O Pensamento e o Movente - Henri Bergson

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Coleção Tópicos

A coleção procura reunir as obras


mais significativas nas diversas
áreas do pensamento humano a
partir de Nietzsche; não se restringe
ã Filosofia propriamente dita, mas
inclui a reflexão de pensadores de
diversas áreas do conhecimento, dos
quais o pensamento moderno ê
tributário. O pensamento brasileiro
estará representado na coleção pelos
autores que, por seu trabalho de
reflexão e pesquisa, ajudaram a
enriquecer esse acervo universal ou
a irradiá-lo entre nós.
i h . I undo das doutrinas que des-
......I ii’< di) a novidade radical de
i .nl.i momento da evolução, há
11ii111(».•; mal entendidos, muitos
. ...... . Mas há, sobretudo, a idéia
Ji - i |iic o possível é menos que o
a 11 (• < Ir que, por essa razão, a pos­
ai alld.idc das coisas precede sua
■ • r.léncia. Estas seriam, assim,
. mi (•< ipadamente representa ve is;
I d >< li -riam ser pensadas antes de
M ii-iii realizadas. Mas é o inverso
i|ii<- e verdade. Se deixamos de
l.ido os sistemas fechados, sub­
iu- ndos a leis puramente mate-
iii.iliras, que são isoláveis pelo
I.th > dc a duração não os atingir,
■a consideramos o conjunto da
n-alidade concreta ou muito sim-
1111 • i111<*11(<:* o mundo da vida e,
. < mi mais forte razão, o da cons-
• n-iicla, descobrimos que há
ih.iIs, e não menos, na possibi­
lidade dc cada um dos estados
•a11 ■<‘ssivos do que em sua rea­
lidade. Pois o possível é apenas
al com, em acréscimo, um ato
do espírito que repele sua ima-
;i,(-in para o passado assim que
• li • se produziu. Mas é isso que
nossos hábitos intelectuais nos
Impedem dc perceber.

Henri Bergson

th. .ii(»V‘i<» MiiifoH Lisboa


O Pensamento e o Movente
Henri Bergson nasceu em Paris em 1859. Estudou na École
Normale Supérieure de 1877 a 1881 e passou os dezesseis anos
seguintes como professor de filosofia. Em 1900 tornou-se pro-
lessor no Collège de France e, em 1927, ganhou o Prêmio Nobel
<l<* I ,i I eratura. Bergson morreu em 1941. Entre outros livros, escre­
veu Malária e memória, O riso, A evolução criadora e Cursos sobre a
filosofia xrt’xa (todos publicados por esta Editora).
Henri Bergson
O Pensamento e o Movente
Ensaios e conferências

Tradução
BENTO PRADO NETO

Martins Fontes
Sao Paulo 2006
wesp
» »<”>S f*' «APS t) LB <»
Esta pbríi foi publicada originalmenie ew francês aim o título
I.A PENSÉE ET LE MOUVANT por Presses Universitaires de France, Paris.
Copyright © Prcssíf Umwsitaires de France,
Copyright © 2005, Livraria Martins Fcntss Editora Ltda.t
São Paulo, para a present? edição.

P edição 2006

Tradução
BENTO PRADO NETO

Acompanhamento editorial
Mtiríi? Fer/íandí? Alvares
Revisões gráficas
Sandra Garcia Cortes
Solange Martins
Dinaríe Zorzanelli cia Silva
Produção gráfica
Cernido Alves
Paginaçao/Foíolitos
Sfarfío 3 DcschüoíwwnÍo Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação <CIP>


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bergson, Henri, 1859-1941-


O pensamento e o movente: ensaios e conferências / Henri
Bergson ; tradução Bento Prado Neto. - São Paulo : Martins
Fontes, 2006. - (Tópicos)

Título original: La pensée et le mouvant


ISBN 85-336-2229-5

1, Bernard, Claude, 1813-1878 2. Filosofia 3. James, William,


1842-1910 4. Metafísica - Discursos, ensaios, conferências
5. Ravaisscm, Félix, 1813-1900 1. Título. II. Série.

05-8568 COD-194

índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia francesa 194

Tbdüs os direitos desta edição para o Brasil reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042
e-mail: [email protected] http:llzozow.martinsfontes.com.br
ÍNDICE

Nota introdutória................................................................ 1

I. Introdução (primeira parte)....................................... 3


II. Introdução (segunda parte)..................................... 27
III. O possível e o real.................................................. 103
MÃtyA intuição filosófica............................................... 123
A percepção da mudança...................................... 149
‘YJ. Introdução à metafísica.......................................... 183
VII. A filosofia de Claude Bernard................................. 235
VIII. Sobre o pragmatismo de William James -
Verdade c realidade............................................... 245
IX. A vida e a obra de Ravaisson................................ 259
0 PENSAMENTO E O MOVENTE

duas conferências, por eles tão cuidadosamente edita­


das, que havíamos feito em 1911 na Universidade de Ox­
ford. Para eles vão todos os nossos agradecimentos.

H.B.
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE)
Crescimento da verdade. Movimento
retrógrado do verdadeiro

Da precisão cm filosofia. ~ Os sistemas. - Por que


estes negligenciaram a questão do Tempo. - O que se
toma o conhecimento quando nele reintegramos as con­
siderações de duração. - Efeitos retroativos do juízo ver­
dadeiro. - Miragem do presente no passado. - Da histó­
ria e das explicações históricas. - Lógica de retrospecção.

O que mais faltou à filosofia foi a precisão. Os siste­


mas filosóficos não são talhados na medida da realidade
em que vivemos. São largos demais para ela. Examinem
um dentre eles, convenientemente escolhido: verão que
se aplicaria com igual propriedade a um mundo no qual
não houvesse plantas nem animais, mas apenas homens;
no qual os homens deixariam de beber e de comer; no
qual não dormiríam, não sonhariam nem divagariam; no
qual nasceríam decrépitos para terminar bebês; no qual
a energia subiría a encosta da degradação; no qual tudo
iria a contrapelo e estaria às avessas. E que um verdadei­
ro sistema é um conjunto de concepções tão abstratas e,
por conseguinte, tão vastas, que nele cabería todo o pos­
sível, e mesmo o impossível, ao lado do real. A explica­
ção que devemos considerar satisfatória é aquela que ade­
re a seu objeto: nenhum vazio entre el.es, nenhum inters­
tício no qual uma outra explicação pudesse alojar-se com
a mesma propriedade; cia convém apenas a ele, presta-
se apenas a ele. Tal pode ser a explicação científica. Ela
comporta a precisão absoluta e uma evidência completa
4 O PENSAMENTO E O MOVENTE

ou crescente. Acaso se poderia dizer o mesmo das teo­


rias filosóficas?
Uma doutrina, outrora, pareceu-nos fazer exceção, e
é provavelmente por isso que a ela nos havíamos pren­
dido em nossa primeira juventude. A filosofia de Spen­
cer visava tirar o decalque das coisas e modelar-se pelo
detalhe dos fatos. Sem dúvida, ainda procurava um pon­
to de apoio em generalidades vagas. Sentíamos perfeita-
mente a fraqueza dos Primeiros princípios. Mas essa fra­
queza parecia-nos dever-se ao fato de que o autor, ínsu-
ficicntemente preparado, não havia podido aprofundar
as "idéias últimas" da mecânica. Pretendíamos retomar
essa parte de sua obra, completá-la e consolidá-la. Pro­
curamos fazê-lo na medida de nossas forças. E assim que
fomos conduzidos à idéia de Tempo. Ali, uma surpresa
nos esperava.
Muito nos impressionou, com efeito, ver como o
tempo real, que desempenha o papel principal em toda
filosofia da evolução, escapa à matemática. Sua essência
consistindo em passar, nenhuma de suas partes está mais
aí quando outra se apresenta. A superposição de uma par­
te à outra com vistas à mensuração é, portanto, impossí­
vel, inimaginável, inconcebível. Sem dúvida, em toda
mensuração entra um elemento de convenção, e é raro
que duas grandezas que são ditas iguais sejam diretamen­
te superponíveis uma à outra. Apesar disso, é preciso que
a superposição seja possível com relação a um de seus as­
pectos ou efeitos que conserve algo delas: esse efeito, esse
aspecto são então aquilo que é medido. Mas, no caso do
tempo, a idéia de superposição implicaria um absurdo,
pois todo efeito da duração que for superponível a si mes­
mo e, por conseguinte, mensurável, terá por essência não
durar. Sabíamos perfeitamente, desde nossos anos de co-
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE) 5

légio, que a duração é medida pela trajetória de um mó­


vel e que o tempo matemático é uma linha; mas ainda
não havíamos notado que essa operação destoa radical­
mente de todas as outras operações de medida, pois não
se exerce sobre um aspecto ou um efeito representativo
daquilo que se quer medir, mas sobre algo que o exclui.
A linha que medimos é imóvel, o tempo é mobilidade. A
linha é algo já feito, o tempo aquilo que se faz e, mesmo,
aquilo que faz de modo que tudo se faça. A medida do
tempo nunca versa sobre a duração enquanto duração;
contamos apenas um certo número dc extremidades de
intervalos ou de momentos, isto é, em suma, paradas vir­
tuais do tempo. Estabelecer que um acontecimento irá se
produzir ao cabo de um tempo t é simplesmente expri­
mir que, até lá, teremos contado um número t de simul-
taneidades de um certo tipo. Entre as simultaneidades,
ocorrerá tudo o que se quiser. O tempo poderia acelerar-
se enormemente, e mesmo infinitamente: nada teria
mudado para o matemático, para o físico, para o astrô­
nomo. Profunda, no entanto, seria a diferença do ponto
de vista da consciência (refiro-me, naturalmente, a uma
consciência que não fosse solidária dos movimentos in-
tracerebrais); já não seria mais, para ela, de um dia para
o outro, de uma hora para a hora seguinte, a mesma fadi­
ga de esperar. Essa espera determinada, assim como sua
causa exterior, a ciência não pode levai’ em conta: mes­
mo quando versa sobre o tempo que se desenrola ou que
irá se desenrolar, trata-o como se estivesse desenrolado.
Aliás, isso é bastante natural. Seu papel é prever. Ela ex­
trai e retém do mundo material aquilo que é suscetível
de repetir-se e de ser calculado, por conseguinte aquilo
que não dura. Assim, ela não faz mais que insistir na di­
reção do senso comum, que é um começo de ciência: co-
6 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

mumente, quando falamos do tempo, pensamos na me­


dida da duração, e não na própria duração. Mas essa du­
ração, que a ciência elimina, que é difícil dc ser concebi­
da e expressa, sentimo-la e vivemo-la. E se investigásse­
mos o que ela é? Como aparecería ela para uma cons­
ciência que quisesse apenas vê-la, sem medi-la, que a
apreendería então sem detê-la, que por fim se tomaria a
si mesma como objeto e que, espectadora c atriz, espon­
tânea c refletida, reaproximasse, até fazer com que coin­
cidam, a atenção que se fixa e o tempo que foge?
Tal era a questão. Com ela, penetravamos no domí­
nio da vida interior, pelo qual ate então nos desinteres­
sáramos. Muito rapidamente reconhecemos a insuficiên­
cia da concepção associacionista do espírito. Essa con­
cepção, então comum à maior parte dos psicólogos e
dos filósofos, era o efeito de uma recomposição artificial
da vida consciente. O que a visão direta, imediata, sem
prejuízos interpostos havería de nos dar? Uma longa sé­
rie de reflexões e de análises nos fez afastar um por um
esses prejuízos, abandonar muitas idéias que havíamos
aceitado sem critica; finalmente, acreditamos reencon­
trar a duração interior totalmente pura, continuidade
que não é nem unidade nem multiplicidade, e que não
entra em nenhum de nossos quadros. Que a ciência po­
sitiva se houvesse desinteressado dessa duração, nada
de mais natural, pensávamos: sua função talvez seja pre­
cisamente a de compor para nós um mundo no qual pos­
samos, para a comodidade da ação, escamotear os efei­
tos do tempo. Mas como compreender que a filosofia de
Spencer, doutrina de evolução, feita para seguir o real
em sua mobilidade, seu progresso, sua maturação inte­
rior, possa ter fechado os olhos àquilo que é a própria
mudança?
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE.) 7

Essa questão iria nos levar mais tarde a retomar o


problema da evolução da vida levando em conta o tem­
po real; descobririamos então que o "evolucionismo"
spenceriano precisava ser quase que completamente re­
feito. Por enquanto, era a visão da duração que nos ab­
sorvia. Passando em revista os sistemas, constatávamos
que os filósofos não se haviam dedicado muito a ela. Ao
longo de toda a história da filosofia, tempo e espaço são
colocados no mesmo plano e tratados como coisas do
mesmo gênero. Estuda-se então o espaço, determina-se
sua natureza e função, e depois se transportam para o
tempo as conclusões obtidas. Assim, a teoria do espaço e
a do tempo espelham-se. Para passar de uma para a ou­
tra, bastou mudar uma palavra: substituiu-se "justaposi­
ção"' por "sucessão". Sistematicamente, desviou-se o olhar
da duração real. Por quê? A ciência tem suas razões para
fazê-lo; mas a metafísica, que precedeu a ciência, já ope­
rava desse modo e não possuía as mesmas razões. Exa­
minando as doutrinas, pareceu-nos que a linguagem ha­
via desempenhado aqui um papel importante. A duração
exprime-se sempre em extensão. Os termos que desig­
nam o tempo são tomados de empréstimo à língua do
espaço. Quando evocamos o tempo, é o espaço que res­
ponde a nosso chamado. A metafísica precisou confor­
mar-se aos hábitos da linguagem, os quais se regram eles
próprios pelos do senso comum.
Mas se a ciência e o senso comum estão aqui d.e acor­
do, se a inteligência, espontânea ou refletida, afasta o tem­
po real, não seria porque a destinação de nosso entendi­
mento assim o exige? Foi exatamente o que acreditamos
perceber ao estudar a estrutura do entendimento huma­
no. Pareceu-nos que uma de suas funções era justamen­
te a de mascarar a duração, seja no movimento, seja na
mudança.
1
8 O PENSAMENTO £ 0 MOVENTE

Trata-se do movimento? A inteligência só guarda


dele uma série de posições: um ponto atingido de início,
depois um outro, depois outro ainda. Objeta-se ao en­
tendimento que entre esses pontos se passa algo? Rapi­
damente ele intercala novas posições e assim por dian­
te, indefinidamente. Da transição ele desvia seu olhar. Se
insistimos, arranja-se dc modo que a mobilidade, repeli­
da para intervalos cada vez mais estreitos à medida que
aumenta o número das posições consideradas, recue, se
afaste, desapareça no infinitamente pequeno. Nada mais
natural, se a inteligência estiver destinada sobretudo a
preparar e a iluminar nossa ação sobre as coisas. Nossa
ação só se exerce comodamente sobre pontos fixos; é
portanto a fixidez que nossa inteligência procura; ela se
pergunta onde o móvel está, onde o móvel estará, por
onde o móvel passa. Ainda que anote o momento da pas­
sagem, ainda que pareça se interessar então pela dura­
ção, limita-se, ao fazê-lo, a constatar a simultaneidade
de duas paradas virtuais: parada do móvel que ela con­
sidera e parada de um outro móvel cujo curso seria su­
postamente o do tempo. Mas é sempre com imobilida-
des, reais ou possíveis, que ela quer lidar. Saltemos por
cima dessa representação intelectual do movimento, que
o desenha como uma série dc posições. Encaminhemo-
nos diretamente para ele, olhemo-lo sem conceito inter­
posto: descobrimo-lo simples c feito de uma peça só. Pros-,
sigamos então mais ainda; façamos com que ele coinci­
da com um desses movimentos incontestavelmente reais,
absolutos, que nós mesmos produzimos. Desta vez cap­
turamos a mobilidade em sua essência e sentimos que ela
se confunde com um esforço cuja duração é uma conti­
nuidade indivisível. Mas, como um certo espaço terá sido
percorrido, nossa inteligência, que procura por toda par­
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE)

te a fixidez, supõe post factum que o movimento aplicou-


se sobre esse espaço (como se ele pudesse coincidir, elo,
movimento, com a imobilidade!) e que o móvel está, su­
cessivamente, em cada um dos pontos da linha que per­
corre. Pode-se no máximo dizer que ele all teria estado
caso se houvesse detido antes, caso houvéssemos feito,
tendo cm vista um movimento mais curto, um esforço
inteiramente diferente. Daí a não ver no movimento mais
que uma serie de posições, há apenas um passo; a dura­
ção do movimento irá então se decompor cm "momen­
tos" que correspondem a cada uma das posições. Mas os
momentos do tempo e as posições do móvel não são mais
que instantâneos que nosso entendimento toma da con­
tinuidade do movimento e da duração. Com essas vistas
justapostas temos um sucedâneo prático do tempo e do
movimento que se dobra às exigências da linguagem es­
perando que se preste às do cálculo; mas temos apenas
uma recomposição artificial. O tempo e o movimento
d>ao outra coisa'.
Diriamos o mesmo acerca da mudança. O entendi­
mento vem decompô-la em estados sucessivos e distin­
tos, supostamente invariáveis. Acaso vem-se a conside­
rar mais de perto cada um desses estados, a perceber que
ele varia, a perguntar-se como ele podería durar se não
mudasse? Rapidamente, o entendimento o substitui por
uma série de estados mais curtos que se decomporão por
sua vez, se preciso for, e assim por diante, indefinidamen­
te. No entanto, como não ver que a essência da duração
é fluir c que o estável acostado ao estável não resultará

1. Se o cinematógrafo nos mostra em movimento, na tela, as vis­


tas imóveis justapostas no filme, é sob a condição de, por assim dizer,
projetar sobre essa tela, com essas vistas imóveis elas próprias, o movi­
mento que está no aparelho.
10 O PENSAMENTO E O MOVENTF.

nunca cm algo que dura? O que c real não são os "esta­


dos", simples instantâneos tomados por nós, mais uma
vez, ao longo da mudança; é, pelo contrário, o fluxo, é a
continuidade de transição, é a própria mudança. Essa mu­
dança é indivisível, ela é mesmo substancial. Se nossa in­
teligência se obstina em julgá-la inconsistente, em acres­
centar-lhe não sei que suporte, é porque a substituiu por
uma série de estados justapostos; mas essa multiplicida­
de é artificial, artificial também a unidade que nela resta­
belecemos. Aqui, há apenas um ímpeto ininterrupto de
mudança - de uma mudança sempre aderente a si mes­
ma numa duração que se alonga sem fim.

Essas reflexões despertavam em nosso espírito mui­


tas dúvidas, ao mesmo tempo em que grandes esperan­
ças. Dizíamo-nos que os problemas metafísicos talvez ti­
vessem sido mal colocados, mas que, precisamente por
essa razão, não havia mais que acreditá-los "eternos", isto
é, insolúveis. A metafísica data do dia em que Zenão de
Eléia assinalou as contradições inerentes ao movimento
e à mudança tal como a inteligência se os representa. Em
superar, em contornar por um trabalho intelectual cada
vez mais sutil essas dificuldades levantadas pela repre­
sentação intelectual do movimento e da mudança foi gas­
ta a maior parte da energia dos filósofos antigos c mo­
dernos. Foi assim que a metafísica foi levada a procurar
a realidade das coisas acima do tempo, para além daqui­
lo que se move c que muda, fora, por conseguinte, da­
quilo que nossos sentidos e nossa consciência percebem.
Desde então, a metafísica já não podia ser mais que um
arranjo de conceitos mais ou menos artificial, uma cons­
trução hipotética. Pretendia ultrapassar a experiência; na
verdade, não fazia mais que substituir a experiência mo-
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE) TI

vente e plena, suscetível de um aprofundamento cms


cente e, portanto, prenhe de revelações, por um extraio
fixado, ressequido, esvaziado, um sistema de idéias ge­
rais abstratas, retiradas dessa mesma experiência, ou an
tes, de suas camadas mais superficiais. Seria o mesmo
que dissertar sobre o envoltório do qual se libertará a
borboleta, e pretender que a borboleta volante, cambian-
te, viva, encontra sua razão dc ser e seu remate na imu­
tabilidade da película. Retiremos, pelo contrário, o en­
voltório. Despertemos a crisálida. Restituamos ao movi­
mento sua mobilidade, à mudança sua fíuidez, ao tempo
sua duração. Quem sabe se os "grandes problemas'''' in­
solúveis não ficarão na película? Não concerniam nem
ao movimento nem à mudança nem ao tempo, mas ape­
nas ao envoltório conceituai que tomavamos falsamente
por aqueles ou por um seu equivalente. A metafísica tor-
nar-se-á então a própria experiência. A duração rcvelar-
se-á tal como é, criação contínua, jorro ininterrupto de
novidade.
Pois é isso que nossa representação habitual do mo­
vimento c da mudança nos impede de ver. Se o movi­
mento é uma série de posições c a mudança uma série
de estados, o tempo é feito de partes distintas e justapos­
tas. Sem dúvida, ainda dizemos que estas se sucedem,
mas essa sucessão é então similar à das imagens de um
filme cinematográfico: o filme poderia desenrolar-se dez
vezes, cem vezes, mil vezes mais rápido sem que nada se
visse mudado naquilo que ele desenrola; caso fosse infi­
nitamente rápido, caso o desenrolamento (desta vez fora
do aparelho) se tornasse instantâneo, seriam ainda as
mesmas imagens. Portanto, a sucessão, assim entendida,
nada acrescenta; antes retira algo; marca um déficit; tra­
duz uma deficiência de nossa percepção, condenada a
12 O PENSAMENTO E O MOVENTE

detalhar o filme imagem por imagem ao invés de apreen-


dê-lo global mente. Enfim, o tempo assim considerado
não é mais que um espaço ideal no qual supomos ali­
nhados todos os acontecimentos passados, presentes ou
futuros com, em acréscimo, um impedimento para eles
de nos aparecerem em bloco: o desenrolamento em du­
ração seria esse próprio inacabamento, a adição de uma
quantidade negativa. Tai é, consciente ou inconsciente­
mente, o pensamento da maior parte dos filósofos, em
conformidade, aliás, com as exigências do entendimen­
to, com as necessidades da linguagem, com o simbolis­
mo da ciência. 'Nenhum deles procurou atributos positivos no
tempo. Tratam a sucessão como uma coexistência mal-
sucedida, e a duração como uma privação de eternida­
de. Daí vem que, por mais que façam, não consigam se rc-
presentar a novidade radical e a imprevisibilidade. Não
falo apenas dos filósofos que acreditam num encadea-
mento tão rigoroso dos fenômenos e dos acontecimen­
tos que os efeitos devem scr deduzidos das causas: estes
imaginam que o porvir está dado no presente, que o por­
vir é teoricamente legível no presente, e que, portanto,
nada lhe acrescentará dc novo. Mas mesmo aqueles, em
número muito reduzido, que acreditaram no livre-arbí-
trio, reduziram-no a uma simples "escolha" entre dois ou
mais partidos, como se esses partidos fossem "possíveis"
desenhados antecipadamente e como se a vontade se li­
mitasse a "realizar" um deles. Portanto, também admitem,
ainda que não se dêem conta disso, que tudo está dado.
De uma ação que fosse inteiramente nova (pelo menos
pelo lado de dentro), que não preexistisse de modo al­
gum, nem mesmo sob a forma de mero possível, à sua
realização, parecem não ter a mínima idéia. Tal é, no en­
tanto, a ação livre. Mas, para percebê-la assim, como aliás
ÍNTRODUÇÂO (PRIMEIRA PARTE) 13

para figurar-se toda e qualquer criação, novidade ou im


previsibilidade, é preciso reinstalar-se na duração pura.
De fato, procurem representar-se hoje a ação que
vocês realizarão amanhã, mesmo que saibam o que irão
fazer. Sua imaginação talvez lhes evoque o movimento a
ser executado; mas acerca daquilo que pensarão e expe­
rimentarão ao executá-lo, vocês nada podem saber hoje,
uma vez que seu estado de alma conterá amanhã toda a
vida que vocês terão ate então vivido com, além disso,
aquilo que lhe será acrescentado por esse momento par­
ticular. Para preencher esse estado, antecipadamente, com
o conteúdo que ele irá ter, ser-ihes-ia preciso o tempo
que separa hoje dc amanhã, nem mais nem menos, pois
vocês não poderíam diminuir nem de um único instante
a vida psicológica sem lhe modificar o conteúdo. Acaso
se pode, sem desnaturá-la, encurtar a duração de uma
melodia? A vida interior é exatamente essa melodia. Por­
tanto, supondo que saibam o que farão amanhã, de sua
ação vocês só preveem a configuração exterior; qualquer
esforço para imaginar antecipadamente seu interior irá
ocupar uma duração que, de prolongamento em prolon­
gamento, irá conduzi-los até o momento em que a ação
se exerce e no qual já não se pode mais tratar de prevê-
la. Como não será, então, se a ação for verdadeiramente
livre, isto é, criada por inteira, tanto em seu desenho ex­
terior quanto em sua coloração interna, no momento em
que se realiza?
Radical, portanto, é a diferença entre uma evolução
cujas fases contínuas se interpenetram por uma espécie
de crescimento interior e um desenrolamento cujas par­
tes distintas se justapõem. O leque que desdobramos po­
dería abrir-se cada vez mais rápido, e mesmo instanta­
neamente; desdobraria sempre o mesmo bordado, prefi-
14 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

gurado na seda. Mas uma evolução real, por pouco que se


a acelere ou que sc a desacelere, modifíca-se totalmente,
interiormente. Sua aceleração ou sua desaceleração é jus­
tamente essa modificação interna. Seu conteúdo é uma
só e mesma coisa que sua duração.
É verdade que, ao lado das consciências que vivem
essa duração inencurtável e inextensível, há sistemas ma­
teriais sobre os quais o tempo não faz mais que deslizar.
Acerca dos fenômenos que neles sc sucedem, pode-se
dizer que são o desenredamento de um leque ou, melhor,
de um filme cinematográfico. Antecipadamente calculá­
veis, preexistiam, na forma de possíveis, à sua realização.
Assim são os sistemas estudados pela astronomia, pela
física e pela química. Será que o universo material, em seu
conjunto, forma um sistema desse tipo? Quando nossa
ciência o supõe, entende simplesmente com isso que dei­
xará de lado, no universo, tudo aquilo que não é calculá­
vel. Mas o filósofo, que não quer deixar nada de lado, é
de um modo ou de outro obrigado a constatar que os es­
tados de nosso mundo material são contemporâneos da
história de nossa consciência. Como esta dura, é preciso
que aqueles se liguem de algum modo à duração real.
Teoricamente, o filme sobre o qual estão desenhados os
estados sucessivos de um sistema inteiramente calculá­
vel poderia desenrolar-se com toda e qualquer velocida­
de sem que nada se visse mudado. Realmente, essa ve­
locidade é determinada, uma vez que o desenrolamento
do filme corresponde a uma certa duração de nossa vida
interior - a esta e não a uma outra. O filme que se desen­
rola, portanto, está provavelmente vinculado a uma cons­
ciência que dura e que lhe rege o movimento. Quando
queremos preparar um copo de água com açúcar, como
dissemos, forçoso é esperar que o açúcar derreta. Essa
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE) 1.5

necessidade de esperar é o fato significativo. Exprime o


fato de que, embora possamos recortar no universo siste­
mas para os quais o tempo é apenas uma abstração, uma
relação, um número, o universo ele próprio é outra coisa.
Se pudéssemos abarcá-lo em seu conjunto, inorgânico,
mas entremeado de seres organizados, veríamo-lo tomar
incessantemente formas tão novas, tão originais, tão im­
previsíveis quanto nossos estados de consciência.
Mas temos tamanha dificuldade em perceber a dife­
rença entre a sucessão na duração verdadeira e a justa­
posição no tempo espacial, entre uma evolução e um de-
senrolamento, entre a novidade radical e um rearranjo
do preexistente, enfim, entre a criação e a mera escolha,
que importa iluminar essa distinção pelo maior número
possível de lados ao mesmo tempo. Digamos, portanto,
que na duração, considerada como uma evolução criado­
ra, há criação perpétua de possibilidade e não apenas de
realidade. Muitos repugnarão admiti-lo, por julgarem
sempre que um acontecimento não se teria realizado se
não tivesse podido realizar-se: de modo que, antes de ser
real, é preciso que ele tenha sido possível. Mas olhem de
perto: verão que "possibilidade" significa duas coisas in­
teiramente diferentes e que, na maior parte do tempo,
oscilamos de uma para a outra, brincando involuntaria­
mente com o sentido da palavra. Quando um músico
compõe uma sinfonia, sua obra era possível antes de ser-
real? Sim, se entendemos com isso que não havia obstá­
culo intransponível à sua realização. Mas, desse sentido
inteiramente negativo da palavra, passamos, sem perce­
bê-lo, para um sentido positivo: figuramo-nos que toda
coisa que se produz podería ter sido percebida antecipa
damente por algum espírito suficientemente informado
e que ela preexistia assim, sob forma de idéia, à sua rca
16 O PENSAMENTO E O MOVENTE

lização; - concepção absurda no caso de uma obra de


arte, pois, assim que o músico tem a idéia precisa e com­
pleta da sinfonia que fará, sua sinfonia está feita. A sin­
fonia, antes de ser real, não residia na qualidade de pos­
sível nem no pensamento do artista, nem, com mais for­
te razão, em nenhum outro pensamento comparável com
o nosso, mesmo que impessoal, ainda mesmo que sim­
plesmente virtual. Mas acaso não se pode dizer o mesmo
acerca de um estado qualquer do universo tomado com
todos os seres conscientes e vivos? Acaso não é ele mais
rico de novidade, de imprevisibilidade radical, do que a
sinfonia do maior mestre?
Sempre, no entanto, persiste a convicção de que,
mesmo que ele não tenha sido concebido antes de se
produzir, podería tê-lo sido e que, nesse sentido, figura
desde toda a eternidade, no estado de possível, em algu­
ma inteligência real ou virtual. Aprofundando essa ilu­
são, veriamos que ela se prende à própria essência de
nosso entendimento. As coisas e os acontecimentos pro­
duzem-se em momentos determinados; o juízo que cons­
tata a aparição da coisa ou do acontecimento só pode vir
após eles; tem, portanto, sua data. Mas essa data apaga -
se de imediato, em virtude do princípio, arraigado em
nossa inteligência, de que toda verdade é eterna. Se o
juízo é presentemente verdadeiro, deve, ao que nos pare­
ce, tê-lo sido sempre. Por mais que não estivesse ainda
formulado, punha-se a si próprio de direito, antes de ser
posto de fato. A toda afirmação verdadeira atribuímos
assim um efeito retroativo; ou antes, imprimimo-lhe um
movimento retrógrado. Como se um juízo pudesse ter
preexistido aos termos que o compõem! Como se esses
termos não datassem da aparição dos objetos que repre­
sentam! Como se a coisa e a idéia da coisa, sua realida­
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE) 17

de e sua possibilidade não fossem criadas ao mesmo


tempo quando se trata de uma forma verdadeiramente
nova, inventada pela arte ou pela natureza!
As consequências dessa ilusão são inumeráveis2. Nos­
sa apreciação dos homens c dos acontecimentos está in­
teiramente impregnada da crença no valor retrospectivo
do juízo verdadeiro, da crença num movimento retrógra­
do no tempo que seria executado automaticamente pela
verdade, uma vez posta. Pelo simples fato de se realizar,
a realidade projeta atrás de si sua sombra no passado in­
definidamente distante; parece assim ter preexistido, na
forma de possível, à sua própria realização. De onde um
erro que vicia nossa concepção do passado; de onde nos­
sa pretensão de antecipar em qualquer circunstância o
porvir, Perguntamo-nos, por exemplo, o que senão a arte,
a literatura, a civilização de amanhã; figuramo-nos em
largos traços a curva de evolução das sociedades; chega­
mos a predizer o detalhe dos acontecimentos. Decerto,
sempre poderemos vincular a realidade, uma vez efetiva­
da, aos acontecimentos que a precederam e às circuns­
tâncias nas quais ela se produziu; mas uma realidade in­
teiramente diferente (não qualquer, é verdade) ter-se-ia
vinculado de modo igualmente adequado a essas mesmas
circunstâncias e a esses mesmos acontecimentos, toma­
dos por um outro lado. Acaso se dirá então que, conside­
rando todos os lados do presente para prolongá-lo em
todas as direções, obteríamos, desde já, todos os possí­
veis entre os quais o porvir, supondo que ele escolha, es­

2. Sobre essas consequências e, mais precísamente, sobre a crença


no valor retrospectivo do juízo verdadeiro, sobre o movimento retrógrado
da verdade, pronunciamo-nos ao longo das conferências feitas na Co­
lumbia University (Nova York) em janeiro-fevereiro de 1913. Limitn-
mo-nos aqui a algumas indicações.
18 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

colherá? Mas, primeiro, esses próprios prolongamentos


podem se revelar adições de qualidades novas, criadas
peça por peça, absolutamente imprevisíveis; e, depois,
um "lado" do presente só existe como "lado" quando nos­
sa atenção o isolou, praticando assim um recorte de uma
determinada forma no conjunto das circunstâncias atuais:
como então "todos os lados" do presente existiríam an­
tes que tenham sido criadas, pelos acontecimentos ulte-
riores, as formas originais dos recortes que a atenção
pode nele executar? Esses lados, portanto, só retrospec­
tivamente pertencem ao presente de outrora, isto é, ao
passado; e não tinham mais realidade nesse presente,
quando ainda era presente, do que o têm, em nosso pre­
sente atual, as sinfonias dos músicos futuros. Para tomar
um exemplo simples, nada nos impede hoje de vincular
o romantismo do século dezenove àquilo que já havia de
romântico nos clássicos. Mas o aspecto romântico do
classicismo só se desentranhou pelo efeito retroativo do
romantismo uma vez surgido. Se não tivesse havido um
Rousseau, um Chateaubriand, um Vigny, um Victor Hugo,
não apenas nunca teríamos percebido, mas também não
teria realmente havido romantismo nos clássicos de ou­
trora, pois esse romantismo dos clássicos só se realiza ao
recortarmos, em sua obra, um determinado aspecto, e o
recorte, com sua forma particular, existia tão pouco na li­
teratura clássica antes da aparição do romantismo quan­
to existe, na nuvem que passa, o desenho divertido que
um artista nela perceberá, organizando a massa amorfa. ao
sabor de sua fantasia. O romantismo operou retroativa-
mente sobre o classicismo, corno o desenho do artista
sobre essa nuvem. Retroativamente, criou sua própria
prefiguração no passado e uma explicação de si mesmo
por seus antecedentes.
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE) I

O que significa que é preciso um acaso feliz, uma


chance excepcional para que anotemos justamente, na
realidade presente, aquilo que terá mais interesse para o
historiador porvir. Quando esse historiador considerar o
presente que é nosso, nele procurará sobretudo a expli­
cação do presente que é dele e, mais particularmente,
daquilo que seu presente contiver em termos de novida­
de. Dessa novidade, não podemos ter hoje a menor idéia,
se é que se trata de uma criação. Como então nos regra­
ríamos hoje por ela para escolher dentre os fatos aqueles
que cabe registrar, ou antes, para fabricar fatos recortan­
do segundo essa indicação a realidade presente? O fato
capital dos tempos modernos é o advento da democra­
cia. Que no passado, tal como foi descrito pelos contem­
porâneos, encontremos uns seus sinais batedores, é algo
incontestável; mas as indicações talvez as mais interes­
santes só teriam sido anotadas por eles se tivessem sabi­
do que a humanidade caminhava nessa direção; ora, essa
direção de trajeto não estava mais marcada do que outra
qualquer, ou antes, não existia ainda, tendo sido criada
pelo próprio trajeto, quero dizer, pelo movimento avan­
te dos homens que progressivamente conceberam e rea­
lizaram a democracia. Os sinais batedores, portanto, só
são sinais aos nossos olhos porque agora conhecemos o
trajeto, porque o trajeto foi feito. Nem o trajeto, nem sua
direção, nem, por conseguinte, seu termo estavam dados
quando esses fatos se produziam: portanto, esses fatos
ainda não eram sinais. Podemos ir mais longe. Dizíamos
que os fatos mais importantes a esse respeito podem ter
sido negligenciados pelos contemporâneos. Mas a verda­
de é que esses fatos, na sua maior parte, ainda não exis­
tiam nessa época como fatos; existiríam retrospectiva -
mente para nós se pudéssemos agora ressuscitar in te-
20 O PENSAMENTO E O MOVENTE

gralmente a época e fazer passear sobre o bloco indiviso


da realidade de então o feixe de luz de forma inteira­
mente particular que chamamos de idéia democrática: as
porções assim iluminadas, assim recortadas no todo se­
gundo contornos tão originais e tão imprevisíveis quan­
to o desenho de um grande mestre, seriam os fatos pre­
paratórios da democracia. Enfim, para legar a nossos des­
cendentes a explicação, por seus antecedentes, do acon­
tecimento essencial do tempo deles, seria preciso que
esse acontecimento já estivesse figurado diante de nos­
sos olhos e que não houvesse duração real. Transmitímos
às gerações futuras aquilo que nos interessa, aquilo que
nossa atenção considera e mesmo desenha à luz de nos­
sa evolução passada, mas não aquilo que o porvir terá
tornado interessante para eles pela criação de um inte­
resse novo, por uma direção nova impressa à sua aten­
ção. Em outros termos, enfim, as origens históricas do
presente, naquilo que este tem de mais importante, não
poderíam ser completamente elucidadas, pois só seriam
reconstituídas em sua integralidade se o passado pudes­
se ter sido expresso pelos contemporâneos em função de
um porvir indeterminado que, por isso mesmo, era im­
previsível.
Tomemos uma cor tal como o alaranjado3. Como co­
nhecemos também o vermelho e o amarelo, podemos con­
siderar o alaranjado como amarelo, num sentido, ver­
melho no outro, e dizer que se trata de um composto de
amarelo e de vermelho. Mas suponham que, o alaran-
jado existindo tal como é, o amarelo e o vermelho ainda
não tivessem surgido no mundo: o alaranjado seria ele

3. O presente estudo foi escrito antes de nosso livro Les deux sources
de la morale et de la religion, no qual desenvolvemos a mesma comparação.
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE) 21

já composto por essas duas cores? Evidentemente, não.


A sensação de vermelho e a sensação de amarelo, impli­
cando todo um mecanismo nervoso e cerebral ao mes­
mo tempo que certas disposições especiais da consciência,
são criações da vida, que se produziram, mas poderíam
não ter se produzido; e se nunca tivesse havido, nem em
nosso planeta nem em nenhum outro, seres que experi­
mentassem essas duas sensações, a sensação de alaran­
jado teria sido uma sensação simples; nunca teriam figu­
rado nela, como componentes ou como aspectos, as sen­
sações de amarelo e de vermelho. Reconheço que nossa
lógica habitual protesta. Ela diz: "A partir do momento
em que as sensações de amarelo e de vermelho entram
hoje na composição da sensação do alaranjado, sempre
entraram nela, mesmo se houve um tempo em que ne­
nhuma das duas existia efetivamente: ali estavam vir­
tualmente." Mas é que nossa lógica habitual é uma lógi­
ca de retrospecção. Ela não pode se impedir de repelir
para o passado, no estado de possibilidades ou de virtua-
lidades, as realidades atuais, de modo que aquilo que
agora é composto deve, a seus olhos, tê-lo sido sempre.
Não admite que um estado simples possa, permanecen­
do aquilo que ele é, se tornar um estado composto ape­
nas porque a evolução criou pontos de vista novos a par­
tir dos quais considerá-lo e, por isso mesmo, elementos
múltiplos nos quais analisá-lo idealmente. Não quer acre­
ditar que esses elementos, caso não tivessem surgido como
realidades, também não teriam existido anteriormente
como possibilidades, a possibilidade de uma coisa sendo
sempre (salvo no caso em que essa coisa é um arranjo
inteiramente mecânico de elementos preexistentes) ape­
nas a miragem da realidade, uma vez surgida, no passa­
do indefinido. Se essa lógica repele para o passado, na
22 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

forma de possível, aquilo que surge como realidade no


presente, é justamente porque não quer admitir que algo
surja, que algo se crie, que o tempo seja eficaz. Numa
forma ou numa qualidade novas, não vê mais que um
rearranjo do antigo, nada de absolutamente novo. Toda
multiplicidade se resolve para ela num número definido
de unidades. Não aceita a idéia de uma multiplicidade
indistinta e mesmo indivisa, puramente intensiva ou qua­
litativa, que, ao mesmo tempo em que permanecendo o
que ela é, compreenderá um número indefinidamente
crescente de elementos à medida que forem aparecendo
no mundo os novos pontos de vista a partir dos quais se
pode considerá-la. Decerto, não se trata de renunciar a
essa lógica nem de se insurgir contra ela. Mas é preciso
alargá-la, flexibilizá-la, adaptá-la a uma duração na qual
a novidade jorra incessantemente e na qual a evolução é
criadora.
Tal era a direção preferida em que nos embrenháva-
mos. Muitas outras se abriam à nossa frente, à nossa vol­
ta, a partir do centro no qual nos havíamos instalado para
recuperar a duração pura. Mas prendíamo-nos a esta, por­
que havíamos escolhido de saída, para pôr à prova nos­
so método, o problema da liberdade. Desse modo, nós
nos reinstalaríamos no fluxo da vida interior, do qual a fi­
losofia com muita freqüência não nos parecia reter mais
que o congelamento superficial. O romancista e o mora­
lista não haviam ido, nessa direção, mais longe do que o
filósofo? Talvez; mas era apenas por certos lados, sob a
pressão da necessidade, que estes haviam rompido o obs­
táculo; até então, nenhum havia cogitado ir metodica­
mente "em busca do tempo perdido". Seja lá como for, de­
mos apenas indicações a esse respeito em nosso primei­
ro livro, e limitamo-nos novamente a alusões no segun­
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE) 23

do, quando comparamos o plano da ação - no qual o pas­


sado se contrai no presente - ao plano do sonho, no qual
se desdobra, indivisível e indestrutível, a totalidade do pas­
sado. Mas se cabia à literatura empreender assim o estu­
do da alma no concreto, a partir de exemplos individuais,
o dever da filosofia parecia-nos ser o de pôr aqui as con­
dições gerais da observação direta, imediata, de si por si.
Essa observação interna é falseada pelos hábitos que
contraímos. A alteração principal é sem dúvida aquela
que criou o problema da liberdade - um pseudoproble-
ma, nascido de uma confusão da duração com a exten­
são. Mas havia outros que pareciam ter a mesma origem:
nossos estados de alma parecem-nos enumeráveis; alguns
deles, assim dissociados, teriam uma intensidade men­
surável; acreditamos poder substituir todo e cada um de­
les pelas palavras que os designam e que doravante os
recobrirão; atribuímo-lhes então a fixidez, a descontinui-
dade, a generalidade das próprias palavras. É esse envol­
tório que cabe retomar, para rasgá-lo. Mas só o retoma­
remos se considerarmos primeiro sua figura e estrutura,
se, além disso, compreendermos sua destinação. E de na­
tureza espacial, e tem uma utilidade social. A espaciali-
dade, portanto, e, nesse sentido inteiramente especial, a
sociabilidade são aqui as verdadeiras causas da relativi­
dade de nosso conhecimento. Afastando esse véu inter­
posto, voltamos ao imediato e tocamos num absoluto.
Dessas primeiras reflexões resultaram conclusões que
felizmente se tornaram quase banais, mas que parece­
ram então temerárias. Elas pediam à psicologia que rom­
pesse com o associacionismo, que era universalmente ad­
mitido, senão como doutrina, pelo menos como método.
Exigiam ainda outra ruptura, que apenas entrevíamos.
Ao lado do associacionismo, havia o kantismo, cuja in-
24 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

fluência, aliás frequentemente combinada com a primei­


ra, era não menos poderosa e não menos geral. Aqueles
que repudiavam o positivismo de um Comte ou o agnos-
licismo de um Spencer não ousavam ir até a contestação
da concepção kantiana da relatividade do conhecimento.
Kant havia estabelecido, dizia-se, que nosso pensamen­
to se exerce sobre uma matéria espalhada antecipada­
mente no Espaço e no Tempo e desse modo preparada
especialmentc para o homem: a "coisa em si" escapa-nos;
seria preciso, para atingi-la, uma faculdade intuitiva que
não possuímos. Pelo contrário, resultava de nossa análi­
se que pelo menos uma parte da realidade, nossa pessoa,
pode ser recuperada em sua pureza natural. Aqui, em to­
do caso, os materiais de nosso conhecimento não foram
criados ou triturados e deformados por não sei que gê­
nio maligno que, depois, teria jogado num recipiente
artificial, como nossa consciência, uma poeira psicoló­
gica. Nossa pessoa nos aparece tal como ela é "em si",
assim que nos libertamos de hábitos que foram contraí­
dos para nossa maior comodidade. Mas o mesmo não
valería para outras realidades, talvez mesmo para to­
das? A "relatividade do conhecimento", que detinha a
arrancada da metafísica, seria ela original e essencial?
Não seria antes acidental e adquirida? Não proviría mui­
to simplesmente do fato de que a inteligência contraiu
hábitos necessários à vida prática? Esses hábitos, trans­
postos para o domínio da especulação, põem-nos em
presença de uma realidade deformada ou reformada, em
todo caso arranjada; mas o arranjo não se impõe a nós
inelutavelmente; provém de nós; o que nós fizemos, nós
podemos desfazê-lo; e entramos então em contato dire­
to com a realidade. Não era, portanto, apenas uma teo­
ria psicológica, o associacionismo, que afastavamos, era
INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE} ?!i

também, e por uma razão análoga, uma filosofia geral


como o kantismo e tudo que a ela se vinculava. Ambas, en
tão quase que universalmente aceitas em suas grandes
linhas, apareciam-nos como impedimenta que impossibi­
litavam filosofia e psicologia de avançar.
Faltava então avançar. Não bastava afastar o obstá­
culo. De fato, empreendemos o estudo das funções psi­
cológicas, depois o da relação psicofisiológica, depois o
da vida em geral, sempre procurando a visão direta, su­
primindo assim problemas que não concerniam às coisas
mesmas, mas sim à sua tradução em conceitos artificiais.
Não retraçaremos aqui uma história cujo primeiro resul­
tado seria mostrar a extrema complicação de um méto­
do aparentemente tão simples; voltaremos a falar disso,
aliás, muito rapidamente, no próximo capítulo. Mas, uma
vez que começamos por dizer que havíamos pensado an­
tes de tudo na precisão, terminemos fazendo notar que
a precisão não podia ser obtida, a nosso ver, por nenhum
outro método. Pois a imprecisão é normalmente a inclu­
são de uma coisa num gênero excessivamente vasto, coi­
sas e gêneros correspondendo, aliás, a palavras que pree-
xistiam. Mas se começamos por afastar os conceitos já
prontos, se nos brindamos com uma visão direta do real,
se subdividimos então essa realidade levando em conta
suas articulações, os conceitos novos que de um modo ou
de outro teremos de formar para nos exprimir serão des­
ta vez talhados na exata medida do objeto: a imprecisão
só poderá nascer de sua extensão a outros objetos que
eles abarcam igualmente em sua generalidade, mas que
deverão ser estudados neles mesmos, fora desses concei­
tos, quando se quiser conhecê-los por sua vez.
CAPÍTULO II
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE)
Da posição dos problemas

Duração c intuição. - Natureza do conhecimento


intuitivo. - Em que sentido clc deve ser claro. - Duas
espécies de clareza. - A inteligência. - Valor do conhe­
cimento intelectual. - Abstrações e metáforas. - A me­
tafísica e a ciência. - Sob que condição elas poderão
ajudar-se mutuamente. - Do misticismo. - Da indepen­
dência de espírito. - Cabería aceitar os "termos" dos
problemas? - A filosofia da cidade. - As idéias gerais. -
Os verdadeiros e os falsos problemas. - O criticismo
kantiano e as teorias do conhecimento. - A ilusão "in-
telectualista". - Métodos de ensino. - O homo loquax. -
O filósofo, o cientista e o "homem inteligente".

Essas considerações iniciais sobre a duração pare-


ciam-nos decisivas. Gradualmente, fizeram-nos erigir a
intuição em método filosófico. "Intuição" é, aliás, uma
palavra frente à qual hesitamos longamente. De todos os
termos que designam um modo de conhecimento, ainda
é o mais apropriado; e, no entanto, presta-se a confusão.
Pelo fato de que um Schelling, um Schopenhauer e ou­
tros já recorreram à intuição, pelo fato de que opuseram,
em maior ou menor grau, a intuição à inteligência, po-
der-se-ia acreditar que aplicavamos o mesmo método.
Como se a intuição deles não fosse uma procura imedia­
ta do eterno! Como se para nós não se tratasse, pelo
contrário, de reencontrar primeiro a duração verdadeira.
Numerosos são os filósofos que sentiram a incapacidade
do pensamento conceituai em. atingir o fundo do espíri­
to. Numerosos, por conseguinte, aqueles que falaram de
28 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

uma faculdade supra-intelectual de intuição. Mas, como


acreditaram que a inteligência operava no tempo, con­
cluíram a partir daí que ultrapassar a inteligência consis­
tia em sair do tempo. Não viram que o tempo intelectua­
lizado é espaço, que a inteligência trabalha sobre o fan­
tasma da duração, e não sobre a própria duração, que a
eliminação do tempo é o ato habitual, normal, banal, de
nosso entendimento, que a relatividade de nosso conhe­
cimento do espírito provém precisamente disso e que,
desde então, para passar da intelecção à visão, do relati­
vo ao absoluto, não há que sair do tempo (já saímos dele);
cabe, pelo contrário, reinserir-se na duração e recuperar
a realidade na mobilidade que é a sua essência. Uma in­
tuição que pretende se transportar de um pulo para o
eterno atém-se ao intelectual. Simplesmente substitui os
conceitos que a inteligência fornece por um conceito úni­
co que os resume todos e que, por conseguinte, é sempre
o mesmo, seja lá qual for o nome que lhe derem; a Subs­
tância, o Eu, a Idéia, a Vontade. A filosofia, assim enten­
dida, necessariamente panteística, não terá dificuldade
em explicar dedutívamente todas as coisas, uma vez que
se terá brindado antecipadamente, num princípio que é
o conceito dos conceitos, com todo o real e todo o pos­
sível. Mas essa explicação será vaga e hipotética, essa uni­
dade será artificial e essa filosofia aplicar-se-ia com igual
propriedade a um mundo inteiramente diferente do nos­
so. Quão mais instrutiva seria uma metafísica realmente
intuitiva, que seguisse as ondulações do real! Já não abar­
caria mais de um só golpe a totalidade das coisas; mas de
cada uma daria uma explicação que a ela se adaptaria exa­
tamente, exclusivamente. Não começaria por definir ou
descrever a unidade sistemática do mundo: quem sabe
se o mundo é efetivamente uno? Apenas a experiência
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 29

poderá dizê-lo e a unidade, caso exista, aparecerá ao ter­


mo da procura como um resultado; impossível pô-la dc
saída como um princípio. Será, aliás, uma unidade rica e
plena, a unidade de uma continuidade, a unidade de nos­
sa realidade e não essa unidade abstrata e vazia, provin-
da dc uma generalização suprema, que seria com a mes­
ma propriedade a unidade de qualquer mundo possível.
E verdade que a filosofia exigirá então um esforço novo
para cada novo problema. Nenhuma solução será dedu­
zida geometricamente de outra. Nenhuma verdade im­
portante será obtida pelo prolongamento de uma verda­
de já adquirida. Será preciso renunciar a fazer com que a
ciência universal caiba virtualmente num princípio.
A intuição de que falamos, então, versa antes de tudo
sobre a duração interior. Apreende uma sucessão que não
é justaposição, um crescimento por dentro, o prolonga­
mento ininterrupto do passado num presente que avan­
ça sobre o porvir. E a visão direta do espírito pelo espíri­
to. Nada mais de interposto; nada de refração através do
prisma do qual uma das faces é espaço e a outra é lin­
guagem. Ao invés de estados contíguos a estados, que se
tornarão palavras justapostas a palavras, eis a continuida­
de indivisível e, por isso mesmo, substancial do fluxo da
vida interior. Intuição, portanto, significa primeiro cons­
ciência, mas consciência imediata, visão que mal se dis­
tingue do objeto visto, conhecimento que é contato e
mesmo coincidência. - É, em segundo lugar, consciência
alargada, premendo contra os bordos de um inconscien­
te que cede e que resiste, que se rende e que se retoma:
através de alternâncias rápidas de obscuridade e de luz,
faz-nos constatar que o inconsciente está aí; contra a es­
trita lógica, afirma que por mais que o psicológico seja
algo consciente, há não obstante um inconsciente psico­
30 O PENSAMENTO E O MOVENTE

lógico. - Não vai ela mais além? Seria ela apenas a intui­
ção de nós mesmos? Entre nossa consciência e as outras
consciências a separação é menos marcada do que entre
nosso corpo e os outros corpos, pois é o espaço que faz
as divisões nítidas. A simpatia e a antipatia irrcfletidas,
que são tão frequentemente divinatórias, atestam uma
interpenetração possível das consciências humanas. Ha­
vería então fenômenos de endosmose psicológica. A in­
tuição introduzir-nos-ia na consciência em geral. - Mas
simpatizamos nós apenas com consciências? Se todo ser
vivo nasce, desenvolve-se e morre, se a vida é uma evo­
lução e se a duração é aqui uma realidade, não havería
também uma intuição do vital e, por conseguinte, uma
metafísica da vida, que prolongaria a ciência do vivo? De­
certo, a ciência há de nos dar de forma cada vez melhor
a físico-química da matéria organizada; mas a causa pro­
funda da organização, com relação à qual vemos perfei-
tamente que não entra nem no quadro do puro mecanis­
mo nem no da finalidade propriamente dita, que não é
nem unidade pura nem multiplicidade distinta, que nos­
so entendimento, enfim, sempre caracterizará por sim­
ples negações, será que não a atingiremos ao recuperar
pela consciência o elã da vida que está em nós? - Pode­
mos ir mais longe ainda. Para além da organização, a
matéria inorganizada aparece-nos sem dúvida como de-
componível em sistemas sobre os quais o tempo desliza
sem penetrar, sistemas que são da alçada da ciência e aos
quais o entendimento se aplica. Mas o universo material,
em seu conjunto, deixa na espera nossa consciência; ele
próprio espera. Ou ele dura, ou é solidário de nossa du­
ração. Quer se vincule ao espírito por suas origens, quer
por sua função, em ambos os casos ele é da alçada da in­
tuição por tudo aquilo que contém de mudança e de mo­
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 31

vimento reais. Acreditamos precisamente que a idéia de


diferencial, ou antes, de fluxão, foi sugerida à ciência por
uma visão desse gênero. Metafísica por suas origens, tor­
nou-se científica à medida que se fazia rigorosa, isto é,
exprimível em termos estáticos. Em suma, a mudança
pura, a duração real, é coisa espiritual ou impregnada de
espiritualidade. A intuição é aquilo que atinge o espírito,
a duração, a mudança pura. Seu domínio próprio sendo o
espírito, quer apreender nas coisas, mesmo materiais, sua
participação na espiritualidade - diriamos na divindade,
se não soubéssemos tudo o que ainda se mistura de hu­
mano à nossa consciência, mesmo depurada e espiritua­
lizada. Essa mistura de humanidade é justamente o que
faz com que o esforço de intuição possa se realizar em al­
turas diferentes, em pontos diferentes, e produzir cm di­
versas filosofias resultados que não coincidem entre si,
ainda que não sejam de modo algum inconciliáveis.
Que não nos peçam, então, uma definição simples e
geométrica da intuição. Será por demais fácil mostrar que
tomamos a palavra em acepções que não se deduzem
matematicamente umas das outras. Um eminente filóso­
fo danes assinalou quatro delas. Nós, de nossa parte, en­
contraríamos um número maior1. Acerca daquilo que não
é abstrato e convencional, mas real e concreto, com mais
forte razão acerca daquilo que não é reconstituível com
componentes conhecidas, acerca da coisa que não foi re­
cortada no todo da realidade pelo entendimento nem pelo
senso comum nem pela linguagem, não se pode dar uma
idéia a não ser tomando dela vistas múltiplas, comple­
mentares e não equivalentes. Deus nos livre e guarde de
comparar o pequeno com o grande, nosso esforço com o

1. Sem no entanto incluir nesse número, tais e quais, as quatro acep­


ções que ele acreditou perceber. Aludimos aqui a Harald Hõffding.
32 O PENSAMENTO E O MOVENTE

dos mestres! Mas a variedade das funções e dos aspec­


tos da intuição, tal como a descrevemos, não c nada per­
to da multiplicidade de significações que as palavras "es­
sência" e "existência" assumem em Espinosa ou os ter­
mos "forma", "potência", "ato", ... etc., em Aristóteles.
Percorram a lista dos sentidos da palavra eíSoç no Index
Aristotelicus: verão o quanto diferem. Se considerarmos
dois que estejam suficientemente afastados um do outro,
parecerão quase se excluir. Não se excluem, porque a ca­
deia dos sentidos intermediários os liga entre si. Fazen­
do o esforço necessário para abarcar o conjunto, perce­
bemos que estamos no real e não diante dc uma essência
matemática que podería caber, ela sim, numa fórmula
simples.
Há no entanto um sentido fundamental: pensar in­
tuitivamente é pensar em duração. A inteligência parte
ordinariamente do imóvel e reconstrói como pode o mo­
vimento com imobilidades justapostas. A intuição parte
do movimento, põe-no, ou antes, percebe-o como a pró­
pria realidade e não vê na imobilidade mais que um mo­
mento abstrato, instantâneo que nosso espírito tomou
de uma mobilidade. A inteligência brinda-se ordinaria­
mente com coisas, entendendo com isso algo estável, e
faz da mudança um acidente que lhe vir ia por acréscimo.
Para a intuição, o essencial é a mudança: quanto à coisa,
tal como a inteligência a entende, ela é um corte pratica­
do no meio do devir e erigido por nosso espírito em subs­
tituto do conjunto. O pensamento representa-se ordina­
riamente o novo como um novo arranjo de elementos
preexistentes; para ele, nada se perde, nada se cria. A in­
tuição, vinculada a uma duração que é crescimento, nela
percebe uma continuidade ininterrupta de imprevisível
novidade; ela vê, ela sabe que o espírito retira de si mes­
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 33

mo mais do que possui, que a espiritualidade consiste jus­


tamente nisso e que a realidade, impregnada de espírito,
é criação, O trabalho habitual do pensamento é fácil e
prolonga-se tanto quanto quisermos. A intuição é árdua
e não podería durar, Intelecção ou intuição, o pensamen­
to sem dúvida emprega sempre a linguagem; e a intui­
ção, como todo pensamento, acaba por se alojar em con­
ceitos: duração, multiplicidade qualitativa ou heterogê­
nea, inconsciente - diferencial, mesmo, se tomarmos a
noção tal como era no começo. Mas o conceito de ori­
gem intelectual é de imediato claro, pelo menos para um
espírito que possa despender o esforço necessário, ao
passo que a idéia provinda de uma intuição começa de
ordinário por ser obscura, seja lá qual for nossa força de
pensamento. É que há duas espécies de clareza.
Uma idéia nova pode ser clara porque nos apresen­
ta, simplesmente arranjadas em uma nova ordem, idéias
elementares que já possuíamos. Nossa inteligência, não
encontrando então no novo nada além do antigo, sente-
se em território conhecido; ela está à vontade; ela "com­
preende". Tal é a clareza que desejamos, que procura­
mos, e sempre somos gratos a quem no-la traz. Há outra,
que sofremos e que, aliás, só se impõe com o tempo. É a
clareza da idéia radicalmente nova e absolutamente sim­
ples, que capta mais ou menos uma intuição. Como não
a podemos reconstituir com elementos preexistentes,
uma vez que não tem elementos, e como, por outro lado,
compreender sem esforço consiste em recompor o novo
com o antigo, nosso primeiro movimento é o de dizê-la
incompreensível. Mas aceitemo-la provisoriamente, pas­
seemos com ela pelos diversos departamentos de nosso
conhecimento: veremo-la, ela obscura, dissipar obscuri
dades. Por meio dela, problemas que julgavamos insolú
34 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

veis irão resolver-se, ou antes, dissolver-se, seja para de­


saparecer definitivamente, seja para se pôr de outro modo.
Daquilo que ela tiver feito em prol desses problemas be-
neficiar-se-á então por sua vez. Cada um deles, intelec­
tual, lhe comunicará algo de sua intelectualidade. Assim
intelectualizada, poderá ser focada novamente sobre os
problemas que a terão servido após terem-se servido
dela; dissipará ainda mais a obscuridade que os envolvia
e, com isso, tornar-se-á ela própria mais clara. Cabe por­
tanto distinguir as idéias que guardam para si mesmas
sua luz, fazendo-a, aliás, penetrar de imediato nos míni­
mos recantos, daquelas cuja irradiação c exterior, ilumi­
nando toda uma região do pensamento, Estas podem co­
meçar por serem interiormente obscuras; mas a luz que
projetam a. seu redor volta por reflexão, penetra-as cada
vez mais profundamente; e têm então o duplo poder dc
iluminar o resto e de se iluminarem a si mesmas.
Não obstante, cabe dar-lhes o tempo necessário. O
filósofo nem sempre tem essa paciência. O quanto não é
mais simples ater-sc às noções armazenadas na lingua­
gem! Essas idéias foram formadas pela inteligência ao
mesmo passo de suas necessidades. Correspondem a um
recorte da realidade segundo as linhas que cabe seguir
para agir comodamente sobre ela. O mais das vezes, dis­
tribuem os objetos e os fatos segundo a vantagem que
deles podemos extrair, jogando atabalhoadamente no
mesmo compartimento intelectual tudo o que diz respeito
à mesma necessidade. Quando reagimos identicamente
a percepções diferentes, dizemos que estamos diante de
objetos "do mesmo gênero". Quando reagimos em dois
sentidos contrários, repartimos os objetos em dois "gêne­
ros opostos". Será claro, então, por definição, aquilo que
puder se resolver em generalidades assim obtidas, obs­
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 35

curo o que a elas não puder ser reduzido. Desse modo se


explica a marcante inferioridade do ponto de vista intui­
tivo na controvérsia filosófica. Ouçam a discussão de
dois filósofos, um dos quais pugna pelo determinismo, o
outro pela liberdade: é sempre o determinista que pa­
rece ter razão. Ele pode ser novato e seu adversário ex­
perimentado. Pode advogar desleixada mente sua causa,
ao passo que o outro transpira sangue pela sua. Sempre
dirão que ele é simples, que ele é claro, que ele é verda­
deiro. Ele o é fácil e naturalmentc, tendo apenas que jun­
tar pensamentos já prontos e frases já feitas: ciência, lin­
guagem, senso comum, toda a inteligência está a seu ser­
viço. A crítica de uma filosofia intuitiva é tão fácil e está
tão certa de ser bem recebida que sempre irá tentar o ini­
ciante. Mais tarde poderá vir o arrependimento - a me­
nos, no entanto, que haja incompreensão nativa e, por
despeito, ressentimento pessoal com respeito a tudo que
não é redutível à letra, a tudo que é propriamente espí­
rito. Isto acontece, pois a filosofia, ela também, tem seus
escribas e seus fariseus.

Conferimos portanto à metafísica um objeto limita­


do, principalmente o espírito, e um método especial, an­
tes de tudo a intuição. Ao fazê-lo, distinguimos clara­
mente a metafísica da ciência. Mas ao fazê-lo também
lhes atribuímos um valor igual. Acreditamos que podem,
ambas, tocar o fundo da realidade. Rejeitamos as teses
sustentadas pelos filósofos, aceitas pelos cientistas, sobre
a relatividade do conhecimento e a impossibilidade de
atingir o absoluto.
A ciência positiva, com efeito, dirige-se à observação
sensível. Obtém assim materiais cuja elaboração confia
à faculdade de abstrair e de generalizar, ao juízo e ao ra
36 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

ciocínio, à inteligência. Tendo outrora partido da mate­


mática pura, continuou pela mecânica, depois pela físi­
ca e a química; chegou já tarde à biologia. Seu domínio
primitivo, que permaneceu seu domínio preferido, é o da
matéria inerte. Está menos à vontade no mundo organi­
zado, no qual só caminha com um passo firme quando
se apoia na física c na química; prende-sc àquilo que há
dc físico-químico nos fenômenos vitais antes que àquilo
que é propriamente vital no vivo. Mas é grande seu em­
baraço quando chega ao espírito. Isso não quer dizer que
a ciência não possa obter dele algum conhecimento; mas
esse conhecimento torna-se tanto mais vago quanto mais
sc distancia da fronteira comum ao espírito e à matéria.
Nesse novo terreno não se avançaria nunca, como no
antigo, fiando-se exclusivamente na força da lógica. In­
cessantemente é preciso recorrer do "espírito geométri­
co" junto ao "espírito de finura": ainda assim, há sempre
algo de metafórico nas fórmulas em que desembocamos,
por abstratas que sejam, como so a inteligência fosse
obrigada a transpor o psíquico em físico para compreen­
dê-lo e exprimi-lo. Pelo contrário, assim que volta à ma­
téria inerte, a ciência que procede da pura inteligência
sente-se novamente em casa. Isso nada tem de espanto­
so. Nossa inteligência é o prolongamento de nossos sen­
tidos. Antes de especular, é preciso viver, e a vida exige
que tiremos partido da matéria, seja com nossos órgãos,
que são utensílios naturais, seja com os utensílios pro­
priamente ditos, que são órgãos artificiais. Muito antes
que tivesse havido uma filosofia e uma ciência, o papel
da inteligência já era o de fabricar instrumentos e guiar a
ação de nosso corpo sobre os corpos circundantes. A
ciência levou esse trabalho da inteligência bem mais lon­
ge, mas não mudou sua direção. Visa, antes de tudo, tor-
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 37

nar-nos senhores da matéria. Mesmo quando especula,


preocupa-se ainda em agir, o valor das teorias científicas
sendo sempre medido pela solidez do poder que nos dão
sobre a realidade. Mas não é exatamente isso que deve
nos inspirar plena confiança na ciência positiva e tam­
bém na inteligência, seu instrumento? Se a inteligência é
feita para utilizar a matéria, é pela estrutura da matéria,
sem dúvida, que se modelou a da inteligência. Tal é, pelo
menos, a hipótese mais simples e mais provável. A ela
deveremos nos ater enquanto não nos for demonstrado
que a inteligência deforma, transforma, constrói, seu ob­
jeto ou só toca sua superfície, ou só apreende sua apa­
rência. Ora, para essa demonstração, nunca se invocou
nada além das dificuldades insolúveis nas quais a filoso­
fia cai, a contradição consigo mesma na qual a inteligên­
cia pode se enredar quando especula sobre o conjunto
das coisas: dificuldades e contradições nas quais é natu­
ral que desemboquemos, com efeito, se a inteligência
está especialmcntc destinada ao estudo de uma parte e
se pretendemos não obstante empregá-la no conheci­
mento do todo. Mas isso é dizer pouco. É impossível
considerar o mecanismo de nossa inteligência c também
o progresso de nossa ciência sem chegar à conclusão de
que entre a inteligência e a matéria há efetivamente si­
metria, concordância, correspondência. De um lado, a
matéria resolve-se cada vez mais, aos olhos do cientista,
cm relações matemáticas e, de outro, as faculdades es­
senciais de nossa inteligência só funcionam com uma
precisão absoluta quando se aplicam à geometria. Sem
dúvida, a ciência matemática podería não ter assumido,
na origem, a forma que os gregos lhe deram. Sem dúvi­
da, também, precisa adstringir-se, seja lá que forma ado­
tar, ao emprego de signos artificiais. Mas, anteriormente
38 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

a essa matemática formulada, que encerra uma grande


parte dc convenção, há uma outra, virtual oli implícita,
que é natural ao espírito humano. Se a necessidade de
operar sobre certos signos torna a abordagem da mate­
mática difícil para muitos dentre nós, em compensação,
assim que o obstáculo foi vencido, o espírito move-se
nesse domínio com uma facilidade que não encontra em
nenhum outro lugar, a evidência sendo aqui imediata e,
teoricamente, instantânea, o esforço para compreender
existindo o mais das vezes de fato, mas não de direito:
em toda outra ordem de estudos, pelo contrário, é preci­
so, para compreender, um trabalho de maturação do
pensamento que de certa forma permanece aderente ao
resultado, preenche essencialmente duração e não pode­
ría ser concebido, nem mesmo teoricamente, como ins­
tantâneo. Em suma, poderiamos acreditar num distan­
ciamento entre a matéria e a inteligência caso só consi­
derássemos, na matéria, as impressões superficiais feitas
sobre nossos sentidos e deixássemos a nossa inteligência
com a forma vaga e esfumada que tem em suas opera­
ções cotidianas. Mas quando devolvemos a inteligência a
seus contornos precisos e quando aprofundamos sufi­
cientemente nossas impressões sensíveis para que a ma­
téria comece a nos oferecer o interior de sua estrutura,
descobrimos que as articulações da inteligência vêm su­
perpor-se exatamente às da matéria. Não vemos, por­
tanto, por que a ciência da matéria não havería de atingir
um absoluto. Ela atribui-se instintivamente esse alcance
c toda crença natural deve ser tida por verdadeira, toda
aparência por realidade, enquanto não se tiver estabe­
lecido seu caráter ilusório. Aqueles que declaram nossa
ciência relativa, àqueles que pretendem que nosso conhe­
cimento deforme ou construa seu objeto cabe então o ônus
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 39

da prova. E essa obrigação, eles não a podem cumprir, pois


a doutrina da relatividade da ciência já não encontra mais
guarida quando ciência e metafísica estão em seu verda­
deiro terreno, aquele onde nós as recolocamos2.

2. Nem é preciso dizer que a relatividade de que falamos aqui,


para excluí-la da ciência considerada no seu limite, isto é, para afastar
um erro acerca da direção do progresso científico, nada tem a ver com
a de Einstein. O método einsteíniano consiste essencialmente em pro­
curar uma representação matemática das coisas que seja independente
do ponto de vista do observador (ou, mais precisamente, do sistema de
referência) e que constitua, por conseguinte, um conjunto de relações ab­
solutas. Nada de mais contrário à relatividade tal como a entendem os
filósofos quando tomam por relativo nosso conhecimento do mundo
exterior. A expressão "Teoria da Relatividade" tem o inconveniente de
sugerir aos filósofos o inverso daquilo que se quer nela exprimir.
• Podemos acrescentar, a respeito da Teoria da Relatividade, que
não se podería invocá-la nem a favor nem contra a metafísica exposta
em nossos diferentes trabalhos, metafísica que tem por centro a expe­
riência da duração com a constatação de uma certa relação entre essa
duração e o espaço empregue para medi-la. Para pôr um problema, o
físico, relativists ou não, toma suas medidas nesse Tempo que é o nos­
so, que é o de todo mundo. Caso resolva o problema, é nesse mesmo
Tempo, no Tempo de todo mundo, que irá verificar sua solução. Quan-
x to ao Tempo amalgamado com o Espaço, quarta dimensão de um Espa­
ço-Tempo, ele só tem existência no intervalo entre a posição do proble-
1 ma e sua solução, isto é, nos cálculos, isto é, enfim, no papel. A concep­
ção relativista nem por isso deixa de ter uma importância capital, em
razão do auxílio que presta à física matemática. Mas puramente mate­
mática é a realidade de seu Espaço-Tempo e não se poderia erigi-lo em
realidade metafísica ou. "realidade" simplesmente, sem atribuir a esta
última palavra uma significação nova.
Chama-se, com efeito, por esse nome, o mais das vezes, aquilo que
é dado numa experiência ou que pederia sê-lo: é real aquilo que é cons­
tatado ou constatável. Ora, é da própria essência do Espaço-Tempo não
poder ser percebido. Não há como estarmos situados nele, ou nos si­
tuarmos nele, uma vez que o sistema de referência que adotamos é, por
definição, um sistema imóvel, uma vez que nesse sistema Espaço e
Tempo são distintos e que o físico efetivamente existente, que toma efe-
40 O PENSAMENTO E O MOVENTE

Reconhecemos, por outro lado, que os quadros da


inteligência têm uma certa elasticidade, seus contornos
um certo esfumado, e que sua indecisão é justamente o

tivamente medidas, é aquele que ocupa esse sistema: Iodos os outros fí­
sicos, que supomos adotarem outros sistemas, não são então mais que físi­
cos por ele imaginados. Consagramos um livro, outrora, à demonstração
desses diferentes pontos.
Não podemos resumi-lo numa simples nota. Mas, como o livro foi
frcqíien temente mal compreendido, acreditamos dever reproduzir aqui
0 trecho essencial de um artigo no qual davamos a razão dessa incom­
preensão. Eis, com efeito, o ponto que de ordinário escapa àqueles que,
transportando-se da física para a metafísica, erigem em realidade, isto
é, em coisa percebida ou perceptível, existindo antes e após o cálculo, um
amálgama de Espaço e de Tempo que só existe ao longo do cálculo c que,
fora do cálculo, renunciaria à sua essência no exato instante em que pre­
tendéssemos constatar sua existência.
Seria de fato preciso, dizíamos, começar por ver exatamente por
que, na hipótese da Relatividade, é impossível vincular ao mesmo tem­
po observadores "vivos e conscientes" a vários sistemas diferentes, por
que um único sistema - aquele que é efetivamente adotado como siste­
ma de referência - contém físicos reais, por que, sobretudo, a distinção
entre O físico real e o físico representado como real assume uma impor­
tância capital na interpretação filosófica dessa teoria, ao passo que até
aqui a filosofia não havia precisado se preocupar com isso na interpre­
tação da física. A razão, no entanto, é bastante simples.
Do ponto de vista da física newtoniana, por exemplo, há um siste­
ma de referência absolutamente privilegiado, um repouso absoluto e
movimentos absolutos. O universo então é composto, em cada instante,
por pontos materiais, alguns dos quais estão imóveis e outros animados
por movimentos perfeitamente determinados, Esse universo vê-se então
possuir nele própria, no Espaço e no Tempo, uma figura concreta que
não depende do ponto de vista no qual o físico se coloca: todos os físi­
cos, seja a que sistema móvel pertençam, se reportam pelo pensamento
ao sistema de referência privilegiado e atribuem ao universo a figura
que lhe descobririamos ao percebê-lo assim no absoluto. Portanto, se o
físico por excelência é aquele que habita o sistema privilegiado, não há
aqui que estabelecer uma distinção radical entre esse físico e os outros,
uma vez que os outros procedem como se estivessem no lugar dele.
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 41

que lhe permite aplicar-se em alguma medida às coisas


do espírito. Matéria e espírito apresentam um lado co­
mum, pois certos abalos superficiais da matéria vêm. ex-

Mas, na Teoria da Relatividade, não há mais sistema privilegiado.


Todos os sistemas se equivalem. Qualquer um deles pode erigir-se em
sistema de referência, imóvel desde então. Com relação a esse sistema
de referência, todos os pontos materiais do universo vão ainda se en­
contrar uns imóveis, outros animados por movimentos determinados;
mas isso se dará apenas com relação a esse sistema. Adotem outro: o
imóvel irá mover-se, o móvel imobilizar-se ou mudar de velocidade; a
figura concreta do universo terá mudado radicalmente. No entanto, o
universo não poderia ter aos olhos de vocês essas duas figuras ao mes­
mo tempo; o mesmo ponto material não pode ser imaginado por vocês,
ou concebido, ao mesmo tempo como imóvel e como movente. Forço­
so é, então, escolher; e, a partir do momento em que vocês tiverem es­
colhido tal ou tal figura determinada, vocês terão erigido em físico vivo
e consciente, realmente percebendo, o físico vinculado ao sistema de re­
ferência a partir do qual o universo assume essa figura: os outros físi­
cos, tal como aparecem na figura de universo assim escolhida, são en­
tão físicos virtuais, simplesmente concebidos como físicos pelo físico
real. Sc vocês conferem a um deles (enquanto físico) uma realidade, se
vocês o supõem percebendo, agindo, medindo, seu sistema é um siste­
ma de referência não mais virtual, não mais simplesmente concebido
como podendo tornar-se um sistema real, mas de fato um sistema de
referência real; está portanto imóvel, é com uma nova figura do mundo
que vocês se defrontam; e o físico real de agora há pouco já não é mais
que um físico representado.
O sr. Langevin expressou em termos definitivos a essência mesma
da Teoria da Relatividade quando escreveu que "o princípio da Relati­
vidade, tanto sob a forma restrita quanto sob sua forma mais geral, no
fundo, não é mais que a afirmação da existência de uma realidade in­
dependente dos sistemas de referência, em movimento uns com relação
aos outros, a partir dos quais o observamos por perspectivas cambian-
tes. Esse universo tem leis às quais o emprego das coordenadas permi­
te dar uma forma analítica independente do sistema de referência, ain­
da que as coordenadas individuais de cada acontecimento dependam
desse sistema, mas que é possível exprimir sob forma intrínseca, como
a geometria o faz para o espaço, graças à introdução de elementos in-
42 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

primir-se em nosso espírito, superficialmente, como sen­


sações; e, por outro lado, o espírito, para agir sobre o corpo,
deve descer degrau por degrau até à matéria c espaciali-
zar-se. Segue-se daí que a inteligência, ainda que voltada
para as coisas lá de fora, também pode se exercer sobre as
de dentro, desde que não pretenda nelas mergulhar mui­
to profundamente.
Mas é grande a tentação de levar até ao fundo do es­
pírito a aplicação dos procedimentos que ainda são bem

variantes e à constituição de uma linguagem apropriada." Em outras


palavras, o universo da Relatividade é um universo tão real, tão inde­
pendente de nosso espírito, tão absolutamente existente quanto o de
Newton e do comum dos homens: só que, ao passo que para o comum
dos homens e mesmo também para Newton esse universo é um con­
junto de coisas (ainda que a física se limite a estudar relações entre es­
sas coisas), o universo de Einstein já não é mais que um conjunto de
relações. Os elementos invariantes que são aqui tomados por constitu­
tivos da realidade são expressões nas quais entram parâmetros que po­
dem ser tudo o que se quiser, que não representam mais Tempo ou Es­
paço do que qualquer outra coisa, uma vez que é apenas a relação entre
eles que existirá aos olhos da ciência, uma vez que não há mais Tempo
nem Espaço se não há mais coisas, se o universo não tem figura. Para res­
tabelecer as coisas e, por conseguinte, o Tempo e o Espaço (como o fa­
zemos necessariamente cada vez que queremos ser informados acerca
de um acontecimento físico determinado, percebido em pontos deter­
minados do Espaço e do Tempo), por força temos de restituir ao mun­
do uma figura; mas é que teremos escolhido um ponto de vista, adotado
um sistema de referencia. O sistema que escolhemos torna-se, aliás, por
isso mesmo, o sistema central. A Teoria da Relatividade tem precisa­
mente por essência nos garantir que a expressão matemática do mun­
do que encontramos desse ponto de vista arbitrariamente escolhido
será idêntica, se nos conformarmos às regras que ela pôs, àquela que fe­
ríamos encontrado ao nos colocar em qualquer outro ponto de vista.
Guardemos apenas essa expressão matemática, não há Tempo nem qual­
quer outra coisa. Restauremos o Tempo, restabelecemos as coisas, mas
teremos escolhido um sistema de referência e o físico que a ele estiver
vinculado. Não pode haver outro por enquanto, ainda que qualquer
outro pudesse ter sido escolhido.
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) ■IJ

sucedidos na vizinhança da superfície. Cedamos a essa in


clinaçao, e obteremos muito simplesmente uma física do
espírito, calcada na dos corpos. Juntas, essas duas físicas
constituirão um sistema completo da realidade, aquilo
que por vezes se chama de metafísica. Como não ver que
a metafísica assim entendida desconhece aquilo que o es­
pírito tem de propriamente espiritual, não sendo mais que
a extensão para o espírito daquilo que pertence à matéria?
E como não ver que, para tornar essa extensão possível, ti­
vemos que tomar os quadros intelectuais em um estado
de imprecisão que permite que ainda se apliquem aos fe­
nômenos superficiais da alma, mas que os condena a já
cercar de menos perto os fatos do mundo exterior? Seria
por acaso de se espantar que uma tal metafísica, abarcan­
do ao mesmo tempo a matéria e o espírito, dê a impres­
são de um conhecimento aproximadamente vazio e em
todo caso vago - quase vazio do lado do espírito, uma vez
que, da alma, só pôde guardar efetivamente aspectos su­
perficiais, sistematicamente vago do lado da matéria, uma
vez que a inteligência do metafísico precisou desapertar
suas engrenagens e deixar nelas uma folga suficiente para
que pudesse trabalhar indiferentemente na superfície da
matéria ou na superfície do espírito?
Bem diferente é a metafísica que pomos ao lado da
ciência. Reconhecendo à ciência o poder de aprofundar
a matéria pela simples força da inteligência, reserva para
si o espírito. Nesse terreno, que lhe é próprio, almeja de­
senvolver novas funções do pensamento. Todo mundo
pôde notar que é mais duro avançar no conhecimento de
si do que no do mundo exterior. Fora de nós mesmos, o
esforço para apreender é natural; empenhamos esse es­
forço com crescente facilidade; aplicamos regras. Dentro,
é preciso que a atenção não se relaxe e que o progresso
se torne cada vez mais árduo; parece que escalamos de
44 O PENSAMENTO £ 0 MOVENTE

volta a inclinação da natureza. Não há nisso algo sur­


preendente? Somos interiores a nós mesmos, e nossa per­
sonalidade é aquilo que deveriamos conhecer melhor.
Nada disso: nosso espírito, aqui, está como que no es­
trangeiro, ao passo que a matéria lhe é familiar e que,
nela, ele se sente em casa. Mas é que uma certa ignorân­
cia de si talvez seja útil para um ser que deve se exterio-
rizar para agir: ela responde a uma necessidade da vida.
Nossa ação exerce-se sobre a matéria e é tanto mais efi­
caz quanto mais longe o conhecimento da matéria tiver
sido levado. Sem dúvida, para bem agir, é vantajoso pen­
sar naquilo que se fará, compreender o que se fez, repre­
sentar-se aquilo que se podería ter feito: a natureza a isso
nos convida; é um dos traços que distinguem o homem
do animal, inteiro na impressão do momento. Mas a na­
tureza não nos pede mais que uma espiadcla no interior
de nós mesmos: percebemos realmente então o espírito,
mas o espírito preparando-se para moldar a matéria,
adaptando-se a ela antecipadamente, conferindo-se um
não sei quê de espacial, de geométrico, de intelectual.
Um conhecimento do espírito, naquilo que este tem de
propriamente espiritual, antes nos afastaria do objetivo.
Deste nos aproximamos, pelo contrário, quando estuda­
mos a estrutura das coisas. Assim a natureza desvia o es­
pírito do espírito, volta o espírito para a matéria. 'Mas, des­
de então, vemos o modo pelo qual poderemos, se qui­
sermos, alargar, aprofundar, intensificar indefinidamente
a visão que nos foi concedida do espírito. Uma vez que a
insuficiência dessa visão se prende em primeiro lugar ao
fato de versar sobre o espírito já "espacializado" e distri­
buído em compartimentos intelectuais nos quais a ma­
téria irá se inserir, libertemos o espírito do espaço no
qual ele se distende, da materialidade que ele se confere
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 45

para pousar sobre a matéria: iremos devolvê-lo a si mcs


mo e apreendê-lo imediatamente. Essa visão direta do
espírito pelo espírito é a função principal da intuição, tal
como a compreendemos.
A intuição, por outro lado, só será comunicada pela
inteligência. Ela é mais que idéia; todavia, para se trans­
mitir, precisará cavalgar idéias. Pelo menos se endereça­
rá de preferência às idéias mais concretas, que uma fran­
ja de imagens ainda envolve. Comparações e metáforas
sugerirão aqui aquilo que não conseguiremos exprimir.
Não se tratará de um desvio; nada faremos senão ir di­
reto ao objetivo. Se falássemos constantemente uma lin­
guagem abstrata, pretensamente "científica", não daría­
mos do espírito mais que a sua imitação pela matéria,
pois as idéias abstratas foram extraídas do mundo exte­
rior c implicam sempre uma representação espacial: e,
no entanto, acreditaríamos ter analisado o espírito. As
idéias abstratas, tomadas em separado, convidar-nos-iam
portanto aqui a nos representarmos o espírito com base
no modelo da matéria e a pensá-lo por transposição, isto
é, no sentido preciso da palavra, por metáfora. Que as
aparências não nos enganem: há casos em que é a lin­
guagem imagética que fala cientemente no sentido pró­
prio, c a linguagem abstrata que fala inconscientemente
no figurado. Assim que abordamos o mundo espiritual, a
imagem, caso ela procure apenas sugerir, pode nos dar a
visão direta, ao passo que o termo abstrato, que é de ori­
gem espacial e que pretende exprimir, nos deixa o mais
das vezes na metáfora.
Em suma, queremos uma diferença de método, não
admitimos uma diferença de valor entre a metafísica c a
ciência. Menos modestos com relação à ciência do que o
foram os cientistas na sua maior parte, estimamos que
46 O PENSAMENTO E O MOVENTE

uma ciência fundada na experiência, tal como os moder­


nos a entendem, pode atingir a essência do real. Sem dú­
vida, abarca apenas uma parte da realidade; mas dessa
parte poderá um dia tocar o fundo; em todo caso, apro-
ximar-se-á dele indefinidamente. Já preenche portanto
metade do programa da antiga metafísica: metafísica po­
deria intitular-se, se não preferisse guardar o nome de
ciência. Resta a outra metade. Esta nos parece caber de
direito a uma metafísica que parte igualmente da expe­
riência e que está apta, ela também, a atingir o absoluto:
nós a chamaríamos de ciência se a ciência não preferisse
limitar-se ao resto da realidade. A metafísica não é por­
tanto o superior da ciência positiva; não vem, após a ciên­
cia, considerar o mesmo objeto para dele obter um co­
nhecimento mais alto. Supor uma tal relação entre elas,
conforme o hábito mais ou menos constante dos filóso­
fos, é prejudicar ambas: a ciência, que é condenada à re­
latividade; a metafísica, que já não será mais que um co­
nhecimento hipotético e vago, uma vez que a ciência
terá necessariamente tomado para si, antecipadamente,
tudo o que de preciso e certo se pode saber sobre seu ob­
jeto. Bem diferente é a relação que estabelecemos entre
a metafísica e a ciência. Acreditamos que são ou que po­
dem tornar-se igualmente precisas e certas. Ambas ver­
sam sobre a própria realidade. Mas cada uma delas guar­
da apenas metade dessa realidade, de modo que se po­
deria ver nelas, indiferentemente, duas subdivisões da
ciência ou dois departamentos da metafísica, não fosse
pelo fato de marcarem direções divergentes da atividade
do pensamento.
Justamente por estarem no mesmo nível, têm pon­
tos em comum e, nesses pontos, podem ser verificadas
uma pela outra. Estabelecer entre a metafísica e a ciência
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 47

uma diferença de dignidade, conferir-lhes o mesmo ob ­


jeto, isto é, o conjunto das coisas, estipulando que uma o
olhará de cima e a outra de baixo, é excluir a ajuda mú­
tua e o controle recíproco: então a metafísica é necessa­
riamente - a menos que porca todo contato com o real -
um extrato condensado ou uma extensão hipotética da
ciência. Dêem-lhes, pelo contrário, objetos diferentes, a
matéria para a ciência c o espírito para a metafísica: como
o espírito e a matéria se tocam, metafísica e ciência po­
derão, ao longo de toda a sua superfície comum, pôr-se
à prova uma à outra, esperando que o contato se torne
fecundação. Os resultados obtidos dos dois lados irão
confluir, uma vez que a matéria conflui com o espírito. Se
a inserção não for perfeita, será porque há algo a ser re­
tificado em nossa ciência ou em nossa metafísica ou em
ambas. A metafísica irá exercer assim, por sua parte pe­
riférica, uma influencia salutar sobre a ciência. De modo
inverso, a ciência irá comunicar à metafísica hábitos de
precisão que se propagarão, nesta última, da periferia
para o centro. Quando mais não seja pelo fato de que
suas extremidades precisarão superpor-se exatamente às
da ciência positiva, nossa metafísica será a metafísica do
mundo em que vivemos e não dc todos os mundos pos­
síveis. Ela cingirá realidades.
O que significa que ciência e metafísica diferirão de
objeto e de método, mas comungarão na experiência.
Ambas terão afastado o conhecimento vago que está ar­
mazenado nos conceitos usuais c é transmitido pelas pa­
lavras. O que pedíamos nós, em suma, para a metafísica,
a não ser aquilo que já havia sido obtido para a ciência?
Por muito tempo a estrada esteve barrada para a ciência
positiva pela pretensão de reconstituir a realidade com
os conceitos depositados na linguagem. O "baixo" c o
48 O PENSAMENTO E O MOVENTE

"alto", o "pesado" e o "leve", o "seco" e o "úmido" eram


os elementos utilizados para a explicação dos fenômenos
da natureza; pesavam-se, dosavam-se, combinavam-se
conceitos: era, à guisa de física, uma química intelectual.
Quando afastou os conceitos para olhar as coisas, a ciên­
cia pareceu, ela também, insurgir-se contra a inteligên­
cia; o "intelectualismo" de então recompunha o objeto
material, a priori, com idéias elementares. Na verdade,
essa ciência tornou-se mais intelectualista do que a má
física que substituía. Isso havia necessariamente de lhe
ocorrer, a partir do momento em que era verdadeira, pois
matéria e inteligência modelaram-se uma pela outra, e
numa ciência que desenha a configuração exata da ma­
téria nossa inteligência reencontra necessariamente sua
própria imagem. A forma matemática que a física assu­
miu é assim ao mesmo tempo aquela que melhor respon­
de à realidade c aquela que mais satisfaz nosso entendi­
mento. Bem menos cômoda será a posição da metafísica
verdadeira. Ela também começará por expulsar os con­
ceitos já prontos; ela também se confiará à experiência.
Mas a experiência interior não encontrará em parte algu­
ma linguagem estritamente apropriada. Por força terá que
voltar ao conceito, acrescentando-lhe no máximo a ima­
gem. Mas então será preciso que alargue o conceito, que o
flexibilize e que anuncie, pela franja colorida com a qual
o envolverá, que cie não contém a experiência inteira.
Nem por isso é menos verdade que a metafísica terá rea­
lizado em seu domínio a reforma que a física moderna
efetuou no seu.
Não esperem dessa metafísica conclusões simples
ou soluções radicais. Isso seria novamente pedir-lhe que
se atenha a uma manipulação de conceitos. Seria também
deixá-la na região do puro possível. No terreno da expe­
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) d1 >

riência, pelo contrário, com soluções incompletas e con


clusões provisórias, atingirá uma probabilidade crescen­
te que poderá finalmente equivaler à certeza. Tomemos
um problema, que iremos colocar nos termos da metafí­
sica tradicional: a alma sobrevive ao corpo? É fácil solucio­
ná-lo raciocinando sobre puros conceitos. Definiremos
então a aima. Diremos, com Platão, que ela é una e sim­
ples. Daí concluiremos que não pode se dissolver. Por­
tanto é imortal. Eis o que é claro. Só que a conclusão só
vale se aceitarmos a definição, isto é, a construção. Está
subordinada a essa hipótese. É hipotética. Mas renuncie­
mos a construir a idéia, de alma como se constrói a idéia
de triângulo. Estudemos os fatos. Se a experiência esta­
belece, como acreditamos que o faça, que apenas uma
pequena parte da vida consciente e condicionada pelo
cérebro, disso se seguirá que a supressão do cérebro dei­
xa verossimilmente subsistir a vida consciente. Pelo me­
nos o ônus da prova recairá agora sobre aquele que nega
a sobrevivência, bem mais do que sobre aquele que a
afirma. Tratar-se-á apenas de sobrevida, eu o reconheço;
seriam necessárias outras razões, extraídas, desta vez, da
religião, para chegar a uma precisão mais alta e para atri­
buir a essa sobrevida uma duração sem fim. Mas, mesmo
do ponto de vista puramente filosófico, não haverá mais
um se: afirmar-se-á categoricamente - quero dizer, sem
subordinação a uma hipótese metafísica - aquilo que se
afirma, ainda que se tenha de afirmá-lo apenas como pro­
vável. A primeira tese tinha a beleza do definitivo, mas
estava suspensa no ar, na região do mero possível. A ou­
tra é inacabada, mas deita raízes firmes no real.
Uma ciência nascente está sempre pronta a dogma-
tizar. Dispondo apenas de uma experiência restrita, ope­
ra menos sobre os fatos do que sobre algumas idéias
50 ü PENSAMENTO E O MOVENTE

simples, sugeridas ou não por eles, que trata então dedu-


tivamente. Mais do que qualquer outra ciência, a metafí­
sica estava exposta a esse perigo. É preciso todo um tra­
balho de desobstrução para abrir o caminho para a expe­
riência interior. A faculdade de intuição realmcnte existe
em cada um de nós, mas recoberta por funções mais
úteis à vida. O metafísico trabalhou portanto a priori so­
bre conceitos depositados antecipadamente na lingua­
gem, como se, descidos do céu, revelassem para o espí­
rito uma realidade supra-sensível. Assim nasceu a teoria
platônica das Idéias. Carregada pelas asas do aristotelis-
mo e do neoplatonismo, atravessou a idade média; ins­
pirou, por vezes sem que o percebessem, os filósofos mo­
dernos. Estes não raro eram matemáticos, e seus hábitos
de espírito os inclinavam a ver na metafísica apenas uma
matemática mais vasta, abarcando a qualidade ao mes­
mo tempo que a quantidade. Assim se explicam a uni­
dade e a simplicidade geométricas da maior parte das
filosofias, sistemas completos de problemas definitiva­
mente postos, intcgralmente resolvidos. Mas essa não é
a única razão. É preciso levar em conta também o fato de
que a metafísica moderna se conferiu um objeto análogo
ao da religião. Partia de uma concepção da divindade.
Quer confirmasse, quer infirmassc o dogma, acreditava-
se então obrigada a dogmatizar. Possuía, ainda que fun­
dada apenas sobre a razão, a segurança de juízo que o
teólogo obtem da revelação. Pode-se perguntar, é verda­
de, por que escolhia esse ponto de partida.. Mas é que
nao dependia dela optar por outro. Como trabalhava fora
da experiência, sobre puros conceitos, por força havia de
se suspender a um conceito de onde se pudesse tudo de­
duzir e que contivesse tudo. Tal era justamente a idéia que
ela se fazia de Deus.
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 5'1

Mas por que se fazia ela esta idéia de Deus? Que


Aristóteles tenha fundido todos os conceitos num úni­
co, e posto como princípio de explicação universal um
"Pensamento do Pensamento", parente próximo da Idéia
platônica do Bem, que a filosofia moderna, continuado -
ra da de Aristóteles, tenha se embrenhado por uma via
análoga, é o que se compreende, no limite. O que se com­
preende menos é que se tenha chamado de Deus um prin­
cípio que nada tem em comum com aquele que a hu­
manidade sempre designou por essa palavra. O deus da
mitologia antiga e o Deus do cristianismo real mente não
se assemelham, não há dúvida, mas em direção a ambos
se erguem preces, ambos se interessam pelos homens:
estática ou dinâmica, a religião toma esse ponto por fun­
damental. E no entanto ainda acontece à filosofia de cha­
mar de Deus um Ser cuja essência o condenaria a não le­
var de modo algum em conta as invocações humanas, co­
mo se, abarcando teoricamente todas as coisas, ele fosse,
de fato, cego para nossos sofrimentos e surdo para nos­
sas preces. Aprofundando esse ponto, encontraríamos a
confusão, natural ao espírito humano, entre uma idéia ex­
plicativa e um princípio agente. As coisas sendo recon­
duzidas a seus conceitos, os conceitos encaixando-se uns
nos outros, chegamos finalmente em uma idéia das idéias,
pela qual imaginamos que tudo se explique. Abem dizer,
ela não explica lá muita coisa, primeiro porque aceita a
subdivisão e a repartição do real em conceitos que foram
consignados pela sociedade na linguagem, o mais das
vezes por sua mera comodidade, depois porque a sínte­
se desses conceitos que essa idéia efetua é vazia de ma­
téria e puramente verbal. Pode-se perguntar como esse
ponto essencial escapou a filósofos profundos e como
estes puderam acreditar que caracterizavam em qualquer
aspecto que seja o princípio por eles erigido em explica
52 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

ção do mundo, ao passo que se limitavam a representá-


lo convencionalmente por um signo. Nós o dizíamos aci­
ma: que se dê o nome que se quiser à "coisa em si", que
se faça dela a Substância de Espinosa, o Eu de Fichte, o
Absoluto de Schelling, a Idéia de Hegel, ou a Vontade de
Schopenhauer, por mais que a palavra se apresente com
sua significação bem definida, irá perdê-la, esvaziar-se-á
de toda significação assim que for aplicada à totalidade
das coisas. Para falar apenas da última dessas grandes
"sínteses", porventura não é evidente que uma Vontade
só é vontade sob a condição de contrastar com aquilo que
não quer? Como então □ espírito poderá contrastar com
a matéria, se a própria matéria é vontade? Pôr a vontade
por toda parte equivale a não deixá-la em parte algu­
ma, pois é identificar a essência daquilo que sinto em mim
- duração, jorro, criação contínua - com a essência da­
quilo que percebo nas coisas, onde há evidentemente re­
petição, previsibilidade, necessidade. Pouco me importa
que se diga "Tudo é mecanismo" ou "Tudo é vontade":
nos dois casos tudo está confundido. Nos dois casos,
"mecanismo" e "vontade" tornam-se sinônimos dc "ser"
e, por conseguinte, sinônimos um do outro. Aí está o vício
inicial dos sistemas filosóficos. Acreditam nos informar
sobre o absoluto conferindo-lhe um nome. Mas, mais uma
vez, a palavra pode ter um sentido definido quando de­
signa uma coisa; perde-o assim que é aplicada a todas as
coisas. Mais uma vez, sei o que é a vontade caso se en­
tenda por essa palavra minha faculdade de querer, ou a
dos seres que se me assemelham, ou mesmo o ímpeto
vital dos seres organizados, que se supõe então ser aná­
logo ao meu elã de consciência. Mas, quanto mais se au­
mentar a extensão do termo, tanto mais se diminuirá sua
compreensão. Caso se englobe em sua extensão a maté­
ria, esvazia-se a sua compreensão dos caracteres positivos
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 53

pelos quais a espontaneidade contrasta com o mecanis­


mo e a liberdade com a necessidade. Quando, por fim, a
palavra chega a designar tudo o que existe, já não signi­
fica mais que existência. O que se ganha então em dizer
que o mundo é vontade, ao invés de constatar muito sim­
plesmente que ele é?
Mas o conceito de conteúdo indeterminado, ou antes,
sem conteúdo, ao qual se chega assim, e que não é mais na­
da, quer-se que ele seja tudo. Apela-se então ao Deus da
religião, que é a própria determinação e, além disso, é es­
sencialmente agente. Ele está no topo do ser: faz-se coin­
cidir com ele aquilo que, muito equivocadamente, se to­
ma pelo topo do conhecimento. Algo da adoração e do res­
peito que a humanidade lhe devota passa então para o
princípio que ornamentamos com seu nome. E daí vem,
em grande parte, o dogmatismo da filosofia moderna.
A verdade é que uma existência só pode ser dada
numa experiência. Essa experiência será chamada visão
ou contato, percepção exterior em geral, caso se trate de
um objeto material; assumirá o nome de intuição quan­
do versar sobre o espírito. Até onde vai a intuição? Ape­
nas ela poderá dizê-lo. Ela retoma um fio: cabe a ela ver
se esse fio sobe até o céu ou se detém a alguma distân­
cia da terra. No primeiro caso, a experiência metafísica li-
gar-se-á à dos grandes místicos: acreditamos constatar,
de nossa parte, que a verdade está desse lado. No segun­
do, essas duas experiências permanecerão isoladas uma
da outra, sem por isso se repugnarem mutuamente. De
qualquer forma, a filosofia nos terá elevado acima da con­
dição humana.
Já nos liberta de determinadas servidões especulati­
vas quando põe o problema do espírito em termos de es­
pírito e não mais de matéria, quando, de um modo ge
ral, nos dispensa de empregar os conceitos num trabalho
54 O PENSAMENTO E O MOVENTE

para o qual, na maior parte, não foram feitos. Esses con­


ceitos estão inclusos nas palavras. Foram, o mais das ve­
zes, elaborados pelo organismo social com vistas a um
alvo que nada tem de metafísico. Para formá-los, a socie­
dade recortou o real segundo suas necessidades. Por que
haveria a filosofia de aceitar uma divisão que tem todas
as chances de não corresponder às articulações do real?
Aceita-a, no entanto, de ordinário. Submete-se ao pro­
blema tal como é posto pela linguagem. Condena-se, por­
tanto, antecipadamente, a receber uma solução já pron­
ta ou, na melhor das hipóteses, a simplesmente escolher
entre as duas ou três soluções, as únicas possíveis, que
são co-eternas a essa posição do problema. Seria o mes­
mo que dizer que toda verdade já é virtualmcnte conhe­
cida, que o seu modelo está depositado nos arquivos pú­
blicos da cidade e que a filosofia é um jogo de quebra-
cabeça no qual se trata de reconstituir, com peças que a
sociedade nos fornece, o desenho que não nos quer
mostrar. Seria o mesmo que atribuir ao filósofo o papel e
a atitude do aluno que procura a solução pensando con­
sigo mesmo que uma espiadela indiscreta lhe a mostra­
ria, anotada na frente do enunciado, no caderno do pro­
fessor. Mas a verdade é que se trata, na filosofia e mes­
mo alhures, de encontrar o problema e, por conseguinte,
de pô-lo, muito mais do que de resolvê-lo. Pois um pro­
blema especulativo está resolvido assim que é bem pos­
to. Entendo com isso que a sua solução existe então ime­
diatamente, ainda que possa permanecer escondida e,
por assim dizer, encoberta: só falta, então, descobri-la.
Mas pôr o problema não é simplesmente descobrir, é in­
ventar. A descoberta versa sobre aquilo que já existe, atual
ou virtualmente; era portanto certo que haveria de surgir
cedo ou tarde. A invenção confere ser àquilo que não era,
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 55

ela podería não ter surgido nunca. Já na matemática, com


mais razão ainda na metafísica, o esforço de invenção
consiste o mais das vezes em suscitar o problema, em
criar os termos nos quais este será posto. Posição e solu­
ção do problema estão bem perto aqui de se equivaler:
os verdadeiros grandes problemas só são postos quando
estão resolvidos. Mas muitos pequenos problemas caem
no mesmo caso. Abro um tratado elementar de filosofia.
Um dos primeiros capítulos trata do prazer e da dor.
Põe-se ao aluno uma pergunta tal como esta: "O prazer
é ou não é a felicidade?". Mas primeiro seria preciso sa­
ber se prazer e felicidade são gêneros que correspondem
a um seccionamento natural das coisas. A rigor, a fra­
se poderia significar simplesmente: "Visto o sentido ha­
bitual dos termos prazer e felicidade, deve-se dizer que a
felicidade seja uma sequência de prazeres?" Então, é
uma questão de léxico que é posta; só será resolvida pro­
curando como as palavras "prazer" e "felicidade" foram
empregues pelos escritores que melhor manejaram a
língua. Teremos, aliás, trabalhado de forma útil; teremos
definido melhor dois termos usuais, isto é, dois hábitos
sociais. Mas se pretendemos fazer mais que isso, apreen­
der realidades e não ajustar convenções, como esperar
que dois termos talvez artificiais (não se sabe se o são ou
não, uma vez que ainda não estudamos seus objetos)
ponham um problema que concerne à natureza mesma
das coisas? Suponham que, ao examinar os estados agru­
pados sob o nome de prazer nada se descubra neles de
comum, a não ser o fato de serem estados que o homem
procura: a humanidade terá classificado essas coisas
muito diferentes num mesmo gênero porque encontrava
nelas o mesmo interesse prático e reagia a todas do mes­
mo modo. Suponham, por outro lado, que desemboque-
S'» -•

! UNsFcSP j
I BStSTECA CAMPUS GumHUS I
56 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

mos num resultado análogo ao analisar a idéia de felici­


dade. Imediatamente o problema sc desvanece, ou antes,
se dissolve em problemas inteiramente novos, dos quais
nada podemos saber e dos quais não possuímos nem
mesmo os termos antes de ter estudado nela mesma a
atividade humana sobre a qual a sociedade havia tomado
do exterior, para formar as idéias gerais de prazer e de fe­
licidade, vistas talvez artificiais. Ainda assim será preciso
ter-se assegurado previamente de que o conceito de '"ati­
vidade humana" responde, ele próprio, a uma divisão na­
tural. Nessa desarticulação do real segundo suas tendên­
cias próprias jaz a principal dificuldade, tão logo troca­
mos o domínio da matéria por aquele do espírito.

O que significa que a questão da origem e do valor


das idéias gerais põe-se por ocasião de todo problema fi­
losófico e reclama em cada caso uma solução particular.
As discussões que se levantaram em torno dela juncam
toda a história da filosofia.Talvez coubesse perguntar-se,
antes de qualquer discussão, se essas idéias constituem
realmente um gênero e se não seria precisamente ao tra­
tar das idéias gerais que nos deveriamos guardar de ge­
neralidades. Sem dúvida, poder-se-á sem dificuldade
conservar a idéia geral de idéia geral, caso se faça ques­
tão. Bastará dizer que se convenciona chamar idéia geral
uma representação que agrupa um número indefinido
de coisas sob o mesmo nome: as palavras, na sua maior
parte, corresponderão assim a uma idéia geral. Mas a
questão importante para o filósofo é saber por meio de
que operação, por que razão, e sobretudo em virtude de
que estrutura do real as coisas podem ser assim agrupa­
das, e essa questão não comporta uma solução única e
simples.
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 57

Digamos de imediato que a psicologia nos parece


caminhar a esmo em investigações dessa ordem caso
não detenha um fio condutor. Por trás do trabalho do es­
pírito, que é o ato, há a função. Por trás das idéias gerais,
há a faculdade de conceber ou perceber generalidades.
Com relação a essa faculdade, cabería primeiro determi­
nar a significação vita). No labirinto dos atos, estados e
faculdades do espírito, o fio que não deveriamos largar
nunca é aquele fornecido pela biologia. Primum vivere.
Memória, imaginação, concepção e percepção, generali­
zação, por fim, não estão aí "por nada, pelo prazer". Pa­
rece realmente, a acreditar em certos teóricos, que o es­
pírito tenha caído do céu com uma subdivisão em fun­
ções psicológicas das quais precisamos apenas constatar
a existência: por essas funções serem tais, seriam utiliza­
das de tal modo. Acreditamos, pelo contrário, que é por­
que são úteis, porque são necessárias à vida que elas são
o que são: às exigências fundamentais da vida cabe refe­
rir-se para explicar sua presença e, se for o caso, para jus­
tificá-la, quero dizer, para saber se a subdivisão ordinária
em tais ou tais faculdades é artificial ou natural, para sa­
ber, por conseguinte, se devemos mantê-la ou modificá-
la; todas as nossas observações sobre o mecanismo da
função serão falseadas se a tivermos recortado mal na
continuidade do tecido psicológico. Acaso se dirá que as
exigências da vida são análogas nos homens, nos animais
e mesmo nas plantas, que nosso método arrisca portan­
to negligenciar aquilo que há de propriamente humano
no homem? Sem dúvida alguma: uma vez recortada e dis­
tribuída a vida psicológica, nem tudo está pronto; falta
seguir o crescimento e mesmo a transfiguração de cada
faculdade no homem. Mas teremos pelo menos alguma
chance de não ter traçado divisões arbitrárias na atividade
58 O PENSAMENTO E O MOVENTE

do espírito, como tampouco fracassaríamos em desenre­


dar plantas de caules e folhagens entrelaçadas se cavás­
semos até às raízes.
Apliquemos esse método ao problema das idéias
gerais: descobriremos que todo ser vivo, talvez mesmo
todo órgão, todo tecido de um ser vivo generaliza, quer d i­
zer, classifica, uma vez que sabe colher no meio em que
está, nas substâncias ou nos objetos mais diversos, as
partes ou os elementos que poderão satisfazer tal ou tal
de suas necessidades; negligencia o resto. Isola, portan­
to, a característica que o interessa, vai direto para uma
propriedade comum; em outros termos, classifica e, por
conseguinte, abstrai e generaliza. Sem dúvida, na quase
totalidade dos casos, e provavelmente em todos os ani­
mais salvo o homem, abstração e generalização são vivi­
das e não pensadas. No entanto, no próprio animal en­
contramos representações às quais faltam apenas a refle­
xão e algum desprendimento para serem plenamente
idéias gerais: senão, como é que uma vaca que levamos
havería de se deter diante de um prado, qualquer que seja,
simplesmente porque este entra na categoria daquilo
que chamamos relva ou prado? E como um cavalo distin-
guiria uma estrebaria de uma granja, uma estrada de um
campo, o feno da aveia? Aliás, conceber, ou antes, perce­
ber assim a generalidade é também apanágio do homem
enquanto ele é animal, enquanto tem instintos e neces­
sidades. Sem que sua reflexão e mesmo sua consciência
intervenham, uma semelhança pode ser extraída dos ob­
jetos mais diferentes por uma de suas tendências; esta irá
classificar esses objetos em um gênero e criará uma idéia
geral, antes desempenhada do que pensada. Essas gene­
ralidades automaticamente extraídas são mesmo bem mais
numerosas no homem, que ao instinto acrescenta hábi-
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 59

tos mais ou menos capazes de imitar o ato instintivo.


Passemos, agora, à idéia geral completa, quero dizer, cons­
ciente, refletida, criada com intenção, c descobriremos o
mais das vezes na sua base essa extração automática de
semelhanças que é o essencial da generalização. Num
sentido, nada se assemelha a nada, uma vez que todos
os objetos diferem. Noutro, tudo se assemelha a tudo,
uma vez que sempre encontraremos, elevando-nos sufi­
cientemente alto na escala das generalidades, algum gê­
nero artificial no qual dois objetos diferentes, tomados
ao acaso, poderão entrar. Mas entre a generalização im­
possível e a generalização inútil há aquela que provo­
cam, pre figurando-a, tendências, hábitos, gestos e atitu­
des, complexos de movimentos automaticamente reali­
zados ou esboçados que estão na origem da maior parte
das idéias gerais propriamente humanas. A semelhança
entre coisas ou estados, que declaramos perceber, é an­
tes de tudo a propriedade, comum a esses estados ou a
essas coisas, de obter de nosso corpo a mesma reação, de
fazê-lo esboçar a mesma atitude e começar os mesmos
movimentos. O corpo extrai do meio material ou moral
aquilo que conseguiu influenciá-lo, aquilo que o interes­
sa: é a identidade de reação a ações diferentes que, rico-
cheteando nelas, nelas introduz a semelhança, ou delas
a extrai. Assim, uma campainha extrairá dos excitantes
mais diversos - pressão da mão, sopro do vento, corren­
te elétrica - um som sempre o mesmo, convertê-los-á as­
sim em ressoadores e desse modo os tornará semelhan­
tes entre si, indivíduos constitutivos de um gênero, sim­
plesmente por permanecer ela mesma: campainha e nada
mais que campainha, nada pode fazer, caso reaja, a não
ser soar. Nem é preciso dizer que, quando a reflexão ti­
ver elevado ao estado de pensamento puro representa­
60 O PENSAMENTO E O MOVENTE

ções que não eram muito mais que a inserção da cons­


ciência num quadro material, atitudes e movimentos, irá
formar voluntariamente, diretamente, por imitação, idéias
gerais que serão apenas idéias. Para tanto, será podero­
samente ajudada pela palavra, que fornecerá novamente
à representação um quadro, desta vez mais espiritual que
corporal, no qual se inserir. Nem por isso é menos ver­
dade que, para perceber a verdadeira natureza dos con­
ceitos, para abordar com alguma chance de sucesso os
problemas relativos às idéias gerais, é sempre à interação
do pensamento com as atitudes ou hábitos motores que
será preciso reportar-se, a generalização não sendo real­
mente outra coisa, na origem, do que o hábito se elevando
do campo da ação para o do pensamento.
Mas, uma vez assim determinadas a origem e a es­
trutura da idéia geral, uma vez estabelecida a necessi­
dade de sua aparição, uma vez constatada, também, a imi­
tação da natureza pela construção artificial de idéias gerais,
resta investigar como idéias gerais naturais, que servem
de modelo a outras, são possíveis, por que a experiên­
cia nos apresenta semelhanças que nos basta então tra­
duzir em generalidades. Dentre essas semelhanças, algu­
mas há, sem dúvida alguma, que remetem ao fundo das
coisas. Estas darão nascimento a idéias gerais que, em
certa medida, ainda serão relativas à comodidade do in­
divíduo e da sociedade, mas que a ciência e a filosofia te­
rão apenas que desentranhar dessa ganga para obter uma
visão mais ou menos aproximativa de algum aspecto da
realidade. São pouco numerosas, e a imensa maioria das
idéias gerais é constituída por aquelas que a sociedade
preparou para a linguagem com vistas à conversação e à
ação. Não obstante, mesmo entre essas últimas, às quais
aludimos especialmente no presente ensaio, muitas en-
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 6I

contrariamos que se vinculam por uma série de interme­


diários, após toda sorte de manipulações, de simplifica­
ções, de deformações, ao pequeno número de idéias qrte
traduzem semelhanças essenciais: será frequentemente
instrutivo refazer com elas o caminho que leva, por um
desvio mais ou menos longo, até a semelhança à qual se
vinculam. Não será portanto inútil abrir aqui, um parên­
tese sobre aquilo que se podería chamar dc generalida­
des objetivas, inerentes à própria realidade. Por restrito
que seja seu número, são importantes tanto por si mes­
mas quanto pela confiança que irradiam em volta de si,
emprestando algo de sua solidez a gêneros inteiramente
artificiais. É assim que papel-moeda em quantidade exa­
gerada deve o pouco valor que lhe resta àquilo que ain­
da se encontra de ouro nas reservas.
Aprofundando esse ponto, perceber-se-ia, cremos
nós, que as semelhanças se repartem em três grupos, o
segundo dos quais provavelmente se subdividirá por sua
vez ao mesmo passo dos progressos da ciência positiva.
As primeiras são de essência biológica: prendem-se ao
fato de que a vida trabalha como se ela própria tivesse
idéias gerais, as de gênero e de espécie, como se seguisse
planos de estrutura em número limitado, como se tivesse
instituído propriedades gerais da vida, enfim e sobretudo
como se tivesse querido, pelo duplo efeito da transmis­
são hereditária (no que diz respeito ao que é inato) e da
transformação mais ou menos lenta, dispor os vivos em
série hierárquica, ao longo de uma escala na qual as se­
melhanças entre indivíduos são cada vez mais numero­
sas à medida que mais alto nos elevamos. Quer nos ex­
primamos assim em termos de finalidade, quer atribua­
mos à matéria viva propriedades especiais, imitadoras da
inteligência, quer, por fim, nos filiemos a alguma hipótese
62 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

intermediária, será sempre na própria realidade, em prin­


cípio (mesmo que nossa classificação seja inexata de fato),
que estarão fundadas nossas subdivisões em espécies,
gêneros, etc. - generalidades que traduzimos em idéias
gerais. E estarão igualmente fundadas em direito aque­
las que correspondem a órgãos, tecidos, células, até mes­
mo "comportamentos" dos seres vivos. - Agora, se pas­
samos do organizado ao inorganizado, da matéria viva à
matéria inerte e ainda não informada pelo homem, reen­
contramos gêneros reais, mas de um caráter inteiramen­
te diferente: qualidades, como as cores, os sabores, os
odores; elementos ou combinações, como o oxigênio, o
hidrogênio, a água; por fim, forças físicas como a gravi­
dade, o calor, a eletricidade. Mas o que aproxima aqui
umas das outras as representações de indivíduos agru­
padas sob a idéia geral é algo inteiramente diferente. Sem
entrar no detalhe, sem complicar nossa exposição levan­
do cm conta os matizes, atenuando, aliás, antecipada­
mente o que nossa distinção poderia ter de excessivo,
convindo, por fim, em dar agora à palavra "semelhança"
seu sentido o mais preciso, mas também o mais estreito,
diremos que no primeiro caso o princípio de aproxima­
ção é a semelhança propriamente dita e, no segundo, a
identidade. Um certo matiz de vermelho pode ser idên­
tico a si mesmo cm todos os objetos nos quais é encon­
trado. O mesmo poderia ser dito de duas notas de mes­
ma altura, de mesma intensidade e de mesmo timbre.
Aliás, com ou sem razão, sentimo-nos caminhar em di­
reção a elementos ou a acontecimentos idênticos à me­
dida que mais aprofundamos a matéria e resolvemos o
químico em físico, o físico em matemático. Ora, por mais
que uma lógica simples pretenda que a semelhança é uma
identidade parcial e a identidade uma semelhança com­
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 63

pleta, a experiência diz-nos algo inteiramente diferente.


Se deixamos de dar à palavra "semelhança" o sentido
vago e de certa forma popular no qual a tomavamos para
começar, se procuramos precisar "semelhança" por meio
de uma comparação com "identidade", descobriremos,
cremos nós, que a identidade é da ordem do geométrico e
a semelhança da ordem do vital. A primeira remete à me­
dida, a outra é antes do domínio da arte: é frequentemen­
te um sentimento perfeitamente estético que leva o bió­
logo evolucionista a supor parentes entre si formas entre
as quais ele é o primeiro a perceber uma semelhança: os
próprios desenhos que delas fornece revelam por vezes
uma mão e sobretudo um olho de artista. Mas, se o idên­
tico contrasta assim com o semelhante, caberia investi­
gar, para essa nova categoria de idéias gerais assim como
para a outra, o que a toma possível.
Tal investigação só teria alguma chance de ser bem
sucedida num estado mais avançado de nosso conheci­
mento da matéria. Limitemo-nos a dizer uma palavra
acerca da hipótese para a qual nos conduziría nosso apro­
fundamento da vida. Se há um verde que, em milhares e
milhares de lugares diferentes, é o mesmo verde (pelo
menos para nosso olho, pelo menos aproxima tivamen-
te), se o mesmo vale para as outras cores, e se as diferen­
ças de cor se prendem à maior ou menor freqüência dos
acontecimentos físicos elementares que condensamos
em percepção de cor, a possibilidade para essas frequên­
cias de nos apresentarem em todos os tempos e em to­
dos os lugares algumas cores determinadas provém do
fato de que sempre e em todo lugar se encontram reali­
zadas todas as frequências possíveis (dentro de certos li­
mites, sem dúvida): então, necessariamente, aquelas que
correspondem às nossas diversas cores produzir-se-ão
64 O PENSAMENTO E O MOVENTE

em meio às outras, seja lá qual for o momento ou o lo­


cal; a repetição do idêntico, que permite aqui constituir
gêneros, não terá outra origem. Posto que a física moder­
na nos revela cada vez mais diferenças dc número por
trás de nossas distinções de qualidade, uma explicação
desse gênero vale provavelmente para todos os gêneros
e para todas as generalidades elementares (capazes de
serem compostas por nós para formar outras) que en­
contramos no mundo da matéria inerte. A explicação só
seria plenamente satisfatória, é verdade, se dissesse tam­
bém por que nossa percepção colhe, no campo imenso
das frequências, essas freqüências determinadas que se­
rão as diversas cores - por que, em primeiro lugar, ela co­
lhe freqüências, por que, em segundo lugar, colhe estas
ao invés de outras. A esta questão especial respondemos
outrora definindo o ser vivo por uma certa potência de
agir quantitativa c qualitativamente determinada: é essa
ação virtual que extrai da matéria nossas percepções
reais, informações das quais necessita para sc guiar, con­
densações, num instante dc nossa duração, de milha­
res, de milhões, de bilhões de acontecimentos que se
realizam na duração muitíssimo menos tensionada das
coisas; essa diferença de tensão mede justamente o in­
tervalo entre o determinismo físico e a liberdade humana,
ao mesmo tempo que explica sua dualidade e sua coe­
xistência3. Se, como acreditamos, a aparição do homem,

3. Pode-se, portanto, e mesmo deve-se falar ainda de determinis­


mo físico, mesmo quando postulamos, com a física mais recente, o in-
determinismo dos acontecimentos elementares dos quais o fato físico é
composto. Pois esse fato físico é percebido por nós como submetido a
um determinismo inflexível e desse modo se distingue radicalmente
dos atos que realizamos quando nos sentimos livres. Como sugeríamos
acima, podemos nos perguntar se não é precisamente para vazar a ma-
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) ().r>

ou de algum ser de mesma essência, é a razão de ser da


vida em nosso planeta, caberá dizer que todas as catego­
rias de percepções, não apenas dos homens, mas dos ani­
mais c mesmo das plantas (as quais podem comportar-
se como se tivessem percepções) correspondem global­
mente à escolha de uma certa ordem de grandeza para a
condensação. Esta é uma simples hipótese, mas parece-
nos sair de modo inteiramente natural das especulações
da física sobre a estrutura da matéria. O que se tornaria
a mesa sobre a qual escrevo nesse momento se minha
percepção, e, por conseguinte, minha ação, fosse feita
para a ordem de grandeza à qual correspondem os ele­
mentos, ou antes, os acontecimentos constitutivos de
sua materialidade? Minha ação seria dissolvida; minha
percepção abarcaria, no lugar em que vejo minha mesa e
no curto momento em que a olho, um universo imenso
e uma não menos interminável história. Ser-me-ia im­
possível compreender como essa imensidão movente
pode se tornar, para que eu aja sobre ela, um simples re­
tângulo, imóvel e sólido. O mesmo Valeria para todas as
coisas e para todos os acontecimentos: o mundo cm que
vivemos, com as ações e reações de suas partes umas so­
bre as outras, é aquilo que ele é em virtude de uma cer­
ta escolha na escala das grandezas, escolha que, por sua
vez, é determinada por nossa potência de agir. Nada im­
pediría outros mundos, correspondendo a uma outra es­
colha, de existirem com ele, no mesmo lugar e ao mes-

téria no molde desse determinismo, para obter, nos fenômenos que nos
cercam, uma regularidade de sucessão que nos permita agir sobre eles,
que nossa percepção se detém em um certo grau particular de condensa­
ção dos acontecimentos elementares. De modo mais geral, a atividade do
ser vivo se acostaria à e se mediria pela necessidade que vem servir de su­
porte às coisas, por uma condensação de sua duração.
66 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

mo tempo: assim é que vinte estações emissoras diferen­


tes transmitem simultaneamente vinte concertos dife­
rentes, que coexistem sem que nenhum deles misture
seus sons à música do outro, cada um sendo ouvido por
inteiro e sendo o único a ser ouvido no aparelho que es­
colheu, para a recepção, o comprimento de onda da es­
tação emissora. Mas não insistamos mais numa questão
que simplesmente encontramos pelo caminho. De modo
algum é preciso uma hipótese sobre a estrutura íntima da
matéria para constatar que as concepções provindas das
percepções, as idéias gerais que correspondem às proprie­
dades e ações da matéria, só são possíveis ou só são o
que são em virtude da matemática imanente às coisas. É
o quanto queríamos lembrar para justificar uma classifi­
cação das idéias gerais que põe num canto o geométrico
e no outro o vital, este trazendo consigo a semelhança,
aquele, a identidade.
Precisamos agora passar à terceira categoria que
anunciavamos, às idéias gerais criadas inteiramente pela
especulação e pela ação humanas. O homem é essencial­
mente fabricador. A natureza, ao lhe recusar instrumen­
tos já prontos como, por exemplo, os dos insetos, deu-lhe
a inteligência, isto é, o poder de inventar e de construir
um número indefinido de utensílios. Ora, por simples
que seja a fabricação, ela é feita com base num mode­
lo, percebido ou imaginado: real é o gênero definido pelo
próprio modelo ou pelo esquema de sua construção. To­
da nossa civilização repousa assim sobre um certo nú­
mero de idéias gerais cujo conteúdo conhecemos ade­
quadamente, uma vez que o fizemos, e cujo valor é emi­
nente, uma vez que não poderiamos viver sem elas. A
crença na realidade absoluta das Idéias em geral, talvez
mesmo em sua divindade, vem em parte daí. Sabe-se que
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) (V7

papel ela desempenha na filosofia antiga, e mesmo na


nossa. Todas as idéias gerais beneficiam-se da objetividade
de algumas delas. Acrescentemos que a fabricação huma­
na não se exerce apenas sobre a matéria. Uma vez de pos­
se das três espécies de idéias gerais que enumeramos, so­
bretudo da última, nossa inteligência detém aquilo que
chamavamos a idéia geral de idéia geral. Pode então cons­
truir idéias gerais como bem lhe aprouver. Começa natural-
mente por aquelas que mais podem favorecer a vida social,
ou simplesmente que se vinculam à vida social; depois vi­
rão aquelas que interessam à especulação pura; c, por fim,
aquelas que construímos por nada, pelo prazer. Mas, no
que diz respeito a quase todos os conceitos que não per­
tencem às nossas duas primeiras categorias, isto é, para a
imensa maioria das idéias gerais, é o interesse da socieda­
de e o dos indivíduos, são as exigências da conversação e da
ação que presidem a seu nascimento.

Fechemos esse demasiado longo parêntese, que ca­


bia abrir para mostrar em que medida cabe reformar e
por vezes afastar o pensamento conceituai, se quisermos
alcançar uma filosofia mais intuitiva. Essa filosofia, dizía­
mos, desviar-se-á o mais das vezes da visão social do ob­
jeto já feito; irá nos pedir que participemos em espírito
ao ato que o faz. Reinstalar- nos-á, portanto, nesse as­
pecto, na direção do divino. É propriamente humano,
com efeito, o trabalho de um pensamento individual que
aceita, tal e qual, sua inserção no pensamento social e
que emprega as idéias preexistentes como qualquer ou­
tro utensílio fornecido pela comunidade. Mas já há algo
de quase divino no esforço, por humilde que seja, de um
espírito que se reinsere no elã vital, gerador das socieda­
des que são geradoras de idéias.
68 O PENSAMENTO E O MOVENTE

Esse esforço exorcizará certos fantasmas de proble­


mas que obsedam o metafísico, isto é, cada um de nós.
Refiro-me a esses problemas angustiantes e insolúveis
que não versam sobre aquilo que é, que versam antes so­
bre aquilo que não c.Tal é o problema da origem do scr:
"Como é possível que algo exista - matéria, espírito ou
Deus? Foi preciso uma. causa, e uma causa da causa, e as­
sim por diante, indefinidamente." Subimos de volta, en­
tão, de causa em causa; c, sc nos detemos nalguma par­
te, não c porque nossa inteligência não busca algo além,
é porque nossa imaginação acaba por fechar os olhos,
como que diante do abismo, para escapar da vertigem.
Tal é também o problema da ordem em geral: "Por que
uma realidade ordenada, na qual nosso pensamento sc
reencontra como que num espelho? Por que o mundo
não é incoerente?" Digo que esses problemas se vinculam
àquilo que não c, muito mais do que àquilo que é. Nun­
ca, com efeito, nos espantaríamos de que algo exista -
matéria, espírito, Deus - se não admitíssemos implicita­
mente que poderia não existir nada. Figuramo-nos ou,
melhor, acreditamos nos figurar que o ser veio colmatar
um vazio e que o nada preexistia logicamente ao ser: a
realidade primordial - seja ela chamada de matéria, es­
pírito ou Deus - viria então se acrescentar ao nada, e isso
é incompreensível. Do mesmo modo, não nos pergunta­
ríamos por que a ordem existe se não acreditássemos
conceber urna desordem que se teria curvado à ordem e
que, por conseguinte, a precedería, pelo menos idealmen­
te. A ordem precisaria portanto ser explicada, ao passo
que a desordem, sendo de direito, não exigiría explicação.
Tal é o ponto de vista no qual arriscamos permanecer
enquanto procurarmos apenas compreender. Mas pro­
curemos, além disso, engendrar (só o poderemos, eviden­
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE') 69

temente, pelo pensamento). À medida que dilatamos


nossa vontade, que tendemos a nela reabsorver nosso
pensamento c que simpatizamos mais com o esforço que
engendra as coisas, esses problemas formidáveis recuam,
diminuem, desaparecem. Pois sentimos que uma vonta­
de ou um pensamento divinamente criador é por demais
pleno de si mesmo, em sua imensidão de realidade, para
que a idéia de uma falta de ordem ou de uma falta de ser
possa sequer lhe ocorrer. Representar-se a possibilidade
da desordem absoluta, com mais forte razão a possibili­
dade do nada, seria, para um tal pensamento, o mesmo
que se ele se dissesse que ele poderia não ter existido de
modo algum e isso seria uma fraqueza incompatível com
sua natureza, que c força. Quanto mais nos voltamos
para ele, tanto mais as dúvidas que atormentam o ho­
mem normal e são nos parecem anormais e mórbidas.
Lembremos o duvidador que fecha uma janela, depois
volta a verificar o fecho, depois verifica sua verificação, e
assim por diante. Se lhe perguntamos seus motivos, res-
ponder-nos-á que a cada vez ele pode ter reaberto a ja­
nela ao procurar fechá-la melhor. E, se for filósofo, trans­
porá intelectualmcnte a hesitação de sua conduta neste
enunciado de problema: "Como estar certo, definitiva­
mente certo, de que se fez o que se queria fazer?" Mas a
verdade é que sua potência de agir está avariada e que é
aí que reside o mal de que padece: ele só tinha uma
meia-vontade de realizar o ato c é por isso que o ato rea­
lizado só lhe deixa uma meia-certeza. Agora, o problema
que esse homem, se põe, acaso nós o resolvemos? Evi­
dentemente não, mas nós não o pomos: aí reside nossa
superioridade. À primeira vista, eu poderia acreditar que
há mais nele do que em mim, pois fechamos ambos a ja­
nela e ele levanta, além disso, uma questão filosófica, ao
70 O PENSAMENTO E O MOVENTE

passo que eu não levanto nenhuma. Mas a questão que,


nele, sc acrescenta à tarefa feita só constitui, na verdade,
algo negativo; não c algo a mais, mas algo a menos; é um
déficit do querer. Tal é exatamente o efeito que produzem
sobre nós certos "grandes problemas", quando nos reins­
talamos no sentido do pensamento gerador. Tendem para
zero à medida que dele nos aproximamos, não sendo mais
que o afastamento entre ele e nós. Descobrimos então a
ilusão daquele que crê fazer mais ao pôr esses problemas
do que ao não os pôr. Seria o mesmo que imaginar que
há mais na garrafa bebida pela metade do que na garra­
fa cheia, pelo fato de que esta só contém vinho, ao pas­
so que na outra há vinho e, além disso, vazio.
Mas, assim que percebemos intuitivamente o verda­
deiro, nossa inteligência emenda-se, corrige-se, formula
intelectualmente seu erro. Ela recebeu a sugestão; ela
fornece o controle. Como o mergulhador vai tatear no
fundo das águas a carcaça que o aviador assinalou do
alto dos ares, assim a inteligência imersa no meio con­
ceituai irá verificar ponto por ponto, por contato, analiti-
camente, o que havia sido objeto de uma visão sintética
e supra-intclectual. Sem um aviso vindo de fora, o pen­
samento de uma ilusão possível sequer lhe teria ocorri­
do, pois sua ilusão fazia parte de sua natureza. Sacudida
de seu sono, a inteligência irá analisar as idéias de desor­
dem, de nada e suas congêneres. Irá reconhecer - ainda
que seja apenas por um instante, ainda que a ilusão rea­
pareça tão logo expulsa - que não podemos suprimir um
arranjo sem que um outro arranjo o substitua, retirar ma­
téria sem que uma outra matéria tome seu lugar. "Desor­
dem" e "nada" designam portanto realmente uma pre­
sença - a presença de uma coisa ou de uma ordem que
não nos interessa, que desaponta nosso esforço ou nos­
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 7'1

sa atenção; c nossa decepção que se exprime quando


chamamos de ausência a essa presença. Desde então, fa­
lar da ausência de toda ordem e de todas as coisas, isto
é, falar da desordem absoluta e do nada absoluto é pro­
nunciar palavras vazias dc sentido, flatus voeis, pois uma
supressão c simplesmente uma substituição considerada
por apenas uma de suas faces e a abolição de toda ordem
ou de todas as coisas seria uma substituição de face úni­
ca ' - idéia que tem exatamente tanta existência quanto a
de um quadrado redondo. Quando o filósofo fala de caos
e de nada, portanto, não faz mais do que transportar para
a ordem da especulação - elevadas ao absoluto e, por isso
mesmo, esvaziadas dc todo sentido, de todo conteúdo
efetivo - duas idéias feitas para a prática c que remetiam
então a uma espécie determinada de matéria ou de or­
dem, mas não a toda ordem, não a toda matéria. Desde
então, o que se tornam os dois problemas da origem da
ordem, da origem do ser? Desvanecem-se, uma vez que
só se põem se nos representarmos o ser c a ordem como
"sobrevindo" e, por conseguinte, o nada e a desordem
como possíveis ou pelo menos como concebíveis; ora, te­
mos aí apenas palavras, miragens de idéias.
Que ele se imbua dessa convicção, que se liberte des­
sa obsessão: imediatamente o pensamento humano res­
pira. Não se embaraça mais com questões que retarda­
vam sua marcha avante4. Vê desvanecerem-se as dificul-

4. Quando recomendamos um estado de alma no qual os proble­


mas se desvanecem, fazemo-lo, é claro, apenas para os problemas que
nos dão vertigem porque nos põem em presença do vazio. Uma coisa e
a condição quase animal de um ser que não se põe nenhuma questão,
outra o estado semidivíno de um espírito que não conhece a tentação
de evocar, por um efeito da infirmidade humana, problemas artificiais.
72 O PENSAMENTO E O MOVENTE

clades que foram levantadas sucessivamente, por exem­


plo, pelo ceticismo antigo e pelo criticismo moderno. Po­
de igualmente passar ao lado da filosofia kantiana e das
"teorias do conhecimento" oriundas do kantismo; não
se deterá nelas. Todo o alvo da Crítica ãa razão pura, com
efeito, é explicar como uma ordem definida vem se acres­
centar a materiais que são supostos incoerentes. E sa­
be-se com que preço ela nos faz pagar essa explicação:
o espírito humano imporia sua forma a uma "diversida­
de sensível" vinda não sc sabe dc onde; a ordem que en­
contramos nas coisas seria aquela que nós mesmos po­
mos nelas. De modo que a ciência seria legítima, mas re­
lativa à nossa faculdade de conhecer, e a metafísica im­
possível, rima vez que não haveria conhecimento fora
da ciência. O espírito humano é assim relegado para um
canto, como um aluno de castigo: fica proibido de virar a
cabeça para ver a realidade tal qual ela é. - Nada dc mais
natural, caso não sc tenha notado que a idéia de desor­
dem absoluta é contraditória, ou antes, inexistente, sim­
ples palavra pela qual designamos uma oscilação do es­
pírito entre duas ordens diferentes: posto isto, é absurdo
supor que a desordem preceda lógica ou cronologicamen­
te a ordem. O mérito do kantismo foi o de desenvolver em
todas as suas consequências, e apresentar sob sua forma

Para esse pensamento privilegiado, o problema está sempre a ponto de


surgir, mas é sempre detido, naquilo que tem de propriamente intelec­
tual, pela contrapartida intelectual que lhe é suscitada pela intuição. A
ilusão não é analisada, não é dissipada, uma vez que não se declara; mas
ela o seria caso se declarasse; e essas duas possibilidades antagônicas,
que são de ordem intelectual, anulam-se intelectualmente para não dei­
xar mais espaço senão para a intuição do real. Nos dois casos que cita­
mos, é a análise das idéias de desordem e de nada que fornece a contra­
partida intelectual da ilusão intelectualista.
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 73

mais sistemática, uma ilusão natural. Mas conservou-a; c


mesmo sobre ela que o kantismo repousa. Dissipemos a
ilusão: restituímos imediatamente ao espírito humano, pela
ciência e pela metafísica, o conhecimento do absoluto.
Voltamos então mais uma vez a nosso ponto de par­
tida. Dizíamos que é preciso levar a filosofia a uma pre­
cisão mais alta, pô-la em condições de resolver proble­
mas mais especiais, fazer dela a auxiliar e, se preciso for,
a rcformadora da ciência positiva. Nada de grande siste­
ma que abarca todo o possível e, por vezes, também c
impossível! Con ten temo-nos com o real, matéria e espí­
rito. Mas peçamos a nossa teoria que o abrace tão estrei­
tamente que entre ela e ele nenhuma outra interpretação
possa se imiscuir. Só haverá então uma filosofia, como só
há uma ciência. Ambas serão feitas por um esforço cole­
tivo e progressivo. É verdade que um aperfeiçoamento do
método filosófico irá se impor, simétrico e complemen­
tar daquele outrora recebido pela ciência positiva.

Tal é a doutrina que alguns haviam julgado atenta­


tória à Ciência e à Inteligência. Era um duplo erro. Mas o
erro era instrutivo, e será útil analisá-lo.
Para começar pelo primeiro ponto, notemos que ge­
ralmente não são os verdadeiros cientistas que nos re-
procharam atentar contra a ciência. Tal ou qual dentre
eles pode ter criticado tal ou qual de nossas posições: é
precisamente porque a julgava científica, porque havía­
mos transportado para o terreno da ciência, no qual ele
se sentia competente, um problema de filosofia pura. Mais
urna vez, queríamos uma filosofia que se submetesse ao
controle da ciência e que pudesse também fazê-la avan­
çar. E acreditamos tê-lo conseguido, já que a psicologia, a
neurologia, a patologia, a biologia, cada vez mais sc abri -
74 O PENSAMENTO E O MOVENTE

ram para nossas posições, de início julgadas paradoxais.


Mas, tivessem cias permanecido paradoxais, ainda assim
essas posições não teriam nunca sido anti científicas. Te -
riam sempre testemunhado um esforço no sentido de
constituir uma metafísica que possuísse uma fronteira
comum com a ciência e que pudesse então, em uma sé­
rie de pontos, prestar-se a uma verificação. Ainda quem
não tivesse caminhado ao longo dessa fronteira, mas ti­
vesse simplesmente notado que havia uma tal fronteira
e que metafísica e ciência podiam assim se tocar, já se te-
ria dado conta do lugar que conferimos à ciência positi­
va; nenhuma filosofia, dizíamos, nem mesmo o positivis­
mo, a colocou tão alto; à ciência, assim como à metafísi­
ca, atribuímos o poder de atingir um absoluto. Apenas
pedimos à ciência que permanecesse científica e não se
fizesse acompanhar por uma metafísica inconsciente,
que se apresenta então para os ignorantes ou para os se-
micientistas, sob a máscara da ciência. Durante mais de
meio século, esse "cientismo" fez obstáculo à metafísica.
Todo esforço de intuição era desencorajado antecipada­
mente; quebrava-se contra negações que se acreditava
serem científicas. É verdade que, em mais de um caso,
elas emanavam de verdadeiros cientistas. Estes eram ilu­
didos, de fato, pela má metafísica que se pretendeu tirar
da ciência e que, voltando à ciência de ricochete, falsea­
va a ciência em muitos pontos. E que chegava a falsear a
observação, interpondo-se em alguns casos entre o ob­
servador e os fatos. É disso que acreditamos outrora po­
der dar a demonstração a partir de exemplos precisos, o
das afasias em particular, para o bem da ciência ao mes­
mo tempo que da filosofia. Mas suponhamos mesmo
que alguém não queira ser nem suficientemente metafí­
sico nem suficientemente cientista para entrar nesse tipo
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 75

de consideração, que se desinteresse do conteúdo da


doutrina, que ignore seu método: um simples lance de
olhos deitado às aplicações mostra que trabalho de cir-
cunvalação científica ela exige antes do ataque do menor
problema. É o quanto basta para ver o lugar que conce­
demos à ciência. Na verdade, a principal dificuldade da
investigação filosófica, tal como a compreendemos, resi­
de aí. Raciocinar sobre idéias abstratas é fácil: a cons­
trução metafísica é uma brincadeira, por pouco que a ela
estejamos predispostos. Aprofundar jntuitivamente o es­
pírito c talvez mais árduo, mas nenhum filósofo traba­
lhará nisso por muito tempo seguido; rapidamente per­
ceberá, a cada vez, o que ele estava em condições de perce­
ber. Em compensação, sc aceitamos um tal método, não
se terá nunca feito o que basta em termos de estudos pre­
paratórios, nunca se terá suficientemente aprendido. Eis
um problema filosófico. Não o escolhemos, nós o encon­
tramos. Ele nos barra a via e, desde então, é preciso afas­
tar o obstáculo ou deixar de filosofar. Não há subterfú­
gio possível; adeus ao artifício dialético que adormece a
atenção e que dá, em sonho, a ilusão de avançar. A di­
ficuldade deve ser resolvida e o problema analisado nos
seus elementos. Para onde seremos conduzidos? Nin­
guém sabe. Ninguém poderá dizer nem mesmo qual é
a ciência sob cuja alçada irão cair os novos problemas.
Poderá ser uma ciência que nos é completamente estra­
nha. Que digo eu? Não bastará travar conhecimento com
ela, nem tampouco levar muito longe seu aprofunda­
mento: por força teremos às vezes que lhe reformar al­
guns procedimentos, alguns hábitos, algumas teorias, re­
grando-nos justamente pelos fatos e pelas razões que sus
citaram questões novas. Seja; iniciar-nos-emos na ciência
que ignoramos, aprofundá-la-emos, reformá-la-emos se
76 O PENSAMENTO E O MOVENTE

preciso for. E se forem precisos meses ou anos? Consa-


grar-lhe-emos o tempo que for necessário. E se uma vida
não bastar? Muitas vidas a levarão a cabo: doravante, ne­
nhum filósofo está obrigado a construir toda a filosofia.
Eis o discurso que endereçamos ao filósofo. Tal é o mé­
todo que lhe propomos. Esse método exige que o filó­
sofo esteja sempre pronto, seja lá qual for sua idade, a
reinstituir-se como estudante.
A bem dizer, a filosofia está bem próxima de chegar
a tanto. A mudança já se operou em alguns pontos. Sc
nossas posições, quando surgiram, foram geralmente jul­
gadas paradoxais, algumas delas são hoje banais; outras
estão a ponto de se tornarem tais. Reconheçamos que
não podiam ser aceitas de início. Teria sido preciso arran­
car-se de hábitos profundamente enraizados, verdadeiros
prolongamentos da natureza. Iodos os modos de falar,
de pensar, de perceber implicam, com efeito, que a imo­
bilidade e a imutabilidade sejam de direito, que o movi­
mento e a mudança venham acrescentar-se, como aci­
dentes, a coisas que, por si mesmas, não se movem e, em
si mesmas, não mudam. A representação da mudança é
a representação de qualidades ou de estados que se su­
cederíam numa substância. Cada uma das qualidades,
cada um dos estados seria algo estável, a mudança sen­
do feita de sua sucessão: quanto à substância, cujo papel
é o de suportar os estados e as qualidades que se suce­
dem, eia seria a própria estabilidade. Tal é a lógica ima-
nente às nossas línguas, formulada de uma vez por todas
por Aristóteles: a inteligência tem por essência julgar e o
juízo é operado pela atribuição de um predicado a um
sujeito. O sujeito, pelo simples fato de que o nomeamos,
é definido como invariável; a variação irá residir na di­
versidade dos estados que dele forem afirmados sucessi­
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 77

vamente. Procedendo assim por aposição de um predi­


cado a um sujeito, do estável ao estável, seguimos a incli­
nação de nossa inteligência, conforma mo-nos às exigên­
cias de nossa linguagem e, para dizer tudo, obedecemos
à natureza. Pois a natureza predestinou o homem à vida
social; ela quis o trabalho em comum; e esse trabalho
será possível se pusermos dc um lado a estabilidade ab­
solutamente definitiva do sujeito, do outro as estabilida-
des provisoriamente definitivas das qualidades e dos es­
tados, que se revelarão serem atributos. Enunciando o su­
jeito, acostamos nossa comunicação a um conhecimento
que nossos interlocutores já possuem, uma vez que a
substância é suposta invariável; eles sabem, doravante,
para que ponto dirigir sua atenção; virá então a informa­
ção que lhe queremos dar, na expectativa da qual os co­
locavamos ao introduzir a substância, e que lhes é trazi­
da pelo atributo. Mas não é apenas ao nos moldar para a
vida social, ao nos dar a máxima latitude para a organi­
zação da sociedade, ao tornar assim necessária a lingua­
gem, que a natureza nos predestinou a ver, na mudança
e no movimento, acidentes, a erigir a imutabilidade e a
imobilidade cm essências ou substâncias, em suportes. É
preciso acrescentar que nossa percepção procede, ela pró­
pria, conforme essa filosofia. Recorta, na continuidade da
extensão, corpos escolhidos precisamente de tal modo
que possam ser tratados como invariáveis enquanto se
os considera. Quando a variação é forte demais para não
impressionar, dizemos que o estado com o qual nos de­
frontavamos cedeu o lugar para outro, o qual tampouco
irá variar. Aqui, mais uma vez, é a natureza, preparadora
da ação individual e social, que traçou as grandes linhas
de nossa linguagem e de nosso pensamento, sem fazer,
por outro lado, com que coincidissem, e deixando Cam
78 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

bém um largo espaço para a contingência e a variabilida­


de. Bastará, para convencer-se disso, comparar com nos­
sa duração aquilo que se podcria chamar dc duração das
coisas: dois ritmos bem diferentes, calculados de tal modo
que no menor intervalo perceptível dc nosso tempo cai­
bam bilhões de oscilações ou, de modo mais geral, de
acontecimentos exteriores que se repetem: essa imensa
história, que levaríamos centenas de séculos para desen­
rolar, nós a apreendemos numa síntese indivisível. As­
sim, a percepção, o pensamento, a linguagem, todas as
atividades individuais ou sociais do espírito conspiram
para nos colocar em presença de objetos que podemos
tomar por invariáveis e imóveis enquanto os considera­
mos, assim como também em presença de pessoas, in­
clusive a nossa, que aos nossos olhos se tornarão objetos
e, desse modo, substâncias invariáveis. Como erradicar
uma inclinação tão profunda? Como levar o espírito hu­
mano a inverter o sentido de sua operação habitual, como
levá-lo a partir da mudança e do movimento, considera­
dos como a própria realidade, e a não ver mais nas para­
das ou nos estados senão instantâneos que são tomados
de algo movente? Será preciso mostrar-lhe que, embora
a marcha habitual do pensamento seja praticamente útil,
cômoda para a conversação, a cooperação, a ação, ela con­
duz a problemas filosóficos que são e que permanecerão
insolúveis, por terem sido postos às avessas. É precisa­
mente pelo fato de que se via que eram insolúveis e pelo
fato de que não apareciam como malpostos que se con­
cluía pela relatividade de todo conhecimento e pela im­
possibilidade de atingir o absoluto. O sucesso do positi­
vismo e do kantismo, atitudes de espírito mais ou menos
gerais quando começavamos a filosofar, provinha princi­
palmente daí. À atitude humilhada iríamos renunciar
INTRODUÇÃO (SECUNDA PA RTE) 7U

pouco a pouco, à medida que percebéssemos a verdadei­


ra causa das antinomias irredutíveis. Estas eram de fabri­
cação humana. Não provinham do fundo das coisas, mas
de um transporte automático, para a especulação, dos há­
bitos contraídos na ação. Aquilo que um deixar-correr da
inteligência havia feito, um esforço da inteligência pode­
ría desfazer. E, para o espírito humano, isso seria uma li­
bertação.
Apressemo-nos, aliás, em dizê-lo: um método que
vem a ser proposto só se fará compreender se for aplica­
do a um exemplo. Aqui, o exemplo nem precisava ser pro­
curado. Tratava-se de recuperar a vida interior, por sob a
justaposição, por nós efetuada, de nossos estados num
tempo espacializado. A experiência estava ao alcance de
todos; e aqueles que quiseram de fato fazê-la não tive­
ram dificuldade em se representar a substancialidade do
eu como sua duração mesma. É, dizíamos, a continuida­
de indivisível e indestrutível de uma melodia onde o
passado entra no presente e forma com eie um todo in-
diviso, o qual permanece indiviso e mesmo indivisível a
despeito de tudo aquilo que a ele se acrescenta a cada ins­
tante ou, melhor, graças àquilo que a ele se acrescenta.
Dele, temos a intuição; mas, assim que procuramos ob­
ter uma sua representação intelectual, alinhamos uns na
seqüência dos outros estados que se tornaram distintos
como as pérolas de um colar e que, então, para serem man­
tidos juntos, precisam de um fio que não é nem isto nem
aquilo, que não se assemelha em nada às pérolas, que
não se assemelha em nada a coisa alguma, entidade va­
zia, simples palavra. A intuição dá-nos a coisa, da qual a
inteligência não apreende mais que a transposição espa­
cial, a tradução metafórica.
Tudo isso é claro acerca de nossa própria substância.
O que pensar da substância das coisas? Quando come
80 O PENSAMENTO E O MOVENTE

çamos a escrever, a física ainda não havia realizado os


progressos decisivos que iriam renovar suas idéias sobre
a estrutura da matéria. Mas, convencidos, desde então,
de que imobilidade e invariabilidade não eram mais que
vistas que são tomadas do movente e do cambiantc, não
podíamos acreditar que a matéria, cuja imagem sólida
havia sido obtida por imobílizações de mudança, perce­
bidas então como qualidades, fosse composta por ele­
mentos sólidos como ela. Em vão as pessoas sc abstinham
de toda representação imagética do átomo, do corpúscu­
lo, do elemento último, seja lá ele qual for: tratava-se,
apesar de tudo, de uma coisa, que serve de suporte a mo­
vimentos c a mudanças e que, por conseguinte, em si
mesma não muda c por si mesma não sc move. Cedo ou
tarde, pensavamos, havería que renunciar à idéia de su­
porte. Dissemos uma palavra acerca disso em nosso pri­
meiro livro: é em "movimentos de movimentos" que de­
sembocavamos, sem poder, por outro lado, precisar me­
lhor nosso pensamento5. Procuramos uma aproximação
um pouco melhor na obra seguinte6. Fomos ainda mais
longe cm nossas conferências sobre "a percepção da mu­
dança"7. A mesma razão que iria nos levar a escrever mais
tarde que "a evolução não poderia scr reconstituída com
fragmentos do evoluído" levava-nos a pensar que o só­
lido deve resolver-se em algo inteiramente diferente do
sólido. A inevitável propensão de nosso espírito a repre-
sentar-sc o elemento como fixo era legítima em outros
domínios, uma vez que se trata de uma exigência da ação:

5. Essai sur les demn^es immediate^ de /<? conscience, Paris, 1889, p. 156.
6. Matière et mémoirc, Paris, 1896, sobretudo as pp. 221-8. Cf. todo
o capítulo IV e, em particular, a p. 233.
7. La perception du chaiigement [A percepção da mudança], Oxford,
1911 (conferências reproduzidas no presente volume).
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 8'1

justamente por isso, a especulação precisava aqui se man­


ter em guarda contra ela. Mas só podíamos chamar a
atenção para esse ponto. Cedo ou tarde, pensavamos, a
física seria levada a ver na fixidcz do elemento uma for­
ma de mobilidade. Nesse dia, c verdade, a ciência prova­
velmente renunciaria a procurar obter dele uma repre­
sentação imagética, a imagem de um movimento sendo
a de um ponto (isto é, ainda um sólido minúsculo) que
se move. De fato, as grandes descobertas teóricas desses
últimos anos levaram os físicos a supor uma espécie de
fusão entre a onda e o corpúsculo - diriamos entre a subs­
tância e o movimento8. Um pensador profundo, vindo da
matemática para a filosofia, verá um pedaço de ferro como
"uma continuidade melódica"9.
Longa seria a lista dos "paradoxos", mais ou menos
aparentados a nosso "paradoxo" fundamental, que fran­
quearam desse modo o intervalo que vai da improbabi­
lidade para a probabilidade, para se encaminhar talvez
para a banalidade. Novamente, por mais que tivéssemos
partido de uma experiência direta, os resultados dessa ex­
periência só poderíam ser adotados se o progresso da
experiência exterior e de todos os procedimentos de ra­
ciocínio que a ela se vinculam impusessem sua adoção.
Nós mesmos não íamos além: essa conseqüência de nos­
sas primeiras reflexões só foi claramente percebida c de­
finitivamente aceita por nós quando a ela chegamos por
um caminho inteiramente diferente.

8. Ver, a esse respeito, Bachelard, "Noumène et microphysique",


pp. 55-65 da coletânea Recherches philosophiques, Paris, 1931-1932.
9. Sobre essas idéias de Whitehead e sobre seu parentesco com as
nossas, ver J. Wahl, "La philosophic speculative de Whitehead", pp. 145-55,
em Vers le concrei, Paris, 1932.
82 O PENSAMENTO E O MOVENTE

Citaremos como exemplo nossa concepção da rela­


ção psicofisiológica. Quando nos pusemos o problema da
ação recíproca do corpo e do espírito um sobre o outro,
foi unicamente porque o havíamos encontrado cm nosso
estudo dos "dados imediatos da consciência". A liberda­
de aparecera-nos então como um fato; e, por outro lado,
a afirmação do determinismo universal, que era posta pe­
los cientistas como uma regra de método, era geralmen­
te aceita pelos filósofos como um dogma científico. Seria
a liberdade humana compatível com o determinismo da
natureza? Uma vez que a liberdade havia se tornado para
nós um fato indubitável, foi praticamente considerada
apenas em si mesma, em nosso primeiro livro: o deter­
minismo arranjar-sc-ia com ela como pudesse; certamcn-
te se arranjaria, nenhuma teoria podendo resistir por mui­
to tempo a um fato. Mas o problema afastado ao longo
de todo nosso primeiro trabalho erguia-se agora diante
de nós inclutavelmente. Fiéis ao nosso método, pedimos
a esse problema que se pusesse em termos menos gerais
e mesmo, caso fosse possível, que assumisse uma forma
concreta, que esposasse os contornos de alguns fatos que
estivessem ao alcance da observação direta. Inútil relatar
aqui como o problema tradicional da "relação do espíri­
to com o corpo" se estreitou diante de nós a ponto de
não ser mais que o problema da localização cerebral da
memória, c como esta última questão, ela própria vasta
demais, acabou pouco a pouco por concernir apenas à
memória das palavras, mais especialmcnte ainda às doen­
ças dessa memória particular, as afasias. O estudo das di­
versas afasias, que empreendemos com a única preocu­
pação de desentranhar os fatos no estado puro, mostrou-
nos que entre a consciência e o organismo havia uma re­
lação que nenhum raciocínio poderia ter construído a
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 83

priori, uma correspondência que não era nem o parale­


lismo nem o epifenomenismo, nem nada de semelhan­
te. O papel do cérebro era o de escolher a todo instante,
dentre as lembranças, aquelas que poderíam iluminar a
ação começada, e excluir as outras. Voltavam a ser cons­
cientes, portanto, as lembranças capazes de se inserirem
no quadro motor incessantemente cambiante, mas sem­
pre preparado; o resto permanecia no inconsciente. Des­
se modo, o papel do corpo era, assim como faz o maes­
tro para uma partitura musical, o de interpretar a vida do
espírito, de sublinhar suas articulações motoras; o cére­
bro não tinha por função pensar, mas impedir o pensa­
mento de se perder no sonho; era o órgão da atenção à
vida. Tal era a conclusão à qual éramos encaminhados
pelo minucioso estudo dos fatos normais e patológicos e,
de modo mais geral, pela observação exterior. Mas so­
mente então percebemos que a experiência interna no
estado puro, ao nos dar uma "substância''’ cuja essência
mesma consiste em durar e, por conseguinte, em prolon­
gar incessantemente no presente um passado indestru­
tível, nos teria dispensado e mesmo nos teria proibido de
procurar saber em que lugar a lembrança está conserva­
da. Conserva-se a si mesma, como o admitimos todos
quando pronunciamos uma palavra, por exemplo. Para
pronunciá-la, forçoso é que nos lembremos de sua pri­
meira metade no momento em que articulamos a segun­
da. Ninguém julgará, no entanto, que a primeira tenha
sido imediatamente depositada em uma gaveta, cerebral
ou não, para que a consciência venha ali procurá-la no
instante seguinte. Mas, se assim se dá com a primeira
metade da palavra, dar-se-á o mesmo com a palavra pre­
cedente, que se consubstancia com ela no que diz respei­
to ao som e ao sentido; dar-se-á o mesmo com o come­
84 O PENSAMENTO E O MOVENTE

ço da frase e com a. frase anterior, e com todo o discurso,


que poderiamos ter feito muito longo, indefin.idam.ente
longo sc assim quiséssemos. Ora, nossa vida inteira, des­
de o primeiro despertar de nossa consciência, é algo como
esse discurso indefinidamente prolongado. Sua duração
é substancial, indivisível enquanto duração pura. Assim, a
rigor, poderiamos ter economizado vários anos de inves­
tigação. Mas, como nossa inteligência não era diferente
da dos outros homens, a força de convicção que acompa­
nhava nossa intuição da duração quando nos atínhamos
à vida interior não sc estendia, muito mais longe. Sobre­
tudo, não poderiamos, com aquilo que havíamos anotado
dessa vida interior em nosso primeiro livro, ter aprofun­
dado, como fomos levados a fazê-lo, as diversas funções
intelectuais, memória, associação de idéias, abstração, ge­
neralização, interpretação, atenção. A psicofisiologia, de um
lado, a psicopatologia, de outro, dirigiram o olhar de nos­
sa consciência para mais de um problema que, sem elas,
nós teríamos negligenciado estudar e cujo estudo nos fez
pôr de um. modo diferente. Os resultados assim obtidos
não deixaram de repercutir na psicofisiologia e na psico­
patologia elas próprias. Para nos limitarmos a essa últi­
ma ciência, mencionaremos simplesmente a importância
crescente que assumiram progressivamente as conside­
rações de tensão psicológica, de atenção à vida, e tudo o
que está envolvido no conceito de "esquizofrenia". Nem
mesmo nossa idéia de uma conservação integral do pas­
sado deixou de encontrar cada vez mais sua verificação
empírica no vasto conjunto dc experiências instituído pe­
los discípulos de Freud.
Ainda mais lentas a se fazerem aceitar são concep­
ções situadas no ponto de convergência de três especu­
lações diferentes, e não mais apenas de duas. Estas são de
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 85

ordem metafísica. Dizem respeito à apreensão da maté­


ria pelo espírito e deveríam pôr fim ao antigo conflito do
realismo e do idealismo ao deslocar a linha de demarca­
ção entre o sujeito e o objeto, entre o espírito e a maté­
ria. Aqui, novamente, o problema resolve-se ao ser pos­
to de outro modo. Por si mesma, a análise psicológica
nos havia mostrado na memória planos de consciência
sucessivos, desde o "plano do sonho" - o mais extenso de
todos, sobre o qual está desdobrado, como que sobre a
base de uma pirâmide, todo o passado da pessoa - até o
ponto - comparável ao topo - onde a memória não c mais
que a percepção do atual com ações nascentes que a pro­
longam. Estaria essa percepção de todos os corpos cir­
cundantes sediada no corpo organizado? Geralmente, é
o que se acredita. A ação dos corpos circundantes exer-
cer-se-ia sobre o cérebro por intermédio dos órgãos dos
sentidos; no cérebro sc elaborariam sensações e percep­
ções inextensivas: essas percepções seriam projetadas no
exterior pela consciência e viriam de certa forma recobrir
os objetos exteriores. Mas a comparação dos dados da
psicologia com os da fisiologia mostrava-nos algo intei­
ramente diferente. A hipótese de uma projeção excêntri­
ca das sensações aparecia-nos como falsa quando a con­
sideravamos superficial mente, como cada vez menos in­
teligível à medida que a aprofundavamos, como bastan­
te natural, no entanto, quando se levava em conta tanto
a direção na qual psicologia e filosofia se haviam embre­
nhado quanto a inevitável ilusão em que se caía quando
se recortava de determinado modo a realidade para pôr
os problemas em determinados termos. Era-se obrigado
a imaginar no cérebro não sei que representação reduzi­
da, não sei que miniatura do mundo exterior, a qual se re­
duzia mais ainda e se tornava mesmo inextensa de modo
86 O PENSAMENTO E O MOVENTE

que passasse dali para a consciência: esta última, munida


do Espaço como de uma "forma", restituía a extensão ao
inextenso e reencontrava, por uma reconstrução, o mun­
do exterior. Todas essas teorias caíam, junto com a ilusão
que as havia originado. Não é em nós, é neles que per­
cebemos os objetos; é, pelo menos, neles que os perce­
beriamos se nossa percepção fosse "pura". Tai era nossa
conclusão. No fundo, voltavamos simplesmente à idéia
do senso comum. "Espantaríamos muito, escrevíamos
nós, um homem alheio às especulações filosóficas ao lhe
dizer que o objeto que ele tem diante de si, que ele vê e
que ele toca, só existe em seu espírito e para seu espírito
ou, mesmo, de modo mais geral, só existe para um espí­
rito, como o queria Berkeley... Mas, por outro lado, es­
pantaríamos do mesmo tanto esse interlocutor ao lhe di­
zer que o objeto é inteiramente diferente daquilo que
nele percebemos.., Portanto, para o senso comum, o ob­
jeto existe em si mesmo c, por outro lado, o objeto é, cm
si mesmo, pitoresco como o percebemos: é uma imagem,
mas uma imagem que existe cm si."w Como uma doutri­
na que se colocava aqui do ponto de vista do senso co­
mum pôde parecer tão estranha? Isso se explica facil­
mente quando se acompanha o desenvolvimento da fi­
losofia moderna e quando se vê como esta se orientou
desde o início para o idealismo, cedendo a um ímpeto que
era exatamente o da ciência nascente. O realismo pôs-se
do mesmo modo; formulou-se por oposição ao idealismo,
utilizando os mesmos termos; de modo que se criaram
entre os filósofos certos hábitos de espírito em virtude dos
quais o "objetivo" c o "subjetivo" eram repartidos apro­
ximadamente do mesmo modo por todos, qualquer que

10. Matière ei mémoire, prefácio da sétima edição, p. II.


INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 87

fosse a relação estabelecida entre os dois termos e qual­


quer que fosse a escola filosófica à qual se estivesse vin­
culado. Renunciar a esses hábitos era de uma dificulda­
de extrema; percebemo-lo pelo esforço quase doloroso,
sempre a ser recomeçado, que nós mesmos precisamos
fazer para voltar a um ponto de vista que se assemelha­
va tão fortemente ao do senso comum. O primeiro capí­
tulo de Matière et mémoire, no qual consignamos o resul­
tado de nossas reflexões sobre as "imagens", foi julgado
obscuro por todos aqueles que tinham em alguma medi­
da o hábito da especulação filosófica, e exatamente em
razão desse hábito. Não sei se a obscuridade se dissipou:
o que é certo é que as teorias do conhecimento que vie­
ram à luz nesses últimos tempos, sobretudo no estrangei­
ro, parecem deixar de lado os termos nos quais kantianos
e anti-kantianos concordavam em pôr o problema. Volta-
se ao imediatamente dado, ou tende-se a tanto.
Isso, no que diz respeito à Ciência e ao reproche que
nos fizeram de combate-la. Quanto à Inteligência, real­
mente não havia que se agitar tanto por causa dela. Por
que não consultá-la primeiro? Sondo inteligência e, por
conseguinte, tudo compreendendo, ela teria compreen­
dido e dito que só lhe queríamos bem. Na verdade, o que
se defendia contra nós era, primeiro, um racionalismo
seco, feito sobretudo de negações, e do qual eliminava­
mos a parte negativa pelo simples fato de propor certas
soluções; era, depois, e talvez principalmente, um verba-
lismo que ainda vicia uma boa parte do conhecimento e
que queríamos afastar definitivamente.
O que é, dc fato, a inteligência? A maneira humana
de pensar. Foi-nos dada, como o instinto à abelha, para
dirigir nossa conduta. A natureza tendo nos destinado a
utilizar e a dominar a matéria, a inteligência só evolui com
88 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

facilidade no espaço e só se sente à vontade no inorga-


nizado. Originariamente, tende à fabricação; manifesta-se
através dc uma atividade que preludia a arte mecânica
e através de uma linguagem que anuncia a ciência - todo
o resto da mentalidade primitiva sendo crença e tradição.
O desenvolvimento normal da inteligência efetua-se por­
tanto na direção da ciência e da tecnicidade. Uma me­
cânica ainda grosseira suscita uma matemática ainda
imprecisa: esta, tomada científica e fazendo então surgir
as outras ciências em volta de si, aperfeiçoa indefinida­
mente a arte mecânica. Ciência e arte introduzem-nos
assim na intimidade de uma matéria que uma delas pen­
sa e a outra manipula. Por esse lado, a inteligência aca­
baria, em princípio, por tocar num absoluto. Ela seria en­
tão completamente ela mesma. Vaga de início, uma vez
que não era mais que um pressentimento da matéria, de­
senha-se a si mesma tanto mais nitidamente quanto mais
precisamente conhece a matéria. Mas, precisa ou vaga,
ela é a atenção que o espírito presta à matéria. Como en­
tão poderia o espírito ser ainda inteligência quando se
volta sobre si mesmo? Podemos dar às coisas o nome
que quisermos, e não vejo maiores inconvenientes, eu o
repito, em que o conhecimento do espírito pelo espírito
seja ainda chamado de inteligência, caso se faça questão,
Mas será preciso especificar então que há duas funções
intelectuais, uma inversa da outra, pois o espírito só pen­
sa o espírito escalando de volta a inclinação dos hábitos
contraídos no contato com a matéria, e esses hábitos são
aquilo que comumente se chama de tendências intelec­
tuais. Não seria então melhor designar por um outro no­
me uma função que certamente não é aquilo que se cha­
ma ordinariamente de inteligência? Dizemos que se trata
de intuição. Ela representa a atenção que o espírito presta
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) W

em si mesmo, de sobejo, enquanto se fixa sobre a maté­


ria, seu objeto. Essa atenção suplementar pode ser me­
todicamente cultivada e desenvolvida. Assim irá se cons-
tituir uma ciência do espírito, uma metafísica verdadeira,
que irá definir o espírito positivamente em vez de sim­
plesmente negar dele tudo o que sabemos da matéria.
Assim compreendendo a metafísica, conferindo à intui­
ção o conhecimento do espírito, nada retiramos à inteli­
gência, pois pretendemos que a metafísica que era obra
de inteligência pura eliminava o tempo, e que, desde en­
tão, ela negava o espírito ou o definia por negações: esse
conhecimento inteiramente negativo do espírito, nós o
deixaremos de bom grado para a inteligência se a inteli­
gência fizer questão dele; apenas pretendemos que bá
outro. Em nenhum aspecto, portanto, diminuímos a inte­
ligência; não a expulsamos de nenhum dos terrenos que
ela ocupava até hoje; e, ali onde ela está inteiramente em
casa, atribuímo-lhe um poder que a filosofia moderna
geralmente lhe contestou. Só que, ao lado dela, consta­
tamos a existência de uma outra faculdade, capaz de uma
outra espécie de conhecimento. Temos assim, de um lado,
a ciência e a arte mecânica, que são da alçada da inteli­
gência pura; do outro, a metafísica, que recorre à intui­
ção. Entre essas duas extremidades virão então se colo­
car as ciências da vida moral, da vida social, e mesmo da
vida orgânica, estas mais intelectuais, aquelas mais intui­
tivas. Mas, intuitivo ou intelectual, o conhecimento será
marcado pelo selo da precisão.
Nada há de preciso, pelo contrário, na conversação,
que é a fonte ordinária da "crítica". De onde vêm as idéias
que nela se trocam? Qual é o alcance das palavras? Não
se deve acreditar que a vida social seja um hábito adqui­
rido e transmitido. O homem está organizado para a ci­
90 O PENSAMENTO E O MOVENTE

dade como a formiga para o formigueiro, com esta dife­


rença, no entanto, de que a formiga possui os meios já
prontos para atingir o objetivo, ao passo que nós traze­
mos o que é necessário para reinventá-los e, por conse­
guinte, para variar-lhes a forma, Então, por mais que cada
palavra de nossa linguagem seja convencional, a lingua­
gem não é uma convenção e falar é tão natural para o
homem quanto andar. Ora, qual é a função primitiva da
linguagem? É estabelecer uma comunicação com. vistas
a uma cooperação. A linguagem transmite ordens ou
avisos. Prescreve ou descreve. No primeiro caso, é a con­
vocação à ação imediata; no segundo, é o assinai amento
da coisa ou de alguma de suas propriedades, com vistas
à ação futura. Mas, num caso como no outro, a função é
industrial, comercial, militar, sempre social. As coisas que
a linguagem descreve foram recortadas no real pela per­
cepção humana com vistas ao trabalho humano. As pro­
priedades que ela assinala são as convocações da coisa
para uma atividade humana. A palavra será portanto a
mesma, como o dizíamos, quando a manobra sugerida
for a mesma e nosso espírito atribuirá a coisas diversas a
mesma propriedade, representá-las-á do mesmo modo,
agrupá-las-á, por fim, sob a mesma idéia, em todos os
casos em que a sugestão do mesmo partido a extrair, da
mesma ação a fazer, suscitar a mesma palavra. Tais são as
origens da palavra e da idéia. Ambas certamente evoluí­
ram. Não são mais tão grosseiramente utilitárias. Perma­
necem utilitárias, no entanto. O pensamento social não
pode deixar de conservar sua estrutura original. Seria in­
teligência ou intuição? Concedo que a intuição nele der­
rame um pouco de sua luz: não há pensamento sem es­
pírito de finura, e o espírito de finura é o reflexo da intui­
ção na inteEgência. Concedo também que essa parte tão
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 91

módica de intuição se tenha alargado, que ela tenha dado


origem à poesia, depois à prosa, e tenha convertido em
instrumentos de arte as palavras que, de início, eram ape­
nas sinais: pelos gregos, sobretudo, operou-se esse mila­
gre. Nem por isso é menos verdade que pensamento e
linguagem, originariamente destinados a organizar o tra­
balho dos homens no espaço, são de essência intelec­
tual. Mas trata-se necessariamente de uma intelectuali­
dade vaga - adaptação muito geral do espírito à matéria
que a sociedade precisa utilizar. Que a filosofia tenha de
início se contentado com isto e que tenha começado por
ser dialética pura, nada de mais natural. Não dispunha
de outra coisa. Um Platão, um Aristóteles adotam o re­
corte da realidade que encontram já pronto na lingua­
gem: "dialética", que se prende a ôiaÀéyav, SiaXéTEcOat,
significa ao mesmo tempo "diálogo" e "distribuição"; uma
dialética como a de Platão era ao mesmo tempo uma
conversação na qual se procurava estabelecer um acordo
sobre o sentido de uma palavra e uma repartição das coi­
sas segundo as indicações da linguagem. Mas, cedo ou
tarde, esse sistema de idéias calcadas nas palavras havia
de ceder o lugar para um conhecimento exato represen­
tado por signos mais precisos; a ciência constituir-se-ia
então tomando explicitamente a matéria como objeto, a
experimentação como meio, a matemática como ideal; a
inteligência chegaria assim ao completo aprofundamen­
to da materialidade e, por conseguinte, também de si
mesma. Cedo ou tarde, também, iria se desenvolver uma
filosofia que se libertaria por sua vez da palavra, mas
desta vez para ir em sentido inverso ao da matemática e
para acentuar, do conhecimento primitivo e social, o in­
tuitivo ao invés do intelectual. Entre a intuição e a inteli­
gência assim intensificadas, no entanto, a linguagem ha-
92 O PENSAMENTO E O MOVENTE

veria de permanecer. Esta continua, com efeito, o que


sempre foi. Em vão carregou-se de mais ciência c mais
filosofia; nem por isso deixa de continuar a cumprir sua
função. A inteligência, que de início se confundia, com
ela e que participava de sua imprecisão, precisou-se em
ciência; apoderou-se da materia. A intuição, que a fazia
sentir sua influência, gostaria de se alargar em filosofia e
tornar-se coextensiva ao espírito. Entre elas, no entanto,
entre essas duas formas do pensamento solitário, subsis­
te o pensamento em comum, que, de início, foi todo o
pensamento humano. É ele que a linguagem continua a
exprimir. Esta se lastreou dc ciência, eu o concedo; mas
o espírito científico exige que tudo seja reposto em ques­
tão a todo instante, e a linguagem precisa de estabilida­
de. Está aberta à filosofia; mas o espírito filosófico sim­
patiza com a renovação e a reinvenção sem fim que es­
tão no fundo das coisas, e as palavras têm um sentido
definido, um valor convencional relativamente fixo; só
podem exprimir o novo como um rearranjo do antigo.
Chama-se correntemente e talvez imprudentemente de
"razão" essa lógica conservadora que rege o pensamen­
to em comum: conversação lembra muito conservação.
Ali está em casa. E ali exerce uma autoridade legítima.
Teoricamente, com efeito, a conversação só deveria ver­
sar sobre as coisas da vida social. E o objetivo essencial
da sociedade é inserir uma certa fixidez na mobilidade
universal. Tantas são as sociedades, tantas são as ilhotas
consolidadas, aqui e ali, no oceano do devir. Essa conso­
lidação é tanto mais perfeita quanto mais inteligente é a
atividade social. A inteligência geral, faculdade de arran­
jar "racionalmente" os conceitos e de manejar conve­
nientemente as palavras, deve portanto concorrer para a
vida social, assim como a inteligência no sentido mais
INTRODUÇÃO (SEGUiVDA PARTE) 93

estrito, função matemática do espírito, preside ao conhe­


cimento da matéria. É sobretudo na primeira que pensa­
mos quando dizemos acerca de um homem que ele é in­
teligente. Entendemos com isso que ele tem habilidade e
facilidade em fazer casarem entre si os conceitos usuais
para deles extrair conclusões prováveis. Só lhe podemos
ser gratos, enquanto ele se ativer às coisas da vida cor­
rente, para a qual os conceitos foram feitos. Mas não ad­
mitiriamos que um homem simplesmente inteligente se
imiscuísse da decisão das questões científicas, ao passo
que a inteligência tornada precisada em ciência se torna
espírito matemático, físico, biológico, e substitui as pala­
vras por signos mais apropriados. Com mais forte razão
cabería proibir sua intrusão na filosofia, quando as ques­
tões postas não são mais da alçada exclusiva da inteli­
gência. Mas não, entende-se que o homem inteligente é,
aqui, um homem competente. É contra isso que protes­
tamos primeiro. Colocamos muito alto a inteligência. Mas
temos cm medíocre estima o "homem inteligente", há­
bil em falar verossimilmente de todas as coisas.
Hábil em falar, pronto a criticar. Quem quer que se
tenha desprendido das palavras para ir às coisas, para
reencontrar-lhes as articulações naturais, para aprofun­
dar experimentalmente um problema, sabe bem que o
espírito caminha então de surpresa em surpresa. Fora do
domínio propriamente humano, quero dizer, social, o ve­
rossímil quase nunca c verdadeiro. A natureza pouco se
preocupa em facilitar nossa conversação. Entre a realida­
de concreta e aquela que teremos reconstruído a priori,
que distância! Atém-se a essa reconstrução, no entanto,
um espírito que é apenas crítico, uma vez que seu papel
não é o de trabalhar sobre a coisa, mas o de avaliar aqui­
lo que alguém disse a seu respeito. Como irá ele fazer tal
0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

avaliação, a não ser comparando a solução que lhe tra­


zem, extraída da coisa, com aquela que ele teria compos­
to com as idéias correntes, isto é, com as palavras depo­
sitárias do pensamento social? E o que irá significar seu
juízo, senão que não precisamos mais procurar, que isso
atrapalha a sociedade, que cabe traçar uma barra embai­
xo dos conhecimentos vagos armazenados na lingua­
gem, fazer a somatória, e ater-se a isso? "Sabemos tudo",
tal é o postulado desse método. Ninguém ousaria mais
aplicá-]o na crítica das teorias físicas ou astronômicas.
Mas correntemente se procede assim em filosofia. Àque­
le que trabalhou, lutou, penou para afastar as idéias já
prontas e para tomar contato com a coisa opõe-se a so­
lução que se pretende que seja "racional". O verdadeiro
investigador deveria protestar. Caber-lhe-ia mostrar que
a faculdade de criticar, assim entendida, é tomar o parti­
do de ignorar, e que a única crítica aceitável seria um
novo estudo, mais aprofundado, mas igualmente direto,
da coisa mesma. Infelizmente, ele próprio estó por de­
mais propenso a criticar em toda ocasião, ao passo que
só conseguiu escavar efetivamente dois ou três proble­
mas. Contestando à pura "inteligência" o poder de avaliar
o que ele faz, privar-se-ia a si mesmo do direito dc julgar
em casos onde ele não é mais nem filósofo nem cientis­
ta, mas simplesmente "inteligente". Prefere então adotar
a ilusão comum. A essa ilusão, aliás, tudo o encoraja.
Correntemente, vai-se consultar acerca de um ponto di­
fícil homens incompetentes, porque chegaram à notorie­
dade por sua competência em matérias inteiramente di­
ferentes. Adula-se assim neles e, sobretudo, fortifica-se
no espírito do público a idéia de que existe uma faculda­
de geral de conhecer as coisas sem as ter estudado, uma
"inteligência" que não é nem simplesmente o hábito de
INTRODUÇÃO (SEGUNDA TARTE) 95

manejar na conversação os conceitos úteis à vida social,


ticm a função matemática do espírito, mas uma certa po­
tência de obter dos conceitos sociais o conhecimento do
real ao combiná-los de modo mais ou menos destro en­
tre si. Essa destreza superior seria o que faz a superiori­
dade do espírito. Como se a verdadeira superioridade pu­
desse ser algo diferente de uma maior força de atenção!
Como se essa atenção não fosse necessariamente espe­
cializada, isto é, inclinada pela natureza ou pelo hábito
para determinados objetos antes do que para outros!
Como sc ela não fosse visão direta, visão que atravessa o
véu das palavras, e como se não fosse a própria ignorân­
cia das coisas que torna tão fácil falar delas! Apreciamos,
de nossa parte, o conhecimento científico e a competên­
cia técnica tanto quanto a visão intuitiva. Acreditamos que
é da essência do homem criar material e moralmente, fa­
bricar coisas e fabricar-se a si próprio. Homo faber, tal é a
definição que propomos. O Homo sapiens, nascido da re­
flexão do Homo faber sobre sua fabricação, parece-nos
igualmente digno de estima enquanto resolve pela pura
inteligência os problemas que só dela dependem: na es­
colha desses problemas um filósofo pode se enganar, um
outro filósofo irá desfazer o engano; ambos terão traba­
lhado com todo o empenho; ambos poderão merecer nos­
so reconhecimento e nossa admiração. Homa faber, Homo
sapiens, diante de ambos, que, aliás, tendem a confundir-
se um com o outro, nós nos inclinamos. O único que nos
seja antipático é o Homo loquax, cujo pensamento, quan­
do ele pensa, é apenas uma reflexão sobre sua palavra.
A formá-lo e a aperfeiçoá-lo tendiam outrora os mé­
todos de ensino. Não tendem um pouco a isso ainda hoje?
Decerto, o defeito é menos acentuado entre nós do que
alhures. Em nenhum outro lugar mais do que na França
% O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

o professor provoca a iniciativa do estudante, até mesmo


nos primeiros anos. No entanto, ainda temos muito que
fazer. Não preciso falar aqui do trabalho manual, do pa­
pel que ele podería desempenhar na escola. E-se por de­
mais propenso a ver nele apenas uma diversão. Esque­
ce-se que a inteligência é essencialmente a faculdade de
manipular a matéria, que ela pelo menos começa assim,
que tal era a intenção da natureza. Como então a inteli­
gência não sc beneficiaria da educação da mão? Podemos
ir mais longe. A mão da criança experimenta-se natural­
mente em construir. Ajudando-a, fornecendo-lhe pelo
menos ocasiões para tanto, obteríamos mais tarde do ho­
mem feito um rendimento superior; aumentaríamos sin-
gularmentc o que há de inventividade no mundo. Um
saber imediatamente livrcsco comprime e suprime ativi­
dades que só pediam, para tomar o seu impulso. Exerci­
temos, portanto, a criança no trabalho manual e não
abandonemos esse ensino a um técnico. Enderecemo-nos
a um verdadeiro mestre, para que ele aperfeiçoe o toque
ao ponto de fazer dele um tato: a inteligência subirá da
mão para a cabeça. Mas não insistirei nesse ponto. Em
qualquer matéria, letras ou ciências, nosso ensino per­
maneceu excessivamente verbal. Foi-se o tempo em que
bastava ser homem do mundo e saber discorrer sobre as
coisas. Trata-se de ciência? Expõem-se sobretudo resul­
tados. Não seria melhor promover a iniciação nos méto­
dos? Faríamos com que fossem imediatamente pratica­
dos; convidaríamos a observar, a experimentar, e reinven­
tar. Como nos escutariam! Como nos ouviriam! Pois a
criança é um pesquisador e um inventor, sempre à esprei­
ta da novidade, impaciente pela regra, enfim, mais pró­
xima da natureza que o homem feito. Mas este é essen­
cialmente um ser sociável, e é ele quem ensina: neces­
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) W

sariamente traz para o primeiro plano todo o conjunto de


resultados adquiridos dos quais se compõe o patrimônio
social e do qual legitimamente se orgulha. No entanto,
por enciclopédico que seja o programa, o que o aluno po­
derá assimilar em termos de ciência já pronta reduzir-se-
á a pouca coisa e será frequentemente estudado sem gos­
to e sempre rapidamente esquecido. Nenhuma dúvida de
que cada um dos resultados adquiridos pela humanida­
de seja precioso; mas este é um saber adulto e o adulto o
encontrará quando dele precisar, se simplesmente tiver
aprendido a buscá-lo. Cultivemos antes na criança um
saber infantil e guardemo-nos de sufocar sob um acúmu­
lo de ramos e de folhas secas, produto de vegetações an­
tigas, a planta nova que só pede para crescer.
Não encontraríamos nós os mesmos defeitos em nos­
so ensino literário (tão superior, no entanto, àquele ofe­
recido em outros países)? Poderá ser útil dissertar sobre
a obra de um grande escritor; faremos assim com que seja
mais bem compreendida e mais bem apreciada. Ainda
é preciso que o aluno tenha começado a apreciá-la e, por
conseguinte, a compreendê-la. O que significa que a crian­
ça precisará primeiro reinventá-la ou, em outros termos,
apropriar-se até certo ponto da inspiração do autor. Como
fará isso, a não ser ajustando seu passo ao dele, adotan­
do seus gestos, sua atitude, seu andamento? Ler bem em
voz alta é exatamente isto. A inteligência virá mais tarde
para matizá-lo. Mas matiz e cor nada são sem o dese­
nho. Antes da intelecção propriamente dita, há a percep­
ção da estrutura e do movimento; há, na página que se
lê, a pontuação e o ritmo1'1. Marcá-los como se deve, le- 11

11. Acerca do fato de que o ritmo desenha em largos traços o sen­


tido da frase verdadeiramente escrita, de que ele pode nos dar a comu-
98 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

var em conta relações temporais entre as diversas frases


do parágrafo e os diversos membros da frase, seguir sem
interrupção o crescendo do sentimento e do pensamento
até o ponto que é musicalmente anotado como culmi­
nante, nisso consiste, em primeiro lugar, a arte da dicção.
Erra-se ao tratá-la como arte de adorno. Ao invés de che­
gar no fim dos estudos, como um ornamento, deveria es­
tar no início e por toda parte, como um sustentáculo. So­
bre ela disporíamos todo o resto, se não cedéssemos aqui
também à ilusão de que o principal é discorrer sobre as
coisas, e de que se as conhece suficientemente quando
se sabe falar delas. Mas só se conhece, só se compreen­
de aquilo que se pode, em alguma medida, reinventar.
Seja dito de passagem, há uma certa analogia entre & arte
da leitura, tal como acabamos de a definir, e a intuição
que recomendamos ao filósofo. Na página que ela esco­
lheu do grande livro do mundo, a intuição quis reencon­
trar o movimento e o ritmo da composição, reviver a evo­
lução criadora, nela se inserindo simpaticamente. Mas
abrimos um demasiadamente longo parêntese. Chegou
a hora de fechá-lo. Não nos cabe elaborar um programa
de educação. Queríamos simplesmente assinalar certos
hábitos de espírito que tomamos por deploráveis e que a
escola encoraja ainda com excessiva frequência de fato,

nicação direta com o pensamento do escritor antes que o estudo das


palavras tenha vindo colocar a cor e o matiz, pronurteiamo-nos outrora,
notadarnente em uma conferência feita em 19'12 sobre A ahna e o corpo (cf.
"LThne et le corps" em nossa coletânea Eénergie spiritiidle, p. 32). Limitáva-
mc-nos, aliás, a resumir uma aula dada anteriormente no College de Fran­
ce. Nessa aula, havíamos tomado como exemplo uma página ou duas do
Discours cie Ia Méthode e havíamos procurado mostrar como idas e vindas
do pensamento, cada uma numa direção determinada, passam do espírito
de Descartes para o nosso pelo simples efeito do ritmo tal como a pontua­
ção o indica, tal, sobretudo, como o marca uma leitura correta em voz alta.
INTRODUÇÃO (SECUNDA PARTE) 99

ainda que os repudie em princípio. Queríamos sobretu­


do protestar uma vez mais contra a substituição das coi­
sas pelos conceitos e contra aquilo que poderiamos cha­
mar de socialização da verdade. Esta se impunha nas so­
ciedades primitivas. Ela é natural ao espírito humano, uma
vez que o espírito humano não está destinado à ciência
pura, menos ainda à filosofia. Mas cabe reservar essa so­
cialização para as verdades de ordem prática, para as
quais foi feita. Nada tem a ver com o domínio do conhe­
cimento puro, ciência ou filosofia.
Repudiamos assim a facilidade. Recomendamos um
certo modo dificultoso de pensar. Estimamos acima de
tudo o esforço. Como puderam alguns se enganar a esse
respeito? Nada diremos acerca daquele que pretende
que nossa "intuição" seja instinto ou sentimento. Ne­
nhuma Unha daquilo que escrevemos se presta a uma tal
interpretação. E em tudo que escrevemos há a afirmação
do contrário: nossa intuição é reflexão. Mas, pelo fato de
que chamavamos a atenção para a mobilidade que está
no fundo das coisas, pretendeu-se que encorajássemos
não sei que relaxamento do espírito. E, pelo fato de que
a permanência da substância era a nossos olhos uma
continuidade de mudança, disse-se que nossa doutrina
era uma justificação da instabilidade. Seria o mesmo que
imaginar que o bacteriologista nos recomenda as doen­
ças microbianas quando nos mostra por toda parte mi­
cróbios, ou que o físico nos prescreve o exercício do ba­
lanço quando reduz os fenômenos da natureza a oscila­
ções. Uma coisa é um princípio de explicação, outra uma
máxima de conduta. Poder-se-ia quase dizer que o filó­
sofo que encontra a mobilidade por toda parte é o único
que não pode recomendá-la, uma vez que a vê como ine­
vitável, uma vez que a descobre naquilo que se conven-
100 O PENSAMENTO E O MOVENTE

cionou chamar de imobilidade. Mas a verdade é que por


mais que ele se represente a estabilidade como uma com­
plexidade de mudança, ou como um aspecto particular
da mudança, por mais que resolva, pouco importa co­
mo, a estabilidade cm mudança, nem por isso deixará
de distinguir, como todo mundo, estabilidade de mudan­
ça. E para ele, como para todo mundo, pôr-se-á a questão
de saber em que medida é a aparência especial dita es­
tabilidade, cm que medida é a mudança pura e simples
que se deve aconselhar às sociedades humanas. Sua aná­
lise da mudança deixa essa questão intacta. Por pouco
que tenha bom senso, julgará necessária, como todo mun­
do, uma certa permanência daquilo que é. Dirá que as ins­
tituições devem fornecer um quadro relativamente está­
vel para a diversidade e a mobilidade dos desígnios indivi­
duais. E compreenderá talvez melhor que outros o papel
dessas instituições. De fato, ao porem imperativos, não
continuam elas, no domínio da ação, a obra de estabiliza­
ção que os sentidos e o entendimento realizam no domí­
nio do conhecimento quando condensam em percepção
as oscilações da matéria, e em conceitos o escoamento das
coisas? Sem dúvida, no quadro rígido das instituições, sus­
tentada por essa própria rigidez, a sociedade evolui. E,
mesmo, o dever do homem de Estado é seguir essas va­
riações e modificar a instituição enquanto ainda é tempo:
de dez erros políticos, nove consistem simplesmente em
acreditar ainda verdadeiro o que deixou de sê-lo. Mas o
décimo, que poderá ser o mais grave, será de não mais
acreditar verdadeiro aquilo que, no entanto, ainda o é. De
um modo geral, a ação exige um ponto de apoio sólido e
o ser vivo tende essencialmente para a ação eficaz. É por
isso que vimos numa certa estabilização das coisas a fun­
ção primordial da consciência. Instalada na universal mo-
INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE) 101

bil idade, dizíamos, a consciência contrai numa visão qua­


se instantânea uma história imensamente longa que se
desenrola fora dela. Quanto mais alta a consciência, mais
forte é essa tensão de sua duração em comparação com
a das coisas.

Tensão, concentração, tais são as palavras pelas quais


caracterizaríamos um método que requer do espírito, para
cada novo problema, um esforço inteiramente novo. Nun­
ca poderiamos ter extraído de nosso livro Matière et mé­
moire, que precedeu Devolution créatrice, uma verdadeira
doutrina da evolução (teria sido apenas uma aparência
do tal doutrina); nem de nosso Essai sur les données im-
méáiates de la conscience uma teoria das relações da alma
e do corpo como aquela que expusemos depois em Ma­
tière et mémoire (teríamos apenas uma construção hipo­
tética), nem da pseudofilosofia à qual nos prendíamos
antes das Données immédiates - isto é, das noções gerais
armazenadas na linguagem - as conclusões sobre a dura­
ção e a vida interior que apresentamos nesse primeiro
trabalho. Nossa iniciação ao verdadeiro método filosófi­
co data do dia em que rejeitamos as soluções verbais, ten­
do encontrado na vida interior um primeiro campo de
experiência. Todo progresso ulterior foi um engrandeci-
mento desse campo. Estender logicamente uma conclu­
são, aplicá-la a outros objetos sem ter realmente alarga­
do o círculo de nossas investigações é uma inclinação
natural ao espírito humano, mas à qual não devemos ce­
der nunca. A filosofia a ela se abandona ingenuamente
quando é dialética pura, isto é, tentativa de construir uma
metafísica com os conhecimentos rudimentares que en­
contramos armazenados na linguagem. Continua a fazê-
lo quando erige certas conclusões extraídas de certos fa­
102 O PENSAMENTO E O MOVENTE

tos em "princípios gerais" aplicáveis ao resto das coisas.


Contra essa maneira de filosofar, toda nossa atividade fi­
losófica foi um protesto. Tivemos assim que deixar de
lado questões importantes, às quais facilmente tcríamos
dado um simulacro de resposta prolongando até elas os
resultados de nossos trabalhos precedentes. Só respon­
deremos a tal ou tal dentre elas se nos for concedido o
tempo e a força para resolvê-la nela mesma, por ela mes­
ma. Senão, gratos ao nosso método por nos ter dado o
que acreditamos ser a solução precisa de alguns proble­
mas, constatando que não podemos, de nossa parte, ex­
trair mais que isso, ficaremos por aqui. Não se é nunca
obrigado a escrever um livro12.

Janeiro 1922

12. Esse ensaio foi concluído em 1922. Simplesmente lhe acrescen­


tamos algumas páginas relativas às teorias físicas atuais. Naquela épo­
ca, ainda não estávamos de posse completa dos resultados que expuse­
mos em nossa obra recente: Les deux sources de la morale et de la religion,
Paris, 1932. O que explica as últimas linhas do presente ensaio.
CAPÍTULO III
O POSSÍVEL E O REAL
Ensaio publicado na revista sueca
Nordisk Tidskríft em novembro de 19301

Gostaria de voltar aqui a um assunto do qual já fa­


lei, a criação contínua de imprevisível novidade que pa­
rece desenrolar-se no universo. De minha parte, acredito
experimentá-la a todo instante. Em vão me represento o
detalhe daquilo que irá me ocorrer: como minha repre­
sentação é pobre, abstrata, esquemática, em comparação
com o acontecimento que se produz! A realização traz
consigo um imprevisível nada que muda tudo. Devo, por
exemplo, assistir a uma reunião; sei quais pessoas ali en­
contrarei, em volta de que mesa, em que ordem, para a
discussão de que problema. Mas que essas pessoas ve­
nham, sentem-se e falem como eu esperava que fizessem,
que digam o que eu de fato pensava que diríam: o conjun­

1. Esse artigo era o desenvolvimento de algumas concepções apre­


sentadas na abertura do "meeting filosófico" de Oxford, no dia 24 de se­
tembro de 1920. Ao escrevê-lo para a revista sueca Nordisk Tidskríft, que­
ríamos testemunhar o pesar que experimentavamos por não poder dar
uma conferência em Estocolmo, conforme o costume, por ocasião do Prê­
mio Nobel. O artigo só havia sido publicado, até o presente momento,
em língua sueca.
104 O PENSAMENTO E O MOVENTE

to dá-me uma impressão única e nova, como se fosse ago­


ra desenhado num único traço original por uma mão de
artista. Adeus, imagem que eu me havia formado dessa
reunião, simples justaposição, antecipadamente figurá-
vel, de coisas já conhecidas’ Concedo que o quadro não
tenha o valor artístico dc um Rembrandt ou dc umVelás-
quez: ele é igualmente inesperado e, nesse sentido, igual­
mente original. Alegar-se-á que eu ignorava o detalhe
das circunstâncias, que eu não dispunha dos persona­
gens, de seus gestos, de suas atitudes, e que, se o conjun­
to me traz algo novo, c porque me fornece um acréscimo
de elementos. Mas tenho a mesma impressão de novida­
de diante do desenrolamento de minha vida interior. Ex­
perimento essa mesma impressão, mais viva do que nun­
ca, diante da ação desejada por mim e da qual eu era o
único senhor. Se delibero antes de agir, os momentos da
deliberação oferecem-se à minha consciência como os
esboços sucessivos, cada um deles único em seu gênero,
que um pintor faria de seu quadro; c o próprio ato, ao se
realizar, por mais que realize algo desejado e, por conse­
guinte, previsto, nem por isso deixa de ter sua forma ori­
ginal. - Seja, dirão; talvez haja algo de original e de úni­
co num estado de alma; mas a matéria c repetição; o
mundo exterior obedece a leis matemáticas; uma inteli­
gência sobre-humana, que conhecesse a posição, a dire­
ção e a velocidade dc todos os átomos e elétrons do uni­
verso material num dado momento, calcularia todo e qual­
quer estado futuro desse universo, como o fazemos com
relação a um eclipse do sol ou da lua. - Concedo-o, a ri­
gor, caso se trate apenas do mundo inerte, muito embo­
ra a questão comece a se tornar controversa, pelo menos
no que diz respeito aos fenômenos elementares. Mas esse
mundo é apenas uma abstração. A realidade concreta
O POSSÍVEL BOREAL 1Ü5

compreende os seres vivos, conscientes, que estão enqua­


drados pela matéria inorgânica. Digo vivos e conscien­
tes, pois considero que o vivo seja de direito consciente;
torna-se inconsciente de fato ali onde a consciência ador­
mece, mas, mesmo nas regiões nas quais a consciência
dormita, no vegetal, por exemplo, há evolução regrada,
progresso definido, envelhecimento, enfim, todos os sig­
nos exteriores da duração que caracteriza a consciência.
Por que, aliás, falar de uma matéria inerte na qual a vida
e a consciência se inseriríam como num quadro? Com
que direito pomos o inerte primeiro? Os antigos haviam
imaginado uma Alma do Mundo que asseguraria a con­
tinuidade de existência do universo material. Despojan­
do essa concepção daquilo que ela tem de mítico, eu di­
ría que o mundo inorgânico é uma série de repetições ou
de quase-repetições infinitamente rápidas que se somam
em mudanças visíveis e previsíveis. Eu as compararia às
oscilações do pêndulo do relógio: estas estão emparelha­
das à distensão contínua de uma mola que as liga entre
si e da qual escandem o progresso; aquelas ritmam a vida
dos seres conscientes e medem sua duração. Assim, o ser
vivo dura essencialmente; ele dura, justamente porque
elabora incessantemente algo novo e porque não há ela­
boração sem procura, nem procura sem tateio. O tempo
é essa hesitação mesma, ou não é absolutamente nada.
Suprimam o consciente e o vivo (e só poderão fazê-lo
por um esforço artificial de abstração, pois, mais uma vez,
o mundo material talvez implique a presença necessária
da consciência e da vida), vocês obterão de fato um uni­
verso cujos estados sucessivos em teoria são antecipada­
mente calculáveis, como as imagens, anteriores ao desen­
rolamento, que estão justapostas no filme cinematográ­
fico. Mas, então, para que o desenrolamento? Por que a
106 O PENSAMENTO E O MOVENTE

realidade se desdobra? Como se dá que não esteja des­


dobrada? Para que serve o tempo? (Paio do tempo real,
concreto, e não desse tempo abstrato que não é mais que
uma quarta dimensão do espaço2.) Tal fora, outrora, o
ponto de partida de minhas reflexões. Há cerca de cin-
qüenta anos, eu estava fortemente ligado à filosofia de
Spencer. Percebí, um belo dia, que nessa filosofia o tem­
po de nada servia, que ele nada fazia. Ora, o que não faz
nada não é nada. No entanto, eu me dizia, o tempo é
algo. Então ele age. O que poderia ele fazer? O simples
bom senso respondia: o tempo é aquilo que impede que
tudo seja dado de um só golpe. Ele retarda ou, melhor,
ele é retardamento. Ele deve portanto ser elaboração.
Não seria ele então veículo de criação e de escolha? A
existência do tempo não provaria que há indeterminação
nas coisas? O tempo não seria exatamente essa indeter­
minação? Se tal não c a opinião da maior parte dos filó­
sofos, é porque a inteligência humana é feita justamente
para tomar as coisas pela outra ponta. Digo a inteligên­
cia, não digo o pensamento, não digo o espírito. Ao lado
da inteligência, com efeito, há a percepção imediata, por
cada um de nós, de sua própria atividade e das condições
nas quais esta se exerce. Chamem-na como quiserem; é
o sentimento que temos de sermos criadores de nossas
intenções, de nossas decisões, de nossos atos e, por isso
mesmo, de nossos hábitos, de nosso caráter, de nós mes­
mos. Artesãos de nossa vida, até mesmo artistas quando
o queremos, trabalhamos continuamente na modela-

2. Com efeito, mostramos, em nosso Essaisur les dmnées immédia-


tes de la conscience, Paris, 1889, p. 82, que o Tempo mensurável poderia
ser considerado como "uma quarta dimensão do Espaço". Tratava-se, é
claro, do Espaço puro e não da amálgama Espaço-Tempo da Teoria da
Relatividade, que é algo inteiramente diferente.
O POSSÍVEL E O REAL 107

gem, com a matéria que nos é fornecida pelo passado e


pelo presente, pela hereditariedade e pelas circunstân­
cias, de uma figura única, nova, original, imprevisível como
a forma dada à argila pelo escultor. Desse trabalho e da­
quilo que ele tem dc único somos advertidos, sem dúvi­
da, enquanto ele se faz, mas o essencial é que nós o fa­
çamos. Não temos que investigá-lo a fundo; não é se­
quer necessário que dele tenhamos plena consciência,
como tampouco o artista precisa analisar seu poder cria­
dor; ele deixa esse cuidado para o filósofo e contenta-sc
com criar. Em compensação, é preciso que o escultor co­
nheça a técnica de sua arte e saiba tudo o que sc pode
aprender acerca dela: essa técnica concerne sobretudo
àquilo que sua obra terá em comum com outras; é co­
mandada pelas exigências da matéria sobre a qual ele
opera e que se impõe a ele como a todos os artistas; re­
mete, na arte, àquilo que é repetição ou fabricação, e não
mais à própria criação. Sobre ela se concentra a atenção
do artista, o que eu chamaria sua intelectualidade. Do
mesmo modo, na criação de nosso caráter, sabemos mui­
to pouco acerca de nosso poder criador: para aprendê-lo,
precisaríamos nos voltar sobre nós mesmos, filosofar e
escalar de volta a inclinação da natureza, pois a nature­
za quis a ação, ela não pensou muito na especulação. Tão
logo não mais se trate simplesmente de sentir em nós
um elã c dc nos assegurarmos de que podemos agir, mas
de voltar o pensamento sobre ele mesmo para que apreen­
da esse poder e capte esse ela, a dificuldade torna-se
considerável, como se fosse necessário inverter a direção
normal do conhecimento. Pelo contrário, temos um inte­
resse capital em nos familiarizar com a técnica de nossa
ação, isto é, em extrair das condições nas quais esta se
exerce tudo o que pode nos fornecer receitas e regras ge­
108 O PENSAMENTO E O MOVENTE

rais sobre as quais se apoiará nossa conduta. É só por


obra e graça da repetição que tivermos encontrado nas
coisas que haverá novidade em nossos atos. Nossa facul­
dade de conhecer é portanto essencialmente uma po­
tência de extrair o que há de estabilidade c de regulari­
dade no fluxo do real.Trata-se de perceber? A percepção
apodera-se de abalos infinitamente repetidos que são
luz ou calor, por exemplo, e contrai-os em sensações re­
lativa mente invariáveis: são bilhões de oscilações exte­
riores que são condensadas aos nossos olhos, numa fra­
ção de segundo, pela visão de uma cor. Trata-se de con­
ceber? Formar uma idéia geral é abstrair das coisas di­
versas e cambiantes um aspecto comum que não muda
ou que pelo menos oferece para nossa ação um flanco
invariável. A constância de nossa atitude, a identidade de
nossa reação possível, ou virtual à multiplicidade e à va­
riabilidade dos objetos representados, eis aquilo que a
generalidade da idéia marca e desenha em primeiro lu­
gar. Trata-se, por fim, de compreender? É simplesmente
encontrar nexos, estabelecer relações estáveis entre fatos
que passam, desentranhar leis: operação tanto mais per­
feita quanto mais precisa é a relação e mais matemática
a lei. Todas essas funções são constitutivas da inteligên­
cia. E a inteligência não sc afasta da verdade enquanto se
prende, ela amiga da regularidade e da estabilidade, àqui­
lo que há de estável e de regular no real, à materialidade.
Ela toca então num dos lados do absoluto, como nossa
consciência toca no outro quando apreende em nós uma
perpétua eflorescência de novidade ou quando, alargan­
do-se, simpatiza com o esforço indefinidamente renovador
da natureza, O erro começa quando a inteligência preten­
de pensar um dos aspectos como pensou o outro e apli­
car-se a um uso para o qual não foi feita.
0 POSSÍVEL E O REAL 109

Estimo que os grandes problemas metafísicos são


geralmente malpostos, que eles freqüentemente se re­
solvem por si mesmos quando lhes retificamos o enun­
ciado, ou ainda que são problemas formulados em. ter­
mos de ilusão, que se desvanecem assim que olhamos de
perto os termos da fórmula. Nascem, com efeito, do fato
de transpormos em fabricação aquilo que c criação. A
realidade é crescimento global e indiviso, invenção gra­
dual, duração: como um balão elástico que sc dilatasse
pouco a pouco assumindo a cada instante formas inespe­
radas. Mas nossa inteligência representa-se a origem e a
evolução da realidade como um arranjo e um rearranjo de
partes que não fariam mais que mudar dc lugar; teorica­
mente, portanto, ela poderia prever qualquer estado de
conjunto: pondo um número definido de elementos es­
táveis, brindamo-nos implicitamente, antecipadamente,
com todas as combinações possíveis. Isso não é tudo. A
realidade, tal como a percebemos dirctamente, é um ple­
no que não cessa de se inflar e que ignora o vazio. Tem
extensão, assim como tem duração; mas essa extensão
concreta não é o espaço infinito c infinitamente divisível
com que a inteligência se brinda como um terreno no
qual construir. O espaço concreto foi extraído das coisas.
Estas não estão nele, é ele quem está nelas. Só que, assim
que nosso pensamento raciocina sobre a realidade, faz do
espaço um receptáculo. Como tem o costume de juntar
partes num vazio relativo, imagina que a realidade col-
mate não sei que vazio absoluto. Ora, se o desconheci­
mento da novidade radical está na origem dos problemas
metafísicos malpostos, o hábito de ir do vazio para o ple­
no é a fonte dos problemas inexistentes. Aliás, é fácil ver
que o segundo erro já está implicado no primeiro. Mas eu
queria primeiro defini-lo com maior precisão.
rio O PENSAMENTO E O MOVENTE

Digo que há pseudoproblemas e que são os proble­


mas angustiantes da metafísica. Reduzo-os a dois. Um
engendrou as teorias do ser, o outro as teorias do conhe­
cimento.
O primeiro consiste em se perguntar por que há ser,
por que algo ou alguém existe. Pouco importa a nature­
za daquilo que é: digam que é matéria, ou espírito, ou
ambos, ou que matéria e espírito não sc bastam e mani­
festam uma Causa transcendente: dc qualquer forma,
quando consideramos existências, e causas, e causas des­
sas causas, sentimo-nos arrastados em uma corrida sem
fim. Se nos detemos, é para escapar da vertigem. Sempre
constatamos, sempre cremos constatar que a dificuldade
subsiste, que o problema ainda se põe e não será nunca
resolvido. Não o será nunca, de fato, mas não deveria ser
posto. Põe-se apenas quando nos figuramos um nada
que precedería o ser. Dizemo-nos: "podería não haver
nada" c espantamo-nos então de que haja algo - ou Al­
guém. Mas analisem, essa frase: "poderia não haver nada".
Verão que se defrontam com palavras, de modo algum
com idéias, e que "nada" não tem aqui significação algu­
ma. "Nada" é um termo da linguagem usual que só pode
ter sentido se permanecemos no terreno, próprio ao ho­
mem, da ação e da fabricação. "Nada" designa a ausên­
cia daquilo que procuramos, daquilo que desejamos, da­
quilo que esperamos. Com efeito, supondo que a expe­
riência nos apresentasse alguma vez um vazio absoluto,
este seria limitado, teria contornos, seria portanto ainda
algo. Mas na verdade não há vazio. Somente percebe­
mos e, mesmo, somente concebemos o pleno. Uma coi­
sa só desaparece porque outra a substituiu. Supressão
significa assim substituição. Ocorre que dizemos "supres­
são" quando consideramos apenas uma das metades da
0 POSSÍVEL E O REAL rn

substituição, ou antes, uma de suas duas faces, aquela


que nos interessa; assinalamos assim que queremos di­
rigir nossa atenção para o objeto que se foi e desviá-la da­
quele que o substituiu. Dizemos então que não há mais
nada, entendendo com isso que aquilo que é não nos in­
teressa, que nos interessamos por aquilo que não está
mais aí, ou por aquilo que poderia ter estado aí. A idéia
de ausência, ou de nada, ou de nulidade, está portanto
inseparavelmente ligada à de supressão, real ou possível,
e a própria idéia de supressão não é mais que um aspec­
to da idéia de substituição. Temos aí maneiras de pensar
das quais nos servimos na vida prática; importa particu­
larmente à nossa indústria que nosso pensamento saiba
atrasar-se com relação à realidade e permanecer preso,
quando necessário, àquilo que era ou àquilo que poderia
ser, ao invés de ser acaparado por aquilo que é. Mas
quando nos transportamos do domínio da fabricação
para o da criação, quando nos perguntamos por que há
ser, por que há alguma coisa ou alguém, por que o mun­
do ou Deus existe o por que não o nada, quando nos po­
mos, enfim, o mais angustiante dos problemas metafísi­
cos, aceitamos vírtualmente um absurdo; pois se toda
supressão é uma substituição, se a idéia de uma supres­
são não é mais que a idéia truncada de uma substituição,
então, falar de uma supressão dc tudo é pôr uma substi­
tuição que não seria uma substituição, é contradizer-se a
si mesmo. Ou a idéia de uma supressão de tudo tem exa­
tamente tanta existência quanto a de um quadrado re­
dondo - a existência de um som, flatus voeis - ou então,
caso represente algo, traduz um movimento da inteligên­
cia que vai de um objeto para o outro, que prefere aque­
le que acaba de deixar àquele que encontra diante de si
e designa por "ausência do primeiro" a presença do se­
112 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

gundo. Pusemos o todo, depois fizemos desaparecer, uma


por uma, cada uma de suas partes, sem consentir em ver
aquilo que a substituía: c, portanto, a totalidade das pre­
senças, simplesmente dispostas em uma nova ordem,
que temos diante de nós quando queremos totalizar as
ausências. Em outros termos, essa pretensa representa­
ção do vazio absoluto é, na realidade, a. representação do
pleno universal por um espírito que salta indefinidamen­
te dc uma parte para outra, com a resolução tomada de
sempre considerar apenas o vazio de sua insatisfação a.o
invés do pleno das coisas. O que equivale a dizer que a
idéia de Nada, quando não é a idéia de uma mera pala­
vra, implica tanta matéria quanto a de Tudo, com, em
acréscimo, uma operação do pensamento.
Diria o mesmo acerca da idéia de desordem. Por que
o universo é ordenado? Como se impõe a regra ao irre­
gular, a forma à matéria? De onde vem que nosso pen­
samento se reencontre nas coisas? Esse problema, que se
tornou, nos modernos, o problema do conhecimento após
ter sido, nos antigos, o problema do ser, nasceu de uma
ilusão de mesmo tipo. Desvanece-se caso consideremos
que a idéia de desordem tem um sentido definido no do­
mínio da indústria humana ou, como dizemos, da fabri­
cação, mas não no da criação. A desordem é simplesmen­
te a ordem que não procuramos. Não podemos suprimir
uma ordem, nem mesmo pelo pensamento, sem fazer
surgir outra. Se não há finalidade ou vontade, é porque
há mecanismo; se o mecanismo fraqueja, é cm proveito
da vontade, do capricho, da finalidade. Mas, quando es­
peramos uma dessas duas ordens e encontramos a ou­
tra, dizemos que há desordem, formulando o que é em
termos daquilo que poderia ou deveria ser, e objetivan­
do o nosso pesar. Toda desordem compreende assim
0 POSSÍVEL E O REAL 113

duas coisas: fora de nós, uma ordem; em nós, a repre­


sentação de uma ordem diferente, que c a única que nos
interessa. Supressão, portanto, significa sempre substi­
tuição. E a idéia de uma supressão de toda e qualquer or­
dem, isto é, a idéia de uma desordem absoluta envolve
então uma contradição verdadeira, uma vez que consis­
te em já não deixar senão apenas uma única face para a
operação que, por hipótese, compreendia duas faces. Ou
a idéia de desordem absoluta não representa mais que
uma combinação de sons, flatus voeis, ou, caso responda a
algo, traduz um movimento do espírito que salta do me­
canismo para a finalidade, da finalidade para o mecanis­
mo, e que, para marcar o lugar onde está, prefere indicar
a cada vez o ponto onde não está. Portanto, querendo su­
primir a ordem, brindamo-nos com duas ou mais ordens.
O que equivale a dizer que a concepção de uma ordem
que viría acresccntar-sc a uma "ausência de ordem" im­
plica um absurdo e que o problema se desvanece.
As duas ilusões que acabo de assinalar são na reali­
dade uma só e mesma ilusão. Consistem em acreditar que
há menos na idéia do vazio do que na do pleno, menos no
conceito de desordem do que no de ordem. Na realidade,
há mais conteúdo intelectual nas idéias de desordem e de
nada, quando estas representam algo, do que nas de or­
dem e de existência, uma vez que implicam várias ordens,
várias existências e, além disso, um jogo do espírito que
inconscientemente faz malabarismos com elas.
Pois bem, reencontro a mesma ilusão no caso que
nos ocupa. No fundo das doutrinas que desconhecem a
novidade radical de cada momento da evolução, há mui­
tos mal-entendidos, muitos erros. Mas há, sobretudo, a
idéia de que o possível é menos que o real e de que, por
essa razão, a possibilidade das coisas precede sua exis-

j UNiFtSP
íM£fítC.ACWUSlN
114 O PENSAMENTO E O MOVENTE

tência. Estas seriam, assim, antecipadamente represen-


táveis; poderíam ser pensadas antes de serem realizadas.
Mas é o inverso que é verdade. Se deixamos de lado os
sistemas fechados, submetidos a leis puramente mate­
máticas, que são isolávcis peio fato de a duração não os
atingir, se consideramos o conjunto da realidade concre­
ta ou muito simplesmente o mundo da vida e, com mais
forte razão, o da consciência, descobrimos que há mais,
e não menos, na possibilidade de cada um dos estados
sucessivos do que em sua realidade. Pois o possível é
apenas o real com, em acréscimo, um ato do espírito que
repele sua imagem para o passado assim que ele se pro­
duziu. Mas é isso que nossos hábitos intelectuais nos im­
pedem de perceber.
Durante a grande guerra, jornais e revistas desvia­
vam-se por vezes das terríveis inquietudes do presente
para pensar naquilo que ocorrería mais tarde, uma vez
a paz restabelecida. O futuro da literatura, em particular,
preocupava-os.Vieram um dia me perguntar como eu me
o representava. Declarei, um pouco confuso, que não me o
representava. "O senhor não percebe pelo menos, me
disseram, certas direções possíveis? Admitamos que não
se possa prever o detalhe; o senhor terá pelo menos, o
senhor, filósofo, uma idéia do conjunto. Como o senhor
concebe, por exemplo, a grande obra dramática de ama­
nhã?"'' Sempre me lembrarei da surpresa de meu interlo­
cutor quando lhe respondí: "Se eu soubesse o que será
a grande obra dramática de amanhã, eu a faria." Vi per-
feitamente que ele concebia a obra futura como encer­
rada, desde aquele momento, em não sei que armário de
possíveis; eu devia, em consideração às minhas relações
já antigas com a filosofia, ter conseguido junto a ela a cha­
ve do armário. "Mas, disse-lhe eu, a obra da qual o se­
0 POSSÍVEL E O HEAL '1 15

nhor fala ainda não é possível." - "Mas é preciso que ela


o seja, uma vez que se realizará." - "Não, ela não o é.
Concedo-lhe, no máximo, que ela o terá sido" - "O que
o senhor entende com isso?" - "É muito simples. Que um
homem de talento ou de gênio surja, que ele crie uma
obra: ei-la real e, por isso mesmo, ela torna-se retrospec­
tivamente ou retroativamente possível. Ela não o seria,
não o teria sido, caso esse homem não tivesse surgido. É
por isso que lhe digo que ela terá sido possível hoje, mas
que ainda não o é." - "Essa é boa! O senhor não vai sus­
tentar que o porvir influencia o presente, que o presente
introduz algo no passado, que a ação nada à contracor-
rente do tempo e vai imprimir sua marca lá atrás?" - De­
pende. Que possamos inserir algo real no passado e tra­
balhar assim de marcha a ré no tempo, nunca o preten­
dí. Mas que possamos ali alojar o possível, ou antes, que
o possível vá ali se alojar por si mesmo a todo instante,
isto não é de se duvidar. Ao mesmo passo que a realida­
de se cria, imprevisível e nova, sua imagem reflete-se
atrás dela no passado indefinido; descobre-se assim ter
sido, desde sempre, possível; mas é nesse momento pre­
ciso que começa a tê-lo sido sempre, e eis por que eu di­
zia que sua possibilidade, que não precede sua realidade,
a terá precedido uma vez que a realidade tiver apareci­
do. O possível é portanto a miragem do presente no pas­
sado; e, como sabemos que o porvir acabará por ser pre­
sente, como o efeito de miragem continua sem descanso
a se produzir, dizemo-nos que, em nosso presente atual,
que será o passado de amanhã, a imagem de amanhã já
está contida ainda que não a consigamos apreender. Pre­
cisamente aí está a ilusão. É como se nos figurássemos,
percebendo nossa imagem no espelho diante do qual
acabamos de nos postar, que a poderiamos ter tocado
I 1.6 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

caso tivéssemos permanecido atrás do espelho. Aliás,


julgando assim que o possível não pressupõe o real, ad­
mitimos que a realização acrescenta algo à mera possibi­
lidade: o possível teria estado aí desde sempre, fantasma
que espera sua hora; ter-se-ia portanto tornado realida­
de pela adição de algo, através de não sei que transfusão
de sangue ou de vida. Não se vê que é exatamente o
contrário, que o possível implica a realidade correspon­
dente com, além disso, algo que a ela se acrescenta, já
que o possível é o efeito combinado da realidade, uma
vez surgida, e de um dispositivo que a repele para trás. A
idéia, imanente à maior parte das filosofias e natural ao
espírito humano, de possíveis que se realizariam por
uma aquisição de existência é, portanto, pura ilusão. Se­
ria o mesmo que pretender que o homem em carne e
osso provém da materialização de sua imagem percebi­
da no espelho, sob o pretexto de que há nesse homem
real tudo aquilo que encontramos nessa imagem virtual
com, em acréscimo, a solidez que faz com que se a pos­
sa tocar. Mas a verdade é que é preciso mais, aqui, para
obter o virtual do que para obter o real, mais para a ima­
gem do homem do que para o próprio homem, pois a
imagem do homem não se desenhará se não começar­
mos por nos brindar com o homem e será preciso, além
disso, um espelho.
É isso que meu interlocutor esquecia quando me
questionava acerca do teatro de amanhã. Talvez também
brincasse inconscientemente com o sentido da palavra
"possível". Hamlet era sem dúvida possível antes de ser
realizada, se entendermos com isso que não havia obs­
táculo intransponível à sua realização. Nesse sentido par­
ticular, chamamos possível o que não é impossível; e é
claro por si que essa não-impossibilidade de uma coisa é
a condição de sua realização. Mas o possível assim com­
0 POSSÍVEL E O REAL 1'17

preendido não é em nenhuma medida o virtual, o ideal­


mente preexistente. Fechem a barreira, vocês sabem que
ninguém atravessará a via: não se segue daí que vocês
possam predizer quem a atravessará quando vocês a
abrirem. No entanto, do sentido inteiramente negativo
do termo "possível" vocês passam sub-repticiamente, in­
conscientemente, para o sentido positivo. Possibilidade
significava, há pouco, "ausência de impedimento"; vocês
fazem dela agora uma "preexistência sob forma de idéia",
o que é algo inteiramente diferente. No primeiro sentido
da palavra, era um truísmo dizer que a possibilidade de
uma coisa preexiste à sua realidade: vocês entendiam sim­
plesmente com isso que os obstáculos, tendo sido trans­
postos, eram transponíveis3. Mas, no segundo sentido, é
um absurdo, pois é claro que um espírito no qual o Ham­
let de Shakespeare se tivesse desenhado sob forma de
possível ter-lhe-ia por isso mesmo criado a realidade: te-
ria sido então, por definição mesmo, o próprio Shakes­
peare. Em vão vocês começarão por imaginar que esse
espírito poderia ter surgido antes de Shakespeare: é que
vocês não pensam então em todos os detalhes do drama.
A medida que vocês os completam, o predecessor de
Shakespeare se vê pensar tudo o que Shakespeare pen­
sará, sentir tudo o que ele sentirá, saber tudo o que ele
saberá, perceber portanto tudo o que ele perceberá, ocupar,
por conseguinte, o mesmo ponto do espaço e do tempo,
ter o mesmo corpo e a mesma alma: é Shakespeare ele
próprio.

3. E ainda cabe perguntar-se em certos casos se os obstáculos não


se tornaram transponíveis graças à ação criadora que os transpôs: a ação,
em si mesma imprevisível, teria então criado a "transponibilidade". An­
tes dela, os obstáculos eram intransponíveis e, sem ela, assim teriam
permanecido.
118 O PENSAMENTO E O MOVENTE

Mas insisto em demasia sobre aquilo que é claro por


si. Todas essas considerações se impõem quando se trata
de uma obra de arte. Acredito que acabaremos por achar
evidente que o artista cria o possível ao mesmo tempo
que o real quando executa sua obra. De onde vem en­
tão que provavelmente hesitaremos em dizer o mesmo
da natureza? Não c o mundo igualmente uma obra de
arte, incomparavelmente mais rica do que a do maior ar­
tista? E não é igualmente absurdo, senão mais, supor
aqui que o porvir se desenhe antecipadamente, que a pos­
sibilidade preexista à realidade? Concedo, mais uma vez,
que os estados futuros de um sistema fechado de pontos
materiais sejam calculáveis e, por conseguinte, sejam vi­
síveis em seu estado presente. Mas, repito, esse sistema
é extraído ou abstraído de um todo que compreende,
além da matéria inerte e inorganizada, a organização. To­
mem o mundo concreto c completo, com a vida e a cons­
ciência que ele enquadra; considerem a natureza inteira,
geradora de espécies novas de formas tão originais e tão
novas quanto o desenho de qualquer artista; prendam-
se, nessas espécies, aos indivíduos, plantas ou animais,
cada um. dos quais tem seu caráter próprio - eu ia dizer
sua personalidade (pois uma folha de grama não se as­
semelha mais a outra folha de grama do que um Rafael
a um Rembrandt); ergam-se, acima do homem indivi­
dual, ate às sociedades, que desenrolam ações e situa­
ções comparáveis às de qualquer drama: como falar ain­
da de possíveis que precederíam sua própria realização?
Como não ver que, embora o acontecimento se explique
sempre, post factum, por tais ou tais acontecimentos an­
tecedentes, um acontecimento inteiramente diferente se
teria explicado com igual propriedade, nas mesmas cir­
cunstâncias, por antecedentes diferentemente escolhi­
O POSSÍVEL E O REAL I 1U

dos - que digo eu? pelos mesmos antecedentes diferen­


temente recortados, diferentemente distribuídos, enfim,
diferentemente percebidos pela atenção retrospectiva? De
trás para frente, desenvolve-se uma remodelagem cons­
tante do passado pelo presente, da causa pelo efeito.
Não o vemos, novamente pela mesma razão, nova­
mente por sermos vítimas da mesma ilusão, novamente
porque tratamos como algo a mais aquilo que é algo a
menos, como algo a menos aquilo que é algo a mais. De­
volvamos o possível ao seu lugar: a evolução torna-se
algo inteiramente diferente da realização de um progra­
ma; as portas do porvir abrem-se de par em par; um
campo ilimitado oferece-sc para a liberdade. O erro das
doutrinas - bem raras na história da filosofia - que sou­
beram abrir espaço para a indeterminação e para a liber ­
dade no mundo foi o de não terem visto aquilo que sua
afirmação implicava. Quando falavam de indetermina­
ção, de liberdade, entendiam por indeterminação uma
competição entre possíveis, por liberdade uma escolha
entre os possíveis - como se a possibilidade não fosse
criada pela própria liberdade! Como se toda outra hipó­
tese, pondo uma ideal preexistência do possível ao real,
não reduzisse o novo a ser apenas um rearranjo de ele­
mentos antigos! Como se não devesse ser levada assim,
cedo ou tarde, a tomá-lo por calculável e previsível! Acei­
tando o postulado da teoria adversa, introduzia o inimi­
go no reduto. É preciso aceitá-lo: é o real que se faz pos­
sível e não o possível que se torna real.
Mas a verdade é que a filosofia nunca admitiu fran-
camcnte essa criação contínua de imprevisível novidade.
Os antigos já a repugnavam, pelo fato de que, mais ou me­
nos platônicos, se figuravam que o Ser era dado de uma
vez por todas, completo e perfeito, no imutável sistema
120 O PENSAMENTO E O MOVENTE

das Idéias: o mundo que se desenrola diante de nossos


olhos, portanto, nada lhe podia acrescentar; pelo contrá­
rio, era apenas diminuição ou degradação; seus estados
sucessivos mediríam o afastamento crescente ou decres­
cente entre aquilo que ele é, sombra projetada no tem­
po, e aquilo que ele deveria ser, Idéia sediada na eterni­
dade; desenhariam as variações de um déficit, a forma
cambiante de um vazio. Seria o Tempo que teria estraga­
do tudo. Os modernos colocam-sc, é verdade, de um
ponto de vista inteiramente diferente. Não tratam mais o
Tempo como um intruso, perturbador da eternidade;
mas de bom grado o reduziríam a uma simples aparên­
cia. O temporal, então, não é mais que a forma confusa
do racional. O que é percebido por nós como uma suces­
são de estados é concebido por nossa inteligência, assim
que a neblina sc dissipou, como um sistema de relações.
O real torna-se mais uma vez o eterno, com esta única
diferença de que é a eternidade das Leis nas quais os fe­
nômenos se resolvem, ao invés de ser a eternidade das
Idéias que lhe servem de modelo. Mas, num caso como
no outro, lidamos com teorias. Atenhamo-nos aos fatos.
O Tempo é imediatamente dado. Isso nos basta e, na es­
pera de que nos demonstrem sua inexistência ou sua
perversidade, simplesmente constataremos que há jorro
efetivo de novidade imprevisível.
A filosofia, com isso, lucrará em encontrar algum ab­
soluto no mundo movente dos fenômenos. Mas nós lu­
craremos também por nos sentirmos mais alegres e mais
fortes. Mais alegres, uma vez que a realidade que se in­
venta diante de nossos olhos dará a cada um de nós, in-
cessantcmente, algumas das satisfações com as quais a
arte brinda, de longe em longe, os privilegiados pela fortu­
na; irá nos descortinar, para além da fixidez e da monoto­
0 POSSÍVEL E O REAL 121

nia percebidas de início por nossos sentidos hipnotiza­


dos pela constância de nossas necessidades, a novidade
incessantemente renascentc, a movente originalidade das
coisas. Mas sobretudo seremos mais fortes, pois da gran­
de obra de criação que está na origem e que se desenvolve
diante de nossos olhos nos sentiremos participar, criado­
res de nós mesmos. Nossa faculdade de agir, ao recobrar-
se, intensificar-sc-á. Humilhados até então numa atitude
de obediência, escravos de não sei que necessidades na­
turais, nós nos reergueremos, senhores associados a um
maior Senhor.Tal será a conclusão de nosso estudo. Guar-
demo-nos de ver uma simples brincadeira numa espe­
culação sobre as relações entre o possível e o real. Pode se
tratar de uma preparação para bem viver.
CAPÍTULO IV
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA
Conferência pronunciada no Congresso Filosófico
de Bolonha em 70 de abril de 19'1'1

Gostaria de lhes submeter algumas reflexões sobre


o espírito filosófico. Parece-me - e mais de um trabalho
apresentado nesse Congresso o atesta - que nesse mo­
mento a metafísica procura simplificar-se, aproximar-se
mais da vida. Creio que ela está certa e que é nesse sen­
tido que devemos trabalhar. Mas considero que, assim
procedendo, nada faremos de revolucionário; limitar-nos-
emos a dar a forma mais apropriada àquilo que é o fun­
do de toda filosofia - quero dizer, de toda filosofia que
tem plena consciência de sua função e de sua destinação.
Pois a complicação da letra não deve fazer perder de vis­
ta a simplicidade do espírito. Atendo-nos às doutrinas
quando já formuladas, à síntese na qual parecem então
abarcar as conclusões das filosofias anteriores e o conjun­
to dos conhecimentos conquistados, corremos o risco de
não mais perceber aquilo que há de essencialmente es­
pontâneo no pensamento filosófico.
Há uma observação que deve ter sido feita por todos
aqueles dentre nós que ensinam a história da filosofia,
por todos aqueles que tiveram ocasião de voltar freqüen-
124 O PENSAMENTO E O MOVENTE

temente ao estudo das mesmas doutrinas e levar assim


cada vez mais longe seu aprofundamento. Dc início, um
sistema filosófico parece erguer-se como um edifício com­
pleto, de uma arquitetura engenhosa, no qual as medi­
das foram tomadas para que nele possamos alojar de for­
ma cômoda todos os problemas. Experimentamos, ao con­
templá-lo sob essa forma, uma alegria estética reforçada
por uma satisfação profissional. Com efeito, não apenas
encontramos aqui a ordem na complicação (uma ordem
que, por vezes, nos divertimos em completar ao descre­
vê-la), mas ternos também o contentamento de pensar
que sabemos de onde provêm os materiais e de que modo
a construção foi feita. Nos problemas que o filósofo pôs,
reconhecemos as questões que se agitavam à sua. volta.
Nas soluções que lhes fornece, acreditamos reencontrar,
arranjados ou desarranjados, mas quase que não modifi­
cados, os elementos das filosofias anteriores ou contem­
porâneas. Tal determinada visão deve ter-lhe sido forne­
cida por este, tal outra lhe foi sugerida por aquele. Com
aquilo que ele leu, ouviu, aprendeu, poderiamos sem dú­
vida recompor a maior parte daquilo que ele fez. Pomo-
nos, portanto, a trabalhar, voltamos às fontes, pesamos
as influências, extraímos as similitudes e acabamos por
ver distintamente na doutrina aquilo que nela procurava­
mos: uma síntese mais ou menos original das idéias cm
meio às quais o filósofo viveu.
Mas um contato frequentemente renovado com o
pensamento do mestre pode nos levar, por uma impreg­
nação gradual, a um sentimento inteiramente diferente.
Não digo que o trabalho de comparação ao qual nos ha­
víamos entregue de início tenha sido perda de tempo: sem
esse esforço prévio para recompor uma filosofia com aqui­
lo que não é ela e para ligá-la àquilo que havia à sua vol-
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA 125

ta, talvez nunca atingíssemos o que ela c verdadeira­


mente; pois o espírito humano é feito de tal modo que só
começa a compreender o novo quando já tentou tudo
para reconduzi-lo ao antigo. Mas, à medida que procu­
ramos nos instalar no pensamento do filósofo ao invés
de dar-lhe a volta, vemos sua doutrina transfigurar-sc. Pri­
meiro, a complicação diminui. Depois, as partes entram
umas nas outras. Por fim, tudo se contrai num único
ponto, do qual sentimos que nos poderiamos aproximar
cada vez mais, ainda que devamos perder as esperanças
de atingi-lo.
Nesse ponto, encontra-se algo simples, infinitamen­
te simples, tão extraordinariamente simples que o filóso­
fo nunca conseguiu dizê-lo. E é por isso que falou por
toda a sua vida. Não podia formular o que tinha no es­
pírito sem se sentir obrigado a corrigir sua formulação e,
depois, a corrigir sua correção: assim, de teoria em teo­
ria, retificando-se quando acreditava completar-se, o que
ele fez, por meio dc uma complicação que convocava a
complicação e por meio de desenvolvimentos justapos­
tos a desenvolvimentos, foi apenas restituir com uma
aproximação crescente a simplicidade de sua intuição ori­
ginal. Toda a complexidade de sua doutrina, que pode ir
ao infinito, não é portanto mais que a incomensurabili-
dade entre sua intuição simples e os meios de que dis­
punha para exprimi-la.
Qual é essa intuição? Se o filósofo não pôde formu­
lá-la, não seremos nós que o conseguiremos. Mas o que
conseguiremos recuperar e fixar é uma certa imagem in­
termediária entre a simplicidade da intuição concreta e a
complexidade das abstrações que a traduzem, imagem fu­
gidia e evanescente que assombra, despercebida talvez,
o espírito do filósofo, que o segue como se fosse sua som­
126 O PENSAMENTO E O MOVENTE

bra através de todas as voltas e reviravoltas de seu pensa­


mento e que, se não é a própria intuição, dela se aproxima
bem mais que a expressão conceituai, necessariamente
simbólica, à qual a intuição deve recorrer para fornecer
"explicações". Olhemos bem essa sombra: adivinhare­
mos a atitude do corpo que a projeta. E se nos esforçarmos
no sentido dc imitar essa atitude, ou antes, de nela nos
inserirmos, iremos rever, na medida do possível, aquilo
que o filósofo viu.
O que caracteriza primeiro essa imagem c a potên­
cia de negação que traz em si. Vocês se lembram como
procedia o demônio de Sócrates: antes bloqueava a von­
tade do filósofo cm um dado momento e o impedia de
agir do que prescrevia o que lhe cabia fazer. Parece-me
que a intuição frequentemente se comporta, cm matéria
especulativa, como o demônio de Sócrates na vida práti­
ca; c pelo menos sob essa forma que principia, sob essa
forma também que continua a dar suas manifestações as
mais nítidas: ela proíbe. Diante de idéias correntemente
aceitas, de teses que parecem evidentes, de afirmações
que haviam passado até então por científicas, assopra no
ouvido do filósofo a palavra: Impossível. Impossível, ain­
da mesmo que os fatos e as razões pareçam te convidar
a crer que isso seja possível e real e certo. Impossível,
porque uma certa experiência, confusa, talvez, mas deci­
siva, fala contigo através de minha voz, e diz que ela é in­
compatível com os fatos que se alegam e as razões que
são dadas, c que, desde então, esses fatos devem ter sido
mal observados, esses raciocínios devem ser falsos. For­
ça singular, essa potência intuitiva de negação! Como foi
possível que não atraísse mais a atenção dos historiado­
res da filosofia? Acaso não é visível que a primeira mano­
bra do filósofo, quando seu pensamento ainda está pou-
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA 127

co seguro e nada há de definitivo em sua doutrina, con­


siste em rejeitar certas coisas definitivamente? Mais tar­
de, poderá variar naquilo que afirmar; não variará muito
naquilo que nega. E se varia naquilo que afirma, será
ainda em virtude da potência de negação imanente à in­
tuição ou à sua imagem. Ter-se-á deixado ir preguiçosa­
mente na dedução de consequências segundo as regras
de uma lógica retilínea; e eis que, de repente, diante de
sua própria afirmação, experimenta o mesmo sentimento
de impossibilidade que de início lhe havia advindo dian­
te da afirmação de outrem. Com efeito, tendo deixado a
curva de seu pensamento para seguir reto pela tangente,
tomou-sc exterior a si mesmo.Volta para dentro de si quan­
do volta à intuição. Dessas saídas e desses retornos são fei­
tos os ziguezagues de uma doutrina que "se desenvolve",
isto é, que se perde, se reencontra e se corrige indefini­
damente a si. mesma.
Libertemo-nos dessa complicação, remontemos para
a intuição simples ou pelo menos para a imagem que a
traduz: ao fazê-lo, vemos a doutrina libertar-se das con­
dições de tempo e de lugar das quais parecia depender.
Sem dúvida, os problemas dos quais o filósofo se ocupou
são os problemas que se punham em seu tempo; a ciên­
cia que utilizou ou criticou era a ciência de seu tempo;
nas teorias que expõe, poderemos até mesmo reencon­
trar, sc ali as procurarmos, as idéias de seus contempo­
râneos e de seus precursores. Como poderia ser de outra
forma? Para fazer compreender o novo, por força há que
exprimi-lo em função do antigo; c os problemas já pos­
tos, as soluções que lhes haviam sido fornecidas, a filo­
sofia e a ciência do tempo no qual ele viveu, foram, para
cada grande pensador, a matéria que ele era obrigado a
utilizar para dar uma forma concreta a seu pensamento.
128 O PENSAMENTO E O MOVENTE

Sem contar que é tradicional, desde a antiguidade, apre­


sentar toda filosofia como um sistema completo, que
abarca tudo aquilo que se conhece. Mas seria enganar-se
extraordinariamente tomar por um elemento constituti­
vo da doutrina o que fora apenas seu meio de expressão.
Tal é o primeiro erro ao qual nos expomos, como eu di­
zia agora há pouco, quando abordamos o estudo de um
sistema. Tantas semelhanças parciais nos impressionam,
tantas aproximações nos parecem impor-se, apelos tão
numerosos, tão prementes, são lançados dc todas as par­
tes à nossa engenhosidade e à nossa erudição que somos
tentados a recompor o pensamento do mestre com frag­
mentos dc idéias tomadas aqui e ali, à custa de louvá-lo
depois por ter sabido executar - como nós mesmos aca­
bamos dc nos mostrar capazes de fazê-lo - um belo tra­
balho de mosaico. Mas a ilusão não dura muito, pois ra­
pidamente percebemos que o filósofo, ali mesmo onde
parece repetir coisas já ditas, as pensa à sua maneira. Re­
nunciamos então a recompor, mas é para cair, o mais das
vezes, numa nova ilusão, menos grave, sem dúvida, do
que a primeira, mas mais tenaz do que ela. De bom gra­
do nos figuramos a doutrina - mesmo que seja a de um
mestre - como descendente das filosofias anteriores e
como representando "um momento de uma evolução".
Decerto, não estamos inteiramente enganados, pois uma
filosofia se assemelha antes a um organismo do que a
um agregado e ainda é melhor falar aqui de evolução do
que de composição. Mas essa nova comparação, além do
fato de atribuir à história do pensamento mais continui­
dade do que nela se encontra de fato, tem o inconve­
niente de manter nossa atenção voltada para a compli­
cação exterior do sistema e para aquilo que ele pode ter
de previsível em sua forma superficial, ao invés de nos
A ÍMTUIÇÃO FILOSÓFICA 129

convidar a um contato direto com a novidade e a simpli­


cidade de seu fundo. Um filósofo digno desse nome
nunca disse mais que uma única coisa: e, mesmo assim.,
antes procurou dizê-la do que a disse verdadeiramente.
E disse apenas uma única coisa porque soube apenas um
único ponto: c mesmo assim foi menos uma visão do
que um contato; esse contato forneceu um ímpeto, esse
ímpeto um movimento, e, embora esse movimento, que
é como um certo turbilhonamento de uma certa forma
particular, só se torne visível aos nossos olhos por meio
daquilo que ele apanhou pelo seu caminho, nem por isso
é menos verdade que outras poeiras bem que poderíam
ter sido levantadas e teria sido ainda assim o mesmo tur­
bilhão. Desse modo, um pensamento que traz algo de
novo para o mundo por força há de se manifestar atra­
vés das idéias já prontas que encontra à sua frente e ar­
rasta em seu movimento; aparece assim como relativo à
época em que o filósofo viveu: mas o mais das vezes isso
é apenas uma aparência. O filósofo podería ter vindo vá­
rios séculos antes; teria lidado com uma outra filosofia e
uma. outra ciência; ter-se-ia posto outros problemas; ter-
se-ia expresso por outras fórmulas; nenhum capítulo,
talvez, dos livros que escreveu teria sido como é; e no en­
tanto ele teria dito a mesma coisa.
Permitam-mc escolher um exemplo. Vou recorrer às
suas lembranças profissionais: irei evocar, se vocês me
permitirem, algumas das minhas. Professor no College dc
France, consagro um de meus dois cursos, todos os anos,
à história da filosofia. Foi assim que pude, durante vários
anos consecutivos, praticar longamente em Berkeley, de­
pois em Espinosa, a experiência que acabo de descrever.
Deixarei de lado Espinosa; ele nos arrastaria longe de­
mais. E no entanto não conheço nada mais instrutivo do
130 O 1>ENSAMENTO E O MOVENTE

que o contraste entre a forma e o fundo de um livro como


a Etica: dc um lado essas coisas enormes que se chamam
a Substância, o Atributo e o Modo, e o formidável apara­
to dos teoremas com o emaranhado das definições, co­
rolários e escólios, e essa complicação de maquinário e
essa potência de esmagamento que fazem com que o
iniciante, na presença da Ética, seja tomado de admira­
ção c de terror como diante de um encouraçado do tipo
Dreadnought; - do outro, algo sutil, muito leve e quase
aéreo, que foge quando nos aproximamos, mas que não
podemos olhar, nem mesmo de longe, sem nos tornar­
mos incapazes de nos prendermos a qualquer outra par­
te da obra, mesmo àquilo que passa por capital, mesmo
à distinção entre a Substância e o Atributo, mesmo à
dualidade do Pensamento e da Extensão. por trás da
pesada massa dos conceitos aparentados ao cartesianis-
mo e ao aristotelismo, a intuição que foi a de Espinosa,
intuição que nenhuma fórmula, por simples que seja, será
suficientemente simples para exprimir. Digamos, para nos
contentar com uma aproximação, que é o sentimento de
uma coincidência entre o ato pelo qual nosso espírito co­
nhece perfeitamente a verdade e a operação pela qual
Deus a engendra, é a idéia de que a "conversão" dos Ale­
xandrinos, quando se torna completa, passa a ser uma só
e mesma coisa que sua "processão" e de que o homem,
saído da divindade, quando consegue voltar para dentro
dela, já não percebe mais senão um único movimento ali
onde tinha visto de início os dois movimentos inversos
de ida e de volta - a experiência moral encarregando-se
aqui de resolver uma contradição lógica e de fazer, por
uma brusca supressão do Tempo, com que a volta seja uma
ida. Quanto mais remontamos para essa intuição origi­
nal, tanto melhor compreendemos que, caso Espinosa ti-
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA 131

vessc vivido antes dc Descartes, teria sem dúvida escrito


algo diferente do que escreveu, mas que, Espinosa viven­
do e escrevendo, teríamos certeza de ter apesar de tudo
o espinosismo.
Passo a Berkeley c, já que é cie que tomo como exem­
plo, vocês não me levarão a mal se eu o analisar em de­
talhe: a brevidade só se obteria aqui às expensas do rigor.
Basta deitar um lance dc olhos na obra de Berkeley para
vê-la rcsumir-sc, como que por si mesma, em quatro te­
ses fundamentais. A primeira, que define um certo idea­
lismo e à qual se vincula a nova teoria da visão (ainda
que o filósofo tenha julgado prudente apresentar esta úl­
tima como independente) formular-se-ia assim: "a ma­
téria é um conjunto de idéias". A segunda consiste em
pretender que as idéias abstratas e gerais se reduzem a
palavras: trata-se de nominalismo. A terceira afirma a rea­
lidade dos espíritos e os caracteriza pela vontade: diga­
mos que se trata de espiritualismo c de voluntarismo. A
última, por fim, que poderiamos chamar de teísmo, põe
a existência dc Deus fundando-se principalmente na
consideração da matéria. Ora, nada seria mais fácil do
que reencontrar essas quatro teses, formuladas em ter­
mos aproximadamente idênticos, nos contemporâneos
ou nos predecessores de Berkeley. A. última delas encon­
tra-se também nos teólogos. A terceira estava em Duns
Scotus; Descartes disse algo do mesmo gênero. A segun­
da alimentou as controvérsias da idade media antes de
fazer parte integrante da filosofia de Hobbes. Quanto à
primeira, assemelha-se muito ao "ocasionalismo" de Ma-
lebranche, do qual encontraríamos a idéia, e mesmo a
fórmula, já em alguns textos de Descartes; não se havia
esperado Descartes, aliás, para notar que o sonho tem
toda a aparência da realidade e que não há nada, em ne­
132 O PENSAMENTO E O MOVENTE

nhuma dc nossas percepções tomadas em separado, que


nos garanta a existência de uma coisa exterior a nós. As­
sim, com filósofos já antigos ou mesmo, se não se quer
voltar muito atrás, com Descartes e com Hobbes, aos
quais podemos acrescentar Locke, teremos os elementos
necessários para a reconstituição exterior da filosofia de
Berkeley; no máximo lhe será deixada sua teoria da vi­
são, que seria então sua obra própria e cuja originalida­
de, respingando sobre todo o resto, daria ao conjunto da
doutrina seu aspecto original. Tomemos então essas fa­
tias de filosofia antiga e moderna, ponhamo-las na mes­
ma vasilha, acrescentemos, à guisa de vinagre e de óleo,
uma certa impaciência agressiva para com o dogmatis-
mo matemático e o desejo, natural num bispo filósofo,
de reconciliar a razão com a fé, misturemos e mexamos
conscienciosamente, salpiquemos no todo, como se fos­
sem ervas finas, um certo número de aforismos colhidos
nos neoplatônicos: teremos - com o perdão da expressão
- uma salada que sc assemelhará suficientemente, de lon­
ge, àquilo que Berkeley fez.
Pois bem, aquele que assim procedesse seria incapaz
dc penetrar no pensamento de Berkeley. Não falo das di­
ficuldades e das impossibilidades com as quais se defron­
taria nas explicações dc detalhe: singular "nominalismo"
este que desemboca em erigir um bom número de idéias
gerais em essências eternas, imanentes à Inteligência di­
vina! Estranha negação da realidade dos corpos esta que
sc exprime por uma teoria positiva da natureza da maté­
ria, teoria fecunda, tão afastada quanto possível de um
idealismo estéril que assimilaria a percepção ao sonho!
O que quero dizer é que nos é impossível examinar com
atenção a filosofia de Berkeley sem ver, primeiro, se apro­
ximarem, depois, se interpenetrarem as quatro teses que
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA 133

nela distinguimos, de modo que cada uma delas parece


tornar-se grávida das três outras, ganhar relevo e pro­
fundidade e distinguir-se radicalmente das teorias ante­
riores ou contemporâneas com as quais sc podia fazer
com que ela coincidisse na superfície. Sem dúvida, esse
segundo ponto de vista, a partir do qual a doutrina apa­
rece como um organismo e não mais como um agrega­
do, ainda não é o ponto de vista definitivo. Pelo menos
está mais próximo dai verdade. Não posso entrar em todos
os detalhes; cabc-me, no entanto, indicar, com relação a
uma ou duas, pelo menos, das quatro teses, como se po­
deria extrair dela qualquer uma das outras.
Tomemos o idealismo. Este não consiste apenas em
dizer que os corpos são idéias. Para que serviría isso?
Forçoso nos seria realmente continuar a afirmar acerca
de todas essas idéias tudo aquilo que a experiência nos
faz afirmar acerca dos corpos, c teríamos simplesmente
substituído uma palavra por outra; pois Berkeley certa­
mente não pensa que a matéria deixará de existir quan­
do ele tiver deixado de viver. O que o idealismo de Ber­
keley significa é que a matéria é cocxtensiva à nossa re­
presentação; que ela não tem interior, não tem avesso;
que ela nada esconde, não encerra nada; que ela não
possui nem potências nem virtualidades de espécie al­
guma; que ela está esparramada na superfície c que ela
está inteira, em cada instante, naquilo que ela dá. A pa­
lavra "idéia" designa normalmentc uma existência desse
gênero, quero dizer, uma existência completamente rea­
lizada, cujo ser c uma só e mesma coisa que o parecer, ao
passo que a palavra "coisa" nos faz pensar numa reali­
dade que seria ao mesmo tempo um reservatório de pos­
sibilidades; é por essa razão que Berkeley prefere chamar
os corpos de idéias a chamá-las de coisas. Mas, se consi-
134 O PENSAMENTO Ê 0 MOVENTE

dêramos assim o "idealismo", vemo-lo coincidir com o


"nominalismo"; pois essa segunda tese, à medida que sc
afirma mais nitidamente no espírito do filósofo, restrin­
ge-se mais evidentemente à negação das idéias gerais
abstratas - abstraias, isto é, extraídas da matéria; claro
está, com efeito, que não conseguiriamos extrair algo da­
quilo que nada contém, nem, por conseguinte, fazer sair
de uma percepção algo diferente dela. A cor sendo ape­
nas cor, a resistência sendo apenas resistência, nunca en­
contrarão nada de comum entre a resistência e a cor,
nunca extrairão dos dados da visão um elemento que
seja comum a eles e aos do tato..Mas, se vocês pretende­
rem abstrair destes e daqueles algo que lhes seja comum
a todos, perceberão, olhando essa coisa, que lidam com
uma palavra: eis o nominalismo de Berkeley; mas eis, ao
mesmo tempo, a "nova teoria da visão". Se uma exten­
são que fosse ao mesmo tempo visual e táctil é apenas
uma palavra, com mais forte razão o mesmo ocorre com
uma extensão que envolvesse todos os sentidos ao mes­
mo tempo: eis novamente o nominalismo, mais eis tam­
bém a refutação da teoria cartcsiana da matéria. Não fa­
lemos mais nem sequer dc extensão; constatemos sim­
plesmente que, dada a estrutura da linguagem, as duas
expressões "tenho essa percepção" e "essa percepção
existe" são sinônimas, mas que a segunda, ao introduzir
a mesma palavra "existência" na descrição de percep­
ções inteiramente diferentes, convida-nos a crer que têm
algo em comum entre si c a imaginar que sua diversida­
de recobre uma unidade fundamental, a unidade de uma
"substância" que na realidade não é mais que a palavra
existência hipostasiada: vocês têm aí todo o idealismo de
Berkeley; e esse idealismo, como eu o dizia, é uma só e
mesma coisa que seu nominalismo. - Passo agora, se vo­
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA 135

cês me permitirem, à teoria de Deus e à dos espíritos. Se


um corpo é feito de "idéias" ou, em outros termos, se ele
é inteiramente passivo e terminado, desprovido de po­
deres e de virtual idades, ele não poderia agir sobre ou­
tros corpos; e, desde então, os movimentos dos corpos
devem ser os efeitos de uma potência ativa, que produ­
ziu esses corpos eles próprios e que, em razão da ordem
que o universo atesta, só pode ser uma causa inteligen­
te. Se nos enganamos quando erigimos em realidades,
sob o nome de idéias gerais, os nomes que demos a gru­
pos de objetos ou de percepções mais ou menos artifi­
cialmente constituídos por nós no plano da matéria, já
não se passa o mesmo quando cremos descobrir, por trás
do plano no qual a matéria se esparrama, as intenções
divinas: a idéia geral que só existe na superfície c que liga
os corpos aos corpos sem dúvida não é mais que uma
palavra; mas a idéia geral que existe em profundidade,
vinculando os corpos a Deus, ou antes, descendo de
Deus para os corpos, é uma realidade; c assim o nomina­
lismo de Berkeley chama naturalmente por esse desen­
volvimento da doutrina que encontramos no Siris e que
se considerou equivocadamente como uma fantasia neo-
platônica; em outros termos, o idealismo de Berkeley é
apenas um aspecto da teoria que põe Deus por trás de
todas as manifestações da matéria. Por fim, se Deus im­
prime em cada um de nós percepções ou, como diz Ber­
keley, "idéias", o scr que recolhe essas percepções, ou an­
tes, que a elas se antecipa, é o exato inverso de uma idéia:
é uma vontade, aliás limitada incessantemente pela von­
tade divina. O ponto de encontro dessas duas vontades
é justamente aquilo que chamamos de matéria. Se o per-
cipi é passividade pura, o percipere é pura atividade. Espí­
rito humano, matéria, espírito divino tornam-se portan­
136 O PENSAMENTO E O MOVENTE

to termos que só podem ser expressos um cm função do


outro. E o espiritualismo de Berkeley vê-se ele próprio não
ser mais que um aspecto de qualquer uma das três ou­
tras teses.
Assim, as diversas partes do sistema intcrpcnctram-
se, como num ser vivo. Mas, como eu o dizia de início, o
espetáculo dessa penetração recíproca dá-nos sem dúvi­
da uma idéia mais justa do corpo da doutrina; não faz
ainda com que atinjamos sua alma.
Dela nos aproximaremos se pudermos atingir a ima-
gcni nicdiadom de que eu falava agora há pouco - uma
imagem que é quase matéria pelo fato de ainda se deixar
ver c quase espírito pelo fato de não se deixar mais to­
car fantasma que nos assombra enquanto giramos em
torno da doutrina c ao qual cabe que nos enderecemos
para obter o sinal decisivo, a indicação da atitude a tomar
e do ponto para o qual olhar. A imagem mediadora que se
desenha no espírito do intérprete, à medida que este avan­
ça no estudo da obra, terá ela existido outrora, tal e qual,
no pensamento do mestre? Se não foi esta, foi alguma
outra, que podia pertencer a uma ordem de percepção
diferente e não ter nenhuma semelhança material com
ela, mas que no entanto lhe equivalia como se equivalem
duas traduções, em línguas diferentes, do mesmo origi­
nal.Talvez essas duas imagens, talvez mesmo outras ima­
gens, novamente equivalentes, se tenham apresentado
todas juntas, seguindo o filósofo a passo e passo, cm pro­
cissão, através das evoluções de seu pensamento. Ou tal­
vez não tenha ele percebido nenhuma, limitando-se a re­
tomar diretamente contato, de longe em longe, com essa
coisa ainda mais sutil que é a própria intuição; mas en­
tão nos é forçoso, a nós intérpretes, restabelecer a ima­
gem intermediária, sob pena de ter de falar da "intuição
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA 137

original" como dc um pensamento vago e do "espírito


da doutrina" como de uma abstração, ao passo que esse
espírito é aquilo que há de mais concreto e essa intuição
aquilo que há dc mais preciso no sistema.
No caso de Berkeley, creio ver duas imagens dife­
rentes, e aquela que me impressiona mais não é aquela
da qual encontramos uma indicação completa no pró­
prio Berkeley. Parece-me que Berkeley percebe a matéria
como uma delgada película transparente situada entre o
homem c Deus. Permanece transparente enquanto os fi­
lósofos não se ocupam dela e, então, Deus mostra-se atra­
vés dela. Mas que os metafísicos nela toquem ou mesmo
o senso comum na medida em que é metafísico: imedia­
tamente a película se dcslustra e se espessa, torna-se opa­
ca e forma um anteparo, porque palavras tais como Subs­
tância, Força, Extensão abstrata, etc. escorregam para trás
dela, nela se depositam como uma camada de poeira c
nos impedem de perceber Deus por transparência. A ima­
gem mal é indicada pelo próprio Berkeley, ainda que ele
tenha dito em todas as letras "que levantamos a poeira e
que nos queixamos depois de não enxergar". Mas há uma
outra comparação, frequentemente evocada pelo filósofo
e que não é mais que a transposição auditiva da imagem
visual que acabo de descrever: a matéria seria uma lín­
gua em que Deus nos fala. As metafísicas da matéria, es­
pessando cada uma das sílabas,.destacando-as, erigindo-
as em entidades independentes, desviariam então nossa
atenção do sentido para o som e nos impediríam de acom­
panhar a palavra divina. Mas, quer nos prendamos a uma,
quer à outra, nos dois casos lidamos com uma imagem
simples que cabe manter diante dos olhos, porque, se ela
não é a intuição geradora da doutrina, dela deriva ime­
diatamente e dela se aproxima mais do que qualquer uma
138 O PENSAMENTO E O MOVENTE

das teses tomadas separadamente, até mesmo mais do


que sua combinação.
Podemos nós recuperar essa intuição ela própria? Só
temos dois meios de expressão, o conceito e a imagem.
E cm conceitos que o sistema se desenvolve; é numa
imagem que ele se contrai quando o rebatemos na dire­
ção da intuição da qual ele desce: mas se quisermos ul­
trapassar a imagem remontando mais alto que ela, ne­
cessariamente recairemos em conceitos c cm conçcitos
mais vagos, mais gerais ainda do que aqueles dos quais
havíamos partido à procura da imagem c da intuição. Re­
duzida a assumir essa forma, engarrafada ao sair de sua
fonte, a intuição original parecerá portanto ser o que há
de mais insosso e dc mais frio no mundo: será a própria
banalidade. Se disséssemos, por exemplo, quo Berkeley
considera a alma humana como parcial mente unida a
Deus e parcialmentc independente, que ele tem cons­
ciência de si mesmo, a cada instante, enquanto uma ati­
vidade imperfeita que se juntaria a uma atividade mais
alta caso não houvesse, interposto entre as duas, algo
que é a passividade absoluta, exprimiriamos, da intuição
original de Berkeley, tudo aquilo que se podo traduzir
imediatamente em conceitos, c no entanto feríamos algo
tão abstrato que seria aproximadamente vazio. Atenha-
mo-nos a essas fórmulas, uma vez que não podemos en­
contrar coisa melhor, mas procuremos pôr nelas um pou­
co dc vida. Tomemos tudo o que o filósofo escreveu, fa­
çamos essas idéias espalhadas subir de volta em direção
à imagem dc onde haviam descido, ergamo-las, já encer­
radas na imagem, até à fórmula abstrata que irá se inflar
com a imagem e com as idéias, aferremo-nos então a
essa fórmula e vejamo-la, ela tão simples, simplificar-se
ainda mais, tanto mais simples quanto maior for o nú­
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA 139

mero dc coisas que tivermos empurrado nela, ergamo-


nos por fim com cia, subamos em direção ao ponto no
qual se contrairía em tensão tudo o que estava dado em
extensão na doutrina: conseguiremos, desta vez, nos re­
presentar o modo pelo qual desse centro de força, aliás
inacessível, parte a impulsão que dá o elã, isto é, a pró­
pria intuição. As quatro teses de Berkeley saíram daí,
porque esse movimento encontrou em seu caminho as
idéias e os problemas que os contemporâneos de Berke­
ley levantavam. Noutros tempos, Berkeley teria certa­
mente formulado outras teses; mas, o movimento sendo
o mesmo, essas teses estariam situadas da mesma ma­
neira umas com relação às outras; teriam tido a mesma
relação entre si, como as palavras novas dc uma nova fra­
se entre as quais continua a correr um sentido antigo; c
teria sido a mesma filosofia.
A relação entre uma filosofia c as filosofias anterio­
res e contemporâneas não é, portanto, aquilo que uma
certa concepção da história dos sistemas nos levaria a su­
por. O filósofo não toma as idéias preexistentes para fun­
di-las numa síntese superior ou combiná-las com uma
idéia nova. Seria o mesmo que acreditar que, para falar,
saímos cm busca dc palavras que costuramos depois
umas às outras por meio de um pensamento. A verdade
é que, acima da palavra c acima da frase, há algo bem
mais simples que uma frase c mesmo que uma palavra:
o sentido, que é menos uma coisa pensada do que um
movimento de pensamento, menos um movimento do
que uma direção. E, assim como o ímpeto conferido à
vida embrionária determina a divisão de uma célula pri­
mitiva em células que se dividem por sua vez até que o
organismo completo seja formado, assim também o mo­
vimento característico de todo ato dc pensamento leva
140 O PENSAMENTO E O MOVENTE

esse pensamento, por uma subdivisão crescente de si


mesmo, a esparramar-se cada vez mais nos planos su­
cessivos do espírito ate atingir o da palavra. Ali, ele se ex­
prime por meio de uma frase, isto é, por um grupo de
elementos preexistentes; mas pode escolher quase que
arbitrariamente os primeiros elementos do grupo, desde
que os outros lhes sejam complementares: o mesmo pen­
samento traduz-se igualmente bem cm frases diversas,
compostas dc palavras inteiramente diferentes, desde
que essas palavras tenham entre si a mesma, relação.,Tal
é o processo da palavra. E tal é também a operação pela
qual se constitui uma filosofia. O filósofo não parte de
idéias preexistentes; pode-se no máximo dizer que a elas
chega. E, quando o faz, a idéia assim arrastada pelo mo­
vimento de seu espírito, animando-se de uma vida nova
como a palavra que recebe seu sentido da frase, não é
mais o que era. fora do turbilhão.

Encontrar-se-ia uma relação de mesmo gênero en­


tre um sistema filosófico c o conjunto dos conhecimen­
tos cien tíficos da época na qual o filósofo viveu. Há unia
certa concepção da filosofia que quer que todo o esforço
do filósofo tenda a abarcar numa grande síntese os re­
sultados das ciências particulares. Decerto, o filósofo foi
por muito tempo aquele que possuía a ciência universal;
e mesmo hoje, quando a multiplicidade das ciências par­
ticulares, a diversidade e a complexidade dos métodos, a
massa enorme dos fatos coletados tornam impossível a
acumulação de todos os conhecimentos humanos num
único espírito, o filósofo permanece o homem da ciência
universal no sentido dc que, embora não possa mais sa­
ber tudo, não há nada que ele não deva estar em condi­
ções de aprender. Mas acaso se segue daí que sua tarefa
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA 141

seja apoderar-se da ciência feita, levá-la a graus crescen­


tes de generalidade c encaminhar-se, de condensação
em condensação, para aquilo que se chamou de unifica­
ção do saber? Permitam-me achar estranho que seja em
nome da ciência, por respeito à ciência, que nos propo­
nham essa concepção da filosofia: não conheço nenhu­
ma outra que seja mais ofensiva para a ciência ou mais
injuriosa para o cientista, Mas, qual! Eis um homem que
praticou longamente um certo método científico e con­
quistou laboriosamente seus resultados e que vem nos
dizer: "a experiência, auxiliada pelo raciocínio, conduz
até esse ponto; o conhecimento científico começa aqui,
termina ali; tais são minhas conclusões"; e o filósofo
teria o direito de lhe responder: "Muitíssimo bem, entre­
gue-me isso, e você verá o que eu consigo fazer! O co­
nhecimento que você me traz incompleto, eu o comple­
tarei. O que você me apresenta desconexo, eu o unificarei.
Com os mesmos materiais, uma vez que está subenten­
dido que me aterei aos fatos que você observou, com o
mesmo gênero de trabalho, uma vez que, como você, de­
vo me limitar a induzir e a deduzir, farei mais e melhor
do que aquilo que você fez." Estranha pretensão, na ver­
dade! Como a profissão de filósofo podería conferir
àquele que a exerce a capacidade de avançar mais Longe
do que a ciência na mesma direção que ela? Que certos
cientistas estejam mais inclinados que outros a ir em
frente c a generalizar seus resultados, mais inclinados
também a voltar para trás e a criticar seus métodos, que,
nesse sentido particular da palavra, eles sejam ditos filó­
sofos, que, aliás, cada ciência possa e deva ter sua filoso­
fia assim compreendida, sou o primeiro a admiti-lo. Mas
essa filosofia ainda é ciência e aquele que a faz ainda é
cientista. Não se trata mais, como há pouco, de erigir a
142 O PENSAMENTO E O MOVENTE

filosofia cm síntese das ciências positivas c pretender,


pela simples virtude do espírito filosófico, subir mais alto
que a ciência na generalização dos mesmos fatos.
Uma tal concepção do papel do filósofo seria inju­
riosa para a ciência. Mas quão mais injuriosa ainda para
a filosofia! Não é evidente que, se o cientista se detém
em determinado ponto no caminho da generalização e
da síntese, c que all termina aquilo que a experiência ob­
jetiva c o raciocínio seguro nos permitem avançar? E,
desde então, ao pretendermos ir mais longe na mesma
direção, não nos colocaríamos sistematicamente no arbi­
trário ou pelo menos no hipotético? Fazer da filosofia
um conjunto de generalidades que ultrapassa a genera­
lização científica é querer que o filósofo se contente com
o plausível o que a probabilidade lhe baste. Bem sei que,
para a maior parte daqueles que acompanham de longe
nossas discussões, nosso domínio é com efeito o do mero
possível, no máximo o do provável; de bom grado diríam
que a filosofia começa ali onde a certeza acaba. Mas quem
de nós desejaria uma tal situação para a filosofia? Sem
dúvida, nem tudo é igual men te verificado ou verificável
naquilo que uma filosofia nos traz, e é da essência do mé­
todo filosófico exigir que em muitos momentos, acerca
de muitos pontos, o espírito aceite riscos. Mas o filósofo
só corre esses riscos porque se assegurou uma caução, e
porque há coisas das quais ele se sente inabalavelmente
certo. Haverá dc nos tomar certos delas, por nossa vez, à
medida que souber nos comunicar a intuição da qual ex­
trai a sua força.
A verdade é que a filosofia não é uma síntese das
ciências particulares e que, se ela frequentemente se co­
loca no território da ciência, se ela por vezes abarca numa
visão simples os objetos dos quais a ciência se ocupa, não
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA 143

é por intensificar a ciência, não é por levar os resultados


da ciência a um mais alto grau de generalidade. Não ha­
vería lugar para duas maneiras de conhecer, filosofia e
ciência, caso a experiência não se apresentasse a nós sob
dois aspectos diferentes, de um lado sob a forma de fa­
tos que se justapõem a fatos, que se repetem aproxima­
damente, que se medem aproximadamente, que se des­
dobram enfim no sentido da multiplicidade distinta c da
espa cialidade, do outro sob a forma de uma penetração
recíproca que é pura duração, refratária à lei e à medida.
Nos dois casos, experiência significa consciência; mas,
no primeiro, a consciência desabrocha lá fora c se exte-
rioriza em relação a si mesma na exata medida em que
percebe coisas exteriores umas às outras; no segundo,
volta para dentro de si, recobra-se e aprofunda-se. Son­
dando assim sua própria profundidade, será que penetra
mais fundo no interior da matéria, da vida, da realidade
em geral? Poder-se-ia contestá-lo, caso a consciência ti­
vesse vindo acrescentar-se à matéria como um acidente;
mas cremos ter mostrado que uma semelhante hipótese,
conforme o lado pelo qual se a tome, é absurda ou falsa,
contraditória consigo mesma ou contradita pelos fatos.
Podcr-se-ia ainda contestá-lo, caso a consciência huma­
na, ainda que aparentada a uma consciência mais vasta
e mais alta, tivesse sido posta à parte e o homem tivesse
que ficar num cantinho da natureza como uma criança
de castigo. Mas não! A matéria e a vida que preenchem
o mundo estão igualmente em nós; as forças que traba­
lham em todas as coisas, sentimo-las em nós; soja lá qual
for a essência íntima daquilo que é e daquilo que se faz,
somos parte disso. Desçamos então para o interior de
nós mesmos: quanto mais profundo for o ponto que ti­
vermos alcançado, mais forte será o ímpeto que nos dc-
144 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

volverá à superfície. A intuição filosófica é esse contato,


a filosofia é esse elã. Reconduzidos para fora por uma im-
puisão vinda do fundo, alcançaremos a ciência à medida
que nosso pensamento for desabrochando ao se espa­
lhar. E portanto preciso que a filosofia possa moldar-se
pela ciência, e uma idéia, de origem pretensamente in­
tuitiva, que não conseguisse, dividindo-se e subdividin­
do suas divisões, recobrir os fatos observados lá fora e as
leis pelas quais a ciência os liga entre si, que não fosse ca­
paz, inclusive, dc corrigir certas generalizações e endirei­
tar certas observações, seria pura fantasia; nada teria em
comum com a intuição. Mas, por outro lado, a idéia que
consegue aplicar exatamente sobre os fatos e as leis esse
espalhamento de si mesma não foi obtida por uma uni­
ficação da experiência exterior; pois o filósofo não veio
até a unidade, partiu dela. Falo, é claro, de uma unidade
ao mesmo tempo restrita e relativa, como aquela que re­
corta um ser vivo no conjunto das coisas. O trabalho pelo
qual a filosofia parece incorporar os resultados da ciên­
cia positiva, assim como a operação ao longo da qual uma
filosofia parece reunir em si os fragmentos das filosofias
anteriores, não é uma síntese, mas uma análise.
A ciência é a auxiliar da ação. E a ação visa um re­
sultado. A. inteligência científica pergunta-se portanto o
que precisará ser feito para que um certo resultado dese­
jado seja atingido ou, dc modo mais geral, que condições
é preciso obter para que um certo fenômeno sc produza.
Vai de um arranjo das coisas para um rearranjo, de uma
simultaneidade para uma simultaneidade. Necessariamen­
te negligencia o que ocorre no intervalo; ou, caso disso
se ocupe, é para ali considerar outros arranjos, simulta-
ncidades mais uma vez. Com métodos destinados a
apreender o já feito, ela não poderia, em geral, entrar na­
/I INTUIÇÃO FILOSÓFICA 145

quilo que se faz, seguir o movente, adotar o devir que é


a vida das coisas. Essa última tarefa pertence à filosofia.
Enquanto o cientista, adstrito a tomar vistas imóveis do
movimento e a colher repetições ao longo daquilo que
não se repete, preocupado, também, cm dividir de modo
cômodo a realidade nos planos sucessivos pelos quais ela
está desdobrada a fim de submetê-la à ação do homem,
está obrigado a valer-se de astúcias com a natureza, a
adotar cm face dela uma atitude de desconfiança e de
luta, o filósofo trata-a como camarada. A regra da ciên­
cia é aquela que foi posta por Bacon: obedecer para co­
mandar. O filósofo não obedece nem comanda: procura
simpatizar.
Também desse ponto de vista, a essência da filoso­
fia é o espírito de simplicidade. Quer consideremos o es­
pírito filosófico em si mesmo, quer em suas obras, quer
comparemos a filosofia à ciência, quer uma filosofia a ou­
tras filosofias, sempre descobrimos que a complicação é
superficial, a construção um acessório, a síntese uma apa­
rência: filosofar é um ato simples.

Quanto mais nos imbuirmos dessa verdade, tanto


mais nos inclinaremos a fazer a filosofia sair da escola e
a reaproximá-la da vida. Sem dúvida, a atitude do pen­
samento comum, tal como resulta da estrutura dos sen­
tidos, da. inteligência e da linguagem, avizinha-se mais
da atitude da ciência do que daquela da filosofia. Não
quero dizer com isso apenas que as categorias gerais de
nosso pensamento são exatamente as da ciência, que as
grandes estradas traçadas por nossos sentidos através da
continuidade do real são aquelas pelas quais a ciência irá
passar, que a percepção é uma ciência nascente, a ciên­
cia uma percepção adulta, e que o conhecimento usual e
146 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

o conhecimento científico, ambos destinados a preparar


nossa ação sobre as coisas, são necessariamente duas vi­
sões do mesmo gênero, ainda que dc precisão c de al­
cance desiguais. O que quero dizer, sobretudo, é que o
conhecimento usual está adstrito, como o conhecimento
científico c pelas mesmas razões que elo, a tomar as coi­
sas em um tempo pulverizado, no qual um instante sem
duração sucede a um instante que tampouco dura. Para
ele, o movimento c uma serie de posições, a mudança
uma série de qualidades, o devir em geral uma serio de
estados. Ele parte da imobilidade (como se a imobilida­
de pudesse ser outra coisa além de uma aparência, com­
parável ao efeito especial que um móvel produz sobre
um outro móvel quando estão ajustados um ao outro) e,
por um engenhoso arranjo de imobilidades, recompõe
uma imitação do movimento pela qual substitui o próprio
movimento: operação praticamente cômoda, mas teori­
camente absurda, grávida de todas as contradições, de
todos os falsos problemas que a Metafísica e a Crítica
encontram diante dc si.
Mas, justamente porque é aí que o senso comum
vira as costas para a filosofia, bastará que obtenhamos
dele uma meia-volta nesse ponto para que o recoloque­
mos na direção do pensamento filosófico. Sem dúvida, a
intuição comporta muitos graus de intensidade, e a filo­
sofia muitos graus de profundidade; mas o espírito que
tivermos reconduzido para a duração real já viverá a vida
intuitiva, e seu conhecimento das coisas já será filosofia.
Ao invés de uma descontinuidade de momentos que se
substituiríam em um tempo infinitamente dividido, ele
perceberá a fluidez contínua do tempo real que flui indi­
visível. Ao invés de estados superficiais que viríam su­
cessivamente recobrir uma coisa indiferente e que man-
A INTUIÇÃO FILOSÓFICA 147

teriam com ela a misteriosa relação do fenômeno com a


substância, ele apreenderá uma única c mesma mudan­
ça que vai sempre se alongando, como numa melodia,
onde tudo é devir, mas onde o devir, sendo substancial,
não precisa de suporte. Nada mais de estados inertes,
nada mais de coisas mortas; apenas a mobilidade da
qual é feita a estabilidade da vida. Uma visão desse gê­
nero, na qual a realidade aparece como contínua e como
indivisível, está no caminho que leva para a intuição fi­
losófica.
Pois para ir até a intuição não é necessário transpor­
tar-se para fora do domínio dos sentidos e da consciên­
cia. O erro de Kant foi o de acreditar que isso fosse ne­
cessário. Após ter provado por argumentos decisivos que
nunca nenhum esforço dialético irá nos introduzir no
além e que uma metafísica eficaz seria necessariamente
uma metafísica intuitiva, acrescentou que essa intuição
nos falta e que essa metafísica é impossível. Sê-lo-ia,
com efeito, caso não houvesse outro tempo nem outra
mudança além daqueles que Kant percebeu o com os
quais, aliás, fazemos questão de lidar; pois nossa percep­
ção usual não podería sair do tempo nem apreender algo
diferente da mudança. Mas o tempo no qual permanece­
mos naturalmente instalados, a mudança que normal­
mente temos em mira são um tempo e uma mudança
que nossos sentidos e nossa consciência reduziram a pó
para facilitar nossa ação sobre as coisas. Desfaçamos o
que estes fizeram, reconduzamos nossa percepção às suas
origens e teremos um conhecimento de um novo gêne­
ro sem ter precisado recorrer a novas faculdades.
Caso esse conhecimento se generalize, não é apenas
a especulação que lucrará. A vida de todos os dias pode­
rá ver-se assim reaquecida e iluminada. Pois o mundo no
148 O PENSAMENTO E O MOVENTE

qual nossos sentidos e nossa consciência nos introdu­


zem habitualmente não é mais que a sombra de si mes­
mo; e é frio como a morte. Tudo, nele, está arranjado para
nossa maior comodidade, mas tudo nele está num pre­
sente que parece recomeçar incessantemente; e nós pró­
prios, artificialmente amoldados à imagem dc um uni­
verso não menos artificial, nos divisamos no instantâ­
neo, falamos do passado como daquilo que foi abolido,
vemos na lembrança um fato estranho ou, em todo caso,
estrangeiro, um socorro trazido ao espírito pela matéria.
Recuperemo-nos, pelo contrário, tais como somos, num
presente espesso e, além disso, elástico, que podemos di­
latar indefinidamente para trás, recuando cada vez mais
longe o anteparo que nos oculta de nós mesmos;, recu­
peremos o mundo exterior tal como ele é, não apenas em
superfície, no momento atual, mas cm profundidade, com
o passado imediato que o preme e que lhe imprime seu
elã; habitue mo-nos, numa palavra, a ver todas as coisas
sub specie duratioiiis: imediatamente o hirto se distende,
o adormecido desperta, o morto ressuscita em nossa per­
cepção galvanizada. As satisfações que a arte nunca for­
necerá senão a privilegiados da natureza e da fortuna, e
apenas de longe em longe, a filosofia assim entendida
oferecería a todos, a cada instante, reinsuflando a vida
nos fantasmas que nos cercam e nos revivificando a nós
mesmos. Desse modo, tomar-se-ia complementar da
ciência na prática, tanto quanto na especulação. Com suas
aplicações que visam apenas a comodidade da existên­
cia, a ciência nos promete o bem-estar, no máximo o pra­
zer. Mas a filosofia já nos poderia dar a alegria.
CAPÍTULO V
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA
Conferências pronunciadas na Universidade
de Oxford nos dias 26 e 27 de maio de 1911

Primeira conferência

Minhas primeiras palavras serão palavras de agra­


decimento à Universidade de Oxford pela grande honra
que me concedeu ao me convidar a vir falar nesta casa.
Sempre me representei Oxford como um desses raros
santuários onde sc conservam, religiosamente preserva­
dos, transmitidos por cada geração à seguinte, o calor e
a luz do pensamento antigo. Mas sei também que essa
afeição pela antiguidade não impede esta Universidade
de ser muito moderna e muito viva. Mais particularmen­
te, no que diz respeito à filosofia, impressiona-me ver
com que profundidade e com que originalidade sc estu­
dam aqui os filósofos antigos (ainda recentemente, um
dos mais eminentes mestres desta casa não renovava em
pontos essenciais a interpretação da teoria platônica das
Idéias?) e, por outro lado, também me impressiona ver
como Oxford está na vanguarda do movimento filosófi­
co com as duas concepções extremas da natureza da. ver­
dade: racionalísmo integral e pragmatismo. Essa aliança
150 O PENSAMENTO E O MOVENTE

do presente e do passado é fecunda em todos os domínios:


cm parte alguma ela o é mais do que na filosofia. Decer­
to, temos algo novo para fazer e talvez tenha chegado o
momento de dar-se plenamente conta disso; mas, por se
tratar de algo novo, não precisará necessariamente ser
revolucionário. Estudemos antes os antigos, impregne -
mo-nos de seu espírito e procuremos fazer, na medida
de nossas forças, aquilo que eles próprios fariam caso es­
tivessem entre nós. Iniciados na nossa ciência (não digo
apenas na nossa matemática e na nossa física, que talvez
não mudassem radicalmente seu modo de pensar, mas
sobretudo na nossa biologia e na nossa psicologia), che­
gariam a resultados muito diferentes daqueles que obti­
veram. E isso que me impressiona mais particularmente
no que diz respeito ao problema que me propus a tratar
diante de vocês, o da mudança.
Escolhi-o porque o tomo por capital e porque con­
sidero que, caso estivéssemos convencidos da realidade
da mudança e nos esforçássemos para resgatá-la, tudo se
simplificaria. Dificuldades filosóficas, que são julgadas in­
transponíveis, desapareceríam.'Não apenas a filosofia ga­
nharia com isso, mas nossa vida de todos os dias - que­
ro dizer, a impressão que as coisas deixam em nós e a
reação de nossa inteligência, de nossa sensibilidade e de
nossa vontade sobre as coisas - talvez fosse com isso
transformada e mesmo transfigurada.)É que, normalmen­
te, bem que olhamos a mudança, mas não a percebemos.
Falamos da mudança, mas não pensamos nela. Dizemos
que a mudança existe, que tudo muda, que a mudança é
a própria lei das coisas: sim, dizemo-lo e repetimo-lo; mas
temos aí apenas palavras, e raciocinamos e filosofamos
como se a mudança não existisse. Para pensar a mudan­
ça e para vê-la, há todo um véu de prejuízos que cabe
/I PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 151

afastar, alguns artificiais, criados pela especulação filosó­


fica, outros naturais ao senso comum. Acredito que aca­
baremos por nos pôr de acordo a esse respeito e que
constituiremos então uma filosofia na qual todos colabo­
rarão, acerca da qual todos conseguirão entender-se. E
por isso que eu gostaria de fixar dois ou três pontos acer­
ca dos quais o entendimento me parece já ter sido obti­
do; ele irá estender-se pouco a pouco ao resto. Nossa
primeira conferência versará portanto menos sobre a pró­
pria mudança do que sobre as características gerais de
uma filosofia que se apegaria à intuição da mudança.
Eis, para começar, um ponto acerca do qual todo
mundo concordará. Se os sentidos e a consciência tives­
sem um alcance ilimitado, se, na dupla direção da maté­
ria e do espírito, a faculdade de perceber fosse indefinida,
não precisaríamos conceber nem tampouco raciocinar.
.Conceber é um paliativo quando não é dado perceber, e
o raciocínio é feito para colmatar os vazios da percepção
ou para estender seu alcance..Não nego a utilidade das
idéias abstratas e gerais - como tampouco contesto o va­
lor do papel-moeda. Mas assim como o papel-moeda não
é mais que uma promessa de ouro, assim também uma
concepção só vale pelas percepções possíveis que repre­
senta. Não se trata apenas, é claro, da percepção de uma
coisa, ou de uma qualidade, ou de um estado. Podemos
conceber uma ordem, uma harmonia, e, mais geralmen­
te, uma verdade, que se torna então uma realidade. D\go
que todo mundo está de acordo a esse respeito. Todo
mundo pôde constatar, com efeito, que as concepções
mais engenhosamente conjugadas e os raciocínios mais
cientificamente esteados desabam como castelos de car­
tas no dia em que um fato - um único fato realmente
percebido - vem chocar-sc contra essas concepções e es­
152 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

ses raciocínios. Aliás, não há um único metafísico, um


único teólogo que não esteja pronto a afirmar que um ser
perfeito é aquele que conhece todas as coisas intuitiva­
mente, sem ter de passar pelb raciocínio, a abstração e a
generalização, Portanto, nenhuma dificuldade acerca do
primeiro ponto.
Nem tampouco acerca do segundo, que apresento
agora.;A insuficiência de nossas faculdades de percepção
- insuficiência constatada por nossas faculdades de con­
cepção e de raciocínio - foi o que deu origem à filosofia.
A história das doutrinas vem atestá-lo. As concepções dos
mais antigos pensadores da Grécia eram, decerto, muito
vizinhas da percepção, uma vez que é pelas transforma­
ções de um elemento sensível, como a água, o ar ou o
fogo, que elas completavam a sensação imediata. Mas,
assim que as filosofias da escola de Eléia, criticando a idéia
de transformação, mostraram ou acreditaram mostrar a
impossibilidade de se manter tão próximo dos dados dos
sentidos, a filosofia embrenhou-se na via pela qual veio
caminhando desde então, aquela que conduzia a um mun­
do "supra-sensível": por meio de puras "idéias", dora­
vante, cabia explicar as coisas. .É verdade que, para os fi­
lósofos antigos, o mundo inteligível estava situado fora e
acima daquele que nossos sentidos e nossa consciência
percebem: nossas faculdades de percepção só nos mos­
travam sombras projetadas no tempo e no espaço pelas
Idéias imutáveis e eternas.1,Para os modernos, pelo con­
trário, essas essências são constitutivas das próprias coi­
sas sensíveis; são verdadeiras substâncias, das quais os
fenômenos não são mais que a película superficial. Mas
todos, antigos e modernos, concordam em ver na filosofia
uma substituição do percepto pelo conceito. Todos ape­
lam, da insuficiência de nossos sentidos e de nossa cons-
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 153

ciência, a faculdades do espírito que já não são mais per-


ceptivas, quero dizer, às funções de abstração, de gene­
ralização e dc raciocínio.
Acerca do segundo ponto, conseguiremos então nos
pôr de acordo. Passo, então, para o terceiro ponto, o qual,
creio eu, também não levantará discussão.
Se tal é realmente o método filosófico, não há, não
pode haver uma filosofia como há uma ciência; haverá
sempre, pelo contrário, tantas filosofias diferentes quan­
tos pensadores originais houver. Como poderia ser de ou­
tro modo? Por abstrata que seja uma concepção, é sem­
pre numa percepção que ela tem seu ponto de partida. A
inteligência combina e separa; ela arranja, desarranja,
coordena; ela não cria. E-Ihe preciso uma matéria, e essa
matéria só lhe pode vir dos sentidos ou da consciência.
Uma filosofia que constrói ou completa a realidade com
puras idéias, portanto, não fará mais que substituir ou
acrescentar, ao conjunto de nossas percepções concretas,
tal ou tal dentre elas, elaborada, adelgada, subtilizada,
convertida desse modo em idéia abstrata c geral. Mas, na
escolha dessa percepção privilegiada, haverá sempre algo
de arbitrário, pois a ciência positiva tomou para si tudo o
que é incontestavelmente comum a coisas diferentes, a
quantidade, e só resta então à filosofia o domínio da qua­
lidade, no qual tudo é heterogêneo a tudo, e no qual uma
parte só representará o todo em virtude de um decreto
contestável, senão arbitrário.'A esse decreto será sempre
possível opor outros. E muitas filosofias diferentes surgi­
rão, armadas de conceitos diferentes. Lutarão indefini­
damente entre si.
Eis então a questão que se põe e que tomo por essen­
cial. Uma vez que toda tentativa de filosofia puramente
conceituai suscita tentativas antagonistas e que, no ter­
154 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

reno da dialética pura, não há sistema ao qual não se pos­


sa opor outro, iremos nós permanecer nesse terreno ou
será que não deveriamos antes (sem renunciar, nem é
preciso dizê-lo, ao exercício das faculdades de concepção
e de raciocínio) voltar à percepção, conseguir dela que se
dilate e se estenda? Eu dizia que é a insuficiência da,per-
cepção natural que levou os filósofos a completar a percep­
ção pela concepção - esta devendo colmatar os inter­
valos entre os dados dos sentidos ou da consciência e,
assim fazendo, unificar e sistematizar nosso conheci­
mento das coisas. Mas o exame das doutrinas mostra-
nos que a faculdade de conceber, à medida que progride
nesse trabalho de integração, está reduzida a eliminar do
real um grande número de diferenças qualitativas, a apa­
gar em parte nossas percepções, a empobrecer nossa vi­
são concreta do universo. E mesmo pelo fato dc scr leva­
da, de bom ou mau grado, a assim proceder que toda fi­
losofia suscita filosofias antagonistas, cada uma das quais
reergue algo daquilo que ela deixou cair. ,O método vai
portanto de encontro ao objetivo: ele devia, em teoria,
estender e completar a percepção; é obrigado, de fato, a
pedir a um sem-fim de percepções que se apaguem para
que tal ou tal dentre elas possa tornar-se representativa
das outras. - Mas suponham que, ao invés de querermos
nos elevar acima de nossa percepção das coisas, nela nos
afundássemos para cavá-la e alargá-la. Suponham que
nela inseríssemos nossa vontade e que essa vontade, di­
latando-se, dilatasse nossa visão das coisas. Obteríamos
desta vez uma filosofia na qual não se sacrificaria nada
dos dados dos sentidos e da consciência: nenhuma qua­
lidade, nenhum aspecto do real se substítuiria ao resto
sob o pretexto de explicá-lo. Mas, sobretudo, feríamos
uma filosofia à qual não seria possível opor outras, pois
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 155

nada teria deixado fora de. si que outras pudessem reco­


lher: teria tomado tudo. Teria tomado tudo o que é dado,
e mesmo mais que aquilo que é dado, pois os sentidos e
a consciência, instados por eia a um esforço excepcional,
ter-lhe-iam entregue mais do que fornecem natural-
mente.,À multiplicidade dos sistemas que lutam entre si,
armados de conceitos diferentes, se sucedería a unidade
de uma doutrina capaz de reconciliar todos os pensado­
res em uma mesma percepção - percepção que iria aliás
se alargando, graças ao esforço combinado dos filósofos
em uma direção comum.}
Dirão que esse alargamento é impossível. Como pe­
dir aos olhos do corpo ou aos do espírito que vejam mais
do que aquilo que vêem? A atenção pode tornar mais pre­
ciso, iluminar, intensificar: ela não faz surgir, no campo
da percepção, aquilo que ali não se encontrava de início.
Eis a objeção. - Ela é refutada, cremos nós, pela experiên­
cia. Com efeito, há séculos que surgem homens cuja fun­
ção é justamente a de ver e de nos fazer ver o que não
percebemos naturalmente. São os artistas.
O que visa a arte, a não ser nos mostrar, na nature­
za e no espírito, fora de nós e em nós, coisas que não im­
pressionavam explicitamente nossos sentidos e nossa
consciência? O poeta e o romancista que exprimem um
estado de alma decerto não a criam peça por peça; não
os compreenderiamos caso não observássemos em nós,
até certo ponto, aquilo que dizem de outrem. À medida
que nos falam, aparecem-nos matizes de emoção que
podiam estar representados em nós há muito tempo, mas
que permaneciam invisíveis: assim como a imagem foto­
gráfica que ainda não foi mergulhada no banho no qual
irá ser revelada. O poeta é esse revelador. Mas em parte
alguma a função do artista se mostra tão claramente
156 O PENSAMENTO E O MOVENTE

quanto naquela dentre as artes que abre maior espaço


para a imitação, refiro-me à pintura. Os grandes pintores
são homens aos quais remonta uma certa visão das coi­
sas que se tornou ou se tornará1 a visão de todos os ho­
mens. Um Corot, um Turner, para citar apenas estes, per­
ceberam na natureza muitos aspectos que não nôtáva-
mos. - Acaso se dirá que não viram, mas criaram, que
nos entregaram produtos de sua imaginação, que adota­
mos suas invenções porque nos agradam e que simples­
mente nos divertimos olhando a natureza através da ima­
gem que os grandes pintores dela nos traçaram? - Isso é
verdade, em certa medida; mas, se fosse unicamente as­
sim, por que diriamos acerca de certas obras - a dos mes­
tres - que elas são verdadeiras? Onde estaria a diferença
entre a grande arte e a pura fantasia? Aprofundemos o que
experimentamos diante de um Turner ou de um Corot:
descobriremos que, se os aceitamos e os admiramos, é
porque já havíamos percebido algo daquilo que nos mos­
tram. Mas havíamos percebido sem aperceber. Era, para
nós, uma visão brilhante e evanescente, perdida nessa
multidão de visões igualmente brilhantes, igualmente eva-
nescentes, que se recobrem em nossa experiência usual
como "dissolving views" e que constituem, por sua in­
terferência recíproca, a visão pálida e descolorida que te­
mos habitualmente das coisas. O pintor isolou-a; fixou-a
tão bem. sobre a tela que, doravante, não podemos nos
impedir de aperceber na realidade aquilo que ele próprio
viu nela.
Bastaria a arte, portanto, para nos mostrar que uma
extensão das faculdades de perceber é possível. Mas, como
se efetua essa extensão? - Notemos que c artista sempre
passou por um "idealista". Entende-se com isso que ele
está menos preocupado do que nós com o lado positivo
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 157

e material da vida. É, no sentido próprio da palavra, um


"distraído". Por que consegue ele, sendo mais despren­
dido da realidade, ver nela mais coisas? Isso seria incom­
preensível, caso a visão que temos ordinariamente dos
objetos exteriores e de nós mesmos não fosse uma visão
que nosso apego à realidade, nossa necessidade de viver
e de agir, nos levou a estreitar e a esvaziar. De fato, não
seria difícil mostrar que, quanto mais estamos preocupa­
dos em viver, tanto menos estamos inclinados a contem­
plar, e que as necessidades da ação tendem a limitar o
campo da visão. Não posso entrar na demonstração des­
se ponto; considero que muitas questões psicológicas e
psicofisiológicas seriam iluminadas por uma nova luz
caso reconhecéssemos que a percepção distinta é sim­
plesmente recortada, pelas necessidades da vida prática,
num conjunto mais vasto. Gostamos, na psicologia e
alhures, de ir da parte para o todo, e nosso sistema habi­
tual de explicação consiste em reconstruir idealmente
nossa vida menta] com elementos simples, e depois su­
por que a composição desses elementos entre si tenha
realmente produzido nossa vida mental. Caso as coisas
se passassem assim, nossa percepção seria de fato inex-
tensível; seria feita pela junção de certos materiais deter­
minados, em quantidade determinada, e nunca encon­
traríamos nela algo diferente daquilo que nela foi depo­
sitado de início. Mas os fatos, quando os tomamos tais e
quais, sem. segundas intenções de explicar o espírito me­
canicamente, sugerem uma interpretação inteiramente
diferente. Mostram-nos, na vida psicológica normal, um
esforço constante do espírito no sentido de limitar seu
horizonte, de desviar o olhar daquilo que ele tem um in­
teresse material em não ver. Antes de filosofar, é preciso
viver; e a vida exige que ponhamos antolhos, que não
158 0 PENSAMENTO E O MOVENTi

olhemos à esquerda, à direita ou para trás, mas sim reto


à nossa frente na direção que devemos seguir. Nosso co­
nhecimento, longe de se constituir por uma associação
gradual de elementos simples, é o efeito de uma disso­
ciação brusca: no campo imensamente vasto de nosso
conhecimento virtual, colhemos, para fazer um conheci­
mento atual, tudo o que concerne à nossa ação sobre as
coisas; negligenciamos o resto.,0 cérebro parece ter sido
construído tendo em vista esse trabalho de seleção. Não
seria difícil mostrá-lo no que diz respeito às operações
da memória. Nosso passado, assim como o veremos em
nossa próxima conferência, conserva-se necessariamen­
te, automaticamente. Sobrevive inteiro. Mas nosso inte­
resse prático está em afastá-lo ou, pelo menos, em só
aceitar aquilo que, nele, pode esclarecer e completar de
forma mais ou menos útil a situação presente. Õ cérebro
serve para efetuar essa escolha: atualiza as lembranças
úteis, mantém no subsolo da consciência aquelas que de
nada serviríam. O mesmo poderia ser dito acerca da per­
cepção. Auxiliar da ação, ela isola, no conjunto da reali­
dade, aquilo que nos interessa; mostra-nos menos as
coisas mesmas do que o partido que delas podemos ti­
rar. Antecipadamente as classifica, antecipadamente as
etiqueta; mal olhamos o objeto, basta-nos saber a que
categoria ele pertence. Mas, de longe em longe, por um
acidente feliz, homens surgem cujos sentidos ou cuja
consciência são menos aderentes à vida.lÀ natureza es­
queceu de vincular sua faculdade de perceber à sua fa­
culdade de agir/Quando olham para alguma coisa, vêem-
na por ela mesma, e não mais para eles; percebem por
perceber - por nada, pelo prazer^Por um certo lado deles
próprios, quer por sua consciência, quer por um de seus
sentidos, nascem desprendidos; e, conforme esse despren-
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 159

dimento seja o de tal ou de tal sentido,, ou da consciên­


cia, são pintores ou escultores, músicos ou poetas. É por­
tanto realmente uma visão mais direta da realidade que
encontramos nas diferentes artes; e é pelo fato de o artis­
ta não pensar tanto em utilizar sua percepção que ele per­
cebe um maior número de coisas.,
Pois bem, aquilo que a natureza faz de longe em lon­
ge, por distração, para alguns privilegiados, será que a fi­
losofia, em semelhante matéria, não poderia tentar fazê-
lo, num outro sentido e de outro modo, para todo mun­
do?'O papel da filosofia porventura não seria, aqui, o de
nos levar a uma percepção mais completa da realidade
graças a um certo deslocamento de nossa atenção? Tra-
tar-se-ia de afastar essa atenção do lado praticamente
interessante do universo e de voltá-la para aquilo que,
praticamente, de nada serve. Essa conversão da atenção
seria a própria filosofia.
À primeira, vista, parece que isto já tenha sido feito
há muito tempo/ Com efeito, mais de um filósofo disse
que o desprendimento era condição para filosofar e que
especular era o inverso de agir.,Falávamos, há pouco, dos
filósofos gregos: nenhum exprimiu essa idéia com. mais
força do que Plotino. "Toda ação, dizia ele (e ele acres­
centava mesmo "toda fabricação"), é um enfraquecimento
da contemplação" úc/vra/ou ôf| àveupfjoopev Tiqv Tcoíqoiv
Kai rijv npàÇtv q ctcrâéverov Osropíaç ij TCapaKoZ,oú0"n|ia). E,
fiel ao espírito de Platão, ele pensava que a descoberta
do verdadeiro exige uma conversão (enictpocpfi) do espí­
rito, que se desprende das aparências cá de baixo e se
apega às realidades lá de cima: "Fujamos para nossa
amada pátria!" - Mas, como vocês podem ver, tratava-se
de "fugir". Mais precisamente, para Platão e para todos
aqueles que assim compreenderam a metafísica, despren­
160 O PENSAMENTO E O MOVENTE

der se da vida e converter sua atenção consiste em trans­


portar-se imediatamente para um mundo diferente da­
quele onde vivemos, em suscitar faculdades de percep­
ção outras que os sentidos e a consciência. Não acredita­
ram que essa educação da atenção pudesse consistir o
mais das vezes cm lhe retirar seus antolhos, em desabi-
tuá-la do encolhimento que as exigências da vida lhe im­
põem. Não julgaram que o metafísico, no que diz respei­
to a pelo menos metade de suas especulações, devesse
continuar a olhar aquilo que todo mundo olha: não, se­
ria sempre necessário voltar-se para outra coisa. Daí vem
que recorram invariavelmente a faculdades de visão di­
ferentes daquelas que, a cada instante, exercemos no co­
nhecimento do mundo exterior e de nós mesmos.
E é justamente porque contestava a existência des­
sas faculdades transcendentes que Kant acreditou que a
metafísica fosse impossível. Uma das idéias mais impor­
tantes e mais profundas da Crítica da razão pura é a se­
guinte: se a metafísica é possível, é por uma visãó e não
por uma dialética. A dialética conduz-nos a filosofias opos­
tas; demonstra tanto a tese quanto a antítese das antino­
mias. Apenas uma intuição superior (que Kant chama de
intuição "intelectual"), isto é, uma percepção da realidade
metafísica, perm.iti.ria à metafísica se constituir. Assim, o
resultado mais claro da Crítica kantiana é o de mostrar
que não se poderia penetrar no além a não ser por uma
visão e que uma doutrina só vale, nesse domínio, por
aquilo que contém de percepção: tomem essa percepção,
analisem-na, recomponham-na, virem-na e revirem-na
em todos os sentidos, façam-na sofrer as mais sutis ope­
rações da mais alta química intelectual, nunca extrairão do
cadinho de vocês algo que ali não tenham posto; o tan­
to de visão que ali tiverem posto é o tanto que reencon­
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 16'1

trarão; e o raciocínio não os terá feito progredir um pas­


so sequer para além daquilo que haviam percebido de
início. Eis o que Kant trouxe à plena luz; c este c, a meu
ver, o maior serviço que ele tenha prestado à filosofia es­
peculativa. Estabeleceu definitivamente que, se a metafí­
sica é possível, só pode ser por um esforço de intuição. -
Só que, tendo provado que apenas a intuição seria capaz
de nos dar uma metafísica, acrescentou: essa intuição é
impossível.
Por que a julgou impossível? Precisamente porque
concebeu uma visão desse gênero - quero dizer, uma vi­
são da realidade "em si" - nos termos em que PLotino a
havia concebido, nos termos em que a conceberam em
geral aqueles que recorreram à intuição metafísica. Todos
a entenderam como uma faculdade de conhecer que se
distinguiria radicalmente tanto da consciência quanto dos
sentidos e que estaria até mesmo orientada na direção
inversa. Todos acreditaram que desprender-se da vida
prática era voltar-lhe as costas.
Por que pensaram assim? Por que Kant, seu adver­
sário, partilhou seu erro? Por que julgaram assim todos,
ainda que tirando conclusões opostas, estes construindo
imediatamente uma metafísica, aquele declarando a me­
tafísica impossível?
Pensaram assim porque imaginaram que nossos sen­
tidos e nossa consciência, tal como funcionam na vida de
todos os dias, nos faziam apreender diretamente o mo­
vimento. Acreditaram que por meio de nossos sentidos e
de nossa consciência, trabalhando como trabalham de
ordinário, perceberiamos realmente a mudança nas coi­
sas e a mudança em nós..Então, como é incontestável
que, ao seguirmos os dados habituais de nossos sentidos
e de nossa consciência, desembocamos em contradições
162 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

insolúveis na ordem da especulação, concluíram a partir


daí que a contradição era inerente à própria mudança e
que, para subtrair-se a essa contradição, cabia sair da es­
fera da mudança e elevar-se acima do Tempo. Tal é o fun­
do do pensamento dos metafísicos, assim como também
daqueles que, com Kant, negam a possibilidade da me­
tafísica.
A metafísica nasceu, com efeito, dos argumentos de
Zenão de Eléia relativos à mudança e ao movimento.
Foi Zénão, ao chamar a atenção para o absurdo daqui­
lo que ele chamava de movimento e de mudança, quem
levou os filósofos - Platão em primeiro lugar - a procurar
a realidade coerente e verdadeira naquilo que não muda.
E é pelo fato de acreditar que nossos sentidos e nossa
consciência se exercem efetivamente num Tempo verda­
deiro, quero dizer, num Tempo que muda incessantemen­
te, numa duração que dura, e, de outro lado, pelo fato de
se dar conta da relatividade dos dados usuais de, nossos
sentidos e de nossa consciência (detida por ele, aliás, bem
antes do termo transcendente de seu esforço) que Kant
julgou que a metafísica fosse impossível sem uma visão
inteiramente diferente da dos sentidos e da consciência
- visão da qual, por outro lado, ele não encontrava rastro
no homem.'
Mas, caso pudéssemos estabelecer que aquilo que
foi considerado como movimento e mudança primeiro
por Zenão, depois pelos metafísicos em geral, não é nem
mudança nem movimento, caso pudéssemos estabelecer
que eles retiveram da mudança aquilo que não muda e
do movimento aquilo que não se move, que tomaram
por uma percepção imediata e completa do movimento
e da mudança uma cristalização dessa percepção, uma
solidificação tendo em vista a prática; - e se pudéssemos
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 163

mostrar, por outro lado, que aquilo que foi tomado por
Kant pelo próprio Tempo é um tempo que não flui nem
muda nem dura; - então, para subtrair-se a contradições
como as que Zenão assinalou e para libertar nosso co­
nhecimento cotidiano da relatividade que segundo Kant
a afetava, não havería que sair do tempo (já saímos dele!),
não havería que se desligar do movimento (dele esta­
mos, aliás, por demais desligados!), caberia, pelo contrá­
rio, recuperar a mudança e a duração em sua mobilida­
de original. Então, não veriamos apenas desaparecer
uma por uma muitas dificuldades e desvanecer-se mais
de um problema: através da extensão e da revivificação
de nossa faculdade de perceber, talvez também (mas por
enquanto está fora de questão elevar-se a tais alturas)
através de um prolongamento dado à intuição por almas
privilegiadas, restabeleceriamos a continuidade no con­
junto de nossos conhecimentos - continuidade que já
não seria hipotética e construída, mas experimentada e
vivida. Seria possível um trabalho desse tipo? É o que in­
vestigaremos juntos, pelo menos no que diz respeito ao
conhecimento de nosso entorno, em nossa segunda
conferência.

Segunda conferência

Vocês me concederam ontem uma atenção tão con­


centrada que não irão estranhar se eu me sentir tentado
a abusar dela hoje. Irei pedir-lhes que façam um esforço
violento para afastar alguns dos esquemas artificiais que
interpomos, sem o sabermos, entre a realidade e nós mes­
mos. Trata-se de romper com certos hábitos de pensar e
de perceber que se nos tornaram naturais. Cabe voltar à
164 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

percepção direta da mudança e da mobilidade. Eis um pri­


meiro resultado desse esforço. Representar-nos-emos toda
mudança, todo movimento, como absolutamente indivisível.
Comecemos pelo movimento. Tenho a mão no po‘n-
to A. Transporto-a para o ponto B, percorrendo o inter­
valo AB. Digo que esse movimento de A para B é algo
simples.
Ora, disso cada um. de nós tem a sensação imediata.
Sem dúvida, enquanto levamos nossa mão de A para B,
dizemo-nos que poderiamos detê-la num ponto inter­
mediário, mas então já não lidaríamos mais com o mes­
mo movimento. Já não havería mais um movimento úni­
co de A para B; havería, por hipótese, dois movimentos,
com um intervalo de parada. Nem de dentro, pelo senti­
do muscular, nem de fora, pela vista, feríamos a mesma
percepção. Se deixamos nosso movimento de A para B
tal como ele é, sentimo-lo in diviso e devemos declará-lo
indivisível.
É verdade que, quando olho minha mão ir de A para
B descrevendo o intervalo AB, eu me digo: "o intervalo
AB pode dividir-se em tantas partes quantas eu quiser,
portanto o movimento de A para B pode dividir-se em
tantas partes quantas me aprouver, uma vez que esse
movimento se aplica sobre esse intervalo". Ou ainda: "a
cada instante de seu trajeto, o móvel passa por um certo
ponto, portanto podemos distinguir no movimento tan­
tas etapas quantas quisermos, portanto o movimento é
infinitamente divisível". Mas reflitamos um pouco a res­
peito. Como podería o movimento aplicar-se sobre o es­
paço que percorre? Como havería o movente de coinci­
dir com o imóvel? Como havería o objeto que se move
de estar num ponto de seu trajeto? O objeto passa pelo
ponto, ou, em outros termos, podería estar nele. Estaria
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 165

nele, caso nele parasse: mas, caso nele parasse, já não se­
ria mais com o mesmo movimento que lidaríamos. É sem ­
pre num único pulo que um trajeto é percorrido, quando
não há parada no trajeto. | O pulo pode durar alguns se­
gundos, ou dias, meses, anos: pouco importa. A partir do
momento em que ele é único, é indecomponível.LSó que,
uma vez o trajeto feito, pomo a trajetória é espaço e o es­
paço é infinitamente divisível,^iguramo-nos que o pró­
prio movimento seja indefinidamente divisível. ,E isso
nos apraz porque, num movimento, não é a mudança de
posição que nos interessa, são as próprias posições, aque­
la que o móvel deixou, aquela que ele assumirá, aquela
que ele assumiría caso parasse no meio do caminho.pre­
cisamos de imobilidade e quanto mais conseguirmos nos
representar o movimento como coincidindo com as imo-
bilidades dos pontos do espaço que ele percorre, tanto
melhor acreditaremos compreendê-lo. A bem dizer, não
há nunca imobilidade verdadeira, se entendemos com
isso uma ausência de movimento. O movimento é a pró­
pria realidade e o que chamamos de imobilidade é um
certo estado de coisas análogo àquele que se produz
quando dois trens caminham com a mesma velocidade,
no mesmo sentido, em duas vias paralelas: cada um dos
dois trens está então imóvel para os viajantes sentados
no outro. Mas uma situação desse gênero, que, afinal de
contas, é excepcional, parece-nos ser a situação regular e
normal porque é aquela que permite que ajamos sobre
as coisas e que permite também às coisas que ajam so­
bre nós: os viajantes dos dois trens só poderão trocar
apertos de mão pela portinhola e falar uns com os outros
caso estejam "imóveis", isto é, caso andem no mesmo
sentido com a mesma velocidade. A "imobilidade" sendo
aquilo de que nossa ação precisa, erigimo-la em realida­
166 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

de, dela fazemos um absoluto e vemos no movimento


algo que a ela vem se acrescentar. Nada mais legítimo na
prática. Mas, quando transportamos esse hábito de espíri­
to para o domínio da especulação, desconhecemos a rea­
lidade verdadeira, criamos alegremente problemas insolú­
veis, fechamos os olhos ao que há de mais vivo no real.
Não preciso lembrar-lhes os argumentos de Zenão
de Eléia. Todos eles implicam a confusão do movimento
com o espaço percorrido ou, pelo menos, a convicção de
que se pode tratar o movimento como se trata o espaço,
dividi-lo sem levar em conta suas articulações.'Aquiles,
dizem-nos, nunca alcançará a tartaruga que ele perse­
gue, pois, quando chegar ao ponto em que estava a tar­
taruga, esta terá tido tempo de andar, e assim por dian­
te, indefinidamente.;Os filósofos refutaram esse argu­
mento de muitas maneiras, e de maneiras tão diferentes
que cada uma dessas refutações retira às outras o direito
de se acreditarem definitivas. Haveria, no entanto, um
meio muito simples de resolver a dificuldade: teria sido
interrogar Aquiles. Pois, uma vez que Aquiles acaba por
alcançar a tartaruga e, mesmo, por ultrapassá-la, ele deve
saber, melhor do que ninguém, como consegue fazê-lo.
O filósofo antigo que demonstrava a possibilidade do
movimento andando estava certo: seu único erro foi fa­
zer o gesto sem lhe juntar um comentário. Peçamos en­
tão a Aquiles que comente sua corrida: eis, sem dúvida
alguma, o que nos responderá. "Zenão quer que eu me
desloque do ponto em que estou até o ponto que a tar­
taruga deixou, deste até o ponto que ela novamente dei­
xou, etc.; é assim que ele procede para me fazer correr.
Mas eu, para correr, procedo diferentemente. Dou um
primeiro passo, depois um segundo, e assim por diante:
finalmente, após um certo número de passos, dou um
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 167

último passo com o qual pulo por cima da tartaruga. Rea­


lizo assim uma série de atos indivisíveis. Minha corrida é
a série desses atos. Tantos são os passos, tantas serão as
partes que vocês podem distinguir nela. Mas vocês não
têm o direito de desarticulá-la segundo uma outra lei, nem
supô-la articulada de uma outra maneira. Proceder como
o faz Zenão é admitir que a corrida possa ser decompos­
ta arbitrariamente, como o espaço percorrido; é acreditar
que o trajeto se aplica realmente sobre a trajetória; é fa­
zer coincidir e, por conseguinte, confundir um com o ou­
tro movimento e imobilidade."
Mas nosso método habitual consiste precisamente
nisso. Raciocinamos sobre o movimento como se este
fosse feito de imobilidades e, quando o olhamos, é com
imobilidades que o reconstituímos. O movimento, para
nós, é uma posição, depois uma nova posição, e assim
por diante, indefinidamente. Bem que nos dizemos, é
verdade, que deve haver outra coisa e que, de uma posi­
ção para outra posição, há a passagem pela qual se trans­
põe o intervalo. Mas, assim que fixamos nossa atenção
sobre essa passagem, rapidamente fazemos dela uma sé­
rie de posições, ao preço de reconhecer novamente que
entre duas posições sucessivas é preciso de qualquer for­
ma supor uma passagem. Essa passagem, nós adiamos
indefinidamente o momento de considerá-la. Admití­
mos que eia existe, damos-lhe um nome, isto nos basta:
uma vez as coisas em ordem desse lado, voltamo-nos
para as posições e preferimos lidar apenas com elas. Te­
mos instintivamente medo das dificuldades que seriam
suscitadas para nosso pensamento pela visão do movi­
mento naquilo que este tem dc movente; e estamos cer­
tos, a partir do momento em que o movimento foi carre­
gado por nós de imobilidades. Se o movimento não for
168 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

tudo, não será nada; e, se de início pusemos que a imobi­


lidade pode ser uma realidade, o movimento escorregará
entre nossos dedos quando acreditarmos tê-lo pego.
Falei do movimento; mas diría o mesmo acerca de
toda e qualquer mudança. Toda mudança real é uma mu­
dança indivisível. Gostamos de tratá-la como uma série
de estados distintos que, de certa forma, se alinhariam no
tempo. Isso também é natural. Se a mudança é contínua
em nós e contínua também nas coisas, em compensação,
para que a mudança ininterrupta que cada um de nós
chama "eu" possa agir sobre a mudança ininterrupta que
chamamos "coisa", é preciso que essas duas mudanças
se encontrem, uma com relação à outra, numa situação
análoga à dos dois trens de que falavamos há pouco. Di­
zemos, por exemplo, que um objeto muda de cor e que a
mudança consiste aqui numa série dc tons, os quais se­
riam os elementos constitutivos da mudança e, eles, não
mudariam. Mas, primeiro, aquilo que existe objetivamen­
te em cada tom é uma oscilação infinitamente rápida, é
mudança. E, por outro lado, a percepção que deles te­
mos, no que ela tem de subjetivo, é apenas um. aspecto
isolado, abstrato, do estado geral de nossa pessoa, o qual
sem cessar muda globalmente e faz participar de sua mu­
dança essa percepção dita invariável; de fato, não há per­
cepção que não se modifique a cada instanteuDe modo
que a cor, fora de nós, é a própria mobilidade e nossa
própria pessoa também é mobilidade. Mas todo o meca­
nismo de nossa percepção das coisas, assim como o de
nossa ação sobre as coisas, foi regrado de maneira que pro­
duzisse aqui, entre a mobilidade externa e a mobilidade
interior, uma situação comparável à de nossos dois trens
- mais complicada, sem dúvida, mas de mesmo gêne­
ro; quando as duas mudanças, a do objeto e a do sujeito,
ocorrem nessas condições particulares, suscitam a apa­
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 169

rência particular que chamamos um "estado". E nosso


espírito, uma vez de posse de "estados", com eles recom­
põe a mudança. Nada de mais natural, repito: o despe-
daçamento da mudança em estados põe-nos em condi­
ções de agir sobre as coisas, e é útil praticamente interes­
sar-se antes pelos estados do que pela própria mudança.
Mas o que favorece aqui a ação seria mortal para a espe­
culação. Representem-se uma mudança como realmente
composta por estados: ao fazê-lo, vocês também fazem
surgir problemas metafísicos insolúveis. Estes versam ape­
nas sobre aparências. Vocês fecharam os olhos à realida­
de verdadeira.
[Não insistirei mais. Que cada um de nós faça a ex­
periência, que obtenha a visão direta de uma mudança,
de um movimento: terá um sentimento de absoluta in­
divisibilidade. Passo então para o segundo ponto, que é
vizinho próximo do primeiro.' Há mudanças, mas não há,
sob a mudança, coisas que mudam: a mudança não precisa
de um suporte. Há movimentos, mas não há objeto inerte, inva­
riável, que se mova: o movimento não implica um móvel1.

1. Reproduzimos essas concepções sob a forma exata que lhe de­


mos em nossa conferência, sem nos esconder que provavelmente irão
suscitar os mesmos mal-entendidos que na ocasião, a despeito das apli­
cações e explicações que apresentamos em trabalhos ulterioreg. Do fato
de que um ser é ação, acaso se pode concluir que sua existência seja eva-
nescente? O que é que se diz de diferente daquilo que dizemos, quando
se faz com que ele resida num "substratum" que nada tem de determi­
nado, uma vez que, por hipótese, sua determinação e, por conseguinte,
sua essência é essa ação mesma? Por acaso uma existência assim conce­
bida cessa alguma vez de estar presente a si mesma, se a duração real
implica a persistência do passado no presente e a continuidade indivisí­
vel de um desenro lamento? Todos os mal-entendidos provêm do fato de
que as pessoas abordaram as aplicações de nossa concepção da duração
real com a idéia que se faziam do tempo espaaalizado.
170 O PENSAMENTO E O MOVENTE

Temos dificuldade em nos representar assim as coi­


sas, porque o sentido por excelência é o da vista e por­
que o olho tomou o hábito de recortar, no conjunto do
campo visual, figuras relativamente invariáveis que en­
tão supomos que se desloquem sem se deformarem: o
movimento acrescentar-se-ia ao móvel como um aciden­
te. É de fato útil lidar, todos os dias, com objetos estáveis
e, de certa forma, responsáveis, aos quais nos endereça­
mos como que a pessoas. O sentido da vista arrànja-se
de modo que tome as coisas por esse viés: batedor do tato,
prepara nossa ação sobre o mundo exterior. Mas já tere­
mos menos dificuldade em perceber o movimento e a
mudança como realidades independentes se nos ende­
reçarmos ao sentido da audição. Escutemos uma melo­
dia, deixando-nos embalar por ela: não temos nós a per­
cepção nítida de um movimento que não está vinculado
a um móvel, de uma mudança sem nada que mude?
Essa mudança se basta, ela é a coisa mesma. Ê, por mais
que tome tempo, é indivisível: caso a melodia se inter­
rompesse antes, já não seria mais a mesma massa sono­
ra; seria outra, igualmente indivisível. Sem dúvida, temos
uma tendência a dividi-la e a nos representar, ao invés
da continuidade ininterrupta da melodia, uma justaposi­
ção de notas distintas. Mas por quê? Porque pensamos
na série descontínua de esforços que faríamos, pondo-
nos a cantar, para recompor aproximativamente o som
ouvido e também porque nossa percepção auditiva con­
traiu o hábito de se impregnar de imagens visuais. Escu­
tamos então a melodia através da visão que dela teria um
maestro olhando sua partitura. Representamo-nos notas
justapostas a notas sobre uma folha de papel imaginária.
Pensamos num teclado sobre o qual se toca, no arco que
vai e vem, no músico, cada um dos quais executa sua
A PERCÈPÇÃO DA MUDANÇA 171

parte ao lado dos outros. Façamos abstração dessas ima­


gens espaciais: resta a mudança pura, bastando-se a si
mesma, de modo algum dividida, de modo algum vincu­
lada a uma "coisa" que muda.
Voltemos então à visão. Fixando um pouco mais nos­
sa atenção, perceberemos que tampouco aqui o movimen­
to exige um veículo, como tampouco a mudança exige
uma substância, no sentido corrente da palavra. Já a ciên­
cia física nos sugere essa visão das coisas materiais. Quan­
to mais progride, tanto mais resolve a matéria em ações
que caminham através do espaço, em movimentos que
correm aqui e ali como arrepios, de modo que a mobili­
dade se torna a própria realidade. Sem dúvida, a ciência
começa por conferir a essa mobilidade um suporte. Mas,
à medida que ela avança, o suporte recua; as massas pul­
verizam-se em moléculas, as moléculas em átomos, os
átomos em elétrons ou corpúsculos: finalmente, o su­
porte conferido ao movimento parece realmente não ser
mais que um esquema cômodo - simples concessão do
cientista aos hábitos de nossa imaginação visual. Mas de
modo algum era preciso ir tão longe. O que é o "móvel"
ao qual nosso olho vincula o movimento, como que a um
veículo? Simplesmente uma mancha colorida, que sabe­
mos bem que se reduz, em si mesma, a uma série de os­
cilações extremamente rápidas. Esse pretenso movimen­
to de uma coisa não é na realidade mais que um movi­
mento de movimentos.
Mas em parte alguma a substancialida.de da mudan­
ça é tão visível, tão palpável, quanto no domínio da vida
interior. As dificuldades e contradições de todo gênero
nas quais desembocaram as teorias da personalidade vêm
do fato de que estas se representaram, de um lado, uma
série de estados psicológicos distintos, cada um deles in-
172 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

variável, que produziríam as variações do eu por sua su­


cessão mesma, e, de outro, um eu, não menos invariável,
que lhes serviría dc suporte. De que modo essa unidade
e essa multiplicidade poderíam confhiir? De que modo,
nenhuma das duas durando ■ a primeira porque a mu­
dança é algo que lhe vem por acréscimo, a segunda por­
que é feita de elementos que não mudam poderíam
elas constituir um eu que dura? Mas a verdade é que não
há nem substratum rígido imutável nem estados distintos
que passam por ele como atores por um palco. Há simples­
mente a melodia contínua de nossa vida interior - melodia
que prossegue e prosseguirá, indivisível, do começo ao fim
de nossa existência consciente. Nossa personalidade é exa-
tamente isso.
'É justamente essa indivisível continuidade de mu­
dança que constitui a duração verdadeira. Não posso en­
trar aqui no exame aprofundado de uma questão da qual
tratei alhures. Limitar-me-ei então a dizer, para respon­
der àqueles que veem nessa duração "real" algo de inefá­
vel e de misterioso, que ela é a coisa mais clara do mun­
do: a duração real é aquilo que sempre se chamou tempo,
mas o tempo percebido como indivisível. Que o tempo im­
plique a sucessão, não o contesto. Mas que a sucessão
se apresente primeiro à nossa consciência como a distin­
ção de um "antes" e de um "depois" justapostos, é o que
eu não conseguiría conceder. Quando escutamos uma
melodia, temos a mais pura impressão de sucessão que
possamos ter - uma impressão tão afastada quanto pos­
sível daquela da simultaneidade - e, no entanto, é a pró­
pria continuidade da melodia e a impossibilidade de de­
compô-la que nos dão essa impressão. Se a recortamos
em notas distintas, em tantos "antes" e "depois" quan­
tos nos aprouver, é porque nela misturamos imagens es-
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 173

paciais e porque impregnamos de simultaneidade a su­


cessão: no espaço, e apenas no espaço, há distinção níti­
da de partes exteriores umas às outras. Reconheço, por
outro lado, que é no tempo espacializado que nos insta­
lamos normalmente. Não temos nenhum interesse cm
escutar o rumorejo ininterrupto da vida profunda. E, no
entanto, a duração real está aí. É graças a ela que tomam
lugar num único e mesmo tempo as mudanças mais ou
menos longas às quais assistimos em nós e no mundo
exterior.
Assim, trate-se do dentro ou do fora, de nós ou das
coisas, a realidade é a própria mobilidade. E o que eu ex­
primia dizendo que há mudança, mas que não há coisas
que mudam.
Diante do espetáculo dessa mobilidade universal, al­
guns dentre nós serão tomados de vertigem. Estão habi­
tuados à terra firme; não conseguem se acostumar ao
jogo e ao balanço do mar. Precisam de pontos "fixos" aos
quais fixar a vida e a existência. Estimam que se tudo pas­
sa, nada existe; e que se a realidade é mobilidade, ela já
não é no momento em que a pensamos, ela escapa ao
pensamento. O mundo material, dizem, irá dissolver-se
e o espírito afogar-se no fluxo torrencial das coisas. - Que
se tranqüilizem! A mudança, se consentirem em olhá-la
diretamente, sem véu interposto, bem rapidamente lhes
aparecerá como o que pode haver no mundo de mais subs­
tancial e de mais durável. Sua solidez é infinitamente supe­
rior à de urna fixidez que não é mais que um arranjo efême­
ro entre mobilidades. Passo aqui, com efeito, tio terceiro
ponto para o qual queria chamar a atenção de vocês.
E que, se a mudança é real e mesmo constitutiva da
realidade, precisamos encarar o passado de modo intei­
ramente diferente do que fomos acostumados a fazê-lo
174 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

pela filosofia e pela linguagem. Inclinamo-nos a nos re­


presentar nosso passado como inexistente e os filósofos
encorajam em nós essa tendência natural. Para eles e
para nós, apenas o presente existe por si mesmo: se algo
sobrevive do passado, só pode ser por um socorro que o
presente lhe presta, por uma caridade que o presente lhe
faz, enfim, para sair das metáforas, pela intervenção de
uma certa função particular que se chama memória e
cujo papel seria o de conservar excepcionalmente tais ou
tais partes do passado armazenando-as numa espécie de
caixa. - Erro profundo! Erro útil, eu o concedo, necessá­
rio talvez à ação, mas mortal para a especulação. Nele
encontraríamos, encerrados "in a nutshell", como vocês
dizem, a maior parte das ilusões que podem viciar o pen­
samento filosófico.
De fato, reflitamos acerca desse "presente" que seria
o único a existir. O que é, ao certo, o presente? Caso se
trate do instante atual - quero dizer, um instante mate­
mático que estaria para o tempo como o ponto matemá­
tico está para a linha é claro que um semelhante ins­
tante é uma pura abstração, uma visão do espírito; ele
não poderia ter existência real. Com semelhantes instan­
tes, vocês nunca fariam um tempo, como tampouco com­
poriam uma linha com pontos matemáticos. Suponham
mesmo que ele exista: como havería um instante ante­
rior a este? Os dois instantes só poderiam ser separados
por um intervalo de tempo, uma vez que, por hipótese,
vocês reduzem o tempo a uma justaposição de instantes.
Portanto, eles não seriam separados por nada e, por con­
seguinte, seriam um só e o mesmo: dois pontos matemá­
ticos que se tocam confundem-se. Mas deixemos de la­
do essas sutilezas. Nossa consciência nos diz que, quando
falamos de nosso presente, é num certo intervalo de du­
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 175

ração que pensamos. Que duração? Impossível fixá-la


exatamente; é algo um tanto indeciso. Meu presente,
nesse momento, é a frase que me dedico a pronunciar.
Mas isso se dá apenas porque me agrada limitar à minha
frase o campo de minha atenção. Essa atenção é algo que
pode se alongar ou se encurtai; como o intervalo entre as
duas pontas de um compasso. Neste momento, as pon­
tas afastam-se o suficiente para ir do começo ao fim de
minha frase; mas, se me viesse a vontade de afastá-las
ainda mais, meu presente abarcaria, além de minha úl­
tima frase, aquela que a precedia: ter-me-ia bastado
adotar uma outra pontuação. Podemos ir mais longe:
uma atenção que seria indefinidamente extensível man-
teria sob seu olhar, com a frase precedente, todas as fra­
ses anteriores da aula, e os acontecimentos que prece­
deram a aula, e uma porção tão grande quanto quiser­
mos daquilo que chamamos nosso passado. A distinção
que fazemos entre nosso presente e nosso passado é,
portanto, senão arbitrária, pelo menos relativa à exten­
são do campo que nossa atenção à vida pode abarcar. O
"presente7' ocupa exatamente tanto espaço quanto esse
esforço. Assim que essa atenção particular larga algo
daquilo que mantinha sob seu olhar, imediatamente a
parte do presente que ela abandona torna-se ipso facto
passado. Numa palavra, nosso presente cai no passado
quando deixamos de lhe atribuir um interesse atual.
Ocorre com o presente dos indivíduos o mesmo que com
o das nações: um acontecimento pertence ao passado e
entra na história quando não interessa mais diretamen­
te a política do dia e pode ser negligenciado sem que os
negócios sofram com isso. Enquanto sua ação se fizer
sentir, ele adere à vida da nação e permanece presente
para esta.
176 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

Desde então, nada nos impede de recuar tão longe


quanto possível a linha de separação entre nosso pre­
sente e nosso passado. Uma atenção à vida que fosse su­
ficientemente poderosa e suficientemente desprendida
de todo interesse prático abarcaria assim num presente
indiviso a história passada inteira da pessoa consciente -
não como algo instantâneo, não como um conjunto de
partes simultâneas, mas como algo continuamente pre­
sente que seria também algo continuamente movente:
assim como, repito, a melodia que percebemos indivisí­
vel e que constitui dc uma ponta à outra, se quisermos
estender o sentido da palavra, um presente perpétuo, ain­
da que nada haja de comum entre essa perpetuidade e a
imutabilidade, nem entre essa indivisibilidade e a ins-
tantaneidade. Trata-se dc um presente que dura.
Esta não é uma hipótese. Ocorre, cm casos excepcio­
nais, que a atenção renuncie de repente ao interesse que
tomava pela vida: imediatamente, como que por encan­
to, o passado torna-se novamente presente. Em pessoas
que vêem surgir à sua frente, de forma imprevista, a amea­
ça de uma morte súbita, no alpinista que escorrega no
fundo de um precipício, nos afogados e nos enforcados,
parece que uma conversão brusca da atenção possa se
produzir - algo como uma mudança de orientação da
consciência que, até então voltada para o porvir e absor­
vida pelas necessidades da ação, subitamente deles se
desinteressa. Isso basta para que milhares e milhares dc
detalhes "esquecidos" sejam rememorados, para que a
história inteira da pessoa se desenrole à sua frente num
movente panorama.
A memória não precisa, portanto, de explicação. Ou
antes, não há faculdade especial cujo papel seja o de re­
ler o passado para vertê-lo no presente. O passado con­
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 177

serva-se por si mesmo, automaticamente. Decerto, se fe­


chamos os olhos à indivisibilidade da mudança, ao fato
de que nosso mais longínquo passado adere a nosso
presente e constitui, com ele, uma única e mesma mu­
dança ininterrupta, parece-nos que o passado é normal-
mente algo abolido e que a conservação do passado tem
algo de extraordinário: acreditamo-nos então obrigados
a imaginar um aparelho cuja função seria a de registrar
as partes do passado suscetíveis de reaparecer para a
consciência. Mas, se levamos em conta a continuidade da
vida interior e, por conseguinte, sua indivisibilidade, não
c mais a conservação do passado que se tratará de expli­
car, é pelo contrário sua aparente abolição. Não teremos
mais que dar conta da lembrança, mas sim do esqueci­
mento. Essa explicação será aliás encontrada na estrutu­
ra do cérebro. A natureza inventou um mecanismo para
canalizar nossa atenção na direção do porvir, para des­
viá-la do passado - quero dizer, dessa parte de nossa
história que não'interessa mais nossa ação presente
para lhe trazer no máximo, sob forma de "lembranças",
tal ou tal simplificação da experiência anterior, destinada
a completar a experiência do momento; nisso consiste
aqui a função do cérebro. Não podemos abordar a dis­
cussão da teoria que quer que o cérebro sirva para a con­
servação do passado, que ele armazene lembranças co­
mo tantos clichês fotográficos dos quais em seguida tira­
ríamos provas, como tantos fonogramas destinados a
voltarem a ser sons. Examinamos essa tese alhures. Essa
doutrina inspirou-se em grande parte numa certa meta­
física da qual a psicologia e a psicofisiologia contempo­
râneas estão impregnadas e que é naturalmente aceita:
daí sua aparente clareza. Mas, à medida que a conside­
ramos de mais perto, vemos acumularem-se as difieul-
178 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

dades e as impossibilidades. Tomemos o caso mais favo­


rável à tese, o caso de um objeto material causando uma
impressão sobre o olho e deixando no espírito uma lem­
brança visual. O que poderá ser essa lembrança, caso re­
sulte verdadeiramente da fixação, no cérebro, da impres­
são recebida pelo olho? Por pouco que o objeto se tenha
mexido, ou que o olho se tenha mexido, houve, não uma
imagem, mas dez, cem, mil imagens, tantas e mais do
que no filme de um cinematógmfo. Por pouco que o ob­
jeto tenha sido considerado por um certo tempo, ou te­
nha sido revisto em momentos diversos, são milhões de
imagens diferentes desse objeto. E tomamos o caso mais
simples! - Suponhamos todas essas imagens armazena­
das; de que nos serviríam? Qual é aquela que utilizare­
mos? -Admitamos mesmo que tenhamos nossas razões
para escolher uma delas, por que e como a jogaremos de
volta no passado quando a percebermos? - Passemos até
mesmo sobre essas dificuldades. Como se explicarão as
doenças da memória? Naquelas dentre essas doenças
que correspondem a lesões locais do cérebro, isto é, nas
afasias, a lesão psicológica consiste menos numa aboli­
ção das lembranças do que numa incapacidade de evo­
cá-las. Um esforço, uma emoção podem trazer brusca­
mente à consciência palavras que acreditavamos defini­
tivamente perdidas. Esses fatos, assim como muitos ou­
tros, concorrem para provar que o cérebro serve aqui para
operar uma escolha no passado, para diminuí-lo, simpli­
ficá-lo, utilizá-lo, mas não para conservá-lo. Não fería­
mos dificuldade nenhuma em considerar as coisas por
esse viés se não tivéssemos contraído o hábito de acre­
ditar que o passado é abolido. Então, sua reaparição par­
cial dá-nos o efeito de um acontecimento extraordinário,
que reclama uma explicação. E é por isso que imagina-
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 179

mos aqui e ali, no cérebro, caixas de lembranças que con­


servariam fragmentos de passado - o cérebro conservan­
do-se aliás a si mesmo. Como se isso não fosse recuar a
dificuldade e simplesmente adiar o problema! Como se,
ao pôr que a matéria cerebral se conserva através do tem­
po ou, mais geralmente, ao pôr que toda matéria dura,
não se lhe atribuísse precisamente a memória que se
pretende explicar por ela! Seja lá o que for que façamos,
mesmo se supomos que o cérebro armazene lembran­
ças, não escapamos à conclusão de que o passado pode
conservar-se a si mesmo, automaticamente.
Não apenas nosso próprio passado, mas também, o
passado de toda e qualquer mudança, com a condição,
todavia, de que se trate de uma mudança única e, por
isso mesmo, indivisível: a conservação do passado no
presente não é nada além da indivisibilidade da mudan­
ça. É verdade que, para as mudanças que se realizam lá
fora, quase nunca sabemos se lidamos com uma mudan­
ça única ou com um composto de vários movimentos en­
tre os quais se intercalam paradas (a parada nunca sen­
do mais que relativa). Seria preciso que fôssemos interio­
res aos seres e às coisas, como o somos a nós mesmos,
para que pudéssemos nos pronunciar a esse respeito.
Mas não é isso que importa. Basta ter-se convencido de
uma vez por todas de que a realidade é mudança, de que
a mudança é indivisível e de que, numa mudança indivi­
sível, o passado se consubstancia com o presente.
Imbuamo-nos dessa verdade e veremos derreter e
evaporar um belo número de enigmas filosóficos. Deter­
minados grandes problemas, como o da substância, da
mudança e de sua relação, deixarão de se pôr.Todas as di­
ficuldades levantadas em torno desses pontos - dificul­
dades que pouco a pouco fizeram a substância recuar até
180 O PENSAMENTO E O MOVENTE

o domínio do incognoscível - provinham do fato de que


fechamos os olhos à indivisibilidade da mudança. Se a
mudança, que é evidentemente constitutiva de toda nos­
sa experiência, é a coisa fugidia da qual a maior parte dos
filósofos falou, se nela vemos apenas uma poeira de es­
tados que substituem estados, por força temos de resta­
belecer a continuidade entro esses estados por um liame
artificial; mas esse substrato imóvel da mobilidade, não
podendo possuir nenhum dos atributos que conhece­
mos - uma vez que todos eles são mudanças recua à
medida que procuramos dele nos aproximar; ele é tão
inapreensível quanto o fantasma de mudança que ele era
chamado a fixar. Esforcemo-nos, pelo contrário, para per­
ceber a mudança tal qual ela é, em sua indivisibilidade
natural: vemos que ela é a própria substância das coisas,
e nem o movimento nos aparece mais sob a forma eva-
nescente que o torna inapreensível pelo pensamento, nem
a substância com a imutabilidade que a tornava inaces­
sível à nossa experiência.'A instabilidade radical e a imuta­
bilidade absoluta não são então mais que vistas abstratas
que foram tomadas, de fora, da continuidade da mudança
real, abstrações que o espírito em seguida hipostasia em
estados múltiplos, de um lado, em coisa ou substância, de
outro. As dificuldades levantadas pelos antigos em tor­
no da questão do movimento e pelos modernos em torno
da questão da substância desvanecem-se, estas porque a
substância é movimento e mudança, aquelas porque o
movimento e a mudança são substanciais.
Ao mesmo tempo em que obscuridades teóricas se
dissipam, entrevê-se a possível solução de mais de um
problema considerado insolúvel. As discussões relativas
ao livre-arbítrio chegariam a um fim caso nos percebés­
semos a. nós mesmos ali onde realmente somos, numa
A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 181

duração concreta na qual a idéia de determinação neces­


sária perde toda espécie de significação, uma vez que o
passado ali se consubstancia com o presente e com ele
cria incessantemente - quando mais não seja pelo fato
de a ele se acrescentar - algo de absolutamente novo.,E
a relação do homem com o universo tomar-se-ia susce­
tível de um aprofundamento gradual caso levássemos
em conta a verdadeira natureza dos estados, das qualida­
des, enfim, de tudo o que se apresenta a nós com a apa­
rência da estabilidade. Em semelhante caso, o objeto e o
sujeito devem estar um em íace do outro numa situação
análoga à dos dois trens de que falávamos dc início: é
uma certa ajustagem da mobilidade pela mobilidade que
produz o efeito da imobilidade. Imbuamo-nos então des­
sa idéia, não percamos nunca de vista a relação particu­
lar do objeto com o sujeito que se traduz numa visão es­
tática das coisas: tudo o que a experiência nos ensinar
acerca de um deles aumentará o conhecimento que te­
mos do outro, e a luz que este último recebe poderá, por
reflexão, iluminar por sua vez aquele.
Mas, como eu o anunciava de início, a especulação
pura não será a única a se beneficiar dessa visão do uni­
versal devir. Poderemos fazê-la penetrar em nossa vida
de todos os dias e, graças a ela, obter da filosofia satisfa­
ções análogas às da arte, mas mais freqüentes, mais con­
tínuas, mais acessíveis também ao comum dos homens.
A arte sem dúvida nos faz descobrir nas coisas mais qua­
lidades e mais matizes do que percebemos naturalmen-
tc. Dilata nossa percepção, mas antes na superfície do que
na profundidade. Enriquece nosso presente, mas real­
mente não nos faz ultrapassar o presente. Pela filosofia,
podemos nos habituar a não isolar nunca o presente do
passado que ele arrasta consigo. Graças a ela, todas as
182 O PENSAMENTO E O MOVENTE

coisas adquirem profundidade - mais que profundidade,


algo como uma quarta dimensão que permite que as per­
cepções anteriores permaneçam solidárias das percep­
ções atuais e que o porvir imediato venha, ele próprio,
desenhar-se em parte no presente. A realidade já não
aparece mais no estado estático, em sua maneira de ser;
afirma-se dinamicamente, na continuidade e na variabi­
lidade de sua tendência.O que havia de imóvel e de con­
gelado em nossa percepção se reaqucce e se põe em mo­
vimento. Tudo se anima à nossa volta, tudo se revivifica
em nós. Um grande elã carrega todos os seres e todas as
coisas. Por ele nos sentimos levantados, arrastados, car­
regados. Vivemos mais, e esse acréscimo de vida traz con­
sigo a convicção dc que graves enigmas filosóficos pode­
rão resolver-se, ou mesmo a dc que talvez não se devam
pôr, tendo nascido de uma visão enrijecida do real e sen­
do apenas a tradução, em termos de pensamento, de um
certo enfraquecimento artificial do nossa vitalidade.(Com
efeito, quanto mais nos habituamos a pensar e a perce­
ber todas as coisas sub specie durationis, tanto mais nos
afundamos na duração real. E quanto mais nela nos afun­
damos, tanto mais nos reinserímos na direção do princí­
pio, no entanto transcendente, do qual participamos e
cuja eternidade não deve ser uma eternidade de imuta­
bilidade, mas uma eternidade de vida: de que outro modo
poderiamos nós viver c nos mover nela? In ea vivimus et
movemur et sumas.

d
CAPÍTULO VI
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA1

Se comparamos entre si as definições da metafísica


e as concepções do absoluto, percebemos que os filóso­
fos, a despeito de suas aparentes divergências, concordam

1. Esse ensaio foi publicado na Rcvue de métapln/siijue et de morale


em 1903. Desde então, fomos levados a tornar mais precisa a significa­
ção dos termos metafísica e ciência. Tem-se a liberdade de dar às palavras
o sentido que se quiser, quando se toma o cuidado de defini-lo: nada
impediría de chamar de "ciência" ou de "filosofia", conto durante mui-
todempo se fez, toda espécie de conhecimento. Poder-se-ia até mesmo,
como dizíamos mais acima (p. 48), englobar tudo na metafísica. Não
obstante, é incontestável que o conhecimento investe numa direção bem
definida quando dispõe seu objeto tendo a medida em vista, e que ca­
minha numa direção diferente, até mesmo inversa da outra, quando se
desprende de quaisquer segundas intenções de relação e dc compara­
ção para simpatizar com a realidade. Mostramos que o primeiro méto­
do convinha ao estudo da matéria e o segundo ao do espírito, que, por
outro lado, há sobreposição recíproca dos dois objetos um ao outro e
■que os dois.métodos devem prestar-se um auxílio mútuo. No primeiro
caso, lida-se com o tempo espacializado e com o espaço; no segundo,
com a duração real. Pareceu-nos cada vez mais útil, para a clareza das
idéias, chamar "científico" o primeiro conhecimento e "metafísico" o se­
gundo. É então na conta da metafísica que lançaremos essa "filosofia da
184 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

em distinguir duas maneiras profundamente diferentes


de conhecer uma coisa. A primeira implica que se deem
voltas ao redor dessa coisa; a segunda, que se entre nela.
A primeira depende do ponto dc vista no qual nos colo­
camos e dos símbolos pelos quais nos exprimimos. A se­
gunda não remete a nenhum ponto de vista e não se
apóia em nenhum símbolo. Do primeiro conhecimento
diremos que sc detém no relativo; do segundo, ali onde
ele é possível, que atinge o absoluto.
Seja, por exemplo, o movimento de um objeto no
espaço. Percebo-o diferentemente conforme o ponto de
vista, móvel ou imóvel, do qual eu o observo. Exprimo-o
diferentemente conforme o sistema de eixos ou de pon­
tos de referência ao qual o remeto, isto é, conforme os
símbolos pelos quais o traduzo. E chamo-o relativo por
essa dupla razão: num caso como no outro, coloco-me
fora do próprio objeto. Quando falo de um movimento
absoluto, c porque atribuo ao móvel um interior e como
que estados de alma, é também porque simpatizo com
os estados e neles me insiro por um esforço de imagina­
ção. Então, conforme o objeto for móvel ou imóvel, con­
forme adotar um movimento ou um outro, não experi­
mentarei a mesma coisa2. E o que eu experimentar não

ciência" ou "metafísica da ciência" que habita o espírito dos grandes


cientistas, que é imanente à sua ciência e que frequentemente é sua in­
visível inspiradora. No presente artigo, ainda a deixávamos na conta da
ciência, pelo fato de ter sido praticada, de fato, por investigadores que
se concorda geralmente em chamar antes de "cientistas" do que de "me­
tafísicos" (ver, acima, pp. 35 a 48).
Não se deve esquecer, por outro lado, que o presente ensaio foi es­
crito numa época em que o criticismo de Kant e o dogmatismo de seus
sucessores eram admitidos de forma bem geral, senão como conclusão,
pelo menos como ponto de partida da especulação filosófica.
2, Acaso será necessário dizer que não propomos de modo algum
aqui um meio de reconhecer se um movimento é absoluto ou se não o é?
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 185

irá depender nem do ponto de vista sobre o objeto que


eu poderia adotar, uma vez que estarei no próprio obje­
to, nem dos símbolos pelos quais poderia traduzi-lo, uma
vez que terei renunciado a toda tradução para possuir o
original. Enfim, o movimento não será mais apreendido de
fora e, de certa forma, a partir de mim, mas de dentro,
nele, em si. Apreenderei um absoluto.
Seja ainda um personagem de romance do qual me
contam as aventuras. O romancista poderá multiplicar os
traços de caráter, fazer seu herói falar e agir tanto quan­
to lhe aprouver: nada disso irá valer o sentimento sim­
ples e indivisível que eu experimentaria caso coincidisse
por um instante com o próprio personagem. Então, pa-
recer-me-iam fluir naturalmente, como que da fonte, as
ações, os gestos e as palavras. Já não se tratariam mais de
acidentes que se acrescentam à idéia que eu me fazia do
personagem, enriquecendo cada vez mais essa idéia sem
nunca chegar a completá-la. O personagem ser-me-ia
dado de um só golpe em sua integralidade, e os mil in­
cidentes que o manifestam, ao invés de se acrescentarem
à idéia e de enriquecê-la, parecer-me-iam pelo contrário
desprender-se dela, sem no entanto lhe esgotar ou em­
pobrecer a essência. Cada uma das coisas que me con­
tam sobre a pessoa me fornece um outro ponto dc vista
sobre ela. Todos os traços pelos quais me a descrevem, e
que só me podem fazer conhecê-la por outras tantas
comparações com pessoas ou coisas que já conheço, são
signos pelos quais ela é expressa de forma mais ou me­
nos simbólica. Símbolos e pontos de vista colocam-me
portanto fora dela; só me entregam aquilo que ela tem

Simplesmente definimos a que temos em mente quando falamos de um


movimento absoluto, no sentido metafísico da palavra.
186 O PENSAMENTO E O MOVENTE

em comum com outras e que não lhe é próprio. Mas


aquilo que é propriamente ela, aquilo que constitui sua
essência, não poderia ser percebido de fora, sendo, por
definição, interior, nem tampouco ser expresso por sím­
bolos, sendo incomensurável com qualquer outra coisa.
Descrição, história e análise deixam-me aqui no relativo.
Apenas a coincidência com a própria pessoa me daria o
absoluto.
É nesse e apenas nesse sentido que absoluto é sinô­
nimo de perfeição. Por mais que todas as fotografias de
uma cidade tomadas de todos os pontos de vista possí­
veis se completassem indefínidamente umas às outras,
elas não equivaleríam de modo algum a esse exemplar
em relevo que é a cidade na qual passeamos. Por mais
que todas as traduções de um poema em todas as lín­
guas possíveis acrescentassem matizes a matizes e des­
sem, por uma espécie de retoque mútuo, corrigindo-se
uma à outra, uma imagem cada vez mais fiel do poema
que traduzem, nunca restituiriam o sentido interior do
original. Uma representação tomada de um certo ponto
de vista, uma tradução feita com certos símbolos perma­
necem sempre imperfeitas em comparação com o objeto
do qual a vista foi tomada ou que os símbolos procuram
exprimir. Mas o absoluto é perfeito na medida em que ele
é perfeitamente aquilo que ele é.
É pela mesma razão, sem dúvida, que frequentemen­
te se identificou o absoluto com o infinito. Se quero co­
municar àquele que não sabe grego a impressão simples
que me deixa um verso de Homero, darei a tradução do
verso, depois comentarei minha tradução, depois desen­
volverei meu comentário e, de explicação em explicação,
aproximar-me-ei cada vez mais daquilo que quero expri­
mir; mas nunca o conseguirei. Quando alguém levanta o
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 187

braço, realiza um movimento do qual tem interiormente


a percepção simples; mas exteriormente, para mim que o
olho,, o seu braço passa por um ponto, depois por outro
e, entre esses dois pontos, haverá outros pontos ainda,
de modo que, se começo a contar, a operação nunca terá
fim. Visto de dentro, portanto, um absoluto é algo sim­
ples; mas, considerado de fora, isto é, relativamente a ou­
tra coisa, torna-se, com relação a esses signos que o expri­
mem, a moeda de ouro que nunca terminaremos de tro­
car em miúdos. Ora, o que se presta ao mesmo tempo a
uma apreensão indivisível e a uma enumeração inesgotá­
vel é, por definição, um infinito.
Segue-se daí que um absoluto só poderia ser dado
numa intuição, ao passo que todo o resto é da alçada da
análise. Chamamos aqui de intuição a simpatia pela qual
nos transportamos para o interior de um objeto para
coincidir com aquilo que ele tem de único e, por conse­
guinte, de inexprimível. Pelo contrário, a análise é a ope­
ração que reconduz o objeto a elementos já conhecidos,
isto é, a elementos comuns a esse objeto c a outros. Ana­
lisar consiste portanto em exprimir uma coisa em função
daquilo que não é ela. Toda análise c assim uma tradu­
ção, um desenvolvimento cm símbolos, uma represen­
tação tomada de pontos de vista sucessivos a partir dos
quais anotamos a cada vez um novo contato entre o ob­
jeto novo, que estudamos, e outros, que acreditamos já
conhecer. Em seu desejo eternamente insaciado de abar­
car o objeto que ela está condenada a rodear, a análise
multiplica incessantemente os pontos de vista para com­
pletar a representação sempre incompleta, varia sem des­
canso os símbolos para perfazer a tradução sempre im­
perfeita. Prolonga-se portanto ao infinito. Mas a intuição,
se ela é possível, é um ato simples.
188 O PENSAMENTO E O MOVENTE

Isto posto, vê-se facilmente que a ciência positiva


tem por função habitual analisar. Trabalha portanto an­
tes de tudo com símbolos. Mesmo as mais concretas das
ciências da natureza, as ciências da vida, atêm-sc à for­
ma visível dos seres vivos, de seus órgãos, de seus ele­
mentos anatômicos. Comparam as formas umas às ou­
tras, reconduzem as mais complexas às mais simples,
enfim, estudam o funcionamento da vida naquilo que,
por assim dizer, é seu símbolo visual. Se existe um meio
de possuir uma realidade absolutamente, ao invés de co-
nhecê-la relativamente, de se colocar nela ao invés de
adotar pontos de vista sobre ela, de ter uma intuição dela
ao invés de fazer sua análise, enfim, de apreendê-la fora
de toda expressão, tradução ou representação simbólica,
a metafísica é exatamente isso. A metafísica é portanto a
ciência que pretende passar-se de símbolos.

Há pelo menos uma realidade que todos apreende­


mos por dentro, por intuição e não por mera análise. E
nossa própria pessoa em seu escoamento através do tem­
po. É nosso eu que dura. Podemos não simpatizar intelec­
tualmente, ou antes, espiritualmente, com nenhuma outra
coisa. Mas certamente simpatizamos com nós mesmos.
Quando faço vaguear sobre minha pessoa, suposta­
mente inativa, o olhar interior de minha consciência,
percebo primeiro, como se fosse uma crosta solidificada
na superfície, todas as percepções que lhe chegam do
mundo material. Essas percepções são nítidas, distintas,
justapostas ou justaponíveis umas às outras; procuram
agrupar-se em objetos. Percebo depois lembranças mais
ou menos aderentes a essas percepções e que servem para
interpretá-las: essas lembranças como que se despren­
deram do fundo de minha pessoa, atraídas para a perife­
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 189

ria pelas percepções que se lhes assemelham; estão pou­


sadas sobre mim sem serem absolutamente eu mesmo.
È, por fim, sinto manifestarem-se tendências, hábitos mo­
tores, um sem fim de ações virtuais mais ou menos soli­
damente ligadas a essas percepções e a essas lembran­
ças. Todos esses elementos de formas bem definidas pa­
recem-me tanto mais distintos de mim mesmo quanto
mais distintos são uns dos outros. Orientados de dentro
para fora, constituem, reunidos, a superfície de uma esfe­
ra que tende a se alargar e a se perder no mundo exte­
rior. Mas se me contraio da periferia para o centro, se pro­
curo no fundo de mim aquilo que mais uniformemente,
mais constantemente, mais duravelmente é o meu pró­
prio eu, encontro algo bem diferente.
O que eu encontro, por baixo desses cristais bem re­
cortados e desse congelamento superficial, é uma conti­
nuidade de escoamento que não é comparável a nada
daquilo que vi escoar-se. É uma sucessão de estados, cada
um dos quais anuncia aquilo que a ele se segue e contém
aquilo que o precede. A bem dizer, só constituem esta­
dos múltiplos quando já os ultrapassei e me volto para
trás para observar-lhes o rastro. Enquanto os experimen­
tava, estavam tão solidamente organizados, tão profun­
damente animados por uma vida comum que eu não sa­
bería dizer onde um deles acaba, onde o outro começa.
Na realidade, nenhum deles começa nem acaba, mas pro­
longam-se todos uns nos outros.
É, se quisermos, o desenrolamento de um rolo, pois
não há ser vivo que não se sinta chegar pouco a pouco
ao fim de sua corda*; e viver consiste em envelhecer. Mas

' * Bergson, na verdade, diz "au bout de sou rôle", "ao fim de sen pa­
pel" (no sentido teatral ou cinematográfico de "papel"), mas em francês
190 O PENSAMENTO E O MOVENTE

é igualmente um enrolamento contínuo, como o de um


fio num novelo, pois nosso passado nos segue, avoluma -
se incessantemente com o presente que recolhe pelo ca­
minho; e consciência significa memória.
A bem dizer, não é nem um enrolamento nem um
desenrolamento, pois essas duas imagens evocam a re­
presentação de linhas ou de superfícies cujas partes são
homogêneas entre si e superponíveis umas às outras. Ora,
não há dois momentos idênticos num ser consciente. To­
mem o sentimento mais simples, suponham-no constan­
te, absorvam nele a personalidade inteira: a consciência
que acompanhar esse sentimento não poderá permane­
cer idêntica a si mesma durante dois momentos conse­
cutivos, uma vez que o momento seguinte sempre con­
tém, além do precedente, também a lembrança que este
deixou. Uma consciência que tivesse dois momentos
idênticos seria uma consciência sem memória. Portanto,
perecería e renascería incessantemente. De que outro
modo nos representaríamos a inconsciência?
Caberá portanto evocar a imagem de um espectro de
mil matizes, com gradações insensíveis que fazem com
que se passe de um matiz para o outro. Uma corrente de
sentimento que atravessasse o espectro tingindo-se su­
cessivamente de cada um de seus matizes experimenta­
ria mudanças graduais, cada uma das quais anunciaria a
seguinte e resumiría cm si as que a precedem. Mesmo as­
sim, os matizes sucessivos do espectro permanecerão ex­
teriores uns aos outros. Justapõem-se. Ocupam espaço.
Pelo contrário, o que é duração pura exclui toda idéia de
justaposição, de exterioridade recíproca e de extensão.

essa expressão ecoa claramente "au bout de son rouleau", "no fim de sua
corda" (como um mecanismo chega ao fim de sua corda), o que explica
o vínculo com a idéia dc "desenrolamento de um rolo". (N. do T.)
INTRODUÇÃO A METAFÍSICA 191

Então imaginemos antes um elástico infinitamente


pequeno, contraído, se isso fosse possível, num ponto
niatemático. Estiquemo-lo progressivamente de modo que
faça com que do ponto saia uma linha que irá sempre
aumentando. Fixemos nossa atenção, não sobre a linha
enquanto linha, mas sobre a ação que a traça. Conside­
remos que, a despeito de sua duração, essa ação é indi­
visível, se supomos que se realiza sem parar; que, se nela
intercalarmos uma parada, faremos dela duas ações ao
invés de uma e que cada uma dessas ações será então o
indivisível de que falamos; que não é nunca a própria
ação que é divisível, mas a linha imóvel que ela deposita
embaixo de si como um rastro no espaço. Libertemo-nos
por fim do espaço que subtende o movimento para só le­
var em conta o próprio movimento, o ato de tensão ou
de extensão, enfim, a mobilidade pura. Teremos desta
vez uma imagem mais fiel de nosso desenvolvimento na
duração.
E no entanto essa imagem ainda será incompleta, e
aliás toda comparação será insuficiente, pois o desenro­
lamento de nossa duração se assemelha por certos lados
à unidade de um movimento que progride, por outros a
uma multiplicidade de estados que se esparramam, e ne­
nhuma metáfora pode restituir um dos dois aspectos
sem sacrificar o outro. Se evoco um espectro de mil ma­
tizes, tenho à minha frente uma coisa já feita, ao passo
que a duração se faz continuamente. Se penso num elás­
tico que se alonga, numa mola que se comprime ou se
distende, esqueço a riqueza de colorido que é caracterís­
tica da duração vivida para não ver mais que o movi­
mento simples pelo qual a consciência passa de um ma­
tiz ao outro. A vida interior é tudo isso ao mesmo tem­
po, variedade de qualidades, continuidade de progresso,
192 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

unidade de direção. Não se a poderia representar por


imagens.
Mas se poderia menos ainda representá-la por con­
ceitos, isto é, por idéias abstratas, ou gerais, ou simples.
Sem dúvida, nenhuma imagem restituirá perfeitamente
o sentimento original que tenho do escoamento de mim
mesmo. Mas também não me é necessário procurar res-
tituí-lo. Àquele que não fosse capaz de dar-se a si mes­
mo a intuição da duração constitutiva de seu ser, nunca
nada poderia dá-la, nem os conceitos nem tampouco as
imagens. O único objetivo do filósofo deve ser aqui o de
provocar um certo trabalho que os hábitos de espírito
mais úteis à vida tendem a entravar na maior parte dos
homens. Ora, a imagem tem pelo menos a vantagem de
nos manter no concreto. Nenhuma imagem, substituirá a
intuição da duração, mas muitas imagens diversas, toma­
das de empréstimo a ordens de coisas muito diferentes,
poderão, pela convergência de sua ação, dirigir a cons­
ciência para o ponto preciso no qual há uma certa intui­
ção a apreender. Escolhendo imagens tão disparatadas
quanto possível, impedir-se-á uma qualquer dentre elas
de usurpar o lugar da intuição que ela está encarregada
de convocar, uma vez que seria então imediatamente ex­
pulsa por suas rivais. Fazendo com que todas exijam de
nosso espírito, a despeito de suas diferenças de aspecto,
a mesma espécie de atenção e, de certa forma, o mesmo
grau de tensão, acostumaremos pouco a pouco a cons­
ciência a uma disposição inteiramente particular e bem
determinada, precisamente aquela que a consciência pre­
cisará adotar para aparecer a si mesma sem véu3. Mas ain­

3. As imagens de que aqui se trata são aquelas que podem se apre­


sentar ao espírito do filósofo quando este quer expor seu pensamento
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 193

da será preciso que cia consinta nesse esforço. Pois nada


lhe terá sido mostrado. Ela terá sido simplesmente colo­
cada na atitude que deve assumir para fazer o esforço re­
querido e chegar por si mesma à intuição. Pelo contrário,
õ inconveniente dos conceitos excessivamente simples,
em semelhante matéria, é o de serem verdadeiramente
símbolos, que se substituem ao objeto que simbolizam e
não exigem de nós nenhum esforço. Olhando de perto,
veriamos que cada um deles guarda do objeto apenas o
que é comum a esse objeto e a outros.Veriamos que cada
um deles exprime, mais ainda do que a imagem o faz,
uma comparação entre o objeto e aqueles que a ele se as­
semelham. Mas corno a comparação extraiu uma seme­
lhança, como a semelhança é uma propriedade do obje­
to, como uma propriedade tem todo o jeito de ser uma
parte do objeto que a possui, persuadimo-nos facilmen­
te de que, justapondo conceitos a conceitos, recompore­
mos o todo do objeto a partir de suas partes e obtere­
mos,- por assim dizer, um equivalente intelectual dele. E
assim que acreditamos formar uma representação fiel da
duração ao alinhar os conceitos de unidade, de multipli­
cidade, de continuidade, de divisibilidade finita ou infi­
nita, etc. Precisamente aí se encontra a ilusão. Aí tam­
bém se encontra o perigo. Na mesma medida, em que as
idéias abstratas podem ser úteis à análise, isto é, a um es­
tudo científico do objeto em suas relações com todos os
outros, também são incapazes de substituir a intuição,
isto é, a investigação metafísica do objeto naquilo que
este tem de essencial e de próprio. De um lado, com efei­

para outrem. Deixamos de lado a imagem, vizinha da intuição, da qual


o filósofo pode necessitar para si mesmo, e que frequentemente perma­
nece inexpressa.
194 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

to, esses conceitos postos um na ponta do outro nunca


nos darão mais que uma recomposição artificial do obje­
to, do qual só podem simbolizar alguns aspectos gerais e
de certa forma impessoais: é portanto em vão que acre­
ditaríamos apreender, com eles, uma realidade da qual
se limitam a apresentar a sombra. Mas, por outro lado,
além da ilusão, há também um perigo muito grave. Pois
o conceito generaliza ao mesmo tempo em que abstrai. O
conceito só pode simbolizar uma propriedade especial
tornando-a comum a uma infinidade de coisas. Defor­
ma-a portanto sempre em maior ou menor grau pela ex­
tensão que lhe confere. Reinserida no objeto metafísico
que a possui, uma propriedade coincide com ele, molda-
se pelo menos por ele, adota os mesmos contornos. Ex­
traída do objeto metafísico c representada num conceito,
alarga-se indefinidamente, ultrapassa o objeto, uma vez
que doravante precisa contê-lo junto com outros. Os di­
versos conceitos que formamos das propriedades de uma
coisa, portanto, desenham em volta dela outros tantos
círculos bem mais largos, nenhum dos quais se aplica a
ela exatamente. E, no entanto, na coisa mesma, as pro­
priedades com ela coincidiam e coincidiam por conse­
guinte entre si. Por força teremos então de buscar algum
artifício para restabelecer a coincidência. Tomaremos um
qualquer desses conceitos e tentaremos, com ele, ir ao
encontro dos outros. Mas, conforme partirmos deste ou
daquele, a junção não será operada da mesma maneira.
Conforme partirmos da unidade ou da multiplicidade,
por exemplo, conceberemos diferentemente a unidade
múltipla da duração. Tudo dependerá do peso que atri­
buirmos a tal ou tal dentre os conceitos, e esse peso será
sempre arbitrário, uma vez que o conceito, extraído do ob­
jeto, não tem peso, não sendo mais que a sombra de um
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 195

corpo. Assim surgirá uma multidão de sistemas diferen­


tes, tantos quantos são os pontos de vista exteriores so­
bre a realidade que examinamos ou os círculos mais lar­
gos nos quais podemos encerrá-la. Os conceitos simples,
portanto, não têm apenas o inconveniente de dividir a
unidade concreta do objeto numa quantidade corres­
pondente de expressões simbólicas; também dividem a
filosofia em escolas distintas, cada uma das quais reser­
va seu lugar, escolhe suas fichas e enceta com as outras
uma partida que não terminará nunca. Ou a metafísica é
apenas esse jogo dc idéias ou então, se é uma ocupação
séria do espírito, c preciso que transcenda os conceitos
para chegar à intuição. Decerto, os conceitos são-lhe in­
dispensáveis, pois todas as outras ciências trabalham
normalmente com conceitos e a metafísica não poderia
passar-se das outras ciências. Mas ela só é propriamente
ela mesma quando ultrapassa o conceito, ou pelo menos
quando se liberta dos conceitos rígidos e já prontos para
criar conceitos bem diferentes daqueles que normal­
mente manejamos, quero dizer, para criar representações
flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre prontas a se mol­
darem pelas formas fugidias da intuição. Voltaremos
adiante a esse ponto importante. Que nos baste ter mos­
trado que nossa duração pode nos ser apresentada dire-
tamente numa intuição, que ela nos pode ser sugerida in­
diretamente por imagens, mas que não poderia - se da­
mos à palavra conceito o seu sentido próprio - encerrar-
se numa representação conceituai.
Procuremos, por um instante, fazer dela uma multi­
plicidade. Será preciso acrescentar que os termos dessa
multiplicidade, ao invés de se distinguirem como os de
uma multiplicidade qualquer, sobrepõem-se uns aos ou­
tros e que, além disso, embora certamente possamos, por
196 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

um esforço de imaginação, solidificar a duração uma vez


escoada, dividi-la então em pedaços que se justapõem e
contar todos os pedaços, essa operação será efetuada so­
bre a lembrança congelada da duração, sobre o rastro
imóvel que a mobilidade da duração deixa atrás de si, e
não sobre a própria duração. Confessemos então que, se
há aqui uma multiplicidade, essa multiplicidade não se
assemelha a nenhuma outra. Acaso diremos então que a
duração tem unidade? Sem dúvida, uma continuidade de
elementos que se prolongam uns nos outros participa da
unidade tanto quanto da multiplicidade, mas essa uni­
dade movente, cambiante, colorida, viva, pouco se asse­
melha à unidade abstrata, imóvel e vazia que o conceito
de unidade pura circunscreve. Acaso iremos concluir a
partir daí que a duração deva se definir ao mesmo tem­
po pela unidade e pela multiplicidade? Mas, fato singu­
lar, por mais que eu manipule os dois conceitos, que eu
os dose, os combine entre si diversamente, por mais que
eu pratique neles as mais sutis operações de química
mental, nunca obterei algo que se assemelhe à intuição
simples que tenho da duração; ao passo que se me reins­
talo na duração por um esforço de intuição, percebo ime-
diatamente dc que modo ela é unidade, multiplicidade e
muitas coisas mais. Esses diversos conceitos eram portan­
to, todos eles, pontos de vista exteriores sobre a duração.
Nem separados, nem reunidos eles nos fizeram penetrar
na própria duração.
Nela penetraremos, no entanto, e só pode ser por
meio de uma intuição. Nesse sentido, um conhecimento
interior, absoluto, da duração do eu pelo próprio eu é pos­
sível. Mas, se a metafísica reclama e pode obter aqui uma
intuição, nem por isso a ciência necessita menos de uma
análise. E é de uma confusão entre o papel da análise e
INTRODUÇÃO A METAFÍSICA 197

o da intuição que irão nascer aqui as discussões entre es­


colas e os conflitos entre sistemas.
1 A psicologia, com efeito, procede por meio de uma
análise como as outras ciências. Resolve o eu, que lhe foi
dado de início numa intuição simples, em sensações, sen­
timentos, representações, etc., que ela estuda separada­
mente. Substitui portanto o eu por uma série dc elemen­
tos que são os fatos psicológicos. Mas esses elementos se­
rão eles partes? Toda a questão é essa, e c por tê-la elu­
dido que se foi freqüentemente levado a pôr em termos
insolúveis o problema da personalidade humana.
É incontestável que todo estado psicológico, pelo
simples fato de pertencer a uma pessoa, reflete o conjun­
to de uma personalidade. Não há sentimento, por sim­
ples que seja, que não encerre virtualmente o passado e
o presente do ser que o experimenta, ou que possa ser
dele separado e constituir um "estado", salvo por um es­
forço de abstração ou de análise. Mas' é não menos in­
contestável que, sem esse esforço de abstração ou de
análise, não havería desenvolvimento possível da ciência
psicológica. Ora, em que consiste a operação pela qual
o psicólogo separa um estado psicológico para erigi-lo
em entidade mais ou menos independente? Começa por
negligenciar o colorido especial da pessoa, que não se po­
dería exprimir em termos conhecidos e comuns. Depois,
esforça-se por isolar, na pessoa já assim simplificada, tal
ou tal aspecto que se presta a um estudo interessante.
Trata-se, por exemplo, da inclinação? Deixará de lado o
inexprimível matiz que a colore e que faz com que minha
inclinação não seja a de vocês; depois, deter-se-á no mo­
vimento pelo qual nossa personalidade se dirige para um
certo objeto; irá isolar essa atitude, e é esse aspecto es­
pecial da pessoa, esse ponto de vista sobre a mobilidade
198 O PENSAMENTO E O MOVENTE

da vida interior, esse "esquema" da inclinação concreta


que o psicólogo irá erigir em fato independente. Há aí
um trabalho análogo ao do artista que, de passagem por
Paris, tomaria, por exemplo, um croqui de uma torre de
Notre-Dame. A torre está inscparavelmente ligada ao edi­
fício, que está não menos inscparavelmente ligado ao
solo, ao entorno, a Paris inteira, etc. É preciso começar
por separá-la; do conjunto, só se anotará um certo aspec­
to, que é essa torre de Notre-Dame. Agora, na realidade,
a torre é constituída por pedras, e é o agrupamento par­
ticular destas que dá a ela a sua forma; mas o desenhista
não se interessa pelas pedras, anota apenas o perfil da tor­
re. Substitui portanto a organização real e interior da coisa
por uma reconstituição exterior e esquemática. De modo
que seu desenho responde, cm suma, a um certo ponto
de vista sobre o objeto c à escolha de um certo modo de
representação. Ora, ocorre exatamente o mesmo na ope­
ração pela qual o psicólogo extrai do conjunto da pessoa
um estado psicológico. Esse estado psicológico isolado
realmcntc não ó mais que um croqui, um começo de re­
composição artificial; é o todo encarado sob um certo as­
pecto elementar que desperta em nós um interesse espe­
cial e que tivemos o cuidado de anotar. Não é uma parte,
mas um elemento. Não foi obtido por fragmentação, mas
por análise.
Agora, na base de todos os croquis tomados em Pa­
ris, o estrangeiro sem dúvida irá inscrever "Paris" à gui­
sa de memento. E como rcalmente viu Paris, saberá, des­
cendo novamente da intuição original do todo, nela si­
tuar seus croquis e conectá-los assim uns aos outros.
Mas não há nenhum meio de executar a operação inver­
sa; é impossível, mesmo com uma infinidade de croquis
tão exatos quanto se queira, mesmo com a palavra "Pa­
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 199

ris" indicando que é preciso conectá-los entre si, remon­


tar a uma intuição que não se teve e dar-se a impressão
de Paris caso não se tenha visto Paris. É que aqui não li­
damos com partes do todo, mas com notas tomadas do
conjunto. Para escolher um exemplo mais marcante, um
caso onde a anotação é mais completamente simbólica,
suponhamos que me apresentem, misturadas ao acaso,
letras que entram na composição de um poema que ig­
noro. Fossem as letras partes do poema, eu poderia pro­
curar reconstituí-lo com elas tentando diversos arranjos
possíveis, como faz a criança com um jogo de paciência.
Mas não o cogitarei nem por um instante, porque as le­
tras não são partes componentes, mas expressões parciais, o
que é algo inteiramente diferente. É por isso que, se co­
nheço o poema, ponho imediatamente cada uma das le­
tras no lugar que lhes cabe e as conecto sem dificuldade
por um traço contínuo, ao passo que a operação inversa é
impossível. Mesmo quando acredito tentar essa operação
inversa, mesmo quando ponho letras umas na frente das
outras, começo por me representar uma significação plau­
sível: dou-me portanto uma intuição, e é partindo da intui­
ção que procuro descer de volta para os símbolos elemen­
tares que lhe reconstituiríam a expressão. A própria idéia
de reconstituir a coisa por meio de operações praticadas
exclusiva men te sobre elementos simbólicos implica um tal
absurdo que nunca ocorrería a nenhum de nós, caso nos
déssemos conta de que não lidamos com fragmentos da
coisa, mas, de certa forma, com fragmentos de símbolo.
Tal é, no entanto, o intento dos filósofos que com es­
tados psicológicos procuram recompor a pessoa, quer se
atenham aos próprios estados, quer acrescentem um fio
destinado a conectar os estados entre si. Empiristas e ra-
cionalistas são aqui vítimas da mesma ilusão. Ambos to-
200 O PENSAMENTO E O MOVENTE

mam as anotações parciais por partes reais, confundindo


assim o ponto de vista da análise com o da intuição, a
ciência com a metafísica.
Os primeiros dizem com razão que a análise psico­
lógica não descobre, na pessoa, nada além dos estados
psicológicos. E tal é, de fato, a função, tal é a definição
mesma da análise. O psicólogo não precisa fazer nada
além de analisar a pessoa, isto é, anotar estados; no má­
ximo irá pôr a rubrica "eu" sobre esses estados dizendo
que são "estados do eu", assim como o desenhista escre­
ve a palavra "Paris" em cada um de seus croquis. No ter­
reno no qual o psicólogo se instala e no qual precisa se
instalar, o "eu" é apenas um signo pelo qual é relembra­
da a intuição primitiva (muito confusa, aliás) que forne­
ceu à psicologia seu objeto: trata-se apenas de uma pa­
lavra, e o grande erro é o de acreditar que se poderia,
permanecendo no mesmo terreno, encontrar por trás da
palavra uma coisa. Tal foi o erro desses filósofos que não se
puderam resignar a serem simplesmente psicólogos em
psicologia, Taine e Stuart Mill, por exemplo. Psicólogos
pelo método que aplicam, permaneceram metafísicos pelo
objeto que se propõem. Almejam uma intuição e, por uma
estranha inconscqüência, pedem essa intuição à análise,
que é sua negação mesma. Procuram o eu, e pretendem
encontrá-lo nos estados psicológicos, ao passo que só pu­
deram obter essa diversidade de estados psicológicos ao
se transportarem para fora do eu, para tomar da pessoa
uma série de croquis, de anotações, de representações
mais ou menos esquemáticas e simbólicas. Assim, por mais
que justaponham os estados aos estados, que lhes mul­
tipliquem os contatos, que lhes explorem os interstícios,
o eu escapa-lhes sempre, de modo que acabam por não ver
nele nada além de um vão fantasma. Seria o mesmo que
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 201

negar que a Ilíada tenha um sentido, sob o pretexto de que


se procurou em vão esse sentido nos intervalos das letras
que a compõem.
,O empirismo filosófico nasceu portanto aqui de uma
confusão entre o ponto de vista da intuição e o da análi­
se. Ele consiste em procurar o original na tradução, onde
naturalmente não pode estar, e em negar o original sob o
pretexto de que este não se encontra na tradução. Desem­
boca necessariamente em negações; mas, olhando de per­
to, percebemos que essas negações significam simples­
mente que a análise não é a intuição, o que é a própria
evidência. Da intuição original e, aliás, confusa, que dota
a ciência de seu objeto, a ciência passa imediatamente
para a análise, que multiplica ao infinito os pontos de
vista sobre esse objeto. Bem depressa chega a crer que
poderia, compondo entre si todos os pontos dc vista, re­
constituir o objeto. Acaso seria, então, de se espantar que
ela veja esse objeto fugir dela, como a criança que gosta­
ria de fabricar um brinquedo sólido com as sombras que
se perfilam ao longo dos muros?
Mas o racionalismo é vítima da. mesma ilusão. Ele
parte da confusão que o empirismo cometeu e permane­
ce tão incapaz quanto este de atingir a personalidade.
Como o empirismo, toma os estados psicológicos por ou­
tros tantos fragmentos separados de um eu que os reuni-
ria. Como o empirismo, enfim, ve a unidade da pessoa
esquivar-se indefinidamente como um fantasma diante
do esforço que ele renova incessantemente para agarrá-
la. Mas, ao passo que o empirismo, entregando os pon­
tos, acaba por declarar que não há nada além da multi­
plicidade dos estados psicológicos, o racionalismo insiste
em afirmar a unidade da pessoa. É verdade que, procuran­
do essa unidade no terreno dos próprios estados psico-

i UN1FLSF i
i MffliECACfêRBGíhWCS!
202 O PENSAMENTO E O MOVENTE

lógicos, e obrigado, por outro lado, a lançar à conta dos


estados psicológicos todas as qualidades ou determina­
ções que ele encontra pela análise (uma vez que a análi­
se, por definição mesmo, desemboca sempre em esta­
dos), só lhe resta, para a unidade da pessoa, algo de pu­
ramente negativo, a ausência de toda determinação. Os
estados psicológicos tendo necessariamente tomado e
guardado para si, nessa análise, tudo aquilo que apre­
sentasse a menor aparência de materialidade, a "unidade
do eu" já não poderá ser nada além de uma forma sem
matéria. Será o indeterminado e o vazio absolutos. Aos
estados psicológicos separados, a essas sombras do eu
cuja coleção era, para os empiristas, o equivalente da pes­
soa, o racionalismo acrescenta, para reconstituir a perso­
nalidade, algo de ainda mais irreal, o vazio no qual essas
sombras se movem, o lugar das sombras, poderiamos di­
zer. Como essa "forma", que é verdadeiramente infor­
me, poderia ela caracterizar uma personalidade viva,
agente, concreta e distinguir Pedro de Paulo? Acaso seria
então de se espantar se os filósofos que isolaram essa
"forma" da personalidade a descobrirem depois incapaz
dc determinar uma pessoa e forem levados, de grau eln
grau, a fazer de seu Eu vazio um receptáculo sem fundo
que não pertence mais a Paulo do que a Pedro e no qual
haverá lugar, como quisermos, para a humanidade intei­
ra, ou para Deus, ou para a existência em geral? Aqui,
entre o empirismo e o racionalismo vejo esta única dife­
rença de que o primeiro, procurando a unidade do eu
nos interstícios, dc certa forma, dos estados psicológicos,
é levado a colmatar os interstícios com outros estados, e
assim por diante, indefinidamente, de modo que o eu,
espremido num intervalo que vai sempre se estreitando,
tende para Zero à medida que se leva a análise mais lon­
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 203

ge, ao passo que o racionalismo, fazendo do eu o lugar


no qual os estados se alojam, está em presença de um
espaço vazio que não temos nenhuma razão para deter
aqui ao invés de acolá, que ultrapassa cada um dos limi­
tes sucessivos que pretendemos lhe conferir, que vai sem­
pre1 se alargando e que tende a perder-se, não mais no
Zero, mas no Infinito.
Há, portanto, uma distância bem menor do que se
supõe entre um pretenso "empirismo" como aquele de
Taine e as mais transcendentes das especulações de cer­
tos panteístas alemães. O método é análogo nos dois ca­
sos: consiste em raciocinar sobre os elementos da tradu­
ção como se fossem partes do original. Mas um empiris­
mo verdadeiro será aquele que se propõe seguir de tão
perto quanto possível o próprio original, aprofundar-lhe
a vida e, por uma espécie de auscultaçao espiritual, sentir-
lhe palpitar a alma; e esse empirismo verdadeiro é a ver­
dadeira metafísica. O trabalho é dc uma extrema dificul­
dade, porque nenhuma das concepções já prontas das
quais o. pensamento se vale para suas operações cotidia­
nas pode ser nele empregue. Nada mais fácil do que di­
zer que o eu é multiplicidade ou que é unidade ou que é
a síntese de ambas. Unidade e multiplicidade são aqui
representações que não precisamos talhar à medida do
objeto, que encontramos já fabricadas e que nos basta
escolher numa pilha, vestes de confecção que servirão
tão bem em Pedro quanto em Paulo porque não dese­
nham a forma de nenhum dos dois. Mas um empirismo
digno desse nome, um empirismo que só trabalha sob
medida, vê-se obrigado a despender, para cada novo ob­
jeto que estuda, um esforço absolutamente novo. Talha
para o objeto um conceito apropriado apenas a esse ob­
jeto, conceito do qual mal se pode ainda dizer que seja
204 O PENSAMENTO E O MOVENTE

um conceito, uma vez que se aplica apenas a essa única


coisa. Não procede por combinação de idéias disponíveis
no mercado, unidade e multiplicidade, por exemplo;
mas, pelo contrário, a representação para a qual nos en­
caminha é uma representação única, simples, com relação
à qual, aliás, compreendemos muito bem, uma vez for­
mada, porque a podemos inserir nos quadros unidade,
multiplicidade, etc., todos bem mais largos que ela. En­
fim, a filosofia assim definida não consiste em escolher
entre conceitos c cm tomar partido por uma escola, mas
em ir buscar uma intuição única da qual descemos com
igual propriedade para os diversos conceitos, por nos
termos colocado acima das divisões de escolas.
Que a personalidade tenha unidade, isto é certo; mas
semelhante afirmação nada me ensina sobre a natureza
extraordinária dessa unidade que é a pessoa. Que nosso
eu seja múltiplo, também o concedo, mas há aí uma
multiplicidade com relação à qual não há como não re­
conhecer que ela nada tem em comum com nenhuma
outra. O que importa verdadeiramente à filosofia é saber
que unidade, que multiplicidade, que realidade superior >
ao um e ao múltiplo abstratos é a unidade múltipla da
pessoa. E ela só o saberá se recuperar a intuição simples
do eu pelo eu. Agora, conforme a vertente que escolher
para descer desse vértice, desembocará na unidade ou
na multiplicidade ou em qualquer um desses conceitos
pelos quais se procura definir a vida movente da pessoa.
Mas nenhuma mistura desses conceitos entre si, insisti­
mos, daria algo que se assemelhe à pessoa que dura.
Apresentem-me um cone sólido, vejo facilmente co­
mo se estreita na direção do vértice e tende a se confun­
dir com um ponto matemático e também como se alarga
em sua base num círculo indefinidamente crescente. Mas
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 205

nem o ponto, nem o círculo, nem a justaposição dos dois


num plano me dariam a menor idéia de um cone. O
mesmo vale para a multiplicidade e a unidade da vida
psicológica. O mesmo vale para o Zero c o Infinito para
os quais empirismo e racionalismo encaminham a per­
sonalidade.
Os conceitos, como o mostraremos alhures, apre-
sentam-se norma]mente aos pares e representam os dois
contrários. Não há de fato realidade concreta da qual não
se possa tomar ao mesmo tempo as duas vistas opostas,
que não se subsuma, por conseguinte, aos dois conceitos
antagonistas. De onde uma tese e uma antítese que se
procuraria em vão reconciliar logicamente, pela razão
muito simples de que, com conceitos, ou pontos dc vis­
ta, nunca se fará uma coisa. Mas do objeto, apreendido
por intuição, passa-se sem dificuldades, em muitos ca­
sos, para os dois conceitos contrários; e, vendo assim sair
da realidade a tese e a antítese, apreendemos ao mesmo
tempo como essa tese e essa antítese se opõem e como
se reconciliam.
É verdade que, para tanto, cabe proceder a uma in­
versão do trabalho habitual da inteligência. Pensar con­
siste normalmente em ir dos conceitos às coisas e não
das coisas aos conceitos. Conhecer uma realidade, no
sentido usual da palavra "conhecer", é tomar conceitos
já prontos, dosá-los e combiná-los entre si até obter um
equivalente prático do real. Mas não se deve esquecer
que o trabalho normal da inteligência está longe de ser
um trabalho desinteressado. Geralmente, não visamos
conhecer por conhecer, mas conhecer para tomar um
partido, para extrair um proveito, enfim, para satisfazer
um interesse. Investigamos até que ponto o objeto a co­
nhecer é isto ou aquilo, em que gênero conhecido ele en­
206 O PENSAMENTO Ê O MOVENTE

tra, que espécie de ação, de manobra ou de atitude ele


deveria nos sugerir. Essas diversas ações e atitudes pos­
síveis são outras tantas direções conceituais de nosso pen­
samento, determinadas de uma vez por todas; só falta
segui-las; nisso consiste precisamente a aplicação dos
conceitos às coisas. Experimentar um conceito num ob­
jeto é perguntar ao objeto o que devemos fazer com ele,
o que ele pode fazer por nós. Colar sobre um objeto a
etiqueta de um conceito é marcar em termos precisos o
gênero de ação ou de atitude que o objeto deverá nos su­
gerir. Todo conhecimento propriamente dito está portan­
to orientado numa certa direção ou foi tomado de um
certo ponto de vista. É verdade que nosso interesse é fre-
qüentemente complexo. E é por isso que nos acontece de
orientar em várias direções sucessivas nosso conheci­
mento do mesmo objeto e dc fazer variar os pontos de
vista sobre ele. Nisso consiste, no sentido usual desses
termos, um conhecimento "amplo" e "compreensivo"
do objeto: o objeto é então reconduzido, não mais a um
conceito único, mas a vários conceitos dos quais se su­
põe que ele "participe". Como pode ele participar de to­
dos esses conceitos ao mesmo tempo? Esta é uma ques­
tão que não importa para a prática c que não temos que
nos pôr. E portanto natural, é portanto legítimo que pro­
cedamos por justaposição e dosagem de conceitos na
vida corrente: nenhuma dificuldade filosófica advirá daí,
uma vez que, por convenção tácita, iremos nos abster de
filosofar. Mas transportar esse modus operandi para a filo­
sofia, ir, aqui também, dos conceitos para a coisa, utilizar,
para o conhecimento desinteressado de um objeto que,
desta vez, visamos atingir em si mesmo, uma maneira de
conhecer que se inspira num interesse determinado e
que consiste por definição numa vista tomada exterior­
INTRODUÇÃO Á METAFÍSICA 207

mente de um objeto, é dar as costas ao objetivo que se


visava, é condenar a filosofia a um. eterno dilaceramento
entre as escolas, é instalar a contradição no próprio co­
ração do objeto e do método. Ou não há filosofia possí­
vel e todo conhecimento das coisas é um conhecimento
prático orientado na direção do proveito a extrair delas,
ou filosofar consiste em se colocar no próprio objeto por
um esforço de intuição.
Mas, para compreender a natureza dessa intuição,
para determinar com precisão onde a intuição acaba e
onde começa a análise, cabe voltar àquilo que foi dito
acima acerca do escoamento da duração.
- Notar-se-á que os conceitos ou esquemas nos quais
a análise desemboca têm por caráter essencial estarem
imóveis enquanto se os considera. Isolei do todo da vida
interior essa entidade psicológica que chamo uma sen­
sação simples. Enquanto a estudo, suponho que ela per­
maneça o que ela é. Se nela encontrasse alguma mudan­
ça, diría que não há aí uma sensação única, mas várias
sensações sucessivas; e é para cada uma dessas sensa­
ções sucessivas que eu transportaria então a imutabilida­
de atribuída de início à sensação de conjunto. De toda
maneira, eu poderei, levando a análise suficientemente
longe, chegar a elementos que tomarei por imutáveis. É
aí e apenas aí que encontrarei a base de operações só­
lida da qual a ciência precisa para seu desenvolvimento
adequado.
No entanto, não há estado de alma, por simples que
seja, que não mude a todo instante, uma vez que não há
consciência sem memória, uma vez que não há conti­
nuação de um estado sem a adição, ao sentimento pre­
sente, da lembrança dos momentos passados. Nisso con­
siste a duração. A duração interior é a vida contínua de
208 O PENSAMENTO E O MOVENTE

uma memória que prolonga o passado no presente, seja


porque o presente encerra distintamente a imagem in­
cessantemente crescente do passado, seja, de forma mais
provável, porque testemunha, por sua contínua mudan­
ça de qualidade, a carga sempre mais pesada que arras­
tamos atrás de nós à medida que envelhecemos mais.
Sem essa sobrevivência do passado no presente, não ha­
vería duração, mas apenas instantaneidade.
É verdade que se me reprocharem por subtrair o es­
tado psicológico à duração pelo simples tato de analisá-
la, defender-me-ei dizendo que cada um desses estados
psicológicos elementares nos quais minha análise de­
semboca é um estado que ainda ocupa tempo. "Minha
análise, diria eu, realmente resolve a vida interior em es­
tados, cada um dos quais é homogêneo consigo mesmo;
só que, uma vez que a homogeneidade sc estende por
um número determinado de minutos ou de segundos, o
estado psicológico elementar não deixa dc durar, ainda
que não mude."
Mas quem não vê que o número determinado de
minutos e de segundos que atribuo ao estado psicológi-4
co elementar tem tão-somente o valor de um indício des­
tinado a me lembrar que o estado psicológico, suposta­
mente homogêneo, é na realidade um estado que muda
e que dura? O estado, tomado cm si mesmo, é um per­
pétuo devir. Extraí desse devir uma certa média de qua­
lidade que supus invariável: constituí assim um estado
estável e, por isso mesmo, esquemático. Dele extraí, por
outro lado, o devir em geral, o devir que não seria mais o
devir disso do que daquilo, e é isso que chamei o tempo
que esse estado ocupa. Olhando de perto, veria que esse
tempo abstrato é tão imóvel para mim quanto o estado
que nele localizo, veria que ele só poderia se escoar por
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 209

uma mudança de qualidade contínua e que, se ele é sem


qualidade, simples palco da mudança, ele se torna assim
um meio imóvel. Veria que a hipótese desse tempo ho­
mogêneo se destina simplesmente a facilitar a compara­
ção entre as diversas durações concretas, a nos permitir
a contagem de simultaneidades e a mensuração de um
escoamento de duração com relação a outro. E, por fim,
compreendería que, apensando à representação de um
estado psicológico elementar a indicação de um número
determinado de minutos e de segundos, limito-me a
lembrar que o estado foi separado de um eu que dura e a
delimitar o lugar no qual caberia recolocá-lo em movi­
mento para reconduzi-lo, de simples esquema que se tor­
nou, à forma concreta que tinha de início. Mas esqueço
tudo isso, por não me ser de nenhuma ajuda na análise.
O que significa que a análise opera sobre o imóvel,
ao passo que a intuição se instala na mobilidade ou, o
que dá no mesmo, na duração. Aí está a linha de demar­
cação bem nítida entre a intuição e a análise. Reconhe­
ce-se o real, o vivido, o concreto, pelo fato de que ele é a
própria variabilidade. Reconhece-se o elemento pelo fato
de que ele é invariável. E c invariável por definição, sendo
um esquema, uma reconstrução simplificada, frequente­
mente um mero símbolo, em todo caso uma vista tomada
da realidade que flui.
Mas o erro c acreditar que com esses esquemas re­
comporíamos o real. Nunca será demais repeti-lo: da in­
tuição podemos passar para a análise, mas não da análise
para a intuição.
Com a variabilidade farei tantas variações, tantas
qualidades ou modificações quantas quiser, porque estas
são outras tantas vistas imóveis, tomadas pela análise, da
mobilidade que é dada à intuição. Mas essas modifica­
210 O PENSAMENTO E O MOVENTE

ções postas umas na ponta das outras não produzirão


nada que sc assemelhe à variabilidade, porque não eram
partes, mas elementos dela, o que é algo inteiramente
diferente.
Consideremos, por exemplo, a variabilidade mais vi­
zinha da homogeneidade, o movimento no espaço. Pos­
so, ao longo de todo esse movimento, representar-me
paradas possíveis: é o que chamo as posições do móvel
ou os pontos pelos quais o móvel passa. Mas com as po­
sições, mesmo que fossem em número infinito, não farei
movimento. Não são partes do movimento; são, todas
elas, vistas que dele foram tomadas; são apenas, pode­
riamos dizer, suposições de parada. Nunca o móvel está
realmente em nenhum dos pontos; no máximo se pode
dizer que por eles passa. Mas a passagem, que é um mo­
vimento, nada tem em comum com uma parada, que é
imobilidade. Um movimento não poderia pousar-se so­
bre uma imobilidade, pois coincidiría então com ela, o
que seria contraditório. Os pontos não estão no movimen­
to, como partes, nem mesmo sob o movimento, como lu­
gares do móvel. São simplesmente projetados por nys
por sob o movimento, como lugares onde estaria, caso
parasse, um. móvel que por hipótese não pára. Não são,
portanto, propriamente falando, posições, mas suposi­
ções, vistas ou pontos de vista do espírito. Como, com
pontos de vista, construir uma coisa?
É, no entanto, o que tentamos fazer todas as vezes
que raciocinamos sobre o movimento e também sobre o
tempo, para o qual o movimento serve dc representação.
Por uma ilusão profundamente enraizada em nosso es­
pírito, e por não nos podermos impedir de considerar a
análise como equivalente à intuição, começamos por dis­
tinguir, ao longo de todo o movimento, um certo núme­
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 211

ro de paradas possíveis ou pontos que, queiramos ou


não, tomamos partes do movimento. Diante de nossa
incapacidade de recompor o movimento com esses pon­
tos, intercalamos outros pontos, acreditando assim cer­
car de mais perto o que há de mobilidade no movimen­
to. Depois, como a mobilidade ainda nos escapa, substi­
tuímos um número finito e delimitado de pontos por um
número "indefinidamente crescente" - tentando assim,
mas em vão, contrafazcr, pelo movimento de nosso pen­
samento que continua indefinidamente a adição dos
pontos aos pontos, o movimento real e indiviso do mó­
vel. Finalmente, dizemos que o movimento se compõe
de pontos, mas que compreende, além disso, a passagem
obscura, misteriosa, de uma posição à posição seguinte.
Como se a obscuridade não proviesse inteira do fato de
que se supôs a imobilidade mais clara do que a mobili­
dade, a parada anterior ao movimento! Como se o mis­
tério não se prendesse ao fato de que se pretende ir das
paradas para o movimento por via de composição, o que
é impossível, ao passo que se vai sem dificuldade do mo­
vimento para a desaceleração e para a imobilidade! Fo­
mos procurar a significação do poema na forma das le­
tras que o compõem, acreditamos que ao considerar um
número crescente de letras agarraríamos por fim a signi­
ficação que sempre foge e, em desespero de causa, ven­
do que de nada servia procurar uma parte do sentido em
cada uma das letras, supusemos que entre cada letra e a
seguinte se alojasse o fragmento procurado do sentido
misterioso! Mas as letras, mais uma vez, não são partes
da coisa, são elementos do símbolo. As posições do mó­
vel, mais uma vez, não são partes do movimento: são
pontos do espaço que supostamente subtende o movi­
mento. Esse espaço imóvel e vazio, simplesmente conce­
212 O PENSAMENTO E O MOVENTE

bido, nunca percebido, tem tão-somente o valor de um


símbolo. Como, manipulando símbolos, poderiamos nós
fabricar realidade?
Mas o símbolo responde aqui aos hábitos os mais
inveterados de nosso pensamento. Instalamo-nos de or­
dinário na imobilidade, na qual encontramos um ponto
de apoio para a prática, e pretendemos com ela recom­
por a mobilidade. Obtemos assim apenas uma imitação
canhestra, uma contrafação do movimento real, mas essa
imitação nos serve bem mais na vida do que o faria a in­
tuição da coisa mesma. Ora, nosso espírito tem uma ir­
resistível tendência a considerar como mais clara a idéia
que lhe serve mais frequentemente. É por isso que a imo­
bilidade lhe parece mais clara que a mobilidade, a para­
da anterior ao movimento.
As dificuldades que o problema do movimento le­
vantou desde a mais alta antiguidade provêm daí. Pren­
dem-se sempre ao fato dc que se pretende ir do espaço
para o movimento, da trajetória para o trajeto, das posi­
ções imóveis para a mobilidade, e passar de um para o
outro por via de composição. Mas é o movimento que é
anterior à imobilidade, e não há, entre as posições e o
deslocamento, a relação das partes com o todo, mas sim
a da diversidade dos pontos de vista possíveis com. a in­
divisibilidade real do objeto.
Muitos outros problemas nasceram da mesma ilu­
são. Aquilo que os pontos imóveis são para o movimen­
to de um móvel, os conceitos de qualidades diversas são
para a mudança qualitativa de um objeto. Os conceitos
variados nos quais uma variação se resolve são portanto,
todos eles, vistas estáveis da instabilidade do real. E pen­
sar um objeto, no sentido usual da palavra "pensar", é to­
mar de sua mobilidade uma ou mais dessas vistas imó­
INTRODUÇÃO Ã METAFÍSICA 213

veis. É, em suma, perguntar-se de tempos em tempos a


quantas ele anda, a fim de saber o que se podería fazer
com ele. Nada de mais legítimo, aliás, do que essa ma­
neira de proceder, enquanto se tratar apenas de um co­
nhecimento prático da realidade. O conhecimento, en­
quanto orientado para a prática, tem apenas dc enume­
rar as principais atitudes possíveis da coisa a nosso res­
peito, como também nossas melhores atitudes possíveis
a seu respeito. Nisso consiste a função habitual dos con­
ceitos já prontos, essas estações pelas quais balizamos o
trajeto do devir. Mas querer penetrar com eles até na na­
tureza íntima das coisas é aplicar à mobilidade do real
um método que foi feito para fornecer pontos de vista
imóveis sobre eia. E esquecer que, se a metafísica é pos­
sível, ela só pode ser um esforço para escalar de volta a
inclinação natural do trabalho do pensamento, um es­
forço para se instalar de imediato, por uma dilatação do
espírito, na coisa que se estuda, enfim, para ir da realida­
de aos conceitos e não mais dos conceitos à realidade.
Acaso seria de se espantar que os filósofos vejam com
tanta freqüência fugir na sua frente o objeto que preten­
dem agarrar, como crianças que querem, fechando a mão,
capturar a fumaça? Assim se perpetuam muitas querelas
entre as escolas, cada uma das quais reprocha às outras
terem deixado o real escapar.
Mas, se a metafísica deve proceder por intuição, se a
intuição tem por objeto a mobilidade da duração e se a
duração é de essência psicológica, não iremos nós encer­
rar o filósofo na contemplação exclusiva de si mesmo?
Não irá a filosofia consistir em se olhar simplesmente vi­
ver, "como um pastor sonolento olha a água correr"?
Falar assim seria voltar ao erro que não cessamos de as­
sinalar desde o começo desse estudo. Seria desconhecer
214 O PENSAMENTO E O MOVENTE

a natureza singular da duração, ao mesmo tempo que o


caráter essencialmente ativo da intuição metafísica. Seria
não ver que apenas o método de que falamos permite
ultrapassar não só o realismo como também o idealismo,
afirmar a existência de objetos inferiores c superiores a
nós, ainda que, num certo sentido, interiores a nós, fazê-
los coexistir uns com os outros sem dificuldade, dissipar
progressivamente as obscuridades que a análise acumu­
la em torno dos grandes problemas. Sem abordar aqui o
estudo desses diferentes tópicos, limitemo-nos a mostrar
como a intuição de que falamos não é um ato único, mas
uma série indefinida de atos, todos do mesmo gênero,
sem dúvida, mas cada um de uma espécie muito particu­
lar, e como essa diversidade de atos corresponde a todos
os graus do ser.
Se procuro analisar a duração, isto é, resolvê-la em
conceitos já prontos, sou de um modo ou de outro obri­
gado, pela própria natureza do conceito e da análise, a
tomar duas vistas opostas da duração em geral com as
quais pretenderei em seguida recompô-la. Essa combi­
nação não poderá apresentar nem uma diversidade de
graus nem uma variedade de formas: ela é ou não é. Di­
rei, por exemplo, que há, de um lado, uma multiplicidade
de estados de consciência sucessivos e, de outro, uma
unidade que os conecta. A duração será a "síntese" des­
sa unidade e dessa multiplicidade, operação misteriosa
com relação à qual não se vê, eu o repito, como compor­
taria matizes ou graus. Nessa hipótese, só há, só pode
haver uma única duração, aquela na qual nossa cons­
ciência opera habitualmente. Para fixar as idéias, se to­
marmos a duração sob o aspecto simples de um movi­
mento que se realiza no espaço e procurarmos reduzir a
conceitos o movimento considerado como representati­
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 215

vo do Tempo, teremos, de um lado, um número tão gran­


de quanto quisermos de pontos da trajetória e, de outro,
uma unidade abstrata que os reúne, como um fio que
manteria juntas as pérolas de um colar. A combinação
entre essa multiplicidade abstrata e essa unidade abstra­
ta, uma vez posta como possível, é uma coisa singular na
qual não encontraremos mais matizes do que, passando
para o campo da aritmética, numa adição de números
dados. Mas se, ao invés de pretender analisar a duração
(isto é, no fundo, fazer-lhe a síntese com conceitos), co­
meçamos por nos instalar nela por meio de um esforço
de intuição, temos o sentimento de uma certa tensão mui­
to determinada, cuja determinação mesma aparece como
uma escolha entre uma infinidade de durações possíveis.
Desde então, percebemos durações tão numerosas quan­
to quisermos, todas muito diferentes umas das outras,
ainda que cada uma delas, reduzida a conceitos, isto é,
encarada exteriormente dos dois pontos de vista opostos,
se reduza sempre à mesma indefinível combinação do
múltiplo e do uno.
Exprimamos a mesma idéia com mais precisão. Se
considero a duração como uma multiplicidade de mo­
mentos conectados uns aos outros por uma unidade que
os atravessaria como um fio, por curta que seja a duração
escolhida esses momentos são em número ilimitado.
Posso supô-los tão próximos uns dos outros quanto qui­
ser; haverá sempre, entre esses pontos matemáticos, ou­
tros pontos matemáticos, e assim por diante, ao infinito.
Encarada do lado multiplicidade, a duração irá portanto
desvanecer-se numa poeira de momentos, nenhum dos
quais dura, uma vez que cada um deles é um instantâ­
neo. Mas se, de outro lado, considero a unidade que co­
necta os momentos entre si, esta tampouco pode durar,
216 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE
•<

uma vez que, por hipótese, tudo que há de cambiante e


de propriamente durável na duração foi posto na conta
da multiplicidade dos momentos. Essa unidade, à medi­
da que eu lhe aprofundar a essência, aparecer-me-á por­
tanto como um substrato imóvel do movente, como não
sei que essência intemporal do tempo: é o que eu cha­
marei a eternidade - eternidade de morte, uma vez que
não é nada além do movimento já esvaziado da mobili­
dade que era sua vida. Examinando de perto as opiniões
das escolas antagonistas a respeito da duração, veriamos
que diferem apenas pelo fato de atribuírem a um ou ao
outro desses dois conceitos uma importância capital.
A Prendem-se umas ao ponto de vista do múltiplo; erigem-
em realidade concreta os momentos distintos de um tem­
po que, por assim dizer, pulverizaram; tomam por bem
mais artificial a unidade que faz dos grãos uma poeira.
As outras, pelo contrário, erigem a unidade da duração
em realidade concreta. Instalam-se no eterno. Mas como
sua eternidade permanece apesar de tudo abstrata, por
ser vazia, como é a eternidade de um conceito que, por
hipótese, exclui de si o conceito oposto, não se vê como
essa eternidade deixaria coexistir consigo uma multipli­
cidade indefinida de momentos. Na primeira hipótese,
temos um mundo suspenso no ar, que precisaria acabar
e recomeçar por si mesmo a cada instante. Na segunda,
temos um infinito de eternidade abstrata, com relação ao
qual tampouco se compreende por que não permanece
encasulado em si mesmo ou como deixa coexistir consi­
go as coisas. Mas, em ambos os casos, e qualquer que
seja aquela das duas metafísicas na qual nos encarrilha-
mos, o tempo aparece do ponto de vista psicológico
como uma mistura de duas abstrações que não compor­
tam graus nem matizes. Num sistema como no outro, só
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 2'17

há uma única duração que carrega tudo com ela, rio sem
fundo, sem margens, que corre sem força determinável
numa direção que não se poderia definir. E, mesmo as­
sim, só se trata de um rio e esse rio só flui porque a rea­
lidade obtem tal sacrifício dessas duas doutrinas, apro­
veitando-se de uma distração de sua lógica. Assim que
voltam a si, congelam esse escoamento, quer numa imen­
sa lâmina sólida, quer numa infinidade de agulhas cris­
talizadas, sempre numa coisa que participa necessaria­
mente da imobilidade de um ponto de vista.
As coisas mudam inteiramente caso nos instalemos
de saída, por um esforço de intuição, no escoamento con­
creto da duração. Decerto, não encontraremos então ne­
nhuma razão lógica para pôr durações múltiplas e diver­
sas. A rigor, poderia não existir nenhuma outra duração
além da nossa, como poderia não haver no mundo ne­
nhuma outra cor além do alaranjado, por exemplo. Mas,
assim como uma consciência à base de cor que simpati­
zasse interiormente com o alaranjado, ao invés de perce­
bê-lo exteriormente, se sentiria tomada entre vermelho e
amarelo e talvez pressentisse mesmo, por sob essa últi­
ma cor, todo um espectro no qual se prolonga natural­
mente a continuidade que vai do vermelho para o ama­
relo, assim também a intuição de nossa duração, bem lon­
ge de nos deixar suspensos no vazio como o faria a pura
análise, nos põe em contato com toda uma continuidade
de durações que nos cabe procurar seguir, quer para bai­
xo, quer para o alto: em ambos os casos podemos nos di­
latar indefinidamente por um esforço cada vez mais vio­
lento, em ambos os casos nos transcendemos a nós mes­
mos. No primeiro, caminhamos para uma duração cada
vez mais espalhada, cujas palpitações, mais rápidas que
as nossas, dividindo nossa sensação simples, diluem-lhe
218 O PENSAMENTO E O MOVENTE

a qualidade em quantidade: no limite se encontraria o


puro homogêneo, a pura repetição pela qual definiremos
a materialidade. Caminhando no outro sentido, vamos
para uma duração que se tensiona, se adensa, se intensi­
fica cada vez mais: no limite se encontraria a eternidade.
Não mais a eternidade conceituai, que é uma eternidade
de morte, mas uma eternidade de vida. Eternidade viva
e, por conseguinte, movente também, na qual a nossa
duração se encontraria como as vibrações na luz, e que
seria a concreção de toda duração, assim como a mate­
rialidade é seu espalhamento. A intuição move-se entre
esses dois limites extremos e esse movimento é a própria
metafísica.

Não há como percorrer aqui as diversas etapas des­


se movimento. Mas, após ter apresentado uma visão ge­
ral do método e ter feito uma primeira aplicação dele, tal­
vez não seja inútil formular, em termos tão precisos quan­
to nos for possível, os princípios sobre os quais ele repou­
sa. Das proposições que iremos enunciar, a maior parte
recebeu, no presente trabalho, um começo de prova. Es­
peramos demonstrá-las mais completamente qtfando
abordarmos outros problemas.
I. Há uma realidade exterior e, no entanto, dada imedia­
tamente a nosso espírito. A esse respeito o senso comum
tem razão contra o idealismo e o realismo dos filósofos.
II. Essa realidade é mobilidade4. Não existem coisas
feitas, mas apenas coisas que se fazem, nada de estados
que se mantêm, mas apenas estados que mudam. O re-

4. Mais uma vez, não afastamos com isso de modo algum a subs­
tância. Afirmamos, pelo contrário, a persistência das existências. E acre­
ditamos ter-lhe facilitado a representação. Como se pôde comparar essa
doutrina à de Heráclito?
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 219

pouso nunca é mais que aparente, ou antes, relativo. A


consciência que temos de nossa própria pessoa, em seu
contínuo escoamento, nos introduz no interior de uma
realidade que devemos tomar como modelo para nos re­
presentarmos as outras. Toda realidade é portanto tendên­
cia, se conviermos em chamar tendência uma mudança de di­
reção em estado nascente.
III. Nosso espírito, que procura pontos de apoio fir­
mes, tem por função principal, no curso ordinário da
vida, representar-se estados e coisas. Toma de longe em
longe vistas quase instantâneas da mobilidade indivisa
do real. Obtém assim sensações e idéias. Ao fazê-lo, subs­
titui o contínuo pelo descontínuo, a mobilidade pela es­
tabilidade, a tendência em via de mudança pelos pontos
fixos que marcam uma direção da mudança e da tendên­
cia. Essa substituição é necessária para o senso comum,
para a linguagem, para a vida prática e mesmo, numa
certa medida que procuraremos determinar, para a ciên­
cia positiva. Nossa inteligência, quando segue, sua. inclinação
natural, procede por percepções sólidas, de um lado, e por con­
cepções estáveis, do outro. Parte do imóvel e só concebe e
exprime o movimento em função da imobilidade. Insta­
la-se nos conceitos já prontos e esforça-se para neles pe­
gar, como numa rede, algo da realidade que passa. Não,
sem dúvida, para obter um conhecimento interior e me­
tafísico do real. Simplesmente para dele se servir, cada
conceito (como aliás cada sensação) sendo uma questão
prática que nossa atividade põe para a realidade e à qual
a realidade responderá, como convém em negócios, por
um sim ou por um não. Mas, desse modo, deixa escapar
aquilo que é a essência mesma do real.
IV. As dificuldades inerentes à metafísica, as antino­
mias que ela levanta, as contradições nas quais ela cai, a
220 O PENSAMENTO E O MOVENTE

divisão em escolas antagonistas e as oposições irredutí­


veis entre sistemas, provêm em grande parte do fato de
que aplicamos ao conhecimento desinteressado do real
os procedimentos dos quais nos servimos correntemen­
te com um objetivo de utilidade prática. Provêm princi­
palmente do fato de que nos instalamos no imóvel para
surpreender o movente em sua passagem, ao invés de
nos recolocarmos no movente para atravessar com ele as
posições imóveis. Provêm do fato de que pretendemos
reconstituir a realidade, que é tendência e, por conse­
guinte, mobilidade, com os perceptos e os conceitos que
têm por função imobilizá-la. Com paradas, por numero­
sas que sejam, não se fará nunca a mobilidade; ao passo
que, se nos brindamos com a mobilidade, podemos dela
extrair pelo pensamento tantas paradas quantas quiser­
mos. Em outros termos, vê-se como conceitos fixos podem,
ser extraídos por nosso pensamento da. realidade móvel; mas
não há nenhum meio de reconstituir, com a fixidez dos concei­
tos, a mobilidade do real. No entanto, o dogmatismo, en­
quanto construtor de sistemas, sempre tentou essa re­
constituição. k
V. Havia de fracassar. É essa impotência e apenas essa
impotência que é constatada pelas doutrinas céticas,
idealistas, criticistas, todas aquelas, enfim, que contestam
ao nosso espírito o poder de atingir o absoluto. Mas, do
fato de que fracassamos em reconstituir a realidade viva
com conceitos rígidos e já feitos, não se segue que não a
possamos apreender de alguma outra maneira. As de­
monstrações que foram dadas da relatividade de nosso conhe­
cimento estão portanto maculadas por um vício original: su­
põem, como o dogmatismo que atacam, que todo conhecimen­
to deve necessariamente partir de conceitos de contornos de­
finidos para agarrar com eles a realidade que flui.
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 221

VI. Mas a verdade é que nosso espírito pode seguir


o caminho inverso. Pode instalar-se na realidade móvel,
adotar-lhe a direção incessantemente cambiante, enfim,
apreendê-la intuitivamente. Para isso é preciso que se
violente, que inverta o sentido da operação pela qual ha­
bitualmente pensa, que revire, ou antes, rotunda inces­
santemente suas categorias. Mas desembocará assim em
conceitos fluidos, capazes de seguir a realidade em todas
as suas sinuosidades e de adotar o próprio movimento da
vida interior das coisas. Apenas assim se constituirá uma
filosofia progressiva, liberta das disputas que opõem as
escolas, capaz de resolver naturalmente os problemas
porque se terá libertado dos termos artificiais que foram
escolhidos para pô-los. Filosofar consiste em inverter a di­
reção habitual do trabalho do pensamento.
VII. Essa inversão nunca foi praticada de maneira
metódica; mas uma história aprofundada do pensamen­
to humano mostraria que lhe devemos aquilo que de
mais grandioso se fez nas ciências, assim como aquilo
que há de viável na metafísica. O mais potente dos mé­
todos de investigação de que o espírito humano dispõe,
a análise infinitesimal, nasceu exatamente dessa inver­
são5. A matemática moderna é precisamente um esforço
para substituir o já feito por aquilo que se faz, um esfor­
ço para acompanhar a geração das grandezas, para apreen­
der o movimento, não mais de fora e em seu resultado
esparramado, mas de dentro e em sua tendência a mu­
dar, enfim, um esforço para adotar a continuidade móvel
do desenho das coisas. É verdade que ela se atém ao de­
senho, não sendo senão a ciência das grandezas. É ver­
dade, também, que só pôde desembocar em suas aplica­

5. Sobretudo em Newton, na sua consideração das fluxões.


222 O PENSAMENTO E O MOVENTE

ções maravilhosas por meio da invenção de certos sím­


bolos, e que, embora a intuição da qual acabamos de fa­
lar esteja na origem da invenção, apenas o símbolo inter­
vém na aplicação. Mas a metafísica, que não visa aplica­
ção alguma, poderá e o mais das vezes deverá abster-se
de converter a intuição em símbolo. Dispensada da obri­
gação de desembocar em resultados praticamente utili­
záveis, aumentará indefinidamente o campo de suas in­
vestigações. O que a metafísica tiver perdido, em compa­
ração com a ciência, em utilidade e em rigor, irá recon-
quistá-lo em alcance e em extensão. Se a matemática é
apenas a ciência das grandezas, se os procedimentos ma­
temáticos só se aplicam a quantidades, não se deve, por
outro lado, esquecer que a quantidade é sempre qualida­
de no estado nascente: é, por assim dizer, seu caso limi­
te. É portanto natural que a metafísica adote a idéia ge­
radora de nossa matemática, para estendê-la a todas as
qualidades, isto é, à realidade em geral. Não se encami­
nhará de modo algum, ao fazê-lo, para a matemática uni­
versal, essa quimera da filosofia moderna. Muito pelo
contrário, à medida que for caminhando mais, irá encon­
trando objetos mais intraduzíveis em símbolos. Mas fcerá
pelo menos começado por tomar contato com a conti­
nuidade e a mobilidade do real ali onde esse contato é o
mais maravilhosamente utilizável.Ter-se-á contemplado
num espelho que lhe devolve uma imagem de si mesma
muito diminuída, sem dúvida, mas também muito lumi­
nosa. Terá visto com uma clareza superior aquilo que os
procedimentos matemáticos tomam de empréstimo à rea­
lidade concreta, e prosseguirá no sentido da realidade
concreta, não no dos procedimentos matemáticos. Diga­
mos então, tendo antecipadamente atenuado o que a fór­
mula teria ao mesmo tempo de excessivamente modes-
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 223

to e de excessivamente ambicioso, que um dos alvos da me­


tafísica é operar diferenciações e integrações qualitativas.
VIII. O que fez perder de vista esse alvo e pôde en­
ganar a própria ciência acerca da origem de certos pro­
cedimentos que ela emprega é o fato de que a intuição,
uma vez conquistada, precisa encontrar um modo de ex­
pressão e de aplicação que esteja em conformidade com
os hábitos de nosso pensamento e que nos forneça, atra­
vés de conceitos bem definidos, os pontos de apoio fir­
mes de que temos tão grande necessidade. Aí está a con­
dição daquilo que chamamos rigor, precisão e também
extensão indefinida de um método geral a casos particu­
lares. Ora, essa extensão e esse trabalho de aperfeiçoa­
mento lógico podem prosseguir durante séculos, ao pas­
so que o ato gerador do método só dura um instante. É
por isso que tomamos com tanta frequência o aparelho
lógico da ciência pela própria ciência6, esquecendo a in­
tuição de onde saiu o resto7.

6. A esse respeito, como acerca de várias outras questões tratadas no


presente ensaio, ver os belos trabalhos de Le Roy, de Vincent c de Wilbois,
publicados na Revue de meta physique et de monde.
7. Como o explicavamos no início de nosso segundo ensaio (pp.
27 ss.), hesitamos longamente em nos servir do termo "intuição"; e,
quando nos decidimos a tanto, designamos por essa palavra a função
metafísica do pensamento: principalmente o conhecimento íntimo do
espírito pelo espírito, subsidiariamente o conhecimento, pelo espírito,
daquilo que há de essencial na matéria, a inteligência sendo sem dúvi­
da feita antes de tudo para manipular a matéria e, por conseguinte,
para conhecê-la, mas não tendo por destinação especial tocar-lhe o fun­
do. É essa significação que atribuímos à palavra no presente ensaio (es­
crito em 1902), mais especialmente nas últimas páginas. Fomos levados,
mais tarde, por uma preocupação crescente de precisão, a distinguir de
forma mais nítida a inteligência da intuição, como também a ciência da
metafísica (ver, acima, pp. 27 a 58 e também pp. 140 a 145). Mas, de uma
maneira geral, a mudança de terminologia não tem grave inconvenien­
224 O PENSAMENTO E O MOVENTE

Do esquecimento dessa intuição procede tudo aqui­


lo que foi dito pelos filósofos e pelos próprios cientistas
acerca da "relatividade" do conhecimento científico. £ re­
lativo o conhecimento simbólico por conceitos preexistentes que
vai do fixo para o movente, mas não o conhecimento intuiti­
vo que se instala no movente e adota a vida mesma das coi­
sas. Essa intuição atinge um absoluto.
A ciência e a metafísica confluem portanto na intui­
ção. Uma filosofia verdadeiramente intuitiva realizaria
a união tão desejada da metafísica e da ciência. Ao mes­
mo tempo que constituiría a metafísica em ciência posi­
tiva - quero dizer, progressiva e indefinidamente perfec­
tive] -, levaria as ciências positivas propriamente ditas a
tomar consciência de seu verdadeiro alcance, com freqüên-
cia muito superior àquele que imaginam ter. Colocaria mais
ciência na metafísica e mais metafísica na ciência. Teria
como resultado o restabelecimento da continuidade en­
tre as intuições que as diversas ciências positivas obtive­
ram de longe em longe no decorrer dc sua história e que
só obtiveram graças a lances de gênio.
IX. Que não haja duas maneiras diferentes de co­
nhecer a fundo as coisas, que as diversas ciências tenham
sua raiz na metafísica, é o que os filósofos antigos geral­
mente pensaram. Esse não foi o seu erro. O erro consis­
tiu em se inspirarem nesta crença, tão natural ao espíri­
to humano, de que uma variação não pode fazer mais
que exprimir e desenvolver invariabilidades. De onde re-
sultava que a Ação era uma Contemplação enfraquecida,
a duração uma imagem enganosa e móvel da eternidade

te quando se toma o cuidado de definir a cada vez o termo em sua acep­


ção particular, ou mesmo simplesmente quando o contexto mostra su­
ficientemente seu sentido.
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 225

imóvel, a Alma uma queda da Idéia. Toda essa filosofia


que começa em Platão para desembocar em Plotino é o
desenvolvimento de um princípio que formularíamos as­
sim: "Há mais no imutável do que no movente e passa -
se do estável para o instável por uma simples diminui­
ção." Ora, é o contrário que é verdade.
A ciência moderna data do dia em que se erigiu a
mobilidade em realidade independente. Data do dia em
que Galileu, fazendo rolar uma esfera sobre um plano
inclinado, tomou a firme resolução de estudar esse mo­
vimento de alto a baixo por si mesmo, em si mesmo, ao
invés de procurar seu princípio nos conceitos do alto e do
baixo, duas imobilidades pelas quais Aristóteles acredita­
va explicar suficientemente sua mobilidade. E este não
foi um fato isolado na história da ciência. Estimamos que
muitas das grandes descobertas, pelo menos daquelas que
transformaram as ciências positivas ou que criaram no­
vas, foram outros tantos lançamentos de sonda na dura­
ção pura. Quanto mais viva era a realidade que se toca­
va, tanto mais fundo havia tocado a sonda.
Mas a sonda lançada no fundo do mar traz de volta
uma massa fluida que o sol resseca bem depressa em
grãos de areia sólidos e descontínuos. E a intuição da du­
ração, quando a expomos aos raios do entendimento,
também se enrijece bem depressa em conceitos congela­
dos, distintos, imóveis. Na viva mobilidade das coisas, o
entendimento dedica-se a marcar estações reais ou vir­
tuais, anota partidas e chegadas; é tudo que importa para
o pensamento do homem quando este se exerce natural­
mente. Mas a filosofia deveria ser um esforço no sentido
de ultrapassar a condição humana.
Os cientistas detiveram seu olhar de preferência so­
bre os conceitos com os quais balizaram a estrada da in-
226 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

tuição. Quanto mais consideravam esses resíduos que ha­


viam passado para o estado de símbolos, tanto mais atri­
buíam a toda ciência um caráter simbólico8. E, quanto
mais acreditavam no caráter simbólico da ciência, tanto
mais o realizavam e o acentuavam. Em pouco tempo já
não faziam mais diferença, na ciência positiva, entre o na­
tural e o artificial, entre os dados da intuição imediata e
o imenso trabalho de análise que o entendimento execu­
ta em torno da intuição. Prepararam assim o caminho
para uma doutrina que afirma a relatividade de todos os
nossos conhecimentos.
Mas também a metafísica trabalhou nesse sentido.
Como seria possível que os mestres da filosofia mo­
derna, que foram, ao mesmo tempo em que metafísicos,
os renovadores da ciência, não tivessem experimentado
o sentimento da continuidade móvel do real? Como se­
ria possível que não se tivessem colocado naquilo que cha­
mamos de duração concreta? Fizeram-no mais do que
acreditaram, bem mais, sobretudo, do que o disseram. Se
nos esforçamos para conectar por traços contínuos as in-
tuições em torno das quais se organizaram os sistemas,
encontramos, ao lado de várias outras linhas convergerh
tes ou divergentes, uma direção bem determinada de

8. Para completar o que expúnhamos na nota precedente (p. 223),


digamos que fomos levados, desde a época em que escrevíamos essas
linhas, a restringir o sentido da palavra "ciência" e a chamar mais par­
ticularmente científico o conhecimento da matéria inerte pela inteligên­
cia pura. Isso não nos impedirá de dizer que o conhecimento da vida e
do espírito é científico em urna larga medida - na medida em que re­
corre aos mesmos métodos de investigação que o conhecimento da ma­
téria inerte. De modo inverso, o conhecimento da matéria inerte pode­
rá ser dito filosófico na medida em que utiliza, em determinado momen­
to decisivo de sua história, a intuição da duração pura. Cf., igualmen­
te, a nota da p. 183, no início do presente ensaio.
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 227

pensamento e de sentimento. Qual é esse pensamento


latente? Como exprimir esse sentimento? Para tomar mais
uma vez de empréstimo aos platônicos sua linguagem,
diremos, despojando as palavras de seu sentido psicoló­
gico, chamando de Idéia uma determinada certeza de fácil
inteligibilidade e de alma uma determinada inquietude de
vida, que uma corrente invisível leva a filosofia moderna
a elevar a Alma acima da Idéia. Ao fazê-lo, tende, tanto
quanto a ciência moderna e mesmo bem mais que ela, a
caminhar em sentido inverso ao do pensamento antigo.
Mas essa metafísica, do mesmo modo que essa ciên­
cia, desdobrou em torno de sua vida profunda um rico
tecido de símbolos, esquecendo por vezes que, se a ciên­
cia precisa de símbolos em seu desenvolvimento analíti­
co, a principal razão de ser da metafísica é uma ruptura
com os símbolos. Aqui, mais uma vez, o entendimento
prosseguiu em seu trabalho de fixação, de divisão, de re­
construção. Prosseguiu nele, é verdade, sob uma forma
bastante diferente. Sem insistir num ponto que nos pro­
pomos a desenvolver alhures, limitemo-nos a dizer que
o entendimento, que tem por função operar sobre ele­
mentos estáveis, pode procurar a estabilidade quer em
relações, quer em coisas. Na medida em que trabalha so­
bre conceitos de relações, desemboca no simbolismo cien­
tífico. Na medida em que opera sobre conceitos de coisas,
desemboca no simbolismo metafísico. Mas, em ambos os
casos, é dele que provém o arranjo. De bom grado crer-
se-ia independente. De preferência a reconhecer ime­
diatamente o quanto devo à intuição profunda da reali­
dade, expõe-se a que se veja em toda a sua obra apenas
um arranjo artificial de símbolos. De modo que se nos
ativéssemos à letra daquilo que dizem os metafísicos e
cientistas, como também à materialidade daquilo que fa­
228 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

zem, poderiamos crer que os primeiros escavaram por sob


a realidade um túnel profundo, e que os outros lançaram
por cima dela uma ponte elegante, mas que o rio mo­
vente das coisas passa entre essas duas obras de arte sem
as tocar.
Um dos principais artifícios da crítica kantiana con­
sistiu em tomar ao pé da letra o metafísico e o cientista,
em levar a metafísica e a ciência ate o limite extremo do
simbolismo a que podiam ir e para o qual, aliás, se en­
caminham por si mesmas assim que o entendimento
reivindica uma independência cheia de perigos. Uma
vez que não reconhece os vínculos da ciência e da me­
tafísica com a "intuição intelectual", Kant não tem difi­
culdade em mostrar que nossa ciência é inteiramente
relativa e nossa metafísica inteiramente artificial. Tendo
exasperado a independência do entendimento em am­
bos os casos, tendo aliviado a metafísica e a ciência da
"intuição intelectual" que as lastreava interiormente, a
ciência, com suas relações, apresenta para ele tão-somen­
te uma película de forma, e a metafísica, com suas coi­
sas, uma película de matéria. Acaso seria de se espantar
que a primeira só lhe mostre então quadros encaixados
em quadros, e a segunda fantasmas que correm atrás de
fantasmas?
Ele desferiu em nossa ciência e em nossa metafísica
golpes tão pesados que estas ainda não se refizeram to­
talmente de seu atordoamento. De bom grado nosso es­
pírito se resignaria a ver na ciência um conhecimento intei­
ramente relativo e, na metafísica, uma especulação vazia.
Parece-nos, ainda hoje, que a crítica kantiana se aplique
a toda metafísica e a toda ciência. Na realidade, aplica-se
sobretudo à filosofia dos antigos, assim como também à
forma - ainda antiga - que os modernos deram o mais
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 229

das vezes a seu pensamento. Ela vale contra uma meta­


física que pretende nos dar um sistema único e já feito de
coisas, contra uma ciência que seria um sistema único de
relações, enfim, contra uma ciência e uma metafísica que
se apresentariam com a simplicidade arquitetônica da
teoria platônica das Idéias ou de um templo grego. Se a
metafísica pretende constituir-se com conceitos que pos­
suiriamos antes dela, se ela consiste num arranjo enge­
nhoso de idéias preexistentes que utilizamos como ma­
teriais de construção para um edifício, enfim, se ela é
algo diferente da constante dilatação de nosso espírito,
do esforço sempre renovado para ultrapassar nossas
idéias atuais e talvez também nossa lógica simples, é por
demais evidente que ela se torna artificial como todas as
obras de puro entendimento. Caso a ciência seja por in­
teira obra de análise ou de representação conceituai,
caso a experiência só deva lhe servir de verificação para
"idéias claras", caso pretenda ser uma imensa matemá­
tica, um sistema único de relações que aprisiona a tota­
lidade do real numa rede armada antecipadamente, ao
invés de partir dc intuições múltiplas, diversas, que se in­
serem no movimento próprio de cada realidade, mas
nem sempre se encaixam umas nas outras, então a ciên­
cia se torna um conhecimento puramente relativo ao en­
tendimento humano. Quem ler de perto a Crítica da ra­
zão pura verá que, para Kant, essa espécie de matemáti­
ca universal é a ciência e esse platonismo reformulado, se
tanto, a metafísica. A bem dizer, o próprio sonho de uma
matemática universal já é apenas uma sobrevivência do
platonismo. A matemática universal é o que se torna o
mundo das Idéias quando supomos que a Idéia consista
numa relação ou numa lei e não mais numa coisa. Kant
tomou por realidade esse sonho de alguns filósofos mo-
230 O PENSAMENTO E O MOVENTE

demos9: bem mais, acreditou que todo conhecimento


científico não fosse mais que um fragmento separado, ou
antes, uma pedra de espera da matemática universal.
Désdc então, a principal tarefa da Crítica era fundar essa
matemática, isto é, determinar o que a inteligência pre­
cisa ser e o que o objeto precisa ser para que uma mate­
mática ininterrupta possa conectá-los entre si. E, neces­
sariamente, se toda experiência possível está assegurada
de entrar assim nos quadros rígidos e já constituídos de
nosso entendimento, isso se dá (a menos que se supo­
nha uma harmonia preestabelecida) porque nosso en­
tendimento organiza ele próprio a natureza e nela se
reencontra como num espelho. De onde a possibilidade
da ciência, que deverá toda sua eficácia à sua relativida­
de, e a impossibilidade da metafísica, uma vez que esta
não encontrará nada mais para fazer além de parodiar,
sobre fantasmas de coisas, o trabalho de arranjo concei­
tuai que a ciência persegue seriamente sobre relações.
Enfim, toda a Crítica da razão pura acaba estabelecendo que
o platonismo, ilegítimo caso as Idéias sejam coisas, torna-se
legítimo caso as idéias sejam relações, e que a idéia jâ feita, uma.
vez reconduzida assim do céu para a terra, é realmente, cqmo
o queria Platão, o fundo comum do pensamento e da nature­
za. Mas toda a. Crítica da razão pura repousa também sobre
este postulado de que nosso pensamento é incapaz de qual­
quer outra coisa além de platonizar, isto é, de vazar toda ex­
periência possível em moldes preexistentes.
A questão toda é esta. Se o conhecimento científico
é realmente o que Kant queria que ele fosse, há uma
ciência simples, pré-formada e mesmo pré-formulada na

9. Ver, a esse respeito, nos Philosophische Studien de Wundt (vol. IX,


1894), um artigo muito interessante de Radulescu-Motru, "Zur Entwicke-
lung von Kant's Theorie der Naturcausalitãt".
INTRODUÇÃO Ã METAFÍSICA 231

natureza, assim como o acreditava Aristóteles: as grandes


descobertas não fazem mais que iluminar ponto por pon­
to a linha, traçada antecipadamente, dessa lógica ima-
nente às coisas, assim como se acende progressivamen­
te, numa noite de festa, o cordão de gás que já desenha­
va os contornos de um monumento. E, se o conhecimen­
to metafísico é realmente aquilo que Kant queria que ele
fosse, ele se reduz à igual possibilidade de duas atitudes
opostas do espírito ante todos os grandes problemas; suas
manifestações são, todas elas, opções arbitrárias, sempre
efêmeras, entre duas soluções formuladas virtualmente
desde sempre: ele vive e morre de antinomias. Mas a ver­
dade é que nem a ciência dos modernos apresenta essa
simplicidade unilinear, nem a metafísica dos modernos es­
sas oposições irredutíveis.
A ciência moderna não é nem una nem simples. Re­
pousa, eu o concedo, sobre idéias que acabamos por
achar claras; mas essas idéias, quando são profundas, fo­
ram sendo iluminadas progressivamente pelo uso que
delas se fez; devem então a melhor parte de sua lumino­
sidade à luz que lhe devolveram, por reflexão, os fatos e
as aplicações aos quais conduziram, a clareza de um con­
ceito não sendo realmente outra coisa, então, do que a
segurança já adquirida de manipulá-lo com proveito. Na
origem, mais de uma delas deve ter parecido obscura, di­
ficilmente conciliável com os conceitos já admitidos na
ciência, bem próxima de beirar o absurdo. O que signifi­
ca que a ciência não procede por encaixe regular de con­
ceitos que estariam predestinados a se inserirem com
precisão uns nos outros. As idéias profundas e fecundas
são, todas elas, tomadas de contato com correntes de
realidade que não convergem necessariamente para um
mesmo ponto. É verdade que os conceitos nos quais elas
232 O PENSAMENTO E O MOVENTE

se alojam acabam sempre, arredondando seus ângulos


através de um atrito recíproco, por conseguir arranjar-se
bem ou mal entre si.
Por outro lado, a metafísica dos modernos não é fei­
ta de soluções de tal modo radicais que possam desem­
bocar em oposiçõcs irredutíveis. Assim seria, sem dúvi­
da, sc não houvesse nenhum meio de aceitar ao mesmo
tempo, e no mesmo terreno, a tese e a antítese das anti­
nomias. Mas filosofar consiste precisamente em se colo­
car, por um esforço de intuição, no interior dessa realida­
de concreta da qual a Crítica vem tomar de fora as duas
vistas opostas, tese e antítese. Nunca conseguirei imagi­
nar como branco e preto podem se interpenetrar caso
nunca tenha visto o cinza, .mas compreendo sem dificul­
dade, assim que vi o cinza, como se pode encará-lo do
duplo ponto de vista do branco e do preto. As doutrinas
que têm um fundo de intuição escapam à crítica kantia­
na na exata medida em que são intuitivas; e essas dou­
trinas são tudo na metafísica, desde que não se tome a
metafísica enquanto congelada e morta em teses, mas
enquanto viva em filósofos. Decerto, as divergências são
marcantes entre as escolas, isto é, em suma, entre os grux
pos de discípulos que sc formaram em torno de alguns
grandes mestres. Mas será que as encontraríamos assim
fortemente marcadas entre os próprios mestres? Há algo
aqui que domina a diversidade dos sistemas, algo, insis­
timos, simples e nítido como uma sonda com relação à
qual sentimos que foi tocar mais oú menos fundo o solo
de um mesmo oceano, ainda que a cada vez traga para a
superfície matérias bem diferentes. E sobre essas maté­
rias que os discípulos trabalham de ordinário: aí está o
papel da análise. E o mestre, enquanto formula, desen­
volve, traduz em idéias abstratas aquilo que ele traz, já é,
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 233

de certa forma, um discípulo com relação a si mesmo. Mas


o ato simples, que pôs a análise em movimento e que se
dissimula por trás da análise, emana de uma faculdade
inteiramente diferente daquela de analisar. Tratar-se-á,
por definição mesmo, da intuição.
Para concluir, cabe dizer que essa faculdade nada
tem de misterioso. Quem quer que se tenha exercitado
com sucesso na composição literária sabe perfeitamente
que, quando o assunto foi longamente estudado, todos
os documentos recolhidos, todas as anotações tomadas,
é preciso, para abordar o próprio trabalho de composi­
ção, algo a mais, um esforço, frequentemente árduo, para
se instalar de uma só vez no coração mesmo do assunto
e para ir buscar tão profundamente quanto possível uma
impulsão à qual, depois, bastará abandonar-se. Essa im­
pulsão, uma vez recebida, lança o espírito por um cami­
nho no qual ele reencontra não apenas as informações
que havia colhido como também outros detalhes mais;
essa impulsão desenvolve-se, analisa-se a si mesma em
termos cuja enumeração prosseguiría sem nunca ter um
fim; quanto mais longe vamos, tanto mais descobrimos;
nunca conseguiriamos dizer tudo: e no entanto, se nos
voltamos bruscamente contra a impulsão que sentimos
atrás de nós para apreendê-la, ela se esquiva; pois não
era uma coisa, mas uma incitação ao movimento e, ainda
que indefinidamente extensível, ela é a própria simpli­
cidade. A intuição metafísica parece ser algo do mesmo
gênero. O que corresponde aqui às anotações e documen­
tos da composição literária é o conjunto das observações
e das experiências colhidas pela ciência positiva e, so­
bretudo, por uma reflexão do espírito sobre o espírito. Pois
não se obtém da realidade uma intuição, isto é, uma sim­
patia espiritual com o que ela tem de mais interior, se não
234 O PENSAMENTO E O MOVENTE

se conquistou sua confiança por meio de uma longa ca­


maradagem com suas manifestações superficiais. E não
se trata simplesmente de assimilar os fatos marcantes; é
preciso acumular e fundir entre si uma massa desses fa­
tos que seja tão enorme que estejamos assegurados, nes­
sa fusão, de neutralizar umas pelas outras todas as idéias
preconcebidas e prematuras que os observadores podem
ter depositado, sem o saberem, no fundo de suas obser­
vações. Apenas assim se liberta a materialidade bruta
dos fatos conhecidos. Mesmo no caso simples e privile­
giado que nos serviu de exemplo, mesmo para o contato
direto do eu com o eu, o esforço definitivo de intuição dis­
tinta seria impossível para quem não tivesse reunido e
confrontado entre si um número muito grande de análi­
ses psicológicas. Os mestres da filosofia moderna foram
homens que haviam assimilado todo o material da ciên­
cia de seu tempo. E o eclipse parcial da metafísica de
meio século para cá tem como causa sobretudo a ex­
traordinária dificuldade que o filósofo experimenta hoje
em tomar contato com uma ciência que se tornou bem
mais espalhada. Mas a intuição metafísica, ainda que a
ela só se possa chegar a força de conhecimentos mate­
rials, é algo inteiramente diferente do resumo ou da sín­
tese desses conhecimentos. Distingue-se deles como a
impulsão motora se distingue do caminho percorrido
pelo móvel, como a tensão da mola se distingue dos mo­
vimentos visíveis no relógio. Nesse sentido, a metafísica
nada tem em comum com uma generalização da expe­
riência e, não obstante, poderia definir-se como a experiên­
cia integral.
CAPÍTULO VII
A FILOSOFIA DE CLAUDE BERNARD
Discurso pronunciado na cerimônia do Centenário
ãe Claude Bernard, no College de trance,
no diet 20 dc dezembro de 1913

O que a. filosofia deve a Claude Bernard é sobretudo


a teoria do método experimental. A ciência moderna
sempre se regrou pela experiência; mas como principiou
pela mecânica e pela astronomia, como de início só con­
siderou, na matéria, aquilo que há de mais geral e de
mais vizinho à matemática, durante muito tempo só pe­
diu à experiência que fornecesse um ponto de partida
para seus cálculos e que os verificasse na linha de chega­
da. Do século XIX datam as ciências de laboratório, aque­
las que seguem a experiência em. todas as suas sinuosi-
dades sem nunca perder contato com ela. Claude Ber­
nard forneceu a fórmula do método para essas investiga­
ções mais concretas, como outrora Descartes o fez para
as ciências abstratas da matéria. Nesse sentido, a Intro­
duction à la médecine expérimentale é, para nós, um pouco
aquilo que foi, para os séculos XVII e XVIII, o Discours ãe
la méthode. Em ambos os casos, encontramo-nos diante
de um homem de gênio que começou por fazer grandes
descobertas e que se perguntou depois como havia que
proceder para fazê-las: marcha aparentemente parado­
236 O PENSAMENTO E O MOVENTE

xal e, no entanto, a única natural, a maneira inversa de pro­


ceder tendo sido tentada com bem maior frequência e
nunca tendo sido bem sucedida. Apenas por duas vezes
na história da ciência moderna, e para as duas formas
principais que nosso conhecimento da natureza assumiu,
o espírito de invenção recolheu-se sobre si mesmo para
se analisar e para determinar assim as condições gerais
da descoberta científica. Essa feliz mistura de espontanei­
dade e de reflexão, de ciência e de filosofia, produziu-se,
cm ambos os casos, na França.
A preocupação constante de Claude Bernard, em sua
Introduction, foi a de nos mostrar como o fato e a idéia co­
laboram para a investigação experimental. O fato, mais
ou menos claramente percebido, sugere a idéia de uma
explicação; essa idéia, o cientista pede à experiência que
a confirme; mas, durante todo o tempo em que a expe­
riência dura, ele deve manter-se pronto para abandonar
sua hipótese ou remodelá-la pelos fatos. A investigação
científica é portanto um diálogo entre o espírito e a natu­
reza. A natureza desperta nossa curiosidade; endereçamo-
Ihe questões; suas respostas conferem à conversa uma di­
reção inesperada, provocando questões novas às quais
natureza replica sugerindo novas idéias e assim por dian­
te, indefinidamente. Quando Claude Bernard descreve esse
método, quando dá exemplos dele, quando lembra as apli­
cações que dele fez, tudo o que ele expõe nos parece tão
simples e tão natural que aparentemente mal era preciso
dizê-lo: acreditamos tê-lo sempre sabido. É assim que o
retrato pintado por um grande mestre pode nos dar a ilu­
são de termos conhecido o modelo.
No entanto, longe está que, mesmo hoje, o método
de Claude Bernard seja sempre compreendido e pratica­
do como deveria sê-lo. Cinqüenta anos passaram sobre
A FILOSOFIA DE CLAUDE BERNARD 237

sua obra; nunca deixamos de lê-la nem de admirá-la: te­


remos nós extraído dela o ensinamento que contém?
Um dos resultados mais claros dessa análise deveria
ser o de nos ensinar que não há diferença entre uma ob­
servação bem feita e uma generalização bem fundada.
Com excessiva freqüência ainda nos representamos a ex­
periência como destinada a nos trazer fatos brutos: a in­
teligência, apoderando-se desses fatos, aproximando-os
uns dos outros, elevar-se-ia assim a leis cada vez mais al­
tas. Generalizar seria portanto uma função, observar se­
ria outra. Nada mais falso do que essa concepção do tra­
balho de síntese, nada mais perigoso para a ciência e para
a filosofia. Essa concepção levou a crer que havia um in­
teresse científico em juntar fatos por nada, pelo prazer,
em anotá-los preguiçosamente e mesmo passivamente,
esperando a vinda de um espírito capaz de dominá-los e
de submetê-los a leis. Como se uma observação científi­
ca não fosse sempre a resposta para uma questão, preci­
sa ou confusa! Como se observações anotadas passiva­
mente umas depois das outras não fossem apenas res­
postas descosturadas para questões colocadas ao acaso!
Como se o trabalho de generalização consistisse em vir,
post factum, encontrar um sentido plausível para esse dis­
curso incoerente! A verdade é que o discurso deve ter de
imediato um sentido, ou então nunca terá nenhum. Sua
significação poderá mudar à medida que aprofundarmos
mais os fatos, mas é preciso que comece por ter uma sig­
nificação. Generalizar não é utilizar, para não sei que tra­
balho de condensação, fatos já colhidos, já anotados: a
síntese é algo inteiramente diferente. É menos uma ope­
ração especial do que uma certa força de pensamento, a
capacidade de penetrar no interior de um fato que adivi­
nhamos ser significativo e no qual encontraremos a ex­
plicação de um número indefinido de fatos. Numa pala­
238 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE

vra, o espírito de síntese é apenas uma potência mais alta


do espírito de análise.
Essa concepção do trabalho de investigação científi­
ca diminui singularmente a distância entre o mestre e o
aprendiz. Já não nos permite mais distinguir duas catego­
rias de investigadores, uns que fariam um trabalho bra-
çal, outros que teriam por missão inventar. A invenção
deve estar por toda parte, até mesmo na mais humilde
investigação de fato, até mesmo na experiência mais sim­
ples. Ali onde não há um esforço pessoal e mesmo origi­
nal, não há nem mesmo um começo de ciência. Tal é a
grande máxima pedagógica que se desprende da obra de
Claude Bernard.
Aos olhos do filósofo, ela contém ainda outra coisa:
uma certa concepção da verdade e, por conseguinte, uma
filosofia.
Quando falo da filosofia de Claude Bernard, não me
refiro a essa metafísica da vida que acreditaram encon­
trar em seus escritos e que talvez estivesse bastante lon­
ge de suas preocupações. A bem dizer, discutiu-se mui­
to a seu respeito. Alguns, invocando os trechos em que
Claude Bernard critica a hipótese de um "princípio vital",
pretenderam que, na vida, ele não via nada além de um
conjunto de fenômenos físicos e químicos. Outros, refe­
rindo-se a essa "idéia organizadora e criadora" que, se­
gundo o autor, preside aos fenômenos vitais, querem que
ele tenha distinguido radicalmente a matéria viva da ma­
téria bruta, atribuindo assim à vida uma causa indepen­
dente. Segundo outros ainda, por fim, Claude Bernard
teria oscilado entre as duas concepções, ou ainda teria
partido da primeira para chegar progressivamente à se­
gunda. Releiam atentamente a obra do mestre: não en­
contrarão, acredito, nem essa afirmação, nem essa nega­
A FILOSOFIA DE CLAUDE BERNARD 239

ção, nem essa contradição. Claude Bernard levantou-se


muitas vezes contra a hipótese de um "princípio vital";
mas, sempre que o faz, visa expressamente o vitalismo
superficial dos médicos e dos fisiologistas que afirmavam
a existência, no ser vivo, de uma força capaz de lutar con­
tra as forças físicas e de contrariar sua ação. Era o tempo
em que se pensava correntemente que a mesma causa,
operando nas mesmas condições sobre o mesmo ser
vivo, não produzia sempre o mesmo efeito. Havia que
contar, dizia-se, com o caráter caprichoso da vida. O pró­
prio Magendie, que tanto contribuiu para fazer da fisio-
logia uma ciência, ainda acreditava numa certa indeter-
minação do fenômeno vital. Para todos aqueles que fa­
lam assim, Claude Bernard responde que os fatos fisio­
lógicos estão submetidos a um determinismo inflexível,
tão rigoroso quanto aquele dos fatos físicos ou químicos:
e mesmo, dentre as operações que se efetuam na máqui­
na animal, não há nenhuma que não deva um dia ser ex­
plicada pela física e pela química. Eis quanto ao princípio
vital. Mas transportemo-nos agora para a idéia organiza­
dora e criadora. Descobriremos que, sempre que se trata
dela, Claude Bernard investe contra aqueles que se recusa­
riam a ver na fisiologia uma ciência especial, distinta da fí­
sica e da química. As qualidades, ou antes, as disposições
de espírito que fazem o fisiologista não são idênticas, se­
gundo ele, àquelas que fazem o químico e o físico. Não é fi­
siologista aquele que não tem o sentido da organização,
isto é, dessa coordenação especial das partes com o todo
que é característica do fenômeno vital. Num ser vivo, tu­
do se passa como se interviesse uma certa "idéia" que dá
conta da ordem na qual se agrupam os elementos. Essa
idéia não é, aliás, uma força, mas simplesmente um prin­
240 O PENSAMENTO E O MOVENTE

cípio de explicação: caso trabalhasse efetivamente, ca­


so pudesse, num aspecto qualquer, contrariar o jogo das
forças físicas e químicas, não haveria mais fisiologia ex­
perimental. O fisiologista não deve apenas levar em con­
sideração essa idéia organizadora no estudo que ele ins­
titui dos fenômenos da vida: deve ainda, segundo Claude
Bernard, lembrar-se de que os fatos dos quais se ocupa
têm por palco um organismo já construído e de que a cons­
trução desse organismo ou, como ele diz, a "criação" é
uma operação de uma ordem inteiramente diferente. De­
certo, ao insistir na distinção bem nítida estabelecida por
Claude Bernard entre a construção da máquina e sua des­
truição ou seu desgaste, entre a máquina e o que nela ocor­
re, desembocaríamos sem dúvida na restauração, sob uma
outra forma, do vitalismo que ele combateu; mas ele não
o fez, e preferiu não se pronunciar sobre a natureza da vi­
da, como, aliás, tampouco se pronuncia sobre a constitui­
ção da matéria; põe de lado assim a questão da relação de
uma com a outra. A bem dizer, quer ataque a hipótese do
"princípio vital", quer recorra à "idéia diretriz", em ambqs
os casos está exclusivamente preocupado em determinar
as condições da fisiologia experimental. Procura definir
menos a vida do que a ciência da vida. Defende a fisiolo­
gia, tanto contra aqueles que acreditam ser o fato fisiológi­
co fugidio demais para se prestar à experimentação quan­
to contra aqueles que, ao mesmo tempo em que o julgam
acessível às nossas experiências, não distinguem essas ex­
periências daquelas da física ou da química. Aos primeiros,
responde que o fato fisiológico é regido por um determi­
nismo absoluto e que a fisiologia, por conseguinte, é uma
ciência rigorosa; aos segundos, que a fisiologia tem suas
leis próprias e seus métodos próprios, distintos dos da fí-
A FILOSOFIA DE CLAUDE BERNARD 241

sica e da química, e que a fisiologia, por conseguinte, é uma


ciência independente.
Mas, se Claude Bernard não nos deu e não nos quis
dar uma metafísica da vida, há, presente no conjunto de
sua obra, uma certa filosofia geral, cuja influência será
provavelmente mais duradoura e mais profunda do que
o poderia ter sido qualquer teoria particular.
Por muito tempo, com efeito, os filósofos considera­
ram a realidade como um todo sistemático, como um
grande edifício que, a rigor, poderiamos reconstruir pelo
pensamento com os exclusivos recursos do raciocínio,
ainda que, de fato, precisemos pedir ajuda à observação
e à experiência. A natureza seria portanto um conjunto
de leis inseridas umas nas outras segundo os princípios
da lógica humana; e essas leis estariam aí, já prontas, in­
teriores às coisas; o esforço científico e filosófico consis-
tiria em desentranhá-las raspando, um por um, os fatos
que as recobrem, como se põe a nu um monumento
egípcio retirando a golpes de pá a areia do deserto. Con­
tra essa concepção dos fatos e das leis, a obra inteira de
Claude Bernard protesta. Bem antes que os filósofos ti­
vessem insistido no que pode haver de convencional e
de simbólico na ciência humana, ele o percebeu, ele me­
diu o afastamento entre a lógica do homem e a da natu­
reza. Se, segundo ele, nunca se terá prudência excessiva
na verificação de uma hipótese, nunca teremos posto au­
dácia suficiente em inventá-la. O que é absurdo a nossos
olhos não o é necessariamente do ponto de vista da na­
tureza: tentemos a experiência e, caso a hipótese se veri­
fique, de um modo ou de outro ela se tornará inteligível
e clara à medida que os fatos nos obrigarem a nos fami­
liarizar com ela. Mas lembremo-nos também de que
uma idéia, por mais flexível que a tenhamos feito, nunca
242 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

terá a mesma flexibilidade que as coisas. Estejamos por­


tanto prontos a abandoná-la por uma outra, que irá cer­
car a experiência ainda mais de perto. "Nossas idéias, di­
zia Claude Bernard, são apenas instrumentos intelec­
tuais que nos servem para penetrar nos fenômenos; é
preciso mudá-las quando cumpriram sua missão, como
trocamos um bisturi cego quando serviu por muito tem­
po." E acrescentava: "Essa fé excessivamente grande no
raciocínio, que leva um fisiologista a uma falsa simplifi­
cação das coisas, prende-se à ausência do sentimento da
complexidade dos fenômenos naturais." Dizia ainda:
"Quando fazemos uma teoria geral em nossas ciências,
a única coisa de que estamos certos é de que todas essas
teorias são falsas, falando absolutamente. Não são mais
que verdades parciais e provisórias, que nos são necessá­
rias como os degraus sobre os quais descansamos para
avançar na investigação." E retomava esse tópico quan­
do falava de suas próprias teorias: "Elas serão mais tarde
substituídas por outras, que representarão um estágio
mais avançado da questão, e assim por diante. As teorias
são como os degraus sucessivos que a ciência sobe alar­
gando seu horizonte." Mas nada mais significativo do
que as palavras com as quais se abre um dos últimos pa­
rágrafos da Introduction à la médecine expérimentale: "Um
dos maiores obstáculos que se encontram nessa marcha
geral e livre dos conhecimentos humanos é a tendência
que leva os diversos conhecimentos a se individualiza­
rem em sistemas... Os sistemas tendem a escravizar o es­
pírito humano... É preciso procurar romper os grilhões
dos sistemas filosóficos e científicos... A filosofia e a ciên­
cia não devem ser sistemáticas." A filosofia não deve ser
sistemática! Tratava-se de um paradoxo na época em que
Claude Bernard escrevia, época em que as pessoas, seja
A FILOSOFIA DE CLAUDE BERNARD 243

com vistas a justificar a existência da filosofia, seja com


vistas a proscrevê-la, tendiam a identificar o espírito filo­
sófico com o espírito de sistema. Era a verdade, no en­
tanto, e uma verdade da qual nos imbuiremos cada vez
mais à medida que se desenvolver efetivamente uma fi­
losofia capaz de seguir a realidade concreta em todas as
suas sinuosidades. Não assistiremos mais, então, a uma
sucessão de doutrinas, cada uma das quais, feita para pe­
gar ou largar, pretende encerrar a totalidade das coisas
em fórmulas simples. Teremos uma filosofia única, que
se edificará pouco a pouco ao lado da ciência e para a
qual todos aqueles que pensam trarão seu tijolo. Não di­
remos mais: "A natureza é una, e vamos buscar, dentre
as idéias que já possuímos, aquela na qual a poderemos
inserir." Diremos: "A natureza é o que ela é, e, uma vez
que nossa inteligência, que faz parte da natureza, é me­
nos vasta que ela, é duvidoso que alguma de nossas
idéias atuais seja larga o suficien te para abarcá-la. Traba­
lhemos portanto no sentido de dilatar nosso pensamen­
to; forcemos nosso entendimento; rebentemos, se preci­
so, nossos quadros; mas não pretendamos encolher a
realidade até a medida de nossas idéias, quando são as
nossas idéias que devem se modelar, aumentadas, pela
realidade." Eis o que diremos, eis o que procuraremos fazer.
Mas, avançando cada vez mais longe pela via que começa­
mos a trilhar, deveremos sempre nos lembrar que Claude
Bernard contribuiu para abri-la. É por isso que nunca lhe
seremos suficientemente gratos por aquilo que fez por
nós. E é por isso que saudamos nele, ao lado do fisiolo-
gista de gênio que foi um dos maiores experimentadores
de todos os tempos, o filósofo que terá sido um dos mes­
tres do pensamento contemporâneo.
CAPÍTULO VIII
SOBRE O PRAGMATISMO DE WILLIAM JAMES -
VERDADE E REALIDADE1

Como falar do pragmatismo após William James? E


o que poderiamos nós dizer a esse respeito que já não te­
nha sido dito e bem melhor dito, no livro cativante e en­
cantador do qual temos aqui a tradução fiel? Guardar-
nos-íamos de tomar a palavra, caso o pensamento de Ja­
mes não fosse, o mais das vezes, diminuído, ou alterado,
ou falseado pelas interpretações que dele nos são dadas.
Muitas idéias circulam, que arriscam se interpor entre o
leitor e o livro e verter uma obscuridade artificial sobre
uma obra que é a própria clareza.
Compreender-se-ia mal o pragmatismo de James
caso não se começasse por modificar a idéia que nor­
malmente nos fazemos da realidade em geral, Fala-se
do "mundo" ou do "cosmos"; e essas palavras, segundo
sua origem, designam algo simples, pelo menos algo bem
composto. Diz-se "o universo" e a palavra evoca uma
unificação possível das coisas. Podemos ser espiritua­

1. Esse ensaio foi redigido para servir de prefácio à obra de William


James sobre o Pragmatismo, trad. fr. E. Le Brun (Paris, Flammarion, 1911).
246 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

listas, materialistas, panteístas, como podemos ser indi­


ferentes à filosofia e satisfeitos com o senso comum: sem­
pre nos representamos um ou mais princípios simples,
pelos quais se explicaria o conjunto das coisas materiais
e morais.
É que nossa inteligência é aficionada por simplicida­
de. Ela economiza o esforço e quer que a natureza se te­
nha arranjado dc modo que só exija de nós, para ser pen­
sada, a mais pequena soma possível de trabalho. Brinda-se
então com o exato necessário em termos de elementos ou
de princípios para recompor com eles a série indefinida
dos objetos e dos acontecimentos.
Mas se, ao invés de reconstruir idealmente as coisas
para a maior satisfação de nossa razão, nos ativássemos
pura e simplesmente àquilo que a experiência nos dá,
pensaríamos e nos exprimiriamos de um modo inteira­
mente diferente. Enquanto nossa inteligência, com seus
hábitos de economia, se representa os efeitos como es­
tritamente proporcionados às suas causas, a natureza,
que é pródiga, põe na causa bem mais do que é exigido
para produzir o efeito. Enquanto nossa própria divisa é
Somente o necessário, a da natureza é Mais que o necessá­
rio - um excesso disso, um excesso daquilo, um excesso
de tudo. A realidade, tal como James a vê, é redundante
e superabundante. Entre essa realidade e aquela que os
filósofos reconstroem, creio que ele estabelecería a mes­
ma relação que entre a vida que vivemos todos os dias e
aquela que os atores nos representam, de noite, sobre o
palco. No teatro, cada um diz apenas o que precisa dizer
e faz apenas o que é preciso fazer; há cenas bem recor­
tadas; a peça tem um começo, um meio, um fim; e tudo
é disposto da forma mais parcimoniosa possível com vis­
tas a um desenlace que será feliz ou trágico. Mas, na vida,
SOBRE O PRAGMATISMO DE WILLIAM JAMES 247

diz-se um sem-fim de coisas inúteis, faz-se um sem-fim


de gestos supérfluos, realmente não há situações nítidas;
nada se passa tão simplesmente, nem tão completamen­
te, nem tão perfeitamente quanto gostaríamos; as cenas
sobrepõem-se umas às outras; as coisas não começam
nem acabam; não há desenlace inteiramente satisfatório,
nem gesto absolutamente decisivo, nem essas palavras
que retumbam e diante das quais nos detemos: todos os
efeitos são malogrados. Assim é a vida humana. E certa­
mente, aos olhos de James, assim também é a realidade
em geral.
Decerto, nossa experiência não é incoerente. Ao
mesmo tempo em que nos apresenta coisas e fatos, mos­
tra-nos parentescos entre as coisas e relações entre os fa­
tos: essas relações são tão reais, tão diretamente obser­
váveis, segundo William James, quanto as coisas e os fa­
tos eles próprios. Mas as relações são flutuantes e as coi­
sas são fluidas. Estamos longe desse universo seco que
os filósofos compõem com elementos bem recortados,
bem arranjados, e onde cada parte já não está mais ape­
nas conectada a uma outra parte, como nos assevera a
experiência, mas está também coordenada ao Todo, como
gostaria nossa razão.
O "pluralismo" de William James realmente não sig­
nifica coisa diferente. A antiguidade se representara um
mundo fechado, delimitado, finito: é uma hipótese, que
responde a algumas exigências de nossa razão. Os mo­
dernos pensam antes num infinito: é uma outra hipóte­
se, que satisfaz outras necessidades de nossa razão. Do
ponto de vista em que James se coloca, e que é o da ex­
periência pura ou do "empirismo radical", a realidade já
não aparece mais como finita nem como infinita, mas
simplesmente como indefinida. Ela flui, sem que possa­
248 O PENSAMENTO E O MOVENTE

mos dizer se é numa direção única, nem tampouco se é


sempre e por toda parte o mesmo rio que flui.
Nossa razão fica menos satisfeita. Sente-se menos à
vontade num mundo no qual não reencontra mais, como
que num espelho, sua própria imagem. E, sem dúvida al­
guma, a importância da razão humana vê-se diminuída.
Mas como a importância do próprio homem - do ho­
mem inteiro, vontade e sensibilidade tanto quanto inte­
ligência - ver-se-á aumentada!
Com efeito, o universo que nossa razão concebe é
um universo que ultrapassa infinitamente a experiência
humana, o próprio da razão sendo prolongar os dados
da experiência, estendê-los por via de generalização, en­
fim, fazer-nos conceber muito mais coisas do que jamais
perceberemos. Em semelhante universo, o homem está
destinado a fazer pouca coisa e a ocupar pouco espaço:
aquilo que ele concede à sua inteligência, ele o retira de
sua vontade. Sobretudo, tendo atribuído ao seu pensa­
mento o poder de tudo abarcar, é obrigado a representar-
se todas as coisas em termos de pensamento: não pode
pedir esclarecimentos às suas aspirações, aos seus dese- ’
jos, aos seus entusiasmos, acerca de um mundo no qual
tudo aquilo que lhe é acessível foi antecipadamente con­
siderado por ele como tradutível em idéias puras. Sua
sensibilidade não poderia iluminar sua inteligência, que
ele fez ser a própria luz.
A maior parte das filosofias encolhe portanto nossa
experiência do lado sentimento e vontade, ao mesmo
tempo em que a prolonga indefinidamente do lado pen­
samento. O que James nos pede é que não acrescente­
mos demais à experiência por meio de vistas hipotéticas,
é também que não a mutilemos naquilo que ela tem de
sólido. Só estamos inteiramente seguros daquilo que a
SOBRE O PRAGMATISMO DE WILLIAM JAMES 249

experiência nos dá; mas devemos aceitar a experiência


integralmente e nossos sentimentos fazem parte dela a
mesmo título que nossas percepções, a mesmo título, por
conseguinte, que as "coisas". Aos olhos de William Ja­
mes, o homem inteiro conta.
Conta mesmo muito num mundo que não o esma­
ga mais com sua imensidão. Causou espanto a impor­
tância que James atribui, num de seus livros2, à curiosa
teoria de Fechner, que faz da Terra um ser independen­
te, dotado de uma alma divina. E que ele via aí um meio
cômodo de simbolizar - talvez mesmo de expressar - seu
próprio pensamento. As coisas e os fatos dos quais nos­
sa experiência é composta constituem para nós um mun­
do humano3, conectado sem dúvida a outros, mas tão
afastado deles e tão perto de nós que devemos conside­
rá-lo, na prática, como bastando para o homem e bas-
tando-se a si mesmo. Com essas coisas e esses aconteci­
mentos nos consubstanciamos - nós, isto é, tudo o que
temos consciência de sermos, tudo o que experimenta­
mos. Os sentimentos poderosos que agitam a alma em
certos momentos privilegiados são forças tão reais quan­
to aquelas das quais o físico se ocupa; o homem não as
cria, como tampouco cria o calor ou a luz. Estamos imer­
sos, segundo James, numa atmosfera atravessada por gran­
des correntes espirituais. Se muitos dentre nós se retesam,
outros deixam-se levar. E há almas que se abrem de par

2. A Pluralistic Universe, Londres, 1909. Traduzido em francês, na


"Bibliothèque de Philosophie scientifique", sob o título de Philosophic de
I'experience.
3. De forma muito engenhosa, André Chaumeix assinalou seme­
lhanças entre a personalidade de James e a de Sócrates (Revt/e des deux
mondes, 15 de outubro de 1910). A preocupação de reconduzir o homem
para a consideração das coisas humanas tem ela própria algo de socrático.
250 O PENSAMENTO E O MOVENTE

em par para o sopro benfazejo. Estas são as almas místi­


cas. Sabe-se com que simpatia James as estudou. Quan­
do surgiu seu livro sobre a Experiência religiosa, muitos só
viram nele uma série de descrições muito vivas e análises
muito penetrantes - uma psicologia, diziam, do senti­
mento religioso. Que engano sobre o pensamento do au­
tor! A verdade é que James se debruçava sobre a alma
mística como nos debruçamos para fora, num dia de pri­
mavera, para sentir a carícia da brisa, ou como, na beira
do mar, acompanhamos as idas e vindas dos barcos e o
inflar de suas velas para saber de onde sopra o vento. As
almas que são tomadas pelo entusiasmo religioso são
verdadeiramente levantadas e transportadas: como dei­
xariam de nos permitir flagrar, como numa experiência
científica, a força que transporta e que levanta? Aí está
certamente a origem, aí está a idéia inspiradora do "prag­
matismo" de William James. As verdades que mais nos
importa conhecer são, para ele, verdades que foram sen­
tidas e vividas antes de serem pensadas4.
Desde sempre se disse que há verdades que são da
alçada do sentimento tanto quanto da razão; e desde
sempre também se disse que, ao lado das verdades que ’
encontramos feitas, outras há que ajudamos a fazer, que
dependem em parte de nossa vontade. Mas cabe notar
que, em James, essa idéia assume uma força e uma sig­
nificação novas. Ela desabrocha, graças à concepção da
realidade que é própria a esse filósofo, numa teoria geral
da verdade.

4. No belo estudo que consagrou a William James (Revue de mé-


taphysique et de morale, novembro de 1910), Émile Boutroux destacou o
sentido inteiramente particular do verbo inglês to experience "que signi­
fica, não constatar friamente uma coisa que se passa fora de nós, mas res­
sentir, sentir em si, viver tal ou tal maneira de ser...".
SOBRE 0 PRAGMATISMO DE WILLIAM JAMES 251

O que é um juízo verdadeiro? Chamamos verdadei­


ra a afirmação que concorda com a realidade. Mas em
que pode consistir essa concordância? Gostamos de ver
nela algo como a semelhança do retrato com o modelo:
a afirmação verdadeira seria aquela que copiaria a reali­
dade. Reflitamos, no entanto: veremos que é apenas em
casos raros, excepcionais, que essa definição do verda­
deiro encontra sua aplicação. O que é real, é tal ou tal fato
determinado efetuando-se em tal ou tal ponto do espa­
ço e do tempo, é algo singular, é mudança. Pelo contrá­
rio, a maior parte de nossas afirmações são gerais e im­
plicam uma certa estabilidade de seu objeto. Tomemos
uma verdade tão vizinha quanto possível da experiência,
esta por exemplo: "o calor dilata os corpos". Do que po­
deria ela ser a cópia? É possível, num certo sentido, co­
piar a dilatação de um corpo determinado em momen­
tos determinados, fotografando-a em suas diversas fa­
ses. E mesmo, por metáfora, posso ainda dizer que a afir­
mação "essa barra de ferro se dilata" é a cópia daquilo
que se passa quando assisto à dilatação da barra de fer­
ro. Mas uma verdade que se aplica a todos os corpos,
sem concernir especialmente a nenhum daqueles que eu
vi, não copia nada, não reproduz nada. Queremos, no
entanto, que ela copie algo e, desde sempre, a filosofia
procurou nos satisfazer a esse respeito. Para os filósofos
antigos, havia, acima do tempo e do espaço, um mundo
no qual tomavam assento, desde toda a eternidade, to­
das as verdades possíveis: as afirmações eram, para eles,
tanto mais verdadeiras quanto mais fielmente copiavam
essas verdades eternas. Os modernos fizeram a verdade
descer do céu para a terra; mas ainda veem nela algo
que preexistiria a nossas afirmações. A verdade seria de­
positada nas coisas e nos fatos: nossa ciência iria buscá-
la ali, retirá-la-ia de seu esconderijo, arrastá-la-ia para a
252 O PENSAMENTO E O MOVENTE

luz do dia. Uma afirmação tal como "o calor dilata os


corpos" seria uma lei que governa os fatos, que trona,
senão acima deles, pelo menos em meio a eles, uma lei
verdadeiramente contida em nossa experiência e que
nos limitaríamos a extrair. Mesmo uma filosofia como a
de Kant, que quer que toda verdade científica seja rela­
tiva ao espírito humano, considera as afirmações verda­
deiras como dadas antecipadamente na experiência hu­
mana: uma vez essa experiência organizada pelo pensa­
mento humano em geral, todo o trabalho da ciência
consistiría em fender o envoltório resistente dos fatos
no interior dos quais a verdade está alojada, como uma
noz cm sua casca.
Essa concepção da verdade é natural ao nosso espí­
rito e natural também à filosofia, porque é natural repre­
sentar-se a realidade como um todo perfeitamente coe­
rente e sistematizado, sustentado por uma armação lógi­
ca. Essa armação seria a própria verdade; nossa ciência
não faria mais que reencontrá-la. Mas a experiência pura
e simples nada nos diz de semelhante, e James atém-sc
à experiência. A experiência apresenta-nos um fluxo de
fenômenos: se tal ou tal afirmação relativa a um deles
nos permite dominar aqueles que o seguirão, ou mesmo
simplesmente prevê-los, dizemos acerca dessa afirmação
que ela é verdadeira. Uma proposição tal como "o calor
dilata os corpos", proposição sugerida pela vista da dila-
tação de um certo corpo, faz com que prevejamos como
outros corpos se comportarão em presença do calor; aju­
da-nos a passar de uma experiência antiga para expe­
riências novas; é um fio condutor, nada mais. A realida­
de flui; nós fluímos com ela; e chamamos verdadeira toda
afirmação que, ao nos dirigir através da realidade mo­
vente, nos dá domínio sobre ela e nos coloca em melho­
res condições para agir.
SOBRE 0 PRAGMATISMO DE WILLIAM JAMES 253

Vê-se a diferença entre essa concepção da verdade e


a concepção tradicional. De ordinário, define-se o verda­
deiro por sua conformidade àquilo que já existe; James
define-o por sua relação àquilo que ainda não existe. O
verdadeiro, segundo William James, não copia algo que
foi ou que c: anuncia o que será, ou antes, prepara nos­
sa ação sobre aquilo que será. A filosofia tem uma ten­
dência natural a querer que a verdade olhe para trás: em
James ela olha para frente.
De modo mais preciso, as outras doutrinas fazem da
verdade algo anterior ao ato bem determinado do ho­
mem que a formula pela primeira vez. Este foi o primei­
ro a vê-la, dizemos, mas ela o esperava, como a América
esperava Cristóvão Colombo. Algo a escondia de todos
os olhares e, por assim dizer, a cobria: ele a descobriu. -
Inteiramente diferente é a concepção de William James.
Ele não nega que a realidade seja independente, em gran­
de parte pelo menos, daquilo que dizemos ou pensamos
a seu respeito; mas a verdade, que só pode prender-se
àquilo que afirmamos da realidade, parece-lhe ter sido
criada por nossa afirmação. Inventamos a verdade para
utilizar a realidade, como criamos dispositivos mecâni­
cos para utilizar as forças da natureza. Poderiamos, ao que
me parece, resumir todo o essencial da concepção prag-
matista da verdade numa fórmula como esta: enquanto
para as outras doutrinas uma verdade nova é uma descober­
ta, para, o pragmatismo é uma invenção5.
Não se segue daí que a verdade seja arbitrária. Uma
invenção mecânica só vale por sua utilidade prática. Do

5. Não tenho certeza de que James tenha empregue a palavra "in­


venção", nem que ele tenha explicitamente comparado a verdade teó­
rica com um dispositivo mecânico; mas creio que essa aproximação é
conforme ao espírito da doutrina e que pode nos ajudar a compreender
o pragmatismo.
254 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE

mesmo modo, uma afirmação, para ser verdadeira, deve


aumentar nosso comando sobre as coisas. Nem por isso
deixa de ser a criação de um certo espírito individual, e
preexistia tão pouco ao esforço desse espírito quanto o
fonógrafo, por exemplo, preexistia a Edison. Sem dúvida,
o inventor do fonógrafo precisou estudar as proprieda­
des do som, que é uma realidade. Mas sua invenção veio
acrescentar-se a essa realidade como uma coisa absolu­
tamente nova, que talvez nunca se tivesse produzido caso
ele não tivesse existido. Assim, uma verdade, para ser
viável, deve ter sua raiz em realidades; mas essas realida­
des são apenas o terreno sobre o qual essa verdade cres­
ce, e outras flores poderíam igualmente ter ali crescido
caso o vento houvesse trazido outras sementes.
A verdade, segundo o pragmatismo, fez-se portanto
pouco a pouco, graças aos aportes individuais de um
grande número de inventores. Se esses inventores não
tivessem existido, se tivesse havido outros em. seu lugar,
teríamos um corpo de verdades inteiramente diferente.
A realidade teria evidentemente permanecido o que ela
é, ou mais ou menos; mas outras teriam sido as estradas
que nela teríamos traçado para a comodidade de nossa
circulação. E não se trata aqui apenas das verdades cien- ’
tíficas. Não podemos construir uma frase, não podemos
mais, hoje, nem sequer pronunciar uma palavra sem
aceitar certas hipóteses que foram criadas por nossos an­
cestrais e que poderíam ter sido muito diferentes daqui­
lo que são. Quando digo: "meu lápis acaba de cair em­
baixo da mesa", não enuncio decerto um fato de expe­
riência, pois o que a vista e o tato me mostram é simples­
mente que minha mão se abriu e deixou escapar o que
segurava: o bebê preso à sua cadeira, que vê cair o obje­
to com o qual brinca, provavelmente não se figura que
esse objeto continue a existir; ou antes, não tem a idéia
SOBRE 0 PRAGMATISMO DE WILLIAM JAMES 255

nítida de um "objeto", isto é, de algo que subsiste, invariá­


vel e independente, através da diversidade e da mobilidade
das aparências que passam. O primeiro que se aventurou
a acreditar nessa invariabilidade e nessa independência
fez uma hipótese: é essa hipótese que adotamos corrente­
mente todas as vezes que empregamos um substantivo,
todas as vezes que falamos. Nossa gramática teria sido
outra, teriam sido outras as articulações de nosso pensa­
mento, se a humanidade, ao longo de sua evolução, tives­
se preferido adotar hipóteses de outro gênero.
A estrutura de nosso espírito é portanto em grande
parte obra nossa ou, pelo menos, obra de alguns dentre
nós. Aí está, ao que me parece, a tese mais importante do
pragmatismo, ainda que não tenha sido explicitamente
deslindada. É por esse lado que o pragmatismo continua
o kantismo. Kant havia dito que a verdade depende da
estrutura geral do espírito humano. O pragmatismo acres­
centa ou, pelo menos, implica que a estrutura do espíri­
to humano é o efeito da livre iniciativa de um certo nú­
mero de espíritos individuais.
Isso não quer dizer, mais uma vez, que a verdade de­
penda de cada um de nós: seria o mesmo que acreditar
que cada um de nós podería inventar o fonógrafo. Mas
isso quer dizer que, das diversas espécies de verdade,
aquela que está mais próxima de coincidir com seu obje­
to não é a verdade científica, nem a verdade do senso co­
mum, nem, mais geralmente, a verdade de ordem inte­
lectual. Toda verdade é uma estrada traçada através da
realidade; mas, dentre essas estradas, algumas há às quais
poderiamos ter dado uma direção muito diferente caso
nossa atenção se tivesse orientado num sentido diferen­
te ou caso tivéssemos visado um outro tipo de utilida­
de; há outras, pelo contrário, cuja direção está marca­
256 O PENSAMENTO E O MOVENTE

da pela própria realidade: que correspondem, se assim


se pode dizer, a correntes de realidade. Sem dúvida, es­
tas ainda dependem de nós em certa medida, pois somos
livres para resistir à corrente ou para segui-la e, mesmo
que a sigamos, podemos infleti-la diversamente, estan­
do associados ao mesmo tempo que submetidos à for­
ça que nela se manifesta. Nem por isso é menos verda­
de que essas correntes não foram criadas por nós; são par­
te integrante da realidade. O pragmatismo acaba assim
por interverter a ordem na qual temos o costume de co­
locar as diversas espécies de verdade. Afora as verdades
que traduzem sensações brutas, seriam as verdades de
sentimento que deitariam na realidade as raízes mais
profundas. Se conviermos em dizer que toda verdade é
uma invenção, caberá, creio, para permanecer fiel ao
pensamento de William James, estabelecer entre as ver­
dades de sentimento e as verdades científicas o mesmo
gênero de diferenças que entre o barco a vela, por exem­
plo, e o barco a vapor: ambos são invenções humanas;
mas o primeiro só concede ao artifício um quinhão mo­
desto, toma a direção do vento e torna sensível aos olhos
a força natural que utiliza; no segundo, pelo contrário, é
o mecanismo artificial que recebe a maior cota; retoma a
força que põe em ação e confere-lhe uma dirdção que
nós mesmos escolhemos.
A definição da verdade que James oferece, portanto,
consubstancia-se com sua concepção da realidade. Se a
realidade não é esse universo econômico e sistemático
que nossa lógica gosta de se representar, se ela não é sus­
tentada por uma armação de intelectualidade, a verdade
de ordem intelectual é uma invenção humana que tem
por efeito antes utilizar a realidade do que nela nos in­
troduzir. E se a realidade não forma um conjunto, se ela
SOBRE O PRAGMATISMO DE WILLIAM jAMES 257

é múltipla e móvel, feita de correntes que se entrecruzam,


a verdade que nasce de uma tomada de contato com al­
guma dessas correntes - verdade sentida antes de ser con­
cebida - é mais capaz que a verdade simplesmente pen­
sada de apreender e armazenar a própria realidade.
É portanto finalmcnte essa teoria da realidade que
deveria ser visada primeiro por uma crítica do pragma­
tismo. Pode-se levantar objeções contra ela - e nós mes­
mos teríamos certas reservas no que lhe diz respeito;
ninguém lhe contestará a profundidade e a originalida­
de. Ninguém tampouco, após ter examinado de perto a
concepção da verdade que a ela se vincula, desconhece­
rá sua elevação moral. Disse-se que o pragmatismo de
James não era mais que uma forma do ceticismo, que re­
baixava a verdade, que a subordinava à utilidade mate­
rial, que desaconselhava, que desencorajava a investiga­
ção científica desinteressada. Uma tal interpretação não
ocorrerá nunca àqueles que lerem atentamente a obra. E
surpreenderá profundamente aqueles que tiveram a feli­
cidade de conhecer o homem. Ninguém amou a verda­
de com mais ardente amor. Ninguém a procurou com
mais paixão. Uma imensa inquietude o levantava; e, de
ciência em ciência, da anatomia e da fisiologia para a psi­
cologia, da psicologia para a filosofia, ele ia, debruçado
nos grandes problemas, despreocupado do resto, esque­
cido de si mesmo. Por toda sua vida, observou, experi­
mentou, meditou. E, como se não tivesse feito já o bas­
tante, ainda sonhava, ao adormecer em seu último sono,
sonhava com experiências extraordinárias e com esfor­
ços mais que humanos pelos quais pudesse continuar,
até para além da morte, a trabalhar conosco para o maior
bem da ciência, para a maior glória da verdade.
CAPÍTULO IX
A VI DA E A OBRA DE RAVAISSON1

Jean-Gaspard-Félix Laché Ravaisson nasceu no dia


23 de outubro de 1813 em Namur, então cidade france­
sa, capital do departamento de Sambre-et-Meuse. Seu
pai, tesoureiro pagador nessa cidade, era originário do
Midi*; Ravaisson ecTnome de uma pequena gleba situa­
da nas redondezas de Caylus, não longe de Montauban.
A criança mal tinha um ano quando os acontecimentos
de 1814 forçaram a família a deixar Namur. Pouco tem­
po depois, perdia seu pai. Sua primeira educação foi su­

1. Essa nota sobre A vida e as obras de Félix Ravaisson-Mollien foi


publicada nos Comptes rendas de I’Academic des sciences morales et politiques,
1904,1.1, p. 686, após ter sido lida nessa Academia pelo autor, que suce­
dia a Ravaisson. Foi reeditada como introdução a Félix Ravaisson, Testa­
ment et fragments, volume publicado em 1932 por Ch. Devivaise. Jac­
ques Chevalier, membro do Comitê de publicação da coleção na qual era
publicado o volume, havia feito preceder a nota por estas palavras: O au­
tor havia de início cogitado trazer-lhe alguns retoques. Depois, decidiu-se por ree­
ditar estas páginas tais e quais, embora ainda estejam expostas, diz-nos ele, ao re-
proche que lhe foi feito de ter "bergsonificado" um tanto Ravaisson. Mas esse tal­
vez fosse, acrescenta Bergson, o único meio de esclarecer o assunto, prolongando-o.
* A região do sul da França. (N. do T.)
260 O PENSAMENTO E O MOVENTE

pervisionada por sua mãe e também por seu tio mater­


no, Gaspard-Théodore Mollien, do qual mais tarde assu­
miu o nome. Numa carta datada de 1821, Mollien escre­
ve acerca de seu pequeno sobrinho, então com oito anos
de idade: "Félix é um Matemático completo, um antiquá-
rio, um historiador, enfim, tudo."2 Já se revelava na crian­
ça uma qualidade intelectual à qual iriam se juntar mui­
tas outras, a facilidade.
Fez seus estudos no colégio Rollin. Gostaríamos de
tê-lo seguido de classe cm classe, mas os arquivos do co­
légio nada conservaram desse período. As listas de pre-
miações ensinam-nos, todavia, que o jovem Ravaisson
entrou em 1825 no secundário, que deixou o colégio em
1832 e que, de uma ponta à outra de seus estudos, foi um
aluno brilhante. Levou vários prêmios no concurso geral,
notadamente, em 1832, o prêmio de honra de filosofia.
Seu professor de filosofia foi Poret, um mestre notável,
discípulo dos filósofos escoceses, dos quais traduziu al­
gumas obras, muito apreciado por Cousin, que o tomou
como adjunto na Sorbonne. Ravaisson continuou sem­
pre apegado a seu antigo mestre. Pudemos ler, religiosa­
mente conservadas na família de Poret, algumas das dis­
sertações que o aluno Ravaisson compôs na classe de
filosofia3; tivemos acesso, na Sorbonne, à dissertação so-

2. Extraímos esse detalhe, como vários outros, da nota muito in­


teressante que Louis Leger leu na Académie des Inscriptions et Belles-
lettres, no dia 14 de junho de 1901.
Devemos diversas informações biográficas à amabilidade dos
dois filhos de Ravaisson: Louis Ravaisson-Mollien, bibliotecário na bi­
blioteca Mazarine e Charles Ravaisson-Mollien, conservador adjunto no
museu do Louvre.
3. Devemo-lo, assim como vários detalhes biográficos interessan­
tes, aos dois netos de Poret, também professores eminentes da Univer­
sidade, Henri e Marcei Bernès.
/I VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 26 I

bre "o método em filosofia" que obteve o prêmio de hon­


ra em 1832. São os trabalhos de um aluno dócil e inteli­
gente, que seguiu um curso bem ministrado. Aqueles que
ali procurassem a marca própria de Ravaisson e os pri­
meiros indícios de uma vocação filosófica nascente expe­
rimentariam algum desapontamento. Tudo nos leva a su­
por que o jovem Ravaisson saiu do colégio sem preferên­
cia marcada pela filosofia, sem ter percebido claramente
qual era o seu caminho. Foi esta Academia que lhe apon­
tou esse caminho.
O édito real de 26 de outubro de 1832 acabava de
restabelecer a Academic des Sciences morales et politi-
ques. Por sugestão de Cousin, a Academia havia escolhi­
do para o concurso o estudo da Metafísica de Aristóteles.
"Os concorrentes, dizia o programa, deverão explicar essa
obra por meio de uma áhálise extensiva e determinar-lhe
o plano - retraçar sua história, assinalar sua influência so­
bre os sistemas ulteriores identificar e discutir a parte de
erro e a parte de verdade que nela se encontram, quais
são as idéias que ainda hoje se mantêm e quais pode­
ríam entrar de forma útil na filosofia de nosso século."
Foi provavelmente com base no conselho de seu antigo
professor de filosofia que Ravaisson decidiu concorrer.
Sabe-se como esse concurso, o primeiro que tenha sido
promovido pela Academia reconstituída, deu os mais bri­
lhantes resultados, como nove dissertações foram apre­
sentadas, a maior parte das quais tinha algum mérito e
três das quais foram julgadas superiores, como a Acade­
mia conferiu o prêmio a Ravaisson e pediu ao ministro
que financiasse um prêmio suplementar para o filósofo
Michelet de Berlim, como Ravaisson refundiu sua disser­
tação, estendeu-a, alargou-a, aprofundou-a, fez dela um
livro admirável. Do Essai sur la métaphysique d'Aristote
262 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

[Ensaio sobre a metafísica de Aristóteles], o primeiro vo­


lume veio a lume já em 1837, o segundo só foi publicado
nove anos mais tarde. Dois outros volumes anunciados
nunca vieram a lume; mas, tal como a temos, a obra é uma
exposição completa da metafísica de Aristóteles e da in­
fluência que exerceu sobre a filosofia grega.
Aristóteles, gênio sistemático entre todos, não edifi-
cou um sistema. Procede antes por análise do que por
síntese de conceitos. Seu método consiste em tomar as
idéias armazenadas na linguagem, emendá-las ou reno­
vá-las, circunscrevê-las numa definição, recortar-lhes a
extensão e a compreensão segundo suas articulações na­
turais, levar tão longe quanto possível seu desenvolvi­
mento. E mesmo assim é raro que Aristóteles efetue esse
desenvolvimento de um só golpe: volta ao mesmo assun­
to por diversas vezes, em tratados diferentes, trilhando
de novo o mesmo caminho, avançando sempre um pou­
co mais longe. Quais são os elementos implicados no
pensamento ou na existência? O que é a matéria, a for­
ma, a causalidade, o tempo, o lugar, o movimento? Em
todos esses pontos, e noutros cem, ele escavou o solo; de
cada um deles, fez partir uma galeria subterrânea que ele
levou adiante como um engenheiro que cavasse um tú­
nel imenso atacando-o simultaneamente a partir de um
grande número de pontos. E, decerto, sentimos perfeita -
mente que as medidas foram tomadas e os cálculos efe­
tuados para que tudo se reunisse; mas a junção nem sem­
pre se realiza e, com freqüência, entre os pontos que nos
pareciam próximos de se tocarem, quando já nos jactá-
vamos de termos apenas que retirar algumas pás de areia,
encontramos o tufo e a rocha. Ravaisson não se deteve
diante de nenhum obstáculo. A metafísica que nos expõe
no final de seu primeiro volume é a doutrina de Aristó-
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 263

teles unificada e reorganizada. Expõe essa metafísica nu­


ma língua que criou para ela, na qual a fluidez das ima­
gens deixa transparecer a idéia nua, na qual as abstra­
ções se animam e vivem como viveram no pensamento
de Aristóteles. Pôde-se contestar a exatidão material de
algumas de suas traduções; levantaram-se dúvidas sobre
algumas de suas interpretações; perguntou-se, sobretu­
do, se o papel do historiador seria realmente o de levar a
unificação de uma doutrina mais longe do que o quis fa­
zer o mestre e se, ao reajustar tão bem as peças e ao aper­
tar tão forte sua engrenagem, não se correría o risco de
deformar algumas delas. Nem por isso é menos verdade
que nosso espírito exige essa unificação, que a empresa
deveria ser tentada e que ninguém, depois de Ravaisson,
ousou retomá-la.
O segundo volume do Essai é ainda mais ousado. Na
comparação que institui entre a doutrina de Aristóteles e
o pensamento grego em geral, é a própria alma do aris-
totelismo que Ravaisson procura desentranhar.
A filosofia grega, diz ele, explicou primeiro todas as
coisas por um elemento material, a água, o ar, o fogo ou
certa matéria indefinida. Dominada pela sensação, como
ocorre a princípio com a inteligência humana, não co­
nheceu outra intuição além da sensível, nenhum outro
aspecto das coisas além da sua materialidade.Vieram en­
tão os pitagóricos e os platônicos, que mostraram a in­
suficiência das explicações apenas pela matéria e toma­
ram como princípios os Números e as Idéias. Mas o pro­
gresso foi mais aparente do que real. Com os números
pitagóricos, com as idéias platônicas, estamos na abstra­
ção e, por mais engenhosa que seja a manipulação à qual
submetemos esses elementos, permanecemos no abs­
trato. A inteligência, maravilhada pela simplificação que
traz para o estudo das coisas ao agrupá-las sob idéias ge­
264 O PENSAMENTO E O MOVENTE

rais, imagina sem dúvida penetrar por meio delas até à


própria substância de que são feitas as coisas. À medida
que vai mais longe na série das generalidades, acredita
erguer-se mais alto na escala das realidades. Mas o que
ela toma por uma espiritualidade mais alta não é mais
que a rarefação crescente do ar que respira. Não vê que,
quanto mais uma idéia é geral, tanto mais é abstrata e
vazia e que, de abstração em abstração, de generalidade
em generalidade, nos encaminhamos para o puro nada.
Ainda seria melhor ater-se aos dados dos sentidos, que
certamente só nos entregavam uma parte da realidade,
mas que nos deixavam pelo menos no terreno sólido do
real. Poder-se-ia tomar um partido inteiramente diferen­
te. Seria prolongar a visão do olho por uma visão do es­
pírito. Seria, sem deixar o domínio da intuição, isto é, das
coisas reais, individuais, concretas, procurar sob a intui­
ção sensível uma intuição intelectual. Seria, por um po­
deroso esforço de visão mental, fender o envoltório ma­
terial das coisas e ir ler a fórmula, invisível para o olho,
que sua materialidade desenrola e manifesta. Revelar-
se-ia então a unidade que conecta todos os seres uns aos
outros, a unidade de um pensamento que, da matéria
bruta à planta, da planta ao animal, do animal ao homem,
vemos contrair-se sobre sua própria substância até que,
de concentração em concentração, desemboquemos no
pensamento divino, que pensa todas as coisas ao pensar-
se a si mesmo. Tal foi a doutrina de Aristóteles. Tal é a
disciplina intelectual cia qual ele forneceu a regra e o
exemplo. Nesse sentido, Aristóteles é o fundador da me­
tafísica e o iniciador de um certo método de pensar que
é a própria filosofia.
Grande e importante idéia! Sem dúvida, poder-se-á
contestar, do ponto de vista histórico, alguns dos desen­
volvimentos que o autor lhe dá. Talvez Ravaisson olhe por
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 2(0

vezes Aristóteles através dos Alexandrinos, aliás tão for­


temente impregnados de aristotelismo. Talvez também
tenha levado um pouco longe demais, a ponto de con­
vertê-la numa oposição radical, a diferença freqüente­
mente leve e superficial, para não dizer verbal, que sepa­
ra Aristóteles de Platão. Mas, se Ravaisson tivesse dado
plena satisfação aos historiadores da filosofia acerca des­
ses pontos, teríamos perdido com isso, sem dúvida, o que
há de mais original e de mais profundo em sua doutrina.
Pois a oposição que ele estabelece aqui entre Platão e
Aristóteles é a distinção que ele não cessou de fazer, du­
rante toda sua vida, entre o método filosófico que ele
toma por definitivo e aquele que, segundo ele, é apenas
uma sua contrafação. A idéia que ele põe no fundo do
aristotelismo é exataiúentc aquela que inspirou a maior
parte de suas meditações. Através de sua obra inteira
ressoa esta afirmação de que, ao invés de diluir seu pen­
samento no geral, o filósofo deve concentrá-lo no in­
dividual.
Tomem-se, por exemplo, todos os matizes do arco-
íris, os do violeta e do azul, os do verde, do amarelo c do
vermelho. Não acreditamos trair a idéia mestra de Ra­
vaisson ao dizer que haveria duas maneiras de determi­
nar o que estes têm em comum e, por conseguinte, filo­
sofar sobre eles. A primeira consistiría simplesmente em
dizer que são cores. A idéia abstrata e geral de cor torna-
se assim a unidade à qual a diversidade dos matizes é re­
duzida. Mas essa idéia geral de cor, só a obtemos apagan­
do do vermelho o que faz dele vermelho, do azul aquilo
que faz dele azul, do verde aquilo que faz dele verde; só
podemos defini-la dizendo que não representa nem ver­
melho, nem azul, nem verde; é uma afirmação feita de
negações, uma forma que circunscreve um vazio. A isso
266 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

se atém o filósofo que permanece no abstrato. Por via de


generalização crescente, acredita encaminhar-se para a
unificação das coisas: é que ele procede por extinção gra­
dual da luz que fazia sobressaírem as diferenças entre os
coloridos, e acaba por confundi-los entre si numa obscuri­
dade comum. Inteiramente diferente é o método de uni­
ficação verdadeira. Este consistiría aqui em tomar os mil
matizes do azul, do violeta, do verde, do amarelo, do ver­
melho e, fazendo-os atravessar uma lente convergente,
conduzi-los para um mesmo ponto. Então aparecería em
todo seu fulgor a pura luz branca, aquela que, percebida
cá de baixo nos matizes que a dispersam, encerrava lá
em cima, em sua unidade indivisa, a diversidade inde­
finida dos raios multicores. Então se revelaria também,
até em cada matiz tomado isoladamente, aquilo que de
início o olho não notava no matiz, a luz branca da qual
ele participa, a iluminação comum da qual extrai sua co­
loração própria. Tal é sem dúvida, segundo Ravaisson, o
gênero de visão que devemos pedir à metafísica. Da con­
templação de um mármore antigo poderá jorrar, aos olhos
do verdadeiro filósofo, mais verdade concentrada do que
se pode encontrar, no estado difuso, em todo um tratado
de filosofia. O alvo da metafísica é recuperar nas existên­
cias individuais o raio particular que, conferindo a cada
uma delas seu matiz próprio, a vincula desse modo à luz
universal, e segui-lo até a fonte de onde ele emana.
Como, em que momento, sob que influências se for­
mou no espírito de Ravaisson a filosofia da qual temos
aqui os primeiros lineamentos? Não encontramos seu
rastro na dissertação que esta Academia coroou e cujo
manuscrito está depositado no arquivo desta casa. Entre
essa dissertação manuscrita e a obra publicada, aliás, há
uma tal distância, uma tão singular diferença de fundo e
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 267

de forma que mal os creriamos do mesmo autor. No ma-


nuscrito, a Metafísica de Aristóteles é simplesmente ana­
lisada livro por livro; está fora de questão reconstruir o
sistema. Na obra publicada, a antiga análise, aliás reela-
borada, só parece ter sido conservada para servir de subs-
trução para o edifício, desta vez reconstituído, da filoso­
fia aristotélica. No manuscrito, Aristóteles e Platão estão
aproximadamente no mesmo plano. O autor estima que
cabe dar a Platão o seu quinhão, a Aristóteles o dele, e
fundi-los numa filosofia que os ultrapassa a ambos. Na
obra publicada, Aristóteles é nitidamente contraposto a
Platão e sua doutrina nos é apresentada como a fonte na
qual toda filosofia deve se abastecer. Por fim, a forma do
manuscrito é correta, mas impessoal, ao passo que o li­
vro já nos fala uma língua original, mistura de imagens
de cores muito vivas ezde abstrações de contornos mui­
to nítidos, a língua de um filósofo que soube ao mesmo
tempo pintar e esculpir. Decerto, a dissertação de 1835
merecia o elogio que Cousin lhe fez em seu relatório e o
prêmio que a Academia lhe conferiu. Ninguém irá con­
testar que se trata de um trabalho muito bem-feito. Mas
é apenas um trabalho bem-feito. O autor permaneceu
exterior à obra. Estuda, analisa, e comenta Aristóteles com
sagacidade: não lhe insufla novamente a vida, sem dúvi­
da porque ele próprio ainda não tem uma vida interior
suficientemente intensa. É entre 1835 e 1837, nos dois
anos que se passaram entre a redação da dissertação e a
do primeiro volume, é sobretudo entre 1837 e 1846, en­
tre a publicação do primeiro volume e a do segundo, que
Ravaisson tomou consciência daquilo que ele era e, por
assim dizer, revelou-se a si mesmo.
Numerosas foram, sem dúvida, as excitações exte­
riores que contribuíram aqui para o desenvolvimento
268 0 PENSAMENTO £ 0 MOVENTE

das energias latentes e para o despertar da personalida­


de. Não se deve esquecer que o período que vai de 1830
a 1848 foi um período de vida intelectual intensa. A Sor­
bonne ainda vibrava com as palavras dos Guizot, dos
Cousin, dos Villemain, dos Geoffroy Saint-Hilaire; Qui-
net e Michelet ensinavam no Collège de France. Ravais­
son conheceu a maior parte deles, sobretudo o último,
para o qual funcionou durante algum tempo como secre­
tário. Em uma carta inédita de Michelet para Jules Qui­
cherat4, encontra-se a seguinte frase: "Não conhecí na
França mais que quatro espíritos críticos (poucas pessoas
sabem tudo aquilo que está contido nessas palavras): Le-
tronne, Burnouf, Ravaisson e você." Ravaisson esteve
portanto em contato com mestres ilustres, num momen­
to em que o ensino superior brilhava com intensidade.
Deve-se acrescentar que essa mesma época viu operar-
se uma reaproximação entre homens políticos, artistas,
letrados, cientistas, todos aqueles, enfim, que poderiam
ter constituído, numa sociedade de tendência já demo­
crática, uma aristocracia da inteligência. Alguns salões
privilegiados eram o ponto de encontro dessa elite. Ra­
vaisson era homem do mundo. Bem jovem, ainda pouco
conhecido, via abrirem-se à sua frente muitas portas, em
razão de seu parentesco com o antigo ministro Mollien.
Sabemos que freqüentou a casa da princesa Belgiojoso,
onde deve ter encontrado Mignet, Thiers, e sobretudo
Alfred de Musset; e também a de Mme Récamier, então
já de uma certa idade, mas sempre graciosa, e agrupan­
do em torno dela homens como Villemain, Ampère, Bal­
zac, Lamartine: é no salão de Mme Récamier, sem dúvi­
da, que travou conhecimento com Chateaubriand. Um

4. Citada por Louis Leger.


A WDA £ A OBRA DE RAVAISSON 2b 9

contato freqüente com tantos homens superiores devia


agir sobre a inteligência como um estimulante.
Have ria que levar em conta também uma estadia de
algumas semanas que Ravaisson fez na Alemanha, em
Munique, junto a Schelling. Encontra-se na obra de Ra­
vaisson mais de uma página que se podería comparar,
pela direção do pensamento assim como pelo feitio do
estilo, ao que de melhor foi escrito pelo filósofo alemão.
Ainda assim, não se deve exagerar a influência de Schel­
ling. Talvez tenha havido menos influência do que afini­
dade natural, comunidade de inspiração e, se assim se
pode falar, acordo preestabelecido entre dois espíritos
que pairavam ambos nas alturas e se reencontravam em
alguns cimos. Aliás, foi bastante difícil a conversa entre
os dois filósofos, um conhecendo mal o francês e o outro
tampouco falando o alemão. /
Viagens, conversações, relações mundanas, tudo isso
deve ter despertado a curiosidade de Ravaisson e tam­
bém ter incitado seu espírito a se exteriorizar mais com­
pletamente. Mas as causas que o levaram a concentrar-
se sobre si mesmo foram mais profundas.
Deve-se pensar, em primeiro lugar, num contato pro­
longado com a filosofia de Aristóteles. A dissertação lau­
reada já atestava um estudo cerrado e penetrante dos
textos. Mas, na obra publicada, encontramos mais que o
conhecimento do texto, e mesmo mais que a inteligên­
cia da doutrina: uma adesão do coração ao mesmo tempo
que do espírito, algo como uma impregnação da alma in­
teira. Por vezes acontece que homens superiores se des­
cubram a si mesmos de forma cada vez melhor à medi­
da que penetram mais na intimidade de um mestre dile­
to. Assim como, sob a influência da barra imantada, os
grãos esparsos da limalha de ferro se orientam para os
pólos e se dispõem em curvas harmoniosas, assim tam
270 O PENSAMENTO E O MOVENTE

bém as virtual id ades que dormitavam aqui e ali numa


alma despertam ao chamado do gênio que ela ama, jun­
tam-se, concentram-se tendo em vista uma ação comum.
Ora, é por meio dessa concentração de todas as potên­
cias do espírito e do coração num único ponto que se
constitui uma personalidade.
Mas, ao lado de Aristóteles, uma outra influência não
cessou de se exercer sobre Ravaisson, acompanhando-o
ao longo de sua vida como um demônio familiar.
Desde sua infância, Ravaisson havia manifestado dis­
posições para as artes em geral, para a pintura em parti­
cular. Sua mãe, artista de talento, talvez sonhasse em fa­
zer dele um artista. Entregou-o aos cuidados do pintor
Broc, talvez também do desenhista Chassériau, que fre­
quentava a casa. Ambos eram alunos de David. Se Ravais­
son não ouviu a grande voz do mestre, pelo menos pôde
recolher seu eco. Não foi por simples diversão que apren­
deu a pintar. Por várias vezes expôs no Salão, sob o nome
de Laché, retratos que não passaram despercebidos. De­
senhava, sobretudo, e seus desenhos eram de uma graça
deliciosa. Ingres dizia-lhe: "Você tem o charme." Em que
momento se manifestou sua predileção pela pintura ita­
liana? Bem cedo, sem dúvida, pois desde a idade de de­
zesseis ou dezessete anos executava cópias de Ticiano.
Mas não parece duvidoso que seja do período compreen­
dido entre 1835 c 1845 que date o estudo mais aprofun­
dado que fez da arte italiana do Renascimento. E é a esse
mesmo período que se deve fazer remontar a influência
sobre ele que foi para sempre granjeada pelo mestre que,
a seus olhos, nunca cessou de ser a própria personifica­
ção da arte, Leonardo da Vinci.
Há, no Tratado de pintura de Leonardo da Vinci, uma
página que Ravaisson gostava de citar. E aquela na qual
nos é dito que o ser vivo se caracteriza pela linha ondu-
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 271

losa ou serpentina, que cada ser tem sua maneira própria


de serpentear e que o alvo da arte é restituir esse serpen-
teamento individual. "O segredo da arte de desenhar está
em descobrir em cada objeto a maneira particular pela
qual se transmite através de toda sua extensão, como uma
vaga central que se desdobra em vagas superficiais, uma
certa linha flexuosa que é como que seu eixo gerador5/'
Essa linha, aliás, pode não ser nenhuma das linhas visí­
veis da figura. Não está mais aqui do que ali, mas dá a
chave de tudo. É menos percebida pelo olho do que pen­
sada pelo espírito. "A pintura, dizia Leonardo da Vinci, é
algo mental." E acrescentava que é a alma que fez o cor­
po à sua imagem. A obra inteira do mestre poderia ser­
vir de comentário a essa frase. Detenhamo-nos diante
do retrato de Mona Lisa ou mesmo diante do de Lucré-
cia Crivelli: acaso não nos parece que as linhas visíveis
da figura refluem para um centro virtual, situado atrás da
tela, no qual se descobriría de um só golpe, concentrado
numa única palavra, o segredo que nunca terminaremos
de ler frase por frase na enigmática fisionomia? Foi ali
que o pintor se postou. Foi desenvolvendo uma visão
mental simples, concentrada nesse ponto, que ele reen­
controu, traço por traço, o modelo que tinha diante dos
olhos, reproduzindo à sua maneira o esforço gerador da
natureza.
Portanto, para Leonardo da Vinci, a arte do pintor não
consiste em tomar esmiuçadamente cada um dos traços
do modelo para transportá-los para a tela e lhes reprodu­
zir, porção por porção, a materialidade. Tampouco con­
siste em figurar não sei que tipo impessoal e abstrato, no

5. Ravaisson, artigo "Dessin" [Desenho] do Dictionnoire pédagogique


[Dicionário pedagógico].
272 O PENSAMENTO E O MOVENTE

qual o modelo que vemos e tocamos vem dissolver-se


numa vaga idealidade. A arte verdadeira visa restituir a in­
dividualidade do modelo e, para tanto, vai procurar atrás
das linhas que vemos o movimento que o olho não vê,
atrás do próprio movimento algo de ainda mais secreto,
a intenção original, a aspiração fundamental da pessoa,
pensamento simples que equivale à riqueza indefinida
das formas e das cores.
Como não nos impressionarmos com a semelhança
entre essa estética de Leonardo da Vinci e a metafísica de
Aristóteles tal como Ravaisson a interpreta? Quando Ra­
vaisson opõe Aristóteles aos físicos, que viram nas coisas
apenas seu mecanismo material, e aos platônicos, que ab­
sorveram toda realidade em tipos gerais, quando ele nos
mostra em Aristóteles o mostre que, por meio de uma in­
tuição do espírito, procurou no fundo dos seres indivi­
duais o pensamento característico que os anima, acaso
não faz ele do aristotelismo precisamente a filosofia des­
sa arte que Leonardo da Vinci concebe e pratica, arte que
não realça os contornos materiais do modelo, que tam­
pouco os suaviza em proveito de um ideal abstrato, mas
simplesmente os concentra em torno do pensamento la­
tente e da alma geradora? Toda a filosofia de Ravaisson
deriva dessa idéia de que a arte é uma metafísica figura­
da, de que a metafísica é uma reflexão sobre a arte e de
que é a mesma intuição, diversamente utilizada, que faz
o filósofo profundo e o grande artista. Ravaisson tomou
posse de si mesmo, tornou-se senhor de seu pensamen­
to e de sua pena no dia em que essa identidade se reve­
lou claramente a seu espírito. A identificação deu-se no
momento em que nele se reuniram as duas correntes dis­
tintas que o carregavam para a filosofia e para a arte. E
deu-se a união quando lhe pareceu que se penetravam re-
ciprocamen te e se animavam de uma vida comum os dois
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 273

gênios que, a seus olhos, representavam a filosofia na­


quilo que esta tem de mais profundo e a arte naquilo
que esta tem de mais elevado, Aristóteles e Leonardo da
Vinci.
A tese de doutorado que Ravaisson defendeu por
essa época (1838) é uma primeira aplicação do método.
Traz um título modesto: De 1'habitude [Do hábito]. Mas é
toda uma filosofia da natureza que o autor nela expõe. O
que é a natureza? Como nos representarmos seu inte­
rior? O que ela esconde sob a sucessão regular das cau­
sas e dos efeitos? Será mesmo que esconde algo ou re-
duzir-se-ia, ao fim e ao cabo, a um desdobramento intei­
ramente superficial de movimentos que se engrenam
mecanicamente uns nos outros? Em conformidade com
seu princípio, Ravaisson pede a solução desse problema
muito geral a uma intuição muito concreta, aquela que
temos de nossa própria maneira de ser quando contraí­
mos um hábito. Pois o hábito motor, uma vez contraído,
é um mecanismo, uma série de movimentos que se de­
terminam uns aos outros: ele é essa parte de nós mes­
mos que está inserida na natureza e que coincide com a
natureza; ele é a própria natureza. Ora, nossa experiên­
cia interior mostra-nos no hábito uma atividade que, por
graus insensíveis, passou da consciência para a incons­
ciência e da vontade para o automatismo. Não seria en­
tão sob essa forma, como uma consciência obscurecida e
uma vontade adormecida, que devemos nos representar
a natureza? O hábito dá-nos assim a demonstração viva
dessa verdade de que o mecanismo não se basta a si mes­
mo: por assim dizer, ele não seria mais que o resíduo fos­
silizado de uma atividade espiritual.
Essas idéias, como muitas daquelas que devemos
a Ravaisson, tornaram-se clássicas. Penetraram tão bem
274 O PENSAMENTO E O MOVENTE

nossa filosofia, toda uma geração delas se imbuiu a tal


ponto que, hoje, temos alguma dificuldade para recons­
tituir sua originalidade. Marcaram os contemporâneos. A
tese sobre o Hábito, como aliás o Essai sur la métaphysi-
que d'Aristote, teve uma repercussão cada vez mais pro­
funda no mundo filosófico. O autor, ainda bem jovem, já
era um mestre. Parecia destinado a uma cátedra no ensi­
no superior, seja na Sorbonne, seja no College de Fran­
ce, no qual ele desejou, no qual ele quase obteve o cargo
de adjunto de Jouffroy. Sua carreira ali já estaria inteira­
mente traçada. Teria desenvolvido em termos precisos,
acerca de pontos determinados, os princípios ainda um
pouco indecisos de sua filosofia. A obrigação de expor
suas doutrinas oralmente, de pô-las à prova em proble­
mas variados, de lhes dar aplicações concretas nas ques­
tões que são postas pela ciência e pela vida tê-lo-ia leva­
do a descer por vezes das alturas nas quais gostava de se
manter. Junto a ele teria acorrido a elite de nossa juven­
tude, sempre pronta a inflamar-se por nobres idéias ex­
pressas numa bela linguagem. Bem cedo, sem dúvida,
esta Academia ter-lhe-ia aberto suas portas. Uma esco­
la ter-se-ia constituído, cujas origens aristotélicas não
teriam impedido de ser muito moderna, como tampou­
co suas simpatias pela arte a teriam distanciado da ciên­
cia positiva. Mas a sorte quis do outro modo. Ravaisson
só entrou na Academic des Sciences morales quarenta
anos mais tarde e nunca tomou assento numa cátedra
de filosofia.
De fato, era a época em que Cousin, do alto de seu
assento no Conselho real, exercia sobre o ensino da filo­
sofia uma autoridade inconteste. Decerto, ele havia sido
o primeiro a encorajar os começos de Ravaisson. Com
seu golpe de vista habitual, havia percebido o quanto a
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 275

dissertação apresentada na Academia prometia. Cheio


de estima pelo jovem filósofo, admitiu-o durante algum
tempo nesses bate-papos filosóficos que começavam com
longos passeios no Luxemburgo e terminavam, de noite,
com um jantar num restaurante da vizinhança - amável
ecletismo que prolongava a discussão peripatética num
banquete platônico. Aliás, olhando de fora, tudo parecia
dever aproximar Ravaisson de Cousin. Afinal, não tinham
os dois filósofos o mesmo amor pela filosofia antiga, a
mesma aversão pelo sensualismo do século XVIII, o mes­
mo respeito pela tradição dos grandes mestres, a mesma
preocupação em rejuvenescer essa filosofia tradicional, a
mesma confiança na observação interior, as mesmas vi­
sões gerais sobre o parentesco do verdadeiro e do belo,
da filosofia e da arte? Sim, sem dúvida, mas o que faz o
acordo de dois espíritos é menos a similitude das opi­
niões do que uma certa afinidade de temperamento in­
telectual.
Em Cousin, o pensamento era inteiramente voltado
para a palavra, e a palavra para a ação. Ele precisava do­
minar, conquistar, organizar. Falando de sua filosofia, de
bom grado dizia "minha bandeira", dos professores de
filosofia, "meu regimento"; e caminhava na frente, não
se furtando a fazer soar, eventualmente, um sonoro toque
de clarim. Não era, por outro lado, impelido nem pela
vaidade, nem pela ambição, mas por um sincero amor
pela filosofia. Só que a amava à sua maneira, como ho­
mem de ação. Estimava que havia chegado o momento
de ela causar algum estrépito no mundo. Queria-a pode­
rosa, apossando-se da criança no colégio, dirigindo o ho­
mem através de sua vida e lhe assegurando, nas dificul­
dades morais, sociais, políticas, uma regra de conduta
marcada exclusivamente pelo selo da razão. A esse so-
276 O PENSAMENTO E O MOVENTE

nho deu um começo de realização ao instalar solidamen­


te cm nossa Universidade uma filosofia disciplinada: or­
ganizador hábil, político avisado, proseador incompará­
vel, professor arrebatador, talvez só ]he tenha faltado,
para merecer de modo mais pleno o nome de filósofo,
saber suportar por vezes o face a face com seu próprio
pensamento.
Era às puras idéias que Ravaisson se prendia. Vivia
para elas, com elas, num templo invisível no qual as en­
volvia com uma adoração silenciosa. Percebia-se que era
desprendido do resto e como que distraído das realida­
des da vida. Todo seu ser transpirava essa discrição extre­
ma que é a suprema distinção. Sóbrio nos gestos, pouco
pródigo nas palavras, deslizando pela expressão da idéia,
não a carregando nunca, falando baixo, como se temes­
se afugentar com um excesso de barulho os pensamen­
tos alados que vinham pousar em torno dele, ele certa­
mente estimava que, para nos fazer ouvir de longe, não
nos é necessário forçar muito a voz caso façamos soar
apenas sons muito puros. Nunca homem algum procu­
rou menos do que este agir sobre outros homens. Mas
nunca espírito algum foi mais naturaimente, mais tran­
quilamente, mais invencivelmente rebelde à autoridade
dc outrem. Não lhe dava margem. Escapava por sua ima-
terialidade. Era daqueles que não oferecem nem mesmo
resistência suficiente para que alguém possa alguma vez
se gabar de vê-lo ceder. Cousin, caso tenha feito alguma
tentativa nessa direção, percebeu bem rapidamente que
perdia seu tempo e seu trabalho.
De modo que esses dois espíritos, após um contato
no qual se revelou sua incompatibilidade, se afastaram
naturalmente um do outro. Quarenta anos mais tarde,
idoso e gravemente doente, na iminência de partir para
A VTOA E A OBRA DE RAVAISSON 277

Cannes, onde havería de morrer, Cousin manifestou o


desejo de uma reaproximação: na estação ferroviária de
Lyon, diante do trem prestes a partir, estendeu a mão para
Ravaisson; trocaram-se palavras comovidas. Nem por
isso é menos verdade que foi a atitude de Cousin para
com ele que desencorajou Ravaisson de se tomar, se as­
sim se pode dizer, um filósofo de profissão c o determi­
nou a seguir uma outra carreira.
De Salvandy, então ministro da Instrução pública,
conhecia Ravaisson pessoalmente, Tomou-o como chefe
de gabinete. Pouco tempo depois, encarregou-o (profor­
ma, pois Ravaisson nunca ocupou esse posto) dc um cur­
so na Faculdade de Rennes. Enfim, em 1839, confiava-
lhe o emprego recém-criado de inspetor das bibliotecas.
Ravaisson viu-se assim engajado numa via bastante di­
ferente daquela na qual havia pensado. Permaneceu ins­
petor das bibliotecas até o dia em que se tornou inspetor
geral do Ensino superior, isto é, durante uma quinzena
de anos, Em várias ocasiões, publicou trabalhos impor­
tantes sobre o serviço do qual estava encarregado; em
1841, um Rapport sur les bibliothèques des departements de
1'Ouest [Relatório sobre as bibliotecas dos departamentos
do Oeste]; em 1846, um Catalogue des manuscrits de la bi-
bliothèquc de Laon [Catálogo dos manuscritos da bibliote­
ca de Laon]; em 1862, um Rapport sur les archives de l'Em-
pire et sur {'organisation de la Bibliothèque impériale [Rela­
tório sobre os arquivos do Império e sobre a organização
da Biblioteca imperial], As investigações de erudição sem­
pre o haviam atraído e, por outro lado, o conhecimento
aprofundado da antiguidade, que seu Essai sur la métaphy-
sique d'Aristote. revelava, devia de modo bastante natural
indicá-lo para a escolha da Académie des Inscriptions.
Foi eleito membro dessa Academia em 1849, em substi­
tuição a Letronne.
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I j
278 O PENSAMENTO E O MOVENTE

Não há como não nos lastimarmos quando pensa­


mos que o filósofo que havia produzido tão jovem, em
tão pouco tempo, duas obras magistrais permaneceu em
seguida vinte anos sem nada oferecer de importante para
a filosofia: a bela dissertação sobre o estoicismo, lida na
Académie des Inscriptions em 1849 e 1851, publicada em
1857, deve ter sido composta com materiais reunidos para
o Essai sur la métaphysique d'Aristote.Teria Ravaisson, du­
rante esse longo intervalo, deixado de filosofar? Não, de­
certo, mas ele era daqueles que só se decidem a escrever
quando a isso são determinados por alguma solicitação
exterior ou por suas ocupações profissionais. Foi para um
concurso acadêmico que ele havia composto seu Ensaio
e foi para seu exame de doutorado que ele redigiu a dis­
sertação sobre o Elábito. Nada, em suas novas ocupações,
o incitava a produzir. E talvez não tivesse nunca formu­
lado as conclusões às quais vinte novos anos de reflexão
o haviam conduzido, caso não tivesse sido convidado
oficialmente a fazê-lo.
O governo imperial havia decidido que se redigiría,
por ocasião da Exposição de 1867, um conjunto de rela­
tórios sobre os progressos das ciências, das letras e das
artes na França no século XIX. Duruy era então ministro
da Instrução pública. Conhecia bem Ravaisson, tendo
sido seu condiscípulo no colégio Rollin. Já em 1863, quan­
do do restabelecimento da agregação de filosofia, havia
confiado a Ravaisson a presidência do júri. A quem iria ele
pedir o relatório sobre os progressos da filosofia? Mais
de um filósofo eminente, ocupando uma cátedra de Uni­
versidade, podería ter pretendido essa honra. Duruy pre­
feriu endereçar-se a Ravaisson, que era um filósofo sem
cátedra. E esse ministro, que tantas boas inspirações teve
durante sua curta passagem pelos negócios públicos,
nunca teve outra melhor do que nesse dia.
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 279

Ravaisson podería ter se contentado em passar em


revista os trabalhos dos mais renomados filósofos do sé­
culo. Provavelmente não se lhe pedia mais que isso. Mas
ele compreendeu sua tarefa de outro modo. Sem se de­
ter na opinião que toma alguns pensadores por dignos
de atenção, os outros por negligenciáveis, ele leu tudo,
na qualidade de quem sabe do que é capaz a reflexão
sincera e como, pela simples força desse instrumento, os
mais humildes operários extraíram do mais vil mineral al­
gumas parcelas de ouro. Tendo lido tudo, tomou em se­
guida seu elã para tudo dominar. O que ele procurava de­
terminar, através das hesitações e dos desvios de um pen­
samento que nem sempre teve plena consciência do que
queria nem do que fazia, era o ponto, talvez situado lon­
ge no porvir, para o qual nossa filosofia se encaminha.
Retomando e alargando a idéia mestra de seu Essai,
distinguia duas maneiras de filosofar. A primeira proce­
de por análise; resolve as coisas em seus elementos iner­
tes; de simplificação em simplificação, encaminha-se para
aquilo que há de mais abstrato e de mais vazio. Pouco
importa, aliás, que esse trabalho de abstração seja efetua­
do por um físico que será chamado mecanicista ou por
um lógico que será dito idealista: em ambos os casos,
trata-se de materialismo. O outro método não leva em
conta apenas os elementos, mas também sua ordem, seu
acordo mútuo e sua direção comum. Já não explica mais
o vivo pelo morto, mas, vendo a vida por toda parte, de­
fine as formas as mais elementares por sua aspiração a
uma forma de vida mais alta. Não reconduz mais o su­
perior ao inferior, mas, pelo contrário, o inferior ao supe­
rior. É, no sentido próprio da palavra, o espiritualismo.
Agora, se examinamos a filosofia francesa do século
XIX, não apenas nos metafísicos, mas também nos cien­
280 O PENSAMENTO E O MOVENTE

tistas que fizeram a filosofia de sua ciência, eis, segundo


Ravaisson, o que descobrimos. Não raro o espírito se
orienta de início na direção materialista e se imagina
mesmo nela persistir. Muito naturalmente procura uma
explicação mecânica ou geométrica para aquilo que vê.
Mas o hábito de ater-se a tanto é apenas uma sobrevi­
vência dos séculos precedentes. Data de uma época em
que a ciência era quase que exclusiva mente geometria. O
que caracteriza a ciência do século XIX, a nova empresa
que ela tentou, é o estudo aprofundado dos seres vivos.
Ora, uma vez nesse terreno, pode-se, caso se queira, fa­
lar ainda de pura mecânica; pensa-se em outra coisa.
Abramos o primeiro volume do Cours de philosophic
positive de Auguste Comte, Nele lemos que os fenôme­
nos observáveis nos seres vivos são de mesma natureza
que os fatos inorgânicos. Oito anos depois, no segundo
volume, ainda se exprime assim acerca dos vegetais, mas
apenas dos vegetais; já põe de parte a vida animal. Por
fim, em seu último volume, é a totalidade dos fenôme­
nos da vida que ele isola nitidamente dos fatos físicos e
químicos. Quanto mais considera as manifestações da
vida, tanto mais tende a estabelecer entre as diversas or­
dens de fatos uma distinção de nível ou de valor e não
mais apenas de complicação. Ora, seguindo nessa dire­
ção, é no espiritualismo que se desemboca.
Claude Bernard começa por se exprimir como se o
jogo das forças mecânicas nos fornecesse todos os ele­
mentos de uma explicação universal. Mas quando, saindo
das generalidades, se dedica a descrever mais especial­
mente esses fenômenos da vida sobre os quais seus tra­
balhos projetaram uma tão grande luz, chega à hipótese
de uma "idéia diretriz" e mesmo "criadora" que seria a
causa verdadeira da organização.
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 281

A mesma tendência, o mesmo progresso observa-se,


segundo Ravaisson, em todos aqueles, filósofos ou cien­
tistas, que aprofundam a natureza da vida. Pode-se pre­
ver que, quanto mais as ciências da vida se desenvolve­
rem, tanto mais sentirão a necessidade de reintegrar o
pensamento no seio da natureza.
Sob que forma, e com que gênero de operação? Se a
vida é uma criação, devemos no-la representar por ana­
logia com as criações que nos é facultado observar, isto é,
com aquelas que nós mesmos realizamos. Ora, na criação
artística, por exemplo, parece que os materiais da obra,
palavras e imagens para o poeta, formas e cores para o
pintor, ritmos e acordes para o músico, vêm arranjar-se
espontaneamente sob a idéia que devem exprimir, atraí­
dos, de certa forma, pelo charme de uma idealidade su­
perior. Acaso não c um movimento análogo, acaso não c
também um estado de fascinaçãojque devemos atribuir
aos elementos materiais quando estes se organizam em
seres vivos? Aos olhos de Ravaisson, a força organizado­
ra da vida era de mesma natureza que a da persuasão.
Mas de onde vêm os materiais que sofreram esse en­
cantamento? A essa questão, a mais alta de todas, Ravais­
son responde nos mostrando na produção original da ma­
téria um movimento inverso àquele que se efetua quando
a matéria, se organiza. Se a organização é como que um
despertar da matéria, a matéria só pode ser um adormcci-
mento do espírito. É o último grau, é a sombra de uma exis­
tência que se atenuou e, por assim dizer, se esvaziou a si
mesma de seu conteúdo. Se a matéria é “a base da existên­
cia natural, base sobre a qual, por esse progresso contínuo
que é a ordem da natureza, tudo volta, de grau em grau, de
reino em reino, à unidade do espírito", devemos, de modo
inverso, nos representar no início uma distensão de espí­
rito, uma difusão no espaço e no tempo que constitui a ma­
282 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

terialidade. O Pensamento infinito "anulou algo da ple­


nitude de seu ser para dele extrair, por uma espécie de
despertar e de ressurreição, tudo o que existe".
Tal q a doutrina exposta na última parte do Relatório.
Ali, o universo visível nos é apresentado como o aspecto
exterior de uma realidade que, vista de dentro e apreen­
dida cm si mesma, nos aparcceria como um dom gratui­
to, como um grande ato de liberalidade e de amor. Ne­
nhuma análise dará uma idéia dessas páginas admirá­
veis. Vinte gerações de alunos as souberam de cor. Elas
em muito contribuíram para a influência que o Relatório
exerceu sobre nossa filosofia universitária, influência da
qual não podemos nem determinar os limites precisos
nem medir a profundidade, nem mesmo descrever exa­
tamente a natureza, como tampouco poderiamos resti­
tuir a inexprimível coloração que, por vezes, um grande
entusiasmo da primeira juventude infunde sobre toda a
vida dc um homem. Que nos seja permitido acrescentar
que essas páginas eclipsaram um pouco, por seu brilho
fulgurante, a idéia mais original do livro. Hoje em dia,
começa-se a considerar a possibilidade de que o estudo
aprofundado dos fenômenos da vida deva levar a ciência
positiva a alargar seus quadros e a ultrapassar o puro me-
canicismo no qual sc mantém presa há três séculos, ain­
da que a maioria se recuse a admiti-lo. Mas, no tempo em
que Ravaisson escrevia, era preciso um verdadeiro esfor­
ço de divinação para atribuir esse termo a um movimen­
to de idéias que parecia ir em sentido contrário.
Quais são os fatos, quais são as razões que levaram
Ravaisson. a julgar que os fenômenos da vida, ao invés de
se explicarem integralmente pelas forças físicas e quími­
cas, poderíam, ao contrário, jogar sobre estas últimas al­
guma luz? Todos os elementos da teoria já se encontram
no Essai sur la métaphysique d'Aristote e na tese sobre o
A VIDA E A OSRA DE RAVAISSON 283

Hábito. Mas, sob a forma mais precisa que reveste no Re­


latório, essa tese vincula-se, cremos nós, a certas reflexões
muito especiais que, durante esse período, Ravaisson de­
senvolveu acerca da arte e em particular acerca de uma
arte da qual ele possuía ao mesmo tempo a teoria e a
prática, a arte do desenho.
O ministério da Instrução pública, em 1852, havia
iniciado estudos relativos à questão do ensino do dese­
nho nos liceus. No dia 21 de junho de 1853, um decreto
encarregava uma comissão de apresentar ao ministro um
projeto de organização desse ensino. A comissão conta­
va entre seus membros Delacroix, Ingres e Flandrin; era
presidida por Ravaisson. Foi Ravaisson quem redigiu o
relatório. Ele havia feito com que suas posições prevale­
cessem e havia elaborado o regulamento que um decre­
to do 29 de dezembro de 1853 tornou executório nos es­
tabelecimentos do Estado. Era uma reforma radical do
método até então usitado para o ensino do desenho. As
considerações teóricas que haviam inspirado a reforma
ocupam apenas uma pequena parte do relatório endere­
çado ao ministro. Mas depois Ravaisson as retomou e as
expôs com amplidão nos dois artigos Art [Arte] e Dessin
[Desenho] que confeccionou para o Dictionnaire pédago-
gique [Dicionário pedagógico]. Escritos em 1882, quando
o autor estava em plena posse de sua filosofia, esses arti­
gos apresentam-nos as idéias de Ravaisson acerca do dese­
nho sob uma forma metafísica que de início não tinham
(como sairemos convencidos sem dificuldade, se lermos o
relatório de 1853). No mínimo, explicitam com precisão a
metafísica latente que essas opiniões implicavam desde
a origem. Mostram-nos como as idéias diretrizes da filo­
sofia que acabamos de resumir se vinculavam, no pensa­
mento de Ravaisson, a uma arte que ele nunca havia dei­
xado de praticar. E vêm também confirmar uma lei que
284 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

tomamos por geral, isto é, a de que as idéias realmentc


viáveis, na filosofia, são aquelas que foram primeiro vividas
por seu autor - vividas, isto é, aplicadas por ele, todos os
dias, num trabalho que ele ama, e modeladas por ele, ao
longo do tempo, a partir dessa técnica particular.
O método que se praticava então para o ensino do
desenho inspirava-se nas idéias de Pestalozzi. Nas artes
do desenho como em qualquer outro lugar, dizia-se, é pre­
ciso ir do simples para o composto. O aluno, portanto,
exercitar-se-á primeiro no traçado de linhas retas, depois
no de triângulos, retângulos, quadrados; daí passará ao
círculo. Mais tarde, passará a desenhar os contornos das
formas vivas: ainda assim precisará, tanto quanto possí­
vel, dar como substrução a seu desenho linhas retas e cur­
vas geométricas, quer circunscrevendo seu modelo (su­
postamente plano) por uma figura retilínea imaginária
sobre a qual ele irá providenciar pontos de referência,
quer substituindo provisoriamente as curvas do modelo
por curvas geométricas, às quais voltará, depois, para fa­
zer os retoques necessários.
Esse método, segundo Ravaisson, não pode dar re­
sultado nenhum. Com efeito, pode-se querer instruir
apenas no desenho de figuras geométricas, e então mais
vale servir-se dos instrumentos apropriados e aplicar as
regras que a geometria fornece; ou então é a arte propria­
mente dita que se quer ensinar, mas então a experiência
mostra que a aplicação de procedimentos mecânicos para
a imitação das formas vivas desemboca em fazer com
que sejam mal compreendidas e mal reproduzidas. O que
aqui importa antes de tudo, com efeito, é o "bom julga­
mento do olho". O aluno que começa por providenciar
pontos de referência, que os liga depois por um traço
contínuo inspirando-se tanto quanto possível nas curvas
da geometria, só aprende a ver mal. Não capta nunca o
movimento próprio da forma a ser desenhada. "O espí-
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 285

rito da forma" escapa-lhe sempre. Inteiramente diferen­


te é o resultado quando se começa pelas curvas caracte­
rísticas da vida. O mais simples, aqui, não será aquilo
que se aproximar mais da geometria, mas aquilo que fa­
lar melhor à inteligência, aquilo que houver de mais ex­
pressivo: o animal será mais fácil de compreender do
que a planta, o homem do que o animal, o Apoio do Bel­
vedere do que um transeunte tomado na rua. Comece­
mos, portanto, por fazer a criança desenhar as mais per­
feitas dentre as figuras humanas, os modelos fornecidos
pela estatuária grega. Caso queiramos evitar que ela en­
frente as dificuldades da perspectiva, substituamos primei­
ro os modelos por suas reproduções fotográficas. Veremos
que o resto virá por acréscimo. Partindo do geométrico,
pode-se ir tão longe quanto se quiser no sentido da com­
plicação sem nunca se aproximar das curvas pelas quais a
vida se exprime. Pelo contrário, se começamos por essas
curvas, percebemos, no dia em que abordamos as da geo­
metria, que já as temos na mão.
Eis-nos, portanto, em presença da primeira das duas
teses desenvolvidas no Rapport sur la philosophic en Fran­
ce [Relatório sobre a filosofia na França]: não se pode pas­
sar do mecânico para o vivo por via de composição; mui­
to ao contrário, seria antes a vida que daria a chave do
mundo inorganizado. Essa metafísica está implicada, ela
é pressentida e mesmo sentida no esforço concreto pelo
qual a mão se exercita na reprodução dos movimentos
característicos das figuras.
Por sua vez, a consideração desses movimentos e da
relação que os liga à figura que traçam dá um sentido es­
pecial à segunda tese de Ravaisson, isto é, às vistas que
ele desenvolve acerca da origem das coisas e acerca do ato
de "condescendência", como ele diz, do qual o universo é
a manifestação.
286 O PENSAMENTO E O MOVENTE

Se consideramos as coisas da natureza de nosso


ponto de vista, o que nelas descobrimos de mais mar­
cante é sua beleza. Essa beleza vai aliás se acentuando à
medida que a natureza se eleva do inorgânico para o or­
ganizado, da planta para o animal, e do animal para o
homem. Portanto, quanto mais intenso é o trabalho da
natureza, tanto mais bela é a obra produzida. O que sig­
nifica que a beleza, caso nos entregasse seu segredo, nos
faria penetrar na intimidade do trabalho da natureza.
Mas irá ela nos entregá-lo? Talvez, se consideramos que
ela própria não é mais que um efeito, e se remontamos à
causa. A beleza pertence à forma e toda forma tem sua
origem num movimento que a traça: a forma não é mais
que movimento registrado. Ora, se nos perguntarmos
quais são os movimentos que descrevem formas belas,
descobriremos que são os movimentos graciosos: a bele­
za, dizia Leonardo da Vinci, é graça fixada. A questão, en­
tão, é saber em que consiste a graça. Mas esse problema
é mais fácil de resolver, pois em tudo aquilo que é gra­
cioso nós vemos, nós sentimos, nós adivinhamos uma
espécie de abandono e como que uma condescendência.
Assim, para aquele que contempla o universo com olhos
de artista, é a graça que se lê através da beleza e é a bon­
dade que transparece sob a graça. Cada coisa manifesta,
no movimento que sua forma registra, a generosidade in­
finita de um princípio que se dá. E não é por equívoco que
chamamos pelo mesmo nome o charme que vemos no
movimento e o ato de liberalidade que é característico da
bondade divina: os dois sentidos da palavra graça eram
um só e o mesmo para Ravaisson.
Permanecia fiel a seu método ao procurar as mais
altas verdades metafísicas numa visão concreta das coi­
sas, passando, por transições insensíveis, da estética para
a metafísica e mesmo para a teologia. Nada mais instru-
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 287

tivo, a esse respeito, do que o estudo que publicou em


1887 na Revue des deux mondes sobre a filosofia de Pas­
cal. Ali, é visível a preocupação de vincular o cristianis­
mo à filosofia e à arte antigas, sem desconhecer, por outro
lado, o que o cristianismo trouxe de novo para o mundo.
Essa preocupação preenche toda a última parte da vida
de Ravaisson.
Nesse último período, Ravaisson teve a satisfação de
ver suas idéias se disseminarem, sua filosofia penetrar no
ensino, todo um movimento se esboçar em favor de uma
doutrina que fazia da atividade espiritual o próprio fun­
do da realidade. O Relatório de 1867 havia determinado
uma mudança de orientação na filosofia universitária: à
influência de Cousin se sucedia a de Ravaisson. Como o
disse Boutroux nas belas páginas que consagrou à sua
memória6, "Ravaisson nunca procurou a influência, mas
acabou por exercê-la à maneira do canto divino que, se­
gundo a fábula antiga, fazia cpm que se arrumassem por
si mesmos, em muralhas e êm torres, dóceis materiais".
Presidente do júri de agregação, trazia para essas fun­
ções uma benevolente imparcialidade, unicamente preo­
cupado em distinguir o talento e o esforço por toda par­
te onde se encontrassem. Em 1880, esta Academia o cha­
mava a tomar assento entre seus membros, em substitui­
ção a Peisse. Um dos primeiros textos que ele apresentou
para esta Sociedade foi um importante relatório sobre o
ceticismo, por ocasião do concurso no qual o futuro co­
lega de vocês, Brochard, conquistava tão brilhantemente
o prêmio. Em 1899, a Académie des Inscriptions et Bel­
les Lettres celebrava o cinqüentenário de sua eleição. Ele,
sempre jovem, sempre sorridente, ia de uma Academia

6. Rcvue de métaphysique et de morale, novembro de 1900.


288 0 PENSAMENTO E O MOVENTE

para a outra, apresentava aqui uma dissertação sobre al­


gum ponto de arqueologia grega, ali visões sobre a mo­
ral ou a educação, presidia distribuições de prêmios nas
quais, num tom familiar, exprimia as verdades mais abs­
tratas sob a forma a mais agradável. Durante esses trin­
ta últimos anos dc sua vida, Ravaisson nunca deixou de
prosseguir no desenvolvimento de um pensamento do
qual o Essai sur la niétaphysiqiie d'Aristote, a tese sobre o
Hábito e o Relatório de 1867 haviam marcado as princi­
pais etapas. Mas esse novo esforço, não tendo desembo­
cado numa obra acabada, é menos conhecido. Os resul­
tados que publicava eram aliás dc natureza a surpreen­
der um pouco, quase diria a desnortear, mesmo aqueles
dentre seus discípulos que o seguiam com mais atenção.
Tratava-se, em primeiro lugar, dc uma série de disserta­
ções c dc artigos sobre a Vênus dc Milo; muitos se espan­
tavam com a insistência com a qual ele voltava a um as­
sunto tão particular. Tratava-se também de trabalhos so­
bre os monumentos funerários da antiguidade. Tratava-se,
por fim, dc considerações sobre os problemas morais ou
pedagógicos que se põem na atualidade. Podia-se não
perceber vínculo algum entre preocupações tão diferen­
tes. A verdade c que suas hipóteses sobre as obras-primas
da escultura grega, seus ensaios de reconstituição do gru­
po de Milo, suas interpretações dos baixos-relevos fune­
rários, suas vistas sobre a moral e a educação, tudo isso
formava um conjunto bem coerente, tudo isso se vincu­
lava, no pensamento de Ravaisson, a um novo desen­
volvimento de sua doutrina metafísica. Dessa última fi­
losofia encontramos um esboço preliminar num artigo
intitulado Métaphysique et morale [Metafísica e moral]
que foi publicado em 1893, como introdução para a re­
vista de mesmo nome. Iríamos ter sua formulação defi­
nitiva no livro que Ravaisson escrevia quando a morte
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 289

veio surpreendê-lo. Os fragmentos dessa obra, recolhidos


por mãos zelosas, foram publicados sob o título de Testa­
ment philosophique [Testamento filosófico]. Dão-nos, sem
dúvida, uma idéia razoável daquilo que teria sido o livro.
Mas se quisermos seguir o pensamento de Ravaisson até
essa última etapa, c preciso remontar para além de 1870,
para além mesmo do Relatório de 1867 e nos transportar­
mos para a época em que Ravaisson foi chamado a fixar
sua atenção sobre as obras da estatuária antiga.
Foi levado a tanto exatamente por suas considera­
ções sobre o ensino do desenho. Se o estudo do desenho
deve começar pela imitação da figura humana, e tam­
bém pela beleza naquilo que esta tem de mais perfeito, é
à estatuária antiga que se deve pedir modelos, uma vez
que levou a figura humana a seu mais alto grau de per­
feição. Aliás, para poupar a criança das dificuldades da
perspectiva, substituir-se-ão/aizíamos, as próprias está­
tuas por suas reproduções fotográficas. Ravaisson foi as­
sim levado a constituir primeiro uma coleção de fotogra­
fias, depois, coisa bem mais importante, a fazer moldar
em gesso cópias das obras-primas da arte grega. Essa úl­
tima coleção, de início colocada com a coleção Campa­
na, tornou-se o ponto de partida da coleção de gessos
antigos que Charles Ravaisson-Mollien reuniu no museu
do Louvre. Por um progresso natural, Ravaisson chegou
então à consideração das artes plásticas sob um novo as­
pecto. Preocupado, até então, sobretudo com a pintura
moderna, fixava agora sua atenção sobre a escultura an­
tiga. E, fiel à idéia de que é preciso conhecer a técnica de
uma arte para penetrar-lhe o espírito, assumia o cinzel,
exercitava-se em modelar, chegava, a força de trabalho, a
uma real habilidade. Logo se lhe apresentou a ocasião de
fazer com que tirassem proveito disso a arte e, mesmo,
por uma transição insensível, a filosofia.
290 O PENSAMENTO E O MOVENTE

O imperador Napoleão III, que havia tido a oportu­


nidade, em várias ocasiões, e notadamente quando da
instalação do museu Campana, de apreciar pessoalmen­
te o valor de Ravaisson, chamava-o, em junho de 1870,
para as funções de conservador das antiguidades e da
escultura moderna no museu do Louvre. Algumas sema­
nas depois, estourava a guerra, o inimigo estava diante
dos muros de Paris, o bombardeio iminente, e Ravaisson,
após ter proposto à Academic des Inscriptions lançar um
protesto para o mundo civilizado contra as violências com
as quais os tesouros da arte eram ameaçados, ocupava-
se em fazer transportar para o fundo de um subterrâneo,
para pô-las ao abrigo de um possível incêndio, as peças
mais preciosas do museu das antiguidades. Ao deslocar
a Vênus de Mílo, percebeu que os dois blocos de que a es­
tátua é feita haviam sido mal juntados quando da insta­
lação primitiva e que calços de madeira, interpostos en­
tre eles, falseavam a atitude original. Ele próprio deter­
minou de novo as posições relativas dos dois blocos; ele
próprio presidiu a reestruturação. Alguns anos mais tar­
de, é sobre a Vitória de Samotrácia que ele executava um
trabalho do mesmo gênero, mas mais importante ainda.
Na restauração primitiva dessa estátua, havia sido im­
possível ajustar as asas, que hoje provocam tão vigoroso
efeito. Ravaisson refez em gesso um pedaço faltando à
direita assim como toda a parte esquerda do peito: e as­
sim as asas reencontravam seus pontos de ligação e a
deusa aparecia tal como a vemos hoje na escadaria do
Louvre, corpo sem braço, sem cabeça, no qual apenas o
inflado do drapeado e das asas que se desdobram torna
visível para o olho um sopro de entusiasmo que passa
por uma alma.
Ora, à medida que Ravaisson avançava na familia­
ridade com a estatuária antiga, desenhava-se em seu
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 291

espírito uma idéia que se aplicava ao conjunto da escultu­


ra grega, mas que assumia sua significação mais concreta
para a obra sobre a qual as circunstâncias haviam mais par­
ticularmente dirigido sua atenção, a Venus de Milo.
Parecia-lhe que a estatuária havia modelado, no tem­
po de Fídias, grandes e nobres figuras, cujo tipo havia ido
depois se degenerando e que essa diminuição devia pren­
der-se à alteração que havia sofrido, ao se vulgarizar, a
concepção clássica da divindade. "A Grécia, em seus pri­
meiros momentos, adorava em Vênus uma deusa que ela
chamava Urânia... A Vênus de então era a soberana dos
mundos... Era uma Providência, ao mesmo tempo todo-po-
derosa e todo-benevolente, cujo emblema ordinário era
uma pomba, significando que era pelo amor e pela suavida­
de que ela reinava... Essas velhás concepções alteraram-se.
Um legislador ateniense, complacente para com a massa,
estabeleceu para ela, ao lado do culto da Vênus celeste, o
de uma Vênus de ordem inferior, nomeada a popular. O
antigo e sublime poema transformou-se gradativamente
num romance tecido de frívolas aventuras7/'
A esse poema antigo a Vênus de Milo nos reconduz.
Obra de Lisipo ou de um de seus alunos, essaVênus, se­
gundo Ravaisson, não é mais do que a variante de uma
Vênus de Fídias. Primitivamente, não estava isolada; fa­
zia parte de um grupo. É na reconstituição desse grupo
que Ravaisson trabalhou tão pacientemente. Ao vê-lo
modelar e remodelar os braços da deusa, alguns sorriam.
Acaso saberíam que o que Ravaisson queria reconquistar
sobre a matéria rebelde era a própria alma da Grécia e que
o filósofo permanecia fiel ao espírito de sua doutrina, pro­

7. Trabalho lido na sessão pública das cinco Academias, no 25 de


outubro de 1890.
292 O PENSAMENTO E O MÜVENTE

curando as aspirações fundamentais da antiguidade pagã


não simplesmente nas fórmulas abstratas e gerais da filo­
sofia/ mas numa figura concreta, exatamente aquele que es­
culpiu, no mais belo tempo de Atenas, o maior dos artistas
visando a mais alta expressão possível da beleza?
Não nos cabe apreciar, do ponto de vista arqueoló­
gico/ as conclusões nas quais Ravaisson desembocava.
Que nos baste dizer que elo colocava ao lado daVênus
primitiva um deus que devia ser Marte, ou um herói que
podia serTcseu. De indução em indução, ele acabava por
ver nesse grupo o símbolo de um triunfo da persuasão
sobre a força bruta. É a epopéia dessa vitória que a mito­
logia grega nos cantava. A adoração dos heróis não teria
sido mais que o culto reconhecido que a Grécia consa­
grava àqueles que, sendo os mais fortes, quiseram ser os
melhores e só usaram sua força para vir cm auxílio à hu­
manidade sofrida. A religião dos antigos seria assim uma
homenagem prestada à piedade. Acima de tudo, na ori­
gem mesma de tudo, ela punha a generosidade, a magna­
nimidade e, no sentido mais elevado da palavra, o amor.
Assim, por um desvio singular, a escultura grega re­
conduzia Ravaisson para a idéia central de sua filosofia.
Não havia ele dito, em seu Relatório, que o universo é a
manifestação de um princípio que se dá por liberalidade,
condescendência e amor? Mas essa idéia, reencontrada
nos antigos, vista através da escultura grega, desenhava-
se agora em seu espírito sob uma forma mais ampla e
mais simples. Dessa forma nova, Ravaisson só nos pôde
traçar um esboço inacabado. Mas seu Testament philoso-
phique marca suficientemente suas grandes linhas.
Ele dizia agora que uma grande filosofia havia apa­
recido desde a aurora do pensamento humano e se ha­
via mantido através das vicissitudes da história: a filoso­
fia heróica, aquela dos magnânimos, dos fortes, dos ge-
A VIDA EA OBRA DERAVAISSON 293

nerosos. Essa filosofia, antes mesmo de ser pensada por


inteligências superiores havia sido vivida por corações de
elite. Foi, desde sempre, a filosofia das almas verdadeira­
mente reais, nascidas para o mundo inteiro e não para si
mesmas, que permaneceram fiéis à impulsão originária,
afinadas com o uníssono da nota fundamental do uni­
verso que é uma nota de generosidade e de amor. Aque­
les que a praticaram de início foram os heróis que a Gré­
cia adorou. Aqueles que a ensinaram mais tarde foram os
pensadores que, de Tales a Sócrates, de Sócrates a Platão
c a Aristóteles, de Aristóteles a Descartes c a Leibniz, se
continuam numa única grande linhagem.Todos, pressen­
tindo o cristianismo ou desenvolvendo-o, pensaram e
praticaram uma filosofia que cabe inteira num estado de
alma: e esse estado de alma é ^quele que nosso Descar­
tes chamou pelo belo nome de "generosidade".
Desse novo ponto de vista, Ravaisson retomava, em
seu Testament philosophique, as principais teses de seu Re­
latório. Reencontrava-as nos grandes filósofos de todos
os tempos. Verificava-as em exemplos. A.nimava-as com
um novo espírito, atribuindo um papel ainda maior ao
sentimento na procura do verdadeiro e ao entusiasmo na
criação do belo. Insistia na arte que é a mais elevada de
todas, a própria arte da vida, aquela que molda a alma.
Rcsumia-a no preceito de Santo Agostinho: "Amai, e fazei
o que quiserdes." E acrescentava que o amor assim en­
tendido está no fundo de cada um de nós, que ele c na­
tural, que não temos de criá-lo, que ele desabrocha sozi­
nho quando afastamos o obstáculo que nossa vontade
lhe opõe: a adoração de nós mesmos.
Ele gostaria que todo nosso sistema de educação
tendesse a dar livre curso ao sentimento da generosida­
de. "O mal de que sofremos, escrevia ele já em 1887, não
reside tanto na desigualdade das condições, no entanto
294 O PENSAMENTO E O MOVENTE

por vezes excessiva, quanto nos sentimentos deploráveis


que a ela se juntam../' "O remédio para esse mal deve
ser procurado principalmente numa reforma moral, que
estabeleça entre as classes a harmonia e a simpatia recí­
procas, reforma que é sobretudo uma questão de educa­
ção..." Da ciência livresca, fazia pouco caso. Traçava, em
poucas palavras, o programa de uma educação verdadei­
ramente liberal, isto é, destinada a desenvolver a libera­
lidade, a libertar a alma de todas as servidões, sobretudo
do egoísmo, que é a pior delas: "A sociedade, dizia, deve
repousar sobre a generosidade, isto é, sobre a disposição
a considerar-se como de grande raça, de raça heróica e
mesmo divina8." "As divisões sociais nascem do fato de
que há, de um lado, ricos que são ricos para si mesmos, e
não mais para a coisa pública, do outro, pobres que, não
tendo mais com quem contar senão consigo mesmos, só
vêem nos ricos objetos de inveja." É dos ricos, das classes
superiores que dependerá modificar o estado de alma das
classes operárias. "O povo, de bom grado caritativo, con­
servou, em meio a suas misérias e seus defeitos, muito
desse desinteresse e dessa generosidade que foram qua­
lidades das primeiras eras... Que um sinal parta das re­
giões de cima para indicar, em meio a nossas obscurida­
des, o caminho a seguir a fim de restabelecer a antiga for­
ça da magnanimidade: dc nenhuma outra parte virá mais
rapidamente uma resposta do que da parte do povo. O
povo, disse Adam Smith, ama a virtude em tal grau que
nada o arrebata tanto quanto a austeridade."
Ao mesmo tempo em que apresentava a generosi­
dade como um sentimento natural, no qual tomamos
consciência da nobreza de nossa origem, Ravaisson mos­

8. Revue bleue, 23 de abril de 1887.


A VIDA E A OKRA DE RAVAISSON 295

trava em nossa crença na imortalidade um pressentimen­


to não menos natural de nossa destinação futura. Com
efeito, reencontrava essa crença ao longo de toda a anti­
guidade clássica. Lia-a nas esteias funerárias dos gregos,
nesses quadros onde, segundo ele, o morto volta a anun­
ciar para os membros de sua família, ainda vivos, que ele
goza de uma alegria sem mistura na estadia dos bem-
aventurados. Dizia que o sentimento dos antigos não os
havia enganado acerca desse ponto, que reencontrare­
mos alhures aqueles que amamos cá embaixo e que
aquele que amou uma vez amará sempre. Acrescentava
que a imortalidade prometida pelc/religião era uma eter­
nidade de felicidade, que não se podia, que não se devia
concebê-la de outra forma, ou então a última palavra
não caberia à generosidade. "Em nome da justiça, escre­
via ele9, uma teologia alheia ao espírito de misericórdia
que é propriamente o do cristianismo, abusando do no­
me de eternidade que freqüentemente não significa mais
que uma longa duração, condena a males sem fim os pe­
cadores mortos sem arrependimento, isto é, quase a hu­
manidade inteira. Como compreender então o que se
tornaria a felicidade de um Deus que ouviria durante a
eternidade tantas vozes gementes?... Encontramos no
país em que o cristianismo nasceu uma fábula alegórica
inspirada por um pensamento inteiramente diferente, a
fábula do Amor e de Psykhé ou a alma. O Amor se ena­
mora por Psykhé. Esta se torna culpada, como a Eva da
Bíblia, por uma curiosidade ímpia de saber, de outro modo
do que por Deus, discernir o bem do mal, e igualmente
por negar assim a graça divina. O Amor impõe-lhe pe­

9. "Testament philosophique", p. 29 (.Revue de métaphysique et de


morale, janeiro de 1901).
296 O PENSAMENTO E O MOVENTE

nas expiatórias, mas para torná-la novamente digna de


sua escolha, e não lhe as impõe sem pesar. Um baixo-re-
levo vem representá-lo segurando com uma mão uma
borboleta (alma e borboleta, símbolo dc ressurreição, fo­
ram desde sempre sinônimas); com a outra ele a queima
na chama de sua tocha; mas desvia o rosto, como que
cheio dc piedade."
Tais eram as teorias e tais eram também as alegorias
que Ravaisson anotava nas últimas páginas de seu Testa­
ment philosophique, poucos dias antes de sua morte. É en­
tre esses pensamentos elevados e essas graciosas ima­
gens, como se ao longo de uma aléia margeada por árvo­
res soberbas e flores odoríferas, que ele caminhou até o
último momento, despreocupado com a noite que vinha,
unicamente preocupado em olhar bem em frente, na linha
do horizonte, o sol que deixava ver melhor sua forma no
abrandamento de sua luz. Uma curta doença, que negli­
genciou cuidar, levou-o em poucos dias. Apagou-se, no dia
18 de maio de 1900, em meio aos seus, tendo conservado
até o fim toda a lucidez de sua grande inteligência.

A história da filosofia faz-nos sobretudo assistir ao


esforço incessantemente renovado de uma reflexão que
trabalha na atenuação das dificuldades, na resolução das
contradições, na mensuração com uma aproximação cres­
cente de uma realidade incomensurável com nosso pen­
samento. Mas, de longe em longe, sobrevêm uma alma
que parece triunfar dessas complicações à força de sim­
plicidade, alma de artista ou de poeta, que permaneceu
próxima de sua origem, reconciliando, numa harmonia
sensível para o coração, termos talvez irreconciliáveis
para a inteligência. A língua que ela fala, quando assume
a voz da filosofia, não é entendida do mesmo modo por
A VIDA E A OBRA DE RAVAISSON 297

todo mundo. Alguns julgam-na vaga, e ela o é naquilo


que exprime. Outros sentem-na precisa, porque experi­
mentam tudo aquilo que ela sugere. Para muitos ouvi­
dos, ela não traz mais que o eco de um passado desapa­
recido: mas outros já ouvem nela, como que num sonho,
o canto alegre do porvir. A obra de Ravaisson deixará
atrás de si essas impressões muito diversas, como toda
filosofia que se endereça tanto ao sentimento quanto à
razão. Que sua forma seja um pouco vaga, ninguém o
contestará: c a forma de um sopro; mas o sopro vem de
cima, e nítida é sua direção. Que ela tenha utilizado, em
várias de suas partes, materiais antigos, fornecidos em
particular pela filosofia de Aristóteles, Ravaisson se com-
prazia em repeti-lo: mas o espírito que a vivifica é um es­
pírito novo, e o porvir dirá talvez que o ideal que ela pro­
punha para nossa ciência e para nossa atividade estava,
em mais de um ponto, à frente do nosso. O que há de
mais ousado, o que há de mais novo do que vir anunciar
aos físicos que o inerte irá se explicar pelo vivo, aos bió­
logos que a vida só será compreendida pelo pensamen­
to, aos filósofos que as generalidades não são filosóficas,
aos mestres que o todo deve ser ensinado antes dos ele­
mentos, aos alunos que é preciso começar pela perfeição,
ao homem, mais que nunca entregue ao egoísmo e ao
ódio, que o móvel natural do homem é a generosidade?

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