O Pensamento e o Movente - Henri Bergson
O Pensamento e o Movente - Henri Bergson
O Pensamento e o Movente - Henri Bergson
Henri Bergson
Tradução
BENTO PRADO NETO
Martins Fontes
Sao Paulo 2006
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Esta pbríi foi publicada originalmenie ew francês aim o título
I.A PENSÉE ET LE MOUVANT por Presses Universitaires de France, Paris.
Copyright © Prcssíf Umwsitaires de France,
Copyright © 2005, Livraria Martins Fcntss Editora Ltda.t
São Paulo, para a present? edição.
P edição 2006
Tradução
BENTO PRADO NETO
Acompanhamento editorial
Mtiríi? Fer/íandí? Alvares
Revisões gráficas
Sandra Garcia Cortes
Solange Martins
Dinaríe Zorzanelli cia Silva
Produção gráfica
Cernido Alves
Paginaçao/Foíolitos
Sfarfío 3 DcschüoíwwnÍo Editorial
05-8568 COD-194
Nota introdutória................................................................ 1
H.B.
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE)
Crescimento da verdade. Movimento
retrógrado do verdadeiro
3. O presente estudo foi escrito antes de nosso livro Les deux sources
de la morale et de la religion, no qual desenvolvemos a mesma comparação.
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE) 21
lógico. - Não vai ela mais além? Seria ela apenas a intui
ção de nós mesmos? Entre nossa consciência e as outras
consciências a separação é menos marcada do que entre
nosso corpo e os outros corpos, pois é o espaço que faz
as divisões nítidas. A simpatia e a antipatia irrcfletidas,
que são tão frequentemente divinatórias, atestam uma
interpenetração possível das consciências humanas. Ha
vería então fenômenos de endosmose psicológica. A in
tuição introduzir-nos-ia na consciência em geral. - Mas
simpatizamos nós apenas com consciências? Se todo ser
vivo nasce, desenvolve-se e morre, se a vida é uma evo
lução e se a duração é aqui uma realidade, não havería
também uma intuição do vital e, por conseguinte, uma
metafísica da vida, que prolongaria a ciência do vivo? De
certo, a ciência há de nos dar de forma cada vez melhor
a físico-química da matéria organizada; mas a causa pro
funda da organização, com relação à qual vemos perfei-
tamente que não entra nem no quadro do puro mecanis
mo nem no da finalidade propriamente dita, que não é
nem unidade pura nem multiplicidade distinta, que nos
so entendimento, enfim, sempre caracterizará por sim
ples negações, será que não a atingiremos ao recuperar
pela consciência o elã da vida que está em nós? - Pode
mos ir mais longe ainda. Para além da organização, a
matéria inorganizada aparece-nos sem dúvida como de-
componível em sistemas sobre os quais o tempo desliza
sem penetrar, sistemas que são da alçada da ciência e aos
quais o entendimento se aplica. Mas o universo material,
em seu conjunto, deixa na espera nossa consciência; ele
próprio espera. Ou ele dura, ou é solidário de nossa du
ração. Quer se vincule ao espírito por suas origens, quer
por sua função, em ambos os casos ele é da alçada da in
tuição por tudo aquilo que contém de mudança e de mo
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 31
tivamente medidas, é aquele que ocupa esse sistema: Iodos os outros fí
sicos, que supomos adotarem outros sistemas, não são então mais que físi
cos por ele imaginados. Consagramos um livro, outrora, à demonstração
desses diferentes pontos.
Não podemos resumi-lo numa simples nota. Mas, como o livro foi
frcqíien temente mal compreendido, acreditamos dever reproduzir aqui
0 trecho essencial de um artigo no qual davamos a razão dessa incom
preensão. Eis, com efeito, o ponto que de ordinário escapa àqueles que,
transportando-se da física para a metafísica, erigem em realidade, isto
é, em coisa percebida ou perceptível, existindo antes e após o cálculo, um
amálgama de Espaço e de Tempo que só existe ao longo do cálculo c que,
fora do cálculo, renunciaria à sua essência no exato instante em que pre
tendéssemos constatar sua existência.
Seria de fato preciso, dizíamos, começar por ver exatamente por
que, na hipótese da Relatividade, é impossível vincular ao mesmo tem
po observadores "vivos e conscientes" a vários sistemas diferentes, por
que um único sistema - aquele que é efetivamente adotado como siste
ma de referência - contém físicos reais, por que, sobretudo, a distinção
entre O físico real e o físico representado como real assume uma impor
tância capital na interpretação filosófica dessa teoria, ao passo que até
aqui a filosofia não havia precisado se preocupar com isso na interpre
tação da física. A razão, no entanto, é bastante simples.
Do ponto de vista da física newtoniana, por exemplo, há um siste
ma de referência absolutamente privilegiado, um repouso absoluto e
movimentos absolutos. O universo então é composto, em cada instante,
por pontos materiais, alguns dos quais estão imóveis e outros animados
por movimentos perfeitamente determinados, Esse universo vê-se então
possuir nele própria, no Espaço e no Tempo, uma figura concreta que
não depende do ponto de vista no qual o físico se coloca: todos os físi
cos, seja a que sistema móvel pertençam, se reportam pelo pensamento
ao sistema de referência privilegiado e atribuem ao universo a figura
que lhe descobririamos ao percebê-lo assim no absoluto. Portanto, se o
físico por excelência é aquele que habita o sistema privilegiado, não há
aqui que estabelecer uma distinção radical entre esse físico e os outros,
uma vez que os outros procedem como se estivessem no lugar dele.
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 41
! UNsFcSP j
I BStSTECA CAMPUS GumHUS I
56 0 PENSAMENTO E O MOVENTE
téria no molde desse determinismo, para obter, nos fenômenos que nos
cercam, uma regularidade de sucessão que nos permita agir sobre eles,
que nossa percepção se detém em um certo grau particular de condensa
ção dos acontecimentos elementares. De modo mais geral, a atividade do
ser vivo se acostaria à e se mediria pela necessidade que vem servir de su
porte às coisas, por uma condensação de sua duração.
66 0 PENSAMENTO E O MOVENTE
5. Essai sur les demn^es immediate^ de /<? conscience, Paris, 1889, p. 156.
6. Matière et mémoirc, Paris, 1896, sobretudo as pp. 221-8. Cf. todo
o capítulo IV e, em particular, a p. 233.
7. La perception du chaiigement [A percepção da mudança], Oxford,
1911 (conferências reproduzidas no presente volume).
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 8'1
Janeiro 1922
j UNiFtSP
íM£fítC.ACWUSlN
114 O PENSAMENTO E O MOVENTE
Primeira conferência
mostrar, por outro lado, que aquilo que foi tomado por
Kant pelo próprio Tempo é um tempo que não flui nem
muda nem dura; - então, para subtrair-se a contradições
como as que Zenão assinalou e para libertar nosso co
nhecimento cotidiano da relatividade que segundo Kant
a afetava, não havería que sair do tempo (já saímos dele!),
não havería que se desligar do movimento (dele esta
mos, aliás, por demais desligados!), caberia, pelo contrá
rio, recuperar a mudança e a duração em sua mobilida
de original. Então, não veriamos apenas desaparecer
uma por uma muitas dificuldades e desvanecer-se mais
de um problema: através da extensão e da revivificação
de nossa faculdade de perceber, talvez também (mas por
enquanto está fora de questão elevar-se a tais alturas)
através de um prolongamento dado à intuição por almas
privilegiadas, restabeleceriamos a continuidade no con
junto de nossos conhecimentos - continuidade que já
não seria hipotética e construída, mas experimentada e
vivida. Seria possível um trabalho desse tipo? É o que in
vestigaremos juntos, pelo menos no que diz respeito ao
conhecimento de nosso entorno, em nossa segunda
conferência.
Segunda conferência
nele, caso nele parasse: mas, caso nele parasse, já não se
ria mais com o mesmo movimento que lidaríamos. É sem
pre num único pulo que um trajeto é percorrido, quando
não há parada no trajeto. | O pulo pode durar alguns se
gundos, ou dias, meses, anos: pouco importa. A partir do
momento em que ele é único, é indecomponível.LSó que,
uma vez o trajeto feito, pomo a trajetória é espaço e o es
paço é infinitamente divisível,^iguramo-nos que o pró
prio movimento seja indefinidamente divisível. ,E isso
nos apraz porque, num movimento, não é a mudança de
posição que nos interessa, são as próprias posições, aque
la que o móvel deixou, aquela que ele assumirá, aquela
que ele assumiría caso parasse no meio do caminho.pre
cisamos de imobilidade e quanto mais conseguirmos nos
representar o movimento como coincidindo com as imo-
bilidades dos pontos do espaço que ele percorre, tanto
melhor acreditaremos compreendê-lo. A bem dizer, não
há nunca imobilidade verdadeira, se entendemos com
isso uma ausência de movimento. O movimento é a pró
pria realidade e o que chamamos de imobilidade é um
certo estado de coisas análogo àquele que se produz
quando dois trens caminham com a mesma velocidade,
no mesmo sentido, em duas vias paralelas: cada um dos
dois trens está então imóvel para os viajantes sentados
no outro. Mas uma situação desse gênero, que, afinal de
contas, é excepcional, parece-nos ser a situação regular e
normal porque é aquela que permite que ajamos sobre
as coisas e que permite também às coisas que ajam so
bre nós: os viajantes dos dois trens só poderão trocar
apertos de mão pela portinhola e falar uns com os outros
caso estejam "imóveis", isto é, caso andem no mesmo
sentido com a mesma velocidade. A "imobilidade" sendo
aquilo de que nossa ação precisa, erigimo-la em realida
166 0 PENSAMENTO E O MOVENTE
d
CAPÍTULO VI
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA1
' * Bergson, na verdade, diz "au bout de sou rôle", "ao fim de sen pa
pel" (no sentido teatral ou cinematográfico de "papel"), mas em francês
190 O PENSAMENTO E O MOVENTE
essa expressão ecoa claramente "au bout de son rouleau", "no fim de sua
corda" (como um mecanismo chega ao fim de sua corda), o que explica
o vínculo com a idéia dc "desenrolamento de um rolo". (N. do T.)
INTRODUÇÃO A METAFÍSICA 191
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i MffliECACfêRBGíhWCS!
202 O PENSAMENTO E O MOVENTE
há uma única duração que carrega tudo com ela, rio sem
fundo, sem margens, que corre sem força determinável
numa direção que não se poderia definir. E, mesmo as
sim, só se trata de um rio e esse rio só flui porque a rea
lidade obtem tal sacrifício dessas duas doutrinas, apro
veitando-se de uma distração de sua lógica. Assim que
voltam a si, congelam esse escoamento, quer numa imen
sa lâmina sólida, quer numa infinidade de agulhas cris
talizadas, sempre numa coisa que participa necessaria
mente da imobilidade de um ponto de vista.
As coisas mudam inteiramente caso nos instalemos
de saída, por um esforço de intuição, no escoamento con
creto da duração. Decerto, não encontraremos então ne
nhuma razão lógica para pôr durações múltiplas e diver
sas. A rigor, poderia não existir nenhuma outra duração
além da nossa, como poderia não haver no mundo ne
nhuma outra cor além do alaranjado, por exemplo. Mas,
assim como uma consciência à base de cor que simpati
zasse interiormente com o alaranjado, ao invés de perce
bê-lo exteriormente, se sentiria tomada entre vermelho e
amarelo e talvez pressentisse mesmo, por sob essa últi
ma cor, todo um espectro no qual se prolonga natural
mente a continuidade que vai do vermelho para o ama
relo, assim também a intuição de nossa duração, bem lon
ge de nos deixar suspensos no vazio como o faria a pura
análise, nos põe em contato com toda uma continuidade
de durações que nos cabe procurar seguir, quer para bai
xo, quer para o alto: em ambos os casos podemos nos di
latar indefinidamente por um esforço cada vez mais vio
lento, em ambos os casos nos transcendemos a nós mes
mos. No primeiro, caminhamos para uma duração cada
vez mais espalhada, cujas palpitações, mais rápidas que
as nossas, dividindo nossa sensação simples, diluem-lhe
218 O PENSAMENTO E O MOVENTE
4. Mais uma vez, não afastamos com isso de modo algum a subs
tância. Afirmamos, pelo contrário, a persistência das existências. E acre
ditamos ter-lhe facilitado a representação. Como se pôde comparar essa
doutrina à de Heráclito?
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 219