performáticos da
voz e, por esse motivo, traremos a transcrição da voz para a partitura.
Pensando nisso, podemos dizer que os versos em questão ganham
outra dimensão. Uma leitura possível: eles foram escritos pensando-se na
interação com o público. Isso nos leva a crer que o sentido imperativo de
querer ver o público pulando, animando-se e a fumaça (“quero ver a fumaça
subir”) como uma consequência dessa movimentação. No campo musical, um
dos fatores que contribuem para a ideia de movimento é o fato de a maioria
das sílabas tônicas acompanhar a marcação do ritmo do maracatu nação
tocado por três alfaias (Jorge dü Peixe, Gilmar Bola 8 e Gira).
37
Figura 2: Transcrição do ritmo da voz. Transcrição: Victor Dantas e Natalia Pinheiro.
Pinheiro.
38
Esse envolvimento do ritmo com o corpo fica evidente nas performances
de Chico Science, pois quando ele estava nos palcos ele arriscava alguns
passos de breakdance, por exemplo, crioulizados com alguns passos de dança
popular. Fazendo isso, ele colocava em contato a cultura negra norte-
americana com outras manifestações. Segundo Monçores (2006, p. 37),
39
Figura 3: Chico Science imitando as patas de um caranguejo.
40
heterogêneos se internalizam, contudo subalternizando a cultura africana.
Segundo Glissant (2005, p. 21), quando isso acontece “a crioulização não se
dá verdadeiramente”, para ele, “a crioulização se dá, entretanto, também
nesses casos, nessas condições, mas deixa um resíduo amargo, incontrolável”
(idem).
É nesse ponto que entra o pensamento rastro/resíduo de que falamos na
introdução, quando há uma tentativa de recuperar traços da memória cultural
de um povo que foi inferiorizada, no caso, a afro-brasileira. Logo, tanto na
performance como nas canções de Chico Science há uma retomada das
culturas marginalizadas. Essa retomada ocorre por meio do pensamento
rastro/resíduo, em que Science busca esses rastros/resíduos dos elementos
culturais marginalizados e que permaneceram ao longo da história afro-
brasileira para recompô-los e atualizá-los.
As gestualidades poéticas em “Mateus Enter” estão relacionadas a esse
pensamento, cuja intenção maior é descentralizar e reconstituir, por meio da
crioulização, um discurso marginalizado. Considerando o estudo de Regina
Machado (2012), essas gestualidades são interpretativas e se materializam na
execução da canção. Para tanto, consideram-se as competências técnicas e
sensíveis para sua realização.
Por esse motivo, o discurso lítero-musical em “Mateus Enter” configura
uma tessitura literária e musical que se espelha na cultura afro-brasileira,
dando continuidade ao processo de releituras. Com isso, não se trata de negar
a influência da cultura eurocêntrica na construção da identidade brasileira, mas
de afrouxar os nós que a diferença colonial formou. Para isso, faz-se
necessário gritar ao invés de cantar, é por esse motivo que a voz de Chico
Science é posta de uma forma “rasgada”. Quando Science estabelece um
diálogo com essas culturas marginalizadas, está procurando descentralizar
uma hegemonia discursiva que se manifesta na performance dos versos, isto é,
dos gestos interpretativos.
No terceiro momento, é dito como e aonde o eu-lírico chegou: “cheguei
com o meu universo/ aterriso no seu pensamento”. O universo é o do eu-lírico
com a Nação Zumbi. O ponto de chegada são os ouvidos e, por sua vez, o
pensamento, aos quais chega como num pulo, aterrissando.
41
Podemos entender que o universo tratado nesse trecho pode ser
interpretado como os pensamentos e os sentimentos desse eu-lírico, é uma
simulação de um universo individual. Ou ainda, esse universo pode ser visto
como sendo a cena musical Manguebeat, o universo musical do Manguebeat.
É importante destacar que quando se diz isso, que vai aterrissar no
pensamento de quem ouve, nota-se que se cria um espaço sonoro de diálogo
com seu ouvinte. A recepção do texto de uma canção escrito sem os arranjos
musicais, como é o caso desse, é distinta de quando esse mesmo texto é
cantado por Chico Science, como já falamos.
Aliado a esse universo do Manguebeat estavam os diferentes tipos de
maracatu, chamados de toques ou baques. Existem pelo menos dois tipos de
toques de maracatu: o primeiro é o de baque virado ou dobrado. Ele
corresponde ao toque em que as alfaias, geralmente, são mais numerosas, por
isso a expressão “dobrado”. Esse baque também pode ser chamado ainda de
Maracatu Nação. Já o segundo é chamado de baque solto ou maracatu de
orquestra; geralmente, nesse caso, as alfaias vêm em quantidade menor,
podendo ser chamado também de maracatu rural.
Em “Mateus Enter”, o baque mais recorrente é o maracatu Nação. De
andamento mais lento que o maracatu rural, o maracatu nação representava
um cortejo em que se exibiam um rei, uma rainha e a dama de passo; esta, por
sua vez, carrega uma boneca chamada de calunga. Outros personagens são
acrescentados, mas varia de nação para nação16. Segundo Mário de Andrade
(1982, p. 139), “os Maracatus constam de várias personagens especiais, sem
finalidade dramática nenhuma”. Os reis e as rainhas não possuem nome
nenhum, bem como a dama de passo.
No livro Danças Dramáticas do Brasil (1982 – 2º Tomo), Mário de
Andrade dá uma atenção especial à calunga, que é carregada obrigatoriamente
pela dama de passo. A calunga é uma boneca de sexo feminino ricamente
enfeitada. “Calunga” é uma palavra de origem banta, e Andrade (1982, p. 140-
141) encontra alguns significados para esse termo: “uma planta rutácea, um
camundongo, um boneco, como ainda um indivíduo vadio e ‘ratoneiro’”.
16
Segundo Guerra Peixe (1955, p. 16, grifos do autor), “as nações eram constituídas por gente
de várias procedências, nas quais havia predominância banto ― especialmente angolêsa, a
julgar pelas pesquisas sobre a entrada de negros realizadas em Pernambuco, referentes, pelo
menos, ao século XVII”.
42
O ritmo que acompanha esse cortejo é o mesmo tocado em “Mateus
Enter”: o nação, como foi dito. Sua célula rítmica17 pode ser representada por:
43
Nos dois primeiros versos, também mencionados anteriormente, há uma
transfiguração dos olhos e do coração em partes de uma cidade: “trago as
luzes dos postes nos olhos/ rios e pontes no coração”, sugerindo uma espécie
de antropofagia semântica: o homem que se transforma na cidade. Trazendo
para o local de enunciação da canção: o homem é Recife; ou ainda, na
linguagem scienciana: o homem-caranguejo é a Manguetown.
A simbiose entre homem e cidade do Recife se confirma com os versos
seguintes: “Pernambuco embaixo dos pés/ e minha mente na imensidão”. A
cidade, nessa canção, transfigura-se em corpo com rios, pontes, versos, sons;
no lugar de veias, órgãos, membros. A imagem da metrópole, nesse caso,
pode nos sugerir também uma fragmentação do sujeito. Para Renato Cordeiro
Gomes, em Todas as cidades, a cidade – Literatura e experiência urbana, a
cidade não é o espelho “que poderia confirmar a identidade do corpo inteiro”
(1994, p. 68). O corpo humano desdobra-se no corpo da cidade, Manguetown,
seus homens são os homens-caranguejos. Esse desdobramento do homem-
caranguejo na Manguetown e vice-versa lembra a antropofagia sugerida no
romance de Josué de Castro, Homens e caranguejos (1967).
Para Foucault (2000), a literatura é “uma linguagem desdobrada” que vai
além das técnicas retóricas: “na literatura não há encontro absoluto entre a
obra e a literatura. A obra jamais encontra seu duplo finalmente dado. Por isso
ela é a distância que há entre a linguagem e a literatura, uma espécie de
espaço de desdobramento” (FOUCAULT, 2000, p. 147)19. Podemos dizer que,
de uma forma geral, a cidade na obra scienciana é desdobrada e transfigurada
por meio dos arranjos poético-musicais, pois, tanto na canção “Mateus Enter”
como em outras há um desdobramento dessa cidade. A imagem da cidade, no
álbum Afrociberdelia (1996), tem como ponto de partida a primeira canção, pois
é nela que Chico Science relaciona o local, Pernambuco, como fazendo parte
dos olhos e do coração. Aliada a esse desdobramento, está a cultura afro-
brasileira sobre a qual vínhamos tratando anteriormente.
19
Texto anexado no livro de Roberto Machado, Foucault, a filosofia e a literatura (2000).
44
rastro/resíduo, de Glissant (2005), e a ênfase na cultura afro-brasileira exige
uma leitura voltada para a descolonização, uma leitura para o pensamento
liminiar de Walter Mignolo (2003), o qual busca desatar as tensões fronteiriças
estabelecidas e controladas pela colonialidade do poder.
Atentamos ainda para o fato de “Mateus Enter” ter uma duração curta.
Sucinta. Cada gesto interpretativo apresentado na voz de Chico Science traz
um discurso crioulizado. A palavra parte da margem do sentido. Aterrissa na
voz e no pensamento do leitor. Tudo é mais condensado. 33 segundos de
texto. 10 versos. E 13 compassos. Isso é suficiente para o sentido ser
redimensionado ou, como dissemos, deslocado. Se a voz é corpo, então a voz
rasgada é também corpo rasgado. Os rasgos desse corpo foram marcados
pelo silenciamento do colonizador. Por esse motivo, a sensação de aspereza
da voz nos dá uma intensidade interpretativa da letra.
Uma analogia possível: o corpo sonoro (letra e música) reduzido nos
lembra o corpo afrodescendente, que historicamente resistiu ao imperativo
social escravista, o qual buscava reduzir o corpo do escravo negro a uma
máquina produtiva. O corpo, nesse contexto, é metáfora para a resistência.
Falar dele é falar também do pensamento rastro/resíduo que o constitui, como
se pode notar no verso “eu vim com a nação zumbi”. Nesse verso, o eu-lírico
traz para si uma voz afrodescendente. A voz emerge do silêncio, como já
dissemos, e incorpora um discurso das margens.
É com essa perspectiva que Chico Science traz para esse corpo sonoro
a influência do rap e do maracatu. Esse corpo, que antes era reduzido, agora
passa a desejar a imensidão, a liberdade, como indica o último verso “e minha
mente na imensidão”. Pensando nisso, note que a última palavra, “imensidão”,
é entoada em fortíssimo (indicado pelo “f” duplicado na partitura: “ff”), e sua
última sílaba prolongada por quatro compassos:
Figura 5: trecho de “Mateus Enter” (a); Transcrição: Victor Dantas e Natalia Pinheiro.
45
É com essa perspectiva de dar voz aos marginalizados que Chico
Science deixa evidente a cultura afro-brasileira na letra e na música.
Sintonizada com isso, a poética scienciana configura-se dentro do olhar da
crioulização. É bom lembrar que apesar desse emaranhado de gestos na
performance de Chico Science ser das influências da cultura africana, engana-
se quem pensa que a música eurocêntrica sempre teve um caráter mais
autônomo da dança. Considerando isso, cabe fazermos outra breve digressão
para percebermos a transfiguração dessa crioulização nos gestos
interpretativos20 da letra e da música na canção “Mateus Enter”.
Segundo Mário de Andrade (1987, p. 29), a música grega já teve uma
relação forte com o ritmo. Na Antiguidade, a música não era concebida
isoladamente, “estava sempre unida à poesia e à dança, o compositor grego
era ao mesmo tempo cantor, poeta e dançarino. As músicas continham texto e
expressão coreográfica”.
Entretanto, esta, a música, enquanto produtora de sentido, preocupava-
se mais com a execução ordenada das notas, focando principalmente nas
ideias melódicas. Isso pode ser percebido do cantochão medieval até o
romantismo do século XIX. Como consequência disso, as letras das canções
eram curtíssimas; em contrapartida, estendia-se a melodia soletrando-se,
sílaba por sílaba, cada palavra. De um modo geral, fica evidente que a canção,
naquele contexto, tinha uma preocupação maior com sua musicalidade do que
com o que se estava comunicando.
Quando comparamos essa música europeia com a música africana,
percebemos que o ritmo costuma ser o foco principal das composições no
continente africano, sua relação com a música, geralmente, era espiritual.
Segundo Sodré (2007, p. 20), “o som, cujo tempo se ordena no ritmo, é
elemento fundamental nas culturas africanas”, nas culturas gege-nagôs ou
iorubas, por exemplo, o axé (poder ou força de realização), que é conduzido
pelo som. Já no Brasil, as instituições, como a umbanda e o candomblé, são
responsáveis pela comunicação direta com as entidades chamadas de orixás.
20
Segundo Regina Machado (2012, p. 54): “O gesto interpretativo é a ação que materializa a
compreensão do cantor ante os conteúdos da composição. Desta forma, ele torna claro os elos
de melodia e letra inscritos na composição, ou mesmo define novos elos que só se consolidam
pela presença da voz”.
46
Infelizmente, na história da música brasileira, pode-se notar uma forte
imposição da música europeia, com fortes repressões à manifestação musical
africana. Sua participação nesse contexto escravocrata restringia-se apenas à
execução das músicas. Isso não quer dizer que eles não contribuíram para a
formação da canção popular brasileira, pelo contrário. Muitas vezes, a música e
a dança foram elementos de resistência, conforme já visto na análise de
“Mateus Enter”. Um exemplo claro disso é a capoeira.
É tanto que o swing da canção brasileira urbana vem de um estilo
moderno de samba, “que vê a execução da síncopa refeita a partir da influência
dos elementos da cultura e da música negra” (MACHADO, 2011, p. 32).
Segundo Regina Machado (2011, p. 32), esse novo padrão rítmico foi
estabelecido pelos compositores de um bairro do Rio de Janeiro famoso por
ser o reduto de grandes nomes do samba, como Ismael Silva. Esse padrão
rítmico “torna a execução musical menos rígida, e essa maleabilidade é
transportada ao canto, produzindo uma intenção de dança através da
expressão vocal”.
Em suma, a divisão em quatro partes nos ajuda a dar uma visão geral da
canção. O gesto oral de Chico Science não explora muito a tessitura melódica,
ou seja, há pouca variação das notas, aproximando-se de um ritmo da fala, a
fala está subjacente ao texto musical. A economia melódica apresentada logo
na primeira canção do álbum confirma sua aproximação com o rap e com a
embolada, dois gêneros musicais que se caracterizam por, geralmente,
enfatizar o jogo com as palavras mais do que com a música.
Há, sobretudo, a influência do rap nessa canção. Repare que não há um
padrão na metrificação, lembrando o freestyle (nome que se dá à improvisação
do rap). Para que isso fique claro, fizemos a escansão dos versos:
1 2 3 4 5 6 7 8
eu/ vim/ com/ a/ na/ção/ zum/bi
1 2 3 4 5 6
ao/ seu ou/vi/do/ fa/lar
1 2 3 4 5 6 7 8 9
que/ro/ ver/ a/ po/ei/ra/ su/bir
1 2 3 4 5 6 7
e/ mui/ta/ fu/ma/ça/ no ar
1 2 3 4 5 6
47
che/guei/ com/ meu u/ni/verso
1 2 3 4 5 6 7 8 9
e a/te/rri/so/ no/ seu/ pen/sa/mento
1 2 3 4 5 6 7 8 9
tra/go as/ lu/zes/ dos/ pos/tes/ nos/ olhos
1 2 3 4 5 6 7 8
rios/ e/ pon/tes/ no/ co/ra/ção
1 2 3 4 5 6 7 8
Per/nam/bu/co em/ bai/xo/ dos/ pés
1 2 3 4 5 6 7 8 9
e/ mi/nha/ men/te/ na i/men/si/dão
(SCIENCE, 1996)
Além dos versos livres, há também rimas: nos quatro primeiros versos, a
rima é ABAB; os versos 5, 6 e 7 apresentam rimas CCC; por fim, os versos 8, 9
e 10 apresentam rimas DED. Além do ritmo das palavras, há também o ritmo
musical utilizado sobre elas, em outras palavras, a melodia, que, como já
dissemos, varia pouco. Essa economia melódica marca a influência da cultura
hip hop e da embolada. Isso pode ser observado nos versos a seguir:
Figura 6: trecho de “Mateus Enter” (b); Transcrição: Victor Dantas e Natalia Pinheiro.
48
É com essa intenção de incorporação cultural e de modernização que
Chico Science sobrepõe gêneros musicais distintos no início desse álbum, o
qual, na opinião do grupo, foi o álbum que eles queriam gravar antes do Da
lama ao Caos (1994), mas não foi possível por falta de recurso financeiro,
como mostra a entrevista para a revista Brazilian Music Up To Date:
21
Disponível em: <http://www2.uol.com.br/uptodate/up3/txt12.htm>, acesso em 12/08/2014.
49
impôs-se como hegemonia ideológica, epistêmica, política e ética.
Considerando isso, Mignolo (2003) chama de projetos globais aqueles com
visões planetárias, colonizadoras.
Desse modo, podemos dizer que o pensamento liminar (MIGNOLO,
2003) está subjacente ao processo criativo de Chico Science, pois suas
composições são marcadas por uma articulação antropofágica que visa dar voz
à diversidade. Para isso, Mignolo destaca uma cultura que foi subalternizada
durante o processo de construção do sistema mundial colonial/moderno e que
se mantém assim até hoje. O que Chico Science faz é uma releitura das vozes
subalternizadas, pois, ao invés de mantê-las nas margens, configura sua
relevância para a formação de uma “identidade movediça” (HALL, 2001).
Não devemos entender essa relevância como uma tentativa de inversão,
mantendo-se uma hierarquia, pois trata-se de uma tentativa de “acerto de
contas”. Logo, essa identidade movediça dialoga com outras culturas, como,
por exemplo, as culturas indígenas, portuguesas, espanhola entre outras, como
aponta o estudo de Mário de Andrade, Pequena história da música (1987).
Para ele, é no contato com a cultura africana que o ritmo e a melodia alcançam
a variedade que têm, “uma das nossas riquezas musicais” (ANDRADE, 1987,
p. 176). Em seguida, o autor complementa dizendo que, além dos ritmos,
vieram muitos instrumentos musicais trazidos pelos escravos, os quais se
tornaram de uso brasileiro.
50
música negra aceita pelos brancos. E foi precisamente a primeira a crioulizar-
se, a se tornar mulata”. Um dos personagens históricos que contribuiu para
essa difusão foi Domingos Caldas Barbosa, que, no século XVIII, dera início ao
lundu-canção, fórmula que possibilitaria a aceitação desse ritmo pela
sociedade branca (idem).
Da mesma forma que o lundu, o maracatu possui reminiscências
africanas e, apesar das prováveis influências dos negros de diversas origens
étnicas e da influência da música europeia na música pré-afro-recifense,
“parece-nos plausível aceitar que a música do Maracatu seja de procedência
bantu” (GUERRA-PEIXE, 1955, p. 18). O pesquisador e músico César Guerra-
Peixe, em Maracatus de Recife (1955), afirma que eles são distintos dos
maracatus que ocorrem em outros estados, como o Maranhão e o Ceará.
Nesse estudo, Guerra-Peixe trata da origem do nome maracatu, das toadas,
dos instrumentos musicais, dos toques.
Portanto, “Mateus Enter” retoma o pensamento liminar quando enuncia
um discurso lítero-musical afro-brasileiro baseado no maracatu. Nessa canção,
propõe-se ir além “das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de
focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação
de diferenças culturais” (BHABHA, 1998, p. 19-20). Em outras palavras, a
poética scienciana evidencia, por meio dos jogos com a linguagem, a voz
marginalizada, pois ao unir a musicalidade e um personagem do maracatu à
sonoridade do rock e às novas tecnologias, por exemplo, desconstrói-se a ideia
de uma cultura unificada e pura. A ideia que prevalece é da tradição da ruptura.
É certo que mesmo antes do Manguebeat, esse discurso do entre-lugar
também pode ser percebido no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade,
na Tropicália e na geração marginal de 1968. Neles, também pode-se notar
uma identidade cultural brasileira do “entre-lugar”, fornecendo o que Bhabha
(1998, p. 19-20) chama de um “terreno para a elaboração de estratégias de
subjetivação ― singular ou coletiva” e criando “novos signos de identidade e
postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria
ideia de sociedade”.
Com isso, podemos relembrar brevemente a discussão a respeito de
poesia e canção, pois essa foi uma das características da antropofagia, digerir
e assimilar as culturas existentes, desatando as imposições da cultura
51
ocidental surgida com a estética armorial, e abrindo espaço para valorização
das culturas periféricas. Dessa forma, unia-se à libertação estética, um caráter
antropofágico. Como já dissemos, nesse mesmo direcionamento estava o
projeto tropicalista que “elaborou uma nova linguagem da canção, exigindo que
se reformulassem os critérios de sua apreciação, até então determinados pelo
enfoque da crítica literária” (FAVARETTO, 2000, p. 32).
Isso contribuiu para que no âmbito acadêmico a canção popular pudesse
ser vista como objeto de estudo dentro das universidades, pois, como já
dissemos, havia pouca aceitação dela como foco de estudo. Segundo
Favaretto (2000, p. 32), “o tropicalismo efetuou a síntese de música e poesia,
relação que vinha se fazendo desde o modernismo, embora raramente
conseguida, pois a ênfase recaía ora sobre o texto ora sobre a melodia”.
Nesse sentido, há um estreitamento na relação poesia e música, mas
não podemos ser ingênuos e pensar que essa mescla as torna indissociáveis,
“há, portanto, um contato entre diferentes modalidades de manifestação
artística, com diferentes graus de contaminação” (MELLER, 2010, p. 26). No
caso da Tropicália e do Manguebeat, esse grau de contaminação ajudou na
consolidação da autonomia da canção, que agora passava a ter mais
independência da análise literária feita na academia. Isso porque, ao invés de
se recorrer somente aos recursos de análise que privilegiam um texto poético
escrito, a canção e suas possibilidades de escrita são diferentes da de um texto
poético escrito, até porque exploram modalidades distintas da língua, a saber,
a fala e a escrita.
Há poesia na canção, mas isso não quer dizer que poema e canção
sejam a mesma coisa em toda e qualquer obra. Quando se trata de uma
manifestação lítero-musical, cada obra artística poderá ou não beber mais na
música ou mais na literatura escrita. Em “Mateus Enter” (1996), assim como
nas canções aqui estudadas, há uma contaminação da música e da literatura
com perspectiva pós-colonial.
Se fôssemos aproximar a canção analisada de um gênero literário,
poderíamos perceber uma aproximação maior da literatura oral do que da
escrita. Porém, como nos alerta o estudo de Lauro Meller (2010) de que
falamos na introdução, também seria um equívoco fazer essa comparação na
intenção de dar status à canção estudada, como se ela precisasse ser
52
comparada a um texto literário para ser estudada. Outro problema: a dupla
articulação entre letra e música obstrui a inserção do estudo da canção popular
nas faculdades de Letras e nem pelas de Música.
Portanto, cientes dessa discussão sobre tais diálogos, como foi dito na
introdução, reconhecemos que não há um eixo bem delimitado sobre os
estudos da literatura e da música. Acreditamos, no entanto, que a delimitação
ou não delimitação depende de cada objeto de estudo, seja com um olhar mais
tendenciado para a literatura ou para a música. Pensando nisso, consideramos
a reflexão de Walter Mignolo (2003) sobre a produção de conhecimento nas
margens do sistema mundial colonial/moderno.
Dessa forma, percebemos que as canções de Chico Science estudadas
neste trabalho pedem uma leitura com base na descolonização, pois exigem
uma reflexão sobre as teorias utilizadas para não dar continuidade às
diferenças coloniais. Destacamos que essas diferenças coloniais não são o
mesmo que diferença cultural, mas são “a transformação da diferença cultural
em valores e hierarquias: raciais e patriarcais, por um lado, e geopolíticas, pelo
outro” (MIGNOLO, 2013)22. Logo, como dito na introdução, enquanto Mignolo
(2003) norteia nossas escolhas e posicionamentos teóricos, Glissant (2005) é a
base deste estudo. Portanto, em “Mateus Enter”, tanto no campo da música
como no campo da literatura, podem ser percebidas aproximações quanto a
dois ou mais elementos distintos e, desse encontro, surge poética scienciana.
Isso também podia ser observado no palco, quando Chico Science
buscava dialogar com alguns passos do maracatu e/ou com as vestes
utilizadas para dançar. Como já colocamos na introdução, segundo Science,
essa era a ideia básica do manguebeat, colocar diversos elementos culturais
em contato. Segundo ele, “isto fará com que as pessoas futuramente olhem
para o ritmo como ele era antes” (SCIENCE, 1994 apud TELES, 2012, p. 330).
As imagens a seguir mostram Chico (Figura 3) vestido de caboclo de
lança, personagem comum nos desfiles de maracatu rural. Ao lado, na Figura
4, está o mesmo personagem, porém representado por duas mulheres de
Nazaré da Mata, Marta Maria da Silva e Sônia Maria de Santana.
53
Figura 7: Chico Science vestido de
Figura 8: Maracatu Coração Nazareno. Foto: Luka Santos.
caboclo de lança.
Foto: Marcelo Soubhia –
8.jan.1994/Folha Imagem
Repare que o título, “Mateus Enter”, remete tanto a uma dança afro-
brasileira, o maracatu, como às tecnologias que surgiam naquele momento. O
“Mateus” é dos personagens que compõe o maracatu rural, representado nas
duas imagens acima pelo caboclo de lança. Diferentemente do maracatu
nação, o maracatu rural é um desfile de “corte real, baianas e arreia-más ou
tuxaus (caboclo com um cocar de penas e de pavão), rodeados pelos caboclos
de lança e complementados por personagens como o Mateus, a Catirina e a
burra” (VICENTE, 2005, p. 27, grifos da autora). Nas palavras de Chico
Science23:
23
Entrevista com Chico Science para o site Brazilian Music Up To Date, disponível em:
<http://www2.uol.com.br/uptodate/up3/txt12.htm>. Acesso em: 28 jun. 2013.
54
Em algumas das performances, Chico Science costumava se vestir de
caboclo de lança, personagem que carrega uma armadura com chocalho nas
costas (chamada de surrão) e uma lança adornada com fitas. O figurino do
caboclo de lança costuma misturar “óculos escuros e tênis com bermudões de
chitão, uma grande gola bordada com lantejoulas que cobre todo o tronco até o
joelho, e um chapéu de grande cabeleira colorida” (VICENTE, 2005, p. 27).
Fazendo isso, Chico Science junta o ritmo maracatu nação com o personagem
caboclo de lança do maracatu rural, causando uma tensão aos que viam a
cultura tradicional como algo intocável, como propunha a perspectiva estética
encabeçada por Ariano Suassuna, o Movimento Armorial, como falamos
anteriormente.
Ainda pensando nessa relação do maracatu com “Mateus Enter”,
podemos relacionar a figura do atirador de toadas ou mestre do grupo presente
nos maracatus com Chico Science e as canções do Afrociberdelia (1996), que
se configuram como toadas de um maracatu envenenado, de um “maracatu
atômico”24. Essa relação foi sugerida por Moisés Neto, no livro Chico Science:
A Rapsódia Afrociberdélica (2010). Com base nisso, relacionamos a canção
estudada neste capítulo com uma espécie de anunciação de “chegada” dos
cortejos de maracatus. Isso é possível de perceber logo no início da canção
“Mateus Enter”: “eu vim com a nação zumbi/ ao seu ouvido falar”.
Agora, observemos os versos de “chegada” citados por Moisés Neto:
“Bom dia, seu Amauri/ Tá Galdino aqui de novo/ Pra fazer seu carnaval/ Pra o
senhor e pra o seu povo” (apud NETO, 2010, p. 28); agora a toada do
Maracatu Nação Erê: “Ô lelê Ô lelê Ô lelê Ô lalá/ A Nação Erê acabou de
chegar” (apud VARGAS, 2007, p. 156). Por fim a letra da canção “Cheguei meu
povo”, do maracatu Nação Estrela Brilhante: “Cheguei meu povo, cheguei pra
vadiar/ Cheguei meu povo, cheguei pra vadiar/ Sou eu a Nação Estrela não
prometo pra faltar”.
Apesar de o atirador de loas estar no maracatu rural e de Chico Science
recorrer mais ao ritmo do maracatu nação, essa comparação se torna possível
a partir do momento em que o próprio cantor, em performance, não diferencia
os dois tipos de maracatu. Um exemplo disso é quando ele sobe no palco
55
vestido de caboclo de lança, enquanto toca o maracatu nação, durante o show
no Hollyood Rock in Concert (1996). Naquele momento, tocava-se a canção
“Salustiano Song”25 do primeiro disco, Da lama ao caos (1996). Por fim, outra
canção que se aproxima dessa imagem do atirador de loa é “Introdução I”, do
grupo Faces do Subúrbio (1996). A canção foi escrita por Zé Brown, KSB,
Tiger.
25
Nona composição. De autoria de Lúcio Maia e Chico Science. O título da canção remete a
um batuqueiro famoso em Pernambuco, mestre Salustiano.
26
Transcrição do áudio.
56
que Chico Science faz essa antropofagia cultural dos elementos musicais e
performáticos.
Além dessa incorporação cultural nas composições, podemos notar que
as canções de Chico Science buscaram “estabelecer uma relação diferente
com a produção musical popular, dividindo seus espaços com ela e não se
importando de deixar cair sobre seus parceiros as luzes dos holofotes, tendo,
inclusive alavancado com sua popularidade” (AMARAL, 2005 p. 78). Ao abrir
espaço para esse diálogo com outros artistas em cima do palco, Chico Science
auxiliava o artista a divulgar seu trabalho e dava-lhe oportunidade de sair do
anonimato.
Nesse sentido, Chico Science conseguiu unir essa crioulização de
melodias, harmonias, ritmos a diversidade e dar voz ao artista subalterno,
“divulgando de forma massiva artistas oriundos de classes populares, como a
cirandeira Lia de Itamaracá, Selma do Coco e o próprio mestre Salu”
(NASCIMENTO, 2000, p. 190 apud VICENTE, 2005, p. 99). Com isso, Chico
Science não só representou o silêncio do subalterno nas canções, como
também permitiu que tivessem voz.
Dessa forma, ele mantinha não só um diálogo com o maracatu, mas
também com as pessoas que faziam com que o ritmo e o cortejo
permanecesse culturalmente por meio da tradição. O mesmo acontece quando
Science dialoga com os ritmos e os artistas populares, pois essa crioulização
acaba sendo uma forma de permanência de um determinado elemento, no
caso, o maracatu, dentro de uma cultura. No caso do maracatu scienciano, por
mais que os ritmos se crioulizem com o maracatu, ainda é possível identificá-lo.
Logo, não há uma descaracterização completa do ritmo.
Com essa crioulização, não só se propagava uma tradição, como
também se confirmava uma tradição da ruptura27, como, por exemplo, há no
caboclo de lança do maracatu rural. Segundo Vicente (2005), esse
personagem do maracatu rural não usava óculos e as fitas que representam os
cabelos eram bem mais curtas. O que hoje vemos é a continuidade de uma
mudança.
27 Lembrando o texto de Octávio Paz, “Tradição da ruptura”, no livro Filhos do barro (1984).
Nesse texto, Paz (1984, p. 17) trata do paradoxo que é falar da tradição como algo imutável: “a
tradição da ruptura implica não somente a negação da tradição, como também da ruptura”.
57
FAIXA 2: As narrativas em “O cidadão do mundo”
Faixa 2.1 – Sobre os personagens: Mateus, pivete e capitão
1 a estrovenga girou
2 passou perto do meu pescoço
3 corcoviei, corcoviei
4 não sou nenhum besta seu moço
5 a coisa parecia fria
6 antes da luta começar
7 mas logo a estrovenga surgia
8 girando veloz pelo ar
9 eu pulei, eu pulei
10 corri no coice macio
11 só queria matar a fome
12 no canavial da beira do rio
13 jurei, jurei
14 vou pegar aquele capitão
15 vou juntar a minha nação
16 na terra do maracatu
17 Dona Ginga, Zumbi, Veludinho
18 segura o baque do mestre Salu
19 eu vi, eu vi
20 a minha boneca vodu
21 subir e descer no espaço
22 na hora da coroação
23 me desculpe
24 mas esta aqui é a minha nação
25 Daruê malungo, Nação Numbi
26 é o zum zum zum da capital
27 só tem caranguejo esperto
28 saindo desse manguezal
29 eu pulei, eu pulei
30 corria no coice macio
58
31 encontrei o cidadão do mundo
32 no manguezal da beira do rio
33 Josué!
34 eu corri saí no tombo
35 se não ia me lascá
36 segui a beira do rio
37 vim pára na capitá
38 quando vi numa parede um penico anunciá
39 é liquidação total
40 o falante anunciou
41 ih, tô liquidado
42 o pivete pensou
43 conheceu uns amiguinhos
44 e com eles se mandou
45 aí meu velho
46 abotoa o paletó
47 não deixe o queixo cair
48 e segura o rojão
49 vinha cinco maloqueiro em cima do caminhão
50 pararam lá na igreja
51 conheceram uns irmãos
52 pediram pão pra comer
53 com um copo de café
54 um ficou roubando a missa
55 e quatro deram no pé
56 chila, relê, domilindró...
(SCIENCE, 1996)
28
A concepção de narrativa adotada neste trabalho não está embasada em uma corrente da
teoria literária (Formalismo Russo), mas sim na tipologia textual em que se desenvolve o
gênero canção.
59
devasta, que silencia outras culturas. Na poética da relação, o errante não é a
recusa de uma identidade, mas sim o constante diálogo com outras culturas.
Nessa canção, a errância é sinalizada pelos dois personagens
principais, que não possuem nomes, mas que, neste trabalho, serão
chamados, respectivamente, de Mateus e de pivete. Essa nomeação dos
personagens justifica-se, primeiro, porque a transição entre “Mateus Enter” e
“O Cidadão do Mundo” é muito curta, sugerindo uma leitura de que elas estão
emendadas, como uma espécie de extensão, de continuação. Em outras
palavras, é como se o personagem da primeira canção, “Mateus”, continuasse
na segunda. O outro personagem chamaremos de pivete, pois é a única
referência textual a ele, como pode ser visto no verso 42, onde o eu-lírico o
chama dessa forma: “o pivete pensou”.
Contrapondo-se à errância representada por Mateus, há o capitão,
personagem sem nome próprio, mas que também pode ser percebido pela
referência textual no verso 14, “vou pegar aquele capitão”. A primeira ação é
desse personagem: “a estrovenga girou/ passou perto do meu pescoço”,
sinalizando para o leitor o nomadismo em flecha, que é a identidade raiz,
aquela que se baseia na ideia fundante de território, ou seja, ela “é santificada
pela violência oculta de uma filiação que decorre rigorosamente desse episódio
fundador” (GLISSANT, 2011, p. 139). Nesse sentido, a errância é a negação do
nomadismo em flecha, o qual possui “um desejo devastador de sedentarismo”
(GLISSANT, 2011, p. 22) e que, por sua vez, está relacionado ao colonizador.
Na canção estudada, as narrativas de errância podem ser observadas
no âmbito linguístico, já que há narrativas cantadas pela voz do intérprete,
Chico Science, como também no âmbito musical, percebidas pelos demais
instrumentos musicais. Em meio aos ritmos executados, há uma cultura, um
discurso subjacente, como é o caso do maracatu. Os instrumentos de
percussão herdados da cultura afro-brasileira, a alfaia, o berimbau, o agogô,
por exemplo, também trazem um discurso consigo, como veremos mais
adiante.
Essas relações estabelecidas com outras culturas, a partir dos
instrumentos e dos ritmos, são incorporadas à linguagem scienciana da obra
aqui estudada. Desse modo, no que diz respeito ao discurso, o processo de
crioulização em “Mateus Enter” é estendido à canção “O Cidadão do Mundo”. A
60
errância vai ao encontro e envolve o outro, assemelha-se, portanto, ao rizoma.
Já o nomadismo é o desejo de enraizamento, ele é análogo ao pensamento de
raiz única (GLISSANT, 2011).
O capitão, portanto, é a representação desse nomadismo que mata o
que está ao redor, que deseja invadir o outro. O ataque do capitão simboliza a
opressão de um discurso invasor, que busca reproduzir autorrelatos de sua
cultura (MIGNOLO, 2003). Esse tipo de narrativa que se autodescreve tem
como consequência o silenciamento das outras narrativas, de outras
identidades culturais. Um exemplo disso está na proposta de Ariano Suassuna,
que tinha a preocupação de salvaguardar os ritmos populares, com o
Movimento Armorial, misturando o coco, a embolada, os maracatus
(especificamente o maracatu nação) com “uma arte erudita que tivesse as
marcas ancestrais e originais da música do sertão nordestino oriunda da
música ibérica medieval” (VARGAS, 2007, p. 16).
Logo, o discurso de Chico Science, presente nas narrativas
apresentadas, busca contrapor-se a esse tipo de imposição, de silenciamento
das outras relações possíveis de se fazer e que foram trocadas por um
discurso cultural e poético-musical de origem colonizadora, tida como “erudita”.
Assim, percebemos as propostas de diálogo do Movimento Armorial como uma
continuação dos projetos globais do colonizador.
Por outro lado, Mateus e o pivete representam a errância que vai ao
encontro do outro, que deseja a relação com o outro. Portanto, nesse ponto
ela, a errância, assemelha-se à crioulização. Logo, relacionando o processo de
crioulização com a canção “O cidadão do mundo”, podemos notar que ela
apresenta uma releitura da cultura afro-brasileira, como uma forma de
revalorização.
Contudo, devemos tomar cuidado com uma análise que privilegie o
elemento híbrido, como já foi dito. Segundo Luiz Tatit, em O século da canção
(2004, p. 91): “a mistura é na verdade um fenômeno universal que adquire
especial notoriedade no Brasil provavelmente pelo tratamento euforizante que
sempre lhe foi dispensado a partir de Gilberto Freire”. Ainda sobre essa
questão, Tatit (2004, p. 91, grifo do autor) afirma que a assimilação é positiva
enquanto “enriquecimento cultural, no sentido de inclusão de valores”, apesar
de essa inclusão estar “longe de representar uma desobstrução plena das
61
fronteiras raciais socioeconômicas ou mesmo dos limites que separam arte
popular e arte de elite”.
Para Mignolo (grifo nosso, 2003, p. 71), “a hibridez é o resultado visível
que não revela a colonialidade do poder inscrita no imaginário do mundo
colonial/moderno”. A crioulização, ao contrário da hibridez, promove uma
rearticulação antropofágica, em que as vozes subalternas são inscritas dentro
de um discurso liminar. Portanto, em “O cidadão do mundo”, há o movimento
inverso à unidade ou a essa hibridez de que falam Tatit (2004) e Mignolo
(2003). Essa canção apresenta uma releitura da cultura afro-brasileira, como
uma forma de revalorização. A crioulização, no contexto de produção da
canção, apresenta-se, inicialmente, como um discurso contrário a uma
imposição cultural e estética da época, como era o caso do Movimento
Armorial, por exemplo. Nessa canção, esse processo se apresenta na forma de
narrativa errante, “é bem a imagem do rizoma, que nos faz reconhecer que a
identidade não está só na raiz, mas também na Relação” (GLISSANT, 2011, p.
28). Essas narrativas das margens se contrapõem ao discurso oficial dos
“brancos”. Errante no sentido do desvio, do marginal, daquilo que ninguém dá
credibilidade.
Logo, o discurso lítero-musical, isto é, as releituras feitas pela canção
estudada, caracterizam-se como uma fissura de um imaginário colonial. Por
meio de duas narrativas, ela retrata dois sujeitos subalternos, o Mateus e o
pivete, em busca de sobrevivência. Ao longo das narrativas, podemos destacar
a forma como as ações são contadas e o que elas sugerem, a partir de uma
leitura pós-colonial. A travessia dos personagens traz à tona a resistência e o
desejo de errância, de ir ao encontro do outro, ou seja, reinterpretando uma
imagem que procura descentralizar o padrão eurocêntrico.
62
poder, por meio das ações realizadas na história e da forma de narrar dessa
canção. Isso não implica uma inversão de polos, ou seja, o subalterno passa a
ser dominante e o dominante, subalterno. A questão é mais complexa, o
pensamento liminar ou a razão pós-colonial são “os momentos de fissura no
imaginário do sistema mundial colonial/moderno” (MIGNOLO, 2003, p. 49).
Tendo isso como pressuposto, quando falamos em crioulização,
segundo Glissant (2005), e no contexto afrociberdélico de Chico Science &
Nação Zumbi, devemos ter em mente pelo menos três aspectos: a
revalorização da cultura africana através do contato com outras culturas; o
pensamento rizomático de Deleuze e Guattari (2009); e a relação terminológica
com a língua crioula. Isso quer dizer que o termo crioulização aproveita o que
se considera como língua crioula, ou seja, as línguas que “provêm do choque,
da consumpção, da consumação recíproca de elementos linguísticos, de início
absolutamente heterogêneos uns aos outros, com uma resultante imprevisível”
(GLISSANT, 2005, p. 25).
A partir disso, podemos dizer que há crioulização no campo verbal e
sonoro, já que podemos ouvir tanto a hibridez do português com o inglês 29 nas
canções, numa espécie de antropofagia morfológica, como já falamos no início
deste trabalho e como podemos ouvir na mistura rítmica e harmônica nas
canções do álbum Afrociberdelia (1996).
Por esse motivo é que podemos dizer que a poética scienciana em “O
Cidadão do Mundo” constitui um terreno de “caos criativo” (LIRA, 2000, p. 14),
no qual a rede de ligações entre os aparentes opostos rio/ mar; clássico/
popular; cidade/ mangue/ homem são (de)compostas como rizoma, ou seja,
“não é o Uno que se torna dois, nem mesmo que se tornaria diretamente três,
quatro ou cinco etc. Ele não é um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o
Uno se acrescentaria (n + 1)” (DELEUZE; GUATTARI, 2009, p. 32). Segundo
esses autores (2009, p. 32), “Ele não é feito de unidades, mas de dimensões,
ou antes de direções movediças”. O pensamento raiz e o pensamento rizoma
são dois tipos de pensamento propostos por Deleuze e Guattari (2009), em que
o primeiro tipo de pensamento mata o que está à sua volta, e o segundo vai ao
encontro de outras raízes.
29
Há também uma canção com metade da letra em inglês e a outra metade em português,
“Sobremesa” (1996).
63
É considerando esse aspecto do rizoma que Glissant constrói a ideia de
crioulização. Ele associa a ideia raiz única e pensamento rizoma ao princípio
de identidade e em função de uma “categorização das culturas”, em atávicas e
compósitas. As culturas atávicas são aquelas relacionadas à identidade raiz
única, ou seja, são aquelas que matam o que está à sua volta. Essa é a
identidade do colonizador, é ela que vai reforçar os nós da colonialidade do
poder, trazendo um discurso fundante, isto é, um discurso cuja intenção é a
permanência de uma cultura, de valores totalitaristas e, portanto, de reforço à
subalternidade de determinadas vozes. Na canção em questão, isso pode ser
percebido logo nos primeiros versos: “a estrovenga girou/ passou perto do meu
pescoço”, aqui há uma tentativa de oprimir o personagem que só queria se
alimentar no canavial na beira do rio.
As culturas compósitas, por sua vez, são aquelas associadas ao
princípio de identidade rizomática. Logo, as culturas compósitas são aqueles
em que se pratica a crioulização, partindo de uma “revalorização da herança
africana” (GLISSANT, 2005, p. 21) por meio da relação rizomática entre as
culturas. Para Glissant, é através dessa revalorização que se reestabelece “o
equilíbrio entre os elementos colocados em presença uns dos outros através
do modo de povoamento representado pelo tráfico de africanos” (Ibidem) e
que, segundo esse autor, “os componentes culturais africanos e negros foram
normalmente inferiorizados” (Ibidem).
A crioulização se baseia no pensamento rizomático, na medida que tem
como princípio a relação com outras raízes, com outras culturas. Isso quer
dizer que a crioulização tem como foco a relação, mas sem inferiorizar ou
matar outras culturas (GLISSANT, 2005). Segundo ele, “o pensamento rizoma
estaria na base daquilo a que chamo uma Poética da Relação, segundo a qual
toda identidade se prolonga numa relação com o Outro” (GLISSANT, 2011, p.
21). Ao contrário da cultura do colonizador, representada pelo nomadismo em
flecha e pelas narrativas as quais se reproduzem autorrelatos de sua cultura
(MIGNOLO, 2003), esse tipo de narrativa que se autodescreve tem como
consequência o silenciamento de outras narrativas, de outras identidades
culturais.
64
Nesse contexto de dar voz à cultura que estava à margem naquela
época, percebe-se também uma aproximação com a rítmica do rap e da
embolada, conforme apontam os estudos de Amarino Queiroz (2002, p. 85):
Queiroz (2002), nesse trecho, faz uma leitura da obra de CSNZ de uma
forma ampla, no entanto, essa perspectiva nos ajuda a perceber a crioulização
de que fala Glissant nos arranjos poéticos musicais desses e de outros estilos
musicais com o maracatu, já que em quase todas as suas canções o maracatu
aparece de formas diferentes, ao ponto de haver uma criação de um estilo
próprio. Sendo assim, considerando que a obra Afrociberdelia (1996) dialoga
com diversas culturas, incluindo a subalterna, podemos analisar, a partir das
narrativas lítero-musicais, como a identidade mangue na canção “O Cidadão do
Mundo” pode ser compreendida como uma fissura no discurso hegemônico.
As narrativas que se apresentam nela trazem essas fissuras por meio
dos diálogos estabelecidos com a cultura afro-brasileira, com o maracatu
expresso em sua letra e no discurso musical, com o ritmo do maracatu, do rap
e/ou repente, por exemplo.
Nesse sentido, faz-se necessário lembrar, que, assim como temos duas
narrativas verbais, há também as narrativas musicais, pois cada instrumento,
por mais que não toque um ritmo, traz um discurso consigo. Na canção
“Cidadão do Mundo”, os instrumentos usados, além da voz humana, foram:
alfaia, sampler, berimbau, pick-up, guitarra, baixo e bateria. Não vamos entrar
aqui nos estudos da organologia30 de cada um dos instrumentos, mas não
podemos negar que o conjunto desses instrumentos traçam um imaginário
crioulizado, sobretudo, quando se trata de um instrumento africano ou afro-
brasileiro tocando um ritmo norte-americano, por exemplo.
30
Disciplina que trata da classificação e análise dos instrumentos musicais.
65
Faixa 2.3 – Diálogos de “O Cidadão do Mundo” com a errância
31 http://www.jorgebenjor.com.br/sec_disco_letra.php?obra_id=112&id=14&id_faixa=40&num=5
66
Nos dois casos, o “Ih!” é entoado numa região aguda da voz (última linha
da pauta, fá), como pode ser observado a seguir:
Figura 9: trecho de “Mateus Enter” (c); Transcrição: Victor Dantas e Natalia Pinheiro.
67
do violão32. Os outros instrumentos são tocados por CSNZ: a voz, o baixo e a
batida eletrônica. Esse acompanhamento segue os 8 primeiros versos da letra:
a estrovenga girou
passou perto do meu pescoço
corcoviei, corcoviei
não sou nenhum besta seu moço
a coisa parecia fria
antes da luta começar
mas logo a estrovenga surgia
girando veloz pelo ar
(SCIENCE, 1996)
32
“F/C”, acorde de fá com baixo em dó.
68
eu-lírico que foi reprimido e que agora jura se vingar: “jurei, jurei/ vou pegar
aquele capitão”.
Notem que a história está sendo narrada por uma voz subalterna e não
pelo capitão. Apesar de o primeiro personagem não concretizar sua vingança,
a narrativa, de uma forma geral, inscreve-se dentro de um discurso pós-
colonial. É quando esse eu-lírico e personagem emerge do silêncio
conformador e enfrenta o capitão. Fica evidente, nesse momento, como o
imaginário do sistema colonial é fissurado, pois a voz, como já dissemos,
corporifica, marca sua existência no mundo.
O fato de o personagem não ter nome permite que o ouvinte estabeleça
uma relação de empatia com a história narrada, isto é, dando a impressão de
que o acontecimento narrado pode acontecer com o ouvinte. Essa simulação,
como já dissemos, é chamada de “simulacro de locução” (TATIT, 1986).
É importante observar que essa simulação espanta as possíveis
interpretações da canção, como acontece quando o eu-lírico que está narrando
vai jurar vingança junto da nação: “jurei, jurei/ vou pegar aquele capitão/ vou
juntar a minha nação”. Repare que a nação a que ele está se referindo podem
ser três: a nação como sendo a banda, Nação Zumbi; a nação como sendo um
grupo de amigos (sem ser necessariamente da banda); ou como a nação
brasileira.
Nos três casos, o “eu” pode ser a voz do eu-lírico ou da pessoa que
ouve, quando esse ouvinte se coloca como eu-lírico. Como já dissemos
anteriormente, o eu-lírico traz consigo um discurso que não é só seu, é uma
construção coletiva, como já dissemos. Fazendo uma ponte com a canção
anterior, podemos dizer que o olhar da descolonização presente em “Mateus
Enter” permanece em “O Cidadão do Mundo”. Em outras palavras, isso reforça
o que vínhamos falando a respeito do personagem capitão como
representação de um sistema de organização baseado em hierarquias, na qual
se insere esse personagem como dominante, hegemônico, e o eu-lírico e
personagem como subalterno. Portanto, podemos dizer que o pensamento
liminar está inserido nessa perspectiva da narrativa, em que o subalterno tem
voz. Segundo Mignolo (2003, p. 76): “o pensamento liminar só pode existir na
69
perspectiva subalterna, nunca na territorial, isto é, de dentro da
modernidade”33.
Sendo assim, podemos dizer, também, que a canção possibilita uma
leitura que rearticula ou descentraliza o olhar que representa a perspectiva
colonial. Prova disso é a continuação dos versos: “jurei, jurei/ vou pegar aquele
capitão/ vou juntar a minha nação/ na terra do maracatu/ Dona Ginga, Zumbi,
Veludinho/ e segura o baque do mestre Salu”. A terra do maracatu é uma
referência a Pernambuco, marcando o local de onde emerge a voz que canta.
Outra coisa interessante a se observar nesse contexto em que o
pensamento liminar está subjacente ao discurso lítero-musical de Chico
Science, é que as pessoas citadas nos dois últimos versos são heróis da
cultura africana, afro-brasileira e dois batuqueiros de maracatu (maracatu
nação e maracatu rural), respectivamente.
Dona Ginga (ou Rainha Nzinga) e Zumbi dos Palmares foram
contemporâneos. Duas personagens históricas de origem africana conhecidas
pelos seus atos de resistência à colonização. Veludinho, que ficou conhecido
como batuqueiro do grupo Nação Leão Coroado, é conhecido por ser um dos
mais antigos batuqueiros. “Salu” (uma abreviação de Salustiano) também foi
compositor e fundador do Maracatu Piaba de Ouro, em 1997, e conhecido
compositor e tocador de maracatu em Pernambuco. O primeiro maracatu
representa o maracatu de baque virado e o outro o maracatu de baque solto.
Quando se faz essa homenagem, não podemos ser ingênuos de pensar
que foi uma simples quebra temática, uma fragmentação na narrativa ou uma
explicação de quem compõe a “nação”. Há, nessa homenagem, uma
intencionalidade. Ao vir precedida por “vou juntar a minha nação”, pode ser lida
a partir de outra perspectiva. O juramento de vingança, segundo essa leitura, é,
pois, a representação da fissura no discurso do imaginário colonial.
Logo, a retomada desses personagens marca também a retomada de
um discurso afro-brasileiro. É como se a nação, chamada pelo eu-lírico e
personagem para ajudar na vingança (“vou juntar a minha nação”), fosse
composta por todos esses elementos que compõem a história e a cultura afro-
33A modernidade tratada por Mignolo (2003, p. 48) não é aquela relacionada à estética, mas é
“sua própria autodescrição, as formas pelas quais descreve a si mesmo através do discurso do
Estado, dos intelectuais e dos acadêmicos”.
70
brasileira. Sendo assim, podemos perceber como o pensamento liminar está
presente na narrativa da canção, não só na forma de homenagem, como
também no plano simbólico dessa homenagem, ou seja, nas implicações
semânticas para a interpretação.
Seguindo essa leitura, outra coisa importante a ser observada é a ordem
dos nomes. Chico Science escolheu começar pela mulher negra africana, Dona
Ginga. Fazendo isso, ele marca o lugar da narrativa, o da fissura do discurso
hegemônico. Sendo assim, essa narrativa reconstrói identidades nacionais por
meio da costura das várias culturas que (de)compõem as identidades
brasileiras a partir das margens.
Consideramos, portanto, que a narrativa faz parte da construção da ideia
de identidades nacionais não unificadas. Para Hall (2001, p. 65), “as
identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e
não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de
lealdade e de diferenças sobrepostas”. Segundo o autor, as identidades
nacionais não são estáveis, mas em processo de construção e desconstrução
contínuos. Por isso, dizemos que a narrativa nessa canção retoma a
compreensão de identidades nacionais não unificadas.
Na sequência, temos os versos “E segura o baque do mestre Salu”,
como se fosse uma ordem, pois a expressão “segura o baque”, no contexto em
que foi usada, significa algo como “preste atenção nesse som” ou “ouça com
atenção”. Esses versos podem ser lidos como uma forma de chamar a atenção
para o que vem em seguida: “eu vi, eu vi/ a minha boneca vodu/ subir e descer
no espaço/ na hora da coroação” (SCIENCE, 1996).
Segundo Vargas (2007, p. 158), a boneca vodu “traduz a calunga,
símbolo dos maracatus, levada em estandartes e em evolução para a coroação
dos reis negros”. Nesse sentido, entendemos que o movimento de subir e
descer no espaço representa a movimentação que a dama-de-paço faz com a
calunga durante do cortejo. Nas palavras de Guerra-Peixe (1955, p. 40, grifo do
autor), ela “concede certa liberdade para a figurante dançar com a boneca,
articulando-a ora para o alto, ora para baixo”.
Para Mário de Andrade (1982, p. 145), a palavra calunga é de origem
banta. Segundo os estudos desse autor, o significado é incerto, provavelmente,
serve para designar, quando no masculino (o calunga) “ao negro em geral, aos
71
trabalhadores de autocaminhão e as figuras plásticas” e “no feminino, a
calunga, às raparigas pretas e à boneca levada pela Dama do Passo” (idem).
De uma forma geral, a calunga parece adquirir outra significação dentro do
maracatu, um significado diferente do encontrado.
Ao contrário do sentido místico percebido por Andrade (1982), Guerra-
Peixe (1955, p. 38, grifo do autor) afirma que ela não tinha poder sobrenatural,
e que, em geral, representava os ancestrais: “o certo, porém, é que as
calungas, quaisquer delas, como bonecas que ‘representam’ os ancestrais
africanos, são um registro repetido em diversos maracatus tradicionais”.
Independentemente dessa oscilação nas compreensões, é certo que ela
parece representar a união e a perpetuação do maracatu, da tradição africana
no contexto brasileiro, reforçando uma compreensão da poética da diversidade.
Outro elemento do maracatu que se apresenta na letra da canção é a coroação
do maracatu (“na hora da coroação”). É o momento em que o cortejo simula a
coroação de um rei de seu país de origem, com a intenção de celebrar a
cultura afro. Segundo Guerra-Peixe (1955, p. 12), o maracatu nação é “um
cortejo real cujas práticas são reminiscências decorrentes das festas de
coroação de reis negros, eleitos e nomeados na instituição do Rei do Congo”.
A retomada desses elementos do maracatu só reforça a leitura que
estamos fazendo do juramento de vingança do eu-lírico e personagem e da
representação desses personagens nesse contexto lítero-musical. A mesma
leitura pode ser feita com os versos seguintes, só que com um tom de ironia:
“me desculpe, senhor me desculpe/ mas esta aqui é a minha nação”. Nesse
caso, a nação pode se referir ao momento da enunciação do verso, como se
dissesse “é essa a nação que está comigo”, tratando do grupo musical, ou da
musicalidade afro-brasileira. Outra possibilidade de leitura para a “nação”, e
talvez a mais evidente, é de uma retomada ao juramento de vingança: “vou
juntar a minha nação”. Numa última leitura, essa expressão pode ser uma
referência ao maracatu, ao mesmo tempo que se refere ao território brasileiro.
É como se dissesse que a nação brasileira é essa cultura afro-brasileira do
maracatu.
Avançando para os próximos versos, podemos notar que eles são uma
resposta também ao engessamento estético que alguns grupos musicais, como
os do movimento Armorial, queriam. É o que se pode observar nos versos:
72
Daruê malungo, Nação Zumbi
é o zum zum zum da capital
só tem caranguejo esperto
saindo desse manguezal.
(SCIENCE, 1996)
73
referir à população que vivia em Recife (Manguetown). Essa cidade é traduzida
na canção como sendo o manguezal.
Na sequência, a narrativa da história retorna, porém com algumas
diferenças:
eu pulei, eu pulei
corria no coice macio
encontrei o cidadão do mundo
no manguezal da beira do rio
eu pulei, eu pulei
encontrei o cidadão do mundo
no manguezal da beira do rio
Josué!
(SCIENCE, 1996)
34 http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro/verbetes/cidadao.htm
35 Significa: “Foge sem pisar em falso” (VARGAS, 2007, p. 158).
75
o falante anunciou
ih36, tô liquidado
o pivete pensou
conheceu uns amiguinhos
e com eles se mandou
aí meu velho
abotoa o paletó
não deixe o queixo cair
e segura o rojão
(SCIENCE, 1996)
é liquidação total
o falante anunciou
ih, tô liquidado
o pivete pensou
(SCIENCE, 1996)
36
Como já foi dito, a interjeição “ih” não é cantada por Chico Science, mas sim por Jorge Ben
Jor.
76
Em seguida, a história toma outro rumo. Mateus deixa de contar sua
trajetória para descrever as ações do pivete, demonstrando que conhece uns
amigos, tratando-os no diminutivo, “amiguinhos”, para ironizar e falar do
envolvimento dele com ladrões. Depois, vem a sentença na forma de diálogo
com o ouvinte, marcando outra mudança na narrativa: “aí meu velho/ abotoa o
palitó”37. É como se dissesse que com essas amizades a morte era certa para
o pivete.
Nos versos seguintes, o eu-lírico fala para não se assustar e prestar
atenção (“não deixe o queixo cair/ e segura o rojão”), o que nos faz presumir
que continua se referindo ao ouvinte. Na sequência, finaliza-se a narrativa
contando como foi o assalto a uma igreja.
Nesse sentido, o texto sugere que quem roubou a igreja foi o pivete de
que fala o eu-lírico e que os quatro que deram no pé são seus “amiguinhos”.
Sobre ao significado da expressão final “chila, relê, dominlidró”, encontramos
duas possíveis explicações. A primeira é a de Paulo André, produtor do
Afrociberdelia (1996) e amigo da banda. Em entrevista concedida à MTV, no
“Especial 15 anos Sem Chico Science” (2012), André afirmou que essa
expressão foi tirada de um homem que passava bêbado na rua. Nas palavras
do produtor: “Aquela história de ‘chila, relê, domilindró’ era um doido de
subúrbio que passava na rua bêbado gritando e a galera tirava onda e isso
nunca saiu da cabeça dele” (2012)38. O segundo significado possível é o de
que essa expressão era usada pelo grupo, CSNZ, como uma espécie de
saudação. Segundo Vargas (2007, p. 159), a expressão não tem significado
nenhum:
77
É, na verdade, uma frase lúdica de sonoridade peculiar usada
como vínculo interno dos músicos da banda, espécie de
diálogo de reconhecimento: por alguns motivos, quando um
componente fala o primeiro termo, um segundo responde com
o segundo e um outro ainda, ou todos os presentes respondem
com a última palavra conforme explicação de Lúcio Maio e
Jorge Du Peixe.
78
colonialidade do poder, representada pelo capitão. No entanto, como afirma
Mignolo (2003, p. 83), não se trata de recontar do lado inverso, trata-se de
Não são apenas histórias contadas do lado inverso, mas são histórias
esquecidas que trazem para o primeiro plano, ao mesmo tempo, uma
dimensão epistemológica diferente: da e a partir das margens (MIGNOLO,
2003). Além de narrar, quando Mateus canta sua vingança, ele está se
impondo e afirmando seu lugar no contexto cultural em que vive.
A história contada revela uma descontinuidade, tanto no que diz respeito
às ações narradas (verbal), como na musicalidade. Em meio a essa
descontinuidade é que podemos perceber a crioulização, principalmente, no
plano sonoro, pois, ao longo da canção, o ritmo do maracatu é executado ora
pela batida eletrônica, ora pelas batidas as alfaias.
Enquanto Chico Science canta, são inseridos trechos de outras canções.
Dessa forma, costuram-se, em meio à voz do cantor Chico Science, as
canções “Cuidado com o bulldog”, de Jorge Ben Jor; “Louvação”, de Torquato
Neto e Gilberto Gil; e “Batmacumba”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Esses
retalhos são permitidos graças a um equipamento eletrônico chamado de
sampler, já citado anteriormente. Esse equipamento, para Rose (1997, p. 210
apud SOUZA; FIALHO; ARALDI, 2008, p. 77), reflete “o espírito inicial do rap e
hip hop como espaços coletivos e experimentais, nos quais questões
contemporâneas e forças ancestrais são simultaneamente trabalhadas”.
Logo, a utilização de sampler, equipamento muito utilizado no hip hop,
permite introduzir uma batida eletrônica e fragmentos de outras canções em
meio a uma canção. As batidas eletrônicas geralmente são produzidas pelas
pick-ups e os trechos de outras canções. Geralmente, esses trechos “são
curtos e quase irreconhecíveis, e em outros momentos aparecem
explicitamente, reforçando alguma mensagem da letra do rap” (SOUZA;
FIALHO; ARALDI, 2008, p. 75).
79
É por meio do sampler que Chico Science vai articulando um mosaico de
canções, no qual não predomina apenas o enxerto de elementos distintos, mas
a ressignificação do imaginário colonial/moderno para evidenciar uma
perspectiva subalterna. Essa costura pode ser observada no quadro descritivo
a seguir. Nele, temos uma síntese da mescla entre o que foi composto por
Chico Science e Nação Zumbi e os recortes e colagens feitos pelo sampler:
a estrovenga girou
passou perto do meu pescoço
corcoviei, corcoviei A batida eletrônica produzida pelas
não sou nenhum besta seu moço pick-ups eletrônicas continua e
a coisa parecia fria acrescenta-se o outro violão da
antes da luta começar canção “Cuidado com o Bulldog”,
mas logo a estrovenga surgia Jorge Ben Jor e o baixo tocado por
girando veloz pelo ar Dengue, da Nação Zumbi.
39Lembrando: como no encarte do álbum Afrociberdelia (1996) não havia esse trecho,
decidimos transcrevê-lo por ser relevante para demonstrar o que pretendemos neste momento.
80
Gilberto Gil.
jurei, jurei
vou pegar aquele capitão
vou juntar a minha nação
na terra do maracatu
Dona Ginga, Zumbi, Veludinho
segura o baque do mestre Salu
eu vi, eu vi
Volta a tocar o violão de “Cuidado
a minha boneca vodu
com o Bulldog”, seguido de uma
subir e descer no espaço
batida eletrônica produzida pelas
na hora da coroação
pick-ups. O baixo aqui é tocado
me desculpe, senhor, me desculpe40
por Dengue.
mas esta aqui é a minha nação
Daruê malungo, Nação Numbi
é o zum zum zum da capital
só tem caranguejo esperto
saindo desse manguezal
eu pulei, eu pulei
corria no coice macio
encontrei o cidadão do mundo Percussão da Nação Zumbi, no
no manguezal da beira do rio ritmo do maracatu Nação, com o
baixo da canção “Cuidado com o
Bulldog”.
40
Esse trecho do verso não consta no encarte.
81
canção “Batmacumba” (1968),
composta por Caetano Veloso e
Gilberto Gil.
(SCIENCE, 1996)
Como já foi dito, essa interjeição corresponde à canção de Jorge Ben Jor, “Cuidado com o
41
Bulldog”.
82
descrição, não colocamos todos os instrumentos. A intenção de se fazer esse
quadro descritivo é de dar uma macro visão dos retalhos dessa canção.
As releituras de outras canções, proporcionadas pelo sampler, trazem
essa ideia de descentramento, de movência. A relação com o discurso
tropicalista fica clara quando são retomadas canções do tropicalismo
(“Batmacumba” e “Louvação”) ou que se aproxima dessa perspectiva (“Cuidado
com o Bulldog”). Além disso, fica marcada também a oscilação entre o ritmo
textual da primeira história e o da segunda história. A partir de “eu corri saí no
tombo/ se não ia me lasca/ segui a beira do rio/ vim pará na capitá”, a narrativa
adquire um novo ritmo textual, que, apesar de não apresentar um padrão, há
um conjunto de versos heptassílabos (redondilha maior, nos versos 7, 8, 9, 10
e 11), comumente usados por repentistas, como podemos ver a seguir:
1 23 4 5
é!/a/í/ meu/ velho
1 2 3 4 56
a/bo/toa o/ pa/le/tó
1 2 3 4 5 6 7
não/ dei/xe o/ quei/xo/ ca/ir
1 2 3 4 5 6
e/ se/gu/ra o/ ro/jão
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
vi/nha/ cin/co/ ma/lo/quei/ro em/ ci/ma/ do/ ca/mi/nhão
1 2 3 4 5 6
pa/ra/ram/ lá/ na i/greja
1 2 3 4 5 6 7
co/nhe/ce/ram/ uns/ ir/mãos
1 2 3 4 5 6 7
pe/di/ram/ pão/ pra/ co/mer
1 2 3 4 5 6 7
com/ um/ co/po/ de/ ca/fé
1 2 3 4 5 6 7
um/ fi/cou/ rou/ban/do a/ missa
1 2 3 4 5 6 7
e/ qua/tro/ de/ram/ no/ pé
1 2 3 4 5 6 7 8
chi/la,/ re/lê,/ do/mi/lin/dró...
83
que as narrativas, especialmente a segunda, lembram o enredo e a narrativa
da literatura de cordel.
De um modo geral, da canção estudada, destacam-se os diferentes
modos de percepção subjetiva do contexto sociocultural periférico vivenciado
pela maioria do grupo CSNZ. Essa realidade é retratada quando eles trazem à
tona uma linguagem coloquial ou menos monitorada, em que predomina a voz
de uma cultura periférica. No campo da palavra estão as expressões coloquiais
do português, como, por exemplo: “aí meu velho/ abotoa o paletó/ não deixe o
queixo cair” (SCIENCE, 1996). Já no campo sonoro, estão os instrumentos
utilizados como o sampler, a alfaia, sobre os quais já falamos anteriormente.
As variações linguísticas são outro ponto relevante dentro da construção
da narrativa. Elas dão legitimidade à persuasão figurativa de que falamos
anteriormente. Há variação linguística do começo ao fim da canção, entretanto,
nos versos anteriormente tratados essa variação se apresenta, principalmente,
no campo lexical, como: “corcoviei”, “correr no coice macio” e “matar a fome”.
Na outra parte, insere-se a variação linguística, sobretudo no campo
fonológico, como: “lascá”, “capitá”, “anunciá” e “tô”. Ao fenômeno linguístico
encontrado nos três primeiros casos dá-se o nome de apócope, quando há
uma supressão de um fonema no final do vocábulo. No último caso, encontra-
se a aférese, quando há uma supressão de um fonema no início do vocábulo.
Essas variações podem ser vistas não só como marcas da periferia,
pois, como se sabe, elas também estão presentes em grupos
socioeconomicamente favorecidos. Desse modo, estamos cientes de que isso
não é “privilégio” da periferia, essa instabilidade é uma característica intrínseca
da língua, visto que a língua sempre está em processo de mudança (BAGNO,
2007).
Segundo Marcos Bagno (2007, p. 76), “cada variante linguística recebe,
no jogo das relações sociais, avaliações diferentes”, indo da mais
estigmatizada para a mais prestigiada. Ele afirma também que essa avaliação
é essencialmente social, logo, às variações mais comuns em falantes de menor
escolaridade e de área rural são atribuídos juízo e valores sociais mais
estigmatizados.
Ao utilizar uma variante linguística estigmatizada, Chico Science não só
está marcando o lugar social do eu-lírico da canção, como também está, por
84
meio da língua42, trazendo à tona a heterogeneidade linguística, bem como
uma heterogeneidade cultural representada por meio da representação do
modo de falar estigmatizado.
Segundo Stuart Hall (2001, p. 50), “as culturas nacionais são compostas
não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e
representações”. Esse autor entende cultura nacional como discurso, ou seja,
“um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas nações
quanto à concepção que temos de nós mesmos” (HALL, 2001, p. 50). Em
outras palavras, é justamente essa dinâmica da língua, especificamente das
línguas crioulas, que Glissant tomará como base para tratar da crioulização.
Sendo assim, as narrativas representam e constroem identidades, isto é, elas
fazem parte da formação desse discurso. No caso das narrativas da canção “O
Cidadão do Mundo” de Chico Science, podemos notar uma representação e
uma construção baseada, não numa narrativa que perpetua um mito, mas
numa narrativa que (de)compõe identidades.
Nesse sentido, quando nos deparamos com as duas narrativas da
canção em questão, deparamo-nos, também, com uma metáfora para a
fragmentação do sujeito. Subjacente a isso, e não menos importante, está a
revalorização das culturas afro-brasileiras. A canção “O Cidadão do Mundo”
sugere um deslocamento das identidades nacionais por meio da rearticulação
do imaginário do sistema mundial colonial/moderno.
É possível notar essa rearticulação com as narrativas (de Mateus e do
pivete), com as crioulizações musicais e com as variações linguísticas.
Colocamos, neste capítulo, a leitura das narrativas como elemento principal,
pois são elas que revelam um discurso da cultura afro-brasileira. Fazendo uma
releitura de Stuart Hall (2001), podemos dizer que esse discurso constrói
identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o futuro.
Pensando nisso, é que podemos dizer que quando Chico Science dá voz
ao subalterno, como também às culturas marginalizadas, ele está sinalizando
uma fissura no discurso hegemônico, como já foi dito. Segundo Philip Galinsky
(GALINSKY, 1999, p. 237 apud VARGAS, 2007, p. 157), nessa canção, “ficam
nítidas quatro partes em que aparecem mais ou menos misturados aspectos
42
É pensando nessa dinâmica da língua, especificamente das línguas crioula, que Glissant
tomará como base para tratar da crioulização.
85
rítmicos, melódicos, harmônicos, instrumentais”. Cada elemento desse é
retirado “de canto típicos de quatro tradições musicais envolvidas nas
composições do CSNZ: funk, maracatu, heavy metal e um híbrido de rap,
raggamuffin e embolada” (grifos do autor, Ibidem).
Como foi possível notar, em meio à poética da narrativa da canção “O
Cidadão do Mundo” de Chico Science, o texto verbal e musical nos traz para o
terreiro sonoro crioulizado. Nesse terreiro, evidencia-se a cultura afro-brasileira
no ritmo, na melodia e na letra da canção. A partir do que a canção nos sugere,
a crioulização se apresenta não apenas como um enxerto de diversos
elementos para representar uma poética híbrida, mas também por fissurar o
imaginário colonial/moderno com uma narrativa errante que nos traz à tona
uma poética marginalizada.
Logo, as vozes que constituem o discurso lítero-musical scienciano,
presente em “O Cidadão do Mundo”, trazem à tona a história esquecida ou
apagada pelo colonizador. Isso ocorre porque as narrativas dessa canção
representam o deslocamento das identidades nacionais, que destacam as
relações com a cultura afro-brasileira. O canto africano ressoa na poética
scienciana. Ao cantar essa cultura marginalizada, a totalidade do lugar é
reivindicada. Podemos dizer, assim, que dar palavra à voz é corporificar a nós.
Sintonizados com tudo isso, podemos dizer que na letra da canção e em
sua musicalidade ressoam a resistência, ressoam discursos distintos com o
propósito de legitimar uma leitura mais diversificada, cuja narrativa fissura um
discurso hegemônico.
86
FAIXA 3: Somos todos juntos uma crioulização
43
As características prototípicas da sequência textual narrativa são: a sucessão de eventos, a
unidade temática, a presença de uma macroestrutura: situação inicial, complicação, ações,
resolução, situação final e moral/avaliação. As formas verbais são: o pretérito do modo
indicativo e o futuro do presente.
88
Em sintonia com isso, as guitarras, os tambores, as percussões e a letra
indiciam “os dados e a dinâmica da cultura mestiça e a importância da
atualização das tradições, sejam locais ou estrangeiras” (VARGAS, 2007, p.
160). Isso pode ser percebido logo nos primeiros versos: “somos todos juntos
uma miscigenação/ e não podemos fugir da nossa etnia/ índios, brancos,
negros e mestiços/ nada de errado em seus princípios” (SCIENCE, 1996).
É interessante observar que no penúltimo verso, citado anteriormente,
temos três metonímias: “brancos, negros e mestiços”, pois faz-se uso de uma
característica para representar o todo, no caso, a cor de pele. Numa primeira
leitura, poderíamos atribuir a seguinte interpretação aos versos: os brancos
representam o colonizador, os negros representam os africanos e os mestiços
representam os filhos dos brancos com os negros. Neste último caso, segundo
Glissant (2005), não há crioulização, pois falta o elemento imprevisível, há
somente a mistura, o contato.
O índio também participa dessa miscigenação, porém, diferentemente
dos outros, ele é apresentado de forma mais direcionada, sem metonímias. Ao
contrário dos outros, que podem ter outras leituras, o substantivo “índio” deixa
mais determinado o que se quer dizer. Com isso, destaca-se também a
imagem de um personagem histórico apagado pela colonização.
Repare que o índio é o primeiro a ser citado: “índios, brancos, negros e
mestiços”. Há uma progressão nessa disposição. É como se o índio indicasse a
presença primeira em um território e os adjetivos que vêm em seguida
denotassem um grau de invasão dentro desse território. Quando se nomeia
como “índio”, diferentemente dos outros, ele não só está revelando uma carga
semântica, como também está ressignificada.
Como já foi dito, não é apenas uma contra-história, tampouco uma
negação do que existiu, mas o reconhecimento de que há um discurso
colonial/moderno que persiste nos dias de hoje. Vale lembrar que há uma
diferença entre colonialidade do poder e período colonial, como aponta Mignolo
(2003). O primeiro sublinha uma organização e um imaginário que reproduzem
uma imposição cultural e discursiva; o segundo, o período colonial, foi o
momento em que ocorreram essas imposições. Portanto, a presença do
“branco” nos versos de Chico Science encaixa-se, nessa leitura, como uma
89
forma de evitar a inversão de hierarquia. Esse discurso que converge para um
olhar crioulizado da canção.
Passando para uma segunda leitura, percebemos que a primeira torna-
se mais distante do que o texto como um todo apresenta. Ao ler os versos
seguintes (“nada de errado em seus princípios”), notamos que, se mantemos o
olhar da primeira leitura, é como se disséssemos que, em vez disso, o princípio
aqui é o da igualdade e não o da diferença (colonial). A utilização da
metonímia, nesse contexto, é uma forma de deixar em consonância esses três
elementos “brancos, negros e mestiços”.
Para essa afirmação, podemos nos embasar no título “Etnia”, que
remete a um conceito cuja compreensão é mais plural, crioulizada. Segundo
Vanderlei e Silva (2006, p. 124), no Dicionário de Conceitos Históricos,
91
Note que a formação do verbo “somos” mais o sujeito “todos juntos”, sugere-
nos uma identidade partilhada: o eu-lírico torna-se eu-coletivo. O plural
majestático “somos” incorpora o outro. O leitor, nesse caso, é levado e
desmembrado pela construção sintático-semântica da canção. O
descentramento dos sujeitos ocorre, pois o que se quer evidenciar é a relação.
Na canção “Etnia”, nota-se um redimensionamento poético do eu que se
dissolve em um eu-coletivo, ou seja, o pensamento dualista do Mesmo-Outro é
descentrado, o sujeito que poderia ser hegemônico agora é plural.
Apesar de esse plural majestático se apresentar explícito no início da
canção e depois não aparecer novamente, o fato de ter colocado um verbo no
início da frase, em evidência, em vez do sujeito, reforça o que estávamos
falando sobre identidade partilhada, sobre o eu-coletivo. Ao longo da canção,
isso se sustenta não com a conjugação do verbo, mas por meio de outros
elementos, musicais ou linguísticos, como veremos mais adiante.
O importante é notar que a escolha por começar a canção dessa forma
não só traz o leitor para dentro da canção, como também coloca-os em “pé de
igualdade”. Esse tipo de diálogo com o leitor pode ser percebido em: “o seu e o
meu são iguais” (SCIENCE, 1996, grifos nossos). Como já foi dito, esse
diálogo representa o que Tatit (1986) chama de persuasão figurativa. O eu
expresso na voz de Chico Science encontra-se com o Outro por meio da voz.
A “miscigenação” tratada na letra da canção e, ao mesmo tempo, no
instrumental, soa como o processo de crioulização, em que elementos distintos
entram em choque e interiorizam-se. A esses, acrescenta-se a
imprevisibilidade das relações, como pode se observar no trecho: “índios,
brancos, negros e mestiços/ nada de errado em seus princípios/ o seu e o meu
são iguais”. Note que apesar da ênfase na cultura afro-brasileira tratada nas
canções anteriores e estendida até esta, não há uma tentativa de inversão da
estrutura hierárquica, mas, sim, uma intenção de equilíbrio no tratamento entre
as culturas. Isso pode ser percebido quando se apresenta uma musicalidade e
uma letra que incorpora elementos distintos de uma cultura, dando destaque e
valorizando a cultura marginalizada, como pode ser notado nos versos 8 e 9:
“capoeira que rasga o chão/ samba que sai da favela acabada”.
No verso 6, temos a expressão “corre nas veias sem parar” (SCIENCE,
1996), representativa de um modo de falar menos monitorado da língua. Ela
92
complementa o sentido dos versos anteriores: “índios, brancos, negros e
mestiços/ nada de errado em seus princípios/ o seu e o meu são iguais”
(SCIENCE, 1996) e quer dizer algo como não há nenhum problema com a
cultura ou com o contato entre as culturas, “elas são intrínsecas à identidade”.
Em outras palavras, “corre nas veias sem parar” quer dizer que algo está
incorporado, no caso, os costumes dos índios, brancos, negros e mestiços.
O registro da fala oral e de expressões mais distantes da norma padrão,
ou seja, menos monitoradas (BAGNO, 2007), trazem à tona não só um campo
semântico determinado pelo significado das palavras, mas um discurso objeto
de nossos antepassados, a palavra oral africana. A voz, nesse contexto,
desnuda a palavra mais monitorada. Esse afastamento acontece também
quando a “capoeira rasga o chão” (verso 8), quando se faz o jogo com as
palavras arte e povo ou as imprevisibilidades semânticas nos últimos versos.
Nesse contexto, o processo de crioulização das culturas sugerido nessa
canção implica falar, também, em identidade-relação, pois, diferente da
identidade-raiz única, essa tem como princípio ir ao encontro de outras
culturas. A linguagem scienciana está antenada com essa crioulização, como
podemos ver nos seguintes versos da canção “Etnia”:
93
“capoeira da Pesada”, o “bumba meu rádio”, o “berimbau elétrico” e, por fim,
“frevo, samba e cores/ cores unidas e alegria/ nada de errado em nossa etnia”.
Essa antropofagia morfológica ou léxica do português brasileiro com
uma língua estrangeira pede um ouvido multicultural, como, por exemplo, nas
palavras manguetown, homens-caranguejos, as quais, como já dissemos,
foram inspiradas no romance de Josué de Castro, Homens e Caranguejos
(1967). Com relação a isso, lembramos Frantz Fanon: “Falar é ao mesmo
tempo empregar certa sintaxe, possuir a morfologia desta ou daquela língua,
mas é, sobretudo, assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”
(FANON, 1983, p. 17).
Nesse sentido, podemos dizer que os neologismos em CSNZ soam
como uma crioulização cultural. Segundo Glissant (2005, p. 22), a crioulização
são os elementos culturais heterogêneos que, quando colocados em contato,
“se intervalorizam”, sem que “haja degradação ou diminuição do ser nesse
contato e nessa mistura, seja internamente, isto é, de dentro para fora, seja
externamente, de fora para dentro”.
Repare que nos versos de 1-14 predomina essa referência ao processo
de crioulização. Em consonância com isso, seus versos apresentam uma
métrica irregular com oscilações entre a métrica livre e versos octassílabos
com decassílabos ou heptassílabos com quadras. Veja a seguir a variação na
métrica.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
1 so/mos/ to/dos/ jun/tos/ u/ma/ mis/ci/ge/na/ção
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
2 e/ não/ po/de/mos/ fu/gir/ da/ nos/sa et/nia
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
3 ín/di/os,/ bran/cos,/ ne/gros/ e/ mes/tiços
1 2 3 4 5 6 7 8 9
4 na/da/ de er/ra/do em/ se/us/ prin/cípios
1 2 3 4 5 6 7
5 o/ se/u e o/ meu/ são/ i/guais
1 2 3 4 5 6 7 8
6 cor/re/ nas/ vei/as/ sem/ pa/rar
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
7 cos/tu/mes,/ é/ fol/clo/re, é/ tra/di/ção
1 2 3 4 5 6 7 8
8 ca/po/ei/ra/ que/ ras/ga o /chão
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
9 sam/ba/ que/ sai/ da/ fa/ve/la a/ca/bada
1 2 3 4 5 6 7 8
94
10 é/ hip/ hop/ na/ mi/nha em/bo/lada
1 2 3 4 5
11 é o/ po/vo/ na/ arte
1 2 3 4
12 é ar/te/ no/ povo
1 2 3 4 5 6
13 e/ não o/ po/vo/ na/ arte
1 2 3 4 5 6 7 8
14 de/ quem/ faz/ ar/te/ com/ o/ povo
1 2 3 4 5 6 7 8
15 por/ de/ trás/ de al/go/ que/ se es/conde
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
16 há/ sem/pre u/ma/ gran/de/ mi/na/ de/ co/nhe/ci/men/tos/ e/
16 17 18
sen/ti/mentos
Nos versos 1-5, temos uma oscilação, por mais que 2, 3 e 4 aparentem
uma terminação decrescente (11, 10 e 9 sílabas poéticas). Do 6 ao 10, temos
versos octassílabos e decassílabos. Já nos versos seguintes (11, 12 e 13),
temos outra oscilação, com 5, 4 e 6 sílabas poéticas44. Em contrapartida, faz-se
uso de outra estratégia para dar musicalidade aos versos, o ritmo provocado
pela rima. Nos versos 11-14, o ritmo é dado não só pela rima no final dos
versos, como também pelo jogo de palavras arte e povo, como falaremos mais
adiante.
Certamente, as padronizações nos versos são influência dos repentistas
e dos emboladores. Repare que é justamente nos versos 7-10 que também
aparecem as rimas AABB, em seguida, as rimas são CDCD. Não à toa
começam com “costumes, é folclore, é tradição” e terminam com “é hip hop na
minha embolada”, denotando a relação entre a tradição e a modernidade, isto
é, entre o repente e o rap. Na improvisação do repente, a métrica e a rima são
preservadas. Já a improvisação do rap, os chamados freestyle, caracterizam-
se pelos versos livres e rimados. Essa relação entre o rap e o repente já é
apontada em Amarino (2002).
Além disso, associando à forma, à temática e às culturas representadas,
a oscilação na metrificação e na rima nos remete ao que vínhamos falando
sobre a errância. Ela simboliza os contatos e os conflitos de uma cultura.
Portanto, há uma dimensão errática na canção. Ao invés de visar uma
fundação, um enraizamento, a fixidez do sedentarismo, essa dimensão confere
44
Para efeito de conhecimento, disponibilizamos a escansão completa da canção nos anexos
deste trabalho.
95
um caráter mais imprevisível aos personagens e ao que eles representam.
Glissant (2005) trata do comportamento imprevisível como associado à noção
de sistema determinista errático, que, por sua vez, está relacionado ao rizoma,
às relações, às formas de pensamento.
A imprevisibilidade é, para esse autor, uma negação do sistema de
pensamento ocidental, que tem como característica a busca da previsão. Ele
afirma que em matéria de relações culturais, “a regra é a impossibilidade de
previsão” (GLISSANT, 2005, p. 102). Com base nisso, Glissant (2005) afirma
que o mundo se criouliza, já que as culturas do mundo estão se relacionando
constantemente e de forma imprevisível, seja de forma desigual ou não.
Esse caráter imprevisível fica evidente nos últimos versos (do verso 21
ao 27):
21 maracatus psicodélico
22 capoeira da Pesada
23 bumba meu rádio
24 berimbau elétrico
25 frevo, samba e cores
26 cores unidas e alegria
27 nada de errado em nossa etnia.
(SCIENCE, 1996)
96
fixado, suas características, mas quando se diz: “maracatus psicodélicos”, de
imediato pode-se estranhar. A intenção desses neologismos é provocar o leitor
acostumado com o maracatu tradicional (nação e rural) e lançar uma
possibilidade de releitura desse ritmo, relembrando, por exemplo, o
experimentalismo psicodélico da Geração Beat, na década de 1970.
O fato de a semântica ser errática não significa que seja a completa
negação, um antissentido, segundo Glissant (2011, p. 29), “o pensamento da
errância concebe a totalidade, mas renuncia de bom grado à pretensão de a
comandar ou de a possuir”. Logo, a leitura feita tem a intenção de demonstrar
como a errância nos leva ao encontro de um sentido possível, isto é, enamora
com o terreiro de sentidos possíveis. Errância não significa exílio45.
O mesmo acontece com a capoeira, o bumba (meu-boi) e o berimbau. A
capoeira, não à toa, é mencionada duas vezes na canção, a saber: “capoeira
que rasga o chão” e “capoeira da Pesada”. A capoeira é uma dança-luta que
surgiu com um intuito de camuflar uma arte marcial na forma de dança. Ela
representa a resistência negra africana no período colonial. A voz que entoa os
versos tem o peso da capoeira que “rasga o chão”. Entenda-se por peso a
metáfora para a resistência. É como se a capoeira carregasse o peso da
resistência do período colonial à colonialidade do poder. Ao cantar com a voz
rasgada esses versos, Chico Science rasga também o chão da palavra. A
expressão “rasgar o chão”, no contexto dos versos, marca uma ação de
ataque. No caso, ao cantar, é a palavra que fere o ar, ganha peso.
As palavras bumba e berimbau são unidas com termos que impulsionam
o leitor a lembrar da tecnologia. A primeira soa como o som de um tambor,
sugerindo a onomatopeia do som das alfaias. Com “bumba meu rádio”, é como
se dissesse para as rádios tocarem essa canção. O berimbau, instrumento de
percussão tocado nas rodas de capoeira, é fundido com a energia elétrica.
De uma forma geral, essas fusões buscam fazer uma ponte do
tradicional com o moderno, evidenciando o elemento inesperado.
Nos versos 25 e 26, não há uma mudança no sentido como nos versos
anteriores. Em contrapartida, há, novamente, uma referência às danças e aos
ritmos afro-brasileiros. As “cores”, nos versos 25 e 26, são uma metáfora da
45
Segundo Glissant (2011, p. 29), “se o exílio pode pulverizar o sentido da identidade, o
pensamento da errância, que é pensamento do relativo, quase sempre o reforça”.
97
diversidade: “frevo, samba e cores/ cores unidas e alegria” (SCIENCE, 1996).
O último verso “nada de errado em nossa etnia”, sentencia o que já vinha
sendo abordado, é uma espécie de retomada do verso 2 – “e não podemos
fugir da nossa etnia”.
As divisões apontadas no início deste capítulo fazem parte da noção de
crioulização. Essa leitura é possível, pois a canção demonstra ter algumas
características semelhantes, como mote principal o diálogo entre as culturas
(“somos todos juntos uma miscigenação”), a inevitabilidade dos choques e dos
contatos entre essas culturas (“e não podemos fugir da nossa etnia”),
desembocando numa espécie de explicação e apontando para um equilíbrio
nesse diálogo: “índios, brancos, negros e mestiços/ nada de errado em seus
princípios/ o seu e o meu são iguais”. Sendo assim, podemos afirmar que
“Etnia” é uma metáfora para o processo de crioulização, já que existem, pelo
menos, as três características elencadas: o híbrido, a imprevisibilidade e a
revalorização da cultura subalterna.
Atente para o fato de que ainda não falamos desse último elemento.
Fizemos isso dada a proximidade temática entre a imprevisibilidade e o híbrido.
Segundo Glissant (2005, p. 22), “a crioulização é a mestiçagem acrescida de
uma mais-valia que é a imprevisibilidade”. Em outras palavras, é o diálogo
cultural, porém com resultados inesperados.
No que diz respeito à valorização da cultura, os versos 8-20 representam
bem esse ponto. Não vamos, aqui, separar o que hoje se considera ou não
como cultura subalterna, isto é, categorizar a capoeira ou o samba como
subalterno. Se compararmos a recepção desses ritmos do início do século XX
para o início do século XXI, perceberemos um afrouxamento ou até mesmo a
inversão do olhar hierarquizante, sobretudo, da cultura do samba atualmente.
Se antes tínhamos uma marginalização do samba, hoje ele pode representar
tanto uma classe socialmente desfavorecida como a elite.
O fato é que falamos disso para chegar no verso 9: “samba que sai da
favela acabada”. Observe que o foco não é propriamente ao samba, mas, sim,
o lugar de onde ele veio. Em seguida, desenvolve-se essa perspectiva a partir
do verso 11, “é o povo na arte/ é arte no povo/ e não o povo na arte/ de quem
faz arte com o povo” (SCIENCE, 1996). Há, nesse trecho, um jogo de palavras
98
que revela um olhar simbiótico entre a arte e o povo, entenda-se o “povo” como
sendo uma referência à população subalternizada pela classe dominante.
Como falamos anteriormente, nos versos 11-14, o ritmo é dado tanto
pelo final dos versos “como também pelo jogo de palavras arte e povo”. É esse
jogo que dá a ideia de que assim como o povo está na arte, a arte está no povo
(“é o povo na arte/ é a arte no povo”). Ao fazer isso, está-se chamando a
atenção para um tipo de arte menos elitizado, como, por exemplo, é o caso das
canções populares.
Finaliza-se o jogo com as palavras arte e povo da seguinte maneira: “e
não o povo na arte/ de quem faz arte com o povo”. Dessa forma, reforça-se a
leitura que estamos fazendo com uma ambiguidade. Podemos ler esses
últimos versos sob duas perspectivas complementares ao que se afirmava
antes. Isso é possível, pois a palavra “arte” muda de sentido: na primeira
leitura, é empregada com sentido negativo, isto é, com o sentido da expressão
informal de “fazer arte”, “fazer coisa errada ou perigosa”, no caso, com o povo,
com a população carente. Na segunda leitura, a palavra “arte” está associada
ao sentido mais usual, à atividade criativa, esta, por sua vez, parte de alguém,
expresso pelo pronome indefinido “quem”, que não faz parte do povo.
Após essa parte, os versos 15-20 continuam sob esse olhar subalterno e
poético:
15 por de trás de algo que se esconde
16 há sempre uma grande mina de conhecimentos e sentimentos
99
exploradas pelo olhar do exótico, pelo olhar do turista que esquece que há
conhecimentos e sentimentos por trás daquela arte.
Talvez, por esse motivo, esse seja o verso mais extenso da canção,
porque chama mais atenção para esse aspecto. Se antes, tratava-se da
relação arte e povo, agora, trata-se de como ocorre a mediação entre a arte
popular e sua recepção. Esse destaque pode ser percebido também no
prolongamento das notas cantadas no final dos versos 15 e 16. Além de
repetir-se o verso 16, como uma forma de enfatizar, repete-se também o trecho
“e sentimentos”. Esses dois versos são acompanhados pelo maracatu nação,
na variação arrasta. No recorte a seguir, apresentamos a primeira vez que se
entoa o verso 16:
100
Figura 11: final do verso 16; Transcrição: Victor Dantas e Natália Pinheiro.
101
essas fantasias, antes de chegarem aos carnavais, eram mais usadas em
festejos da zona rural de Pernambuco. Logo, a repetição do verso 16 traz-nos
uma leitura de alguém que possui muitos conhecimentos e sentimentos para
partilhar, mas que está escondido, esquecido, marginalizado (“por de trás
daquilo que se esconde”).
Essa leitura dos versos de “Etnia” traz à tona o pensamento liminar
presente tanto na canção como nas releituras musicais. Aliado a isso, a canção
como um todo apresenta um descentramento da noção de identidade,
sugerindo uma fissura no discurso hegemônico da década de 1990.
Retomando a paráfrase: “somos todos juntos uma crioulização, índios, brancos,
negros e mestiços”, não há nada de errado com isso, não há mistérios em se
descobrir, ou melhor: “não há mistérios em descobrir/ o que você é e o que
você faz” (SCIENCE, 1996).
Esse redescobrimento de si está atrelado à relação múltipla com o
Outro. Glissant (2011, p. 27) propõe um pensamento que não seja dual, pois
para ele o pensamento dual de si “(há o cidadão e há o estrangeiro) repercute
na ideia que se tem do Outro (há o visitante e o visitado; aquele que parte e
aquele que permanece; o conquistador e sua conquista)”. Esse autor propõe
um pensamento da errância, que tem a ver com o desenraizamento da
identidade, com a procura por uma relação plural com o Outro, incorporando-o.
Logo, podemos dizer que isso tem a ver com a crioulização, que, como já
dissemos, são os choques, as harmonias, as distorções, os recuos, as
rejeições ou atrações entre elementos de uma cultura (GLISSANT, 2005).
No plano musical, esse se descobrir está relacionado à cultura musical
marginalizada. A crioulização, nesse caso, pode ser notada na síncope dos
ritmos tocados pelas alfaias e pela bateria. Essa síncope representa o diálogo
entre culturas. A bateria, marcada pelo tarol e pelos pratos, faz essa síncope,
enquanto que as alfaias executam o ritmo do maracatu nação (alternância
entre os estilos martelo e arrasta). Entre os versos 10 e 11 (“é hip hop na
minha embolada/ é o povo na arte”), quando dá-se uma pausa na voz, entra o
som scratchs, muito utilizado por DJs, para marcar esse contratempo da
síncope.
Vale salientar, também, que faz parte da crioulização a perspectiva do
subalterno (MIGNOLO, 2003). Nos dois casos, busca-se repensar a voz do
102
subalterno, como já dissemos em outros momentos. Considerando isso, cabe
lembrar que Chico Science e outros membros da Nação Zumbi vieram da
periferia de Recife, seja do Bairro do Rio Doce ou de Peixinhos. Desse modo,
podemos perceber que na poética scienciana há, não só um descentramento
do sujeito a partir do elemento híbrido, como também a voz do sujeito
subalterno, ou seja, do sujeito que antes não tinha voz. Mesmo depois de
alcançar a repercussão que teve o movimento Manguebeat, ele ainda
representa e também dá voz ao sujeito subalterno e à cultura subalterna.
103
Faixa bônus: Considerações finais
Até agora, analisamos três canções. O olhar dado a elas foi com uma
perspectiva mais aproximada. A leitura, sob o olhar da crioulização de Édouard
Glissant (2005), caminhou pelas metáforas, pela estrutura, pela musicalidade e
pelos jogos com as palavras. A intenção de se percorrer esses caminhos foi de
apresentar um ponto de vista pós-colonial da canção de autoria de Chico
Science. Seguimos, portanto, no entre-lugar do som com a palavra.
A melodia na canção popular, como já foi dito, recebe um olhar mais
demorado do compositor. Nas canções estudadas, a melodia seguia um ritmo
quase monotonal, pois há poucas variações. Isso se deve pela influência do
rap e do repente nas suas composições. A aproximação é tanta que na
transcrição da voz para a partitura uma das dificuldades era de identificar
A voz, nessas canções, dava a sensação de aspereza com a intenção
de demonstrar uma inquietação que se reflete nas letras. No que diz respeito
ao maracatu, ritmo que mais predomina nas canções, ele é transfigurado em
algo que se distancia do que é tocado pelas nações de maracatu naquele
momento. Podemos dizer que é um “maracatu pscicodélico” de Chico Science
& Nação Zumbi, para diferenciar dos maracatus nação e rural. Percebemos,
ainda, que, nesse maracatu scienciano, há uma série de elementos poéticos-
musicais justapostos e que o conjunto deles faz com que se distancie dos
maracatus tradicionais, como afirma José Teles (2012): “O maracatu de Chico
Science & Nação Zumbi não era nem baque virado, nem baque solto” (p. 266).
Essa diferença pode ser percebida no ritmo e nas temáticas das letras.
Nesse sentido, por mais que as canções do Afrociberdelia (1996) se
aproximem do maracatu nação ou rural, não serão a mesma coisa.
Pretendemos, com esse trabalho, sugerir uma escuta da voz do sujeito
subalterno nas canções de Chico Science. Por meio das metáforas e dos jogos
com as palavras nas letras das canções, pudemos notar que a crioulização das
culturas está entranhada na linguagem scienciana.
Na poética do mangue o poético não está só nos jogos com a
linguagem, na sua estrutura poética, ela está também no modo como
represente as relações e como se relaciona com outras culturas. Uma batida
104
do tambor traz consigo não só uma rítmica ou um tom, ela representa a cultura
de um povo. O mangue é uma metáfora para a diversidade.
Como já foi dito, ao recorrer à imagem do mangue, Chico Science
retoma a ideia de um território ambíguo, berço e, ao mesmo tempo, celeiro de
restos de animais, encontro entre águas do rio e as águas do mar, terreno
pobre em oxigênio e rico em nutrientes. Sintonizados com isso, as canções
estudadas nos sugerem um corpo de linguagens (literatura e música) que se
inter-relacionam através do descentramento do sujeito.
Repare que as três canções tratam desse descentramento do sujeito, só
que de formas diferentes: nas duas primeiras canções, podemos dizer que há
uma identidade representada por meio dos personagens; já em “Etnia” a
identidade é partilhada. Nos três casos, há crioulização.
A voz que soa em meio a essas canções busca trazer para o plano
poético o descentramento das identidades brasileira. As canções representam
um recorte do “Afrociberdelia” (1996). De poética cortante, ou até mesmo
áspera, as canções estudadas apresentam um pouco do segundo disco de
Chico Science & Nação Zumbi. A relevância de se fazer um estudo como esse
está na escassa referência bibliográfica sobre uma canção de Chico Science.
O que encontra-se são muitos trabalhos tratando da cena Manguebeat ou do
grupo, no entanto, a análise de canção ainda é muito escassa (para não dizer
até então inexistente).
Os caminhos seguidos nas análises das três canções foi observar como
as imagens lítero-musicais são formadas com base nos choques, nos contatos
e nas incorporações de outras culturas. Como foi possível notar, a relação
poesia e cultura está presente ao longo deste trabalho. Isso porque a relação
cultural é muito forte nas letras e na musicalidade dessas canções.
A leitura que buscamos dar nas análises foi de como a relação cultural é
abordada nas letras das canções e na musicalidade. Nas letras, seguimos o
percurso das metáforas, das construções dos personagens, dos jogos de
palavras; e na musicalidade, seguimos o curso do maracatu, do rap, da
embolada, de algumas dinâmicas da voz.
A poética “afrociberdelica” de Chico Science traz à tona a ideia de
crioulização, não só por causa de seu hibridismo, mas também pela
revalorização das culturas periféricas. A palavra na cena musical é sonora. A
105
voz que corre nos instrumentos é afro, é ciber, é psicodélica. Os emaranhados
de existências unem-se nessa poética com raízes rizomáticas. A voz enunciada
é território de movência para os signos (linguísticos e musicais). O caminhar
nesse terreiro é quase como caminhar na lama do mangue.
A travessia dessa pesquisa fez esse percurso entre esses signos,
traçando como fio condutor a crioulização. Vimos que na primeira canção há
uma espécie de apresentação da proposta poética. A forma que se começa a
cantar os primeiros versos de “Mateus Enter” sinaliza uma espécie de
continuidade do projeto lítero-musical do disco anterior, “Da lama ao caos”
(1994). Por esse motivo, como foi dito, os instrumentos começam a tocar todos
de uma vez só e com a voz em fortíssimo. O “eu” marcado na canção foi
interpretado como se fosse o personagem do maracatu “Mateus” ou como uma
estratégia de persuasão (simulacro de locução) para aproximar o leitor.
Na segunda canção, “O Cidadão do Mundo”, apresentamos uma leitura
em que relaciona-a com a primeira canção, como se fosse uma extensão.
Discutimos, principalmente, a sobre a construção da narrativa e a forma como
ela trazia os personagens. Para isso, consideramos dois pontos cruciais: a
narrativa como construção de uma identidade, ou de identidades nacionais
(HALL, 2001) e a perspectiva da pós-colonialidade segundo Mignolo (2003).
Com isso, trouxemos à tona duas narrativas cujos personagens metaforizam a
diversidade.
Na terceira canção, “Etnia”, discutimos a crioulização que se evidencia
na canção. Seguindo o percurso da canção, notamos que o terceiro capítulo
apresenta um estudo mais sucinto, quando comparado com as outras análises.
É por seguir o caminho dado pela canção, que ela tomou uma proporção mais
condensada. Tratamos, nesse capítulo, da representação da crioulização na
poética de Chico Science. Entendemos por poética o encontro de elementos
distintos formando uma imagem46.
Note, como já foi sinalizado, que há uma progressão temática nessas
três canções. A primeira anuncia uma crioulização por meio da representação,
a segunda desenvolve essa representação por meio de narrativas e a terceira
46
Essa compreensão de poética está na obra “Introdução a uma poética da diversidade” (2005,
p. 31), como Glissant afirma em uma das entrevistas desse livro. Ele se baseou na
compreensão de André Breton e Pierre Reverdy da imagem poética.
106
revela a tensão dessa crioulização. Falar do encontro dessa poética da
diversidade, implica em falar também das identidades brasileira, dos choques,
dos afastamentos e das incorporações culturais que (de)formam a noção de
identidade.
A palavra, nesse contexto, é observada não só a partir de uma análise
estrutural (métrica, rima etc.) com algumas figuras de linguagem e com o papel
de comunicar. Nossas discussões se emaranharam no contexto e em algumas
vivências do compositor das letras. A voz como marcação de um lugar cultural
atravessado por outras culturas.
Da poesia oral dos cantadores e dos rappers, ressoa na nessas
canções. De ritmo todo recorta, a partitura vocal lembra o ritmo da fala, isso se
reflete nas poucas variações melódicas. Entretanto, não podemos nos enganar
e pensar que isso significa pouca expressividade musical. Afinal, a concisão
também faz parte da poesia contemporânea.
É provável que essa concisão seja uma forma de focar na performance
da palavra. Os sotaques, as rimas, as métricas, as metáforas que ressoam nos
versos remontam a uma poesia oral marcada pela diversidade, a poesia oral
afrociberdelica, por assim dizer. Nazareth Fonsceca (2000) falando da oralitura
afirma que “a palavra vocalizada ressoa como efeito de uma linguagem
pulsional do corpo, inscrevendo o sujeito emissor num determinado circuito de
expressão, potência e poder” (p. 82).
Logo, a palavra emitida de dentro dos manguezais, de dentro da beat
das canções estudadas revela mais do que figuras de linguagens, ou uma
diversidade de narrativas e ritmos, ela traz à tona um discurso por meio das
imagens poéticas, uma pulsão de vida inscrita nas vozes e nos corpos que as
emitem. Sendo assim, tanto a letra das canções, como a voz de Chico Science
surgem dos diversos diálogos e que possibilitaram a interpretação apresentada
aqui.
107
[Esc]
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1994.Compact Disc. Digital Áudio, 1 CD. Resmaterizado em Digital.
LENINE. Olho de peixe. Manaus: Novo Disco Manaus, 1996. Digital stereo,
CD.
MESTRE AMBRÓSIO. Terceiro samba. São Paulo: Sony Music, s/d. Digital
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1 disco laser. Gravação de som.
______. Guentando a oia. São Paulo: Excelente Record, 1996. 1 disco laser.
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Digital Áudio, 1 CD. Resmaterizado em Digital.
______. Futura. São Paulo: Trama, 2005. Compact Disc. Digital Áudio, 1 CD.
Resmaterizado em Digital.
______. Propagando. São Paulo: Trama, 2006. Compact Disc. Digital Áudio, 2
CD. Resmaterizado em Digital.
OTTO. Samba pra burro. São Paulo: Trama Promoções Artísticas, 1998. 1
disco CD. Gravação de som.
116
ANEXOS
2. O Cidadão do Mundo
(Letra: Chico Science – Música: Chico Science & Nação Zumbi – Eduardo Bidlovski)
117
e com eles se mandou
aí meu velho
abotoa o paletó
não deixe o queixo cair
e segura o rojão
vinha cinco maloqueiro em cima do
caminhão
pararam lá na igreja
conheceram uns irmãos
pediram pão pra comer
com um copo de café
um ficou roubando a missa
e quatro deram no pé
chila, relê, domilindró..
3. Etnia
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TEXTOS DO ENCARTE:
> ENTER – Tecnologia subversiva, a grande biblioteca do cyberspace, ótica
simbiótica, fractais na cura do stress (plug in and chill out), afrociberdelia, teatro do
acaso, cinema impressionante, literatura de cópia, poesia fractal, a cultura sampleada,
telecracia, comunidade interativa, ficção-científica, revival sense e musicracia.
> DEL – Trapaça, midiotia, riqueza ilícita, falsa doutrina, miséria. área de sinistro,
comércio religioso, fanatismo, grandes corporações empenhadas em deformação
cerebral, racismo, exploração de mão-de-obra infantil, pena de morte e fome
envergonham o planeta.
FICHA TÉCNICA:
Participações Especiais:
Produção musical:
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Mixado no Estúdio Mosh, SP ouvindo a música dos trovões..., exceto “Manguetown”
mixada no impressão Digital, RJ beijando o sol de 40 graus.
Masterizado na Cia. De Audio por Marcos “Golden Ears” Eagle.
Equipe Mosh:
Dir. Técnico: Osvaldo Malagutti Jr.
Programação: Paulo Gaio
Assistentes: Rico “Suave” Romano e Keko “Antroposófico” Mota
Capa:
Projeto Gráfico: Mabuse/ Jorge du Peixe
Fotos: Vavá Ribeiro
Coord. Gráfica: Carlos Nunes/CSNZ
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PARTITURAS
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