Uma Interpretação Da História Ortega y Gasset
Uma Interpretação Da História Ortega y Gasset
Uma Interpretação Da História Ortega y Gasset
Acerca de Toynbee
José Ortega y Gasset
1ª edição — janeiro de 2023 — CEDET
Título original: Una interpretación de la Historia Universal:
En torno a Toynbee
Copyright © by Herederos de Ortega y Gasset
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Editor:
Felipe Denardi
Tradução:
Felipe Denardi
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Revisão de provas:
Paulo Bona na
José Carlos Moura
Flávia Regina eodoro
Diagramação:
Maurício Amaral
Capa:
Guilherme H. Conejo Lopes
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
F C
Ortega y Gasset, José.
Uma interpretação da história universal: acerca de Toynbee;
José Ortega y Gasset; tradução de Felipe Denardi
– Campinas, SP: Vide Editorial, 2023
ISBN: 978-85-9507-154-4
1. Filoso a moderna – Ensaios. 2. Ensaios e estudos losó cos.
I. Autor. II. Título.
cdd – 190-2 / 501-01
Í P C S
1. Filoso a moderna – Ensaios – 190-2
2. Ensaios e estudos losó cos – 501-01
VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro
meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Sumário
A
N
A I
A II
A III
A IV
A V
A VI
A VII
A VIII
A IX
A X
A XI
A XII
A
N R
A
Esta Advertência foi reproduzida no
início de todas as edições de obras
póstumas.
A ssimultaneamente,
Obras Inéditas de José Ortega y Gasset estão sendo editadas
em sua língua original, na América e na
Espanha, conforme os manuscritos e originais deixados pelo grande
lósofo depois de sua morte. Incluirão extensos trabalhos recentes que
“a desventura” — como ele escreveu — “parece se comprazer em não
me deixar dar-lhes aquela última demão, aquela sovada nal, que não
é nada e é tanto, aquela ligeira passada de pedra-pomes, que arremata
e polimenta”, e, em alguns casos, também escritos antigos que o autor
não incluiu em nenhum de seus livros. Dado o nível eminente de sua
obra intelectual, acreditamos ser obrigatório publicar sucessivamente a
totalidade de seus textos inéditos, inclusive aqueles estudos que
pareçam inacabados, e as notas ou apontamentos que possam servir
para orientar o trabalho de seus numerosos discípulos. Os escritos
serão editados tal e como foram encontrados; a revisão dos textos foi
encomendada a discípulos próximos e éis, a quem queremos
manifestar nosso agradecimento pela devoção e pelo rigor com que
cumprem sua tarefa, e cuja intervenção será sempre explícita e
aparecerá entre colchetes.
Editorial Revista de Occidente
N
O pan eto que divulgava a criação do Instituto de Humanidades
prometia a intervenção inaugural de seu fundador mediante um
curso de doze aulas “Sobre uma nova interpretação da História
Universal (Exposição e análise da obra de A. Toynbee, A Study of
History)”. Mas o alcance do curso (1948– 49) excedeu em muito esse
anúncio, visto que a análise consistiu, principalmente, numa crítica da
obra desde as próprias doutrinas de Ortega e o desenvolvimento de
suas idéias pessoais acerca da ciência histórica e a evolução dos povos
— em particular o romano —, com freqüentes excursões de intenção
sistemática à crise do tempo presente.
A I
As carreiras. — A informação
internacional. — Comunicações. —
Oxford. — A experiência da vida. — O
declínio greco-romano.
Ora, este inglês, com quem nos relacionaremos por tanto tempo,
apresenta-se a nós de antemão como um internacionalista; isto é,
como um homem ocupado em informar-se e informar sobre o que
acontece nos diferentes países. Mr. Toynbee não inventou essa
ocupação. É bastante incomum que o indivíduo invente a ocupação a
que vai dedicar sua vida. O que, com uma palavra, com um conceito
mais fulgurante do que preciso, dizemos “gênio”, signi ca — e consiste
em realidade justamente nisto —: ser capaz de inventar a própria
ocupação. Mas o normal é que o indivíduo escolha alguma das formas
genéricas de existência que o entorno social tem preparadas e que
chamamos de ofícios, pro ssões, carreiras. Sendo genéricas, temos
delas um conhecimento prévio sobre o modo concreto de qualquer
indivíduo determinado as exercer, e a simples audição de seu nome
suscita em nós uma peculiar expectativa.
Isto que acabo de dizer vale em grau muito especial no caso de que
tratamos. Importa muito ter uma expectativa clara do que este título
representa: anglo-saxão ocupado em se informar e informar sobre
assuntos internacionais. O futuro imediato do mundo e, portanto, o
nosso, depende em não pouca medida do que seja esse tipo humano.
Por conseguinte, atenção ao perigo! Não seria estranho se muitos de
vocês, ao se perguntarem que expectativa desperta em suas mentes
aquele título, não encontrassem nenhuma além da compreensão do
signi cado material mínimo dessas palavras. A razão disso é que as
expectativas não se originam em raciocínios nossos, que a qualquer
momento possamos improvisar, mas sim, como eu disse, formam-se
espontaneamente em nós por uma paulatina decantação de
experiências e, portanto, lentamente. Contudo, o internacionalista, a
pro ssão de informar sobre assuntos internacionais e sobre como são
os diversos países, é uma pro ssão recente, que começou a se de nir e
a revelar sua sionomia depois da Primeira Guerra Mundial. Portanto
não é nada estranho que ainda não tenha podido imprimir seus traços
nas mentes e que, assim, muita gente não pense em nada preciso ao
ouvir essa palavra, e que sem qualquer expectativa ou prognóstico.
Tanto mais urge chamar a atenção sobre essa nova pro ssão, sobre esse
tipo humano que foi, já, e que será ainda mais nos meses e anos que
vêm, de uma in uência tão grande quanto, quem sabe, perigosa.
Por causas diversas que então vieram a convergir, ao m da guerra de
1914–1918 produziu-se no mundo um fenômeno cujas importância e
gravidade ainda não foram devidamente reconhecidas. Ocorreu que,
para os efeitos históricos, isto é, da convivência entre os povos, o
planeta subitamente se contraiu, de modo que os povos começaram a
existir muito mais próximos uns dos outros do que antes. Cada nação
sentia que as outras, mesmo as mais distantes, estavam próximas e
imediatas, de modo que sua segurança e bem-estar dependiam do que
acontecesse nelas. A causa principal dessa súbita aproximação foi o
fabuloso progresso dos meios de comunicação. Notícias, homens e
coisas passaram a se deslocar vertiginosamente de um ponto do
planeta a outro remotíssimo. Conseqüência disso foi, por sua vez, que,
industrial e belicamente, todos os povos tornaram-se fronteiriços; e
mais ainda, por efeito da indústria — no que tange à obtenção de
matérias-primas e mercados —, as nações interpenetraram-se
mutuamente, pois não há país ao qual os demais não sejam
indispensáveis.
Algum dia, neste Instituto, faremos uma história das paixões, porque,
ao contrário de tudo o que já se disse a respeito, também as paixões
têm sua história, e não são, como se costuma pensar, modos
permanentes do homem, que não variam com suas vicissitudes. As
paixões nascem, crescem e morrem; estão no auge ou estão em etapas
de retirada e retração. Pois bem, algum dia faremos a história das
paixões, e entre elas a história do amor, que, ainda que pareça mentira,
ninguém jamais empreendeu. Então veremos que isso a que
chamamos o amor de um homem por uma mulher começou, e em
seus renascimentos começou sempre, não, como se poderia crer, pelo
entusiasmo para com a mulher próxima da mesma tribo ou classe
social, mas, ao contrário, por imaginar a mulher distante, distante no
espaço ou no patamar. Repetidas vezes a mulher inaugurou seu caráter
e condição de amada sob o aspecto de princesse lointaine, e não é por
acaso que, quando os costumes aproximam excessivamente homem e
mulher, o sentimento amoroso se volatize e sobrevenham esses
estranhos vazios de amor que caracterizam certas épocas.
A II
Arquitetura de Toynbee. — O que é uma
folha? — A história da Inglaterra. — A
realidade inteiriça. — A sociedade
ocidental. — Seus limites.
L amento, senhores, ter sido preciso intercalar entre vocês e a minha
pessoa este artefato mecânico, que é um microfone, porque, para
além de mecanizar cruelmente a voz, que é uma das coisas em que
mais integramente se projeta e imprime o homem, em que mais
autenticamente se é uma pessoa — e isso as mulheres sabem muito
bem —, além disso tem o inconveniente de às vezes não funcionar
bem. Mas era inevitável empregá-lo, e devemos mesmo agradecer os
seus serviços. Era inevitável porque, na primeira aula, não consegui ser
ouvido lá nas profundezes desta sala, mas, não obstante, era obrigado
a forçar a elocução, e, nesse expediente, ter de forçar a voz é o de
menos. O pior é que me compelia a vocalizar anormalmente,
pronunciando separadamente cada palavra, isto é, arrancando-a da
frase, colocando-a na atiradeira da voz e lançando-a ao espaço como
se fosse um projétil, o que fazia com que eu perdesse o ritmo do dizer
e nem mesmo eu reconhecia os vocábulos, assim tão anormalmente
pronunciados, a tal ponto que, quando lhes falava sobre a nostalgia,
não estava certo se talvez havia dito “hipercloridria”. São esses os
secretos apuros do orador, que não costumam ser leves, e que
proporcionam à sua tarefa um evidente dramatismo e um certo perigo
quase tauromáquico.
Ora, para Toynbee a história da Inglaterra não pode ser feita desde o
ponto de vista inglês, porque mesmo sendo essa nação, entre as
ocidentais, a que mais viveu desde si mesma, mesmo sendo essa
grande isolada, ela é parte de algo mais amplo. Não constitui o que
chamo de uma realidade inteiriça, o que Toynbee chama muito
acertadamente de “um campo histórico inteligível”. Todo o problema
da ciência histórica consiste em situar a realidade de que se fala no
campo histórico inteligível que ela reclama. Não é possível fazer essa
história da Inglaterra atendo-se à sua exclusiva realidade. A prova
disso está em que a Inglaterra não termina em si mesma, mas
manifesta-se em sua história como um fragmento de algo mais amplo,
sobre o qual temos de fazer uma vista panorâmica se quisermos, de
fato, entender o que foi e é a história da nação inglesa.
Quando Toynbee escrevia este livro, sobretudo esta parte, o que devia
ser no ano de 1931 ou 1932, é curioso como ele — e isso é muito
freqüente nos escritores ingleses desse tempo — não tem na linha de
frente ou em primeiro plano o fato do comunismo. Por isso foi preciso
acrescentar, na segunda edição, algumas notas explicativas de por que
falava então tão tranqüilamente desse caráter religioso ortodoxo como
característica do mundo eslavo e grego.
A III
O “caso” da Inglaterra. — Revisão. — O
Império. — O Mediterrâneo e o limes.
Isso nos faz ver que, para Toynbee, o ser nação é algo semelhante a
um particularismo coletivo. A idéia parece em parte extravagante.
Surpreende-nos encontrar semelhante fato numa obra das proporções
externas que vocês viram no outro dia, e das pretensões internas que
vocês vieram a saber, pois não se presuma que Toynbee, nestas
primeiras páginas, e para justi car de algum modo seu ex-abrupto, faz
alguma tentativa, ainda que moderada, de distinguir as diferentes
realidades históricas que se chamou ou que se podem chamar de
“nacionalismos”, nem nos oferece uma idéia medianamente deglutível
do que é uma nação, e se contenta com de nir o espírito de
nacionalidade ou nacionalismo — ele mesmo chama a isso de
de nição — como “o espírito ou tendência que induz as pessoas a
sentirem, agirem e pensarem a respeito do que é parte de uma
sociedade dada como se fosse o todo de uma sociedade”.
Pois é isso o que Toynbee faz nas primeiras páginas de seu livro,
onde, sem tempo para o primeiro respiro, nos joga na cara o seu ódio
pessoal à idéia de nação e sua fé bastante vaga em não sabemos que
outra coisa chamada a substituí-la, com a qual consegue que quem —
um quarto de século para trás, quando ainda ninguém na Inglaterra o
sugeria — fazia os povos da Europa verem que chegaria muito em
breve uma conjuntura histórica na qual seria para eles questão de vida
ou morte superar o princípio de nação como forma última constituinte
da vida coletiva, não possa caminhar nem um palmo de chão junto
com o antinacionalismo do autor, e isso precisamente porque, não
sendo nacionalistas, não queremos carregar sobre nossas costas uma
idéia de nação tão ridícula e inconsistente e imprópria de um homem
de ciência como a que é emitida por Toynbee nos umbrais de sua
grande produção.
Tenho alguma autoridade para dizer isso, porque Mr. Toynbee, tão
apto para me ensinar muitas coisas, não pode, como acabo de sugerir,
ensinar-me a não ser nacionalista fora de hora. Trata-se do problema
mais grave que está colocado no mundo e que, já faz um quarto de
século, como acabo de recordar, gravita sobre minha pessoa e sobre a
minha vida, porque eu o via chegar; o mais grave problema que há
hoje no mundo, em todo o mundo, pois talvez seja o único tema que
fermenta igualmente em ambos os lados do que se chama “cortina de
ferro”. E é por isso que, quando vejo que alguém se aproxima dele
frivolamente eu me sinta agoniado, como quem contempla um
menino manejando uma metralhadora.
O que foi dito, porém, basta para que vocês tenham claras certas
particularidades menos gratas do autor e, por outro lado, nos
esquivamos de entrar fora do tempo nessas matérias, que serão
oportunas mais adiante, mas que agora só teriam aparecido motivadas
por uma destas que chamei de excrescências, como cou patente,
porque na segunda aula eu pude expor o pensamento de Toynbee e
sobretudo seu ponto de arranque, deixando-as de lado e, contudo, com
estrita delidade, e mais ainda, dotando-o de muito maior rigor, o que
demonstra que seu ex-abrupto, além de ser um ex-abrupto, era um
estorvo.
Conste que isso não implica desdém algum para com a erudição
minuciosa, sem a qual — e dá vergonha dizê-lo, como dá vergonha
dizer tudo que é óbvio — sem a qual a história é impossível. Esta
manhã mesmo eu revisava, e com objetivos bem alheios a este curso,
as numerosíssimas anotações que me inspirou, em minhas solidões de
Lisboa, a leitura do monumental comentário composto com in nita
paciência às cartas de Lope de Veja pelo senhor González de Amezúa,
a quem, embora eu não tenha tido o prazer de conhecer pessoalmente,
quero endereçar minha gratidão, porque talvez esteja por aí, náufrago
no pequeno mar deste auditório. Mas se é certo que sem erudição não
é possível história, é preciso dizer com não menos energia que a
erudição ainda não é história. Não se deve confundir, pois, a erudição
— a boa erudição — com o que chamo de eruditismo, o qual é um
vício funesto em que recaiu a vida intelectual espanhola, e reparem
que funesto signi ca, simplesmente, a lida funeral com que nos
ocupamos de um cadáver. Eruditismo não é a sã e imprescindível
erudição, mas a torpe idéia de crer que a erudição, ou o simples
acúmulo de notícias, pode hoje ser a forma constituinte da vida
intelectual, coisa que perdeu o sentido desde o nal do século ,
em que as disciplinas de humanidades entraram numa nova forma
intelectual, na forma da ciência, a qual, repito, não é apenas erudição,
simples acumulação de notícias, mas teoria e construção.
Pois bem, segundo Toynbee — e nem é preciso dizer que a idéia não é
propriedade sua —, uma nação não constitui um campo histórico
inteligível, nem mesmo no caso da Inglaterra, sua pátria, apesar de ter
sido a mais arredia entre as ocidentais, apesar ser a mais señera. É bem
conhecida a etimologia da palavra “señero”. É a deformação popular
do vocábulo latino singularis, singular, aquele que está ou que anda
sozinho; como nas terras silvestres em geral não falta um javali que
vagueie solitário, longe da manada, chamaram-no singularis, e daí o
francês sanglier com que nossos vizinhos acabaram denominando
todos os javalis.
No que toca aos limites no tempo, já disse outro dia que de nossa
civilização não podemos de nir com precisão o que lhe compete na
direção do futuro, pois ainda não terminou, uma vez que nós, que a
somos, ainda estamos aqui. Mais ainda, a despeito de quanto ouvimos
falar e do que nós mesmos, re etindo, pensamos, acerca de uma
eventual demolição da nossa civilização, lá no fundo de nós mesmos
encontramos uma crença automática — como toda crença não
fundada em razões — em virtude da qual esperamos que nossa
civilização não vá periclitar. Talvez seja próprio de toda civilização,
como em todo amor autêntico, crer em sua própria eternidade.
Duvido que exista hoje sequer um homem no Ocidente, nem mesmo o
mais pessimista e que com mais reiteração pense que, por tais e tais
razões, nossa civilização vai sucumbir, que o creia. Porque crer é algo
muito distinto de pensar. Pensar pode-se pensar tudo, basta querer
pensar. Mas crer ou não crer está fora do nosso arbítrio. Pensamos a
verdade cientí ca, isto é, consideramos que uma certa idéia possui
certos atributos precisos que nos obrigam a incluí-la na grande
construção intelectual que é o sistema das teorias. A verdade cientí ca
persuade a nossa inteligência, mas isso não implica que creiamos nela.
Dizíamos que, ainda mais para além do Império Carolíngio e dos três
séculos do que Toynbee chama de “interregno”, sentimos que nossos
pés transitavam pelas fronteiras cronológicas de nossa civilização
ocidental, e que estamos dentro de outra civilização a cujo desmoronar
assistíamos: a civilização greco-romana. Prossigamos, fazendo com ela
o mesmo que zemos com a nossa. Comecemos por perguntar por
seus limites no espaço, e então teremos uma con guração geográ ca
da civilização greco-romana que é a seguinte: parte das ilhas britânicas
abaixo da Escócia, aonde não chega propriamente; desce para os Países
Baixos na linha do Reno e do Danúbio; chega, por outro lado, às costas
do norte do Mar Negro; entra em sua etapa de máxima expansão na
Báctria, na Índia, e em seguida corre por toda a parte alta da Arábia,
incluindo, portanto, a Síria; desliza por todo o norte da África,
chegando a se unir outra vez com as ilhas britânicas envolvendo a
Espanha e a França.
Com efeito, quando contemplamos essa estranha faixa que vai dos
Países Baixos, passando pelo Reno, até a Itália, surpreende-nos notar
que aí estão as capitais imperiais: a do Império Romano antigo, que
Carlos Magno quer ressuscitar com seu império, e a capital do próprio
império, Aquisgrana. Aí estão as duas cidades imperiais. Mas mais
ainda: essa linha — que era a linha imperial, a linha das batalhas, a
linha do mando no Império Romano — vai continuar sendo, até os
nossos dias, a linha pela qual tiveram de lutar todos os que quiseram
mandar no Ocidente. Aí deram-se todas as grandes batalhas pela
hegemonia européia. Aí teve de combater Carlos ; e ainda em tempos
de Felipe , naqueles anos de tão terrível astenia para o nosso império
— astenia sobre a qual eu talvez diga, algum dia, umas palavras — os
soldados, quase exangues, ainda continuam tendo de combater na
linha do Reno. E mais: a estas horas — digo-o deliberadamente —
uma das coisas que se discute no mundo é o que se passa no Reno;
continua sendo, pois, a linha que antes era fronteira imperial, eixo
central da história. Eis aí como, tendo mudado sua situação
geométrica, conservou sua função histórica, sua função imperial.
A IV
Domi e militiae. — O Império Romano,
Estado anormal. — Uma pausa: o
Instituto de Humanidades e a ciência
histórica.
N apresente
aula passada zemos uma viagem retrógrada, partindo do
e regressando em direção ao passado, até descobrirmos,
no século depois de Cristo, o começo da nossa civilização
ocidental. Dando seqüência ao nosso retrocesso, vamos parar dentro
do Império Romano, a cujo desmoronamento havíamos assistido logo
antes, isto é, havíamos ingressado no âmbito de uma civilização
distinta da nossa, na civilização greco-romana. Imediatamente,
executamos com relação a ela a mesma operação que zéramos antes
com a nossa, e que é o primeiro dado sobre uma civilização que é
necessário adquirir para de ni-la: determinar a sua gura geográ ca,
seu espaço histórico. Vimos que o espaço da nossa civilização coincide
em parte com o da greco-romana. Pusemos de lado, provisoriamente,
a América, a qual, não faz nem dois séculos, era somente uma orla
colonial do nosso mundo, e então notamos que a diferença entre
ambos os mundos, o antigo e o nosso, consiste, por um lado, em que a
nossa civilização acrescentou ao Império Romano a porção
continental que há para além do Reno e do Danúbio, portanto, as
terras do Norte, o Setentrião: a Germânia e a Escandinávia, a Escócia e
a Islândia; ao passo que, por outro lado, perdeu o Mediterrâneo, o
Oriente Próximo e o Norte da África, que durante o próprio século
os muçulmanos haviam conquistado. Esses dois fatos, a mudança
espacial que eles representam, essa anexação espacial, por um lado, e
amputação espacial, por outro, não signi cam em si mesmos nada
importante, apenas o deslocamento da mesma gura geográ ca de
uma latitude para outra. O que é importante nessa mudança no espaço
é que ela obrigou, automaticamente, a que se invertesse a direção do
dinamismo vital e, portanto, constituiu um corpo histórico de
anatomia diferente. No mundo greco-romano o centro é o
Mediterrâneo, e a vida vai desde o fundo das terras até as costas que o
mar latino, longe de separar, une e sutura. A vida antiga, dizia eu, foi
uma vida costeira.
Mas deixemos essa ponta solta por ora. Destaquemos, sim, como se
depreende, do que foi dito, que esse Estado, o mais ilustre, que
Toynbee chama de Estado universal e que vai servir-lhe de protótipo
para sua tese — segundo a qual toda civilização chega a um momento
em que se constitui como Estado universal —, esse Estado ilustre que
foi o Império Romano foi um Estado anormal, a anormalidade
consagrada como normalidade, a patologia estatal aceita como saúde.
Toynbee talvez não veja isso, porque Toynbee deixa de fazer algo que é
decisivo em história. Isso que acabo de dizer não pode ser visto senão
desde dentro da civilização greco-romana, e Toynbee não gosta de
entrar dentro das civilizações, e prefere contemplá-las desde fora,
como se contemplam as montanhas, e assim faz com que passeie, pelas
vastidões da história, a alma de turista que Deus concedeu ao inglês.
Pois bem, pela primeira vez em dez séculos, durante os últimos anos,
quinze ou mais, os intelectuais europeus emudeceram, e essa tarefa de
ir esclarecendo o que acontece conforme acontece cou por cumprir. E
isso numa ocasião em que os acontecimentos emergentes eram tão
tremendos e de sionomia tão nova que não valiam para eles, ao
menos imediatamente, os conceitos adquiridos na contemplação da
fauna histórica tradicional. Não é oportuno, agora, explicar por que os
intelectuais emudeceram; basta apontar para o fato de que, em toda
parte, e em cada uma, com roupagens distintas, é idêntica a causa de
sua taciturnidade. Mas o fato é que isso fez resultar que esses
acontecimentos tremendos, essa angústia do que acontece veio a
duplicar-se na nova angústia que é a obscuridade, as trevas sobre
aquilo que acontece. Os povos se contorcem de sofrimento e,
submersos na mais negra noite, não sabem de onde vêm os golpes,
nem para onde vão. Já em 1935 pude dizer publicamente: “Não
sabemos o que se passa conosco. E é isso o que se passa conosco: não
saber o que se passa”. Ou, se queremos, com um movimento
compensatório, encontrar uma imagem humorística para essa
situação, recordemos aquele quadro exposto numa galeria de belas-
artes, em que a tela estava inteira lambuzada de preto, e no quadro se
lia a legenda: “Luta de negros no túnel”.
A V
“Naturalidades” e “humanidades”. —
Sobre as realidades constitutivamente
históricas. — A razão histórica. —
Imperium e Imperator ante o olhar
oscilante do historiador. — A
ilegitimidade.
S enhores, na segunda-feira passada eu tentei mostrar, com a energia
bastante minguada que a insólita temperatura daquele dia me
deixou, como importa muito aos homens de hoje entender bem o que
foi o Império Romano e, portanto, o que signi cavam para os romanos
as palavras imperium e imperator. E já que aludi à temperatura,
aproveitarei a ocasião para solicitar de vocês uma benevolência
especial se uma ou outra vez falho no cumprimento do meu trabalho,
porque por toda minha vida fui vítima da ressonância orgânica que
em mim produzem as mudanças atmosféricas, com grave detrimento
de tarefas como a deste curso, que serão rendidas em data xa. Antes,
nas férias e feriados, costumava-se vender uma gura de frade com
um braço móvel, que assinalava numa coluna a chuva ou o bom
tempo. Pois eu sou um pouco esse frade, embora exclausurado. Os
médicos dizem que quem é somaticamente como eu é um vegetativo,
mas isso não passa de um eufemismo para não dizer que alguém é
orzinha demais.
O que ela, isto é, a ação de dizê-la, tem de passado é que, sendo uma
ação humana que executamos, sendo algo que nós fazemos, não
sabemos por que o fazemos, não somos autores conscientes e
responsáveis de nossa própria ação, posto que ignoramos
completamente por que chamamos essa víscera de “fígado”. Nós o
fazemos, pois, na conta de não sabemos quem, e isso quer dizer na
conta de alguém que não está presente em nós. Nós a dizemos porque
a ouvimos dizerem, porque se diz, assim como nos cumprimentamos
e, para cumprimentar, damos absurdamente as mãos, porque é assim
que se faz, ou como cremos que amanhã vai sair o sol, porque se crê.
Se, o causador de tudo isso, é um ente impessoal do qual nada
sabemos, salvo que estava aí antes que nós executássemos a ação de
dizer “fígado”, e que é quem a impôs sobre nós, como condição de
sermos entendidos. De modo que nos encontramos diante de um
fenômeno curioso. Esse ou isso na conta do qual dizemos a palavra
está presente, uma vez que age em nós, mas o está de uma maneira
muito peculiar, a saber: está presente com o caráter de ausente, posto
que não o vemos nem sabemos por que decidiu chamar de “fígado” a
nossa víscera.
Pois bem, esse agir no presente de algo latente, distante, que está, ao
mesmo tempo, ausente, isso é o passado. O que dele é presente para
nós é o seu efeito em nós, mas ele permanece oculto — o passado é o
Senhor “Não fui eu e não sei quem foi”. Vivemos a maior parte de
nossa própria vida na conta desse grande ausente que é o Pretérito, o
qual chamamos assim porque já não é, mas foi; ou seja, foi-se, foi
embora. De modo que a palavra “fígado” tem sua face, seu aspecto
frontal que vemos e é seu presente, mas a este está ligado o seu dorso,
suas costas que não vemos e que é seu passado; só vemos que o possui.
Nós nos damos conta de que está constantemente vindo dele para a
atualidade em que a usamos. Isso acontece com toda a nossa vida, e
aconteceu com a de todos os homens que já existiram; nossa vida é
incessantemente empurrada por trás pelo passado; como um vendaval
mágico sopra o pretérito sobre o dorso de nossa existência, movendo-
nos a ações que nós consumamos, mas das quais não somos
inventores, e nem sequer as entendemos. Por isso o homem e tudo que
nele é humano é realidade histórica, pois, conforme vimos, é
literalmente verdade que é, desde logo, feito de passado, porque uma
de suas partes, a que chamamos de suas costas, consiste presentemente
em passado, em e cacíssimo passado.
Contudo, catum não tem nada que ver com a nossa víscera; signi ca
algo que foi temperado ou decorado com gos, em que intervêm os
gos; catum é, pois, “ gado”. Mas, uma vez diante dessa palavra, o
latinista resolve para nós a questão imediatamente. Ficatum é um
termo culinário. Um dos manjares preferidos nas tabernas e nas casas
do Mediterrâneo latino e dos povos helênicos era precisamente o
fígado de um animal acompanhado de gos, e se chamava, em natural
e inteligível conseqüência, iecur catum, ou, em grego, hépar sycotón.
Agora sim podemos aplicar uma lei lingüística geral que nos explica
por que chamamos “manjar com gos” à nossa víscera que nada tem
que ver com eles. Essa lei é que toda língua possui o que eu chamo,
recordando o Órganon, registros diferentes em que é falada. Há o
registro solene, o que Sancho Pança chamava de falar de oposição, e há
o registro da língua burlesca, do falar de brincadeira, que nos leva a
dar às coisas nomes e giros cômicos. É o que os ingleses chamam de
slang e os portugueses de calão, que não é o caló dos ciganos. A nós,
como aos franceses — e é lamentável —, falta-nos denominação para
esse modo de falar que talvez seja mais freqüente na Espanha do que
em qualquer outro povo.11
E isso basta por ora, pois, para continuar, eu teria de retirar o que
acabo, por cortesia momentânea, de enunciar, a saber: que a razão
histórica é uma forma da razão ao lado e à frente das outras, porque a
verdade é que a razão histórica é a base, fundamento e pressuposto da
razão física, matemática e lógica, que não passam de particularizações,
especi cações e abstrações de cientes daquela. Mas é melhor que isso
que, na maioria de vocês, caliginoso e obscuro, porque é um
assunto... excessivo. Por isso é melhor que, caritativamente, vocês o
dêem por encerrado, salvo os jovens que há nesta sala, porque eles e
seus lhos e os lhos de seus lhos terão, querendo ou não, de se
ocupar muito da “razão histórica”.
Agora, prossigamos.
De tudo que foi dito se depreende que toda realidade humana, por
sua historicidade, consiste em vir de algo passado e ir para algo futuro.
Portanto, é uma realidade substantivamente móvel. E isso deve ser
entendido vigorosamente. Não se trata de que uma coisa, além de já
ser o que é, se mova do passado para o futuro, mas sim que toda
realidade humana — não estou falando da sobre-humana — é apenas
um “vir de” e um “ir para”. Eis por que a pupila do historiador — isto
é, a ciência histórica — não possa olhar seu objeto enfocando-o e, com
isso, cando parada. No momento em que olhamos para algo humano
com a pupila parada nós o xamos, o detemos, o congelamos ou
cristalizamos, nós o mineralizamos, desumanizamos. Ao contrário, a
pupila do historiador para ver uma coisa determinada — um gesto,
uma palavra, uma obra de arte, um homem, uma nação ou isto que
Toynbee chama de uma civilização — deve mover-se sem cessar,
oscilando constantemente do passado para o futuro, do futuro para o
passado. Até onde no passado e até onde no futuro deve chegar essa
oscilação é questão que será preciso determinar em cada caso
concreto. Veremos tudo isso em seguida com a mesma clareza que, ao
nal, víamos o exemplo anterior. Só que agora o exemplo não é
ridículo, é mais digno — é um dos mais dignos que existem —, é o
grande tema do imperium e do imperator.
Mas, além disso, o que digo — e que foi durante metade da minha
vida uma preocupação e uma angústia que me acompanhou — eu o
escrevi nos anos de 1928 e 1929 em meu livro A rebelião das massas.15
Ali digo, e me referindo a todo o Ocidente:
A função de mandar e obedecer é a decisiva em qualquer sociedade.
Como a questão de quem manda e quem obedece anda essa bagunça,
todo o resto seguirá de forma maculada e imperfeita. Até a
intimidade mais íntima de cada indivíduo, salvas as exceções geniais,
cará perturbada e falsi cada. Se o homem fosse um ser solitário, que
só estivesse convivendo com outros por acidente, talvez saísse ileso
dessas repercussões, originadas nos deslocamentos e nas crises do
imperar, do Poder. Mas como é social em sua tecedura mais
elementar, ca transtornado em sua índole privada por causa de
mutações que, a rigor, só afetam imediatamente a coletividade. O que
nos permite, se tomarmos um indivíduo à parte para analisá-lo,
deduzir sem mais dados como a consciência de mando e obediência
anda em seu país.
Espero que não lhes pareça agora tão insensato a rmar que nos
importava muito ver com clareza o que foi, no Império Romano, o
imperium e o imperator.
A VI
Etapas na origem do Estado. — A
evolução do Estado romano. — O nal
da legitimidade. — O símbolo do
passado britânico.
S enhores, repassemos os marcos de nossa trajetória, a m de que,
tendo-os em mente, não nos sintamos perdidos e vejamos com
perfeita clareza por que estivemos falando na aula anterior, e falaremos
nesta, aquilo que falamos e vamos falar ainda com grande insistência.
Feita esta previsão, resulta o seguinte: nós nos propúnhamos a expor o
pensamento de Toynbee. Ele começa por nos fazer ver que as nações
são sociedades de uma determinada espécie, que se caracterizam por
ser essencialmente partes de uma sociedade mais ampla em que
convivem várias, portanto, uma sociedade de uma nova espécie, que
Toynbee chama de “civilização”, cujos atributos será preciso
determinar, pois estas novas sociedades ou civilizações são, para
Toynbee, o sujeito próprio da história.
E em que consiste esse lme milenar a que assistimos outro dia? Digo
milenar porque, desde os tempos mais antigos a que eu me re ro, até
Trajano, podemos pôr aproximadamente mil anos. Em que consiste,
pois, esse lme milenar? Vimos que, na sociedade primitiva, no povo
primitivo, não há Estado, isto é, poder público constituído. Nele,
ordinariamente, ninguém manda com um mando de caráter coletivo,
ou seja, com anuência formal da sociedade. Essa anuência da
sociedade, quando se refere, não ao comportamento momentâneo de
um homem, mas a formas de conduta genéricas, é o que chamaremos
de direito. Pois no povo primitivo não há, de modo estável ou
continuado, nem Estado nem autoridade; portanto, não há direito.
Não há mais que costumes, que são puro passado, agindo
mecanicamente sobre os indivíduos. Com certa razão se disse — ainda
que os que disseram talvez não se dessem conta das razões
intimamente profundas que havia para isso — que o costume é, no
homem, o que os instintos são no animal, especialmente nos insetos
impropriamente chamados de sociais: cupins, formigas e abelhas. O
Estado primigênio, a autoridade originária surge somente de modo
descontínuo e súbito nas situações extremas. Num momento de
perigo, quando a tribo vizinha ameaçava ou quando a fome apertava e
não havia opção além de resolver o problema da inanição, se adiantava
espontaneamente um homem com mais coragem e destreza guerreira
que os outros, mais capaz de organizar, de tramar ardis ou de
encontrar recursos, em torno do qual, com a mesma espontaneidade,
se agrupavam os demais varões adultos da tribo, arrastados e como
que contagiados por sua energia e entusiasmo, cheios, portanto, de
uma súbita fé nele. Porque isso é a fé quando se dirige a um ser
pessoal: con ança, esperança. Isso é também a fé em Deus, e não
como ordinariamente crêem os totalmente alheios à teologia, que crer
em Deus seja simplesmente crer que Ele existe, que está lá. Muitos
homens crêem que Deus existe e, contudo, não são religiosos nem têm
fé em Deus. A crença ou a fé em Deus, mais do que crer que Ele existe,
e isso não é um paradoxo, é con ar n’Ele e ter n’Ele esperança; é a
diferença que já Santo Agostinho marcava, quando distinguia entre
crer que há Deus e crer em Deus. E é muito possível que a única
maneira que o homem tenha para poder crer de verdade em que Deus
existe seja, antes de crer nisso, crer n’Ele, con ar n’Ele mesmo, ainda
que lhe pareça inexistente. Essa estranha combinação é a autêntica fé.
E eu não sei se, com o que digo (algum teólogo deve estar aí a me
escutar), digo alguma heresia, mas estou certo de que é a idéia mais
e caz que se pode ter da fé em Deus.
Pois bem, digo que nesse momento de perigo um homem mais capaz
se adianta aos demais, os quais se agrupam atrás dele, o acompanham
e estão dispostos a fazer o que ele disser. Tudo isso se realiza nos povos
primitivos sempre com um caráter de contágio; eu já disse a palavra,
mas agora vou completá-la com um termo que não uso em seu sentido
técnico, porque seria inapropriado, mas no sentido que tem na língua
corrente: “contágio histérico”. Como sabem, os povos primitivos, por
exemplo os primitivos atuais, vivem estados coletivos de contágio que
poderíamos chamar de “histéricos”, como acontece todos os dias com
os negros nos Estados Unidos.17
Por que isso? A expulsão dos reis não pode ser feita num santiamém;
custou longas guerras, porque os etruscos apoiavam a dinastia de seus
parentes. Isso quer dizer que, embora a rebelião tenha sido
aristocrática, não houve saída além de empregar todos os homens, os
varões úteis de Roma, pobres ou ricos, nobres ou vulgares. Esse
contingente total dos habitantes varões sem distinção de classe,
atuando na guerra em formação de exército, é o que se chamou
populus. Daí que devastar uma região se dissesse, em latim, populari.
Populus é, pois, estritamente o conjunto dos cidadãos organizados em
pé de guerra. Vem a ser, pois, o que os franceses, em 1790, chamariam
de la nation en armes, o que os mesmos franceses, e não os alemães,
como se atribuiu erroneamente, depois de 1918 chamaram de “a
guerra total”. Populus, então, signi ca todos os cidadãos juntos diante
do perigo. Do substantivo populus se formou o adjetivo publicus; o
que é do populus é público. Os senadores não tiveram escolha a não
ser fazer concessões ao populus em matéria de legislação, e assim se
constitui o novo Estado romano, que vai receber o nome com clara
crueza — já o dissemos no outro dia: sem atenuações nem melindres,
como os romanos chamavam as coisas —, com um nome
esquisitíssimo, porque são dois nomes, Senatus Populusque, e daí vão
dimanar todas as leis, do Senado e do povo. Essa dualidade é a nova
Roma.
Eis aqui, pois, como devemos representar a autêntica vida pública dos
romanos nos séculos que vão desde a implantação da República — em
500 a.C. — ao tempo, por exemplo, de Cipião Emiliano em 190 a.C.
Unidos e, ao mesmo tempo, frente a frente, compartilham um passado
venerável de legitimidade e um presente, ilegítimo por si mesmo, que
não obstante a rma suas aspirações, apetites e vontade de ser.
A VII
As corridas de touros. — Revisão. —
Enriquecimento: absorto e aberto; a
magnitude escalar. — Parêntesis: a
tibetanização da Espanha no século xvii e
o m do século madrilenho.
Tinha toda a razão. Fora duríssima para vocês e para mim. Logo
indicarei por que motivos teve de ser assim. Mas antes quero dizer que
me referi a Domingo Ortega, não só pelo seu nome, mas também
indicando sua pro ssão, porque alguns vermes jornalistas — que
fazem o cuco do relógio nas páginas de jornais e revistas, pondo logo o
bico para fora para cuspir alguma insolência irresponsável e gratuita,
que nesse caso ca impune, porque sabem que, nos jornais espanhóis,
não posso responder-lhes algo como, mais de uma vez e de supetão, z
em minha vida — alguns vermes jornalistas — digo — acreditaram
que podiam desacreditar estas aulas e denegrir este auditório
noti cando que a elas assistem toureiros. Mas que idéia têm do que é,
sobretudo, do que tem de ser a ciência, e especialmente as ciências
humanas, e que idéia têm do que é e foi o toureiro na Espanha esses
mentecaptos? O Instituto de Humanidades, se conseguir rmar sua
existência, se propõe uma reforma profunda das ciências que estudam
o humano, e essa reforma, que começa por seu próprio conteúdo
cientí co, continua como uma reforma do modo de viver a ciência, o
modo de ela existir no corpo social. Queremos que deixe de ser
propriedade exclusiva dos mandarins — dos acadêmicos, dos
professores universitários — que é, a propósito, o meu caso —, não
porque creiamos que estes não representam mais uma fértil e
importante função no trabalho intelectual, mas porque seus modos de
agir não bastam. É preciso, para que não periclite a nossa cultura
ocidental, até agora demasiado mandarinesca, que a ciência seja algo
muito mais vivaz, que esteja presente no corpo social penetrando-o
por inteiro, que todos convivam e colaborem em seu exercício, cada
qual — naturalmente — no grau e do modo que lhe corresponde. Por
isso seria ideal que o auditório destes cursos e dos colóquios que
praticamos em outro lugar20 fosse um re exo perfeito da sociedade
espanhola, desde o operário manual, que, infelizmente e para
vergonha dos demais, carece até de preparação secundária, até os
homens que sabem mais que nós, e ouvindo-nos possam nos corrigir e
completar. Convido os jovens a que prestem bem atenção neste
propósito, e em seguida julguem por si mesmos se não tem um grande
sentido e, portanto, se não devem fazer soprar, nas velas deste projeto,
o magní co vento alísio de sua mocidade.
A unidade da vida romana, que foi a mais sólida conhecida, não foi
uma unidade regalada, inercial, mas unidade obtida, conquistada
precisamente pelo entrechoque do formidável dinamismo e ânimo
pendenciador desses grupos sociais; foi unidade de equilíbrio de
forças; portanto, de compromisso. É claro que o que dava mais solidez
a essa unidade dos disputantes era o consensus, aquela crença total
comum em certa concepção da vida e do mundo e, ademais, a
resolução em todos de que, fosse lá o que acontecesse, em suas
contendas e discussões, Roma sempre se mantivesse, sempre triunfasse
e sempre eles continuassem sendo romanos. Se não se leva em conta
esses pressupostos, aparentemente contraditórios, não se pode
entender bem a história romana.
Em Roma, sobretudo originariamente, tudo tem sabor e cheiro de
peleja e de pendência. A vida é luta. Lembrem-se de que as
testemunhas perante o juiz de um processo signi cavam
primariamente os que acompanhavam o querelante para dar-lhe apoio,
e como em Roma nada é de brincadeira, visto que os latinos careciam
de humorismo, apoiar queria dizer, ao menos primitivamente, andar
aos socos com as testemunhas do outro querelante. Representavam,
pois, entre os dois litigantes, uma terceira força, os terceiros na
discórdia. E esse signi cado, mais ou menos bronco, perdura nas
palavras do nosso próprio idioma, como, por exemplo, “contestar”, que
para eles signi cava contrapor frente a frente os dois grupos de
testemunhas, e é mais claro ainda o sentido violento na palavra
“detestar”, que signi ca simplesmente expulsar uma das testemunhas,
o que não é verossímil que se zesse, a princípio, com meros afagos.
Quero dizer que a realidade a que esse conceito se refere, sem deixar
de ser efetivamente essa realidade que é, tem, algumas vezes, maior ou
menor plenitude em si mesma. Isso explica por que, ao vermos as
coisas que cada época disse de si mesma, camos surpresos com o fato
de que muitas delas são sempre as mesmas. Por exemplo,
provavelmente não houve uma só geração humana, desde que existem
civilizações e que se inventou o dinheiro, em que seus indivíduos
longevos não tenham vivido a experiência de que, durante o seu
tempo, portanto, no espaço de cinqüenta a sessenta anos de sua vida,
“o dinheiro havia mudado de mão”. É provável que toda vez que se
disse isso era verdade; mas era, em cada uma, com uma intensidade ou
saturação diferente, e em algumas aconteceu em doses máximas, e
então aquelas palavras, “o dinheiro mudou de mão”, adquirem um
sentindo pleno, exemplar, saturado e prototípico. Devemos aplicar isso
a todos os conceitos gerais da história, e isso nos permite fazer, na
história de cada povo, uma escala do fenômeno “o dinheiro mudar de
mão”. E o mesmo poderíamos fazer com qualquer outra ordem da
realidade histórica: uma escala em que, a cada época, corresponde um
coe ciente maior ou menor.
Assim, em sua categoria dual, absorto e aberto, têm sentido pleno,
mas têm outros sentidos mais fracos e debilitados. Um exemplo
esclarecerá tudo: Até a primeira guerra púnica, que termina em 241
antes de Jesus Cristo, Roma vive completamente absorta em si mesma,
submersa em suas tradições, em seus usos imemoriais e, portanto, com
uma fé intacta e maciça em sua concepção de todas as coisas do
mundo. Nesse primeiro caso temos um exemplo de como é o “absorto”
em seu sentido máximo. Depois da primeira guerra púnica Roma se
abre para o estrangeiro, divergente e outro em relação a ela, mas essa
abertura foi inicialmente muito módica e muito relativa. Só durante a
segunda guerra púnica, que termina em 202 antes de Cristo, e,
sobretudo, quando poucos anos depois os romanos se decidiram a
declarar guerra a Perseu, rei da Macedônia, o que traz consigo a
conquista da Grécia, empapada de antiga e re nadíssima cultura, é
quando Roma se abre de um modo pleno ao estrangeiro e diverso. O
general que venceu Perseu foi Paulo Emílio, pai de Cipião Emiliano,
que era então um adolescente, pois tinha uns dezoito anos. Não
obstante, seu pai fez com que assistisse aos combates e ali travou
amizade imarcescível com o grande historiador Políbio, que o descreve
tão minuciosamente em seu livro.
Isso, senhores, creio que nos permite ver com certa evidência o que
signi ca essa contraposição de conceitos que eu considero
importantíssima na história: a vida como vida absorta em si mesma, e
a vida como vida aberta ao diferente. Pode parecer que perdemos
tempo com esses exemplos, mas a verdade é que ganhamos, porque no
próximo dia vamos economizar muitas palavras quando eu for expor a
vocês toda a última etapa da evolução do Estado romano, que avança,
em súbito enriquecimento, para uma ampliação, modernização e
ilegitimação da vida coletiva.
A VIII
A riqueza e a origem da razão. —
Modernidade e ilegitimidade. — Os
exemplos espanhóis. — A transição de
Roma: da vida absorta para a vida aberta.
— (O direito; o intelectual; o profeta
Amós). — A “intoxicação” pela vitória, o
estoicismo e o deus Sol. — As guerras
civis. — O Estado imperial. — O
primeiro remédio para a “ilegitimidade”.
S enhores, no outro dia eu quei com meia aula entalada, o que, para
um professor, e em geral para um orador, é um estado bastante
grave, algo como, numa imagem barroca, car grávido pela metade
por não ter conseguido parir mais que metade da criança. Foi algo
lamentável, porque impediu que vocês contemplassem, num só golpe
de vista, desde o princípio até o m, a evolução do poder estatal, do
poder supremo em Roma, e essa contemplação era imprescindível,
pois apenas chegando assim ao surpreendente m se preenche de
sentido, de forma súbita, tudo o que viera antes.
Até a segunda guerra púnica vemos como Roma estava presa ao seu
modo tradicional de pensar e de ser, e como, durante essa guerra, ela
começa a mudar. E esse encontro com outros modos de ser distintos
do tradicional, unido às necessidades que o crescimento próprio
acarreta, traz consigo o fato de que o povo entre numa forma de vida
de novos modos, isto é, “moderna”. Modernidade é, pois,
enriquecimento, e vice-versa; mas essa vida moderna, que material e
tecnicamente é mais e caz que a antiga, foi criada fora e à parte da
crença rme, compacta, consagrada, na qual se fundava a pura
legitimidade do passado imemorial, e é, portanto, um viver sem
sacramento rme. Modernidade é enriquecimento, mas é também, por
si mesma e simplesmente, germe de ilegitimidade.
É evidente que eu não sou hebraísta, como, a rigor, não sou quase
nada além de um senhor que quase disse a vocês coisas que quase têm
sentido. O que já é bastante, já é bastante! Pois bem, nenhum dos
tradutores do Antigo Testamento as traduziu assim, apesar de
conhecerem admiravelmente a língua hebraica e aquela para qual a
vertiam. A que se deve esse erro em suas traduções? Muito simples: ao
fato de não entenderem a realidade humana a que aquelas palavras se
referem — o que é ser profeta, ser intelectual. Como eu, por minha
vez, a conhecia, tão logo tropecei com uma breve alusão lingüística
que me o permitia, não obstante minha ignorância erudita, acertei sua
tradução. Já os Setenta a traduzem mal — não entendem o que seja
profetizar, enquanto essencialmente profetizar contra, e empregam
uma vaga preposição epi, que signi ca tanto a como sobre, mas jamais
contra. A tradução latina Vulgata segue os Setenta, e traduz neste
versículo: “profetiza a Israel”, e no seguinte: “profetiza sobre Israel”.
Segue esta a versão espanhola mais popular, a do Pe. Scio. A
protestante de Cipriano de Valera também não entende o primeiro
versículo em que Jeová fala, mas ao menos no seguinte, onde se
referem palavras de Amasias, traduz: “Não profetizes contra Israel”.
Segue-o, quero dizer, coincide com ele a recente tradução espanhola de
Nácar-Colunga. Mas eis que, por m, forçados como Kittel pelo fato
estritamente lingüístico, e atendo-se a ele, a recentíssima versão
castelhana — publicada poucos meses atrás — do jesuíta Pe. Bover e
do senhor Cantera já traduz corretamente: “Vê e profetiza contra meu
povo”. Que este exemplo, claríssimo por sua própria simplicidade e
nimiedade, sirva para que se veja como não se pode fazer história sem
possuir a técnica superior, que é uma teoria geral das realidades
humanas, o que eu chamo de uma historiologia.
A essa invasão de novas religiões, que Tito Lívio descreve e que vai
deslocar de nitivamente a unidade da crença, respondem os
partidários da tradição como sempre zeram, tentando ressuscitar
arti cialmente os mais vetustos ritos itálicos, como o ver sacrum e
outros. É a eterna tentativa, eternamente fracassada, de retornar ao
mos maiorum, aos usos dos antepassados. O resultado é que a religião
deixa de ser base unitária e comum e se converte em campo de
batalha, e concretamente de batalha eleitoral entre os reacionários e os
revolucionários. Mas muitas vezes se compreende que, tão logo se faz
da religião, real ou tacitamente, questão de votos, esta deixa de ser a
substância conjuntiva que uni ca maciçamente a vida de um povo.
A mente do romano, por seus próprios triunfos militares, se abriu e
se encheu de muitas concepções possíveis do mundo. Com isso se
enriqueceu mentalmente, sem dúvida, mas então o indivíduo se vê
obrigado a escolher entre essa grande diversidade, e a escolher
segundo critério e decisão pessoais. O romano, ao enriquecer, ao se
modernizar, se individualiza, se personaliza. E como o poder de Roma
no mundo é enorme — pensem no que representa como virtualidade
de poderio a autoridade absoluta, sem limites de um procônsul a quem
se entregava toda a Espanha ou toda a Grécia ou toda a Ásia Menor —,
ao desintegrar-se o bloco da vida civil tradicional surgem essas
personalidades desmesuradas, enormes, não oprimidas em seu
desenvolvimento pelos costumes nem pelas leis, que vão perdendo
vigência efetiva. Nas nações européias sempre foram impossíveis
personalidades desse calibre e desse formato. Napoleão é, enquanto
personalidade — comparo agora os dons ou talentos — uma freira ao
lado de guras romanas de segunda ordem desde o primeiro século
antes de Cristo. Isso se explica porque toda essa desintegração da
legitimidade e as que imediatamente mencionamos acontecem — não
se esqueçam — enquanto Roma goza de uma absoluta preponderância
no mundo. Depois da segunda guerra macedônica ela cou sem
qualquer pressão externa, sem inimigo relevante que desse caráter
compacto à sua vida e limitasse as extravagâncias e exorbitâncias
desses homens. Acresça-se que, até Augusto, perdura nos romanos seu
efetivo ânimo “heróico” — do qual, por si, lhes é indiferente a bondade
ou a maldade. É preciso aprender em Roma o que é o tipo de herói
perverso.
Num século — do ano 190 ao ano 90, e marco esta última data
porque, dois anos depois, vai estourar a primeira guerra civil entre
Mário e Sila — todo o bloco compacto que era a vida romana se
desintegrou. À desintegração das crenças e do sistema normativo dos
costumes, ou seja, das condutas, segue imediatamente a desintegração
da legalidade do poder público, como, um instante atrás, mostrei
citando as frases de Cícero e de César. Já não se crê no Senado nem se
o respeita, entre outras coisas porque as famílias senatoriais foram as
primeiras a degenerar, e são membros sobressalentes delas os
primeiros que se revoltam, que revolucionam contra sua venerável
autoridade. Uma após outra vêm todas as insubordinações: a dos
cavaleiros ou equites, a dos plebeus, a dos escravos com Espártaco, a
dos aliados. Mas, entenda-se bem, sob todas elas está latente a
convicção crescente de que um enorme bem-estar — resultado da
vitória que parece de nitiva — é possível, e que todos podem
participar dele. É o que, naquela civilização de técnica insu ciente,
corresponde à consciência vigente, esses últimos tempos, de que o
homem possui uma riqueza ilimitada, que tem para todos, que é
preciso exigi-la com petulância e com violência, porque, se não tem
para todos, é porque alguém a está roubando para si.
Eis, pois, que esse povo romano, ao chegar a hora de sua máxima
civilização, de seu mais avançado desenvolvimento, de seu maior
triunfo, volta à situação primitiva de ilegitimidade. Não há Estado
legal porque não há estado de espírito comum na coletividade.
Ninguém tem direito a mandar e, por isso, lutam uns com os outros
para se apoderar do mando. A situação das coisas não tem saída, não
traz em si uma solução orgânica e séria. Não se prestou a devida
atenção ao fato de que, poucos dias depois de Júlio César ser
assassinado, Cícero menciona numa de suas cartas como Matius, um
amigo íntimo de César, foi vê-lo, e revela que não sabia o que fazer
para sair daquela situação — literalmente, exitum non reperiebat —,
não via saída alguma. A situação a que se chega depois daquelas sete
atrozes guerras civis foi expressa por Tácito, conforme seu costume,
num comprimido verbal que, justamente por sê-lo, passou
despercebido à maioria de seus leitores. Quando querem explicar por
que todos entregam o poder de nitivamente a Augusto e se funda o
principado, ou seja, o império, diz apenas estas palavras: cuncta fessa
— todo mundo, pessoas e coisas, estava fatigado, farto, não agüentava
mais. Durante anos e anos ninguém esteve seguro de não morrer
qualquer dia assassinado. Horácio, agradecendo Augusto a ordem que
estabeleceu, declara-o na Ode do livro :
Todo o mundo — cuncta fessa — necessitava dela, mas como não era
nem podia ser um Estado normal porque não podia gozar de
legitimidade, necessitava mas ninguém a queria, nem mesmo Augusto.
Porque este é o fato incrível, mas incalculavelmente revelador de toda
essa realidade — com a qual encerro. As coisas andam tão mal que, no
ano 22, o Senado está resoluto a nomear Augusto como ditador, ou
censor; ou seja, com outro nome, imperador. Mas este, que era bem
mais medroso e descon ado, sente terror diante da possiblidade de ser
encarregado de exercer o poder supremo, e por isso foge para a Sicília,
isto é, foge da ditadura, foge ele mesmo do império, e então sai em
disparada uma parte do Senado perseguindo-o para alcançá-lo e
obrigá-lo a voltar a Roma e constituir-se dictator, princeps, imperator.
Como diz muito bem Ferrero: “a ditadura perseguia o ditador”.
Esse Estado imperial que começa com Augusto vai exercer sua
imperatividade de forma superlativa, nunca antes experimentada. É a
compressão do poder público pura e nua de consagração. E assim, o
Estado aumenta sua pressão sobre os indivíduos estritamente na
medida e conforme a crença diminui. Esta era uma disciplina interna
e, ao faltar, se intensi ca automaticamente a disciplina externa.
Mas uma nova pergunta, menos teórica que a anterior, mais grave,
mais urgente brota em todos nós, suscitada por tudo que eu disse: O
que fazer quando a vida de toda uma civilização entra na etapa de
constitutiva ilegitimidade? Eu não me comprometi, no anúncio deste
curso, a responder essa pergunta, e não vou fazê-lo imediatamente. É
possível que, nas aulas subseqüentes, essa resposta apareça sob a forma
de tênues insinuações. Mas posso, sim, dizer agora mesmo qual a
primeira coisa que é preciso fazer quando se quer enfrentar e corrigir a
tremenda conjuntura histórica que é a ilegitimidade. A primeira coisa
a fazer é, simplesmente, reconhecê-la, car bem consciente de que é
ela a profunda realidade que constitui a época, em vez de tergiversar
sobre ela atribuindo sua causa a insubordinações e indocilidades deste
ou daquele homem, grupo ou classe. Não se pode resolver um
problema se não se vê claramente sua existência e sua consistência. Por
isso, senhores, a primeiríssima coisa a fazer com a ilegitimidade é...
engoli-la. Então veremos.
A IX
Revisão do itinerário. — O direito e o
justo. — Creta. — A “inf luência
universal”. — Civilização e “sociedade
primitiva”. — As civilizações espontâneas.
— Obstáculo e ataque.
S enhores, já faz muitas aulas que parece que nos esquecemos de
Toynbee e, entretanto, veremos como, com tudo isso, não zemos
senão ganhar velocidade na exposição do resto de sua doutrina. Nós o
abandonamos quando, guiados por ele, procurávamos de nir a
civilização greco-romana, que é materna com relação à nossa,
assimilando seu destino cronológico, ou seja, seu princípio e seu m,
onde e quando acaba, onde e quando começa. Assistíramos à sua
destruição, causada, segundo Toynbee, que nisto aceita a opinião
vulgar, por uma invasão ou emigração de povos bárbaros até então
contidos para além da fronteira; por uma Völkerwanderung, do que
ele chama “proletariado externo” daquela civilização. Essa irrupção
trouxe consigo séculos de caos que ele chama de “interregno”, por
serem séculos sem ordem nem concerto em que ninguém manda.
Logo, retrocedendo, vimos que a civilização greco-romana goza sua
última etapa de existência estruturada na forma de um Estado
universal, o qual é, diríamos, invadido verticalmente de baixo para
cima por uma religião universal nascida do “proletariado interno”
alojado nos fundos quase subterrâneos daquela sociedade. Esse Estado
universal foi o Império Romano, e nele nos detivemos para completar
a imagem externa, como de turista ou cicerone, que Toynbee nos
apresenta, com uma imagem dessa mesma realidade vista desde
dentro. Mas não pudemos fazer isso, quero dizer, entender a realidade
histórica que foi o Império Romano, sem submeter nosso olhar
histórico, como requer a óptica do historiador, a um grande pendular.
Isso nos levou inevitavelmente a descobrir todo o passado de Roma.
Mas como Toynbee não está disposto a ceder perante os fatos, uma
vez que não pode a rmar de maneira resoluta que a civilização greco-
romana nasce como lha da cretense, que ela tem, pois, com aquela a
relação que ele de niu como paternidade ou maternidade e liação,
não obstante, decide a rmar que a civilização greco-romana procede
da egéia, mas acrescentando uma interrogação. Essa interrogação é
in nitamente inglesa. Essa interrogação, interposta como uma mola
entre os fatos e sua idéia preconcebida, signi ca algo como um
gentlemen’s agreement entre os dados e sua concepção maníaca, que o
permite continuar fumando seu cachimbo tranqüilamente. Contudo,
tal interrogação seria admissível se as razões em pró e em contra de
que a cultura greco-romana pudesse derivar da egéia fossem
contrapesadas, ou mesmo que, ainda que predominassem as razões
negativas, ao m e ao cabo existissem algumas razões de peso para
a rmar sua derivação. Mas nem de longe isso acontece; em nenhum
sentido se pode dizer a sério que a civilização egéia engendrou a
greco-romana. Em nenhum sentido se pode dizer a sério que os bons
cretenses foram mestres de helenos e romanos; esses bons cretenses,
que eram artistas, mercadores, navegantes, dançarinos e toureiros.
Portanto, essa interrogação pode até ser uma interrogação, mas o que
ela não é, é séria. E peço-lhes agora o favor de registrarem tudo isso
contra Toynbee, para que não venha acontecer de — e eu não o decidi
ainda — eu formular, na última aula, o meu juízo pessoal sobre sua
pessoa e sua obra e me jogarem na cara que sou agressivo, áspero e
exigente.
Aqui vocês podem ver uma das coisas mais graciosas que só se
encontram nos livros ingleses e que só se entendem se se explica o que
é, para um inglês, escrever um livro.
Pois a verdade é que o homem leva sempre nas costas todo o seu
passado humano, mesmo o mais primitivo, ou seja, continua sendo
primitivo, e graças a isso é homem. Se alguém extirpasse magicamente
de qualquer um de nós todo esse passado humano, ressurgiria nele de
modo automático o semigorila inicial de que partimos; arborícola, isto
é, inquilino habitante das árvores onde vivia, sobre pântanos
infectados e, em hipótese (atenção, apenas em hipótese), que talvez
algum dia eu exponha a vocês, doente de paludismo ou de alguma
coisa similar, etc., etc.; porque não é esta a oportunidade para
desenvolver o tema e ainda reclamo que as pouquíssimas palavras
ditas sobre ele por mim sejam entendidas estritamente, porque
implicam um conhecimento bastante nutrido da situação atual no
problema logenético do homem, que é muito distinta da que existia
no tempo de Darwin ou de Haeckel.
Pois bem, que causa pode haver para que, depois desses trezentos mil
anos de quietude (senhores, não permaneçam tão tranqüilos, porque
isso é uma enormidade; dizer trezentos mil anos de quietude, centenas
de milhares de anos em que, aparentemente, não aconteceu nada,
quando em seu transcurso foram criadas e inventadas as coisas mais
básicas para a existência humana; mas tenhamos calma); como é que,
depois de trezentos mil anos de quietude, um belo dia, junto do
Eufrates e do Nilo, surge o orescimento prodigioso de uma vida
móvel, inquieta e rica, que se chama civilização? Esta causa não pode
ser senão uma destas três coisas: ou uma raça superior apareceu, ou
um contorno geográ co — terra e clima — excepcionalmente
favorável, ou uma combinação dos dois fatores: a coincidência de uma
certa raça com um certo clima. Essa é a análise que Toynbee faz, e que
o leva a uma idéia que não pode chamar de sua, mas que,
indubitavelmente, inegavelmente, a expressou com grande energia e
acerto. De fato, dá-nos alguma luz sobre o dinamismo histórico, sobre
as mudanças na situação humana, sobre as vitórias e derrotas dos
homens: é a categoria dupla que ele intitula “obstáculo” e “ataque”. Em
realidade, a primeira das duas palavras não ca bem, porque é uma
daquelas palavras que há em cada idioma de tal modo íntimas que
nenhuma outra língua pode traduzir. É a palavra challenge, que quer
dizer ao mesmo tempo obstáculo, desa o, ameaça, provocação, perigo,
etc.
A X
Revisão da aula anterior. — As
civilizações originais. — O fator raça. —
O gênio do inglês. — O racismo. — O
método empírico e as idéias puras. —
Desa o e resposta. — O homem, animal
fantástico.
Essas quinze civilizações liais nos levam para seis originais, sem
precedentes, que não nascem de outras, mas de si mesmas. São a
egípcia; a suméria, que é a primeira civilização mesopotâmica; a egéia;
a s í n i c a o u chinesa primitiva, da qual nasceu a chinesa atual ou
extremo-oriental; a dos maias, na Guatemala e Yucatán, na América
Central; e a andina dos incas, na América do Sul.
A XI
O bom-mocismo de Mr. Toynbee e o
“numantismo” da Inglaterra. — Continua
“desa o e resposta”. — Os princípios
gerais e seu complemento. — Dois
teoremas. — A “inde nição” do ser
humano. — Facilidades e di culdades. —
A realidade radical. — Técnica e
felicidade.
Não é minha missão nem meu papel neste curso entrar de cheio no
assunto. Por outro lado, depois de tudo que me ouviram falar, creio
que vocês possam me considerar um angló lo. Creio não ser “ lo”
nem “fobo” de nada, e isso não por alguma admirável virtude, mas
simplesmente porque não me diverte. As lias e as fobias todas me
aborrecem desesperadamente, como um romance de Ricardo León.30
Assim, sem pretender, menos nisso que em nenhuma outra coisa,
impingir em ninguém minha opinião, vou manifestá-la com a
brevidade possível, porque trata-se de um assunto grave para nossas
existências, e que está conectado com o problema cientí co do mundo.
Penso, com efeito, senhores, que a maior, no sentido de mais valiosa,
coisa que acontece agora no mundo é o quanto os ingleses estão
comendo mal, e como os ingleses sempre comeram mal, no sentido da
arte culinária — evitarei o equívoco precisando que me re ro à sua
escassa nutrição e à má qualidade de muitos de seus alimentos, pois
alguns outros continuam sendo excelentes. Este é, a meu ver, o que de
mais prodigioso humanamente está acontecendo, porque não há
dúvida de que os ingleses poderiam estar, a essas horas, comendo
aproximadamente o mesmo que antes, mas, é claro, às custas do
futuro, pondo em risco o porvir econômico e, em geral, histórico de
sua nação à força de remendos e remédios, comendo-se, em suma, a
galinha dos ovos de ouro. Em vez disso, os indivíduos que integram o
povo inglês, sem defecção alguma de quantia perceptível, aceitaram
escrupulosamente rebaixar de repente e a seco seu nível de vida,
restringir em grau quase intolerável sua existência cotidiana, sem
pressão inusitada do seu governo, e isso não com a perspectiva,
promessa ou esperança de que com esse sacrifício vão devolver à
Inglaterra sua preponderância imperativa sobre o mundo, mas
simplesmente pela convicção de que é inescapável para atravessar a
crueza dos tempos e salvar a comunidade inglesa, na pureza de seu
estilo, para além deles próprios; essa resolução de espontânea e
resoluta solidariedade nacional me parece ser um dos exemplos mais
raros que já houve na história, é algo que se poderia chamar de
numantismo a frio, para dar-lhe um magní co nome ibérico.31
O que acabo de dizer não contradiz o que eu sugeri outro dia quando
falava que, numa primeira aproximação, parecia que poderíamos
diagnosticar no fundo de certas almas inglesas das mais destacadas um
estranho sentimento como se começassem a duvidar se tem ou não
sentido ser inglês. Não há contradição; trata-se da mesma coisa que
acabo de dizer, pois signi ca que os ingleses começam ou começaram
faz tempo — logo farei referência a um antigo escrito meu em que eu o
anunciava — a crer que a Inglaterra não poderia continuar sendo tal
como era, que precisamente para poder salvar a existência do inglês
era necessário mudar completamente de forma e atitudes e, nesse
sentido, deixava de ser inglês o inglês tradicional.
Que, além desse comportamento com que o povo inglês crê ajustar-se
à situação exterior, reste-lhe ainda energia para, ao mesmo tempo,
realizar uma transformação completa de sua estrutura social — sobre a
qual, para não confundir as coisas, vamos suspender
momentaneamente o nosso juízo, porque não interessa para o que
estamos dizendo agora — uma transformação com a qual crêem
ajudar seu corpo social às necessidades interiores que a evolução dos
tempos trouxe à associação inglesa, tudo isso revela que estamos na
presença de um dos grandes fatos históricos; que tem o sintoma mais
característico de grande fato histórico, que é apresentar uma gura
completamente nova, não ser arremedo nem repetição de gestos
conhecidos e tópicos. Quando um povo faz isso, senhores, é porque
está em plena forma, forma que é nova, e, por isso, plena, e quando
um povo está em plena forma tem as máximas garantias de se salvar.
Elas, certamente, não asseguram o sucesso, porque nada humano é
seguro, menos ainda uma conjuntura como à que, no presente,
chegaram os destinos universais, mas não se confunda a circunstância
mundial dentro da qual a Inglaterra se encontra — que é, de fato,
di cílima — com o próprio estado do povo inglês unido em seu
próprio ser; grandes navegantes, os ingleses, uma vez mais, cingiram-
se ao vento e vão à bolina.
“Foi um erro, pois, buscar as ‘causas’ dos fatos históricos, que são,
de nitivamente, fatos biológicos. A rigor, a única causa que atua na
vida de um homem, de um povo, de uma época, é esse homem, esse
povo, essa época. Dito de outra maneira: a realidade histórica é
autônoma, causa-se a si mesma. Em comparação com a in uência que
os espanhóis tivemos sobre nós próprios, o in uxo do clima é
estritamente desdenhável.
A XII
A trajetória seguida. — A substância. —
O ser e a reforma da inteligência. — A
super cialidade do existencialismo
francês. — Os três grandes conceitos no
pensamento de Toynbee. — O paradoxo
do Estado romano. — O direito romano e
a concórdia. — O direito moderno e os
desiderata. — Parábola do homem e do
urso.
Mas não peço, nem sequer desejo, até desaconselho que alguém
abandone suas posições tradicionais de pensamento para aceitar, sem
mais nem menos, antes de se inteirar bem em que consiste, por frívola
atração da novidade, esse projeto de reforma na raiz da inteligência. O
que peço, ao contrário, é que se procure serenamente e com calma
compreendê-la de modo su ciente para julgar em vista disso, sem se
fechar de antemão a essa empresa hermeticamente, teimosamente e
tontamente. Peço, em suma, que àquilo que é uma grande idéia não se
reaja como é comum em nosso país, de uma maneira grosseira.
Não era essa medida, mas não devia ser muito menos a situação nos
espaços meio vazios da proto-história.
Foi uma lástima que não pudéssemos estudar todo esse processo
seguindo-o por seu estrato mais profundo, a saber: como os romanos
sentiam o direito — os romanos que não eram lósofos gregos nem
discípulos deles —, o que era como realidade vivida, e não como
de nição dos teóricos, isso que chamavam de direito. Pude apenas
aludir a isso com vagas palavras, enigmáticas para muitos, embora
creia que os juristas, a quem eram especialmente dedicadas, devem tê-
las entendido. Eu disse que, para o romano, o direito não é direito
porque é justo, mas o contrário: o justo é justo porque é direito. Com
essa fórmula um tanto sibilina pretendia enunciar de um golpe duas
coisas: primeira, que a justiça, no vago sentido ético que hoje
comporta predominantemente a palavra para nós, não tem nada que
ver com o que o romano, que não era senão romano e não um
discípulo dos lósofos gregos, chamava de direito. Segunda, que o
direito era uma forma de comportamento dotada pela sociedade de
inexorável vigência, a que o indivíduo podia seguramente recorrer e se
ater, porque estava seguro de que se faria cumprir, e que não mudaria
da noite para o dia. O que essa forma de comportamento tinha de
direito para o romano não era seu conteúdo particular; isso era
secundário. As instituições jurídicas romanas foram concretamente o
que foram, mas poderiam ter sido completamente distintas e possuir,
contudo, o que de essencialmente romano havia em seu direito, a
saber: o caráter formal, de vigência invariável de cujo cumprimento e
permanência o indivíduo podia estar seguro. Porque a vida, senhores
— nós o esquecemos muito; fazemos tudo para esquecê-lo, de tanto
que é verdade — a vida, senhores, é constitutivamente insegurança. Eu
já o dizia em 1914, em minhas Meditações do Quixote.41 Estamos
inseguros até mesmo sobre se amanhã cada um de nós vai existir; mas
muito mais inseguros do que vai acontecer com os conteúdos
particulares de nossa vida: saúde, fortuna, acertos, dor, prazer... Por
isso o homem necessita assegurar alguma dimensão em sua vida, saber
ao menos a que se ater nela, para desde ela enfrentar com coragem o
problemático restante. Isso era o direito para os romanos. Graças a
essa segurança de seu direito, o cidadão de Roma podia ncar nele
con ante os seus calcanhares, rmar-se nele e, tranqüilo, sentindo-se
amparado, por assim dizer, em sua retaguarda, podia buscar sem
aturdimento, susto nem neurose, como se comportar para ser homem
com dignidade, para desenvolver sua vida pessoal com inteireza e
seriedade, e formar-se um caráter rme e enérgico. Em suma, ser
romano. Porque a essa genial sensibilidade que faz com que veja o
direito, sobretudo, que sinta efetivamente o direito como algo ao
mesmo tempo inexorável e invariável, é ao que deve ter podido ser o
grande povo que foi. Em contrapartida, não houve talvez ninguém a
quem menos preocupasse isso que vaga e irresponsavelmente nós
chamamos de justiça. Pois sabiam muito bem, sob a iluminação de
uma surpreendente intuição, que não há dentro do humano nenhuma
forma de conduta que se possa considerar, de modo último e absoluto,
como superior às demais e à qual, portanto, todas as demais tenham
de se subordinar e anular; como sabia que não há, por exemplo, nem
pode haver nada que seja absolutamente isso que nós chamamos hoje
justiça, e que amanhã nos parecerá injustiça. O que faziam os
romanos? Dotavam de caracteres absolutos, rígidos, invariáveis e
inelutáveis uma gura de comportamento — digamos de propósito
com algum exagero para que a coisa que mais clara —; dotavam
desses caracteres absolutos, r ígidos, invariáveis uma f igura de
comportamento qualquer. E esse é o autêntico sentido do direito
romano, e este é, en m, o autêntico sentido de todo direito. O per l
concreto das instituições jurídicas romanas — as processuais, a pátria,
a potestade, a propriedade, a herança, etc. — não se derivavam de
nenhuma suposta idéia do direito, mas, ou de simples usos
inveterados, ou de compromissos entre os grupos sociais em luta.
Ordinariamente, a linha desse per l da instituição marca exatamente a
linha do equilíbrio dinâmico entre as forças sociais de luta; e, portanto,
a gura da instituição, seu per l, o que faz é de nir um compromisso,
um acordo. As instituições romanas, como toda a história romana, não
viveram da justiça extrajurídica, mas da concórdia política. Toda a
história romana gira em torno do conceito da concórdia, que quando
funciona com seus caracteres mais amplos é o que se chama de
concordia ordinis, o acordo entre as distintas classes sociais. Uma
grande lição que poderíamos aprender e que também se poderia
explicar aos homens, mas não se lhes explica com evidência e
vivacidade! Segundo essa imagem que proponho a vocês, não para que
a aceitem, mas que meditem sobre ela, aparecem-nos como as duas
notas constitutivas do que o direito era para o romano, estas: primeiro,
ser, em princípio, imutável; segundo, não ser um mandamento de
nenhuma vontade pessoal, mas ser o estabelecido, ou, em outras
palavras, a lei. Lei consuetudinária, imemorial, primeiro; depois, as leis
estatutárias, novas, que nasciam, que surgiam daquelas leis já
preexistentes, as quais determinavam como se pode fazer novas leis,
mas sem nunca serem ordens emanadas de uma autoridade pessoal. O
direito é, pois, para o romano, o contrário do imperium, o contrário de
todo autoritarismo. O ato de imperium, praticado por parte do
magistrado judicial, intervém só nos interstícios, nos vácuos do
direito, tais são os decreta, os interditos; ou seja, a autoridade,
enquanto autoridade e imperium, e não lei objetiva e impessoal,
intervém só ali onde o direito faltava. Este era lei, e a lei é o
estabelecido, isto é, o que está aí desde sempre; aquilo a que todo
mundo sabe — desde sempre, desde que nasce — que pode recorrer, e
a que se pode ater, porque estava aí desde antes e é invariável. O
direito, a lei é, pois, própria e substantivamente lex lata, lei feita, lei que
já estava aí, lei já existente. Depois, e só depois, secundariamente, é lex
ferunda, a lei nova, a lei que será feita, mas que será feita segundo uma
lei já feita antes, que já existia e que estava aí antes, e que determina o
procedimento. Esquematizando, pois, eu diria, num exagero ideal para
obter forte impacto sobre as mentes, que o direito para o romano é o
que não se pode fazer, como não se pode fazer uma lei cósmica, a lei
da gravidade, por exemplo. E isso considerando que, se o direito pode
ser feito, poderia também ser desfeito; será, portanto, mutável, instável
e inseguro. Por isso disse que a lei é o estável, o estabel-ecido. Eis,
senhores, o porquê do famoso conservadorismo romano em questão
de direito. Não é que o romano resistisse em todo o possível a
introduzir nele modi cações porque era conservador, mas, ao
contrário, era conservador no jurídico porque sabia, porque sentia
como ninguém sentiu o que é direito. Este é, pois, por essência o
irreformável, o invariável. As necessidades da vida coletiva obrigam,
contudo, a introduzir nele modi cações e, portanto reformas. Mas a
atitude que se adote ante essa necessidade, de fato ineludível, de
reformar o direito é o que de ne qual seja a atitude perante ele, o que
para um povo, para uma época, é o direito. O romano reforma seu
direito a contragosto, lentamente, gota a gota e nunca destruindo o
torso estrutural de suas instituições, de sorte que justamente em seu
modo de reformar o direito é onde melhor se manifesta a consciência
romana de que o direito é por si mesmo o irreformável. Como em
tantas outras coisas, os ingleses, em sua atitude com relação ao direito,
parecem-se muito com os romanos. E por isso Lévy-Ullman disse em
seu magní co livro Système juridique de l’Angleterre (do qual creio
que só se publicou um tomo): Com relação à ordem jurídica, não
existe na Inglaterra “barreira alguma entre o presente e o passado. O
direito positivo remonta na história sem descontinuidade até os
tempos imemoriais. O direito inglês é um direito histórico.
Juridicamente falando, não há um ‘direito inglês antigo’” porque “na
Inglaterra todo o direito é atual, qualquer que seja sua época” (,
páginas 38–39).
A
I
[Nacionalismo]44
O caso é que, com essas minhas palavras — treze anos antes de que
Toynbee publicasse seu livro — de nia eu o separatismo
precisamente em oposição ao espírito de nacionalidade. E poucas
páginas mais adiante insistia formulando o mesmo com outras
palavras. Estas: “A nota dominante na consciência coletiva das
comunidades (do Ocidente) até pouco tempo era uma aspiração a ser,
cada uma, um universo por si”. Se antes disse que o espírito nacional
signi ca sentir a nação como um todo, aqui o todo nos parece mais
acentuado, com forma mais proeminente, graças à palavra e a gura de
“universo”. E dar à idéia de Toynbee, graças a esse superlativo, um
desaforado relevo, não só nos permite ver, mas faz gritar o seu erro.
Porque é bastante patente que nenhuma nação ocidental, nem mesmo
a Inglaterra vitoriana, nem mesmo, para dizer um cúmulo, a
Alemanha de Hitler, se sentiu a si mesma como um universo. Pelo
contrário, a Inglaterra na hora culminante de seu nacionalismo e a
Alemanha na hora extremada e extremista de seu ultra, ou
hipernacionalismo, porque a primeira e mais óbvia distinção que seria
preciso fazer entre os nacionalistas é esta — o simples e o hiper —; a
Inglaterra, digo, e a Alemanha se sentiram cada uma como uma parte
que tinha o caráter de nação, frente a outras partes que são as demais
nações, integrando juntas um universo que era o mundo ocidental.
Precisamente porque cada uma se sentia parte pôde sentir-se como a
parte mais importante desse universo e, conseqüentemente, procurou
exercer a congruente hegemonia. Mas essa crença em ser a melhor
parte, esse “complexo de superioridade” é evidentemente um universo
e é, ademais, heterogênea à questão “nacionalismo”. Nem toda nação
— longe disso —, para ser nação e sentir-se como tal, precisou crer em
sua superioridade. Os dois únicos povos em cuja consciência nacional
interveio de modo permanente o “complexo de superioridade” foram a
Inglaterra e a França. É certo que em cada uma com caracteres
distintos, e asseguro que uma das coisas intelectualmente divertidas
que se pode fazer é formular em duas listas paralelas os componentes
de ambos os “complexos de superioridade”. Mas, é claro, se eu fosse
fazer isso — nem preciso dizer que não é a ocasião —, eu o faria com
entusiasmo em cada um desses países, com amor comovido por sua
modalidade peculiar, esforçando-me por extirpar de minha alma até o
mais leve movimento de antipatia, ressentimento e até de indiferença
—, ou seja, com uma atitude perfeitamente oposta à que percebemos
nessas primeiras páginas de Mr. Toynbee ao falar de nacionalismo.
Porque o modo simplista, atropelado e tosco com que, de saída,
investe o autor contra a idéia de nacionalidade, a pressa incontinente
que parece sentir para se declarar não somente antinacionalista, mas
antinacionista — assim, porque sim, sem sugerir para isso o menor
fundamento — nos revela que, ao menos a princípio, não se trata de
uma idéia, de uma averiguação teorética, mas de um ódio muito
pessoal que fermenta e coalha nos porões privados da alma de Mr.
Toynbee, e que, mal controlado, não espera por oportunidade melhor,
mas dispara imediatamente sua intempestiva emissão. A prova disso,
que poderíamos fazer tão minuciosa quanto fosse necessário, pode ser
resumida nestas advertências: Primeira — e perdoe-se a dureza da
expressão —, é falso de toda falsidade que a ciência histórica durante a
época a que Toynbee se refere tenha trabalhado sob a inspiração do
nacionalismo em nenhum sentido da palavra. Ao contrário, a história
nacionalista foi a exceção e foi sempre percebida como tal. Sirva de
exemplo Treitschke, que, sendo um grande historiador, apesar de seu
nacionalismo, nunca foi considerado um bom modelo, e sirva de
contra-exemplo Ranke, que durante quase todo o século passado era
tido como a gura ideal do historiador, como “grande historiador
diante do Altíssimo”. Pois bem, Ranke, na primeira metade daquele
século, trabalha sobre a época romana, a mais propícia para sua
interpretação nacionalista da história. Entretanto, Ranke é o homem
da história universal — compôs várias, uma após a outra — e se cabe
acusar Ranke de algum vício é de um certo abuso em enfocar o que ele
chama, e após ele tantos historiadores alemães, Weltgeschlichtiche
Zusammenhänge, as conexões histórico-universais, os grandes fatos e
movimentos que, ultrapassando os limites de todo povo particular,
parecem afetar todo o universo histórico. Nessas páginas, onde
pretende diagnosticar a historiogra a do século , Toynbee não cita
Ranke, salta-o descaradamente, o que não é pouco, porque Ranke é
por si só uma cordilheira da ciência histórica.
Eis por que eu não pude ler essas primeiras páginas de Toynbee sem
car muito perto de me sentir ofendido como transeunte. Mas não
criemos ilusões; a vida intelectual está tão envilecida em todo o
mundo que se há aí entre os que me escutam algum estrangeiro, e
especialmente algum inglês, não somente é lícito, mas é obrigatório
contemplar como possível que, em vez de se ater ao que eu
efetivamente disse, e ponderar quanto de verdade há nisso, ao ouvir
que me revolto contra a pro ssão de fé antinacionalista de Toynbee,
pense, simplesmente, que o faço porque eu, por minha vez, estou
atacado de uma fé nacionalista. Pois devo dizer a vocês, caso não o
saibam por si mesmos, que juízos irresponsáveis dessa índole, embora
não referidos a mim, encontram-se há muitos anos com aterradora
freqüência nas publicações inglesas mais respeitáveis. Nem falemos
dos outros países! Será necessário, pois, passar pela vergonha de me
ver forçado, num curso de caráter estritamente cientí co como este,
recordar uma coisa que carece tão completamente de interesse
teorético, ao menos em aparência, como o fato de eu jamais ter sido
nem ser nacionalista, e que o a rmo com essas minhas palavras mais
de uma vez? En m, que há vinte anos escrevi um livro, traduzido para
o inglês há uns quinze, tendo sido impresso nessa língua em cerca de
quarenta mil exemplares, onde, antes que todo mundo, eu mostrava
aos povos da Europa como muito breve chegaria tal conjuntura
histórica, que seria para eles questão de vida ou morte conseguir
superar a idéia de nação como forma constituinte da vida coletiva? E
se alguém me pergunta por que sinto vergonha ao ter de dizer isso,
responderei que por duas razões: a primeira, porque é atordoante ter
de falar de si próprio quando começamos a falar de nada menos que a
história universal; a segunda, ainda mais penosa, porque eu ter dito
que não era nacionalista foi em circunstâncias muito determinadas
que davam à frase um sentido controlável, mas agora, por conta de
uma idéia tão inane como a que Toynbee tem da nacionalidade, dizer
que não se é nacionalista é o mesmo que não dizer nada, ou, em outras
palavras, é dizer uma estupidez, já que a estupidez é o nada na fala. E
isso — ter dito uma estupidez — é o que me envergonha, ainda que eu
não seja responsável por tal coisa. O que acontece é que, segundo o
provérbio castiço, uma mentira faz cem, uma estupidez faz cem mil.
Isso é que é terrível na estupidez: quão prolí ca ela é. Como o átomo,
ao se desintegrar, produz reações em cadeia sem m. Infelizmente,
uma longa experiência me ensinou que a uma estupidez não se pode
combater senão com outra.
2 Leiam-se, sobre o mesmo assunto, as belas passagens que Ortega traz de Gaspar de
Mestanza, que tão profundamente o in uenciou, publicadas a partir da página 173 de Idéias e
crenças, Vide Editorial, 2018 — nt.
3 “Non, l’avenir n’est à personne! / Sire, l’avenir est à Dieu! — Não, o futuro não pertence a
uma pessoa! / Majestade, o futuro pertence a Deus!”; o poema é Napoleão ii, do livro Les chants
du crépuscule — nt.
4 Pode-se ver, sobre isso, meu estudo intitulado Idéias e crenças. [Em Obras Completas,
tomo v] [Campinas: Vide Editorial, 2018 — ne].
5 [Esta terceira conferência foi adiada por conta de uma indisposição do autor.]
7 Eis aqui um tema de primeira ordem para algum jovem historiador que tenha arranque: a
história do Império Romano depois de sua desaparição o cial, isto é, a história de como essa
soberana gura histórica, depois de deixar de viver, não obstante, sobrevive.
8 De tal modo o mundo físico é puro presente e, por isso, puro instante, que Descartes
considerava ininteligível sua conservação na série dos instantes sem supor que Deus, em cada
novo instante, tornava a criar o mundo, que de outro modo haveria sucumbido com a ida do
instante anterior para o passado. Não interessa agora o que há de verdade e o que há de erro
nessa idéia cartesiana, segundo a qual a conservação da realidade seria uma criação contínua,
incessante. Verdade ou não, é magní ca, é emocionante essa idéia de Deus como uma rítmica e
incansável pulsação criadora. Mas é evidente que não nos teria ocorrido a idéia de tempo, não
distinguiríamos entre presente e passado se o mundo físico não mudasse, não se modi casse. Se
as coisas permanecessem idênticas a si mesmas, como o triângulo; se o universo físico fosse um
imenso paralítico — ou, como diriam nossos avós, um mundo encarangado — não haveria
diferença entre o agora e o antes.
11 Espero que consigamos batizá-lo no colóquio que nosso Instituto está dedicando aos
modismos e no qual o senhor Julio Casares, diretor do Seminário Lexicográ co da Real
Academia Espanhola, fez na terça passada uma intervenção certamente tão magistral quanto
agradável. Os modismos são, de fato, quase sempre slang.
12 Cf. A caça e os touros, trad. de Melissa Solórzano Guterres. Campinas: Vide Editorial,
2021 — ne.
14 [Abreviatura de “El espíritu del derecho romano”, de R. von Ihering, por Fernando Vela.
2ª ed. Madri: Revista de Occidente, 1962.]
16 “De broma en broma”, ecoando o ditado: De broma en broma la verdad asoma [De piada
em piada, a verdade aparece] — nt.
18 Babado feito com uma tira de tafetá e outra de tecido, típico de trajes regionais espanhóis
— nt.
21 Assim, ao ter contado a anedota, que humilha a aula, restando-lhe ainda alguma
dignidade, cumpro cristã penitência pelo horrível pedantismo em que, embora forçado, acabo
de cair.
22 Gabriele d’Annunzio (1863–1938), Laudi del cielo e del mare, 1, i, 47–49 — nt.
31 Numantino é o natural da Numância. Refere-se ao famoso cerco que Cipião Emiliano pôs
à aldeia, para que os habitantes sucumbissem à inanição e ao desespero. Tornou-se sinônimo de
obstinação e paciência heróicas — nt.
33 Quando, no outro dia, aludi ao mito do dilúvio, me referia, é claro, a essa tradição
sumério-acádia, que era do que falávamos. Chamar algo de mito não supõe que se negue um
fundo de realidade. Exatamente o contrário. Nada é mito se não traz dentro a medula de uma
experiência humana real. Quando isso falta, não se chama “mito”, chama-se simplesmente
“bobagem”. É uma pena e uma vergonha que seja preciso fazer essas observações e essas
reservas, que deveriam ser desnecessárias para pessoas medianamente cultas, mas eu não sei o
que há no ar intelectual da Espanha hoje que parece haver nele, suspensas, uma ignorância e
uma insipidez demente verdadeiramente penosas, que obrigam a tomar todas essas grotescas
precauções.
34 Assim, por exemplo, podemos lembrar um fato em que não se costuma reparar: não
puderam chegar a Madri muitos dos grandes espetáculos europeus, pela simples razão de que a
empresa tinha de arcar, além de sua atuação em nossa cidade, com o custo da dupla viagem, de
ida e volta, como perdida, por ser a Espanha então um beco sem saída. E ainda se pode dar a
isso maior precisão, vendo quais desses espetáculos passaram, não obstante, por Barcelona e
não por Madri, e passaram por Barcelona por esta estar totalmente ou quase na linha cíclica de
traslado. Convém seguir essas companhias em suas andanças.
36 Temas de viaje, cap. iii, “Historia y Geografía” (O. C., tomo ii).
37 En el centenario de Hegel, cap. iii, “Historia y Geografía” (O. C., tomo v).
39 [Veja-se do autor Meditación del pueblo joven, 1958, em Obras Completas, vol. viii.]