Uma Interpretação Da História Ortega y Gasset

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Uma interpretação da História Universal:

Acerca de Toynbee
José Ortega y Gasset
1ª edição — janeiro de 2023 — CEDET
Título original: Una interpretación de la Historia Universal:
En torno a Toynbee
Copyright © by Herederos de Ortega y Gasset
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET — Centro de Desenvolvimento Pro ssional e Tecnológico
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Condomínio GR Campinas 2 — módulo 8
CEP: 13069-096 — Vila San Martin, Campinas-SP
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Editor:
Felipe Denardi
Tradução:
Felipe Denardi
Revisão & preparação:
Vitório Armelin
Revisão de provas:
Paulo Bona na
José Carlos Moura
Flávia Regina eodoro
Diagramação:
Maurício Amaral
Capa:
Guilherme H. Conejo Lopes
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
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Ortega y Gasset, José.
Uma interpretação da história universal: acerca de Toynbee;
José Ortega y Gasset; tradução de Felipe Denardi
– Campinas, SP: Vide Editorial, 2023
ISBN: 978-85-9507-154-4
1. Filoso a moderna – Ensaios. 2. Ensaios e estudos losó cos.
I. Autor. II. Título.
cdd – 190-2 / 501-01
Í P C S
1. Filoso a moderna – Ensaios – 190-2
2. Ensaios e estudos losó cos – 501-01
VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro
meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Sumário
A

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A I

A II

A III

A IV

A V

A VI

A VII

A VIII

A IX

A X

A XI

A XII

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Esta Advertência foi reproduzida no
início de todas as edições de obras
póstumas.

A ssimultaneamente,
Obras Inéditas de José Ortega y Gasset estão sendo editadas
em sua língua original, na América e na
Espanha, conforme os manuscritos e originais deixados pelo grande
lósofo depois de sua morte. Incluirão extensos trabalhos recentes que
“a desventura” — como ele escreveu — “parece se comprazer em não
me deixar dar-lhes aquela última demão, aquela sovada nal, que não
é nada e é tanto, aquela ligeira passada de pedra-pomes, que arremata
e polimenta”, e, em alguns casos, também escritos antigos que o autor
não incluiu em nenhum de seus livros. Dado o nível eminente de sua
obra intelectual, acreditamos ser obrigatório publicar sucessivamente a
totalidade de seus textos inéditos, inclusive aqueles estudos que
pareçam inacabados, e as notas ou apontamentos que possam servir
para orientar o trabalho de seus numerosos discípulos. Os escritos
serão editados tal e como foram encontrados; a revisão dos textos foi
encomendada a discípulos próximos e éis, a quem queremos
manifestar nosso agradecimento pela devoção e pelo rigor com que
cumprem sua tarefa, e cuja intervenção será sempre explícita e
aparecerá entre colchetes.
Editorial Revista de Occidente
N 
O pan eto que divulgava a criação do Instituto de Humanidades
prometia a intervenção inaugural de seu fundador mediante um
curso de doze aulas “Sobre uma nova interpretação da História
Universal (Exposição e análise da obra de A. Toynbee, A Study of
History)”. Mas o alcance do curso (1948– 49) excedeu em muito esse
anúncio, visto que a análise consistiu, principalmente, numa crítica da
obra desde as próprias doutrinas de Ortega e o desenvolvimento de
suas idéias pessoais acerca da ciência histórica e a evolução dos povos
— em particular o romano —, com freqüentes excursões de intenção
sistemática à crise do tempo presente.

O tema central destas páginas acaba sendo, como se a rma numa


delas (p. 159), “a análise da vida constituída em ilegitimidade [...] de
que são dois gigantescos exemplos os tempos declinantes da República
romana e os tempos em que estamos vivendo nós próprios”. Ortega
empreende uma análise radical da crise atual e, ao mesmo tempo,
propõe uma reforma da inteligência mediante a qual a vida
contemporânea possa emergir do torpor em que se encontra.

Nosso trabalho na ordenação do conteúdo deste livro consistiu em


cotejar dois textos: o original manuscrito, redigido para as aulas do
curso, e a versão taquigrá ca destas. Em cada um deles há passagens
que faltam no outro: durante as aulas, ocorreu-lhe ampliar o que
planejara e, talvez obrigado por essas ampliações, outras partes dos
manuscritos não tiveram lugar nelas. Em geral, conservamos a
transcrição taquigrá ca, mas também inserimos partes do manuscrito
cuja omissão não parece ter outra razão senão a aludida limitação do
tempo.

Antepusemos a cada aula epígrafes de orientação sobre o seu


argumento. E damos, em Apêndice, algumas páginas redigidas para
utilização no curso, mas que foram, en m, substituídas pelas que se
encontram no lugar correspondente.
A complexidade dos princípios expostos neste curso e as dilações
próprias da exposição fazem pensar que apenas mediante uma leitura
atenta se pode perceber sua extrema importância. Ortega fez questão
de mencionar, na aula nal, seu reconhecimento ao público, por ter
“agüentado algumas das aulas mais densas que já se deu em qualquer
lugar”, e essa resoluta a rmação é plenamente justi cada pelo lugar em
que aparece.
Os compiladores

A I
As carreiras. — A informação
internacional. — Comunicações. —
Oxford. — A experiência da vida. — O
declínio greco-romano.

S enhores: Arnold Toynbee nasceu em 1888. É professor de História


Internacional da Universidade de Londres e diretor do Real
Instituto de Assuntos Internacionais. Estudou em Oxford, onde
tornou-se um excelente conhecedor da língua grega, que, como é
sabido, é a língua de Oxford. Casou-se com a lha de Gilbert Murray,
venerável patriarca dos estudos helênicos na Inglaterra. Depois
também estudou árabe, o que lhe permitiu ocupar diversos cargos
durante as duas guerras no Intelligence Service, sobretudo no Oriente
Médio. Desde 1926 publica todo ano um volume expondo a situação
dos diversos países, incluindo os mais remotos, como informação útil
à política internacional inglesa. Em 1934 publicou os três primeiros
tomos de sua prodigiosa obra Um estudo de História. Em 1939
publicou outros três. Ainda faltam publicar os três últimos. Aqui está
um exemplar do que saiu até agora. Como é hoje um livro difícil de
encontrar, quis que vocês tivessem a impressão visual do seu tamanho,
já que o simples fato deste tamanho vai, em certo momento, solicitar a
nossa meditação. Vamos tomar conhecimento desta grande obra, e
re etir sobre ela durante um curso de doze aulas. Portanto, podemos
ir, sem pressa, pouco a pouco, entrando na questão. Hoje vamos nos
contentar com enunciar uns poucos temas, que mais adiante se
mostrarão frutuosos e que, desde já, preparam o nosso ingresso no
pensamento de Toynbee, precisamente porque inspiram um modo de
sentir muito distinto do seu.

O que eu disse, como podem notar, reduz-se a enunciar certos dados


sobre a obra e a pessoa de Toynbee, dados que quali caremos como
externos. Mas a vida humana é uma realidade em que tudo é interno,
incluindo o que chamamos de externo. Assim, essa série de dados é
uma lista de títulos secos, sob os quais se ocultam muitas coisas
intimamente humanas e de sumo abundante, que irão aparecendo,
irremediavelmente, uma após outra, porque ao longo do curso nós nos
defrontaremos com uma após outra. Por exemplo, o ensino de História
Internacional na Universidade de Londres, a direção do Instituto de
Assuntos Internacionais e a publicação anual sobre os mesmos
revelam para nós que é o internacionalismo a pro ssão a que Toynbee
dedicou sua vida, e que nesta pro ssão representa, na Inglaterra, uma
das guras mais eminentes. Ora, o ato de dedicar sua vida a algo
determinado é um privilégio da condição humana. A pedra, a planta, o
animal, quando passam a ser, são já o que podem ser e, portanto, o que
serão. O homem, ao contrário, quando começa a existir não traz
pre xada a imposição do que vai ser, mas traz pre xada e imposta,
sim, a liberdade para escolher o que será dentro de um amplo
horizonte de possibilidades. A ele lhe é dado, pois, o poder de escolher,
mas não lhe é dado o poder de não escolher. Queira ou não, está
comprometido em cada momento a decidir-se a fazer isto ou aquilo, a
pôr a vida em algo determinado. Do que resulta que essa liberdade de
escolher, que é seu privilégio no universo dos seres, tem ao mesmo
tempo o caráter de condenação e de trágico destino, pois, ao estar
condenado a ter de escolher seu próprio ser, está também condenado a
ser responsável por este seu próprio ser; responsável, portanto, por si
mesmo, coisa que não acontece à pedra, à planta ou ao animal, que são
o que são inocentemente, com uma invejável irresponsabilidade.
Graças a essa condição, ocorre que o homem é essa estranha criatura
que vai pelo mundo trazendo sempre dentro de si um réu e um juiz, os
quais são, ambos, ele mesmo. Eis porque o ato mais íntimo e ao
mesmo tempo mais substanciosamente solene de nossa vida é aquele
pelo qual nós nos dedicamos a algo, e não é por acaso que
denominamos essa ação com a palavra “dedicar”, que é um termo
religioso da língua latina. A dicatio ou dedicatio era o ato solene em
que a cidade, representada por seus magistrados, declarava destinar
um edifício ao culto de um deus; portanto, a torná-lo sagrado ou
consagrado. E, de fato, dizemos indiferentemente de alguém que se
dedicou ou consagrou sua vida a tal ou qual ofício e ocupação. Notem
como bastou tocar este ponto da condição humana para que a uíssem
por si mesmos aos nossos lábios e ouvidos as palavras mais religiosas:
dedicação, consagração, destino. Notem, ao mesmo tempo, como essas
palavras perderam, na língua cotidiana, a sua ressonância patética,
transcendente, e perpetuam, prolongam, já trivializada, a sua
existência verbal. Essa coexistência imediata entre a transcendência e a
trivialidade vai por vezes nos surpreender, ao virarmos a esquina de
todos os assuntos humanos.

Assim, sempre que me ocupei em meditar sobre o destino do


homem, interpunha-se, impertinente, mas irremediavelmente, a
recordação de que, durante a minha adolescência, naquela Madri que
exalava tranqüilidade, cotidianidade e, vamos confessar, um pouco de
vulgaridade, minha casa, muito poderosa na vida espanhola daquele
tempo, estava sempre cheia de pessoas que vinham solicitar “un
destino de seis mil reales” — “um emprego de seis mil reais”. As novas
gerações não imaginam nem de longe a freqüência assombrosa com
que então se falava disso, e a importância superlativa, monstruosa que
esse conceito, e a humilde realidade a que se refere, tinham na vida
espanhola. Nela repousava, de imediato e quase que por inteiro, nada
menos que a política do país, porque, sendo os empregos volúveis e
não existindo graves problemas, uma mudança de política signi cava
apenas a demissão de muitos e a concessão paralela de outros tantos
empregos de seis mil reais. De fato, para muitos homens daquela tão
humilde e pacata época, um “emprego de seis mil reais” era o destino
do homem.

Julgaria mal quem pensasse que isto não passa de um jogo de


palavras meu. Faria melhor em reparar que não sou eu, mas a língua
milenar de todo um povo — o nosso —, mais ainda, de todos os povos
latinos, pois nisso coincidem aproximadamente, quem nos oferece
pré-fabricado esse trocadilho aparente, e isso leva a pensar que aí
resida algo mais.

Ora, este inglês, com quem nos relacionaremos por tanto tempo,
apresenta-se a nós de antemão como um internacionalista; isto é,
como um homem ocupado em informar-se e informar sobre o que
acontece nos diferentes países. Mr. Toynbee não inventou essa
ocupação. É bastante incomum que o indivíduo invente a ocupação a
que vai dedicar sua vida. O que, com uma palavra, com um conceito
mais fulgurante do que preciso, dizemos “gênio”, signi ca — e consiste
em realidade justamente nisto —: ser capaz de inventar a própria
ocupação. Mas o normal é que o indivíduo escolha alguma das formas
genéricas de existência que o entorno social tem preparadas e que
chamamos de ofícios, pro ssões, carreiras. Sendo genéricas, temos
delas um conhecimento prévio sobre o modo concreto de qualquer
indivíduo determinado as exercer, e a simples audição de seu nome
suscita em nós uma peculiar expectativa.

Não resta dúvida de que, sem a necessidade de re etir,


automaticamente, assumimos uma postura íntima, distinta, quando
alguém nos é apresentado como sendo poeta e quando nos é
apresentado como coronel. Pode acontecer de que uma vez ou outra o
comportamento do indivíduo contradiga essa antecipação que o nome
de seu ofício sugere; pode ocorrer que algum poeta seja propenso a
mandar e que algum coronel faça versos em segredo, mas isso nos
parece apenas uma exceção que con rma a regra. Porque, com efeito,
em um de seus lados a nossa vida é constituída por um repertório de
prognósticos e expectativas que se formaram em nós
indeliberadamente, espontaneamente. Nossa existência seria
impossível se, perante cada fato que nos sobrevém, tivéssemos de
encará-lo como algo completamente novo, e não possuíssemos
antecipadamente uma pre guração que nos permitisse tomar certas
precauções e preparar a nossa conduta. Mais tarde veremos como é
obrigatório para todo homem ter sempre à vista, bem claro, esse
repertório de expectativas, e não se entregar, sem cautela, a qualquer
coisa que apareça.

Isto que acabo de dizer vale em grau muito especial no caso de que
tratamos. Importa muito ter uma expectativa clara do que este título
representa: anglo-saxão ocupado em se informar e informar sobre
assuntos internacionais. O futuro imediato do mundo e, portanto, o
nosso, depende em não pouca medida do que seja esse tipo humano.
Por conseguinte, atenção ao perigo! Não seria estranho se muitos de
vocês, ao se perguntarem que expectativa desperta em suas mentes
aquele título, não encontrassem nenhuma além da compreensão do
signi cado material mínimo dessas palavras. A razão disso é que as
expectativas não se originam em raciocínios nossos, que a qualquer
momento possamos improvisar, mas sim, como eu disse, formam-se
espontaneamente em nós por uma paulatina decantação de
experiências e, portanto, lentamente. Contudo, o internacionalista, a
pro ssão de informar sobre assuntos internacionais e sobre como são
os diversos países, é uma pro ssão recente, que começou a se de nir e
a revelar sua sionomia depois da Primeira Guerra Mundial. Portanto
não é nada estranho que ainda não tenha podido imprimir seus traços
nas mentes e que, assim, muita gente não pense em nada preciso ao
ouvir essa palavra, e que sem qualquer expectativa ou prognóstico.
Tanto mais urge chamar a atenção sobre essa nova pro ssão, sobre esse
tipo humano que foi, já, e que será ainda mais nos meses e anos que
vêm, de uma in uência tão grande quanto, quem sabe, perigosa.
Por causas diversas que então vieram a convergir, ao m da guerra de
1914–1918 produziu-se no mundo um fenômeno cujas importância e
gravidade ainda não foram devidamente reconhecidas. Ocorreu que,
para os efeitos históricos, isto é, da convivência entre os povos, o
planeta subitamente se contraiu, de modo que os povos começaram a
existir muito mais próximos uns dos outros do que antes. Cada nação
sentia que as outras, mesmo as mais distantes, estavam próximas e
imediatas, de modo que sua segurança e bem-estar dependiam do que
acontecesse nelas. A causa principal dessa súbita aproximação foi o
fabuloso progresso dos meios de comunicação. Notícias, homens e
coisas passaram a se deslocar vertiginosamente de um ponto do
planeta a outro remotíssimo. Conseqüência disso foi, por sua vez, que,
industrial e belicamente, todos os povos tornaram-se fronteiriços; e
mais ainda, por efeito da indústria — no que tange à obtenção de
matérias-primas e mercados —, as nações interpenetraram-se
mutuamente, pois não há país ao qual os demais não sejam
indispensáveis.

Tudo isso é, em princípio, gloriosíssimo triunfo da ciência física


criadora da técnica contemporânea. Sem entrar de cheio na questão,
porque é muito profunda, eu gostaria, porém, de chamar a atenção
para o caráter contraditório que a existência da distância enquanto tal
tem na vida humana. Porque a realidade não é que o homem comece
estando no que é próximo e imediato, no que chamamos de “aqui”, de
modo que isso seja o que primeiro existe para ele. É evidente que,
como não há direita se não há esquerda, nem um em cima se não há
um embaixo, não se pode ter consciência de um “aqui” se não se tem,
ao mesmo tempo, a consciência de um “ali”. Sendo assim, para que o
homem possa se sentir como estando “aqui” ele necessita,
inevitavelmente, de algum modo ou em algum sentido, estar ao
mesmo tempo, “ali”. Por isso eu dizia: a realidade não é que primeiro
estamos no que é próximo e imediato, de modo que isso seja o que
primeiro existe para nós, mas sim que o próximo, o objeto que vemos
em nossa imediatez, apresenta-se a nós desde logo destacando-se de
um fundo de outras coisas mais distantes; isto é, sobre o fundo de um
horizonte. Assim esta sala, que é agora o nosso “aqui”, é vivida por nós
como a parte mais próxima de uma realidade muito mais ampla que
há detrás e ao redor desta sala, a saber: como um lugar do imenso
mundo, que é o mais vasto horizonte. Imaginem a surpresa, o terror
que sentiríamos se, ao sair desta sala, num instante víssemos que só
existia este aposento, que fora não havia nada, que este espaço e
realidade eram tudo; em suma, que não havia um “ali”. Isso demonstra
que a nossa consciência de estar “aqui” implica e requer a consciência
prévia desse horizonte remoto e, portanto, que, na verdade, estamos
primeiro na grande distância que é o mundo, no “ali”, e dela vamos
incessantemente nos dando conta do que está próximo e nos sentindo
“aqui”. É paradoxal, mas é evidente: o homem está primeiro “lá”, à
distância, e só por contraposição com o “lá” aparece o “aqui”. Essa
contraposição, o fato de o homem estar ao mesmo tempo “lá” e “aqui”,
esses seus dois modos opostos de estar constituem o caráter
contraditório a que antes me referia e que faz do espaço e da distância
uma dimensão dolorida, dilacerante do viver humano. Esta é a penosa
dualidade da nossa condição. Mentalmente estamos em toda parte,
somos ubíquos, mas nosso corpo nos retém e aprisiona num local, nos
situa e localiza. Qualquer que seja o lugar preciso em que estejamos,
estamos incessantemente vindo a ele desde o horizonte, desde a
grande lonjura do mundo. Isso signi ca que, se estamos aqui, é porque
renunciamos, de bom grado ou obrigados, a estar em outros lugares,
agora distantes e que passam a ser um “lá”. De modo que essa coisa
aparentemente tão simples como é o “aqui”, como é ter de estar num
“aqui”, representa uma amputação permanente de nossa própria vida,
uma negação de suas outras possibilidades, uma retração e um
con namento; é, em sentido transcendente, a servidão da gleba de que
padece a condição humana. Bem-aventurada é a pedra que está
somente onde está sua matéria. Mas o homem é esse estranho animal
que, estando materialmente “aqui”, está, em realidade, voltando sempre
do universo ao recanto em que se encontra, trazendo dentro de si,
sempre, a presença desse universo. E assim, nosso modo de estar na
distância e no “lá” é nos sentirmos separados deles, como que
desterrados deles.
Talvez essa expressão não seja inadequada, embora ela tenha acabado
de me ocorrer. Talvez possamos dizer: o homem está preso no “aqui” e
desterrado do universo, que é sua mais autêntica pátria. Por essa razão
nossa relação com a lonjura, que é um estar nela como está em sua
terra o desterrado de sua terra, dá lugar a uma das emoções mais
essencialmente humanas que existem: a nostalgia, que é um sentir
saudades da proximidade do que está distante, que é o lamento de um
“ali” desejoso de ser um “aqui”, um dolorido estar onde não se está. Por
isso a nostalgia foi sempre a fonte mais abundante da poesia, como foi
também o molde onde se conformaram alguns dos mais raros
sentimentos humanos.

Algum dia, neste Instituto, faremos uma história das paixões, porque,
ao contrário de tudo o que já se disse a respeito, também as paixões
têm sua história, e não são, como se costuma pensar, modos
permanentes do homem, que não variam com suas vicissitudes. As
paixões nascem, crescem e morrem; estão no auge ou estão em etapas
de retirada e retração. Pois bem, algum dia faremos a história das
paixões, e entre elas a história do amor, que, ainda que pareça mentira,
ninguém jamais empreendeu. Então veremos que isso a que
chamamos o amor de um homem por uma mulher começou, e em
seus renascimentos começou sempre, não, como se poderia crer, pelo
entusiasmo para com a mulher próxima da mesma tribo ou classe
social, mas, ao contrário, por imaginar a mulher distante, distante no
espaço ou no patamar. Repetidas vezes a mulher inaugurou seu caráter
e condição de amada sob o aspecto de princesse lointaine, e não é por
acaso que, quando os costumes aproximam excessivamente homem e
mulher, o sentimento amoroso se volatize e sobrevenham esses
estranhos vazios de amor que caracterizam certas épocas.

Mas deixemos de lado este que podemos chamar de o paradoxo


essencial do “aqui” e do “ali”, por cuja contemplação sumária eu me
deixei levar crendo que devamos estar todos sensibilizados para a
importância e a gravidade que tem em sua vida toda modi cação de
algum calibre na relação do homem com o espaço.
Como a idéia e a expressão “progresso dos meios de comunicação”
não tem, certamente, aura poética e carece de ressonância patética
metafísica, corremos o risco de não notar até que ponto afeta a própria
raiz da existência, e, entretanto, ao ganhar velocidade e quase anular o
espaço e quase destruir a distância, transtornou um de seus fatores
básicos, suprimindo essa estúpida servidão e limitação de que a vida
humana padecia. Mas, por outro lado, o homem havia se acomodado a
isso; havia organizado a sua vida e até mesmo o mais profundo de sua
vida contando com o espaço e a distância, e havia conseguido até tirar
algumas vantagens dessa limitação. O homem acaba aproveitando
tudo. Por isso dei antes o exemplo da fertilidade da nostalgia na poesia
e no amor, como poderia ter dado outros. Ou seja, essa aparente
libertação de estar fechado dentro da gleba — essa servidão à gleba —,
que é a localização no espaço, e o fato da distância entre as coisas, que
faz com que aquelas que desejamos e aqueles seres junto aos quais
gostaríamos de estar, ou dos quais temos necessidade de que quem
longe, e tenhamos, para chegar até eles, de gastar tempo, do qual
possuímos tão escassa quantia, e gastar esforços que não nos sobram;
essa limitação é superada, mas antes o homem contava com ela e havia
organizado a sua existência e a sua conduta com relação a ela. Pois o
fato de que subitamente os povos tenham se aproximado tanto
espacialmente não quer dizer que vitalmente estejam mais próximos.
Ao contrário. Ao se perceberem tão imediatos, de repente se dão conta
de que essa aproximação espacial não foi acompanhada de uma
aproximação no modo de ser, em suas idéias e sentimentos, em seus
costumes, instituições e economias, de modo que, embora esse triunfo
sobre o espaço e a distância signi que, a longo prazo, um benefício
radical, trará imediatamente grandes perdas e enormes con itos.

Tenhamos bem presente esta outra circunstância: cada povo se


constituiu contando com a distância tradicional a que estava dos
demais. Outro dia veremos, neste mesmo curso, e espero que com
plena clareza, como a entidade “povo”, a entidade “nação”, sob um de
seus aspectos signi ca substantivamente “distância”. Ao diagnosticar
assim a situação presente, deixo ao bom entendedor apreciar se o
diagnóstico é ou não grave. Pois bem, a nova pro ssão que chamei de
“internacionalista”, e da qual Toynbee talvez seja hoje o mais eminente
representante, nasceu como primeiro efeito desta súbita aproximação
entre os povos. Estes sentiram, então, que lhes era necessário saber
bem o que acontecia nos outros. Já não bastavam mais despachos
diplomáticos que durante tantos séculos eram enviados às cortes, e que
se referiam quase que unicamente a questões concretas da política
seguida pelos governos. Já não bastavam os correspondentes no
estrangeiro, à moda do século , que transmitiam a seus países
apenas certos fatos precisos e excepcionais: batalhas, terremotos ou
festivais. De trinta anos para cá começa a ser freqüente um tipo de
jornalista, sobretudo entre os anglo-saxões, que se dedica
expressamente a ir de povo em povo para informar o seu a respeito do
que os outros são, do seu sentir, pensar e querer, de suas discórdias
íntimas, de suas esperanças e de seus problemas. Esse labor, que em
seguida aparece quase sempre reunido em livros, foi uma das leituras
favoritas dos últimos quinze anos, e é, ao mesmo tempo, a fonte
principal de que se nutrem os grandes internacionalistas como Mr.
Toynbee. Este bloco, pois, formado por aqueles e estes, é o que chamo
de “nova pro ssão internacionalista”.

De imediato se julgará que nada parece mais desejável do que esse


trabalho, para que os povos cheguem, en m, a de fato se conhecer de
maneira adequada, mas devo confessar que a leitura atenta e
prolongada durante um quarto de século dessas publicações foi
decantando em mim uma expectativa menos favorável com relação à
pro ssão internacionalista. Por três razões: primeira, com freqüência
os fatos transmitidos são totalmente falsos. São boatos recolhidos por
um jornalista viajante, de pessoas cuja condição, crédito e
responsabilidade ele ignora; outras vezes não se trata de fatos
completamente falsos, mas parcialmente, e isso é quase mais grave,
porque torna mais aguda a desorientação.

Segunda razão: não reside, contudo, nos erros de fato o que há de


mais perigoso nessas informações, porque é preciso dizer da maneira
mais expressa possível que, na maior parte dos casos, a informação,
sobretudo anglo-saxã, é de uma exatidão nos fatos a que se refere,
tomados cada um em si mesmos, simplesmente prodigiosa. Se, pois, a
informação, o que esta palavra promete e anuncia, pudesse consistir
apenas numa série de fatos que fosse, um por um, exatos, não haveria
nada a reclamar; mas acontece que resta outra série de fatos
silenciados e, o que é mais grave, que mesmo esses que se comunica
cam como que soltos, não são entendidos no sentido, na perspectiva
e na estrutura que têm no país onde se produziram, de modo que,
ainda que possuam uma certa verdade externa, carecem de realidade e
de verdade interna.

Terceira razão, e para mim a mais decisiva: o que mais temo é a


enorme fé que esses grandes países têm nessa informação. Porque isso
implica que crêem que seja fácil, para um estrangeiro que chega, saber
o que se passa num país, contemplando-o desde fora, e isso, por sua
vez, supõe ter, do que é um povo, do que é uma nação, uma idéia
errônea, porque é ignorar que a vida coletiva de um povo, de uma
nação, é uma intimidade e, de certo modo, um segredo, em sentido
muito parecido com o que essas palavras têm quando dizemos que a
vida pessoal é uma intimidade e um enigma o qual ninguém que a
contemple de fora pode acessar facilmente.

Os danos que essa informação produzirá, e note-se que não me re ro


especialmente à Espanha, acabaram por se transformar para mim
numa obsessão tal que, em janeiro de 1937 — e quero frisar a data —,
escrevi um longo estudo, que muito pouco tempo depois apareceu
numa das principais revistas inglesas, no qual eu me ocupava um
pouco mais amplamente deste assunto, e que recolhi como apêndice a
uma nova edição do meu livro A rebelião das massas, sob o título
“Epílogo para ingleses”.1

Ali verão, se o lerem, como muitas coisas anunciadas, não para a


Espanha, mas muito especialmente para a Inglaterra, cumpriram-se
depois. O pior é que ainda vão se cumprir muitas outras mais.

Agora vocês compreendem por que, no umbral de um curso sobre o


grande livro em que Toynbee vai falar sobre a história universal, eu me
dediquei aparentemente a perder tempo descrevendo a expectativa que
suscita em nós a vocação e a pro ssão de internacionalista. Não é
assustador que, pertencendo a ela Mr. Toynbee, tenha ele demasiada fé
no que se pode averiguar a respeito da realidade histórica
contemplando-a desde fora, como um fenômeno da natureza? Não é
de temer que minimize o que há de intimidade e de segredo em todo
acontecer humano, e que não se dê plena conta do que há de profundo,
e não convencional, no fato de que não existe o homem abstrato, mas
de que todo homem pertence a um povo, seja de um povo, seja feito de
um povo, querendo ou não? Não traz tudo isso consigo a suposição de
que quem, ao contrário, minimiza estas coisas encontre prováveis e
fáceis utopias de humanidade e de conjunções abstratas entre os
povos? Esta é, ao menos, a expectativa com que eu ingressei na leitura
do grande livro de Toynbee. Mas entendam bem: se eu disse que temos
obrigação de manter bem claro o nosso repertório de expectativas,
acrescento agora que devemos evitar que se tornem preconceitos.
Essas expectativas não nos asseguram que o indivíduo determinado,
Toynbee neste caso, por exemplo, padeça dessas ilusões de óptica a que
sua pro ssão o inclina. Ingressemos, pois, em seu estudo sem
preconceitos, mas alertas.

Já devem ter notado como bastou apertar de leve a simples notícia,


aparentemente externa, que dei sobre Toynbee — sua pro ssão de
“internacionalista” — para que brotassem de seu interior abundantes, e
até terríveis, problemas. Digamos agora brevíssimas palavras sobre a
outra informação: Toynbee é um egrégio helenista de Oxford. Eu não
sei se estas simples palavras lhes dizem algo; eu não sei se desperta em
vocês a expectativa adequada. Trata-se, a meu ver, de um dos fatos
mais admiravelmente extraordinários da idade contemporânea. Desde
o século  a Inglaterra exerce sua preponderância ou hegemonia
sobre o mundo ocidental. Durante o século  a Inglaterra estendeu
esse predomínio a todo o planeta. Não havia, creio, um só ponto da
Terra onde ela não tivesse negócios. Para cuidar deles e dirigi-los, para
administrar a vida inglesa e seus ubíquos interesses, a Inglaterra
necessitava de muitos homens aptos, capazes da mais concreta lide
com coisas, situações e homens, na Europa bem como na Ásia, na
Oceania e na África. Por outro lado, o inglês fora sempre conhecido
como o homem prático por excelência, e a isso se atribuía seu triunfo e
vantagem. Pois bem: como fez a Inglaterra para ter à sua disposição
essas tantas equipes compostas do que poderíamos chamar de
“gerentes de operações”? O que fez foi isto: em cada geração escolheu
os melhores rapazes das classes superiores e os con nou em Oxford
para que ali se dedicassem a aprender grego e a praticar esportes,
como zeram os gregos. Isso é tudo. Vocês hão de reconhecer que é
algo fenomenal e bastante inesperado. Quando, na minha mocidade,
tomei conhecimento disso e percebi o paradoxo descomunal que
representava, busquei em toda parte uma explicação, mas não a
encontrei, e então, tempos depois, conhecendo um pouco melhor o
gênio da Inglaterra, que é, ao mesmo tempo, magní co e heteróclito,
tive de improvisar uma explicação para meu próprio uso, que
transmito a vocês com a adequada reserva. Creio, porém, que quem
conhecer o peculiar modo de ser homem a que chamamos “ser inglês”
e, por conhecê-lo, sinta-o desde sua interioridade e admire certos dons
sem par que há ali — mesclados, certamente, com não poucas coisas
menos gratas —, julgará verossímil minha tentativa de esclarecimento
daquele exorbitante enigma. Ei-lo: Os educadores, sobretudo quando
são inspirados por um afã de praticidade, pensam que o que é preciso
fazer com os rapazes é prepará-los do modo mais concreto possível
para a vida tal qual é, deixando de lado todas as disciplinas e modos
que parecem ornamentais, suntuários e supér uos. Mas ocorre que a
vida histórica tem a condição de mudar constantemente. A história é
permanente inquietude e mutação. De modo que, se se educa um
rapaz preparando-o concretamente para a vida tal qual é hoje, quando
ca adulto vê que a vida tem outra gura, e quanto mais praticamente
preparado estava para a anterior, mais desajustado ca para a que tem
de viver e na qual tem de atuar. É o que chamei de anacronismo
constitutivo da pedagogia usual. Dispara a nova geração sobre um alvo
ao qual, quando chegam, já foi tirado, e está em outro lugar. Pois bem,
a Inglaterra, não sei se com uma consciência plenamente clara disso
ou se com a certeira penumbra de um instinto, resolve essa
contradição inversamente: faz com que durante alguns anos sua
melhor juventude vá viver em Atenas no século de Péricles, ou seja,
em vez de adaptá-la a um tempo presente, lança-a fora de qualquer
tempo, já que o século de Péricles é uma data irreal, um tempo
imaginário, convencional e paradigmático que paira idealmente sobre
qualquer tempo preciso. Dentro dessa Grécia irreal são educados os
jovens nas formas essenciais do viver, isto é, preparam-se neles puras
disponibilidades que permitem uma adaptação às mais diversas
ocasiões concretas, ao passo que não estão limitadas especialmente a
nenhuma. Os biólogos já haviam ensinado que um organismo muito
diferenciado, de estrutura estritamente ajustada a um meio, ca
indefeso quando o meio muda, enquanto um animal informe, sem
órgãos, como a ameba, tem o poder de criar em cada situação os
órgãos provisórios de que necessita. Se há necessidade de se aproximar
do alimento, emite de seu plasma uma prolongação ou pseudópodo
que funciona como um pé que a faz caminhar e, uma vez utilizado,
tranqüilamente o reabsorve. O grande biólogo Von Uexküll formula
isto dizendo: Struktur hemmt Strukturbildung, ter estrutura impede
de criar estrutura. A mim me parece genial essa solução inglesa para a
contradição constitutiva da pedagogia usual. O prático inglês,
justamente porque é autenticamente prático, sabe que, às vezes, o mais
prático é não parecê-lo. Certamente essa solução, como todas as
soluções humanas, tem seus inconvenientes e seus limites.

Logo verão como amiúde nos deparamos com um irritante


pedantismo helenista, e especialmente ateniense, de Toynbee. A
Universidade de Cambridge, onde se estudam a fundo as ciências
físicas e biológicas, já representa uma concessão às necessidades do
tempo, e a partir de agora veremos se essa educação à grega serve
também para os novíssimos problemas daquele país; veremos se a
ameba inglesa, na apertada conjuntura presente, é capaz de produzir
os oportunos pseudópodos.

Perguntemo-nos agora qual é o conteúdo de seu livro, do que ele


trata. O título, que traduzido literalmente é Um estudo de história,
parece equívoco. Quer dizer que Toynbee se propõe a escrever a
História sob uma forma distinta de como se fez até então? De modo
algum, porque o que ele faz é partir dos livros de história, da ciência
histórica tal e como foi compreendida para outros efeitos e
elaborações. O que ele faz é, portanto, dar por pressuposta a ciência
histórica tal como é e submetê-la a um tratamento de segundo grau,
para ver se, nesse enorme caos que é o acontecer histórico, não se
vislumbram ritmos, estruturas, leis, regularidades que permitam
vislumbrar uma gura e como que uma sionomia do processo
histórico. Portanto, do que ele trata é aquilo que trinta anos atrás ainda
se chamava de “ loso a da história”. Chamar algo de “ loso a da
história” advinha do fato de que se tinha a mais confusa idéia da
loso a, e se pensava que era possível fazer loso a de tudo; ou seja,
como costuma dizer o homem vulgar, o bom burguês, com um olhar
muito inteligente: “Tudo tem sua loso a”, pensando que a loso a é
como açúcar, algo com que se toma outras coisas, o que o leva a
a rmar que se deve “tomar a vida com loso a”, como o café se toma
com duas colheres. O grande historiador Dilthey dizia que o lósofo
da história é um monstro metade lósofo, metade historiador. Mas
não há tal loso a da história. A loso a é uma ciência tão especial
como qualquer outra, que tem seu tema e problema completamente
precisos. Não se trata disso; trata-se simplesmente de ver se, nesse caos
que é a série confusa dos fatos históricos, podem ser descritas linhas,
feições, traços, em suma, uma sionomia; não houve época para a qual
o destino histórico não tenha apresentado algo como uma cara ou um
sistema de feições reconhecíveis.

Entretanto, notem que isto é algo que, ao menos na ordem da vida


pessoal, todo homem faz. O homem não somente vai vivendo a sua
vida, mas, ao passo que o faz, vai se formando nele, sem sua anuência
nem premeditação, espontaneamente, uma idéia ou conhecimento do
que é a vida. A língua usual cunhou uma expressão para denominar
esse espontâneo conhecimento que o homem vai conquistando sobre o
que seja a existência humana. Chama-o “experiência de vida”. Notem
que essa experiência de vida é um saber que não ca, como o saber
cientí co, mais ou menos fora da vida que o possui, mas sim que a
experiência da vida faz parte integrante e e ciente da própria vida. É
um de seus componentes constitutivos. Conforme o homem a vai
adquirindo, vai modi cando seu próprio viver. Contudo, nós não
adquirimos esse saber a que chamamos “experiência de vida”
re exivamente, por um esforço intelectual especial, como o saber
cientí co; ele vai se formando em nós automaticamente, ainda que não
o queiramos. A vida, vivendo-se a si mesma, vai como que se
esclarecendo a si própria, como que revelando sua própria realidade, e
essa averiguação, por sua vez, passa a fazer parte da vida, converte-se
novamente em vida, e assim sucessivamente. É o único saber que é, ao
mesmo tempo e em si mesmo, viver. Por isso, tem o inconveniente de
não poder ser transmitido. É intransferível, e não resta a cada nova
geração outra opção além de voltar e começar do princípio a sua
experiência da vida.

Vocês reconhecerão que o tema que intitulamos “experiência de vida”


é certamente algo elevado. Se há meia dúzia de assuntos muito
elevados, este, que brota da própria raiz da existência humana, é sem
dúvida um deles. Portanto, vocês deduzirão que recebeu muita atenção
e foi freqüentemente tratado; mas, se forem buscar, verão que não há
nada em parte alguma, a não ser por umas poucas linhas, de quem eu
não esperava menos, em nosso admirável e venerável precursor
Dilthey.

As coisas que acontecem conosco vão deixando em nós, por si


mesmas, um precipitado que se cristaliza sob a forma de regras,
receitas, regularidades, as quais, por sua vez, articulando-se entre si,
vão delineando o per l do que é a vida. Não é questão de raciocínio. A
experiência da vida é irracional e, por isso mesmo, seus ditames se
impõem a nós inexoravelmente por mais razões que lhe queiramos
opor. Aqui está a origem dessas expectativas com relação às pro ssões,
de que falamos antes. Se querem outro exemplo simples e à mão,
recordem-se da idéia que se forma em vocês sobre o caráter das
pessoas que conhecem. Essa gura do caráter que os outros homens
têm nunca ou quase nunca se forma por uma re exão deliberada;
antes, já se encontra pronta dentro de vocês, como que por geração
espontânea.
A experiência de vida faz com que ela se apresente a nós sob o que
chamo de “aspectos”. O exemplo mais próximo e vulgar deles é este:
todos dizemos que as coisas se dão em temporadas; que há
temporadas boas e más, e que ambas costumam suceder-se como que
num ritmo. Esse ritmo do favorável e do adverso é uma das feições que
dão gura à vida. São muitas as razões que nos ocorrem para negar a
realidade dessa imagem, mas todas elas são impotentes para evitar que
o curso da vida se apresente a nós sob o aspecto de temporadas. Talvez
isso não seja uma realidade, mas tão-somente um aspecto. Por isso eu
o chamo assim. Mas, enquanto aspecto, é real e in ui — queiramos ou
não — sobre nós.

Nessa experiência de vida que vai se formando lentamente, e que é


como a bola de neve que, conforme avança, vai se fazendo a partir de
seu caminho, e é como se enrolasse por sobre si o caminho que vai
abrindo, chega-se a um ponto, que costuma ser por volta dos
cinqüenta anos, em que se alça a um estágio muito interessante.
Ocorre que, então, o homem tem a impressão de que já sabe o que é a
vida; não somente que já conhece este ou aquele âmbito da vida, mas
que a totalidade dela lhe é como que diáfana e transparente. Repito
uma vez mais que em nada nos interessa se é verdade ou não esse
conteúdo da experiência de vida, a qual se faz sem a nossa re exão ou
empregando a re exão apenas para formulá-la ligeiramente. Pois bem,
a que se pode atribuir esse estranho fenômeno? Por que, em certo
instante da cronologia vital, o homem crê que já sabe o que é a vida?
Para dar apenas uma indicação de onde talvez esteja a explicação, já
que não estou tratando o tema a fundo, nem perto disso, diria que
consiste nisto: há a errônea tendência a crer que as formas da vida são
ilimitadas; por exemplo, que as formas do amor podem ser
inde nidas, diversas; que as formas de governo e as instituições
políticas podem ser sempre novas. Não é assim. As formas todas da
vida são limitadas. Se, porventura, algo novo sobrevém, será ao m de
muitos séculos e misturado com as formas que não eram novas. De tal
modo que, a essa altura da vida, o homem já experimentou todas as
formas essenciais do viver e já não lhe resta senão repetir. Mas repetir
não é viver, porque viver é sempre improvisar; viver em sua plenitude
é sempre improvisar e estrear. É necessário que as coisas sejam novas
para nós; que nos encantem com sua face, que ainda não as tenhamos
experimentado, porque em seguida, ao fazê-lo, encontraremos suas
de ciências e suas falhas. Por isso pode-se de nir a juventude dizendo
que ela vê a cara das coisas, e pode-se de nir a maturidade ou a velhice
dizendo que começa a ver já as costas das coisas.2 Isso que acontece
com a vida pessoal, este já ter tocado e escutado a melodia essencial
dos modos de viver, tem algumas conseqüências de enorme
importância na ordem coletiva. Porque isso que chamei de experiência
de vida pessoal, por mecanismos que não me deterei agora a enunciar,
amplia-se para a experiência de vida coletiva do povo a que se
pertence. E mais: através desse povo se amplia para experiências de
todo um processo histórico humano que a memória do nosso povo ou
do conjunto dos povos a que o nosso pertence foi conservando. E
também essa imagem ou gura do processo histórico universal vai se
formando, tanto quanto as mais humildes experiências de nossa vida
privada, no decorrer do tempo, automaticamente e sem que
intervenha, ou intervindo muito pouco, a nossa re exão.

Para dar um exemplo do que me parece mais próximo e


substancialmente mais conforme ao conteúdo da obra de Toynbee, hei
de dizer que sempre me surpreendeu observar que nunca se descreveu
o estado de alma que, com relação à história, predominou e abarcou
toda a cultura grega e romana, no momento em que esses países
começaram a declinar; isto é, quando tinham às suas costas uma
experiência milenária, quando já haviam visto todas as cores na ordem
política, quando haviam experimentado todas as formas de governo,
quando haviam vivido, amado e sofrido todas as formas da vida. Isso
começa a aparecer, na ordem política, como documento, no livro  de
Heródoto, no famoso diálogo entre os sete grandes persas quando,
num instante de trono vacante, discutem sobre que forma de governo
dariam ao seu país. Mas logo adquire sua primeira fórmula clássica
nos maravilhosos livros  e  da República de Platão, cuja leitura
recomendo a todos, porque, assim como outros livros da mesma obra
se perdem em matérias demasiado sutis e menos controláveis, esses
dois livros não fazem mais que entesourar uma experiência de velhos
gregos que sabem a história das mil cidades e Estados que haviam
constituído a civilização grega.

Então, neste momento, depois de Platão, Aristóteles modela ainda


mais a expressão dessa experiência, mas não a reforma. Não descobre
nada novo, como Platão tampouco havia incluído nada novo. E é isto o
que me estranha: que não se note como a imagem predominante nos
ns do mundo antigo tenha uma origem tão humilde. Depois de
Aristóteles vem seu estupendo discípulo Dicearco, especializado em
política, que muito infelizmente não nos deixou livros, dada essa má
sorte que conserva os ilegíveis e aniquila os melhores. Ele dava uma
fórmula, provavelmente a mais completa, a esses pensamentos, e a
legou a Políbio, que a comunicou e transmitiu por sua vez a Cícero, o
qual é a convergência de todo o saber antigo, porque este homem,
apesar de ser político, tinha uma capacidade de re exão incalculável,
que vocês podem apreciar em seu Tratado sobre a República.

Essa imagem de todo o processo histórico desde mil e tantos anos


havia decantado, precipitado pouco a pouco na consciência grega e
romana. Compõe-se de três grandes idéias ou imagens. A primeira
delas é esta: a experiência de que toda forma de governo traz dentro de
si o seu vício congênito e, portanto, degenera inevitavelmente. Essa
degeneração produz um levante, o qual derroca a Constituição,
derruba aquela forma de governo e a substitui por outra, a qual, por
sua vez, degenera e contra a qual, por sua vez, se sublevam, sendo
também substituída. Discutiu-se por algum tempo, ainda que não
muito, qual seria a linha exata de precedência e subseqüência nesse
inexorável passar de uma forma de governo para outra. Por exemplo,
Aristóteles discute esse ponto com Platão, mas no m chega a uma
espécie de doutrina canônica do pensamento político, que vem a ser
esta: a instituição mais antiga e mais pura é a Monarquia, mas ela
degenera no poder absoluto, que provoca a sublevação dos homens
mais poderosos do povo, isto é, dos aristocratas, que derrocam a
Monarquia e estabelecem uma Constituição aristocrática. Mas a
aristocracia degenera por sua vez em oligarquia, e isso provoca a
sublevação do povo, que expulsa os oligarcas e instaura a democracia.
Mas a democracia torna-se muito logo desordem e anarquia
simplesmente; começa a ser movida pelos demagogos, e acaba como a
pressão brutal da massa, do que se chamava então — não faço mais
que traduzir — o populacho, o okhlos, e vem a okhlocracia. A
anarquia chega a ser tal que um desses demagogos, o mais oportuno e
poderoso, se alça ao poder e instaura a tirania, e, se essa tirania
persevera, torna-se Monarquia, e assim teremos que as instituições
mordem a própria cauda, e torna a começar o ciclo de evoluções. Isso é
o que se chamou de círculo, ciclo ou circuito das formas de governo.
Ele supõe que não se creia em nenhuma forma política, que se tenha
experimentado que todas são falidas e errôneas e, de fato, tanto em
Platão como em Aristóteles todas essas formas de governo concretas,
regidas por princípios claros e conhecidos, são chamadas por Platão
hemartémata, e por Aristóteles hamartémata, duas palavras que
signi cam simplesmente erros, pecados e desvios. O que isso quer
dizer? Quer dizer que esses homens, ao que parece, ao m dos séculos,
chegaram a essa experiência que é o desesperar da política.

Como o homem não se entrega nem mesmo perante o desespero,


frente a essa convicção profunda de que não há forma de governo
estável, de que não há constituição que evite a sublevação, a revolução,
a inquietude, o que chamam “estasia”, stásis, parece que deveriam
renunciar e como que paralisar; mas o homem é incapaz, exceto
quando está doente, de parar. Eis por que começam então os
tratadistas de política: Platão e Aristóteles. E quando perguntamos a
Aristóteles, como ele próprio se pergunta, qual é o propósito e o
desígnio da ciência política, ele responde de um modo que, num
primeiro instante, crerão que perdi o controle sobre mim mesmo e que
me ponho a falar com linguagem chula, quando vou apenas citar
Aristóteles literalmente. Com efeito, Aristóteles, ao se perguntar qual é
o propósito e o desígnio da ciência política, responde não ser outro
senão encontrar os meios para conseguir a “anastasia”. A “anastasia”
não é, como logo de cara se poderia pensar, uma moça bonita de
Madri, mas o contrário da “estasia”: é a estabilidade.
A reação a essa opinião desesperada com relação às possibilidades
das formas políticas consiste então em imaginar uma constituição que
tenha a felicidade de reunir os princípios de todas as demais, a m de
que se regulem e compensem uns aos outros: que haja um pouco de
Monarquia e outro pouco de aristocracia e outro tanto de democracia.
De tal modo que talvez seja possível evitar essa permanente inquietude
que marcha sobre a história. E essa é a segunda idéia: a Constituição
mista, que vai dar o que falar a todos os pensadores, desde Platão, que
a anuncia, não na República, mas em seu último livro, que escreve
quase decrépito, As leis, que em seguida Aristóteles vai avaliar
detalhadamente, como se fosse de fato uma idéia formal, quando não
passa de um pio desejo com o qual enfrentar a desesperação da
política.

A esse respeito, perdoem-me uma recordação pessoal. Tinha eu


dezessete anos quando z pela primeira vez uma excursão pela
Espanha adentro, coisa que à época era sobremaneira insólito. Não fui
sozinho; levava-me um homem admirável, de excelente condição, o
primeiro que andou toda a Península, passo a passo, quando ainda
ninguém o fazia, que era artista e crítico de arte, mas cujo verdadeiro
valor consistia em sua vida. E como a vida tem essa elegância de ser
fungível, isto é, de desaparecer conforme vai sendo, o valor da vida de
Francisco Alcántara não pode ser percebido nem reconhecido pelas
novas gerações. Por isso creio-me obrigado a recordar sua vida. Fomos
nós dois à região limítrofe entre Guadalajara e Segóvia, nessa terra de
pinhais onde se des am, como um rosário roto, uma série de pueblos
de nomes encantadores: Gálvez, Villacadimia, Los Condemios,
Campisábalos... Alcántara tinha um grande amigo em Campisábalos, o
boticário. Esse boticário parecia predestinado ao seu ofício por seu
sobrenome: chamava-se Morterero. De fato, os Mortereros, de pai para
lho, tocavam a botica de Campisábalos desde o século . Por isso,
o estabelecimento apresentava o aspecto de uma farmácia do começo
do século . Ali as paredes eram cobertas por vasos de Talavera, e
da melhor época, que é o nal do século . Em seus rótulos se viam,
junto dos adornos azuis, letras também azuis que diziam os nomes
latino e espanhol da velha farmacopéia: óleo de amêndoas doces, em
um; apocrênico de Madri, em outro; a unha da grande besta... Num
canto estava um pequeno armarinho cheio de garra nhas bem
miúdas, que continham venenos. Ele era fechado por uma porta de
vidro, em que havia pintado um olho, o famoso olho vigilante do
boticário. Mas o que mais me impressionou foi ver no centro, como
que governando aquela democracia de remédios, um grande vaso de
Talavera em cuja lateral eu li, pela primeira vez na minha vida: “Triaga
máxima”. Quando se havia perdido a esperança em todos os
medicamentos, o médico resolvia reunir todos os princípios
medicinais numa só poção. Eram às vezes mais de setenta, e isso era
administrado ao enfermo, con ando que talvez algum deles, ou uma
espontânea combinação entre vários deles, originasse a saúde não
alcançada por outros meios. Como podem ver, a “triaga máxima” foi
inventada sob a desesperação, por se ter desesperado da medicina. Era
o que, na ordem política, foi a Constituição mista.

En m, a terceira idéia, que se referia ao próprio processo histórico


integral, que tinham à vista os homens de Grécia e Roma, era esta:
Recordavam-se ou viam que o poder, o mando do mundo, o império,
ia se movendo, deslocando-se e como que emigrando de um ponto da
Terra para outro. De fato, sabiam que, primeiro, havia existido o
império dos assírios, e que dali o mando passou para o império dos
persas, donde, por sua vez, transferiu-se para a Macedônia, com
Alexandre Magno, e que a seu tempo acabava de chegar às mãos do
povo romano. Isso quer dizer que, pelo visto, o império emigra do
Oriente para o Ocidente, assim como as estrelas. Isso produzia neles
uma impressão um pouco tosca. O curioso, senhores, é que, se
repassamos a história desde Roma até aqui, vemos que o mesmo foi
acontecendo com o império, que continuou se deslocando, movendo-
se do Oriente para o Ocidente. É o que chamavam de translatio
imperii. Isso signi ca que, aparentemente, a história continua o
mesmo curso sideral.

E isso nos emociona ainda mais se notamos que alguns botânicos


atuais nos dizem que grande parte das espécies arbóreas,
características hoje da Europa, foram originalmente espécies asiáticas
que ali se desenvolveram e viveram, mas que, um belo dia,
degeneraram e morreram, salvando-se somente aqueles de seus
representantes que haviam emigrado para a Europa, onde se
renovaram e rejuvenesceram. Ou seja, também as plantas avançam
como o império. Mas o duro é que, segundo parece, muitas dessas
espécies arbóreas européias começam a car enfermas. O carvalho,
por exemplo, uma das árvores mais esplêndidas da nossa paisagem,
está doente em toda a Península, de uma doença que não se pode
atribuir apenas ao acaso de uma moléstia, pois implica uma debilidade
da espécie para enfrentá-la. Dá pena ver os nossos carvalhos. E eu não
creio que viva profundamente a Espanha, ainda que talvez verbalize
patrioticamente nas colunas dos jornais, aquele que não sabe sentir a
melancolia dos nossos carvalhais valetudinários. A translatio imperii
parece, pois, uma lei do mundo. Ou é só um aspecto isso que nos
proporciona essa experiência? Vamos tratar disso ao entrar agora,
passo a passo, na obra de Toynbee, que não é senão pôr na ordem do
dia, com todos os rigores do saber cientí co, as profundas experiências
espontâneas que a humanidade recebeu por paulatina decantação de
seu prístino destino.

A II
Arquitetura de Toynbee. — O que é uma
folha? — A história da Inglaterra. — A
realidade inteiriça. — A sociedade
ocidental. — Seus limites.
L amento, senhores, ter sido preciso intercalar entre vocês e a minha
pessoa este artefato mecânico, que é um microfone, porque, para
além de mecanizar cruelmente a voz, que é uma das coisas em que
mais integramente se projeta e imprime o homem, em que mais
autenticamente se é uma pessoa — e isso as mulheres sabem muito
bem —, além disso tem o inconveniente de às vezes não funcionar
bem. Mas era inevitável empregá-lo, e devemos mesmo agradecer os
seus serviços. Era inevitável porque, na primeira aula, não consegui ser
ouvido lá nas profundezes desta sala, mas, não obstante, era obrigado
a forçar a elocução, e, nesse expediente, ter de forçar a voz é o de
menos. O pior é que me compelia a vocalizar anormalmente,
pronunciando separadamente cada palavra, isto é, arrancando-a da
frase, colocando-a na atiradeira da voz e lançando-a ao espaço como
se fosse um projétil, o que fazia com que eu perdesse o ritmo do dizer
e nem mesmo eu reconhecia os vocábulos, assim tão anormalmente
pronunciados, a tal ponto que, quando lhes falava sobre a nostalgia,
não estava certo se talvez havia dito “hipercloridria”. São esses os
secretos apuros do orador, que não costumam ser leves, e que
proporcionam à sua tarefa um evidente dramatismo e um certo perigo
quase tauromáquico.

Ao começar a aula de hoje, gostaria de recordar que anunciei, não um


ciclo de conferências, mas um curso de aulas. E como a aula é um
comprometimento de transmitir um corpo de doutrina, que tem seu
inevitável desenvolvimento, carece da liberdade própria da
conferência. Isso é especialmente verdadeiro com relação à aula de
hoje, porque me proponho a expor o bloco principal de idéias que
constitui o pensamento de Toynbee, e esse bloco não aparece com
clareza se não é percorrido de ponta a ponta numa exposição unitária,
de um só golpe, de modo a não permitir a interposição de episódios
nem de devaneios, e rejeitando toda alegria de imagem e de verbo.
Necessito, pois, pedir que consagrem esta hora ao ascetismo, e espero
que seja esta a única aula do curso em que seja forçosa uma tão
extremada severidade doutrinal.
No outro dia tiveram a oportunidade de ver o livro de Toynbee, e de
reparar em seu enorme tamanho, o que fazia dele algo como um
oceano de tipogra a, pelo qual é bastante longo e penoso navegar.
Perante obra tão complicada e tão mais-que-frondosa, achei que era
meu dever, durante a primeira metade deste curso, concentrar-me
estritamente em extrair, com o maior rigor possível, as linhas
arquitetônicas puras da doutrina e, se for possível, encontrar per s
ainda mais rigorosos que os que o autor emprega, e ainda mais
favoráveis ao seu pensamento, ou que ao menos a mim o pareçam. Isso
supõe três coisas: primeira, suspender a operação crítica até a segunda
parte do curso, salvo uma ou outra observação livre que convenha ao
momento, mas sem demorar; segunda, prescindir das excrescências
vegetativas em que esta obra é superabundante, pois, embora
elaborada sob o frio, a umidade e a neblina de Londres, ela ostenta um
caráter tropical. Não creio que em nenhum caso essas excrescências
acrescentem algo de importante à teoria, porque não são, de verdade,
manifestações dela, mas tão-somente do homem que há por trás dela,
e especialmente do inglês que há dentro desse homem. Portanto a
consideração de seu conjunto e a análise particular de algumas delas
pertencem ao último momento deste curso, quando nos ocuparmos da
obra enquanto livro, como produção literária e, em virtude disso,
como sendo expressão de uma personalidade.

O imperativo de clareza — e já disse, muitíssimos anos atrás, que


para mim a clareza é a cortesia do lósofo — me obrigava, me obriga a
separar radicalmente a exposição da doutrina e o reconhecimento
siognomônico da obra e, portanto, do autor; pois, ainda que eu sinta
muito por ter de fazê-lo, esse trabalho também exige ser executado.

Toynbee é um ilustre representante da Inglaterra, ao menos no


sentido em que o cume representa a montanha que tem abaixo de si. E
importa-nos muito hoje averiguar o que há na alma da Inglaterra para
que eu possa, com a consciência tranqüila, descartar essa conjectura e
não executar uma tarefa que é penosa e, ademais, uma das operações
mais difíceis que existem, a saber: a tentativa — e notem que digo
apenas a tentativa — de penetrar no inglês, mas não haverá
escapatória, quando chegar a hora, de correr de cima a baixo a
cremalheira desse grande inglês para tentar ver o que há dentro dele,
porque suspeito, suspeito que o que há dentro de um inglês hoje seja
muito estranho, muito estranho... Creio que ninguém dos presentes
seja capaz de antecipar o que tenho agora em minha mente sob esse
adjetivo, e muito menos adivinhar se é algo bom ou mau. E agora, sem
mais delongas, vamos começar.

Se queremos conhecer o que é uma folha e nos colocamos a observá-


la, logo notamos que nossa idéia prévia da folha não coincide com a
realidade folha, pela simples razão de que não podemos precisar onde
isso que chamávamos “folha” termina e onde começa outra coisa.
Descobrimos, sim, que a folha não se conclui em si mesma, mas
continua; continua no pecíolo, e o pecíolo, por sua vez, no galho, e o
galho no tronco e o tronco nas raízes. A folha, portanto, não é uma
realidade por si que possa ser isolada do restante. É algo que tem sua
realidade enquanto parte de algo que é a árvore, a qual, em
comparação com o que chamamos de folha, adquire agora o caráter de
um todo. Sem esse todo não há compreensibilidade, a folha não é
inteligível para nós. Mas então, quando notamos e nos demos conta de
que a realidade da folha é o ser parte, o ser parte integrante do todo
árvore, e a referimos a ele, e a vimos nascer nele, e averiguamos a
função que tem em seu conjunto, portanto, quando nossa mente, por
assim dizer, sai da folha e vai para algo mais amplo — o todo que é a
árvore —, então e somente então podemos dizer que conhecemos o
que a folha é. A tal ponto isto é assim, de tal modo a folha tem a
condição de ser parte que, quando, em vez de contemplá-la na árvore
onde está sendo folha, a separamos dela, dizemos que a cortamos ou
arrancamos — expressões que tornam patente a violência que zemos
a folha e a árvore sofrerem. Mais ainda, ao tê-la isolada entre os nossos
dedos, quando poderia parecer um todo — dado, repito, que caberia
decidir onde ela acaba e onde começa o pecíolo ou o galho —, quando
isolada entre os nossos dedos poderia dar os ares de ser um todo,
nesse momento começa já a não ser folha, mas um detrito vegetal que
logo acabará de se desintegrar. Essa relação de parte e todo é uma das
categorias da mente e da realidade, sem a qual não é possível esta
grande operação que é o conhecimento. Isso nos permite generalizar e
dizer: todas as coisas do mundo real ou são partes ou são todos. Se
uma coisa é parte, não é inteligível senão quando a referimos ao todo
do qual é parte. Se uma coisa é um todo, pode ser entendida por si
mesma apenas percebendo-se as partes de que se compõe. Isso vale
para todas as ordens do real. Por exemplo, vale também para a
realidade da linguagem. Se eu pronunciar agora a palavra “leão”,
simplesmente, será ininteligível para vocês, porque não podem
determinar se signi ca a cidade de Leão, algum dos Papas que tiveram
esse nome, a ilustre fera africana ou um dos leões que há na entrada do
Congresso.

A palavra isolada não pode ser entendida porque é parte de um todo,


como a folha o era da árvore, de um todo que é a frase, assim como a
frase, por sua vez, é parte de um todo, uma conversação, ou de um
todo, um livro. A palavra, como vocês sabem, é sempre equívoca, e
para precisar o seu sentido é necessário, além da perspicácia que a vida
nos ensina, toda uma ciência, e das mais sugestivas e interessantes, e
da qual o Instituto de Humanidades vai se ocupar largamente: a
ciência da interpretação, ou hermenêutica. A tarefa principal desta
ciência consiste em determinar a que todo su ciente é necessário
referir uma frase e uma palavra para que seu sentido perca o equívoco.
Esse todo no qual a palavra se torna precisa os hermeneutas e
gramáticos chamam de “contexto”. Pois bem, toda coisa real que é uma
parte exige um todo, o seu contexto, para que a possamos entender.
Uma dúvida, porém, se apresenta a nós: tomada a árvore até sua raiz,
portanto, sendo ela o que é, parecia ser um todo — o que a biologia
chama, com certas ressalvas que agora não interessam, um “indivíduo
orgânico” —; mas acontece que a árvore, para viver, necessita da terra
e da atmosfera e é, portanto, ininteligível se não contamos com essas
duas novas coisas. Será então que a árvore inteira, por sua vez, faz
parte de um novo e mais autêntico todo, a saber, o que formam juntos
ela e seu meio? Não iremos dirimir a questão, que é mais complicada
do que parece, porque, naquilo que nos toca agora, está
su cientemente clara. Com efeito, esse novo e mais completo todo que
formaria a árvore e seu meio não é bem um todo, pela simples razão
de que a terra e a atmosfera não precisam da árvore, enquanto a árvore
precisa delas. Arrancada a árvore, terra e atmosfera subsistem — isso
sem dizer que, arrancando e desgalhando todos os bosques de uma
região, o clima se modi ca e terra e atmosfera variam, porque agora
estamos falando simplesmente de arrancar uma árvore, e isso é
evidente que não modi ca nem a terra nem a atmosfera. Não são estas,
pois, partes integrantes de um novo todo, mas apenas o contorno e o
meio externo de que a árvore vai viver, e somente nesse papel são
biologicamente inteligíveis, isto é, estudadas desde dentro da árvore,
desde sua constituição interna.

Agora transportemos tudo isso para o plano da realidade histórica.


Queremos conhecer a realidade que é a Inglaterra. Escolho este
exemplo porque é o escolhido por Toynbee, e ele, por sua vez, o
escolheu não por patriotismo, mas muito acertadamente, porque, se
houve alguma nação que foi em sua história independente das demais,
que viveu de si mesma e concentrada em sua própria substância, foi a
Inglaterra. Falou-se muito — ela própria, durante muitos anos, o
repetia com insistência não isenta de complacência — de seu
“esplêndido isolamento”. Estava encastelada em sua arisca e
recalcitrante insularidade. Pois bem: pode-se fazer uma história da
Inglaterra considerando-a como uma integridade, como algo que é
inteligível por si, fazendo menção, é claro, dos outros povos, mas
somente como um simples meio externo, assim como a terra e a
atmosfera o eram em nosso estudo da árvore? Ou, dito mais
energicamente: pode-se conhecer a realidade histórica que é a
Inglaterra sem deslocar-se para nada mais? Ela constitui, por si, um
todo inteligível? Eis aqui o tema que serve de ponto de partida para
Toynbee, e que vem sendo tratado por mim desde os meus mais
antigos escritos. O homem de ciência e, em especial, o historiador, não
pode escolher a esmo o ponto de vista desde o qual olha, porque
pretende ver uma realidade, e é o formato desta quem decide aquele.
De outro modo não verá uma realidade, mas apenas um fragmento
arrancado a uma realidade, e corre o risco de descrever uma mão
amputada como se fosse um organismo. É preciso, então, não se
contentar com uma primeira visão das coisas, nem com esse primeiro
campo visual.

Reparem que temos de fazer com a Inglaterra exatamente o mesmo


que zemos com a folha, e lembrem-se de que foi ela, a folha, e não
uma re exão nossa, quem conduziu o nosso olhar fazendo-o emigrar
até ver a árvore toda. Pois será preciso fazer algo parecido com toda
realidade histórica. O que se chama de provincianismo e bairrismo
não é senão a confusão entre o nosso campo visual e a realidade que
pretendemos ver; é um crer que o mundo é, simplesmente, o que
estamos vendo, e é decisivo em história evitarmos justamente
confundir nosso campo visual com a gura da realidade, porque nosso
campo visual está quase sempre determinado por causas acidentais e,
graças a isso, não coincide muitas vezes com a extensão e o formato da
realidade que queremos descobrir. Temos, portanto, inversamente, de
obrigar o nosso campo visual a coincidir com o formato da realidade,
e para isso tomemos as devidas precauções.

Ora, para Toynbee a história da Inglaterra não pode ser feita desde o
ponto de vista inglês, porque mesmo sendo essa nação, entre as
ocidentais, a que mais viveu desde si mesma, mesmo sendo essa
grande isolada, ela é parte de algo mais amplo. Não constitui o que
chamo de uma realidade inteiriça, o que Toynbee chama muito
acertadamente de “um campo histórico inteligível”. Todo o problema
da ciência histórica consiste em situar a realidade de que se fala no
campo histórico inteligível que ela reclama. Não é possível fazer essa
história da Inglaterra atendo-se à sua exclusiva realidade. A prova
disso está em que a Inglaterra não termina em si mesma, mas
manifesta-se em sua história como um fragmento de algo mais amplo,
sobre o qual temos de fazer uma vista panorâmica se quisermos, de
fato, entender o que foi e é a história da nação inglesa.

A prova disso se obtém tão-somente contemplando os grandes


capítulos em que se pode resumir a história da Inglaterra. O primeiro
é sua conversão ao cristianismo, que pode ser datada de 664, quando
tem lugar o Sínodo de Whitby, porque até então os ingleses
mostravam certa propensão, in uenciados pelo particularismo dos
cristãos irlandeses — entenda-se, dos irlandeses de então — a
constituir uma Igreja à parte, que seria algo como um cristianismo
extremo-ocidental na “franja celta”, que teria sido o modelo de
cristianismo extremo-oriental da seita nestoriana ainda existente,
perdido no centro da Ásia e que ca, desde o século ,
incomunicável, por sua peculiaridade religiosa, com todo o resto do
mundo ocidental. O segundo capítulo é o pleno estabelecimento do
feudalismo, o qual se produz graças à invasão dos normandos, que foi
como a penetração do continente europeu nas ilhas britânicas, que
haveria de uni-las ao ocidente da França durante séculos. O terceiro
capítulo é o Renascimento, no qual a Inglaterra se submerge na
atmosfera de ciências, letras e artes originada na Itália. O quarto é a
Reforma, que impregna a Inglaterra vindo do norte da Europa. O
quinto é a expansão ultramarina a que a Inglaterra foi obrigada por
Portugal, Espanha e Holanda. Os dois últimos capítulos são a
implantação do sistema industrial e o regime parlamentar, que
parecem ser os dois produtos mais originais da Inglaterra e que,
segundo Toynbee, e deixo a ele a responsabilidade, são completamente
ininteligíveis se não se explicam como reação peculiar inglesa dentro
da convivência européia.

Provar tudo isso em detalhe não interessa nem a Toynbee, nem a


vocês e nem a mim. Para o que diremos basta, e sobra, a dose de
evidência que sua simples enunciação nos proporciona — salvo esses
dois últimos capítulos que, repito, deixo à responsabilidade de
Toynbee e que, em última instância, não fariam variar a questão — e
nos permite declarar que a Inglaterra é somente uma parte, tem sua
realidade como fragmento de um todo amplíssimo no qual convive
com as demais nações européias. Porque notem que a Inglaterra é uma
sociedade das mesmas características da Espanha, França, Alemanha e
Itália. A essas sociedades chamamos “nações”, e enquanto sociedade
nos parecem de um tipo distinto da província, da comarca, da aldeia
ou da tribo. São, pois, sociedades de uma determinada espécie —
precisamente da espécie a que chamamos “nação”. Mas vemos que
essas sociedades chamadas “nações” são, por sua vez, parte de uma
sociedade muitíssimo mais ampla, que integra uma multitude delas, a
qual será, então, necessariamente, uma sociedade de tipo e espécie
diferente das sociedades nacionais e que temos de explicar como um
“campo histórico inteligível” ou, segundo a minha terminologia, uma
realidade inteiriça, na qual se situa a história de qualquer nação ou de
algo dentro delas, por exemplo e inclusive, a biogra a de um homem.

E assim temos diante de nós a exigência metódica, rigorosamente


cientí ca, de ter de buscar essa sociedade de uma nova espécie, cujos
membros são as nações. Para isso utilizemos — repito — o mesmo
método usado com a folha: deixar que a coisa “nação”, no caso a
Inglaterra, contemplada no espaço e no tempo, guie nosso olhar e o
leve ao autêntico todo de que ela é parte. Tenhamos bem claro na
mente o que é que buscamos. Trata-se de encontrar a área ou o círculo
de coisas humanas com as quais é preciso contar para obter o máximo
de inteligibilidade com relação à realidade da Inglaterra, isto é, um
esclarecimento superlativo. Tudo o que houver para além dessa linha
ou círculo que não melhore nossa visibilidade ou iluminação terá de
ser considerado como mero entorno e meio externo no qual vive essa
realidade que chamamos de Inglaterra, mas não o consideraremos
como parte integrante dela. Não podemos, pois, car nem aquém nem
além desta linha.

Procedamos primeiro na ordem do espaço. A operação é levemente


complicada, porque é preciso distinguir diversas dimensões da vida
histórica. De todo modo, creio que não oferecerá nenhuma
di culdade. Se nos perguntarmos qual é o “campo histórico inteligível”
da economia inglesa, veremos que, quinze anos atrás, que é quando
Toynbee escrevia seu livro, era ilimitado, pois abarcava e cobria todo o
planeta e não havia lugar nem nas mais apartadas ilhas do Pací co
onde a Inglaterra não tivesse negócios. Se, ao contrário, tomamos as
instituições políticas, notamos que a área de participação é muito
menos ampla. O direito inglês, de fato, não tem nada, ou praticamente
nada que ver, senão em pontos abstratos universais, com o direito
chinês, russo ou africano, e, ao contrário, e em boa parte, procede de
princípios comuns aos povos europeus e neo-americanos. A
comunidade, pois, de princípios jurídicos se refere a uma área mais
estreita que a econômica, uma área que abarca as ilhas britânicas, o
continente europeu, até o limite da Rússia, todo o continente
americano e os domínios ingleses na Oceania e África do Sul. Se
tomarmos agora a dimensão cultural, observamos que seria preciso
traçar a mesma gura geográ ca, porque a coincidência é perfeita; e se
nos referirmos à ordem religiosa, temos que a Inglaterra está incluída
no mundo cristão, o qual ocupa, com seu corpo principal, um espaço
aproximadamente idêntico, salvo um pequeno trecho que se
desprendeu e passou a integrar uma comunidade com a Rússia: a que
se chamou de região do cristianismo ortodoxo ou bizantino, isto é, a
Grécia e os povos eslavos. Os cristãos, às vezes muito numerosos, que
existem encravados em outras partes são apenas minorias que não
de nem a sociedade em que se encontram, sem contar que, na maioria
dos casos, sua conversão é muito recente.

Há, pois, uma falta de coincidência entre o espaço econômico da


Inglaterra, que trinta anos atrás cobria, como eu disse, todo o planeta
— é, de fato, o primeiro caso de efetiva globalização que existiu — e
sua área de participação cultural, religiosa e jurídica. Mas é bem claro
que esses lugares remotos em que a Inglaterra atua economicamente
são apenas como a terra e o ar para a árvore, meio externo sobre o
qual ela opera e do qual se nutre; não são meio interno, dentro do qual
convive e ao qual pertence essencialmente.

Em realidade, pois, a origem de sua economia, a força criadora dela


não está nessa área limitada, mas está também no mesmo espaço ao
qual correspondem os círculos jurídicos, culturais e religiosos desta
grande sociedade de nova espécie, à qual já podemos dar o seu nome,
e chamar de “sociedade ocidental”. Reparem que essa comunidade de
alguns princípios no pensar, sentir e querer não é uma mera
coincidência que se tenha produzido entre os grupos distintos entre si,
sem relação nem contato mútuos, mas se originou numa efetiva
convivência. Mais ainda, essa convivência, por sua vez, foi possível por
conta dessa unidade de princípios, e devo acrescentar algo que
Toynbee nunca disse, mas que é essencial, que é o seguinte: a
convivência sob o regime de uns mesmos princípios é o que se chama
de sociedade; “sociedade”, atenção, e não Estado.

Pois bem, essa área amplíssima a que a Inglaterra pertence representa


o território de uma grande sociedade, a sociedade “ocidental”, uma
sociedade da qual fazem parte integrante todas essas outras nações;
portanto, essa sociedade de formato grande, da qual falamos. E
notávamos que a aparente amplitude mundial da economia inglesa
não era tal, mas que, em realidade, a origem desse esforço econômico
estava situada na área da “sociedade ocidental”. E, de fato, nada nessa
sociedade ocidental é ilimitado; ela tem suas fronteiras. Basta olhar
para além delas para encontrar, ao lado da nossa, outras quatro
grandes sociedades, ao menos aparentemente do mesmo tipo,
integradas cada uma por múltiplas nações. Uma é a sociedade
islâmica, o mundo do Islam que corre desde o Paquistão até o extremo
do Marrocos, chegando, na África, quase até o Equador; a sociedade
hindu, nas regiões tropicais da Ásia; a sociedade extremo-oriental da
China e parte do Pací co, e, en m essa estranha sociedade que
chamamos de cristã-ortodoxa ou bizantina, da qual fazem parte a
Grécia e a Rússia, e que ocupa a parte externa e mais próxima do que é
propriamente a Europa.

Quando Toynbee escrevia este livro, sobretudo esta parte, o que devia
ser no ano de 1931 ou 1932, é curioso como ele — e isso é muito
freqüente nos escritores ingleses desse tempo — não tem na linha de
frente ou em primeiro plano o fato do comunismo. Por isso foi preciso
acrescentar, na segunda edição, algumas notas explicativas de por que
falava então tão tranqüilamente desse caráter religioso ortodoxo como
característica do mundo eslavo e grego.

Trata-se agora, pois, de identi car os atributos característicos


de nidores dessa nova sociedade. Com esse intuito, uma vez que
tenhamos contemplado sua extensão no espaço, lancemos um olhar
para o seu desenvolvimento e vicissitudes no tempo. O que
percebemos? Deixemos de lado tudo o que ainda hoje é mera
colonização, pois é evidente que o contato de nossa sociedade com
essas outras sociedades primitivas, que antes eram chamadas de
selvagens, não é propriamente uma convivência, mas uma intervenção.

Desde o século  a sociedade ocidental executa uma enorme


ampliação com o descobrimento do Novo Mundo e a criação nele, nos
quatro séculos seguintes, de sociedades de tipo parecido com as
nossas, pelo menos à primeira vista. Embora Toynbee creia que seja
completamente parecido, eu aguardo outra ocasião para opinar sobre
o assunto. Mas o fato é que, desde essa época, desde o século 
retrocedendo ao século  depois de Jesus Cristo, em que Carlos
Magno, o imperador da barba orida, imperava, o corpo principal da
sociedade ocidental ocupou o mesmo espaço geográ co que hoje.
Apenas na parte oriental da Europa cavam, naquela época, algumas
regiões para além da Saxônia que logo foram assimiladas. Isso signi ca
que a história da sociedade ocidental está constitutivamente adscrita a
uma região do globo que corre verticalmente desde a Escandinávia até
o Mediterrâneo, e horizontalmente desde a Escócia até o Danúbio.
Podemos chamar essa gura geográ ca de sistema de fronteiras que
limitam no espaço as sociedades ocidentais. Agora devemos perguntar
por suas fronteiras no tempo.

Do lado do futuro nada podemos determinar, porque o mundo


histórico a que pertencemos, essa sociedade ocidental em que, para
usar a expressão de São Paulo, nos movemos, vivemos e somos, ainda
não terminou. Não sabemos, pois, qual é o seu limite no futuro.
Precisamente o desígnio de obter algum vislumbre sobre o indeciso e
reverberante futuro é o que nos move a executar essa grande operação
histórica, porque, como observamos outro dia muito cuidadosamente,
a história, que é nossa ocupação com o passado, surge de nossa
preocupação pelo futuro. Pois há um modo de se ocupar com algo, que
consiste em preocupar-se com isso. E, como veremos, toda ocupação
humana se origina intimamente numa preocupação, porque a vida
humana está sempre atenta ao futuro, obcecada pelo futuro.
Entretanto, o modo peculiar como o futuro e o porvir nos ocupam é
nos preocuparem. Toda história nasce do rebote de nossa curiosidade,
desejosa do futuro e do porvir, que nos lança e nos faz descobrir o
pretérito. A recordação, o voltar o rosto para trás, olhar para o
passado, não é algo espontâneo que simplesmente aconteça, mas sim
porque, sem meio seguro perante a enorme indecisão do porvir —
lembrem-se dos versos de Victor Hugo ao imperador Napoleão: “O
futuro a Deus pertence” —,3 ante essa terrível indecisão que é o futuro,
a qual nos oprime em cada instante, tateamos ao nosso redor os meios
que temos para enfrentá-la, e o arsenal de nossos meios é o que já nos
aconteceu, e por isso voltamos o olhar para trás, precisamente porque
primeiro olhamos para a frente. Mas qualquer que seja a e cácia do
vaticínio e da profecia que nosso estudo nos proporcione, é algo claro
que o termo de nossa civilização só poderá conhecê-lo — com a
evidência de um fato — um indivíduo de outra civilização da mesma
espécie, mas distinta da nossa, que viva em séculos futuros. Nós, a
única coisa que podemos fazer, como eu disse, é olhar para trás para
ver se encontramos alguma outra sociedade que con ne com a nossa;
isto é, olhar para trás para descobrir onde termina no passado a nossa
civilização, ou seja, onde ela começa.

Com o intuito de abreviar, não mais palavras, mas sílabas, procurei


resumir o que eu deveria dizer agora na forma que segue.

No império de Carlos Magno a nossa sociedade européia aparece


pela primeira vez, quase exatamente com o mesmo formato e gura
que viria a ter sempre — salvo a ampliação de outra ordem
representada pelo descobrimento da América. Isto quer dizer que,
desde o dia de hoje até o m do século  perseguimos
retrospectivamente, com rigorosa continuidade, a permanência de
nosso mundo histórico ocidental e que, por assim dizer, reconhecemos
sem interrupção a identidade de sua substância, de sua personalidade.
Olhemos agora ainda mais para trás, para aquém de Carlos Magno. O
que vemos? Bem... a primeira coisa que vemos é que não vemos,
porque diante de nós se apresenta o espetáculo de um caos histórico. A
sociedade ocidental, cuja persistência perseguíamos para trás,
desaparece da nossa vista. Em seu lugar encontramos as ruínas de uma
sociedade, detritos de instituições, volatilização do Estado, involução
da cultura até recair na mais crassa ignorância; e isso que na época
carolíngia, da qual viemos, nessa viagem retrógrada, até a etapa que a
precede, o saber é extremamente elementar. Não há caminhos: as
glebas cam isoladas umas das outras. Todos guerreiam com todos.
Em cada canto ontem mandava um, hoje manda outro, amanhã não
mandará ninguém. Em suma, foram quase quatro séculos de absoluta
confusão, que havia sido produzida pela invasão dos bárbaros. A
gura da sociedade européia que até essa época vínhamos
reconhecendo com perfeita continuidade ca borrada, se dissipa e
desvanece como esses rios da Austrália, que se desmaterializam na
in nitude das areias do deserto. É o que Toynbee chama de uma época
de interregno — isto é, uma época em que ninguém manda, nem
pessoas nem princípios. Contudo, nesse caos onímodo há, sim, dois
elementos, mas somente dois, que reconhecemos ao retroceder desde
o século carolíngio.

Um são esses bárbaros, agentes daquela confusão e que viriam a ser a


força renovadora cuja primeira construção foi precisamente aquele
império de Carlos Magno. O imperador Carlos não era senão um
daqueles bárbaros, já temperado por algum polimento. Esses bárbaros
foram nossos reis, nossos capitães, nossos sábios medievais e do
Renascimento. Nosso Cid era um desses bárbaros; certamente um
bárbaro muito decidido a rebarbarizar, pois se, como se disse, os
espanhóis somos sempre mais papistas que o Papa, esse bom godo que
era o Cid quis ser mais goticista que os próprios godos, e em sua
conduta e idéias defende um arcaísmo goticista que, em toda parte,
havia sido abandonado e do qual se sentia muito distante o rei Alfonso
 e sua corte. Essa situação e esse temperamento hipergermânico, e
portanto sobejamente, salutarmente bárbaro do Cid, talvez apareça
nele como em nenhuma outra gura européia desse tempo. E foi um
erro, que não imputo a ninguém, não estudar a gura do Cid
projetando-a em seu campo histórico que é o maravilhoso século ,
do qual em algum momento não resistirei a falar, porque é um dos
mais maravilhosos séculos da Europa. Lembrem-se de que é o século
em que, quase nas mesmas datas, se constrói a primeira igreja gótica,
cantam-se as primeiras canções de gesta, urdem-se as primeiras
canções trovadorescas; em suma, é o primeiro momento de autêntica
criação realizadora em que a Europa diz, pela primeira vez, o que é
que ela é.

O outro elemento que reconhecemos no referido caos é a Igreja


cristã, que nesses séculos ,  e  vemos expandida e dominante
sobre toda a área ocidental. Os povos bárbaros foram se convertendo a
ela. É como uma base de vida comum e universal. É, diz Toynbee, uma
religião universal.

Assim, nesses séculos de interregno — ,  e  — perdemos


contato e visão da sociedade ocidental. Se agora imaginariamente, em
nosso retrocesso, nos instalamos no século  depois de Cristo, mas
com nossos pés em Londres — daria no mesmo se fosse Paris, Roma
ou Madri, quero dizer, no medronhal que viria a ser Madri —, de
repente estamos numa sociedade perfeitamente organizada, de âmbito
imenso, de solidária e densa convivência que se chama Império
Romano. Mas logo percebemos que essa sociedade é outra
completamente distinta da ocidental em que hoje nos encontramos, e
cuja vida percorríamos para trás. Não nos servem nossas idéias,
valores, perspectivas para entender essa realidade histórica que
chamamos de Império Romano. Mas não percamos o o! — o o da
continuidade em nosso olhar retrospectivo! Dizíamos que, nos
confusos séculos do interregno, continuávamos reconhecendo ao
menos dois elementos de nossa sociedade: a Igreja cristã e os bárbaros.
No século , que é onde estamos agora imaginariamente, ambos
elementos também existem. Essa permanência não indica que, embora
tenha atravessado quase quatro séculos de confusão e névoa, nossa
sociedade ocidental continua na sociedade que é o Império Romano,
como a folha continua no galho? Vejamos. Mas, bem entendido, ver na
história é, por princípio, ver cada tempo com os olhos desse tempo, e
assim somos cidadãos romanos que vemos o mundo desde Londres,
Londinum, ou desde Caesar Augusta — Saragoça — ou de Roma.
Somos, por exemplo, senadores romanos, não certamente do senado
em seu melhor tempo, mas, en m, senadores do Império Romano, o
que não é pouca coisa. E, nessa condição, olhamos a paisagem de
nossa sociedade imperial com o propósito de reconhecer aqueles dois
elementos que pretendem garantir a continuidade histórica entre a
sociedade romana e a atual. Mas não podemos fazê-lo. Já está aí,
certamente, a Igreja cristã. Estão aí, sem dúvida, os bárbaros. Mas com
que caráter distinto do que têm para nós hoje! São irreconhecíveis. Aos
nossos olhos de senadores romanos a Igreja cristã aparece de modo
confuso, perigoso, um perturbador complexo de crenças, ritos e usos
que grupos já numerosos têm e praticam, pertencentes principalmente
às classes mais humildes. Cristo, uma gura que ainda não se delineia
claramente, é o estranho Deus dos bairros baixos do mundo; entenda-
se, do mundo greco-romano. Sobretudo é o Deus de pequenas
colônias estrangeiras formadas por artesãos, cambistas e mendigos que
vieram da Síria alojar-se nas grandes urbes imperiais, e que se chamam
judeus. Esse complexo de crenças e ritos nasceu lá, no lugar mais
pobre da periferia a que chega o Império Romano, na Palestina. Ou
seja, essa religião, que, ao m do Império Romano, durante o
interregno, vai tornar-se uma religião universal, triunfante, o cial e
poderosa, surgira no proletariado interno da sociedade romana, e era,
portanto, algo que aos olhos de um senador do ano 300 não tinha a
menor importância para a realidade histórica do Império. Do mesmo
modo os bárbaros, sim, estão ali; melhor dizendo, estão lá, numa vaga
distância, para lá dos limites do Império Romano.

Sua constante inquietude guerreira, sua pressão permanente sobre o


per l do Império obrigaram a elaborar um exército permanente que
está alerta desde as costas britânicas, passando pela Batávia, isto é, a
Holanda, e por toda a margem do Reno e no Danúbio. É o que se veio
a chamar de limes, a linha defensora das fronteiras do Império.
Fronteira quer dizer per l, e o per l é o que está sempre, em cada
coisa, mais ameaçado, mais exposto, e é, portanto, aquilo que é
necessário defender. Por isso nós, os espanhóis, trazemos sempre
preparado um soco para quem se aproxime demais sem a nossa
anuência do nosso per l.

Ali estavam, de fato, os bárbaros, mas não pertenciam à sociedade


romana; são os germânicos, os citas, povos selvagens vagabundos nos
bosques do Setentrião ou nas estepes da Ásia — são o outro com
relação ao Império Romano, seres miseráveis que representam um
absoluto longe, são o proletariado externo da sociedade romana. Sua
realidade é tão turva, tão inaparente e sem substância dentro do
mundo romano, parecem tão remotos que Verlaine pôde simbolizar o
Baixo Império naqueles famosos versos:

Je suis l’Empire à la n de la décadence,


Qui regarde passer les grands Barbares blancs.
..................................................................................................................
Là-bas on dit qu’il est de longs combats sanglants.

“Sou o Império para o m da decadência, que vê passarem os grandes


bárbaros brancos... Dizem que lá, muito longe, está havendo grandes
batalhas sangrentas”. Mas logo esses bárbaros irrompem nas fronteiras,
trucidam o Império e o aniquilam. Averiguamos duas coisas
importantes: uma, que em nossa viagem de regresso até o pretérito,
chega um ponto em que perdemos de vista nossa sociedade ocidental,
isto é, em que ela termina. Para além desse ponto vemos um
interregno de confusão, e logo nos encontramos em meio ao Império
Romano, a outra maravilhosa civilização na qual ingressamos por
meio da etapa nal; ou seja, assistimos ao modo como uma civilização
conclui.

É acidental ou é algo que constitui uma lei da história que toda


civilização chegue a um ponto no qual tem de constituir um império,
um Estado universal que signi ca o poder entre todas as nações, e que
esse Estado universal é inundado desde o subsolo (em certa época
pelos povos subterrâneos, literalmente, das catacumbas), por um
princípio religioso que provém do proletariado interno dessa
civilização e que, enquanto essa religião preenche e ocupa os espaços
desse Estado universal, tornando-se Igreja universal, os bárbaros, isto
é, os povos inferiores que rodeiam as fronteiras dessa civilização,
irrompem nela e a aniquilam? Este é um caso particular, ou a lei que
rege a conclusão de todas as civilizações? Para responder a essa
pergunta precisamos, é claro, interrogar todas as civilizações que até
agora existiram e sucumbiram. Isso nos obriga a determinar quantas e
quais civilizações existiram até agora. Uma vez que tenhamos feito isso
poderemos nos perguntar como se originaram essas civilizações, como
nasceram. Sem dúvida alguma procedem de outras que, com elas, têm
uma relação que podemos chamar de maternidade e liação. Mas
houve outras civilizações sem precedentes. Quais foram os fatores e as
causas que motivaram essa grande criação que é uma civilização e,
mais em geral, toda grande criação histórica? Uma vez visto isto,
procuremos perscrutar o desenvolvimento normal, o processo de
formação dessas civilizações, para em seguida perguntar, com uma
pergunta lamentável, como é que declinaram e sucumbiram, e, uma
vez feito isso, se nosso estudo nos proporcionar alguma luz,
poderemos nos voltar para o nosso próprio porvir, e nos
perguntaremos: o que podemos esperar? O que vai acontecer em nossa
civilização? Vocês hão de reconhecer que o tema é dramático e
suculento de sobra.

A III
O “caso” da Inglaterra. — Revisão. — O
Império. — O Mediterrâneo e o limes.

S enhores, ao começar a aula anterior, eu anunciava a vocês que, na


primeira parte deste curso dedicado a expor o pensamento de
Toynbee, considerava obrigatório limitar-me a expor as puras linhas
arquitetônicas de sua doutrina, suspendendo a crítica até mais tarde,
salvo raras exceções, e prescindindo de suas abundantes excrecências
vegetativas. Logo num primeiro momento, ao ter de enunciar o ponto
de arrancada na trajetória teorética de Toynbee, me vi forçado a levar a
sério esse imperativo de ascetismo, porque o ponto de partida de
Toynbee não é, como o meu, tão mansamente botânico e até com certa
doçura de jardim, em que, tomando uma folha, convidava-os a
contemplá-la e a re etir sobre essa contemplação; o ponto de partida
de Toynbee consiste, sim, em dirigir uma censura geral aos
historiadores contemporâneos (salvo os mais recentes, que, por outro
lado, não se dá ao trabalho de nomear) porque zeram a história de
suas nações tomando cada um a sua, como se fosse uma entidade
independente e autárquica, ambas coisas que as nações não são, nem
na realidade nem para as exigências do conhecimento. A censura não
se limita a uma crítica desse procedimento enquanto método
cientí co, mas adota, desde logo, um tom de acusação, de acusação
formal, porque, ao seu ver, esse defeito intelectual provém de um vício
moral, do mais grave vício da Idade Contemporânea: o nacionalismo.
Tenha-se em conta que Toynbee não se refere, com esse nome,
especialmente às autoridades políticas que, dando à palavra um
sentido largo, chamam-se “nacionalistas”, mas usa-a como sinônimo
de espírito de nacionalidade, de modo que, para esse homem, não só
as atividades políticas nacionalistas, mas o simples ser nação, isto é,
serem nacionais os indivíduos que a integram já é quase um crime. Ele
o quali ca pelo menos como pecado, e até se compraz em ir buscar no
Corão o nome de um pecado semelhante para reforçar seu anátema.
Trata-se do que o Corão chama de schire, que, segundo me explicou
nosso colaborador do Instituto de Humanidades, o grande arabista
Emilio García Gómez, signi ca para os muçulmanos toda associação
da pessoa única de Deus a outro ser, seja qual for; portanto, algo
semelhante ao politeísmo, mas com a ênfase em que, sendo para o
muçulmano a religião do Deus único a religião universal à qual todos
os homens devem pertencer numa única comunidade, o schire ou
politeísmo implica secessão, sectarismo e particularismo.

Isso nos faz ver que, para Toynbee, o ser nação é algo semelhante a
um particularismo coletivo. A idéia parece em parte extravagante.
Surpreende-nos encontrar semelhante fato numa obra das proporções
externas que vocês viram no outro dia, e das pretensões internas que
vocês vieram a saber, pois não se presuma que Toynbee, nestas
primeiras páginas, e para justi car de algum modo seu ex-abrupto, faz
alguma tentativa, ainda que moderada, de distinguir as diferentes
realidades históricas que se chamou ou que se podem chamar de
“nacionalismos”, nem nos oferece uma idéia medianamente deglutível
do que é uma nação, e se contenta com de nir o espírito de
nacionalidade ou nacionalismo — ele mesmo chama a isso de
de nição — como “o espírito ou tendência que induz as pessoas a
sentirem, agirem e pensarem a respeito do que é parte de uma
sociedade dada como se fosse o todo de uma sociedade”.

É difícil que um leitor atento não que vexado e até pessoalmente


ofendido ao receber o impacto dessas primeiras páginas, compostas
num mal estilo intelectual; melhor dizendo, pseudo-intelectual.
Evitarei me contrapor a elas diretamente, porque são um caso
exemplar dessas excrescências a que me referia antes, e são
excrescências não somente por serem desnecessárias e inoportunas,
mas por algo mais grave: porque, em muitas delas, como nesta, com
um ar de arbitrária solenidade, muito freqüente nos escritores ingleses
dos últimos vinte anos, o autor lança em nossa face crenças privadas
suas, coisa tão pouco compatível com uma discussão cientí ca,
supondo que fosse uma, como com uma conversação cortês.

A atitude teorética, o modo de ser do conhecimento, consiste em


clarividência e dúvida: parte de admitir previamente todas as
possibilidades. Graças a isso, teorizar é, não acidentalmente nem por
acréscimo de so sticação, mas substantiva e constitutivamente, contar
sempre com o próximo e com sua possível discrepância. A fé, e não se
pense agora somente na fé religiosa, mas todas as outras inumeráveis
coisas em que cremos, a fé, por sua vez, é uma atitude fechada para
dentro do homem e, por isso mesmo, íntima, e, além do mais, cega.
Sua importância na vida humana é enorme, muito maior do que a da
ciência.4 Mas, por esse mesmo motivo, a expressão de uma fé reclama
no trato inter-humano certas precauções. Não é lícito simplesmente
projetar sobre o rosto do próximo que passa a nossa fé nisto ou
naquilo, porque seu atributo de coisa íntima faz dela uma secreção
nossa, com que sujamos a outra pessoa. Dizer nossa fé à queima-roupa
não é dizê-la, é expectorá-la e, portanto, degradá-la, envilecê-la e
transformá-la em insulto.

Pois é isso o que Toynbee faz nas primeiras páginas de seu livro,
onde, sem tempo para o primeiro respiro, nos joga na cara o seu ódio
pessoal à idéia de nação e sua fé bastante vaga em não sabemos que
outra coisa chamada a substituí-la, com a qual consegue que quem —
um quarto de século para trás, quando ainda ninguém na Inglaterra o
sugeria — fazia os povos da Europa verem que chegaria muito em
breve uma conjuntura histórica na qual seria para eles questão de vida
ou morte superar o princípio de nação como forma última constituinte
da vida coletiva, não possa caminhar nem um palmo de chão junto
com o antinacionalismo do autor, e isso precisamente porque, não
sendo nacionalistas, não queremos carregar sobre nossas costas uma
idéia de nação tão ridícula e inconsistente e imprópria de um homem
de ciência como a que é emitida por Toynbee nos umbrais de sua
grande produção.

Tenho alguma autoridade para dizer isso, porque Mr. Toynbee, tão
apto para me ensinar muitas coisas, não pode, como acabo de sugerir,
ensinar-me a não ser nacionalista fora de hora. Trata-se do problema
mais grave que está colocado no mundo e que, já faz um quarto de
século, como acabo de recordar, gravita sobre minha pessoa e sobre a
minha vida, porque eu o via chegar; o mais grave problema que há
hoje no mundo, em todo o mundo, pois talvez seja o único tema que
fermenta igualmente em ambos os lados do que se chama “cortina de
ferro”. E é por isso que, quando vejo que alguém se aproxima dele
frivolamente eu me sinta agoniado, como quem contempla um
menino manejando uma metralhadora.

Todo este curso tem como contraponto a preparação desse tema.


Logo na primeira conferência comecei a insinuar os primeiros tons
que faria soar para que, a seu tempo, chegasse com maturidade a isso.
Um dia, nestas aulas, vocês reconhecerão que a teoria do “aqui” e do
“lá”, exposta por mim na primeira aula, não era um devaneio, mas que,
além de ser o tema metafísico fundamental, é o pressuposto para uma
compreensão profunda da situação atual. Por isso vacilei se devia, no
intróito deste curso, desobedecer a meu próprio mandamento, que
recomenda deixar de lado a crítica e prescindir dessas excrescências,
ainda que isso implicasse em ocultar a vocês esse lado menos
satisfatório do autor. Mas, se zesse isso, se fosse direto ao assunto,
então o intróito teria de ser longo e turbulento, porque teria sido
preciso executar as seguintes operações: Primeira. Fazer a crítica
profunda de sua idéia de nação e contrapor a ela outra mais justa,
coisa, como verão, que em si era simples e fácil, mas que reclama
bastante preparação.

Segunda. Mostrar, e notem a dureza de minhas palavras, como é


sumamente falso sustentar que a ciência histórica durante a época a
que Toynbee alude trabalhou inspirada pelo nacionalismo em
qualquer sentido da palavra. Sustentar, a rmar isso sem mais nem
menos, como ele faz, é erro e frivolidade.

Se nos recordarmos de Niebuhr, de Ranke, de Fustel de Coulanges e


de Mommsen, parece-nos que é propriamente beirar a insolência,
porque a ciência histórica criada no século  por esses homens foi
feita e forjada com eles se ocupando de nações que não eram as suas;
mais que isso, que nem sequer existiam. Ou acaso se pode falar do
nacionalismo romano de Mommsen ou de Fustel de Coulanges? E,
quanto a Ranke, foi, se é que alguém no mundo foi, o homem da
história universal; escreveu várias, uma após a outra, e quando quis
tratar de um tema particular o intitulou Os povos germano-
românicos, ostentando na intempérie do título sua vontade de brincar
pelas fronteiras de toda crítica nacionalista, queira ou não o senhor
Toynbee.

Terceira. Tudo isso nos levaria a ter de explicar, a vocês e a mim


mesmo, como é possível, em que consiste esse comportamento,
cientí ca e humanamente incorreto, comportamento que se
caracteriza por uma perturbadora fusão da impertinência com a
inconsistência.
E en m, não é algo novo. Há todo um modo, ao longo da história
inglesa, em que brota a fusão desses dois ingredientes, e que em cada
época leva um nome. Impertinência e inconsistência misturadas são
em que consistiu, por exemplo, aquilo que em 1800 se chamava
“dandysmo”, uma das formas mais típicas inglesas. E convém advertir
de passagem, porque me servirá em algo que vou acrescentar em
seguida, que o “dandysmo” só se explica e só tem sentido como o
comportamento mal-educado de um indivíduo numa sociedade
profundamente bem-educada. Precisamente o prazer de quebrar esse
regime e império da boa educação é toda a graça do “dandysmo”. Por
exemplo, o príncipe de Gales, entusiasta de George Brummell, o
grande “dandy”, o árbitro da elegância, ainda que de condição
modesta, vai visitá-lo. Chega muito satisfeito porque está estreando
uma gravata e pergunta: “Como lhe parece esta gravata, senhor
Brummell?”. E ele, então, com seu genial desdém, sem sequer voltar o
rosto para olhar, responde: “Até que serve. Parece um pouco com a que
meu criado está usando”.

Mas ocorre infelizmente que esse comportamento, como indiquei


antes, é hoje muito freqüente nos escritores ingleses, e precisamente
quando falam da idéia de nação. De tal modo que não nos restaria
opção além de fazer um esforço para ingressar com certa violência
analítica nos átrios da alma inglesa atual, matéria difícil que, como
anunciei, deixo para o nal, pois seria preciso, logo de início e antes de
entrar em palpações mais profundas, dizer de quem escreveu estas
primeiras páginas: “Estas não são good manners, Mr. Toynbee”, estas
não são boas maneiras.

Será que a Inglaterra está perdendo as boas maneiras? E, se está, com


o que as está substituindo? Sem um mínimo de boas maneiras jamais
pôde existir sociedade, seja um povo, tribo ou nação. São como molas
sociais que, intercalando-se entre os indivíduos, permitem que a
pressão, em que consiste a sociedade, de uns sobre os outros seja
menos bronca e difícil. Por isso nunca houve uma sociedade que não
tivesse um mínimo de boas maneiras, sob pena de desaparecer
automaticamente, ou seja, de dissociar-se. Mas o caso é que a
Inglaterra não havia se contentado com esse mínimo, e era sua glória
ter criado um re nado tesouro, prodigioso e exemplar, de boas
maneiras. E agora quer renunciar a ele, abandoná-lo e deixá-lo
perecer? Seria algo grave para a Inglaterra e para todos nós, porque
contra aquilo que, leviana e irresponsavelmente, alguns murmuram,
não parece que convenha a ninguém, nem do Oriente nem do
Ocidente, que a Inglaterra desabe. Ao contrário, alguns pensamos — e
minhas palavras não estão carregadas de qualquer dogmatismo nem
visam a persuadir, mas são uma exceção que, de minha parte, preciso
fazer para dar um claro-escuro ao meu pensamento —; alguns
pensamos ser de grande conveniência que a Inglaterra ainda continue
exercendo, por muito tempo, sua in uência diretora no mundo, uma
in uência que não se apóie, como antes, em seu poderio, uma
in uência de nova feição que poderia muito bem consistir em parecer
que não existe. Portanto, seria muito grave essa perda, e o seria porque
esse regime das boas maneiras inglesas, uma das notas bem soantes
que havia no mundo até pouco tempo atrás, fora sempre reconhecido
e elogiado, mas jamais explicado. Com excessiva frivolidade deu-se
por pressuposto que esse re nado e complicado código de boas
maneiras foi algo que, como um luxo, a Inglaterra acrescentou à sua
vida, à sua existência prévia como um povo. Mas, sem que eu a rme
nada agora, não podemos ter a suspeita contrária? Não podemos
pensar que, inversamente, a Inglaterra não criou um sistema de boas
maneiras porque era um grande povo, mas sim que conseguiu chegar a
ser um grande povo, ou simplesmente um povo, graças a ter sabido
criar esse repertório de boas maneiras? Quem sabe a Inglaterra não
teve necessariamente de ir ajustando o arcabouço de suas boas
maneiras, porque, dado o modo de ser dos indivíduos ingleses,
enquanto indivíduos, sem ele não teria podido constituir-se e
simplesmente perdurar como povo, como sociedade estável e sã.

Não estou a rmando que seja assim. Limito-me a imaginá-lo como


mera hipótese que talvez conviesse levar em conta. Explicaria ao
menos, ocasionalmente, que outros povos tenham podido sobreviver
com um repertório de péssimas maneiras porque seus indivíduos
estavam espontaneamente em certas ordens socialmente melhor
dotadas. Este é, por exemplo, o caso dos espanhóis, que gozaram
apenas durante pouco mais de um século de um elevado regime de
boas maneiras, na época em que viveram em plena forma. E isso não
tem nada a ver com o que se poderia dizer dos tremendos defeitos dos
espanhóis. Estes são pouco capazes de solidariedade, e por isso a vida
pública espanhola vai mal em geral; mas têm, ao contrário, querendo
ou não, pois se trata de algo superior ao seu arbítrio, certo fundo
nativo de elementar sociabilidade que falta a outras castas humanas.
Eis porque foi sempre tão difícil na Espanha haver um Estado e, em
contrapartida, que seja impossível não haver tertúlias. E tudo o que
está ligado a isso: o tecido de relações interindividuais, a tapeçaria dos
amigos e dos “camaradas” que, de brincadeira em brincadeira, são a
autêntica base que sustentou sempre a vida espanhola, suprindo as
de ciências do Estado e de todas as formas coletivas.

Inversamente, o inglês é, para sua desdita, incapaz de tertúlias e é, ao


contrário, para sua ventura, muito capaz de colaboração pública, e se
aquilo que, um momento atrás, eu enunciava com relação à origem
das boas maneiras inglesas — embora interrogativamente, não se
esqueçam —, se isso que eu enunciava antes assume um aspecto
antipático de paradoxo, deve ser por quão vaga anda nas cabeças a
noção sobre o que seja a sociedade e sua relação com os indivíduos
que a integram. Graças a isso não se reparou que, com muita
freqüência, as virtudes e vícios de uma entidade são distintos e até
contrários às virtudes e vícios de seus indivíduos. Assim, poderia
muito bem acontecer de nada se parecer menos com a Inglaterra do
que um inglês. Calculem quão grave seria, se essa hipótese encerra
alguma dose de verdade, ver a Inglaterra perder o exemplar tesouro de
suas boas maneiras.

Aqui vocês têm o extraordinário programa de assuntos que teríamos


de mobilizar se quiséssemos enfrentar devidamente essas primeiras
páginas de Toynbee.

O que foi dito, porém, basta para que vocês tenham claras certas
particularidades menos gratas do autor e, por outro lado, nos
esquivamos de entrar fora do tempo nessas matérias, que serão
oportunas mais adiante, mas que agora só teriam aparecido motivadas
por uma destas que chamei de excrescências, como cou patente,
porque na segunda aula eu pude expor o pensamento de Toynbee e
sobretudo seu ponto de arranque, deixando-as de lado e, contudo, com
estrita delidade, e mais ainda, dotando-o de muito maior rigor, o que
demonstra que seu ex-abrupto, além de ser um ex-abrupto, era um
estorvo.

Repassemos agora nossa exposição. Como passaram-se três semanas5


e trata-se de uma trajetória de idéias em que cada uma leva à outra,
convém refrescar a memória do que foi dito reproduzindo-o num
breve resumo. Eu comecei chamando a atenção para o fato de as coisas
do mundo real serem, ou todo, ou parte. Se uma coisa é parte, é
ininteligível enquanto não a referimos ao todo do qual é parte, como a
folha da árvore não é inteligível se não for referida à árvore inteira,
nem a palavra é entendida se não estiver incluída na frase, e a frase
interpretada desde a conversa completa em que surge. Ao contrário, a
coisa que é um todo faz-se inteligível simplesmente ao se percorrer as
partes que a integram. A compreensão histórica reclama, do mesmo
modo, que não estudemos a realidade humana à revelia, tomando-a ao
acaso conforme caia em nosso campo de visão, mas que a situemos
sobre um “campo histórico inteligível”; ou seja, que seja um todo
efetivo, que seja uma realidade inteiriça. A razão evidente de tudo isso
está em que a coisa, quando é uma realidade parcial, não termina em
si mesma, mas sim continua em outra, e começar por isolá-la é correr
o risco de amputá-la, deixando de fora talvez o mais importante dela.

Desde meus primeiros escritos venho repetindo, com uma reiteração


que chega a irritar, a fórmula segundo a qual quem quer ver um tijolo
necessita ver seus poros e, portanto, aproximá-lo dos olhos, mas quem
quer ver uma catedral não a pode ver à distância de um tijolo. Ela
exige de nós o aspecto da distância. Cada coisa impõe a nós uma
determinada distância se queremos obter dela uma visão excelente.
Não fazê-lo, não reconhecer essa condição, é pedir para se enganar. Se
não existe grande homem aos olhos de seu criado, é por sua
inconveniente proximidade. Do mesmo modo, o historiador míope
que não sabe se desapegar dos detalhes é incapaz de ver um autêntico
fato histórico, e dá vontade de gritar a ele que a história é aquela
maneira de contemplar as coisas humanas desde a distância su ciente
para que não seja necessário ver o nariz de Cleópatra.

Conste que isso não implica desdém algum para com a erudição
minuciosa, sem a qual — e dá vergonha dizê-lo, como dá vergonha
dizer tudo que é óbvio — sem a qual a história é impossível. Esta
manhã mesmo eu revisava, e com objetivos bem alheios a este curso,
as numerosíssimas anotações que me inspirou, em minhas solidões de
Lisboa, a leitura do monumental comentário composto com in nita
paciência às cartas de Lope de Veja pelo senhor González de Amezúa,
a quem, embora eu não tenha tido o prazer de conhecer pessoalmente,
quero endereçar minha gratidão, porque talvez esteja por aí, náufrago
no pequeno mar deste auditório. Mas se é certo que sem erudição não
é possível história, é preciso dizer com não menos energia que a
erudição ainda não é história. Não se deve confundir, pois, a erudição
— a boa erudição — com o que chamo de eruditismo, o qual é um
vício funesto em que recaiu a vida intelectual espanhola, e reparem
que funesto signi ca, simplesmente, a lida funeral com que nos
ocupamos de um cadáver. Eruditismo não é a sã e imprescindível
erudição, mas a torpe idéia de crer que a erudição, ou o simples
acúmulo de notícias, pode hoje ser a forma constituinte da vida
intelectual, coisa que perdeu o sentido desde o nal do século ,
em que as disciplinas de humanidades entraram numa nova forma
intelectual, na forma da ciência, a qual, repito, não é apenas erudição,
simples acumulação de notícias, mas teoria e construção.

Pois bem, segundo Toynbee — e nem é preciso dizer que a idéia não é
propriedade sua —, uma nação não constitui um campo histórico
inteligível, nem mesmo no caso da Inglaterra, sua pátria, apesar de ter
sido a mais arredia entre as ocidentais, apesar ser a mais señera. É bem
conhecida a etimologia da palavra “señero”. É a deformação popular
do vocábulo latino singularis, singular, aquele que está ou que anda
sozinho; como nas terras silvestres em geral não falta um javali que
vagueie solitário, longe da manada, chamaram-no singularis, e daí o
francês sanglier com que nossos vizinhos acabaram denominando
todos os javalis.

Pois bem, mesmo a Inglaterra sendo a mais señera, a mais sanglier


das nações, não se pode construir sua história desde um ponto de vista
isolado, localizado dentro dela. As nações são sociedades de uma
determinada espécie que, entre outros atributos, as caracteriza como
sendo essencialmente partes e tão-somente partes de outra sociedade
muito mais ampla, na qual convivem várias delas e a qual Toynbee
chama de uma “civilização”. Esta sim é um campo histórico inteligível,
isto é, que pode ser conhecido e compreendido desde dentro de si
própria: a Inglaterra, como a França, a Espanha, a Itália, etc. são partes
do grande sujeito histórico que é a “civilização ocidental”. Certamente
Toynbee não nos explica como se formaram essas nações, nem sequer
como existem e vivem dentro do âmbito da civilização ocidental. Mas
deixemos a questão por ora. Para ele, uma civilização é certa
convivência de povos que se estende por um determinado espaço do
planeta e que tem um princípio e um m no tempo. Por isso, para
de nir uma “civilização”, o que temos de fazer é xar seus limites no
espaço, e determinar as datas de seu começo e de seu m na
temporalidade.

Como eu não tinha à disposição nenhum mapa su cientemente


amplo, tive de improvisar este aqui que vocês vêem, que cou bastante
franzino, a tal ponto que, provavelmente, a certa distância não se
vejam suas linhas com clareza. Espero poder, para as próximas aulas,
conseguir que me desenhem um mapa três ou quatro vezes maior que
este, pelo qual possamos deslizar com clareza e sem tropeços. Neste
que temos aqui eu pedi que desenhassem os limites de algumas
civilizações. Não era possível fazê-lo com todas, pois teria resultado
num emaranhado indiscernível. Não me restaria opção senão me
aproximar do mapa para assinalar algumas linhas, mas se me afasto
daqui acontecerá, como na primeira aula, de alguns pararem de me
ouvir. Não posso me deslocar; estou preso a este lugar como um servo
da gleba microfônica. O que fazer? Optar por tomar na mão o artefato,
e irmos juntos pelo mundo? Isso ocasionaria uma estranha
metamorfose da natureza, que é criadora de genialidades trágicas e
cômicas, em virtude do que uma realidade assume o aspecto e se
transmuta em outra, díspar. Com o microfone na mão pelo mundo eu
ganharia um ar de valete de ouros que eu jamais previra no repertório
de minhas possibilidades.

Como podem ver, os limites da civilização ocidental, que vêm desde a


América — ausente neste mapa —, passam pela Islândia e, cruzando
toda a Escandinávia, até a Polônia inclusive, descem para a foz do
Danúbio, cortam uma parte dos povoados eslavo-balcânicos, entram
no Adriático e, percorrendo as penínsulas italiana e espanhola, voltam
a seguir para a América. Ao ter de nido os limites geográ cos de
nossa civilização, descobrimos como ao seu lado existem outras quatro
civilizações atuais. Uma delas é a que Toynbee chama a civilização
cristã-ortodoxa, que ocupa a Grécia, uma parte dos Bálcãs e toda a
região eslava da Rússia. Outra, a civilização islâmica, que ocupa toda
uma parte da Ásia Menor até o Paquistão e corre por toda a África até
o Equador. Junto dela está a civilização extremo-oriental da China
atual e seu anexo, que tem o campo principal na China e no que
Toynbee vai chamar de o broto japonês, nas ilhas japonesas. En m, a
civilização hindu, nas regiões tropical e subtropical da Índia e da
Indonésia.

No que toca aos limites no tempo, já disse outro dia que de nossa
civilização não podemos de nir com precisão o que lhe compete na
direção do futuro, pois ainda não terminou, uma vez que nós, que a
somos, ainda estamos aqui. Mais ainda, a despeito de quanto ouvimos
falar e do que nós mesmos, re etindo, pensamos, acerca de uma
eventual demolição da nossa civilização, lá no fundo de nós mesmos
encontramos uma crença automática — como toda crença não
fundada em razões — em virtude da qual esperamos que nossa
civilização não vá periclitar. Talvez seja próprio de toda civilização,
como em todo amor autêntico, crer em sua própria eternidade.
Duvido que exista hoje sequer um homem no Ocidente, nem mesmo o
mais pessimista e que com mais reiteração pense que, por tais e tais
razões, nossa civilização vai sucumbir, que o creia. Porque crer é algo
muito distinto de pensar. Pensar pode-se pensar tudo, basta querer
pensar. Mas crer ou não crer está fora do nosso arbítrio. Pensamos a
verdade cientí ca, isto é, consideramos que uma certa idéia possui
certos atributos precisos que nos obrigam a incluí-la na grande
construção intelectual que é o sistema das teorias. A verdade cientí ca
persuade a nossa inteligência, mas isso não implica que creiamos nela.

Mas agora não é questão de crer, e sim de raciocinar, e o que faremos


é nos esforçar por obter uma noção, a mais clara possível, dessas
enormes realidades que são as civilizações, a m de averiguar se, por
sua própria essência, estão todas consignadas à morte, ou se, para sua
sorte, é possível que alguma, talvez a nossa, possua a graça de se
perenizar.

Em princípio, com relação à nossa, só podemos olhar para t rás. Na


viagem retrógrada que rapidamente iniciamos outro dia fomos
reconhecendo sua identidade por meio de seus movediços aspectos,
até chegar o século , em que a encontramos sob a gura do
Império Carolíngio. De fato, foi Carlos Magno que, ao criar seu
império e inspirar o que se chamou de “renascimento carolíngio”,
constituiu pela primeira vez o espaço e a alma da nossa civilização. E
não faz mal recordar que Carlos Magno forjou esse seu império com
uma espada, que era terrível em suas obras, mas amável em seu nome,
que se chamava “la joieuse”, a jovial. Convém que as espadas, já que
têm de sê-lo, acertem de portar nomes ternos e promissores.

Se avançamos do Império Carolíngio e penetramos no século ,


perdemos a pista de nossa civilização e em vez dela encontramos o
contrário de uma civilização: um caos histórico, um mundo derruído
pela invasão dos povos bárbaros, especialmente os germânicos. São
três séculos do que Toynbee chama “interregno”. Mas, se avançamos
um pouco mais e chegamos ao século  depois de Jesus Cristo,
tornamos a nos encontrar em meio a uma civilização perfeitamente
constituída: um Estado universal, o Império Romano; uma ordem que
está constituída sobre uma imensa porção do planeta, a pax romana; e
uma Igreja universal que se estendeu por todo o espaço e que se
originou no seio profundo onde habitava o proletariado interno da
sociedade greco-romana. Aquela pax foi quebrada; aquele Estado
universal foi pulverizado pela irrupção dos povos elementares, pelo
que Toynbee chama de Völkerwanderung. Toynbee costuma
denominar suas categorias históricas gerais com nomes de fatos
acontecidos em histórias particulares; assim, à emigração inteira de
povos menos cultos que despencam sobre uma velha civilização
chamará Völkerwanderung, usando o nome que, com eufemismo,
empregaram os historiadores alemães para designar o que nós
chamamos de “invasão dos bárbaros”. Se essa propensão terminológica
de Toynbee é ou não compatível com a essência mesma da realidade
histórica e, portanto, com a ciência de historiar, é algo que iremos
averiguar paulatinamente.

Dizíamos que, ainda mais para além do Império Carolíngio e dos três
séculos do que Toynbee chama de “interregno”, sentimos que nossos
pés transitavam pelas fronteiras cronológicas de nossa civilização
ocidental, e que estamos dentro de outra civilização a cujo desmoronar
assistíamos: a civilização greco-romana. Prossigamos, fazendo com ela
o mesmo que zemos com a nossa. Comecemos por perguntar por
seus limites no espaço, e então teremos uma con guração geográ ca
da civilização greco-romana que é a seguinte: parte das ilhas britânicas
abaixo da Escócia, aonde não chega propriamente; desce para os Países
Baixos na linha do Reno e do Danúbio; chega, por outro lado, às costas
do norte do Mar Negro; entra em sua etapa de máxima expansão na
Báctria, na Índia, e em seguida corre por toda a parte alta da Arábia,
incluindo, portanto, a Síria; desliza por todo o norte da África,
chegando a se unir outra vez com as ilhas britânicas envolvendo a
Espanha e a França.

Como podem ver, esta con guração é bastante distinta daquela


própria à nossa civilização e, contudo, há uma parte comum a ambas.
Mas essa parte é, em princípio, menor, e além disso a sua semelhança
de gura é apenas uma parcial semelhança, e esse parcial é muito
importante. Nossa civilização acresceu ao que eram os limites da
civilização greco-romana no Reno e no Danúbio toda a Germânia e
toda a Escandinávia, isto é, todo o norte da Europa, o que era limes, de
modo que a linha militar fronteiriça e terminal do Império Romano
passa agora a ser nada menos que a linha central, a linha eixo da
con guração geográ ca própria à nossa civilização. Em verdade,
senhores, é sobremaneira misterioso e quase mágico o destino desta
linha. Porque se, desde um ponto de vista que podemos chamar de
geográ co, sua variação foi a maior possível, pois passou de linha
limite e extrema para linha eixo, linha central, por outro lado sua
função histórica continua idêntica desde então até agora. É uma
história curiosa e é um destino, repito, misterioso o desta linha. O que
há por trás desse estranho destino? Isso requer uma certa preparação.

Império e imperador signi cavam, para o homem greco-romano,


uma função muito precisa: mando do exército. Na vida civil da Grécia
e de Roma ninguém mandava — vocês logo me entenderão —, não se
associava com a idéia de autoridade a idéia de mando. Mandar é impor
a outros homens a decisão adotada pela vontade de uma pessoa. Daí
vem a palavra “mandar”, que vem de dare manus, manus dare, e manus
signi ca certamente a mão do homem. Mas a mão do homem na
medida em que é agente de força na luta, em que representa, frente ao
querer ou ao dever, o poder. Por isso manus dare signi ca, por um
lado, enviar forças de exército, porque manus, desde os tempos mais
primitivos dos povos latinos, pertenceu ao vocabulário militar, e
signi cava simplesmente força bélica, tropa. Manus dare é enviar
tropas e, ao mesmo tempo, como ocorre tantas vezes com as palavras,
o contrário: render-se a essa tropa. Daí também que a unidade tática
mínima do exército romano se chamasse manipulo (a tropinha), da
mesma raiz de manus. O chefe do exército dava ordens conforme o seu
arbítrio e responsabilidade às forças que estavam sob seus auspícios,
ou seja, “imperava”. Ao contrário, os magistrados civis de Grécia e
Roma eram algo muito distinto de dar ordens procedentes de um
arbítrio pessoal; o magistrado grego e romano não é uma pessoa;
começa por despersonalizar-se, e toda sua função consiste em fazer
cumprir a lei, em executar os regulamentos. Ele não tem vontade, e
por isso Cícero, em seu tratado Da república, dirá que o magistrado é
uma lei viva. Pois bem, o exército era a única função pública na qual,
por uma necessidade própria de sua ação, o romano permitia que um
homem dispusesse e ordenasse. Esse é o império, e esse é o imperador,
o chefe do exército. E como o exército não está ou não deve estar na
praça pública, na ágora ou no foro, mas sim ali onde se combate, e se
combate sobretudo na fronteira por onde o inimigo ameaça, é na
fronteira onde estará o exército romano e, portanto, a função de
império e de imperador. Eis porque a linha, o limes do Reno e do
Danúbio, limite militar das fronteiras imperiais, fosse durante a
história do Império Romano a linha imperial por excelência.

Mas deixemos isso aqui em suspenso, para repassar a explicação da


mudança geométrica de posição dessa linha, unida à perduração de
sua função histórica.

Esse acréscimo do norte da Europa que nossa civilização faz à antiga


é compensado por uma enorme perda. Com efeito, durante a época
greco-romana o centro da vida é o Mediterrâneo. É, de fato, um mar
interior, um mar entre terras, e toda a vida circula de uma costa para a
outra. Se quiséssemos representar gra camente o dinamismo vital
daqueles séculos da história greco-romana teríamos de desenhar uma
série de echas que partiriam do interior das terras, mas dirigiriam
suas pontas para a costa, e ao chegar à costa não se deteriam ali, mas
atravessariam o mar e iriam até a costa fronteiriça. Isso quer dizer que
qualquer que seja a profundidade do território a que chegue terra
adentro o Império Romano, a vida grega e romana foi sempre vida
costeira, enquanto a nossa história, sobretudo até o século , é uma
história em terra que se faz a cavalo. Lembrem-se dos milhares e
milhares de léguas que Carlos  teve ainda de cavalgar. A nossa
história é, portanto, uma história de cavaleiros e, em seu conjunto,
uma gloriosa cavalaria. A vida antiga, por sua vez, foi feita toda na
nave. Por isso toda a existência do homem antigo está cheia de
preocupação acerca do navio. A lenda talvez mais antiga da Grécia,
quase inteiramente mitológica, é a viagem da nave de Argos a buscar o
velo de ouro, a viagem dos argonautas. E o conto que mais se contará
nos séculos  e  ao m da adolescência da Grécia é o conto da
nave errante, da nave de Ulisses pelo Mediterrâneo, de costa a costa, de
Calipso a Circe, porque o pobre homem não estava apenas submetido
ao tráfego das tormentas, mas a algo mais grave: a ter de enfrentar as
graças de todas as encantadoras do Mediterrâneo. E assim, quando se
põem a sonhar, esses gregos sonharão com naves que são capazes, sem
piloto, por si mesmas, de levar o navegante seguro até o porto. São as
misteriosas naves dos feácios, e quando começa a ciência, lá na costa
da Jônia, em Mileto, surge uma sociedade de homens presididos por
Tales, que chamavam-se a si mesmos os “Sempre Navegantes”, e que
celebravam suas sessões cientí cas dentro de um navio em alto mar. E
assim, uma após outra, a idéia da nave adentra no mais profundo e
emocionado da alma antiga. Daí o culto à nave e seu culto à
oportunidade, porque opportunus não signi ca nem mais nem menos
que a via que nos conduz seguramente ao portus ou porto.

Ora, em 1937, três anos, portanto, depois de terem sido publicados os


três primeiros volumes da obra de Toynbee, o grande historiador belga
Henri Pirenne lança seu livro, meditado durante toda sua longa vida,
que se chama Maomé e Carlos Magno. Nele se sustenta — e não
pretendo adotar nem rejeitar sua doutrina, porque a parte que nos
interessa no momento é su cientemente verdadeira — que é um erro
datar o m do mundo antigo, da civilização greco-romana, quando da
invasão dos bárbaros. Estes podem ter causado quantas perturbações
se quiser; deram à vida histórica desses séculos um aspecto de caos,
mas a verdade é que não modi caram o mais mínimo o corpo
histórico, a con guração geográ ca, a anatomia da existência
territorial daquela civilização. Os bárbaros invadiram a Grécia,
invadiram a Itália, invadiram a Espanha, mas não se detiveram ali;
atravessaram o Estreito, correram pelo norte da África. Ou seja, são
um elemento novo que, mesclando-se aos preexistentes e velhos, sem
modi car a estrutura geográ ca do mundo antigo, faz continuar a vida
daquele corpo, mas, em princípio, não a suprimiram. A modi cação
verdadeira — e desta vez sim é radical — aconteceu, segundo Pirenne,
quando no século  os muçulmanos, os sarracenos, isto é, os
orientais — e é curioso que os próprios muçulmanos tenham dado a si
mesmos este nome, nome que hoje detestam, como vocês sabem —
conquistam todo o norte da África, escindem o Mediterrâneo e
separam absolutamente o tráfego de costa a costa. Isso sim é
modi cação radical. A anatomia da con guração histórica é distinta, e
por isso — ao menos esta é uma das causas históricas — nasce uma
nova civilização. Porque, desde esse momento, quando o Mediterrâneo
deixa de ser o centro da vida do mundo interior e lugar de gravitação
de uma e outra coisa, tem de mudar por completo a estrutura da
existência, e o dinamismo vital que antes representamos com echas,
que iam do interior das terras em direção à costa, agora teremos de
representá-lo desenhando as echas na direção inversa: partindo das
costas e indo até a terra profunda, até a hinterland, que é o Norte. Toda
a história européia foi uma grande emigração para o Norte. E por isso,
ao mudar completamente a anatomia do corpo histórico, a linha que
antes era fronteira vai tornar-se um eixo e centro do novo corpo.

Carlos Magno, ao morrer, conservava apenas um de seus lhos: Luís


o Piedoso. Este, por sua vez, quando morre, deixa três lhos e,
seguindo o antiqüíssimo costume franco, divide seus Estados entre
eles. A Luís o Germânico, deixa o Oriente; a Pepino, o Ocidente; mas
ao primogênito, Lotário, que herdará o título imperial, deixa a
Lotaríngia, um Estado de forma estranhíssima que sempre confundiu
e surpreendeu os historiadores: deixa a ele uma faixa de terra que vai
desde os Países Baixos, passa por todo o Reno, até a Itália. Por quê?
Seria um capricho essa estranha resolução? Por muito tempo já se
considerou assim, dada a falta de respeito de todo homem presente
pelo passado. O passado, que faz o favor de nos carregar sobre seus
ombros — e graças a isso não somos nós o passado — tem o azar de
que o presente sempre o desdenhe, e porque está em cima dele e
carregado por ele, acredita ser-lhe superior.

Com efeito, quando contemplamos essa estranha faixa que vai dos
Países Baixos, passando pelo Reno, até a Itália, surpreende-nos notar
que aí estão as capitais imperiais: a do Império Romano antigo, que
Carlos Magno quer ressuscitar com seu império, e a capital do próprio
império, Aquisgrana. Aí estão as duas cidades imperiais. Mas mais
ainda: essa linha — que era a linha imperial, a linha das batalhas, a
linha do mando no Império Romano — vai continuar sendo, até os
nossos dias, a linha pela qual tiveram de lutar todos os que quiseram
mandar no Ocidente. Aí deram-se todas as grandes batalhas pela
hegemonia européia. Aí teve de combater Carlos ; e ainda em tempos
de Felipe , naqueles anos de tão terrível astenia para o nosso império
— astenia sobre a qual eu talvez diga, algum dia, umas palavras — os
soldados, quase exangues, ainda continuam tendo de combater na
linha do Reno. E mais: a estas horas — digo-o deliberadamente —
uma das coisas que se discute no mundo é o que se passa no Reno;
continua sendo, pois, a linha que antes era fronteira imperial, eixo
central da história. Eis aí como, tendo mudado sua situação
geométrica, conservou sua função histórica, sua função imperial.

Essa distinção entre a con guração geográ ca daquela civilização e a


nossa tomou-me mais tempo do que conviria, e não vejo outra saída,
portanto, e a m de não fatigá-los, senão suspender a aula aqui.

A IV
Domi e militiae. — O Império Romano,
Estado anormal. — Uma pausa: o
Instituto de Humanidades e a ciência
histórica.

N apresente
aula passada zemos uma viagem retrógrada, partindo do
e regressando em direção ao passado, até descobrirmos,
no século  depois de Cristo, o começo da nossa civilização
ocidental. Dando seqüência ao nosso retrocesso, vamos parar dentro
do Império Romano, a cujo desmoronamento havíamos assistido logo
antes, isto é, havíamos ingressado no âmbito de uma civilização
distinta da nossa, na civilização greco-romana. Imediatamente,
executamos com relação a ela a mesma operação que zéramos antes
com a nossa, e que é o primeiro dado sobre uma civilização que é
necessário adquirir para de ni-la: determinar a sua gura geográ ca,
seu espaço histórico. Vimos que o espaço da nossa civilização coincide
em parte com o da greco-romana. Pusemos de lado, provisoriamente,
a América, a qual, não faz nem dois séculos, era somente uma orla
colonial do nosso mundo, e então notamos que a diferença entre
ambos os mundos, o antigo e o nosso, consiste, por um lado, em que a
nossa civilização acrescentou ao Império Romano a porção
continental que há para além do Reno e do Danúbio, portanto, as
terras do Norte, o Setentrião: a Germânia e a Escandinávia, a Escócia e
a Islândia; ao passo que, por outro lado, perdeu o Mediterrâneo, o
Oriente Próximo e o Norte da África, que durante o próprio século
 os muçulmanos haviam conquistado. Esses dois fatos, a mudança
espacial que eles representam, essa anexação espacial, por um lado, e
amputação espacial, por outro, não signi cam em si mesmos nada
importante, apenas o deslocamento da mesma gura geográ ca de
uma latitude para outra. O que é importante nessa mudança no espaço
é que ela obrigou, automaticamente, a que se invertesse a direção do
dinamismo vital e, portanto, constituiu um corpo histórico de
anatomia diferente. No mundo greco-romano o centro é o
Mediterrâneo, e a vida vai desde o fundo das terras até as costas que o
mar latino, longe de separar, une e sutura. A vida antiga, dizia eu, foi
uma vida costeira.

Lembrem-se de que por todo o Norte da África alçavam-se


esplêndidas cidades, nem mais nem menos romano-helênicas do que
as do outro lado do mar. De suas egrégias ruínas imperiais estão hoje
semeados os desertos tingitanos, argelinos, tunisianos e líbios. Assim,
o peregrino entusiasta que vai ao encontro, no presente, dessas
paragens melancólicas, chega um dia perante os próceres, solenes e
caducos muros de alvenaria, perante as vértebras sobreviventes de um
aqueduto, perante as curvas rotas de arcos mutilados, e perguntando
ao guia como se chamava aquela cidade, ouve que tinha um nome
graças ao qual é a cidade em que ele, sem saber, sempre quisera morar,
porque tinha o nome de cidade com mais sex appeal que outra urbe
jamais teve: chamava-se Volubilis.

Com a perda do Mediterrâneo a nova vida, que será a vida européia,


precisa inverter a direção do seu dinamismo, e agora é o Norte
profundo que puxa para si o que havia nas costas como que sugando a
sua seiva. Centrada no Mediterrâneo, a história antiga é uma história
meridional; a nossa gravita para o Norte, para o Setentrião; a vida e a
história européia é predominantemente uma existência setentrional.
Septem Triones, os sete bois, é como os latinos chamavam as sete
estrelas da Ursa Maior que nos permitem descobrir o Norte na
paisagem sideral.

A anatomia diferente desses dois mundos revelava-se a nós na


mudança sofrida pela linha do Reno, que, de linha limite e fronteiriça
na civilização greco-romana, torna-se linha central e eixo na nossa.
Toynbee expressa essa vicissitude dizendo que, do que fora uma
costela do mundo romano, nossa civilização fez sua coluna vertebral.
Mas essa formulação é mais engenhosa do que verídica, posto que,
como vimos, essa linha, apesar de sua radical alteração geométrica ou
puramente geográ ca, manteve nos dois corpos históricos sua mesma
função orgânica: a de ser a linha imperial, como continua sendo até
hoje.

Imperar, dizíamos, não é outra coisa senão mandar, e mandar é


precisamente — assim o diria nosso Suárez — um homem impor a
outros a decisão de sua vontade pessoal. Todavia “cidade”, civitas,
“Estado”, para o romano, signi cavam um âmbito no qual nenhum
homem impõe sua vontade pessoal. Na cidade rege apenas a
autoridade, e a autoridade é a lei igual para todos, anônima em sua
origem e anônima em seu conteúdo. Não havia nada que o romano
temesse nem odiasse mais (os bons leitores de Cícero certamente o
recordarão) do que uma disposição legal — a sentença do juiz não é
disposição legal — na qual tivesse sido incluída a mais mínima
referência, em pró ou contra, a uma pessoa determinada. Era o que
chamavam de privilegium, privilégio, palavra que chegou até nós
carregada da odiosidade que os latinos injetaram nela, persistência
curiosa que é, mais propriamente, um ressurgimento, porque na Idade
Média, por ser em tudo a inversão da Antiga, a maior e melhor graça
de um direito era que fosse um privilégio.

Os romanos, que não divagavam, não utopizavam, que olhavam para


a realidade com suas cabeças duramente esclarecidas e claramente
duras, distinguiram radicalmente o momento civil do momento bélico,
a vida cidadã e a vida militar, ou, para usar o caso de sua declinação,
distinguiam domi de militiae, em casa ou no exército. E a ambas as
formas de vida se concedia profundamente e sem melindres o que
solicitavam. A ação guerreira, o comportamento estratégico, são de
condição imprevisível, não cabe regulamentá-los. O acerto nos
fragores da batalha ou nas convulsões da disciplina dependem da
decisão fulminante que um homem adote por sua conta e risco. Por
isso criaram a gura do chefe do exército, e, com a franqueza bruta e
exata que empregavam para denominar as coisas, chamaram-no, sem
rodeios, imperator, o que manda. É sabido que a superioridade do
exército romano sobre todos os demais, e muito especialmente sobre
os helênicos, por exemplo, era a ilimitação de poderes, o absolutismo
outorgado ao chefe do exército. No livro  de sua Guerra civil o
próprio César contrapunha os poderes do legado e do imperator,
dizendo que aquele tem de se submeter em tudo ao prescrito; este, ao
contrário, deve decidir com absoluta liberdade em todas as questões:
libere ad summam rerum consulere debet. (“Imperar” veio a signi car
“mandar” porque antes foi im-paro, isto é, tomar as medidas
necessárias, fazer os preparativos que uma urgência demanda. Tem,
portanto, o mesmo duplo signi cado que a nossa palavra “ordenar”,
que é “projetar uma ordem e caz nos atos” e “impor essa ordem”.)
Mas, compreenda-se bem, esses poderes excepcionais não começavam
a existir senão no momento em que o general punha o pé para fora da
linha em que terminava o território da cidade, o que chamavam de
pomerium, isto é, extramuros, ou, posteriormente, para além da
primeira pedra miliária fora do recinto urbano. Para simbolizar o
ressurgimento desses poderes excepcionais, a comitiva se detinha
naquele lugar, e dentro dos fasces das varas dos lictores que
acompanhavam o general colocavam os machados dos verdugos. O
imperator, com efeito, tinha poder de vida e morte sobre seus
soldados, potestade esta que ninguém possuía dentro da urbe. Nesta
regia apenas, como eu dizia, a autoridade, e a autoridade é a lei
impessoal. Um cidadão, por eleição popular, era destacado de entre os
demais para ocupar-se de fazer com que ela fosse cumprida. Sua
personalidade desaparecia, e aquele homem se transmutava num
autômato da legalidade; a sua pessoa era, por assim dizer, exilada de
sua realidade humana, e no lugar vago se instalava a entidade anônima
da lei. Como depositário, como vaso ou continente da lei, e somente
por isso, aquele homem era avantajado sobre os demais. A ele se fazia
magis que aos demais, era majorado, era magister e magistrado. O
imperator, por sua vez, não era um magistrado; era, de certo modo,
exatamente o oposto; diríamos que era um comissionado, um
encarregado de executar uma tarefa, a saber: a cirúrgica operação que
se chama guerra. Estava, portanto, longe de ser um magister, e estava
mais para um obreiro, em espanhol um “menestral”, um minister. Essa
contraposição é a forma mais abreviada que me ocorreu de fazê-los ver
e como que apalpar a mudança absoluta, a completa tergiversação — e
conste que “tergiversação” quer dizer virar uma coisa completamente
ao contrário — que o Império Romano representa para todo o passado
anterior de Roma. O Estado que chamamos de Império Romano
radicava, pois, nessa instituição tão transitória, tão eventual que foi a
instituição imperatória, uma instituição que nem sequer é uma
magistratura, que é totalmente o contrário de uma autoridade civil e,
portanto, estatal, que é o ofício anormal e transitório, emergente
apenas e enquanto a ocasião o requer. É importante não esquecer isto,
para depois relacioná-lo com algo que direi na aula que vem.

É muitíssimo revelador que Augusto, quando vai fundar pela


primeira vez a nova autoridade imperial, consciente da hiperestesia
romana para o direito e os fundamentos legais de toda ação pública,
busque, para respaldar seu exercício de um insólito poder, amparar-se
nas duas instituições mais periféricas, mais extravagantes e mais
anormais que havia no direito público romano: o tribunado da plebe e
o imperium militiae ou che a do exército. O tribuno da plebe também
não era um magistrado, longe disso; o tribuno da plebe é a instituição
mais heteróclita, mais original e mais irracional que alguma vez
existiu. O tribuno não podia fazer nada; só podia impedir, proibir e
vetar. Era o próprio estorvo consagrado como instituição, e digo
“consagrado” formalmente, porque, de fato, a pessoa do tribuno era
sagrada. E, contudo, essa instituição tão heteróclita e tão irracional foi
a mais e caz que alguma vez existiu, uma vez que, à parte seus
inestimáveis serviços durante a Roma republicana, foi o alicerce, junto
com o imperator, em que se assentou o Estado mais ilustre nos anais
da humanidade: o Império Romano.

É revelador, como eu dizia, mas não somente com relação ao passado


que foi Roma, mas tanto ou talvez mais com relação ao nosso próprio
futuro.

Mas deixemos essa ponta solta por ora. Destaquemos, sim, como se
depreende, do que foi dito, que esse Estado, o mais ilustre, que
Toynbee chama de Estado universal e que vai servir-lhe de protótipo
para sua tese — segundo a qual toda civilização chega a um momento
em que se constitui como Estado universal —, esse Estado ilustre que
foi o Império Romano foi um Estado anormal, a anormalidade
consagrada como normalidade, a patologia estatal aceita como saúde.
Toynbee talvez não veja isso, porque Toynbee deixa de fazer algo que é
decisivo em história. Isso que acabo de dizer não pode ser visto senão
desde dentro da civilização greco-romana, e Toynbee não gosta de
entrar dentro das civilizações, e prefere contemplá-las desde fora,
como se contemplam as montanhas, e assim faz com que passeie, pelas
vastidões da história, a alma de turista que Deus concedeu ao inglês.

Tenho a impressão de que a história do Império Romano ainda está


por contar, e sua realidade jamais foi compreendida. Mommsen, um
dos poucos gênios que houve na ciência histórica e a quem, de minha
parte, dedico um fervoroso culto, parou a história romana ao chegar a
ele. Conta-se que perdeu numa viagem o manuscrito em que tratava
dele, mas sabemos perfeitamente, ainda que não o tenhamos visto, que
seu conteúdo não podia ser acertado. Mommsen, que entendeu de
modo magistral a Roma republicana, não viu tão claramente a gura
de César e, não por casualidade, mas pelas condições do tempo em
que viveu, padecia de uma cegueira em relação a essa nova e estranha
sionomia histórica que é o Império Romano, a tal ponto que nem
sequer naquilo que é o forte de sua mente, o estudo do direito e das
instituições, acertou ao interpretar a gura estatal do novo corpo
político, conforme novos documentos e análises posteriores
demonstraram. E a razão última dessa cegueira, mesmo num homem
tão genial, reside num inoportuno e pio idealismo, o qual não aceita
que a realidade histórica, para além dos desajustes passageiros, possa
ser constitutivamente enferma e defectiva. É o vício do otimismo
intelectual que herdamos dos lósofos gregos, de que o paganismo
helênico infeccionou os pensadores escolásticos, que os humanistas
dos séculos  e  reavivaram na Europa, que os lósofos
racionalistas do século  santi caram sob a espécie de
progressismo, e cuja cura ou correção é a reforma mais urgente e
importante que é necessário fazer na mente contemporânea. Porque já
se devia ter notado que este talvez seja o único tema, entre os
decisivos, em que andam juntos e misturados, por exemplo, Santo
Tomás de Aquino e Voltaire. Isso não quer dizer que eu pense ser
verdade o vício oposto: o pessimismo intelectual. Justamente agora se
está caindo, e muito perigosamente, nesse novo vício, e isso se deu
pelo fato de as mentes humanas não estarem educadas para se pôr
igualmente abertas perante o otimismo e o pessimismo. Ninguém
impôs à realidade intramundana a obrigação de terminar bem, como é
obrigatório nos lmes norte-americanos; ninguém tem o direito de
exigir de Deus que pre ra fazer da história humana uma doce comédia
de costumes em vez de fazer dela uma imensa tragédia. É preciso
deixar Deus sossegado na in nita amplitude de seu arbítrio. Quão
mais profunda que todo esse inveterado otimismo losó co tão
perfeitamente arbitrário, tão mal fundado na razão — e me re ro a
Platão e Aristóteles —, quão mais profunda é a de nição geográ ca
que dá deste mundo a religião cristã quando diz dele que é um vale de
lágrimas! Desde certa época, o imperator atuava sobretudo na linha do
Reno, porque esta era a fronteira e o lugar de perigo. Mas vemos que a
mudança dessa linha para linha eixo e central não impede que ela
continue sendo, em todos os séculos posteriores, durante a história
ocidental, a linha imperial ou de mando. Na faixa territorial que corre
desde os Países Baixos ao longo do Reno até Milão é onde tiveram de
combater todos os que, há doze séculos, quiseram mandar no
continente. E não é por acaso que o único imperador que nos coube
pela sorte aos espanhóis e, por certo, o último de grande formato que
existiu, Carlos , possuísse como senhorio natural precisamente as
terras de Flandres, Borgonha, o Franco-Condado, e tivesse de
combater para ser dono de Milão com Francisco . Porque, conforme
ele dizia: “Meu primo Francisco e eu estamos inteiramente de acordo
sobre Milão; cada um de nós o deseja para si”. Ou seja, Carlos 
possuía toda essa faixa que o lho de Carlos Magno, Luís o Piedoso,
com aparente arbitrariedade, legou ao seu primogênito Lotário, com o
nome de Lotaríngia, que deu em sua evolução fonética no vocábulo
atual Lorena para signi car, nesta sua última forma, a pertença a uma
exígua porção de toda aquela larga zona, exígua porção pela qual,
porém, se combatia ainda em 1918; essa faixa que parece ser decisiva
na história ocidental, porque isso nos explica o que Toynbee deixa de
explicar. Mas se hoje reitero essa consideração é para acrescentar algo
de grande calibre que eu não disse na aula passada, e que explica por
que, em nossa civilização, a linha imperial não é, como na antiga, uma
fronteira, mas uma linha central e o eixo anatômico de um corpo
histórico. Com efeito, uma vez que Lotário recebe a Lotaríngia, o
Oriente e o Ocidente da Europa cam separados e não tornam a se
juntar. A Lotaríngia, pois, atua como um isolante, como um
distanciador entre ambos os lados do continente, e isso dá ensejo a que
se iniciem e amadureçam dentro da Europa dois modos de ser homem
tão profundamente distintos como o francês, de um lado, e o alemão,
do outro; ou, dito de outra forma: essa faixa separatória é causa da
formação de duas grandes nações continentais: França e Alemanha.

E lembrem-se agora de que, na primeira aula, quando falava do


“aqui” e do “lá”, anunciei que algum dia explicaria como toda nação,
tomada por um de seus lados, é substantivamente “distância”. Da
explicação mesma ainda não houve nem sombra, mas já é possível ver,
num caso urgente e exemplar, como o simples fato da distância, da
separação, engendra de um só golpe um par de nações, e nada frouxas,
por certo. Mas se eu não expliquei por que a distância é nação, esse
fato ao menos explica algo importante, a saber: por que a linha
imperial de nossa civilização não é linha limite ou fronteiriça, mas
uma linha central, que é porque o corpo histórico de nossa civilização
tem uma anatomia bilobulada. Seu torso consiste em dois lóbulos
principais: França e Alemanha, e isso requeria inevitavelmente uma
linha entre ambos, ao mesmo tempo de pressão e de equilíbrio. O
mundo greco-romano, por sua vez, não era assim. E isto torna patente
uma nova razão para invalidar a mencionada imagem de Toynbee,
segundo o qual o que foi uma costela passa a ser coluna vertebral,
porque, se a linha do Reno era uma costela no corpo romano, parece
supor-se que Roma teria sua coluna vertebral em algum outro lugar.
Será que Toynbee poderia nos dizer onde? Em parte alguma. Roma
não tinha nenhuma coluna vertebral, não era uma anatomia
bilobulada. Esta é uma diferença profunda entre aquela civilização e a
nossa, mas essa anatomia só se vê quando se olha por dentro, e
Toynbee prefere não olhar as civilizações por dentro. Então se adverte
que a civilização greco-romana é um organismo de uma espécie
distinta do nosso. Roma é um organismo invertebrado, sem lóbulos. A
teoria de Toynbee, pois, encerra um grande erro histórico: o
desconhecimento da diferente estrutura, profunda, de ambas as
civilizações.

Aqui temos de fazer uma pausa, porque, para continuar em linha


reta, dizendo o que seria preciso dizer, teríamos de contar com um
mapa de dimensões maiores, onde pudéssemos controlar claramente o
que disséssemos. Não é mau esse motivo ou pretexto para nos
determos aqui. Talvez dê ocasião para que toquemos alguns assuntos
que não serão de todo inférteis, não obstante parecerem supér uos
agora. Recordem-se de que este curso não teve exórdio, e convém que,
em algum momento, o exórdio ou algo parecido brote por inspiração
espontânea. E, antes de mais nada, devo dizer que, quando antes
contrapunha o magistrado e o imperador — e ao dizer isso demonstro
a vocês que não quero pegá-los em nenhuma armadilha — não queria
dizer de modo algum que os romanos tenham alguma vez chamado
formalmente o imperator de minister. Aproveitei essa contraposição
entre magister e minister, o que é mais e o que é menos, e a apliquei
arti cialmente e, portanto, fraudulentamente, à relação que os
romanos sentiam e viviam entre o magister e o imperator. Mas,
entenda-se bem, z isso com a intenção de produzir na mente de vocês
um choc, cujo efeito, sim, correspondia completamente à verdade, pois
fez com que vissem qual era a atitude efetiva em que os romanos da
República viviam. E, se chamei o que acabo de fazer de ação
fraudulenta, entenda-se que é também por zelo de veracidade, pois
podia ter silenciado a esse respeito e me protegido sob a autoridade
máxima de Mommsen, o qual, em sua História do direito público
romano, obra não superada nem substituída, no tomo  e lá pela
página 145, diz textualmente: “O título do imperador passava por uma
distinção inferior”; portanto, não era um magis, mas um minus. Fiz
essa advertência por puro tecnicismo, para que sirva de exemplo em
outros casos, porque é muito típico dos que são incapazes de fazer
ciência autêntica, e me re ro sobretudo à ciência histórica, ou, ao
menos, aos que dão duro em negócios cientí cos, alardeando
escrupulosidade, crer que alcançavam uma façanha se, ao ouvir o que
digo, se apressassem a apontar que, na terminologia jurídica e
administrativa de Roma, nunca se tenha quali cado o imperator como
minister, ministro. E é claro que há, nas ciências históricas, pontos e
temas em que a exatidão do detalhe é imprescindível, e em que a
operação cientí ca consiste em confrontá-los; mas em tudo o mais a
conduta cientí ca é a inversa, a saber: eliminar as miudezas que não
são oportunas e, graças a isso, graças precisamente à sua omissão,
conseguir que que claro e de nido aquilo que importa. E o que
importa agora é levarmos em conta como eram vividas, entre os
romanos da República, vinte e quatro séculos atrás, estas duas
instituições: o imperator e o imperium. Como não estou em posição
de dizer nada que seja apenas maneira de dizer, ao dizer agora que é
isso que importa, dou a entender que, querendo ou não, prestemos ou
não atenção nisso, a todos os que estamos aqui tanto quanto aos
ausentes, importa muito ver com clareza o que signi cou, naquela
época remota, as palavras “imperador” ou “império”, para o romano
que as ouvia ou pronunciava. Porque ambas, poucos séculos depois,
vieram a denominar o enorme, o monumental fato histórico que foi o
Império Romano, o qual é, segundo Toynbee, o Estado universal, e é
evidente, com ou sem Toynbee — pois alguns já o anunciamos há um
quarto de século —, que o mundo parece caminhar para a formação
de algo como um Império, um Estado universal ou vários Estados
universais de que todos seríamos súditos. O imperium romano é o
protótipo dos Estados universais, e é o único que conhecemos com
certa aproximação desde sua intimidade. De tal modo que isso, que
pode parecer apenas um jogo erudito, do magister e minister,
implicava nada menos que algo do qual depende a vida de todos e
cada um de nós. Tal é, senhores, a preeminência da história sobre
todas as demais ciências. A história, seja lá do que fale, está sempre
falando de nós mesmos, dos homens atuais, porque nós somos feitos
de passado, o qual continuamos sendo, ainda que do peculiar modo de
termos sido. Por conta de cada um continuar sendo o menino que foi,
sob essa forma de tê-lo sido, é que vocês podem ser agora o que são.
De outro modo não seriam nada, ou continuariam sendo aquele
menino de ontem. A história fala sempre de nós, de te fabula narratur.
A questão está em saber contá-la, e em saber escutá-la. Pois não
creiam que a situação atual — que tanto nos importa —, em que, por
diversas razões, vem a convergir e coincidir muito especialmente todo
o passado humano, pode ser de nida com poucas palavras ou
esclarecida com menos que esta explicação e muitas outras. Pois deve-
se notar que, sobre todos os terríveis acontecimentos, as catástrofes e
os desastres atuais que dão aos eventos essa feição assustadora que
agonia os homens, é preciso acrescentar um fato em que não se repara,
porque é um fato negativo, uma realidade defectiva: os povos do
Ocidente estavam acostumados a que, conforme iam acontecendo as
vicissitudes que o destino lançava sobre eles, houvesse alguns homens
que, melhor ou pior, procuravam ir esclarecendo-as, de nindo-as,
explicando-lhes as causas e as perspectivas. Eram os intelectuais
autênticos, e essa era sua missão mais humana. E não estou atribuindo
nenhuma importância desmedida à intervenção do intelectual na
marcha da história. Sei que ela é muito escassa, e, se coubesse falar de
quantidade nessa conta, diríamos que quantitativamente é minúscula.
Mas tão minúsculo é o volume da substância das vitaminas e, contudo,
nosso corpo não pode viver sem ela. Os povos do Ocidente estavam
habituados a essa função vitamínica do intelectual digno deste nome,
que trazia clareza em suas andanças. O homem ocidental nunca soube
viver senão da clareza ou da claridade. Por isso, como que vindo do
mais profundo da alma da Europa, soam as palavras de Goethe:

Eu me declaro da linhagem daqueles


que do obscuro ao claro aspiram.

Pois bem, pela primeira vez em dez séculos, durante os últimos anos,
quinze ou mais, os intelectuais europeus emudeceram, e essa tarefa de
ir esclarecendo o que acontece conforme acontece cou por cumprir. E
isso numa ocasião em que os acontecimentos emergentes eram tão
tremendos e de sionomia tão nova que não valiam para eles, ao
menos imediatamente, os conceitos adquiridos na contemplação da
fauna histórica tradicional. Não é oportuno, agora, explicar por que os
intelectuais emudeceram; basta apontar para o fato de que, em toda
parte, e em cada uma, com roupagens distintas, é idêntica a causa de
sua taciturnidade. Mas o fato é que isso fez resultar que esses
acontecimentos tremendos, essa angústia do que acontece veio a
duplicar-se na nova angústia que é a obscuridade, as trevas sobre
aquilo que acontece. Os povos se contorcem de sofrimento e,
submersos na mais negra noite, não sabem de onde vêm os golpes,
nem para onde vão. Já em 1935 pude dizer publicamente: “Não
sabemos o que se passa conosco. E é isso o que se passa conosco: não
saber o que se passa”. Ou, se queremos, com um movimento
compensatório, encontrar uma imagem humorística para essa
situação, recordemos aquele quadro exposto numa galeria de belas-
artes, em que a tela estava inteira lambuzada de preto, e no quadro se
lia a legenda: “Luta de negros no túnel”.

Eu também me calei — e muito radicalmente — durante todo esse


tempo, porque na Espanha eu não podia falar, e fora da Espanha eu
não queria falar.

Algum dia, não neste curso nem em qualquer atividade do Instituto,


mas sim fora dele, direi manifestamente por que calei. Não é
interessante insinuar o sacrifício que tão longo silêncio representa,
mas hei de dizer que, se nunca me empenhei em fazer meus
compatriotas compreenderem que sei tais ou quais coisas — a prova
disso está na aparente popularidade e leveza de quase todos os meus
escritos —, quis demonstrar que sei não existir, talvez a ciência mais
difícil de todas. Mas agora creio ter chegado o momento de cancelar
essa conduta taciturna e começar um novo labor, iniciando-o desde
dentro da Espanha, ainda que não se re ra somente nem sequer
principalmente à Espanha, mas a todo o Ocidente, e mesmo ao mundo
inteiro. E quero fazê-lo porque creio, de fato, que a Espanha pode dizer
algo — não presumamos que muito, mas algo — importante aos
demais povos sobre o que se passa no mundo, e essa atitude vem do
fato de ser, junto com Portugal, o povo mais velho da Europa, e que “já
a viu de todas as cores”, porque somos os velhos chineses do Ocidente
que acumulamos a mais vetusta e rica experiência. Com dizia Gracián:
“O tempo é grande sabedor, por ser velho e experimentado”. A
Espanha tem, portanto, o dever de dizer essa sua palavra sem
petulância, pois é muito limitada a quantia da pretensão; e o desejo de
contribuir para cumpri-la é uma das razões que me levaram a planejar
o Instituto de Humanidades.

O Instituto de Humanidades é um instituto de história, mas por


história entendo o estudo da realidade humana desde o mais remoto
passado até os homens presentes inclusos. Portanto, não há nem
haverá tema no nosso Instituto que não tenha uma dimensão de
atualidade. Nem admito que possa haver ciência, e menos ainda
ciência histórica ou disciplina de humanidades, em cujo tema não
esteja mais ou menos em jogo a vida dos homens presentes. A nal, o
que se acredita ser a ciência? A ciência não é um ornamento linfático,
nem mero xadrez, nem a inércia de uma roda-gigante: é a vida
humana mesma, tomando posse de si própria. É, ao mesmo tempo, a
transparência da idéia e o estremecimento da víscera. A tarefa é, pois,
dramática e árdua. Tem de ser — exige que o seja — cumprida como
se deve. Passo a passo, e sob o signo da calma. Por isso peço um
crédito de paciência, e sobretudo neste primeiro curso (que será uma
amostra do que virá em seguida, se vier), quando me virem deter-me
morosamente em algum tema ou executar aparentes evoluções num
vôo de andorinha, não julguem prematuramente que me afasto do
assunto, porque, em verdade, estarei acomodando-os mais
profundamente nele. Desta maneira — pois para o labor deste
Instituto como para a construção dessa ciência histórica necessito da
colaboração dos demais, e sobretudo dos jovens que tenham vocação
intelectual — contarei sempre com a benevolência de vocês em
empresas semelhantes a esta, que será limitada pelas de ciências do
meu conhecimento e pelas escassezes do tempo. Porque eu intimei
vocês, nesta aula eventual, a fazer história a sério. Mas essa seriedade
não consiste nem num cenho severo e rude, nem numa solenidade
perpétua. Antes, é compatível com certas alegrias e algumas
eutrapelias. Essa seriedade não é compulsar os velhos manuscritos,
revolver os arquivos, publicar, com revisão acuradíssima, os textos
antigos. Tudo isso — eu já disse — é importantíssimo, é
imprescindível. Os homens que se ocupam disso merecem nossa
gratidão, nosso respeito, nossa admiração, e se cumprem bem sua
tarefa têm direito a que digamos a seu respeito que são homens sérios;
mas o que não é possível dizer em nenhum caso é que isso que fazem
é, a sério, história. Porque história é entender bem as realidades
humanas a que esses documentos aludem e que esses documentos são,
e essa intelecção supõe possuir toda uma sorte de difíceis teorias, umas
fundamentais e outras instrumentais, que esses beneméritos homens
não conhecem e ignoram conscienciosamente, tanto que nem sequer
notam sua falta. Mas sem elas não há história. Por isso a história é
ainda uma ciência adolescente, que com freqüência balbucia. Mas,
sendo ela, por antonomásia, a ciência do homem, e entrando este
agora numa etapa sobremaneira crítica de seus destinos, temos o dever
de fazer um esforço enérgico e peremptório para transformá-la numa
ciência adulta. Este é o propósito central que me levou a iniciar nosso
Instituto de Humanidades, de cujo labor este curso é tão-somente a
parte mais espetaculosa e menos interessante. Assim, a doutrina
fundamental, básica, de toda a história, a que deve constituir muitos
dos cursos a serem dados no futuro, é a teoria geral da vida humana,
dessa estranha realidade que é a vida humana; vida humana que é
sempre a de alguém e, dito mais precisamente, é sempre a minha — a
minha de um eu que eu sou ou que tu és, ou que ele é —; portanto, a
teoria da vida humana é, em princípio, teoria da vida pessoal. Mas
dentro de nossa vida pessoal encontramos não somente outras pessoas
individuais como nós, e que não dão lugar a uma disciplina diferente
daquela, mas nós as encontramos juntas num conjunto, o qual é
distinto de cada uma delas e de todas, tomadas uma a uma; é o
conjunto a que chamamos sociedade ou coletividade. A Espanha não é
nenhum espanhol, nem é a série de todos os espanhóis tomados
singularmente, mas é uma realidade distinta de cada um deles e a qual
cada um deles encontra fora de si e até dentro de si. Exemplo disso é a
linguagem. Desde a infância ela nos é imposta, a língua espanhola.
Temos de manejá-la, e não somente para falar com os outros, mas até
mesmo para pensar na mais radical solidão da nossa consciência. Essa
língua nos chega, desde a infância, imposta pelo nosso entorno social.
Nenhum indivíduo a criou nem é responsável por ela. Está aí por si, tal
como estão — queiramos ou não — as serras da nossa Península. Eu
sei muito bem o que passei tantas vezes para pensar em espanhol meu
pensamento pessoal. O mesmo teria me acontecido com qualquer
outra língua que fosse a minha materna. Trata-se, pois, simplesmente
de um exemplo para fazer entrever como é distinta da pessoa a
realidade coletiva ou social. Portanto, é preciso acrescer à teoria da
vida pessoal uma teoria da vida coletiva, ou teoria da sociedade; não é
urgente, agora, observar a mudança de sentido que a palavra “vida”
experimenta quando, de signi car vida pessoal, passa a signi car vida
coletiva, mas importa logo dizer que sem uma teoria perfeitamente
clara dos fenômenos sociais ou coletivos é impossível qualquer coisa
que mereça, mesmo de longe, ser chamada de ciência histórica.

Eu gostaria de, no próximo outono, se este Instituto conseguir


con rmar sua existência, oferecer um curso6 onde, com inexorável
clareza e rigorosa precisão, déssemos alguma transparência a esses
conceitos que costumam ser tão vagos nas cabeças, que são a
sociedade, a coletividade, o povo, os costumes, o Estado, a nação, a
opinião pública, os usos, os desusos e os abusos, a paz, a guerra, a
revolução. Vocês crêem que se possa fazer história a sério sem ter,
terrivelmente claras, idéias sobre essas realidades humanas? Pois eu
asseguro que a imensa maioria dos historiadores — e não me re ro
agora aos espanhóis — não acreditaram fazer parte de sua obrigação
ou de sua incumbência dedicar uma fração de segundo a meditar
sobre esses conceitos que empregam constantemente. Se isso não é
escândalo, que venha Deus ver, e veja, e depois de ver me diga se tenho
razão ao me desassossegar com esses historiadores.

Tudo isso, senhores, vem em última instância preparar um tema com


cujo enunciado termino a presente aula. Posto que, por tantas razões,
pareceu-nos de importância vital — por sê-lo no pensamento de
Toynbee e no nosso — a idéia da realidade do império, convém que a
deixemos aí para usá-la como exemplo do que, a meu ver, deve ser o
pensamento histórico.

A V
“Naturalidades” e “humanidades”. —
Sobre as realidades constitutivamente
históricas. — A razão histórica. —
Imperium e Imperator ante o olhar
oscilante do historiador. — A
ilegitimidade.
S enhores, na segunda-feira passada eu tentei mostrar, com a energia
bastante minguada que a insólita temperatura daquele dia me
deixou, como importa muito aos homens de hoje entender bem o que
foi o Império Romano e, portanto, o que signi cavam para os romanos
as palavras imperium e imperator. E já que aludi à temperatura,
aproveitarei a ocasião para solicitar de vocês uma benevolência
especial se uma ou outra vez falho no cumprimento do meu trabalho,
porque por toda minha vida fui vítima da ressonância orgânica que
em mim produzem as mudanças atmosféricas, com grave detrimento
de tarefas como a deste curso, que serão rendidas em data xa. Antes,
nas férias e feriados, costumava-se vender uma gura de frade com
um braço móvel, que assinalava numa coluna a chuva ou o bom
tempo. Pois eu sou um pouco esse frade, embora exclausurado. Os
médicos dizem que quem é somaticamente como eu é um vegetativo,
mas isso não passa de um eufemismo para não dizer que alguém é
orzinha demais.

Importa muito que os homens de hoje entendam claramente o que foi


o Império Romano e, portanto, o que signi caram as palavras
imperium e imperator para os homens daquele povo. Tal a rmação
tem, de imediato, um ar ridículo. Quando as pessoas vivem
entristecidas, acabrunhadas com guerras e revoluções, sem casas em
que morar, sem o devido sustento, desesperadamente prisioneiras,
horas e horas, nas las em frente aos escritórios e lojas, ou em frente às
estações e aos pontos de ônibus, convidá-las a que, além de tudo isso,
se ocupem do que foi o Império Romano e do que signi ca imperium
e imperator é uma daquelas coisas delirantes que nós intelectuais
fazemos e que dão lugar, com razão de sobra, para que o homem atual
julgue, à primeira vista, que ser intelectual é andar mal da cabeça. E,
contudo, não os intelectuais, mas exatamente o contrário, os
jornalistas e os políticos de fora da Espanha falam hoje a toda hora das
Nações Unidas, que são nada menos que o princípio de uma federação
universal, de um Estado mundial, ou, para os mais prudentes e
comedidos, da União Européia com mais ou menos de confederação.
Entretanto, não resta a menor dúvida de que, se não tivesse existido
Império Romano, seria muitíssimo improvável que ocorresse a algum
desses homens, aparentemente pouco perspicazes, tão pronta e
galantemente, uma idéia parecida. A verdade, a pura verdade é que o
Império Romano jamais desapareceu do mundo ocidental. Durante
certas épocas cava latente, subálveo, como que embebido sob as
glebas das múltiplas nações européias, mas ao cabo de algum tempo
rebrotava sempre o intento do Império.7 Lembrem-se de que, em nossa
viagem retrógrada, quando descobrimos o começo da nossa
civilização, encontramo-la sob a gura do Império Carolíngio, o qual
foi consciente e deliberadamente uma tentativa de restauração do
Romano, e, indo até ao outro extremo do tempo, até hoje, como
inspiração central na obra de Toynbee, isto é, na mais recente tentativa
de interpretar a história universal feita por um europeu, encontramos
a idéia do Estado universal, a qual não é senão, mais uma vez, o
Império Romano convertido em cisto dentro da excelente cabeça
pertencente a esse professor. Portanto, não é tão extravagante esse
intento de nos inteirarmos bem dessas coisas. Tudo converge, pois,
para fazer desse grande fenômeno histórico o tema central deste curso.
Teremos sucessivamente de enfrentá-lo por várias de suas facetas, e a
primeira que nos salta à vista é a idéia mesma de imperium, com
minúscula, e a idéia adjunta de imperator, porque, se não entendemos
bem primeiro como essas palavras eram vividas pelos romanos, não
poderemos entender posteriormente o que foi o Império Romano,
ainda que tenhamos dito algo relevante na aula anterior. De passagem,
vai servir-me como exemplo sóbrio e simples para mostrar como, a
meu ver, deve-se pensar a história, ou, reduzindo a expressão aos
limites possíveis neste momento do curso, qual a primeira e a principal
coisa com que se deve contar ou que é preciso saber para estudar um
tema humano de forma verdadeiramente histórica.

Por sorte, vai-se deixando de usar a expressão “história natural”, e a


palavra “história” passa a evocar exclusivamente a história das coisas
humanas. Assim representa, frente ao sistema intelectual das
“naturalidades”, o grande sistema intelectual das “humanidades”. A
história ganha esse caráter especí co de ciência frente à ciência
biológica, a física e a matemática, não por arbítrio dela enquanto
atividade intelectual, mas porque a realidade de que ela se ocupa —
que é, em cada caso, esta ou aquela coisa humana — tem por si mesma
uma estrutura real que é histórica. A signi cação primária, pois, da
palavra “histórico” é a que tem quando é referida, não ao modo de ser
de uma ciência, mas ao modo de ser de uma coisa. O triângulo e o
dodecaedro não têm como objetos uma contextura histórica, e por isso
não cabe fazer uma história deles, mas deve-se fazer deles, na verdade,
o que há de mais oposto a uma história, que é uma matemática, a qual
chamamos de “geometria”. O triângulo não é histórico porque naquilo
que ele é em sua essência, naquilo em que consiste ou, como eu pre ro
dizer, em sua “consistência”, o tempo não intervém. O triângulo
matemático não contém dentro de si nada temporal, e está imunizado
contra o tempo. É sempre igual a si mesmo. E o eqüilátero em que
Arquimedes pensava, vinte e três séculos atrás, em Siracusa, é o
mesmo em que pensa hoje um garoto de Alcobendas a quem seu
professor esteja ensinando geometria.

O mundo físico, ao contrário, está no tempo. Seu modo de ser é


existir no agora ou presente, mas o agora e o presente são instantâneos;
mal acabamos de nomeá-los quando já passaram, deixaram de ser
“agora” e “presentes” e se tornaram passado, algo que já não é, mas que
foi. O mundo físico, com efeito, ao transcorrer o instante, deixa de ser
o que era e é substituído por outro mundo físico que existe num novo
“agora”, num novo presente, ou, em outras palavras, o mundo físico
muda, e isso é estar no tempo.8 O que seja o mundo no presente atual
— o mundo físico — depende do que tenha sido o mundo no presente
anterior, que é agora o passado. Mas essa relação entre o presente e o
passado do mundo físico que nos leva a dizer que o mundo do instante
passado é causa do que seja o mundo do instante presente — portanto,
a relação de causa e efeito — é mera hipótese, quão plausível se queira,
mas mera hipótese que a nossa mente projeta sobre a realidade desse
mundo. De fato, esse passado, esse mundo do instante passado não faz
parte, não está no mundo presente. É nossa inteligência que supõe que,
se não tivesse havido esse mundo anterior, não haveria este mundo
atual. O mesmo podemos dizer do futuro físico. Ao mundo de hoje,
outro vai suceder amanhã, mas este mundo futuro como tal não está
no presente. É nossa mente que antecipa, que põe o mundo atual na
resenha de um futuro que não está nele. Portanto, nem o passado nem
o futuro fazem parte do mundo presente, e isso é o que me interessa
destacar: que o mundo presente é apenas presente. Sua realidade
consiste unicamente naquilo que é apenas presente; seu passado o é
em absoluto, ou, dito de outro modo, seu passado já não é absoluto, e o
futuro em absoluto ainda não é, e tudo isso nos permite concluir que o
mundo físico tem um passado e tem um futuro, mas não os contém,
não fazem parte dele.

Não se agoniem nem desanimem os que ainda não entenderam o que


estou dizendo, e mesmo que lhes pareça um trava-línguas, porque vão
entender imediatamente.

Se, diferente do triângulo, o mundo físico está no tempo, diferentes


do mundo físico as coisas humanas não só estão no tempo, mas o
tempo está nelas. Uma nação, um homem, uma palavra, um gesto,
existem também num presente; são enquanto presentes e agora, mas
nesse seu presente ressoa o passado e palpita o futuro, isto é, estes não
estão fora delas, mas, ao contrário, fazem parte delas. De sorte que, nas
coisas humanas, não somente trata-se de que têm um passado e um
futuro, como o mundo físico, mas são feitas, em seu presente, de
passado e de futuro. Se queremos entender em que consistem não
teremos outra saída além de falar de seu passado e falar de seu futuro,
que de ni-las mostrando essas suas duas entranhas que estão
funcionando dentro delas, que estão dando-lhe o seu atual ser.

Mas deixemos de falar em termos gerais, que são sempre um pouco


abstrusos, e trabalhemos com um exemplo simplíssimo, embora seja
um pouco ridículo e sem um aroma poético, e que é, além disso, mais
que conhecido pelos lingüistas. Uma coisa, uma ação humana é o fato
de que nós espanhóis digamos “fígado” para denominar uma víscera
do nosso corpo. Trata-se de entender essa realidade: o ato
humildíssimo e simplíssimo — e por isso o escolho —, o ato mental
que executamos quando fazemos esse som bucal para nomear aquela
víscera. De cara reconhecerão que é enigmático, que é ininteligível
para nós o nexo entre a palavra e a coisa por ela designada. Por que
isso é assim? Nós não inventamos essa palavra, já a encontramos aí, no
nosso entorno social; ou seja, essa palavra estava aí antes de nós, antes
de todo o nosso presente e, com efeito, quando a empregamos, está
vindo desse passado ao presente, fazendo parte dele, posto que a
usamos. De modo que, embora usemos e pronunciemos uma e outra
vez essa palavra sem nos darmos conta do nexo que há entre seu som e
a coisa que designa, é inquestionável que em seu presente persiste um
passado, a saber: a palavra “fígado” que está fazendo parte dele e o está
integrando. Entretanto, quando isso acontece, quando uma coisa,
mesmo que mínima, é porção presente de nossa vida pessoal e é,
simultaneamente, um passado, temos um caso claro de realidade
constitutivamente histórica. Mas não dissemos ainda por que a palavra
“fígado” é um passado, se bem que já tenhamos indicado algo
relevante ao dizer que, antes de usá-la, já a encontramos “aí” em nosso
entorno, que, portanto, nos precedia e que vinha do passado. E notem
que o mesmo acontece com as palavras que surgem em nosso tempo.
O odioso vocábulo “haiga” — que convido todos a não usarem e até a
se oporem ao seu uso, porque sua invenção revela uma alma cheia de
velhaco ressentimento por carecer do refulgente veículo e que quer, ao
contrário, compensar mostrando que sabe conjugar corretamente o
verbo “haver” — o vocábulo “haiga”, repito, na primeira vez que
tropeçamos com ele, já o encontramos aí desde antes.9 Nenhum de nós
o inventou, não sabemos quem foi nem onde; já tem diante de nós um
passado, brevíssimo, é certo, mas um passado. Por ser brevíssimo,
contaram-nos sua origem, porque ela ainda consta em muitas mentes,
que é uma anedota. Mas estejam seguros de que se, por desgraça, essa
triste palavra perdurar, dentro de vinte anos ninguém terá a menor
idéia de por que um automóvel se chama “haiga”.

O tema que comecei a desenvolver é central para este curso, mas o é


também para o meu pensamento, e muito especialmente para a minha
concepção da história. Espero me ocupar dele num livro, por diversos
motivos não concluído, que se intitula Aurora da razão histórica, e no
qual quero trazer mais amplamente desenvolvido este exemplo a que
me re ro agora. Como, sobretudo na segunda parte, terei de fazer
citações e reproduzir numerosos fatos, entre os quais inscrições
latinas, penso que seria bom amparar-me, nesta e em outras aulas, na
leitura, porque além de outras razões que verão, ou entreverão, se as
idéias, por estarem ligadas umas às outras, se conservam bem na
memória, os fatos, que são por de nição as coisas soltas, tendem a
escapar da mente, a fugir, a ir para a selva — são selvagens — e me
interessa muito que na aula de hoje, que será a mais dura de todo o
curso, as coisas apareçam com toda a precisão; é possível que, ao m
da trajetória desta aula, vejam claramente por que digo tudo isso.

Advirto-lhes que sou um mau leitor. Em toda leitura pública, eu não


sei por que causa, sinto-me constantemente chamado a me desapegar
do texto que estou lendo e a me lançar a expressar as idéias que na
hora me ocorrem e que, como um enxame de abelhas vermelhas, vem
turbar minha atenção. Pode acontecer de que também eu, assim como
os fatos, fuja de vez em quando à minha leitura.

Dizer a palavra “fígado” é, simultaneamente, um presente e um


passado. O que tem de um e o que tem de outro? O que tem de
presente é claro: consiste no emprego utilitário que dela fazemos
quando dizemos a um amigo — para justi car nosso mau humor,
nossa má ou negra bílis (atrabilis) — que estamos mal do fígado; ou o
médico ao diagnosticá-lo; ou quando, para elogiar a força de um
homem em situações difíceis, se diz que “esse tem fígado!”; ou, como
em certos con itos, por nada menos que uma cátedra de teologia,
quando um dos opositores zurrava ao adversário, à força de
inumeráveis e hirsutos silogismos, ouvi um desconhecido sentado ao
meu lado me dizer: “Que fígado de pomba!”. Este é o presente da
palavra.

O que ela, isto é, a ação de dizê-la, tem de passado é que, sendo uma
ação humana que executamos, sendo algo que nós fazemos, não
sabemos por que o fazemos, não somos autores conscientes e
responsáveis de nossa própria ação, posto que ignoramos
completamente por que chamamos essa víscera de “fígado”. Nós o
fazemos, pois, na conta de não sabemos quem, e isso quer dizer na
conta de alguém que não está presente em nós. Nós a dizemos porque
a ouvimos dizerem, porque se diz, assim como nos cumprimentamos
e, para cumprimentar, damos absurdamente as mãos, porque é assim
que se faz, ou como cremos que amanhã vai sair o sol, porque se crê.
Se, o causador de tudo isso, é um ente impessoal do qual nada
sabemos, salvo que estava aí antes que nós executássemos a ação de
dizer “fígado”, e que é quem a impôs sobre nós, como condição de
sermos entendidos. De modo que nos encontramos diante de um
fenômeno curioso. Esse ou isso na conta do qual dizemos a palavra
está presente, uma vez que age em nós, mas o está de uma maneira
muito peculiar, a saber: está presente com o caráter de ausente, posto
que não o vemos nem sabemos por que decidiu chamar de “fígado” a
nossa víscera.

Pois bem, esse agir no presente de algo latente, distante, que está, ao
mesmo tempo, ausente, isso é o passado. O que dele é presente para
nós é o seu efeito em nós, mas ele permanece oculto — o passado é o
Senhor “Não fui eu e não sei quem foi”. Vivemos a maior parte de
nossa própria vida na conta desse grande ausente que é o Pretérito, o
qual chamamos assim porque já não é, mas foi; ou seja, foi-se, foi
embora. De modo que a palavra “fígado” tem sua face, seu aspecto
frontal que vemos e é seu presente, mas a este está ligado o seu dorso,
suas costas que não vemos e que é seu passado; só vemos que o possui.
Nós nos damos conta de que está constantemente vindo dele para a
atualidade em que a usamos. Isso acontece com toda a nossa vida, e
aconteceu com a de todos os homens que já existiram; nossa vida é
incessantemente empurrada por trás pelo passado; como um vendaval
mágico sopra o pretérito sobre o dorso de nossa existência, movendo-
nos a ações que nós consumamos, mas das quais não somos
inventores, e nem sequer as entendemos. Por isso o homem e tudo que
nele é humano é realidade histórica, pois, conforme vimos, é
literalmente verdade que é, desde logo, feito de passado, porque uma
de suas partes, a que chamamos de suas costas, consiste presentemente
em passado, em e cacíssimo passado.

Sendo tal a contextura da realidade histórica, não resta dúvida


alguma sobre o que é preciso fazer para conhecê-la; portanto, em que
consiste a ciência histórica. Atendo-nos ao nosso exemplo, digamos:
trata-se de entender o ato humano em que, para designar uma víscera,
pronunciamos a palavra “fígado”. Esse fato humano é ininteligível para
nós porque não vemos, não nos é presente que nexo possa haver entre
aquela coisa e esse nome. Não vemos esse nexo porque a palavra vem a
nós do passado, e a razão desse nexo, o motivo que criou esse uso
verbal está ausente, em sabe-se lá qual canto do tempo pretérito, num
tempo que se perdeu. Se queremos entender nossa própria e
humildíssima ação atual, que é dizer “fígado”, não temos, portanto,
outra opção além de nos dedicarmos a buscar esse tempo perdido em
que a expressão se originou, temos de nos entregar à la recherche du
temps perdu, que é uma das maneiras como se pode de nir a ciência
histórica. E essa missão, por sua vez, em que consiste? Nisto. Desde a
nossa vida, que é o absoluto presente, e aproveitando quantos dados,
isto é, rastros, restos, resíduos, sinais possamos reunir, temos de ir
reconstruindo a série de presentes que essa palavra teve, e cujo
conjunto forma o seu passado; temos, pois, de re-presentarmos, de
tornar novamente presentes, de ressuscitar esses presentes fenecidos, e
isso quer dizer que precisamos reviver nós essas formas que deixamos
de viver. Toda história é revivescência do que parecia morto. Como
disse Hegel pateticamente no começo de sua Filoso a da História:
“Quando voltamos o olhar para o passado, a primeira coisa que vemos
são ruínas”. Essas ruínas são os dados, o material que precisamos
reanimar, e para isso é preciso que sejamos capazes de voltar a viver
por nossa conta essas vidas antigas que se desvaneceram, é preciso que
repitamos o que outros já viveram. Nesse sentido a história é, como
ca claro, repetição, uma tarefa nada fácil, como bem sabe quem já
quis alguma vez repetir a emoção que sentiu numa viagem ou repetir
um amor. Ao tentar fazê-lo, averiguaram melancolicamente que o
repetido, precisamente porque foi repetido, já é outra coisa, e sua graça
original é desvirtuada. A história é uma tarefa assim difícil porque é
repetição. Mas não demos demasiada importância a esse termo em
torno do qual alguns pensadores recentes fazem um tão confuso
barulho, restaurando um conceito do lósofo dinamarquês
Kierkegaard, que escrevia um século atrás. Heidegger foi o primeiro a
renovar a idéia do dinamarquês falando de Wiederholung, palavra que
em alemão atual signi ca, de fato, repetição. Mas Heidegger, como
todo grande pensador autêntico — e ele o é, inquestionavelmente —,
ao dizer uma palavra não traz apenas seu sentido atual, mas, junto
com ele, todo o seu passado humano; isto é, sua etimologia, e
Wiederholung etimologicamente signi ca: retomar algo que alguém
havia deixado mais ou menos longe; portanto, buscá-lo. Mas os
chamados “existencialistas”, que fazem agora na França sua algazarra
de galinheiro, e que com vinte anos de atraso com relação a Heidegger,
e mais de trinta com relação a nós, acabam agora de desembocar na
loso a da vida, crêem que, ao usar o termo “repetição” — sem
ressonância etimológica — estão repetindo Kierkegaard, sem saber
que a palavra dinamarquesa empregada por ele signi ca propriamente
“recuperação”. Pois bem, a história é a recuperação do tempo perdido,
daquela parte de nós, homens atuais, que é nosso passado, o qual
somos, mas que não é por nós conhecido, porque de fato o perdemos e
está ausente nas profundezas do tempo pretérito.

Apliquemos tudo isso ao nosso exemplo. Nós perdemos o sentido de


chamar nossa víscera de “fígado”. Trata-se de recuperar esse sentido;
isto é, de chamar a víscera de “fígado” e saber por que o fazemos. A
história, que é essa grande tarefa de recuperação, criou, com este m,
muitas e admiráveis técnicas. Uma delas, a mais avançada hoje, a mais
perfeita e que nos permite chegar a grandes distâncias no tempo, é a
lingüística.10 A lingüística formulou leis gerais que com suma
freqüência podemos aplicar aos problemas concretos que surgem e
resolvê-los automaticamente. Uma dessas leis lingüísticas reza que a
maior parte das palavras espanholas procedem do latim, sobretudo do
latim vulgar, e que algumas, muito numerosas, procedem do grego, e
chegaram até nós por meio do latim. Essa lei, em grande parte dos
casos, nos permite, num salto, conectar a palavra espanhola atual com
sua correspondente latina e, portanto, nos colocar rapidamente num
passado de vinte séculos atrás e, num só lance, percorrer todos os
intermediários. Infelizmente, em nosso caso essa lei falha; quero dizer
que falha sua aplicação automática e imediata. Porque “fígado” em
latim se diz iecur, uma palavra que não tem nada que ver com a nossa.
Tampouco nos ajuda o grego, que ao fígado chama hepar — de onde o
termo “hepático”, usado na medicina. É impossível nos bene ciarmos
da comodidade do salto súbito que a lei lingüística tantas vezes facilita.
O que fazer? Não há outro procedimento senão retroceder passo a
passo.

E então encontramos esta série de presenças ou presentes da palavra:

hígado, fígado, catum

A tarefa é simples. Retrocedendo do “hígado” atual encontramos, no


século , por exemplo, “fígado”, e, nos séculos  ou , quando
ainda se falava na Espanha algo parecido com latim, temos catum; e
se retrocedermos a um latim mais normal, encontramos um vocábulo
que se diferencia de catum simplesmente por uma mudança de
acento cuja razão não nos interessa.

Ao chegar a catum deixamos todos os estágios da língua castelhana


e transitamos para o latim — como, no outro dia, ao chegarmos em
nosso retrocesso ao século  saímos de nossa civilização e ingressamos
na greco-romana.

Contudo, catum não tem nada que ver com a nossa víscera; signi ca
algo que foi temperado ou decorado com gos, em que intervêm os
gos; catum é, pois, “ gado”. Mas, uma vez diante dessa palavra, o
latinista resolve para nós a questão imediatamente. Ficatum é um
termo culinário. Um dos manjares preferidos nas tabernas e nas casas
do Mediterrâneo latino e dos povos helênicos era precisamente o
fígado de um animal acompanhado de gos, e se chamava, em natural
e inteligível conseqüência, iecur catum, ou, em grego, hépar sycotón.
Agora sim podemos aplicar uma lei lingüística geral que nos explica
por que chamamos “manjar com gos” à nossa víscera que nada tem
que ver com eles. Essa lei é que toda língua possui o que eu chamo,
recordando o Órganon, registros diferentes em que é falada. Há o
registro solene, o que Sancho Pança chamava de falar de oposição, e há
o registro da língua burlesca, do falar de brincadeira, que nos leva a
dar às coisas nomes e giros cômicos. É o que os ingleses chamam de
slang e os portugueses de calão, que não é o caló dos ciganos. A nós,
como aos franceses — e é lamentável —, falta-nos denominação para
esse modo de falar que talvez seja mais freqüente na Espanha do que
em qualquer outro povo.11

Pois bem — e notem como, sob quaisquer desses temas,


aparentemente tão secos e puramente técnicos, tocamos humanidades,
realidades humanas estranhas e inexplicadas —, pois bem, por causas
que nunca se veio a saber, porque absurdamente nunca foram
investigadas, os homens tiveram sempre a enigmática inclinação de
falar de brincadeira sobre suas próprias vísceras. Essa coisa de o
homem zombar das próprias entranhas a mim me parece uma coisa
enorme, estonteante, misteriosa, mas não deve ser assim uma vez que
ninguém, que eu saiba, o destacou adequadamente, nem se ocupou de
perscrutar suas razões. Lembrem-se da quantidade de nomes
burlescos que o homem espanhol dá à cabeça: “cachola”, “cuca”,
“cocuruto”; ao pulmão, “bofe”, “caráter”, “índole”, etc. Signos de jogo
verbal são também pluralizar o que é singular ou usá-lo no
diminutivo. E assim já os latinos diziam, como nós, iecora, os fígados;
os franceses chamam ao cérebro cervelle, do diminutivo de cérebro,
cerebellum. Ao baço se chama “passarinho”, como na anedota referida
se fala do fígado de pomba.

Pois essa inclinação tão normal quanto intrigante levou os latinos a


denominarem de brincadeira o fígado com o nome do manjar, que
incluía o substantivo iecur — fígado — e o adjetivo catum. Logo se
elimina o substantivo e sobre o surpreendente e cômico adjetivo para
designar essa víscera que pode fazer sofrer tanto.

Agora re itamos um segundo — ainda que expressar a re exão vá


levar mais tempo — sobre o que acaba de acontecer, e sobre o que
zemos para que acontecesse. Um instante atrás estávamos diante do
fato de se chamar “fígado” à víscera como diante de algo
incompreensível. De repente, ao saber que os latinos jocosamente a
chamavam de catum e referir o fato de que freqüentavam muito
aquele prato de fígado com gos, sentimos o que merece ser
quali cado — não obstante ser o conceito ridículo e minúsculo —
como súbita iluminação; isto é, tão logo ouvimos aquilo, entendemos
com plena evidência por que usávamos esse estranho nome para
designar a entranha. Foi isso que aconteceu, me parece. Agora, por que
aconteceu? Por que conseguimos entender esse fato humano, antes
ininteligível? Porque contamos um fato que se deu nos primeiros
séculos da Era Cristã — o uso daquele manjar —, porque narramos
uns eventos.

Como chamar uma operação intelectual por meio da qual


conseguimos descobrir, tornar patente, averiguar o que uma coisa é, o
ser de uma coisa? Sem dúvida, de razão. Mas ocorre que, para
averiguar o ser daquela palavra, não executamos outra operação
intelectual senão esta, simplíssima, de narrar uns acontecimentos,
como se contássemos um conto, embora verídico. Donde se deduz
inapelavelmente que a narração é uma forma da razão no sentido mais
superlativo desse nome — uma forma da razão ao lado e à frente da
razão física, da razão matemática e da razão lógica. É, de fato, a razão
histórica, o conceito cunhado por mim muitos anos atrás. É uma coisa
simples como dizer bom-dia. A razão histórica, que não consiste em
induzir nem em deduzir, mas simplesmente em narrar, é a única capaz
de entender as realidades humanas, porque a contextura delas é serem
históricas, é historicidade.

E isso basta por ora, pois, para continuar, eu teria de retirar o que
acabo, por cortesia momentânea, de enunciar, a saber: que a razão
histórica é uma forma da razão ao lado e à frente das outras, porque a
verdade é que a razão histórica é a base, fundamento e pressuposto da
razão física, matemática e lógica, que não passam de particularizações,
especi cações e abstrações de cientes daquela. Mas é melhor que isso
que, na maioria de vocês, caliginoso e obscuro, porque é um
assunto... excessivo. Por isso é melhor que, caritativamente, vocês o
dêem por encerrado, salvo os jovens que há nesta sala, porque eles e
seus lhos e os lhos de seus lhos terão, querendo ou não, de se
ocupar muito da “razão histórica”.
Agora, prossigamos.

De tudo que foi dito se depreende que toda realidade humana, por
sua historicidade, consiste em vir de algo passado e ir para algo futuro.
Portanto, é uma realidade substantivamente móvel. E isso deve ser
entendido vigorosamente. Não se trata de que uma coisa, além de já
ser o que é, se mova do passado para o futuro, mas sim que toda
realidade humana — não estou falando da sobre-humana — é apenas
um “vir de” e um “ir para”. Eis por que a pupila do historiador — isto
é, a ciência histórica — não possa olhar seu objeto enfocando-o e, com
isso, cando parada. No momento em que olhamos para algo humano
com a pupila parada nós o xamos, o detemos, o congelamos ou
cristalizamos, nós o mineralizamos, desumanizamos. Ao contrário, a
pupila do historiador para ver uma coisa determinada — um gesto,
uma palavra, uma obra de arte, um homem, uma nação ou isto que
Toynbee chama de uma civilização — deve mover-se sem cessar,
oscilando constantemente do passado para o futuro, do futuro para o
passado. Até onde no passado e até onde no futuro deve chegar essa
oscilação é questão que será preciso determinar em cada caso
concreto. Veremos tudo isso em seguida com a mesma clareza que, ao
nal, víamos o exemplo anterior. Só que agora o exemplo não é
ridículo, é mais digno — é um dos mais dignos que existem —, é o
grande tema do imperium e do imperator.

Como a realidade histórica é sempre concretíssima, é um aqui e


agora, a vida humana e tudo nela é sempre a inexorável necessidade de
ter de ser aqui e ter de ser agora — o viver é sempre disparado em nós
à queima-roupa. Tratemos de entender o que era, com autêntico e
preciso ser, o império e o imperador para o romano pelo ano 190 antes
de Cristo. Escolho esta data porque é o momento culminante,
diríamos o meio-dia da história romana. Nove anos antes, após uma
luta terrível em que esteve a ponto de sucumbir, Roma venceu e
triturou o grande inimigo, Cartago, e aquele que foi provavelmente o
mais genial, quase sobre-humano guerreiro que já houve em todos os
tempos, o caolho Aníbal. Depois dessa vitória, à qual seguem outras,
mais fáceis, sobre a Grécia e outros povos, Roma goza de uma etapa de
vida mansa, que vai durar muito pouco. Essa mansidão momentânea
pode ser simbolizada no romano mais destacado, mais ilustre do
momento, Cipião Emiliano, um desses homens maravilhosos que são
uma maravilhosa delícia. Quem queira conhecer sua sionomia pode
ver um esboço de seu retrato, muito breve, mas creio que muito rme,
incluído por mim no prólogo ao Tratado de montaria escrito pelo
Conde de Yebes. Cada um tem seu destino, e o meu, pelo visto, é falar
de Cipião Emiliano por ocasião de um livro de caça.12 São coisas que
me acontecem! Mommsen, em seu magistral livro sobre o direito
público romano, de ne a instituição que é o imperium, mas não
obstante ser, como no outro dia eu disse e hoje reitero, um dos poucos
gênios que houve em história, além de ser uma pessoa magní ca, não
é, a meu ver, em sua obra jurídica, su cientemente historiador, como
veremos em seguida.

“Os romanos”, diz ele, “chamam o poder público de imperium e


potestas. O imperium designava o poder público supremo que
compreendia a jurisdição e o mando militar”. “Com relação a
imperium, o termo potestas — potestade — representa a idéia mais
ampla”. O imperium é potestas, mas há potestas que, por não ser
suprema, não é imperium. Há a potestade do tribuno, do questor, do
edil que não é imperium — porque nem julga nem manda —; essas
expressões são minhas e com elas começo a apertar Mommsen, o que
não é audácia vã, e por isso peço ao seu espírito, que tanto venero,
humildemente perdão.

Em seguida, não na ordem das páginas impressas, mas na ordem de


suas idéias, Mommsen repara que na Roma republicana há duas
formas de imperium: imperium domi e imperium militiae. Sem
dúvida esses termos eram usados a toda hora e normalmente, ou, com
outra palavra, se dizia naquela época. Mas não entendemos como um
poder que é supremo e, portanto, total ou máximo possa ser de duas
classes, como não entenderíamos quem nos dissesse que há dois ou
mais universos. O universo não admite pluralizações, porque não
admite especi cações. Se há vários e não um, não haveria universo,
mas um pluriverso. E, de fato, resulta que o imperium domi é o poder
maior que existia na vida civil, o do cônsul e, após ele, o do pretor. Mas
esse imperium nessa época não é máximo, total, tem um limite. Nem o
cônsul nem o pretor, por exemplo, podem condenar alguém à morte
nem decidir por si, mas somente aplicar a lei. Mais ainda — e é
importante destacarmos este aparentemente mínimo detalhe —, nessa
época não está abolido e, portanto, está abstratamente vigente, que o
cônsul pode reunir o exército, mas de fato isso já não acontece, e é o
Senado quem decreta que os exércitos se formem. O que há aqui digno
de destaque? Muito simples. A coexistência de dois estados legais
contraditórios: um, vigente convencionalmente com uma vigência
irreal, portanto, uma vigência sem vigência efetiva, e outro que a tem
plenamente. No meu modo de pensar a história, um fato assim
signi ca automaticamente que essa vigência ideal não é uma vigência,
porque não é um pleno presente histórico, mas é um mero resíduo e
uma sobra do passado, inválido como todo espectro. Se, em vez de
sobras, quisermos chamar de superstição, demonstraremos saber bem
o que é realidade histórica e o que é superstição. Como se vê,
Mommsen não tem opção além de reconhecer como o imperium do
magistrado — cônsul ou pretor — já é um imperium cerceado, mas
notem como sua declaração é insu ciente: “O poder ilimitado de
mandar”, diz ele, “de dar ordens ou de ordenar” — que é o que acaba
de de nir como imperium — “está na Roma dos reis concentrado
numa só mão, e na Roma republicana pertence igualmente, embora
debilitado, aos cônsules”. Reconheçamos que não é nenhuma noção
clara essa de um poder total e ao mesmo tempo debilitado — ou seja,
não total. É descobrir de um lado para cobrir do outro. E não creio
ofender muito o espírito de Mommsen, que, como já disse, venero, ao
recordar que, quando eu era criança, li uma vez numa revista de
touros da Correspondencia de España que houvera uma colhida,13 e o
repórter narrava a chifrada dizendo que o chifre havia produzido no
toureiro uma ferida de pouco mais de três pequenas polegadas. Algo
parecido com esse “poder supremo, mas debilitado”.

Estamos, pois, diante de um fato humano — essa situação nada


menos que da instituição fundamental, o imperium — que é
ininteligível para nós, como antes era o ato verbal de dizer “fígado”. Os
dados, isto é, os fatos que Mommsen descreve são, nem é preciso dizer,
exatos, mas os fatos não são a realidade. A realidade de um fato
consiste no que esse fato é, não simplesmente em ter acontecido, não
simplesmente em ter existido. Se agora soasse aqui um grande ruído,
seria para nós com certeza um fato, mas não saberíamos com certeza o
que esse ruído era, ignoraríamos sua realidade. Será um trovão? Ou
um tiro de canhão? Mommsen nos diz um enigma, porque não olhou
para esses fatos com o olhar oscilante do historiador. Ele os congelou,
pois a verdade é que jamais existiu algo estático que fosse o imperium.
Este era — nessa data de 190 — uma realidade que vinha de outra
anterior e ia para outra posterior e, portanto, nela estava um passado
inercial e despontava um futuro germinal. De fato, o próprio
Mommsen, numa nota e sem dar muita importância, seguindo, apesar
do grão-mestre da história que era, os maus usos históricos de não
explicar as coisas de maneira narrativa, com razão histórica, diz isso
referindo-se a uma época que parece ser o ano 100 ou algo assim:
“Nessa época” — portanto, uns noventa anos depois de 190 — “já não
se dizia imperium militare e imperium domesticum ou civil, porque
recentemente se havia formado o costume de chamar o imperium
militare simplesmente de imperium”. E nada mais. Ora, isso
demonstra clarissimamente que, pelo ano 100, já estava mais que
amadurecida e consolidada a consciência do povo romano de que
imperium não há propriamente mais que um, o do chefe do exército,
porque é o único total. E, como essa consciência demorou para
formar-se, declara que, noventa anos antes, no tempo de Cipião
Emiliano, imperium havia começado, muito acentuadamente, a
caminhar para um valor exclusivo de instituição ligada tão-somente ao
chefe do exército. E vice-versa, se, mesmo convencionalmente, se
continuava falando de imperium domi, de império do magistrado
civil, era por alguma causa oculta no passado e, ao estar oculta, dava
ao fato um caráter de realidade supersticiosa enquanto tal. Com efeito,
o conto que é preciso contar para esclarecer toda a questão é muito
simples e o próprio Mommsen esbarra com ele, mas não acerta dando-
lhe seu sentido histórico e caz que, por sua vez, Ihering dá em seu
livro Espírito do direito romano, uma das obras gigantescas do século
passado que as novas gerações não conhecem. Por ser uma obra
enorme, de cinco tomos, que não se encontra no mercado, nem na
língua original nem em tradução, isso me deu ocasião de pedir a um
grande amigo meu, o senhor Fernando Vela, que faça um apurado
resumo, porque tinha interesse em que as novas gerações tivessem
contato com uma obra de tão profunda ciência histórica, de tão
autêntico sentido histórico.14

O chefe do Estado foi primeiro, em Roma, o rei. Seu poder era


unipessoal e absoluto. Era, ao mesmo tempo, chefe do exército,
legislador e juiz supremo. Isto é, possuía exemplarmente e sem
qualquer debilidade o pleno imperium. A revolução desaloja a
monarquia e, no lugar do rei, são designados dois sumos magistrados,
dois chefes do Estado, que se chamam cônsules. Como chefes de
Estado, conservaram, por inércia histórica, todos os poderes do rei, só
que agora estes se separaram em poderes fora da cidade — militiae ou
militares — e poderes da cidade — domi ou civis. Essa separação
típica da República era inevitável por esta precisa razão: porque, assim
como o rei, naquela época antiga, o cônsul ou magistrado civil é
sempre o mesmo que atua como chefe do exército em caso de guerra.
Mais ainda, muito provavelmente não foram os cônsules a primeira
instituição a substituir o rei, mas sim os praetores, que, com outras
funções, perdurariam sob os cônsules. Entretanto, praetor signi ca
aquele que vai à frente, o adail, o caudilho; en m, o general. Mas em
190 já não ocorre, nem necessária nem mesmo normalmente, que os
cônsules sejam os generais. Cipião Africano, o vencedor de Aníbal,
tivera de ser general do exército sem ser cônsul e, ademais, já estava
estabelecido que, se houvesse guerra, não a dirigisse o cônsul atual,
mas o que o havia sido no ano anterior, que — também por inércia
histórica — foi chamado “substituto do cônsul”, pro-cônsul. Assim o
imperium militare, o único autêntico, cou adscrito ao pro-consulado.
Vejam, pois, como a questão se esclareceu para nós simplesmente
olhando o imperium como um movimento, como algo em contínua
mudança desde o que fora no tempo dos reis até o que foi um século
depois de Cipião Emiliano; portanto, constituído em cada presente por
um resíduo inercial do passado e uma tendência germinante que será
sua imediata forma futura.
Agora vemos o que se passa com o imperador ou imperator. Em 190
é uma distinção em si de pouca importância, ainda que a tivesse muita
por ser outorgada ao chefe militar. Na linguagem corrente se chamava,
havia se chamado sempre o general de imperator, mas jurídica,
o cialmente, imperator era um título que o general só recebia e usava
depois de ter ganho uma batalha, e com isso o direito à aclamação
solene em Roma, que se chamava “triunfo”. Já estamos — re ro-me a
190 a.C. — diante de outro fato opaco, nada translúcido. Quase não
havia general em Roma que não tivesse ganho uma batalha e,
portanto, que não fosse imperator. Praticamente, pois, general e
imperator eram dois conceitos que cobriam a mesma realidade. Se
recordamos que o general, enquanto tal e desde logo, possuía o pleno
imperium, surpreende que essa palavra apareça logo acrescida como
uma mera distinção. Quem exerça a nova razão histórica perante um
fato assim se coloca imediatamente em guarda, como um perdigueiro.
Aqui há a armadilha — ou seja, algo aparentemente irracional no
sentido velho e mísero dessa palavra —, uma dessas armadilhas
históricas em que a efetiva realidade histórica normalmente consiste.
A história se compõe de armadilhas, no sentido de comportamentos
humanos aparentemente irracionais. Explicitamente racionais são os
triângulos, os poliedros, que não são realidades, mas invenções
abstratas; com os homens não é assim. A armadilha, neste caso, é tanto
maior quanto mais sairão dela — com o tempo — nada menos que os
imperadores do Império Romano: o imperador Carlos Magno, o
imperador Frederico Barbarossa, o imperador Carlos  e o imperador
Napoleão. Não se pode negar que essa armadilha seja a matriz de uma
boa casta.

Para descobrir seus aspectos práticos, temos de submeter nosso olhar


a um pendular muito maior que o anterior, ainda que sempre sem
sairmos da história romana. Para tal, imaginemos no centro o que era
imperium em 190 a.C. e situemos à direta a palavra imperator,
conforme a signi cação de quando coalha plenamente e se estabiliza
como título formal o cial do chefe do Estado mais poderoso que já
existiu, do Império Romano na época do imperador espanhol Trajano.
Não é patriotismo essa referência a Trajano. De fato, a época dos
imperadores espanhóis foi uma das mais felizes pelas quais já
atravessou a humanidade; por causa deles aconteceu de, uma vez, que
durou quase um século, os homens terem se sentido felizes.

No extremo esquerdo designemos a realidade mais primitiva que,


antes de existir propriamente todo Estado romano, representavam
essas palavras imperium e imperator para o povo, ou seja, para as
hordas ou tribos dos latinos. Veremos como, no extremo inicial, à
esquerda, descobriremos realidades humanas bastante sugestivas e
inesperadas, e como, no extremo terminal, nos surpreende de repente
uma realidade humanamente tremenda, pavorosa, que nos afeta a nós
próprios que aqui estamos.

Comecemos pelo princípio.

Em história, se se quer chegar muito longe, é preciso renunciar a


documentos, porque “muito longe” no tempo não se sabia escrever. Só
há os pedregulhos das ruínas, que são enigmáticos porque são mudos,
e só há as palavras cuja origem pregressa a lingüística pode
reconstruir. Por meio desse método indireto se chega, com efeito, a
palpar situações humanas, cenas de existências verdadeiramente
remotíssimas, ao saber das quais camos profundamente comovidos.
O que signi ca primariamente imperium, imperare? Sem dúvida,
mandar. Mas essa palavra vem a signi car mandar porque antes havia
sido im-parare, que quer dizer “preparar tudo o que é necessário para
a empresa, organizar a empresa”. O imparator é algo como um
empreendedor. O que temos aqui? Nos povos mais primitivos o Estado
não existe; ou seja, não há nenhuma organização criada e com
estabilidade que exerça as funções de Estado. O que nós chamamos de
Estado, que é, de nitivamente, o exercício do poder público, do
mando, era algo que só acontecia na coletividade primitiva
intermitentemente, em pulsações determinadas, com relativa
periodicidade, porque eram produzidas pela necessidade urgente
diante de um perigo especial. Nos povos primitivos nômades não há
autoridade alguma, senão a dos intermitentes a que agora vou me
referir: uma é a daquele que, diante da ameaça de outro povo, por sua
coragem especial, por sua presença de espírito, reúne os homens do
próprio povo, organiza-os, prepara e dispõe em ordem de batalha. Este
é o imperator ou empreendedor. Notem que a palavra im-pare tem
então exatamente os dois mesmos signi cados conjuntos que tem em
nossa língua a palavra “ordenar”. Ordenar é projetar uma série de atos
e cazes, e é também impor essas determinações. Mas a palavra
“ordenar” — que é paralela e co-signi cante de im-parare e de
imperare — vai nos revelar algo comovente. “Ordenar” vem de ordo
(ordem) e o signi cado mais antigo que se pode encontrar de “ordem”
é o alinhamento dos os que se faz no tear antes de começar a tecer. E,
de fato, o verbo ordior signi cou primeiro “começar a tecer” e logo se
ampliou para signi car todo começar. Ordo, ordem, é simplesmente
urdir. E vejam por onde descobrimos aqui que a idéia de ordem
provavelmente primigênia na humanidade foi uma invenção feminina:
é a de urdir os os no tear. Mas isso sucede um momento antes de que
tenhamos plena visibilidade histórica. Quando a história começa, nós
nos deparamos com que a palavra “ordem” saltou do pací co tear para
outro extremo, e começa, repito, na história, já tendo um sentido
técnico-militar. A ordem são as las, e não os os, de soldados que
compõem a unidade tática. Por isso o exército romano se divide, e, por
re exo, os eleitores romanos, em ordem senatorial, ordem eqüestre e
ordem plebéia, e toda a história romana é a luta e a concórdia oscilante
entre essas três ordens; a concórdia se chamava sempre, em na
linguagem política, concordia ordine. Imperator, portanto, é o homem
improvisador para o qual as coisas, na maior parte das vezes, iam mal,
que não deixavam boas recordações. O interesse nisso tudo está no
que virá a seguir.

A outra autoridade, também intermitente, que brota nos povos


primitivos, e que há ainda em algumas tribos, é a que chamam de “o
provador dos alimentos”. Temeroso das enfermidades que
sobrevinham de sua alimentação, o povo encarregava um homem — e
isso lhe dava uma certa autoridade transitória a cada semana ou cada
mês, quando se fazia a repartição dos alimentos — de prová-los. E isso
implicava que aquele homem distinguia os “sabores”. Era ele que sabia
como sabiam os alimentos bons, diferentemente dos maus. Aqui está a
origem do sábio, e da palavra saber: uma autoridade primitiva que
sabia de sabores. Sapiens quer dizer simplesmente — como em nossa
linguagem dizemos: aquele que distingue cores — o que distingue
sabores. Ainda hoje, por exemplo, há uma tribo no sul de Camarões,
propriamente junto à fronteira de Angola, que tem como única
autoridade o que chamam em sua língua, in uenciada pela língua dos
hotentotes, “o que prova os alimentos”. É o sábio, do qual vai sair o
“mago”, o medicine-man, o “médico”, o “conhecedor”.

Quando a vida dos povos começa a se organizar, quando avança a


existência social, aparece a gura do Rex, que tem uma origem
simultaneamente religiosa, militar e administrativa, e sua aparição na
história do povo representa uma etapa de melhoramento moral, de
enaltecimento de toda a vida. Compreende-se que, perante o Rex — o
qual vai exercer com continuidade aquelas funções intermitentes, de
aventura, que eram as do imperator

— houvesse toda uma série de séculos nos quais essa palavra


“imperador” não soasse bem, e vá sendo abandonada, e não mais
tomada como título o cial de uma magistratura. Isso explica, a meu
ver, essa espécie de submersão, transitória e relativa, da palavra
imperator, para voltar a aparecer simplesmente como distinção
secundária que se dá a um general depois de ter ganhado a guerra.

Mas vamos ao outro extremo do processo. Trajano, que governa no


início do século  depois de Cristo, quando o Império Romano tinha,
portanto, mais de um século, é o primeiro imperador que se atreve, ou
que considera oportuno, porque não era um homem audaz, mas sim
um homem inteiramente re exivo, empregar o cialmente, com
normalidade e de certo modo exclusivamente, o título de Imperator.
Nenhum dos anteriores se nomearam assim. César, que vai constituir a
preparação do Império, recebe no Senado o nome de imperator, mas
isso não signi ca nenhum título que represente potestade alguma; é
um praenomen, é um nome pessoal para César; tanto que, em sua
inscrição, desde esse momento, omite seu praenomen Caius e põe, em
seu lugar, Imperator. Portanto, é algo que pertence somente a César, e
quem sabe a seus descendentes; é algo inteiramente pessoal, não é uma
magistratura. A prova disso é que os imperadores que o sucedem,
Cláudio, Nero, etc., até Otão, nenhum torna a empregá-lo. Em Otão
reaparece o nome de imperador com esse sentido de praenomen; mas
o curioso é que continua sendo imperator o autêntico título que se dá
ao vencedor das batalhas, e acontece essa coisa realmente cômica nas
inscrições imperiais desse primeiro tempo: aparece duas vezes, na
titulação do imperador, a palavra imperator, com duplo sentido: com o
sentido de mero prenome da pessoa, e com o sentido de título normal
dado depois da batalha. No ano 40, Augusto, pela primeira vez,
emprega formalmente esse nome ou praenomen de imperator, e daí
vem a inscrição que reza: Imperator Caesar divus Julius Triumvir. Mas
não é este, nem de longe, o fundamento do poder de Augusto; nem
por um instante ocorre a ele crer que, por ter posto imperator

— que não signi cava nada administrativa nem juridicamente —,


tenha encontrado um título que lhe corresponda ou que deseje; outras
vezes usa de tribunicia potestate. Mas o fato é que são dez ou doze,
talvez, as formas que o criador do Império Romano usa para escrever
seu nome titular de chefe do Estado. Não tem sentido insistirmos em
detalhes, embora houvesse alguns interessantes, para obtermos a
impressão desse estranho fato.

Peço encarecidamente perdão a vocês por ter testado de maneira tão


excessiva, e espero que única neste curso, a sua paciência. Por que
perder tempo em observar a variável e confusa titulatura que iam
dando a si mesmos os imperadores que governaram o mundo, não um
dia nem dois, mas durante dois séculos seguidos? Ainda não
perceberam por que z isso? Ao ver passarem esses títulos indecisos,
que mudam até para o mesmo imperador, que não são juridicamente
controláveis, não sentimos e quase que apalpamos, por baixo disso,
uma tremenda realidade humana? Esses simples fatos, essas inscrições
revelam que aqueles homens, chefes do Estado mais poderoso que
jamais existiu, donos do poder público absoluto, não sabiam como
nomear sua função, não encontravam títulos legítimos, legais, com que
designar seu direito ao exercício do poder; em suma, não sabiam por
que mandavam, tampouco o sabiam os romanos e os inúmeros povos
submetidos a eles. Não eram usurpadores do poder — não existia
contra eles uma autêntica oposição. E, contudo, não sabiam por que
mandavam eles e não outros, com que direito, com que título legítimo
eram chefes do Estado! A história do povo romano havia tocado com
o pé uma zona a que um dia chegaram quase todas as histórias que
conhecemos: a zona em que a legitimidade desapareceu de seu mundo.
Não se trata de que aventureiros tenham derrocado um governo
legítimo para se instalar fraudulenta e transitoriamente no poder, mas
de algo incomparavelmente mais grave que tudo isso,
substancialmente distinto de tudo isso. Não é que não se quisesse
reconhecer uma legitimidade: é que não havia nenhuma — a
preexistente tinha evaporado. Ninguém tinha uma idéia clara e na qual
cresse rmemente a respeito de quem deveria legitimamente mandar.
Tinha de ser alguém, mas ninguém possuía, na mente dos cidadãos,
títulos legítimos para isso. Em certo momento a história de uma
civilização desemboca no âmbito assustador, talvez pavoroso, da
ilegitimidade.

Seria intolerável, senhores, se, quando eu me esforço — e já se vê que


não por meios divertidos e levianos, mas severos e até opressores —
por expor algumas verdades profundas, alguns se entretivessem com
interpretar pueril e provincianamente minhas palavras, como se estas
disfarçassem alusões, que seriam ridículas, à vida pública espanhola.
Não só não o são, como não poderiam sê-lo. Porque a esse que chamo
de assustador, pavoroso âmbito da ilegitimidade constitutiva, um povo
nunca pode, em nenhum caso, chegar sozinho. O terrível fenômeno é
demasiado profundo para que se possa produzir apenas em uma
coletividade. Afeta todas as que convivem numa civilização, e os povos
que a integram, mais dia menos dia, vão entrando nela de modo
manifesto, evidente.

Mas, além disso, o que digo — e que foi durante metade da minha
vida uma preocupação e uma angústia que me acompanhou — eu o
escrevi nos anos de 1928 e 1929 em meu livro A rebelião das massas.15
Ali digo, e me referindo a todo o Ocidente:
A função de mandar e obedecer é a decisiva em qualquer sociedade.
Como a questão de quem manda e quem obedece anda essa bagunça,
todo o resto seguirá de forma maculada e imperfeita. Até a
intimidade mais íntima de cada indivíduo, salvas as exceções geniais,
cará perturbada e falsi cada. Se o homem fosse um ser solitário, que
só estivesse convivendo com outros por acidente, talvez saísse ileso
dessas repercussões, originadas nos deslocamentos e nas crises do
imperar, do Poder. Mas como é social em sua tecedura mais
elementar, ca transtornado em sua índole privada por causa de
mutações que, a rigor, só afetam imediatamente a coletividade. O que
nos permite, se tomarmos um indivíduo à parte para analisá-lo,
deduzir sem mais dados como a consciência de mando e obediência
anda em seu país.

Seria interessante e até útil submeter a esse exame o caráter individual


do espanhol médio. Contudo, seria uma operação irritante e, mesmo
útil, deprimente; por isso me esquivei dela. Mas ela revelaria a dose
enorme de desmoralização íntima, de acanalhamento que produz, no
homem médio do nosso país, o fato de a Espanha ser uma nação que
vive, há séculos, com a consciência suja na questão de mando e
obediência. O acanalhamento não é outra coisa senão a aceitação de
uma irregularidade como estado habitual e constituído; de algo que,
mesmo sendo aceito, continua parecendo indevido. Como não é
possível converter em sã normalidade o que é criminoso e anormal
em sua essência, o indivíduo opta por ele se adaptar ao indevido,
fazendo-se completamente homogêneo ao crime ou à irregularidade
que carrega. É um mecanismo parecido com o enunciado pelo adágio
popular: “Uma mentira gera outras cem”. Todas as nações passaram
por dias em que quis mandar nelas quem não deveria mandar; mas
um forte instinto lhes fez concentrar suas energias ao ponto de
expelir aquela pretensão irregular de mando. Rechaçaram a
irregularidade transitória e assim reconstituíram sua moral pública.
Mas o espanhol fez o contrário: em vez de se opor a ser imperado por
quem sua consciência íntima rechaçava, preferiu falsi car todo o
resto de seu ser para acomodá-lo àquela fraude inicial. Enquanto isso
persistir em nosso país, é vão esperar qualquer coisa dos homens de
nossa raça. Uma sociedade cujo Estado, cujo império ou mando é
constitutivamente fraudulento, não pode ter o vigor elástico
necessário para a difícil tarefa de se sustentar na história com
dignidade.

Não há nada estranho, portanto, em ter bastado uma ligeira dúvida,


uma simples vacilação sobre quem manda no mundo, para que todo
o mundo — em sua vida pública e em sua vida privada — tenha
começado a se desmoralizar.

Em vez de apequenar grosseiramente essas grandes, tremendas


questões, eu lhes peço que me acompanhem em seu estudo sério e, se
possível, em sua solução.

O próximo dia começaremos descrevendo em que consiste a


ilegitimidade como forma da vida toda. Com isso antecipamos o outro
grande tema de Toynbee — o que ele chama de “cisma na alma”.

Espero que não lhes pareça agora tão insensato a rmar que nos
importava muito ver com clareza o que foi, no Império Romano, o
imperium e o imperator.

A VI
Etapas na origem do Estado. — A
evolução do Estado romano. — O nal
da legitimidade. — O símbolo do
passado britânico.
S enhores, repassemos os marcos de nossa trajetória, a m de que,
tendo-os em mente, não nos sintamos perdidos e vejamos com
perfeita clareza por que estivemos falando na aula anterior, e falaremos
nesta, aquilo que falamos e vamos falar ainda com grande insistência.
Feita esta previsão, resulta o seguinte: nós nos propúnhamos a expor o
pensamento de Toynbee. Ele começa por nos fazer ver que as nações
são sociedades de uma determinada espécie, que se caracterizam por
ser essencialmente partes de uma sociedade mais ampla em que
convivem várias, portanto, uma sociedade de uma nova espécie, que
Toynbee chama de “civilização”, cujos atributos será preciso
determinar, pois estas novas sociedades ou civilizações são, para
Toynbee, o sujeito próprio da história.

Deve-se construir a história como uma articulação dessas grandes


civilizações. Para de nir uma civilização, a primeira coisa a fazer é
determinar sua extensão no espaço e xar a cronologia de seu começo
e de seu m. Temos, ao mesmo tempo, de procurar descobrir quantas
e quais foram as civilizações que foram e que são. De imediato
encontramos a nossa, ainda viva, acompanhada na existência por
outras quatro civilizações. Fizemos com a nossa, então, essa operação
de nidora, começando por delinear sua gura geográ ca; logo, ao
tratar de reconstruir seu processo no tempo, temos que, com respeito
ao futuro, não a conhecemos, porque ainda não desaparecemos. Não
nos restava outro caminho além de retroceder para seus inícios, e,
nessa viagem retrógrada, deparamo-nos com o fato de nossa
civilização proceder de outra distinta dela e anterior a ela, que é a
civilização greco-romana. Temos, assim, que certas civilizações estão
entre si numa relação de maternidade e liação, como a greco-romana
com a nossa. Executamos a mesma operação com relação a essa
civilização greco-romana; primeiro desenhamos sua gura no espaço,
comparando-a com a gura que a nossa apresentou; logo iniciamos a
viagem retrógrada, e vamos repassando toda sua história. A primeira
coisa que vimos foi essa civilização morrer diante de nós, ruir,
periclitar. Retrocedendo um pouco mais, porém, vemo-nos instalados
numa forma magní ca, e perfeita ao seu modo, de civilização sob a
gura do Império Romano, que é o que Toynbee chama de Estado
universal. Entretanto, a idéia de um Estado universal do qual o
Império Romano seja protótipo é, para Toynbee e para quem quer que
seja, juntamente com a idéia de uma Igreja universal, o tema central da
obra de Toynbee; por conseguinte, era natural que insistíssemos muito
nesse tema, incomparável em importância e dimensão signi cativa
com todos os demais, por essas três razões: Primeira. Porque é, de fato,
o tema central de Toynbee. Segunda. Porque serviu-me como exemplo
para poder mostrar como, a meu ver, o olhar do historiador tem de
agir, e foi o que zemos na aula anterior; e, en m, Terceira. E nova
para vocês, porque o que zemos na aula anterior e faremos nesta, em
que mal citaremos Toynbee, não é outra coisa senão preparar
devidamente a exposição da última parte da obra de Toynbee, que é
precisamente a que mais interessa, porque nela ele se ocupa de como e
por que uma civilização vem abaixo e sucumbe. Toynbee o atribui ao
que chama de “cisma na alma”; eu vejo a mesma ou uma realidade
parecida com a idéia de “ilegitimidade”.

Vemos assim que não estávamos perdidos, e andávamos, sim, por um


bom caminho.

No outro dia, submetendo nosso olhar histórico a um pendular


muito amplo, acompanhávamos a palavra imperator e a palavra
imperium desde os tempos mais antigos até o século  depois de
Cristo, em que governava o imperador sevilhano Trajano. E como o
povo romano não varia em nada especial, tampouco o faz seu Estado,
salvos os matizes — e chamo de matiz, por exemplo, a passagem do
principado ao protetorado — até a hora de sua queda — a cisão entre o
Império do Oriente e o Império do Ocidente —, pudemos fazer o que
só neste caso de Roma conseguiríamos: percorrer integralmente, de
seu berço à sua sepultura, a evolução completa de um povo no que
concerne ao seu poder público supremo, isto é, ao seu Estado. Isso
outorga à nossa contemplação um valor de paradigma que nos serve
de roteiro e até de chave para a história de todo um outro povo e,
portanto, para a mesma concepção sistemática e não apenas histórica
do que é, absolutamente, o Estado. Aqueles entre vocês que se ocupam
de assuntos jurídicos, especialmente da história das instituições, talvez
tenham podido entrever ou como que entreouvir que, no
desenvolvimento histórico feito por mim outro dia, estava latente
como contraponto toda uma teoria muito precisa, embora não
formulada ali, mas representada pelos fatos históricos como por
atores, do que seja o Estado. Essa teoria cará completa hoje e na
próxima aula. Notem, pois, que, de piada em piada — porque não
gosto de dar grandes ares solenes às coisas —16 estamos tratando do
problema mais profundo, mais grave e mais substancial para um
homem da atualidade.

Toynbee leva ao extremo esse caráter paradigmático da história de


Roma e, ao pretender fazer pela primeira vez uma autêntica história
universal, na qual todos os povos do presente e do passado recebem a
mesma atenção, o que faz, na verdade, é o contrário: esvaziar cada
povo de sua história peculiar e preencher esse vazio com a única
história greco-romana que encontra repetida em todas as demais.

Conste, pois, que quando digo que a história romana é o paradigma


não quero dizer que seja simplesmente uma identidade das demais
histórias.

E em que consiste esse lme milenar a que assistimos outro dia? Digo
milenar porque, desde os tempos mais antigos a que eu me re ro, até
Trajano, podemos pôr aproximadamente mil anos. Em que consiste,
pois, esse lme milenar? Vimos que, na sociedade primitiva, no povo
primitivo, não há Estado, isto é, poder público constituído. Nele,
ordinariamente, ninguém manda com um mando de caráter coletivo,
ou seja, com anuência formal da sociedade. Essa anuência da
sociedade, quando se refere, não ao comportamento momentâneo de
um homem, mas a formas de conduta genéricas, é o que chamaremos
de direito. Pois no povo primitivo não há, de modo estável ou
continuado, nem Estado nem autoridade; portanto, não há direito.
Não há mais que costumes, que são puro passado, agindo
mecanicamente sobre os indivíduos. Com certa razão se disse — ainda
que os que disseram talvez não se dessem conta das razões
intimamente profundas que havia para isso — que o costume é, no
homem, o que os instintos são no animal, especialmente nos insetos
impropriamente chamados de sociais: cupins, formigas e abelhas. O
Estado primigênio, a autoridade originária surge somente de modo
descontínuo e súbito nas situações extremas. Num momento de
perigo, quando a tribo vizinha ameaçava ou quando a fome apertava e
não havia opção além de resolver o problema da inanição, se adiantava
espontaneamente um homem com mais coragem e destreza guerreira
que os outros, mais capaz de organizar, de tramar ardis ou de
encontrar recursos, em torno do qual, com a mesma espontaneidade,
se agrupavam os demais varões adultos da tribo, arrastados e como
que contagiados por sua energia e entusiasmo, cheios, portanto, de
uma súbita fé nele. Porque isso é a fé quando se dirige a um ser
pessoal: con ança, esperança. Isso é também a fé em Deus, e não
como ordinariamente crêem os totalmente alheios à teologia, que crer
em Deus seja simplesmente crer que Ele existe, que está lá. Muitos
homens crêem que Deus existe e, contudo, não são religiosos nem têm
fé em Deus. A crença ou a fé em Deus, mais do que crer que Ele existe,
e isso não é um paradoxo, é con ar n’Ele e ter n’Ele esperança; é a
diferença que já Santo Agostinho marcava, quando distinguia entre
crer que há Deus e crer em Deus. E é muito possível que a única
maneira que o homem tenha para poder crer de verdade em que Deus
existe seja, antes de crer nisso, crer n’Ele, con ar n’Ele mesmo, ainda
que lhe pareça inexistente. Essa estranha combinação é a autêntica fé.
E eu não sei se, com o que digo (algum teólogo deve estar aí a me
escutar), digo alguma heresia, mas estou certo de que é a idéia mais
e caz que se pode ter da fé em Deus.

Pois bem, digo que nesse momento de perigo um homem mais capaz
se adianta aos demais, os quais se agrupam atrás dele, o acompanham
e estão dispostos a fazer o que ele disser. Tudo isso se realiza nos povos
primitivos sempre com um caráter de contágio; eu já disse a palavra,
mas agora vou completá-la com um termo que não uso em seu sentido
técnico, porque seria inapropriado, mas no sentido que tem na língua
corrente: “contágio histérico”. Como sabem, os povos primitivos, por
exemplo os primitivos atuais, vivem estados coletivos de contágio que
poderíamos chamar de “histéricos”, como acontece todos os dias com
os negros nos Estados Unidos.17

Então, esse homem capaz de criar um projeto ou programa comum


de ação comum, e de preparar o que é necessário para que se tenha
êxito na empresa é o imparator ou imperator. Isso é o que
propriamente signi cava a palavra. E esse nome é sem dúvida exato,
como o demonstra o fato de que o poeta mais antigo de Roma, Ênio,
emprega, como palavra que em seu tempo era considerada sumamente
arcaica, a palavra induperator, que é a forma mais antiga do vocábulo,
e que o osco, língua irmã da latina, tem também embratur. (Estou me
dirigindo ao senhor Benito Gaya, um jovem admirável que, apesar da
di culdade física de sua existência, estudou as línguas mais abstrusas e
distintivas e que vive em Soria, onde é professor, que vai iniciar, na
terça que vem, no Instituto de Humanidades, um curso sobre essa
estranha cultura, completamente inesperada, que é a última grande
descoberta arqueológica: uma cultura que surgiu no rio Indus, que se
chama cultura Mohenjo Daro.) Essa unidade de palavras em osco e
latim indicaria que a palavra possivelmente existia antes de os dois
povos se separarem, quando eram um só e tinham a mesma língua, o
qual nos levaria do ano 1000 para antes do ano 2000 a.C.; portanto,
nas enormes profundezas da história. Aí temos, embora efêmeros e
instantâneos, existentes só enquanto dura a batalha, para então se
dissolverem ou desaparecerem, o primeiro Estado e a primeira
autoridade. Aí temos o momentâneo chefe, o caudilho, e os que o
seguem, ou sequazes. Talvez alguém se interesse por conhecer que há
razões bastante sérias para supor que a palavra “sociedade” vem, é
claro, de socius, sócio, mas que a palavra socius, por sua vez, vem de
sequor, seguir; “sócio” é aquele que segue, o sequaz, de tal modo que
não haveria sociedade sem alguém que “se ponha à frente” e os outros
o sigam. Desse fato, e não da etimologia, que conheci muito depois,
falei em minha obra España invertebrada, publicada em 1921.
Interessa-me mencionar a data porque creio, quase com certeza, que
essa idéia teve uma grande in uência mais tarde num grupo da
juventude espanhola que exerceu uma intervenção muito signi cativa
na existência espanhola.
Chamei de Estado primigênio essa che a ou magistratura originária,
que é, pois, descontínua e intermitente. Pois isso, concreta e
precisamente, isso é o que signi ca a palavra imperator; que nasce,
portanto, adscrita a uma empresa momentânea, a algo ocasional, a
uma batalha ou façanha paralela. Acontece então que ainda não há
direito e, portanto, ninguém tem ainda direitos, e esse chefe o é, não
por um direito, mas simplesmente de fato, produzido
automaticamente por uma situação. Por conseguinte, ninguém
originariamente tinha direito a ser imperator, a exercer imperium, e
qualquer um o pode. Seria desejável que vocês retivessem isto, a saber:
que o chefe do Estado começou por ser qualquer um, porque ninguém
tinha algum direito particular; portanto, que começou por ser de
qualquer maneira, ou, dito de outro modo, sem título legítimo, porque
não existiam títulos nem atribuições legais, porque não havia lei,
porque não havia ainda legitimidade. Conseqüência disso é que a
palavra imperator, nessa etapa inicial, não pudesse signi car nenhuma
magistratura nem nenhum título, mas apenas um modo vulgar de
dizer. Assim como ao que se ocupa de fabricar objetos de madeira
chamamos carpinteiro, ao que se ocupa em dirigir e planejar e
conduzir batalhas chama-se imperator, simplesmente.

Segunda etapa. A vida da tribo avançou, complicou-se. O número de


seus indivíduos cresceu grandemente, a técnica material melhorou e se
complicou também; as disputas entre os homens por isso e por aquilo,
sobretudo pela propriedade das terras, coisa para a qual os romanos
eram hipersensíveis, traz consigo que se chegue a fórmulas de
compromisso, as quais, estabilizando-se século após século, em
obscura continuidade, chegam a parecer imemoriais; serão as
instituições do direito privado. Mas também amadureceu uma
complexa e ao mesmo tempo precisa concepção da vida e do mundo.
Queira-se ou não, a todo homem, para viver, não resta opção senão ter
uma idéia sobre o que é a sua vida e, portanto, sobre o que é o mundo
em que ela se passa. Mas num povo como o de Roma e como em todos
os povos que existiram em todos os tempos, a concepção do mundo,
do povo como tal, é e não pode ser senão uma concepção religiosa.
Um indivíduo ou um grupo de indivíduos pode viver com uma
concepção do mundo que não seja religiosa, mas sim, por exemplo,
cientí ca; mas um povo enquanto tal não pode ter do mundo senão
uma idéia religiosa. Infelizmente não é possível agora, por razões de
tempo, dar os motivos e os argumentos que sustentam essa a rmação;
mas se alguém, assim, de passagem, me diz que talvez agora na Rússia
as pessoas crêem no marxismo, isto é, que o povo russo tem uma
concepção marxista que se supõe teórica ou pseudoteórica do mundo,
eu pedirei que faça o favor de não falar as coisas de longe, que é um
dos grandes pecados do nosso tempo a que me referi no primeiro dia,
quando apontava que a aproximação dos povos fez com que se cresse
que, por estarem mais próximos, se entendem mais, esquecendo que
quem entende menos a vizinha é sua vizinha do lado. Pois bem, se em
vez de falar como se conhecessem de perto o que vêem de longe, e
olhando com atenção e precisão, veriam como é: se, de fato, o povo
russo crê no marxismo é porque esse marxismo adquiriu todos os
caracteres, que poderíamos determinar com extrema precisão, de uma
concepção religiosa do mundo. Isso acontece de maneira extrema nos
povos do Lácio, que virão a ser mais tarde o povo romano, e que foi
um dos mais religiosos que já existiram. Sua religião, como a grega,
comparada com o cristianismo ou com qualquer uma das religiões
nascidas na cultura do Oriente Próximo, que inclui o Irã — portanto, o
mazdeísmo, a religião de Zoroastro — ou com o islamismo, é muito
grosseira em sua doutrina, mas é necessário destacar que penetrou a
vida toda daquele povo muito mais do que jamais interveio, nem
mesmo em seus momentos de maior triunfo, o cristianismo na
existência dos europeus. É preciso reconhecer isso sem escamoteações,
porque é de uma evidência transbordante. Tampouco posso dizer o
porquê. Talvez seja uma das causas a relativa grosseria dessa religião. E
ocorre que, na vida romana, não há um só ato público ou privado que
não seja acompanhado por precisos e rigorosíssimos ritos. Quem não
leu a obra prodigiosa de Fustel de Coulages A cidade antiga deve se
apressar a fazê-lo. Não importam os erros de detalhe que depois se
descobriram nela. Essa obra nos apresenta o fato, que destaca o que
acabo de dizer, de como aquela vida estava impregnada de religião e
como, na vida dos povos europeus, a religião não chegou a penetrar e
impregnar integralmente a vida, e cou, na verdade, como algo que se
derrama em cima de nós.

Muito bem, os principais ritos, que se referem aos temas mais


importantes da vida pública, não podem ser cumpridos por qualquer
um, mas por certos homens pertencentes a determinadas famílias, que,
ao longo dos obscuros séculos, haviam se adiantado, tanto por seu
valor guerreiro, como pela provisão de riquezas e por sua
religiosidade. Isso dá lugar a que apareça a primeira autoridade estável
e a primeira facção de Estado permanente sob a gura do diretor dos
sacrifícios, portanto, dos ritos religiosos, do homem cuja missão é
cumprir com exatidão os ritos da vida religiosa coletiva. A este se
chamou rex — rei —, que signi ca reitor, porque rege ou dirige os
ritos religiosos, os sacrifícios — rex sacrorum. E sacri-fício não
signi ca simplesmente matar animais em oferenda a Deus, mas o
conjunto dos atos sacros: tudo o que seja fazer sacro é sacri-fício.

Já temos a instituição da realeza, que surge, antes de mais nada, como


um ofício religioso, mas — não tendo as funções se diferenciado ainda
— sobre essa função de sumo sacerdote vão cair todas as
competências. Ele será, ao mesmo tempo, o general do exército, o
legislador e o juiz máximo. Ele exercerá, pleno, o imperium. Isso revela
para nós como, no primeiro Estado que merece esse nome, porque é o
primeiro estável, permanente, o chefe já não é qualquer um, mas
alguém que tem direito a isso. Esse homem, o rex, o rei, não é mais,
portanto, um chefe, caudilho, ou o que quer que seja
espontaneamente, mas o é porque tem direito, e tem direito porque
todo o seu povo crê que os deuses querem que o tenha, tendo
outorgado ao sangue de sua família esse dom de dar e cácia aos ritos,
essa graça mágica, ou, como os gregos diziam, carisma, de estar mais
próximo dos deuses que os outros. E como todo o povo dependia do
favor dos deuses, esse homem será absolutamente imprescindível para
a coletividade. O rei é, pois, o chefe do Estado, não espontaneamente
como o imperator primitivo, mas com um título legítimo. Não se
reparou devidamente que o historiador Salústio, quando repassa toda
a antigüidade de Roma — de maneira sumamente rápida e concisa,
como são os escritores desse tempo, e Salústio vivia em tempos já de
ilegitimidade, em plena guerra civil de Roma —, crê ser importante
observar essa peculiaridade de legitimidade do rei quando fala do
imperium legitimum, o “império legítimo”, que é o nome real do
mando (Cat. 6).

O rei, pois, é chefe do Estado por um título que provém da graça de


Deus; essa graça mágica, que chamamos de dom ou “carisma”. A
legitimidade originária, prototípica, a única compacta e saturada foi,
em quase todos os povos conhecidos, o rei pela graça de Deus. Pura,
não há outra. A questão está em como se compreende esse “há”, pois
não implica que ela sempre, forçosamente, haja. Implica unicamente
que, legitimidade pura, só há essa, quando há. O que isso signi ca é o
que vocês ouvirão ao m — espero que com clareza — de todo esse
desenrolar.

Compreenderão que, diante dessa patética, venerável, tradicional,


imemorial e mística instituição da realeza, aquela atitude
circunstancial, espontânea, aventurosa e fugaz do imperator tem de
desaparecer. O nome permaneceu na língua, posto que, após algum
tempo, tornou a aparecer para signi car um título, e é até possível que
de vez em quando se atribuísse ou empregasse esse nome para o rei,
como uma de suas competências. Mas o mais provável é que a
recordação desse nome incomodasse — a recordação de seu
signi cado primitivo — como símbolo daquela época tosca e primitiva
em que não havia uma ordem estabelecida, nem lei, nem legitimidade.
O fato é que essa palavra parece que mergulha nas profundezes da
linguagem e não aparece, não reaparece durante muito tempo. Mas,
não obstante, com relação à realeza temos justamente o que é talvez o
único ponto em que a história romana não pode servir de paradigma,
de exemplaridade no estudo das demais. Esse fato anormal, que dá
origem a essa invalidação, provém de circunstâncias muito precisas.
Consistiu no seguinte: os etruscos, que ocupavam a Toscana, país
vizinho aos latinos, eram um povo completamente distinto desses.
Tinham vindo, provavelmente pelo mar, no m do século  antes de
Cristo. (Eu, pessoalmente, não creio nisso, mas isso não quer dizer
nada em matéria de história antiga nem arqueológica; é simplesmente
uma expressão literária; pessoalmente, creio que vieram antes, mas,
en m, segundo a data canônica, chegaram no m do século .) Vêm
pelo mar da costa da Itália; procediam quase certamente da Ásia
Menor, onde havia uma prodigiosa matriz de povos que, com uma
periodicidade sem ritmo conhecido, lançava, como enxames ou
projéteis em direção aos espaços geográ cos, partes de si mesma; e
cada vez a irradiação ia mais longe. A primeira dessas emissões foram
os cretenses, que na ilha de Creta criaram uma admirável civilização,
da qual terei de falar um pouco, seguindo Toynbee, na próxima aula. A
segunda emissão foram os etruscos, e a terceira, segundo alguns
autores, por exemplo Schulten, pasmem!, seriam os andaluzes, pois,
sem dar formalidade à a rmação, completamente à parte de
elucubrações históricas, direi que, por minha própria experiência
vivida dos andaluzes — e eu sou meio andaluz, creio que tenham
percebido pela pronúncia de certas palavras —, para mim sempre os
verdadeiros andaluzes foram os habitantes da região que começa em
Écija, desce até o Peñón, segue pela costa de Cádis e Huelva e volta,
incluindo a província de Sevilha, a se amarrar com Écija. O resto já são
anexações; são já cidades de composição muito diferente, com outra
origem étnica muito mais recente, de caráter e modo muito distintos.
São, diríamos, “semi” ou “sub” andaluzes. Os verdadeiros andaluzes
são esses velhos tartésios, ou turdetanos ou társios; e se foram mesmo
os tartésios, são o povo vivo mais velho no solo da Espanha, quiçá da
Europa. Quando eu falava, outro dia, dos espanhóis, e dizia que somos
os velhos chineses do Ocidente, um dos ingredientes dessa a rmação é
o nosso fundo tartésio-andaluz.

Essa hipótese explicaria, ao menos, o fato surpreendente de que se


tenha desenterrado em Creta um mosaico cuja cronologia se atribui a
1300 ou 1400 antes de Cristo, em que aparecem umas senhoras
vestidas com mantas e trajes longos com babados, sentadas num palco
e assistindo, com toda a verossimilhança, a uma corrida de touros. Ou
seja, uma cena, quase fotográ ca, do que se podia ver em Sevilha pelo
1890. Seria certamente curioso averiguar quantos dos presentes, a
maioria mais jovens que eu, que sou decididamente velho, entendem
com precisão, com exatidão o que signi ca “faralaes”;18 porque, se não
o entendessem, teríamos um fato muito simples, mas muito
signi cativo, que poderia simbolizar a mudança radical da Espanha
desde 1900 até a atualidade. De fato, eu diria mais: eu me atreveria a
dizer que, se a maioria de vocês não sabem perfeitamente o que
signi ca “faralaes”, isso se deve, como uma das causas principais, não
direi a única, ao marxismo. Ao me ouvir podem pensar que digo uma
besteira ou uma extravagância. Contudo não é, e, se aplicarmos a lupa
intelectual sobre o fato, veremos como seu estudo, o estudo desse
simplíssimo, humilde e trivial fato, que é o desconhecimento atual, ao
menos muito extenso, dessa palavra, que em 1900 — estejam certos —
todos os espanhóis conheciam, revelaria para nós profundos segredos
do que aconteceu em meio século da história atual. Exemplo simples
de como o estudo das palavras nos leva ao descobrimento das
realidades humanas históricas.

Grande tema, se começássemos a falar dele. Não daria uma hora e


três quartos, como foi o tempo pelo qual falei sem parar no outro dia,
mas sim dezesseis horas pelo menos, porque aí está toda a história da
Espanha. Puxando, como uma bra, como um o que é o fato dessa
descoberta, poderíamos deduzir com rigor quase geométrico tudo o
que era a Espanha em 1900, o que é agora e por que aconteceu essa
mudança. Crerão que trata-se de extravagâncias e petulâncias
passageiras, mas vocês terão a bondade de notar que as expresso por
motivo de temas que parecem não ter importância; porém, é muito
possível que algum dia, se tivermos tempo, eu aceite o desa o de
cumprir essas promessas ou essas pretensões.

Pois bem, os etruscos, desde a Etrúria, que se chamava também


Toscana, porque os próprios etruscos também se chamavam de tusci,
dominaram o país latino e obrigaram algumas de suas tribos a se
juntarem formando uma cidade, à qual deram o nome de Roma, que é
palavra etrusca e não latina, substituindo os reis das tribos por um rei
etrusco. Os latinos reconheceram, não obstante, a legitimidade dos reis
etruscos, porque era divina, e a eles devem — nunca o ocultaram — as
principais instituições de seu Estado, que conservaram sempre,
sobretudo as religiosas. Mas pelos abusos de alguns desses reis e por
seu comportamento tirânico — o qual se registra na lenda sobre
Tarquínio, o Soberbo —, unido a uma resistência étnica, racial, que
deve ter estado sempre presente, teve lugar um fato anormal que é
causa de car invalidada nesse ponto, como paradigma, a história
romana. Esse fato anormal consistiu em que, muito rapidamente,
prematuramente, os romanos expulsaram os reis etruscos e, por ódio
deles, tanto por serem estrangeiros como por serem tiranos, sentiram
desde então uma repulsa inextinguível pela idéia mesma da
monarquia, e implantaram o que se chamou a República. Mas essa
República, esse novo Estado começa por ser, salvo a eliminação dos
reis, idêntico em tudo à antiga monarquia. O rei tivera sempre ao seu
lado o Senado, pelo menos como corpo consultivo composto pelos
antigos reis das tribos, isto é, pelos chefes das gentes ou parentelas
mais antigas, respeitadas e poderosas. A única inovação desse novo
Estado, da República, foi partir o rei ausente — portanto, a instituição
monárquica — em dois, que eram os dois cônsules. Estes eram
encarregados de dirigir os atos rituais religiosos mais importantes do
povo romano enquanto tal, que eram os auspícios, os augúrios; eram
ao mesmo tempo os cônsules, os chefes do exército, os juízes máximos,
os legisladores, embora para estabelecer leis tivessem de contar com o
Senado e mais tarde com o povo.

Por que isso? A expulsão dos reis não pode ser feita num santiamém;
custou longas guerras, porque os etruscos apoiavam a dinastia de seus
parentes. Isso quer dizer que, embora a rebelião tenha sido
aristocrática, não houve saída além de empregar todos os homens, os
varões úteis de Roma, pobres ou ricos, nobres ou vulgares. Esse
contingente total dos habitantes varões sem distinção de classe,
atuando na guerra em formação de exército, é o que se chamou
populus. Daí que devastar uma região se dissesse, em latim, populari.
Populus é, pois, estritamente o conjunto dos cidadãos organizados em
pé de guerra. Vem a ser, pois, o que os franceses, em 1790, chamariam
de la nation en armes, o que os mesmos franceses, e não os alemães,
como se atribuiu erroneamente, depois de 1918 chamaram de “a
guerra total”. Populus, então, signi ca todos os cidadãos juntos diante
do perigo. Do substantivo populus se formou o adjetivo publicus; o
que é do populus é público. Os senadores não tiveram escolha a não
ser fazer concessões ao populus em matéria de legislação, e assim se
constitui o novo Estado romano, que vai receber o nome com clara
crueza — já o dissemos no outro dia: sem atenuações nem melindres,
como os romanos chamavam as coisas —, com um nome
esquisitíssimo, porque são dois nomes, Senatus Populusque, e daí vão
dimanar todas as leis, do Senado e do povo. Essa dualidade é a nova
Roma.

E, contudo, não se atreveram a romper radicalmente com a


legitimidade da realeza. Eles o teriam sentido como um sacrilégio e
tiveram de conservá-la, pelo menos em seu lado religioso, criando o
rex sacrorum — encarregado dessa relação mais imediata do povo
com os deuses. Mas, também temerosos de que dela pudesse rebrotar a
odiada monarquia, instituíram que o rex sacrorum não pudesse jamais
ocupar qualquer cargo político ou militar, o que tornou sempre difícil
encontrar pessoas dispostas a semelhante renúncia. O rex sacrorum
não era senão o autêntico rei de sempre, o rei legítimo exonerado de
todos os poderes políticos; portanto, como que dissecado, mumi cado.
Figura melancólica a desse homem politicamente paralítico — e
recordem que, para a vida romana, a atuação política era tudo —; é um
exemplo soberano da presença do passado no presente, que eu de nia
como um ser presente na medida que ausente, que é um estar sem
estar, e que esse caso extremo tem um franco caráter de resíduo ou
superstição.

Vemos, pois, que a legitimidade da realeza é a primigênia, prototípica


e exemplar; que, portanto, é a única originária e que, de maneira
enrustida, perdura sob outra forma.

Em nossos povos europeus o processo é mais normal. A monarquia


pura sobrevive ao longo da maior parte de sua cronologia. É ela a
legitimidade por excelência. Eu suponho — não aconteça que eu, de
tão imerso objetivamente no assunto, perca o devido cuidado e não
atente para as más interpretações, embora sejam triviais —, eu
suponho que vocês entendem isso que estou dizendo não como uma
opinião política minha, que seria aqui muito impertinente, mas como
a descrição da realidade histórica mais normal. Não é que eu, pessoal e
privadamente, creia que a monarquia deva ser a única forma legítima
de governo. Eu, nesta cátedra, não quero nem posso ter opiniões
políticas, e espero que, em toda a atuação do Instituto, ninguém, nem
agora nem nunca, perca tempo manifestando-as. O que sustento não
tem nada que ver com possíveis opiniões políticas minhas nem de
ninguém. O que sustento é que, quando houve, num povo da Grécia,
da Itália ou da Europa, plena e pura legitimidade, esta foi sempre a
monarquia — queira-se ou não. A essa legitimidade primigênia segue
prematuramente em Roma uma legitimidade republicana, que já não é
pura por graça de Deus, que já não está fundada somente na crença de
que Deus inscreveu o direito exclusivo de mandar numa ou em
algumas famílias — mas se crê que a lei emana da vontade conjunta do
Senado e do povo. Essa segunda legitimidade não é mais, nem tão
plena, nem tão pura quanto a real. A prova disso está em que, durante
muito tempo, se continue acreditando que somente de entre certas
famílias se pudesse escolher os senadores, os cônsules, o rex sacrorum,
o pontí ce máximo. Na Europa essa segunda e já de ciente
legitimidade começa logo na Inglaterra, e vai se constituir em 1800 (?)
e em 1850 em todas as nações européias: é a monarquia constitucional;
ou, onde se elimina o rei e se instaura uma república, é o chefe do
Estado cujo título legítimo consiste na eleição emanada da soberania
popular. Essa última forma de legitimidade é o que se chamou com
uma palavra que hoje já cou difícil de usar, porque foi, talvez para
sempre, maltratada em Yalta quando, embaixo ela, puseram sua
assinatura três homens que a entendiam em três sentidos diferentes. É
a palavra “democracia”.

Que que claro, pois, o que quero dizer: na civilização greco-romana,


como na civilização ocidental, houve uma legitimidade primária,
fundamental e prototípica que é a monarquia, e a esta sucedeu outra: a
legitimidade fundada parcial ou totalmente na soberania popular, a
democrática, que é também ou ainda efetiva legitimidade, mas que o é
já de forma de ciente, instaurada, super cial e sem raízes profundas
na alma coletiva. Diga-se entre parênteses, me incomoda ser obrigado
a empregar essa expressão “alma coletiva” que todo mundo usa
irresponsavelmente, sem meter nessas palavras nenhuma idéia clara e
que tenha para mim um sentido bastante preciso, que só poderei
manifestar no próximo outono, quando oferecer a vocês um curso de
sociologia fundamental intitulado O homem e os outros.19

Se algum norte-americano me ouvir quali car como de ciente a


legitimidade democrática, talvez minhas palavras soem mal para ele, e
eu lhe diria que ele tem, em princípio — o norte-americano enquanto
tal — toda a razão. Mas acontece que, diferenciando-me nisso
radicalmente de Toynbee, deixei — vocês hão de recordar — fora de
nossa consideração toda a América atual, porque, a meu ver,
representa um fenômeno completamente à parte, no essencial, da
nossa civilização, e que exige ser tratado assim. Penso, senhores, que a
América — a do Norte, a Central e a do Sul — seja um fato humano
ainda intelectualmente virgem, sobre o qual não se disse nem uma só
palavra básica com sentido — ou, em outros termos, é uma imensa e
originalíssima realidade humana, a qual, precisamente por ser tão
original, isto é, tão distinta de todas as demais, não foi ainda nem
sequer vista ou tornada patente. Portanto, que esse norte-americano
imaginário que me ouve me conceda uma margem de espera — e digo
imaginário porque não creio que haja nenhum nesta sala onde não
faltam pessoas de quase todos os demais países europeus e
americanos. É preciso ir esclarecendo as coisas pouco a pouco.

A plena clareza acerca de por que a monarquia foi a legitimidade


autêntica e por que a legitimidade democrática tem um caráter
de ciente e frágil vai surgir em nós agora mesmo, ao passarmos da
segunda etapa na evolução do Estado romano à terceira. Mas nesta
terceira etapa não se pode entrar sem fazer um esforço superlativo de
síntese, que procurei condensar como segue.

A república se inveterou. Ela representa os séculos cêntricos, normais


e exemplares de Roma, o que não quer dizer tranqüilos. Apesar de
faltar o rei e, portanto, o que chamo de legitimidade fundamental, a
forma de governo romano, essa divisão de poderes, de soberania entre
os cônsules, o Senado e o populus foi, por exceção, uma das mais
sólidas que já existiram. Não se deve ver nisso uma contradição
imediata com o que eu disse antes. A forma do Estado romano, a
articulação de suas instituições contraditórias é, que nós saibamos,
algo único na história, e só tem alguma similaridade com o Estado
inglês. Aos próprios gregos lhes pareceria algo bastante estranho, e
com suas cabeças de geômetras não compreenderiam aquela
justaposição de princípios opostos. Só Políbio, com sua mente
esclarecida de homem de negócios e historiador, se aproxima um
pouco da compreensão, aplicando a ela a idéia de “constituição mista”
(a que me referi — et pour cause — na primeira aula), aquela gura de
Estado com que sonham os gregos da última época, sob a pressão de
mil anos de experiências em que viram todas as constituições
fracassarem, isto é, todas as políticas que pretendiam ser racionais,
conformes a princípios puros — a monarquia, a aristocracia, a
democracia —; gura do Estado que chamei de “triaga magna” ou
“máxima”, em que, por desespero da política, se tenta a mistura
absurda de todas as políticas, já que, sendo todas, pelo visto, más, a
saúde só pode ser obtida fazendo com que, juntas, anulem
mutuamente suas perversões peculiares e consigam se neutralizar.

Mas, se nos propomos — e esta é a tarefa decisiva da história —


repetir, isto é, reviver como os romanos da República viveram
efetivamente em suas almas aquela sua forma de governo da maneira
mais sucinta, eu diria o seguinte: Para o romano da República, o
Senado é a instituição que representa a mais autêntica e venerável
legitimidade — o que chamavam de auctoritas patrum. E a razão disso
é que sentiam o Senado como a instituição em que, de maneira
encoberta, se conservava a monarquia, mas sem os seus
inconvenientes. De fato, o rex sempre o manteve próximo de si, pelo
menos como corpo consultivo. Ademais ele se compunha, em seu
núcleo mais ilustre e respeitado, de antigas famílias reais, dos patres ou
chefes das gentes, parentelas ou clãs. O Senado também era e continua
sendo pela graça de Deus. Por isso, ao construir a lenda das origens de
Roma, o próprio Cícero, em plena época de trágica ilegitimidade, dirá
que os romanos devem a Rômulo a instituição ou criação das duas
coisas mais importantes na vida pública de Roma: os auspícios e o
Senado. Dito, pois, com uma palavra que vai nos acompanhar até o
nal, o povo romano cria no direito transcendente, sobre-humano, do
Senado a exercer sua autoridade. Digo que o povo romano cria

— não que este ou aquele ou aquele outro indivíduo o criam.

Trata-se da crença coletiva, do consensus geral, que possui plena


vigência no corpo social.

Agora vamos nos servir do método de nido na aula anterior. Ao


mesmo tempo que se acreditava sinceramente na autoridade do
Senado, tinha-se a clara consciência de que este era um passado, e que
o presente, com os novos problemas trazidos pela nova vida, obrigava
a inventar novas instituições que, por serem inventadas, fundavam sua
validade na graça de Deus, não na tradição imemorial, mas
simplesmente em sua e cácia. (Leve-se em conta que esses romanos
eram incapazes e até inimigos de toda teoria, e que, portanto, em
Roma nunca existiu a teoria da soberania popular, isto é, de que o
povo é a origem de toda legitimidade.) Roma, ao crescer, encheu-se de
novos habitantes, de novas famílias que não possuem a velha tradição
dos patrícios, que não têm uma relação especial ou mais direta com os
deuses — são cidadãos quaisquer, são a plebe. Esses cidadãos, que em
número representam uma arrasadora maioria, que criam e possuem a
nova riqueza do comércio, da indústria, e que nanciam o Estado
como contratistas das rendas públicas são, sem dúvida, o presente
efetivo. Esse presente, como todo presente, simplesmente a rma-se a si
mesmo; ou seja, sem buscar outra justi cativa prévia de direito, sem
pretender formalmente a legitimidade, sustentado no máximo por
uma vaga idéia — portanto, não uma crença autêntica — de que,
contribuindo com as guerras em maior número do que os patrícios,
devem participar no mando, no imperium. E aí estão as eleições
populares e o sufrágio universal. Mas jamais ocorre aos plebeus
suprimir o Senado, porque continuam crendo em seu direito,
enquanto direito em última instância religioso que vem do passado. O
romano, mesmo o mais plebeu, era conservador no sentido de que lhe
dava um místico terror romper com o passado, seccionar a
continuidade com ele — exatamente, neste ponto, como foi o povo
inglês.

Eis aqui, pois, como devemos representar a autêntica vida pública dos
romanos nos séculos que vão desde a implantação da República — em
500 a.C. — ao tempo, por exemplo, de Cipião Emiliano em 190 a.C.
Unidos e, ao mesmo tempo, frente a frente, compartilham um passado
venerável de legitimidade e um presente, ilegítimo por si mesmo, que
não obstante a rma suas aspirações, apetites e vontade de ser.

Esse presente, que é a plebe, sente aquele venerável passado como


sendo de fato um passado, como coisa que vem do fundo misterioso e
sagrado dos tempos, mas, ao mesmo tempo, e justamente por isso,
sente-o como sendo a legitimidade exemplar. Mas esse passado, uma
vez que é passado, não pode simplesmente tornar-se presente, tem de
se adaptar ao presente. Essa adaptação é uma luta incessante, que vai
durar cinco séculos. Porque essa dualidade entre o legítimo e a
germinante ilegitimidade só pode ter como resultado o que chamei de
legitimidade de ciente, frágil, instaurada, equívoca, quebradiça da
Roma republicana que continua a plena, compacta e saturada
legitimidade da monarquia. (Esqueci de dizer antes que esse parecer,
essa derrocada de uma civilização — a que Toynbee vai chamar, por
crer que seja a causa mesma, o “cisma na alma” — eu a vejo de forma
bastante diferente, sob a idéia da ilegitimidade.) Por isso a nova
legitimidade tem de consistir, inevitavelmente, numa luta constante, e
por isso a história romana é, por cinco séculos seguidos, a história da
luta entre patrícios e plebeus. Uma legitimidade que consiste
substantivamente na contenda não pode ser chamada de exemplar. O
povo romano nesses séculos contém em realidade dois povos em
quase permanente, embora não radical, discórdia — e essa intricada
dualidade é a que se expressa evidentemente, cruamente e sem
atenuações no nome o cial do Estado romano: Senatus populus, ou,
em nossa terminologia de razão histórica, passado e presente de Roma
juntos e contrapostos.
O que nos aconteceu ontem, ainda que, com efeito, seja já um
passado, está ainda, de certo modo, aí, ao alcance da mão. Mas
conforme transcorrem os dias, isso que ontem nos aconteceu vai
cando cada vez mais passado, já não está à mão, vai se afastando de
nós, debilitando-se, desvanecendo-se, até que chega um dia em que
nós o esquecemos por completo; ou seja, torna-se absolutamente
passado. Nem mais nem menos ocorre na vida dos povos. É inútil
tentar desejar um passado no presente, querer detê-lo e perenizá-lo.
Novos presentes chegam sem cessar, que vão se acumulando, e de
modo inexorável nos separam progressivamente daquilo que passou.

A divisória na história romana se impõe com toda a clareza. É a


vitória sobre Cartago em 204 a.C. Até então a vida do romano era
ainda informada pelo passado tradicional, e a legitimidade quali cada
por mim como segunda e de ciente tem ainda vigência completa e
está saudável. As coisas mudam depois das guerras púnicas.

Até o primeiro grande Cipião — o Africano, o vencedor de Aníbal —


o ideal da vida, mesmo para o homem latino melhor dotado, era
cumprir plenamente o regulamento, a disciplina que podemos chamar
de “bom romano” — ou seja, não ocorre a ele propor a si mesmo um
per l de vida que inventou individualmente e para seu uso particular,
benefício próprio e realização exclusiva, mas o contrário, um
programa que lhe vem enquanto tal proposto e imposto pela
coletividade. Todas as crenças comuns, diríamos tópicas, estão vivas
nele, e com as crenças coletivas seus apetites e aspirações se retêm
espontaneamente nos moldes estabelecidos. O general que ganhasse
mais batalhas não se sentia por isso uma personalidade especial e, em
virtude disso, talvez com pretensões e direitos especiais; uma vez
ganhas as batalhas, submergia de novo no corpo social como um entre
tantos. Nada manifesta melhor até que ponto Catão, apesar de viver
em tempo de César e da ilegitimidade, se sentia, ainda que
anacronicamente, um velho romano e, portanto, impessoal,
coletivizado, quanto reparar que, em sua história de Roma intitulada
De originibus, não cita mais que um nome próprio — o nome de um
elefante de Pirro. Ou seja, para ele a história não era feita de
indivíduos, mas de povos. A tal ponto que, naquela velha e ainda
legítima Roma, viver, para o indivíduo, era viver entre todos, para
todos e como um qualquer entre todos. E isso, conste, não por razão
de igualitarismo e democratização — que seria uma causa vinda de
fora, aplanando as almas —, mas porque no fundo de si mesmos,
desde logo e a nativitate, sentiam do mesmo modo e eram incapazes
de se diferenciar uns dos outros.

Agora se compreende o que chamei de legitimidade. Algo é


juridicamente legítimo — o rei, o Senado, o cônsul — quando seu
exercício do poder está fundado na crença compacta de todo o povo
de que, de fato, é ele quem tem direito a exercê-lo. Porém, como nós
vimos, não se reconhece ao rei esse direito isoladamente; a crença de
que é o rei ou o Senado quem tem direito a governar só existe como
parte de uma crença total em certa concepção do mundo que é
igualmente compartilhada por todo o povo; em suma, o consensus.
Essa concepção, dizíamos, é, tem de ser religiosa. Por isso quando, por
umas ou outras causas, essa crença total comum se fende, se debilita
ou se desvanece, com ela se fende, debilita e desvanece a legitimidade.
E como isso acontece irremediavelmente no processo de toda história,
chega com certeza nela um momento em que os homens, como que
despertando um belo dia de manhã, deparam-se com o fato de que já
não há legitimidade — ela se evaporou —, embora ninguém tenha
feito nada para quebrantá-la. Poderá subsistir tal ou qual grupo de
cidadãos que continue crendo com a mesma rmeza na concepção
religiosa tradicional, e conseqüentemente na legitimidade do rei. Mas
aqui não se está falando do que um indivíduo ou um grupo de
indivíduos crê, mas daquilo em que crê o povo inteiro, que é onde
nasce, se nutre e sobrevive toda a legitimidade. Esta não desapareceu
em Roma desse modo suave. Ela foi sendo quebrada, triturada dia
após dia desde o ano 200, talvez desde 225, que é quando Roma
conquista a Grécia e, no contato com aquela vida e aquela cultura
muito mais antigas e muito mais ricas, inicia a desintegração do
bloqueio compacto que era a crença total comum romana. Não é
possível descrever como isso se deu, porque apenas tocar no assunto
nos levaria muito tempo. No próximo dia insinuarei alguma coisa.
Por outro lado, convém dedicarmos atenção agora a um maravilhoso
caso inverso que temos à vista, em que a mais pura legitimidade real,
respeitada sem interrupção, por todo o povo conservada e venerada,
porém, já não é ou já não há. Notem o paradoxo: está aí, conservada;
não obstante, já não existe mais. Esse fato prodigioso, exemplar e
comovente para todo aquele capaz de sentir o lado de inexorabilidade
que há nos destinos humanos, é a monarquia inglesa atual. Por um
acaso, que contribui para tornar o caso mais patético, mais
enternecedor, a monarquia inglesa está hoje personalizada num
homem doce, modestíssimo, cumpridor de todos os seus deveres, do
qual ninguém conhece um só gesto nem uma só palavra que não
sejam a própria mesura; mais ainda, que não evitem recalcar sua
própria pessoa. Esse homem já não governa propriamente, não exerce
imperium, embora tenha, ou tivesse até poucos dias, o título de
imperador. Sua função estatal cou reduzida ao mínimo imaginável:
estabelecer a continuidade na sucessão dos efetivos governos.
Representa, a rigor, só a continuidade — a continuidade da milenária
vida inglesa. Já não é um efetivo chefe de Estado; é somente ou quase
exclusivamente um símbolo. Símbolo de quê? Do passado inglês e da
intenção de que esse passado inglês subsista no futuro; é, pois, o
próprio passado inglês que se conserva no presente precisamente
porque é passado. Daí vem esse não-sei-quê de doce e bondoso
espectro, de revenant, de aparição que tem quando, nos jornais
ilustrados, vemos passar sua respeitabilíssima gura, que parece, por
sua ilimitada modéstia, querer apagar-se, apagar-se do presente e ir
para o seu tempo — para o passado, onde foi vigente sua mística
legitimidade. É um exemplo visível e concreto do que, outro dia, com
as inevitáveis abstrações do pensamento, eu de nia em geral — o
passado que está no presente na medida em que está ausente. E esse
fato o torna patente, neste caso único, tão evidentemente que, sem nos
darmos conta, foi a causa de que quase todo o mundo, pelo menos
quase todos nós, ao recebermos a notícia de que o rei da Inglaterra
estava doente, nos surpreendeu uma insólita pena, difícil de
diagnosticar, como que uma mistura de tristeza e ternura que é
distinta da natural e costumeira compaixão humana. Foi como se
alguém que já é tão absolutamente enfermo que já nem é mais,
sofresse, ainda por cima, uma enfermidade concreta.

Mas agora já estamos equipados para entender o que é a vida, a vida


inteira, a pessoal e a coletiva, quando chega o momento em que
aparece formalmente constituída como ilegitimidade.

A VII
As corridas de touros. — Revisão. —
Enriquecimento: absorto e aberto; a
magnitude escalar. — Parêntesis: a
tibetanização da Espanha no século xvii e
o m do século madrilenho.

D uas segundas-feiras atrás, ao terminar a aula — lembram, aquela


enormemente longa? —, meu amigo e xará, o toureiro Domingo
Ortega, que me dá a honra de assistir a este curso, se aproximou de
mim e disse: — Hoje a briga foi dura.

Tinha toda a razão. Fora duríssima para vocês e para mim. Logo
indicarei por que motivos teve de ser assim. Mas antes quero dizer que
me referi a Domingo Ortega, não só pelo seu nome, mas também
indicando sua pro ssão, porque alguns vermes jornalistas — que
fazem o cuco do relógio nas páginas de jornais e revistas, pondo logo o
bico para fora para cuspir alguma insolência irresponsável e gratuita,
que nesse caso ca impune, porque sabem que, nos jornais espanhóis,
não posso responder-lhes algo como, mais de uma vez e de supetão, z
em minha vida — alguns vermes jornalistas — digo — acreditaram
que podiam desacreditar estas aulas e denegrir este auditório
noti cando que a elas assistem toureiros. Mas que idéia têm do que é,
sobretudo, do que tem de ser a ciência, e especialmente as ciências
humanas, e que idéia têm do que é e foi o toureiro na Espanha esses
mentecaptos? O Instituto de Humanidades, se conseguir rmar sua
existência, se propõe uma reforma profunda das ciências que estudam
o humano, e essa reforma, que começa por seu próprio conteúdo
cientí co, continua como uma reforma do modo de viver a ciência, o
modo de ela existir no corpo social. Queremos que deixe de ser
propriedade exclusiva dos mandarins — dos acadêmicos, dos
professores universitários — que é, a propósito, o meu caso —, não
porque creiamos que estes não representam mais uma fértil e
importante função no trabalho intelectual, mas porque seus modos de
agir não bastam. É preciso, para que não periclite a nossa cultura
ocidental, até agora demasiado mandarinesca, que a ciência seja algo
muito mais vivaz, que esteja presente no corpo social penetrando-o
por inteiro, que todos convivam e colaborem em seu exercício, cada
qual — naturalmente — no grau e do modo que lhe corresponde. Por
isso seria ideal que o auditório destes cursos e dos colóquios que
praticamos em outro lugar20 fosse um re exo perfeito da sociedade
espanhola, desde o operário manual, que, infelizmente e para
vergonha dos demais, carece até de preparação secundária, até os
homens que sabem mais que nós, e ouvindo-nos possam nos corrigir e
completar. Convido os jovens a que prestem bem atenção neste
propósito, e em seguida julguem por si mesmos se não tem um grande
sentido e, portanto, se não devem fazer soprar, nas velas deste projeto,
o magní co vento alísio de sua mocidade.

Tal desígnio, é claro, traz consigo o inconveniente de que para alguns,


às vezes, a briga seja dura, como foi no outro dia, que eu os retive, aí
sentados, mais de uma hora e meia escutando, não mais um discurso,
uma peroração que possui sempre um dramatismo animado, mas uma
leitura, que é sempre desvaída e de infalíveis efeitos narcóticos. Falei
de coisas, umas difíceis de entender por serem demasiado losó cas, e
de uma loso a substancialmente nova, outras difíceis de entender
porque eram minúcias de técnica jurídica romana ou sutilezas
etimológicas que me levaram a pronunciar umas cinqüenta vezes certa
palavra feia com que se nomeia uma víscera, que não era nem “pérola”,
nem “cisne”, nem “ or”. Havia muitas razões, de índole diversa, que me
obrigavam a fazer assim, e eu aceitei sem pestanejar a obrigação que
levava, de cara, uma hora e meia, comigo ali, perdendo a graça. Mas é
preciso perder a graça quando o dever exige. Isso me permitiu expor
com su ciente rigor os fundamentos detalhados para uma doutrina
nova e importante, a qual parecerá mais ou menos decisiva aos
homens de ciência, mas será por eles levada muito a sério, comentada,
discutida e tratada, como o é, suponho, neste momento, pelos
lólogos, historiadores e juristas que me escutaram. Toda esta minha
petulância é para poder acrescentar que isso foi feito perante um
auditório no qual não faltavam toureiros, e que esses dois fatos — o
rigor da doutrina exposta e a presença dos toureiros — são
irrecusáveis, e quero ver como se viram com ambas as coisas juntas
aqueles vermes jornalistas. Os quais, não apenas não sabem o que é
um toureiro, mas nem sequer são capazes de senti-lo ou presenciá-lo
como o sentem e pressentem muitos espanhóis, ainda que, sobre esses
espanhóis, forçosamente e com pena — e até com uma pena
estritamente cientí ca — devo dizer que tampouco sabem o que é um
toureiro, pois saber, o que se chama propriamente de saber, o que é um
toureiro não se sabe na Espanha, e portanto no mundo, ninguém além
de mim. Vejam onde um homem é capaz de depositar seu orgulho! E
que eu o digo com toda a segurança ca provado pelo fato de que aqui
está sentado e me escutando o meu grande amigo José María Cossío,
egrégio escritor, homem de ciência, o maior conhecedor de todos os
documentos referentes à tauromaquia e, contudo, estou seguro de que
ele, mais do que ninguém e com mais fundamento do que ninguém,
está disposto a reconhecer que, se há alguém no mundo que sabe de
verdade o que é o toureiro — essa bicentenária realidade histórica
espanhola —, esse alguém sou eu. Para con rmar isso, basta que vocês
leiam certas frases, excessivamente modestas, no prólogo de Cossío à
sua monumental obra sobre Los Toros, de cuja idéia inicial me gabo de
ter sido o progenitor. Não tem nada que ver com isso a tão espalhada
lenda de que sou muito a cionado pelas corridas de touros, porque
isso não é bem verdade. Se por a cionado se entende o que, com frase
tão saborosamente íntima, nossa, digo, de nossa espanhola intimidade,
dizemos “ir a los toros”, a verdade é que, desde mais de quarenta anos,
eu mal assisti a corridas de touros. Mas, se não assisti às corridas de
touros, z o que era meu dever intelectual espanhol, e que os outros
não cumpriram: pensei a sério sobre elas, coisa que ninguém havia
feito antes. E notem que esse descuido ou desatenção é muito má.
Porque, opine-se o que se queira sobre aquele espetáculo, é um fato de
evidência arrasadora que, durante gerações e gerações, essa festa foi,
talvez, a coisa que fez mais felizes o maior número de espanhóis, que
nutriu jovial e apaixonadamente suas conversas em rodas e tertúlias,
que engendrou um movimento econômico que, há uns anos — hoje
não tenho dados precisos na cabeça — eu calculava, em moeda
daquele tempo, em uns cento e vinte milhões, que inspirou a arte
pictórica de Goya — ninguém menos —, a poesia, a música e,
contudo, nenhum espanhol havia se dignado a pensar a sério sobre ela,
nenhum se havia feito questão dela — e essa é a missão do intelectual,
fazer questão do que por si não parece questão, mas a coisa mais
natural do mundo —, ninguém havia se perguntado o que é, em sua
substancial realidade, essa coisa de corrida de touros, por que existem
na Espanha corridas de touros em vez não existir, quando começa esse
estranho fato — pois nem sequer isso alguém havia se perguntado —,
e por que começam a existir precisamente nessa época que, segundo os
meus cálculos, mais complicados do que se pode presumir, foi em
torno de 1728. Um comportamento assim — e vocês julguem se é ou
não adequado — eu chamo de duas coisas: impiedade e estupidez —
falta de gratidão e falta de autêntico apetite cientí co. Com efeito, as
corridas de touros não apenas são uma realidade de primeira ordem
na história espanhola desde 1740 — sobre a qual os ministros de
Fernando , por exemplo Campillo, governante admirável, já redigem
ditames, preocupados porque os homens do pueblo, em Saragoça,
penhoram a camisa para poder ir à tourada — não apenas, digo, é uma
realidade espanhola de primeira ordem, mas, quando se lhe presta
atenção e se faz agir sobre ela a razão histórica, leva, como levou a
mim, a descobrir um fato, até agora secreto, de importância tal que
sem tê-lo presente com toda a clareza — eu o sustento da maneira
mais expressa e formal — não se pode fazer a história da Espanha
desde 1650 até os nossos dias. Aqui podem ver como, para saber o que
é um toureiro, é preciso saber muitas coisas e, vice-versa, só quem sabe
o que é um toureiro sabe alguns segredos fundamentais da nossa
história moderna. Aquele fato que não vou nem sequer enunciar,
porque tocá-lo só nos consumiria mais tempo, começa a acontecer de
modo claro no m do século , reinando Carlos  el Hechizado, e
seu efeito é nada menos que mudar profundamente, mais que isso,
inverter a estrutura social da Espanha, inversão que durou mais de
dois séculos, dando ao corpo coletivo espanhol caracteres opostos aos
que tiveram as demais nações européias, ao menos as que estão do
outro lado dos Pirineus. Mas, para descobrir algo tão importante, é
preciso dedicar-se a construir, com um rigoroso método histórico, a
história das corridas de touros. E então nos deparamos com outro
ganho, estritamente cientí co, a saber: que a história das corridas de
touros, uma vez construída, torna-se um paradigma cientí co ideal,
por sua simplicidade e transparência, aplicável à evolução de qualquer
outra arte — arquitetura, pintura ou poesia.

E essas duas coisas — que a história das corridas de touros leva a


descobrir um fato de primeira ordem, até agora secreto, da história da
Espanha, e que a história das corridas é um paradigma cientí co para
a evolução histórica de todas as artes — estou disposto a demonstrá-
las, se me desa arem a fazê-lo, sempre que o desa o não coincida,
como ocorreria agora, com uma sobrecarga de trabalho ou com
épocas, infelizmente freqüentes, de contratempo em minha saúde
desconjuntada.

Sendo assim estas coisas, pensem, senhores, se pode parecer lícito


que alguns tolos inconscientes se creiam capazes de insultar este
auditório e, por tabela, a mim, dizendo que dele fazem parte os
toureiros.
A causa de tudo isso, senhores, é o triste provincianismo em que
recaiu boa parte da vida intelectual espanhola. Com ele reapareceu
todo seu conhecido repertório: a explosão das invejas, o pueril desferir
de insolências e a vã agitação nas cabeças ocas. Na “província” perdura
ainda o temor das aparições, dos que se acreditava já terem morrido,
dos que se pensava já terem ido embora, e não deve surpreender que
algumas pessoas quem irritadas com aquele que ressuscita. Por isso,
senhores, ajudemo-nos, a m de que, todos juntos, com os jovens
sobretudo, consigamos o quanto antes possível desalojar esse
provincianismo da vida intelectual espanhola, porque o
provincianismo, que na província é graça e perfeição, fora dela é um
número de circo.

Depois dessa escaramuça com os vermes — à qual seguirão quantas


mais forem necessárias, ainda que seja bastante vergonhoso ter, em
meu país, a essa altura de minha vida, de me meter em semelhantes
con itos —, regressemos tranqüilamente à nossa tarefa principal, e
digo principal porque o supradito é também, ao seu modo,
marginalmente labor obrigatório.

Não me foi possível, no outro dia, mesmo distendendo tanto o tempo


programado para a aula, apresentar por inteiro, junto e de uma só vez
o desenvolvimento do pensamento que iniciei nela. É uma pena,
porque isso teria dado a vocês uma plenitude de evidência, e teriam
visto com toda a clareza o sentido de cada uma das coisas ditas.
Tentemos hoje, na medida do possível, remediar isso que no outro dia
não nos foi possível fazer.

Mas antes quero revisar algumas coisas, umas pequenas, outras


maiores, que no outro dia esqueci de enunciar, ou tive de lançar ao
mar, pois, para mim, cada uma destas aulas, em que necessitaria dizer
tanta coisa, é uma desesperada manobra na tempestade dos minutos, e
como que um constante naufrágio no tempo. Acreditem que isso,
sobretudo no presente curso, chegou a constituir para mim um
verdadeiro tormento.
Assim, se era só para apontar, teria preferido nem apresentar, na aula
anterior, a expulsão de seus reis etruscos pelos romanos como sendo
devida exclusivamente ao ódio que suscitaram, conjuntamente, sua
tirania e sua estraneidade, sem ter podido mostrar, mesmo que
brevemente, outras causas gerais e comuns a todos os povos
mediterrâneos da época que contribuíram para isso, especialmente o
movimento das cidades gregas. Mas, para os efeitos esquemáticos que
pretendíamos, o mais signi cativo e importante era, de fato, aquele
ódio duplo, dado elementar de todos conhecido. Do mesmo modo
simpli quei o processo no estágio que corresponde ao trânsito da
monarquia para a república. É o mais provável, e isso já não é nem de
longe elementar, que entre a expulsão dos reis e a plena e formal
constituição da nova forma de governo se zesse toda uma série de
tentativas, com magistraturas de ocasião, uma delas talvez a que os
romanos, de nida com certos requisitos, chamariam de “ditadura”.
Outra, como indiquei nos dias passados, seriam os pretores —
praetores.

Recordemos, da aula passada, que o Estado e seu chefe passam em


Roma por três etapas distintas: na primeira, o Estado, isto é, o
exercício do poder coletivo público com anuência da sociedade, não
existe ainda de modo permanente, mas apenas com intermitências, nas
horas de di culdade e perigo, em que surge espontaneamente um
chefe ou caudilho, que desaparece tão logo termine a façanha: é o
imperator ou empreendedor ocasional. Esse chefe não o é por direito
algum, porque não há direitos; não o é por nenhum título legítimo,
porque não há legitimidade. Chefe do Estado, pois, qualquer um pode
sê-lo então. Isto eu pedi que retivessem, com vistas ao que vão ver no
m da aula de hoje.

Na segunda etapa, a função estatal se torna estável, e por isso já se


pode falar em Estado e ele merece ser chamado assim. Seu chefe é o rei
ou rex, o qual o é porque lhe foi outorgada a graça mágica de tornar os
ritos e cazes, sem os quais o povo não pode viver, porque eles, os ritos,
desviam a ira dos deuses e asseguram o seu favor. E os deuses, todos os
deuses, incluso o Deus do cristianismo, têm sempre dois aspectos: um
é terrível, por seu poder e sua ira, no sentido estrito da palavra é
tremendo, é o mysterium tremendum; outro, inversamente, é
in nitamente sedutor, benévolo, encantador, fascinante; é o mysterium
fascinans. De sorte que pertence à idéia mesma de divindade, do Deus,
o caráter dual de ser hostil e favorável, adverso e pro-verso. Com seu
modo enérgico e retorcido de dizer, Santo Agostinho clama a Deus, ao
sentir-se em sua presença: Et inhorresco et inardesco. “Tu me espantas
e me exaltas; me horrorizas e me encantas”.

O povo romano acreditava, com crença total comum, isto é, coletiva,


numa imagem do mundo e da vida segundo a qual no sangue de certas
famílias reside e se perpetua a graça mágica, essa graça mágica que
tornava os ritos e cazes, e por isso o rei, que é antes de mais nada
sacerdote, rex sacrorum, reitor dos sacrifícios, é o chefe do Estado com
um preciso direito e título legítimo. Esse título legítimo provém da
graça de Deus; é o rei pela graça de Deus. Essa legitimidade primeva é
a única pura, compacta, saturada e exemplar. Ancorado nela, o rei
exerce o imperium, tendo sempre ao seu lado, como parte integrante,
o Senado, a assembléia consultiva formada pelos antigos reges das
tribos, ou seja, pelos chefes das gentes, patres, ou parentelas ou clãs
mais antigos, respeitados e poderosos.

Na terceira etapa, graças a muito concretas e casuais circunstâncias,


não resta aos romanos senão suprimir a monarquia, mas nem por isso
suprimem essa primária e mais pura legitimidade. Antes o contrário,
procuram conservar dela tudo o que podem. A autoridade real
sobrevive na auctoritas patrum, na autoridade do Senado, que
continua sendo o autêntico Estado romano. Mas os tempos criaram
uma nova Roma ao lado dessa tradicional do Senado, o qual, no mais,
sobrevive com um vigor maior que nunca durante os primeiros
séculos da República.

Aquela vetusta Roma era composta por homens que, real ou


cticiamente, provinham de um progenitor que era justamente o chefe
daquelas gentes. Eram grupos consangüíneos, eram a Roma que vinha
de um imemorial e como que divino passado. A nova Roma é outra
coisa muito distinta; a maior parte de seus cidadãos são homens
novos; não têm conexão alguma nem consangüinidade com nenhuma
dessas gentes ou velhas famílias, mas simplesmente estão ali, cada um
por si. Ouçamos Fustel de Coulanges: “Roma” — refere-se a essa nova
— “era a reunião de duzentas ou trezentas famílias, ao redor de cada
uma das quais se agrupavam milhares de homens”. E se acaso algum
de vocês procura esse trecho de Fustel advirto que não está em La cité
antique, mas em sua Histoire des instituitions politiques de l’ancienne
France, primeiro tomo, único publicado, creio, sobre Les origines du
systeme féodal, página 2. É também um livro clássico. Notem, de
passagem, que com desesperadora monotonia, mais de uma vez na
história, se falou a favor ou contra as “duzentas famílias”.

As velhas famílias continuavam sendo o autêntico Estado, e por isso


esses homens se agrupam ao seu redor, buscando amparo social e
legal; são as “clientelas”. O cliente deve ao seu patrono ou patrão o
dever de obsequium, que quer dizer acompanhá-lo pela rua, segui-lo
aonde quer que vá, ser seu sequaz e auxiliar naquilo que ele precisar;
ou seja, obsequium não signi ca senão seguimento. E aqui reaparece
uma vez mais aquele sentido que encontrávamos na idéia romana de
societas através de socius, como socius vindo de sequens, o seguidor
ou sequaz. No francês se conserva ainda um pouco do sentido latino,
pois obsèques é reunir-se em torno do defunto, segui-lo até o
cemitério — o que nós dizemos “exéquias”.

Os maus usos da vida intelectual espanhola me obrigam à deselegante


observação de que tanto essa conexão de obsequium com societas,
como esse sentido de societas e, paralelamente, toda a história
esquemática da evolução das instituições públicas de Roma feita nas
aulas anteriores, salvo os fatos super ciais, são completamente novos
na ciência histórica. E isso merece ser destacado para que sirva de
estímulo aos estudiosos, ao verem como, mesmo a respeito de um dos
temas mais trabalhados que existem em história — a evolução do
Estado romano —, cabem interpretações totalmente novas e
luminosas. E, para compensá-los por tão horripilante deselegância,
vou contar-lhes um conto de toureiros, já que a tarde está de toureiros,
no qual aparece graciosamente apontado o contraste entre o que para
os latinos signi cava “obséquio”, uma das coisas mais importantes na
história de Roma e, portanto, na história do mundo, e o que para nós
signi ca. Ela se passa em Sevilha, onde vive um toureiro apelidado
“Lentejica”, tão ruim que não consegue nenhum contrato e,
conseqüentemente, passa a mais dura fome. Um dia, uns rapazes
sevilhanos, compadecidos dele, querem convidá-lo para comer, para
que, ao menos uma vez, o homem o faça à vontade e se farte sem
limite. De fato, ele o faz tão bem que sofre uma indigestão e morre.
Uma vez enterrado, alguém pôs na lápide de sua tumba esta inscrição:
“Aqui jaz ‘Lentejica’. Morreu de um obséquio”.21

Esse obséquio é muito distinto do obsequium ou seguimento que, ao


agrupar milhares de clientes em torno de umas poucas pessoas, faziam
deles os verdadeiros exércitos civis permanentes dentro de Roma.
Porque a Roma republicana jamais foi, como as nossas nações desde
mais de dois séculos, uma massa homogênea de indivíduos em relação
igualmente direta com o Estado, pois esses milhares de homens em
Roma estavam corporizados espontânea e quase extra-juridicamente
nesses grupos de clientela, formando algo como múltiplas cidades
heterogêneas dentro da cidade, em contenda e tensão perpétua entre
si.

A unidade da vida romana, que foi a mais sólida conhecida, não foi
uma unidade regalada, inercial, mas unidade obtida, conquistada
precisamente pelo entrechoque do formidável dinamismo e ânimo
pendenciador desses grupos sociais; foi unidade de equilíbrio de
forças; portanto, de compromisso. É claro que o que dava mais solidez
a essa unidade dos disputantes era o consensus, aquela crença total
comum em certa concepção da vida e do mundo e, ademais, a
resolução em todos de que, fosse lá o que acontecesse, em suas
contendas e discussões, Roma sempre se mantivesse, sempre triunfasse
e sempre eles continuassem sendo romanos. Se não se leva em conta
esses pressupostos, aparentemente contraditórios, não se pode
entender bem a história romana.
Em Roma, sobretudo originariamente, tudo tem sabor e cheiro de
peleja e de pendência. A vida é luta. Lembrem-se de que as
testemunhas perante o juiz de um processo signi cavam
primariamente os que acompanhavam o querelante para dar-lhe apoio,
e como em Roma nada é de brincadeira, visto que os latinos careciam
de humorismo, apoiar queria dizer, ao menos primitivamente, andar
aos socos com as testemunhas do outro querelante. Representavam,
pois, entre os dois litigantes, uma terceira força, os terceiros na
discórdia. E esse signi cado, mais ou menos bronco, perdura nas
palavras do nosso próprio idioma, como, por exemplo, “contestar”, que
para eles signi cava contrapor frente a frente os dois grupos de
testemunhas, e é mais claro ainda o sentido violento na palavra
“detestar”, que signi ca simplesmente expulsar uma das testemunhas,
o que não é verossímil que se zesse, a princípio, com meros afagos.

Essa nova Roma da plebe multitudinária, que já não é a velha Roma


sacra do Senado, correspondia às novas necessidades que impunha a
evolução coletiva, pelo crescimento da população, as conquistas de seu
exército, o aumento de trá co agrícola, comercial e industrial. Nesse
primeiro enriquecimento, e eu digo primeiro porque outros vão segui-
lo, que não deve ser entendido apenas economicamente, mas referido
à vida total, portanto, a tudo que os homens podem fazer e ter,
encontramos a força que vai transformar Roma. Chamo, pois,
formalmente de riqueza ou enriquecimento ao fato de que o homem
tenha possibilidades de vida superabundantes em comparação com as
que tinha antes, e dou-lhe esse nome, do qual talvez um dia eu conte a
história, já que tem um complicado mas enormemente sugestivo
desenvolvimento etimológico e lingüístico, que se pode resumir,
de nitivamente, em que o sentido próprio e primário de “riqueza” não
se refere ao econômico, mas precisamente à riqueza da vida total. O
sentido econômico é secundário e derivado. Que o saibam os amáveis
economistas que estão me escutando.

Por esse enriquecimento do presente, este começa a se formar como


algo novo, frente e contra o passado tradicional. Dá-se um
engrossamento ou enriquecimento de possibilidades de vida, de
modos de se conduzir e de coisas que se pode ter, que, naturalmente,
afasta, como algo enormemente inferior, todo o repertório vital do
passado. Frente ao passado, esse enriquecimento, essa forma de vida
mais abundante tem a enorme vantagem de carecer de consagração.
São idéias, coisas, condutas, usos que foram surgindo, hoje um,
amanhã outro, mas que são meros, simples e crus fatos; mas são, ao
mesmo tempo, diríamos, material e tecnicamente mais variados,
abundantes, satisfatórios e e cazes que os antigos. Constituem, pois,
um programa de existência enormemente mais nutrido que o anterior.
Assim como vocês, se não hoje, poucos anos trás, podiam ter e fazer
inumeráveis mais coisas que podiam ter e fazer os madrilenhos do
tempo da minha adolescência.

São, em suma, novos modos de vida que se diferenciam e em parte se


opõem aos velhos e tradicionais. Os romanos se dão perfeita conta
disso. Quero dizer, percebem que entraram num modo de existência,
numa forma de existência que é de novos modos, portanto, mod-erna.
Por um acaso que talvez tenha explicação, e que os latinistas deveriam
indagar, os latinos não nomearam a coisa com este adjetivo desde logo.
Porque modernus não aparece, que eu saiba, até a baixa latinidade, no
último escritor propriamente latino, que foi Cassiodoro. Mas o que
parece indubitável é que chega, a todo povo, um momento em que
descobre a modernidade invasora de sua vida frente à tradicionalidade
legítima da antiga. Toda modernidade é já um começo de
ilegitimidade e de desconsagração. Porque, como eu disse, é um mero
engrossamento do presente que, ao se tornar mais nutrido, deixa o
passado pequeno, o comprime, ameaça expulsá-lo, incluso o caso dos
romanos, que foram um povo extremamente conservador.

Essa idéia de que a modernidade seja, por si, uma germinante


ilegitimidade e desconsagração pode não agradar a muitos, mas não
estamos aqui para expor impertinentemente os nossos gostos pessoais,
mas sim para tentar averiguar o que são — gostemos ou não — as
coisas. Parece mentira, senhores, que os historiadores, e não me re ro
aos espanhóis, mas aos estrangeiros, nunca tenham notado os efeitos
profundos que isso que chamei de enriquecimento produz na vida
humana e, portanto, na realidade histórica, e se contentaram, não
podendo fazer menos, com anotar seus efeitos super ciais. Mas este
tema é de grande porte e apaixonante em grau máximo, do qual
preciso fugir o mais rápido possível, porque senão vamos viver
mergulhados nele até o m de março, pelo menos.

O caso é que enriquecimento signi ca modernidade, e que


modernidade é germinante ilegitimidade, vida sem sacramentos
rmes. Mas se modernidade signi ca a vida sem sacramento, tem
evidentemente outras vantagens sobre a legítima, posto que triunfa de
maneira inexorável e muito rapidamente sobre a legítima
tradicionalidade. Essas vantagens da modernidade, por sua vez, são
limitadas por novas desvantagens. De tudo o que é humano pode-se
dizer que seja, ao mesmo tempo, natal, porque algo nasce e se cria, e
mortal ou fatal, porque traz dentro de si seu congênito veneno, e a
causa de sua própria exterminação. Se alguém não quer aceitar
tranqüilamente esse destino inelutável, que tente ser um mineral, ou,
se puder, um anjo. A desvantagem, o morbo que o enriquecimento da
vida integral de um povo traz consigo é uma e a mesma coisa que as
causas que a originaram, que originaram a modernidade. A vida de
um povo se amplia, complica e enriquece ao mesmo tempo que vai
entrando em contato com cada vez mais povos distintos dele, com
outros modos de existência divergentes do seu. Dá-se conta, de forma
intensiva, de que há, de fato, outros modos de ser homem distintos do
único que ele praticava e conhecia, o seu, o tradicional, o imemorial.
Todo homem, como todo povo, começa acreditando ingenuamente em
seu isolamento primitivo — que não precisa ser total; basta que seja
normal —, começa acreditando que ele é a humanidade, portanto, que
ele é o humano. Por isso esse instante crítico, pelo qual toda vida
individual atravessa, em que o “eu” que cada um é descobre de repente
o “tu”; isto é, alguém que acreditávamos ser idêntico em tudo ao “eu”
que nós somos, e que, de repente, se revela como uma humanidade,
como um modo humano completamente distinto do nosso; alguém
que tem a audácia de não ser “eu”, e que se empenha em ser “ele”: este é
o “tu”. Isso nos causa uma profunda ferida, e por conta da abertura que
essa ferida deixa em nós camos expostos para sempre à in nita
diversidade do humano, que D’Annunzio louvava: Laudata sii,
Diversità delle creature, sirena del mondo.22

Mas agora não se trata de vagas questões poéticas, mas de um


conceito rigoroso no sistema do pensamento histórico. A vida de um
povo em cada uma de suas etapas pode caracterizar-se por uma destas
duas atitudes: uma, estar aberto a outros modos distintos de ser
homem diferentes do seu; outra, não direi estar fechado, porque seria
impróprio, mas estar submerso em seu próprio modo de ser, atento
somente a ele; em suma, absorto em si mesmo. Isso nos proporciona
uma categoria histórica dual, cujos dois conceitos se contrapõem: o de
aberto e o de absorto. Por razões difíceis, e por isso inoportunas agora,
toda categoria ou conceito sobre a realidade humana tem de ser uma
magnitude escalar. Não se assustem; eu jamais digo algo que não possa
ser entendido. De outro modo eu estaria em falta com o projeto que
enunciei no início. A coisa é bastante simples, e até banal.

Quero dizer que a realidade a que esse conceito se refere, sem deixar
de ser efetivamente essa realidade que é, tem, algumas vezes, maior ou
menor plenitude em si mesma. Isso explica por que, ao vermos as
coisas que cada época disse de si mesma, camos surpresos com o fato
de que muitas delas são sempre as mesmas. Por exemplo,
provavelmente não houve uma só geração humana, desde que existem
civilizações e que se inventou o dinheiro, em que seus indivíduos
longevos não tenham vivido a experiência de que, durante o seu
tempo, portanto, no espaço de cinqüenta a sessenta anos de sua vida,
“o dinheiro havia mudado de mão”. É provável que toda vez que se
disse isso era verdade; mas era, em cada uma, com uma intensidade ou
saturação diferente, e em algumas aconteceu em doses máximas, e
então aquelas palavras, “o dinheiro mudou de mão”, adquirem um
sentindo pleno, exemplar, saturado e prototípico. Devemos aplicar isso
a todos os conceitos gerais da história, e isso nos permite fazer, na
história de cada povo, uma escala do fenômeno “o dinheiro mudar de
mão”. E o mesmo poderíamos fazer com qualquer outra ordem da
realidade histórica: uma escala em que, a cada época, corresponde um
coe ciente maior ou menor.
Assim, em sua categoria dual, absorto e aberto, têm sentido pleno,
mas têm outros sentidos mais fracos e debilitados. Um exemplo
esclarecerá tudo: Até a primeira guerra púnica, que termina em 241
antes de Jesus Cristo, Roma vive completamente absorta em si mesma,
submersa em suas tradições, em seus usos imemoriais e, portanto, com
uma fé intacta e maciça em sua concepção de todas as coisas do
mundo. Nesse primeiro caso temos um exemplo de como é o “absorto”
em seu sentido máximo. Depois da primeira guerra púnica Roma se
abre para o estrangeiro, divergente e outro em relação a ela, mas essa
abertura foi inicialmente muito módica e muito relativa. Só durante a
segunda guerra púnica, que termina em 202 antes de Cristo, e,
sobretudo, quando poucos anos depois os romanos se decidiram a
declarar guerra a Perseu, rei da Macedônia, o que traz consigo a
conquista da Grécia, empapada de antiga e re nadíssima cultura, é
quando Roma se abre de um modo pleno ao estrangeiro e diverso. O
general que venceu Perseu foi Paulo Emílio, pai de Cipião Emiliano,
que era então um adolescente, pois tinha uns dezoito anos. Não
obstante, seu pai fez com que assistisse aos combates e ali travou
amizade imarcescível com o grande historiador Políbio, que o descreve
tão minuciosamente em seu livro.

Mesmo à custa de abrir aqui um parêntese, convém notar —


conseqüência do que eu disse por último — que um povo não só está
absorto nos primeiros tempos de sua história, quando vive ou vegeta
praticamente num isolamento quase radical, mas que pode tornar a
estar novamente ao longo de sua história, embora num sentido mais
limitado e reduzido. Por exemplo, a Espanha, que no século  estava
aberta a todos os ventos e até corporalmente se encontrava em todo o
planeta, por quase todo o mundo, na primeira metade do século 
começa a se ensimesmar, de modo muito estranho, durante o reinado
de Felipe . Esse fato é, em parte, perfeitamente normal, porque,
ainda que os historiadores não o tenham notado, todas as nações da
Europa, por razões constitutivas e siológicas na evolução de um povo,
fazem então uma coisa parecida. Mas o fenômeno, com relação à
Espanha, foi muito mais surpreendente, porque ela estava em todo o
mundo, e continua estando o cialmente, no imenso orbe de seu
império, e então esse fenômeno consistiu numa repentina e estranha
retirada ou retração, desde a imensa periferia imperial ao centro do
mundo espanhol, à recente Corte de Espanha, a Madri.

Eu não posso agora enunciar a vocês rapidamente as causas de tão


estranho fenômeno, além dessas gerais que tornam de algum modo
normal a parte normal que tudo tem. Não posso sequer descrever com
alguns traços o aspecto que esse fenômeno teve. A única coisa que
posso recordar são as palavras de Felipe  aos corregedores de Madri,
dizendo: “Expulsai sob golpes os nobres da Corte, para obrigá-los a
assistirem o exército de Extremoz”. Isto é, o exército que estava na
fronteira de Portugal, que naqueles dias estava perdendo para a Coroa
de Castela. É claro que Felipe  era o primeiro a viver absorto dentro
de sua Madri, tanto quanto seus nobres. Nem é preciso dizer que essa
deserção não provinha de nenhuma míngua na coragem dos nobres,
porque esses mesmos nobres que eludiam assistir o exército de
Extremoz naqueles dias estavam, entre si, trocando estocadas pelo
sorriso vagabundo de uma comediante. Outra cegueira dos
historiadores — e agora são os espanhóis mesmo — é não ter
percebido a importância enorme que teve, em dois momentos da
história da Espanha, o garbo de nossas comediantes.

Então se produz um fato decisivo, distinto daquele a que aludi


quando falava das corridas de touros, mas que está conectado com ele;
dá-se o fato que será decisivo para a história da Espanha e que chega
até nossos dias. É que a Espanha não se contenta com car absorta em
si mesma do modo parecido como, naquele tempo, faziam as demais
nações, pois trata-se de algo natural, siológico, que se produz em
certa idade de todo povo, mas a absorção foi tão exagerada que se
tornou hermetização; a Espanha se tornou, pela primeira vez,
hermética para o resto do mundo, incluso o seu próprio mundo
hispânico. É o que eu chamo de “tibetanização” da Espanha, que
acontece então; conceito que deve ser entendido também como
magnitude escalar: o sentido pleno desse termo só se dá no Tibet, mas
o caso é que, dentro do Ocidente, nenhum outro povo demonstrou,
como o espanhol, essa tendência para se retrair e se absorver dentro de
si mesmo, na qual, de um jeito ou de outro, sempre recai.

Vejamos outro exemplo que servirá para esgotar esses brevíssimos


minutos que nos restam, em que a absorção está muito mais próxima
de nós, mas em menor intensidade. (Não pretendia dizê-lo, mas vejo
que, para continuar a parte principal da conferência, falta-me tempo.)
É a absorção que a Espanha sofria nos tempos da nossa adolescência, e
me re ro à dos velhos que estamos aqui, porque eu não sou o único.
Pois bem, nessa Espanha de 1880–1895, nada do resto do mundo
interessava a Madri. Vivia apenas atenta a si mesma. Nem sequer
sicamente o bom madrilenho ia para além das Ventas, Carabanchel
ou da Puerta de Hierro. Eu poderia dar dados verdadeiramente
curiosos sobre isso. Madri estava absorta em si mesma, vivia de sua
própria substância; nutria-se de sua própria existência, gozava de si
mesma e, é preciso dizer, lambia-se a si mesma. É a Madri absorta,
maravilhosamente conservada nessa obra — por outro lado, admirável
conquista estética — que se chama La verbena de la Paloma.23
Compreendam que, se alguém se pergunta como é possível que tenha
sido produzida uma obra assim, é preciso supor uma cidade que está
exclusivamente atenta à vulgaridade cotidiana de sua existência e,
portanto, nada do que acontece nela e que a afeta passa despercebido, e
que, por isso, não se contenta com que essa realidade seja a realidade
que é, mas a heroiciza, magni ca, idealiza, ou seja, converte-a num
mito e numa lenda. Por isso aquela Madri da minha adolescência, e da
de alguns outros que vejo aqui, que era mísera e pobre em comparação
com o que veio depois, era em outro sentido deliciosa, porque estava
cheia de guras fantasmagóricas, legendárias, mitológicas, que
andavam pelas ruas. Se eu pronunciar agora o nome do doutor
Garrido, um popularíssimo boticário que contribuiu, junto com a
gura de outro boticário de bairro, na criação da personagem de La
verbena de la Paloma, que tenta se distrair com umas mulheres do
povo — e notem o fato de uma cidade ser capaz de transformar em
personagem mitológico um pobre boticário de bairro; isso exige
explicação —; se eu pronunciar agora o nome do doutor Garrido e do
cachorro Paco, que todos os madrilenhos conheciam, sem dono,
errante pelas ruas, que possuía o dom estranhíssimo de averiguar em
que restaurante de Madri, a cada dia, se dava um banquete, e ia em sua
direção certeiro e pontual, compreenderão que Madri estava cheia de
mitos e lendas. Ou seja, aquela Madri absorta, porque era absorta,
tinha alma coletiva. Só quando um país ou uma cidade estão absortos
em si mesmos têm alma, entenda-se, coletiva. A Madri posterior, ao
contrário, in nitamente mais rica e mais variada, é uma Madri mais
ou menos desalmada, incapaz de criar mitos e lendas. Aquela Madri
não podia permitir que ninguém fosse apenas realidade, mas que fosse
sempre, ademais, mito, lenda, fábula e quimera.

Isso, senhores, creio que nos permite ver com certa evidência o que
signi ca essa contraposição de conceitos que eu considero
importantíssima na história: a vida como vida absorta em si mesma, e
a vida como vida aberta ao diferente. Pode parecer que perdemos
tempo com esses exemplos, mas a verdade é que ganhamos, porque no
próximo dia vamos economizar muitas palavras quando eu for expor a
vocês toda a última etapa da evolução do Estado romano, que avança,
em súbito enriquecimento, para uma ampliação, modernização e
ilegitimação da vida coletiva.

A VIII
A riqueza e a origem da razão. —
Modernidade e ilegitimidade. — Os
exemplos espanhóis. — A transição de
Roma: da vida absorta para a vida aberta.
— (O direito; o intelectual; o profeta
Amós). — A “intoxicação” pela vitória, o
estoicismo e o deus Sol. — As guerras
civis. — O Estado imperial. — O
primeiro remédio para a “ilegitimidade”.

S enhores, no outro dia eu quei com meia aula entalada, o que, para
um professor, e em geral para um orador, é um estado bastante
grave, algo como, numa imagem barroca, car grávido pela metade
por não ter conseguido parir mais que metade da criança. Foi algo
lamentável, porque impediu que vocês contemplassem, num só golpe
de vista, desde o princípio até o m, a evolução do poder estatal, do
poder supremo em Roma, e essa contemplação era imprescindível,
pois apenas chegando assim ao surpreendente m se preenche de
sentido, de forma súbita, tudo o que viera antes.

À parte a querela com certos comportamentos jornalísticos e o toque


de clarim, que era muito mais contra o provincianismo reinante em
boa parte da vida intelectual espanhola, necessitávamos elaborar certas
categorias históricas sem as quais não se pode entender o advento do
Império Romano, por um lado, e os tempos que estamos vivendo, por
outro. Obtivemos, creio, um esclarecimento, numa primeira
abordagem, de uma série ou um tríptico de conceitos: enriquecimento;
modernidade; ilegitimidade germinante. De ni formalmente o
enriquecimento ou riqueza como aquela situação característica em que
o homem se encontra diante de possibilidades superabundantes de
viver, excessivas em comparação com as que tinha antes. Desenvolvi
pouco o conteúdo embutido nessa de nição; limitei-me a observar
que o enriquecimento, a riqueza, não se refere aqui exclusivamente,
nem mesmo principalmente, à dimensão econômica, mas,
retrocedendo para o signi cado mais antigo da palavra, o qual foi
descoberto primeiro pelo gigante Leibniz, apesar de que em seu tempo
quase ninguém se dedicava a semântica e a etimologias; a palavra
riqueza, quero dizer, refere-se à abundância de possibilidades em todas
as esferas da vida. Inclui, e muito principalmente, a radical mudança
que representa para um homem passar de não conhecer outro modo
de pensar além do seu tradicional, portanto, de estar ligado a ele
ingenuamente, com fé inquestionável, a descobrir e ter presentes
outros vários e muito distintos, perante os quais está como que perante
um teclado de possibilidades, de possíveis modos de pensar ou de
idéias entre as quais pode e tem de escolher por si mesmo. Enquanto,
na vida em regime de tradicionalidade, o homem não escolhe por si
mesmo seu modo de pensar e de agir, pois o recebe automaticamente
do passado e vive levado por uma vis a tergo, quando sua vida se
enriquece se vê obrigado a escolher, por seu próprio e individual
critério, qual dessas possibilidades vai adotar e tornar sua.

Eis aí, sucintamente enunciada, a origem disso que se chama


vagamente “razão” e “racionalismo”. A razão nasce quando o homem
se vê obrigado a escolher por sua própria e pessoal conta e risco entre
essas múltiplas possibilidades de modos de pensar, de fazer, de ser, a
m de tornar sua uma delas, e nela vai fazer embarcar, momentânea
ou continuamente, a sua vida. Na crença, o homem não escolhe seu
modo de crer nem de pensar, mas, ao contrário, está desde logo
submerso em sua fé, sem que saiba por onde entrou nela, nem que lhe
ocorra querer sair dela. Sua crença nem sequer lhe parece uma crença,
mas parece a ele a própria realidade. Por isso a fé é tão rme, é o
rmamento. A razão, por sua vez, é um constitutivo titubeio, vacilação,
dúvida perante esse teclado de múltiplas possibilidades de
pensamento, e por isso é inquestionavelmente menos rme que a fé.
Mas, não obstante — atenção — isso não quer dizer que não possua
suas vantagens peculiares, e sobretudo que, vantajosa ou não,
afortunada ou infeliz, não possa constituir — não estou a rmando
nada — o destino inevitável do homem. Quero dizer que talvez o
homem esteja condenado à razão; portanto, a uma tarefa sempre
incompleta, sempre in rme, sempre carente de ser recomeçada, como
Sísifo tinha sempre de tornar a subir ao cume da montanha com a
grande pedra que tornava a rolar para o vale. E convém observar,
como Nietzsche já destacou, que Sísifo é a palavra grega mais arcaica
que signi ca o autêntico sábio, diríamos, o genuíno intelectual. De
fato, Sísifo é sí-sifos, é só-sofos, portanto, é quase “ ló-sofos”.

E aqui temos como, sem grandes voltas, esclarecemos um pouco pela


primeira vez, e certamente só um pouco, mas ao menos um pouco,
nada menos que a origem histórica da razão humana, a qual consiste
no fato de o homem, queira ou não, encontrar-se em certa época da
história desintegrado ou desarticulado da ciência total comum
reinante em seu povo, e obrigado a escolher seu próprio pensamento, a
pensar por si mesmo, por sua pessoal conta e risco, e para escolhê-lo
não lhe resta opção além de se decidir, e para se decidir precisa ter
motivos para decidir, e esses motivos são o que costumamos chamar
de razões.

A desvantagem, o morbo que o enriquecimento traz dentro de si é —


como eu já disse — uma e mesma coisa que as causas que o
originaram. Quando um povo amplia sua vida, é obrigado a se pôr em
contato com outros. Vê à sua frente modos distintos do seu, e isso o
obriga a uma mudança completa de atitude.

Até a segunda guerra púnica vemos como Roma estava presa ao seu
modo tradicional de pensar e de ser, e como, durante essa guerra, ela
começa a mudar. E esse encontro com outros modos de ser distintos
do tradicional, unido às necessidades que o crescimento próprio
acarreta, traz consigo o fato de que o povo entre numa forma de vida
de novos modos, isto é, “moderna”. Modernidade é, pois,
enriquecimento, e vice-versa; mas essa vida moderna, que material e
tecnicamente é mais e caz que a antiga, foi criada fora e à parte da
crença rme, compacta, consagrada, na qual se fundava a pura
legitimidade do passado imemorial, e é, portanto, um viver sem
sacramento rme. Modernidade é enriquecimento, mas é também, por
si mesma e simplesmente, germe de ilegitimidade.

Com toda modernidade começa sempre — está bem patente diante


de nós — a luta entre o e caz e o legítimo.
Junto a essa série de conceitos, cada um dos quais leva ao outro —
enriquecimento, modernidade, legitimidade — expus outro par de
noções — a de absorto e aberto — para de nir outras atitudes que um
povo adota em sua vida, ou que nele se apresentam, e que são — disse
eu — magnitudes escalares; ou seja, toda categoria ou conceito geral
sobre realidades humanas tem ou um sentido pleno, exemplar,
saturado e prototípico, ou vários sentidos mais tênues e relativos.

Assim, Roma viveu absorta em si mesma até a segunda guerra púnica


e, depois, no ano de 168 a.C., ao vencer Perseu, rei da Macedônia, e
conquistar a Grécia, viu-se obrigada a entrar numa vida aberta —
aberta a um outro diferente dela. Participou daquela guerra, ainda
adolescente, Cipião Emiliano, que nasceu no ano de 185 a.C. E aqui
vocês podem ver a razão pela qual, ao construir o esquema da
evolução pública de Roma, escolhi a data do ano 190 a.C. como central
ou divisória dos tempos e vicissitudes de Roma. Minha intenção era —
e é isto o que pretendo hoje — mostrar como Roma passa dessa vida
absorta para essa nova forma de vida aberta que começa por volta
dessa data, ao redor do ano 200 antes de Cristo. Para esse propósito, foi
conveniente esclarecermos o modo oposto de vida, a vida como vida
absorta, e isso me levou a apresentar dois exemplos, embora já num
sentido mais relativo, desse viver absorto. Um deles — ambos dentro
da própria modernidade —, no início dela, e outro ao m da
modernidade; portanto, o m do século , com o qual disse duas
coisas: uma, que, embora um povo não possa viver plenamente com
vida absorta mais que em sua época arcaica, em que está praticamente
isolado, pode, não obstante, voltar, em sentido menos intenso, a se
absorver outra vez ao longo da história; e outra, que, ao que parece,
acabou para os povos do Ocidente a modernidade, e já estamos em
outra idade a qual, hoje, não vou nem sequer batizar.

O primeiro exemplo consistiu em assistir à mudança sofrida pela


Espanha quando, de aberta a todos os ventos e a todos os mundos, no
século , passa a absorver-se inesperadamente em si mesma na
primeira metade do século , reinado de Felipe . Fiz notar, em
parte, como esse fenômeno foi normal naquela época em todas as
nações do continente, e isso dá a entender que se trata de uma fase
siológica natural, saudável e inevitável na evolução dessas nações.
Cada uma delas o fez mais ou menos intensamente e de um modo
distinto, o que com grande facilidade poderíamos diagnosticar e
de nir mediante uma série de atributos diferenciais que nos faria ver a
gura peculiar que essa absorção, no século , adotou em cada uma
delas.

A vida interior de cada nação chegou naquele momento à su ciente


plenitude para que sua gura e per l próprios cassem claros, e isso
fez com que cada uma das nações se descobrisse a si mesma, e se desse
conta de sua própria peculiaridade em relação às demais. Isso fez com
que sua atenção retrocedesse para dentro de si mesma, se
comprouvesse em seus próprios modos, se orgulhasse deles. Pela
primeira vez, creio — embora pessoas que conhecem muito melhor a
história da Espanha e a história geral dessa época poderão me corrigir
ou con rmar —, pela primeira vez, creio, começou-se a dizer com
freqüência “nossos poetas”, “nossos sábios”, “nossos capitães”, “nossos
exércitos”. Cada nação sente-se orgulhosa de si mesma. Ser nação
eleva-se a uma nova potência, e começa a ser “nacionalismo”, o que
não quer dizer “nacionalismo político”. (Mais adiante veremos como
tudo isso é utilíssimo para confrontar a idéia de nação que Toynbee
tem.) Não sei se foi devidamente acentuado, nas histórias da literatura,
o fato paradoxal de que, precisamente neste começo do século ,
por volta de 1600, portanto, quando o humanismo, criado no século
, propagado no , chegou a empapar todas as camadas cultas do
corpo social de cada nação, seja justo o momento no qual, frente a esse
humanismo que representava o projeto de uma literatura universal
sobre a base de um latim universal, brotem, de repente, de modo
consciente e rme, justamente as literaturas nacionais, portanto,
exclusivas, diferenciadas e particularistas, o que não quer dizer que
estas, uma vez iniciadas, não se in uenciem reciprocamente. É um
paradoxo de grande interesse sobre o qual os historiadores deveriam
insistir.
Mas o fato é que o fenômeno se deu na Espanha, apesar de ser natural
em certa medida, com um caráter surpreendente. Por duas razões:
Primeira, porque a Espanha estivera, estava ainda o cialmente em
todo o mundo, continuava mandando no mundo e, velis nolis, tinha
de sustentar sete ou oito exércitos ao mesmo tempo em todas as
brechas do império. E segunda, porque realizou essa absorção de um
modo extremo, diríamos extremista. Pasma e causa pena assistir a essa
repentina retirada ou retração dos ânimos, da atenção, dos desejos,
desde a imensa periferia do império ao seu centro nacional, à sua
recente corte, Madri. E parece que vemos afrouxarem-se as garras da
águia imperial, como querendo soltar a presa. A forma espanhola, o
modo espanhol de se absorver então em seu povo foi, pois, não uma
simples absorção, mas uma de grau sumamente pronunciado; foi uma
hermetização, e isso é o que chamei no outro dia de “tibetanização da
Espanha”; termo que não sei por que começou a preocupar as pessoas
e se discutiu nos jornais, quando eu pensava que a idéia que
expressava era algo mais ou menos consciente nas mentes de todos os
que leram um pouco da história da Espanha.

O outro exemplo se refere a outro grau menor no viver absorto, mas


que é mais claro por encontrar-se próximo de nós: é a vida madrilenha
imediatamente anterior a 1898. Eu busquei mostrar como, salvo
pequeniníssimos grupos que liam alguns escritores franceses e, é claro,
algumas individualidades, como Valera e algum outro, que já
conheciam bem a ciência alemã e precisamente por isso eram
excepcionais, para aquela Madri — como entidade coletiva — não
existia nada no universo para além das suas cercanias, e ela vivia
voltada para sua própria intimidade, submersa nela, gozando de si
própria. Uma intimidade que era quase sempre vulgar e cotidiana,
porque Madri então era, em todos os sentidos, muito pobre. E,
contudo, essas míseras realidades de sua vida vulgar, só por serem
notadas e vividas, tornavam-se, ademais, lendas e mitos de si mesma.
Daí vem o novo paradoxo de que, mesmo sendo incomparavelmente
mais mísera e mesquinha que a Madri de hoje, sua vida, porém, era
mais plena, porque nesse balanço último que a vida sempre faz
automaticamente e que é decisivo para ela, a ganância resultava maior
que a de agora, porque se hoje há muito mais habitantes em Madri e
cada um deles goza de um repertório maior de coisas possíveis a fazer
e a ter, aquela Madri, ao contrário, como ente coletivo, tinha, diríamos,
“mais povo”, empregando a palavra no sentido em que a usamos
quando, por exemplo, dizemos de alguém: Aquele homem é “povão”.
Esse “povão” que tornava tão plena a vida de Madri eram os
personagens e situações legendários, desorbitados, magni cados,
estilizados. Isto é, a vida estava cheia de mitos. E isso que se costuma
chamar, sem a menor idéia controlável do que signi ca, “alma coletiva”
— como num curso futuro espero mostrar a vocês — consiste
precisamente num tesouro de mitos essencialmente consabidos; isto é,
que todos os sabem e juntos os vivem. Só os povos absortos, de vida
con nada e voltados para dentro, têm calor e temperatura interior
su ciente para esquentar e incandescer a crua e sórdida realidade que
as coisas são sempre por si, trans gurando-as numa fulguração do
mito. Por isso, quando no outro dia eu pronunciei os nomes do doutor
Garrido e do cachorro Paco, tenho certeza de que os olhos dos velhos
que me ouviram, e de outros não tão velhos, brilharam. E seria um
erro e uma trivialidade atribuí-lo simplesmente ao fato de eu ter
atiçado algumas memórias de sua adolescência. Não. Esse fogo nos
olhos é suscitado sempre pelo que não é apenas realidade, mas, além
disso, lenda, mito, fábula e quimera. Portanto, o mesmo efeito, salvos o
grau e a dignidade, que produziam nos gregos e romanos da época
absorta ouvir o nome de Esculápio e do cão Cérbero, de quem, na
cidade dos mitos, nosso cão Paco é o humilde concidadão proletário.
Sim; os mitos madrilenhos dessa época são predominantemente
cômicos, burlescos e — é preciso dizer — até com uma ligeira pinta de
canalha. Lembrem a incrível genialidade que representa a impressão
— genial de tão inesperada e certeira — recebida por Nietzsche
quando, por acaso, num teatro da Itália, assistia à representação de La
Gran Vía, do mestre Chueca, e que não vou agora repetir. Pois bem, se
os mitos são desse gênero, é algo que agora não nos interessa, porque
isso pertence ao “conteúdo” daquela vida, e agora nos referimos
somente à “forma” daquela vida enquanto vida absorta. E essa é a
única coisa que nos ocupa agora.
Senhores, talvez a oportunidade não volte a se apresentar a mim, no
que me resta de vida, que não pode ser muito, de colocar em seu
devido lugar ideológico — que é a de nição da vida de um povo em
sua forma de vida absorta — a narração de uma anedota que teria
estado em minhas memórias se eu tivesse vagar para escrevê-las; mas,
como isso não é provável, desejo que se salve nas dos jovens que me
escutam, porque a mim me parece estupenda, e será um dia útil,
extremamente reveladora para futuros historiadores da Espanha, que
serão — como é quase certo e natural, e não implica desdouro para os
atuais — muito mais historiadores que os de hoje. A anedota é
inteiramente autêntica, e pode ser considerada como uma recordação
pessoal minha. A data pode ser precisada com exatidão, embora neste
momento eu não me recorde, mas sei que corresponde à altura de
1892 ou 1893. O protagonista foi aquele grande don Francisco
Alcántara de quem falei na minha primeira aula, e que me pôs pela
primeira vez diante da Triaga magna na botica de Morterero, lá, no
então recôndito pueblo segoviano de Campisávalos. Alcántara era um
dos homens de melhor saúde física que já conheci. De estatura
elevada, com magní ca cabeleira negra que costumava cobrir com um
grande chambergo, com barba escura de mosqueteiro, gravata de
artista e umas longas pernas calçadas sempre com botas compridas,
que eram as autênticas botas de sete léguas, pois di cilmente houve
homem mais andarilho. Era pintor e crítico de arte no jornal da minha
família El Imparcial, no qual meu pai passava então as noites, como
redator-chefe e diretor dos famosos “Lunes” de El Imparcial. Como
aqueles anos eram certamente o cume do triunfo da arrogância e,
como vocês sabem, os arrogantes por excelência eram os tipógrafos,
aos quais então se chamava “caixistas” — não é por acaso que o
protagonista da Verbena seja um caixista —, os caixistas de El
Imparcial, sempre inventivos, que compunham os artigos sobre arte de
Alcántara, ou o viam com aquele aspecto fantasmagórico, chamavam-
no santi, boniti, barati, que era o grito com que então os pobres
italianos vendiam pelas ruas de Madri suas pequenas esculturas
policromadas de santos.
Alcántara era amigo íntimo de meu pai desde a primeira juventude, e
foi o primeiro a percorrer toda a Espanha até seus rincões mais
distantes, com freqüência a pé. Se tivesse umas pesetas — era homem
de meios modestíssimos — escapava de Madri para pueblos ignotos,
para serras perdidas, por um amor delirante pela Espanha, por um
apetite artístico, por um afã esportivo. Uma noite chegava a Madri,
após quinze dias de andanças pelos rincões mais bravios e
inverossímeis de Castela. Da estação foi direito ao jornal. Meu pai, tão
logo o viu chegar, disse: “Chegou bem na hora, Paco, porque tem dois
redatores doentes e você precisa ir agora mesmo à estréia do Teatro
Espanhol para fazer a crítica”. “Mas como posso ir assim, sem me lavar
nem pentear, com essa roupa engordurada da viagem, vestido como
um perfeito bicho-do-mato?”. Meu pai, que nessas coisas era
peremptório, exigiu-lhe, não obstante, que fosse ao teatro
imediatamente. Numa estréia do Teatro Espanhol reuniam-se então
efetivamente o que se chamava “toda a Madri”, expressão que não era
só por dizer, porque, de fato, Madri era um todo orgânico, e ali
estavam a nobreza, os escritores, os artistas, os políticos, a alta
burguesia e, na galeria, o mais característico e saboroso povo. Chegou
Alcántara no momento de começar a apresentação e sentou-se em sua
poltrona. Poucos instantes depois o espectador ao seu lado, a quem
Alcántara conhecia — na Madri daquela época quase todo mundo
mais ou menos se entreconhecia — começou a aspirar pelo nariz,
como quem tenta discernir um odor inesperado. Alcántara percebeu, e
cou aterrorizado. Pensou que cheirava ao velho pastor de Gredos que
nunca tinha tomado banho ou algo assim. Mas, não; o vizinho disse:
“O senhor percebeu um odor delicioso na sala?”. Então Alcántara se
deu conta de qual era a aromática causa. Ele trazia os bolsos cheios de
tomilho, cantueso, manjerona que tinha arrancado no seio das
profundas serranias castelhanas. Teve de dar umas folhas ao vizinho,
mas logo o do outro lado pediu também um pouco, e depois outro e,
assim, pouco a pouco, foi repartindo por todo o teatro inteiro sua
provisão de plantas essenciais nascidas nas nossas montanhas. E o
Teatro Espanhol, cheio de “toda a Madri”, que jamais tinha
ultrapassado os próprios subúrbios, encheu-se dos aromas puros e ao
mesmo tempo bravios daquelas ervas que nascem e crescem em
nossos campos; ou seja, a Madri hermética, que ignorava, salvos uns
poucos caçadores, até a serra de Guadarrama, tão próxima, se viu
invadida pela Espanha profunda, pelas ásperas serranias esquivas,
pelas estepes solitárias, pelos pampas austeros, pelas colinas
sorridentes, pelas várzeas banhadas de sol onde se recostam
deliciosamente os vinhedos da Espanha.

Com esses exemplos concretos creio que estamos equipados para


entender bem a olhadela rapidíssima que daremos na transição de
Roma, desde sua vida absorta e em rme consagração, a sua vida
aberta, cuja terminação e resultado é o Império Romano.

Se eu fosse historiador, o que não sou nem jamais pretendo ser,


começaria a explicação desse trânsito com uma citação de Tito Lívio,
que ele, segundo o uso de mero analista, escreve, ao chegar o ano 212,
portanto, em plena segunda guerra púnica, misturando-a, como de
costume, com todas as outras coisas que haviam acontecido naquele
ano. “Em 212”, reza a citação, justamente o ano no qual o pai de Cipião
o Grande, Cipião o Africano, morre numa batalha que se deu na
Espanha, “a guerra, pois, se prolongava cada vez mais, e com isso
variavam grandemente, conforme as coisas iam bem ou mal, não só as
situações dos homens, mas também seu estado de ânimo. Então
invadiu a cidade uma multidão de formas de religião, principalmente
estrangeiras, de sorte que pareceu como se, de repente, ou os homens
ou os deuses não fossem mais eles mesmos. E isso a tal ponto que não
se abandonava o culto romano apenas em segredo e entre quatro
paredes, mas também em público. O Foro e o Capitólio andavam
cheios de turbas de mulheres que nem faziam os sacrifícios nem
oravam segundo os costumes pátrios. Trapaceiros místicos —
sacri culi

— e adivinhadores se apoderaram das mentes dos habitantes de


Roma, cujo número aumentara muito com a plebe rústica, obrigada a
se recolher na cidade desde seus campos incultos e devastados, vítima
da miséria e do terror. Com isso, foi fácil àqueles trapaceiros,
aproveitando a ignorância do povo, fazer seu negócio, que exerciam
como se fosse um ofício autorizado” (Tito Lívio, , ).

Em vista disso, o Estado romano teve de intervir, e o fez queimar


todos os livros de profecias que se encontraram em Roma. Tito Lívio,
que escreveu um dos livros de história mais deliciosos de ler, tinha,
como se sabe, muito pouco de historiador, e não se pode exigir dele
maiores explicações, nem sequer uma perspicaz compreensão da
enormidade do fato que narra sem alterar o mais mínimo a
maravilhosa tranqüilidade de seu estilo, um estilo de ritmo constante e
pausado, de grande veia uvial. E, contudo, essa notícia representa
para nós como que a declaração histórica o cial de que Roma, ferida
até o fundo por Aníbal, obrigada por ele a combater simultaneamente
em países distantes — na Espanha, na Sicília, na África e na
Macedônia —, cou aberta pela ferida ao mundo da diversidade, e esta
penetra nela gorgolejando como uma torrente, devastando os modos
tradicionais. Notem como Tito Lívio, tomando-o sem dúvida de velhas
atas o ciais, diagnostica a mudança radical no modo de a cidade viver.
“Parecia que, ou os homens ou os deuses”, isto é, a crença total comum,
“não eram mais eles mesmos”. Essas estranhas religiões que Tito Lívio
trata como superstições inferiores são religiões de fundo muito
superior à romana, e que triunfarão no mundo latino: são as religiões
da Trácia, com seus deuses Sacchos e Zagreus; é a deusa mãe e sua
lha que, desde três mil anos, desde as primeiras civilizações
mesopotâmicas, são adoradas em todo o Oriente (deusa mãe =
Deméter), ou seja, Cibele e Koré, a moça, a virgem que se adorava nos
mistérios de Elêusis; são as místicas do or smo e do pitagorismo.

Adeus, consensus em que se baseia a unidade efetiva do Estado!


Adeus, crença total comum da qual brota e em que se funda toda a
legitimidade no exercício do poder público! O direito não se funda em
última instância em algo, por sua vez, jurídico, como pretendia a
extravagância de Kelsen, extravagância oriunda de ter entendido mal
meu mestre de Marburgo, o grande Hermann Cohen, como já o havia
entendido mal Stammler, a quem, por ser judeu e ter se convertido,
Cohen chamava, falando comigo, de Ab-stammler, isto é, desertor ou
degenerado. A teoria do direito de Kelsen, da qual se empapuçaram os
juristas e lósofos do direito de todo o mundo, só podia terminar onde
terminou — com uma palinódia. O direito — digo eu — não se funda
em algo, por sua vez, jurídico, como a ciência não se funda em última
instância em nada cientí co, mas ambos, para existirem, fundam-se
em certa situação total da vida humana coletiva. Eis por que, ao
quebrar-se a crença comum, se racha a legitimidade.

Eu já disse que pretender de nir a legitimidade mediante fórmulas


jurídicas serve apenas a quem não quer entender sua realidade. Porque
nem ela nem o direito inteiro tomados por si passam de abstrações e,
portanto, não são verdadeiramente nem efetiva legitimidade nem
efetivo direito. O direito é função da vida toda de um povo, e a partir
dela é que se deve entendê-lo, tanto em seu conjunto como em cada
uma de suas instituições. Mas, reparem, não foram os intelectuais —
nem os de fora, porque mal se tinha ainda contato com eles, nem os de
dentro, porque não existiam — quem abriu a brecha e iniciou a
desintegração da fé tradicional. Foi primeiro a averiguação de que
havia outras religiões distintas da religião pátria. Uma religião só pode
ser quebrantada, fendida e pulverizada por outra ou outras religiões. A
insigne torpeza dos historiadores — e, como toda vez que não o
menciono especialmente, me re ro aos estrangeiros — não lhes
permitiu contar bem contado, transparente, translúcido, o fato mais
grave que pode acontecer na vida de todo povo, a saber: como é que
perde sua fé tradicional comum, como é que, de crente, torna-se
descrente; fato, repito, que é o mais grave, mas ao qual todo povo
inevitavelmente, enquanto povo, chega um dia. Se os historiadores o
tivessem feito, veríamos até que ponto é estúpida a idéia de crer que os
intelectuais sejam capazes, mesmo que queiram, dessa malfeitoria. A
verdade é que os historiadores, mesmo os historiadores do
pensamento, nunca se perguntaram peremptoriamente por que e
como é que existe no universo esse ente que se chama “o intelectual”,
como é que, em determinadas épocas, aparecem os intelectuais, e
aludo exclusivamente aos autênticos em todos os sentidos. Não me
re ro ao poeta nem ao técnico, guras de homem que existiram na
humanidade desde os primeiros tempos e que têm um per l preciso.
Não me re ro tampouco aos homens de ciências especiais, sobretudo
de ciências naturais, o biólogo, o físico, o químico, que são, como
aparições históricas, muito mais recentes que o poeta e o técnico, mas
coincidem com eles no fato de que os povos sempre tiveram, algumas
vezes mais, outras menos, mas sempre, a convicção de que
necessitavam deles para fabricar prazeres ou aliviar dores, para
inventar uma comédia ou um romance, e para inventar a aspirina, o
rádio, o automóvel e o elevador. Re ro-me agora a uns homens
estranhos, de condição nunca bem de nida, equívocos, sem ofício
nem benefício, mas nunca subornáveis, sempre insubmissos, que por
essa sua própria e inapreensível condição não encontraram em
nenhuma língua

uma denominação adequada, mas apenas nomes de contorno


impreciso e difuso, nomes ambíguos, nomes ridículos que a eles
próprios incomodava empregar, como este de “intelectual”, escolhido
por mim muito deliberadamente, porque em nossas línguas atuais
reproduz quase exatamente os mesmos equívocos, a mesma
imprecisão, a mesma petulância e a mesma ridiculeza que entre os
gregos chegaram a ter palavras como phrontistés, isto é, pensador;
sophós, isto é, sábio; sophistés, isto é, sabe-tudo; philó-sofos, isto é,
amigos da sapiência — que é uma breguice —; en m, profeta. E digo
profeta porque os primeiros intelectuais hebreus, que surgem numa
surpreendente coincidência de datas com os primeiros intelectuais
gregos, foram efetivamente os profetas, mas a eles próprios lhes
incomodava o nome, exatamente como nos incomoda que nos
chamem de “intelectuais” ou “pensadores”.

Para elucidar bem a genuína realidade de toda atividade humana


radicalmente peculiar — seja qual for —, é preciso surpreendê-la no
momento original de seu nascimento, quando é o que é em toda a sua
pureza, quando ainda consiste apenas no que tem de nua invenção e
criação, e ainda não se funcionalizou, o cializou, socializou e mais ou
menos burocratizou. Por isso, ainda que seja um instante, dirijamos
um olhar ao nascimento desse intelectual que é o profeta.
Assim, Amós, o primeiro dos profetas, contemporâneo de Hesíodo, o
primeiro dos intelectuais gregos — de poeta já tinha muito pouco —,
Amós, quando Amasias lhe diz: “Não profetizes mais em Beth’el que é
santuário do Rei e capital do Reino”, responde: “Eu não sou profeta
nem lho de profeta, apenas vivo de ser vaqueiro e de colher os gos
de sicômoro”. Nega, pois, o nome de profeta, porque desde muitos
séculos antes pululavam no povo hebreu homens que, ngindo ou
usando drogas estupefacientes, se tornavam possessos, exaltados,
caíam em frenesi, e assim adivinhavam o futuro coletivo e pessoal
cobrando por isso bons salários. Pro ssionais do delírio, faziam dele
seu negócio, organizando-se em sociedades como grêmios, em que os
lhos herdavam o ofício dos pais.

Eram gente, com muita freqüência, pícara e subornável, mas bastante


popular; chamavam-se nebihim — singular nabi. Balaão, com sua
mula profetiza, é um bom exemplo disso — uma gura semi-burlesca
do folclore hebreu. Por isso, Amós disse: “Eu não sou profeta nem lho
de profeta”, e faz notar a transparência de sua renda. Mas no versículo
seguinte Amós declara sua autêntica vocação, e não lhe resta senão
usar a mesma palavra que acabara de rejeitar — declara-a com uma
fórmula concisa que enuncia o mais essencial, solene e dramático de
todo genuíno, puro profetismo e, ao mesmo tempo, talvez — não vou
entrar nisso — de ne a missão constitutiva e perdurável do intelectual.

Disse Amós: “E Jeová me tomou de trás do rebanho e me disse: Vê e


profetiza contra meu povo Israel”. Mas Israel, o povo de Jeová, é o
mesmo povo de Amós. Será, senhores, que todo autêntico profeta tem
de ser profeta contra? Contra o quê? Contra quem? A palavra bíblica é
precisa: contra seu povo, mas o que signi ca esse paradoxo? Deixemos
o assunto com o pescoço preso no laço de gaúcho deste enorme ponto
de interrogação, e que ninguém venha a trivializá-la com
interpretações políticas momentâneas quando se trata da perene e
desesperada missão do intelectual neste mundo, uma missão já quase
três vezes milenária. Algum dia, em algum curso futuro, entraremos a
fundo neste tema.
Eu já disse, na aula anterior, que a erudição, ou seja, a papelada dos
arquivos, a publicação de documentos, a edição de textos antigos
escrupulosamente repristinados é imprescindível para a história, mas
ainda não é história, porque esta consiste precisamente em entender as
realidades humanas a que esses documentos aludem, e que esses
próprios documentos são. Aproveito a ocasião que se me oferece para
apresentar-lhes um exemplo muito preciso e muito simples, e por isso
mesmo luminoso, de como isso que eu disse é verdade. Re ro-me à
tradução da brevíssima frase em que Jeová lança Amós em sua carreira
de profeta. Já faz muitos anos, em cursos públicos, eu traduzo, como
z agora, essas palavras: “Vê e profetiza contra meu povo”; a última vez
foi quatro anos atrás, numas aulas dadas na Universidade de Lisboa
sobre a inteligência e o intelectual. Eu o havia aprendido numa
observação que um dos grandes hebraístas contemporâneos, Rudolf
Kittel, faz de passagem.

É evidente que eu não sou hebraísta, como, a rigor, não sou quase
nada além de um senhor que quase disse a vocês coisas que quase têm
sentido. O que já é bastante, já é bastante! Pois bem, nenhum dos
tradutores do Antigo Testamento as traduziu assim, apesar de
conhecerem admiravelmente a língua hebraica e aquela para qual a
vertiam. A que se deve esse erro em suas traduções? Muito simples: ao
fato de não entenderem a realidade humana a que aquelas palavras se
referem — o que é ser profeta, ser intelectual. Como eu, por minha
vez, a conhecia, tão logo tropecei com uma breve alusão lingüística
que me o permitia, não obstante minha ignorância erudita, acertei sua
tradução. Já os Setenta a traduzem mal — não entendem o que seja
profetizar, enquanto essencialmente profetizar contra, e empregam
uma vaga preposição epi, que signi ca tanto a como sobre, mas jamais
contra. A tradução latina Vulgata segue os Setenta, e traduz neste
versículo: “profetiza a Israel”, e no seguinte: “profetiza sobre Israel”.
Segue esta a versão espanhola mais popular, a do Pe. Scio. A
protestante de Cipriano de Valera também não entende o primeiro
versículo em que Jeová fala, mas ao menos no seguinte, onde se
referem palavras de Amasias, traduz: “Não profetizes contra Israel”.
Segue-o, quero dizer, coincide com ele a recente tradução espanhola de
Nácar-Colunga. Mas eis que, por m, forçados como Kittel pelo fato
estritamente lingüístico, e atendo-se a ele, a recentíssima versão
castelhana — publicada poucos meses atrás — do jesuíta Pe. Bover e
do senhor Cantera já traduz corretamente: “Vê e profetiza contra meu
povo”. Que este exemplo, claríssimo por sua própria simplicidade e
nimiedade, sirva para que se veja como não se pode fazer história sem
possuir a técnica superior, que é uma teoria geral das realidades
humanas, o que eu chamo de uma historiologia.

Mas que registrado que eu agora deixo para o futuro a explicação de


por que o profeta é, por essência, profeta contra seu povo.

Agora só me importa a rmar, com base nessas precisas explicações


futuras, quão estúpida parece a suposição de que o intelectual é quem
desfaz a fé compacta e comum tradicional de um povo, pela simples
observação de que a própria intelectualidade, isto é, a inteligência no
sentido estrito de razão e racionalismo, nasce num povo precisamente
porque esse povo perdeu antes a fé, e não dispondo de meio melhor,
alguns se apressam a reparar o dano com a única coisa que lhes resta,
como a única coisa que têm e com a qual contam: com sua pobre
razão. Assim nasceu a loso a na Grécia, por volta do ano 500 antes
de Cristo. Há muito escrevi: “O que é, desse ponto de vista, a razão, e
especialmente a loso a, é a tala e o gesso em que se põe uma fé
quebrada”.

A essa invasão de novas religiões, que Tito Lívio descreve e que vai
deslocar de nitivamente a unidade da crença, respondem os
partidários da tradição como sempre zeram, tentando ressuscitar
arti cialmente os mais vetustos ritos itálicos, como o ver sacrum e
outros. É a eterna tentativa, eternamente fracassada, de retornar ao
mos maiorum, aos usos dos antepassados. O resultado é que a religião
deixa de ser base unitária e comum e se converte em campo de
batalha, e concretamente de batalha eleitoral entre os reacionários e os
revolucionários. Mas muitas vezes se compreende que, tão logo se faz
da religião, real ou tacitamente, questão de votos, esta deixa de ser a
substância conjuntiva que uni ca maciçamente a vida de um povo.
A mente do romano, por seus próprios triunfos militares, se abriu e
se encheu de muitas concepções possíveis do mundo. Com isso se
enriqueceu mentalmente, sem dúvida, mas então o indivíduo se vê
obrigado a escolher entre essa grande diversidade, e a escolher
segundo critério e decisão pessoais. O romano, ao enriquecer, ao se
modernizar, se individualiza, se personaliza. E como o poder de Roma
no mundo é enorme — pensem no que representa como virtualidade
de poderio a autoridade absoluta, sem limites de um procônsul a quem
se entregava toda a Espanha ou toda a Grécia ou toda a Ásia Menor —,
ao desintegrar-se o bloco da vida civil tradicional surgem essas
personalidades desmesuradas, enormes, não oprimidas em seu
desenvolvimento pelos costumes nem pelas leis, que vão perdendo
vigência efetiva. Nas nações européias sempre foram impossíveis
personalidades desse calibre e desse formato. Napoleão é, enquanto
personalidade — comparo agora os dons ou talentos — uma freira ao
lado de guras romanas de segunda ordem desde o primeiro século
antes de Cristo. Isso se explica porque toda essa desintegração da
legitimidade e as que imediatamente mencionamos acontecem — não
se esqueçam — enquanto Roma goza de uma absoluta preponderância
no mundo. Depois da segunda guerra macedônica ela cou sem
qualquer pressão externa, sem inimigo relevante que desse caráter
compacto à sua vida e limitasse as extravagâncias e exorbitâncias
desses homens. Acresça-se que, até Augusto, perdura nos romanos seu
efetivo ânimo “heróico” — do qual, por si, lhes é indiferente a bondade
ou a maldade. É preciso aprender em Roma o que é o tipo de herói
perverso.

Essa circunstância de que o poderio romano não se deparasse, em


todo o horizonte conhecido, com êmulo competidor e possível
ameaça, dá à sua vida nesta época um caráter de enlouquecimento. É a
prenda que paga por seu próprio triunfo — o que Toynbee chama
corretamente de “a intoxicação pela vitória”. Mas ao mesmo tempo essa
invulnerabilidade, talvez sem outro exemplo na história, diferencia
radicalmente a história romana de todas as demais; por exemplo, da
nossa — qualquer que seja desde outros pontos de vista seu valor
paradigmático. E é isso o que Toynbee não vê.
Ao choque com outras religiões, que Tito Lívio nos noti ca, agrega-se
o descobrimento e a provação de outros repertórios de costumes.
Políbio se encarrega no livro 32 de sua História, com o autêntico gênio
de historiador que faltava àquele, de nos revelar a depravação nos
costumes que a guerra e o contato com a Grécia produziram em Roma
fulminantemente. Então, por exemplo, Roma descobre a
homossexualidade. “O amor por ambos os sexos”, diz, “produzia
vergonhosos excessos na juventude, dedicada a festins e espetáculos,
ao luxo e a todas as desordens que avidamente aprendeu dos gregos
durante a guerra contra Perseu”.

Três gerações depois, já não é mais só isso. A desfaçatez de homens


como César, Clódio, Marco Antônio só se explica notando que o
mundo ao seu redor está já deliberada e programaticamente contra os
costumes antigos, os quais despreza e ridiculariza, postulando
frivolamente frente a eles res novas

— isto é, a inovação pela inovação, a reforma pela reforma mesma.


Esse prurido ou mania pelo novo, simplesmente porque é novo, esse
novismo é sintoma infalível de que uma modernidade chegou ao seu
cume e logo vai consumir-se, e dar passagem para essa outra coisa que
já não é a modernidade e na qual não quis entrar. Encontro nas
Filípicas de Cícero, dirigidas, como se sabe, contra aquele magní co
soldado, heróico caráter mas in nito sem-vergonha que foi Marco
Antônio, estas palavras que não poderiam documentar melhor o
ambiente geral. Quando se quer recorrer às instituições, às leis, aos
direitos, ouvimos de todas as partes: Negligimus ista, et nimis antiqua
et stulta ducimus — “Não nos importam essas coisas que nos parecem
velharias e estupidezes”. Essas Filípicas, de cujo título vem nossa
palavra vulgar “uma lípica”, custaram, é claro, a vida de Cícero. Mas
César vai resumir tudo isso numa frase: “A República?”, isto é, o Estado
com sua constituição legítima, “A República já não passa de uma
palavra!”.

Pareceria natural que eu não vacilasse o mais mínimo para dizer


agora que, em terceiro lugar — isto é, à desintegração da crença
comum e à desintegração das normas morais ou de conduta — haveria
que acrescentar o efeito desintegrador da loso a grega. Isso é dito,
com efeito, em quase todos os livros sobre história romana. Mas não
me é lícito fazer semelhante a rmação, ainda que me caísse muito bem
para autorizar todo o resto da minha doutrina manifestando a
su ciente imparcialidade para não recear os malefícios de minha
pro ssão. Mas que farei? Esse efeito desintegrador da loso a grega
sobre o povo romano, eu não o vejo. Em primeiro lugar, essa
in uência, nem boa nem má, não aparece até o século  depois de
Cristo; portanto, já dentro da época imperial. Até então, só haviam
tido contado com ela alguns, muito raros, indivíduos ou grupos
bastante reduzidos. É completamente certo que, sobre o primeiro
revolucionário ou demagogo de Roma, Caio Semprônio Graco, tem
in uência, muito claramente, um lósofo grego utopista e, portanto,
maníaco do reformismo. Mas o mesmo não ocorre com a série de
demagogos revolucionários que o seguiriam e que o são por conta
própria, e não por conta de uma loso a. Os romanos nunca tiveram
cabeças losó cas; mais que isso, consideravam desprezível e
imprópria de um romano toda loso a. Por isso é muito
representativo, em suas duas vertentes, o fato de que, ao compor, em
retiros transitórios, seus livros losó cos, Cícero tenha, por um lado,
de se desculpar de vez em quando por empregar seu tempo em
semelhante ocupação, mas, por outro, considera interessante, mesmo
naquelas tão avançadas datas — ou seja, quando o Estado romano já
estava em pedacinhos — expor claramente, à minoria mais culta de
Roma, as doutrinas da loso a grega. A verdade é — e aproveitamos a
ocasião para dizer muito sinteticamente várias coisas de ordens
diversas, mas todas decisivas — que é durante o império dos Júlios e
dos Cláudios — isto é, o primeiro século e meio do império — que se
produz, intensiva e rápida, a romanização das províncias, que, apesar
de abusos pontuais, bem administrados, aumentam sua riqueza
econômica criando nelas uma rica burguesia — ao passo que, na Itália,
esta se empobrece e degenera. Essa burguesia provinciana recém-
criada e que já foi, sim, recém-educada numa loso a, no que
poderíamos chamar de “semi-religião” intelectual, numa “cultura”, que,
em suma, foi o estoicismo, é a que vai dominar a etapa seguinte, a dos
Flávios e Antoninos.

É preciso reforçar — e não se leia nisso uma propaganda da minha


parte — que a única loso a verdadeiramente in uente em Roma foi a
estóica, e isso não chega a se dar até quatro séculos depois de começar
a se desintegrar a crença comum romana, precisamente na época dos
que chamo “imperadores espanhóis” — Trajano, Adriano e, após eles,
Marco Aurélio —, que eram eles próprios estóicos. O estoicismo
espalhado por toda a nobreza e burguesia do império proporcionou ao
mundo uma de suas etapas de melhor governo e mais doce felicidade.
É um fato incontestável que quando a loso a in uencia efetivamente,
não este ou aquele indivíduo isolado, mas amplas e profundas camadas
sociais, portanto, a alma coletiva de Roma, consegue, embora
transitoriamente, o que parecia impossível, a saber: que um povo, o
qual perdera toda crença viva comum, recupere, graças ao estoicismo,
algo como uma fé coletiva que o sustente compacto por algum tempo
e, como era de se esperar, suscite a única etapa de algo como
legitimidade, da qual o Império Romano gozou em seus cinco séculos
de longa vida. Sem que eu, atenção, julgue esse fato decisivo em
nenhum sentido para nada, eu chamo para ele, sim, a atenção dos que
queiram me acompanhar seriamente na análise da vida constituída em
ilegitimidade que estamos fazendo, e de que são dois gigantescos
exemplos os tempos declinantes da República romana e os tempos em
que estamos vivendo nós próprios.

Mas o exército, que Mário já havia aberto aos proletários latinos e


italiotas, no ano 100 antes de Cristo, tem de ser, depois dos Antoninos,
até o 200 de nossa era, aberto aos proletários das províncias mais
rudes, primeiro aos africanos, com os Severos, depois aos da Dalmácia
com Diocleciano; portanto, aos que poderíamos chamar de
superproletários. São estes que se rebelam contra a burguesia
governante, contra a burguesia adepta da semi-religião estóica, e então
o império volta a perder toda unidade de crença, e se dispersa em
inumeráveis místicas locais. Um dia, sob Aureliano, lançam o projeto
de criar para o império uma religião única, um sin-cretismo religioso
sob o deus Sol, a qual perdurará como espectro burocrático até os
tempos de Constantino. Nas moedas de Aureliano se lê: “O Sol, senhor
do Império Romano”. O mesmo havia tentado, quase dois mil anos
antes, o Faraó Amenotep  para escorar o Estado egípcio em ruínas.
Parece que esses impérios ou Estados universais, por sua própria
essência, padeceram sempre de hipotermia, falta de temperatura
moral, coletiva, e, enrijecidos, procuravam se aquecer ao Sol.

Num século — do ano 190 ao ano 90, e marco esta última data
porque, dois anos depois, vai estourar a primeira guerra civil entre
Mário e Sila — todo o bloco compacto que era a vida romana se
desintegrou. À desintegração das crenças e do sistema normativo dos
costumes, ou seja, das condutas, segue imediatamente a desintegração
da legalidade do poder público, como, um instante atrás, mostrei
citando as frases de Cícero e de César. Já não se crê no Senado nem se
o respeita, entre outras coisas porque as famílias senatoriais foram as
primeiras a degenerar, e são membros sobressalentes delas os
primeiros que se revoltam, que revolucionam contra sua venerável
autoridade. Uma após outra vêm todas as insubordinações: a dos
cavaleiros ou equites, a dos plebeus, a dos escravos com Espártaco, a
dos aliados. Mas, entenda-se bem, sob todas elas está latente a
convicção crescente de que um enorme bem-estar — resultado da
vitória que parece de nitiva — é possível, e que todos podem
participar dele. É o que, naquela civilização de técnica insu ciente,
corresponde à consciência vigente, esses últimos tempos, de que o
homem possui uma riqueza ilimitada, que tem para todos, que é
preciso exigi-la com petulância e com violência, porque, se não tem
para todos, é porque alguém a está roubando para si.

Depois da primeira guerra civil, Sila se retira da ditadura restaurando


o Estado tradicional e legítimo — se bem que já com legitimidade
secundária. Mas as necessidades da guerra com Lépido, com Sertório e
com Espártaco obrigam o Senado a anular as leis restauradoras de Sila
e se entregar aos generais, concedendo-lhes poderes ilegais. E, como o
Estado perdeu todo prestígio, as massas se desligam dele e, acentuando
o sentido das antigas clientelas, ligam-se, não a instituições, mas a
homens individuais. O exército desde Mário não é mais o exército de
Roma, mas o exército pessoal de Mário, ou de Sila, ou de César ou de
Pompeu. Ou seja, o próprio poder público se desintegra e se quebra
numa série de poderes personalíssimos em inevitável luta uns contra
os outros. Assim, uma após a outra, sete terríveis guerras civis. Não
subsiste nenhum princípio vigente ao qual se possa recorrer. Depois
dos Gracos, começa a época criminal que, ao que parece, se abre em
certa altura da vida de todo povo. Na Roma legítima, era-se
hipersensível para tudo o que fosse, na vida civil, violência pessoal.
Mas agora, o assassinato está na ordem do dia, e não se pode celebrar
comícios, porque bandos armados irrompem no Foro e no Comício. A
criminalidade e a criminosidade não se manifestam somente na
facilidade com que se assassina, mas em todo o espírito do povo e
muito especialmente na frivolidade com que opinam sobre pessoas e
assuntos aqueles que não entendem nada a respeito, muito
especialmente as mulheres. Um pouco mais tarde a mulher de Clódio,
a quem trouxeram a cabeça cortada de Cícero, se entreterá, com as
agulhas de seu penteado, a picar seus olhos inertes.

Eis, pois, que esse povo romano, ao chegar a hora de sua máxima
civilização, de seu mais avançado desenvolvimento, de seu maior
triunfo, volta à situação primitiva de ilegitimidade. Não há Estado
legal porque não há estado de espírito comum na coletividade.
Ninguém tem direito a mandar e, por isso, lutam uns com os outros
para se apoderar do mando. A situação das coisas não tem saída, não
traz em si uma solução orgânica e séria. Não se prestou a devida
atenção ao fato de que, poucos dias depois de Júlio César ser
assassinado, Cícero menciona numa de suas cartas como Matius, um
amigo íntimo de César, foi vê-lo, e revela que não sabia o que fazer
para sair daquela situação — literalmente, exitum non reperiebat —,
não via saída alguma. A situação a que se chega depois daquelas sete
atrozes guerras civis foi expressa por Tácito, conforme seu costume,
num comprimido verbal que, justamente por sê-lo, passou
despercebido à maioria de seus leitores. Quando querem explicar por
que todos entregam o poder de nitivamente a Augusto e se funda o
principado, ou seja, o império, diz apenas estas palavras: cuncta fessa
— todo mundo, pessoas e coisas, estava fatigado, farto, não agüentava
mais. Durante anos e anos ninguém esteve seguro de não morrer
qualquer dia assassinado. Horácio, agradecendo Augusto a ordem que
estabeleceu, declara-o na Ode  do livro :

Hic dies, vere mihi festus, atras


Eximet curas; ego nec tumultum
Nec mori per vim metuam, tenente
Caesare terras.24

Este é o título em que funda o exercício de seu poder o imperator


Augusto: a fadiga. Não é um título legítimo, é um título e caz. É uma
urgência. Era preciso que alguém, fosse quem fosse, exercesse o poder
público, o mando, e botasse m na anarquia. Houve até o ano 30 em
Roma como que uma maré alta de saturação e de asco para com toda
política proveniente da excessiva, obcecada dedicação a ela que havia
precedido — a ânsia de jogá-la sobre alguém, fosse quem fosse, para
poder não se ocupar dela. E eis aqui, senhores, o surpreendente: ao m
de todo o processo de mil anos que é a história de Roma, o chefe de
seu Estado volta a ser... qualquer um. Por isso o império nunca teve
genuína forma jurídica, autêntica legalidade nem legitimidade. O
império foi essencialmente uma forma informe de governo, uma
forma de Estado sem autênticas instituições.

Todo o mundo — cuncta fessa — necessitava dela, mas como não era
nem podia ser um Estado normal porque não podia gozar de
legitimidade, necessitava mas ninguém a queria, nem mesmo Augusto.
Porque este é o fato incrível, mas incalculavelmente revelador de toda
essa realidade — com a qual encerro. As coisas andam tão mal que, no
ano 22, o Senado está resoluto a nomear Augusto como ditador, ou
censor; ou seja, com outro nome, imperador. Mas este, que era bem
mais medroso e descon ado, sente terror diante da possiblidade de ser
encarregado de exercer o poder supremo, e por isso foge para a Sicília,
isto é, foge da ditadura, foge ele mesmo do império, e então sai em
disparada uma parte do Senado perseguindo-o para alcançá-lo e
obrigá-lo a voltar a Roma e constituir-se dictator, princeps, imperator.
Como diz muito bem Ferrero: “a ditadura perseguia o ditador”.

Esse Estado imperial que começa com Augusto vai exercer sua
imperatividade de forma superlativa, nunca antes experimentada. É a
compressão do poder público pura e nua de consagração. E assim, o
Estado aumenta sua pressão sobre os indivíduos estritamente na
medida e conforme a crença diminui. Esta era uma disciplina interna
e, ao faltar, se intensi ca automaticamente a disciplina externa.

Dessa maneira, senhores, percorremos — ainda que sob a forma de


esquema, integramente — a evolução do poder público desde sua
germinação até sua consumação na única história de um povo —
Roma — que nos é conhecida desde o seu berço até sua sepultura. E
nela descobrimos algo estupefaciente e que, ao mesmo tempo, nos
proporciona a mais penetrante iluminação, algo essencial que não vi
apontado até aqui pelos historiadores nem pelos juristas e lósofos do
direito, apesar de ser um fenômeno, como vimos, tão patente. Este:
que o Estado, que o exercício do poder público, começa por ser
ilegítimo e termina por ser ilegítimo; que quando um povo chega à sua
maturidade extrema acontece o mais inesperado: a reaparição de todos
os caracteres que manifesta primitivamente a função estatal. E essa
queda não exige senão uma cirurgia de urgência, uma reação social na
hora do perigo; o depositário ou agente dela — o Chefe — não o é por
nenhum direito, mas qualquer um pode sê-lo, pois todo mundo
necessita dela e ninguém a quer. Tudo isso não ilumina com mais crua,
impiedosa luz o que constitui, de verdade, no núcleo mesmo de sua
essência, o Estado? Eu não vou responder agora a essa pergunta. Só
poderei fazê-lo se, no próximo outono, puder oferecer a vocês um
curso sobre os fenômenos fundamentais da sociedade com o título O
homem e os outros.25

Mas o que parece evidente é que o Estado não consiste em


legitimidade, mas que esta é um feliz acréscimo, uma afortunada
virtude de que conseguem dotá-lo os povos em seus melhores séculos,
graças à sua pureza de espírito, à integridade de suas crenças, à sua
lealdade e à sua generosidade, qualidades todas que vão se evaporando
conforme a ilegitimidade avança.

Mas uma nova pergunta, menos teórica que a anterior, mais grave,
mais urgente brota em todos nós, suscitada por tudo que eu disse: O
que fazer quando a vida de toda uma civilização entra na etapa de
constitutiva ilegitimidade? Eu não me comprometi, no anúncio deste
curso, a responder essa pergunta, e não vou fazê-lo imediatamente. É
possível que, nas aulas subseqüentes, essa resposta apareça sob a forma
de tênues insinuações. Mas posso, sim, dizer agora mesmo qual a
primeira coisa que é preciso fazer quando se quer enfrentar e corrigir a
tremenda conjuntura histórica que é a ilegitimidade. A primeira coisa
a fazer é, simplesmente, reconhecê-la, car bem consciente de que é
ela a profunda realidade que constitui a época, em vez de tergiversar
sobre ela atribuindo sua causa a insubordinações e indocilidades deste
ou daquele homem, grupo ou classe. Não se pode resolver um
problema se não se vê claramente sua existência e sua consistência. Por
isso, senhores, a primeiríssima coisa a fazer com a ilegitimidade é...
engoli-la. Então veremos.

A IX
Revisão do itinerário. — O direito e o
justo. — Creta. — A “inf luência
universal”. — Civilização e “sociedade
primitiva”. — As civilizações espontâneas.
— Obstáculo e ataque.
S enhores, já faz muitas aulas que parece que nos esquecemos de
Toynbee e, entretanto, veremos como, com tudo isso, não zemos
senão ganhar velocidade na exposição do resto de sua doutrina. Nós o
abandonamos quando, guiados por ele, procurávamos de nir a
civilização greco-romana, que é materna com relação à nossa,
assimilando seu destino cronológico, ou seja, seu princípio e seu m,
onde e quando acaba, onde e quando começa. Assistíramos à sua
destruição, causada, segundo Toynbee, que nisto aceita a opinião
vulgar, por uma invasão ou emigração de povos bárbaros até então
contidos para além da fronteira; por uma Völkerwanderung, do que
ele chama “proletariado externo” daquela civilização. Essa irrupção
trouxe consigo séculos de caos que ele chama de “interregno”, por
serem séculos sem ordem nem concerto em que ninguém manda.
Logo, retrocedendo, vimos que a civilização greco-romana goza sua
última etapa de existência estruturada na forma de um Estado
universal, o qual é, diríamos, invadido verticalmente de baixo para
cima por uma religião universal nascida do “proletariado interno”
alojado nos fundos quase subterrâneos daquela sociedade. Esse Estado
universal foi o Império Romano, e nele nos detivemos para completar
a imagem externa, como de turista ou cicerone, que Toynbee nos
apresenta, com uma imagem dessa mesma realidade vista desde
dentro. Mas não pudemos fazer isso, quero dizer, entender a realidade
histórica que foi o Império Romano, sem submeter nosso olhar
histórico, como requer a óptica do historiador, a um grande pendular.
Isso nos levou inevitavelmente a descobrir todo o passado de Roma.

Toda realidade humana, eu dizia a vocês, vem de um passado e vai na


direção de um futuro, e isso não é um acréscimo à sua essência, mas,
constitutivamente, consiste em “vir de” e “ir para”, em conter passado e
futuro. Por isso foi inevitável que olhássemos contra a luz o Império
Romano, a m de descobrir em seu presente, como numa radioscopia,
seu passado, aquele de onde vem. E eis a razão por que tivemos de
percorrer a história romana inteira, caminhando por dentro dela, por
sua intimidade, ainda que de uma maneira ultraesquemática e nos
atendo ao que Mommsen nos ensina a considerar como a substância
mesma da história de Roma, a saber: a evolução de seu direito público,
de seu Estado.

Nas aulas anteriores tentei, pois, construir um esquema da história


romana seguindo a evolução vivida por um dos componentes mais
importantes na vida de todo povo: seu poder supremo, a função de
mandar enquanto mando coletivo, porque, é claro, há constantemente
— junto a ele — outras formas de mando arbitrárias, satisfatórias ou
desprezíveis: a do forte sobre o fraco, a do rico sobre o pobre, a do
amado sobre o que ama. Fazendo grande violência contra mim
mesmo, tive de deixar absolutamente de fora da consideração o que
mais me interessava na realidade humana que foram os romanos, e
que me interessa porque creio que é, de fato, ainda mais fundamental
que a atenção exclusiva ao seu poder supremo e mesmo a todo o seu
direito público, e que é a peculiaríssima atitude do romano ante o
direito como tal, seja público, seja privado. Mas não pude entrar nisso,
porque eu me atreveria a insinuar que jamais foi bem visto o que o
romano entendia e vivia sob o nome “direito”, o que foi para o romano
o direito enquanto tal, não esta ou aquela de suas instituições.

A meu ver, a essa maneira peculiar de sentir o direito o povo romano


devia seu incomparável vigor, único como força histórica. Mas isso é,
suspeito, o que não se viu bem; o que se soube admirar no direito
romano é, antes de mais nada, a perfeição de sua técnica jurídica e
dentro dela o rigor, de fato, quase matemático que chegaram a ter seus
conceitos; mas isso leva a perguntar de forma peremptória por que
precisamente em Roma se chegou a obter essa técnica jurídica de tal
perfeição, em vez de atribuí-lo a uma espécie de mágico dom ou a um
casual talento que aquele povo simplesmente possuísse.
Evidentemente, há na relação primária, portanto, anterior a todo
perfeccionismo técnico, na relação primária do romano com o direito,
algo peculiar não existente na mesma medida nos outros povos, o qual
o levou, naturalmente, a prestar ao seu exercício uma insólita atenção,
ao mesmo tempo enérgica e continuada, graças à qual, século após
século, foi se urdindo e cinzelando a maravilha de sua jurisprudência.
Se isso não foi visto, receio que seja porque se tem também uma idéia
não apenas errônea, mas extremamente vaga, do que é, não só em
Roma, mas em absoluto, o direito, e eu não podia dar por pressupostas
e conhecidas noções sobre ele que me pareçam ajustar-se à sua
realidade. Por isso eu me vi obrigado a começar desenvolvendo toda
uma teoria geral do direito, o que se costuma chamar indevidamente
de “ loso a do direito”, para o que a ocasião não era muito propícia. A
única coisa que posso fazer agora, forçando muito as coisas e
atentando àqueles entre vocês que sentem autêntica curiosidade por
esse tema que toco de raspão e se comprometem a entender o que vou
dizer, que são pouquíssimas palavras, com as cautelas que se deve
outorgar a toda fórmula comprimida, ou seja, que para o romano o
direito não é direito porque é justo, mas, ao contrário, que o justo é
justo porque e quando é direito; portanto, que o direito, em seu núcleo
e substância primeira, para o romano, e talvez isso seja verdade em
absoluto, não tem nada que ver com isso que, em nossos tempos, se
chama nos jornais, e não apenas nos jornais, de justiça. A justiça virá
como um complemento ou uma perfeição dessa realidade primária
que é o direito. Os romanos tinham dele, portanto, uma idéia
perfeitamente inversa da predominante nas mentes européias, pelo
menos nos últimos dois séculos. Com aquela fórmula me re ro
estritamente ao que o direito era como realidade efetivamente vivida
pelos romanos, não ao que primeiro Cícero e depois as “Institutas” e o
“Digesto” e as “Pandectas” de niam em termos gerais como direito, o
qual não tinha nada que ver com o direito romano real, mas eram
idéias recebidas dos lósofos gregos pelos jurisconsultos romanos em
tempos já muito avançados.26 São, pois, os bons-mocismos losó cos
do direito, e, para o romano, o direito era exatamente o contrário de
bom-mocismo: era uma tremenda e crua realidade.

Esse passado de Roma que vimos por dentro, Toynbee o contempla


desde fora, e dele só considera interessante nos dizer mais ou menos o
seguinte: antes de a civilização greco-romana se constituir no Império
Romano, no que chama Estado universal, atravessou séculos de
guerras entre as nações que a integram, aos que ele chama,
generalizando o nome de uma época característica da história russa,
“tempos revoltos”, que correspondem ao que, na história chinesa, se
chama “época dos Estados contendentes”. A época dos “tempos
revoltos” na história russa foi o século , e a ela pertence o episódio
do falso Demétrio. Mas os “tempos revoltos” na civilização greco-
romana começam, segundo Toynbee, na segunda guerra púnica, mas
não por qualquer uma das razões que nos levaram a xar como
divisória dos tempos romanos aquela data, mas simplesmente porque,
então, Roma entra em guerra com a Grécia, como se as tremendas
guerras anteriores entre os sucessores de Alexandre e as porções que se
repartiram de seu império, Egito, Macedônia e Selêucia tivessem sido
coisa à toa. E aqui nos deparamos, ainda que eu não vá insistir nisso,
com uma dessas freqüentíssimas trapaças intelectuais que há em todo
pensamento e na obra de Toynbee, que é não lhe restar saída, outras
vezes, senão reconhecer que os “tempos revoltos” na Grécia
começaram, é claro, com a guerra do Peloponeso, o que acontece
aproximadamente dois séculos e meio antes que a guerra de Aníbal,
que a segunda guerra púnica. Mas como ele está empenhado em unir e
fundir a civilização grega, a história grega e a história romana numa
única civilização, ele não a chama greco-romana, mas com outro
nome; nome este que eu até agora não pronunciei uma vez sequer e
não pronunciarei nunca, porque me obrigaria então a um corps a
corps com Toynbee, ainda que transitório, de certa impetuosidade,
ainda que isso nos levasse a descobrir uma das coisas mais geniais e
mais valiosas da vida inglesa.

Antes desses tempos revoltos, os povos gregos e romano-latinos


viveram — segundo Toynbee — longos séculos do que chama de
“formação ou desenvolvimento”, que correspondem, de certo modo, ao
que eu descrevi aqui como “vida absorta”, mas ainda mais atrás
encontramos os povos helênicos e latinos como povos primitivos que,
vindo lá do norte eurasiático, caem sobre o Mediterrâneo. De modo
que, assim como ao descobrir o começo de nossa civilização vimos que
tinha início com uma Völkerwanderung, com uns bárbaros do Norte
que irrompem na área greco-romana, também assim, ao começar a
civilização greco-romana, temos uns bárbaros do Norte que agora são
precisamente os helênicos e itálicos. Não sabemos bem quando estes
últimos entraram na Itália, mas tanto estes como os helênicos devem
ter baixado ao Mediterrâneo em ondas sucessivas com longos
intervalos de tempo entre uma e outra. Sabemos, sim, que a primeira
grande invasão helênica do Oriente mediterrâneo acontece por volta
de 1400 antes de Cristo, e que a segunda e última invasão, a dos dórios,
que os gregos chamaram de “a volta dos heráclidas”, começa pelos 1200
antes de Cristo. O que invadem esses novos bárbaros do Norte?
Invadem uma civilização re nadíssima, que já existia antes no Mar
Egeu e que é a qual Toynbee, com sua arbitrariedade nominativa,
chama de “egéia ou minóica”. Sua gura geográ ca, comparada com a
da nossa civilização e a da greco-romana, é muito mais reduzida. Seu
centro está na ilha de Creta, e se estende pelas ilhas do Egeu, parte da
Grécia continental e a margem da Ásia Menor, incluindo a Síria.

Eu não queria entrar em demasiados detalhes, e que perdêssemos o


tempo que já não temos. Vejamos como consigo resumir minha idéia
do que nos convém saber sobre essa civilização egéia. Dela só temos
objetos e pedras desenterradas por judiciosas escavações, mas não
temos textos, porque mesmo quando possuímos numerosíssimas
inscrições, estas se mostraram enormemente resistentes a toda
decifração. Precisamente nesta mesma semana foi premiada uma
memória na qual parece que se dá um passo adiante no caminho dessa
decifração, a do senhor Benito Gaya, a quem aludi na aula anterior.

A primeira invasão dos helenos sobre o mundo egeu se veri ca em


1400 antes de Cristo. São os gregos mais antigos, os aqueus.
Incendeiam os mais belos palácios: Cnossos, Gurma, Palaicastro. Em
1200 baixa outra marejada destrutiva, e desta vez tudo perece. O
famoso labirinto foi destruído. Num livro muito recente, o grande
lósofo Hrozny, que foi capaz de nada menos que decifrar a escrita
cuneiforme hitita e até a escrita hieroglí ca de outro povo hitita,
chamado por isso de “hititas hieroglí cos”, assegura que a palavra
“labirinto” — labyrinthos — signi ca precisamente palácio do
soberano, palácio real; onde estava incluso o templo de uma divindade
da religião cretense, que era o touro antropomór co, o famoso
Minotauro. Labirinto, de fato, se sabia que era uma palavra de origem
helênica, como o indica o su xo “labrys”, mas parte da palavra é
também grega, mas não de origem grega, e signi ca para os próprios
gregos o machado duplo, machado que era o supremo emblema
religioso dos cretenses e, ao mesmo tempo, signo máximo da
majestade. Pois bem, “soberano” ao que parece se dizia, em cretense,
na medida em que foi possível coligir por razões sumamente
complicadas, “Taburna” ou “Laburna”, porque, em cuneiforme, ao que
parece, o complexo consonântico   se traduz às vezes por  e outras
por . Por isso Hrozny deriva “labirinto” de “laburna” e o su xo de
lugar, que indicaria palácio do soberano.27

Citei esse detalhe simplesmente porque é uma novidade, e


provavelmente não é conhecido de ninguém ou de quase ninguém de
vocês que me escutam, mas não haveria sentido em começarmos a
fazer uma história elementar de cada uma das civilizações a que vamos
nos referir, já que nem mesmo Toynbee o faz. O que temos de fazer é
nos ater àquilo que é importante na doutrina de Toynbee, neste caso, a
civilização egéia ou minóica. O que nos interessa é só isso. Sabemos
pelos historiadores gregos que os cretenses haviam gozado de certo
poderio graças à sua marinha. Insulanos e navegantes haviam feito
progredir a navegação, e suas naves dominavam os mares e lhes
permitiam estender seu comércio até vastas e remotas regiões.
Chegaram, de fato, não apenas à Grécia, mas também à Sicília e à
Sardenha. Um quarto de século atrás se pensava que também haviam
chegado — portanto, em 1400 — às costas mediterrâneas espanholas.
A isso se atribuía o fato de serem encontradas, nas etapas mais
primitivas da proto-história ibérica, contas de vidro, que os cretenses
haviam recebido dos egípcios e haviam aprendido a imitar para a
exportação. Parece atribuir-se a isso também o gosto de nossos
antepassados, supondo que o sejam, por certas decorações vistosas que
aparecem nas cerâmicas desde Alicante até Narbona, e ademais nas
Baleares; onde, muito posteriormente, não se sabendo então de onde
vinham, achavam-se objetos religiosos da religião cretense, como as
cabeças clássicas de touro com pombas nos chifres de consagração.
Mas nos livros dos arqueólogos espanhóis atuais isso se rejeita
totalmente. E, é claro, eu não tenho, em casos como este, em que se
trata de fatos, e a rmados por gente que conhece muito bem o seu
tema — pois isso sim é preciso apontar como um ganho positivo e
inquestionável nos últimos vinte anos da vida intelectual espanhola: a
existência de excelentes equipes de arqueólogos, coisa que antes não
existia. Havia, sim, uma ou outra individualidade. Havia, sobretudo, a
gura de Gómez Moreno, cujo conhecimento desses fatos e dessas
coisas parece não ter limite, mas não existiam equipes su cientemente
completas e bem preparadas como existem hoje. Portanto, diante disso
eu não tenho senão de me curvar e não dizer nenhuma palavra mais
direta. Indiretamente eu só me atreveria a propor aos arqueólogos
espanhóis que vissem se não teria sentido continuar suas
investigações, ou revisar algumas das antigas, considerando o fato
mais importante que se produziu nos últimos anos na perspectiva da
ciência histórica, que é ter-se dado conta e ter sido preciso reconhecer,
porque os fatos abonavam essa persuasão, que as profundas
civilizações mais antigas, sobretudo a mesopotâmica, e mesmo a mais
antiga, a suméria, tiveram uma in uência expansiva muitíssimo mais
funda em todo o corpo continental europeu do que se poderia
imaginar; ou seja, que é preciso correr as distâncias no movimento de
todos esses povos com relação ao que antes se considerava como
impossível.

Feita essa advertência, em matéria — repito — em que sou um


grande ignorante, não faço senão continuar. Vamos ao que importa
para Toynbee.

Os povos helênicos primitivos, isto é, os bárbaros helenos — vamos


nos dar o prazer, uma única vez, de pronunciar esse paradoxo,
bárbaros helenos — trituraram esse poderio marítimo, que os gregos
chamaram de talassocracia, de Creta, esse império do mar que,
segundo Toynbee, foi um Estado universal; portanto, que em nossa
peregrinação retrógrada, partindo da civilização ocidental a que
pertencemos, através da greco-romana até chegar à egéia, vemos que
se repetem, segundo Toynbee, os mesmos estágios com os mesmos
caracteres, e isso o faz presumir — embora precise de comprovação —
que as sociedades da espécie chamada “civilização” começam sempre
com uma Völkerwanderung ou invasão de povos bárbaros, ou
“proletariado externo”, que produzem um estado caótico de alguns
séculos de “interregno”, aos que seguem outros de formação e
desenvolvimento, após os quais vêm “tempos revoltos”, os quais, por
sua vez, terminam quando uma das nações integrantes dessa
civilização domina as outras e cria um Estado universal e com isso
uma Pax, na qual germina e amadurece uma religião universal
originada no “proletariado interno” dessa civilização. Os seis tomos de
Toynbee não fazem senão manejar constantemente — e logo veremos
que de um modo exasperantemente mecânico — esse leque de
conceitos. Mas essa suposição demanda comprovação, e esta supõe
que tenhamos à vista todas as civilizações de que temos notícias a m
de poder ver se nelas se cumpre esse processo.

Toynbee supõe, de um modo bastante sumário, que há vinte e uma


civilizações, nem uma a mais nem uma a menos. Não tem sentido
entrar agora na discussão de se todas as civilizações supostas, que
Toynbee enuncia e nomeia, são ou não o são de fato, porque nem
mesmo ele se deu ao grande trabalho nem à exatidão de sua
determinação, e não tem sentido que, por gentileza, vamos nós agora
opor uma seriedade de método que ele não pratica; o que lhe urge é
pôr-se diante de todas essas civilizações para ver se os fatos revelam
em seus respectivos desenvolvimentos históricos todos esses estudos a
que me referi, sobretudo os caracteres que são para ele mais
de nidores de uma civilização: terminarem numa Pax criada por um
Estado universal e numa Igreja universal de origem proletária.

Se vocês se colocarem, em sua mesa de trabalho, diante de uma série


de manuais, cada um dos quais relatando as vicissitudes históricas de
cada uma dessas vinte e uma civilizações e procurarem ver se, de fato,
todas elas passaram por uma Völkerwanderung, etc., etc., terão feito
aproximadamente o mesmo que fez Mr. Toynbee, o qual não creiam
que fez muito mais. O que acontece é que a esse expediente Toynbee
chama aplicar à história o “método empírico”, e quando um inglês crê
que o que vai fazer é aplicar a algo o método empírico, experimenta
tamanha satisfação, sente-se tão feliz e tão seguro que, recostando na
poltrona, acende o cachimbo e vê, nas lufadas brancas de fumo
ascendente, seu problema já resolvido. E é claro que ele já está, porque,
certamente não em todos os casos — conste —, mas sim no de
Toynbee e no de não poucos escritores ingleses dos últimos tempos,
sob isso que se chama “método empírico” o que se oculta é a resolução
totalitária de que repercutam nos fatos, queira-se ou não, as idéias que
o inglês tinha de antemão na cabeça. Assim no caso presente, em que
Toynbee parte decidido, custe o que custar, a descobrir na civilização
egéia um Estado universal de que ele carece. E em vista disso decreta
que a quase inerme talassocracia de Minos foi esse Estado universal.
(Como dizia o ditado malaguenho: Pegue o no pegue, en el cogote te
pinto un loro.)28 E não se trata de que nós tenhamos uma noção do
Estado universal distinta da de Toynbee. Não; resolutos a segui-lo com
a maior docilidade, aceitamos a sua noção, que não é nem mais nem
menos que a que o Império Romano torna manifesta. Entretanto, essa
foi a integração sob um único poder público de várias nações, umas
delas primitivas, como as Gálias e a Espanha, outras muito mais
avançadas, mais civilizadas, velhas, ricas e estruturadas que a própria
Roma, como o Egito, a Grécia e a Síria. Quando os gregos falavam da
talassocracia como de uma realidade que era para eles remotíssima,
entendiam por essa palavra simplesmente o que ela designa: domínio,
império, se se quiser, sobre o mar; mas eles não tinham notícia, nem
nós a temos nem pode tê-la o senhor Toynbee, de que os egeus
dominassem algum povo, alguma nação; entre outras coisas, porque
em sua órbita de in uência não existiam ainda nações. Parece que
colonizaram algumas das pequenas ilhas Cíclades que estava
desabitadas ou quase, e as que estavam um pouco habitadas o estavam
pelos piratas cários, os quais eles despacharam para pôr ordem nas
piratarias do mar. Mas algo de que não se tem notícia é de qualquer
guerra, de qualquer entrechoque guerreiro dos cretenses. Heródoto
mesmo, que refere algo do que ouviu dos cretenses do seu tempo, que
aludiam a umas vagas guerras, se mostra incrédulo, e Tucídides, no
primeiro livro de sua História — naquele famoso trecho que talvez
algum dia o Instituto de Humanidades comente palavra por palavra,
pois é a primeira expressão cientí ca do passado humano e
especialmente do helênico — insiste em que a intervenção egéia o que
produziu não foi senão a possiblidade para os povos das costas de
fazer comércio paci camente e de se enriquecer cada um por si. Essa
notícia de que o que os cretenses conseguiram foi permitir que os
outros enriquecessem indica que não eram povos muito dominadores.
E, de fato, os cretenses não eram povo guerreiro. Durante a maior
parte de sua história, suas cidades e palácios não têm muralhas, ou
seja, nem sequer se preocupam em defender-se, e se houve na história
alguma civilização feminina, ou seja, sem pugnacidade, foi a
civilização egéia. Tiveram certamente uma in uência ampla e
vigorosa, embora nunca profunda, sobre parte da Grécia e a costa da
Ásia anterior, mas esse in uxo jamais foi obtido por violência, mas
pela graça. Não venceram ninguém, mas seduziram muitos. A
civilização cretense deve ter sido, formalmente falando, encantadora, e
por isso seu símbolo melhor é sua deusa principal, vestida com saia de
babado, à andaluza, que aparece sempre trazendo nos braços e nas
mãos, enroladas, umas serpentes seduzidas.

Equiparar essa talassocracia cretense, tão suave e tão mansa, com o


Império Romano, com sua tremenda e inexorável vontade de mando,
de imperatividade, chamando os dois com o mesmo nome, Estado
universal, é querer apagar as luzes para que todos os gatos quem
pardos. É verdade que o livro de Toynbee, desde um certo ponto de
vista, que não lhe tira outras virtudes, é uma enorme e estranha
tentativa, teimosa e inquietante, de empardecer todos os gatos da
história.

Mas Toynbee ainda passa mais aperto quando busca, na civilização


egéia, como precedente da greco-romana, o outro signo característico:
uma religião universal que se tivesse originado no proletariado interno
egeu, e tivesse sido a base rme e fecunda da vida greco-romana. Mas
acontece que não se tem notícia alguma do que pudesse ser o
“proletariado interno” em Creta e, ademais, as religiões constitutivas
de helenos e latinos eram exatamente o contrário da cretense e não
procediam de nenhum proletariado, mas do que o próprio Toynbee, e
não eu, chama de “minoria dominante”. Os deuses olímpicos, de fato,
são deuses de nobres guerreiros, e por isso eles próprios são deuses
beligerantes. Toynbee o reconhece e não se atreve a intitular — seria
uma barbaridade — a civilização egéia como materna da greco-
romana, do mesmo modo como pode dizer que esta é materna da
nossa ou a nossa lha daquela.

Mas como Toynbee não está disposto a ceder perante os fatos, uma
vez que não pode a rmar de maneira resoluta que a civilização greco-
romana nasce como lha da cretense, que ela tem, pois, com aquela a
relação que ele de niu como paternidade ou maternidade e liação,
não obstante, decide a rmar que a civilização greco-romana procede
da egéia, mas acrescentando uma interrogação. Essa interrogação é
in nitamente inglesa. Essa interrogação, interposta como uma mola
entre os fatos e sua idéia preconcebida, signi ca algo como um
gentlemen’s agreement entre os dados e sua concepção maníaca, que o
permite continuar fumando seu cachimbo tranqüilamente. Contudo,
tal interrogação seria admissível se as razões em pró e em contra de
que a cultura greco-romana pudesse derivar da egéia fossem
contrapesadas, ou mesmo que, ainda que predominassem as razões
negativas, ao m e ao cabo existissem algumas razões de peso para
a rmar sua derivação. Mas nem de longe isso acontece; em nenhum
sentido se pode dizer a sério que a civilização egéia engendrou a
greco-romana. Em nenhum sentido se pode dizer a sério que os bons
cretenses foram mestres de helenos e romanos; esses bons cretenses,
que eram artistas, mercadores, navegantes, dançarinos e toureiros.
Portanto, essa interrogação pode até ser uma interrogação, mas o que
ela não é, é séria. E peço-lhes agora o favor de registrarem tudo isso
contra Toynbee, para que não venha acontecer de — e eu não o decidi
ainda — eu formular, na última aula, o meu juízo pessoal sobre sua
pessoa e sua obra e me jogarem na cara que sou agressivo, áspero e
exigente.

A verdade, senhores, é que já tem quase vinte anos que existe em


todo o mundo, não somente na Espanha, uma impunidade no
exercício ou pseudo-exercício da inteligência, que coincide
paradoxalmente com as formas mais ou menos severas da censura,
governamental em alguns países, direta, social em outros, o que vem a
dar no mesmo; uma impunidade, digo, que urge fazermos o possível
para erradicar, porque está rebaixando de modo gravíssimo a mente
ocidental. Aqui, nesse exemplo, que é um detalhe, puderam ver um
fato representativo de como um intelecto não está em forma. Porque
apenas a quem não está em forma intelectualmente pode ocorrer
cometer um deslize assim. O caso é que, no resumo, publicado
recentemente, da obra de Toynbee, onde ele podia ter aproveitado a
ocasião para corrigir seus maiores deslizes, expressou a mesma coisa
de forma ainda pior, porque diz que a civilização egéia é loosely
apparented, “vagamente paterna”, da greco-romana. O que quer dizer
isso, “vagamente paterna”? É como se disséssemos que alguém é
“vagamente” pai de seu lho, coisa que pronunciaríamos a uma
conveniente distância dele, para evitar a represália imediata. É, de fato,
uma deformidade formidável e posso assegurar a vocês que em
nenhum livro alemão nem francês, mesmo de segunda ou terceira
categoria, encontrarão uma torpeza parecida. Por que isso é assim
num povo tão formidável como o inglês, em que há tanta quantidade
de ciência como pode haver em qualquer outro? É verdadeiramente
um enigma que talvez, se tivéssemos tempo, tentaríamos, muito de
longe, elucidar, procurando dizer o que é, para um inglês, escrever um
livro, porque é algo completamente distinto do que é escrever um livro
para um alemão, para um francês e para um espanhol.

Mas o próprio assunto tem um ponto mais desastroso para a doutrina


de Toynbee, porque, não podendo a rmar francamente, sem
interrogação, que a cultura greco-romana é lha da egéia, aquela ca
então sem origem conhecida; aquela, a mais importante para Toynbee
e para nós, a paradigmática, ca sem pais, espúria, como órfã e
desabrigada. E isso é inadmissível precisamente na doutrina de
Toynbee. Porque, se a greco-romana não tem precedentes, terá então
de entrar na classe de civilizações, absolutamente originais, que não
procedem de nenhuma outra, como são para ele, na Eurásia,
estritamente apenas duas: a mesopotâmica ou suméria, e a egípcia, as
quais colocam para Toynbee problemas especiais e de grande interesse
— é uma das partes mais interessantes de sua obra — para buscar
como nasce uma civilização quando não nasce de outra, ou seja,
quando não é lha de outra. O caso é que não haveria como; não é o
momento para per lar mais exatamente a conduta cientí ca de um
homem como Toynbee, observando com alguma atenção suas
manipulações ao se esforçar por limpar tudo o que pode encontrar no
mundo egeu de formas religiosas que apareçam também na Grécia.
Mas, primeiro, sua teoria não exige isso, do contrário o que pediria
seria provar que essas formas religiosas comuns na Grécia e na Egéia
provinham de um “proletariado interno” de Creta; segundo, que —
situação curiosa — Toynbee podia ter aproveitado muitíssimos mais
fatos, isto é, efetivos fenômenos religiosos e de outras ordens que havia
em Creta e que aparecem também na Grécia; mas, por não conhecer
bem essa civilização, como em geral não conhece quase nenhuma,
salvo, é claro, a grega e, ademais, a árabe, ocorre que não o percebe; ou
seja, além de internacionalista — lembrem-se da minha primeira aula,
e farei um pouco de penitência aos que então julgaram inoportuno
começar este curso falando da formação internacionalista anglo-saxã
—, além de internacionalista ou jornalista anglo-saxão está mal
informado, e desta vez, ao que parece, contra si mesmo. E terceiro: de
certo modo tampouco serviriam todos esses fatos, que ele, pelo visto,
não conhece, para fundamentar seu desejo de derivar a cultura grega
da egéia, porque trata-se de uma corrente gigante, cujos efeitos são
profundíssimos e que chegam muito longe, e que cada vez ca mais
claro, mais evidente — os fatos e os documentos o vão demonstrando
— que vem da cultura mais primitiva, do fundo da Mesopotâmia, a
qual chega, como eu disse antes, a regiões incríveis. Considero isso
como a inovação mais importante na perspectiva histórica do último
quarto de século. Mas essa in uência é de um tipo radicalmente
distinto do único que Toynbee admite até agora, o de uma civilização
determinada por outra: o que ele chama de relação de paternidade e
liação. E essa gigantesca corrente de in uência não é determinada,
seus limites são indetermináveis, porque é, de fato, própria e
rigorosamente universal. Ou seja, existe algo mais importante que essa
pretensa relação de maternidade e liação entre uma civilização e
outra, e é a in uência universal; isso é fatal para a doutrina de
Toynbee, porque ele começou a rmando que o campo histórico
inteligível, que a realidade histórica que se entende sem sair dela é uma
civilização. Mas não há outra opção senão sair de toda civilização para
um campo mais vasto para poder entendê-la. E, de fato, ainda que
pareça incrível, no livro , e até agora o último publicado de sua obra,
Toynbee, que em última instância é leal, nem é preciso dizer, dá um
tapa na própria cabeça e diz: “Diabo!” — não com essa palavra, mas
uma equivalente. “Fiquei os cinco primeiros tomos do meu livro
defendendo que o campo histórico inteligível é uma civilização, e
agora vejo que me equivoquei, que há in uências universais”.

Aqui vocês podem ver uma das coisas mais graciosas que só se
encontram nos livros ingleses e que só se entendem se se explica o que
é, para um inglês, escrever um livro.

Quando a civilização egéia começa já estão presentes as duas


primeiras grandes civilizações, a mesopotâmica inicial — a suméria —
e a egípcia. Logo os cretenses se põem em contato com elas,
comercializam com elas, mas não irrompem sobre ela nem em sua
área, nem tentam incluí-las em nenhum Estado universal. Toynbee
não sabe o que fazer com a civilização egéia e, titubeando, também
indecisamente, declara-a “vagamente original”. De todo modo somos
transferidos, como a uma última instância, a essas duas civilizações
ainda mais antigas. A mesopotâmica inicial ou suméria nos situa já no
ano 4000 antes de Cristo. Aqui muda a perspectiva histórica, e isso
coloca para Toynbee um problema completamente novo, pois, sendo
uma civilização que não tem precedente, que não procede de outra,
não resta senão questionar-se, de maneira peremptória, como nasce
uma civilização quando não é lha de outra, quando nasce como que
por geração espontânea; como é, diz ele, que depois de trezentos mil
anos sem haver civilização desse tipo, um belo dia, às margens do
Eufrates e do Tigre, surge esse fato completamente novo no planeta
que é uma civilização. Parecia natural, e a todos vocês deve ter
ocorrido, tentar derivar essas civilizações das formas preexistentes de
vida nas sociedades primitivas, a que antes se chamava selvagens.
Aceitemos que não se chame de civilização esse regime de vida
primitiva, embora discriminar onde acaba o selvagem e começa o
civilizado seja completamente impossível; mas o que é inquestionável é
que essas duas civilizações primeiras tiveram de nascer em
continuidade com a vida primitiva. E, de fato, tanto no Egito como na
Mesopotâmia esse seu passado primitivo está presente nelas,
certamente. Assim como o passado primitivo ou selvagem está
certamente presente na Grécia e em Roma. Como está presente em nós
próprios. Já sugeri em alguma aula passada que o passado humano não
passa, se por passar se entende simplesmente deixar de ser; não passa
como passa o mundo físico, pois o passado humano persiste em todo o
presente sob a forma peculiar de ter sido. Ignora-se demais, me parece,
que o passado, para sê-lo propriamente, tem de sê-lo num presente,
tem de estar conservado num presente. De outro modo não seria nem
passado, mas simplesmente nada, pura inexistência. O homem,
senhores, é justamente quem conserva presente esse passado. O
homem é um animal que traz história dentro, que traz dentro toda a
história. Não cabe de nição do homem menos “darwiniana”. Se eu
citasse aqui algumas coisas primitivas, portanto, selvagerias que vocês
e eu fazemos e somos, mesmo atendo-me apenas a fatos patentes e sem
procurar sarna para me coçar, é possível que alguém casse
desgostoso, alguém que talvez tenha a pretensão de não ser selvagem.
Eu, ao contrário, não a tenho. Estou completamente convencido da
dose de selvageria, bastante considerável, que há em mim, e é preciso
que seja assim.

Pois a verdade é que o homem leva sempre nas costas todo o seu
passado humano, mesmo o mais primitivo, ou seja, continua sendo
primitivo, e graças a isso é homem. Se alguém extirpasse magicamente
de qualquer um de nós todo esse passado humano, ressurgiria nele de
modo automático o semigorila inicial de que partimos; arborícola, isto
é, inquilino habitante das árvores onde vivia, sobre pântanos
infectados e, em hipótese (atenção, apenas em hipótese), que talvez
algum dia eu exponha a vocês, doente de paludismo ou de alguma
coisa similar, etc., etc.; porque não é esta a oportunidade para
desenvolver o tema e ainda reclamo que as pouquíssimas palavras
ditas sobre ele por mim sejam entendidas estritamente, porque
implicam um conhecimento bastante nutrido da situação atual no
problema logenético do homem, que é muito distinta da que existia
no tempo de Darwin ou de Haeckel.

A separação radical entre civilizações e sociedades primitivas é


executada por Toynbee, como tantas outras coisas de sua obra e
doutrina, de modo bastante arbitrário, sem que se dê ao trabalho
sequer de nos dar algumas razões de por que o faz. Contudo, não lhe
resta senão reconhecer na sociedade primitiva também o caráter de
campo histórico inteligível.

A verdade obriga a dizer que os grandes progressos na ciência


histórica durante os últimos cinqüenta anos deveram-se, não aos
lólogos e historiadores sensu stricto, mas aos etnógrafos, arqueólogos
e economistas. A etnologia moderna foi iluminando recônditos
profundos da realidade histórica antes impenetráveis, mesmo na
história dos povos mais conhecidos, como Grécia e como Roma. Nas
aulas anteriores, várias vezes tivemos oportunidade de nos deparar
com essa presença do passado no presente. Essa idéia de querer cortar
a continuidade entre sociedades primitivas e civilizações não pode
levar Toynbee a nada de bom. Porque assim não há modo de explicar
historicamente, por razões históricas, portanto, com precedente
histórico, a origem das civilizações originais, como a egípcia ou a
suméria ou mesopotâmica. Porém, não se pode negar que Toynbee se
coloque esse problema com inusitada energia, a que devemos lhe
agradecer, e logo veremos se sua solução pode nos satisfazer. A maior
parte das vinte e uma civilizações conhecidas procedem plena ou
obrigatoriamente de seus originais, isto é, que por sua vez não
procedem de outras. São a suméria, e egípcia, a egéia, a maia, no
centro da América; a inca ou andina, na América do Sul, e a sínica, no
Extremo Oriente, e talvez — seria a sétima — a proto-índica de
Mohenjo Daro. E estas colocam energicamente o problema de sua
origem. A que se deve esse estranhíssimo fenômeno do brotar
espontâneo da maravilha que é sempre uma civilização? Ainda que
Toynbee reconheça que não pôde encontrar “nenhum ponto
permanente e fundamental de diferença” — são suas próprias palavras
— entre civilizações e sociedades primitivas, o fato é que declara a
transição destas para aquelas como uma mutação, portanto, como algo
radical que consiste, segundo ele, em que, enquanto a sociedade
primitiva é estática, a civilização é dinâmica. Portanto, que a gênese de
uma civilização consiste em que uma coletividade humana, que até um
certo momento viveu em quietude, a abandona para entrar numa fase
de movimento. Mas, ao menos, bem ou mal fundada, essa distinção
entre sociedade primitiva e civilização leva Toynbee a propor, com
grande urgência, a questão: Por que, depois de trezentos mil anos de
vida estática, de repente, há seis mil anos, se dispara essa forma de
mobilidade na vida humana que se chamou de civilização? Embora se
justi que que, quando da publicação de seu primeiro tomo, Toynbee
conceda à espécie humana uma longevidade na Terra de apenas
trezentos mil anos, nas edições sucessivas, por estar melhor
informado, pode ter feito algum reparo em tal cifra, pois diversos
dados de consideração convergem, ao que parece, para que seja
bastante provável o cálculo de que a presença do homem sobre a Terra
seja da ordem de um milhão de anos. A base principal do cálculo são
os períodos das últimas glaciações do planeta.

Pois bem, que causa pode haver para que, depois desses trezentos mil
anos de quietude (senhores, não permaneçam tão tranqüilos, porque
isso é uma enormidade; dizer trezentos mil anos de quietude, centenas
de milhares de anos em que, aparentemente, não aconteceu nada,
quando em seu transcurso foram criadas e inventadas as coisas mais
básicas para a existência humana; mas tenhamos calma); como é que,
depois de trezentos mil anos de quietude, um belo dia, junto do
Eufrates e do Nilo, surge o orescimento prodigioso de uma vida
móvel, inquieta e rica, que se chama civilização? Esta causa não pode
ser senão uma destas três coisas: ou uma raça superior apareceu, ou
um contorno geográ co — terra e clima — excepcionalmente
favorável, ou uma combinação dos dois fatores: a coincidência de uma
certa raça com um certo clima. Essa é a análise que Toynbee faz, e que
o leva a uma idéia que não pode chamar de sua, mas que,
indubitavelmente, inegavelmente, a expressou com grande energia e
acerto. De fato, dá-nos alguma luz sobre o dinamismo histórico, sobre
as mudanças na situação humana, sobre as vitórias e derrotas dos
homens: é a categoria dupla que ele intitula “obstáculo” e “ataque”. Em
realidade, a primeira das duas palavras não ca bem, porque é uma
daquelas palavras que há em cada idioma de tal modo íntimas que
nenhuma outra língua pode traduzir. É a palavra challenge, que quer
dizer ao mesmo tempo obstáculo, desa o, ameaça, provocação, perigo,
etc.

M a s p a r e m o s p o r h o j e , e deixemos a análise de todas essas


questões para a segunda-feira que vem, porque eu gostaria, ainda mais
resolutamente do que já z, ter me contido dentro dos limites justos
do tempo, pois a verdade é que, nessas últimas aulas, abusei de vocês
de formas diversas, primeiro, retendo-os aqui tempo demais; segundo,
forçando-os a um gasto de atenção e de emoção que são um pouco
inusitados. Por isso, aproveitando a necessidade que temos hoje de
expor uma parte do pensamento de Toynbee, dei-lhes um dia de férias
e descanso, e dei uma aula bastante tonta. Eu chamo de aula tonta toda
aula que careça de dramatismo; esse dramatismo não é algo que o
professor acrescente ao tema, não consiste nos trejeitos e paixões que o
professor queira pôr e que seriam vãos, mas consiste simplesmente em
ter entendido bem o tema, e então brota dele o dramatismo, porque
todo tema cientí co é um problema, e todo problema é um drama,
sempre e por si mesmo, um drama intelectual, mas quase sempre,
ademais, um drama para o homem inteiro. Mas o dramatismo
prolongado fatiga, e eu quis hoje evitar a fadiga de vocês e, além do
mais, por que não dizer?, eu tinha um certo desejo e até uma certa
vaidade de demonstrar que também eu, como qualquer um, quando é
necessário e a trajetória imposta o recomenda, sei fazer uma aula
bastante tonta.

A X
Revisão da aula anterior. — As
civilizações originais. — O fator raça. —
O gênio do inglês. — O racismo. — O
método empírico e as idéias puras. —
Desa o e resposta. — O homem, animal
fantástico.

S enhores, houve, contando com as atuais, vinte e uma civilizações,


segundo Toynbee. Delas, quinze nascem de outras preexistentes,
com as quais mantêm sempre, segundo o nosso autor, uma precisa
relação de lhas para com mães. A apreciação dessa liação consiste
em que a nova civilização nasce mediante a destruição, por povos
bárbaros, de um Estado universal em que a anterior havia conseguido
en m se organizar, e do qual herda uma religião universal criada no
“proletariado interno” da periclitada. Desta religião viverá
historicamente a civilização lha ou liada, pois encontra dentro de si
os resíduos da materna que, nesse sentido, faz parte integrante dela.
Notem que, se se quiser entender Toynbee, é preciso tomar tudo isso
formalmente, porque está implicado em sua idéia primeira e radical de
que uma civilização é o “campo histórico inteligível”, isto é, a realidade
histórica que se pode e se deve entender sem dela sair. Tal concepção
não admite, pois, que uma civilização receba in uências importantes
de outra com a qual não esteja aparentada ou da qual não seja liada
— as in uências que chamei outro dia de “difusas” ou “universais”. Isso
obrigaria Toynbee, e de certo modo o obriga, no nal de sua obra
publicada, a destruir sua idéia inicial do “campo histórico inteligível”.

Essas quinze civilizações liais nos levam para seis originais, sem
precedentes, que não nascem de outras, mas de si mesmas. São a
egípcia; a suméria, que é a primeira civilização mesopotâmica; a egéia;
a s í n i c a o u chinesa primitiva, da qual nasceu a chinesa atual ou
extremo-oriental; a dos maias, na Guatemala e Yucatán, na América
Central; e a andina dos incas, na América do Sul.

Toynbee, dissemos, nega-se a derivar essas civilizações originárias das


sociedades primitivas, porque, a seu ver, o fato da civilização signi ca
uma mudança radical na vida humana, que, de estática, na sociedade
primitiva, passa a ser incessante movimento ou mudança nas
civilizações. É claro que essa pretensa estaticidade das sociedades
primitivas é algo sobre o qual haveria muito o que dizer, mas deixemos
o tema intocado para quando, num outro ano, eu puder conversar com
vocês exclusivamente sobre a vida primitiva, um dos temas mais
apaixonantes que existem. Provavelmente a diferença entre a sociedade
primitiva e a civilização não esteja nessa contraposição radical entre
uma suposta vida estática e uma vida movimentada, mas na verdade
num grau diferente de aceleração. A prova disso se vê em que a
aceleração é diferente comparando uma civilização com outra, e que
numa civilização pode haver paralisações; o próprio Toynbee forma
uma subclasse de civilizações a que chama “paradas”, e que, por ser
tema secundário, não podemos comentar; e, en m, que dentro de uma
mesma civilização é distinta a aceleração numas épocas e em outras.
Assim, a nossa, desde 1900 entrou num ritmo de tal celeridade, isto é,
de mudança, como talvez não tenha havido jamais no planeta. E isso
não são apreciações vagas, porque, em certas ocasiões decisivas, essa
aceleração pode ser medida e graduada por números, isto é,
matematicamente, estatisticamente. Assim, por exemplo, e é algo de
que já se fez mais que um esboço, com relação às invenções técnicas:
desde 1900 a freqüência delas, portanto sua densidade, é tal que,
comparada com os anos transcorridos deste século [ ], o século 
parece, em expressão numérica, como imóvel. Nem falemos dos
anteriores. Essa é uma das coisas em que o homem de agora não
reparou su cientemente: que a enorme mudança se produziu
justamente nesses quarenta anos próximos. O que acontece é que o
século  — e não digo que sem razão, porque tudo é relativo —
falou demasiadamente e celebrou com canções que “hoje as ciências
avançam que é uma barbaridade”. Mas foi de fato uma barbaridade, e
talvez tenha contribuído em parte para a barbarização, precisamente
no nosso século.

Vejam neste detalhe como não era uma arbitrariedade minha


sustentar repetidamente que a nova ciência histórica tem de ser feita
com algo além de folhear a papelada dos arquivos. Logo de saída, deve
ser feita com estatísticas, e a estatística não pode ser elaborada senão
mediante uma teoria prévia que lhe dê sentido.

Quando Toynbee corta a comunicação com as sociedades primitivas,


renuncia a explicar a origem de duas civilizações primevas — a egípcia
e a suméria — por nenhum passado; portanto, por nenhuma razão
histórica, e tem a necessidade de recorrer à hipóteses mistas de
geogra a e fantasmagoria, porque, posto assim o problema, de fato, a
origem, a causa da qual dispara o movimento que é uma civilização só
pode ser encontrada em alguma destas três coisas — dizíamos ao m
da aula passada: ou numa raça superior que subitamente apareça, ou
num contorno geográ co excepcionalmente favorável por uma ou
outra razão, ou então na combinação entre ambos os fatores, o
encontro de uma certa raça com um certo meio físico.

Que a raça não pode ser a causa geradora da civilização é coisa


indubitável. Além de inquestionável, é inquestionada. A ninguém
ocorreu pensar outra coisa, e se fosse essa a única e autêntica questão
que a trajetória de sua doutrina coloca, neste momento nosso autor a
teria despachado em duas linhas, porque é bastante notório o fato de
que todas as raças menos uma, a saber, a negra, engendraram
civilizações; portanto, que não é a raça simplesmente quem cria a
civilização. O que se discute não é isso. Ninguém havia pensado o
contrário. O que se discute desde Gobineau é se há alguma raça ou
raças que sejam as únicas capazes de criar a mais excelente civilização.
Mas isso tampouco pode interessar a Toynbee, porque previamente o
rolo compressor de sua doutrina nivelou todas as civilizações, e para
ele tanto faz, pelo menos o cialmente, a grega ou a européia como a
maia da Guatemala e Yucatán ou a andina dos incas. E, contudo,
detém-se morosamente no assunto, mas não — está claro — para
precisar a noção rigorosa, cientí ca de raça e elucidar seu possível
nexo com a gênese da civilização. Demonstrando uma vez mais que
seu autêntico temperamento não é de intelectual, de homem de
ciência, de teoria, ou como quiserem chamar — já veremos qual é seu
efetivo temperamento —, suplanta a genuína e cientí ca questão de
raça e civilização pela jornalística e política do racismo, porque ele é,
naturalmente, um furibundo anti-racista; fúria e atitude que, aos que
não somos racistas, mas não nos dedicamos a ler sua obra com a
nalidade, que seria morosa, de agüentar e receber sobre nós as
secreções privadas de suas simpatias e antipatias, não nos interessa
nada. Mas é tal a estranha condição desse autor que suas transpirações,
de tão arbitrárias, acabam às vezes divertidas. Assim é na conjuntura
de falar sobre o problema de raça e civilização. Destacarei apenas
alguns pontos. Primeiro, Toynbee sustenta não somente que não há
uma raça superior que tenha criado a civilização, coisa, como eu disse,
que ninguém pretende, mas a rma que a raça não tem importância
alguma na formação das civilizações. A m de demonstrá-lo,
apresenta uma tabela em que, de um lado, aparecem as vinte e uma
civilizações citadas, mais algumas várias que acrescenta por serem
derivações secundárias daquelas; e do outro, as raças cromáticas, isto
é, de nidas pela cor de sua pele, que as geraram e serviram. O total de
civilizações que resulta é de trinta e quatro; delas, vinte e cinco
procedem da raça branca, e só nove de outras colorações; entre as nove
estão — por serem demasiado próximas para serem contadas à parte e
por serem expansões de outra civilização anterior — a mexicana e a
yucateca, procedentes ambas da maia, ou vice-versa, pois há
discussões sobre qual in uenciou as outras, mas para o caso é
indiferente. Ficam, pois, reduzidas a sete. O natural seria que essa
enorme diferença numérica de sete para vinte e cinco a favor da raça
branca alterasse um pouco esse homem do “método empírico”; mas
isso não acontece, e ele nem repara. Ao contrário, poucas páginas
adiante nos apresenta outra tabela, porque interessa-lhe mostrar como,
na formação de quase todas as civilizações, várias raças in uenciaram,
e agora não se refere apenas ao seu caráter cromático, ou seja, pela cor
da pele, mas às que hoje os antropólogos distinguem, como a nórdica,
alpina, mediterrânea, etc. Dessa tabela resulta — leio suas palavras —
que “duas civilizações foram criadas pela contribuição de três raças
diferentes, nove por contribuição de duas diferentes raças, e dez pelo
esforço exclusivo de apenas uma raça”; portanto, “mais da metade das
civilizações que agora emergiram foram criadas por uma mescla de
raças”. Por certas sumárias disquisições que executa em pouco mais de
seis ou sete linhas, essas dez civilizações nascidas de uma só raça cam
reduzidas a um vago número menor, e então triunfalmente diz: “o
número de civilizações criadas pelo esforço exclusivo de apenas uma
raça é, em todo caso, tão relativamente mínimo que esses casos
representam exceções a uma lei prevalente — uma lei para os efeitos
de que a gênese das civilizações requer contribuições de mais de uma
raça”.

O que lhes parece, como sintoma da contextura mental de um


pensador? Porque notem que, nessas palavras, cometem-se, uma após
a outra, as seguintes enormidades: primeira, fala-se de uma lei
prevalente, como se houvesse leis cientí cas que não fossem
prevalentes; segunda: admite-se exceções a essa lei, coisa que não
acontece com as leis, mas com as meras regras; terceira, e sobretudo,
que quem acaba de a rmar radicalmente que as raças não têm
importância na formação das civilizações, um pouco à frente proclama
solenemente nada menos que uma lei histórica, segundo a qual o
normal é que a civilização nasça pela contribuição de várias raças. Ora,
eu creio que o fato de várias raças intervirem na formação de uma
civilização seja uma forma como outra qualquer de o princípio de raça
intervir na gênese de toda civilização. Do contrário seria como a rmar
que no cocktail não intervém um álcool, porque intervêm vários
álcoois.

Mas passemos agora ao segundo ponto em seu modo de explicar a


origem da civilização. Aqui Toynbee culmina num gesto de
hombridade. O racismo — que ele põe como sinônimo de crença na
superioridade absoluta de uma raça sobre outras — procede, segundo
Toynbee, do protestantismo inglês. Com isso manifesta sua
imparcialidade, e não ser homem que tem papas na língua. No seu
entender, foram os protestantes ingleses os primeiros a incubar a
crença de que há um povo superior aos outros, eleito, e nisso toda a
Inglaterra chegou a crer plenamente, por ter averiguado que houve um
povo escolhido por Deus, e essa averiguação havia feito lendo o Antigo
Testamento. Vejam por que série de choques no bilhar das idéias
resulta que o anti-semitismo, o antijudaísmo, que tão terríveis
sofrimentos trouxe para os judeus, provinha, como que de sua fonte
originária, do livro judeu por excelência, da Torah, ou Antigo
Testamento.

Nosso Toynbee não repara que a idéia de um povo escolhido por


Deus é coisa completamente distinta da idéia de raça, sob pena de
alterar a questão ainda mais grotescamente e supor que o próprio Deus
é racista, e que, se elegeu um povo, é porque esse povo é de uma
determinada raça.

É curioso que não ocorra a Toynbee, em cuja obra não há uma só


idéia aguda, perspicaz e nem sequer simpática e amorosa sobre seu
próprio país — um país cuja peculiaríssima maneira de ser, cuja
surpreendente história constitui um dos temas mais sugestivos para
qualquer inteligência que seja intelectualmente alegre e para qualquer
coração medianamente impressionável —, não ocorra a ele pensar que
talvez as coisas tenham se passado de modo inverso, a saber: que,
porque o povo inglês acreditou quase a nativitate que era o povo
superior a todos os outros, quando viu que no Antigo Testamento se
falava de um povo que era escolhido por Deus, não duvidou nem por
um instante de que esse povo fosse ele, que a Inglaterra era o autêntico
Israel. É sabido que, de fato, durante algum tempo, na época puritana,
foi sumamente freqüente na Inglaterra o emprego de nomes hebraicos
em pessoas que não tinham nem uma gota de sangue judeu. Mas é
claro que, nem mesmo decidido a fazê-lo, Toynbee consegue
simplesmente derivar do Antigo Testamento a moderna
hierarquização das raças, e então acrescenta a essa primeira a rmação
uma nova, segundo a qual os ingleses foram também os primeiros a
descobrir a consciência distanciadora entre as raças por ocasião de
necessitar embater-se e conviver com homens de cor em suas colônias.
Não se vê como ele compagina isso com o fato inquestionável de que o
povo que primeiro e mais extensamente recebeu e adotou o racismo —
e não me re ro ao dos últimos anos, mas de oitenta anos atrás, sob o
in uxo de Gobineau, foi precisamente a Alemanha, a única nação
européia que não tinha colônias. Mas dá-se que, combinados o Antigo
Testamento e o cheiro do negro ou do hindu, se origina, para Toynbee,
o racismo; portanto, inglês e Bíblia ou inglês e negro, sempre aparece
primeiro o inglês. Um mal-intencionado diria que, até sem se dar
conta, Toynbee é tão inglês que acredita ser o povo inglês escolhido
por Deus para inventar tudo e ser a origem de tudo, do bem e do mal
— até do racismo. Mas isso seria muito injusto, porque, em toda a obra
de Toynbee, ao menos patentemente, não há uma só palavra de
exaltação à Inglaterra. Mais ainda, eu sinto em toda ela o contrário,
porque noto como que um desapego para com a Inglaterra, um
desinteresse para com ela, algo muito estranho. E aqui começa a
aparecer um pouco o que anunciei a vocês no primeiro dia, que
encontraríamos dentro do inglês atual, se o abríssemos de cima a
baixo, algo de muito estranho que, numa primeira aproximação —
vejam, só numa primeira aproximação — interpretaríamos surpresos
— portanto não a rmo nada, mas é um efeito que em todo leitor
sensível tem de se produzir — como se, no fundo desse homem,
começasse a fermentar a dúvida sobre ter ou não sentido continuar
sendo inglês. E como isso não pode ser atribuído de modo algum a
motivos triviais nem a causas de tipo super cial e tópico, como seria,
por exemplo, estar liado ao partido comunista ou coisa parecida, e
como além disso encontramos algo muito semelhante latente em
outros dos melhores homens entre os ingleses de hoje, temos a
impressão de que acabamos de tocar com o dedo um dos fatos mais
delicados e talvez mais decisivos da época atual, do qual temos de nos
aproximar com escrupuloso respeito, mas ao mesmo tempo decididos
a esclarecer, porque talvez, nesse estado de espírito latente, o que late
seja nada menos que o grande segredo do futuro imediato para todos
nós. E por isso não é algo indiferente para nós, e tenhamos de
apreendê-lo. Não posso ser agora, nem mais explícito, nem mais claro,
mas tenha-se sempre presente que o maior gênio da Inglaterra não está
no que pensa com o cérebro dentro de sua cabeça, portanto, no que
pensam seus escritores, seus pensadores e, mais em geral ainda, no que
dizem os ingleses, pois é sabido que o inglês considerou
ordinariamente a linguagem como o mais esplêndido instrumento que
o homem possui para ocultar seu próprio pensamento. O maior gênio
da Inglaterra não está no cérebro de suas cabeças, mas em outro
cérebro mais acima dos sótãos do seu ser, onde funciona uma forma
estranha de inteligência que já é quase puro instinto ou, dito
inversamente, um instinto que tem lucidez de inteligência. Por isso, ao
ouvir ou ler um inglês, não devemos jamais nos ater ao que foi lido ou
ouvido, mas devemos procurar ir para trás disso e discriminar o que
está ali por trás; o genial do inglês é o que mana desse fundo quase
instintivo, o qual é, portanto, inefável e só resta, em suma, adivinhá-lo.

Toynbee crê que seja uma boa explicação do racismo essa


combinação de Bíblia e colônias, e para isso julga su ciente observar a
diferente conduta que os povos católicos coloniais, como a Espanha e
Portugal, que liam menos o Antigo Testamento, tiveram para com os
povos indígenas. De fato, em vez de exterminá-los como zeram
primeiro os ingleses ou depois distanciá-los humanamente, o que
zeram foi unir-se a eles e criar raças mistas. Essa contraposição é
inquestionável. Mas eu não posso reprimir a superlativa estranheza de
que Toynbee, tão sensível, e com razão, ante a tragédia atroz que o
racismo represente, não tenha uma só palavra nem pareça reparar na
outra tragédia, precisamente a que se origina na existência numerosa
de mestiços e mulatos nos países onde se dá, coisa que conhece todo
aquele que viajou pela América e pela África do Sul.

Se eu não tivesse me comprometido a expor, em toda sua arquitetura


essencial, a doutrina de Toynbee, pararia aqui, para fazer o que ele não
fez, que é contemplar por dentro essa generosa e humana conduta dos
povos espanhol e português para com os povos indígenas, e isso me
levaria em seguida e invariavelmente a ter de de nir a qualidade, a
meu ver mais básica e mais patente, no homem espanhol, que é sua
peculiaríssima atitude perante a vida enquanto tal, completamente
distinta da de todos os demais povos ocidentais.
Temos aqui neste tema um daqueles faisões de que falei na primeira
aula, que sairiam voando por ambos os lados do caminho, sobre os
quais estou proibido de disparar, porque, neste curso já tão avançado,
foi preciso vetá-los. Acrescentarei apenas, sobre essa conduta diferente
para com os povos primitivos da parte dos países colonizadores
católicos com relação à conduta dos ingleses, que Toynbee tanto
contrapõe e destaca justamente, é que esse lugar, como todo o seu
livro, é um sintoma excelente e quase o cial de como, desde o começo
do século, o catolicismo começou a guinar para o protestantismo. Esta
é uma realidade inquestionável, é a pura verdade — registro assim —,
e a única coisa que conviria é que todos estivessem tão dispostos como
eu a reconhecer a verdade onde quer que se apresente.

Prossigamos. Toynbee, para en m revelar o fundo, segundo ele


maligno, que constitui a nossa época e envergonhar os norte-
americanos, mas, em geral, toda a nossa época, sustenta que o racismo,
essa consciência de desigualitarismo entre as castas dos homens, era
desconhecida no Ocidente durante a Idade Média e ainda o é hoje em
algumas de suas nações. Isto porque — acrescenta — na Idade Média
existia uma discriminação, mas não fundada na raça, e sim na religião.

Toynbee tem certeza de que a distância sentida pelo europeu com


relação ao muçulmano, que era expressa em termos religiosos, era de
fato apenas uma divergência de religião, não também de ódio de raça?
E as periódicas matanças de judeus durante aqueles séculos, eram
inspiradas exclusivamente pelas diferenças religiosas? É bastante
inverossímil que, tendo existido em quase todas as civilizações esse
terrível ódio de raça, estivesse ausente precisamente na nossa, e fosse
necessário que os ingleses tivessem de se dar ao trabalho de inventá-lo
mais tarde. Já é suspeito o fato de que “casta” se diga em hindu barna,
que quer dizer cor, apesar de que hoje as castas hindus têm todas a
mesma cor e, portanto, que se trate de modos de sentir racistas muito
antigos, quando o povo hindu ainda não se tinha por igual.

Mas Toynbee relega um fato tão importante para o imperceptível m


de uma nota impressa em letra quase microscópica. E por que Toynbee
oculta que, durante o Império Romano, existia anti-semitismo,
antijudaísmo, exatamente e pelas mesmas razões que no nosso tempo?
Será que não conhece a anedota daquele grego de Alexandria que dá
de cara com ninguém menos que Trajano e grita: “Tu tens teu
Conselho de Estado cheio de judeus ateus”, assim como hoje gritam ao
governo de Atlee ou de Truman? Senhores, ganha-se algo quando se
quer de verdade resolver ou mitigar o terrível problema das raças
colocando-o desse modo, isto é, negando sua existência e atribuindo-o
à invenção de uns poucos? Ganha-se algo escrevendo sobre ele com
uma pluma arrancada da asa onde o avestruz esconde sua cabeça para
não revelar a verdade? Eu creio, e repito uma vez mais, que quem quer
de verdade resolver um problema tem de começar por vê-lo. Não
estranhem que eu insista tanto nisso. É a questão mais constante com
que vamos nos deparar no futuro imediato.

Porque justamente as pessoas em cujas mãos ou em cujas cabeças


estão as coisas deram para ter essa mania que a mim me faz arrepiar. É
algo muito peculiar nos escritores ingleses atuais e em alguns norte-
americanos começarem por não reconhecer o problema de que se
trata. Vai dar-se exatamente o mesmo por conta da necessidade
evidente de ir para uma nova combinação, em unidades superiores,
das nações, e vamos começar a crer que não existem nações e que estas
foram inventadas por uns tais para se entreterem. Para lançar em face
dos norte-americanos seu comportamento para com catorze ou quinze
milhões de negros — o cialmente se diz treze milhões, mas, segundo
parece, esta é a única estatística na América que não é exata; são, pelo
menos, quinze milhões — de que usufruem, Toynbee lhes diz o
seguinte: “Durante a guerra geral de 1914–1918 os cidadãos negros
dos Estados Unidos que serviam no exército americano na França
cavam assombrados com a liberdade social com que os brancos
franceses tratavam os negros africanos, súditos da República, que
serviam no exército francês e cujo nível cultural era muito mais baixo
que o do negro americano médio”.

Nós não devemos nos assombrar também — como se assombraram


esses negros — de que Toynbee nos diga isso como se fosse prova de
que os franceses são incapazes de sentir para com os negros o que
muitos norte-americanos sentem? Soltar um negro em Tarascon ou
em Angolema (como em Quintanar de la Orden ou em Daimiel) é
uma festa para o povo; mas, se vivessem estavelmente alojados na
França, ponhamos, cinco milhões de negros... veríamos o que
aconteceria. Confesso — repito, senhores — que ao ler essas coisas não
quero contaminar ninguém, mas creio, sim, que seja meu dever
reiterar que, quando leio essas coisas eu chego a me arrepiar.

E aqui vem o terceiro ponto sobre o problema raça e civilização. Na


primeira tabela a que me referi há uma raça, a negra, que não criou
nenhuma civilização. Por isso disse a princípio que era inquestionável
e inquestionado não ser a raça, isto é, tal ou qual raça, a causa da
civilização, porque o foram todas as raças, menos uma. E, portanto, a
verdadeira questão é a inversa: como pode ter havido uma raça que
não foi capaz de criar uma civilização? Entre parêntesis. Outro dia,
para não parecer que exagerava a cobrança sobre Toynbee, esse
homem do método empírico mas que não sabe o que fazer com um
fato como este, tão claro e que, naturalmente, não pode não
reconhecer como fato, eu não disse que a teoria do conhecimento e a
metodologia atuais sabem perfeitamente que a esse método empírico
sucede o mesmo que aos impostos em Roma, segundo o famoso texto
de um professor de Salamanca, que é simplesmente não existirem. Não
há método empírico no sentido que Toynbee pretende. Toda ciência é
construtiva, e a construção é o contrário do empirismo; por isso,
empirismo é o que há de mais contrário a um método. Outra coisa é o
papel dos fatos na construção de uma teoria.

Pois bem, Toynbee não se entrega perante esse fato negativo. Os


negros constituem sua predileção, e por isso abre para eles um crédito
de tempo ilimitado e, reconhecendo que até agora não criaram
nenhuma civilização, a rma que talvez dentro de milhares de anos
cheguem a gerá-la. É claro que esse homem, que numa nota nos diz
que não tem fé nos protestantes ingleses, ele a transferiu para os
negros, porque é preciso fé para a rmar o que acabamos de ouvir. E
faz questão de não aceitar — vejam —, como reconhece a maioria dos
antropólogos atuais, a raça negra como a mais antiga de todas as
humanas; portanto, a que teve mais tempo até agora para se dedicar a
inventar uma civilização.

Mas Toynbee elimina rapidamente o contorno geográ co como


gerador do momento decisivo na origem da civilização. Aqui não há,
como no caso da raça, um movimento político que ative suas molas de
jornalista e de pregador. A idéia naturalista, de origem grega, segundo
a qual a civilização nasce num clima e numa terra que lhe são
favoráveis, como os demais frutos de vida vegetativa, como o abacate
em Cuba e a goiaba no Brasil, é inadmissível, porque pôde observar
mais de uma vez que uma mesma região serviu de berço a civilizações
muito diversas. Toynbee podia ter tomado a coisa muito mais
radicalmente, não fosse sua separação absoluta entre sociedades
primitivas e civilizações, recordando, se é que a conhece, uma idéia,
genial por sua simplicidade, do jesuíta e antropólogo francês P.
Teilhard de Chardin, o qual pensa que, não obstante parecerem ter
fracassado todas as tentativas de diferenciar na anatomia e na siologia
o homem dos outros animais,29 há uma fato simplíssimo e puramente
físico que basta para fazer ver o caráter único e separado que o homem
tem, mesmo considerado apenas zoologicamente, e reside em que é a
única espécie capaz de habitar em todo o planeta. A idéia é de uma
simplicidade elegantíssima, e de uma autenticidade indiscutível. Todas
as demais espécies vivem inscritas a um habitat restrito, para empregar
esta palavra que todos os biólogos deram para usar, que me parece
uma palavra ridícula emprestada do alemão, que por sua vez não faz
mais que empregar torpemente um vocábulo latino. Pois bem, o gorila
vive no trópico, mas sucumbe na Groelândia; o homem, por sua vez,
pode viver à vontade e se ajeita para que viva igualmente bem numa
ou noutra paisagem.

Mas Toynbee, ao cortar a continuidade com a vida primitiva, não


pode se bene ciar de uma idéia como a do Pe. Teilhard, nem pode
explicar de um modo empírico, como havia prometido, a gênese das
civilizações. Sua idéia é esta: o brotar incomparavelmente sui generis
que chama de civilização originária supõe que um povo, que se
manteve até certa época numa vida estática de sociedade primitiva,
dispara de repente com uma energia de movimento criador. Isso
supõe, por sua vez, um novo fato que tenha causado essa mudança, e
esse novo fato não pode ser senão uma mudança desfavorável no
contorno geográ co, o que rompe a adaptação estabilizada, estática em
que vivia, e o obriga a se comportar de maneira diferente, a saber: a
maior parte dos povos, perante uma situação assim, não reagem
energicamente; ao contrário, se entregam e então sucumbem, ou, ao
menos, degeneram. Assim acontece com todos os povos primitivos
atuais, que arrastam sua existência decadente, ainda declinante em
nossos dias. Mas outros, esses seis que nomeamos antes, aceitaram
energicamente o desa o, o obstáculo, a di culdade; em suma, o que
Toynbee chama challenge com os inumeráveis sentidos que essa
palavra contém em inglês. Aceitaram esse desa o, obstáculo ou
di culdade e responderam com vivacidade criadora.

A gênese de uma civilização humana original não é, pois, mais que


um caso prototípico do fenômeno fundamental de toda a história
tipicamente humana: a categoria ou relação desa o e resposta,
obstáculo e reação, challenge e response. Essa categoria mostra bem
clara e visivelmente que a víscera da história é um drama. A história
humana só tem vísceras dramáticas; ou, se se prefere chamar assim,
trágicas. A comédia, o humorismo, nunca são viscerais; orescem
apenas no exterior, no cutâneo, e isso não é menosprezá-los, é apenas
localizá-los. Nenhuma realidade é por si mesma cômica; só pode ser
cômico o seu aspecto, sua manifestação, sua exteriorização. E por isso
resultava tão estranha e atordoante a observação feita por mim aulas
atrás, queixando-me, de passagem, do fato de os lingüistas não terem
reparado melhor na freqüência com que os homens, em suas
linguagens e vocabulários, empregam palavras que fazem piada de
suas próprias vísceras.

A idéia, pois, de que o contorno físico engendra a civilização — mas


não diretamente, não por ser favorável, mas o contrário, precisamente
porque se torna de repente desfavorável e hostil, e coloca um problema
para o homem — me parece uma idéia excelente, que eu havia
enunciado muitos anos antes de que a obra de Toynbee aparecesse,
como veremos na aula que vem. Mas essa idéia não é empírica;
exatamente o contrário, é uma hipótese, e toda hipótese é uma
construção, e por isso é autêntica ciência, por isso é autêntica teoria.
As idéias, enquanto merecem esse exigente nome de idéias, jamais são
mera recepção de realidades pressupostas, mas são construções de
possibilidades; portanto, são imaginações nossas ou idéias puras,
como averiguou, vinte e quatro séculos atrás, de uma vez para sempre,
Platão de Atenas, lho de Aristão; averiguação esta que, no meu
entender, é, sem comparação possível com nenhuma outra, a
descoberta mais sublime e e caz que já se fez até agora no planeta que
habitamos, e que hoje, mais do que nunca, constitui o alfa e o ômega
de toda atividade cientí ca.

E vocês me perdoem essa fuga de gás losó co que eu não consegui


reprimir.

Toynbee supõe arbitrariamente que, sete mil anos atrás, nenhum


homem ainda habitava o vale do Nilo, porque era um mangue
pantanoso, obstruído pelo emaranhado de plantas uviais, papiros,
canas, e cheio de feras, crocodilos, hipopótamos, javalis, leopardos,
elefantes e uma nuvem de aves aquáticas, formando uma paisagem
muito parecida com a que hoje, mais abaixo do Egito, no Rio das
Gazelas, descrito maravilhosamente por Schweinfurt, que fez a
descoberta dessa região lá pelo ano de 1850 e escreveu um dos livros
de viagens mais saborosos que existem; foi, ademais, o primeiro
europeu que se encontrou com um pigmeu. Eu tentei várias vezes que
se traduzisse esse livro, mas tive de renunciar ao meu propósito.

Pois bem, segundo Toynbee, as tribos camíticas, que depois viraram


os egípcios, viviam nos planaltos de ambos os lados do rio, em estepes
gramadas, com árvores espalhadas aqui e ali, onde era fácil e
abundante a caça de animais. Essa estepe era um paraíso. Era o paraíso
porque, como Toynbee aponta, paraíso — em grego, parádeisos — é
palavra persa que signi ca, segundo ele, essa paisagem, essa região
natural de altos arbustos e árvores não espessamente reunidos, mas
repartidos aqui e ali; em suma, o que os geógrafos chamam de “a
estepe”, pelo que entendi. Toynbee padece, como tantas vezes,
conforme veremos, de um erro, porque a palavra parádeisos (é, de fato,
como a pronunciavam os gregos) era palavra persa, mas o verdadeiro
signi cado não é de “estepe”, mas de “jardim”, portanto, lugar de ores,
mas onde há, além disso, árvores frutíferas. Ao que tudo indica, é
característico de certos planaltos criar, como lugar de solaz, essa
combinação de jardim de ores e horto de frutais. Ao menos isso é o
que foi o mais puro, típico e tradicional jardim ou horto castelhano.
Que é o que se chama, no sentido exato da palavra, com belíssima
palavra, “vergel”. O que menciono porque me dá pena que essa
esplêndida voz tenha perdido o uso, ou que, quando é usada, não se dê
a ela seu signi cado autêntico. Vergel é um jardim de ores junto com
um horto de frutais.

Pois bem, estando as coisas assim, de repente o clima muda, toda a


região começa a secar, transformando-se a estepe cheia de erva nos
áridos e atrozes desertos atuais, que são o deserto líbico a Oeste e o
arábico a Leste. Morreram então ou fugiram da inanição os animais, e
diante dessa mudança uma parte daquelas tribos resolveu descer para
o vale, para aproveitar a veia do Nilo. Outra parte, ao contrário, não se
decidiu a isso, e continuou a linha de menor resistência, isto é, emigrar
para o Sul, aonde a seca não havia chegado, para poder continuar sem
a menor variação a sua vida petri cada de sociedade primitiva, que
prossegue ainda sua existência elementar. Mas os primeiros, os que
aceitaram aquele desa o climatológico perturbador do equilíbrio que
fora sua vida na existência estática de sua sociedade primitiva,
reagiram criando novas formas de vida, as quais, como exigiam
maiores esforços, representavam, por sua vez, um novo desa o. E isso
é o que foi a civilização egípcia.

Com os sumérios acontece o mesmo, segundo Toynbee, nas margens


do Eufrates, como fundadores da civilização mesopotâmica, e com os
sínicos ou primeiros chineses nas ribeiras do Rio Amarelo. Esses
povos se põem a lutar com um novo cenário geográ co. Drenam os
pântanos, canalizam as águas, destroem as animálias e ordenam o
trabalho dos campos. Portanto, ao modi cá-lo, criaram para si um
entorno geográ co arti cial. Com essa hipótese, Toynbee não faz mais
que apoiar-se nos estudos feitos pelo norte-americano Huntington,
que dedicou sua vida a estudar minuciosamente a possível relação
entre clima e civilização. Seu livro, que traz por título Civilização e
clima, é excelente em seu gênero, nutrido de fatos e raciocínios e de
agradável leitura. Por isso, anos atrás, empenhei-me para que fosse
publicado em espanhol, mas, como tantas vezes aconteceu, depois de
ter conseguido sofri a desilusão de que quase ninguém o leu em nosso
país.

Huntington sustenta que o clima terrestre experimenta pulsações de


mudança de longa periodicidade, mas não tanto que não possam ser
percebidas dentro da cronologia histórica. Há épocas diluviais e
épocas de seca, e cada uma destas mudanças signi ca tremendas
sacudidas para o homem. Os grandes e patéticos acontecimentos
decantam sempre em grandes mitos como, por exemplo, o do dilúvio.
Surpreende que não haja um mito da seca de mesmas dimensões, ou
que não se entenda assim, no mesmo livro do Antigo Testamento, a
vida errante pela secura do deserto e o milagre da rocha, da qual
Moisés extrai água.

É nessa teoria de Huntington que Toynbee põe a turbina de sua idéia


“reto-resposta”, e crê assim explicar a origem dessas três primeiras
civilizações. Mas essa mudança de clima já não está clara na origem da
civilização maia no junco guatemalteco. Não sei por que a palavra
inglesa jungle é traduzida, por exemplo, no título de um famoso livro
de Kipling, por “terras virgens”, quando temos, desde o século , a
palavra “junco”, tão castiça apesar de estar ausente no Dicionário
acadêmico. Menos diáfana é ainda essa teoria com relação à gênese da
civilização inca ou andina, que tem lugar nas pavorosas e desoladas
altitudes dos Andes, quando não se reconhece nenhuma mudança
climática grave naquela época. Ao contrário, o que aparece em todas
essas gêneses de civilizações é que certos povos já tenham chegado,
previamente, em seu tratamento da planta e da terra, a um grau de
perfeição que merece facilmente o nome nobilíssimo de agricultura.
No caso da civilização maia a coisa tem um caráter o cial e formal. É
sabido que os maias desceram das serras guatemaltecas e hondurenhas
para o plano, porque tinham inventado já o cultivo do milho, que dali
vai se irradiar para todo o continente americano, chegando a ser, como
continua sendo, o alimento principal de boa parte de outros
continentes. A civilização maia inteira gira em torno da idéia do
milho; portanto, já preexistia a essa civilização.

Tudo leva a crer, do mesmo modo, que os egípcios, esses habitantes


da estepe, do planalto, antes de descer para o vale do Nilo puderam
aceitar o desa o da seca, porque eram já bons lavradores e se sentiam
capazes de pôr em ordem os pântanos do vale nilótico quando suas
estepes se tornaram o atroz deserto líbico. “Os bosques se domesticam
com o arado”, diz o grande Lorde Bacon. De fato, a agricultura é que
possibilita essa resposta; ou seja, não foi a origem de uma civilização,
mas precedeu a civilização. Se tem sentido distinguir entre sociedade
primitiva e vida civilizada ou culta, é para reconhecer que a origem da
cultura é a agricultura, com o que se devolve a essa palavra seu sentido
etimológico. É sabido que foi o nosso Vives o primeiro a empregar a
palavra “cultura” no sentido atual, fazendo do labor campesino uma
metáfora para dizer cultura animi, isto é, cultivo do espírito. Teríamos,
pois, que egípcios e sumérios não criaram suas civilizações como
resposta ao desa o de uma mudança climática, mas que puderam
aceitá-lo porque estavam já civilizados de antemão. No caso dos
sumérios a coisa é menos questionável, porque não eram habitantes
autóctones da região próxima ao Eufrates, mas eram recém chegados,
gente que vinha de muito longe — talvez da região entre a
Transcaucásia, o Mar Cáspio, Altai e Pamir — e já chegaram trazendo
uma civilização, inclusive talvez a escrita; não compreendo por que
Toynbee cala sobre isso, que é fundamental.

A hipótese de Toynbee, violentada já no caso dos maias e dos


andinos, torna-se acrobática quando se trata de aplicá-la à civilização
egéia, que surge na ilha de Creta, a mais distante das costas ocidentais
e restantes ilhas. Como se explica isso? Toynbee, que, como sempre,
não cede aos fatos, a rmará audazmente que os cretenses — coisa que
ninguém havia se atrevido a dizer — são tribos camíticas da África,
como as egípcias, que responderam ao desa o da seca de uma maneira
mais original, aceitando um novo desa o: o do mar. Responderam
lançando-se ao mar. Coisa que não se compreende; não se vêem as
vantagens que poderia ter para eles uma ilha que desconheciam
absolutamente. Supor isso implicaria que, como eu disse há pouco que
os egípcios, antes de serem egípcios e descerem para o Nilo, já eram
grandes agricultores, os futuros cretenses foram também grandes
mineiros enquanto viviam na África; ou seja, já tinham também sua
civilização. Mas não há indício de nada disso.

Na próxima aula tocarei ainda, em algum ponto de detalhe, essa tese


sobre a origem das civilizações segundo Toynbee. Mas agora
reclamarão, e com razão, que eu expresse claramente qual é meu juízo
sobre esta doutrina de Toynbee; porque, de fato, por um lado eu a
aplaudi, coisa que até agora não fora freqüente em mim com relação às
suas idéias — provavelmente serei mais manso para com a parte que
falta expor —; mas se eu o aplaudi por um lado, ocorre que, por outro,
eu me entretive em por rizar sua doutrina — para usar a boa palavra
de nossos boticários — com uma crítica relativamente minuciosa.

Então façamos um balanço. Aplaudi sua idéia de que o princípio


dinâmico da história humana é, de fato, algo como desa o e resposta;
mas critiquei seu emprego precisamente como explicação da gênese
das civilizações, e isso, primeiro, porque os fatos o negam, no sentido
de que não houve na maior parte dos casos essa mudança súbita no
entorno geográ co; segundo, porque, mesmo nesse caso, como no
Egito, em que deve ter acontecido, os povos que responderam a esse
desa o responderam porque já possuíam numa boa medida isso que
Toynbee chama de civilização; terceiro, conseqüentemente, porque me
parece inaceitável a própria colocação do problema tomando como
base a suposição de que a civilização é algo toto caelo distinto da vida
primitiva; quarto, porque, como veremos em seguida, o dinamismo
desa o-resposta é permanente e congênito da vida humana e é
inadmissível supor que não atuava já e atua na vida das sociedades
primitivas.
Toynbee imagina que estas representem um estado de equilíbrio
entre o homem e seu meio. Mas logo resulta que também a civilização
consiste em, diante da mutação do meio, o homem criar um novo
equilíbrio. Como quase sempre, termina tropeçando em sua própria
idéia. É gravemente errôneo, mais ainda, obtura completamente a
compreensão da história e dos destinos humanos crer que existiu
alguma vez um estado de equilíbrio em seu viver. Tal equilíbrio é
utópico, e só nos restaria falar de um desequilíbrio maior ou menor. O
homem é um animal essencialmente desequilibrado que, contudo,
existe; isso quer dizer que não é propriamente um animal, pois o
existir do animal é sempre equilíbrio, ou, do contrário, é deixar de
existir, sucumbir. A essa paradoxal condição de constitutivo
desequilíbrio deve o homem toda a sua graça e toda a sua desgraça,
toda a sua miséria e todo o seu esplendor. Por isso é preciso
representar a origem do homem numa imagem o mais antidarwiniana
possível, que não pode consistir, como pensam ingênua e
teimosamente nos seminários, em separar radicalmente o homem do
animal, coisa bastante insensata, sem agudeza e sem coragem
intelectual para agarrar o problema pelos chifres, mas sim como um
animal que escapa da animalidade, que evade ou foge dela. O homem
representa, contra todo o darwinismo, o triunfo de um animal
inadaptado e inadaptável. Sem dúvida faz constantemente adaptações
parciais, mas cada uma serve-lhe para uma nova adaptação. Mas um
animal ao mesmo tempo inadaptado e sobrevivente é, desde o ponto
de vista zoológico, um animal enfermo. Por isso, sem tomar isso por
ora como uma teoria formal, mas somente como mito antidarwiniano
— muito embora evolucionista — que, sendo mito, pretende apenas
orientar nossa intuição sobre como as coisas podem ter se passado,
podemos biologicamente imaginar a origem do humano assim: A
espécie humana, segundo uma boa parte dos zoólogos atuais, é muito
mais antiga que todos os pitecos. Segundo isso, parece que, na verdade,
o macaco descende do homem. Do ponto de vista zoológico, vejamos
um exemplo: a linha de evolução do traslado dos olhos à situação
frontal. Isso dá ao macaco seu caráter simiesco. Se vocês forem ao
Museu do Prado, ao entrar na sala onde estão os retratos de El Greco
verão que um deles, um retrato pequeno de um homem com uma
barba mais pontuda do que o normal para El Greco, de pêlo quase
branco, com aspecto, não de boa pessoa, mas de coitado, tem os olhos
completamente no plano frontal, o que dá ao homem um aspecto
francamente simiesco; é uma impressão que dá ao pobre homem —
não se sabe quem era — um aspecto de imbecil. Pois bem, essa espécie
mais antiga que a dos pitecos era uma espécie enferma. Imaginemos,
pois, o homem como um animal enfermo de uma enfermidade que
chamo simbolicamente de paludismo, porque vivia sobre pântanos
infestados. E essa enfermidade, que não destruiu a espécie, causou-lhe
uma intoxicação que produziu uma hiperfunção cerebral; esta
originou uma conseguinte hipertro a dos órgãos cerebrais, que traz
consigo, por sua vez, um grau maior de hiperfunção mental — cujo
resultado foi que o homem se encheu de imagens, de fantasias — nas
quais, como se sabe, mesmo os animais superiores são tão pobres; ou
seja, deparou-se com todo um mundo imaginário dentro de si,
portanto, com um mundo interior de que o animal carece, um mundo
interior frente, à parte e contra o mundo exterior. E eis que, desde
então, essa última besta que é o primeiro homem tem de viver, por sua
vez, em dois mundos — o de dentro e o de fora —, portanto,
irremediavelmente e para sempre, inadaptado, desequilibrado; esta é
sua glória, esta é sua angústia. O homem é o animal fantástico; nasceu
da fantasia, é lho da “louca da casa”. E a história universal é o esforço
gigantesco e milenar para botar ordem nessa desaforada, antianimal
fantasia. O que chamamos de razão não é senão a fantasia posta em
forma. Há no mundo algo mais fantástico do que aquilo que é mais
racional? Há algo mais fantástico que o ponto matemático, e a linha
in nita e, em geral, toda a matemática e toda a física? Há fantasia mais
fantástica do que isso a que chamamos “justiça”, e aquilo a que
chamamos “felicidade”? Vemos, pois, que mesmo desde o ponto de
vista zoológico, que é o menos interessante, e que não é — conste — o
decisivo, um ser de condição tal nunca pode atingir um autêntico
equilíbrio, e vemos também o que diferencia radicalmente a idéia de
desa o-resposta em Toynbee e a que, a meu ver, constitui efetivamente
a vida humana; a saber: que nenhum entorno nem mudança de
entorno pode, por si mesmo, ser quali cado como obstáculo,
di culdade e desa o para o homem, mas que sempre — no próximo
dia citarei alguns casos — a di culdade é relativa aos projetos que o
homem cria em sua fantasia, ao que se costuma chamar seus ideais; em
suma, àquilo que o homem queira ser. Isso nos proporciona uma idéia
de desa o e resposta muito mais decisiva e profunda do que a
meramente anedótica, adventícia e acidental que Toynbee nos propõe.
À sua luz aparece para nós a vida humana inteira, como aquilo que é
permanentemente: um dramático enfrentamento e contenda do
homem com o mundo, e não um mero desajuste ocasional que se
produz em alguns momentos.

No próximo dia contemplaremos isso desde um ponto de vista muito


mais fundamental e prévio a toda zoologia, o qual, vislumbrado por
mim só depois dos meus vinte anos, me fez já então escrever que o
mais valioso no homem é seu eterno e como que divino
descontentamento; descontentamento que é uma espécie de amor sem
amado, e uma como que dor que sentimos em membros que não
temos. O homem é o único ser que sente saudade do que nunca teve. E
o conjunto daquilo de que sentimos saudades sem tê-lo possuído é o
que chamamos de felicidade. Daqui eu poderia partir para uma
meditação sobre a felicidade, uma análise dessa estranha condição que
faz do homem o único ser infeliz, precisamente porque precisa ser
feliz. Isto é: porque precisa ser o que não é.

A XI
O bom-mocismo de Mr. Toynbee e o
“numantismo” da Inglaterra. — Continua
“desa o e resposta”. — Os princípios
gerais e seu complemento. — Dois
teoremas. — A “inde nição” do ser
humano. — Facilidades e di culdades. —
A realidade radical. — Técnica e
felicidade.

S enhores, a rmei na aula passada que a categoria “desa o-resposta”,


como equação da energia no sistema da história, me parecia uma
excelentíssima idéia de Toynbee, que, ademais, acertou em sua
exposição com sumo tino; mas, ao mesmo tempo, eu me opus à sua
maneira de entendê-la e aplicá-la, porque é insu ciente. Toynbee não a
vê nem a pensa em sua autêntica radicalidade. Ele a apresenta
funcionando apenas por ocasião de algum acidente muito importante,
mas acidente que sobrevém em situações que se dão de vez em quando
na história; quando, na verdade, essa reação de desa o do entorno e
resposta a ele é a situação constitutiva permanente do homem, porque
é a substância mesma da vida humana, ao menos em seu sentido
intramundano. Toynbee não o vê, porque não é lósofo. Não se lança
ao alto mar dos princípios últimos; sua navegação é só cabotagem, e
isso é algo ruim, porque lançar-se no alto mar dos princípios, fazer
loso a, é uma tarefa sempre problemática, sempre em boa medida
fracassada, mas é sempre necessária e sempre ineludível.

Vimos que sua idéia falha em querer explicar o problema particular


de como nascem as civilizações originárias. É verdade que Toynbee se
coloca o problema tão abruptamente que quase pede para que o touro
o pegue. Não pode resolvê-lo plenamente, e tem de adotar a mais
estranha indocilidade perante os fatos. Em algumas passagens a que
aludi, sobre sua discussão do racismo, puderam ver a arbitrariedade e
até a puerilidade dessa sua resistência aos fatos e a ligeireza de seus
raciocínios. É certo que, ao expor o pensamento de Toynbee, segundo
o qual o racismo procede de que os protestantes ingleses reagiram com
ele ao encontrarem os homens de cor em suas colônias, opondo essa
conduta à seguida pelos povos espanhol e português, eu esqueci de
manifestar minha estranheza para com o fato de que Toynbee cale ou
ignore que a palavra raça procede precisamente das línguas espanhola
e portuguesa, talvez originariamente da portuguesa, e dela irradiou
para todas as outras. Mas com isso, e com tudo que eu disse no outro
dia, eu não tinha nem tenho a menor intenção de demonstrar que Mr.
Toynbee não tem razão, porque trata-se de deslizes tão avultados no
manejo dos conceitos que não valeria a pena tê-los feito reparar nisso.
Minha operação crítica se propunha, inversamente, a fazer ver de
maneira concreta, e não de modo vagaroso, como precisamente Mr.
Toynbee não pretende ter razão, pois, apesar de seu volumoso saber,
ao qual rendo, sem restrição alguma, toda a merecida homenagem,
não é em última instância um homem de razão, de ciência, de teoria. É
um homem que crê com fé cega em certas coisas lantrópicas que
culminam num estranho misticismo da história; e que crê porque sim,
como sempre se crê. Isso é próprio do habitus creditivus de que falam
os teólogos, o que está muito bem, mas não tem nada que ver com
teorizar, com pensar em vista dos fatos e das razões. Aqui não se
discute o talento de Toynbee, que é grande; de outro modo não teria
sentido que lhe dedicássemos tanta atenção. O que fazemos é dar
conta de que seu talento é outro que não o previsto, e que sua obra
prometia a princípio. Não é talento de ciência, mas de crença, de fé
fechada, e isso segrega aquele misticismo histórico que alguns
chamam de “considerações éticas da história”; o que também estará
muito bem desde que não inclua, como condição de si mesmo, que o
historiador renuncie previamente a se inteirar do que, de fato, se
passou e se passa no mundo. Esse ceticismo de pedagogo e pregador,
que encanta alguns, leva Mr. Toynbee logo a que sua idéia e sua atitude
sejam tudo o que se quiser, menos esclarecedora, quando parecia que
era disso que se tratava, quero dizer, de acender uma luzinha em
nossos obscuros destinos. Mas, em vez disso, o que Mr. Toynbee
consegue é escrever frases que começam como esta: “O militarista
Lugalzaggizi” (ao ouvirem isso presumirão que este homem é algum
personagem dos últimos anos ou ao menos dos últimos séculos, e do
qual temos notícias su cientes para poder pular os imundos e cruéis
caminhos que nos permitam taxá-lo de militarista). Mas, continuando
a leitura, encontramos isto: “O militarista Lugalzaggizi, sumério de
Uruk, dominava em 2677 antes de Cristo...”. Diabo! — dizemos nós:
Como Toynbee sabe que este personagem era um militarista, quando
mal se tem notícia de sua pessoa, e já é um milagre que se saiba da sua
existência? É a esses extremos que leva esse pedagogismo, essa
pregação fora de lugar que, é claro, impede de nos entendermos bem
com quem o exerce. Porque, o que ganhamos com Mr. Toynbee
chamar Lugalzaggizi de militarista e acrescentar que é um sumério
tirano de Uruk, empregando essa palavra “tirano” sabendo que causa
má impressão já faz bastante tempo, apesar de saber, como sabe muito
bem, que em todas as civilizações mesopotâmicas jamais houve
tirania, e que a palavra e a coisa “tirano” são um fenômeno especí co
do mundo egeu e helênico? A palavra “tirano” é grega, mas de origem
pré-helênica: e a coisa, a instituição “tirania”, foi uma das que criou
não poucas das mais admiráveis coisas que já se fez na humanidade.
Por exemplo, em Atenas, que é a amada de Mr. Toynbee, as obras do
tirano Pisístrato, o qual, com perfeita consciência e deliberação, teve a
idéia genial de fazer algo que nunca se tinha feito no planeta: criar
uma paideia, cultura; essa cultura que tão beatamente adoram e a que
rendem culto Mr. Toynbee e seus companheiros e professores de
Oxford. Portanto, esse eticismo e esse pedagogismo, esse
predicacionismo, que a alguns parece uma maravilha, a mim me
parece: primeiro, um pouco ridículo; segundo, um pouco insolente, e,
terceiro, um muito calamitoso, porque é o meio mais seguro de
contribuir para que os homens continuem mordendo o pescoço uns
dos outros; pois uma arbitrariedade, como é essa opinião, só pode
provocar uma arbitrariedade contraposta, e as arbitrariedades são
torpes secreções que se produzem no cérebro, na cabeça, mas descem
muito rapidamente para os punhos, onde poderia acontecer que en m
fosse Mr. Toynbee o verdadeiro militarista, e não o pobre tirano de
Uruk que viveu há cinco mil anos.

Esse bom-mocismo e esse eticismo tão inoportunos dão vontade de


contar o velho conto do coroinha que não sabia ajudar na missa e,
quando o sacerdote pronunciava suas expressões rituais, respondia
invariavelmente: “Bendito e louvado seja o Santíssimo Sacramento”.
Até que, cansado disso, o sacerdote se virou e disse: “Menino, isso é
muito bom, mas não vem ao caso”.

Mas esse modo intelectual de Mr. Toynbee e de outros ingleses


escritores atuais importa, sim, a vocês e a mim. Importa-nos porque
Mr. Toynbee é um homem muito in uente na política internacional
inglesa, porque é um escritor dos mais representativos da Inglaterra,
porque a Inglaterra exerce uma enorme in uência sobre o que está
acontecendo na Terra e porque, como eu disse no primeiro dia, ainda
que sem fundamentá-lo e somente como reserva que, da minha parte,
necessitava fazer, e agora reitero, porque creio ser de grande
conveniência para todos que a Inglaterra continue exercendo essa
in uência sobre os destinos do mundo.

Se a Inglaterra não fosse chamada a continuar exercendo essa


decisiva in uência, poderíamos esquecer a questão. Se, por outro lado,
seus intelectuais estivessem em forma, tampouco deveríamos sentir
preocupação. O preocupante é que se dão as duas coisas juntas: a
virtualidade potentíssima da Inglaterra e a inquietante falta de solidez
de muitos de seus intelectuais. A coexistência das duas coisas, do bom
e do menos bom, é o que nos recomenda soar o alerta, o “em guarda!”
que pronunciei na minha primeira aula. Quanto a essa potencialidade
inglesa, suspeito que estejam perdidos os que, por não entenderem de
história, ignoram que nela uma mesma realidade pode adotar os mais
diversos aspectos, incluindo alguns que, enquanto aspectos, são
contraditórios.

Não é minha missão nem meu papel neste curso entrar de cheio no
assunto. Por outro lado, depois de tudo que me ouviram falar, creio
que vocês possam me considerar um angló lo. Creio não ser “ lo”
nem “fobo” de nada, e isso não por alguma admirável virtude, mas
simplesmente porque não me diverte. As lias e as fobias todas me
aborrecem desesperadamente, como um romance de Ricardo León.30
Assim, sem pretender, menos nisso que em nenhuma outra coisa,
impingir em ninguém minha opinião, vou manifestá-la com a
brevidade possível, porque trata-se de um assunto grave para nossas
existências, e que está conectado com o problema cientí co do mundo.
Penso, com efeito, senhores, que a maior, no sentido de mais valiosa,
coisa que acontece agora no mundo é o quanto os ingleses estão
comendo mal, e como os ingleses sempre comeram mal, no sentido da
arte culinária — evitarei o equívoco precisando que me re ro à sua
escassa nutrição e à má qualidade de muitos de seus alimentos, pois
alguns outros continuam sendo excelentes. Este é, a meu ver, o que de
mais prodigioso humanamente está acontecendo, porque não há
dúvida de que os ingleses poderiam estar, a essas horas, comendo
aproximadamente o mesmo que antes, mas, é claro, às custas do
futuro, pondo em risco o porvir econômico e, em geral, histórico de
sua nação à força de remendos e remédios, comendo-se, em suma, a
galinha dos ovos de ouro. Em vez disso, os indivíduos que integram o
povo inglês, sem defecção alguma de quantia perceptível, aceitaram
escrupulosamente rebaixar de repente e a seco seu nível de vida,
restringir em grau quase intolerável sua existência cotidiana, sem
pressão inusitada do seu governo, e isso não com a perspectiva,
promessa ou esperança de que com esse sacrifício vão devolver à
Inglaterra sua preponderância imperativa sobre o mundo, mas
simplesmente pela convicção de que é inescapável para atravessar a
crueza dos tempos e salvar a comunidade inglesa, na pureza de seu
estilo, para além deles próprios; essa resolução de espontânea e
resoluta solidariedade nacional me parece ser um dos exemplos mais
raros que já houve na história, é algo que se poderia chamar de
numantismo a frio, para dar-lhe um magní co nome ibérico.31

O que acabo de dizer não contradiz o que eu sugeri outro dia quando
falava que, numa primeira aproximação, parecia que poderíamos
diagnosticar no fundo de certas almas inglesas das mais destacadas um
estranho sentimento como se começassem a duvidar se tem ou não
sentido ser inglês. Não há contradição; trata-se da mesma coisa que
acabo de dizer, pois signi ca que os ingleses começam ou começaram
faz tempo — logo farei referência a um antigo escrito meu em que eu o
anunciava — a crer que a Inglaterra não poderia continuar sendo tal
como era, que precisamente para poder salvar a existência do inglês
era necessário mudar completamente de forma e atitudes e, nesse
sentido, deixava de ser inglês o inglês tradicional.

Que, além desse comportamento com que o povo inglês crê ajustar-se
à situação exterior, reste-lhe ainda energia para, ao mesmo tempo,
realizar uma transformação completa de sua estrutura social — sobre a
qual, para não confundir as coisas, vamos suspender
momentaneamente o nosso juízo, porque não interessa para o que
estamos dizendo agora — uma transformação com a qual crêem
ajudar seu corpo social às necessidades interiores que a evolução dos
tempos trouxe à associação inglesa, tudo isso revela que estamos na
presença de um dos grandes fatos históricos; que tem o sintoma mais
característico de grande fato histórico, que é apresentar uma gura
completamente nova, não ser arremedo nem repetição de gestos
conhecidos e tópicos. Quando um povo faz isso, senhores, é porque
está em plena forma, forma que é nova, e, por isso, plena, e quando
um povo está em plena forma tem as máximas garantias de se salvar.
Elas, certamente, não asseguram o sucesso, porque nada humano é
seguro, menos ainda uma conjuntura como à que, no presente,
chegaram os destinos universais, mas não se confunda a circunstância
mundial dentro da qual a Inglaterra se encontra — que é, de fato,
di cílima — com o próprio estado do povo inglês unido em seu
próprio ser; grandes navegantes, os ingleses, uma vez mais, cingiram-
se ao vento e vão à bolina.

Eu quase me atreveria a a rmar que, quanto ao temperamento


coletivo, os ingleses estão hoje tão em forma como poderiam estar em
Waterloo, não fosse o receio de errar por conta de estarem, hoje, talvez
muito mais. O que era melhor então era o mundo, a circunstância para
a Inglaterra; e com isso me re ro não somente ao exterior, mas ao que
a sociedade inglesa sofre internamente por estar, como todos os povos
hoje, dentro de um mundo afetado pela mais radical crise. Por isso,
enquanto a inspiração e o temperamento ingleses estão em plena
forma, não o estão seus intelectuais nem o estão suas mesmas
instituições, como veremos nos próximos três ou quatro anos.
Compreendam que não vou desenvolver agora nem explicar o que
acabo de dizer, ainda que não me custasse trabalho algum. Só me falta
para isso o tempo e a oportunidade. Esse fato foi previsto por mim
muito tempo atrás, isto é, a têmpera atual da Inglaterra, pois para
mim, como para qualquer a cionado por humanidades como eu, não
era difícil vislumbrar que estava fermentando, pelos anos vinte deste
século; como vocês podem comprovar lendo ou relendo agora no
“Epílogo para ingleses”, publicado na Inglaterra em 1937 e anexado
depois ao meu livro A rebelião das massas,32 os parágrafos dedicados à
constituição do terceiro império britânico; notem que aquele meu
estudo tinha por nalidade prevenir a atitude da Inglaterra frente à
situação da guerra espanhola, o que me tirava a liberdade plena de
falar. Portanto, lendo com atenção as entrelinhas, encontrarão que esse
terceiro império foi forjado à base de um pessimismo metódico,
porque já então os ingleses previam que não haveria liberdade de
horizontes para a Inglaterra tradicional e que não havia saída além de
fazer o inverso do que haviam feito nos últimos séculos, a saber:
retirar-se, pouco a pouco, de sua preponderância imperativa.

Nada nisso tudo quer dizer que me pareça bené ca a retenção de


Gibraltar. Antes o contrário, se tivesse sido possível fazer aquele
proibido desenvolvimento, eu teria mostrado como essa retenção, ou
melhor, o fato de a Inglaterra a essas horas não ter encontrado ainda o
começo das vias para reti cá-la, destoa completamente do que, a meu
ver, caracteriza o estilo íntimo do homem inglês atual. E notem que, se
me deixei levar para essa expansão, foi porque, tendo mostrado em
todo o tempo anterior que não mordo a língua para falar dos ingleses,
corria o risco de causar em alguns desorientação em matéria grave.
Não o z, pois, por prazer, mas por dever, porque isso me roubou mais
de um quarto de hora de tempo da minha aula, e vocês não imaginam
a angústia que sinto ao ver-me na undécima aula sem poder cumprir o
programa que havia me proposto.

Voltemos, pois, ao nosso caminho. Dizia eu que a idéia e a fórmula


“desa o-resposta” me parece magní ca, mas que Toynbee a diminui ao
associá-la somente a certas situações grosseiramente melodramáticas,
como é, por exemplo, a origem abrupta das civilizações primevas.
Resultaria que, por ocasião de uma determinada mudança climática,
no caso uma determinada seca, o homem teria estreado pela primeira
vez uma capacidade de responder ao desa o do entorno, que nunca
havia antes manifestado possuir, como se nas dezenas e dezenas de
milhares de anos anteriores ao 7000 antes de Cristo os homens não as
tivessem visto de todas as cores, e não tivessem precisado reagir a
muitas secas, e, ademais, dilúvios. Pois não sei por que Mr. Toynbee
concede à seca o privilégio de estimular o homem à civilização, e não
explica a origem de nenhuma pelo dilúvio, quando na mais antiga
tradição dos semitas que habitavam no Oriente Próximo e Médio,
antes mesmo que os sumérios, criadores da primeira civilização,
segundo Toynbee, nessa tradição perdura a recordação de um grande
dilúvio e de um grupo de homens que reage a ele, guiados por um
personagem a quem chamavam de Atrachasis ou Utuapistin, que quer
dizer “o engenhosíssimo”; portanto, exatamente o mesmo que
signi ca, como vimos, o grego Sísifo; portanto, o protótipo de um
herói da civilização, de um herói civilizador, como foi do que os
hebreus chamaram Noé, o qual se salvou numa arca com seus
familiares, seguidores e alguns animais, e soltou aves para averiguar se
as águas tinham baixado: a pomba, a andorinha, o corvo. Por
conseguinte, algo que representa uma profunda recordação inscrita na
alma desses povos. Tradição vetustíssima de que se observam relações
babilônicas anteriores em muitos séculos à época de Moisés, o que não
quer dizer, conste, que, necessariamente, a narração bíblica tenha de
proceder dessa tradição sumério-arcádia, pois esta é uma questão que,
do ponto de vista cientí co, continua em litígio.33

Vimos a falha do “desa o-resposta” como fundamento das


civilizações primevas, mesmo no caso de egípcios e sumérios. É certo
que, ao me referir a estas últimas, esqueci de dizer como é ainda mais
arbitrária, mais ligeira a atitude de Toynbee com os próprios dados da
questão assumidos por ele, pois supõe, simplesmente, que os sumérios
já habitavam a antiga região mesopotâmica próxima das margens do
Eufrates antes de criar sua civilização, como os egípcios habitavam
perto do vale do Nilo antes da seca, quando é sobejamente notório que
os sumérios eram povos recém-chegados que vinham de muito longe,
talvez de uma região compreendida entre a Transcaucásia, o Mar
Cáspio, Altai e Pamir. Por isso chegaram com seus bons pômulos
mongólicos já carregados com os princípios de sua civilização, talvez
até a escrita, segundo parece, a mais antiga do mundo.

O princípio “desa o-resposta” — notem os paradoxos que se dão na


estrutura mais essencial da ciência —, por ser verdadeiro, muito mais
do que Toynbee suspeita, não serve para explicar o fato participal que
é a origem das civilizações, como não serve para explicar nenhum fato
concreto. Acontece com ele o mesmo que ao princípio de não-
contradição que, justamente por ser princípio universal, não nos serve
para nada, não podemos derivar dele nenhuma outra verdade.
Tenham em mente esta lei do pensamento: quando uma idéia de ne o
que uma coisa é mais constitutivamente, não pode, diretamente e por
si, explicar nem de nir as modi cações particulares que sobrevenham
a essa coisa ou que dela emanem, e precisa ser fecundada por outras
idéias ou princípios, do que resultem noções e leis particulares que,
interpostas entre aquela idéia universalíssima e os fatos concretos,
permitam explicá-los. A maioria de vocês talvez não tenha entendido
o que acabo de dizer, empregando os termos técnicos próprios, que
são, por isso, estranhos. Mas eu já lhes recomendei que não se
envergonhem o mais mínimo de não entender algo que eu diga,
porque o fato é vergonhoso, talvez, só para mim, por não conseguir
fazer-lhes entender, como farei agora.

Minha idéia do princípio “desa o-resposta” se diferencia


radicalmente da de Toynbee por estas duas notas: primeira, a vida
humana é, não em tal ou qual ocasião, mas de modo constitutivo e
permanente, o fato de o homem ter de responder às di culdades
perante as quais se encontra, sob pena de sucumbir, isto é, de não
haver mais vida humana; segunda, vice-versa, não existe nenhuma
circunstância ou elemento do entorno, que dirá apenas do entorno
geográ co, que possa constituir por si uma di culdade para o homem,
qualquer que seja, mas só se transforma em di culdade dependendo
de como seja o homem que com ela se depara. Vou explicar esses dois
teoremas na ordem inversa de sua enunciação, começando, pois, pelo
segundo, e procurando me ater quase exclusivamente a fatos que o
próprio Toynbee descreve e comenta. Toynbee diz, por exemplo:

Os campos petrolíferos do Azerbaijão — antiga província norte da


Pérsia e hoje Transcaucásia — originaram challenge, di culdades
para sua dominação, a uma sociedade humana após a outra, antes de
que essa di culdade, esse desa o, fosse eventualmente respondido.
Os nômades, que são os primeiros inquilinos nas estepes do
Azerbaijão de que se tem notícia, não parecem ter feito qualquer uso
da riqueza mineral que jorrava e manava sob a face das pastarias para
seu gado. A sociedade siríaca que suplantou os nômades no
Azerbaijão durante a primeira metade do século  antes de Cristo,
quando os medos dominaram os citas, não deixou de advertir o
peculiar fenômeno natural que se apresentava naquele remoto
con m, para além do limite extremo do mundo siríaco; mas durante
a administração siríaca o petróleo do Azerbaijão foi empregado
apenas para um m religioso, sem que jamais ganhasse um caráter
econômico. De fato, alguns dos mananciais mais notáveis foram
fechados em torres, a m de que a fonte servisse ao culto zoroastriano
do fogo, alimentando uma perpétua chama em sua cúspide. E mesmo
esse uso ritual do azeite mineral durou apenas enquanto a religião de
Zoroastro prevaleceu na região. Quando o zoroastrismo deu
passagem ao Islam e a civilização siríaca foi substituída, em forma
normal, pela iraniana, sua “a liada”, aquelas chamas perpétuas
cessaram de arder, e o único uso que até então o homem havia feito
do azeite mineral foi abandonado [...]. No começo do século ,
Baku foi de novo conquistado, e dessa vez por uma Rússia que ainda
conservava o ímpeto para a ocidentalização econômica que Pedro, o
Grande, lhe havia comunicado um século antes, e no transcurso do
mesmo século o óleo de Baku chegou a ser uma das mercadorias e
primeiras matérias no sistema econômico que chegou a abraçar o
mundo inteiro e a humanidade toda.

Eis aí como o petróleo, que era di culdade, e obstáculo, e peso para o


pastor dos gados, única riqueza do nômade, se transmutou numa das
maiores vantagens e proveitos para o homem contemporâneo. A isso
acrescento outro exemplo recentíssimo. Um dos lugares mais
miseráveis de todo o planeta foi sempre o fundo oriental do Golfo
Pérsico na costa da Arábia. Ali está o Estado independente do Kuwait.
Pois bem, esse é hoje talvez o lugar mais rico do mundo, porque seus
poços de petróleo, explorados desde muito pouco tempo, são de uma
riqueza fantástica. E, contudo, o Kuwait é uma paragem onde quase
não se pode viver, porque até agora não se encontrou um modo de
haver água na região.

Vejamos outro caso de variação de uma mesma realidade geográ ca


ante uma situação distinta do homem. Napoleão foi vencido na Rússia,
como se sabe, pelo “general Inverno”. A neve, o gelo, e não os exércitos
eslavos, defenderam os moscovitas; mas em 1794–95, quando
Napoleão invade a Holanda, esta sucumbe, porque não pode empregar
o meio tradicional e único poderoso que sempre teve para se defender,
que era a inundação de suas terras, abrindo as comportas das represas
junto ao mar, e não pode fazê-lo porque aquele inverno fora muito
severo, e as águas haviam congelado. Temos, pois, uma mesma causa
que produz efeitos contrários.

Nada material, nada natural é di culdade nem facilidade por si


mesmo na história, mas tudo é facilidade ou di culdade em função,
sempre, do estado da técnica, e a técnica, por sua vez, é função da vida.
Porque, notem, tampouco há uma técnica absoluta, como podem ver
em meu estudo Meditação sobre a técnica; não há outra técnica senão
a relativa ao que o homem pretende fazer de si. De onde chegamos que
a terra, o meio geográ co, como qualquer outro fato, são puras
funções parciais da gura total que, a cada momento, a vida humana
venha a adotar. Por isso é impossível uma história naturalista. O
homem não é natural, não tem natureza, não está preso a ser xo, é...
in nito em possibilidades, como Deus é in nito em atualidades.
Ninguém pode dizer do que o homem não é capaz em seu tempo e
ocasião. Nem mesmo falar da destruição do planeta signi ca
univocamente a destruição do homem, se essa destruição do planeta
chega quando o homem pôde realizar suas possibilidades de existência
interplanetária; coisa que, embora sempre inquestionável, dita faz
poucos anos pelos lósofos que sabem se antecipar aos fatos, teria
parecido utópica. Mas nestes meses se está efetivamente preparando a
primeira plataforma fora da gravidade terrestre; isso signi ca,
senhores, que se está fabricando literalmente a primeira ilha
interplanetária para o homem.

Toynbee exacerba sua tese ao a rmar que, dentro de certos limites,


pode-se formular a lei de que, quanto maior o desa o, a di culdade,
mais valiosa a resposta, e aduz como exemplos extremos Veneza e a
Holanda. Uma delas aceita a di culdade extrema de se instalar nas
águas, e a outra consegue defender suas terras baixas do mar
ganhando terreno, isto é, de certo modo fabricando seu próprio solar
e, contudo, aquela protagoniza uma das histórias mais maravilhosas
que houve nos povos do Ocidente, e esta conquistou um nível de vida
e uma forma de supercivilização das mais altas que existem.

Deixemos Veneza, que seria um assunto mais longo, e digamos


apenas que eu não vejo tão claramente como o desa o do mar foi para
a Holanda causa de sua admirável civilização. Creio que, apesar dele e
sem desdenhá-lo, é preciso contar, desde logo, com um fator que é ao
mesmo tempo geográ co e histórico, isto é, humano: sua favorável
localização entre a Inglaterra, a França e a Alemanha, que fez dela uma
região almofada entre aqueles povos. Esses três países contribuíram
para sustentar a Holanda tanto, ao menos, quanto os próprios
holandeses, se não mais. Vemos, pois, que o signi cado histórico de
cada lugar geográ co é função de muitas variáveis. Por exemplo, a
Espanha, sem mover-se de seu lugar, mudou radicalmente de situação
geopolítica ou geo-histórica quando, no século , os muçulmanos
cortaram horizontalmente o Mediterrâneo e separaram uma costa da
outra, com o que a Espanha, que fora nos últimos tempos do mundo
romano um país mediterrâneo e de passagem entre a Europa e o norte
da África, tornou-se de repente um promontório extremo da Europa,
num Finisterre.34 E esta não é uma quali cação vaga; pode dar-se toda
a precisão necessária.35
Há civilizações, diz Toynbee, que se salvam por aceitar a
sobrevivência num lugar indesejável e, sendo assim, não desejado
pelos demais povos, que então deixam vegetar em paz aquele que se
isolou naquela difícil região. Ou seja, precisamente por fugir e se
agarrar a um país que qualquer um consideraria impotável, esses
povos se salvam. Mas isso é, de fato, aceitar o desa o do entorno, ou é
simplesmente não ter outra opção? Vocês acreditam que seria uma
descrição adequada do náufrago dizer que ele aceita a di culdade da
rocha oportuna? Parece-me que está muito longe de ser acertada tal
descrição. É sabido que, em zoologia, as espécies moribundas
perpetuam os restos, os resíduos da existência que lhes sobra fugindo
para o fundo dos bosques tropicais, como aconteceu aos pigmeus, e a
isso se deve sua perduração em nossos tempos, e como aconteceu ao
magní co animal ocapi, há quarenta anos quase desconhecido, que se
retirou para a selva junto com os pigmeus.

E, contudo — é curioso —, Toynbee identi ca formalmente essa


conduta fugitiva que salva os que ele chama de “povos fósseis” — pois
os povos que se retiram pagam sua retirada com a fossilização — com
a dos pais das primeiras e grandes civilizações, tanto que, ao se
lançarem a terras pantanosas, caram livres das tramóias alheias. Isso
é destruir mais uma vez seu próprio princípio, pois equipara a salvação
por fuga e a resposta heróica criadora. Não parece, pois, que por esse
lado vamos chegar a soluções unívocas. De cada lugar do planeta,
enquanto espaço geográ co de possível civilização, podem-se dizer a
priori mil coisas, muitas contrapostas entre si. Isso signi ca que essa
situação geográ ca, que esse entorno climático não é uma magnitude
isolável, e que represente por si mesma uma determinação. Por isso
Toynbee diz, sobre uma mesma terra, as coisas mais contrapostas, e
assim, como vimos, desfaz sua própria tese, porque vem a reconhecer
que, na realidade, todo lugar do planeta é, por sua vez e
sucessivamente, facilidade e di culdade.

Esta é a pura verdade, mas Toynbee então devia tê-la reconhecido, e


devia ter ampliado sua idéia ou a per lado mais profundamente.
Assim, diz-nos que na Grécia antiga, na alvorada da história helênica o
terreno rochoso e pouco fértil da Ática lançou um desa o aos
atenienses, que o aceitaram criando uma maravilhosa civilização. Mas,
acrescenta em seguida — poucas páginas depois — que isso lhes
trouxe também uma compensação, porque o terreno rochoso daquelas
terras não ofereceu atrativo aos terríveis dórios imigrantes, que, por
isso, assolaram toda a Hélade, menos a Ática. Assim, vemos algo novo:
o fato decisivo de um povo se estabelecer numa certa região não
obedece simplesmente, nem a que aceite o desa o colocado por uma
mudança climática, nem à causa que tão cômoda e levianamente
manejam, a toda hora, os historiadores, a saber: a emigração dos povos
de lugar para lugar pela simples razão de que outros os vão
empurrando. Os dórios, que vêm — e me atenho ao próprio Toynbee
—, segundo ele e segundo quase todos os historiadores, projetados
desde as remotas estepes russas, provavelmente de uma região
próxima ao Mar Negro, por outros povos mais ao norte, não se
estabeleceram na Ática porque não lhes pareceu agradável, atrativa,
isto é, porque não gostaram. E se isso é verdade, como é, e o próprio
Toynbee o reconhece, é preciso construir e constituir uma nova
categoria, segundo a qual um povo se xa num determinado terreno
não porque o desa e, mas porque gosta. Não compreendo como
Toynbee não nota que, sendo isso verdade e reconhecendo-o, deveria
ter constituído uma nova categoria histórica segundo a qual um povo
se xa num determinado terreno porque gosta e não porque o desa a.
Quanto às emigrações, quero dizer de passagem que os historiadores
estrangeiros atuais, ao se ocuparem dessas civilizações mais antigas,
valem-se demais, como de um curinga para explicá-las, do princípio
da superpopulação. É tão verossímil, como eles admitem facilmente,
que no terceiro milênio antes de Cristo existisse na Ásia e na África tal
superpopulação? Bem sei que esta é relativa ao grau dos progressos
técnicos, mas mesmo assim, não parece inteligível esse
transbordamento de humanidade em tais datas. Não seria mais
simples e provável imaginar uma situação inversa — a saber, que eram
idades em que sobrava terra, e quando “há terra pela frente” a vida
normal dos povos é uma certa e constante deriva, uma permanente
mobilidade e como transumância — como vimos acontecer
recentemente com os pioneers na América do Norte? O avanço deles
para o Oeste não se deveu à fuga de uma superpopulação por trás, mas
ao fato de... “haver terra pela frente”.

Veremos, senhores, que todo esse complexo de observações minhas


foi expresso catorze anos antes de o livro de Toynbee ter sido
publicado. Dizia eu, em 1922: “... a aridez climatológica da Península
não justi ca a história da Espanha. As condições geográ cas são uma
fatalidade apenas no sentido clássico do fata ducunt, non trahunt: a
fatalidade dirige, não arrasta. Talvez não seja possível expressar
melhor o gênero de in uência que o entorno físico, o ‘meio’ tem sobre
o animal e especialmente sobre o homem. A terra in uencia o homem,
mas de que maneira? O homem é, como todo organismo vital, um ser
reativo. Isso quer dizer que a modi cação produzida nele por qualquer
fato externo não é nunca um efeito que segue uma causa. O ‘meio’ não
é causa dos nossos atos, mas apenas um excitante; nossos atos não são
efeito do ‘meio’, mas uma livre resposta, reação autônoma.

“Felizmente, os biólogos vão se convencendo de que a idéia de causa


e efeito é inaplicável aos fenômenos vitais, e, em seu lugar, é necessário
fazer uso deste outro par de conceitos: excitação e reação. A diferença
entre uma categoria e a outra é bem clara. Não se pode falar de efeito
senão quando um fenômeno reproduz, sob nova forma, o que já havia
em outro, que é a causa. Causa aequat effectum. O impulso que põe
em movimento uma bola de bilhar efetua depois do choque o
movimento de outra bola, à qual passa aquele impulso. Nunca se viu
que a segunda bola de bilhar se movesse com mais brio que a primeira.
Ao contrário, basta o movimento de uma mão no ar para que um
esquadrão de cavalaria se lance ao galope. A reação vital é um efeito
constantemente desproporcionado à sua causa; portanto, não é um
efeito.

“Foi um erro, pois, buscar as ‘causas’ dos fatos históricos, que são,
de nitivamente, fatos biológicos. A rigor, a única causa que atua na
vida de um homem, de um povo, de uma época, é esse homem, esse
povo, essa época. Dito de outra maneira: a realidade histórica é
autônoma, causa-se a si mesma. Em comparação com a in uência que
os espanhóis tivemos sobre nós próprios, o in uxo do clima é
estritamente desdenhável.

“Fata ducunt, non trahunt. A terra in ui no homem, mas o homem é


um ser reativo cuja reação pode transformar a terra ao redor. A secura
do terreno age sobre ele, antes de tudo, produzindo sede e modorra. Se
o homem é forte, saberá reagir, povoando o ermo de fontes, e
impondo uma vigorosa disciplina esportiva que vença a frouxidão
muscular. De modo que onde melhor se nota a in uência da terra no
homem é a na in uência do homem sobre a terra.

“Há, certamente, lugares no planeta que não são ecumênicos. A vida


neles é impossível; mas, justamente por isso, não in uenciam na vida.
Ali onde a vida é minimamente possível, o ser orgânico reage sobre o
meio e o transforma na medida de sua potência vital [...].

“A paisagem não determina causalmente, inexoravelmente os


destinos históricos. A geogra a não arrasta a história: somente a
incita. A terra árida que nos rodeia não é uma fatalidade sobre nós,
mas um problema para nós. Cada povo se deparou com o seu,
colocado pelo território a que chegara, e o resolveu à sua maneira, uns
bem, outros mal. O resultado dessa solução são as paisagens atuais.

“É preciso, pois, inverter os termos. O dado geográ co é muito


importante para a história; mas no sentido oposto ao que Taine lhe
dava. Não é aproveitável como causa que explica o caráter de um povo,
mas, ao contrário, como sintoma e símbolo desse caráter. Cada raça
leva em sua alma primitiva um ideal de paisagem que se esforça por
realizar dentro do quadro geográ co do entorno. Castela é
terrivelmente árida porque é árido o homem castelhano. Nossa raça
aceitou a secura ambiente por senti-la a m com a estepe interior de
sua alma.

“Como no indivíduo é o dado que arroja mais profundas revelações


qual seja a mulher que escolhe, poucas coisas declaram mais
sutilmente a condição de um povo como a paisagem que aceita.
“Dir-me-ão que, às vezes, o cariz geográ co é tão adverso aos desejos
de uma raça que todas as reações desta para transformá-lo seriam vãs.
Certamente; mas então se produz na história o curioso fenômeno da
emigração, que signi ca precisamente a não-aceitação de uma
paisagem e o desejo peregrino de uma campina sonhada, de uma ‘terra
prometida’ que toda raça forte promete a si mesma”.36

E pouco depois insistia eu sobre o tema, incluindo o das imigrações:


“... A terra não determina a história propriamente. Há um fator que
poderíamos chamar ‘a inspiração histórica do povo’ que não se pode
explicar zoologicamente. E esse fator é decisivo em seus destinos. Com
o mesmo material geográ co e mesmo antropológico se produzem
histórias diferentes. Há, ademais, outro fenômeno de grande
importância: a emigração dos povos. A autoctonia é sempre
problemática e utópica. De fato não conhecemos na história senão
povos que se moveram e, ao se xarem transitoriamente — com uma
transitoriedade de milênios, às vezes — num lugar do planeta, criaram
ali sua história. Se nos atemos, pois, ao rigor dos fatos, o que importa
compreender é por que um povo que se desloca se detém de repente e
se inscreve numa paisagem. É como um homem que avança por entre
as mulheres e de repente ca preso, prendado de uma. É vão apelar,
como se costuma fazer, para considerações utilitárias que sucumbem
sempre entre contradições dos fatos. É preciso reconhecer en m uma
a nidade entre a alma de um povo e o estilo de sua paisagem. Por isso
xa-se aquele neste: porque gosta. Para mim, pois, existe uma relação
simbólica entre nação e território. Os povos emigram em busca de sua
paisagem a m, que no segredo profundo de sua alma lhes foi
prometida por Deus. A terra prometida é a paisagem prometida”.37

Podem ver como, muitos anos antes de que Toynbee começasse a


escrever seu livro, a interpretação das relações entre o homem e a terra
já havia sido pensada em Castela como desa o e resposta, isto é, que a
terra atua sobre o homem, não diretamente causando suas ações, mas
indiretamente colocando problemas para ele. Mas, ao mesmo tempo,
podem também notar a diferença radical entre os dois modos de
entendê-lo. Toynbee parte de um fato puramente físico, de um
elemento do entorno, e crê que ele possa, por si, constituir uma
di culdade para qualquer homem, seja como for. Eu, ao contrário,
parto do homem, e digo que o projeto de existência, a peculiar idéia ou
ideal da vida que um povo traz dentro de si mesmo, em cada uma de
suas épocas, oprime o entorno, e que é sob o per l dessa determinada
pressão que o entorno geográ co adquire também um determinado
per l de di culdade. Mas é preciso acrescentar que também de
facilidade. Não é preciso destacar aquela exclusivamente; não é preciso
melodramatizar fora de hora. O desa o do entorno não pode ser só
desa o; não pode ser pura di culdade, mas é também, numa ou
noutra medida, facilidade. Sem certas facilidades a ns ao que um
certo homem quer ser, sucumbiria; não haveria, pois, história. Cada
lugar geográ co, enquanto espaço para uma história possível, é, como
eu disse, função de muitas variáveis. De imediato, do estado da
técnica. Mas esse estado da técnica, por sua vez, eu já disse, depende
da gura da vida inteira. Portanto, é preciso sempre contar, primeiro,
com como o homem é. Quando os primeiros missionários expunham
para os esquimós a doutrina cristã e lhes descreviam as felicidades da
beatitude no Paraíso celestial, os esquimós perguntaram: — Mas no
Céu tem focas? E como os missionários responderam que não, os
esquimós sacudiram a cabeça preocupados e disseram: — Então o Céu
cristão não serve para os esquimós. Porque, o que faz um esquimó sem
focas? Essa piada, visto que trata-se só de uma piada de Heine,
baseada, talvez, no relato de algum missionário, expressa com graça a
efetiva e permanente situação do homem com relação ao seu entorno,
não na outra vida, mas nesta.

Como anunciei e prometi em aula anterior, é preciso abordar todas


essas questões desde um ponto de vista muito mais radical, decisivo e
prévio a tal consideração biológica e zoológica. Assim, quando lhes
propunha um mito ou guração imaginária de como o homem emerge
entre os animais e começa a ser algo distinto, isto é, homem,
acrescentava que, embora seja só um mito, a questão do posto
zoológico do homem, o problema logenético do homem, é
secundária e para nada decisiva. O que creio rmemente, sim, é que o
homem caracterize a ubérrima abundância da fantasia de que são tão
parcas as outras espécies. Portanto, que o homem é um animal
fantástico e que a história universal é o esforço gigantesco e mil vezes
milenário de ir, pouco a pouco, pondo alguma ordem na louca
fantasia. A história da razão, senhores, é a história dos estágios pelos
quais foi passando a domesticação do nosso desaforado imaginar. Não
há outra maneira além de entender como foi se produzindo esse
a namento da mente humana.

Se se supõe que já existia, a princípio, essa faculdade plena de


raciocinar, não se compreende como demorou tanto tempo para
manifestar sua e cácia. Mas tanto a biologia como isso, que era
psicologia, são pontos de vista particulares e, portanto, secundários,
que consistem em ocupações às quais o homem se dedica uma vez que
já está vivendo. Todas as ciências particulares surgem dentro e por
causa da perspectiva fundamental e originária que é o simples fato de
viver. Neste têm sua origem, sua base e sua justi cação todas elas; e
por isso nos transferem, como a uma última instância, para a realidade
radical que é nossa vida — a vida humana, a qual é sempre e desde
logo a de cada um. E se chamo de radical a essa realidade que é minha
vida — cada um compreenda a sua — não é porque a considere como
a única realidade, nem sequer como a superior, mas simplesmente
porque é para mim a raiz de todas as demais, as quais, para serem tais
realidades para mim, têm de aparecer ou se anunciar de alguma
maneira dentro de minha vida. O próprio Deus, para ser Deus para
mim, tem de se revelar a mim, tem de se manifestar, de se epifanizar
de alguma maneira nos espaços estremecidos e reverberantes que
constituem a minha vida.

Entretanto, desse fenômeno radical importa dizer agora somente que


consiste primariamente no simples fato de que o homem se encontra
tendo de ser, de existir num elemento distinto dele, alheio a ele, numa
circunstância ou meio que se costuma chamar de “mundo”, e que, para
simpli car agora, chamaremos também de “mundo”. Evidentemente,
viver é, assim, a descoberta que cada um faz, ao mesmo tempo, de sua
pessoa e de algo distinto e outro, diferente dele: o mundo. O mundo
não existiria para mim, não me faria saber dele, não seria mundo para
mim se não se opusesse a mim, se não resistisse aos meus desejos e
não me limitasse e, portanto, negasse a minha intenção de ser o que
sou. O mundo é, pois, antes de tudo, não digo mais ou menos, mas
antes de tudo, resistência a mim. É o hostil, e por isso é o outro em
relação a mim. A relação primordial entre homem e mundo se torna
diáfana recorrendo rapidamente às três únicas suposições que se pode
fazer: primeira, que o mundo fosse pura facilidade; portanto, que
consistisse em puras comodidades para o homem, como pensaram
algumas vezes em todos os tempos os otimistas, por exemplo, os
lósofos racionalistas do século . Segunda, a suposição de que o
mundo consistisse em hostilidade, apenas hostilidade, em pura
di culdade para o homem, e isso é o que, sem se dar conta, Toynbee
supõe. A terceira, que o mundo seja um sistema combinado de
facilidades e di culdades.

A segunda suposição, a do mundo como hostilidade, é eliminada,


simplesmente, porque num mundo que fosse, de fato, uma absoluta
di culdade a vida humana seria impossível. O homem, tão logo fosse,
ipso facto sucumbiria.

A primeira suposição é também impossível, mas sua razão é mais


interessante. Se eu quisesse avançar agora retilineamente, e essa mesa,
por si mesma, como adivinhando meu desejo, cedesse ou me deixasse
passar-lhe através, eu não a distinguiria de mim. Para distingui-la é
preciso que eu tropece nela, que ela resista a mim. Pois se, como nessa
suposição — que a mesa cede — sucedesse com todo o resto do
mundo, por ser constituído, segundo a hipótese, por puras facilidades,
aconteceria que o mundo não seria mundo para mim, mas
simplesmente prolongação minha; seria como meu próprio corpo,
seria eu. Portanto, o mundo, para ser mundo para mim, tem de
consistir em resistências, em di culdades; tem de se opor a mim.
Recordem que, sem dúvida, custou-lhes aprender, quando crianças, à
força de correções e de se chocar com os móveis, que seu corpo não
chegava até o horizonte, que tinha fronteiras e limites; que sua pessoa
terminava num certo lugar e que ali começava outra coisa alheia e
arisca. Desse modo, pois, com essas puras facilidades, não haveria tal
mundo; e isso contradiz o fenômeno radical de que partimos, segundo
o qual, ao nos sentirmos viver, nos descobrimos tendo diante de nós
um elemento que nos é alheio, que resiste e se opõe a nós. Viver como
“estar no que resiste” é o que diferencia de um modo radical o sentido
que tem a palavra “vida” quando referida ao homem e quando referida
a Deus. Porque, para Deus, viver, ser, não é existir num mundo. Ele
não encontra nenhuma resistência nem nada que se lhe oponha. Deus
não tem um mundo. É Ele que o cria para o homem, é o mundo do
homem, não o mundo de Deus. Por isso Deus não tem fronteiras,
limites, é ilimitado, in nito. Para Deus, viver é utuar em si mesmo,
sem nada nem ninguém diante d’Ele nem contra Ele. Eis o mais
terrível e o mais majestático atributo de Deus: sua capacidade para ser,
para existir na mais absoluta solidão. Que o frio dessa tremenda,
transcendente solidão não congele Deus mede o poder de ignição, de
fogo que n’Ele reside.

Daqui o profundo sentido do mistério da Encarnação, em que Deus,


por um ato determinado, concreto, de sua vontade — permitam-me
dizer que divinamente paradoxal — resolve humanizar-se, isto é, fazer
e padecer a experiência de viver num mundo, de deixar de estar só e
acompanhar o homem. É um dos lados do cur Deus homo, de por que
Deus se faz homem. Um mundo que consistisse em puras facilidades
não seria mundo para nós; seria um paraíso. E o paraíso é um entorno
que realiza os nossos desejos, que não se opõe em nada a nós.
Portanto, a rigor, não é um entorno, é indiscernível de quem vive nele.
Só quando o anjo amígero expulsou Adão e Eva do Paraíso
começaram eles a ter, no sentido natural do termo, vida humana,
porque o que o anjo fez, então, foi botar Adão e Eva no mundo; isto é,
no resistente, hostil e outro com relação a eles. Eis aqui um tema que
creio ser novo, com o qual brindo os teólogos que amavelmente me
escutam, já que os teólogos procuram toda a possível pulcritude e
precisão nessas questões. Pergunto: Qual é, antes do pecado, estando
in statu inocentiae, a relação entre Adão e o Paraíso? Como se
distinguia a si mesmo, sendo que o mundo, como vimos — entenda-se
sempre na ordem do pensar natural —, não pode ser entorno para
Adão, como o é para nós? Desde o ponto de vista natural, Adão teria
de sentir o Paraíso como se fosse seu próprio, seu imenso corpo.

O homem, dissemos outro dia, é um perene inadaptado e


inadaptável. Por isso tropeça com o mundo, e por isso tem mundo.
Porque o mundo não existe senão porque é tropeço. Eis por que a
conduta do homem é inversa à dos demais animais, os quais se
adaptam ao meio, enquanto ele procura adaptar o meio à sua pessoa.
Nessas circunstâncias, o destino do homem implica ter de adaptar —
por algum esforço enérgico e continuado — este mundo a suas
exigências constitutivas, essenciais, que são precisamente aquelas pelas
quais ele é um inadaptado. Tem, pois, de se esforçar por transformar
este mundo que não coincide com ele, que lhe é estranho, que não é,
portanto, o seu; transformá-lo num outro em que se cumpram os seus
desejos. Porque o homem é um sistema de desejos impossíveis neste
mundo. Criar, pois, outro mundo do qual possa dizer que é o seu
mundo, a idéia de um mundo coincidente com o desejo é o que se
chama felicidade. O homem se sente infeliz e, precisamente por isso,
seu destino é a felicidade. Contudo, não tem outro instrumento para
transformar este mundo no mundo que pode ser seu e com ele
coincidir que a técnica, e a física é a possibilidade de uma técnica
ilimitada. Donde temos que a física é o órgão da felicidade humana, e
que a instauração dessa ciência foi, dentro do humano, o fato mais
importante da história universal.38

A XII
A trajetória seguida. — A substância. —
O ser e a reforma da inteligência. — A
super cialidade do existencialismo
francês. — Os três grandes conceitos no
pensamento de Toynbee. — O paradoxo
do Estado romano. — O direito romano e
a concórdia. — O direito moderno e os
desiderata. — Parábola do homem e do
urso.

S enhores, estamos na última aula deste curso. Chegamos a ela sem


grandes tropeços. Vejamos qual foi a nossa trajetória e o nosso
comportamento. Tratava-se de expor e submeter a um exame crítico a
doutrina histórica de Toynbee, desenvolvida por ele na superfortaleza
literária de sua obra, com os seis motores de seus seis compactos e
enormes tomos.

A doutrina de Toynbee começa por perguntar qual é o verdadeiro


sujeito da história, ou, dito de outra maneira, qual realidade é a que
tem sua história e, portanto, pode-se fazer dela uma história. Uma
realidade parcial, como, segundo Toynbee, uma nação, a Inglaterra,
por exemplo, terá uma história parcial, um pedaço ou um fragmento
de história que, sendo fragmento, é ininteligível, como o mero pedaço
de uma frase. O verdadeiro sujeito histórico, segundo Toynbee, tem de
ser uma realidade inteiriça, compacta, que se possa entender desde
dentro e sem sair dela. Isso não ocorre, segundo o nosso autor, com as
sociedades que são as nações, mas dá-se, sim, com sociedades de outro
tipo, mais amplas, em que convivem articuladas muitas nações, como
membros que integram um organismo. A essas sociedades que se
bastam a si mesmas, que são autárquicas e su cientes e desde si
mesmas se explicam, Toynbee chama de “civilizações”. Toynbee pensa
a respeito de si próprio que é um homem do método empírico, mas o
fato é que, sem se dar conta disso — em matéria losó ca, Mr.
Toynbee é de uma encantadora e paradisíaca inocência —, sem se dar
conta disso, ao reclamar do verdadeiro sujeito histórico que seja
autárquico e su ciente, e se explique dentro de si mesmo, não faz
senão postular a idéia menos empírica que existe no mundo: a idéia
aristotélica de substância, a idéia metafísica por excelência.

Também Aristóteles disse literalmente que o verdadeiro sujeito real é


a substância, e que o é por ser autárquica, su ciente e passível de ser
entendida desde si mesma. Descartes, o antiaristotélico, não é senão
um el discípulo de Aristóteles quando de ne também a substância
como o ser su ciente, como “aquilo que não necessita de nenhuma
outra coisa para existir”. Toynbee, que é o bourgeois gentilhomme da
loso a, e trata do aristotélico e do cartesiano sem saber, nem ao
menos suspeita que, após vinte e cinco séculos de experiências
intelectuais, nos vimos forçados a abandonar a interpretação da
realidade como substância e estamos espremendo nossas cabeças para
ver se conseguimos reconhecer, como resulta e se nota
ineludivelmente, que toda realidade, entenda-se, intramundana, é o
contrário, é o ser carente, de ciente, o ser indigente que não se basta a
si mesmo, que é necessitado e, contudo, é. A coisa parece
acrobaticamente paradoxal e ultradifícil de entender, porque nossos
hábitos mentais desde que nasceram as nações européias se formaram
sob a férula da disciplina grega, e os gregos, salvo Heráclito, pensavam
o contrário: pensavam, com um ou outro acento, que a realidade é o
ser su ciente, o ser substante. Entretanto, não temos saída agora senão
pensar de outra maneira, porque os gregos, ao pensarem, repito,
predominantemente, talvez com a única exceção de Heráclito, que a
realidade é o ser que se basta a si mesmo, eram otimistas à prova de
bomba, e esse otimismo intelectual para quem o ser, simplesmente
porque é, tem de ser su ciente, compacto, perfeito, portanto bom, nos
foi transmitido primeiro pelos escolásticos e depois por seus inimigos
os humanistas, pois, nesse ponto, que é o fundamental, coincidem os
dois irmãos inimigos. Essa suspeita coincidência deveu-se ao fato de
que os escolásticos, em vez de se aterem à autêntica inspiração cristã,
entregaram-se a modos de pensar originados no paganismo helênico,
e renunciaram a criar uma loso a que fosse ela própria cristã, e não
apenas cristã em sua aplicação à teologia. Essa loso a autenticamente
cristã teria sido enormemente mais profunda que a grega, mas não
teria sido otimista, pois se, no primeiro capítulo do Gênesis, Deus,
depois de criar todas as coisas deste mundo, reconhece que eram valde
bona, muito boas, depois do pecado, e a raiz do cristianismo é a
consciência do pecado, isto é, o fato de o homem se reconhecer, com
todo o seu redor, como algo indigente, insu ciente, necessitado,
carente de pleno ser, de salvação; depois do pecado — digo — o
homem e o mundo, convertidos em mera realidade natural, deixaram
de ser valde bona e se tornaram in-válidos, claudicantes e caducos. Por
isso o cristianismo — eu já o recordei — dá deste mundo uma
de nição, a mais sóbria, mas ao mesmo tempo mais profunda que
todas as da loso a grega, uma simples de nição geográ ca, quando
nos diz que este mundo é “um vale de lágrimas”. E o curioso do caso é
que aqueles de entre vocês, por quem sinto profunda simpatia, que
foram especialmente instruídos e educados nessa loso a que se
chama cristã, serão os primeiros, mesmo reconhecendo a verdade da
frase, a julgar que chamá-la eu de de nição só pode ser brincadeira.
Porque de nição é o que Aristóteles disse que era uma de nição, e
ignoram, por ter estado incrustados nessa mumi cada e arcaica noção,
ser hoje notório que Aristóteles tinha do que seja uma de nição
noções bastante de cientes, ainda que admiráveis em seu tempo, e não
só em seu tempo, porque Aristóteles é de verdade uma das quatro ou
cinco prodigiosas cabeças que houve no mundo, verdadeiras cabeças, e
não o honorário peso de papel que costumamos levar sobre os ombros.
Pois bem, crêem que isso não é uma de nição, enquanto nós
pensamos completamente a sério que esse dizer cristão sobre o mundo
é uma de nição, a saber: a única forma de de nição, a única de nição
que as realidades últimas toleram.

Aí têm vocês a atual vicissitude; aí têm vocês como as coisas viraram,


e se nós, além de outras razões, por necessidades puramente
losó cas, nos encontramos revivendo em sua raiz a intuição cristã da
realidade e forçados a ver como conseguimos pensá-la como ela
reclama, como um ser indigente, portanto, como um ser que ao
mesmo tempo que é, não termina de ser, quer dizer que, pela primeira
vez, o homem europeu transcende intelectualmente o círculo mágico
traçado pela disciplina grega, pelas tradições clássicas. Essa razão
recomenda a criação de um Instituto de Humanidades, no qual sejam
estudadas e investigadas para além de tudo o que foram o humanismo
e a tradição clássica, bem entendido que sem renunciar a aquilatá-las,
e sim enriquecendo-as incalculavelmente, mas não exclusivamente e
sob a sua férula.

Convido vocês a prestarem atenção ao que acabo de dizer, e não


passem ao largo disso, pois é assunto grave e de altíssimo bordo. Trata-
se de nada menos que a reforma mais profunda na inteligência e na
idéia sobre o homem e o mundo que já se empreendeu desde os
tempos luminosos da Grécia. Todas as ciências e, mais em geral ainda,
todas as disciplinas do homem ocidental vivem em última instância da
idéia do ser que predominou na Grécia. Conseqüentemente, uma
reforma radical na idéia do ser, por pouco que se faça, traz consigo
uma renovação básica de todas as ciências e de todas as disciplinas
humanas. É esse intento a única grande promessa que se alça hoje
sobre o horizonte e constitui a única probabilidade de que muitos
problemas, até agora insolúveis, ao terem de ser recolocados sob forma
completamente distinta, dentro da nova perspectiva, recebam alguma
solução.

Mas não peço, nem sequer desejo, até desaconselho que alguém
abandone suas posições tradicionais de pensamento para aceitar, sem
mais nem menos, antes de se inteirar bem em que consiste, por frívola
atração da novidade, esse projeto de reforma na raiz da inteligência. O
que peço, ao contrário, é que se procure serenamente e com calma
compreendê-la de modo su ciente para julgar em vista disso, sem se
fechar de antemão a essa empresa hermeticamente, teimosamente e
tontamente. Peço, em suma, que àquilo que é uma grande idéia não se
reaja como é comum em nosso país, de uma maneira grosseira.

Agora já podemos dizer formalmente que, para Toynbee, as


civilizações são os sujeitos ou substâncias que integram a história. De
sorte que, fale-se do que se quiser em história, por exemplo, ainda que
se trate da biogra a de uma pessoa, do que se está falando, em última
instância, é sempre de uma civilização: da civilização ocidental, da
civilização grega ou da civilização egípcia. O próximo passo de
Toynbee, como não poderia ser diferente, é procurar determinar que
atributos nos permitem, na enorme massa de fatos históricos,
reconhecer quais convolutos deles se constituem na gura de uma
civilização. Partindo das quatro hoje existentes e retrocedendo para o
passado, Toynbee crê poder estabelecer a lista dessas características ou
sintomas distintivos de uma civilização. A maior parte deles, segundo
Toynbee, procedem em sua existência desta forma: começam por uma
Völkerwanderung, emigração de povos bárbaros ou “proletariado
externo”, que destroem um Estado universal preexistente em outra
civilização anterior; herdam dela uma religião universal criada por um
proletariado interno da vitimada por eles. A isso seguem uns séculos
de caos, após os quais vêm uns séculos lentos e tranqüilos de
formação, os quais são interrompidos por uns séculos de tempos
revoltos, que terminam quando uma dessas nações subjuga as demais
e cria a estrutura atroz de um poder público puro, que é o Estado
universal, uma Pax donde surge, como brotando de seus profundos
seios proletários, uma religião universal. Essas são as civilizações liais
ou derivadas de outras, mas elas nos indicam seis originais e primevas,
que não se devem a nenhuma anterior. Muitas vezes tive de repetir
essa ladainha, essa série de conceitos, essa série de estágios pelos quais,
segundo Toynbee, passam todas as civilizações, salvo, em seus
começos, as originárias, e tive de fazê-lo porque é a coluna vertebral de
toda a sua doutrina. Nisso, como podem notar, há uma questão que se
destaca sobre todas as demais: é a da origem das civilizações; mas essa
questão se bifurca por sua vez em duas, porque é distinta a origem das
civilizações originadas ou derivadas e o das primevas ou originais.
Essa última origem é, para Toynbee, abrupta; ele não a chama assim, e
considera a coisa mais natural do mundo essa maneira de colocá-lo.
Dedicamos algumas aulas ao seu modo de explicar essa abrupta
origem e ao seu modo de pensar nessa questão. Vimos o papel,
demasiado negativo e ao mesmo tempo confuso, que, segundo
Toynbee, corresponde ao fator “raça”; vimos o que o entorno
geográ co e as mudanças reais ou hipotéticas representam como
desa o que a terra lançou a que alguns grupos de homens heróicos
responderam com a criação de uma ou outra civilização. Isso nos
levou a analisar a fundo a primeira e mais importante categoria dentro
da doutrina de Toynbee: a idéia de “desa o-resposta”, dando motivos a
que eu lhes mostrasse qual é a coincidência e a discrepância do meu
pensamento com o dele. Para tal, para esclarecer essa discrepância,
não me restou senão alçar por um instante o vôo de uma loso a
fundamental que parte da vida humana, e cujo fenômeno radical e
primário, mais evidente e constitutivo, o homem manifesta perpétua e
constitutivamente em luta, comprometido, engagé, a lutar com o
mundo, que sempre resiste mais ou menos a ele, limita-o e nega sua
intenção de ser o que tem de ser. E como tudo neste curso, incluso o
que, a princípio, parece mais adventício, é rigorosamente sistemático,
proporcionou-nos esta breve imersão na realidade que é nossa vida, a
de cada um, alguns vislumbres sobre problemas transcendentes: sobre
Deus, o homem e a felicidade, como agora nos permite — mesmo sem
nos deter — a ganhar um vislumbre sobre a razão que me faz
considerar como um erro a limine, isto é, desde o primeiro passo, a
chamada loso a existencialista, que, com um atraso de vinte anos
com relação à Alemanha e vinte e cinco com relação à Espanha, está
agora em epidêmica moda em Paris. Pois segundo ela resultaria que
comprometer o homem numa empresa, sua vida, ou seja, s’engager, é
um ato especial e especialmente deliberado a que num certo momento
tem de ser resolver, como se viver não fosse em si e sempre estar já
comprometido, engagé, que é a palavra usada pelos existencialistas.

Esquece-se demais que, se o homem vive, é porque aceita viver;


poderia muito bem não aceitá-lo. Não ocorre, pois, que, encontrando-
se já na vida, deva alguém s’engager ou se comprometer, mas o simples
fato de viver é já inexorável, inelutável e constitutivo estar de antemão
engagé ou comprometido. Ao lado desse radical e primário
engagement ou comprometimento que é o simples viver, todos os
outros, secundários e especiais, são super ciais, mais ainda, frívolos,
como se vê simplesmente olhando sua cara.
Permita-me Jean-Paul Sartre, a quem admiro, conste, porque, diga-se
o que se quiser, tem um grande talento, permita-me dizer-lhe que as
coisas a que diz agora (isto é, há seis meses, porque o vimos variar com
freqüência) ter-se engagé são insipidezes, os mais bichados tópicos que
andam hoje pela rua. E se um homem de grande talento diz ou faz
uma insipidez, a culpa não é sua, mas da errônea doutrina em que
está.

Eis como o existencialismo comete exatamente, com respeito ao


engagement, o mesmo erro que Toynbee com a idéia de desa o e
resposta, a saber: tomar a coisa sob formas e em zonas secundárias e
super ciais, em vez de vê-la na profundidade de seu valor constitutivo
e transcendente.

Mas a questão da origem das civilizações apresenta outra gura


quando se trata das liais e derivadas. Estas nascem, dissemos, com
uma emigração de povos novos, os quais irrompem num Estado
universal, onde encontram uma Igreja universal. Estes três conceitos:
Völkerwanderung ou migração de povos, Estado universal e Igreja
universal são os três conceitos fundamentais do pensamento de
Toynbee. Mas o surpreendente é que, em toda a sua obra, em nenhum
momento se ocupa seriamente e um pouco a fundo de nos dizer qual é
o conteúdo desses conceitos, apesar de seus nomes aparecerem em
quase todas as páginas de seu livro. É de notar que Toynbee faz a
mesma coisa, pratica o mesmo com todos os mais agudos e decisivos
problemas. Quanto às emigrações, conforme avança sua obra, vai nos
dizendo cada vez menos, até que, ao m, opta por colocar uma nota de
rodapé anunciando que tratará do assunto na parte ainda não
publicada de sua obra. Em última instância, faz bem ao se comportar
timidamente no tema das emigrações, porque é questão realmente
muito quebradiça e, apesar de ser um fenômeno histórico de primeira
ordem, não foi estudado nem analisado ainda em sua estrutura e
consistência. Quando os historiadores se deparam com o fato
inquestionável de que um povo emigrou, supõem, simplesmente, sem
crerem-se obrigados a provar a efetividade disso, que outros povos os
estavam empurrando, o que os incita a imaginar um terceiro povo que
os empurra, e assim sucessivamente até o in nito. Dá vontade de dizer
aos historiadores como dizem os mancos: “Não empurrem”.

E, para justi car esses empurrões, apelam ao conceito de


superpopulação, nada provável em épocas tão antigas da história, mas
o fato é que seu uso mais freqüente é empregar como um curinga esse
princípio da superpopulação. É tão verossímil como admitem que por
volta do ano 5000 ou 4500 antes de Cristo a Ásia Central, as estepes
russas ou o norte da África estivessem tão superpopulosas? Bem sei
que tudo é sempre relativo ao grau de progresso da técnica, mas
mesmo assim me parece ininteligível a existência da superpopulação
nesses alvores dos tempos históricos. Nem a formação das línguas nem
a gestação dos mitos nem, em geral, a multiformidade dos modos de
ser homem existentes já na proto-história se explicam se não se supõe
que as coletividades humanas viviam muito distantes umas das outras,
que era relativamente insólito o encontro entre grupos estrangeiros, o
que ca marcado na memória deles como uma das grandes
efemérides. Não seria mais simples e mais provável pensar que, nessas
épocas, havia terra de sobra? E quando há terra pela frente a vida
normal dos povos parece que deve consistir numa certa deriva
incessante, numa permanente mobilidade e como que transumância,
como vimos que aconteceu recentemente com os pioneers na América
do Norte. O avanço para o Oeste desses americanos, muitos deles, a
maior parte, emigrantes, não se devia a deixarem para trás uma
superpopulação, mas simplesmente que havia terra pela frente. É mais:
quando um povo se encontra ainda num âmbito geográ co onde há
terra pela frente, onde sobra terra, encontra-se numa situação humana
perfeitamente característica que é anterior num sentido estrito e
potencialmente histórico. Povos assim não estão na história, quando,
sobre terra, é a geogra a quem manda, e é a forma de paraíso real que
puderam gozar certos grupos humanos. Isso é o que se chama o
homem colonial, tema de primeira ordem e também de enorme
interesse.39 Talvez algum dia no Instituto de Humanidades o
estudemos um pouco detidamente, porque reuni muitos dados sobre
ele. Dava-me vergonha que ainda estivesse por estudar, nas bibliotecas
do mundo, o homem colonial, um homem que existiu em todas as
civilizações, em cada uma com suas características particulares, e que
constitui um homem perfeitamente diferente dos metropolitanos,
coisa que ignoram os que agora falam com demasiada ligeireza e
ingenuidade de nossos lhos americanos. Não pude fazer esse trabalho
porque, para fazê-lo bem, era preciso viajar muito e comparar não só
as velhas metrópoles e as mais antigas colônias como, por exemplo, as
repúblicas hispano-americanas ou a América do Norte, mas seria
preciso também comprar as colônias mais recentes com as mais
antigas; eu teria de ir à Austrália, à Nova Zelândia, à recém-nascida
das colônias inglesas que é a Rodésia. Mas isso era viajar demais para
quem só tinha o necessário para o bonde. Sobre esse tema das
emigrações, ainda que referido a época mais primitiva, recordo-me de
ter escrito, há bastantes anos, uns parágrafos muito breves, que vou ler
para vocês. Dizia eu: “ C o n s e r v o n a r e t i n a u m a i m a g e m a n
t i - ga. É em Castela. Um prado cor de palha com um charco
vermelho de sangue, o sangue de um touro que, ferido, acaba de
morrer. Pouco depois, na solidão do horizonte, aparece outro touro
que cruza a área tórrida e fareja o líquido ainda quente. O olho do
animal se encende. Seu corpo estremece, treme do focinho à cauda,
pisoteia o chão e alonga o pescoço para o rmamento num longo
mugido. Aquela maneira quase elétrica de o animal reagir ante os
sinais vitais de um semelhante me causou uma profunda impressão.
Parece que, quando uma vida encontra no espaço do mundo outra
vida — ou simplesmente seus vestígios — produz-se sempre uma
espécie de corrente induzida, uma sacudida frenética da vitalidade —
isto é, que a vida se exalta ao entrar em sua presença outra vida.

“Com o homem ocorre o mesmo quando o é em verdade. Eis que


caminhamos pela grande ausência imóvel que terra e vegetação
depositam sobre a paisagem. De repente uma ave rompe o vôo aos
nossos pés. Estremecemos. Ao longe aparece um homem. A ausência
a rmada pelos elementos botânicos ca agora habitada por um
ingrediente de inquietude. E isso que já estamos habituados à
proximidade do próximo... Como seria em outros tempos! Já se
apontou que, nos alvores da nossa espécie, o homem era um animal
raro. Minúsculos grupos humanos vagavam sobre o imenso cenário
geológico. De tarde em tarde, com larguíssimos intervalos, se produzia
o terrível acontecimento: um grupo de homens encontrava no
universo outro grupo de homens. Esse encontro devia suscitar
fabulosos estremecimentos. Que ardores, que terrores, que trepidação
prolongada devia deixar nas imaginações esse choque de um grupo de
homens com a imagem passageira de alguns outros homens!”.40

Não era essa medida, mas não devia ser muito menos a situação nos
espaços meio vazios da proto-história.

Mas deixemos este assunto das emigrações, já que o próprio Toynbee


o transfere para a parte inédita de sua obra. Restam o Estado universal
e a Igreja universal. Em nenhuma parte tampouco se faz questão de
falar a sério e a fundo dessas duas realidades importantes em seu
pensamento, que aplica mecanicamente a todas as civilizações. Chama
qualquer coisa de Estado universal e a qualquer coisa de Igreja
universal, a tal ponto que bastaria apresentar uma lista dos fatos
históricos que quali ca com esses nomes para que se produzisse um
efeito bastante cômico. Eu já disse que é o Império Romano a
realidade que suscita em Toynbee a idéia do Estado universal. Teria
razão se nos desse a noção ou a análise do que era o Império Romano;
mas ocorre que o vice-reinado espanhol no Peru é também um Estado
universal, e confesso a vocês que, para saltar do Império Romano ao
vice-reinado espanhol no Peru e identi cá-los, falta-me por completo
agilidade acrobática. Eis por que pensei que fosse necessário neste caso
— sob pena de que não zéssemos mais que resvalar, patinar sobre os
espaços da história — apresentar esquematicamente uma visão interna
do que foi o Império Romano, a m de que tivessem uma imagem
mais concreta dele. Essa visão, que creio a mais rme e lúcida das
explicadas até agora, foi cumprida num par de aulas. Ela nos obrigou a
recorrer a um paradigma que não tem semelhante em todo o passado
humano, a evolução, ao longo do tempo, do poder supremo num povo
ou nação, em Roma, e quisera ter a ilusão — pois é em mim mais
ilusão que pretensão — de que em meus jovens ouvintes, na mente
deles, ca para sempre impressa a imagem exemplar desse processo
que começa com o intermitente e elementar poder do imperator
ocasional, que logo coalha e atinge maturidade sem par na autêntica e
primária legitimidade, a qual segue uma legitimidade secundária e
insaturada para chegar ultimamente a esse trambolho atroz do poder
público puro e sem consagração, absoluto e absolutamente ilegítimo
que foi o Império Romano. E esse é o paradoxo que apresenta essa
realidade que foi o Estado mais ilustre que já existiu no mundo.

Foi uma lástima que não pudéssemos estudar todo esse processo
seguindo-o por seu estrato mais profundo, a saber: como os romanos
sentiam o direito — os romanos que não eram lósofos gregos nem
discípulos deles —, o que era como realidade vivida, e não como
de nição dos teóricos, isso que chamavam de direito. Pude apenas
aludir a isso com vagas palavras, enigmáticas para muitos, embora
creia que os juristas, a quem eram especialmente dedicadas, devem tê-
las entendido. Eu disse que, para o romano, o direito não é direito
porque é justo, mas o contrário: o justo é justo porque é direito. Com
essa fórmula um tanto sibilina pretendia enunciar de um golpe duas
coisas: primeira, que a justiça, no vago sentido ético que hoje
comporta predominantemente a palavra para nós, não tem nada que
ver com o que o romano, que não era senão romano e não um
discípulo dos lósofos gregos, chamava de direito. Segunda, que o
direito era uma forma de comportamento dotada pela sociedade de
inexorável vigência, a que o indivíduo podia seguramente recorrer e se
ater, porque estava seguro de que se faria cumprir, e que não mudaria
da noite para o dia. O que essa forma de comportamento tinha de
direito para o romano não era seu conteúdo particular; isso era
secundário. As instituições jurídicas romanas foram concretamente o
que foram, mas poderiam ter sido completamente distintas e possuir,
contudo, o que de essencialmente romano havia em seu direito, a
saber: o caráter formal, de vigência invariável de cujo cumprimento e
permanência o indivíduo podia estar seguro. Porque a vida, senhores
— nós o esquecemos muito; fazemos tudo para esquecê-lo, de tanto
que é verdade — a vida, senhores, é constitutivamente insegurança. Eu
já o dizia em 1914, em minhas Meditações do Quixote.41 Estamos
inseguros até mesmo sobre se amanhã cada um de nós vai existir; mas
muito mais inseguros do que vai acontecer com os conteúdos
particulares de nossa vida: saúde, fortuna, acertos, dor, prazer... Por
isso o homem necessita assegurar alguma dimensão em sua vida, saber
ao menos a que se ater nela, para desde ela enfrentar com coragem o
problemático restante. Isso era o direito para os romanos. Graças a
essa segurança de seu direito, o cidadão de Roma podia ncar nele
con ante os seus calcanhares, rmar-se nele e, tranqüilo, sentindo-se
amparado, por assim dizer, em sua retaguarda, podia buscar sem
aturdimento, susto nem neurose, como se comportar para ser homem
com dignidade, para desenvolver sua vida pessoal com inteireza e
seriedade, e formar-se um caráter rme e enérgico. Em suma, ser
romano. Porque a essa genial sensibilidade que faz com que veja o
direito, sobretudo, que sinta efetivamente o direito como algo ao
mesmo tempo inexorável e invariável, é ao que deve ter podido ser o
grande povo que foi. Em contrapartida, não houve talvez ninguém a
quem menos preocupasse isso que vaga e irresponsavelmente nós
chamamos de justiça. Pois sabiam muito bem, sob a iluminação de
uma surpreendente intuição, que não há dentro do humano nenhuma
forma de conduta que se possa considerar, de modo último e absoluto,
como superior às demais e à qual, portanto, todas as demais tenham
de se subordinar e anular; como sabia que não há, por exemplo, nem
pode haver nada que seja absolutamente isso que nós chamamos hoje
justiça, e que amanhã nos parecerá injustiça. O que faziam os
romanos? Dotavam de caracteres absolutos, rígidos, invariáveis e
inelutáveis uma gura de comportamento — digamos de propósito
com algum exagero para que a coisa que mais clara —; dotavam
desses caracteres absolutos, r ígidos, invariáveis uma f igura de
comportamento qualquer. E esse é o autêntico sentido do direito
romano, e este é, en m, o autêntico sentido de todo direito. O per l
concreto das instituições jurídicas romanas — as processuais, a pátria,
a potestade, a propriedade, a herança, etc. — não se derivavam de
nenhuma suposta idéia do direito, mas, ou de simples usos
inveterados, ou de compromissos entre os grupos sociais em luta.
Ordinariamente, a linha desse per l da instituição marca exatamente a
linha do equilíbrio dinâmico entre as forças sociais de luta; e, portanto,
a gura da instituição, seu per l, o que faz é de nir um compromisso,
um acordo. As instituições romanas, como toda a história romana, não
viveram da justiça extrajurídica, mas da concórdia política. Toda a
história romana gira em torno do conceito da concórdia, que quando
funciona com seus caracteres mais amplos é o que se chama de
concordia ordinis, o acordo entre as distintas classes sociais. Uma
grande lição que poderíamos aprender e que também se poderia
explicar aos homens, mas não se lhes explica com evidência e
vivacidade! Segundo essa imagem que proponho a vocês, não para que
a aceitem, mas que meditem sobre ela, aparecem-nos como as duas
notas constitutivas do que o direito era para o romano, estas: primeiro,
ser, em princípio, imutável; segundo, não ser um mandamento de
nenhuma vontade pessoal, mas ser o estabelecido, ou, em outras
palavras, a lei. Lei consuetudinária, imemorial, primeiro; depois, as leis
estatutárias, novas, que nasciam, que surgiam daquelas leis já
preexistentes, as quais determinavam como se pode fazer novas leis,
mas sem nunca serem ordens emanadas de uma autoridade pessoal. O
direito é, pois, para o romano, o contrário do imperium, o contrário de
todo autoritarismo. O ato de imperium, praticado por parte do
magistrado judicial, intervém só nos interstícios, nos vácuos do
direito, tais são os decreta, os interditos; ou seja, a autoridade,
enquanto autoridade e imperium, e não lei objetiva e impessoal,
intervém só ali onde o direito faltava. Este era lei, e a lei é o
estabelecido, isto é, o que está aí desde sempre; aquilo a que todo
mundo sabe — desde sempre, desde que nasce — que pode recorrer, e
a que se pode ater, porque estava aí desde antes e é invariável. O
direito, a lei é, pois, própria e substantivamente lex lata, lei feita, lei que
já estava aí, lei já existente. Depois, e só depois, secundariamente, é lex
ferunda, a lei nova, a lei que será feita, mas que será feita segundo uma
lei já feita antes, que já existia e que estava aí antes, e que determina o
procedimento. Esquematizando, pois, eu diria, num exagero ideal para
obter forte impacto sobre as mentes, que o direito para o romano é o
que não se pode fazer, como não se pode fazer uma lei cósmica, a lei
da gravidade, por exemplo. E isso considerando que, se o direito pode
ser feito, poderia também ser desfeito; será, portanto, mutável, instável
e inseguro. Por isso disse que a lei é o estável, o estabel-ecido. Eis,
senhores, o porquê do famoso conservadorismo romano em questão
de direito. Não é que o romano resistisse em todo o possível a
introduzir nele modi cações porque era conservador, mas, ao
contrário, era conservador no jurídico porque sabia, porque sentia
como ninguém sentiu o que é direito. Este é, pois, por essência o
irreformável, o invariável. As necessidades da vida coletiva obrigam,
contudo, a introduzir nele modi cações e, portanto reformas. Mas a
atitude que se adote ante essa necessidade, de fato ineludível, de
reformar o direito é o que de ne qual seja a atitude perante ele, o que
para um povo, para uma época, é o direito. O romano reforma seu
direito a contragosto, lentamente, gota a gota e nunca destruindo o
torso estrutural de suas instituições, de sorte que justamente em seu
modo de reformar o direito é onde melhor se manifesta a consciência
romana de que o direito é por si mesmo o irreformável. Como em
tantas outras coisas, os ingleses, em sua atitude com relação ao direito,
parecem-se muito com os romanos. E por isso Lévy-Ullman disse em
seu magní co livro Système juridique de l’Angleterre (do qual creio
que só se publicou um tomo): Com relação à ordem jurídica, não
existe na Inglaterra “barreira alguma entre o presente e o passado. O
direito positivo remonta na história sem descontinuidade até os
tempos imemoriais. O direito inglês é um direito histórico.
Juridicamente falando, não há um ‘direito inglês antigo’” porque “na
Inglaterra todo o direito é atual, qualquer que seja sua época” (,
páginas 38–39).

Com a idéia romana e a inglesa contrasta a atitude perante o direito


dos povos europeus continentais desde dois séculos. Pois por volta de
1750 na França, e meio século depois nas demais nações, começou a
mania de crer que o direito é direito porque e se é justo, onde “justo”
signi ca certos desiderata de ordem moral e ética, utópica e mística,
totalmente alheios, em si, ao direito enquanto tal. Mas como o direito
que havia ali, o estável e estabelecido, não fora feito com o propósito
fundamental e primário de que fosse justo nesse sentido, mas como
resultante de lutas políticas e sociais, como precipitado de experiências
práticas de e para a convivência, ocorreu que o direito existente
tornou-se o direito que é preciso reformar. E como toda reforma que
se empreenda realizará insu cientemente o ideal de justiça
extrajurídica e, ademais, esse ideal, como todo ideal vigoroso e, em
última instância, arbitrário, varia constantemente, a uma reforma terá
de seguir aceleradamente outra, e acabamos na insensatez de pensar
que o direito é o que é incessantemente preciso reformar, portanto,
modi car e substituir. Da tímida e cautelosa reforma que, contra seu
desejo, se via o romano ou o inglês obrigado a fazer, chegamos, no
continente, sobretudo desde 1789, à reforma da própria reforma —
isto é, o reformismo como atitude primária perante o direito. Não há
como tergiversar ou inverter mais radicalmente o modo de sentir o
direito, pois, desde então, este deixa de ser o essencialmente estável,
estabelecido e invariável, e o que está aí desde sempre, e se torna o que,
por de nição, é preciso reformar, portanto, o que é preciso mudar e
substituir. Assim, o direito acaba sendo o que haverá amanhã quando
se zer a nova lei justa, e por isso mesmo nunca o que há hoje, pois o
que há hoje só serve para nos convidar a substituí-lo. O direito é,
assim, a lex ferenda que se revolta contra a lex lata e a destrói. E, com
efeito, desde aquela época, num processo cada dia mais intenso e mais
acelerado, o direito, cuja missão reside em ser uma das poucas coisas
estáticas e, por isso, seguras com que o homem podia contar, e na qual
sabia a que se ater, transformou-se no que há de mais instável e
movediço, utuante e inseguro. De terra rme, em que se rma o pé,
virou elemento uido no qual só se pode estar tragicamente caindo —
decaindo. Nesses vinte anos chegou-se aos últimos extremos. Todos os
grandes povos contribuíram para destruir todo direito, e hoje ninguém
mais tem direito porque não há direito, e não havendo cam à deriva,
como ilhas utuantes, tal ou qual instituição de direito privado, que,
destruída a arquitetura integral do sistema jurídico, se degradam até
tornarem-se meros e insubstanciais regulamentos. De nada serve que
continue funcionando a parte do Código Civil que prescreve a respeito
da propriedade se ninguém sabe hoje o que amanhã será de sua
propriedade. De nada serve que continue trabalhando inercialmente o
Código Penal, quando ninguém sabe se o que hoje está fazendo e que
sempre se considerou como correto não vai se tornar, graças a uma lei
de amanhã com efeito retroativo, de boa ação que era, um crime e um
delito. Quando eu, cidadão de um país neutro, me encontrava na
Argentina, país neutro, e recebia minha correspondência visada pela
censura britânica alocada na ilha de Trinidad — na delícia azul do mar
do Caribe — sentia pavor. Eu não me importava nem um pouco, é
claro, que os censores ingleses tivessem o trabalho de cometer uma
impertinência, inspecionando as cartas que meus lhos me escreviam
da Espanha; o que me apavorava era contemplar a incorreção com que
até um povo como a Inglaterra colaborava a fundo na destruição do
último e mínimo direito que restava: o da neutralidade. Sobre essa
conduta dos grandes países ante a neutralidade dos menores hei de
escrever em breve, porque é tema de muitas di culdades e gravemente
vergonhoso. Tu quoque!, dizia eu dentro de mim para a Inglaterra; já
os revolucionários da chamada justiça e os autoritários da chamada
ordem haviam aniquilado quase todo o direito que havia no mundo, e
eis que também um país, nem revolucionário, nem autoritário, como a
Inglaterra, vinha a dar o golpe fatal no resto mínimo que sobrava!...
Certas circunstâncias de puro acaso permitiram que ainda subsista,
em alguns países, uma aparência ou uma imagem de direito em sua
vida cidadã, e valendo-se disso atacam, por razões políticas, aqueles
em que até essa aparência se perdeu. Mas eu não tenho nada que ver
com a política, nem nada do que estou dizendo é político, mas
enormemente mais profundo e mais grave que toda política. Portanto,
faço constar da maneira mais expressa que nem defendo os atacados
nem censuro os atacantes enquanto o que dizem em seus ataques
signi car estratégia política. Mas digo, sim, aos que destacam
ostensivamente essa aparência de direito ainda subsistente em seus
países: Meus senhores, deixemos de política por um instante, e das
inautenticidades que sempre constituíram toda política, todo discurso
político, e vamos à verdade das coisas, que é, neste caso, extremamente
grave: neste plano da verdade, vocês sabem muito bem que esse
resíduo aparente de direito em seu país, em comparação com o que
nele era antes, é hoje mera aparência — que esse verniz jurídico é
mero verniz, embaixo do qual também não existe em seu país massa
rme de vontade de direito que a sustente e defenda. E sabem do
mesmo modo que qualquer con ito um pouco grave que em seu país
sobrevenha nesses anos acabará com a irisada bolha de sabão a que se
reduziu nele o direito.
Eu não falo agora especialmente para a Espanha — nem sequer
principalmente. Já disse, em minha primeira aula, que após quinze
anos de quase total silêncio retomava agora minha atuação pública,
ainda que estritamente de ordem intelectual — como uma atuação
desde a Espanha. Que chegue daqui, pois, a todos os ventos meu apelo
angustiado aos poderosos da Terra para que tomem plena consciência
da enormidade que zeram, que estão fazendo ao destruir o direito
nos âmbitos humanos. Não se sabe de uma vez em que a humanidade,
salvo instantes fugacíssimos de absoluto caos, e nunca ao mesmo
tempo no mundo inteiro, tenha podido viver sem direito. Mas agora
acontece que este é, ao que parece, uma peça sobrante do relógio da
convivência humana. Veremos se esses senhores conseguem que sem
ela continue funcionando o delicado relógio que é a humanidade.

O direito é o irreformável — não obstante, de vez em quando é


preciso fazer reformas nele. Alguém me dirá que isso é uma
contradição, e eu, mais que depressa, respondo: Você tem razão, meu
senhor, toda a razão. É uma atroz contradição, só que não é minha,
não sou eu que me contradigo: é a realidade mesma, e eu não tenho
culpa de que seja assim, porque nem z o direito nem criei o universo.
O que acontece é que você, imobilizado pela tradição losó ca já
exânime, continua acreditando que a realidade não pode ser em si
mesma contraditória, porque continua acreditando que esta é o ser
su ciente, completo, perfeito e ótimo. Por isso não faz senão
convencer-me mais de que é ineludível elaborar uma loso a
radicalmente nova e isenta de helenismo, de greguice.

O que digo é apenas antecipação do que haveremos de dizer mais a


fundo no curso do próximo outono, intitulado O homem e os outros,42
em que me proponho a analisar a fundo fenômenos elementares, no
sentido de básicos, que implica o fato social, a sociedade humana.
Então veremos o que é a coletividade, como já anunciei a vocês, e o
que é a realidade do indivíduo com ela, o que são os costumes, os usos,
os desusos e os abusos, o que é o poder público, o que é o Estado, o
direito, a lei, a autoridade, o que é a linguagem e a opinião pública.
En m, o que, em sentido preciso, é isso que se chama a toda hora, sem
ter disso a menor idéia clara, quando se fala da “alma coletiva”. Então, e
somente então, nos será dado poder lançar um frutuoso olhar sobre o
caso particular da alma coletiva que é a “espanholice” frente as outras
almas coletivas das demais nações. E digo “espanholice” porque não
consigo me acomodar ao termo erudito que vem aparecendo nesses
últimos anos e que soa “hispanidade”, o qual me parece um erro do
ponto de vista da língua castelhana, porque o castiço em castelhano é
falar, por exemplo, de um homem que era de boa biscainice, ou de boa
castelhanice, o que nos permite arriscar a falar da espanholice. Ao
contrário, a outra é uma palavra amaneirada, tomada, aliás, de um
latinismo que os italianos absorveram recentemente, pois foram os
primeiros a falar da italianidade, a meu ver de um modo um pouco
brega.

Este outono, pois, continuaremos falando, e mais formalmente, do


direito em Roma e em absoluto; mas me urgia, já que passávamos por
esse tema, de raspão, não perder a oportunidade de iniciar, junto com
minha atitude teorética, uma campanha — não política, já o disse
claramente, mas sim prática. Pela primeira vez depois de tantos anos
volto a clamar no deserto. Porque esta, senhores, é a missão do
intelectual de verdade, do profeta, grande ou pequeno: clamar no
deserto. Deixa-o bem claro o maior dos profetas, Isaías, quando
chama-se a si mesmo “voz do que clama no deserto”. Porque a missão
do intelectual é ser o homem que, desde seu deserto, isto é, desde sua
radical solidão — e o homem só é em sua verdade, só é em si mesmo
quando é em sua solidão — clama e convida os demais a ingressarem,
cada um, em sua própria solidão. O versículo completo de Isaías o diz
de maneira mais expressa: “Vox clamantis in deserto: Parate viam
Domini, rectas facite in solitudine semitas Dei nostri” (40, 3). A
expressão “voz do que clama no deserto”, se procurássemos entrar um
pouco nela, veriam a nutritiva medula que encerra, apenas atentando
separadamente para cada um de seus termos e nos perguntando o que
é ser “puro clamor”, o que é ser “pura voz”, o que é ser “puro deserto”.
“Voz do que clama no deserto”! A voz, o que é apenas voz — o resto
não existe, o resto não importa — clama no deserto: Preparai os
caminhos de Deus, reti cai as sendas que levam a Deus e queirais
seguir Deus — in solitudine — em vossa solidão. Quando o homem
ca só, verdadeiramente só, ipso facto aparece Deus. De modo que é
car a sós com Deus.

A destruição universal do direito, senhores, brada urgentemente ao


Céu; por isso era preciso bradar com tanta urgência. De tanto se falar
em justiça aniquilou-se o jus, o direito, porque não se respeitou sua
essência, que é a inexorabilidade e a invariabilidade. O reformismo do
direito, o torná-lo instável, mutável, o estrangulou. Quando eu escrevi
A rebelião das massas,43 quando preparava os artigos que se reuniriam
num tomo, um quarto de século atrás, via eu como germinava essa
catástrofe e procurei em meu livro descrevê-la e formulá-la. Desde
aquela época até agora, o que aconteceu? O mais triste e extremado
cumprimento dos prognósticos. Desde então não assistimos à criação
de nenhum direito, mas, ao contrário, quase exclusivamente a uma
perda dos direitos que havia. Entre as múltiplas fórmulas que eu
empregava então para de nir esse terrível fenômeno, quero recordá-
los a mais humilde de todas, o humilde conto cigano: o caso do cigano
que vai se confessar e, quando o padre lhe pergunta os mandamentos
da lei de Deus, responde-lhe: — Veja, padre; eu ia aprender, mas ouvi
por aí um rumor que iriam mudar...

Direito, hoje, é tão-somente o rumor de que algo vai mudar, não é o


que permanece, e tudo por conta da chamada justiça. Para o romano
não havia outra justiça além da justiça do juiz, a justiça intrajurídica;
por isso disse que o justo é justo porque é direito. É a justiça que
produz e cria o direito, mas não essa vaga e irresponsável coisa de que
se fala nos editoriais dos jornais e nas vociferações dos comícios, que,
tornando o direito instável, tirou de baixo dos pés dos homens a terra
rme em que antes se rmavam, e ao faltar-lhe esse ponto de apoio, o
que pode fazer o homem além de cair? Já não pode se rmar nessa
terra rme que era o direito, e desde a qual podia tentar ser com
dignidade. Agora o direito se faz informe, e o homem cai, e eu nunca
vi alguém que caísse de um sétimo andar, enquanto cai, saber cair com
dignidade. Todo cair é decair. A destruição do direito não pode
produzir senão o envilecimento do homem, e assim, com essa palavra,
eu prognosticava o europeu um quarto de século atrás. Como sempre,
uma vez mais, o melhor foi inimigo do bom, e por causa desse desejo
de suposta justiça — que creio ser inspirado em muitos de boa-fé por
amor ao homem — o que se está fazendo é destruir muitas das
melhores coisas humanas. É a fábula do urso e do homem. O urso é
amigo do homem, e este, deitado junto dele, dorme a sesta. O urso vela
e cuida de seu sono. De repente uma mosca pousa no rosto do
homem. Isso o urso não pode tolerar, dada sua amizade com o
homem, e resolve matar a mosca. Mete a garra no rosto do homem e
mata a mosca, mas, sem querer, esmaga a cabeça de seu amigo o
homem. Muitas coisas de pretensão utópica sobre as quais não se
duvidou um só instante, na prática são essa história esópica do homem
e do urso.

Senhores, chego a esse momento nal compungido, e me sinto diante


de vocês como um réu, porque não soube cumprir plenamente o
programa inicial. Da doutrina de Toynbee não pude explicar mais que
a primeira parte, embora seja a mais abstrata e que requeria mais
explicação. E o caso é que minha consciência não me acusa de ter
perdido tempo. Creio que a culpa seja de vocês, porque, ao ir
percebendo a mais inesperada capacidade de atenção, pensei que
valeria a pena, em vez de resvalar sobre temas tão especialmente
sugestivos, tratá-los bastante a fundo. Não imaginam a admiração que
sinto pelo esforço de atenção que zeram, pois agora posso dizer que,
boas ou más, algumas de minhas aulas, que vocês agüentaram rmes,
são das mais densas que já se deram em alguma parte. Boas ou más, o
importante é a densidade, porque isso é o que honra a atenção de
vocês e defende meu comportamento. Não perdemos tempo, creio eu,
não o gastamos em palavrórios e nem mesmo nos entretivemos em
alegrias poéticas. Eu, de minha parte, mantive presos, retidos em
minha intimidade todos os adjetivos reverberantes e pontiagudos, e as
pobres imagens trêmulas que às vezes me divertem. Eu as ouvia lá no
fundo de mim mesmo a encabritar, ladrar, mugir, bramar, exigindo
serem libertadas, mas me comportei inexoravelmente.
Lamento, neste instante, romper essa amizade que, aula após aula,
íamos fazendo. Pouco a pouco íamos conquistando uma das coisas
mais gratas da vida, uma habitualidade. Eu me acostumei a vocês e
vocês se acostumaram comigo, e todos nos acostumamos com este
salão. Pouco a pouco eu via como, dia após a dia, cada um de vocês
havia feito de uma determinada poltrona o seu lugar consuetudinário;
ou seja, que havíamos criado algo estável. E isso é — nós o veremos
um dia — o verdadeiro sentido do mundo. Criamos um pequeno
mundo para as segundas-feiras, e até o microfone e eu chegamos a ser
compadres. Mas não me resta outra coisa senão comunicar a vocês
minha esperança de que voltemos a nos reunir no tempo vindimal do
outono.

A
I
[Nacionalismo]44

O caso é que, com essas minhas palavras — treze anos antes de que
Toynbee publicasse seu livro — de nia eu o separatismo
precisamente em oposição ao espírito de nacionalidade. E poucas
páginas mais adiante insistia formulando o mesmo com outras
palavras. Estas: “A nota dominante na consciência coletiva das
comunidades (do Ocidente) até pouco tempo era uma aspiração a ser,
cada uma, um universo por si”. Se antes disse que o espírito nacional
signi ca sentir a nação como um todo, aqui o todo nos parece mais
acentuado, com forma mais proeminente, graças à palavra e a gura de
“universo”. E dar à idéia de Toynbee, graças a esse superlativo, um
desaforado relevo, não só nos permite ver, mas faz gritar o seu erro.
Porque é bastante patente que nenhuma nação ocidental, nem mesmo
a Inglaterra vitoriana, nem mesmo, para dizer um cúmulo, a
Alemanha de Hitler, se sentiu a si mesma como um universo. Pelo
contrário, a Inglaterra na hora culminante de seu nacionalismo e a
Alemanha na hora extremada e extremista de seu ultra, ou
hipernacionalismo, porque a primeira e mais óbvia distinção que seria
preciso fazer entre os nacionalistas é esta — o simples e o hiper —; a
Inglaterra, digo, e a Alemanha se sentiram cada uma como uma parte
que tinha o caráter de nação, frente a outras partes que são as demais
nações, integrando juntas um universo que era o mundo ocidental.
Precisamente porque cada uma se sentia parte pôde sentir-se como a
parte mais importante desse universo e, conseqüentemente, procurou
exercer a congruente hegemonia. Mas essa crença em ser a melhor
parte, esse “complexo de superioridade” é evidentemente um universo
e é, ademais, heterogênea à questão “nacionalismo”. Nem toda nação
— longe disso —, para ser nação e sentir-se como tal, precisou crer em
sua superioridade. Os dois únicos povos em cuja consciência nacional
interveio de modo permanente o “complexo de superioridade” foram a
Inglaterra e a França. É certo que em cada uma com caracteres
distintos, e asseguro que uma das coisas intelectualmente divertidas
que se pode fazer é formular em duas listas paralelas os componentes
de ambos os “complexos de superioridade”. Mas, é claro, se eu fosse
fazer isso — nem preciso dizer que não é a ocasião —, eu o faria com
entusiasmo em cada um desses países, com amor comovido por sua
modalidade peculiar, esforçando-me por extirpar de minha alma até o
mais leve movimento de antipatia, ressentimento e até de indiferença
—, ou seja, com uma atitude perfeitamente oposta à que percebemos
nessas primeiras páginas de Mr. Toynbee ao falar de nacionalismo.
Porque o modo simplista, atropelado e tosco com que, de saída,
investe o autor contra a idéia de nacionalidade, a pressa incontinente
que parece sentir para se declarar não somente antinacionalista, mas
antinacionista — assim, porque sim, sem sugerir para isso o menor
fundamento — nos revela que, ao menos a princípio, não se trata de
uma idéia, de uma averiguação teorética, mas de um ódio muito
pessoal que fermenta e coalha nos porões privados da alma de Mr.
Toynbee, e que, mal controlado, não espera por oportunidade melhor,
mas dispara imediatamente sua intempestiva emissão. A prova disso,
que poderíamos fazer tão minuciosa quanto fosse necessário, pode ser
resumida nestas advertências: Primeira — e perdoe-se a dureza da
expressão —, é falso de toda falsidade que a ciência histórica durante a
época a que Toynbee se refere tenha trabalhado sob a inspiração do
nacionalismo em nenhum sentido da palavra. Ao contrário, a história
nacionalista foi a exceção e foi sempre percebida como tal. Sirva de
exemplo Treitschke, que, sendo um grande historiador, apesar de seu
nacionalismo, nunca foi considerado um bom modelo, e sirva de
contra-exemplo Ranke, que durante quase todo o século passado era
tido como a gura ideal do historiador, como “grande historiador
diante do Altíssimo”. Pois bem, Ranke, na primeira metade daquele
século, trabalha sobre a época romana, a mais propícia para sua
interpretação nacionalista da história. Entretanto, Ranke é o homem
da história universal — compôs várias, uma após a outra — e se cabe
acusar Ranke de algum vício é de um certo abuso em enfocar o que ele
chama, e após ele tantos historiadores alemães, Weltgeschlichtiche
Zusammenhänge, as conexões histórico-universais, os grandes fatos e
movimentos que, ultrapassando os limites de todo povo particular,
parecem afetar todo o universo histórico. Nessas páginas, onde
pretende diagnosticar a historiogra a do século , Toynbee não cita
Ranke, salta-o descaradamente, o que não é pouco, porque Ranke é
por si só uma cordilheira da ciência histórica.

Isto por um lado. A segunda coisa que é preciso dizer a Toynbee é


que a ciência histórica contemporânea onde fez sua educação e sua
ginástica, onde criou seus instrumentos e sua destreza gremial, não foi
na história das nações a que pertenciam os historiadores, mas na
história de nações estranhas a eles, e sobretudo de nações que já não
existiam — a saber, Roma e Grécia. É lícito — por mais depressa que
se vá — quali car a historiogra a do  sem ter à vista em primeiro
plano Niebuhr, Mommsen, Droysen, Fustel de Coulanges? Será
preciso descobrir em Mommsen um nacionalista de Roma e em
Breasted um nacionalista do Egito faraônico? E agora vem a terceira
coisa. É certo que toda a historiogra a contemporânea parta de um
grupo de pesquisadores alemães que se chamou de “escola histórica”, e
que essa escola — tipicamente romântica — trabalhou inspirando-se
na idéia do Volksgeist, do “espírito nacional”. Mas a idéia do “espírito
nacional”, como princípio criador da realidade histórica, não tinha
nada que ver com o “nacionalismo”, o qual é para Toynbee a gura do
diabo. Eu não vou expor agora o que é a idéia dos Volksgeister, dos
espíritos nacionais, como não entrei nem vou entrar, neste momento,
em nenhum dos tremendos assuntos em que discretamente e fora de
hora nos metemos por culpa de Toynbee, mas vou me constranger a
dizer que a idéia do Volksgeist é uma verdadeira descoberta cientí ca,
e não uma protuberância emocional, apaixonada que saiu da ciência
histórica, infeccionada por patriotismos locais. Aquela idéia tem, de
fato, os dois atributos mais característicos de uma grande descoberta
cientí ca: um, sua provada fertilidade como método de investigação,
de modo que com ela se inicia a história propriamente cientí ca, e
outro, que traz pronta consigo sua própria reti cação e superação; isto
é, possibilitou a descoberta de outros princípios orientadores da
ciência histórica mais precisos e sólidos que ele. Da casualidade, que
deveria fazer o senhor Toynbee ruborizar, de que os alemães
pertencentes à “escola histórica” e, como tais, convencidos de que o
“espírito nacional” era o poder criador das formas históricas, não se
ocuparam principalmente de história alemã, mas da história do direito
romano ou da poesia popular de outros povos, certamente os que
menos poder político tinham então. Eles foram, por exemplo, os
primeiros a estudar cienti camente os dramaturgos espanhóis, foram
eles que zeram virar moda na Europa nosso cancioneiro e zeram
dele um tema de ciência. Não foi Pérez nem Martínez quem publicou a
primeira edição contemporânea e cientí ca da Primavera y or de
romances, mas um senhor que se chamava Wolf. En m — e para que
não falte nesse assunto a graça de um cúmulo —, acontece que a idéia
do “espírito nacional” foi, a rigor, pensada pela primeira vez no século
menos nacionalista de toda a história européia, a saber, no século
, e, dentro dele, pelo homem mais universalista que ainda houve,
a saber: por François Arouet, dito Voltaire. Aquela idéia goza, com
efeito, sua primeira epifania no título de sua obra famosa: Essai sur
l’histoire générale et sur les moeurs et l’esprit des nations. Os alemães
não zeram mais que traduzir literalmente esprit des nations por
Volksgeist.
Todas essas observações, salvo a última, são observações elementares.
Nem por um momento se pode supor que, ao enunciá-las, ensinemos
algo novo a Toynbee. Estavam forçosamente em seu horizonte mental
quando escreveu essas primeiras páginas de seu livro. O fato de que,
não obstante, não lhes dê qualquer atenção, que obnubile sua presença
é precisamente a prova de que não se comporta nesse instante inicial
de sua gigantesca obra como um homem de ciência, mas como um
homem de fé fechada e virulenta. Ainda não sabemos bem qual é o
credo dessa fé, presenciamos apenas seu horror ao espírito de
nacionalidade; e como a idéia de nacionalidade que nos jogara na cara
com seu inesperado gesto de agressão e desa o é, ao menos até agora,
tão resolutamente estúpida, nós, que havíamos nos preparado para
entrar na leitura de sua obra, não apenas com ilimitado respeito
intelectual, mas com esperança e desejo de aprender muitas coisas, nos
sentimos acometidos pela inesperada suspeita de que esse tão
eminente inglês é, na melhor da hipóteses, capaz de crer na
“humanidade” ou em qualquer outro conceito vão dessa ordem, cuja
admissão implica automaticamente que quem o admite ignora do
modo mais radical as questões fundamentais que se referem à
condição humana. Estas minhas palavras são muito fortes, e preciso
que reparem que eu não as pronunciei expressando um juízo formal e
de nitivo; estou ocupado, neste momento, por razões que em seguida
direi, em descrever a impressão pela qual passei — e creio que todo
outro leitor alerta passará — ao percorrer essas primeiras páginas do
livro de Toynbee.

Não creio que nenhum bom leitor deixe de sentir um choc de


estranheza, de estupefação e, se se descuida, de raiva ao se deparar de
repente com o que narrei. É que, predispostos a estudar um livro de
ciência, em que nos é prometido um pulcro esclarecimento teorético
dos destinos humanos, sem nos dar tempo para o primeiro respiro,
sofremos o encontrão com um bloco errático de fé pessoal e privada
que nos é incorretamente lançada na cara. A atitude teorética, o modo
do conhecimento consiste em clarividência e dúvida; parte de admitir
previamente todas as possibilidades. Por isso teorizar é, não
acidentalmente ou por distinto acréscimo, mas substancial e
constitutivamente, contar com o próximo e sua possível discrepância.
A fé, ao contrário, é uma atitude fechada para dentro do homem,
íntima; portanto é, ademais, cega. Sua importância na vida humana é
enorme, talvez muito maior que a da ciência, mas, por isso, a
expressão de uma fé exige no trato inter-humano certas cautelas. Não é
lícito que expectoremos sobre o rosto do próximo que passa a nossa fé
nisto ou naquilo, porque seu atributo de coisa íntima faz dela então
uma secreção nossa, com que maculamos as outras pessoas. Dizer
nossa fé de uma vez não é dizê-la, é expectorá-la e, com isso, degradá-
la, pervertê-la, envilecê-la e transformá-la em insulto.

Eis por que eu não pude ler essas primeiras páginas de Toynbee sem
car muito perto de me sentir ofendido como transeunte. Mas não
criemos ilusões; a vida intelectual está tão envilecida em todo o
mundo que se há aí entre os que me escutam algum estrangeiro, e
especialmente algum inglês, não somente é lícito, mas é obrigatório
contemplar como possível que, em vez de se ater ao que eu
efetivamente disse, e ponderar quanto de verdade há nisso, ao ouvir
que me revolto contra a pro ssão de fé antinacionalista de Toynbee,
pense, simplesmente, que o faço porque eu, por minha vez, estou
atacado de uma fé nacionalista. Pois devo dizer a vocês, caso não o
saibam por si mesmos, que juízos irresponsáveis dessa índole, embora
não referidos a mim, encontram-se há muitos anos com aterradora
freqüência nas publicações inglesas mais respeitáveis. Nem falemos
dos outros países! Será necessário, pois, passar pela vergonha de me
ver forçado, num curso de caráter estritamente cientí co como este,
recordar uma coisa que carece tão completamente de interesse
teorético, ao menos em aparência, como o fato de eu jamais ter sido
nem ser nacionalista, e que o a rmo com essas minhas palavras mais
de uma vez? En m, que há vinte anos escrevi um livro, traduzido para
o inglês há uns quinze, tendo sido impresso nessa língua em cerca de
quarenta mil exemplares, onde, antes que todo mundo, eu mostrava
aos povos da Europa como muito breve chegaria tal conjuntura
histórica, que seria para eles questão de vida ou morte conseguir
superar a idéia de nação como forma constituinte da vida coletiva? E
se alguém me pergunta por que sinto vergonha ao ter de dizer isso,
responderei que por duas razões: a primeira, porque é atordoante ter
de falar de si próprio quando começamos a falar de nada menos que a
história universal; a segunda, ainda mais penosa, porque eu ter dito
que não era nacionalista foi em circunstâncias muito determinadas
que davam à frase um sentido controlável, mas agora, por conta de
uma idéia tão inane como a que Toynbee tem da nacionalidade, dizer
que não se é nacionalista é o mesmo que não dizer nada, ou, em outras
palavras, é dizer uma estupidez, já que a estupidez é o nada na fala. E
isso — ter dito uma estupidez — é o que me envergonha, ainda que eu
não seja responsável por tal coisa. O que acontece é que, segundo o
provérbio castiço, uma mentira faz cem, uma estupidez faz cem mil.
Isso é que é terrível na estupidez: quão prolí ca ela é. Como o átomo,
ao se desintegrar, produz reações em cadeia sem m. Infelizmente,
uma longa experiência me ensinou que a uma estupidez não se pode
combater senão com outra.

Com muita razão vocês teriam cado estupefatos ao me ouvir dizer


neste curso coisas tão fortes e aparentemente — destaco a palavra —,
aparentemente tão alheias a um processo normal de pensamento que
teoriza. Sem dúvida eu poderia ter escapado de tudo isso. Mais ainda:
comecei hoje reiterando que considerava como minha estrita tarefa as
linhas puras da doutrina que nosso autor expõe, suspender a crítica até
depois, e prescindir de suas excrescências vegetativas. Entretanto, z
imediatamente o contrário. Por quê? Muito simples: precisamente
porque penso quase constantemente em me ajustar àquela forma, eu
precisava que tivessem bem claro que classe de pensador e de escritor
vamos fervorosamente estudar. Veremos muito o que há nele de
altamente valioso, teremos contato permanente com seu imenso saber
e, por isso, teria sido enganá-los não mostrar, junto com essas egrégias
qualidades, todo esse outro lado de sua pessoa, incrivelmente
super cial, solenemente, impertinentemente arbitrário — como só um
inglês é capaz de sê-lo, e de cujo fundo, ao longo de sua obra, saem de
vez em quando bufadas de fanatismo, de impertinentes crenças
privadas que as xiam o leitor. Era necessário, portanto, que tivéssemos
um exemplo o quanto antes para que soubessem com quem vamos
tratar. Já as primeiras páginas ofereciam uma ocasião bastante evidente
desse mau modo do autor, mau modo — e isso já é uma razão decisiva
para que o tenhamos muito em conta — que é bastante freqüente,
quase se pode dizer que característico dos escritores ingleses atuais. É
injusto manifestar esse lado menos estimável de Toynbee? Não sei.
Vocês julgarão. Mas eu ocultei de vocês até agora a primeira fórmula
que nos oferece do que seja uma nação, fórmula que deve ter lhe
parecido sumamente engenhosa: “O espírito de nacionalidade”, diz ele,
“é a ácida fermentação do novo vinho da democracia nos velhos odres
do tribalismo”. Assim, sem mais nem menos, do nada. Quando leio
uma coisa assim sinto-me a um milímetro de me aborrecer — notem
que digo “a um milímetro”. E nisso o que me aborreceria mais, se eu
me deixasse aborrecer, não é a intenção bem clara que esse aforismo
tem de desintegrar a idéia de nação, mas que a persegue chamando o
espírito nacional de tribalismo, o que implica que, para esse senhor, a
noção de tribo é por si um insulto, e o fato de que a tribo tenha
existido e exista é, parece, um delito, um crime e um pecado. E isso o
diz um homem pertencente ao povo que governou e governa o maior
número de tribos, ao povo em que se zeram recentemente os estudos
etnológicos mais perfeitos sobre tribos, estudos — e é importante dá-
lo a conhecer — que gozaram a sorte mais insólita nos estudos de
humanidades, a saber, a de in uenciar o governo, inspirando uma
reforma radical na política colonial inglesa, reforma que consiste em,
pela primeira vez, levar a sério as tribos enquanto tais.

Agora, pois, não se trata da nação. Agora teríamos de defender,


contra Toynbee, a idéia de tribo. Como o que o ouvimos dizer antes
sobre o que é uma nação nos pareceu insu ciente, começamos a
duvidar — contra a nossa vontade — de que esse homem tem uma
noção clara sobre o que seja uma tribo, e levados por essa tendência
começamos a suspeitar de que os conceitos sociológicos à disposição
de Toynbee sejam muito tênues e confusos. De modo, senhor nosso,
que se se junta um tanto de democracia com um tanto de tribo, tem-se
uma nação? De modo que não havia nações na Europa antes de que
houvesse democracia?
II
[O homem espanhol]45

C omo ocorre freqüentemente neste livro, perante tal ou qual


comportamento do autor, eu me perguntei uma e outra vez: mas
será que não conhece ou ignora a realidade de que está falando? Será
que está mal informado? E, neste caso, será que viveu os pavorosos
problemas que são para certas nações os mestiços e os mulatos? No
m das contas, neste como em outros casos, confesso que me vi,
inteiramente contra a minha vontade, obrigado a pensar que Mr.
Toynbee é um beato de certas normas constitutivas do que ele crê ser
uma nova religião lantrópica, e suprime, sem mais nem menos, a
realidade mesma dos problemas que tenta resolver. E não há caminho
mais seguro para não resolver um problema que ignorá-lo, que dá-lo
por inexistente. É o inconveniente perpétuo da beatice. O olhar beato
olha para o alto em constante arrebatamento — e, por isso, não vê; é
cego para as coisas que tem à frente. Assim seu horror pelo racismo o
faz negar totalmente a existência do problema racial, tanto na teoria
como na prática, e considera-o inventado arbitrariamente por uns
insensatos — ou seja, não vê o con ito quase permanente que houve
na história, às vezes mais intenso e outras menos, tanto que quase
constantemente constituiu até um problema político concreto.

Toynbee, como sempre, contempla a conduta de espanhóis e


portugueses para com os povos primitivos que encontraram na África,
na América e na Oceania por atacado, desde fora e à distância de um
jornalista estrangeiro, isto é, a uma absoluta distância. Pois não creiam
que se demora o mais mínimo no assunto: faz a a rmação que eu
transmiti e nem uma palavra mais. Não tem, pois, a menor idéia
daquela realidade, e não posso agradecê-lo por seu juízo favorável e
por usar de nossos antepassados como de um espanador para tirar o
pó da Inglaterra, porque vejo que está falando de algo que ignora
completamente. E, contudo, não se priva de meter-se em grandes
investigações para perceber que aquela conduta se compõe, nesta
ordem, dos três fatores seguintes. Mas antes de enunciá-los farei
constar que o Instituto de Humanidades preferiria nunca falar em
geral de um povo ou nação, não usar expressões como “os ingleses são
deste ou daquele modo”, “os espanhóis sentem assim ou assado”, sem
mostrar, antes, com su ciente rigor, por qual procedimento se chegou
a essas generalizações e, portanto, que sentido justo têm e pretendem.
Mas agora não há lugar para isso, e devemos transferi-lo para alguma
ocasião em que eu possa dar umas aulas sobre essa questão
metodológica que de bom grado intitularia οἱ Λακεδαιμόνιοι, os
lacedemônios, pela razão autobiográ ca de que, há muitíssimos anos,
lendo com o fervor que suscita e reclama o prodigioso livro de
Tucídides, lendo-o como se deve, portanto, esforçando-me por
entender o sentido estrito de suas palavras, me irritava, não obstante,
ao vê-lo dizer uma e outra vez: οἱ Λακεδαιμόνιοι, os lacedemônios, isto
é, os espartanos, zeram então tal coisa, ou então os espartanos
pensavam ou sentiam assim, etc. Quem são os lacedemônios? — eu
me perguntava. O que estava estritamente na mente de Tucídides
quando dizia “os lacedemônios”? Evidentemente não eram todos os
espartanos, um por um. Seria preciso entender, sob esse nome, o
governo de Esparta? Mas o governo eram uns determinados
indivíduos espartanos e nada mais. Por “os lacedemônios” ou
“espartanos”, pois, assim em genérico plural, seria preciso entender
não se sabe que coisa intermediária entre apenas os governantes e
todos, um por um, os cidadãos da Lacônia. Vejam como não é tão
extravagante a a rmação feita por mim no prospecto do Instituto, de
que os livros de história, que parecem os mais fáceis de ler entre os
cientí cos, são na verdade os mais difíceis de entender, pois uma
expressão de aparência tão simples como “os espartanos” resulta de
uma signi cação enigmática. Mas que isto dito aqui com o valor de
mera reserva, em amparo da qual vou expressar os fatores de que, a
meu ver, sempre ansioso por ser corrigido, se compõe aquela conduta
dos espanhóis para com as raças indígenas, contraposta por Toynbee à
seguida pelos anglo-saxões. São, dizia eu, três, e nesta ordem:
primeira, um efetivo e inquestionável sentimento elementar de
humanidade. Sejamos precisos! Um estar, desde logo, aberto às outras
humanidades pessoais, aos outros seres humanos concretos que o
espanhol evidentemente possui — deixemos por ora o português —, o
qual, embora pareça mentira, é raríssimo entre as demais nações. Do
que procede, por sua vez, e em que se baseia essa capacidade de estar
previamente, desde logo e como coisa constante e própria sua, aberto
aos outros homens que, ao menos nessa dose, é exclusiva do espanhol
— a tal ponto de, comparados com ele, os outros tipos de homem
parecerem sempre estar normalmente fechados, prevenidos e como
que na defensiva? Que grande tema, senhores, perscrutar isso a fundo!
Não é mesmo? A essa pergunta, por sorte, creio que se possa
responder brevemente, com simplicidade e de uma vez: aquela
capacidade de estar sempre — isto é, normalmente, e por princípio —
aberto para os outros se origina no que é, a meu ver, a virtude mais
estupenda e a força histórica mais básica do ser espanhol. É algo
elementaríssimo, é uma atitude primária e prévia a tudo, a saber: a de
não ter medo da vida, ou, se quiserem expressá-lo positivamente, a de
ser valente perante a vida. Notem que digo “perante a vida”. Pode-se
ser valente perante este ou aquele, esta ou aquela situação, para
executar esta ou aquela performance, e, contudo, ser covarde perante o
viver mesmo, isto é, sentir-se incapaz de viver, sentir terror de viver se
não se dão certas condições, se não se satisfaz tal ou qual necessidade
ou prazer, se não se alcança tal ou qual aspiração, comodidades, luxos,
êxitos, glórias. Todo condicionamento da relação primária do homem
com a vida tira dele a independência com relação a ela, submete-o a
determinadas condições dela que podem ou não se dar; torna-o,
portanto, servo de certa gura de nida que a vida tem de assumir para
não ser penosa e temível. Mas o espanhol não põe, originariamente,
nessa primeira atitude desde a qual se existe, e se age, e se toma tudo o
mais — todas as contingências do destino —, não impõe,
originariamente, condição nenhuma à vida. Está disposto a viver sem
condições, vê a vida como uma in nita nudez, como uma ausência de
tudo e, entretanto, isso não produz nele nenhuma angústia especial,
nem desânimo, nem pavor. E disso vem a famosa falta de necessidades
do espanhol que já assinalava Aníbal, e depois os romanos e que se
repetiu tanto, mas que não se havia explicado. São Francisco de Assis
dizia: “Eu preciso de pouco, e desse pouco preciso muito pouco”.
Podemos generalizar e a rmar isso do modo de ser homem do
espanhol. O espanhol não tem, profunda e efetivamente, necessidades,
porque, para viver, para aceitar a vida e ter perante ela uma atitude
positiva, não necessita de nada. De tal modo o espanhol não necessita
de nada para viver que nem sequer necessita viver, não tem no fundo
grande empenho em viver, e isso precisamente o coloca em plena
liberdade perante a vida, isso lhe permite ser senhor da vida.
N  R
1 A rebelião das massas. Campinas: Vide Editorial, 2016; o epílogo para ingleses está na
página 277 — nt.

2 Leiam-se, sobre o mesmo assunto, as belas passagens que Ortega traz de Gaspar de
Mestanza, que tão profundamente o in uenciou, publicadas a partir da página 173 de Idéias e
crenças, Vide Editorial, 2018 — nt.

3 “Non, l’avenir n’est à personne! / Sire, l’avenir est à Dieu! — Não, o futuro não pertence a
uma pessoa! / Majestade, o futuro pertence a Deus!”; o poema é Napoleão ii, do livro Les chants
du crépuscule — nt.

4 Pode-se ver, sobre isso, meu estudo intitulado Idéias e crenças. [Em Obras Completas,
tomo v] [Campinas: Vide Editorial, 2018 — ne].

5 [Esta terceira conferência foi adiada por conta de uma indisposição do autor.]

6 [Este curso prometido foi dado em 1949–50, e editado em O homem e os outros. Em


Obras Completas, vol. vii.] [Veja-se Campinas: Vide Editorial, 2017 — nt].

7 Eis aqui um tema de primeira ordem para algum jovem historiador que tenha arranque: a
história do Império Romano depois de sua desaparição o cial, isto é, a história de como essa
soberana gura histórica, depois de deixar de viver, não obstante, sobrevive.

8 De tal modo o mundo físico é puro presente e, por isso, puro instante, que Descartes
considerava ininteligível sua conservação na série dos instantes sem supor que Deus, em cada
novo instante, tornava a criar o mundo, que de outro modo haveria sucumbido com a ida do
instante anterior para o passado. Não interessa agora o que há de verdade e o que há de erro
nessa idéia cartesiana, segundo a qual a conservação da realidade seria uma criação contínua,
incessante. Verdade ou não, é magní ca, é emocionante essa idéia de Deus como uma rítmica e
incansável pulsação criadora. Mas é evidente que não nos teria ocorrido a idéia de tempo, não
distinguiríamos entre presente e passado se o mundo físico não mudasse, não se modi casse. Se
as coisas permanecessem idênticas a si mesmas, como o triângulo; se o universo físico fosse um
imenso paralítico — ou, como diriam nossos avós, um mundo encarangado — não haveria
diferença entre o agora e o antes.

9 A palavra cou popular exatamente no pós-guerra civil espanhola, designando os


automóveis americanos, tão diferentes dos europeus, e que começaram a ser importados nesses
tempos, muitas vezes trazidos pelos exilados que voltavam para casa e que haviam feito fortuna
na América. Para ironizar esses novos-ricos como sendo incultos e grosseiros, os locais
brincavam com a conjugação errada do verbo “haver”, e imaginavam o sujeito entrando no
pátio de automóveis e pedindo “el coche más grande que haiga” (quando o correto seria “haya”).
A piada se arraigou tanto que o dicionário da Real Academia Española a indexou como
designando um tal carro — nt.

10 Egregiamente representada hoje em nossa Espanha, sobretudo, pela escola de um grande


mestre na ciência — na ciência, não em erudição inerte — que se chama Ramón Menéndez
Pidal.

11 Espero que consigamos batizá-lo no colóquio que nosso Instituto está dedicando aos
modismos e no qual o senhor Julio Casares, diretor do Seminário Lexicográ co da Real
Academia Espanhola, fez na terça passada uma intervenção certamente tão magistral quanto
agradável. Os modismos são, de fato, quase sempre slang.

12 Cf. A caça e os touros, trad. de Melissa Solórzano Guterres. Campinas: Vide Editorial,
2021 — ne.

13 Uma “cogida”, quando o touro consegue pegar o toureiro — nt.

14 [Abreviatura de “El espíritu del derecho romano”, de R. von Ihering, por Fernando Vela.
2ª ed. Madri: Revista de Occidente, 1962.]

15 Campinas: Vide Editorial, 2016, pp. 221–223 — nt.

16 “De broma en broma”, ecoando o ditado: De broma en broma la verdad asoma [De piada
em piada, a verdade aparece] — nt.

17 É um tema, este da origem contagiosa da primeira autoridade espontânea e instantânea


que se produz na humanidade, sobre o qual eu gostaria de falar longamente um dia com um
neurologista como o Doutor Lafora ou com um psicopatologista como o senhor López Ibor,
porque creio que seja um tema interessante e nada fantástico; nada fantástico para quem viveu
uma época em que se produziu um fenômeno como o hitlerismo. É um tema que poderíamos
chamar de “origem neurótica do Estado”.

18 Babado feito com uma tira de tafetá e outra de tecido, típico de trajes regionais espanhóis
— nt.

19 Campinas: Vide Editorial, 2017 — nt.

20 [Refere-se aos colóquios celebrados no “Instituto de Humanidades”.]

21 Assim, ao ter contado a anedota, que humilha a aula, restando-lhe ainda alguma
dignidade, cumpro cristã penitência pelo horrível pedantismo em que, embora forçado, acabo
de cair.

22 Gabriele d’Annunzio (1863–1938), Laudi del cielo e del mare, 1, i, 47–49 — nt.

23 La verbena de la Paloma: El boticario y las chulapas y celos mal reprimidos é um sainete


lírico em prosa, com texto de Ricardo de la Vega e música de Tomás Bretón, que cou em cartaz
no ano de 1894 — nt.
24 Trata-se, na verdade, da Ode xiv, versos 13–16, que, na tradução de José Agostinho de
Macedo, Lisboa, 1806, soam: O fausto dia, que celebro ovante, De mim desterra os túrbidos
cuidados: Já não receio as ondas Da civil Tempestade, e já não temo A violenta morte, Quando
César sustém do Império as rédeas — nt.

25 Campinas: Vide Editorial, 2017 — nt.

26 Dou esta fórmula deliberadamente extremada, a m de fazer ver claramente a minha


idéia. É claro que é inquestionável que a gura concreta das instituições jurídicas romanas não
só permite mas obriga a delinear um per l geral do direito romano que, comparado com o que,
pelo mesmo procedimento, formemos de outro ou de outros direitos, acusaria certas e mesmo
muito importantes, em parte exclusivas, peculiaridades. Nada mais natural do que considerar
essas características diferenciais como o “romano” do direito romano, e isso é o que sempre se
fez quando se o quis de nir ou diagnosticar. Mas sem negar nada disso, posto que é óbvio,
minha idéia é reagir contra esse procedimento e chamar a atenção para essa diferença entre o
direito romano e os outros, extraída da comparação entre as instituições concretas, que, mesmo
sendo efetiva, é secundária. A primeira coisa e a mais decisiva é o modo de sentir o direito
genericamente e enquanto tal, porque esse modo de sentir é o que dá seu pleno e autêntico
sentido a essas instituições. A do pater familias, por exemplo, podia existir, e de fato existiu em
outros direitos; mas, como esses outros direitos, enquanto direito, eram sentidos de outro
modo, o cariz da instituição, apesar da identidade de sua silhueta ou noção, era completamente
distinto. Imaginem um povo que anda constantemente variando suas instituições, que não vê
como sua característica mais importante a xidez, seu ser algo com que sempre se pode e se
poderia contar. É evidente que o pater familias nesse povo não se parecerá nada, enquanto
realidade histórica autêntica, com o pater familias romano. Não convém agora expressar o
assunto em toda a sua generalidade, porque caria demasiado abstrato. Usando, pois, como
exemplo o caso do direito romano, eu diria que é preciso nisso que chamamos assim distinguir
três estratos diferentes: 1º. A realidade jurídica vivida pelo romano efetivamente, portanto,
direito como realidade, isto é, no sentido primário pleno e substantivo do termo. 2º. A re exão
sobre essa realidade dos técnicos jurisperitos, portanto, a teoria técnica do direito ou
jurisprudência que já não é realidade jurídica “sensu stricto”. 3º. A re exão sobre essa
jurisprudência, que dá uma teoria abstrata do direito, ou seja, a chamada loso a do direito.
Em Roma não havia lósofos; houve apenas recepção bastante pacóvia das doutrinas gregas,
começando com Cícero. A distância, pois, entre as de nições gerais que com ele começam e
logo irão salpicando as obras dos jurisconsultos durante o Médio e o Baixo Império, e a
realidade direito, enunciada no número 1º, é tão grande que não serve para ocultá-lo. Trata-se,
pois, de criar uma nova óptica para ver esses problemas penetrando através das crostas teóricas
que sobre eles caíram e prepararmos o olho para contemplar a realidade mesma, quase sempre
completamente distinta de todas aquelas de nições. E, para não dizer senão a primeira coisa
que se averigua com isso, digamos que falar do direito como uma realidade por si, isto é,
isolada, já é um erro a limine. O aspecto “jurídico” do direito é somente uma parte de sua
efetiva realidade, cuja outra parte são uma porção de coisas da vida de um povo que, dada a
errônea óptica generalizada, não parece ter nada que ver com ele.

27 B. Hrozny, Histoire de l’Asie antérieure, 1947.

28 Isto é, seja lá como for a circunstância, será como quero — nt.


29 Re ro-me ao tempo em que o Pe. Teilhard trabalhava nisso, mais de trinta anos atrás;
soube que esteve ultimamente na China, onde passou por grandes perigos, e é de se notar que
essa idéia a que me re ro se encontra determinada numa obra que ainda não pôde ser
publicada. [V. P. Teilhard de Chardin, El fenômeno humano. Madri: R. de O., 1960.]

30 (1877–1942), autor de El amor de los amores (1907) — nt.

31 Numantino é o natural da Numância. Refere-se ao famoso cerco que Cipião Emiliano pôs
à aldeia, para que os habitantes sucumbissem à inanição e ao desespero. Tornou-se sinônimo de
obstinação e paciência heróicas — nt.

32 Campinas: Vide Editorial, 2016 — ne.

33 Quando, no outro dia, aludi ao mito do dilúvio, me referia, é claro, a essa tradição
sumério-acádia, que era do que falávamos. Chamar algo de mito não supõe que se negue um
fundo de realidade. Exatamente o contrário. Nada é mito se não traz dentro a medula de uma
experiência humana real. Quando isso falta, não se chama “mito”, chama-se simplesmente
“bobagem”. É uma pena e uma vergonha que seja preciso fazer essas observações e essas
reservas, que deveriam ser desnecessárias para pessoas medianamente cultas, mas eu não sei o
que há no ar intelectual da Espanha hoje que parece haver nele, suspensas, uma ignorância e
uma insipidez demente verdadeiramente penosas, que obrigam a tomar todas essas grotescas
precauções.

34 Assim, por exemplo, podemos lembrar um fato em que não se costuma reparar: não
puderam chegar a Madri muitos dos grandes espetáculos europeus, pela simples razão de que a
empresa tinha de arcar, além de sua atuação em nossa cidade, com o custo da dupla viagem, de
ida e volta, como perdida, por ser a Espanha então um beco sem saída. E ainda se pode dar a
isso maior precisão, vendo quais desses espetáculos passaram, não obstante, por Barcelona e
não por Madri, e passaram por Barcelona por esta estar totalmente ou quase na linha cíclica de
traslado. Convém seguir essas companhias em suas andanças.

35 Se, como parece, o Ocidente procede — en m! — à grande capitalização da África, a


Espanha voltará a recuperar sua antiga situação, e se tornará de novo um lugar de passagem,
como também a Bélgica o foi e continua sendo.

36 Temas de viaje, cap. iii, “Historia y Geografía” (O. C., tomo ii).

37 En el centenario de Hegel, cap. iii, “Historia y Geografía” (O. C., tomo v).

38 [Veja-se, do autor, seu aludido estudo Meditação sobre a técnica.]

39 [Veja-se do autor Meditación del pueblo joven, 1958, em Obras Completas, vol. viii.]

40 [Prólogo a una edición de sus obras. Em Obras Completas, tomo vi.]

41 Campinas: Vide Editorial, 2019 — ne.

42 Campinas: Vide Editorial, 2017 — nt.

43 Campinas: Vide Editorial, 2016 — ne.


44 [Fragmento substituído, ia após o parágrafo que termina com uma citação de Toynbee, na
página 50.]

45 [Fragmento substituído, ia após o primeiro parágrafo completo da página 166.]

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