Anti Épipo e A Critica A Psicanalise

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INTRODUÇÃO AO ANTI-ÉDIPO
Bruno Cava
SUMÁRIO

Introdução
Capítulo 1 – O ano que continua passando
Capítulo 2 – Um, dois, três, muitos esquizos
Capítulo 3 – O Anti-Édipo e seus descontentes
Referências bibliográficas
INTRODUÇÃO

Existem momentos históricos em que que a filosofia reúne um volume extraordinário e


consistente de obras, autores e conceitos. Aconteceu na Itália durante a Renascença, na Alemanha
durante o Romantismo e também na França dos anos 1960. Aquela foi a década da revolução
sexual, do boom demográfico pós-segunda guerra, da globalização da cultura pop através do rock’n
roll, bem como da massificação da pílula contraceptiva, da televisão e do biquini. À sombra dos
riscos da catástrofe nuclear durante a Guerra Fria, ocorria o desmoronamento dos impérios coloniais
europeus na Ásia e na África. Mais de 30 países surgiram das lutas de libertação nacional, como a
Argélia, separada da França depois de oito anos de guerra. Aquele foi o decênio dos atos de
desobediência civil, que cresceram e se organizaram até se converterem no movimento pelos
direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Os anos 1960 testemunharam a formação do Partido
dos Black Panthers, o ativismo antimanicomial e a segunda onda feminista. Aquela foi uma época
de profundas mudanças de comportamento, gestos e linguagens que afetaram de forma duradoura os
modos de vestir, se portar e se relacionar; mudanças que foram aceleradas pelos ímpetos disruptivos
da contracultura: a experimentação com substâncias psicoativas, o movimento hippie e o programa
artístico que visava abolir as fronteiras entre arte e vida.
Nos anos 1960, a Quinta República Francesa vivia um período de crescimento econômico e
estabilidade política, que ficou conhecido como Trinta Anos Gloriosos (1945-1975). Foi a era
“dourada” e efetiva do modelo de inclusão por meio da socialização dos custos com saúde,
educação e previdência, providos pelo Estado. O modelo aplicado na França estabelecia um eixo de
inclusão que gravitava ao redor da família nuclear, da cidadania nacional e do emprego estável.
Estabelecia também um modo específico de organização das instituições e hábitos da vida pública.
Sob a superfície do noticiário patriótico e dos indicadores socioeconômicos, porém, as fraturas, as
pressões e os tremores se expandiam, repercutiam entre si e se alastravam. Algo não ia tão bem
quanto faziam parecer os discursos dos governos da época e a nostalgia que parte da historiografia
ainda nutre com o período do pós-guerra europeu ocidental.
A primavera global de lutas ao redor do ano de 1968 combinou a) a irresignação de uma
fração da população incluída nas engrenagens, contudo insatisfeita e rebelada contra a vida
disciplinada e institucionalizada pelas estruturas do período; b) as lutas dos trabalhadores das
indústrias que, mais do que “direitos econômicos” ligados ao salário e às condições de trabalho,
descobriam desejos de autonomia e autogoverno; e c) a subjetivação encolerizada das minorias
marginalizadas e dos desatendidos, dentro ou fora das economias centrais do mundo industrializado.
Essas três linhas ou franjas expansivas extravasaram a capacidade de amortecimento das
organizações representativas, colocando em xeque inclusive entidades de aura supostamente
incontestável, como o partido comunista, o sindicato operário e certa cultura de crítica social
matizada pelo positivismo sociológico. Não era um fluxo turbulento anárquico, mas um ecossistema
de turbilhões. Naquele “momento de momentos”, a cultura intelectualizada da metrópole francesa,
bem equipada com os ferramentais da academia e das letras, entrou em circuito virtuoso com o
ecossistema de lutas. Ocorreram captações recíprocas de códigos, autonomias, energias desejantes,
fragmentos de experiência e nesgas de linguagens na forma de uma bricolagem generalizada.
Desde antes de 1968, à época da publicação dos Escritos de Lacan (1966), o campo
psicanalítico na França já vivia um período de efervescência que não mais se repetiria no país.
Naquele tempo, Guattari atuava em clínicas alternativas, na crista da onda das técnicas
experimentais, no entrecruzamento de linhas de renovação prática, como a psicoterapia de
Tosquelles e a antipsiquiatria de Laing, além de ser ele próprio ativista movimentista. Guattari não
só pensava a partir dos movimentos da clínica de seu tempo, como também se associava a
grupelhos de ação direta e à organização extrapartidária em geral. No âmbito da filosofia, os anos
1960 na França presenciaram a apoteose do estruturalismo, o que impactou o modo como eram
aplicadas as ciências humanas e sociais. Deleuze, por sua vez, se inseria com êxito naquela
constelação filosófica de superlativa produtividade, cujos marcos foram a publicação de O
pensamento Selvagem (1962), de Lévi-Strauss, As palavras e as coisas (1966), de Foucault, e
Gramatologia (1967), de Derrida.
Em 1968, tudo isso foi tragado em vórtices sucessivos, conforme uma cartografia dinâmica de
composições e decomposições, que teve em Paris um dos principais deltas pelo mundo. A filosofia
sempre mantém algum tipo de ligação com o seu fora, com o não-filosófico. No acontecimento,
essas ligações são estreitadas até chegar a seu circuito mínimo, o que eleva a voltagem da conexão
sem, com isso, provocar uma zona indiferenciada em que a filosofia se dissolveria. Por um lado,
pichações pelas ruas se tornavam estranhamente “filosóficas” e viravam estímulo ao pensamento.
Por outro, a filosofia se povoava ela mesma, por dentro, numa explosão demográfica de
personagens conceituais e maquininhas teóricas.
A filosofia neoplatônica na Renascença, seu impacto na cultura das artes e ciências, seria
inexplicável se a separássemos das práticas de afirmação do novo ser humano que se alastravam
pelas cidades-Estado e repúblicas italianas. O boom filosófico do Romantismo no Oitocentos
tampouco seria inteligível, em sua singularidade, sem levar em conta a relação de desconcerto e
deslocamento com que os intelectuais na Alemanha recepcionaram a Revolução Francesa e a
inscreveram no motor de seu pensamento. De modo similar, a filosofia francesa entrou numa zona
de interpenetração com Maio de 68 galgando uma nova perspectiva, uma nova altura histórica e
intensidade no pensar, que se tornou o fato ineludível para a compreensão e o próprio futuro dessa
filosofia, seu ponto de inconsistência ou recomeço.
Quando Maio de 68 eclodiu em Paris e cartazes satirizando manadas, estruturas e engrenagens
proliferaram pelas ruas, a primeira pergunta que mobilizou os editoriais e as colunas jornalísticas,
geralmente em tom de estupefação, foi: Mas por que se revoltam? A premissa de tal pergunta
consiste em que a docilidade e a resignação seriam a condição normal do ser humano. Não haveria
positividade no tumulto que não pudesse ser reduzida ao mau funcionamento das estruturas e
máquinas sociais. Noutras palavras, apenas a falta destas serviria de explicativa para aquele. Mas
não haveria uma dinâmica mais fundamental, endógena, cuja lógica não poderia ser reduzida à falta,
ilusão ou defeito dos poderes estabelecidos? A resposta do Anti-Édipo 1 é um grande sim. Mesmo as
maiores negatividades exprimidas em ocupações e manifestações, mesmo o ódio e o ressentimento,
contêm um sim maior a ser perquirido e podem ser reconduzidos ao caráter afirmativo do desejo.
Para formular esse problema, os autores retornam ao melhor de Freud, o Freud espantoso, aquele
que descobriu o inconsciente em regiões bem mais profundas e tumultuárias do que se concebia, nas
zonas extremas do pré-individual e pré-objetivo de autoconstituição dos sujeitos.
O esquematismo matriz do Anti-Édipo se desenha ao redor de uma oposição polar. Em cada
um dos polos, situa-se um regime de funcionamento diferente. Num deles, estão as máquinas
desejantes, o processo esquizofrênico, o turbilhão e os grupos sujeitos. No outro, as máquinas
sociais, as sobrecargas paranoicas, o regime laminar dos fluxos que define o problema do
capitalismo (um problema hidráulico) e os grupos assujeitados. Tais polos são tendências que
necessariamente coexistem na realidade das coisas e corpos, como o contínuo de virtualidades de
uma sanfona. Toda instituição, todo movimento político, todo coletivo, inclusive o indivíduo
enquanto coletivo, são ao mesmo tempo desejantes e socializados, esquizos e paranoicos, grupos
sujeitos e assujeitados, na medida em que contêm as duas tendências em configurações complexas a
serem cartografadas em extensão e intensidade, uma a uma. É isso que define o campo estratégico
de intervenção estipulado por Deleuze e Guattari para a tarefa positiva da esquizoanálise.
Na parte final do Anti-Édipo, os autores explicitam que o livro, enquanto tal, não tem
programa político, não almeja falar em nome de qualquer um que seja e muito menos da
psicanálise2. As soluções são sempre práticas e é nelas que encontram os seus critérios de valoração.
Sem o prolongamento do Anti-Édipo pela esquizoanálise, uma ciência aplicada do porvir que
reclama por espíritos livres, o livro serve apenas como cápsula ultracondensadora do acontecimento
que o atravessa. O que já é muitíssimo e valiosíssimo, mas insuficiente, segundo os desafios e as
tarefas que o próprio Anti-Édipo propôs para a sua recepção por nós, os leitores.
1
Ao longo do texto, tomarei a liberdade de me referir ao livro, objeto destas notas introdutórias, como o Anti-Édipo, sem a
formalidade prescrita por normas de estilo e formatação.
2
Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1, São Paulo: Ed. 34, 2010 [1972], p. 504. A partir
daqui, este livro será referido como AE.
***

Este livro tem propósito propedêutico e não se pretende um resumo do Anti-Édipo. Cada
capítulo é uma entrada no meio do maquinário que Deleuze e Guattari põem para operar, saltando
in media res a fim de propor ao leitor algumas problemáticas que, nem de longe, são exaustivas ou
chaves preferenciais. O primeiro capítulo introduz o tema da relação entre filosofia e delírio,
aproveitando-se de conceitos do bergsonismo deleuziano, especialmente o par atual/virtual e sua
relação com o acontecimento. O segundo capítulo se concentra na reelaboração do problema da
servidão voluntária pelos meios da psicanálise, a partir da torção da psiquiatria materialista. O
terceiro capítulo comenta brevemente as interações internas e externas do Anti-Édipo com Lacan e
o lacanismo em meio aos desdobramentos de Maio de 68.

***

Agradeço aos coletivos de organização de cursos livres sobre a filosofia de Deleuze e


Guattari. Entre 2015 e 2019, esses cursos me proporcionaram a oportunidade de interagir com
variados públicos, sempre participativos e irrequietos. Agradeço, em particular, aos coletivos de que
tomei ou tomo parte: Mil Brechas, Kinodeleuze, canal Horazul (Youtube) e rede Universidade
Nômade. Agradeço, ainda, às pessoas que, de dentro de instituições, conseguiram desterritorializar
as agendas para abrir um espaço organizativo dos cursos livres: Museu da República, Casa de Rui
Barbosa e Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro; Tapera Taperá, em São Paulo; e Teatro Espanca
e Espaço Guaja, em Belo Horizonte. Obrigado à paciente revisora Ana Luiza Lopes, que discutiu
comigo o texto ao longo do processo de escrita e fez sugestões de relevo. Por último, como não
poderia deixar de ser, agradeço à Darlene Costa, a incansável força de bastidor para todas as
maquinações acima.
CAPÍTULO 1 – O ANO QUE CONTINUA PASSANDO

Segundo as críticas mais frequentes, o Anti-Édipo seria uma obra datada, incapaz de abordar
problemas atuais e responder a eles. O livro de Deleuze e Guattari estaria circunscrito ao clima
exaltado dos protestos que eclodiram na Paris intelectualizada de 1968, com foco na ocupação das
universidades. No entanto, ele é perpassado por vagas muito maiores de manifestações, ocupações e
produções. Existe o Maio de 68 universitário parisiense, mas existe também o Maio de 68 francês
como um todo, que engloba a ocupação de instituições e fábricas. Existe, ainda, o 1968 que serve de
epônimo para um abrangente ciclo de lutas, com escopo global; uma nuvem imensa de que o
conjunto de eventos daquele ano nas universidades francesas é apenas um dos raios. Há todo um
sistema de vasos comunicantes entre revoltas e descargas de criatividade que se interferiam à
distância, sem pertencer à mesma linha contínua de tempo ou habitar o mesmo espaço; uma
ecologia mental das rebeliões sessentoitistas. É possível comparar os protestos do Maio francês com
as mobilizações de 1968 no Japão, nos Estados Unidos, no México, na Itália ou no Brasil; conectá-
los com a Revolução Cultural Chinesa; e reconhecer neles reverberações das lutas de libertação
nacional em Cuba, na Argélia ou no Vietnã. Além de múltiplos em cada caso, esses eventos
formavam uma multiplicidade em que funcionavam juntos, mesmo estando separados. As linhas de
conexão não eram da ordem da semelhança ou analogia, mas do contágio. Vale notar que a reunião
da multiplicidade sob uma data marcante empregada como epônimo não era inédita. Sob o epônimo
1848, por exemplo, aglutinam-se as insurrecionais jornadas de junho em Paris e as primaveras
globais desencadeadas pelo mundo, como o levante belga, a libertação polonesa e a Praieira, no
Brasil. O mesmo esquema designativo vale para outras multiplicidades de tumultos: 1830, 1917 e,
por que não, 2011, no caso das Primaveras Árabes.
O acontecimento 1968, vamos chamá-lo assim, leva em conta todas as manifestações que
ocorreram num determinado período ao redor do evento que marca o epônimo. Não é à toa que
empregamos a palavra acontecimento. Na medida em que o termo corresponde a um conceito
filosófico0, ao unirmos acontecimento e 1968, estamos nos referindo a algo mais. Conforme
dizíamos, os protestos e ocupações de 1968 ocorreram num espaço e tempo determinados.
Podemos, então, dizer que existiram como atualidade; noutro âmbito, porém, subsistem como
virtualidade, no que são intensidades e, como tais, não se sujeitam a delimitações cronológicas.
Atualidade e virtualidade não se opõem, como se virtual fosse o não-atual e o atual, o não-virtual. O
par atual/virtual não deve ser confundido com o par real/potencial, na medida em que potencial
implica um campo de possibilidades em suspenso, à espera de uma ação ou ocasião para passar do

0
François Zourabichvili, Deleuze: uma filosofia do acontecimento, São Paulo: Editora 34, 2016.
plano da potencialidade para o plano da realidade. Nesse sentido, os potenciais ocupariam um
reservatório de possíveis à espera de uma realização, que pode ou não ocorrer. Caso ocorra, o
potencial se torna real; se não, permanece como um possível irrealizado que talvez se realize, talvez
não. Essa disjunção exclusiva – “poder ou não” – caracteriza a potencialidade, mas não ocorre no
caso da virtualidade. Primeiro, tanto a virtualidade quanto a atualidade são reais, plenamente reais.
Nesse sentido, não há nada que falte à virtualidade em relação à atualidade. A existência atual não
tem um grau superior de realidade, substância ou concretude. Ambas coexistem sem oposição ou
negação. Noutras palavras, não é possível uma contradição entre atual e real, não há nada no atual
que negue o virtual ou o inverso, um e outro não se relacionam a partir da negatividade: atual e
virtual.
Sucede uma identidade de substância entre atual e virtual, não sendo possível separá-los nos
corpos. A diferença entre eles se dá em termos de regime de funcionamento ou modo operativo.
Eles funcionam de formas distintas, fazem coisas diferentes, se prestam a diferentes usos. O atual
funciona por meio de um plano achatado em que se inscrevem todas as coisas, pessoas e lugares em
suas relações de causa eficiente e esquemas motores. As rotinas, os hábitos, todos os afazeres que
realizamos no dia a dia existem nesse plano. Os fatos no noticiário, as atualidades ou, como se diz,
“o que está acontecendo no mundo agora” também integram o plano do atual. A nossa percepção
está inteiramente mergulhada nesse plano. Também é nele que podemos agir, montando esquemas
motores entre os nossos e outros corpos. Nesse plano, tudo está conectado em alguma medida a
tudo, como um enorme mecanismo de causas imbrincadas que define o presente aqui e agora. Já o
virtual é mais bem compreendido como volume. Essa dimensão volumétrica é dada pelo tempo.
Não estamos falando aqui do tempo em sua efetividade perceptível e atuável, mas do tempo
sedimentado em diferentes estratos que vão se acumulando. Além de camadas de minutos passados,
o virtual é formado de subterrâneos bem mais profundos compostos de séculos, milênios, eras
geológicas, planetárias. A relação entre a virtualidade e a atualidade é como a do subsolo e a
superfície do solo. Como dissemos, virtual e atual coexistem e não há diferença de substância entre
eles, ambos são feitos de tempo0. Ainda assim, operam em dois regimes de funcionamentos
diferentes, um é cronológico e o outro não. O virtual não se apaga com o passar do tempo; ao
contrário, ele vai se sedimentando cada vez mais fundo, sempre lá. O efeito de opacidade que
sentimos em relação ao virtual se dá à medida que ele se afasta da superfície, logo parece ter cada
vez menos relação com as preocupações atuais, rotinas e protocolos consolidados que se repetem.
No entanto, em algum momento, o virtual foi atual e contribui para a determinação de hábitos e
rotinas. Noutras palavras, o virtual não é o atual tornado potencial que, então, poderia voltar a se

0
Gilles Deleuze, Bergsonismo, São Paulo: Editora 34, 1999 [1966], p. 45.
realizar; o virtual, que já foi atual, agora coexiste com ele, por mais distante que esteja
cronologicamente. Como disse Faulkner, o “passado não está morto, ele nem sequer passou”0.
A importância da distinção entre atual e virtual é crítica para a compreensão do acontecimento
como conceito, o que por sua vez é relevante para compreender como o Anti-Édipo não só atualiza
o acontecimento 1968, como o livro mesmo não está morto. Ele nem sequer passou, mesmo sem ser
atual, mas apenas se por atualidade entendemos os esquemas e dispositivos ritualizados que
perfazem o nosso presente. Ele é um livro datado, mas a data aqui, 1968, implica um índice de
virtualidade. Se a ligação entre real e potencial se dá pela realização, a ligação entre atual e virtual
se dá pela atualização, que não deve ser concebida como potencialidade viabilizada ou passagem de
um possível à realidade. A atualização é o acoplamento binário entre um elemento atual e outro
virtual. O que corriqueiramente denominamos atual, o hic et nunc que se distribui pelo plano
achatado, nada mais é do que um processo de atualização constituído por acoplamentos entre atual e
virtual que se repetem em moto contínuo0.
Quando escovamos os dentes, não ponderamos sobre o gesto, apenas repetimos
maquinalmente o conjunto coordenado de atos. Mas esse ritual aparentemente trivial implica
dispositivos muito antigos, muito tradicionais, que passaram por complexas alterações ao longo do
tempo – os saberes e as técnicas da odontologia, as tecnologias sociais da higiene – até se
inscreverem no plano atual em forma de hábito. Não guardamos dentro de nós a memória de como
escovar os dentes como se fosse algo que depositássemos em uma gaveta no cérebro, que então
poderíamos abrir e examinar. Essa memória é social e, de certa maneira, material, na medida em
que envolve uma miríade de coordenações e interações entre diferentes materiais, movimentos,
esforços e causalidades. É essa memória do mundo, digamos assim, que permite algo como o hábito
de escovar os dentes, em virtude dos inúmeros acoplamentos de realidade. O que chamamos de
memória pessoal não passa de um recorte extremamente reduzido da memória do mundo. Aquela
está integrada a esta, e elas só podem ser separadas de modo postiço, pois não há distinção real
entra a instância impessoal da virtualidade e a unidade pessoal das lembranças. A virtualidade é
justamente essa memória do mundo. Cada atualização envolve um circuito estabelecido por dentro
das camadas, um percurso único que passa por vários estratos de uma maneira tal e tal, até produzir
a atualidade do aqui agora, o que se dá continuamente.
Cada um de nós, nesse sentido, é uma máquina de repetir esquemas que seriam inimagináveis
se fosse necessário refletir sobre eles e compreendê-los um a um, em todas as suas variáveis e++
minúcias. A começar, perderíamos a funcionalidade que nos empurra para atualidade dada a força
gravitacional que o nosso rendimento em relação aos esquemas que nos rodeiam e a partir dos quais
somos constituídos exerce sobre nós, até nos gestos mais prosaicos. Há um trade-off envolvido aí:
0
William Faulkner, Requiem for a nun, Montreal: Vintage, 2019, p. 88 (tradução nossa).
0
Gilles Deleuze, Bergsonismo, p. 45.
ou bem recorremos às repetições maquinais, o que torna os esquemas funcionais, ou bem nos
lançamos a compreendê-los em sua gênese virtual, isto é, assimilar o percurso que recolhe
fragmentos de memória impessoal até formar a rotina, o protocolo, as atualidades, “o que está
acontecendo no mundo agora”. Um e outro representam dois caminhos ou métodos possíveis, dois
regimes de funcionamento, mas isso não significa que atual e virtual não ocorram ao mesmo tempo,
o tempo todo. Com efeito, o tempo é esse jorro simultâneo de atual e virtual 0, tudo que é presente se
faz acompanhar do passado, que não perece. Mas a coexistência se dá segundo uma infinidade de
arranjos possíveis, de itinerários de atualização a partir das diferentes zonas e profundidades de
virtualidade. Cada presente, rotina ou circunstância atual possui seu próprio passado, seu avesso de
intensidades, sua própria seleção organizativa da memória do mundo0.
Pois bem, para Deleuze e Guattari, a experiência da loucura embute um procedimento
específico de elaboração do segundo caminho 0. Ela é disfuncional e causa um quantum variável de
sofrimento por isso. Os argumentos do Anti-Édipo não apelam para a romantização da loucura nem
enaltecem o sofrimento pelo sofrimento, como se bastasse inverter o sinal do que é considerado
negativo para alcançar o positivo. Nada estaria mais distante da filosofia afirmativa do que máximas
motivacionais do tipo “o feio é belo”, “o fracasso é charmoso”, “os últimos serão os primeiros”,
“quem ri por último ri melhor” e por aí vai. Não haveria nisso nada de afirmativo. Tais máximas
não passam de uma forma conformista de negação da realidade e um modo resignado de pertencer à
paisagem dos eventos, pois alternativas àquilo que se deseja contestar ou inverter não são
construídas. Deleuze e Guattari não sugerem que a loucura é legal e o são, louco, trocando o mais
pelo menos. Também não pressupõem que a sociedade é um hospício e, já que estão todos loucos
mesmo, nós, os últimos alienistas diante de uma realidade de insensatez, devemos nos isolar numa
bolha. No Anti-Édipo eles afirmam, sim, que a experiência da loucura só pode ser vista como
disfuncional em relação a uma funcionalidade instituída 0. Isto é, a negatividade atribuída à doença
só pode ser medida por um dado positivável da realidade, que é construído. Eles destacam que a
negatividade reflexa referente às instituições atuais não elide a positividade da própria experiência
da loucura, enquanto percurso alternativo da memória do mundo. Há positividade na experiência da
loucura, relativa ao regime de funcionamento do virtual, que nela e a partir dela extravasa.
O hábito de escovar os dentes, de que falamos, é individual, ao passo que as instituições
envolvem hábitos em grande escala. Elas ritualizam repetições, rotinizam esquemas motores de
ação/reação e consolidam atualizações, de maneira que passam a funcionar maquinalmente. Mesmo
as mudanças, vindas de dentro ou fora das instituições, seguem protocolos, obedecem a normas de

0
Ibidem, p. 81.
0
Idem, Diferença e repetição, Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra/Graal, 2018 [1968], p. 224. Do mesmo autor, ver também
Bergsonismo, p. 46.
0
AE, p. 123, 177-178, 382.
0
AE, p. 111-113, 478.
reforma, de modo que possam prolongar seus arranjos continuamente. As instituições representam
um elemento fundamental na seleção organizativa das memórias do mundo que constituem o nosso
atual, o aqui e agora0. A disfuncionalidade da experiência da loucura está, em grande medida, ligada
à inaptidão ao trabalho, à família, à higiene, à escola, à civilidade e a uma série de instituições de
diferentes tipos e lógicas, que compartilham o fato de que funcionam com os pés no presente, para
fazer coisas, cumprir projetos. Não há uma negação das instituições por si mesmas, ainda que,
segundo Deleuze e Guattari, o sentido de sua ruptura caminhe para seu esfacelamento em prol de
pluralidades de campos experimentais, conjugando arte e ciência 0. Guattari, inclusive, contribuiu
para desenvolver um gênero de análise institucional e práticas de intervenção que, em vez de negar
as instituições, visa multiplicar limiares de problematicidade quanto à sua funcionalidade e
efetividade, para construir relações marcadas por coeficientes de transversalidade em grupos,
coletivos e formações sociais não-institucionalizadas 0. Isto é, mais do que atingir metas de reajuste
dos pacientes aos padrões de repetição definidos institucionalmente, importam os mecanismos
implicados nos próprios padrões, a avaliação de seus efeitos e resultados, cujos critérios e práticas
devem ser reorientados por acoplamentos intrínsecos a um fora da instituição. No Anti-Édipo, a
experiência da loucura é vista prospectivamente – não para elogiá-la em si ou falar em nome dela 0,
mas como método de problematização das instituições e hábitos que a subtraem o direito de falar de
si, da vida, da virtualidade do mundo, que a silenciam na noite do irracional. É uma questão de
pontos de vista. Em vez de sempre se instalar no ponto de vista da atualidade, com seu empuxo
gravitacional ao que é funcional e eficaz, colocar-se deliberadamente no ponto de vista da
virtualidade. Isso significa, por um lado, uma primeira tarefa desorganizativa: ainda que por um
intervalo, desligar os vínculos perceptivo-ativos que conformam nossa atualidade; de outro, religar
os vínculos em profundidade e percorrer os diversos itinerários através das camadas sobrepostas de
tempo0.
O Anti-Édipo pretende sistematizar essa intuição para formular um novo método. Um método
que confere à loucura o direito de falar e, ao falar de si, falar do mundo, que é mais do que
atualidade. Não é o caso, sejamos explícitos, de deixá-la falando sozinha para, às suas costas,
preparar a anulação de seus conteúdos 0. A experiência da loucura propicia a investigação de zonas
pré-atuais, pré-individuadas, que relançam limiares inéditos de problematicidade. Os umbrais na
fronteira da saúde mental conforme estabelecida pelas instituições passam a verter, para dentro da
atualidade, cargas de disfuncionalização. Como organizá-las de outro modo, que não seja para

0
AE, p. 379.
0
AE, p. 488.
0
Felix Guattari, Revolução molecular: pulsações políticas do desejo, 3. ed., São Paulo: Editora Brasiliense, 1985 [1977], p. 96-
100.
0
“(...) gostaríamos de falar em nome de uma incompetência absoluta” (AE, p. 504).
0
Gilles Deleuze, Bergsonismo, p. 46.
0
AE, p. 82.
repetir maquinalmente as mesmas rotinas e hábitos? Isso exige método. É aí que os autores vão
inverter o ponto de vista, deixando os loucos falarem, de direito próprio, de ciência nova. Alguém
poderia objetar: Se não somos nós os loucos, como poderíamos nos vincular à loucura no que ela é
veículo da memória do mundo? A lógica é: Se não vivemos a experiência, não poderíamos falar
qualquer coisa dela. Ou poderíamos? Ora, se o caráter individual de cada experiência, isto é, se a
unidade da pessoa, do ego, é na verdade uma unificação, isso significa que há linhas de atualização
que atravessam cada um. Nenhuma organização seletiva do passado se repete exatamente da mesma
forma. Nós mesmos, a todo momento, diferimos internamente e, ao mesmo tempo, difere a
identidade que elaboramos de nós mesmos, ou seja, difere internamente o eu e a imagem que o eu
faz de si0. Que a experiência seja única e irrepetível, e cada vida seja com efeito uma vida, isso não
significa que a atividade composicional de cada um não tenha sido gerada e continue sendo gerada
por repetições que desbordam os limites do eu. Noutras palavras, o eu é precário, frágil, uma
circunstância complexa em constante alteração no ambiente.
Pode ser mesmo que o Anti-Édipo pareça o livro louco de dois enlouquecidos. Talvez 1968
tenha provocado isso. Talvez tenham sido as experimentações de Guattari na clínica, com os
esquizofrênicos. Os autores acabaram por perder o juízo, abandonaram o rigor, viajaram na
maionese metafísica. Não é nada disso. O formato e a narração “loucos”, que se manifestam desde a
primeira página do livro, são testemunhos do tremendo esforço dos autores, que se deixaram
percorrer pelos fluxos produtivos da experiência da loucura. Os outros três livros escritos a quatro
mãos por Deleuze e Guattari lembram o jazz americano dos anos 1950. Com alta concentração de
estilo e saturado de virtuosismo, abre as portas para a improvisação. O que é a filosofia?, publicado
em 1991, não seria o Kind of Blue da filosofia contemporânea? O Anti-Édipo, contudo, é outra coisa
e não se compara. O livro tem um quê de pegajoso, uma fauna microbiana difícil de manejar, chega
a grudar. Como as máquinas que o povoam de capa a capa, o livro range, ronca, borbota, balbucia.
Por vezes, ao tentar agarrá-lo numa leitura esquemática demais, ele escorre pelas mãos, como uma
bola de pequenas larvas. Para conferir à experiência da loucura seu estatuto de dignidade, é preciso
metodologia e rigor, um rigor criativo que não era possível encontrar nos receituários e manuais de
seu tempo, devendo ser buscado nas vanguardas da pesquisa. Na época, alguns movimentos de
experimentação no campo da saúde mental tentavam se acercar da experiência da loucura por outros
meios, segundo outras vias. Guattari em particular 0, além de experimentar com práticas de
intervenção na clínica La Borde, acompanhava e estudava outras franjas de descobertas nas décadas
do segundo pós-guerra, como a psicoterapia de Daumézon ou Tosquelles0, a antipsiquiatria de Laing
e a renovação da psicanálise de Lacan.
0
Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, p. 131-132.
0
François Dosse, Gilles Deleuze e Félix Guattari: biografia cruzada, São Paulo: Ed. Penso, 2010 [2007]. Ver Parte I, capítulos 1 a
4.
0
Em particular, a experiência da guerra lançou uma suspeita geral sobre o confinamento asilar.
Não é preciso tornar-se louco, isto é, adotar voluntariamente a disfuncionalidade, aceitar a
falta produzida pelas instituições sociais – de fato e na concepção das patologias mentais – para
articular a experiência da loucura em outros termos, transversalmente. Essa é uma premissa básica
do Anti-Édipo, que não prega uma espécie de enlouquecimento salvacionista. Noutras partes de sua
obra, Deleuze e/ou Guattari comentam como é possível imitar facilmente uma criança, por
exemplo0. Outra coisa é conectar-se com a nuvem pré-individual e pré-pessoal de individuações,
ainda bastante em aberto, que definem a experiência da criança: uma percepção mais arejada dos
esquemas, a brincadeira como abertura dos usos normalizados, uma inocência que instiga
questionamentos mais profundos. Nada impede despregar da experiência infantil delineamentos de
método, que podem ser reconectados num campo de experimentações outras para gerar novos
acoplamentos do atual e do virtual, diferentes percursos de seleção organizativa de presente e
passado. Para usar o léxico deleuzoguattariano, nada impede um devir-criança, o que é distinto de
vestir-se de bebê ou comportar-se como um (embora isso não seja menos legítimo). Tornar-se algo
pode ser impossível ou a coisa mais fácil, mas captar na ambiência de virtualidade o devir-algo é
sempre difícil, ardiloso, pois implica técnicas de acoplamento, de sintonização “à distância”.
Deleuze e/ou Guattari escrevem sobre a experiência do drogado, que não se resume a uma alteração
da percepção induzida por substâncias químicas, mas a um devir imperceptível 0. Ela também
permite descer ao princípio genético da própria percepção e da composição afetiva que define o que
um corpo pode, o seu feixe de micropercepções. Não é a diferença de percepção, mas a percepção
na diferença. Não é a diversidade de pontos de vista, mas o que diferencia pontos de vista uns dos
outros, seus mundos implicados. Deleuze e Guattari não prescrevem a droga como método, em vez
disso, buscam um modo de produzir os mesmos efeitos por outros meios 0; um mecanismo que
permita alcançar a mesma perquirição da diferença na percepção, no corpo, na experiência; um
devir. Eles não a prescrevem nem a condenam, o que seria uma prescrição negativa, apenas
pontuam que a filosofia não passa necessariamente por aí 0. Da mesma forma, embora não
dispensem a possibilidade de contar com as forças dionisíacas como instrumento de conhecimento e
práxis, Deleuze e Guattari seguem o desejo de Henry Miller – ser capaz de embriagar-se com água
pura0 – ou o feito de Emily Dickinson que, num poema célebre, ficava bêbada com a brisa de ar
puro, “I taste a liquor never brewed”0.

0
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie 2, Paris: Les Éditions de Minuit, 1980, p. 337-340.
A partir daqui, este livro será referido como MP.
0
Ibid, p. 347-349.
0
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Conversações, São Paulo: Ed. 34, 1992, [1990], p. 20-22. E também, dos mesmos autores, O que
é a filosofia?, São Paulo: Ed. 34, 1992 [1991], p. 215.
0
“(…) acreditamos em uma bioquímica da esquizofrenia (em ligação com a bioquímica das drogas)” (AE, p. 117).
0
MP, p. 204, 350.
0
Emily Dickinson, “I taste a liquor never brewed”, The Poems of Emily Dickinson, Cambridge [USA], The Belknap Press of
Harvard University Press, 1999 [1861]. Disponível em: https://poets.org/poem/i-taste-liquor-never-brewed-214. Acesso em: ago.
2022.
A questão do Anti-Édipo não é se entregar à loucura ou colocar os loucos para fazer filosofia
ou psicanálise no lugar dos filósofos e psicanalistas. Uma e outra são feitas em nome próprio. A
questão é galgar um devir-louco, trançar um livro que devenha louco. Nesse processo, científico e
artístico ao mesmo tempo, o livro devém louco e os loucos que o povoam devêm livro. Devir é
dupla captura, núpcias entre dois reinos, um concatenamento de dois regimes de funcionamento que
se dá à meia distância0. Não é da ordem das semelhanças. O Anti-Édipo não é a fala de dois loucos
ou enlouquecidos, tampouco Deleuze e Guattari a estariam imitando como se fingissem. Isso, além
de simplório, seria ridículo. Eles não buscam construir uma filosofia louca ou uma psicanálise
louca, como se a loucura fosse um adjetivo a ser aplicado a uma substância precedente à espera das
qualidades. Na realidade, a filosofia e a psicanálise desenvolvem, cada uma a seu modo, uma
relação interna com a loucura0. No caso da psicanálise, como desenvolveremos, trata-se da
descoberta espantosa por Freud do inconsciente, enquanto problema motriz da vida mental e social.
A relação entre o Anti-Édipo e a experiência da loucura tampouco é da ordem das analogias. Não há
uma correspondência, séries homólogas em paralelo, entre o que o presidente Schreber fala, um dos
enlouquecidos no livro, e o que Deleuze e Guattari conceitualizam acerca do delírio de Schreber.
Há, na realidade, uma zona de avizinhamento e interceptações com mão de gato entre as séries,
mediante um operador dinâmico, um encontro fugaz de códigos e fluxos, que faz rebaterem os
pedaços aqui e ali numa e noutra série, como fragmentos capturados. Com essa dupla operação, os
loucos podem povoar uma obra de filosofia, ao passo que a filosofia conta com os loucos para
repovoar-se ela mesma de problemas e conceitos. É o devir dos dois lados, relacionamento
assimétrico (não-paralelo) entre capturas recíprocas, cujos fragmentos capturados vão funcionar de
maneiras diferentes, em formações ou maquinários diferentes. Para Deleuze, a filosofia precisa
estabelecer, como tarefa irrecusável, uma relação interna com a sociedade, a arte, as ciências e a
política com outros campos externos, que devem continuar externos, sem confusão. Precisa fazer
isso porque essa relação com o fora não pode se regenerar, não pode criar, e a definição de Deleuze
e Guattari para a filosofia envolve uma dimensão criativa. Segundo eles, a nota distintiva da
filosofia, o que ela faz de diferente, é criar conceitos0.
O Anti-Édipo se aproveita de outros devires-loucos, como aqueles que arrecada da literatura
anglo-americana: os beatniks, a trilogia dos trópicos de Miller, as criaturas de Beckett, as paixões de
D. H. Lawrence, o fluxo de consciência de Woolf. O objetivo é levar a sério a ideia de que o texto é
povoado por muitos. A literatura, assim como o inconsciente, é um problema de população.
Declarar que cada autor é muitos é pouco, uma ninharia. A questão é criar um estilo literário capaz
de multiplicar e dispersar as instâncias de enunciação povoando assim os territórios – um

0
“(...) duas operações de captura” (AE, p. 414). Ver também MP, p. 360.
0
Michel Foucault, História da loucura, São Paulo: Perspectiva, 1978 [1961].
0
Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, p. 13-21.
nomadismo da escrita, o que Bakhtin identificava no romance dostoievskiano como polifonia 0. O
objetivo desse estilo0 consiste em derrubar o narrador do Céu e colocá-lo para andar lado a lado
com as suas criaturas. Cada personagem apresenta uma perspectiva de direito próprio, com um
mundo próprio. Num romance dostoievskiano, o modo de narrar, sua visão de mundo, valores e
trejeitos, vão se incorporando alternadamente aos vários personagens, de maneira que, lido no
conjunto, não é possível deduzir uma perspectiva privilegiada. Mesmo a perspectiva que seria a do
narrador não é dedutível. Ao viverem sua vida plena no corpo do texto, os personagens terminam
gerando um sentido de percurso em variação contínua, descolado de sentidos unificados por um
ponto. É um perspectivismo bastante poderoso o de Dostoievski, escrevendo no século IX. Mais
adiante, no século XX, por meio da literatura anglo-americana 0, esse perspectivismo se tornou ainda
mais extremado de consequências, mudando de natureza. O devir-louco se produz, nesses autores,
com a radicalização do procedimento polifônico até ultrapassar as unidades personológicas (as
pessoas unitárias), arrastando afetos e singularidades num fluxo que não conhece mais um eu ou um
ele. No discurso direto fala-se em primeira pessoa, eu. No indireto, quem fala é ele, terceira pessoa.
No discurso indireto livre, há um deslocamento qualitativo para outra dimensão, instância do
impessoal, onde todas as posições estruturais se tornam ocupáveis por uma cadeia enlouquecida de
signos, agregando os discursos, as perspectivas pessoais, fragmentos histórico-políticos,
comentários sobre culinária, enciclopédias ou raças, ideogramas, pictogramas, em suma, um fluxo
de cadeias heterogêneas e não unificáveis num único mundo, em um espaço comensurável 0. O fluxo
de consciência se apoia no inconsciente, a memória do mundo que assim transborda. É esse devir-
louco que o Anti-Édipo procura repetir a seu modo. A convocação de autores como Kerouac ou
Woolf por Deleuze e Guattari é mais do que a mera introjeção de fragmentos de suas obras
atravessadas por fluxos esquizofrênicos, é também um elemento metodológico, na medida em que
os autores do Anti-Édipo contam com esses fluxos para a redação do livro e seu estilo.
Das afirmações do Anti-Édipo, uma das mais basilares atribui ao delírio a capacidade de fazer
passar conteúdos histórico-políticos0. O fluxo delirante carrega consigo massas sociais, raciais,
nacionais, enormes agregados políticos do passado. O presidente Schreber, que desejava travestir-se
para viver o sexo enquanto mulher, delirava sobre os judeus, a síndrome prussiana (Sonderweg), os
dilemas da Alemanha antes da Primeira Guerra, além de fazer reflexões originais sobre as relações
entre direito e sociedade. Schreber, um respeitável juiz alemão, se tornou disfuncional em sua rotina
pessoal e nas instituições já na meia idade. Durante o estado de esquizofrenia, ele escreveu um livro
de memória0 que mais parece literatura fantástica ou ficção científica, envolvendo
0
Mikhail Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski, 5. ed. São Paulo: Forense, 2010 [1929].
0
Estilo, a coisa mais natural do mundo, “procedimento de uma variação contínua” (MP, p. 123).
0
AE, p. 179-182.
0
AE, p. 321. Ver também MP, p. 107.
0
AE, p. 80-81.
0
Daniel Schreber, Memórias de um doente de nervos, São Paulo: Todavia, 2021 [1903].
desmaterialização corpórea, telepatia, raios cósmicos e toda uma fabulação teológica. Freud
analisou o caso Schreber indiretamente, através do livro de memórias, e escreveu que seus sintomas
poderiam ser descritos como paranoia, provocados pela repressão dos desejos homossexuais 0. Desse
modo, o inconsciente de Schreber teria se formado pelas pulsões e ideias que não podiam ser
toleradas na consciência. Quando a pressão das energias libidinais se torna incontrolável, o
recalcado força seu curso para a superfície da consciência. No entanto, como o desejo homossexual
não pode ser representado e muito menos saciado por Schreber, o resultado do conflito é
patogênico: a energia libidinal verte violentamente como delírio, impedindo o louco de se relacionar
com a realidade. Daí as alucinações e a mania de perseguição relatadas, que repercutiriam, segundo
Freud, o terrível medo infantil diante do pai vingativo, figura imaginária reencarnada no médico e
depois em Deus. Para Deleuze e Guattari, esse caso é paradigmático nas operações da psicanálise
freudiana – um conjunto de técnicas e teorias que se consolidaram na história da psicanálise e
sistematicamente anulam a positividade e a produtividade transbordantes do delírio e da atividade
inconsciente nele presente0. A partir dele, os autores do Anti-Édipo vão deflagrar um amplo espectro
de focos de guerrilhas teórico-políticas com a psicanálise.
Tendo isso em vista, uma série de questões podem ser levantadas. Que os desejos
homossexuais fossem problemáticos para Schreber, isso era causado pela infância ou pela sociedade
em que vivia? Seria preciso sublimar esses desejos removendo o componente de homossexualidade,
de maneira a curá-lo ante uma sociedade que a condena? Ou seria tarefa da psicanálise utilizar o
caso de Schreber para apontar, já de partida, por que seria ainda mais patológico buscar adequá-lo à
norma de sua época? Perceba que, já de partida, há um componente político quanto ao significado
da cura e ao papel do psicanalista diante da doença e de sua classificação mesma. Isto se desdobra
imediatamente em problemas éticos. O psicanalista está comprometido com quem? Com a
sociedade ou com o paciente? Noutros termos, a responsabilidade do psicanalista é com a mudança
da sociedade ou com o bem-estar do paciente? Deve o paciente sofrer as consequências da opção
política do psicanalista ao questionar as bases normativas da sociedade ou não seria melhor buscar
adaptá-lo mesmo que isso implique confirmar os valores sociais que repudiamos? Quem sabe um
meio termo. Afinal, o psicanalista pode emitir um juízo de valor sobre a sociedade? Com que
direito? Quem é ele para tal? Ele foi formado para isso? E assim por diante. O sofrimento, em
particular, é um argumento que moraliza a questão, confere-lhe uma espessura de drama interno à
psicanálise e ao psicanalista, pois define uma esfera de culpabilidade associada à conservação do
sofrimento naquele caso em particular.

0
Sigmund Freud, “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides)” , O caso
Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1013), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud, Rio de janeiro: Editora Imago, 1998, vol. 12, p. 15-108.
0
AE, p. 124-128.
Deleuze e Guattari, no Anti-Édipo, não têm nenhuma dúvida. A psicanálise não pode se
prestar ao ajuste social como norma. O psicanalista não pode servir de funcionário sofisticado para
a reprodução dos hábitos e instituições estabelecidos, o que seria torná-lo apenas mais um
mecanismo de repetição maquinal do sofrimento em grande escala, produzido pelo campo social,
num nível estruturante. Mas não é só isso. Os esforços da psicanálise na busca da cura
frequentemente reduzem a dor e o sofrimento segundo uma visão limitada e de curto alcance sobre
o que significa saúde0. Se assumimos uma perspectiva mais abrangente do que significa um corpo
são, podemos notar que a psicanálise, em nome da remediação do sofrimento, termina por produzir
corpos despotenciados, voltados para uma cultura da renúncia e do apaziguamento dos conflitos 0,
reduzidos à conformação permanente diante dos dilemas e antagonismos que se apresentam na
sociedade. Em certas correntes depois de Freud 0, inclusive, a psicanálise reencontra a mais antiga
psiquiatria quando se rende a tratamentos voltados a aumentar a performance no exercício de papéis
sociais, incrementar a produtividade no trabalho e promover, de maneira edificante, a família, o
sexo, o sucesso. Que psicanálise amortecida é essa que sucumbe ao papel de aumentar a eficiência e
o desempenho do indivíduo na sociedade – para quem?
No caso de Schreber, em nome da cura, Freud preferiu ignorar os conteúdos histórico-
políticos no que eles têm de reveladores sobre a memória do mundo, sob o presente em curso.
Desconsiderou o tanto que o livro de memórias de Schreber poderia contribuir para um acesso
articulado das molas propulsoras do “que está acontecendo no mundo agora”, no caso, as
engrenagens obscuras que moviam a sociedade alemã no começo do século 20. A fita branca, filme
de 2009 dirigido por Michael Haneke, permite entrever o subterrâneo incandescente, o virtual que
nem por isso é menos real. O filme retrata a pressão a que as crianças e adolescentes alemães eram
submetidas na escola, na família e em seus próprios círculos. A educação rígida, as exigências
puritanas na família, o imperativo de austeridade moral e material são onipresentes nesse filme de
fotografia magistral que o diretor austríaco acertadamente optou por filmar em preto e branco. Em
meio a essa panela de pressão, crimes ocorrem, mas a violência jamais é representada. Existe como
uma neblina difusa que se condensa cada vez mais, mas cuja culminação não se dá na diegese do
filme. Esses processos mentais inconscientes para a câmera, estão ali, gerando efeitos, não se
resumem às estruturas simbólicas ou imaginárias de um pequeno drama familiar. São dramas
porque são colisões de forças sociais e anímicas, fluxos desejantes canalizados, represados,
recanalizados, que eclodem desajustes aqui e ali, corruptelas, delitos, violências pontuais, crimes
locais, até formarem o grande crime que o filme não mostra.

0
AE, p. 480.
0
AE, p. 163.
0
A referência direta é à Psicologia do Ego, que Lacan critica de perspectiva ética. Vinicius A. Darriba, “O fundamento ético da
crítica de Lacan à psicanálise pós-freudiana”, Gerais, Rev. Interinst. Psicol [online], 13 (3): 1-14, set./dez., 2020 (Belo
Horizonte). Disponível em: http://dx.doi.org/10.36298/gerais202013e15419. Acesso em: ago. 2022.
Ao se aprofundar na memória do mundo, traçando novos percursos, o delírio esquizofrênico
apresenta um conteúdo histórico-político que não pode ser relegado a pano de fundo. Deleuze e
Guattari imputam à psicanálise uma autoalienação em relação a forças inconscientes que não apenas
excedem a lógica de um inconsciente privado ou pessoal, como a banham, a atravessam e definem
seu funcionamento. É a isto que os autores atribuem o caráter idealista da psicanálise: o desligar-se
da virtualidade em sua estatura, profundidade e complexidade, da força produtiva de novas
atualizações. A tentativa de isolar dramas íntimos ou personológicos não é somente um
reducionismo brutal do caráter histórico-político do próprio inconsciente, como também conduz ao
fracasso inerente das curas, sempre intermináveis. Trocando em miúdos, sem uma metodologia à
altura do desafio, a análise não faz mais do que enxugar gelo. Nada disso é desconhecido de
psicanalistas como Freud e Lacan, cuja tenaz autocrítica os levou a questionar técnicas, métodos,
categorias e, diante do aspecto interminável da cura psicanalítica, a indagar se em seu tempo o
conjunto da psicanálise não estaria mal orientado0.
Da perspectiva filosófica, um fragmento de método do Anti-Édipo pode ser encontrado no
prólogo de Gaia Ciência, livro de Nietzche de 18820. O prólogo foi escrito pelo próprio autor cinco
anos depois do livro, quando passava por episódios convulsivos decorrentes da doença degenerativa
da qual terminou por falecer (possivelmente sífilis). Escrito, portanto, na fase final de sua vida,
quando se dizia que Nietzsche estava ficando louco e seus escritos começavam a estabelecer uma
zona de vizinhança com o delírio. Para Deleuze, esse continua sendo um período produtivo da
filosofia nietzschiana em termos de criação de conceitos 0. No prólogo citado, Nietzsche explica que,
para as pessoas sãs e normais, a filosofia só pode ser um luxo. E nada de novo pode surgir daí. A
filosofia tornada parte da rotina, do dia a dia, dos afazeres de sempre é, para Nietzsche, a
antifilosofia. A verdadeira filosofia ou é intempestiva ou não é. Filósofo é aquele que, transformado
em criatura inatual, faz da inatualidade uma perspectiva nova sobre o mundo e a sociedade.
Nietzsche compreende que a memória do mundo contém uma carga de pensamento que, à luz do
dia, não passa de um impensável perigoso. E é mesmo perigoso, sobretudo para quem pensa. Expõe
a pessoa a ameaças externas e internas, pode levá-la a perder a sanidade e torná-la disfuncional. Por
isso, na atualidade em que estamos engrenados, nada nos leva a pensar. Pelo contrário, tudo nos
leva à repetição maquinal, à manutenção dos hábitos. Não pode existir filosofia aí. Acoplada aos
afazeres e hábitos, ela não passa de perfumaria. A prateleira de livros filosóficos se transforma num
móvel repleto de frascos coloridos e fragrâncias variadas. Nietzsche entende que a filosofia, quando
realmente acontece, torna a pessoa inatual e, ao mesmo tempo, põe em questão o valor do que antes

0
AE, p. 91, 92.
0
Friedrich Nietzsche, “Prólogo”, A Gaia Ciência, São Paulo: Companhia de Bolso, 2012 [1882], p. 6-11.
0
Gilles Deleuze, “A gargalhada de Nietzsche”, A ilha deserta e outros textos: textos e entrevistas (1953-1974), São Paulo:
Iluminuras: 2006, p. 84-85. Entrevista realizada por Guy Dumur para o Le Nouvel Observateur.
era valorizado. Mais do que isso, cria valores novos, pondo em xeque não só os elementos atuais,
mas o próprio plano de inscrição das coisas, corpos e lugares no que chamamos de presente atual.
Na concepção nietzschiana, o que equivale a dizer na concepção de Deleuze e Guattari no
Anti-Édipo, a filosofia não nasce da autorreflexão, de algum sentimento pelágico de unidade com o
cosmo, de êxtases estéticos ou experiências místicas. Filosofar também não é o mesmo que resistir,
pois isso seria admitir uma moralidade reativa que se deixa pautar pelo que nega o que há de ativo e
criativo, diria Nietzsche. O fascismo de algum jeito acaba passando, porque a realidade social e
sobretudo o corpo é poroso e o fascismo, sendo um fenômeno molecular, se infiltra, contaminando-
nos em determinado grau e de determinado modo 0. De maneira que, ao perguntamos o que é o
fascismo ou como falar com ele, ele já passou, está em nós gerando seus efeitos mortificantes,
iniciando pequenas batalhas subjetivas na busca da vitória das forças reativas e ressentidas. Ainda
que não tenha vivido o fascismo em sua época histórica, Nietzsche afirma que ele não passa, mas é
preciso transmutá-lo, reconduzindo as forças de que ele se alimenta para outros usos, outros valores
e energias, dentro e fora de nós, no campo social. A filosofia, para Nietzsche, nasce da patologia, da
febre que nos força a pensar. É uma psicose sustentada no conceito, um salto no mesmo lugar que
nos torna inatuais em nossa realidade diurna. No mesmo prólogo, Nietzsche escreve que, na doença
e no sofrimento, seria possível recorrer à filosofia como uma saída, servindo-se dela como
consolação boeciana, meditação tardo-estoica ou imaginação de um além-vida, um lugar
transcendente, um outro plano dimensional em que finalmente encontraríamos a paz e a felicidade.
Mas não é esse o caminho que ele imagina para a filosofia do futuro. A outra via, a via nietzschiana,
é partir das alternâncias entre delírio e convalescença e construir uma saúde superior, a saúde dos
criadores, os que transformam a vida para curar-se da cura, encontrando outro sentido para ela.
Nietzsche não era um artista, mas captou um devir-artista em sua filosofia e impingiu à arte trágica
um devir-filósofo.
Deleuze e Guattari aplicam o modelo da gaia ciência ao proporem a esquizoanálise, que
responde ao programa nietzschiano de revezar delírio e razão, fluxo e máquina, as passagens entre a
face do desejo e a face do social da mesma produção 0. Ao estabelecer o delírio como fonte de
pesquisa da memória do mundo/virtual, pode-se cogitar na cartografia das forças, qualidades e
dinâmicas que condicionam o funcionamento do presente/atual, das instituições e hábitos no
presente. É isto que os autores censuram na psicanálise: a produção deficitária de valores novos a
partir da experiência da loucura e o fato de reduzi-la a relatos de casos e a corpos doentes, que são

0
Michel Foucault, “Preface”, in: Gilles Deleuze e Félix Guattari, Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking
Press, 1977, p. xi-xiv. A versão em português traduzida por Wanderson Flor do Nascimento está disponível em: http://michel-
foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/vidanaofascista.pdf. Acesso em: ago. 2022.
0
AE, p. 504.
enquadrados como o negativo dos tratamentos e das curas, a serem restituídos ao campo social e a
seus valores instituídos0.
Em vez de liberar a virtualidade aprisionada, para que os fluxos possam correr, a psicanálise é
colocada para trabalhar a favor do atual. Pode-se objetar que os pacientes precisam de tratamento
hoje e não amanhã, e que o sofrimento não pode ser substituído por abstrações e elucubrações. Em
certo sentido, as objeções estão corretas, uma vez que a filosofia pode funcionar como pretexto para
a conservação da ordem existente, num conformismo tão radical quanto a retórica nela enunciada.
Do fato de que o Anti-Édipo concite uma crítica tão virulenta contra a psicanálise, não se pode
depreender que seja um antídoto suficiente. E de fato não é; não sem o prolongamento em práticas
que o acompanhem. Em boa medida, a esquizoanálise é como a ciência gaia (ou menor), uma
ciência do porvir cujos espíritos livres ainda hão de chegar. Ainda assim, cabe perguntar: Onde está
a esquizoanálise hoje? Há alguns lugares, poucos e precários, nos quais é bastante palpitante,
vívida, esperançosa. Noutros, virou um subgênero de psicanálise de consultório a preços
exagerados. Seria inclusive o caso de perguntar como se justificam, o que está sendo remunerado,
qual sua razão de ser. É preciso reconhecer todos esses refluxos e crispações da psicanálise,
inclusive os realizados contra o Édipo, se não pretendemos contribuir para mais uma escola de
pensamento que se limita a jogar confete sobre si e pedra nos outros. A dimensão agressiva da
filosofia da afirmação, que se mede pela criação, não pode ser confundida com a animosidade
gregária, medida pela vontade de conservação. A releitura do delírio de Schreber, bem como o
conceito de Corpo sem Órgãos (CsO), destacado da obra de Artaud, não deixam de ser constructos
rigorosos e metódicos de uma filosofia que aspira captar um devir-louco e fazer uso dele, ao mesmo
tempo que se deixa captar, que se abre a núpcias inesperadas. Além disso, são objetos
analiticamente críticos e conceitos filosóficos que os autores esperavam que pudessem ser
relançados transversalmente nas práticas e terapias, na pluralidade de movimentos e coletivos
engajados na saúde mental, no sistema de instituições e no campo social como um todo.
Ao dizer que 1968 é um acontecimento, dizemos que o mundo enlouqueceu, como se a
multiplicidade de devires loucos tenha se interconectado a tal ponto, com tal massa crítica, que a
inatualidade passa a ser um movimento do mundo 0, não mais movimentos aberrantes na vida de
cada um ou de um grupo. As linhas de fuga da atualidade se entrelaçam de modo que fazem fugir o
mundo0. Todos somos levados a nos tornarmos em alguma medida inatuais, pois a atualidade é
abalada. Como escreveram Marx e Engels, “tudo que era sólido, desmancha no ar, tudo o que era
sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição
social e suas relações recíprocas”0. O acontecimento está de alguma forma ligado à mudança das
0
AE, p. 93-95.
0
Gilles Deleuze, A ilha deserta e outros textos: textos e entrevistas (1953-1974), São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 67-71.
0
MP, p. 249.
0
Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
coordenadas da relação entre atualidade e virtualidade 0. Vimos que não há oposição entre elas, que
guardam uma identidade substancial e coexistem. O que varia é a ligação entre atualidade e
virtualidade. Os hábitos, instituições e rituais que compõem o nosso cotidiano funcionam no plano
achatado, tudo isso continua gerando efeitos. As atualidades, “o que está acontecendo no mundo
agora”, seguem existindo apesar do acontecimento. A diferença é que o plano em que se inscrevem
as coisas perdeu a consistência; perderam-se também os liames íntimos que lhes davam amarração e
produziam o sentimento de ser atual. O acontecimento é quando o tempo sai fora dos gonzos. Nada
de concreto muda e ao mesmo tempo tudo muda. É como uma paixão nova, que muda o gosto de
coisas que nada têm a ver com o objeto amado. Muda a solda do desejo e do social. O social
(socius) existe na atualidade, é composto pelas instituições em seu funcionamento normal, uma
atualização estabelecida e rotineira. Já o desejo tem volume, opera na virtualidade e está atrelado ao
inconsciente, à memória do mundo. O desejo e o social se relacionam por meio de acoplamentos ou
sínteses, que nos põem para funcionar em nossas vidas normalizadas. Esses circuitos se estendem
de diferentes maneiras, com maior ou menor profundidade, maior ou menor densidade, mas de todo
modo estão enrijecidos, possuem um grau de solidez que sustenta o arcabouço de repetição. No
acontecimento, o circuito se reduz ao mínimo, o desejo se aproxima perigosamente do social, e a
posição imediata do desejo passa a retraçar os circuitos de outras formas, com percursos distintos.
Quando a proximidade alcança determinado limiar, a ligação entre atual e virtual se dá num circuito
mínimo ou curto-circuito. Menos do que confundir atual e virtual (jamais se fundem), colocam-no
para girar um ao redor do outro, alternando posições. É a formação da zona de indiscernibilidade,
que não deve ser confundida com um cadinho fusional onde presente e passado se tornam
indistinguíveis. Pelo contrário, a diferenciação continua sempre com precisão e rigorosamente, mas
com velocidades muito mais aceleradas, tendencialmente infinitas.
Na zona de periclitação instaurada pelo acontecimento, atual e virtual revezam-se, ora o atual
ocupa o lugar do virtual, ora o virtual ocupa o lugar do atual, de modo que há uma violenta
realocação dos elementos. Não se pode discernir o que é passado e presente, porque ora o passado é
presente, ora o presente é passado, e tudo acontece muito rápido. No acontecimento, o desejo
devém social, o que provoca o desbloqueio de fluxos desejantes, diretamente investidos sobre as
instituições, os hábitos e as repetições que conformam as unidades existentes. Mesmo que todas
essas produções sejam revertidas na atualidade, mesmo que o plano presente seja reconstituído, as
cicatrizes deixadas pelo acontecimento são irreversíveis e ele segue gerando efeitos enquanto
virtualidade. Imagine uma avalanche. Uma profusão de desestabilizações localizadas e rampas
predispostas se combinam para produzir um fluxo de desmoronamentos sucessivos. Ainda que a
avalanche seja interrompida por novos diques e contenções, não é possível recolocar a neve no

0
Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, p. 199-200.
mesmo lugar, na disposição em que estava. A reacomodação geral não pode evitar que as encostas
de rocha nua sigam testemunhando a passagem dos turbilhões.
CAPÍTULO 2 – UM, DOIS, TRÊS, MUITOS ESQUIZOS

Deleuze e Guattari atribuem a Freud e à psicanálise uma descoberta assombrosa, com


repercussões profundas e duradouras0. No Anti-Édipo, o surgimento da psicanálise é comparado à
Revolução Russa, que instaurou um governo inspirado nas ideias marxistas e conduzido pelo
partido bolchevique, liderado por Lênin 0. A comparação vai mais longe na medida em que a
novidade psicanalítica, como a bolchevique, também degringolou. Não é fácil precisar quando uma
e outra, psicanálise e revolução russa, começaram a esvair o propósito revolucionário, quando as
coisas começaram a dar errado. Teriam sido elas traídas por seus continuadores em determinando
momento e saído dos trilhos? Ou teriam seus próprios pais fundadores, Lênin e Freud, se
desencaminhado em nome dos imperativos da sobrevivência, durante uma fase específica de
consolidação da revolução? Será que o defeito estaria na origem dos movimentos, na organização
de um partido encarregado da revolução, no caso russo, e na institucionalização da vanguarda por
meio da Associação Psicanalítica Internacional, criada por Freud e seus discípulos em 1910? Ou
terá sido quando o complexo de Édipo se tornou senha de pertencimento à linha ortodoxa
centralizada em Freud, nos anos 1920? Precisaríamos recuar ainda mais e apontar um vício inerente
às ideias que basearam esses movimentos? Será que estariam o marxismo e o freudismo condenados
de antemão? Haveria um germe intrínseco às suas teorias e arcabouços conceituais, que
contaminaria as práticas efetivas durante e depois da fase propriamente inovadora? 0 Todas essas
perguntas brotam de inquietações que mobilizaram Deleuze e Guattari a escrever um livro de crítica
frontal à psicanálise.
Não encontramos no Anti-Édipo nenhuma proposta de descarte da psicanálise em geral, como
se estivesse invariavelmente perdida nos descaminhos de sua história. Deleuze e Guattari não
pretendem o abandono das técnicas e práticas das várias escolas de psicanálise existentes até o
momento da publicação, em 1972. O livro se chama “Anti-Édipo”, não “Anti-Psicanálise”, o que
tem razão de ser, como veremos. O objetivo declarado dos autores é realizar uma crítica interna da
psicanálise, ou seja, a partir dela. Criticá-la por dentro de seus pressupostos e critérios de avaliação,
por dentro das concepções de patologia e cura, de modo a avaliar seus limites percebidos ou
despercebidos, princípios norteadores e programáticos 0. A palavra “crítica” é usada segundo uma
acepção precisa, extraída da filosofia, mais especificamente, ela é empregada em sentido kantiano.
Kant escreveu três Críticas: da Razão Pura, da Razão Prática e do Juízo, que redirecionam os meios
da razão para o interior da própria razão, para julgá-la quanto às suas pretensões de conhecer,
0
AE, p. 70, 359, 441.
0
AE, p. 78.
0
AE, p. 503.
0
AE, p. 360.
definir normas universais de ação para o sujeito e exercer o juízo. Esse é o conhecido tribunal
kantiano, erigido pela razão para processar a si mesma. Ela é chamada a estabelecer os limites de
seus direitos ao conhecer os objetos e definir a ação moral. No Anti-Édipo, Deleuze e Guattari
convocam a psicanálise a prestar contas das suas pretensões de conhecer e julgar o inconsciente
sem, contudo, renunciar a ela0. Além disso, nessa reavaliação em grandes linhas, examinam a
relação da psicanálise com outros campos: a política, as ciências, as artes.
Na filosofia de Kant, o alvo principal é a “metafísica dogmática”. Segundo Kant, os filósofos
realizavam usos ilegítimos da razão, impondo instâncias transcendentes – teológicas ou arbitrárias –
ao funcionamento do real. Ao derribar as pretensões da “metafísica dogmática”, a crítica kantiana
limpou o terreno para o surgimento de uma nova filosofia, mais elucidada sobre o seu sentido. O
objetivo maior das críticas de Kant é alcançar um momento construtivo. De maneira similar, o Anti-
Édipo alveja a “metafísica dogmática” da psicanálise, no caso, Édipo, e busca levá-lo ao ponto de
autocrítica0 a fim de elaborar uma nova psicanálise sem ele. Édipo é o grande idealismo da
psicanálise, o aparato aplicado ilegitimamente sobre o inconsciente, deslocando e tolhendo sua
produtividade. Por isso a referência à Santa Família, que dá título ao segundo capítulo do livro,
fazendo menção jocosa à trindade psicanalítica do papai-mamãe-filhinho, referida à Ideologia
alemã0, de Marx e Engels. O inconsciente, contudo, é órfão. Para Deleuze e Guattari, destronar o
Édipo significa restituir à psicanálise o primado do inconsciente sem pais, do inconsciente que não é
causado, mas é ele mesmo causa, pois é o desejo que, acima de tudo, produz. A reversão do
idealismo familista do inconsciente e a restituição do caráter produtivo ao desejo são tarefas para a
esquizoanálise, a que foi dedicado o quarto e último capítulo do Anti-Édipo, que o introduz e
apresenta seus delineamentos.
Diferentemente da virada kantiana na história da filosofia, no caso da esquizoanálise, a
verdade só pode se concretizar a partir de sua aplicação prática. Deleuze e Guattari não declaram
independência em relação à psicanálise nem encetam uma ruptura total com ela. Tampouco
reclamam pela extinção ou abandono deste ou daquele autor, apesar da virulência de algumas
estocadas do livro. Os autores recusam expressamente atitudes do tipo “pegar ou largar” 0. As
práticas são formações combinadas, múltiplas, ecléticas, e se engendram utilizando componentes de
várias escolas e doutrinas. Seria sinal de psicanálise dogmática justificar a prática pela teoria ou,
pior, imaginar que seria possível extrair a prática exclusivamente da teoria. A relação entre teorias e
práticas é de constantes trocas desiguais, revezamentos ou relés, mas elas nunca se confundem 0. O
0
AE, p. 104.
0
AE, p. 150.
0
No livro, os críticos materialistas inclusive alcunham os jovens hegelianos idealistas de esquerda de “santos”: São Bruno (Bauer),
São Ludwig (Feurbach) e São Max (Stirner). Ver Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, São Paulo: Boitempo, 2007
[1843-44].
0
AE, p. 160.
0
Michel Foucault, “Os intelectuais e o poder. Conversa com Michel Foucault e Gilles Deleuze”, in: Roberto Machado (org.),
Microfísica do Poder, 13. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1998 [1979], p. 69-78.
tom do Anti-Édipo é por vezes humorístico, com pitadas de humor mórbido; pode ser também
virulento e mesmo irado em algumas passagens. Deleuze e Guattari chegam a falar em miséria da
psicanálise0 quando denunciam seu apego a Édipo com todas as forças, contra todas as evidências e
em detrimento dos próprios analisandos e pacientes. Ao mesmo tempo, os autores deixam claro que
não pretendem remoer acusações de ambiguidade. Desde as décadas formativas, no começo do
século passado, a escola freudiana carrega uma relação ambígua com seus objetos de estudo, com o
inconsciente produtivo e a edipianização. Essa ambiguidade é constitutiva e acompanhará
incessantemente as teorias e práticas dos psicanalistas, tendo gerado um clima geral de inquietude,
constantes recriminações e vários rachas. Com efeito, em maior ou menor grau, a traição na
“revolução traída” sempre esteve lá, caminhando ao lado da descoberta do inconsciente 0. A traição
não espera alguém trair. Ela está contida na relação entre análise e desejo, expondo à psicanálise ao
risco constante de recair em investimentos paranoicos que prendem o inconsciente ao Édipo. Tendo
isso em vista, o Anti-Édipo assume como princípio constitutivo reaproveitar pedaços e peças da
teoria, mesmo quando contraditórias e incompatíveis. Toda doutrina, toda escola carregam consigo
um agregado de blocos construtivos com vários vieses políticos: progressistas, conservadores,
revolucionários, reacionários. Nesse sentido, Deleuze e Guattari identificam pelo menos três
elementos na história da psicanálise que se sobrepõem e se misturam em diferentes proporções: o
que eles chamam de elemento pioneiro, o espírito de descoberta e aventura que revela e explora a
produção desejante; o elemento propriamente edipiano, ligado à cultura clássica e conservador, que
remete o inconsciente a Édipo (à cena rebaixada familiar); e o elemento institucional, à caça de
dignidade científica e reconhecimento. Esse terceiro bloco oferece garantias à ordem estabelecida
de que seus procedimentos são respeitáveis e lhe interessam 0. Estabelecem, inclusive, uma afinidade
monetária com essa ordem, capitalista, ao conectar os circuitos da cura interminável ao fluxo de
dinheiro como contrapartida0.
Por vezes, o livro passa a impressão de aderir a divisões binárias de cunho normativo: “viva
Artaud!”, “viva o desejo!”, “fora Lacan”, “fora o molar”, “exigimos o Corpo sem Órgãos!”, “abaixo
o transcendente!” No entanto, o leitor deve atentar ao modo como os muitos pares ou dualidades
desdobrados pelos autores se relacionam entre si para produzir algo, funcionar de um determinado
modo. Tão importante quanto os polos, são as passagens, as diferenciações, as zonas de rodízio.
Diante da multiplicidade qualificada dos elementos que compõem a psicanálise, o Anti-Édipo
realiza seus próprios cortes, traça os fluxos que lhe interessam e seleciona taticamente as obras a
serem submetidas à cuidadosa campanha de desmontagem e reaproveitamento de peças. Assim, a
crítica à psicanálise emprega o método pars destruens/pars construens: engenhocas, rebimbocas,
0
AE, p. 287, 469-473.
0
AE, p. 503.
0
AE, p. 160-161.
0
AE, p. 473-474.
parafusos, pedaços são recompostos, passam a funcionar diferentemente e a angariar novos usos.
No Anti-Édipo, são atribuídas à esquizonálise dois blocos de tarefas destrutivas e um bloco de
afirmativas0. Há toda uma ética da elaboração teórica, uma ética da invenção. Deleuze, filósofo
apaixonado por psicanálise. Guattari, psicanalista apaixonado por filosofia. O Anti-Édipo, um livro
de duplo registro, que pode perfeitamente ser lido como livro de filosofia ou livro de psicanálise.
Jamais ambos no mesmo instante, pois os registros não se fundem. No primeiro caso, seu
rendimento propriamente filosófico será o conceito; no segundo, a prática esquizoanalítica, para o
que apresenta um rol de demarcações em relação a outras práticas e seus funcionamentos. Filosofia
e psicanálise são duas séries paralelas que deslizam lado a lado e interferem uma na outra ao longo
da leitura, mas não se confundem num agregado amorfo, o que seria perder o rigor da filosofia e a
nota específica da psicanálise.
Com Freud, o Anti-Édipo compartilha o interesse pelo continente a ser desbravado através da
problemática do inconsciente. É verdade que, já na Grécia Antiga, encontram-se relatos e
observações sobre estados mentais inconscientes – desmaios ou sonhos, por exemplo –, mas isso
não descaracteriza ou apequena a magnitude da descoberta freudiana, cujo valor é reafirmado por
Deleuze e Guattari. Freud descobriu outra coisa, algo mais: a produção desejante. Quando Freud
fala do inconsciente, se refere a uma entidade substantiva, o inconsciente, que não se confunde com
a simples adjetivação de estados e situações mentais. Além disso, o inconsciente freudiano tem uma
processualidade própria0. Ele é dinâmico, um motor de grande potência para a vida, como o motor
de um carro esporte, que detona combustível, ronca, faz tremer o carro. Não se constitui apenas de
instintos selvagens, como um magma. Não. Em Freud 0, o inconsciente tem ideias, ideias que são
simultaneamente afetos do corpo e da mente, que se movem, interagem entre si, enfeixam-se,
elaboram agendas próprias e pressionam as camadas superiores mediante pulsões. As ideias e
instintos mobilizam os processos mentais do inconsciente, delineiam os efeitos de superfície, mas
permanecem inacessíveis à consciência. Estão fora do alcance da introspecção e não podem ser
conhecidos pela via direta, sem contar com a interpretação e um sistema de mediações e transportes
de signos. São sombras intrínsecas ao corpo, regiões constitutivas aquém da consciência, uma zona
cuja escuridão é de direito e sem a qual o ser humano se torna ininteligível0.
0
Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Introdução à esquizoanálise”, O Anti-Édipo, São Paulo: Ed. 34, 2010 [1972].
0
Sigmund Freud, A interpretação dos sonhos (Parte I) (1900), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud, vol. 4. Ver também Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud, vol. 6. É nítida como a suspeita freudiana acerca das manifestações à superfície não se confundem com métodos
convencionais de interpretação, pois o circuito entre sintoma e interpretação realimenta o processo, levando a uma movimentação
das dinâmicas do inconsciente. Não é por outra razão que Foucault (Nietzsche, Freud, Marx), elenca Freud entre os mestres da
suspeita moderna – junto de Nietzsche (vontade de potência) e, em menor grau, Marx (forças produtivas) –, pois não é uma
suspeita qualquer, mas de segunda ordem ou ao quadrado.
0
Sigmund Freud, Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (Partes I e II) (1915-1916), Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud, vol. 15, p. 120-286. A “visão dinâmica” ou dinamismo do inconsciente, bem como sua perspectiva
econômica, são inteiramente incorporados ao inconsciente maquínico deleuzoguattariano. Além da descoberta do inconsciente
como multiplicidade substantiva, Deleuze e Guattari realçam várias vezes a originalidade da compreensão da libido como energia
abstrata do lado do sujeito, o que implica a economia libidinal na economia política.
0
Michel Foucault, Nietzsche, Freud, Marx: Theatrum Philosophicum, São Paulo: Princípio Editora, 1997 [1975].
Afinal, como essas ideias foram parar no inconsciente? Para Freud, isso se dá através do
mecanismo do recalque (ou recalcamento). Ideias intoleráveis, que a consciência não pode suportar,
que o meio social não pode admitir e a mente remete para as profundezas. Eis a lógica repressiva no
inconsciente, imediatamente causadora de tumultos e conturbações, do represamento agitado da
economia libidinal, ou seja, deflagradora principal dos empuxos e refluxos libidinais. Segundo
Freud, os recalques são muitos e especialmente poderosos durante a primeira infância, entendida
como os anos formativos do inconsciente, o que trará repercussões para a vida mental do indivíduo
ao longo de toda a sua vida adulta. Na psicanálise freudiana, o inconsciente inclui uma dimensão
econômica central, dada pelas descargas, disparos e estoques da libido, uma grandeza quantitativa
que mede a carga desejante investida sobre objetos e pessoas. A economia libidinal – ou desejante –
dispõe os fluxos e refluxos dos desejos recalcados, condicionando o dinamismo inconsciente pela
repressão. A explicação freudiana formaliza o inconsciente pelo modelo hidráulico, com uma libido
que corre, investe objetos, e pode ser mais ou menos viscosa, mais agarrada aos objetos, como no
caso das neuroses obsessivas, ou mais fluida, sem se pregar a nada, como no caso do
esquizofrênico. Geram-se com isso pressões extremas, turbilhões prestes a vir à tona. Mas o
inconsciente não pode vir à tona enquanto tal, já que seu processo é irrepresentável à luz da
consciência. Se o fizesse, tratar-se-ia do pré-consciente ou subconsciente, isto é, representações,
lembranças ou imagens que estão à mão da consciência.
O que pode emergir do inconsciente, dando testemunho de seus dinamismos e
reconfigurações constantes, são sintomas. Eles perturbam o funcionamento normal da consciência,
provocam falhas inesperadas. Podem ser lapsos, chistes, bloqueios, atos falhos, brancos, risos
involuntários, semblante sério repentino e escorregões mentais os mais diversos. Eles também
podem se manifestar através de reflexos físicos como tremores, tiques, cacoetes, suadouros súbitos
e estranhas paralisias. O sintoma provoca uma modalidade de repetição, que substitui o desejo
reprimido ao passo que exige do ego/eu a satisfação, dando o sinal do desprazer 0. Em casos graves,
a irresignação dos desejos reprimidos se manifesta em alucinações, manias de perseguição,
obsessões, compulsões, monomanias, delírios, paranoias, esquizofrenia. Freud repete uma antiga
ideia da psiquiatria quando relaciona a experiência da psicose à perda de contato com uma
determinada ideia de realidade.
O complexo de Édipo encontrou algumas elaborações por Freud ao longo da sua obra e
dezenas, talvez centenas de outras, por seus seguidores nas ramificações das escolas psicanalíticas 0.

0
Aline Borba Maia et al., “O conceito de sintoma na psicanálise: uma introdução”, Estilos clin. [online], 17 (1): 44-61, jun. 2012
(São Paulo). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1415-71282012000100004. Acesso
em: ago. 2022.
0
Jacqueline de Oliveira Moreira, “Édipo em Freud, o movimento de uma teoria”, Psicologia em Estudo, 9 (2): 219-227, mai./ago.
2004 (Maringá). Ver também Jairo Gerbaise, “Complexo de Édipo: paradigma da psicanálise”, Revista Cogito [online], 6: 1-4,
2004 (Salvador). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-94792004000100008.
Acesso em: ago. 2022.
Presente dispersamente desde os estudos sobre a interpretação dos sonhos, Freud chegou à sua
formulação completa no começo dos anos 1920, depois de retomá-la e lapidá-la várias vezes 0. Além
da relevância para o aparato interpretativo e nas práticas de cura, o complexo de Édipo foi
fundamental para a institucionalização da psicanálise. A partir da década de 1920, Freud firmou-o
como heurística definidora do pertencimento à ortodoxia, para diferenciar seguidores e detratores,
como um xibolete. Freud trabalhou para dotar o complexo de Édipo do estatuto da universalidade,
pedindo socorro à antropologia e ao mito grego, cuja aura prestigiosa derivada dos estudos
helenísticos ele aproveitava. Freud defendia a extrapolação da validade do complexo, desenvolvido
na realidade social da Europa Central do final da Belle Époque, para todas as culturas e civilizações.
Para ele, o círculo freudiano e a inteira dorsal da psicanálise que lhe seguiu, o complexo de Édipo se
tornou o cerne do sintoma neurótico e o fundamento formativo da sexualidade humana,
desdobrando-se numa infinidade de aplicações e usos no campo da clínica. Isso perdurou com
poucos abalos até pelo menos os seminários de Lacan no final dos anos 1960. A seguir, delineio
uma sucinta descrição instrumental do conceito freudiano, para a compreensão do nosso objeto
focal, que afinal se chama Anti-Édipo0.
A cena edipiana propicia as referências para as identificações e contraidentificações com que
o ser humano, nos anos formativos da primeira infância (até os 6 anos), estruturará a relação de seu
desejo com o campo social. A encenação edipiana está voltada à boa formação do ego/eu e do
superego/supereu, regiões que devem ser fortalecidas para equacionar a desordem de desejos
sexuais, pulsões agressivas e destrutivas. A criança deseja sexualmente o genitor do sexo oposto.
Por isso identifica-se primeiramente com este. Quando o desejo incestuoso é frustrado, o recalque o
remete ao inconsciente. A identificação inicial com a mãe ou o pai dá lugar ao sentimento de
ameaça, competição e rancor. O desejo recalcado reemerge desta vez como impulso parricida ou
marricida, respectivamente. Dá-se imediatamente um conflito interno, entre amor e ódio pelo
genitor do sexo oposto, ao que se seguem mais frustrações, abdicações e pressões libidinais. Na fase
genital (dos 3 aos 6 anos), a criança compreende que tem (ou não tem) um pênis, o que vai lhe
provocar uma grande angústia. Teme o castigo do pai na forma da castração. No caso da menina, o
lugar do medo da castração é ocupado pela inveja do pênis, o que abre um enorme limiar de
problematicidade já em Freud. Além disso, neste ponto sucede uma oscilação interna ao complexo
de castração: do medo da castração real (modelo genético) ao medo de uma castração
tendencialmente imaginária, em que o falo é uma imagem do pênis (modelo estrutural). Ambas as
possibilidades podem ser depreendidas da obra freudiana, como o foram. As recriminações dos
adultos passam a ser enquadradas pela criança segundo a mesma estrutura fundamental do medo da

0
Elisabeth Roudinesco, Sigmund Freud nel suo tempo e nel nostro, Torino: Einaudi, 2015 [2014].
0
Sigmund Freud, “Psicologia de grupo e análise do ego”, Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos
(1920-1922), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 18.
castração. É justamente ao aprender a metabolizar a angústia que a criança pode consolidar sua
inscrição na lei. Medo da castração, lei e falo são os pontos de referência pelos quais o Édipo pode
vir a ser resolvido, isto é, pacificado como um espaço de identificações e diferenciações em que a
criança pode compreender e organizar por si mesma a ligação entre desejo e social. Ainda que seja
uma operação precária, cheia de campos cegos e desníveis, o esquematismo edipiano não deixa de
servir como ponto de partida para a psicanálise. Pelo menos, é assim que ele é justificado na
história.
Importa destacar a complexidade das variações de identificação e inibição no interior da cena
edipiana, a sua sequência ordenada de idas e vindas, no que a economia libidinal inconsciente
paulatinamente se baliza. Com isso, objetos e representações vão se chaveando, e o indivíduo
começa a dirigir seus desejos a objetos possíveis e permitidos, e a desviá-los daqueles impossíveis
ou proibidos. Uma jornada longa, pedregosa, repleta de desvios e armadilhas. Com o
amadurecimento da criança, a mesma cena edipiana se prolonga da família para o teatro ampliado
da vida social e, depois, se reproduzirá na família do adulto, em que ele ocupará outro vértice do
mesmo triângulo. A cena edipiana se torna uma célula social que opera com o inconsciente. Caso o
complexo não seja bem endereçado, o amadurecimento não se completa a contento, legando focos
patogênicos, ainda que sustentem longos períodos de latência para a manifestação dos sintomas,
possivelmente décadas. Sem os delicados equacionamentos proporcionados por Édipo, o indivíduo
fica exposto a mecanismos traiçoeiros do retorno do recalcado, cujos gatilhos podem ser os menos
esperados. Ou então desenvolve traços de personalidade antissociais, que o afastam de um
relacionamento saudável com os outros e o impedem de se inserir em seu tempo e lugar. Por meio
de casos modelares, a psicanálise consolida o complexo de Édipo como via régia para a
interpretação e o tratamento.
Dito isso, é possível compreender como Deleuze e Guattari realizaram um assalto frontal ao
castelo da psicanálise, indo atrás de seu pilar maior. Ainda que, no mesmo período, já houvesse
outros arrombamentos em curso para ir além de Édipo – como quando Lacan ministra o seminário
17 (1969/70), cujo título era “O avesso da psicanálise” 0. O Anti-Édipo não é um livro solitário nessa
empreitada antiedipiana e não pode ser desligado de um quadro de cercos e assédios generalizados
às instituições e mestres.
No Anti-Édipo, o primeiro nível crítico não se dá pela via da eficácia ou validade. Noutras
palavras, não caberia tanto questionar se a psicanálise funciona; melhor seria perguntar como ela
funciona, como o desejo é abordado e maquinado, a que servem as práticas e para que são usadas. A
primeira frente de investidas do Anti-Édipo se volta para o caráter reducionista 0 aplicado ao
inconsciente pela psicanálise, quando lança mão do complexo de Édipo como chave mestra das
0
Jacques Lacan, O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970), Rio de Janeiro, Zahar, 1992.
0
AE, p. 68-71.
interpretações e tratamentos. O desejo de incesto é um riacho pouco fundo para tocar o
inconsciente, e muito mistificado0. Os estágios formativos da criança não definem a estruturação
universal do desejo e do social, apenas iniciam a longa história de um erro, que é justapor
inconsciente e Édipo, enquanto a materialidade do inconsciente indica inúmeras outras zonas de
atualização0.
A segunda leva de críticas se refere ao caráter prescritivo do complexo de Édipo, como se a
psicanálise estivesse tentando impô-lo, forçando para que o inconsciente se adéque a ele, em vez de
abrir-se para outras formulações, para outras maneiras de elaborar o vínculo entre social e desejo 0.
Essas críticas são particularmente incidentes no caso das psicoses ou da esquizofrenia, que a
literatura psicanalítica freudiana reconhece ser difícil de disciplinar, além de pressentir a resistência
ativa dos esquizofrênicos psicanalisados às categorias e quadros de análise e cura 0. Ainda no âmbito
dessas patologias, as críticas também se dirigem à tentativa de forçar a extensão do cerne de
sintomas neuróticos ao tentar interpretá-las a partir de uma primazia da neurose 0.
O terceiro rol do primeiro nível de críticas consiste na universalização de Édipo por meio da
mitologia0 e da antropologia0, o que camufla sua ancoragem no espaço privado da família burguesa
da era vitoriana, geralmente de classe média. Dentro desse subconjunto, estão as críticas ao
dispositivo da análise baseado no consultório, no divã 0, em certa posição de ascendência do analista
em relação ao analisando. Ele também engloba os questionamentos acerca do quanto a psicanálise
adere ao tecido institucional de sua época no que diz respeito à abordagem da patologia mental.
A articulação desses três blocos de crítica no Anti-Édipo estabelece a psicanálise como
idealista0, porque se descola da realidade do desejo, e ideológica, porque a operação não é ingênua
e está calcada na posição institucional da psicanálise ao abordar, tratar e definir os objetivos da
saúde mental de sua circunstância. Por ideologia, deve-se compreender um problema de fundo que é
organizacional0. Poder-se-ia dizer que a psicanálise é apenas filha de seu tempo, mas o que o Anti-
Édipo censura são as escolhas estratégicas e conscientes, por vias teóricas e práticas, de reforçá-lo,
entregando-se a uma edipianização furiosa0 que precede e excede o terreno psicanalítico. A maior
vítima das operações idealistas e ideológicas é o psicótico ou esquizofrênico, tratado de maneira
semelhante à mais antiga psiquiatria, como se tivesse perdido o contato com a realidade, o que o

0
AE, p. 215.
0
É o “imperialismo de Édipo”, que não admite rivais (AE, p. 74-76).
0
É o forcing, para enfiar Édipo no sujeito (AE, p. 78-80).
0
Além dos esquizos, os contestatários e os colonizados também resistem (AE, p. 40 134, 224).
0
AE, p. 73.
0
AE, p. 402.
0
AE, p. 355.
0
A última territorialidade do Édipo é o consultório do analista (AE, p. 357).
0
Édipo é a “reviravolta idealista”, o “desvio idealista”. É preciso pôr os pés do idealismo no chão, invertendo as categorias
idealistas da psiquiatria, como Marx fez com os jovens hegelianos (Feuerbach, Bauer, Stirner) mediante a redução materialista do
inconsciente (AE, p. 32-33, 147, 173).
0
AE, p. 457.
0
AE, p. 185, 287.
teria conduzido a um desajuste global. Em resposta, o Anti-Édipo escuta o delírio dos
esquizofrênicos e – sem romantizar tampouco sacralizar a situação de sofrimento – compreende o
quanto de reexistência eles opõem à condição a que são socialmente submetidos e ao que são
levados a sofrer.
Noutro nível, mais político, as críticas também se articulam por vários flancos. Reiniciemos a
contagem. Primeiro, a adesão da psicanálise à tarefa de normalização social que por vezes se
camufla sob o argumento moralizador da atenuação do sofrimento do indivíduo. Essa questão ética
não admite desenlace por atalhos, já que o sofrimento é uma categoria complexa, entretecendo
aspectos somáticos, psíquicos e sociais. O Anti-Édipo descreve a operação da psicanálise de opor a
sua solução através Complexo de Édipo à queda no indiferenciado 0 e à perda completa de
possibilidade de autonomia. É uma operação que posiciona um impasse de cada lado (duplo
impasse), para induzir novamente a via da edipianização. Segundo, a descoberta do inconsciente
que não se confunde com a descoberta do Édipo 0. A edipianização não é uma invenção da
psicanálise0. Freud descobriu o inconsciente e, a seguir, descobriu que ele vinha estruturado como
Édipo. O inconsciente se apresentou à psicanálise sob uma edipianização prévia. Contudo, essa
edipianização decorre de uma fabricação histórico-política que situou a família na posição de agente
de recalcamento. Nessa função de roteadora entre social e desejo, a instância familiar opera
predominantemente a serviço das forças de normalização. Afinal, governar é trabalhar na fabricação
de corpos governáveis, ou seja, com baixo grau de potência, pouco emancipados, guiados por afetos
negativos, pela incapacidade de estabelecer de maneira autônoma suas composições e
decomposições com o mundo. A psicanálise constata a operação do Édipo, mas posta-se ao lado dos
poderes sociais de seu tempo. Nessa tarefa, identifica a doença como falha na aplicação de Édipo e
não como sua aplicação bem-sucedida. Em suma, o Édipo estava no inconsciente, onde Freud o
encontrou, porque havia sido colocado lá pelas forças atuantes no campo social, sobretudo por meio
da família, não porque constituiria um inconsciente a-histórico, como se fosse uma estrutura mental
universal presente de antemão também nos mitos e organizações sociais de todos os povos. A
psicanálise faz o percurso inverso, do inconsciente ao social, fechando o circuito, e, não à toa,
formaliza a família nuclear na forma do triângulo edipiano, que passa a ser estrutura social reflexa
da estrutura inconsciente. Essa inversão deve ser, mais uma vez, revertida. Esse é o problema
prático da esquizoanálise0, mais especificamente, reverter os usos dos funcionamentos do
inconsciente, repercorrendo as operações edipianizantes da psicanálise no sentido da liberação do
inconsciente em relação ao Édipo. Isso o livro por si não resolve, nem tem como resolver, depende
de práticas.
0
AE, p. 164, 485.
0
AE, p. 110-112.
0
AE, p. 164, 165.
0
AE, p. 154.
Há ainda uma crítica elaborada no nível conceitual, relativa aos conceitos de inconsciente,
desejo e campo social (socius), o que não se limita à psicanálise, quanto às relações desenvolvidas
entre ela e a filosofia. A psicanálise edipiana rebaixa a produção desejante (parte da espantosa
descoberta de Freud), removendo do conceito do inconsciente a sua contínua produtividade
imanente, isto é, seu caráter transformador da própria realidade social. Faz isso mediante três
mutilações básicas no entendimento.
Primeiro, ao introduzir a falta do inconsciente 0. Tendo reconhecido o poderoso dinamismo
que mobiliza a economia libidinal, Freud atribuiu essa agitação a desejos recalcados, traumas,
decepções. Mas o inconsciente é motor criativo que não se deixa entrevar pelo recalque, uma
operação contínua sobre o inconsciente e não nascida dele 0. A diferença qualitativa entre ativo e
reativo é importante para os autores, uma demarcação reiterada em diversas passagens 0. Se o
inconsciente fosse reduzido à reação, não poderia desenvolver uma dinâmica que não seja, em
algum nível, guiada pela negatividade que vem do exterior, do meio social ou de estímulos
somáticos “selvagens”. Não se alcançaria, assim, os dinamismos, matérias intensas e traços virtuais
que pulsam no inconsciente porque este contém camadas genealógicas, cujos conteúdos histórico-
políticos o delírio colhe e devolve à superfície da linguagem (enlouquecendo-a)0.
Segundo, ao reduzir a atividade inconsciente à expressão ou manifestação. As repetições que
ocorrem pelo sintoma teriam apenas o condão de manifestar um fundo obscuro, de exprimir desejos
reprimidos e pulsões que forçam passagem. Édipo seria relevante para balizar as identificações do
indivíduo com imagens e figuras. Ele teria por papel fornecer essas imagens para a correta
reencenação dos conflitos do inconsciente, codificando os fluxos. Monta-se a cena edipiana em que
o corpo da criança começará a sua preparação para o ingresso na vida adulta, para a normalidade 0. É
por isso que, no Anti-Édipo, critica-se Freud por ter colocado a sua descoberta no teatro o mais
convencional, com quarta parede, drama burguês, com tudo 0. Uma encenação rebaixada, farsesca,
que deixa de lado, numa operação nada inocente, o que poria em questão as estruturas e instituições
sociais. Daí a reivindicação do inconsciente produtivo enquanto fábrica e do desejo identificado
com produção desejante.
Terceiro, o inconsciente não é um espaço imaginário ou simbólico, mas o real, pensado no
sentido de atividade constituinte0. A referência neste ponto é Spinoza, por meio do conceito de
natura naturans0. Isso não o torna força produtiva amorfa de um vitalismo cego, mas inconsciente

0
Noutros termos, a ideologia da falta (AE, p. 85-87).
0
AE, p. 40, 242.
0
AE, p. 164-165, 177.
0
AE, p. 75, 81, 119, 120.
0
AE, p. 112.
0
“E nem de vanguarda é…”. AE, p. 78.
0
AE, p. 43, 46.
0
Tratado por pelo filósofo na primeira parte da Ética demonstrada à maneira dos geômetras, livro publicado postumamente em
1677.
diferencial nas relações entre virtual e atual, ou seja, entre desejo e social, à maneira do
bergsonismo aberrante de Deleuze0. Peço licença para uma esquematização a baixa altitude, sobre
as grandes linhas do peculiar dualismo monista que atravessa o Anti-Édipo. De um lado, o
inconsciente ontológico (Real), o virtual, o desejo, a fábrica desejante, o corpo intenso ou
inorganização real (órgãos soltos); do outro, as regiões conscientes e pré-conscientes, o atual, o
social, o interesse e a necessidade, a cena edipiana e todas as suas operações, o corpo extenso
organizado por funções e órgãos.
Há tão somente o desejo e o social 0, que coexistem em identidade, mas operam em diferentes
regimes de funcionamento, com diferentes modos de passagens e interações entre um e outro, com
distintas operações de recalque do desejo e da repressão social, um dualismo sem dualidade, ou
monista. Na cartografia das passagens, ao longo do Anti-Édipo, respiram os problemas do
inconsciente, nos quais a psicanálise se engrenou tomando o partido de Édipo.
No Anti-Édipo0, Deleuze e Guattari assinalam a presença, em vários dos casos relatados por
Freud, de empregadas domésticas, criados, pessoas em condições de pobreza e outras indicações
das divisões sociais. Nas interpretações, porém, Freud não dá importância a esses fatos recorrentes,
apesar da recomendação implícita na associação livre de levar em consideração “tudo o que foi
dito” pelos pacientes. Deleuze e Guattari citam também o caso do Homem dos Ratos, um dos que
compõem o corpus psicanalítico, em que o paciente elabora uma cena social, inquinada pelo
inconsciente paterno, que oscila entre dois polos femininos: de um lado, a mulher pobre, do outro, a
mulher rica (a certo ponto, imagem identificada na filha de Freud). O psicanalista retalha o relato
segundo o esquema familiar edipiano e, a certa altura do tratamento, apresenta o caso como
resolvido à comunidade psicanalítica. Curado, o Homem dos Ratos é enviado para combater na
Primeira Guerra e por lá morre. Para completar este breve rol exemplificativo, outro paciente
freudiano: o Homem dos Lobos. Ao contrário do paciente anterior, este é uma aristocrata rico, de
Odessa, que manifesta um desejo recorrente pela mulher pobre, que ora ele projeta na camponesa
lavando a roupa, ora na empregada que lava o chão da casa. Segundo Freud, os sintomas
patológicos expressos pelo Homem dos Lobos estariam relacionados ao fato de ter flagrado os pais
na cama ou, alternativamente, presenciado o ato sexual entre animais. Freud mais uma vez orienta a
interpretação ao encaixe familiar edipiano: nos relatos, a camponesa exerceria o papel substituto da
irmã, pois ambas têm o mesmo nome, e a pessoa trabalhando no chão serviria de substituta da mãe,
surpreendida no sexo com o pai.
O Anti-Édipo repassa rapidamente esses casos para ilustrar como algo de muito importante
parece ficar de fora das interpretações freudianas e de maneira sistemática. O inconsciente
0
Há dois inconscientes, um ontológico e outro psicológico, sem qualquer contradição, pois se relacionam como o virtual (passado
puro) e o atual (presente ativo). Gilles Deleuze, Bergsonismo, p. 56.
0
AE, p. 46.
0
AE, p. 469-476.
freudiano encontra sua chave de inteligibilidade no espaço privado e íntimo da família, com foco
nos acontecimentos ali ocorridos durante a primeira infância. O poderoso dinamismo do
inconsciente é asfixiado pela cena privada e seus segredinhos 0. A determinação profunda da
hermenêutica freudiana ancora-se nas figuras articuladas do pai, da mãe, da irmã, do filhinho
acuado pelo pavor da emasculação, enfim, nos esquadros da família burguesa da era vitoriana e no
que ela tem de mais convencional. Deleuze e Guattari consideram tal enquadramento de um
reducionismo brutal e deliberado, pois propõe de imediato uma aliança com a ordem social, indica-
lhe a alvissareira utilidade. O Anti-Édipo não afirma que Édipo é uma mentira ou corresponde a
uma falsa consciência, no que bastaria desmascará-lo para ele desaparecer. Édipo existe, claro, a
sociedade moderna é furiosamente edipianizada de ponta a ponta para produzir sujeitos dóceis e
resignados0.
O inconsciente nunca é individual. Não é como se cada um tivesse um inconsciente privado,
um inconsciente “seu”. Não existe uma área no cérebro em que fique rodando como se fosse um
microprocessador ou um aplicativo específico. O inconsciente não é hardware nem software que
opere dentro de nossas cacholas. Se batemos a cabeça e desmaiamos ou quando dormimos, é
possível desligar o consciente, e mesmo interromper processos pré-conscientes, mas o inconsciente
não para nunca, não pode ser desligado. Mesmo a morte individual não produz consequência sobre
o inconsciente, para o qual o tempo cronológico aliás não faz sentido. Para os autores do Anti-
Édipo, a descoberta do inconsciente é crucial por ter abalado um sistema de referência pautado pela
vida individual consciente, centrada no presente aqui e agora, no instante em que percebemos e
agimos.
Conforme comentado pelo próprio Freud0, a descoberta do inconsciente representou a terceira
ferida no orgulho antropocêntrico, na sequência dos golpes desferidos por Copérnico e Darwin.
Copérnico descentrou o planeta em relação ao universo, e passamos a existir como mais um corpo
celeste num sistema que nos suplanta de um modo difícil de conceber. Darwin descentrou o ser
humano em relação ao quadro descomunal da evolução das espécies, quando nos tornamos apenas
uma variante do mesmo processo vital que se ramifica em bilhões de outros. Freud, por sua vez,
descentrou da consciência a vida mental e emocional do ser humano. Quando muito, a consciência é
uma pequena área iluminada, cercada de claros-escuros por todos os lados (áreas pré-conscientes) e,
a seguir, escuridões totais. É justo essa pequena área iluminada que perde a precedência para tornar-
se apenas uma entre as várias regiões dos processos mentais.
É possível convencer a razão mediante argumentos, mas o desejo não obedece aos silogismos
da lógica nem realiza autocrítica. A razão comanda a vontade, mas não o desejo. Este não pode ser
0
AE, p. 80, 353, 354.
0
AE, p. 161, 480.
0
Sigmund Freud, “Uma dificuldade no caminho da psicanálise” [1917], Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918).
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 17.
dissuadido nem enganado pela força persuasiva da razão (“me engana que eu gosto…”). O interesse
e a necessidade podem ser enganados, o desejo não. É possível convencer uma pessoa de que está
agindo em detrimento de seu interesse objetivo, mas isso não significa que será demovida de seu
desejo de continuar agindo da mesma maneira. A pessoa entendeu perfeitamente e, ainda assim,
segue desejando justo aquilo que vai contra o seu interesse, talvez até mesmo porque seja contra seu
interesse. O fato é que não é possível simplesmente decidir desejar de outra forma: “Não goste de
beltrano, mas de fulano. Por que tanto ódio, meu filho? Seja mais amoroso. Vá ser advogado, não
jardineiro. Pare de se entristecer com tudo, deseje ser uma pessoa alegre... Vai ser melhor para você
mesmo.” Isso prepara o terreno para uma intrigante pergunta no Anti-Édipo, de viés político: É
possível que o desejo seja levado a desejar a repressão social? 0 É possível desejar até mesmo o
fascismo?
No século XVI, La Boétie0 não pergunta por que as pessoas se revoltam. As perguntas dele
são: Por que elas não se revoltam com mais frequência, o tempo todo? Por que só agora? Os termos
do problema, da forma que são colocados por La Boétie, levam-no a um novo terreno de
preocupações. Em seu tempo, pensadores da política como Hobbes e Bodin se debruçavam sobre os
fundamentos do poder e do consentimento que a ele é dado pelos indivíduos. Para eles, o
acontecimento a ser explicado é o poder, cuja disfunção explicaria reflexivamente a falta de
consentimento e as revoltas. Isto é, as revoltas deveriam ser compreendidas como um déficit do
poder, uma falha na obtenção do consentimento. A negatividade é assim inserida no conceito de
tumulto, na medida em que é entendido como não-consentimento, não-soberania. Ou seja, cabe
compreender o que não funcionou do lado do poder político e não o que funcionou do lado da
revolta. Não tivesse faltado algo ao poder político, a revolta não teria ocorrido. A troca de
perspectiva muda inteiramente a realidade em análise e as práticas decorrentes. Na formulação
hobbesiana, a obediência é o padrão, a premissa da sociedade, ao passo que a desobediência é
remetida a conceitos negativos como caos (falta de ordem) ou estado de natureza (a falta de poder
soberano). À razão cabe explicar a passagem de um para outro, do caos à ordem, da revolta à paz
social.
Para Hobbes e sensibilidades afins, quando o homem não se submete ao poder, isso é motivo
de inquietação, o que provoca a formulação dos problemas e nos lança ao encalço das soluções.
Com La Boétie, o problema se dá pelo avesso. A causa da inquietação não são as revoltas, mas o
fato da obediência. O que o deixa intrigado é porque as pessoas obedecem, e não porque se
revoltam. O intolerável não é o estado de natureza, mas o estado de servidão. Isto é que espantoso:
Por que as pessoas se submetem a sistemas de dominação e exploração, por que obedecem à
tirania? O que move La Boétie, o que lhe provoca repugnância, é o comportamento servil, o fato de
0
AE, p. 143, 459, 493
0
Étienne de La Boétie, Discurso Sobre a Servidão Voluntária, São Paulo: Edipro, 2017 [1577].
que as pessoas se submetem passivamente ao tirano e ainda por cima se colocam como soldados
dele, adulam-no, participam de seu projeto tirânico e adoram-no. Causa perplexidade a La Boétie a
entrega voluntária e afetiva, às raias da idolatria, ao tirano, uma paixão que se insemina pelo tecido
social como mil e um tiranetes, bajuladores e lacaios, que são premiados. Diante das circunstâncias
de privação e humilhação, o normal deveria ser a revolta. O fato a explicar é por que não acontece.
O que se deve explicar é a vontade de servidão, por que as pessoas não se revoltam. A inquietação
de La Boétie não se resume ao lado inverso das inquietações de Hobbes, na medida em que são
mudadas radicalmente as coordenadas do problema.
No Tratado teológico-político0, Spinoza retomou o discurso de La Boétie, inseriu mais
variáveis e desenvolveu seus termos éticos. A servidão não é mais um problema da vontade apenas,
mas afetivo. Para Spinoza0, o medo provocado pela superstição reduz a potência de agir e conhecer.
Ao se despotenciar, a população fica à mercê da tirania, que só é tirania porque ocupa esse vazio.
No seu tratado, Spinoza dá o exemplo das instituições religiosas, mas é legítimo estendê-lo a
formações institucionais com instâncias transcendentes, nas figuras do líder, do partido, do estado,
em síntese, em formas de teologia política. Importa menos o aspecto religioso do que o caráter
teológico, a crença em um único veículo de poder em detrimento do poder de muitos. O Estado, por
exemplo, pode ser desejado em si mesmo, independentemente de seus usos e articulações, conforme
um apaixonar-se pelo poder, através do qual acreditamos supersticiosamente aumentar o nosso
próprio. Pagamos o preço, porém, diminuindo nossa capacidade real de agir ao delegá-la a uma
instância transcendente e passando a depender desta. Assim, a dinâmica da servidão se realimenta:
quanto menor a capacidade de afeto, maior o medo e o isolamento; quanto maior o medo, mais
árduo é ativar os afetos.
Em Spinoza, a potência de agir e existir é tanto mais forte quanto mais feixes de afetos
puderem ser tecidos por meio de bons encontros e composições produtivas. Dessa maneira, se
formam composições de muitos corpos – e o corpo pode mais entre muitos corpos que se ligam na
liberdade. Em contrapartida, o tirano se alimenta das paixões tristes e afetos passivos, e assim ele
pode governar arbitrariamente, sem prestar contas. Diante de sucessivas crises, inseguranças,
ansiedades e mesmo pânico no mundo, a enorme massa de medo é canalizada por líderes ou
partidos capazes de oferecer uma imagem de ordem e de resgate. Está montada a armadilha do
poder em que arriscamos cair e pela qual podemos supersticiosamente nos apaixonar. Entregamo-
nos assim ao serviço de nossa própria despotenciação. Em suma, na reformulação spinozana, o
corpo da tirania se compõe pelos corpos decompostos e desprovidos de encontros, a que basta ao
poder soberano providenciar uma cabeça diretora. A ética spinozana envolve a qualidade dos afetos
envolvidos, mais do que a escolha entre servir ou não. Além disso, a tirania é inseparável do desejo
0
Spinoza, Tratado teológico-político, 4. ed., Lisboa, INCM, 2019 [1670].
0
Daqui em diante, conforme Gilles Deleuze, Espinosa: filosofia prática, São Paulo: Escuta, 2002 (1970).
de tirania, e a tirania dos governantes aumenta na medida da passividade afetiva dos governados.
Do corpo de massas desafetadas é o que precisam os tiranos, tanto mais poderosos quanto menos
podem os corpos de múltiplos afetos.
Esse é um dos problemas retomados, nos termos da segunda metade do século XX, no Anti-
Édipo0. Seu raciocínio se constrói sobre a demanda de efetividade e positividade na revolta. Seria
tolice fazer um ataque meramente retórico, por mais inflamado que fosse, ao intolerável
corporificado em nosso tempo. É preciso antes compreender por que somos levados a servir a esse
poder. Por que a maioria o deseja? Ao trazer a questão para o âmbito da psicanálise, a servidão
deixa de ser um problema da vontade e suas razões passam a ser atreladas ao inconsciente, ao
desejo. De onde vem o desejo pela própria repressão? O desejo, inclusive, do fascismo e da tirania?
A base fundamental do fascismo é o desejo de fascismo, o que leva as pessoas a adorá-lo e trabalhar
entusiasmadamente para ele. Eis o desafio: compreender o como do desejo, seus funcionamentos, o
que permite que algo tão abominável aconteça – com razoável frequência – na sociedade
capitalista0.
O mesmo desejo que deseja vida, criação, revolução, é colocado para desejar seus antípodas.
No Anti-Édipo, os termos do problema não são mais dados pelos modos de ligação entre o campo
social e o poder político, ou entre a lei e o justo (problema idealista de legitimação). O terreno da
interrogação passa a se estender entre os polos do desejo e do campo social, dentro do qual
funcionam as instituições, dentre as quais políticas (problema materialista). No Anti-Édipo, a
recolocação do problema freudiano do inconsciente noutros termos está ligada à necessidade de
reverter a tendência de despotenciação, transfigurar a qualidade das forças reativas que nos fazem
dóceis e resignados, e resgatar tudo aquilo que o corpo pode 0. Esse é o sentido da polêmica contra
Édipo e a edipianização: para que o corpo possa mais, para que a potenciação dos muitos ponha em
xeque o poder maior que sustenta o intolerável. Mais uma vez, em termos esquemáticos: num polo,
o rebaixamento sistemático do desejo, que ressente as forças produtivas do inconsciente, cancela
seu aspecto real e produtivo e o leva a desejar a própria repressão social, cujo extremo é o desejo de
fascismo, o mais baixo dos usos do inconsciente. No outro polo, diferentemente, o inconsciente se
engrena para que os corpos possam mais, para que se maquinem criativamente e possam se libertar
das paixões tristes, recuperar seus afetos mais altos, de modo que a posição de desejo ponha as
estruturas repressivas em crise e que o desejo da própria repressão seja algo inimaginável e absurdo.

0
AE, p. 46, 47.
0
AE, p. 341-343.
0
As coordenadas do dualismo monista deste problema são dadas pela relação entre forças ativas e reativas na leitura deleuziana de
Nietzsche (Nietzsche e a filosofia) e entre afetos ativos e passivos na de Spinoza (Espinosa: filosofia prática). No primeiro caso,
o monismo é a vontade de potência e seu critério ético, o eterno retorno. No segundo, é a substância ou natura naturans e seu
critério ético, o esquema dos três gêneros de conhecimento. Ver Gilles Deleuze, “Spinoza e as três ‘Éticas’”, Crítica e clínica,
São Paulo: Ed. 34, 1997 [1993], p. 156-169.
Não é por outra razão que Foucault, no prefácio à tradução do Anti-Édipo, classifique-o como uma
Ética0 para a formação de um novo corpo, um corpo desedipianizado.
Um terceiro autor escolhido no Anti-Édipo para adensar o problema da servidão voluntária é o
psicanalista Wilhem Reich, de quem Deleuze e Guattari citam a obra Psicologia de massas do
fascismo, de 19330. Reich redescobriu o problema ético de Spinoza e de La Boétie e seu nome tem
presença constante no Anti-Édipo, para vários propósitos. Por sinal, Reich é identificado por
Deleuze e Guattari como um predecessor da esquizoanálise, o psicanalista que começou o trabalho
de redução materialista do desejo, com isso inaugurando a psiquiatria materialista 0. Reich interessa
ao motor de inquietações de nossos autores porque rejeita qualquer explicação da ascensão do
fascismo pela via do engano ou da mentira. Quer dizer, não é que as massas tenham sido ludibriadas
pelo poder sedutor de símbolos, pela estrutura fantasmática de uma ideologia ou pelo aparato
maquinal da propaganda em escala industrial. O problema do fascismo não é ideológico na acepção
de falsa consciência, ou seja, não basta desmascarar ou desativar sua cortina de representações para
que ele desabe. O problema está no desejo. Há uma questão mais fundamental, mais pervasiva, que
envolve a economia libidinal, isto é, os fluxos e cortes de fluxos, as passagens entre social e desejo,
a relação entre as formações institucionais e os agentes recalcantes.
Segundo Reich, existe um componente sexual inafastável das paixões políticas, o que não se
resume a uma metáfora. Não é que as pessoas se apaixonem pelo ditador como se estivessem
sexualmente enlevadas. A passagem de um ditador suscita tesão nos seus seguidores, literalmente.
Tal paixão pelo fascismo comunica volúpia aos símbolos, falas, bandeiras e ícones. Não é que sejam
encantadas por símbolos e narrativas, são as pessoas que os encantam. Se as massas recepcionam a
passagem do ditador e seus símbolos com encanto, é porque recebem de volta a visão do desejo que
elas mesmas já colocaram neles, porque primeiro vem o desejo. Há um excedente difícil de
explicar, pois líderes fascistas não são apenas consentidos a governar de maneira fascista: são
incentivados a fazê-lo, deseja-se ardentemente que o façam, e é daí exatamente que eles sugam o
poder para fazê-lo. Não se trata de pura e simples obediência resignada ou de servidão
racionalmente interessada, que transige com o poder para obter maiores benefícios para si. É outra
coisa e vai além. O problema do desejo de fascismo, em Reich, está em que obediência e servidão
são prestadas ao líder ou partido com um entusiasmo que escapa de qualquer medida racional
consciente, inclusive contra o interesse objetivo da pessoa 0. É esse enganchamento desejante de
adoração que aflige Reich ao extremo e que caberia explicar. O desafio de explicar a dominação e a
exploração – e, no limite extremo, o fascismo – pelo desejo e não pela ideologia, é a linha reichiana

0
Michel Foucault, “Preface”.
0
Wilhelm Reich, Psicologia de massas do fascismo, 3. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2019 [1933].
0
AE, p. 154-161.
0
AE, p. 386-387.
de investigações de que Deleuze e Guattari se colocam como desenvolvedores. Estamos aqui no
núcleo político do Anti-Édipo, no lugar de suas molas mais retesadas.
Um ponto levantado por Deleuze e Guattari diz respeito ao fato de que os indícios e
prolegômenos de uma ascensão autoritária ou mesmo fascista, que já aparecem nos delírios e outras
manifestações, costumam ser esvaziados de seu conteúdo político pela psicanálise freudiana, para
focar nos problemas do complexo de Édipo e nos traumas individuais. Uma tentativa de correção de
rumos poderia nos levar à seguinte questão: Haveria, por assim dizer, um retorno do recalcado
social? Não é essa a trilha que Deleuze e Guattari decidem percorrer e desenvolver. Seguir por ela
implicaria admitir que a negatividade no desejo é determinante de formas de repressão social. Isso
não poderia ser admitido pelos autores, e não o será, pois colocaria toda a formulação materialista
por água abaixo. Voltaríamos assim aos esquemas idealistas com suas réguas normativas que
distinguem entre “desejo bom” e “desejo ruim”. Isso significaria reintroduzir o elemento
transcendente, que participa da construção do medo, na medida em que nos colocaria à mercê da
normalização capaz de reconduzir o “desejo ruim” ao “desejo bom”. Édipo retorna disfarçado de
Édipo antifascista, mas o problema perde a voltagem, perde a qualidade inquietante que é da
realidade.
Não faria sentido explicar o fascismo pelo retorno de um recalcado social, como se os desejos
reprimidos circulassem pelos subterrâneos da sociedade preparando a sombria emergência de
antigas pulsões de barbárie, incestuosas e parricidas. Noutras palavras, Fascismo como extravasão
violenta que se derrama sobre o campo social. O paradigma edipiano da patologia individual, seus
impulsos agressivos derivados de complexos irresolvidos, vertido para pensar a patologia social. O
Anti-Édipo não vai por aí. Seria um problema mal colocado que, por vias tortuosas, voltaria ao
veredito de que o fascismo é causado pela falta de Édipo. Legitimam-se os psicanalistas de boas
intenções para reenquadrar a sociedade doente na linha justa do “desejo bom”. Não é dessa gênese
que aponta o “ressentido” que vem o fascismo.
Foi nisso, inclusive, em que Reich falhou. Também ele – Reich, o primeiro psiquiatra
materialista, expurgado da psicanálise, erigido a quase herói pelos autores – não foi longe o
bastante. Segundo o Anti-Édipo0, Reich descobriu a ligação do desejo e da estrutura produtiva, isto
é, a ligação do inconsciente com os mecanismos de dominação e exploração, recolocando o
problema de Freud e dando a ele uma orientação mais materialista. Reich atrelou a economia
desejante à materialidade da infraestrutura econômica. Mas ele falha ao assumir que, dessa
infraestrutura econômica, se depreenda um interesse objetivo de classe vinculado a uma suposta
racionalidade do desejo0. Ou seja, ele supõe que a economia libidinal das classes dominadas e
exploradas num regime capitalista estejam calcadas nas suas condições materiais de existência,
0
AE, p. 161.
0
AE, p. 47.
conectadas à sua posição subalterna nas relações de produção e ao seu projeto histórico de superar
tais condições e tal proposição. Em Reich, é verdade, não haveria um “desejo bom” dado
normativamente pela necessidade de resolver os complexos e pacificar os impulsos violentos e
ódios. Contudo, ainda haveria um “desejo bom” dado pela condição material de classe, uma espécie
de subjetividade emanativa do interesse objetivo de reunir forças para superar o capitalismo. Essa
racionalidade permearia o desejo proletário e, no limite, revolucionário, que seria o ponto de partida
para a organização das forças subversivas contra a ordem capitalista. Deleuze e Guattari censuram
Reich por ter pegado um atalho.
Ora, dizem Deleuze e Guattari, Reich está correto ao vincular o desejo ao sistema produtivo e
à divisão subjetiva em classes antagonistas. Há uma pressuposição recíproca entre desejo e social,
entre produção desejante e produção social, nisso os três estão de acordo. Mas, segundo Deleuze e
Guattari, Reich falha ao não conceber a coextensividade rigorosa entre desejo e social, isto é, o fato
de que a economia libidinal ou desejante é a economia política0. Ainda que operem em regimes de
funcionamento distintos, são duas faces da mesma economia geral, de maneira que o desejo é um
problema da infraestrutura – jamais de “superestrutura” ou ideologia 0. Por isso, não caberia dizer
que o desejo se dá pela posição de classe, conforme o interesse objetivo e a divisão do trabalho, que
já são recortes pré-conscientes. Esse materialismo não vai longe o suficiente, ainda preso que está a
uma divisão binária entre a racionalidade e a irracionalidade do desejo.
Quando o problema da servidão voluntária ou desejante (maquínica) é suscitado no Anti-
Édipo, Deleuze e Guattari recusam a resposta padrão, que atribui ao desejo de fascismo uma visão
equivocada. “Eles não sabem o que fazem, não podem acreditar nisso...” Não é questão de acreditar,
mas desejar. É perfeitamente possível desejar algo em que não acreditamos, do que aliás
conhecemos as mentiras, a dissimulação, a farsa. É possível inclusive desejar porque se desacredita,
porque é mentira, para debochar das formas vigentes de crença e de verdade, num cinismo dobrado.
É possível desejar ser comandado por facínoras porque desejamos cometer os crimes que eles nos
dão a liberdade para cometer e, ainda por cima, nos dotam da boa consciência. O mais crítico é o
desejo, porque é ele que confere realidade ao corpo do fascismo, enquanto máquina que rola sobre o
campo social.
Deleuze e Guattari não imputam o fascismo a agressividades animais que extravasam, a zonas
sombrias da mente humana ou horrores primordiais lá no fundo da civilização, a um suposto
Fascismo Eterno que se atualizaria nas horas propícias, ao chamado de líderes ou partidos que
seriam apenas instrumentos. Nada disso. Para eles, a consciência é bem mais perigosa e traiçoeira,

0
Esta é a diferença da esquizoanálise: “não faz distinção alguma de natureza entre a economia política e a economia libidinal”
(AE, p. 504).
0
Segundo os autores, apenas Marx foi nessa direção e Klossowski conseguiu chegar à formulação entre economia libidinal e
economia política, uma das descobertas mais desenvolvidas e defendidas no Anti-Édipo (AE, p. 90, 532).
com bem mais crimes em sua conta do que o inconsciente 0. O inconsciente tem os seus horrores,
claro, mas eles não são sequer antropomórficos. Atribui-se ao inconsciente crueldades e horrores
que estão bem mais presentes na superfície, nas insônias da normalidade – na consciência de um
policial, um político, um banqueiro, um militar. Nisso Deleuze e Guattari convergem com Reich,
quando ele formula um inconsciente inspirado pela obra de Rousseau 0. Isto é, o inconsciente como
um “bom selvagem” que, fora do mito atribuído aos povos não-civilizados de inocência
antediluviana, aponta para povos indígenas de várias regiões do globo. O indígena é repleto de
técnicas, astúcias e malícias, além de estratégias outras para as ligações entre produção social e
produção desejante. Forças anedipianas são mobilizadas, ensejando uma antropologia à altura
(simétrica ou ameríndia), recusando esquemas genético-evolutivos, transpostos à antropologia, que
vão explicar a aquisição da cultura como a passagem real entre estado de natureza e estado civil,
entre instinto primitivo e civilização edipiana0.
Onde Reich desligou o motor explicativo do fascismo pelo desejo? Segundo o Anti-Édipo,
quando explicou o desejo pelo social, como se o desejo bom fosse aquele que corresponde ao
interesse material de classe. O desejo, contudo, não replica a organização social, e é esse o motivo
pelo qual a esquizoanálise não é dispensável e não está sobrando entre máquinas políticas e
revolucionárias. Com isso, de maneira reflexa, reintroduziu a explicação do fascismo pelo negativo
no desejo, pelo irracional, justamente pelo fato de que o desejo não se guia pelo modelo que seria
dado no campo social. Édipo reaparece, um Édipo que não chega ao ponto de autocrítica. Reich
acertou ao mostrar como o recalque no desejo depende da repressão social e não o inverso. Faltou
avançar até a identidade entre economia libidinal e economia política, a coextensividade rigorosa
entre desejo e social. O recalque não é um dado desdobrável do inconsciente, pois resulta de um
massivo trabalho de repressão articulado por instituições e forças sociais.
O que Deleuze e Guattari não aceitam é restituir à psicanálise a tarefa e mesmo o dever de
prescrever o “desejo bom”, porque isso seria voltar a Édipo mais uma vez, quando a edipianização é
justo o que produz corpos resignados, impotentes e esfarrapados de que o fascismo se alimenta
como forma extrema da servidão voluntária. Reaplicar Édipo, em primeiro lugar, seria vão, na
medida em que o desejo extravasaria os escaninhos no qual tenta ser reencaixado. Pode inclusive
estremecer ainda mais os sujeitos que se veem humilhados uma segunda vez, por lhes ser imputado
um “desejo ruim”, trash, deplorável, ressentido... A resposta do Anti-Édipo vai no sentido inverso
do Édipo e das manobras edipianas, mesmo as mais sutis. Vai no sentido do processo
esquizofrênico, da potenciação dos corpos, da irresignação de seu desejo, do acontecimento. A
psiquiatria materialista de Reich não avançou o suficiente na medida em que restituiu à psicanálise,

0
AE, p. 153-154.
0
Loc. cit.
0
AE, p. 224-225.
ainda que em termos de esquerda, a mesma tarefa de explicar o inibido, o subjetivo, o irracional, e
solucioná-lo pelo “desejo bom”. Em vez dessa tarefa idealista, demasiado piedosa com o
inconsciente, faltou engajá-lo enquanto tal na positividade do devir revolucionário ou na
criatividade desejante.

Com o intuito de reelaborar com rigor o problema da servidão desejante, o Anti-Édipo adota
um percurso sinuoso e descontínuo. Tendo isso em vista, proponho a seguir um roteiro possível, em
dez itens:

1) O inconsciente, antes de ser expressivo, é produtivo e não contém nenhuma negatividade.


2) Só há o desejo e o social, coextensivos, isto é, a produção desejante e a produção social,
duas faces da mesma produção do real, mas que se diferenciam por regime de funcionamento.
3) A economia desejante do inconsciente não tem seu processo primário definido pelo
recalque nem se dinamiza por causa dele; ao contrário, o recalque é um modo de combater o
dinamismo do inconsciente e interromper o seu processo primário, que é produtivo.
4) O recalque não é a origem da repressão social; é a repressão social que, por meio de um
agente delegado (família) e de uma imagem deslocada (paixão incestuosa), comanda o recalque.
5) Édipo e a psicanálise participam da repressão social ao reforçar o recalque, que se dá
através da “transcendentalização” do complexo familiar (Édipo ao quadrado).
6) Édipo não salva o inconsciente do estado de natureza, do instinto; ao contrário, Édipo
contribui para uma entrega ainda maior do inconsciente à servidão no estado civil.
7) O recalque é necessário à dominação para que o desejo seja levado a desejar a repressão
social, produzindo corpos dóceis, submissos, assustados, no menor grau de potência de agir.
8) Sem o recalque, as estruturas da repressão social não suportariam a posição de desejo, que
é revolucionária.
9) As tarefas da esquizoanálise convergem na tarefa de reverter o Édipo no inconsciente,
reabilitar a sua dimensão produtiva e desmontar as contraestratégias combinadas de recalque e
repressão.
10) A esquizoanálise não é revolucionária em si e não tem a pretensão de liderar a revolução.
Apenas o acoplamento, por vínculos internos, entre máquinas desejantes, analíticas, artísticas,
científicas e políticas pode colocar em xeque o limite absoluto da máquina capitalista, que é o
processo esquizofrênico. O funcionamento efetivo dessas máquinas é o acontecimento.
CAPÍTULO 3 – O ANTI-ÉDIPO E SEUS DESCONTENTES

Em dezembro de 1969, Lacan foi convidado a dar uma palestra no Centro Universitário de
Vincennes0. Localizado nos subúrbios da cidade, o centro foi criado em meio aos vendavais de
Maio de 68 para ser uma unidade experimental da universidade pública parisiense. O projeto tinha
como propósito albergar técnicas pedagógicas e estruturas menos convencionais do que a tradição
da academia francesa. A pretensão de fundo era que servisse de válvula de escape para as pressões
liberadas pelo acontecimento do ano anterior, fornecendo uma alternativa à mais cerimoniosa Paris
1 – Sorbonne. Naquele dia, Lacan não conseguiu falar devido ao burburinho da classe, que se
elevava até abafar a exposição. O palestrante se impacientava, irritavam-no especialmente as
cobranças diretas de posicionamento: Afinal, a psicanálise lacaniana seria a favor da revolução ou
contra? De tão contrariado pela impossibilidade de apresentar o sumo do que pensava e escrevia na
época, Lacan parou pela metade. Antes de sair, dirigiu-se à audiência de jovens estudantes com a
seguinte provocação: “É ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre. Vocês o terão” 0.
Foi uma comoção, que dura até hoje.
O episódio em Vincennes condensa um mundo em seu máximo tensionamento criativo, ainda
sob as detonações de Maio de 68. Não é possível falar da inserção do Anti-Édipo na cena
psicanalítica de seu tempo sem passar por sua relação com Lacan, interna e externa à obra do
psicanalista. No começo dos anos 1970, Lacan era, simultaneamente, o maior aliado e maior
adversário conceitual para a proposta da esquizoanálise. A crítica à psicanálise e a afirmação de
uma alternativa eram enunciadas por Deleuze e Guattari em parte com o pensamento de Lacan, em
parte contra ele. O Anti-Édipo apreende os dilemas que ele expunha nos seus seminários e escritos
por volta de 1968, esquematiza esses dilemas e lhes confere desenvolvimentos inesperados. Uma
simples contraposição entre os escritos e seminários de Lacan e o livro de Deleuze e Guattari não
seria proveitosa, mesmo porque o Anti-Édipo foi escrito por bricolagem, empregando fontes de
modo eclético e inusitado. Menos proveitoso ainda seria, com ânimo conciliatório, tentar federá-los
na paisagem das ideias da época, no que se perderia nas duas pontas. O caso é nuançar os encontros
e desencontros tal como figuram no Anti-Édipo, formando um circuito em alta voltagem, para
adensar o problema de fundo do inconsciente e tratá-lo de modo mais cortante, em sua relação com
o acontecimento.
As presenças de Lacan e da psicanálise estrutural, como veremos, estão espalhadas ao longo
do Anti-Édipo e não se restringem às citações diretas. Nesse sentido, o grau de interesse

0
Cristina Álvares, “L´impromptu de Vincennes: Lacan et le discours unis-vers-cythère au lendemain de mai 68”, Carnets [online],
Deuxième Série, 16, 2019. Disponível em: https://journals.openedition.org/carnets/9717. Acesso em: ago. 2022.
0
Ibidem (tradução nossa). No original: “Ce à quoi vous aspirez comme révolutionnaires, c'est à un maître. Vous l'aurez.”
demonstrado por Deleuze e Guattari pode ser explicado por vários fatores, entre eles, a agitação que
a figura de Lacan causava na instituição psicanalítica francesa 0, ante o que ele se considerava um
marrano0; sua imaginação fabuladora de conceitos e seu desejo explícito de ligá-los à filosofia,
ainda que a clínica nunca tenha deixado de ser sua preocupação maior; a interação ambígua de
Lacan, e francamente reacionária de alguns de seus seguidores, com Maio de 68 e seus
desdobramentos; bem como as participações anteriores de Guattari nos seminários lacanianos e seu
vínculo com o próprio Lacan, de quem foi analisando por vários anos. Além disso, nos anos 1950,
Lacan protagonizou um movimento de reforma da psicanálise francesa em nome do retorno a
Freud. Voltava à letra de Freud para filtrá-lo pelo estruturalismo, resultando na psicanálise
estrutural, uma nova matriz para a escola lacaniana. Dez anos depois, Lacan declara rumar para
além do complexo de Édipo e dá início ao longo arco de inflexão de suas questões teóricas e
clínicas, na direção do conceito de Real 0. Estruturalismo, história da psicanálise, análise
institucional, papel do intelectual, acontecimento 1968 e espaço público pós-1968 entram em
relações intrincadas entre si. A publicação do Anti-Édipo, em 1972, capta essa imagem em
movimento, em sua densidade de problemas e tendências.
Em filosofia, os retornos envolvem ciclos ou circulações, unindo aquéns e aléns de obras do
passado por meio de uma operação seletiva do pensamento. Lacan retorna a Freud, mas, ao repeti-
lo, cria um Freud diferente e, no mesmo processo, transforma o próprio pensamento. Ele retorna à
Freud para desenvolver a clínica da civilização, que convoca o médico de valores a diagnosticar o
corpo social em suas manifestações coletivas e sintomas gerais, ligando-se ao mapa das angústias
engendradas nas divisões de grupos e classes. Lacan identifica em Freud um modo de refazer a
transição para a política, sem com isso se descolar da atividade clínica, sua maior preocupação
prática. A partir de 1952, o alargamento do escopo da psicanálise pelo grupo de Lacan e as correntes
de energia estabelecidas com a cultura militante do tempo preparam o terreno para a entrada em
cena e a recepção explosiva do Anti-Édipo, no começo dos anos 1970.
Em correspondência com Romain Rolland0, Freud discorda que o “sentimento oceânico”
favoreça a elevação do ser humano, que lhe dê forças para colocar-se acima dos instintos
destrutivos. Segundo ele, tal sentimento não colabora para o autoconhecimento do inconsciente e o
bom equacionamento das pulsões. Por sentimento oceânico, entenda-se a experiência de dissolução
do ego em razão de estados de êxtase religioso, fusão mística com a natureza ou o cosmos, ou
paixões amorosas súbitas e violentas. Freud pontua para o amigo que, sendo judeu, não pode ser
otimista quanto ao potencial emancipatório dessas comunhões dissolventes do eu. O tema será
0
Elisabeth Roudinesco, História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos, vol. 2: 1925-1985, Rio de Janeiro: Zahar, 1988
[1986].
0
Jose Attal, La non-excommunication de Jacques Lacan: quand la psychanalyse a perdu Spinoza, Paris: L'Unebévue, 2011.
0
Elisabeth Roudinesco, Jacques Lacan, p. 490.
0
Henri Vermorel et al., Sigmund Freud et Romain Rolland: Correspondance 1923-1936, Paris: Presses Universitaires France,
1993.
retomado em “O mal-estar na civilização” 0, publicado em 1930. Para Freud, a razão pela qual a
experiência do sentimento oceânico borra os contornos entre o eu e o exterior está enraizada na
sensação de falta vivenciada pelo ser humano na primeira infância. Haveria uma falta fundamental,
originária, que se inscreveria no inconsciente, determinando o empuxo emocional de busca por
sentimentos oceânicos e experiências dissolutas.
Ainda segundo Freud, ao compreender que o corpo se apartou da mãe, a criança vive a
experiência como a perda de um Uno Primordial, em que era plena e vivia em comunhão com o
não-eu. É uma fantasia que nasce como mecanismo defensivo a partir das sucessivas frustrações
experimentadas pela criança diante da realidade. O eu se forma em relação ao não-eu por meio da
experiência da falta, de uma frustração primária que estrutura o inconsciente. Insatisfeito com a
ausência de atendimento imediato de seus instintos básicos, o eu fantasia uma sensação que não
sente nem jamais sentiu, uma sensação (impossível) de unidade fusional com o não-eu. Isso leva o
ser humano a inconscientemente fabricar para si a fantasia de um Uno Primordial pregresso, em que
não havia negação ou tempo. Nessa elaboração fantasmática da dor da separação e das frustrações,
a divisão entre eu e não-eu inaugura o período de sofrimento, da queda, da Grande Separação.
Recalcada, a ideia retorna mais tarde, quando sensações intensas são concebidas como o
restabelecimento da unidade fusional. Tais sensações inebriam o indivíduo que, em esplêndida
confusão, acredita ter resgatado o paraíso perdido. Os prazeres poderiam então ser vividos sem
qualquer retardo, imediatos e soberanamente narcísicos,
Para Freud, o sentimento oceânico é ardiloso porque que dá passagem ao desejo fantasmático,
altamente energizado, que deve ser elucidado pela análise. Ele cria no indivíduo a falsa expectativa
de acesso ao paraíso perdido. É como a paixão inebriante entre dois amantes que dissolve as
fronteiras do ego, suspende os interesses pessoais e os arremessa juntos a um lusco-fusco emocional
de indiferenciação e ausência de parâmetros. Nada seria mais narcísico do que tamanha entrega,
supostamente em nome da relação com o outro. Mediante a desativação consentida da capacidade
de traçar diferenciações e identificações, o eu revive sua fantasia íntima de unidade. A operação é
ilusória, mas tem consequências reais. Para Freud, a paixão sem medidas nem interesses não passa
de autoerotismo a dois. No fundo, um e outro se fascinam pela nostalgia do seio materno perdido.
Transposto para a religião, a política e a guerra, o sentimento oceânico funciona com a mesma
lógica, através da esfumatura de diferenciações e valorações e da renúncia ao juízo. Tal organização
energética do desejo se exprime institucionalmente em grupos que favorecem a queda no
indiferenciado: a nação, a bandeira, o líder. A colocação em prática do sentimento oceânico
precipita a linha de abolição das medidas e valores, somando-se às forças que pressionam a cultura
desde o inconsciente. A tragédia moderna reside no fato de que os instintos que nos abastecem de
0
Sigmund Freud, “O mal-estar na civilização”, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1925-1926), Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 21.
energia vital e impelem o progresso são os mesmos que provocam os piores sofrimentos e
desgraças.
A resposta freudiana à cilada consiste em que o valor do amor seja dado pela marca do desejo.
O desejo deve ser qualificado, organizado pela marcação de um interesse especial. Não se pode
deixar o desejo completamente à solta, sem balizas, sem que o indivíduo lhe aplique estratagemas
para realizar as diferenciações e valorações. É preciso integrar a participação do eu e do supereu, de
uma vontade forte e uma consciência moralmente equipada. O contrário do teorema narcisista da
cessão entusiasmada ao próprio desejo, cujo corolário são repercussões antissociais e riscos à
civilidade, é o desejo regulado por códigos e esquemas de orientação. Somente assim, com critérios
de equilibração e padrões socialmente incrustrados nas instituições, é possível trabalhar a resolução
de complexos e a sublimação dos instintos em nível coletivo ou social. Em Freud, está presente um
temperamento aristotélico, bastante desencantado com o clima modernista das vanguardas, voltado
à paulatina construção de equilíbrios difíceis e instituições confiáveis para a prática. As teorias da
perda originária, do complexo de castração e do Édipo se inserem no quadro freudiano tendo em
vista o propósito de encarar as várias dificuldades e obstáculos da clínica nas condições da
civilização moderna.
Para o Anti-Édipo, a psicanálise freudiana é um falso problema ou um problema mal
colocado, que produz os impasses que ela mesma diz resolver, como uma cobra comendo o próprio
rabo0. Freud aponta armadilhas por todo lado, mas a maior delas foi a montada por ele mesmo. A
operação psicanalítica consiste em posicionar um impasse de cada lado: impõe Édipo e, com ele, o
conjunto de identificações e diferenciações edipianas, ao passo que supõe uma alternativa “mais
pior”, a queda na escuridão do indiferenciado 0. O indivíduo então se vê diante de uma chantagem:
ou bem o aceita o núcleo do sintoma neurótico, abrindo a guarda ao psicanalista 0, ou estará
condenado a um narcisismo rebarbativo, fonte de sofrimentos individuais e desajustes sociais. Isso
implica um reducionismo da produção do desejo na medida em que a limita à perseguição egoísta
de objetos fantasmáticos, mobilizada em última instância pelo traço nostálgico da unidade fusional
de que o sentimento oceânico daria indício. No consultório, os estados vividos serão trocados por
fantasmas0, que caberia ao ego combater com a ajuda do analista para realizar a difícil travessia,
qual seja, a edipianização redobrada do desejo.
Para Deleuze e Guattari, a astúcia de Édipo é estar à espera nas duas esquinas. Na primeira,
prescreve as linhas de diferenciação na direção da adaptação social; na outra, supõe o
indiferenciado, com o que nos ameaça. O desejo é atado dos dois lados para que nada escape à
triangulação familiar, imposta como pensamento único. A família guardaria o segredo da doença e
0
AE, p. 99, 110.
0
AE, p. 108.
0
AE, p. 148.
0
AE, p. 507.
da cura0. Mas trata-se de uma trucagem. Ninguém está condenado a equacionar seu desejo através
das figuras parentais, do complexo de castração e da imagem do falo, enquanto imagem da perda
originária. Segundo Deleuze e Guattari, a família burguesa é estabelecida socialmente como modelo
através dos padrões de repetição implicados na triangulação do desejo 0. Seu papel é produzir e
reproduzir corpos dóceis preparados para o trabalho e servir de agente delegado da sociedade no
recalcamento dos desejos0. Por isso ela é santa e dota o inconsciente de um Deus vigilante, para
forjar uma instância transcendente de julgamento sobre o desejo 0. A psicanálise chega num segundo
momento, como aliada na santificação da célula familiar, para repercuti-la enquanto tijolo das
estruturas sociais, concretando ainda mais o Édipo no inconsciente, sobretudo por meio dos
dispositivos de consultório0.
Quando Freud, em “O mal-estar na civilização”, projeta o mesmo esquema de Édipo para
explicar a cultura moderna em geral, repete a chantagem que já havia sido feita na escala clínica,
em casos individuais. Freud cria um impasse: de um lado o retorno impossível ao Uno Primordial
anterior à queda, antes da cisão entre natural e cultural; do outro, o crescente mal-estar da vida
moderna feita de instintos sublimados, a escuridão que se infiltra onde quer que se olhe 0. Em
consequência, a produção desejante é esmagada. Diante dos impasses duplicados pela psicanálise, a
resposta do Anti-Édipo é escolher a escolha. Deleuze e Guattari recusam tanto o problema quanto a
sua solução, oferecidos em venda casada por Freud.
Do modo que o jogo é formulado pela psicanálise, Édipo ganha todos os lances. A jogada
então reside em desmontá-lo. Para livrar-se dos dados viciados, os autores do Anti-Édipo se
socorrem de um conceito de Bateson, o double bind0 (duplo impasse ou dupla pinça). Bateson e
seus colaboradores desenvolveram o conceito para explicar os funcionamentos da esquizofrenia 0. A
ocorrência de uma situação de dupla pinça envolve determinadas condições iniciais, tais como a
existência de relacionamentos entre as partes e o interesse em não os romper, em continuar neles. A
situação ocorre com a emissão de duas mensagens mutuamente excludentes a que o destinatário é
compelido a responder. Nenhuma das duas respostas possíveis satisfará o emissor, comprometendo
a relação de um modo ou de outro.

0
AE, p. 477.
0
Poder-se-ia ressalvar que a família tradicional nuclear vem desaparecendo nas últimas décadas, o que eliminaria o referente
contestado no livro. Na realidade, esse processo já era notável no final dos anos 1960. Entretanto, cabe inquirir até que ponto a
família nuclear está realmente desaparecendo e de que modo tal modelo de família, unidade celular da sociedade, não está se
replicando segundo novos padrões familiares – i.e., novos, mais ainda famílias e padrões. Além disso, um dos pontos de
autocrítica da antipsiquiatria e da análise institucional diz respeito ao quanto a terapia de grupo tende a produzir o que os autores
chamam de “famílias artificiais”, grupos gregários que reproduzem as mesmas tensões neurotizantes que servem ao Édipo, ainda
que sob um arranjo diferente (AE, p. 131, 477).
0
AE, p. 161-164.
0
Embora o inconsciente seja ateu, além de anarquista (AE, p. 411).
0
O consultório do analista “cheira mal”, à morte e ao euzinho querido (AE, p. 444).
0
AE, p. 109.
0
AE, p. 110.
0
Gregory Bateson et al., “Toward a theory of schizophrenia”, Behavioral Science: Journal of the Society for General Systems
Research, 1 (4): 251-264, 1956.
No Anti-Édipo, Deleuze e Guattari dão o exemplo do pai que diz ao filho que é preciso
criticá-lo, mas deixa subentendido que qualquer crítica efetiva será mal recebida 0. Se o filho não
critica, é censurado por covardia; se critica, por insolência. Noutro exemplo, agora meu, a pessoa
esclarece que o relacionamento em curso depende de uma prova de confiança, de maneira que a
outra pessoa deve lhe contar sobre um caso de traição. Se a outra não conta, a confiança é rompida e
a relação, destruída. Mas se conta, repetindo a traição ao narrá-la, a relação também é destruída.
Žižek fornece um terceiro exemplo, bastante atual, proveniente da situação em que se encontram as
esquerdas partidárias da Europa Ocidental0. É preciso combater os regimes neoliberais que aplicam
políticas fiscais austeras, mas a alternativa disponível é o populismo de esquerda, que não defende
os valores culturais e direitos das minorias, acomodando-se com posições moralmente
conservadoras. Se o esquerdista apoia os partidos da situação liberal, trai a agenda econômica e
social; se apoia a oposição formada por populistas de esquerda, trai a agenda dos direitos das
minorias, igualmente importante. Em qualquer direção que se mova, ele se depara com um impasse,
ainda que seja um impasse diferente. Já o exemplo do próprio Bateson 0 envolve uma situação típica
de ambiente de trabalho. Um empregado sai do serviço durante o expediente. Um colega então
telefona para sua casa. Ao atender, o colega lhe pergunta: “Como você foi parar aí?”.
Só é possível sair de um double bind de maneira criativa. Para Deleuze e Guattari, o double
bind é nada menos do que o conjunto operativo do Édipo 0. Sua operação básica consiste em cercar o
campo social: a identificação com o núcleo neurótico (indiferenciado) e a interiorização dita
normativa (ajuste social). Por isso é preciso deslocar o problema do Édipo. Retomemos o exemplo
anterior. À pergunta acerca de como fora parar em casa, uma resposta esquizofrênica, segundo
Bateson, seria: “Ué, vim de carro!” Evidentemente, a pergunta original pressupunha um sentido
figurado ou metafórico. Contudo, diante da situação de tensão implicada, ao ser confrontado com
alternativas igualmente inaceitáveis, o esquizofrênico se esquiva e desliza até alterar as condições
originais do problema. Aqui, a suposta “incapacidade” do esquizo de aceder ao nível metafórico da
linguagem é justo o que lhe permite criar uma saída onde não havia nenhuma. Ao passar pela saída,
faz fugir o próprio problema, pois estabelece um novo nível de acesso (no caso, literal e não
metafórico). Não é por outro motivo que os casos clínicos de esquizofrenia constituam um
obstáculo renitente para a psicanálise. O esquizo resiste às investidas impositivas de Édipo, e não se
abala frente às ameaças do indiferenciado.
Freud tinha consciência de que Édipo deixava o inconsciente cercado de enrascadas, e
Deleuze e Guattari reconhecem isso0. Contudo, Freud entendia que tais enrascadas eram parte

0
AE, p. 110.
0
Slavoj Žižek, Against the Double Blackmail: Refugees, Terror and Other Troubles with the Neighbours, London: Penguin, 2017.
0
Gregory Bateson et al., “Toward a theory of schizophrenia”, p. 258.
0
AE, p. 111.
0
Loc. cit.
integrante do inconsciente e não adições posteriores resultantes das forças de edipianização,
conforme sustenta o Anti-Édipo0. Para Freud, esses empecilhos são constitutivos, são a razão
incontornável para o mal-estar à superfície, de modo que a civilização é apenas uma pátina. A
psicanálise identificava e descrevia os impasses tal como se apresentavam à interpretação: o sujeito
deve ir além do sucesso do pai, mas ultrapassar o pai é proibido. Édipo está associado ao desejo
parricida, apenas para religar o sujeito dividido à sociedade por meio da restauração e internalização
da autoridade paterna. Não é à toa que Freud considerava natural haver tanta neurose onde quer que
a psicanálise a procurasse. Segundo esse raciocínio freudiano, uma sociedade composta de irmãos,
sem liderança personificada para atuar como baliza, seria instável e perigosa, carregada de
disposição fratricida0.
Com a desmoralização tendencial da figura paterna nas sociedades modernas, seria preciso
encontrar substitutos que servissem figurativa ou simbolicamente de pai ou mestre, sob o risco de
que o desejo se desarticule e se precipite no indiferenciado. Nesse sentido, Deleuze e Guattari
lamentam que, logo depois de descobrir o inconsciente, Freud lhe tenha encravado o Édipo,
interpondo um obstáculo à produção desejante. É como se a descoberta tivesse permitido a Freud
antever uma vida formigante, além de Édipo, mas ele se recusasse a levar essa visão até o final, por
imprevisível e perigosa. O Anti-Édipo cita 0 um dos últimos artigos publicados por Freud 0, em que
ele faz um balanço e sobriamente discute as dificuldades e perspectivas para o futuro da psicanálise.
Nesse voo de coruja, um Freud octogenário pondera sobre a natureza da cura psicanalítica. Mais
especificamente, ele se questiona acerca da conclusividade da cura, isto é, se é mesmo possível
finalizar a análise ou, dadas as circunstâncias, ela estaria fadada a prosseguir interminavelmente.
O tom de Freud é mais severo, para não dizer cético, quando trata da contínua ressurgência de
distúrbios neuróticos mesmo em casos de análises formalmente concluídas e curas consideradas
atingidas. A cura da neurose atual não previne neuroses futuras, como se houvesse um processo
neurotizante subjacente. Seria esse processo mais poderoso do que os meios da cura ou estaria o
problema nos próprios meios da cura? A partir dessa reflexão, não interessa aos autores do Anti-
Édipo inferir o grau de pessimismo do último Freud. A crítica do Anti-Édipo se dirige ao fato de que
a cura psicanalítica se converteu gradualmente na gestão permanente do desejo 0, colocando-se a
serviço da produção de corpos resignados e docilizados 0. A relação de transferência acabou se
transformando em contrato privado de prestação de serviços 0, à semelhança da medicina privada
convencional. O contrato define a transferência em vínculo interno, mediante a troca de fluxo de
0
AE, p. 94.
0
AE, p. 111.
0
AE, p. 91.
0
Sigmund Freud, “Análise terminável e interminável” [1937], Moisés e o monoteísmo, Esboço de Psicanálise e outros trabalhos
(1937-1939), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 23.
0
AE, p. 152, 161.
0
AE, p. 161-164.
0
AE, p. 79.
dinheiro por palavras, em que o critério da cura é enquadrado como cláusula de rescisão 0. Isso não
implica uma crítica de cunho moralizante da parte dos autores devido ao envolvimento do dinheiro.
No momento em que escreviam Deleuze e Guattari, o diagnóstico sobre os rumos do freudismo era
que este havia sucumbido às forças reativas. A psicanálise freudiana tinha submergido no caldo
mortificante do ideal ascético, aderido à cultura da renúncia e se deixado desabar na “resignação
final”0. Mas o freudismo era apenas uma parte da constelação psicanalítica na França e certamente
não compunha a parcela mais vanguardista dela.
Depois da Segunda Guerra, Lacan anunciou o retorno a Freud. Polemizava, em primeiro
lugar, com a clínica da Psicologia do Ego 0. Repugnava a Lacan, que havia transitado pelas
vanguardas cubistas e surrealistas da arte moderna, assistir à psicanálise apequenar-se nas tarefas de
adaptação do indivíduo para a performance em papéis sociais. A descoberta de Freud havia sido
mesquinhamente relegada à função de vassala menor da ordem social. A problematicidade que
Freud enxergou no inconsciente se esfumava, anulando a opacidade, os deslocamentos, a
contradição e o absurdo que permeavam a psicanálise freudiana e consistiam nas inquietações que
serviam de força motriz para o seu pensamento e a sua prática. Contra a tendência de converter a
psicanálise em terapêutica edificante do desejo destinada a melhorar a família, o sexo e o trabalho,
Lacan desenrola uma franja de reelaborações teóricas e clínicas, invocando a ciência-guia de Freud.
Com isso, aglutina ao redor de si um grupo de amigos e correligionários e, a partir de 1952,
estabelece os seminários lacanianos como espaço de adensamento. Os seminários prosseguirão até
quase a sua morte, em 1981.
É sempre bom se acautelar sobre a dose de humor ou ironia nos comentários que Deleuze e
Guattari dirigem a seus contemporâneos. Ainda assim, em princípio, as menções inicias a Lacan no
Anti-Édipo podem ser tomadas com seriedade: “a admirável teoria do desejo [de Lacan]” 0, “a
descoberta [por Lacan] do rico domínio de um código do inconsciente”, “a trajetória de Lacan
ganha toda sua complexidade; porque, certamente, ele não fecha o inconsciente numa estrutura
edipiana”0, “uma tentativa tão profunda como a de Lacan para sacudir o jugo de Édipo” 0, “[Lacan]
ter transformado a análise”0 e “[em Lacan] um jogo mais maquínico que etimológico” 0. A maioria
dos alvos de Deleuze e Guattari são criticados por um procedimento similar que consiste em
apontar como avançaram nas descobertas psicanalíticas para depois demonstrar que, a certa altura,
recuaram e acabaram por contribuir para o reenquadramento e captura das próprias descobertas,

0
AE, p. 152.
0
AE, p. 162.
0
Jacques Lacan, “O estádio do Estádio do Espelho como formador das funções do Eu”, Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.
97-103. Ver também Elisabeth Roudinesco, Lacan a despeito de tudo e de todos, Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 31-34.
0
AE, p. 43.
0
AE, p. 410.
0
AE, p. 232.
0
AE, p. 57.
0
AE, p. 60.
servindo à edipianização do inconsciente. Com Lacan é diferente. Na medida em que eram
contemporâneos e, por volta de 1968, habitavam o mesmo ecossistema cultural e intelectual
parisiense, o pensamento de Lacan é apreendido na complexidade dos entrecruzamentos de
questões psicanalíticas, filosóficas e políticas que também diziam respeito aos projetos, em conjunto
ou individuais, de Deleuze e Guattari. No Anti-Édipo, alguns dos discípulos de Lacan são citados
nominalmente, inclusive com referências elogiosas. Deleuze e Guattari também buscam diferenciar
o que é atribuído a Lacan, o que seria um clima mais genérico do lacanismo e o que seriam
“interpretações edipianas” tanto de Lacan quanto do lacanismo 0. O pensamento é uma entidade
multíplice. Se o intérprete deixa de perceber nuances, não apreende o avesso do texto, o não-dito ao
longo dos parágrafos que fluem, ele acaba correndo o risco de tecer, ele mesmo, ainda outra
“intepretação edipiana” de Lacan, malgrado a retórica antiedipiana. Sem ambiguidades, contudo, é a
crítica que os autores do Anti-Édipo desferem contra certos discípulos anti-1968, que basicamente
acusaram os manifestantes de não terem Édipo. A ironia é certa, por exemplo, quando Deleuze e
Guattari falam dos “belos livros” 0 que vinham sendo escritos por discípulos lacanianos.
Dúvida objetiva à parte, os autores admitem que, sem passar por Lacan, sua crítica do Édipo
seria “totalmente superficial e mesquinha” 0, pois limitada ao Édipo do freudismo, baseado nas
figuras imaginárias do triângulo edipiano. A partir do retorno de Lacan a Freud, qualquer crítica da
psicanálise deve abordar um segundo funcionamento de Édipo, aquele da ordem dos lugares e da
função simbólica – o “Édipo de estrutura” 0. Independentemente disso, o problema do Anti-Édipo
não é opor um Édipo imaginário (freudiano) a outro estruturalista (lacaniano), as duas faces de uma
mesma moeda. Sua proposta sempre foi ir além de ambos. No que diz respeito aos rumos de Lacan,
a dúvida é se lhe bastaria acrescer um novo Édipo à psicanálise, um Édipo à altura do capitalismo
que se reconfigurava nos anos 1970, ou se ele o fazia como tarefa preparatória para a superação,
isto é, para levá-lo ao ponto de autocrítica0 e ultrapassar o próprio problema de Édipo.
Segundo Deleuze e Guattari, Lacan fez do Édipo um “tipo de símbolo católico universal” 0. A
tópica de Lacan se divide em três registros ou âmbitos correlacionados: Real, Simbólico e
Imaginário (o ternário RSI)0. O inconsciente funciona no registro do simbólico, o âmbito da
intersubjetividade, do Outro0, que condiciona os modos possíveis de relacionamento com a

0
AE, p. 101.
0
AE, p. 75.
0
AE, p. 74.
0
AE, p. 226.
0
AE, p. 409-411.
0
Loc. cit.
0
Jacques Lacan, “O Simbólico, o Imaginário e o Real”, Nomes-do-Pai, Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 9-53. Ver também Philippe
Julien, Pour lire Jacques Lacan: Retour à Freud, Paris: Points, 2018 [1992].
0
Idem, O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955), Rio de Janeiro: Zahar, 1987. Em
especial, “Introdução ao Grande Outro”, p. 296-311; “O universo simbólico”, p. 41-55; e “Onde está a fala, onde está a
linguagem”, p. 345-367.
alteridade0. Ele exerce função determinante nas leis da combinatória entre lugares estruturais e os
significados que podem ocupá-los. Escrito com maiúscula, o “Outro” não pode ser tomado por
“outras pessoas” (psicologizáveis), ou quaisquer objetos reais e representações mentais. Ele está
mais relacionado ao vínculo constituinte do sujeito e do meio social. O outro é não-representativo,
não-material, não-psicologizável, melhor entendido como a malha de intersubjetividade que nos
precede, com que temos de lidar ao modo de um enigma permanente, que inclusive não permite
saber quando estamos sendo enganados0. O Outro condiciona o que pode ser desejado a partir de
leis estruturais e de um funcionamento próprio, mas jamais se confunde com um objeto específico,
não se exaure numa realidade ou representação. Pelo âmbito do simbólico, o desejo se efetua. É por
ele também que se operam os cortes das séries de encadeamentos de significados e funções
estruturais. Em rigor, o inconsciente conforme Lacan não é a linguagem; em vez disso, se organiza
ou se estrutura como uma linguagem0. Isto é, a estruturação do inconsciente é análoga à da
linguagem.
O modelo estrutural lacaniano se demarca em contraponto ao mais antigo modelo evolutivo-
genético, que fundamentava a descrição freudiana dos estágios infantis até culminar na resolução do
Édipo. Ele representa uma mudança de paradigma, um novo quebra-cabeças a ser manejado pelos
psicanalistas em suas práticas. Essa mudança, que se orienta pela linguística de Saussure 0, envolve a
triplicação dos domínios do ser0, extrapolando as antigas dualidades entre real e fantasia, entre as
coisas e as imagens das coisas. Nesse esquema o sujeito já nasce na linguagem, surge no mundo
através da inscrição no simbólico. O ser humano só existe embrenhado na trama de
intersubjetividade, não há fora absoluto. A ligação com a lei é mais radical em Lacan do que em
Freud na medida em que é pressuposto em vez de aquisição. Lei e desejo estão coimplicados. Em
Freud, a criança acede à lei por meio da triangulação edipiana, quer dizer, o toque de bolas entre
figuras parentais que gradualmente equaciona desejo e social. Se pensado a partir do esquema RSI,
o Édipo freudiano funcionaria no registro do imaginário, uma vez que o complexo é articulado por
imagens, como nos mitos. Contudo, se já nascemos articulados na linguagem, no registro simbólico,
a vinculação se dá como condição estrutural irrecusável. O desejo não surge mais do indivíduo para
depois ser amarrado à lei, através da resolução do complexo de Édipo. O desejo só existe implicado

0
Posteriormente, Lacan distinguiu o inconsciente do Outro, pois “o inconsciente é o discurso do Outro”. Devido ao uso aqui, não
se vai explodir a definição. Ver Elisabeth Roudinesco et al., Dicionário de psicanálise, s.v. OUTRO, Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
0
Jacques Lacan, O Seminário, livro 3: As psicoses (1955-1956), Rio de Janeiro: Zahar, 1988. O maior interesse no cruzamento
com o Anti-Édipo, pois é onde Lacan discute o caso Schreber e sua concepção de relação entre psicose e desejo/Outro, está em:
“De um Deus que não engana e de um que engana”, p. 73-85. Na realidade, todo esse seminário de Lacan orbita o caso Schreber.
Há uma crítica atmosférica no Anti-Édipo contra concepções “piedosas” do inconsciente, isto é, ligadas à teologia negativa de um
Plotino ou do Pseudo-Dioniso, o Areopagita.
0
Assim como Spinoza não fez ética geométrica, mas “demonstrada à maneira dos geômetras”, Lacan faz psicanálise à maneira dos
linguistas, no caso, Saussure e Jakobson.
0
Nadiá Paulo Ferreira, “Jacques Lacan: apropriação e subversão da linguística”, Ágora Estudos em Teoria Psicanalítica, 5 (1):
113-132, jan./jun. 2002.
0
Gilles Deleuze, “Em que se pode reconhecer o estruturalismo?” [1972], A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-
1974).
no Outro/simbólico/estrutura, no reino da lei (estrutural). Ele não evolui do sujeito para o mundo, de
dentro para fora; é o sujeito que nasce da relação entre o desejo e o Outro, complexificando a
relação dentro/fora.
Diferentemente das elaborações de Freud, em Lacan, a perda originária não é dada por uma
fantasia, forjada reflexamente em relação à experiência concreta de separação da mãe. A perda
originária é anterior na medida em que se inscreve no simbólico. A inclusão na ordem simbólica
produz, como decorrência lógica, a perda irreversível do gozo (ir além do Outro). Uma vez que a
intersubjetividade é primeira em relação à formação do sujeito, ele só é capaz de se ligar ao desejo
por meio do Outro, contando com ele. Noutras palavras, o desejo do sujeito implica o desejo do
Outro, que lhe é penetrante ou estruturante. Na linguística estrutural, a condição para falar a
linguagem é ser falados por ela, ser corporificado com essa estruturação imanente da língua (logos).
Isto é, a linguagem fala em nós e, assim, nós falamos. É-se falado ao falar. Do mesmo modo, se é
desejado ao desejar. A relação com o Outro é interna, ainda que o desejo do Outro não tenha
conteúdo positivo (como todo objeto simbólico).
Se é o outro que, ao desejar, nos faz sujeitos desejantes, o desejo no sujeito implica uma
invencível opacidade0. Mais do que desconhecimento objetivo, trata-se de uma opacidade de direito,
inerente à condição de pertencimento ao simbólico. O sujeito não consegue jamais se identificar
com o desejo, mantendo-se o hiato em relação ao desejo do Outro. Hiato este que ameaça a
existência do próprio sujeito: uma falha constitutiva desestabilizadora, que define um sujeito
fraturado, o que reverbera nos modos operativos do desejo. O senso de incoerência e
descontinuidade na consciência é inevitável. Na medida em que a determinação em última instância
é dada pelas relações estruturais, a autonomia em sua acepção moderna-iluminista encontra-se
bloqueada de partida.
Na fase ética do simbólico, nas décadas de 1950 e 1960, Lacan transporta os aparatos
conceituais freudianos do registro do imaginário para o registro do simbólico, que ele acrescenta
como terceiro domínio0. Ao fazê-lo, descortina um imenso campo de interrogações e práticas. Em
Freud, a ansiedade da castração, no intrincado percurso de sua superação, proporciona à criança um
padrão de repetições para equacionar o desejo. Assim, o medo da castração assume um papel
preparatório para a resolução a contento do Édipo na busca de um eu firme e seguro. Já em Lacan,
não entram em jogo o medo da perda do pênis real nem do falo imaginário – tal qual no mito de
Priapo – como representação do poder. Lacan “desimaginariza” o inconsciente freudiano,
silenciando a orquestra, desertificando o teatro e arrasando os personagens que o povoam, visto que
atrapalham mais do que ajudam a atividade clínica ao multiplicar polissemias, como num hall de

0
Carlos Augusto Peixoto Júnior, “A lei do desejo e o desejo produtivo: transgressão da ordem ou afirmação da diferença?”
Singularidade e subjetivação: ensaios sobre clínica e cultura, Rio de Janeiro: PUC, 2008, p. 84-91.
0
Gilles Deleuze, “Em que se pode reconhecer o estruturalismo?”, op. cit.
espelhos. Entramos na era despótica do inconsciente 0. Conforme comentam Deleuze e Guattari,
com o modelo estrutural tripartido, a psicanálise lacaniana expande o Édipo, que passa a abranger
“as fases pré-edipianas”, “as variedades paraedipianas” e “os fenômenos exoedipianos” 0. Por isso o
Édipo tornou-se católico, na medida em que passou a ser válido para todos, independentemente da
gênese empírica na primeira infância.
A operação de Lacan é similar à de Lévi-Strauss na antropologia estrutural 0, que aqui nos
serve de ilustração. Lévi-Strauss conceitualizou a lei da proibição do desejo da seguinte forma: em
vez de uma lei que proibiria um objeto especial (o desejo incestuoso empírico), trata-se de um
objeto especial que estabelece o modelo para a lei. Entre universalistas e culturalistas, o debate
acerca da universalidade da proibição do incesto estava mal colocado. Não é que a proibição do
incesto resulte de uma repugnância especial das sociedades em relação a ele. Ocorre que, sem a
proibição do incesto, não é gerada a condição de escassez de mulheres, que é a base pare o disparo
da economia de trocas e a formação de laços de parentesco. A obrigação de entregar as mulheres
para casamentos fora da família provoca relações cruzadas de aliança e afiliação, o que propicia a
formação social propriamente dita: circulação de objetos e variação funcional de posições na
estrutura. Com isso, Lévi-Strauss afirma que, sem a proibição do incesto, não haveria nem mesmo
uma sociedade a ser estudada, logo a pergunta não faz sentido. Quando o antropólogo pergunta pelo
objeto, ele já está constituído de antemão, a lei proibitória fundamental já aconteceu. Ao ser
deslocada à estrutura, a família deixa de ser a célula genética do desenvolvimento social, como no
modelo antropológico evolutivo, e se torna a condição da falta que gera as trocas e dinamiza as
relações sociais. Lacan aproveita e transpõe essa mesma ideia estruturalista para explicar o
inconsciente, em que a estrutura fundamental de parentesco reaparece nas funções da “família"
simbólica.
Da apropriação do estruturalismo de Lévi-Strauss, já podemos antecipar como, em 1968,
alguns psicanalistas estruturalistas concluiriam que o desejo de transgressão, em vez de abolir a lei
proibitória, termina por confirmá-la. Elevado a nós da sutura simbólica, o incesto se converte em
criador da lei como pressuposto e não como origem. Trata-se de uma proibição constituinte, que
condiciona a diferenciação das figuras paternas0. Quando o objeto especial (perda do falo) serve de
modelo para a lei, ele cria a proibição e a transgressão no mesmo lance. Isso se dá na medida em
que a proibição se desloca entre os registros do permitido e do proibido 0. O objeto especial de
Lacan é, na verdade, um operador simbólico, que retém das figuras apenas funções 0. Assim, a figura
paterna se torna função simbólica, multiplicável não por semelhanças e analogias representativas,
0
AE, p. 276-279, 287.
0
AE, p. 74.
0
Claude Lévi-Strauss, As estruturas elementares do parentesco, 7. ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2012 [1949].
0
AE, p. 98.
0
AE, p. 99.
0
AE, p. 153.
mas por metáforas que se disseminam pelas séries articuladas de desejo e social. Por um instante em
1968, o enorme arcaísmo do déspota cedeu e os fluxos correram mais livres, mas alguns
aproveitaram a cena destituinte para instaurar um novo regime. Todas as funções estruturais
paternas passaram a operar na forma impessoal do discurso da competência e da eficácia. Os novos
mestres são anônimos, o elemento despótico se metaforizou. Deleuze e Guattari reverberam a
mutação das formas de opressão pós-1968, seguindo o deslocamento do “discurso imperial de
Lacan para um discurso universitário de pura cientificidade” 0. Reconfigurada, a castração volta a
operar, realimentando o núcleo neurótico do sintoma. Mas nem a máquina capitalista nem o
processo esquizofrênico se explicam por essa passagem, que se refere aos funcionamentos da
máquina despótica.
Em Lacan, o falo não é real (pênis) nem imaginário (imagem priápica). É, antes, uma falta de
segunda ordem ou falta “ontológica”, digamos assim. Na psicanálise estrutural, o falo simbólico
corresponde a uma negatividade fundante que propicia as operações e deslocamentos da estrutura,
um vazio que se move para realizar as conexões entre as séries. O Anti-Édipo critica essa “incurável
insuficiência do ser”0, na medida em que aloja a falta no funcionamento mesmo das operações de
conexão, disjunção e conjunção do inconsciente 0. Isso, contudo, não esgota o interesse dos autores
do Anti-Édipo em Lacan e no lacanismo, apesar das “interpretações edipianas” realizadas por
alguns de seus seguidores e epígonos0. Deleuze e Guattari enxergam dois polos em Lacan e no
lacanismo. Um deles introduz “certa ideia de falta”, determinada pelo Outro 0; o segundo indica um
movimento do pensamento para além das estruturas simbólicas e dos espaços imaginários, no
sentido do ponto de inconsistência0, do ponto de virada ao avesso, da ética do Real0.
A tensão entre dois polos percorre toda a maquinaria do Anti-Édipo, com a multiplicação de
pares em oposição polar, como num globo com latitudes e longitudes. É como se houvesse duas
tendências coexistentes, em pressuposição recíproca, mas em diferentes proporções ou arranjos de
interpenetração. Uma consiste na tendência-Édipo ou edipianizante, ligada às forças reativas e
paixões tristes, à redução da potência do corpo, tarefa preparatória para a servidão, na direção do
corpo extenso e fixado, das disjunções exclusivas (duplos impasses) e das conexões biunívocas –
0
AE, p. 324. Em sua teoria dos Quatro Discursos, Lacan aborda as diferenças estruturais entre o Discurso do Mestre e o Discurso
da Universidade. Ver “Produção dos Quatro Discursos”, O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970), Rio de
Janeiro: Zahar, 1988 [1981]. Para Lacan, o significante mestre passa por uma degenerescência (p. 172). Para Roudinesco, o fim
da era dos intelectuais públicos e o predomínio dos tecnocratas na universidade francesa ao longo dos anos 1970 são indicativos
de passagem ao Discurso da Universidade (conforme Jacques Lacan, p. 405). Para Žižek, o Discurso da Universidade externaliza
a contradição da modernidade, de um lado a totalidade burocrática administrada da razão instrumental (URSS); do outro, a
sociedade de consumo (Ocidente). Conforme Jacques Lacan's Four Discourses [online], 2014. Disponível em:
https://www.lacan.com/zizfour.htm. Acesso em: ago. 2022.
0
AE, p. 42.
0
Não se trata de mera inversão de sinal, isto é, dizer que o negativo é o positivo de outro ângulo e vice-versa, mas de perspectiva.
Uma teologia negativa ou teologia política coloca os problemas de outra maneira, o que condiciona as soluções e respostas, com
imediata incidência prática. Deleuze e Guattari não fazem jogo de palavras ao apertar a questão do inconsciente como falta.
0
AE, p. 101.
0
AE, p. 43, nota 23.
0
AE, p. 410-411.
0
AE, p. 75.
“isto quer dizer aquilo”, “isto é aquilo”. A outra tendência é processual e esquizofrênica, anti-Édipo,
associada às forças criativas e afetos ativos, ao incremento do que o corpo pode, preparando-o para
a fuga das armadilhas e capturas e, nessa linha, ajudando a fazer fugir o mundo (linhas de fuga), na
direção do corpo intenso, do sujeito que consome estados intensivos ou intensidades, das disjunções
inclusivas e das conexões plurívocas ou em fluxo – “isto e aquilo e aquiloutro”, “faz isto e funciona
daquele jeito etc.” Num polo, a produção desejante; no outro, a produção social. Trata-se da mesma
produção que se diferencia num modo operativo ou noutro. Há uma identidade entre uma e outra,
pois só há o desejo e o social 0, que contudo diferem quanto ao regime de funcionamento. São dois
regimes0 que, no real, aparecem sempre imbricados, visto que produção desejante e produção social
são duas faces da mesma produção. Além disso, desejo e social atualizam-se em razão inversa:
quanto maior a identidade entre eles, mais os fluxos passam e se cortam, de modo que a diferença
de regime é mínima, e vice-versa. O leitor pode imaginar um acordeão, em que os extremos ora se
aproximam, ora se afastam, com todo um espectro de timbres e melodias atualizáveis ao longo das
situações intermediárias.
De qualquer forma, os dualismos se mostram como oposições polares, e os estados
intermediários não podem ser confundidos com pontos médios. Os regimes são incomensuráveis,
porque um opera no espaço heterogêneo das intensidades e o outro, no espaço homogêneo dos
corpos extensos. Ou seja, a mistura entre eles é sempre heteróclita, com duas zonas que não se
confundem. Mais que a variação de um polo em relação ao outro por graus sucessivos, como sói
ocorrer numa grandeza quantitativa ou escalar, dá-se uma variação contínua de diferenças entre os
polos, uma diferença de natureza refeita a cada ponto (timbres, alturas, melodias)0.
Se pensarmos que, nos anos 1960, tanto Deleuze quanto Guattari haviam partido de um solo
epistemológico articulado pelo estruturalismo, podemos dizer que as duas tendências em oposição
polar descritas acima rebatem nesse solo de partida. No polo da tendência esquizofrênica, está a
direção “pós-estruturalista”. É aí que a estrutura vira ao avesso 0, isto é, vira máquina0, e o jogo entre
significado e significante, o querer-dizer, vira funcionamento maquínico ou linguística dos fluxos 0:
faz algo, serve para algo, produz algo. No outro polo, a tendência edipiana, quando levada às
últimas consequências, se resolve na parada da estrutura, na interrupção dos fluxos: ponto de
vitrificação, fixação derradeira dos encadeamentos, inconsciente parafusado no significante mestre.
É o Édipo catatônico.

0
AE, p. 46, 243.
0
AE, p. 259, 446.
0
A explicação mais elegante da esquematização do Anti-Édipo em sua Lógica pode ser encontrada em Gilles Deleuze, “A
concepção de diferença em Bergson”, Bergsonismo, p. 95-124. Considero ser este o melhor texto preparatório para a
compreensão dos esquematismos do Anti-Édipo.
0
AE, p. 410, 411.
0
Félix Guattari, “Máquina e estrutura”, Psicanálise e transversalidade: ensaios de análise institucional, Aparecida: Ideias e letras,
2004 [1969], p. 309-320.
0
AE, p. 321.
A máquina capitalista deve funcionar entre os dois polos, calibrando o fluxo contínuo e, ao
mesmo tempo, a capacidade de reprodução dos regimes de funcionamento e suas reposições
permanentes. Eis um plano de consistência que guarda, num de seus polos, a crise terminal à
espreita, o processo esquizofrênico que enlouquece as estruturas, a destruição criativa que a
máquina capitalista induzida incentiva e, a seguir, esconjura para mais longe ou internaliza como
limite relativo de expansão. No outro polo, acumulam-se e se engancham as sobrecargas paranoicas,
as travas, bloqueios e frenagens do processo, a antropoemia dos fluxos, o estremecimento
proporcionado pelos elementos despóticos dos Estados0 em meio às redes do capitalismo mundial
integrado. Este é também o polo de todas as formações reterritorializadas, residuais ou factícias 0 do
desejo: fundamentalismos, nacionalismos0, o fascismo moderno0.
Vários intercessores do Anti-Édipo foram na direção esquizofrênica a que o livro desliza, mas
acabaram recuando em algum ponto, não suportaram a perda de chão e não foram longe o bastante.
Freud descobriu o inconsciente e colocou o problema matricial do desejo, mas recuou rápido
demais, talvez já de saída e em paralelo, tornando-se o pai do Édipo na psicanálise. Reich inventou
a psiquiatria materialista, mostrou que o recalque depende da repressão social e não o inverso. Ele
revelou que o fascismo é questão de desejo e não ideologia, e denunciou a psicanálise por servir às
forças de repressão (e foi reprimido ele mesmo). Contudo, não foi longe o suficiente para alcançar a
identidade plena entre economia libidinal e economia política 0, para enxergar que o desejo de
fascismo não é dado pelo inibido ou ressentido0 – e é isso o mais difícil de explicar. A
antipsiquiatria de Laing compreendeu o processo esquizo como viagem intensiva 0 e livrou-se dos
familismos residuais0, mas deu pouca atenção ao problema do capitalismo e acabou separando
demais a alienação social da mental0. Lyotard sistematizou a primeira crítica do significante e
mostrou que, debaixo dele, quem trabalha é o Figural 0, cujo elemento puro é o desejo. No entanto,
comprometeu o rol de ousadias criativas ao reinscrever o desejo na atividade fantasmática 0. Melanie
Klein chegou à incrível descoberta dos objetos parciais 0, mas deixou de ligá-los aos fluxos, de
maneira que o conceito perdeu dinamismo e terminou reacomodado nos funcionamentos do Édipo.
Do ponto de vista de Deleuze e Guattari, Lacan é o mais polivalente dos psicanalistas citados no
Anti-Édipo, entre a incursão extrema pelo deserto do significante mestre e a vertigem do ponto de

0
AE, p. 53, 299.
0
AE, p. 399-400, 490.
0
AE, p. 534.
0
AE, p. 342.
0
AE, p. 413.
0
AE, p. 47, 457.
0
AE, p. 117.
0
AE, p. 137.
0
AE, p. 423-424.
0
Jean-François Lyotard. Discorso, figura. Collana: Volti, 2008 [1971].
0
AE, p. 323-324.
0
AE, p. 64-66.
inconsciência ou do impossível0 – o que, aliás, os manifestantes de 1968, em seu realismo,
demandavam.
Aqui não nos cabe julgar, não nos preocupamos com balanços e vereditos e falamos sempre
de uma posição de incompetência absoluta 0. Os próprios autores do Anti-Édipo reconhecem que
eles mesmos não foram longe o suficiente, que nós ainda não vimos nada 0. Apesar das mais de
quinhentas páginas do livro, fazem questão de ressalvar que não disseram “nem um quarto, nem um
centésimo, do que seria preciso dizer contra a psicanálise, contra seu ressentimento frente ao desejo,
contra sua tirania e sua burocracia”.0 Cabe apenas concluir o comentário que envolve o Anti-Édipo,
sua relação com o acontecimento e a dimensão política dos encontros e desencontros.
Na palestra de Lacan em dezembro de 1969, quando os estudantes inundaram a sala de aula
em Vincennes com a cacofonia de slogans e murmúrios, os lacanianos ali presentes não teriam certo
direito de enxergar a reedição em miniatura do que havia ocorrido no grande tumulto de 1968? Ora,
as massa fina da psicanálise, em seu caráter mais inovativo, abafada por palavras de ordem num
ambiente confuso, indiferenciado? Para alguns lacanianos, a experiência exaltada da recusa geral,
oriunda da polimorfia perversa de instintos imaturos, talvez transbordantes do sentimento oceânico,
só poderia mesmo ter culminado com o retorno triunfante do pai da França, a volta do general
Charles de Gaulle em junho de 1968, eleito justo para acabar com a bagunça. Naquela palestra
interrompida, Lacan talvez fosse como um genial diretor de teatro que, num misto de astúcia e
improviso, logra pôr os estudantes para reencenar a comédia do fracasso de 1968. Seria isso?
“Sim”, responderam os lacanianos Béla Brunberger e Janine Chasseguet-Smirgel, em um
livro publicado em 19690. Nele, as mobilizações do universo contestatório ao redor do
acontecimento 1968 foram reduzidas a petites masses, à revolta do euzinho mimado. Segundo os
autores, escrevendo sob o pseudônimo André Stéphane, os manifestantes eram incapazes de lidar
com o medo da castração e se recusavam a amadurecer. Não eram apenas rebeldes sem causa;
exprimiam também a incapacidade de aceder ao desejo do Outro. No mesmo ano, o psicanalista
Gérard Mendel0 escreveu outro “belo livro” na mesma toada. Neste, os manifestantes iam contra
tudo e todos porque alucinavam o pai por toda parte. Os tumultos não passariam de uma insurgência
geral contra a metáfora paterna que, como o retorno do recalcado, faria emergir um pai ainda pior
desde as profundezas do inconsciente liberticida.
Deleuze e Guattari discordam. Cada um usa as categorias a que faz jus por seu pensamento. É
verdade que não se deve confundir Lacan com os arroubos do lacanismo, porém, “[n]ão é por haver

0
AE, p. 409-411.
0
AE, p. 504.
0
AE, p. 52.
0
AE, p. 514.
0
Bèla Grunberger e Janine Chasseguet-Smirgel, L´univers contestationnaire ou les nouveaux chrétiens: étude psychanalytique.
Paris: In Press, 2004 [1969].
0
Gérard Mendel, La revolte contre le père: une introduction à la sociopsychanalyse, Paris: Payot, 1968.
da parte de Lacan uma outra concepção da psicanálise que se deve minimizar [certo] tom reinante” 0.
Nesse sentido, determinados autores lacanianos reforçavam a articulação do discurso anti-1968 0 ao
incorporar a operação intimidadora mais antiga que alguns psicanalistas orquestravam na
normalidade, entre o retorno imperativo do Édipo (a Organização, o Partido, a Grande Esquerda) e a
noite cinzenta do vale-tudo. Tudo isso para clamar que todos voltassem aos consultórios o mais
breve possível e contribuir com a retomada da ordem e dos afazeres. Caso a injeção de Édipo não
funcionasse e a loucura persistisse, que fosse chamada a polícia0.
Ora, nem o fascismo se explica pela noite do indiferenciado, mas pelo problema do
capitalismo0, nem as lutas reais aconteceriam se não estivessem apoiadas por princípios imanentes
de organização. Não faltava Édipo aos manifestantes do Maio de 68 francês, que ousaram se livrar
dele e suportar as intensidades, mesmo que por apenas duas semanas. Deleuze e Guattari falam em
“novos padres”0 e “animadores da má consciência” 0 ao se referir aos psicanalistas que erigem a
castração, a renúncia e o Édipo ao panteão da análise. É a continuação dos institutos da confissão e
do sermão readaptados ao divã, aos círculos gregários e às análises de sofá do ressentimento alheio
lá fora. Os livros dos lacanianos de direita contra 1968 são proclamados ao pé do altar, mas essa
igreja ficou vazia em meio às lutas, e já ninguém acredita neles. “Durante as primeiras semanas, os
consultórios médicos se esvaziaram: os ansiosos, os coléricos, os ‘enxaquecosos’, os regurgitantes,
os arrotadores, os nauseados de repente estavam curados.”0
Como virtualidade, o acontecimento 1968 não acabou, e a reativação de seus conteúdos
histórico-políticos e de suas práticas precisa ser continuamente recolocada em questão se quisermos
abordar o inconsciente de uma perspectiva esquizoanalítica.

0
AE, p. 112.
0
Serge Audier, La pensée anti-68: Essai sur les origines d’une restauration intelectuelle, Paris: La découverte, 2008.
0
AE, p. 112.
0
AE, p. 342.
0
AE, p. 148.
0
AE, p. 440.
0
Edgar Morin, “Mai(os) (1978)”, in: Claude Lefort, Cornelius Castoriadis e Edgar Morin. Maio de 68, a brecha, trad. e org.
Anderson Lima da Silva e Martha Coletto Costa. São Paulo: Autonomia Literária, 2018 [2008], p. 97.
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