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António Pinto Monteiro

COORDENAÇÃO

MAIOR ACOMPANHADO
O NOVO REGIME DO
CENTRO DE DIREITO DO CONSUMO

COLÓQUIO

COLÓQUIO
O NOVO REGIME
DO MAIOR ACOMPANHADO

COORDENAÇÃO
António Pinto Monteiro
I
J
O presente livro foi realizado no âmbito das actividades da Área de
Investi-gação «Contrato e Desenvolvimento Social», integrada no projecto
«Desafios Sociais, Incerteza e Direito: Pluralidade | Vulnerabilidade |
Indecidibilidade» do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra (uid/dir/04643/2019).

edição
Instituto Jurídico
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

concepção gráfica
Ana Paula Silva

contactos
[email protected]
www.uc.pt/fduc/ij
Pátio da Universidade | 3004-528 Coimbra

isbn
978-989-9075-43-6

depósito legal
467815/20

DOI
10.47907/livro/2022/Maior_Acompanhado/Livro

© n o ve m br o 2019
instituto jurídico | faculdade de direito | universidade de coimbra
COLÓQUIO
O NOVO REGIME
DO MAIOR ACOMPANHADO

COORDENAÇÃO
António Pinto Monteiro
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
PROGRAMA 9.30h SESSÃO DE ABERTURA
RUI DE FIGUEIREDO MARCOS · DIRETOR DA FDUC
JOÃO GABRIEL SILVA · REITOR DA UC
FRANCISCA VAN DUNEM · MINISTRA DA JUSTIÇA
Das incapacidades ao maior acompanhado
ANTÓNIO PINTO MONTEIRO · FDUC

10.30h MODERADOR: LUÍS AZEVEDO MENDES · Presidente do TRC


Valor dos atos jurídicos do maior acompanhado
PAULO MOTA PINTO · FDUC
O regime do acompanhamento: da incapacidade à capacidade?
MAFALDA MIRANDA BARBOSA · FDUC
Acompanhamento e negócios “fora do comércio jurídico”
(casamento, perfilhação, testamento)
ROSA CÂNDIDO MARTINS · FDUC

11.30h INTERVALO
11.45h MODERADOR: JACOB SIMÕES · Presidente do CROA
Mandato com vista a acompanhamento
PAULA TÁVORA VíTOR · FDUC
A situação do maior portador de deficiência (ainda)
não acompanhado
MARIA INÊS DE OLIVEIRA MARTINS · FDUC

15.00h MODERADOR: EUCLIDES DÂMASO · Procurador Geral Distrital Emérito


A preparação da lei – as opções básicas
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO · FDUL
Aspectos processuais da Lei n.º 49/2018
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA · FDUL
As implicações do novo regime no estatuto do comerciante
e no direito das sociedades
PEDRO MAIA · FDUC

16.00h INTERVALO
16.15h MODERADOR: JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES · Presidente do IJ/FDUC
La aplicación de la Convención de Nueva York en España:
una década de aciertos y desaciertos
INMACULADA VIVAS-TESÓN · UNIVERSIDADE DE SEVILHA
Limitações aos direitos de personalidade
ANDRÉ DIAS PEREIRA · FDUC
O Instituto do Acompanhamento à luz da Convenção de
Nova Iorque e direitos fundamentais
GERALDO RIBEIRO · CEJ

17.45h ENCERRAMENTO
ENTRADA LIVRE
Inscrição obrigatória em https://www.uc.pt/fduc/ij/eventos/
RA Certificado: 10€ estudantes · 20€ Não estudantes
ÍNDICE

APRESENTAÇÃO....................................................................... ix
António Pinto Monteiro

NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO:


UMA MUDANÇA DE PARADIGMA............................................ 1
.Francisca Van Dunem

LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK


EN ESPAÑA: UNA DÉCADA DE ACIERTOS Y DESACIERTOS....7
Inmaculada Vivas-Tesón

O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES:


ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS......................................57
Miguel Teixeira de Sousa

DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO.


BREVE APRESENTAÇÃO DA LEI N. 49/2018 ....................... 87
António Pinto Monteiro

VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO


MAIOR ACOMPANHADO...................................................... 109
Paulo Mota Pinto

O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO


E O DIREITO DAS SOCIEDADES........................................... 137
Pedro Maia
C O L Ó Q U I O : O N OVO R E G I M E D O M A I O R A C O M PA N H A D O

O REGIME DO ACOMPANHAMENTO:
DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE?.................................. 165
Mafalda Miranda Barbosa

O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO


PARA ATOS EM SAÚDE ........................................................ 189
André Gonçalo Dias Pereira

SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO


DE MEDIDAS DE ACOMPANHAMENTO..............................223
Maria Inês de Oliveira Martins

O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO”.......245


Paula Távora Vítor

ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS
FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” (CASAMENTO,
PERFILHAÇÃO E TESTAMENTO) .........................................273
Rosa Cândido Martins

O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA


CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE E DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS.................................................................... 319
Geraldo Rocha Ribeiro
APRESENTAÇÃO

Em 13 de Dezembro de 2018 teve lugar, no belíssimo Colégio da


Trindade da Universidade de Coimbra, um Colóquio sobre “O novo
regime do maior acompanhado”. O Colóquio foi promovido pelo
Instituto Jurídico da Faculdade de Direito de Coimbra, através da sua
linha de investigação sobre “Contrato e Desenvolvimento Social”, em
parceria com o cdc — Centro de Direito do Consumo desta Faculdade.
Foi nosso objectivo contribuir para a apresentação do (então recente)
regime jurídico do maior acompanhado, consagrado pela Lei n.º
49/2018, de 14 de Agosto, tendo constituído um dos primeiros eventos
com esta finalidade.
À Senhora Ministra da Justiça, que nos honrou com a sua
participação no Colóquio, assim como a todos os demais oradores
que nos distinguiram com as suas intervenções, aqui fica registado o
nosso reiterado agradecimento pela sua participação e pelos textos que
entretanto nos facultaram e que enriquecem este volume.

Coimbra, Novembro de 2019


António Joaquim de Matos Pinto Monteiro

DOI: 10.47907/livro/2022/Maior_Acompanhado/Cap00
NOVO REGIME
DO MAIOR ACOMPANHADO:
UMA MUDANÇA DE PARADIGMA

FRANCISCA VAN DUNEM


Ministra da Justiça

Portugal é o quarto país com mais casos de demência por


cada cem mil habitantes: a média da ocde é de 14,8 casos
por mil habitantes, para Portugal essa estimativa é de 19,9, de
acordo com o relatório “Health at a Glance 2017”1, produzido
pela ocde, que estima para 2037 que a prevalência da demência
deverá aumentar para 32,5 por mil habitantes.
Por outro lado, de harmonia com os relatórios da Direção-
Geral de Saúde, por exemplo em 2014, só o acidente vascular
cerebral isquémico representou cerca de 20 mil episódios

DOI: 10.47907/livro/2022/Maior_Acompanhado/Cap01
1
<https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/health-a-t-a-
glance-2017_health_glance-2017-en>, consultado em dezembro de 2018.
2 • f r a n c i s c a va n d u n e m

determinantes de 250 mil dias de internamento2.


Acresce que, segundo os dados publicitados pela Autoridade
Nacional de Segurança Rodoviária, em 2018, no período
compreendido entre 1 de janeiro e 31 de agosto, ocorreram
21.885 acidentes rodoviários com vítimas3.
Permiti-me invocar estes números para relembrar o quanto
a vida é frágil e vulnerável: a qualquer momento, no espaço
de segundos, um padecimento inesperado ou um qualquer
acontecimento inopinado pode determinar que tudo quanto
damos como garantido mude. Tratam-se daqueles torvelinhos
que nos transmutam de tal modo que passam a impossibilitar
de «sermos o que somos» e compelem para situações de «não-
poder» ou não se conseguir ser-se «aquilo que se é».
Se esta possibilidade é incontestável, também é para
muitos, há longo tempo, evidente a indispensabilidade de
se proceder à profunda reformulação dos institutos relativos
às incapacidades dos maiores, ou seja, dos atuais regimes da
interdição e inabilitação.
Permitam-me, aliás, que me inclua no perímetro «destes
muitos».

Desajuste das soluções do Código Civil de 1966

Na verdade, no exercício de funções anteriores,


designadamente, nas de Procuradora-Geral Distrital de
Lisboa, fui tendo plena noção da necessidade de se proceder
à profunda reformulação destes institutos. Não raras vezes
fui confrontada com a inviabilidade de o Ministério Público

2
<https://www.dgs.pt/em-destaque/portugal-doencas-cerebro-cardiovas-
culares-em-numeros-201511.aspx>, consultado em dezembro de 2018.
3
<http://www.ansr.pt/Estatisticas/RelatoriosDeSinistralidade/Docu-
ments/2018/relatórios%20mensais%20-%20vítimas%20a%2024%20
horas/Rel_ago_2018_24h.pdf>, consultado em dezembro de 2018.
NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO: UMA MUDANÇA DE PARADIGMA • 3

propor estas ações, designadamente, por impossibilidade de


constituição do conselho de família, por existirem inúmeras
pessoas — predominantemente idosas, mas não só – que
não possuem, com três pessoas, uma qualquer relação de
proximidade, familiar ou de amizade, que as compelisse a
aceitar o exercício dos cargos de tutor, protutor e o de vogal. Por
esta razão, os procedimentos tendentes à propositura dessas ações
tornavam-se, nalgumas situações, muito morosos, consideradas as
diligências que era necessário desenvolver até se lograr conseguir
identificar quem se predispusesse a aceitar exercer aqueles cargos,
sendo que, além disso, por vezes, o expediente tinha mesmo de
ser arquivado, sem que a ação fosse proposta porque, apesar dos
esforços desenvolvidos, não se conseguia, de todo, proceder à
constituição do conselho de família.
Conhecia, de igual modo, as questões associadas à
morosidade dos procedimentos tendentes à citação do
Requerido, decorrentes da circunstância desta atuação
processual ter, necessariamente, que se iniciar com a expedição
de carta registada com aviso de receção, ainda que já existissem
elementos no processo dando nota de que o Requerido não
tinha qualquer condição para a receber.
No entanto, para além de conhecer alguns dos entropeços
processuais, tinha, acima de tudo, noção do desajuste
dogmático das soluções em vigor que se reportavam a um
tempo – a década de 60 do século passado – em que, por
exemplo, a esperança média de vida era, à nascença, de 64
anos ao passo que hoje é de 81,3 anos, ou relembrar que a
utilização de imagens por ressonância magnética capazes de
realizar exames com imagens de resolução espacial em poucos
minutos teve o seu início nos anos 80 do século passado.
Basta, pois, lançar um breve olhar pelo mundo que nos
rodeia e proceder à comparação, ainda que apressada, com o
que acontecia há cerca de meio século atrás para, com extrema
facilidade, concluirmos que as mudanças, designadamente,
4 • f r a n c i s c a va n d u n e m

sociais, económicas, científicas e tecnológicas foram


incomensuráveis, sendo que a tudo acresce a, por demais
conhecida, diminuição da capacidade agregadora da família.
Numa outra perspetiva, a evolução cultural permite hoje
considerar o portador de deficiência como pessoa igual, sem
prejuízo das necessidades especiais a que a lei deve dar resposta.
Neste contexto, tornou-se claro que, no tocante ao
regime de suprimento das incapacidades dos adultos, e mais
especificamente no que diz respeito à interdição, não poderia
manter-se o atual instituto que, contas feitas, se destina, em
exclusivo, às grandes incapacidades intelectuais, ou seja, a
quem já não possui qualquer condição para ser autossuficiente
em qualquer aspeto da sua vida, circunstância que determina
que, juridicamente, passe a ficar impossibilitado de exercer
os direitos de que é titular e a ser, em tudo, equiparado aos
menores.
Na verdade, são evidentes os efeitos automáticos, globais
e estáticos associados à interdição que, uma vez decretada,
tem as consequências pré-definidas na lei – todas aquelas
mas também apenas as ali inscritas. Assim, apesar de
conceptualmente o regime visar a proteção de quem se encontra
numa situação de incapacidade, acaba, perversamente, por se
traduzir em desproteção. Isto porque, por um lado, existe,
compreensivelmente, uma enorme resistência familiar e social
em recorrer a um instituto jurídico destinado a «incapacitar
civilmente» outrem, o que compele a que não o façam ficando,
consequentemente, essas pessoas, completamente submetidas
ou à mercê da boa, ou má vontade de terceiros; por outro
lado, este instituto jurídico deixa de fora do seu perímetro de
proteção um grande conjunto de pessoas que não se encontram
naquela situação limite mas que, não obstante, devem ser
juridicamente protegidas.
Neste contexto, em que, por este conjunto muito
alargado de razões, se tornava premente proceder à profunda
reformulação destes institutos, surgiu a feliz possibilidade de
NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO: UMA MUDANÇA DE PARADIGMA • 5

ser celebrado um protocolo entre o Ministério da Justiça e as


Faculdades de Direito das Universidades de Coimbra e Lisboa,
nos termos do qual os civilistas decanos daquelas Faculdades
se predispuseram a formular um projeto de proposta de lei
destinado, precisamente, a proceder à reconformação do regime
jurídico relativo ao suprimento das incapacidades dos adultos.
Cumpre-me, pois, dar não só nota pública deste encontro
de vontades, mas, acima de tudo, apresentar o meu profundo
agradecimento àquelas Universidades e, acima de tudo, a
quem, integrado nestas, se predispôs a colocar, de modo
absolutamente gratuito, a sua mestria e saber ao serviço da
comunidade.
Por esta via, logrou alcançar-se um novo regime jurídico
relativo às incapacidades das pessoas maiores de idade – o
maior acompanhado – que, atento à experiência de ordens
jurídicas culturalmente próximas da nossa e aos instrumentos
internacionais vinculantes para o Estado Português, estabelece
o tratamento condigno da pessoa, de qualquer idade, que careça
de proteção, seja qual for o fundamento dessa necessidade.

O Novo Regime

Em síntese apertada, diria que as alterações que, a breve


trecho, entrarão em vigor (10 de fevereiro de 2019), visam, no
essencial, dois objetivos matriciais.
O primeiro é o de substituir o atual sistema que apenas admite
respostas rígidas por um outro que, recusando automatismos, se
alicerça no reconhecimento de que as diferentes situações de
incapacidade, com graus diferenciados de dependência, carecem
de respostas e de apoios distintos, devendo essa diversidade ser
tida em conta no desenho das medidas e das respostas adotadas
a cada situação concreta.
O segundo é o de se pretender que as concretas medidas
estabelecidas relativamente a cada cidadão visem, tanto quanto
possível, preservar a independência e autonomia de que a pessoa
6 • f r a n c i s c a va n d u n e m

ainda dispõe, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias


escolhas, mantendo o acompanhado, salvo decisão judicial em
contrário, liberdade para a prática de atos de caráter pessoal e
pessoalíssimos, como seja, a de casar, de se unir de facto, de
procriar, de adotar, de exercer as responsabilidades parentais, de
se divorciar, de votar ou de testar.
Como é claro, estes pilares são alicerçados num conjunto
alargado de âncoras substantivas e adjetivas.
Por comparação com o regime atual dir-se-á poder afirmar-
se, com convicção, que se procede a uma mudança de
paradigma na medida em que se adota, quanto às incapacidades
dos adultos e ao modo de as suprir, um novo modelo de ação,
que, afigura-se, é o que melhor traduz o respeito pela dignidade
da pessoa visada que se pretende que seja tratada como pessoa
inteira, com direito à solidariedade, apoio e proteção que a sua
vulnerabilidade reclamada.
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN
DE NUEVA YORK EN ESPAÑA:
UNA DÉCADA DE ACIERTOS
Y DESACIERTOS 1

INMACULADA VIVAS-TESÓN
Universidad de Sevilla (España)

1. Un decenio de vigencia de la Convención de Nueva


York en el Ordenamiento jurídico español

En el recién despedido año 2018 hemos conmemorado el


décimo aniversario de la entrada en vigor en el ordenamiento

DOI: 10.47907/livro/2022/Maior_Acompanhado/Cap02
1
Este trabajo se incluye entre los resultados del proyecto de investiga-
ción “Discapacidad, Enfermedad Crónica y Accesibilidad a los
Derechos” (der2016-80138-R) del Ministerio de Economía y
Competitividad, así como del Grupo de Investigación SEJ617 “Nuevas
dinámicas del Derecho privado Español y Comparado”.
8 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

jurídico español de la Convención onu de los derechos de las


personas con discapacidad2, razón por la cual consideramos
muy oportuno detenernos para realizar, de manera sintética,
un balance de todos los pasos dados en esta década y del
camino que aún resta por recorrer.
En 2008 la Convención conseguía despertarnos, sacudirnos
ante una realidad existente pero, hasta entonces, invisible,
pues las personas con discapacidad eran encerradas3 en las
casas, manicomios o cárceles (en las que aún permanecen,
indebidamente, muchas de ellas). Ahora, gracias a dicho Tratado
internacional, son visibles, visibilidad que, lamentablemente,
está llevando aparejado un incremento de los delitos de odio
por discapacidad, la disfobia4 contra la cual debemos poner
todo nuestro empeño para erradicarla completamente a través
de una única herramienta: la educación en igualdad.
Puede afirmarse, sin temor a errar, que es unánime la
consideración de que dicho Tratado internacional ha sido
crucial en materia de derechos humanos por su enorme
impacto, marcando un antes y un después en la evolución

2
Instrumento de ratificación de 23 de noviembre de 2007, publicado
en el boe núm. 96, de 21 de abril de 2008 y con entrada en vigor el 3 de
mayo de 2008.
3
En este sentido afirma Antonio Pau Pedrón, “De la incapacitación
al apoyo: el nuevo régimen de la discapacidad intelectual en el Código
civil”, Revista de Derecho civil 5/3 (2018) 6: “La situación de las personas
con alteraciones intelectuales ha sido vista por el Derecho, hasta tiempos
recientes, como un problema que afectaba a la sociedad y que había que
resolver drásticamente: sacándolas fuera de ella”.
4
Según el Informe anual del Ministerio del Interior, en 2015 se
produjeron 226 incidentes relacionados con la discapacidad, mientras
que en 2016 fueron 262, experimentándose, por tanto, un incremento
del +15,9%. En 2016, la discapacidad ocupa el segundo lugar entre las
distintos contextos establecidos en el Sistema Estadístico de Criminali-
dad, tras el de “racismo y xenofobia” (http://www.interior.gob.es/docu-
ments/10180/5791067/estudio+incidentes+delitos+de+odio+2016.
pdf/c5ef4121-ae02-4368-ac1b-ce5cc7e731c2).
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 9

de los derechos de las personas diversamente capaces. Su


aplicación ha supuesto, sin duda, avances importantísimos,
destacadamente, la visibilización de las personas con discapacidad
(con independencia del tipo de deficiencia y de si tienen o no
modificada su capacidad) poniendo el acento en la persona, pero
es igualmente cierto que aún faltan muchos retos por alcanzar en
su interpretación, grado de cumplimiento y desarrollo normativo.
Lamentablemente, persisten numerosos escollos tanto de hecho
como jurídicos; se siguen produciendo, sistemáticamente,
vulneraciones de derechos.
Dicho Instrumento ha conllevado, sin lugar a dudas, un
cambio paradigmático de actitud y enfoque respecto de la
discapacidad a nivel mundial5. Se mira la discapacidad con
otros ojos. La Convención advierte a España y a los restantes
Estados así como a las Organizaciones supranacionales (como
la Unión Europea6) firmantes que el único abordaje que puede
hacerse de la discapacidad es desde los derechos humanos y
libertades fundamentales de la persona7.
Para la Convención, es necesario poner todos los medios
posibles con el fin de conocer la voluntad, deseos y preferencias
de la persona con discapacidad. En este sentido, la Sentencia
del Tribunal Supremo (Sala de lo civil, Sección 1ª) de 30 de
septiembre de 2014 señala:

5
En el ámbito de la discapacidad, se percibe, claramente, la reciente
“humanización” que están experimentando los legisladores internaciona-
les, europeos y nacionales, como señalábamos en Vivas Tesón, Inmacu-
lada, “Retos actuales en la protección jurídica de la discapacidad”, Re-
vista Pensar 20/3 (2015) 825 (http://periodicos.unifor.br/rpen/article/
view/4110).
6
La Unión Europea ratificó la Convención en el año 2011, siendo la
primera vez que dicha organización supranacional llega a ser parte de un
Tratado internacional.
7
Así lo subraya Carlos Martínez de Aguirre, El tratamiento jurídico
de la discapacidad psíquica: reflexiones para una reforma legal, Cizur Menor
(Navarra): Aranzadi, 2014, 22.
10 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

“puede subrayarse la improcedencia de desconocer la voluntad


de la persona discapacitada. Es cierto que en determinados
casos esta voluntad puede estar anulada hasta el extremo de
que la persona discapacitada manifieste algo que objetivamente
la perjudique. Pero esta conclusión sobre el perjuicio objetivo
debe ser el resultado de un estudio muy riguroso sobre lo
manifestado por la persona discapacitada y sus consecuencias
a fin de evitar que lo dicho por ella se valore automáticamente
como perjudicial, y lo contrario, como beneficioso”.

Y continúa:
“a tenor de lo establecido en la Convención sobre los Derechos
de las Personas con Discapacidad, la voluntad de la persona
discapacitada (en el caso, incapacitada por decisión judicial)
debe ser respetada salvo que razones objetivas permitan concluir
que ello la perjudicaría”.

Como expresa el Alto tribunal (Sala de lo civil, Sección 1ª)


en su Sentencia de 16 de mayo de 2017, la Convención
“opta por un modelo de apoyos para configurar el sistema
dirigido a hacer efectivos los derechos de las personas con
discapacidad (art. 12.3). Se trata, como declara el art. 1 de
la Convención, de promover, proteger y asegurar el goce
pleno y en condiciones de igualdad de todos los derechos
humanos y libertades fundamentales por todas las personas con
discapacidad y promover el respeto de su dignidad inherente.
Con el fin de hacer efectivo este objetivo, los Estados deben
asegurar que en todas las medidas relativas al ejercicio de la
capacidad se proporcionen salvaguardias adecuadas y efectivas
para impedir los abusos. Esas salvaguardias deben asegurar
que las medidas relativas al ejercicio de la capacidad respeten
los derechos, la voluntad y las preferencias de la persona, que
no haya conflicto de intereses ni influencia indebida, que sean
proporcionales y adaptadas a las circunstancias de la persona. En
particular, las salvaguardias, deben ser proporcionales al grado
en que dichas medidas afecten a los derechos e intereses de las
personas (art. 12.4 de la Convención). Desde esta perspectiva
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 11

debe interpretarse lo dispuesto en el Código civil y en la Ley de


Enjuiciamiento civil...” (fj. 5º).
De este modo, revisten especial importancia los “ajustes
razonables”, que, según el art. 2 de la Convención, son
“las modificaciones y adaptaciones necesarias y adecuadas que
no impongan una carga desproporcionada o indebida, cuando
se requieran en un caso particular, para garantizar a las personas
con discapacidad el goce o ejercicio, en igualdad de condiciones
con las demás, de todos los derechos humanos y libertades
fundamentales”8.
En este sentido, la Sentencia de la Audiencia Nacional
(Sala de lo Contencioso-Administrativo, Sección 3ª) de 2 de
noviembre de 2009 considera que
“la entrada en vigor de la Convención debe llevar consigo,
obviamente, la adaptación de la normativa española al
instrumento internacional en todo aquello que lo contravenga,
pero también permite a los órganos judiciales, inmediatamente,
interpretar la normativa vigente de conformidad con la
Convención, completando las lagunas de nuestro ordenamiento
jurídico con el propio texto de la Convención, garantizando así
la efectiva aplicación de los derechos reconocidos en la norma
internacional a las personas con discapacidad”.
En el caso enjuiciado, se consideró un “ajuste razonable”
la exoneración a determinadas personas con discapacidad
de las exigencias previstas como requisitos para la obtención
de una beca para cursar 4º de Derecho, de manera que
resultara garantizada la no discriminación de las personas
con discapacidad en el ejercicio de su derecho a acceder a la
educación superior.

8
Acerca de los ajustes razonables puede consultarse la reciente Observa-
ción general núm. 6 (2018) sobre la igualdad y la no discriminación del Co-
mité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad, de 26 de abril de
2018 (https://www.ohchr.org/en/hrBodies/crpd/Pages/ crpdIndex.aspx).
12 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

Las diversas lecturas que del texto internacional he realizado


a lo largo de estos diez años me han conducido siempre a
extraer la conclusión (la cual, incluso, he tenido ocasión de
dejar reflejada por escrito) de que la Convención de Nueva
York no reconocía ningún derecho nuevo que no estuviera ya
contenido en anteriores Tratados. Sin embargo, hoy por hoy,
confieso discrepar conmigo misma, pues estoy plenamente
convencida de que sí reconoce, con contundencia, un nuevo
derecho: el derecho a la accesibilidad universal (no sólo
arquitectónica, en la cual solemos pensar únicamente), esto
es, al ejercicio accesible y efectivo de todos los derechos para
tener una vida plena e independiente, incluido el derecho a
elegir su recorrido vital y el derecho a equivocarse. Sólo así se
da cumplimiento no sólo a lo dispuesto a la célebre “estrella
polar” de la Convención, su art. 12, sino, junto a éste, otro
precepto que, a mi juicio, es igualmente crucial y por ello no
tiene sentido uno sin el otro, el 19 y su reconocimiento al
derecho a una vida independiente e inclusiva en la comunidad.
Se trata ésta de una disposición normativa transversal y, por
ello, íntimamente interrelacionada con las restantes contenidas
en el Tratado de Nueva York, pese a lo cual, extrañamente, no
suele prestársele tanta atención como al art. 12.
El citado art. 19 se basa en el principio fundamental
de derechos humanos de que todos los seres humanos
nacen iguales en dignidad y en derechos y todas las
vidas tienen el mismo valor, como señala la Observación
general núm. 5 (2017) del Comité sobre los Derechos de
las personas con discapacidad sobre el derecho a vivir de
forma independiente y a ser incluido en la comunidad 9,
la cual enfatiza dicho derecho tanto en su dimensión
individual10 como social de plena inclusión y participación en

9
<http://www.ohchr.org/en/hrBodies/crpd/Pages/ crpdIndex.aspx>.
10
Para la citada Observación general nº 5, vida independiente signifi-
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 13

aquélla11. El derecho consagrado en el art. 19 cdpd, como

ca “que las personas con discapacidad cuenten con todos los medios nece-
sarios para que puedan tomar opciones y ejercer el control sobre sus vidas,
y adoptar todas las decisiones que las afecten. La autonomía personal y la
libre determinación son fundamentales para la vida independiente, inclui-
dos el acceso al transporte, la información, la comunicación y la asistencia
personal, el lugar de residencia, la rutina diaria, los hábitos, el empleo dig-
no, las relaciones personales, la ropa, la nutrición, la higiene y la atención
de la salud, las actividades religiosas y culturales, y los derechos sexuales
y reproductivos. Las siguientes actividades están vinculadas al desarrollo
de la identidad y la personalidad de cada individuo: dónde vivimos y con
quién, qué comemos, si nos gusta dormir hasta tarde o acostarnos a altas
horas de la noche, si preferimos quedarnos en casa o salir, si nos gusta
poner mantel y velas en la mesa, tener animales domésticos o escuchar
música. Tales acciones y decisiones nos hacen ser quienes somos. La vida
independiente es una parte esencial de la autonomía y la libertad de la per-
sona y no significa necesariamente vivir solo. Tampoco debe interpretarse
únicamente como la capacidad de llevar a cabo actividades cotidianas por
uno mismo. Por el contrario, debe considerarse como la libertad de elec-
ción y de control, en consonancia con el respeto de la dignidad inherente
y la autonomía individual consagradas en el artículo 3 a) de la Conven-
ción. La independencia como forma de autonomía personal implica que
la persona con discapacidad no se vea privada de la posibilidad de elegir y
controlar su modo de vida y sus actividades cotidianas”.
Por tanto, como puede comprobarse, las decisiones personales abarcan
todos los aspectos del sistema de vida de la persona tanto en la esfera priva-
da como en la pública y tanto en lo cotidiano como a largo plazo.
11
Según la Observación general nº 5, “el derecho a ser incluido en
la comunidad se refiere al principio de inclusión y participación plenas y
efectivas en la sociedad consagrado, entre otros, en el artículo 3 c) de la
Convención. Incluye llevar una vida social plena y tener acceso a todos
los servicios que se ofrecen al público, así como a los servicios de apoyo
proporcionados a las personas con discapacidad para que puedan ser in-
cluidas y participar plenamente en todos los ámbitos de la vida social. Esos
servicios pueden referirse, entre otras cosas, a la vivienda, el transporte,
las compras, la educación, el empleo, las actividades recreativas y todas las
demás instalaciones y servicios ofrecidos al público, incluidos los medios
de comunicación social. Ese derecho también incluye tener acceso a todas
las medidas y acontecimientos de la vida política y cultural de la comuni-
dad, entre otras cosas reuniones públicas, eventos deportivos, festividades
culturales y religiosos y cualquier otra actividad en la que la persona con
discapacidad desee participar”.
14 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

señala la citada Observación general nº 5, abarca ambas


dimensiones.
Así las cosas, los arts. 12 y 19 cdpd están directamente
conectados o vinculados porque el reconocimiento de
la personalidad y capacidad jurídicas es la base para que
la ciudadanía con discapacidad logre vivir, de forma
independiente y plena, en el seno de la comunidad. Por
consiguiente, es preciso garantizar a todas las personas con
discapacidad, al margen de su concreta deficiencia, el derecho
a la capacidad jurídica (de goce y de ejercicio), para decidir
dónde, cómo y con quién vivir.
En mi modesta opinión, la accesibilidad se erige como un
nuevo derecho de la personalidad. La no accesibilidad a los
derechos es una flagrante violación de la dignidad humana,
puesto que si los derechos reconocidos a todas las personas
sin excepción no pueden disfrutarse plena y efectivamente no
puede vivirse una vida digna.
Conforme a los principios, valores y mandatos contenidos
en dicho Tratado internacional, se han producido significativos
avances e importantes conquistas en la inclusión y plena
ciudadanía de las personas con diversidad funcional (cuatro
millones de la población española12, si bien es preciso destacar
que las estadísticas en materia de discapacidad son, a día de hoy,
una asignatura pendiente13) y siguen suscitándose importantes

12
Los únicos datos estadísticos oficiales de los cuales disponemos en
España son los de la Encuesta de Discapacidad, Autonomía personal y
situaciones de Dependencia (conocida como edad) del Instituto Nacional
de Estadística, publicada en noviembre de 2008 (si reparamos en la fecha,
es más que probable que las cifras se hayan incrementado en estos años),
conforme a la cual en nuestro país, alrededor de un 8,5% de la población,
esto es, más de 3,8 millones de personas residentes en hogares españoles,
por sexo, más de 2,30 millones de mujeres frente a 1,55 de hombres (pue-
de consultarse en <www.ine.es/prensa/np524.pdf>).
Consciente de ello y para materializar el mandato del art. 31 de la
13

Convención, el cual obliga a los Estados parte a la recopilación de datos y


LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 15

cambios jurídicos y de políticas públicas no sólo en nuestro


país, sino también en todos los Estados y organizaciones
signatarios de este primer gran Tratado del sistema universal
de derechos humanos del Siglo xxi.
Veamos, sucintamente, cuáles han sido tales avances.

1.1. Una necesaria renovación terminológica

Los legisladores, gobernantes, operadores jurídicos, medios


de comunicación y, en general, toda la ciudadanía, desde sus
respectivas responsabilidades profesionales, funciones, prácti-
cas y, muy especialmente, actitudes personales, deben tomar
conciencia de la realidad existencial diaria de las personas con
discapacidad y del enfoque de derechos que preconiza la Con-
vención, el cual debe calar profundamente en todos los ámbi-
tos de la sociedad.
Y ello comienza por algo tan simple como es la utilización de
un lenguaje adecuado y respetuoso. Las palabras demuestran

estadísticas sobre discapacidad, que les permita formular y aplicar políticas


públicas en este dominio, el Instituto Nacional de Estadística llevará a
cabo cinco grandes operaciones estadísticas sobre distintos aspectos de la
realidad social de la discapacidad en España a lo largo del año 2019, según
el Plan Estadístico Nacional 2017-2020 para dicho ejercicio, aprobado
por el Real Decreto 1518/2018, de 28 de diciembre (publicado en el boe
núm. 314, de 29 de diciembre).
Asimismo, es reseñable que la Ley Orgánica 5/2018, de 28 de di-
ciembre, de reforma de la Ley Orgánica 6/1985, de 1 de julio, del Po-
der Judicial, sobre medidas urgentes en aplicación del Pacto de Estado en
materia de violencia de género (publicada en el boe núm. 314, de 29 de
diciembre) haya previsto que la información estadística sobre víctimas de
violencia de género incluya la variable de discapacidad, tanto en las muje-
res como en los menores de edad que sufren este tipo de violencia. De esta
manera, la información estadística obtenida sobre delitos de violencia ma-
chista deberá poder desagregarse con un indicador de discapacidad de las
víctimas, estableciéndose un registro de los menores víctimas de violencia
de género con discapacidad.
16 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

cultura, el grado de civilización, el modo de pensar, respeto.


No se trata de un mero lenguaje políticamente correcto. No es
algo banal. Cambiemos el lenguaje y cambiaremos el mundo.
El legislador español, afortunadamente, se ha dado
cuenta de ello y ha señalado cuáles son, en el entorno de la
discapacidad, las palabras a usar y cuáles a descartar. De este
modo, nuestro Derecho ha experimentado en los últimos
años una evolución terminológica en la materia y, así, ya
la Ley 41/2003, de 18 de noviembre, lleva por rúbrica
“Protección patrimonial de las personas con discapacidad”
(no “discapacitadas”), estableciendo en la Disposición
Adicional 8ª de la Ley 39/2006, de 14 de diciembre de 2006,
de Promoción de la Autonomía Personal y Atención a las
personas en situación de Dependencia, que las referencias
contenidas en los textos normativos a los “minusválidos”
y a las “personas con minusvalía”, se entenderán realizadas
a “personas con discapacidad” (si se nos permite el símil,
como en el procesador de texto la utilización de “buscar” y
“reemplazar”), y que dicho término será el utilizado para
denominarlas en las disposiciones normativas elaboradas por
las Administraciones Públicas.
“Discapacidad” ha sido también el término empleado en la
Convención onu, en cuyo Preámbulo se reconoce que
“e) ...es un concepto que evoluciona y que resulta de la
interacción entre las personas con deficiencias y las barreras
debidas a la actitud y al entorno que evitan su participación
plena y efectiva en la sociedad, en igualdad de condiciones con
las demás”.
De este modo, en un proceso de adecuación terminológica
y conceptual de las normas reguladoras de la discapacidad,
conforme al mandato de la citada Disposición Adicional 8ª
y a la Clasificación Internacional del Funcionamiento, de la
Discapacidad y de la Salud (cif-2001) de la Organización
Mundial de la Salud (en adelante, oms), el rd. 1856/2009,
de 4 de diciembre, de procedimiento para el reconocimiento,
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 17

declaración y calificación del grado de discapacidad, y por


el que se modifica el rd. 1971/1999, de 23 de diciembre,
sustituye el término “minusvalía” por el de “discapacidad”, y
las referencias que en el rd. 1971/1999 se realizaban hasta
ahora a “grado de discapacidad” se sustituyen por “grado de
las limitaciones en la actividad”. Por consiguiente, debemos
desterrar, por completo, de nuestro lenguaje el término
peyorativo “minusvalía”.
Como puede observarse, el foco de atención se centra
en la persona y no en su condición, la cual viene después y
con carácter accesorio. Conforme a ello, discapacitado como
sustantivo no debe utilizarse, pues confunde una parte con el
todo. Somos muy dados a etiquetar, a encasillar, a clasificar.
En este sentido, algunas normas han optado por cambiar
la denominación de “procedimiento de incapacitación
judicial” por el de “procedimiento de modificación de la
capacidad”14, el cual, según el reciente Anteproyecto de ley
por la que se reforma la legislación civil y procesal en materia
de discapacidad de septiembre de 2018, de lograr ver la luz,
pasaría a ser el “procedimiento de provisión de apoyos”.
No obstante, el art. 49 de la Constitución Española de
1978 sigue aún conservando, lamentablemente, el término
“disminuidos”: “los poderes públicos realizarán una política
de previsión, tratamiento, rehabilitación e integración de los
disminuidos físicos, sensoriales y psíquicos, a los que prestarán
la atención especializada que requieran y los ampararán
especialmente para el disfrute de los derechos que este Título

14
La expresión “personas con capacidad modificada judicialmente” ya
es utilizada, entre otras normas, por el Real Decreto 1276/2011, de 16 de
septiembre, de adaptación normativa a la Convención Internacional sobre
los derechos de las personas con discapacidad, por la Ley 20/2011, de
21 de julio, del Registro Civil y por el Real Decreto 1090/2015, de 4 de
diciembre, por el que se regulan los ensayos clínicos con medicamentos,
los Comités de Ética de la Investigación con medicamentos y el Registro
Español de Estudios Clínicos.
18 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

otorga a todos los ciudadanos”, si bien el Consejo de Ministros


aprobó en diciembre de 2018 un Anteproyecto de reforma
constitucional para eliminar dicha palabra.

1.2. La aplicación judicial de la Convención de Nueva York

Ante la pasividad o timidez legislativa para enmendar


las injustas cortapisas a los derechos de las personas con
discapacidad, es como si la Convención onu de los derechos
de las personas con discapacidad, norma de nuestro
Ordenamiento jurídico con fuerza vinculante, directamente
aplicable y susceptible de ser invocada (así lo reconoce
expresamente la Instrucción 1/2017, de 27 de marzo, de la
Fiscalía General del Estado sobre la actuación del fiscal para
la protección de los derechos al honor, intimidad y propia
imagen de menores de edad con discapacidad ante los medios
de comunicación audiovisual15), estuviera inexplicadamente
excluída del célebre principio iura novit curia.
Sólo algunos jueces y tribunales (a los que han de sumarse,
por supuesto, otros operadores jurídicos) con cierta sensibilidad
hacia los derechos de las personas con discapacidad han ido
cambiando, a golpe de sentencia, la visión de las cosas en este
ámbito. Y si bien debemos felicitarnos por ello, tampoco se nos
oculta que el respeto de los derechos y la dignidad de la persona
diversamente capaz se ha convertido en una auténtica “lotería
judicial”, al depender de que toque un juzgador que conozca
(e interprete adecuadamente, lo que no siempre sucede) o
no una norma de tan profundo calado. La existencia de la
persona con diversidad funcional y el respeto de sus derechos y
libertades no puede quedar al albur de sensibilidades y buenas

15
<https://www.fiscal.es/fiscal/pa_WebApp_sgntj_nfis/descarga/instruc-
cion%201-2017%20%20proteccion%20imagen%20menores%20con%20
discapacidad.pdf?idFile=dbf8197e-058d-4934-bc68-c39a01a5cf38>.
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 19

voluntades, sino del estricto cumplimiento de un mandato


normativo. Ello no sólo provoca una enorme inseguridad
jurídica, sino que, además, el daño ocasionado cuando se priva
indebidamente a la persona de sus derechos, de su capacidad
jurídica nombrándosele un representante que gobierne su vida
en lugar de un mecanismo de apoyo o asistencia para la toma
de decisiones personales y patrimoniales, incluso aunque
con posterioridad dicha decisión judicial fuera revocada en
segunda instancia, es irreparable.
Podría afirmarse que el punto de partida en relación a
la doctrina jurisprudencial generada por la aplicación de la
Convención onu comenzó con la Sentencia del Tribunal
Supremo (Sala de lo civil, Sección 1ª) de 29 de abril de 2009,
apegada al actual sistema legal de incapacitación judicial de
198316, el cual fue considerado por el Alto tribunal acorde
con los principios de la Convención de Nueva York: “...el
sistema de protección establecido en el Código Civil sigue,
por tanto, vigente, aunque con la lectura que se propone: ‘1°
Que se tenga siempre en cuenta que el incapaz sigue siendo
titular de sus derechos fundamentales y que la incapacitación
es sólo una forma de protección. 2° La incapacitación no es
una medida discriminatoria porque la situación merecedora
de la protección tiene características específicas y propias.
Estamos hablando de una persona cuyas facultades intelectivas
y volitivas no le permiten ejercer sus derechos como persona
porque le impiden autogobernarse. Por tanto, no se trata de un
sistema de protección de la familia, sino única y exclusivamente
de la persona afectada’”. Esta doctrina (que, adelantamos, no
compartimos) ha sido posteriormente reiterada, con algunos,

16
Cristina Guilarte Martín-Calero, “La reinterpretación jurispru-
dencial de los sistemas de protección a la luz de la Convención de Nueva
York: el nuevo paradigma de la Sala Primera”, in Idem, dir. / García Me-
dina, coord., Estudios y Comentarios jurisprudenciales sobre discapacidad,
Cizur Menor (Navarra): Aranzadi, 2016, 59-60.
20 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

matices, por las Sentencias del Tribunal Supremo (Sala de lo civil,


Sección 1ª) de 11 de octubre de 2012, 24 de junio de 2013, 1 de
julio de 2014, 13 de mayo y 18 de diciembre de 2015.
La Convención contempla un modelo de apoyos necesarios
para que la persona ejercite su capacidad jurídica, apoyos que,
como precisa la Sentencia del Tribunal Supremo (Sala de lo
civil, Sección 1ª) de 27 de noviembre de 2014, “no enumera
ni acota pero que se podrán tomar en todos los aspectos de
la vida, tanto personales como económicos y sociales para,
en definitiva, procurar una normalización de la vida de las
personas con discapacidad, evitar una vulneración sistemática
de sus derechos y procurar una participación efectiva en la
sociedad, pasando de un régimen de sustitución en la adopción
de decisiones a otro basado en el apoyo para tomarlas, que
sigue reconociendo a estas personas iguales ante la ley, con
personalidad y capacidad jurídica en todos los aspectos de la
vida, y en igualdad de condiciones con los demás, como se
ha dicho en el informe del Comité sobre los Derechos de las
personas con discapacidad (11º período de sesiones. 31 de
marzo a 11 de abril de 2014), sobre el contenido normativo
del artículo 12 de la Convención”.
A mi parecer, el procedimiento de modificación de la
capacidad no se ajusta a dicho Instrumento internacional.
No podemos seguir adelante dando mayor uso a la curatela17
en detrimento de la tutela pero constriñendo a la persona a
pasar, necesariamente, por una previa declaración judicial
de incapacitación a la cual se llega a través de un juicio

17
Vid. Sofía de Salas Murillo, “Repensar la curatela”, Derecho pri-
vado y Constitución 27 (2013) núm. 27, p. 11-48; y Pedro Botello Her-
mosa, “La sentencia del Tribunal Supremo 421/2013, de 24 de junio de
2013, como prueba de la eficiente adaptación del artículo 12 a través de la
curatela”, Actualidad civil 9 (2015) 10-15; y Idem, “El refuerzo de la cura-
tela como medio idóneo de adaptación del artículo 12 de la Convención
onu sobre derechos de personas con discapacidad al Ordenamiento jurídico
español”, Revista Crítica de Derecho Inmobiliario 91/749 (2015) 1345-1380.
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 21

contradictorio que suele durar, aproximadamente, un año.


Ello no se ajusta ni mucho menos al sistema de apoyos previsto
en la Convención. Para proteger a la persona no es preciso
incapacitar18. Nada avanzamos si nos limitamos a cambiar el
término “incapacitación” por el de “modificación judicial de
la capacidad”, pues de lo que se trata es de desplazar el centro
de gravedad a la autonomía individual y autodeterminación
de la persona con apoyos (sólo cuando éstos sean necesarios) y
no de mantenerla en el ámbito de la incapacidad.
En materia de alimentos, nuestro Tribunal Supremo (Sala de
lo civil, Sección 1ª), en su Sentencia de 7 de julio de 201419, en
relación a un hijo mayor de edad con esquizofrenia paranoide
reconocida superior al 65% (sin modificación judicial de la
capacidad) que sigue conviviendo en el domicilio familiar y
carece de recursos propios, afirma en su Fundamento Jurídico 2º:
“la Convención sustituye el modelo médico de la discapacidad
por un modelo social y de derecho humano que al interactuar
con diversas barreras, puede impedir la participación plena
y efectiva del incapacitado en la sociedad, en igualdad de
condiciones con las demás. Estamos ante una nueva realidad
legal y judicial y uno de los retos de la Convención será el
cambio de las actitudes hacia estas personas para lograr que los
objetivos del Convenio se conviertan en realidad. Decir que el
hijo conserva sus derechos para hacerlos efectivos en el juicio
de alimentos, siempre que se den los requisitos exigidos en los
artículos 142 y siguientes del Código Civil, no solo no responde
a esta finalidad, sino que no da respuesta inmediata al problema.

18
Ya tuve ocasión de manifestar dicha opinión hace años en Inmacu-
lada Vivas Tesón, “Una propuesta de reforma del sistema tuitivo español:
proteger sin incapacitar”, Revista de Derecho Privado 96 (2012) 3-40.
19
Vid. Inmaculada Vivas Tesón, “La equiparación del hijo mayor de
edad con discapacidad psíquica al menor in potestate a efectos de alimen-
tos matrimoniales”, Revista Crítica de Derecho Inmobiliario 90/745 (2014)
2510-2541.
22 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

El problema existe al margen de que se haya iniciado o no un


procedimiento de incapacitación o no se haya prorrogado la
patria potestad a favor de la madre. La discapacidad existe, y lo
que no es posible es resolverlo bajo pautas meramente formales
que supongan una merma de los derechos del discapacitado
que en estos momentos son iguales o más necesitados si cabe
de protección que los que resultan a favor de los hijos menores,
para reconducirlo al régimen alimenticio propio de los artículos
142 y siguientes del Código Civil, como deber alimenticio de
los padres hacia sus hijos en situación de ruptura matrimonial,
conforme a lo dispuesto en el artículo 93 CC, pues no estamos
ciertamente ante una situación normalizada de un hijo
mayor de edad o emancipado, sino ante un hijo afectado por
deficiencias, mentales, intelectuales o sensoriales, con o sin
expediente formalizado, que requiere unos cuidados, personales
y económicos, y una dedicación extrema y exclusiva que
subsiste mientras subsista la discapacidad y carezca de recursos
económicos para su propia manutención, sin que ello suponga
ninguna discriminación, (que trata de evitar la Convención),
antes al contrario, lo que se pretende es complementar la
situación personal por la que atraviesa en estos momentos para
integrarle, si es posible, en el mundo laboral, social y económico
mediante estas medidas de apoyo económico”.
Y sienta la siguiente doctrina: “la situación de discapacidad
de un hijo mayor de edad no determina por sí misma la
extinción o la modificación de los alimentos que los padres
deben prestarle en juicio matrimonial y deberán equipararse
a los que se entregan a los menores mientras se mantenga
la convivencia del hijo en el domicilio familiar y se carezca
de recursos”, la cual ha sido reproducida por las posteriores
Sentencias del Alto tribunal (Sala de lo civil, Sección 1ª) de 10
de octubre de 2014 y 17 de julio de 2015.
Sin embargo, la Convención no siempre es correctamente
entendida y, por consiguiente, aplicada por nuestros órganos
judiciales. En la Sentencia del Tribunal Supremo (Sala de lo
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 23

civil, Sección 1ª) de 13 de diciembre de 201720 el caso de autos


difiere de los pronunciamientos recién reseñados, dado que el
alimentista, hijo mayor de edad con discapacidad, desarrolla
una actividad laboral remunerada y, por tanto, cuenta con
ingresos propios.
A la vista de ello y de la situación del progenitor alimentante,
en incapacidad laboral y sin capacidad económica para pagar
la pensión alimenticia de su hijo fijada en su momento en
el procedimiento de separación matrimonial, el Juzgado
de Primera Instancia declara extinguida la obligación del
demandante de prestar alimentos a su hijo. Sin embargo, la
Audiencia Provincial estima el recurso de apelación y revoca
el fallo, manteniendo la pensión de alimentos a cargo del hijo
al sostener que
“la supresión de los alimentos vulnera lo dispuesto en el artículo
39.3 cc y en los artículos 93 y 142 del Código Civil, ya que
los progenitores están obligados a prestar alimentos a sus hijos
menores de edad y a los mayores, como en este caso, discapacitados
que no pueden mantenerse por sí mismos: La Convención
Internacional de Naciones Unidas sobre Derechos de Personas
con Discapacidad, que ha sido ratificada por España en fecha
23 de noviembre de 2007, reconoce el derecho de las personas
con discapacidad a un nivel de vida adecuado para ellas y
sus familias, lo cual incluye alimentación, vestido y vivienda
adecuados, y la mejora continua de sus condiciones de vida (sts
7 de julio 2014)”.
El Tribunal Supremo estima el recurso de casación
interpuesto por el padre demandante, manteniendo, en su
integridad, el fallo de primera instancia al considerar que

20
Inmaculada Vivas Tesón, “La obligación de alimentos a favor de los
hijos mayores de edad: ponderación de discapacidad de alimentante y ali-
mentista. Comentario a la sts de 13 diciembre 2017”, Cuadernos Cívitas
de Jurisprudencia Civil 107 (2018) 123-140.
24 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

“1. La respuesta al problema planteado es simplista y desviada de


lo que debió tenerse en cuenta para resolverlo. La sentencia da a
entender que todos y cada uno de los supuestos de minusvalía,
física, mental, intelectual o sensorial, conllevan la misma solución
y que a todos ellos resulta de aplicación la doctrina de esta sala
que cita, relativizando los principios y fundamentos que resultan
de la Convención de Nueva York sobre derechos de las personas
con discapacidad de 2006, sin ofrecer una respuesta adaptada
a las particulares circunstancias de las personas afectada por la
minusvalía, y sin valorar si son o no necesarios los apoyos que la
Convención ofrece, referidos en este caso a la continuidad de la
prestación alimenticia en favor de un hijo mayor de edad, cuya
minusvalía resulta de la enfermedad de Crohn, a cargo de un
padre en situación de incapacidad absoluta para toda actividad
laboral” (fj 2º).
Así las cosas, la Convención de Nueva York no obliga a
establecer apoyos a la persona con diversidad funcional en
todo caso, esto es, de manera automática por el hecho mismo
de la discapacidad, sino sólo cuando sean imprescindibles y
necesarios para llevar una vida independiente. Las ayudas o
apoyos (personales, económicos, sociales, educacionales, etc.)
son meros complementos ortopédicos que proceden sólo
cuando la persona los necesite para el ejercicio efectivo de
sus derechos (sólo en caso de no ver bien necesitaré gafas o
cuando tenga dificultad para caminar haré uso de una muleta
o bastón), de modo que la Convención onu propugna un
modelo de apoyos de diversa índole y personalizados para
favorecer la autodeterminación del sujeto en atención a sus
concretas circunstancias vitales. Por consiguiente, no siendo
preciso el apoyo alimenticio en el caso enjuiciado al contar
el hijo alimentista con ingresos suficientes para hacer frente a
sus necesidades, la solución al mismo viene dada por la mera
aplicación de los artículos 146, 147 y 152 del Código civil,
razón por la cual se declara su extinción.
Debemos dar cuenta de un reciente pronunciamiento
judicial que ha roto moldes en relación a la atribución de la
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 25

guarda y custodia de los hijos21. Se trata de la Sentencia de


la Audiencia Provincial de Córdoba (Sección 1ª) de 23 de
enero de 2018, la cual ha impuesto a un padre la custodia
compartida (a cuyo régimen se opuso) de sus dos hijos menores
de edad, padeciendo uno de ellos, desde temprana edad,
trastorno de desarrollo y retraso madurativo con discapacidad
reconocida del 33%, situación considerablemente agravada en
la adolescencia.
En el procedimiento de divorcio de mutuo acuerdo en 2013
se había asignado a la madre la guarda y custodia individual de
los dos hijos del matrimonio y un régimen de visitas al padre.
Con posterioridad, la madre, al pasar a encontrarse, de manera
sobrevenida, en una complicada situación personal (además de
sus obligaciones laborales –enfermera con rotación de turnos-,
el cuidado permanente de los hijos y la atención especial del
menor con diversidad funcional, tras dejar de contar para ello
con el imprescindible apoyo de sus padres a causa de una grave
enfermedad de uno de ellos, quién falleció durante el proceso),
solicita, en un procedimiento de modificación de las medidas
acordadas en su momento, mayor implicación del padre en el
cuidado de sus hijos (en dicho momento, de 14 y 16 años de
edad). La madre solicita, como pretensión subsidiaria de no ser
posible el establecimiento del régimen de custodia compartida,
el aumento de la pensión alimenticia para atender los gastos
de contratación de una persona especializada para atender
al hijo con diversidad funcional. El padre también solicita
modificación de medidas ante la negativa del hijo a pernoctar
con él, oponiéndose al régimen de custodia compartida, a

21
En relación a la protección de los hijos en el seno de una ruptura
parental tuve ocasión de pronunciarme en mis trabajos, “Protección de la
discapacidad en el seno de la ruptura parental”, La Ley Derecho de Familia
10 (abril-junio 2016) 1-17; y “Niños y niñas con capacidades diferentes:
el derecho de la persona a tomar sus propias decisiones”, La Ley Derecho de
Familia 13 (2017) 14-29.
26 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

pesar de que sólo trabaja por las mañanas, lo que le permitiría


dedicarse al cuidado de sus hijos.
El Juzgado de primera instancia decide mantener la custodia
materna, pero incrementa la pensión de alimentos del hijo a
cargo del progenitor no custodio en 75 euros.
Interpuesto recurso de apelación por la madre, el padre
se opone impugnando, además, el incremento de la pensión
de alimentos establecida a su cargo al reputar que la actual
es ajustada, proporcionada y atiende suficientemente las
necesidades de los hijos comunes. Por su parte, el Ministerio
Fiscal se adhiere parcialmente al recurso de apelación de la
madre, interesando, en esencia, el incremento de las pernoctas
de los hijos con el padre y el aumento de la pensión de
alimentos a cargo del padre, oponiéndose al recurso de éste.
La Audiencia Provincial, al resolver sendos recursos
de apelación, hace las siguientes consideraciones en el
Fundamento Jurídico 3º de su Sentencia:
“el art. 90.3 del C.c., en su última redacción establece que:
«3. Las medidas que el Juez adopte en defecto de acuerdo o
las convenidas por los cónyuges judicialmente, podrán ser
modificadas judicialmente o por nuevo convenio aprobado por
el Juez, cuando así lo aconsejen las nuevas necesidades de los hijos
o el cambio de las circunstancias de los cónyuges. Las medidas
que hubieran sido convenidas ante el Secretario judicial o en
escritura pública podrán ser modificadas por un nuevo acuerdo,
sujeto a los mismos requisitos exigidos en este Código”.

Como viene señalando el Tribunal Supremo “esta redacción


viene a recoger la postura jurisprudencial que daba preeminen-
cia al interés del menor en el análisis de las cuestiones relativas
a su protección, guarda y custodia, considerando que las nue-
vas necesidades de los hijos no tendrán que sustentarse en un
cambio ‘sustancial’, pero sí cierto” (v.gr. Sentencia de fecha 12
de abril de 2016 dictada por la Sala Primera del Tribunal Su-
premo). Apreciado así el interés del menor en correspondencia
a los mandatos normativos internos e internacionales que lo
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 27

tutelan (art. 3.1 de la Convención de las Naciones Unidas


sobre Derechos del Niño de 20 de noviembre de 2011[sic], el
art. 39 de la Constitución, y el art. 2 de la Ley 1/1996 de Pro-
tección del Menor). Revocándose por ello aquellas sentencias
que “petrifican” la situación de la menor desde el momento
del convenio regulador aprobado judicialmente “sin atender a
los cambios que desde entonces se han producido”, como pre-
cisa la Sentencia 390/2015, de 26 de junio. Así en particular
“el hecho de que un determinado régimen establecido se haya
«venido llevando a cabo, sin incidencia alguna” desde su inicio,
desde sus inicios con determinada edad del menor, “no es
especialmente significativo para impedirlo. Lo contrario supone
desatender las etapas del desarrollo de los hijos y deja sin valorar
el mejor interés del menor en que se mantenga o cambie en
su beneficio este régimen sts, Sala de lo Civil, Sección: 1ª,
29/11/2013 (rec. 494/2012)” (sts, Civil Sección 1ª de 25 de
octubre de 2017).

Habiéndose considerado entre otros parámetros para valo-


rar el cambio de circunstancias relevante desde la fecha de la
sentencia antecedente a estos efectos la propia evolución de
los menores por razón de edad (sts 17.10.2017), dado que
ello supone cambios sustanciales en la personalidad de los
mismos, debiendo comprender con mayor razón las peculia-
ridades de los supuestos de hijos discapacitados, que deman-
dan una mayor atención y exigencia de corresponsabilidad
parental. Sin perjuicio de valorar conjuntamente con ello la
estabilidad perseguida en los mismos, conflictividad subsis-
tente en la pareja, dificultades de comunicación, posibilidades
de conciliación de vida familiar y profesional, deseos de los
menores, y desde luego la capacitación e idoneidad personal
de cada progenitor. Habiendo incidido el Tribunal Supremo
en Sentencias de 21 de julio y 27 de septiembre de 2011, en
la nota de Derecho dinámico que caracteriza el Derecho de
familia e insiste en la posibilidad de efectuar un seguimiento
28 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

del modelo de guarda establecido. En la primera de las citadas


recuerda que “en esta materia decisiones judiciales pueden ser
modificadas mediante el procedimiento de modificación de
medidas siempre que las nuevas circunstancias sean favorables
al interés del menor” y la segunda citada señala que
“este tribunal no puede decidir sobre la conveniencia general
o no de esta forma de protección del hijo en los casos de
separación de los padres sino de si ello es conveniente para aquel
menor en el concreto momento y todo teniendo en cuenta que
el principio que rige los procesos de familia es la posibilidad
de cambio de las decisiones judiciales cuando han cambiado
las circunstancias por medio del procedimiento expreso de
modificación de medidas”.
Por lo demás es cierto que, en la actualidad, se establece
como modelo preferible o preferido el de la guarda compartida
entre los progenitores. Ahora bien, dicha prioridad legal
frente a la guarda individual solo se dará si las circunstancias
concurrentes avalan su adopción de modo que deberá ceder si
es contraria al interés del menor, porque el modelo preferente
es aquel que mejor tutela el interés del menor, considerando a
estos efectos a los anteriores parámetros señalados.
Descendiendo al caso de autos, la Audiencia Provincial,
consciente de que “las peculiaridades del estado mental y
evolución de la personalidad del referido menor no permiten
aventurar una certidumbre plena sobre la repercusión o alcance
venidero del cambio de régimen”, considera aconsejable “la
adopción de un régimen paritario y lo más equilibrado posible
de consideración a ambos menores, que comprende la análoga
exigencia de partes sobre los mismos, y de un modo estructural
y no meramente coyuntural, que únicamente el establecimiento
de un régimen de custodia compartida puede abarcar”.
Y continúa afirmando:
“la oportunidad del cambio sobrevenido, se valora así de acicate
o estímulo a la progresión e implicación más intensa en la
corresponsabilidad de ambos padres para el mejor desarrollo
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 29

y atención sobre los dos menores, y en particular del hijo de


discapacitado.
La conflictividad, por otro lado, de los progenitores en el marco
del régimen de custodia exclusiva de la madre hasta la fecha
considerado, resultaba así en el presente caso otro elemento que
cuestiona la persistencia de dicha situación previa, sirviendo
con mayor razón – y contradictoriamente a lo que ocurre en
los supuestos ordinarios sin hijos con discapacidad-, para
apreciar prudencialmente la necesidad del cambio de régimen
interesado. Ello por cuanto no cabe desconectar además que las
desavenencias de aquellos se relacionan o implican directamente
con el estado y evolución adversa del menor discapacitado.
En el caso, no se advierte mayor duda de la realidad apreciable
y apreciada por todos -cada uno a los efectos que a su instancia
interesaba- del cambio circunstancial de la evolución de la
conducta del menor, con los hechos y episodios diversos
conocidos y vividos por ambos padres, e incremento de las
dificultades de su adecuado control y atención al compás de
su crecimiento y mayor edad, y que evidenciaban los distintos
informes de autos. Realidad por sí misma que dejaba cuestionada
por insuficiente y sobrepasada tanto la medida vigente de la sola
custodia materna hasta la fecha mantenida, como la de su mera
modificación parcial en cuanto a las visitas paternas, dada la
entidad del problema familiar que subyace entre las partes de
autos, y que por su peculiaridad y alcance exige extremar las
posibilidades y deberes respectivos de ambos, sin que pueda por,
ello hacerse recaer sobre ninguna de ellas en particular o con
mayor protagonismo personal como hasta la fecha resultaba,
esencialmente a través de la madre demandada. Habiendo
decaído, respecto de esta última además, la red de apoyo
sustentada en la figura de su padre y abuelo de los menores,
recientemente fallecido, como circunstancia relevante asimismo
a considerar, precipitando la entera crisis de sostenimiento
familiar finalmente avocada a esta alzada”.

Así las cosas, consciente de la excepcionalidad de las cir-


cunstancias del caso y pese al estrecho margen de tiempo por
30 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

la cercana mayoría de edad de los hijos, la Audiencia Provin-


cial, fija un régimen de custodia compartida de alternancia
semanal (de lunes a lunes) con supresión de visitas intersema-
nales y períodos vacaciones por mitad, el cual
“brinda la oportunidad de poner en juego la mejor estrategia
y habilidades de conciliación de las partes en beneficio de los
menores, con suficiencia para superar en todo momento el riesgo
de enfrentamientos que pudieren propiciarse con ocasión de la
sucesión en los periodos de las estancias cortas que la previsión
de custodia compartida semanal comprende, hasta la esperada
normalización de las relaciones familiares mutuas venideras,
apartándola de su actual judicialización”.

En relación a la pensión de alimentos,


“cada progenitor abonará los gastos ordinarios de sostenimiento
de los menores durante el tiempo en que estén bajo su cuidado.
Los gastos extraordinarios se abonarán en la misma proporción
entre partes en que se venían atendiendo hasta la fecha a
conformidad de las mismas.
Todo lo cual se advierte, por su sencillez, de perfecto encaje
en el caso, al menos, como punto de partida y sin perjuicio de
su mejor desarrollo o desenvolvimiento oportuno que fuere
preciso, conforme a las dificultades que su práctica ponga de
manifiesto. Remitiéndonos al efecto, al debido entendimiento
de partes, con preferencia a cualquier intervención judicial”.
En materia sucesoria, destacamos un pronunciamiento muy
reciente del Tribunal Supremo de 15 de marzo de 2018, el
cual versa sobre la impugnación de dos testamentos notariales
otorgados por una mujer con discapacidad intelectual, siendo el
primero de ellos otorgado antes de la sentencia de modificación
de la capacidad pero cuando el Ministerio fiscal ya había
instado el procedimiento judicial, en tanto que el segundo
testamento fue otorgado con posterioridad a la sentencia que
había sometido a la testadora a curatela para la realización
de actos de disposición sin expresa mención a la facultad de
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 31

testar. Familiares no beneficiados testamentariamente solicitan


la declaración de nulidad de ambos testamentos por no tener
capacidad bastante para otorgarlos o, alternativamente, por no
cumplir las correspondientes formalidades.
En apoyo de su pretensión los demandantes sostienen que
la testadora carecía de capacidad bastante para otorgar los
testamentos al no estar en su sano juicio y no poder comprender
el alcance del acto dispositivo que estaba realizando, por
padecer desde siempre de discapacidad intelectual. Respecto
del segundo de los testamentos añaden que, además, tenía
modificada judicialmente su capacidad cuando lo otorgó.
Por su parte, la parte demandada se opone alegando que
la testadora padecía una discapacidad que no le impedía
hacer vida autónoma y desenvolverse en su vida privada
con independencia y que la sentencia que la incapacitó la
consideraba apta para la vida normal y cotidiana, limitando
su capacidad para los actos de disposición inter vivos, no para
otorgar testamento. Respecto del segundo testamento añaden
que fue otorgado cumpliendo las previsiones del art. 665 cc,
dado que el notario requirió la intervención de dos facultativos
de los que la testadora era paciente.
El Juzgado de Primera Instancia estima la demanda y decla-
ra la nulidad de los testamentos otorgados ante notario por no
tener capacidad bastante para otorgarlos. Interpuesto recurso
de apelación, la Audiencia provincial lo estima, revocando la
sentencia de instancia, concluyendo:
“Lo que revela una capacidad de juicio suficiente y una voluntad
clara y coherente expresada en los testamentos, de dejar sus
bienes, tanto en 1993, como cuando estaba ya diagnosticada de
cáncer terminal y preveía su fin, a las personas que le prestaron
su apoyo durante toda su vida y en quienes confiaba, que no
son otras que su prima Isabel y la hija de ésta y es claro su deseo
en todo momento exteriorizado de excluir de su sucesión a su
cuñada con quien no tenía ninguna relación afectiva positiva
y por extensión, a los hijos de ella hoy actores; voluntad clara,
32 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

inequívoca, coherente y decidida que se mantiene en el tiempo


y que obliga a considerar capaz a la causante cuando otorgó el
testamento en el año 2012, en lo que coincidieron el notario y
los facultativos que la examinaron, por lo que dejamos sin efecto
la declaración de nulidad de dicho testamento y también la del
otorgado en el año 1993 que responde a la misma voluntad,
de acuerdo con el propio informe de la demandada que señala
que la capacidad de la finada debido a su enfermedad no
experimentó cambios en el tiempo por lo que ha de deducirse
que era la misma que en el año 2012, en aquella fecha, por todo
lo cual se revoca la apelada y se desestima la demanda”.

Los demandantes interponen recurso de casación plantean-


do la cuestión de si puede otorgar testamento conforme al art.
665 cc una persona que, de acuerdo con lo dispuesto en una
sentencia de modificación de la capacidad de obrar, precisa de
la intervención del curador para realizar actos de disposición.
El Tribunal Supremo lo desestima por los siguientes motivos:
1.ª) El principio de presunción de capacidad, que ya resultaba de
nuestro ordenamiento (art. 10 ce, art. 322 cc, art. 760.1 lec,
ha quedado reforzado por la Convención sobre los Derechos
de las Personas con Discapacidad, hecha en Nueva York el 13
de diciembre de 2006. La Convención proclama como objetivo
general el de promover, proteger y asegurar el goce pleno y
en condiciones de igualdad de todos los derechos humanos y
libertades fundamentales por todas las personas con discapacidad
así como promover el respeto de su dignidad inherente (art. 1).
2.ª) De manera específica para el testamento, el art. 662 cc
establece que pueden testar todos aquellos a quienes la ley no lo
prohíbe «expresamente». De esta manera se consagra legalmente
el principio de que la capacidad para testar es la regla general y la
incapacidad la excepción. En consecuencia, no cabe basar la falta
de capacidad para testar ni por analogía ni por interpretación
extensiva de otra incapacidad.
3.ª) Atendiendo a su diferente naturaleza y caracteres, la
disposición de bienes mortis causa no puede equipararse
a los actos de disposición inter vivos y existe una regulación
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 33

específica para el otorgamiento de testamento por las personas


con discapacidad mental o intelectual.
4.ª) Partiendo de que el testamento es un acto personalísimo
(art. 670 cc), ni el tutor como representante legal puede otorgar
testamento en lugar de la persona con la capacidad modificada
judicialmente ni el curador puede completar su capacidad
cuando sea ella quien otorgue el testamento.
5.ª) Conforme a las reglas sobre la capacidad para otorgar
testamento, debe atenderse al estado en el que el testador se
halle al tiempo de otorgar el testamento (art. 666 cc). Por eso,
el testamento hecho antes de la «enajenación mental» es válido
(art. 664). Por eso también el notario debe asegurarse de que, a
su juicio, tiene el testador la capacidad legal necesaria para testar
(art. 685 cc).
6.ª) Con el fin de garantizar la suficiencia mental del testador,
para el otorgamiento de testamento por la persona con la
capacidad modificada judicialmente el art. 665 cc impone una
garantía especial adicional que consiste en el juicio favorable a la
capacidad para testar que deben emitir dos facultativos.
Como ha declarado reiteradamente esta Sala, ello no impide
que la aseveración notarial sobre el juicio del testador pueda
ser desvirtuada, pero para ello son precisas pruebas cumplidas
y convincentes (entre otras, sentencias de esta sala 250/2004,
de 29 de marzo, 289/2008, de 26 de abril, 685/2009, de 5
de noviembre, 20/2015, de 22 de enero, 435/2015, de 10 de
septiembre, 461/2016, de 7 de julio)”.
Así las cosas, el Tribunal Supremo concluye en el
Fundamento Jurídico 5º de su Sentencia:
“La aplicación al caso de la doctrina expuesta lleva a desestimar
el recurso de casación y confirmar la sentencia de la Audiencia
Provincial. De acuerdo con lo dicho, acierta la sentencia
recurrida cuando afirma que la limitación de la capacidad de
obrar establecida por la sentencia que exige la intervención del
curador para los actos de disposición no puede interpretarse en el
sentido de que prive de la capacidad para otorgar testamento. El
testamento será válido si se otorga conforme a las formalidades
34 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

exigidas por el art. 665 cc y no se desvirtúa el juicio de capacidad


del notario favorable a la capacidad para testar mediante otras
pruebas cumplidas y convincentes”.

Todo un acierto, a mi modo de ver.

1.3. Avances normativos

Desde 2003, año europeo de la discapacidad22,


nuestro legislador, a través de su Ley 41/2003, de 18 de
noviembre, sobre protección patrimonial de las personas con
discapacidad y de modificación del Código Civil, de la Ley
de Enjuiciamiento Civil y de la normativa tributaria con esta
finalidad, ha proporcionado diversas herramientas jurídicas
tuitivas a favor de las personas con deficiencia, como, entre
otras, la autotutela, el patrimonio especialmente protegido, el
poder preventivo o la sustitución fideicomisaria que grava la
legítima estricta en favor de hijo con capacidad judicialmente
modificada (eficaces mecanismos de protección pero aún,
lamentablemente, muy desconocidos)23.
Además, a raíz de la ratificación por España de la cdpd y
el compromiso, en consecuencia, asumido de adecuar nuestro
Ordenamiento jurídico a los mandatos del citado Tratado
internacional, se han ido promulgando, sucesivamente, varias
normas: la Ley 26/2011, de 1 de agosto y el Real Decreto
1276/2011, de 16 de septiembre, de adaptación normativa a la
Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas
con Discapacidad, así como Real Decreto Legislativo 1/2013,

Decisión del Consejo, de 3 de diciembre de 2001, publicado en el


22

doue, Serie L, núm. 335, de 19 de diciembre de 2001.


23
Para un estudio más detenido de tales instrumentos jurídicos, vid.
Inmaculada Vivas Tesón, La dignidad de las personas con discapacidad: logros
y retos jurídicos, Madrid: Difusión jurídica, 2010, 113-177.
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 35

de 29 de noviembre, por el que se aprueba el Texto Refundido


de la Ley General de derechos de las personas con discapacidad
y de su inclusión social y la reciente Ley Orgánica 1/2017, de
13 de diciembre, de modificación de la Ley Orgánica 5/1995,
de 22 de mayo, del Tribunal del Jurado, para garantizar la
participación de las personas con discapacidad sin exclusiones,
según la cual, desde febrero de 2018, las personas con
discapacidad ya pueden formar parte del jurado popular, lo
que es conforme al art. 13 de la Convención.
Digna de reseña es una metedura de pata cometida por
el legislador y que ha sido recientemente enmendada: la Ley
15/2015, de 2 de julio, de la Jurisdicción Voluntaria modificó
la redacción del art. 56 del Código civil en los siguientes
términos “si alguno de los contrayentes estuviere afectado por
deficiencias mentales, intelectuales o sensoriales, se exigirá por
el secretario judicial, notario, encargado del Registro Civil
o funcionario que tramite el acta o expediente, dictamen
médico sobre su aptitud para prestar el consentimiento”,
lo que suponía una discriminación contra las personas con
discapacidad al contraer matrimonio24. Tras la Ley 4/2017, de
28 de junio, de modificación de la Ley 15/2015, de 2 de julio,
de la Jurisdicción Voluntaria, el citado art. 56 del Código
Civil pasa a tener el siguiente tenor literal:
“el Letrado de la Administración de Justicia, Notario, Encargado del
Registro Civil o funcionario que tramite el acta o expediente, cuando
sea necesario, podrá recabar de las Administraciones o entidades
de iniciativa social de promoción y protección de los derechos de

24
Según la Resolución-Circular de la Dirección General de los Regis-
tros y del Notariado de 23 de diciembre de 2016 sobre la interpretación
del art. 56 del Código civil relativo a la forma de celebración del matri-
monio, el requisito de dictamen médico debía interpretarse de manera
restrictiva y en casos en que la discapacidad afectase de manera evidente
e impeditiva en la prestación del consentimiento, aunque se prestasen los
apoyos necesarios.
36 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

las personas con discapacidad, la provisión de apoyos humanos,


técnicos y materiales que faciliten la emisión, interpretación y
recepción del consentimiento del o los contrayentes. Solo en el
caso excepcional de que alguno de los contrayentes presentare una
condición de salud que, de modo evidente, categórico y sustancial,
pueda impedirle prestar el consentimiento matrimonial pese a las
medidas de apoyo, se recabará dictamen médico sobre su aptitud
para prestar el consentimiento”.
Pese a las mejoras y avances en materia de derechos
humanos y discapacidad, aún quedan algunas piezas del puzle
sin encajar e importantes retos normativos por cumplir.
A mi entender, en Derecho español existe una clara disfunción
o desajuste pues la imprescindible exigencia normativa de
un reconocimiento formal de discapacidad con un grado
mínimo del 33% no casa adecuadamente con la definición de
discapacidad contenida en el art. 1, pfo. 2º de la Convención
(“las personas con discapacidad incluyen a aquellas que tengan
deficiencias físicas, mentales, intelectuales o sensoriales a largo
plazo que, al interactuar con diversas barreras, puedan impedir
su participación plena y efectiva en la sociedad, en igualdad de
condiciones con las demás”, de modo que la discapacidad no
se presenta por deficiencias concretas de las personas, sino por
diversas barreras que pueden ser sociales, físicas, actitudinales o
jurídicas, lo que permite establecer como objetivo la eliminación
de las barreras existentes de toda índole) y, por tanto, creemos
que no se ajusta al modelo social de la misma como sí, en
cambio, el art. 2.a) del Real Decreto Legislativo 1/2013, de 29
de noviembre, por el que se aprueba el Texto Refundido de la
Ley General de derechos de las personas con discapacidad25 y de

25
Art. 2: “A efectos de esta ley se entiende por: a) Discapacidad: es una
situación que resulta de la interacción entre las personas con deficiencias
previsiblemente permanentes y cualquier tipo de barreras que limiten o
impidan su participación plena y efectiva en la sociedad, en igualdad de
condiciones con las demás”.
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 37

su inclusión social, así como el art. 25 del Código penal en su


redacción de 201526. Para mayor confusión, dicho certificado
administrativo sigue exigiéndose para algunos actos jurídicos
pero, en cambio, no para otros, como, por ejemplo, en la
Ley de Propiedad Horizontal, que en su art. 10.1.b) reconoce
automáticamente a los mayores de 70 años su condición de
personas con discapacidad. A la vista de ello, me pregunto: hoy
día, en el Ordenamiento español, ¿quién es, desde el punto de
vista jurídico, una persona con discapacidad?
Por otra parte, han debido transcurrir diez años para afrontar
la reforma de la legislación civil y procesal en materia de
discapacidad. En septiembre de 2018 el Consejo de Ministros
aprobó el Anteproyecto de Ley por la que se acometerá dicha
reforma, la cual, con mejoras técnicas en su texto, confío en
que muy pronto pueda convertirse en una realidad normativa.
Haciendo un brevísimo comentario acerca de dicha iniciativa
legislativa, considero que está en sintonía con la Convención de
Nueva York y su enfoque de derechos humanos al pretenderse,
a toda costa, indagar la voluntad, deseos y preferencias de la
persona con discapacidad27, quedando relegado su interés28.

26
Art. 25: “A los efectos de este Código se considera incapaz a toda
persona, haya sido o no declarada su incapacitación, que padezca una en-
fermedad de carácter persistente que le impida gobernar su persona o bie-
nes por sí misma”.
27
Para Antonio Pau Pedrón, “De la incapacitación al apoyo”, 8,
“este es un punto de gran relevancia, en torno al cual gira el cambio
profundo que se lleva a cabo en materia de discapacidad: el «interés de la
persona con discapacidad» hay que situarlo detrás de «la voluntad, deseos
y preferencias de la persona». El «interés de la persona con discapacidad»
no aparece nombrado en ningún momento a lo largo de la Propuesta, a
diferencia del concepto de «interés del menor», que aparece nueve veces
citado en el Código civil. Lo mismo sucede en la Convención de 2006:
en ningún momento se habla del «interés de la persona con discapaci-
dad», mientras que el «interés del niño» aparece mencionado tres veces”.
28
Como señala Antonio Pau Pedrón, “De la incapacitación al apoyo”,
9, “cuando esas «voluntad, deseos y preferencias» de la persona con disca-
38 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

Valoro muy positivamente la creación de un sistema de


apoyos voluntarios y judiciales para el ejercicio de la capacidad
jurídica, si bien echo en falta un instrumento similar a la
asistencia catalana29.
Repárese en que el Anteproyecto se olvida por completo del
patrimonio especialmente protegido, el cual sigue rigiéndose
por la Ley 41/2003, norma que exige a tu titular el certificado
administrativo de discapacidad de, como mínimo, el 33%.
En materia sucesoria, el Anteproyecto está en línea con los
últimos pronunciamientos del Tribunal Supremo de 15 de
marzo y 15 de junio de 2018, en cuanto a ampliar, el máximo
posible, la capacidad de testar. Es todo un acierto la nueva
redacción del art. 697 c.c. así como la preocupación por
ofrecer medios técnicos o humanos para que la persona exprese
su última voluntad, en relación a los cuales considero que el
notario se convierte en un apoyo importantísimo (tal vez, con
ánimo de suprimir, en lo posible, barreras cognitivas, debiera
exigírsele al fedatario público que fuera intérprete de lengua

pacidad no están plenamente formadas, es necesario contribuir a esa for-


mación. Hay que procurar que la persona con discapacidad tenga, efecti-
vamente, una determinada «voluntad, deseos y preferencias». Por eso dice
el artículo 248 de la Propuesta que «las personas que presten apoyo […]
procurarán que la persona con discapacidad pueda desarrollar su propio
proceso de toma de decisiones, informándola, ayudándola en su compren-
sión y razonamiento y facilitando que pueda expresar sus preferencias»”.
Conforme a ello, el Presidente de la Sección Primera, de Derecho civil, de
la Comisión general de Codificación, indica que “el «interés de la persona
con discapacidad» queda muy relegado en relación con la voluntad de la
persona –y situado incluso detrás la voluntad presunta–“, por ello que, a
su juicio no acierten algunos ordenamientos en poner en primer plano
el interés, como el Código civil catalán (art. 221-1), el abgb austriaco (§
275, ap. 1) o el Código civil francés (art. 415). Y concluye: “Por tanto,
en la contraposición de los criterios del «interés» y la «voluntad», hay que
hay que dar preferencia a esta última. Sólo cuando la voluntad no puede
expresarse ni reconstruirse, entrará el juego el criterio del interés”.
29
Arts. 226-1 a 226-7 del Código civil de Cataluña.
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 39

de signos). Por el contrario, considero un craso error suprimir


la sustitución ejemplar, así como la regulación propuesta de
la sustitución fideicomisaria sobre la legítima estricta, la cual
pasa a restringirse a los hijos y ya no a los descendientes, pero
deja sin resolver numerosas dudas existentes en la actualidad
(la sustitución fideicomisaria, ¿ha de recaer sobre todo el
tercio de legítima estricta o puede limitarse sólo a una parte
de la misma?; ¿qué sucede si hay más de un hijo en situación
que le impida desenvolverse de forma autónoma; ¿es posible la
sustitución fideicomisaria de residuo?)30, además de generar
otras nuevas (si la sustitución fideicomisaria se realizará “en
beneficio de un hijo del testador que se encuentre en una
situación física o psíquica que le impida desenvolverse de
forma autónoma”, ¿de qué hijo se trata si deja de exigirse que
tenga la capacidad modificada como ahora?, ¿se le exigirá el
certificado administrativo de discapacidad o estar sujeto a
curatela y, en tal caso, a cuál, a la representativa?; por otra
parte, ¿a qué momento ha de atenderse para considerar
que la persona puede ser beneficiaria, es decir, no puede
desenvolverse de forma autónoma?).
Para finalizar, entre los importantes pasos normativos
dignos de reseña destaco uno muy reciente y anhelado: la Ley
Orgánica 2/2018, de 5 de diciembre, para la modificación de
la Ley Orgánica 5/1985, de 19 de junio, del Régimen Electoral
General para garantizar el derecho de sufragio de todas las
personas con discapacidad31, mediante la cual y atendiéndose
a una reivindicación social32, se devuelve a unas cien mil

30
Para un estudio en profundidad, vid. Pedro Botello Hermosa, La
sustitución fideicomisaria especial Introducida por la Ley 41/2003, Valencia:
Tirant lo Blanch, 2017.
31
boe núm. 294, de 6 de diciembre.
32
Con anterioridad a dicha reforma legal, interesante resulta el Auto
del Tribunal Constitucional (Sala 2ª, Sección 3ª) de 28 de noviembre de
40 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

personas un derecho del que habían sido incomprensiblemente


por sentencia. Tras esta modificación legal, a ninguna persona
con discapacidad se le podrá retirar en el futuro el derecho de
sufragio, y quienes estuvieran en esta situación a su entrada
en vigor lo recuperarán de modo automático, por mandato
directo de la Ley (cuestión ésta, sin duda, controvertida en
cuanto a la imprescindible separación de poderes).

2. Retos y desafíos en materia de discapacidad

La entrada de la Convención en nuestro Ordenamiento


jurídico ha supuesto, sin duda, avances importantísimos,
destacadamente, la visibilización de las personas con
discapacidad (con independencia del tipo de deficiencia, de
la edad, del género y de la modificación o no de la capacidad)
poniendo el acento exclusivamente en la persona, pero es
igualmente cierto que aún faltan muchos retos que afrontar.
Siguen vulnerándose, a diario, los derechos inherentes a
la persona, lo que es intolerable tras una década de vigencia
del Tratado de Nueva York en nuestro país. Las personas con
discapacidad viven, cotidianamente, con numerosos escollos
o barreras que sortear: del entorno o físicas, actitudinales (por
desinformación, indiferencia, prejuicios...) e institucionales
(las discriminaciones refrendadas legalmente así como la falta
de cumplimiento efectivo de las disposiciones normativas). En
cierto modo, seguimos la costumbre espartana de arrojar a las
personas con discapacidad por el Monte Taigeto.

2016, el cual confirma el criterio del Tribunal Supremo de que es válido


privar del derecho al voto cuando en el procedimiento de incapacitación
se ha realizado una prueba sobre la materia y en la sentencia se justifica
dicha privación, si bien dicho pronunciamiento tiene un voto particular
en el cual se pone de manifiesto el incumplimiento de la Convención de
Nueva York de 2006.
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 41

La educación inclusiva es, sin lugar a dudas, una


asignatura pendiente. Al respecto, nos congratulamos por dos
pronunciamientos judiciales que, esperamos, no sean los únicos.
De un lado, la Sentencia del Tribunal Superior de Justicia de
Andalucía (Sala de lo contencioso-administrativo de Málaga,
Sección 3ª) de 10 de julio de 2017 es un buen precedente para
derribar barreras para la educación de jóvenes con discapacidad
en la Formación Profesional ordinaria por razón de edad.
De otro, la Sentencia del Tribunal Supremo (Sala de lo
Contencioso-Administrativo, Sección 4ª) de 14 de diciembre
de 2017, en la que resolviendo un caso relativo a un alumno
que presentaba una situación de discapacidad, en concreto,
trastorno de espectro autista (tea), y cuyos padres reclamaban la
escolarización en un centro educativo ordinario, impugnando
la resolución de la Administración educativa que había
decidido su escolarización en un centro de educación especial,
establece los principios y contenidos esenciales del derecho a
la educación inclusiva [vid., a propósito de ello, la Sentencia
del Tribunal Constitucional de 27 de enero (Sala 1ª) de 2014]
y las exigencias que deben cumplir las Administraciones
Educativas, debiéndose interpretar la normativa sobre la
materia conforme el art. 24 cdpd. Al respecto, ha de tenerse
en cuenta que, como señala el Informe “Estado mundial de la
Infancia 2013: niños y niñas con discapacidad” de unicef33,
“la inclusión va más allá de la integración. Por ejemplo, en
la esfera educativa, la integración significaría, sencillamente,
admitir a los niños y niñas con discapacidad en las escuelas
‘generales’. La inclusión, sin embargo, sólo es posible cuando
el diseño y la administración de las escuelas permiten que todos
los niños y las niñas participen juntos de una educación de
calidad y de las oportunidades de recreación. Esto supondría

33
Puede consultarse en <https://www.unicef.org/spanish/sowc2013/
files/spanish-sowc13-Ex_Summary_Lo-res_web.pdf>.
42 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

proporcionar a los estudiantes con discapacidad facilidades


como acceso al sistema braille y al lenguaje de señas, y adaptar
los planes de estudios”34.
Para acabar con las prácticas de segregación escolar de
estudiantes con discapacidad en centros de educación especial
ante el duro informe que el Comité onu que vela por los
derechos de las personas con discapacidad emitió contra el
Estado español por vulnerar el art. 24 de la Convención, el
Gobierno acaba de anunciar que va a incorporar medidas
de educación inclusiva del alumnado con discapacidad en el
proyecto de reforma de la Ley Orgánica de Educación35.
Otro desafío es lograr que todos y cada uno de los entornos,
productos, servicios y procedimientos reúnan condiciones de
accesibilidad, presupuesto necesario para el goce efectivo y pleno
de los derechos de los que, como el resto de la ciudadanía, son
titulares las personas con discapacidad. Cuando los derechos son
inalcanzables es evidente que existe una directa vulneración de los
mismos y, en última instancia, están siendo negados.
Por tanto, por accesibilidad no ha de entenderse sólo
la física o arquitectónica, sino la universal, en la que se
comprende, además, la sensorial y la cognitiva. En relación
a esta última, concerniente a la supresión de barreras de
compresión y comunicación, creemos necesario que en
todas las normas en las cuales se regule el consentimiento
informado se contemple que tanto la información previa

Vid. Ignacio Campoy Cervera, “El derecho a una educación inclu-


34

siva de calidad”, en Guilarte Martín-Calero, dir. / García Medina,


coord., Estudios y Comentarios jurisprudenciales sobre discapacidad, Cizur
Menor (Navarra): Aranzadi, 2016, 523-533.
35
Noticia publicada el 12 de enero de 2019 en el Diario El País (ht-
tps://elpais.com/sociedad/2018/12/27/actualidad/1545917225_924744.
html) y en Europa press (https://www.europapress.es/epsocial/igualdad/
noticia-son-medidas-alumnado-discapacidad-podrian-incluirse-reforma-
-educativa-20190112125006.html).
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 43

como el proceso de prestación del consentimiento sean no


sólo accesibles sino también comprensibles. Una buena
fórmula legal que considero extrapolable a otras materias
(por ejemplo, cesión de datos de carácter personal, en cuya
Ley Orgánica 3/2018, de 5 de diciembre, de Protección de
Datos Personales y garantía de los derechos digitales, sin
embargo, brilla por su ausencia) nos parece el art. 9.5º de
la Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de
la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en
materia de información y documentación clínica, en su
redacción dada por la de la Ley 26/2011, de 1 de agosto, de
adaptación normativa a la Convención Internacional sobre
los Derechos de las Personas con discapacidad:
“…Si el paciente es una persona con discapacidad, se le ofrecerán
las medidas de apoyo pertinentes, incluida la información
en formatos adecuados, siguiendo las reglas marcadas por el
principio del diseño para todos de manera que resulten accesibles
y comprensibles a las personas con discapacidad, para favorecer
que pueda prestar por sí su consentimiento”36.
Como puede comprobarse, en dicho tenor literal se
contiene la obligación de prestar medidas de apoyo necesarias,

36
Nos resulta curioso que la Ley 26/2011, de 1 de agosto, de adap-
tación normativa a la Convención Internacional sobre los Derechos de
las Personas con discapacidad modificara también el art. 10 de la Ley
14/1986, de 25 de abril, General de Sanidad aunque no con idéntica
redacción (“Todos tienen los siguientes derechos con respecto a las dis-
tintas Administraciones públicas sanitarias: 2. ... La información deberá
efectuarse en formatos adecuados, siguiendo las reglas marcadas por el
principio de diseño para todos, de manera que resulten accesibles y com-
prensibles a las personas con discapacidad”), pasando por alto el art. 4.1,
pfo. 3º de la Ley 14/2007, de 3 de julio, de Investigación biomédica, el
cual sigue manteniendo su redacción originaria por la que establece que
la información que ha de proporcionarse a las personas con discapacidad
con carácter previo al consentimiento se les prestará “en condiciones y
formatos accesibles apropiados a sus necesidades”.
44 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

haciéndose hincapié no sólo en la accesibilidad física sino


también en la cognitiva.
Al niño, niña y adolescente con diversidad funcional ha de
prestársele mucha mayor atención. Debe respetarse su derecho
a ser oído y escuchado37 tanto en el ámbito familiar como
en cualquier procedimiento que le afecte ex art. 9 de la Ley
Orgánica 1/1996, precepto que ha recibido nueva redacción
por parte de la reciente Ley Orgánica 8/201538; su derecho al

37
En relación con el derecho a ser oído y escuchado, vid. art. 12 de
la Convención onu de los derechos del niño, art. 7.3 de la Convención
onu de los derechos de las personas con discapacidad, art. 24 de la Carta
europea de los derechos fundamentales y, entre otros, arts. 92.6º, 154, 156
pfo. 2º, 158, 159, 177 y 178 del Código civil.
38
La nueva redacción tiene el siguiente tenor literal: “1. El menor
tiene derecho a ser oído y escuchado sin discriminación alguna por edad,
discapacidad o cualquier otra circunstancia, tanto en el ámbito familiar
como en cualquier procedimiento administrativo, judicial o de mediación
en que esté afectado y que conduzca a una decisión que incida en su esfera
personal, familiar o social, teniéndose debidamente en cuenta sus opinio-
nes, en función de su edad y madurez. Para ello, el menor deberá recibir
la información que le permita el ejercicio de este derecho en un lenguaje
comprensible, en formatos accesibles y adaptados a sus circunstancias.
En los procedimientos judiciales o administrativos, las comparecen-
cias o audiencias del menor tendrán carácter preferente, y se realizarán de
forma adecuada a su situación y desarrollo evolutivo, con la asistencia, si
fuera necesario, de profesionales cualificados o expertos, cuidando preser-
var su intimidad y utilizando un lenguaje que sea comprensible para él, en
formatos accesibles y adaptados a sus circunstancias informándole tanto
de lo que se le pregunta como de las consecuencias de su opinión, con
pleno respeto a todas las garantías del procedimiento.
2. Se garantizará que el menor, cuando tenga suficiente madurez, pue-
da ejercitar este derecho por sí mismo o a través de la persona que designe
para que le represente. La madurez habrá de valorarse por personal es-
pecializado, teniendo en cuenta tanto el desarrollo evolutivo del menor
como su capacidad para comprender y evaluar el asunto concreto a tratar
en cada caso. Se considera, en todo caso, que tiene suficiente madurez
cuando tenga doce años cumplidos.
Para garantizar que el menor pueda ejercitar este derecho por sí mis-
mo será asistido, en su caso, por intérpretes. El menor podrá expresar su
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 45

ocio; su derecho a una vida sexual y reproductiva, reconocido


en el art. 23 de la Convención de Nueva York pese a lo cual los
niños y jóvenes con diversidad funcional suelen ser excluidos
de los programas de salud sexual y de la reproducción y sobre
el vih/Sida y otras enfermedades venéreas al partirse de la
premisa de que no son sexualmente activos. Ni siquiera se les
proporciona información básica acerca de los cambios que
experimenta su cuerpo o de cómo están expuestos a correr
un mayor riesgo de sufrir abusos; también tienen, como los
demás, el derecho a la identidad de género39.
Un importante sector del colectivo de las personas con
discapacidad es el de las mujeres, las cuales presentan una
problemática específica repleta de restricciones y limitaciones.
En este sentido, en relación al problema de la violencia de
género, se ha constatado que la confluencia de factores
como el género y la discapacidad convierte a las mujeres con
diversidad funcional en un grupo con grave riesgo de sufrir
algún tipo de maltrato. En cuanto al derecho a la salud, la
mujer con discapacidad tiene numerosas barreras para acceder
a la planificación familiar y a la asistencia a la reproducción.
El Dictamen exploratorio titulado “La situación de

opinión verbalmente o a través de formas no verbales de comunicación.


No obstante, cuando ello no sea posible o no convenga al interés del
menor se podrá conocer la opinión del menor por medio de sus represen-
tantes legales, siempre que no tengan intereses contrapuestos a los suyos,
o a través de otras personas que, por su profesión o relación de especial
confianza con él, puedan transmitirla objetivamente.
3. Siempre que en vía administrativa o judicial se deniegue la compa-
recencia o audiencia de los menores directamente o por medio de persona
que le represente, la resolución será motivada en el interés superior del
menor y comunicada al Ministerio Fiscal, al menor y, en su caso, a su
representante, indicando explícitamente los recursos existentes contra tal
decisión. En las resoluciones sobre el fondo habrá de hacerse constar, en su
caso, el resultado de la audiencia al menor, así como su valoración”.
39
Para un estudio más detenido, Inmaculada Vivas Tesón, “Niños y
niñas con capacidades diferentes”, 14-29.
46 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

las mujeres con discapacidad (soc/579)”, a solicitud del


Parlamento europeo y aprobado en julio de 2018 por el
pleno del Comité Económico y Social Europeo40, comienza
afirmando que las mujeres y las niñas con discapacidad, el 16%
de la población femenina total de Europa, siguen sufriendo una
discriminación múltiple e interseccional basada en su género y
su discapacidad y, más adelante, recomienda que los Estados
miembros de la Unión europea deben combatir la violencia
contra las mujeres y las niñas con discapacidad adoptando,
entre otras, medidas, la tipificación como delito de la violencia
sexual y otros tipos de violencia contra las mujeres y las niñas
con discapacidad, incluido el fin de la esterilización forzada.
Al respecto, según datos del Consejo General del Poder Judicial
(2010-2016), cada año se autorizan judicialmente en España
un centenar de esterilizaciones41 a niñas, adolescentes y mujeres
adultas con diversidad funcional intelectual o psicosocial42 y
capacidad modificada43, consideradas socialmente “no aptas”

40
Puede consultarse en <https://webapi.eesc.europa.eu/documentsa-
nonymous/eesc-2018-01639-00-00-ac-tra-es.docx>.
41
Interesante resulta la sts (Sala 2ª), de 1 de febrero de 2002, que
absolvió de un delito de lesiones a los facultativos que esterilizaron a una
joven que padecía Síndrome de Down, sin haber obtenido la preceptiva
autorización judicial.
42
La cifra anual es estimada, puesto que en esta materia no existe
transparencia estadística.
Según cermi, en España se resolvieron judicialmente 140 casos de es-
terilización forzosa en 2016, sin que sea posible conocer la resolución final
de cada procedimiento y sin que se pueda saber la incidencia en mujeres y
hombres. A este respecto, ha de señalarse que la esterilización forzosa tiene
un indiscutible sesgo de género, pues es muy inferior en el caso de los hom-
bres con diversidad funcional, por ello que nos centremos en las mujeres.
43
Durante muchos años en España se ha acudido al procedimiento de
incapacitación judicial (hoy, de modificación de la capacidad) con el único
objetivo de esterilizar una niña, adolescente o mujer adulta con diversidad
funcional para eliminar el riesgo de embarazo.
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 47

para ser madres, bajo el pretexto claramente paternalista de su


bienestar y salvaguarda de sus intereses, en definitiva, para que,
supuestamente, vivan una vida mejor44.
La iniciativa, a veces, parte de los padres, tutores o
guardadores de la mujer obedeciendo a razones de comodidad
o egoísmo (en algunos casos, justificadas por el abandono a
su suerte por parte de la sociedad en general), pero, en otras
ocasiones las esterilizaciones forzosas por razón de discapacidad
se llevan a cabo porque desde el entorno socio-sanitario (por
ejemplo, para acceder a un determinado centro o institución)
se aconseja a la familia adoptar dicha medida.
La esterilización coactiva suele llevarse a cabo en la primera
menstruación de la adolescente para detener el ciclo y, así,
facilitar el cuidado personal, cuando alcanza la mayoría de
edad y empieza a relacionarse con otras personas, o bien tras
el nacimiento de su primer hijo o hija.
Aunque la Convención onu de los derechos de las
personas con discapacidad asegura que todas las personas con
discapacidad son sujetos activos y titulares de derechos y, por
tanto, tienen el derecho a participar en todos los ámbitos de la
sociedad en igualdad de trato y condiciones con sus iguales sin
discapacidad, a las niñas y mujeres con diversidad funcional
se deniegan sus derechos humanos a través de diferentes
prácticas45, como cuando se las excluye sistemáticamente de

44
Ha de tenerse en cuenta que existe también un número indetermi-
nado de mujeres con discapacidad que son esterilizadas sin sentencia judi-
cial, puesto que, con carácter previo, han prestado, por escrito (conforme
a lo dispuesto por el art. 8.2 de la Ley 41/2002, de 14 de noviembre, bá-
sica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones
en materia de información y documentación clínica) su consentimiento
por el cual se supone que entienden y aceptan el motivo de la intervención
quirúrgica. Es evidente que si el consentimiento no es informado, dicha
práctica “voluntaria” resulta, igualmente, inadmisible.
45
Según el art. 6 de la Convención onu de los derechos de las personas
con discapacidad, “1. Los Estados Partes reconocen que las mujeres y niñas
48 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

los sistemas de atención a la salud sexual y reproductiva por


considerarlas asexuales, cuando se les restringe la elección de
métodos anticonceptivos voluntarios, la supresión menstrual,
una deficiente atención durante el embarazo y en el parto,
abortos coercitivos y la imposibilidad de ser madre.
El art. 39, letra b) del Convenio del Consejo de Europa sobre
prevención y lucha contra la violencia contra las mujeres y la
violencia doméstica de 2011 (más conocido como el Convenio
de Estambul) tipifica como delito cuando se cometa de modo
intencionado “el hecho de practicar una intervención quirúrgica
que tenga por objeto o por resultado poner fin a la capacidad de
una mujer de reproducirse de modo natural sin su consentimiento
previo e informado o sin su entendimiento del procedimiento”.
Además, otro instrumento internacional clave, la
Convención de Nueva York, si bien no hace expresa alusión
a la esterilización forzosa, sí impone el pleno respeto de los
derechos de las mujeres con diversidad funcional, entre ellos,
el derecho al igual reconocimiento de la persona ante la ley y
a la capacidad jurídica (art. 12), a la integridad personal (art.
17), los derechos reproductivos (art. 23) y el derecho a gozar
del más alto nivel posible de salud (art. 25), lo que determina,
sin duda alguna, un nuevo horizonte para la maternidad de la
mujer diversamente capaz.
Conforme a dicho enfoque de derechos humanos,
la esterilización forzosa ha sido uno de los puntos de
incumplimiento de la Convención de Nueva York que el
Comité sobre los derechos de las personas con discapacidad

con discapacidad están sujetas a múltiples formas de discriminación y, a ese


respecto, adoptarán medidas para asegurar que puedan disfrutar plenamente
y en igualdad de condiciones de todos los derechos humanos y libertades
fundamentales. 2. Los Estados Partes tomarán todas las medidas pertinentes
para asegurar el pleno desarrollo, adelanto y potenciación de la mujer, con
el propósito de garantizarle el ejercicio y goce de los derechos humanos y las
libertades fundamentales establecidos en la presente Convención”.
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 49

señaló al Estado español en sus observaciones finales al


informe presentado por España, instándose a que suprimiera
la esterilización sin el consentimiento, pleno y otorgado con
conocimiento de causa del paciente46.
Pese a ello, en el Ordenamiento jurídico español sigue
contemplándose la esterilización forzosa, en concreto, en
nuestro Código penal, en el que debería introducirse la
absoluta prohibición de su práctica. Lo curioso es que dicho
Cuerpo legal se ha reformado recientemente, en concreto, en
el año 201547, pero, en mi opinión, al legislador le ha faltado
la suficiente valentía para acabar, de manera definitiva, con
esta flagrante mutilación de derechos que contraviene, sin
lugar a dudas, la Convención.
El nuevo art. 156 cp, en relación al delito de lesiones,
dispone que
“no obstante lo dispuesto en el artículo anterior, el consentimiento
válida, libre, consciente y expresamente emitido exime de
responsabilidad penal en los supuestos de trasplante de órganos
efectuado con arreglo a lo dispuesto en la ley, esterilizaciones
y cirugía transexual realizadas por facultativo, salvo que el
consentimiento se haya obtenido viciadamente, o mediante
precio o recompensa, o el otorgante sea menor de edad o carezca
absolutamente de aptitud para prestarlo, en cuyo caso no será
válido el prestado por éstos ni por sus representantes legales.

46
Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad: Ob-
servaciones finales sobre el informe inicial de España, 19 de octubre de
2011 (crpd/c/esp/co/1), párrafos 37 y 38, en las que el Comité instaba
a España a que suprimiera la administración de tratamientos médicos, en
particular la esterilización, sin el consentimiento, pleno y otorgado con
conocimiento de causa, del paciente, y a que velara por que la legislación
nacional respete especialmente los derechos reconocidos a las mujeres en
los arts. 23 y 25 de la Convención onu.
47
Ley Orgánica 1/2015, de 30 de marzo, por la que se modifica la Ley
Orgánica 10/1995, de 23 de noviembre, del Código Penal.
50 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

No será punible –continúa el legislador penal- la esterilización


acordada por órgano judicial en el caso de personas que de
forma permanente no puedan prestar en modo alguno el
consentimiento al que se refiere el párrafo anterior, siempre que
se trate de supuestos excepcionales en los que se produzca grave
conflicto de bienes jurídicos protegidos, a fin de salvaguardar el
mayor interés del afectado, todo ello con arreglo a lo establecido
en la legislación civil”48.
Como puede comprobarse, la esterilización involuntaria
no es punible cuando se trate de una persona que no pueda
prestar, “de forma permanente”, su consentimiento y “se

48
En su redacción anterior, el art. 156.2º del cp de 1995 disponía:
“sin embargo, no será punible la esterilización de persona incapacitada que
adolezca de grave deficiencia psíquica cuando aquélla, tomándose como
criterio rector el de mayor interés del incapaz, haya sido autorizada por el
juez, bien en el mismo procedimiento de incapacitación, bien en un expe-
diente de jurisdicción voluntaria, tramitado con posterioridad al mismo, a
petición del representante legal del incapaz, oído el dictamen de dos espe-
cialistas, el Ministerio Fiscal y previa exploración del incapaz”. Por tanto,
pese a la ubicación de la norma, la esterilización compete al Juez civil, no al
penal. Al respecto, la Disposición Adicional 1ª de la Ley Orgánica 1/2015,
de 30 de marzo, por la que se modifica la Ley Orgánica 10/1995, de 23 de
noviembre, del Código Penal establece: “La esterilización a que se refiere el
párrafo segundo del artículo 156 del Código Penal deberá ser autorizada
por un juez en el procedimiento de modificación de la capacidad o en un
procedimiento contradictorio posterior, a instancias del representante legal
de la persona sobre cuya esterilización se resuelve, oído el dictamen de dos
especialistas y el Ministerio Fiscal, y previo examen por el juez de la persona
afectada que carezca de capacidad para prestar su consentimiento”.
Contra su antecedente legal, el art. 428 del cp de 1989, se planteó
cuestión de constitucionalidad alegándose contradicción de la norma legal
con el art. 15 de la Constitución Española. El Tribunal Constitucional, en
su Sentencia 215/1994, de 14 de Julio (boe de 18 de agosto), resolvió el
recurso planteado declarando que la esterilización de las personas con dis-
capacidad intelectual prevista en el cp no era contraria a la Constitución.
Para conocer la evolución de la esterilización forzosa en el cp, vid. Juan
Luis Beltrán Aguirre, “La esterilización de discapacitadas psíquicas en
el proyecto de reforma del Código Penal”, Revista Aranzadi Doctrinal 9
(2014) (bib 2013\2709).
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 51

produzca un grave conflicto de bienes jurídicos protegidos”, lo


que, además de generar numerosas dudas interpretativas para
los órganos judiciales por la indeterminación o vaguedad de
tales expresiones (¿qué ha de entenderse por “permanente”?,
¿cuándo hay “grave conflicto de bienes jurídicos protegidos”?,
¿se aprecia dicho conflicto, en idénticas circunstancias
de imposibilidad de prestar consentimiento, cuando lo
protagoniza una mujer con discapacidad psíquica que cuando
se trata de un hombre, quien no padecerá las consecuencias
de un embarazo, una gestación ni un parto?¿en qué casos el
Juez ha de entender justificada y no punible la esterilización
coactiva a efectos de autorizarla?)49, a mi entender, no va
de acuerdo ni con los principios ni con el espíritu ni con el
cambio de paradigma que implica el Tratado de Nueva York.
Podría decirse que son tres los argumentos que suelen
esgrimirse para justificar la esterilización forzosa de la mujer
(con frecuencia, muy joven) diversamente capaz.
El primero, la incapacidad de las mujeres con discapacidad
para ser madres. Es cierto que la maternidad es una elección
responsable y ello obliga tanto al padre como a la madre a
tener en cuenta las consecuencias de aquélla (arts. 39.3 de la
Constitución española y art. 154 del Código civil), pero partir de
que las mujeres con discapacidad no son capaces de ser madres y
las mujeres sin ella sí no es un más que un prejuicio, una negativa
percepción social fundada en ideas puramente subjetivas. ¿Acaso
todas las mujeres sin discapacidad son, sin excepción, madres
exitosas? Además, ¿acudimos a la esterilización forzosa invasiva de
una mujer con discapacidad psíquica porque no somos capaces

49
En esta línea Juan Luis Beltrán Aguirre, “La esterilización de
discapacitadas psíquicas”, considera que “la expresión grave conflicto de
bienes jurídicos protegidos encierra un concepto jurídico indeterminado,
que ha de determinarse en cada caso. Creo que hubiera sido positivo que
la ley objetivara de una forma más precisa las razones justificativas de la
esterilización, pero no ha sido el caso”.
52 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

de proporcionar educación sexual y reproductiva, de trabajar con


ella la afectividad, de explicarle cuáles son las responsabilidades
que derivan de la maternidad?
Se llama, además, la atención sobre el costo social que
el Estado (esto es, todos los ciudadanos), en cumplimiento
de lo dispuesto por el art. 39 de la Constitución Española,
ha de afrontar para proporcionar atención (casa, educación,
servicios sanitarios, etc.) al hijo, bien porque no pueda ser
debidamente cuidado por su madre con diversidad funcional,
bien porque aquél nazca con “taras” o deficiencias genéticas.
Sorprende cómo, de este modo, el respeto a los derechos
humanos se vincula directamente a los potenciales gastos que
su garantía podría comportar, argumento que se aduce sólo
cuando interesa, porque nada importa el alto coste que las
familias, en soledad, deben afrontar para atender a sus hijos
con discapacidad a causa de la deficiente accesibilidad de
servicios públicos y la falta de recursos sociales y, en definitiva,
de comprensión solidaridad de la sociedad en general. Por otra
parte, cuando sus hijas crezcan, ¿los padres han de pensar en
el alto coste social que podrían provocar en caso de ser madres
incapaces de ejercer las funciones de maternidad y, por ello,
deben incapacitarlas judicialmente con el fin de esterilizarlas
sin su consentimiento previo e informado? Y, por último, el
art. 2 del Convenio de Oviedo50 establece que “el interés y el
bienestar del ser humano deberán prevalecer sobre el interés
exclusivo de la sociedad o la ciencia”. La esterilización, ¿no es
la vía más fácil y económica y, si se nos permite, cobarde? Esta
práctica degradante de la mujer no puede jamás encontrar
justificación en el ahorro de gastos a la familia y a la sociedad.
Se aduce también que la esterilización obligatoria se hace

50
Convenio para la protección de los Derechos Humanos y la dig-
nidad del ser humano con respecto a las aplicaciones de la Biología y la
Medicina. Convenio relativo a los Derechos Humanos y la Biomedicina
(Aprobado por el Comité de Ministros el 19 de noviembre de 1996).
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 53

por el bien de la mujer con discapacidad, a quien, mediante


aquélla, se evitan los problemas derivados de la menstruación
así como eventuales abusos, lo que encontraría fundamento
legal en el art. 6.1 del citado Convenio de Oviedo, a cuyo tenor,
“...sólo podrá efectuarse una intervención a una persona que
no tenga capacidad para expresar su consentimiento cuando
redunde en su beneficio directo”. Sin embargo, es justo al revés,
la esterilización forzosa puede aumentar la vulnerabilidad de
la niña, adolescente o mujer joven con discapacidad ante
abusos sexuales, además de que evitándole el riesgo de un
embarazo no se evita que sufra un abuso, violación o le sean
transmitidas enfermedades venéreas. Es más, el embarazo, a
veces, permite, precisamente, detectar un abuso sexual. Por otra
parte, la esterilización obligatoria puede provocar una aparición
temprana de la menopausia, osteoporosis y enfermedades
cardiovasculares si se lleva a cabo antes de que la niña haya
tenido la menstruación o durante la pubertad51.

Como comprobará el lector, los argumentos que suelen


invocarse para avalar la esterilización forzosa son infundados,
respondiendo, claramente, a estereotipos sociales que
estigmatizan a las mujeres con diversidad funcional. La esfera
sexual es privada y personal y la esterilización de una mujer
con discapacidad es una decisión drástica e irreversible. La
privación no consentida del derecho a la procreación y de la
autonomía reproductiva es, sin duda, un acto de violencia52

51
Informe “Poner fin a la esterilización forzosa de las mujeres y niñas
con discapacidad”, de la Fundación cermi Mujeres y el Foro Europeo de la
Discapacidad (edf ), aprobado en la Asamblea General del edf celebrada en
Madrid (España) en mayo de 2017, pág. 7 (https://www.cermi.es/sites/de-
fault/files/docs/novedades/informe%20esterilizaci%C3%93N_0.pdf ).
52
un Committee on the Elimination of Discrimination Against Wom-
en (cedaw Committee) (1992), Recomendación general nº 19, art. 16 (y
art. 5), para. 22, <http://archive.ipu.org/splz-e/cuenca10/cedaw_19.pdf>.
54 • I n m ac u l a da V ivas - T e s ó n

irreparable que atenta contra la dignidad de la niña, adolescente


o mujer adulta con discapacidad.
En este sentido, la Observación General nº 1 del Comité
de los Derechos de las Personas con Discapacidad53 afirma que
“las mujeres con discapacidad presentan tasas elevadas de
esterilización forzada, y con frecuencia se ven privadas del
control de su salud reproductiva y de la adopción de decisiones
al respecto, al darse por sentado que no son capaces de
otorgar su consentimiento para las relaciones sexuales. Ciertas
jurisdicciones tienen también tasas más altas de imposición de
sustitutos en la adopción de decisiones para las mujeres que para
los hombres. Por ello, es especialmente importante reafirmar que
la capacidad jurídica de las mujeres con discapacidad debe ser
reconocida en igualdad de condiciones con las demás personas”.
A la vista de ello, el Dictamen exploratorio “La situación de las
mujeres con discapacidad (soc/579)” antes citado recomienda que
la ue y los Estados miembros adopten todas las medidas necesarias
para garantizar que todas las mujeres con discapacidad puedan
ejercer su capacidad jurídica tomando sus propias decisiones con
respecto al tratamiento médico o terapéutico, con apoyo cuando
así lo deseen, entre otras cosas tomando sus propias decisiones
sobre la conservación de la fertilidad y la autonomía reproductiva,
ejerciendo su derecho a elegir el número de hijos y el intervalo
entre ellos y las cuestiones relacionadas con su sexualidad, y
ejerciendo su derecho a entablar relaciones. Esto debe suceder
sin coacción, discriminación ni violencia. La esterilización y el
aborto forzados son una forma de violencia contra las mujeres y
debe tipificarse como delito, con arreglo a lo previsto en el art. 39
del Convenio del Consejo de Europa sobre prevención y lucha
contra la violencia contra las mujeres y la violencia doméstica.

53
Observación General nº 1 (2014) del Comité sobre los Derechos de
las Personas con Discapacidad, 11º periodo de sesiones, del 31 de marzo al
11 de abril de 2014 (https://documents-dds-ny.un.org/doc/undoc/gen/
g14/031/23/pdf/G1403123.pdf?OpenElement).
LA APLICACIÓN DE LA CONVENCIÓN DE NUEVA YORK EN ESPAÑA ... • 55

De este modo, el supuesto legal de esterilización forzosa


que el legislador de 2015 ha decidido inexplicablemente
mantener en el art. 156, pfo. 2º del Código penal no es, ni
mucho menos, una medida de protección y bienestar de la
niña, adolescente o mujer adulta con discapacidad, sino una
privación de derechos humanos que, además, incrementa
su vulnerabilidad. La práctica de la esterilización forzosa
se enmarca, sin lugar a dudas, en un modelo paternalista
y no de derechos humanos, único posible y en el cual el
consentimiento libre, previo e informado de la persona
titular de los mismos es esencial.
Así las cosas, ahora que la Sección Penal de la Comisión General
de Codificación está afrontando la reforma de los delitos contra la
libertad y la indemnidad sexuales podría ser el momento idóneo
para que el Código penal criminalizara las esterilizaciones no
consentidas por razón de discapacidad y erradicara, definitivamente,
esta forma de violencia contra la mujer.

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logros y retos jurídicos, Madrid: Difusión jurídica, 2010, 113-177.
— Más allá de la capacidad de entender y querer. Un análisis de la figura
italiana de la administración de apoyo y una propuesta de reforma
del sistema tuitivo español, Olivenza (Badajoz), Futuex, 2012
(https://dialnet.unirioja.es/servlet/libro?codigo=494711).
— “Una propuesta de reforma del sistema tuitivo español: proteger sin
incapacitar”, Revista de Derecho Privado 96 (2012) 3-40.
— “La equiparación del hijo mayor de edad con discapacidad psíquica al
menor in potestate a efectos de alimentos matrimoniales”, Revista
Crítica de Derecho Inmobiliario 90/745 (2014) 2510-2541.
—“Retos actuales en la protección jurídica de la discapacidad”, Re-
vista Pensar 20/3 (2015) 823-846 (http://periodicos.unifor.br/
rpen/article/view/4110).
— “Protección de la discapacidad en el seno de la ruptura parental”, La
Ley Derecho de Familia 10 (abril-junio 2016) 1-17.
— “Niños y niñas con capacidades diferentes: el derecho de la persona
a tomar sus propias decisiones”, La Ley Derecho de Familia 13
(2017) 14-29.
— “La obligación de alimentos a favor de los hijos mayores de edad:
ponderación de discapacidad de alimentante y alimentista.
Comentario a la sts de 13 diciembre 2017”, Cuadernos Cívitas
de Jurisprudencia Civil 107 (2018) 123-140.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO
DE MAIORES:
ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS

MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA


Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

§ 1.º Introdução

I. Alterações legislativas

A Lei 49/2018, de 14/8, institui o regime jurídico do


acompanhamento de maiores, em substituição dos institutos
da interdição e da inabilitação. Para além de diversas alterações
parcelares em inúmeros diplomas legais, os artigos 2.º e 3.º L
49/2018 introduzem importantes alterações, respectivamente,
no Código Civil e no Código de Processo Civil1.

DOI: 10.47907/livro/2022/Maior_Acompanhado/Cap03
1
Os artigos citados sem indicação da sua origem pertencem ao Código
de Processo Civil vigente.
58 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

As alterações realizadas no Código de Processo Civil — que


são as únicas que agora importa considerar — abrangem os
seguintes aspectos:
– Regime do processo especial relativo ao acompanhamen-
to de maiores (artigos 891.º a 904.º), em substituição do
processo de interdição e inabilitação;
– Regime da capacidade judiciária, de molde a adaptá-lo
ao novo instituto do acompanhamento de maiores (arti-
gos 16.º, n.º 1, 19.º, 20.º, n.º 2 e 4, e 27.º, n.º 1);
– Alterações avulsas em vários preceitos do Código de
Processo Civil; em concreto, foi acrescentada a al. d) ao
artigo 164.º (limitações à publicidade do processo) e fo-
ram adaptados os artigos 453.º, n.º 2 (de quem pode ser
exigido o depoimento de parte), 495.º, n.º 1 (capacida-
de para depor como testemunha), 948.º, al. a) (presta-
ção espontânea de contas do tutor ou acompanhante),
949.º, n.º 1 e 2 (prestação forçada de contas pelo tutor
ou acompanhante), 950.º, n.º 1 e 2 (prestação de con-
tas, no caso de emancipação, maioridade, cessação do
acompanhamento ou de falecimento), 1001.º, n.º 1 e 2
(suprimento de consentimento no caso de incapacida-
de, ausência ou acompanhamento), 1014.º, n.º 1, 2 e
4 (autorização judicial do representante legal de menor,
do acompanhante de maior ou do Ministério Público), e
1016.º, n.º 1, al. b), e 2 (alienação ou oneração de bens
do ausente e confirmação ou ratificação dos actos prati-
cados pelo representante de menor ou de maior acom-
panhado).
A isto acresce o que se encontra estabelecido no artigo
26.º L 49/2018 sobre a aplicação no tempo do novo regime
de acompanhamento de maiores quanto a vários aspectos
processuais.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 59

II. Objecto da exposição

A exposição subsequente incide sobre os seguintes aspectos:


– O processo especial de acompanhamento de maiores;
– A capacidade judiciária do maior acompanhado;
– A aplicação no tempo da Lei 49/2018 em matéria pro-
cessual.

§ 2.º Regime do processo de acompanhamento

I. Aspectos gerais

O processo de acompanhamento de maiores é o único meio


para obter quer o decretamento da correspondente medida,
já que o acompanhamento só pode ser decidido pelo tribunal
(artigo 139.º, n.º 1, cc), quer a cessação ou a modificação de
uma medida de acompanhamento já decretada, dado que essa
modificação ou cessação também só podem ser realizadas através
de uma decisão judicial (artigo 149.º, n.º 1, cc), quer ainda a
revisão das medidas de acompanhamento, porque também esta
revisão só pode ser efectuada pelo tribunal (artigo 153.º cc).

II. Princípio da efectividade

1. O processo especial de acompanhamento de maiores


orienta-se, muito marcadamente e a vários níveis, por um
princípio de efectividade. Isso é patente quer quanto à
efectividade da protecção do beneficiário da medida de
acompanhamento, quer quanto à efectividade da medida de
acompanhamento que venha a ser decretada pelo tribunal.
2. Uma das preocupações do processo especial de
acompanhamento de maiores é proteger o beneficiário da
medida de acompanhamento durante a própria pendência
do processo e depois do decretamento dessa medida. Essa
60 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

protecção é conseguida através:


– Da publicidade do início, do decurso e da decisão fi-
nal do processo (artigo 153.º, n.º 1, cc; artigo 893.º,
n.º 1), procurando-se que terceiros conheçam a pos-
sibilidade de vir a ser decretada a medida de acompa-
nhamento ou que a medida foi decretada pelo tribu-
nal; considerando a protecção da vida privada, esta
publicidade só deve ocorrer quando seja estritamente
necessária para defender os interesses do beneficiário
e de terceiros (artigo 153.º, n.º 1, cc);
– Das comunicações e ordens dirigidas pelo tribunal a
instituições de crédito, a intermediários financeiros, a
conservatórias do registo civil, predial ou comercial,
a administrações de sociedades ou a quaisquer outras
entidades (artigo 894.º), certamente procurando pro-
teger a pessoa ou os bens do maior antes ou depois do
decretamento da medida de acompanhamento;
– Das medidas de acompanhamento provisórias e ur-
gentes relativas à pessoa ou aos bens do beneficiário
(artigo 139.º, n.º 2, cc); assim, por exemplo, o tribu-
nal pode submeter o maior a tratamento médico ou a
uma reabilitação para cura do consumo de álcool ou
de estupefacientes e pode impor a administração do
património ou das finanças do beneficiário por um
terceiro;
– Da revisão periódica das medidas de acompanha-
mento; segundo o estabelecido no artigo 155.º cc, as
medidas de acompanhamento devem ser revistas de
acordo com a periodicidade que constar da senten-
ça e, no mínimo, de cinco em cinco anos; a revisão
periódica é justificada pela necessidade de verificar
não só se a medida de acompanhamento se mantém
adequada, mas também se o acompanhante desempe-
nhou correctamente as suas funções; pode ainda ima-
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 61

ginar-se que a medida de acompanhamento tenha


sido decretada para um tempo indeterminado (por
exemplo, para o tempo correspondente à convales-
cença de um acidente), pelo que importa verificar se
a medida deixou de ser justificada.
3. O processo especial de acompanhamento de maiores
também procura que a medida que venha a ser decretada
seja efectivamente útil, isto é, não se torne inútil em função
de situações irreversíveis criadas antes do seu decretamento.
Assim, de molde a acautelar o efeito útil da medida de
acompanhamento, o tribunal pode decretar, a requerimento
de uma parte ou mesmo oficiosamente, medidas cautelares
(artigo 891.º, n.º 2).
Dado que a lei distingue entre medidas provisórias e
urgentes (artigo 139.º, n.º 2, cc) e medidas cautelares (artigo
891.º, n.º 2), a distinção deve ser feita, no presente contexto,
nos seguintes moldes:
– Uma medida cautelar é uma medida que antecipa uma
medida de acompanhamento; por exemplo: o tribunal
pode sujeitar, desde já, a celebração de certa categoria de
negócios à autorização de uma outra pessoa (que pode
vir a ser o futuro acompanhante);
– Uma medida provisória e urgente é uma medida que o
tribunal impõe para protecção da pessoa ou do patrimó-
nio do beneficiário; por exemplo: o tribunal pode impor
o congelamento das contas bancárias do beneficiário ou
que alguém, em representação deste beneficiário, trate
da obtenção, junto dos serviços da segurança social, de
uma pensão ou procure regularizar a situação sucessória
do beneficiário junto de outros herdeiros.
62 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

III. Princípio da gestão processual

Os aspectos procedimentais do processo de acompanhamento


de maiores estão regulados nos artigos 892.º (requerimento inicial),
895.º (citação e representação do beneficiário), 896.º (resposta do
requerido), 897.º, n.º 1 (instrução do processo), 897.º, n.º 2, e
898.º (audição pessoal do beneficiário), 899.º (relatório pericial),
900.º (decisão do tribunal), 901.º (recursos) e 904.º, n.º 3 (termo
e modificação das medidas de acompanhamento). Esta esparsa
regulamentação justifica-se por dois factores:
– Aos processos especiais — como é o processo de acom-
panhamento de maiores — aplicam-se as disposições ge-
rais e comuns, bem como o que se acha estabelecido para
o processo comum (artigo 549.º, n.º 1);
– O processo civil português consagra o dever de gestão
processual (artigo 6.º, n.º 1), atribuindo ao juiz o poder
de adequação formal (artigo 547.º); sobre isto, importa
dizer o seguinte:
– O regime do processo de acompanhamento de maio-
res atribui, especificamente, poderes de gestão pro-
cessual ao juiz do processo; assim, este juiz pode de-
cidir sobre a publicidade a dar ao início e ao decurso
do processo e à decisão final (artigo 153.º, n.º 1, cc;
artigos 893.º, n.º 1, e 902.º, n.º 3), as comunicações
e ordens a dirigir a instituições e entidades (artigos
894.º e 902.º, n.º 3), o meio de proceder à citação
do beneficiário (artigo 895.º, n.º 1), a nomeação de
um ou vários peritos (artigos 897.º, n.º 1, e 899.º,
n.º 1) e ainda sobre o exame do beneficiário numa
clínica da especialidade (artigo 899.º, n.º 2);
– Fora deste casuísmo, o tribunal pode, nos termos ge-
rais (artigos 6.º, n.º 1, e 547.º), adoptar, depois de
ouvir as partes, qualquer medida de gestão proces-
sual que considere conveniente para a boa apreciação
da causa.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 63

IV. Princípio da imediação

1. Um dos princípios orientadores do processo especial de


acompanhamento de maiores é o da imediação na avaliação da
situação física ou psíquica do beneficiário, não só para se poder
conhecer a real situação deste beneficiário, mas também para se
poder ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas
a essa situação (artigo 898.º, n.º 1). Para este efeito, há sempre
uma audição pessoal e directa do beneficiário, mesmo que, para
isso, o juiz tenha de se deslocar onde se encontre esse beneficiário
(artigo 897.º, n.º 2; cf. artigo 139.º, n.º 1, cc).
2. A audição pessoal e directa do beneficiário tem as
seguintes particularidades:
– As questões são colocadas pelo juiz, com a assistência
do requerente, dos representantes do beneficiário e dos
peritos (artigo 898.º, n.º 2); visa-se que a imparcialidade
do juiz seja transmitida à objectividade das perguntas;
– O juiz pode determinar que parte da audição decorra
apenas na presença do beneficiário (artigo 898.º, n.º 3);
procura-se, certamente, que o beneficiário se sinta livre
de quaisquer constrangimentos, nomeadamente porque
o beneficiário pode querer falar de aspectos da sua vida
privada ou do seu relacionamento, familiar ou social,
com terceiros.
Nesta última situação, há que observar o seguinte:
– Se, além do beneficiário, também a outra parte estiver
representada por advogado, estando excluído que o
advogado desta parte possa participar da audição, tem
igualmente de estar excluída, com base num princípio
de igualdade (artigo 4.º), a presença do advogado do be-
neficiário; onde não podem estar os advogados de ambas
as partes, não pode estar o advogado de nenhuma delas;
– Se apenas o beneficiário estiver representado por advo-
gado, cabe ao juiz indagar se este pretende ser ouvido
também na ausência do seu advogado.
64 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

V. Características gerais

1. a) Ao processo especial de acompanhamento de maiores


aplicam-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos
processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes
do juiz, ao critério de decisão e à alteração das decisões com
fundamento em circunstâncias supervenientes (artigo 891.º,
n.º 1). Esta regulamentação contém uma remissão para o
regime dos processos de jurisdição voluntária nos seguintes
aspectos:
– Poderes do juiz: o tribunal pode investigar livremente os
factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher
as informações convenientes; além disso, só são admiti-
das as provas que o juiz considere necessárias para a boa
decisão da causa (artigo 986.º, n.º 2);
– Critério de decisão: nas providências a tomar, o tribu-
nal deve adoptar, em cada caso, a solução que julgue
mais conveniente e oportuna (artigo 987.º); isto signi-
fica que, nos processos de acompanhamento de maio-
res, o critério de decretamento da respectiva medida é a
discricionariedade;
– Alteração das decisões: as resoluções podem ser alteradas,
sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento
em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alte-
ração; a superveniência pode ser objectiva ou resultar de
ignorância da parte ou de outro motivo ponderoso que
tenha conduzido à omissão da alegação (artigo 988.º,
n.º 1).
Assim, das características gerais dos processos de jurisdição
voluntária só não é aplicável aquela que determina que, nas
resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou
oportunidade, não é admissível recurso para o stj (artigo 988.º,
n.º 2). Em suma: o processo especial de acompanhamento de
maiores é, em termos substanciais, um processo de jurisdição
voluntária.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 65

b) Formalmente, todavia, o processo de acompanhamento


de maiores não pode ser considerado um processo de jurisdição
voluntária, não só porque não se encontra inserido no Título
XV do Livro V do Código de Processo Civil, mas também
porque não há nenhuma disposição legal que o qualifique como
tal. Este aspecto, embora formal, é muito relevante, porque
implica, por exemplo, que a desnecessidade da constituição de
advogado que consta do artigo 986.º, n.º 4, não é aplicável aos
processos de acompanhamento de maiores. Dito pela positiva:
a obrigatoriedade do patrocínio judiciário determina-se nos
termos gerais estabelecidos no artigo 40.º, n.º 1.
2. Além de algumas características dos processos de
jurisdição voluntária, o processo especial de acompanhamento
de maiores caracteriza-se ainda pela circunstância de o juiz
não estar vinculado à medida de acompanhamento requerida
pelo requerente que instaurou o processo (artigo 145.º, n.º
2, cc). Esta solução justifica-se porque, além do mais, só
durante o processo é possível determinar, com rigor, a medida
de acompanhamento adequada para o beneficiário. Recorde-
se que a medida de acompanhamento se deve restringir ao
estritamente necessário (artigo 145.º, n.º 1, cc), pelo que o
juiz não deve decretar nem uma medida que seja excessiva
atendendo às necessidades do beneficiário, nem uma medida
que seja insuficiente considerando essas mesmas necessidades.
Não estando o juiz vinculado à medida de acompanhamento
requerida pelo requerente (artigo 145.º, n.º 2, cc), não há
nenhum obstáculo a que esse requerente altere essa medida
fora dos condicionalismos estabelecidos no artigo 265.º, n.º
2, para a alteração do pedido. A justificação é esta: a medida
de acompanhamento, porque tem de ser adequada à situação
real e efectiva do beneficiário, deve poder ser adaptada à
situação desse beneficiário apurada no próprio processo de
acompanhamento.
3. O processo de acompanhamento de maiores tem
carácter urgente (artigo 891.º, n.º 1). Isto significa que,
66 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

nesse processo, os prazos não se suspendem durante as férias


judiciais (artigo 138.º, n.º 1), que, mesmo durante a suspensão
da instância, é possível praticar actos urgentes destinados a
evitar danos irreparáveis (artigo 275.º, n.º 1) — como é o caso
do decretamento de uma medida provisória e urgente (artigo
139.º, n.º 2, cc) — e ainda que o prazo para a interposição
dos recursos é de 15 dias (artigos 638.º, n.º 1, e 677.º).

VI. Legitimidade ad causam

1. Segundo o disposto no artigo 141.º, n.º 1, cc, o


acompanhamento pode ser requerido:
– Pelo próprio beneficiário; a esta situação há que equi-
parar aquela em que o beneficiário tenha representante
legal (nomeadamente, progenitores ou tutor) ou man-
datário com poderes de representação (cf. artigo 156.º,
n.º 1, cc) e em que o acompanhamento seja requerido
por esse representante ou mandatário do beneficiário em
nome deste;
– Pelo cônjuge ou unido de facto do beneficiário ou por
qualquer parente sucessível do beneficiário, desde que
esteja autorizado por este; estando em causa interesses
pessoais do beneficiário e importando salvaguardar a li-
berdade pessoal desse beneficiário, compreende-se que
seja este, sempre que esteja em condições de o fazer, a ter
de autorizar a instauração do processo;
– Pelo Ministério Público, no exercício da sua função de
representação dos incapazes (cf. artigo 3.º, n.º 1, al. a),
emp).
2. Se a acção for proposta pelo beneficiário e se se concluir
que este se encontra numa situação de incapacidade acidental,
cabe ao juiz a designação de um curador provisório que vai
representar em juízo esse beneficiário (artigo 17.º, n.º 1). A
urgência que é exigida por este preceito está demonstrada
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 67

pela própria situação de incapacidade em que se encontra


o requerente e, portanto, pela necessidade de decretar uma
medida de acompanhamento.
3. a) A hipótese em que o acompanhamento é requerido
pelo cônjuge ou unido de facto ou por um parente sucessível
do beneficiário merece alguma atenção. Antes do mais, importa
ter presente que a autorização concedida pelo beneficiário ao
cônjuge, ao unido de facto ou ao parente sucessível nada tem a
ver com uma autorização para o representar na acção. O cônjuge,
o unido de facto e o parente sucessível não vão actuar como
representantes, mas antes como partes, isto é, como requerentes
do processo de acompanhamento de maiores. A situação não
é, assim, de representação, mas de substituição processual
voluntária: o beneficiário é a parte substituída e o cônjuge, o
unido de facto ou o parente sucessível a parte substituta.
Sendo junta ao processo a autorização do beneficiário, cabe
ao tribunal a importante tarefa de verificar se esse beneficiário
está em condições de a conceder ao seu cônjuge ou unido de
facto ou ao seu parente. Trata-se de um importante controlo
que o tribunal deve realizar de forma tão minuciosa quanto
possível, dado que não se pode partir do princípio nem de que
o autorizante está em condições de conceder a autorização,
nem de que esse autorizante, estando em condições de o
fazer, quis efectivamente conceder a autorização. Os poderes
inquisitórios que são atribuídos ao tribunal em matéria de
facto e de prova pela remissão constante do artigo 891.º, n.º
1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária podem
ser aqui muito relevantes.
b) A autorização do cônjuge, do unido de facto ou do
parente sucessível pode ser suprida pelo próprio tribunal ao
qual é requerida a medida de acompanhamento (artigo 141.º,
n.º 2, cc; artigo 892.º, n.º 2). O suprimento da autorização
deve ser concedido quando o beneficiário não a possa dar livre
e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe
um fundamento atendível para o conceder (artigo 141.º, n.º
68 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

2, cc). Portanto, se o beneficiário não estiver em condições


de dar a autorização ao seu cônjuge, unido de facto ou
parente sucessível, qualquer destes pode requerer a medida de
acompanhamento e requerer, ao mesmo tempo, o suprimento
da autorização do beneficiário.
Isto significa que cabe sempre ao tribunal controlar se se
justifica suprir a falta de autorização do beneficiário. Repete-
se aqui o que acima se disse sobre o controlo da concessão
da autorização: também o suprimento da falta de autorização
do eventual beneficiário deve ser cuidadosamente ponderado
pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio
nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário
não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer
em condições de conceder a autorização.
c) De acordo com o parâmetro acima referido de que a
autorização é concedida pelo beneficiário a uma parte (e não
a um representante de uma parte), a falta de autorização
implica a ilegitimidade do cônjuge, unido de facto ou parente
sucessível, dado que lhe falta qualquer título para requerer a
medida de acompanhamento. É pensável, no entanto, que
esta falta de legitimidade seja sanável através da aplicação
analógica do disposto no artigo 29.º para a falta de autorização
concedida ao representante de incapaz ou de pessoa colectiva.
O suprimento da falta de autorização do beneficiário
assegura a legitimidade do cônjuge, do unido de facto ou do
parente sucessível para estar em juízo e requerer a medida de
acompanhamento. Se o suprimento não for concedido, esse
cônjuge, unido de facto ou parente é igualmente parte ilegítima.
4. Quando a acção for proposta pelo beneficiário ou por
alguém em sua substituição, coloca-se o problema de saber
quem deve ser o requerido nessa acção. A resposta só pode
ser uma: o Ministério Público, como órgão a quem incumbe
representar os incapazes (artigo 3.º, n.º 1, al. a), emp), deve ser
chamado a intervir no processo como parte principal (artigo
5.º, n.º 1, al. c), emp).
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 69

5. Em qualquer processo de acompanhamento de maiores


em que não intervenha como parte principal, o Ministério
Público tem intervenção acessória (artigo 5.º, n.º 4, al. a),
emp).

VII. Articulados e citação

1. O processo especial de acompanhamento de maiores


comporta dois articulados:
– O requerimento inicial (artigo 892.º);
– A resposta do citado (artigo 896.º).
Depois da entrega do requerimento inicial e antes da
resposta do requerido, há que proceder à citação deste
requerido (artigo 895.º).
2. No requerimento inicial deve, especificamente, o
requerente:
– Alegar os factos que justificam a sua legitimidade e que
fundamentam a medida de acompanhamento (artigo
892.º, n.º 1, al. a)); atendendo à remissão feita no artigo
891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição
voluntária, o tribunal não está vinculado aos factos ale-
gados pela parte e pode investigar quaisquer factos que
considere relevantes (artigo 986.º, n.º 2 1.ª parte);
– Requerer a medida ou medidas de acompanhamento
que considere adequadas (artigo 892.º, n.º 1, al. b)); a
medida de acompanhamento pode ser atípica ou ser al-
guma ou algumas das que estão enumeradas no artigo
145.º, n.º 2, cc; em qualquer caso, o tribunal não está
vinculado à medida que seja pedida pelo requerente (ar-
tigo 145.º, n.º 2, cc) e o requerente pode vir a modificar
essa medida;
– Indicar quem deve ser o acompanhante e, se for caso dis-
so, a composição do conselho de família (artigo 892.º,
70 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

n.º 1, al. c)); o acompanhante pode ser escolhido pelo


acompanhado ou pelo seu representante legal (artigo
143.º, n.º 1, cc) e, na falta de escolha, é a pessoa que
melhor salvaguarde o interesse do beneficiário (artigo
143.º, n.º 2, cc); o requerente pode solicitar que o tri-
bunal dispense a constituição do conselho de família (ar-
tigo 145.º, n.º 4, cc);
– Indicar a publicidade a dar à decisão final (artigo 892.º,
n.º 1, al. d));
– Juntar elementos que indiciem a situação clínica do be-
neficiário (artigo 892.º, n.º 1, al. e)); a prova não tem
de ser concludente, mas tem, pelo menos, de indiciar o
estado clínico do beneficiário.
3. Se o beneficiário for o requerido (cf. artigo 141.º, n.º
1, cc) — isto é, se a acção for proposta contra o benefi-
ciário —, incumbe ao tribunal determinar o meio pelo qual
se vai realizar a citação desse beneficiário (artigo 895.º, n.º 1).
Se o beneficiário não estiver em condições de receber a citação
e se o tribunal não tiver escolhido outra pessoa para a receber,
aplica-se — estabelece o artigo 895.º, n.º 2 — o disposto no
artigo 21.º.
Sobre este aspecto importa considerar, no entanto, o
seguinte:
– O beneficiário não é citado nem quando a acção for pro-
posta pelo próprio beneficiário (artigo 141.º, n.º 1, cc),
nem quando essa acção for instaurada pelo cônjuge ou
unido de facto ou por um parente sucessível em substi-
tuição desse beneficiário (artigo 141.º, n.º 1, cc);
– Sendo assim, o beneficiário só pode ser requerido quan-
do a acção seja proposta pelo Ministério Público;
– Logo, a remissão que se encontra no artigo 895.º, n.º
2, tem de ser entendida como feita apenas para o artigo
21.º, n.º 2, ou seja, para a situação em que, porque o
autor é o Ministério Público, a parte demandada — in
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 71

casu, o beneficiário — tem de ser representada por um


defensor oficioso.
4. A resposta do beneficiário — bem como de qualquer
outro requerido — deve ser apresentada no prazo de 10 dias
(artigo 896.º, n.º 1). Este prazo é prorrogável nos termos gerais
(artigo 569.º, n.º 4 a 6, aplicável ex vi do artigo 549.º, n.º 1).
Se não for apresentada nenhuma resposta, importa
evitar, atendendo aos interesses envolvidos no processo de
acompanhamento de maiores, a revelia do requerido, pelo
que se aplica, como se determina no artigo 896.º, n.º 2, o
estabelecido no artigo 21.º quanto à sub-representação do
incapaz, o que implica que:
– O Ministério Público é citado para, querendo, apresen-
tar a resposta (artigo 21.º, n.º 1);
– Se o Ministério Público for o requerente, a resposta in-
cumbe a um defensor oficioso (artigo 21.º, n.º 2).
Do disposto no artigo 21.º, n.º 3, resulta que esta sub-
representação não ocorre se o beneficiário tiver mandatário
judicial constituído. Note-se a este propósito que, a não ser
que esteja instituído um sistema de representação (pelos
progenitores ou pelo tutor) do eventual beneficiário ou que
este se encontre numa situação de incapacidade acidental, esse
beneficiário tem capacidade para atribuir o mandato judicial
ao advogado.

VIII. Instrução do processo

1. Dada a remissão constante do artigo 891.º, n.º 1,


para o regime dos processos de jurisdição voluntária, o juiz
pode coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as
informações convenientes (artigo 986.º, n.º 2 1.ª parte).
Segundo o disposto no artigo 897.º, n.º 1, o juiz pode ordenar as
diligências probatórias que considere convenientes, podendo,
designadamente, nomear um ou vários peritos. Estes poderes
72 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

inquisitórios sobre matéria de facto e sobre provas valem tanto


para o processo de acompanhamento de maiores, como para
qualquer dos seus incidentes.
2. a) Os meios de prova admissíveis são todos os meios
de prova típicos (segundo o que se encontra regulado no
Código Civil nos artigos 352.º (prova por confissão), 362.º
(prova documental), 388.º (prova pericial), 390.º (prova
por inspecção) e 392.º (prova testemunhal)). Em particular,
atendendo ao que cabe ao tribunal apreciar no processo de
acompanhamento de maiores, compreende-se que a prova
pericial tenha uma especial relevância, como, aliás, decorre do
disposto no artigo 139.º, n.º 1, cc e nos artigos 897.º, n.º 1,
e 899.º, n.º 1.
O juiz pode mesmo autorizar uma prova pericial especial:
o exame em clínica especializada, com internamento nunca
superior a um mês e sob responsabilidade do director respectivo
(artigo 899.º, n.º 2).
b) O regime do processo de acompanhamento de maiores
comporta igualmente uma prova atípica: a audição pessoal e
directa do beneficiário (artigos 897.º, n.º 1, e 898.º). Trata-se
de um meio de prova que é obrigatório em qualquer processo
de acompanhamento de maiores (artigo 139.º, n.º 1, cc; artigo
897.º, n.º 2), dado que, por razões facilmente compreensíveis,
se pretende assegurar que o juiz tem conhecimento efectivo
da real situação em que se encontra o beneficiário. Isto não
impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo
que essa audição pessoal e directa não é possível (porque, por
exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo
uso dos seus poderes de gestão processual (artigo 6.º, n.º 1) e
de adequação formal (artigo 547.º), não deva dispensar, por
manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 73

IX. Decisão do processo

1. A medida de acompanhamento de maior só é decretada


se estiverem preenchidas duas condições:
– Uma condição positiva (orientada por um princípio de
necessidade2): tem de haver justificação para decretar o
acompanhamento do maior e, designadamente, uma das
medidas enumeradas no artigo 145.º, n.º 2, cc3; isto sig-
nifica que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida
de acompanhamento;
– Uma condição negativa (norteada por um princípio de
subsidiariedade4): dado que a medida de acompanha-
mento é subsidiária perante os deveres gerais de coope-
ração e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar)
(artigo 140.º, n.º 2, cc), o tribunal não deve decretar
aquela medida se estes deveres forem suficientes para
acautelar as necessidades do maior.
2. Na sua decisão, o juiz deve designar o acompanhante e
definir a medida ou medidas de acompanhamento adequadas
(artigo 900.º, n.º 1):
– Segundo o estabelecido no artigo 143.º, n.º 2, cc, o
acompanhante é escolhido pelo acompanhado ou pelo
seu representante legal (como pode suceder, por exem-
plo, no caso do acompanhamento que é requerido quan-
do o beneficiário ainda é menor: artigo 142.º cc), mas
isso não impede que o juiz possa designar um acompa-
nhante substituto ou mesmo vários acompanhantes (ar-
tigo 900.º, n.º 2);

2
Cf. Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados (2018), 50 s.
3
Sobre os requisitos da medida de acompanhamento, cf. Miranda Bar-
bosa, Maiores Acompanhados, 52 ss.
4
Cf. Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, 50 e 58.
74 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

– De acordo com o estatuído no artigo 145.º, n.º 2, cc, o


juiz não está vinculado à medida de acompanhamento
requerida pelo requerente; a medida deve limitar-se ao
necessário (cf. artigo 145.º, n.º 1, cc) e estender-se ao
adequado; quer isto dizer que o regime de acompanha-
mento de maiores se orienta por um princípio de apro-
veitamento de toda a capacidade de exercício e de gozo
do acompanhado (que, aliás, se mantém, em princípio,
para os direitos pessoais e os negócios da vida corrente
do acompanhado: cf. artigo 147.º, n.º 1, cc)5.
Além disso, na decisão o juiz deve:
– Decidir a publicidade a dar à decisão (artigo 893.º, n.º
1) e a necessidade de proceder a comunicações a institui-
ções financeiras e a outras entidades (artigo 902.º, n.º 3);
talvez se possa acrescentar que, atendendo à protecção da
vida privada, a publicidade da decisão se deve verificar
apenas nos casos estritamente necessários;
– Determinar a dispensa ou não dispensa da constituição
do conselho de família (artigo 145.º, n.º 4, cc) e, se
não houver dispensa, proceder à sua constituição (artigo
900.º, n.º 2);
– Sempre que possível, fixar a data a partir da qual a medi-
da de acompanhamento decretada se tornou convenien-
te (artigo 900.º, n.º 1);
– Informar sobre a existência de testamento vital ou de
procuração para cuidados de saúde e acautelar o respeito
pela vontade antecipadamente expressa pelo acompa-
nhado quanto a estas matérias (artigo 900.º, n.º 3);
– Definir a periodicidade das visitas do acompanhante ao
acompanhado (artigo 146.º, n.º 2, cc);

5
Cf. Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, 65 ss.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 75

– Autorizar, se for o caso, o internamento do maior (artigo


148.º, n.º 1, cc);
– Determinar, se igualmente for o caso, o domicílio legal
do acompanhado (artigo 32.º, n.º 1, cc);
– Definir a periodicidade da revisão das medidas de acom-
panhamento (artigo 155.º cc); só em função do caso
concreto é possível determinar a periodicidade que é
adequada.

X. Recursos admissíveis

1. Da decisão proferida em 1.ª instância sobre a medida de


acompanhamento cabe apelação (artigo 901.º). Segundo este
mesmo preceito, têm legitimidade para interpor esse recurso:
– O requerente (vencido) da medida de acompanhamento;
– O acompanhado (vencido) e, como assistente, o acom-
panhante; isto significa que o acompanhante assume
uma posição de parte acessória no recurso, auxiliando o
acompanhado recorrente.
Os fundamentos mais comuns da apelação interposta de
uma decisão de mérito são os seguintes:
– Ao contrário do que entendeu o tribunal de 1.ª instância,
a medida de acompanhamento devia ter sido decretada,
hipótese em que o recurso é interposto pelo requerente;
– Ao contrário do que considerou o tribunal de 1.ª ins-
tância, a medida de acompanhamento não devia ter sido
decretada, caso em que o recurso é interposto pelo re-
querido;
– A medida de acompanhamento decretada pelo tribunal
de 1.ª instância não é a mais adequada, hipótese em que
o recurso pode ser interposto pelo requerente ou pelo
requerido.
76 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

2. A remissão que consta do artigo 891.º, n.º 1, para o


regime dos processos de jurisdição voluntária não abrange a
irrecorribilidade das resoluções tomadas segundo critérios de
conveniência ou oportunidade para o Supremo Tribunal de
Justiça (cf. artigo 988.º, n.º 2). A circunstância de o artigo
891.º, n.º 1, não remeter para esta restrição à recorribilidade
obsta a qualquer interpretação do disposto no artigo 901.º
quanto à admissibilidade da apelação como significando, a
contrario sensu, a inadmissibilidade da revista. Disto decorre
que é admissível interpor, nos termos gerais, recurso de
revista do acórdão da Relação proferido sobre a decisão da 1.ª
instância, o que é, decerto, facilmente compreensível, dado
que não se compreenderia que uma decisão relativa a aspectos
fundamentais da liberdade pessoal não pudesse ser sindicada
pelo Supremo.
É verdade que o critério de decretamento da medida de
acompanhamento não é (certamente) normativo e que,
portanto, ao contrário do que se exige no artigo 674.º, n.º 1,
al. a), a revista não se pode fundamentar na violação de lei. O
problema é comum às situações em que o critério de decisão
é a equidade ou a discricionariedade e nas quais, apesar de
não se poder falar de violação de lei pelo tribunal a quo, não
se tem colocado nenhum obstáculo à interposição do recurso
de revista para o Supremo Tribunal de Justiça. Talvez não seja
forçado falar, neste contexto, de um costume jurisprudencial.
Sendo admissível a interposição de recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça, resta aguardar que poderes sobre a decisão
recorrida é que o Supremo vai atribuir a si próprio. Importa
especialmente verificar se o Supremo reivindica para si próprio
o poder de se substituir à decisão das instâncias ou se entende,
como, aliás, é mais coerente com o sistema de controlo de
decisões discricionárias, que apenas pode controlar a legalidade
dessa decisão, isto é, os requisitos para o proferimento de uma
decisão discricionária.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 77

XI. Efeitos da decisão

1. A decisão transitada em julgado é comunicada


oficiosamente aos serviços do registo civil para registo da
medida de acompanhamento que tenha sido decretada (artigo
153.º, n.º 2, cc; artigo 902.º, n.º 2).
2. Depois do trânsito em julgado da decisão, o
acompanhante pode requerer a anulação dos actos praticados
pelo acompanhado após as comunicações que, nos termos do
estabelecido no artigo 894.º, tenham sido realizadas pelo juiz
a instituições e outras entidades (artigo 903.º). Trata-se de um
regime específico para os actos praticados por estas instituições
ou entidades que não prejudica o disposto no artigo 154.º, n.º
1, al. b), cc quanto à anulabilidade de actos praticados pelo
acompanhado depois do anúncio do processo, mas antes do
decretamento da providência6.

XII. Vicissitudes da instância

1. A instância relativa a um processo de acompanhamento


de maior extingue-se pela morte do beneficiário (artigo 904.º,
n.º 1). Trata-se de uma extinção por inutilidade superveniente
da lide (cf. artigo 277.º, al. e)).
2. A instância relativa ao processo no qual tenha sido
decretada a medida de acompanhamento pode renovar-se para
os seguintes efeitos:
– Relacionamento de bens do acompanhado, a pedido do
requerente, do acompanhado, do acompanhante ou do
Ministério Público (artigo 902.º, n.º 1);

6
Sobre este regime, cf. Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, 68 ss.
78 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

– Revisão ou levantamento da medida de acompanhamen-


to, sempre que a evolução do beneficiário o justifique
(artigo 904.º, n.º 2; cf. artigo 149.º, n.º 1, cc); quanto a
isto importa considerar o seguinte:
– O pedido de revisão ou de levantamento pode ser
formulado pelo acompanhante, pelo seu cônjuge
ou unido de facto, por um parente sucessível, pelo
acompanhado ou pelo Ministério Público (artigo
149.º, n.º 3, cc); o cônjuge, o unido de facto e o
parente sucessível devem obter a prévia autorização
do acompanhado ou o suprimento desta autoriza-
ção: é o que resulta da remissão efectuada pelo ar-
tigo 149.º, n.º 3, cc para o artigo 141.º, n.º 1, cc;
em contrapartida, o acompanhante que não seja
cônjuge, unido de facto ou parente sucessível e o
Ministério Público não necessitam dessa autoriza-
ção;
– À revisão e ao levantamento da medida de acompa-
nhamento aplica-se, com as necessárias adaptações,
o procedimento respeitante ao decretamento da
medida (artigo 904.º, n.º 3); isto significa, além do
mais, que é obrigatória a audição pessoal e directa
do maior acompanhado (cf. artigos 897.º, n.º 2, e
898.º).
3. Os efeitos da decisão de revisão ou de levantamento da
medida de acompanhamento podem retroagir, por decisão do
juiz, à data em que se verificou a cessação ou a modificação
das causas que justificaram o decretamento da medida (artigo
149.º, n.º 2, cc). Esta retroactividade permite considerar
válidos ou inválidos actos praticados pelo beneficiário antes
da decisão de revisão ou de levantamento da medida de
acompanhamento.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 79

§ 3.º Capacidade judiciária do maior acompanhado

I. Aspectos gerais

1. Uma vez decretada a medida de acompanhamento de


maior, este vê limitada a sua capacidade de exercício e, em
certos casos, a sua capacidade de gozo. Consequentemente, a
sua capacidade judiciária fica, no mesmo quantum, igualmente
restringida, dado que a capacidade judiciária tem por base e
por medida a capacidade de exercício para produzir os efeitos
vantajosos ou desvantajosos que possam resultar da acção
(artigo 15.º, n.º 2).
2. Os elementos relevantes para o efeito são os seguintes:
– Entre as medidas de acompanhamento típicas, há que
considerar, em especial:
– A representação geral ou especial do acompanhado
(artigo 145.º, n.º 2, al. b), cc);
– A administração, total ou parcial, de bens do acom-
panhado (artigo 145.º, n.º 2, al. c), cc);
– A autorização prévia para a prática de determinados
actos ou categorias de actos (artigo 145.º, n.º 2, al.
d), cc);
– A representação legal segue o regime da tutela (artigo
145.º, n.º 4, cc);
– Os actos de disposição de bens imóveis carecem de autori-
zação judicial prévia e específica (artigo 145.º, n.º 3, cc).

II. Regime processual

1. Transpondo o regime substantivo relativo ao


acompanhamento de maiores para o campo processual, resulta
o seguinte, quanto à propositura de uma acção:
80 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

– Se for proposta uma acção por um maior acompanhado


sujeito a representação ou a administração de bens (cf.
artigos 145.º, n.º 2, al. b) e c), cc), ele deve, em regra, ser
representado nessa acção pelo acompanhante (cf. artigo
16.º, n.º 1); na hipótese de ter sido decretada a admi-
nistração de bens, isso só sucede, no entanto, se a acção
se referir a esses bens; a falta ou a irregularidade de re-
presentação é sanável nos termos estabelecidos no artigo
27.º, n.º 1 e 2, ou seja, através da intervenção ou citação
do acompanhante e da ratificação ou da renovação por
este dos actos praticados pelo maior acompanhado;
– Se for instaurada uma acção por um maior acompanha-
do quanto a actos sujeitos a autorização (cf. artigo 145.º,
n.º 2, al. d), cc), esse acompanhado pode estar por si
pessoal e livremente em juízo, embora necessite da au-
torização do acompanhante para a prática de actos em
processo (artigo 19.º, n.º 1); em caso de divergência en-
tre o maior acompanhado e o acompanhante, prevalece
a orientação deste último (artigo 19.º, n.º 2); a falta de
autorização do acompanhante para a propositura da ac-
ção pelo acompanhado é sanável através da aplicação ex-
tensiva do disposto no artigo 29.º, n.º 1 e 2, para a falta
de autorização do representante: é fixado um prazo para
o acompanhado obter a autorização do acompanhante,
sob pena de o réu ser absolvido da instância (cf. artigos
577.º, al. d), e 278.º, n.º 1, al. c), que, aliás, se referem
expressamente à falta de autorização da parte).
2. Relativamente à propositura de uma acção contra um
maior acompanhado, o regime é o seguinte:
– Se for proposta uma acção contra um maior acompanha-
do sujeito a representação ou a administração de bens,
ele deve, em regra, ser representado nessa acção pelo
acompanhante (cf. artigo 16.º, n.º 1); na hipótese de ter
sido decretada a administração de bens, a representação
só ocorre, todavia, se a acção respeitar a esses bens; a
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 81

propositura da acção contra o maior acompanhado não


impõe, neste caso, a citação desse maior (artigo 19.º, n.º
1, a contrario); a falta ou a irregularidade de representa-
ção é sanável segundo o estabelecido no artigo 27.º, n.º
1 e 2, isto é, através da intervenção ou citação do acom-
panhante e da ratificação ou repetição por este dos actos
praticados pelo maior acompanhado;
– Se for proposta uma acção contra um maior acompa-
nhado quanto a actos sujeitos a autorização do acom-
panhante, o acompanhado pode estar por si pessoal e
livremente em juízo e deve ser citado para a acção (artigo
19.º, n.º 1), embora necessite da autorização do acom-
panhante para praticar quaisquer actos em juízo.
3. O artigo 145.º, n.º 4, cc estabelece que a representação
legal do acompanhado segue, com as necessárias adaptações,
o regime da tutela. Dado que, segundo o disposto no artigo
1938.º, n.º 1, al. e), cc, o tutor necessita de autorização
(do tribunal de família) para intentar acções em nome do
menor, salvo se a acção se destinar à cobrança de prestações
periódicas ou se a propositura da acção puder causar prejuízo
ao representado, pode perguntar-se se o acompanhante que
exerce funções de representação legal do acompanhado tem
igualmente de obter a prévia autorização do tribunal. A
resposta tem de ser positiva.
Isto não significa, no entanto, que se considere desejável
a equiparação do acompanhamento de maiores à tutela (e do
acompanhante ao tutor). A solução decorre tão-somente da
necessidade de proteger o património do acompanhado e de
não criar antinomias normativas no sistema jurídico.
4. A propósito do artigo 145.º, n.º 3, cc cumpre fazer
uma observação complementar. O preceito só se refere a bens
imóveis, mas não está excluído que, através de uma interpretação
extensiva, o mesmo deva valer para outras formas de riqueza,
como, por exemplo, valores mobiliários e outros instrumentos
financeiros.
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III. Conflito de interesses

Se houver conflito de interesses entre o acompanhante e o


acompanhado (porque, por exemplo, a acção respeita ao exercício
de funções por aquele acompanhante), o acompanhado deve ser
representado na acção por um curador especial (artigo 17.º, n.º
3). Recorde-se que, como, aliás, não podia deixar de suceder, o
acompanhante se deve abster de agir em conflito de interesses
com o acompanhado (artigo 150.º, n.º 1, cc)7.

§ 4.º Aplicação no tempo de aspectos processuais

I. Generalidades

A aplicação no tempo em matéria processual é regulada no


artigo 26.º, n.º 1, 2, 3, 5 e 8, L 49/2018. São, essencialmente,
dois os aspectos a considerar:
– A aplicação no tempo do novo regime processual sobre
o acompanhamento de maiores (artigo 26.º, n.º 1, 2 e
3, L 49/2018);
– As consequências da conversão das antigas interdições e
inabilitações (artigo 26.º, n.º 4 e 6, L 49/2018) para a
autorização da prática de actos pessoais e para a revisão
dos acompanhamentos resultantes dessa conversão (arti-
go 26.º, n.º 5 e 8, L 49/2018).

II. Aplicação do novo regime

1. O artigo 26.º, n.º 1, L 49/2018 estabelece que o novo


regime é imediatamente aplicável aos processos de interdição

7
Cf. Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, 61 s.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 83

e inabilitação que se encontrem pendentes no momento da


sua entrada em vigor. Não se trata de nada inédito, dado
que a aplicação imediata de novas regulamentações legais em
matéria de processo, apesar de não ser imperiosa, é bastante
comum. No caso do novo regime de acompanhamento de
maiores, dadas as razões subjacentes a este regime e a sua
nova fisionomia, a aplicação imediata da nova regulamentação
processual é não só compreensível, como até desejável.
2. A isto acresce que, como se dispõe no artigo 26.º, n.º
3, L 49/2018, aos actos do requerido se aplica a lei vigente
no momento da sua prática. Pretendeu-se salvaguardar o
requerido — que, normalmente, será o beneficiário — quanto
aos actos já praticados e a praticar em processos pendentes,
mas, de acordo com a regra tempus regit actus, há que entender
que a aplicação imediata do novo regime vale para qualquer
das partes.
Disto decorre, grosso modo, o seguinte:
– Aproveitam-se todos os actos praticados pelas partes em
processos de interdição e de inabilitação que estejam
pendentes no momento da entrada em vigor do novo re-
gime de acompanhamento de maiores, mesmo que esses
actos não tenham correspondência neste regime;
– Todos os actos a praticar, depois da entrada em vigor do
regime do acompanhamento de maiores, em processos
de interdição ou de inabilitação pendentes devem ser
realizados de acordo com este regime; é o que sucede, por
exemplo, com a citação do beneficiário (artigo 895.º).
3. A aplicação do novo regime processual às acções de
interdição e de inabilitação que estejam pendentes implica
ainda que:
– Ao contrário do que se dispõe no ainda vigente artigo
899.º, n.º 1, mesmo que a acção não tenha sido con-
testada, o juiz não pode decretar, de imediato, a medi-
da de acompanhamento em função do que resultar do
84 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

interrogatório e do exame; este efeito cominatório não


é compatível com o novo regime de acompanhamento
de maiores e, em especial, com o controlo que se exige
ao juiz sobre a necessidade e a adequação da medida a
decretar;
– Ao contrário do que se estabelece no igualmente ainda
vigente artigo 904.º, n.º 1, o requerente não pode pedir,
em caso de falecimento do requerido, o prosseguimento
da acção; este regime é incompatível com o estabelecido
no novo artigo 904.º, n.º 1, quanto à extinção da instân-
cia após o falecimento do beneficiário.
4. A aplicação do novo regime de acompanhamento
de maiores às acções de interdição e de inabilitação que se
encontrem pendentes é imediata, mas não é automática. Tal
como se estabelece no artigo 26.º, n.º 2, L 49/2018, o juiz
deve utilizar os seus poderes de gestão processual (artigo 6.º,
n.º 1) e de adequação formal (artigo 547.º) para proceder às
adaptações necessárias nos processos pendentes. Quer dizer: o
novo regime é de aplicação imediata às acções de interdição e
de inabilitação, mas cabe ao juiz compatibilizar essa aplicação
com o estado em que se encontrarem essas acções. Como é
evidente, as adaptações necessárias são distintas de acção para
acção, pelo que só é possível fornecer como orientação geral
que se aproveita tudo o que tenha sido praticado nessas acções,
sem se afastar que possa ser repetido algo que importe fazer de
acordo com o novo regime.

III. Consequências da conversão

1. O artigo 26.º, n.º 4, 6 e 7, L 49/2018 converte as antigas


interdições e inabilitações, respectivamente, em medida
de acompanhamento com poderes gerais de representação
do acompanhante e em medida de acompanhamento com
poderes de autorização do acompanhante.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS • 85

Estas conversões justificam as seguintes soluções ao nível


processual:
– Dado que o acompanhamento de maiores não obsta,
salvo disposição da lei ou decisão do tribunal, ao exercício
pelo acompanhado de direitos pessoais (artigo 147.º, n.º
1, cc) — como, por exemplo, casar, perfilhar, adoptar ou
testar (artigo 147.º, n.º 2, cc) —, permite-se que, depois
da conversão da antiga interdição em medida de acom-
panhamento, seja requerida ao juiz autorização para a
prática de actos pessoais (artigo 26.º, n.º 5, L 49/2018);
esta possibilidade implica a renovação da instância do
antigo processo de interdição, pois que é neste que deve
ser apresentado o requerimento de autorização da práti-
ca de actos pessoais pelo maior acompanhado;
– Os acompanhamentos resultantes da conversão das an-
tigas interdições e inabilitações podem ser revistos a re-
querimento do acompanhado, do acompanhante ou do
Ministério Público, aplicando-se a esta revisão o novo
regime processual (artigo 26.º, n.º 8, L 49/2018).
2. A conversão das antigas interdições e inabilitações em
medidas de acompanhamento de maiores torna aplicável a estas
o disposto no artigo 155.º cc quanto à obrigatoriedade da sua
revisão periódica. Pode perguntar-se se isto significa que, no
momento da entrada em vigor do regime de acompanhamento
de maiores, todas as antigas interdições e inabilitações têm de
ser, de imediato, revistas. A resposta talvez deva ser negativa
com base no argumento que a seguir se expõe.
O artigo 297.º cc regula a aplicação da lei no tempo quanto
a prazos: em concreto, o n.º 1 trata da situação em que a lei
nova fixa um prazo mais curto do que o fixado na lei antiga
e o n.º 2 refere-se à hipótese em que a lei nova alarga o prazo
fixado pela lei antiga. Como se vê, o artigo 297.º cc nada
estatui sobre a hipótese em que a lei antiga não estabelecia
nenhum prazo e em que a lei nova fixa, pela primeira vez, um
prazo para o exercício de um direito ou o cumprimento de um
86 • M I G UEL T E I X E I R A DE S O USA

dever. No entanto, parece ser possível aplicar extensivamente a


esta hipótese o que se estabelece no artigo 297.º, n.º 1, cc para
o encurtamento do prazo, dado que, onde antes não estava
fixado nenhum prazo, passa a haver um prazo para o exercício
do direito ou o cumprimento do dever. É precisamente o
que sucede quanto ao novo regime de acompanhamento de
maiores: o artigo 155.º cc fixa um prazo para proceder à
revisão da medida de acompanhamento, mas antes não havia
nenhum prazo para a revisão da interdição ou da inabilitação.
De acordo com a solução proposta, o disposto no artigo 155.º
cc é de aplicação imediata a todas as interdições e inabilitações
convertidas nos termos do disposto no artigo 26.º, n.º 4 e 6, L
49/2018, mas o prazo nele estabelecido só se conta a partir da
entrada em vigor do regime de acompanhamento de maiores.
A vantagem desta solução é evitar que, de um momento para
o outro, todas as antigas interdições e inabilitações se encontrem
em situação de terem de ser revistas, nomeadamente por
iniciativa do Ministério Público. Segundo a solução proposta,
essa revisão apenas tem de suceder até ao prazo de cinco anos
após a entrada em vigor do novo regime do acompanhamento
de maiores, dado que, atendendo ao disposto no artigo 155.º
cc, esse é o prazo máximo para a revisão de qualquer medida
de acompanhamento.
DAS INCAPACIDADES
AO MAIOR ACOMPANHADO

BREVE APRESENTAÇÃO DA LEI N.º 49/20181

ANTÓNIO PINTO MONTEIRO


Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

1. Introdução

O título que dou a esta minha intervenção pode, à


partida, ser enganador, pois uma pessoa menos atenta a estes

DOI: 10.47907/livro/2022/Maior_Acompanhado/Cap04
1
Texto apresentado no Colóquio da fduc sobre “O Novo Regime do
Maior Acompanhado”, que teve lugar no Colégio da Trindade, em 13 de
Dezembro de 2018, bem como, já antes, no cej, em Lisboa, em 11 de De-
zembro de 2018, em iniciativa idêntica destinada a analisar o novo regime
jurídico consagrado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto. O trabalho faz
parte da Linha de Investigação “Contrato e Desenvolvimento Social” do Ins-
tituto Jurídico da fduc, no âmbito do Projecto “Desafios Sociais, Incerteza
e Direito” (uid/dir/04643/2013), de que o autor é investigador integrado,
e é dedicado ao Doutor Raul Guichard, In Memoriam.
88 • A n tó n io P i n to Mo n t e iro

temas poderia julgar que tinham desaparecido, de todo, as


incapacidades, as quais teriam sido substituídas por um novo
regime, o do maior acompanhado. Mas não é assim, como é
óbvio; este novo regime substitui, isso sim, tão-só e apenas, os
institutos da interdição e da inabilitação e, por conseguinte, as
incapacidades que resultavam da instauração, por um tribunal,
daqueles institutos.
Mas nem isto é inteiramente rigoroso. É que, mesmo no
novo regime, poderá haver situações que devam qualificar-se
dogmaticamente como casos de incapacidade de exercício de
direitos, ainda que só excepcionalmente e dependendo, em cada
caso, da decisão do tribunal.
Vou, por isso, recordar, em termos breves, o essencial do
regime vigente — vigente, disse bem, pois o novo regime do
maior acompanhado só entrará em vigor em 11 de Fevereiro de
2019, ou seja, 180 dias após a publicação da Lei n.º 49/2018,
de 14 de Agosto, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 25.º desta
Lei —, vou recordar, dizia, a traço grosso, o essencial do regime
vigente para o confrontar com o novo regime e analisar alguns
aspectos deste, aqueles que melhor o caracterizem e identifiquem
e maior relevo prático assumam.
Antes, porém, justifica-se uma breve nota sobre as razões
imediatas da aprovação do novo regime jurídico do maior
acompanhado e do quadro de direito comparado em vigor.

2. A Convenção de Nova Iorque

É claro que há razões de fundo, razões que estiveram presentes


na tomada de posição de várias instâncias internacionais, no
sentido de valorizar os direitos das pessoas deficientes, da sua
dignidade e autonomia. Para lá dos avanços da ciência médica,
também de um ponto de vista social foram vários os apelos —
entre nós e por esse mundo fora — a uma nova compreensão
dos problemas das pessoas com deficiências físicas ou mentais,
ou com quaisquer outras limitações que afectem a sua
DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO ... • 89

capacidade jurídica. Essa tomada de consciência deu corpo a


um movimento internacional de peso.
A este respeito, impõe-se mencionar a Convenção de Nova
Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adoptada
pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007 (aprovada pela
Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 7 de
Maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º
71/2009, de 30 de Julho), bem como o respectivo Protocolo
Adicional, adoptado pelas Nações Unidas na mesma data de
30 de Março de 2007 (e aprovado pela Resolução da ar n.º
57/2009, tendo sido ratificado pelo Decreto do Presidente da
República n.º 72/2009, de 30 de Julho).
Neste contexto, já antes se destacara a Recomendação (99)
4, do Conselho da Europa, adoptada em 23 de Fevereiro de
1999, com a proclamação de alguns princípios aplicáveis
à protecção de adultos incapazes, entre os quais os da
flexibilidade, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da
necessidade, princípios esses que mais tarde a Convenção de
Nova Iorque veio também acolher e sublinhar.
Efectivamente, logo no artigo 1.º a Convenção estabelece
como seu objectivo o de “promover, proteger e garantir o
pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover
o respeito pela sua dignidade inerente”. Estabelece depois, no
artigo 3.º, os princípios que norteiam a Convenção, à cabeça
dos quais, precisamente, “o respeito pela dignidade inerente, e
autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas
próprias escolhas, e independência das pessoas” (alínea a)).
É claro que a protecção da pessoa deficiente — adiante-
se, desde já —, de acordo com a própria Convenção das
Nações Unidas, vai muito para além das medidas a tomar
no plano do regime das incapacidades instituído no Código
Civil, impondo-se a adopção de medidas também no tocante
à reabilitação, educação, saúde, acesso à informação, serviços
públicos, etc., etc.
90 • A n tó n io P i n to Mo n t e iro

Compete-me a mim, porém, aqui e agora, debruçar-me,


apenas, sobre as alterações operadas no Código Civil no regime
das incapacidades. Ora, a esse respeito — observada esta ressalva
—, importa destacar, ainda no tocante à Convenção de Nova
Iorque, o seu artigo 12.º, com a epígrafe “Reconhecimento
igual perante a lei”, com a seguinte redacção:
“1 — Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com
deficiência têm o direito ao reconhecimento perante a lei da
sua personalidade jurídica em qualquer lugar.
2 — Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com
deficiência têm capacidade jurídica, em condições de
igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida.
3 — Os Estados Partes tomam medidas apropriadas para
providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que
possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídica.
4 — Os Estados Partes asseguram que todas as medidas que
se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem
as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso de
acordo com o direito internacional dos direitos humanos.
Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com
o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos,
vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de
interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas
às circunstâncias da pessoa, aplicam-se no período de tempo
mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por
uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e
imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais
medidas afectam os direitos e interesses da pessoa.
5 — Sem prejuízo das disposições do presente artigo, os Estados
Partes tomam todas as medidas apropriadas e efectivas para
assegurar a igualdade de direitos das pessoas com deficiência
em serem proprietárias e herdarem património, a controlarem
os seus próprios assuntos financeiros e a terem igual acesso a
empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito
financeiro, e asseguram que as pessoas com deficiência não são,
arbitrariamente, privadas do seu património”.
DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO ... • 91

Este é o preceito que mais directamente tinha que ver com


as alterações ao Código Civil, no respeitante aos institutos da
interdição e da inabilitação. É claro que se poderia ter alterado
apenas o regime instituído na lei, mantendo esses institutos; mas
o legislador achou que seria melhor eliminar esses institutos,
substituindo-os pela figura do “maior acompanhado”, tendo
em conta o estigma negativo dos institutos da interdição e da
inabilitação.
Para dar cumprimento às obrigações assumidas pelo Estado
português, e em conformidade com o movimento de alterações
legislativas entretanto desenvolvido no direito comparado
— e também entre nós2 —, várias propostas de alteração do
regime das incapacidades foram surgindo. Tenho presente a
que foi elaborada no âmbito do Centro do Direito da Família
da Faculdade de Direito de Coimbra, bem como, no âmbito
parlamentar, os Projectos de Lei n.ºs 61/xiii, 755/xiii e 796/
xiii (pelo psd e pelo cds-pp), e a Proposta de Lei n.º 110/xiii,
apresentada pelo Governo, a qual veio a culminar na Lei n.º
49/2018, de 14 de Agosto, que iremos analisar.
Acrescente-se, a este respeito, que essa Proposta de Lei teve
na sua raiz um articulado de António Menezes Cordeiro com
a colaboração de mim próprio e de Miguel Teixeira de Sousa,

2
Cfr., por exemplo, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito
Civil, iv, Pessoas, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2011, 489, s.; e, para maiores
desenvolvimentos, Geraldo Rocha Ribeiro, A protecção do incapaz adulto no
direito português, Coimbra: Coimbra Editora, 2010; Paula Távora Vítor, A
administração do património das pessoas com capacidade diminuída, Coim-
bra: Coimbra Editora, 2008; e Rosa Cândido martins, Menoridade, (in)
capacidade e cuidado parental, Coimbra: Coimbra Editora, 2008; em fase
mais distante, já Raul Guichard Alves, “Alguns aspectos do instituto da
interdição”, Direito e Justiça 9/2 (1995) 131 s.; e Jorge Duarte Pinheiro,
“As pessoas com deficiência como sujeitos de direitos e deveres”, O Direito
142/3 (2010) 465 s. Eu próprio me pronunciei nesse sentido: António Pin-
to Monteiro, “O Código Civil Português entre o elogio do passado e um
olhar sobre o futuro”, Revista de Legislação e de Jurisprudência (rlj) 146/4002
(2017) 148 s.
92 • A n tó n io P i n to Mo n t e iro

pedido pela Senhora Ministra da Justiça, Dra. Francisca Van


Dunem, no âmbito das Comemorações do Cinquentenário
do Código Civil Português — articulado esse que o texto legal
seguiu, com algumas modificações —, e tomou em consideração
o estudo de Menezes Cordeiro sobre o tema3.
Ainda relacionada, de algum modo, com esta temática, recordo
a “Estratégia de Protecção ao Idoso”, aprovada pela Resolução do
Conselho de Ministros n.º 63/2015, de 25 de Agosto4.

3. O movimento de alterações legislativas no direito


comparado

Convém dar agora nota, ainda que num registo muito breve,
do movimento de alterações legislativas no direito comparado.
Começamos pelo direito alemão.
Vigora, na Alemanha, o chamado “acompanhamento”
(rechtliche Betreuung), através dos §§1896 a 1908k do bgb,
introduzido pela reforma de 1990/1992.
Efectivamente, foi aprovada, em 12 de Setembro de 1990,
a Betreuungsgesetz, a qual aboliu a interdição (Entmüdigung)
e substituiu a tutela (Vormundschaft) e a curatela
(Gebrechlichkeitspflegschaft) pelo regime do acompanhamento
(Betreuung).
Em França, a reforma operou através da Lei n.º 2007-308,
de 5 de Março de 2007, constando dos artigos 425.º a 515.º
do Código Napoleão.
Entre as várias medidas de protecção, o artigo 433.º
consagrou a sauvegarde de justice, e os artigos 477 e seguintes
o mandat de protection future.
A Itália, por sua vez, adoptou a Lei n.º 6/2004, de 9 de

3
Da situação jurídica do maior acompanhado, em curso de publicação na
Revista O Direito.
4
No dr, 1.ª Série, n.º 165, de 25/08/2015.
DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO ... • 93

Maio de 2004, tendo instituído a chamada amministrazione di


sostegno (artigos 404.º a 413.º do Codice Civile).
Quanto a Espanha, por força da Convenção das Nações
Unidas, o legislador abandonou o emprego do termo
“incapacidade”, substituindo-o pelo de “pessoa com capacidade
judicialmente modificada”, sendo de mencionar a Lei n.º
26/2011, de 1 de Agosto, o rd-Leg. 1/2013, de 29 de
Novembro, e, por último, a Lei n.º 15/2015, de 2 de Julho.
Finalmente, o Brasil, pela Lei n.º 13.146, de 6 de Julho de
2015, instituiu a “Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência)”, a qual
alterou, entre outros diplomas, o Código Civil de 2002.

4. Ponto da situação das incapacidades de exercício em


Portugal: menoridade, interdição e inabilitação

I. Façamos agora, em termos muito breves, um sucinto


retrato da situação (ainda vigente) entre nós.
Em síntese, a personalidade jurídica adquire-se no momento
do nascimento completo e com vida, sendo-lhe inerente a
capacidade jurídica ou capacidade de gozo de direitos (artigos
66.º e 67.º)5. Coisa diferente é a capacidade de exercício
de direitos ou capacidade de agir, que só se adquire com a
maioridade, aos 18 anos, ou com a emancipação, por via do
casamento (artigos 122.º, 123.º, 130.º, 132.º e 133.º).
Assim, no regime jurídico em vigor, a menoridade é uma
das fontes da incapacidade de exercício de direitos; mas há
— ainda — mais duas fontes de incapacidade de exercício: a
interdição e a inabilitação.
Estas duas últimas são aplicáveis a maiores, podendo embora,
em certos casos, ser requeridas e decretadas dentro do ano anterior

5
Salvo indicação em contrário, pertencem ao Código Civil os preceitos
legais que citemos sem indicação da sua proveniência.
94 • A n tó n io P i n to Mo n t e iro

à maioridade, para produzirem os seus efeitos a partir do dia em


que o menor se torne maior (artigos 138.º, n.º 2, e 156.º).
A lei estabelece os fundamentos da interdição e da
inabilitação nos artigos 138.º, n.º 1, e 152.º, respectivamente.
Há causas ou fundamentos comuns: a anomalia psíquica, a
surdez-mudez e a cegueira; depende do grau de gravidade com
que se manifestam essas deficiências.
Mas essas anomalias só justificam a interdição se, por força
delas, quem as sofre se mostre incapaz de governar sua pessoa e
bens (artigo 138.º, n.º 1); o mesmo se passa com a inabilitação,
inclusive também perante os fundamentos específicos desta,
uma vez que a habitual prodigalidade ou o abuso de bebidas
alcoólicas ou de estupefacientes só permitem a inabilitação se,
por força disso, as pessoas nessas condições se mostrem incapazes
de reger convenientemente o seu património (artigo 152.º).
Por outro lado, tanto as interdições como as inabilitações
são decretadas por sentença judicial, no termo de um processo
que corre nos tribunais comuns (artigos 140.º e 156.º).
O interesse determinante destas medidas é o interesse do
incapaz. É a fim de o proteger que o tribunal se decidirá pela
interdição ou pela inabilitação (cfr., designadamente, artigo
1878.º, n.º 1, e 1935.º, n.º 1). Tratando-se de um menor ou
de um interdito, é pelo instituto da representação legal que
se supre a incapacidade, actuando o representante em vez do
incapaz, substituindo-o, sem prejuízo das excepções que a lei
prevê (artigos 127.º e 139.º). Incumbe ao poder paternal
(hoje, responsabilidades parentais…) e à tutela o encargo de
representação dos incapazes (artigos 124.º e 143.º).
Mas se se tratar de um inabilitado é pelo instituto da
assistência que se supre a sua incapacidade, traduzida na
necessidade de consentimento ou autorização para os actos de
disposição de bens entre vivos e para todos os que, em atenção
às circunstâncias de cada caso, forem especificados na sentença
(artigo 153.º), sendo certo que a própria administração do
património do inabilitado pode ser entregue pelo tribunal, no
todo ou em parte, ao curador (artigo 154.º).
DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO ... • 95

Finalmente, para concluir este breve retrato, resta dizer que tanto
a interdição como a inabitação podem ser levantadas cessando a
causa que as haja determinado (artigo 151.º, 155.º e 156.º).

II. Em face do exposto, dir-se-á que, perante estes institutos,


a protecção de uma pessoa maior que dela careça só pode
conseguir-se declarando-a incapaz, por via da sua interdição
ou inabilitação. Efectivamente, só depois de interdita ou
inabilitada é que a pessoa incapaz encontra quem a substitua
— tutor — ou quem a acompanhe — curador — na prática
dos actos que lhe digam respeito. Ora, este é um dos maiores
inconvenientes que apresenta o regime ainda em vigor. Uma
pessoa maior com deficiências deve poder ser ajudada sem que
para isso tenha de perder a sua capacidade de exercício!
Daí precisamente o apelo a que era urgente consagrar
medidas que pudessem auxiliar as pessoas com deficiência,
mantendo estas a sua capacidade de exercício de direitos. Neste
sentido se manifestou, como dissemos, um forte movimento
em todo o mundo, com destaque para a Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e para
as alterações legislativas em vários sistemas jurídicos, como a
Alemanha, França, Itália, Espanha e Brasil, entre outros.

5. A nossa posição

I. Eu mesmo intervim nesse sentido, tendo apresentado


publicamente a minha posição em termos que vale a pena hoje
recordar6, pois os princípios e ideias que então defendi vejo-

6
Fi-lo no Congresso Comemorativo do Cinquentenário do Código Civil,
que decorreu no Auditório da Faculdade de Direito de Coimbra, em 24 e 25
de Novembro de 2016. O texto foi publicado na rlj 146/4002 citado supra,
na nota 2 do presente trabalho.
96 • A n tó n io P i n to Mo n t e iro

os hoje acolhidos na reforma operada pela Lei n.º 49/2018.


Recordar o que então disse serve de apresentação das grandes
linhas de orientação do regime jurídico do maior acompanhado.
Na verdade, transcrevendo expressamente o que então
defendi, disse ser favorável a um sistema de maior flexibilidade,
que promovesse, na medida do possível, a vontade das pessoas
com deficiência e a sua autodeterminação, que respeitasse,
sempre, a sua dignidade e facilitasse a revisão periódica das
medidas restritivas decretadas por sentença judicial.
Concretizando, disse concordar, em primeiro lugar, que,
sempre que possível, devesse ser tomada em conta a vontade
de quem vai ser sujeito a qualquer medida restritiva ou de
apoio. Por maioria de razão, acrescentei concordar com o
mandato em previsão do acompanhamento ou da incapacidade,
isto é, com a possibilidade de qualquer pessoa prevenir uma
eventual necessidade futura, indicando, desde logo, quem a
acompanhará ou a representará, caso isso venha a verificar-se, e
que poderes lhe atribui. Evidentemente, este mandato terá de
ser devidamente disciplinado.
Achei também de muito interesse a consagração de uma
medida semelhante àquela que o Brasil adoptou, relativa
à “tomada de decisão apoiada”, permitindo à pessoa com
deficiência, física ou mental, escolher alguém que pudesse
apoiá-la nas decisões a tomar, fornecendo-lhe os elementos e
informações necessários para esse efeito. É claro que também
esta medida dependerá da aprovação do juiz competente.

II. Como se vê, todas estas medidas que advoguei pressupõem


a manutenção da capacidade de exercício de direitos por parte
da pessoa que a elas recorre. Trata-se de medidas de apoio a
pessoa com deficiência assentes na sua autodeterminação.
“Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de
ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida
DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO ... • 97

Convenção da onu7 e em conformidade com a transição do


modelo de substituição para o modelo de acompanhamento
ou de apoio na tomada de decisão8. Há, assim, escrevi-o
há já dois anos, uma mudança de paradigma, deixando a
pessoa deficiente de ser vista como mero alvo de políticas
assistencialistas e paternalistas, para se reforçar a sua qualidade
de sujeito de direitos. Em vez da pergunta: “aquela pessoa possui
capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica?”,
deve perguntar-se: “quais os tipos de apoio necessários àquela
pessoa para que exerça a sua capacidade jurídica?”9.

III. Em face do exposto, impunha-se uma reforma do


Código Civil no campo das incapacidades de exercício de
direitos, pois os institutos da interdição e da inabilitação
não davam resposta satisfatória nem adequada a estas novas
exigências e a este novo paradigma.
Havia que acolher aquelas novas figuras — continuo a seguir o
meu texto de 2016 — que permitem apoiar pessoas com deficiência,
mantendo elas a sua capacidade de exercício de direitos.

7
Antonio Legerén Molina, “La tutela y la curatela como mecanismos
de protección de la discapacidad”, in María E. Rovira Sueiro / Antonio Le-
gerén Molina, Instrumentos de protección de la discapacidad a la luz de la
Convencion de Naciones Unidas, Aranzadi: Universidade da Corunha, 2016,
63 s., p. 213.
8
Cfr. Christian Baldus, in Nomos Kommentar bgb, 3.ª ed., 2016, Ges-
chäftsfähigkeit und Betreuungsrecht, p. 11 da respectiva separata; e cfr. tam-
bém Daniel de Pádua Andrade, “Capacidade, apoio e autonomia da pessoa
com deficiência”, in A Teoria das Incapacidades e o Estatuto da Pessoa com
Deficiência, Fabio Queiroz Pereira / Luísa Cristina de Carvalho Morais /
Mariana Alves Lara, org., 2.ª ed., Belo Horizonte: D’Plácido Editora, 2016
135 s., 140 s.
9
Daniel de Pádua Andrade, “Capacidade, apoio e autonomia da pessoa
com deficiência”, 140 s.; bem como Gustavo Pereira Leite Ribeiro, O Itine-
rário Legislativo do Estatuto da Pessoa com Deficiência, na mesma obra, 59 s.;
e Antonio Legerén Molina, “La tutela y la curatela”, 64 s.
98 • A n tó n io P i n to Mo n t e iro

Quid iuris, todavia, naquelas situações em que falte, de


todo, a vontade ou a capacidade para entender e querer, ou ela
está profundamente afectada, em termos tais que a deficiência de
que a pessoa sofre a impossibilita de governar a sua pessoa e bens,
sem que esta situação haja sido prevenida em momento anterior
(se isso tivesse sido possível) através do mandato em previsão da
incapacidade?
Em situações destas, ainda que a título excepcional, deve
continuar a recorrer-se ao instituto da representação, substituindo-
se o incapaz, no interesse deste, pela actuação do tutor. Mas isso
implica abandonar o regime da interdição, medida radical e
rígida, substituindo-o por um regime flexível, que permita ao juiz,
qual alfaiate, fazer um “fato à medida” do necessitado, adequando
as medidas à situação concreta de cada pessoa…10.
No quadro entretanto eliminado, o instituto mais indicado,
à partida, para responder a situações de incapacidade seria o da
inabilitação, ainda que com modificações, pela flexibilidade que
revelava e por funcionar aqui o regime da assistência para os actos
de disposição de bens entre vivos, sendo certo que o tribunal
goza aqui de uma ampla liberdade para especificar os actos que o
inabilitado pode ou não praticar (artigos 153.º e 154.º).

IV. Dito isto, fica claro que não fugimos das palavras nem nos
refugiamos numa atitude “politicamente correcta”, evitando
utilizar o termo “incapacidade de exercício” para as pessoas
nestas situações11. Dissemo-lo há já dois anos e voltamos hoje
a repeti-lo, em função do regime agora aprovado.

10
Assim, também Maria E. Rovira Sueiro, “La Convención de las Nacio-
nes Unidas sobre los Derechos de las Personas com Discapacidad: su impacto
em el ordenamento jurídico español”, in Maria E. Rovira Sueiro/ Antonio
Legerén Molina, Instrumentos de protección de la discapacidad, 61-62.
Em Espanha chama-se-lhes, recorde-se, “pessoa com capacidade judi-
11

cialmente modificada” (!) — Maria E. Rovira Sueiro, “La Convención de


las Naciones Unidas”, 20.
DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO ... • 99

É claro que não ignoramos as posições de quem rejeita a


utilização deste regime pelas conotações pejorativas e pelo
estigma que ele terá adquirido. Pelo nosso lado, contudo,
sempre aprendemos e sempre ensinámos que, de acordo com
a lei, as incapacidades visam proteger o interesse do incapaz.
Por isso mesmo não há “incapacidades conjugais” (!), nem os
poderes integrados no poder paternal ou na tutela são direitos
subjectivos, antes poderes-deveres ou poderes funcionais,
porque devem ser exercidos no interesse do incapaz 12. E
acreditamos que os tribunais só determinarão a incapacidade
de alguém quando essa for a melhor solução para proteger o
interesse do incapaz.
Tão prejudicial seria eliminar por sistema a capacidade de
tomar decisões de uma pessoa com deficiência como atribuir
plena capacidade de exercício a quem de facto carece dela13.
Como alguém disse, “deve-se respeitar a autonomia da pessoa
com deficiência no alcance de suas possibilidades, mas também
deve-se protegê-la na medida de suas vulnerabilidades”14.
De acordo com a velha máxima aristotélica, recordemos, o
igual deve ser tratado igualmente e o desigual deve ser tratado
desigualmente15. É esse o sentido material do princípio da
igualdade16.

12
Por todos, cfr. Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª
ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora,
2005, 178-179 e 227-228.
13
Assim, por exemplo, Maria E. Rovira Sueiro, “La Convención de las
Naciones Unidas”, 44, bem como Antonio Legerén Molina, “La tutela y
la curatela”, 65.
14
Gustavo Pereira Leite Ribeiro, O itinerário legislativo do Estatuto da
Pessoa com Deficiência, 83.
15
Assim também, por exemplo, Mariana Alves Lara / Fabio Queiroz
Pereira, “Estatuto da Pessoa com Deficiência: Proteção ou Desproteção?”,
in A Teoria das Incapacidades, 95 s., p. 122.
16
Por todos, A. Castanheira Neves, “O instituto dos assentos e a função
100 • A n tó n io P i n to Mo n t e iro

V. Em suma e para concluir este ponto, de um modelo, do


passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, em que prepondera
a substituição, deve partir-se para um modelo flexível e
humanista, baseado em medidas adoptadas casuisticamente e
periodicamente revistas, prioritariamente destinadas a apoiar
quem delas necessite, mas sem prejuízo de elas poderem vir a
suprir a incapacidade em situações excepcionais, sempre com
respeito pelos princípios da adequação, da proporcionalidade e
da dignidade da pessoa humana.
Foi com este espírito e exactamente nestes termos, que
agora reproduzimos, que apontámos para a necessidade da
reforma do regime das incapacidades.
E aqui manifestamos publicamente, hoje, o nosso júbilo
pela orientação e sobriedade da reforma operada pela Lei n.º
49/2018, pelo rigor técnico observado e pelo acolhimento destes
princípios e valores, em prol das pessoas com deficiência, em
termos realistas, sensatos e equilibrados.

6. A Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto

I. Vejamos agora, em linhas gerais e em termos sucintos,


os principais aspectos do novo regime, a entrar em vigor, como
dissemos, em 11 de Fevereiro de 201917.
À partida, importa realçar o alcance e importância desta
reforma, provavelmente a maior reforma operada no Código
Civil após a revisão pelo Decreto-Lei n.º 496/77, que adaptou

jurídica dos Supremos Tribunais”, separata da Revista de Legislação e de Juris-


prudência, Coimbra Editora, 1983, 118-144.
Sobre a nova lei, está já publicado um texto de Mafalda Miranda Bar-
17

bosa, Maiores Acompanhados. Primeiras Notas Depois da Aprovação da Lei n.º


49/2018, de 14 de agosto, Coimbra: Gestlegal, 2018; temos igualmente co-
nhecimento de um outro texto, ainda não publicado, de Paulo Mota Pinto,
sobre O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado (Aprovado pela Lei n.º
49/2018, de 14 de Agosto).
DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO ... • 101

o Código Civil à Constituição de 1976, e certamente a maior


reforma na Parte Geral do Código Civil após a sua publicação
em 25 de Novembro de 1966.
Uma segunda nota prévia a registar é que a reforma, no
seu conjunto, respondeu positivamente às preocupações que
manifestámos e aos princípios que advogámos publicamente,
na nossa intervenção de há 2 anos18. Preocupações e princípios
que eram partilhados pela generalidade da doutrina e
jurisprudência.
E fê-lo de forma contida, dedicando ao novo regime do
maior acompanhado precisamente os mesmos artigos 138.º
a 156.º que disciplinavam os institutos da interdição e da
inabilitação, institutos estes eliminados pela Lei em apreço.

II. Dito isto, a primeira pergunta é relativa à questão de


saber quem pode beneficiar das medidas de acompanhamento.
Responde o (novo) artigo 138.º, atribuindo esse benefício
ao “maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência,
ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e
conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos,
cumprir os seus deveres”. São, assim, de dois tipos, esses
requisitos: por um lado, quanto à causa: razões de saúde,
deficiência ou ligadas ao seu comportamento; e, por outro
lado, quanto à consequência: a impossibilidade de exercer,
plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos
mesmos termos, cumprir os seus deveres.
Optou o legislador, como se vê, por uma formulação
ampla, afastando-se claramente da posição fechada relativa aos
fundamentos da interdição e da inabilitação. Um ponto muito
importante que neste contexto importa sublinhar é o de que
na actual formulação ampla que permite o recurso às medidas
de acompanhamento cabem as pessoas idosas e/ou doentes.

18
Cfr. o nosso artigo publicado na rlj citada supra, na nota 2.
102 • A n tó n io P i n to Mo n t e iro

III. E quem pode requerer tais medidas? Quando? A quem


compete a escolha e decisão? E quem pode ser o/a acompanhante?
De acordo com o artigo 141.º, a própria pessoa que necessita
de ser acompanhada pode requerer o acompanhamento,
tal como o cônjuge, o unido de facto ou qualquer parente
sucessível, desde que autorizados pelo requerente — salvo se o
tribunal suprir a autorização do beneficiário —, bem como,
independentemente de autorização, o Ministério Público.
Atente-se, logo aqui, para o respeito pela vontade do
deficiente, o qual, diferentemente do que sucedia com interditos
e inabilitados, não só pode requerer o acompanhamento como
lhe compete, em princípio, autorizar outras pessoas a fazê-lo.
O acompanhamento destina-se a maiores — pois os menores
estão protegidos pela sua incapacidade — mas, tal como já
sucedia anteriormente, pode ser requerido e instaurado dentro
do ano anterior à maioridade, para produzir efeitos a partir
desta (arts. 142.º e 131.º).
Tal como também já sucedia anteriormente, com a
interdição e a inabilitação, é o tribunal que decide se há lugar
ou não ao regime do acompanhamento; mas agora manda a
lei que o tribunal deva ouvir primeiro, pessoal e directamente,
o beneficiário, competindo ao tribunal, por outro lado, definir
as medidas adequadas a cada situação concreta, o que bem o
distancia da situação de incapacidade geral em que ficavam os
interditos, que a lei equiparava aos menores (cfr. o artigo 139.º,
na anterior e actual redacção). Note-se, de novo, a preocupação
pela vontade do deficiente e pela sua autodeterminação.
Quanto à questão de saber quem pode ser o/a acompanhante,
o n.º 1 do artigo 143.º determina que o acompanhante é
escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal.
Duas observações, a este respeito: a primeira é, mais uma vez,
para a preocupação de respeito pela vontade do acompanhado;
a segunda é para comprovar que, excepcionalmente, nos
chamados hard cases, pode vigorar o instituto da representação
em situações de verdadeira incapacidade de exercício. Em
DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO ... • 103

qualquer caso, o acompanhante é designado pelo tribunal, a


quem compete, nomeadamente, essa responsabilidade.
Na falta de escolha, o n.º 2 do mesmo preceito apresenta
uma lista de pessoas que podem ser designadas como
acompanhantes, segundo o critério de quem “melhor
salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário”.

IV. Efectivamente, este é o objectivo do acompanhamento do


maior, destinado a assegurar o bem-estar deste, a sua recuperação,
o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus
deveres. Mas há situações em que isso, infelizmente, não será
possível; daí as excepções para que a lei remete, assim como há
situações que afastam o acompanhamento quando o objectivo
deste já se mostre garantido através dos deveres gerais de
cooperação e de assistência que no caso caibam (como os dos
cônjuges, por exemplo), tratando-se, pois, de uma medida
supletiva (artigo 140.º).
Essa preocupação pelo bem-estar e recuperação do
acompanhado está também presente nos deveres de cuidado e
diligência que, na “concreta situação”, o acompanhante deve
respeitar (artigo 146.º). Atente-se na referência permanente à
situação concreta de cada deficiente, adequando as medidas a
adoptar a cada caso concreto, bem longe da incapacidade geral
do regime dos interditos.
Mas em que consiste ou se traduz o acompanhamento? É
fundamental, a este respeito, atender ao disposto no artigo 145.º,
norma que evidencia bem as vantagens deste novo regime19, em
confronto com o regime anterior: o regime do acompanhamento
goza de maior flexibilidade — rejeita o tudo ou nada da interdição
—, respeita, sempre que possível, a vontade do beneficiário e a
sua autodeterminação, limita-se ao necessário e permite ao tribunal
escolher e adequar, em cada situação concreta, as medidas que

19
Cfr., supra, n.º 5 deste texto.
104 • A n tó n io P i n to Mo n t e iro

melhor possam contribuir para alcançar o seu objectivo, que é,


repete-se, o de assegurar o bem-estar, a recuperação e o pleno
exercício da sua capacidade de agir.
Mas tudo isto sem cair na posição irrealista de ignorar os
hard cases, ou seja, aquelas situações de absoluta incapacidade
do necessitado, pelo que, sem deixar o acompanhamento de
ser hoje um modelo de apoio e de assistência, não pode deixar
de transigir — em casos-limite e excepcionalmente — com
medidas de substituição: daí o recurso, entre as medidas que o
tribunal pode escolher para melhor talhar o “fato à medida”,
ao instituto da representação legal (artigo 145.º).
Sempre “em função de cada caso”, pode o tribunal sujeitar
o acompanhante a algum ou alguns dos regimes seguintes:
exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de
as suprir; representação geral ou representação especial;
administração total ou parcial de bens; autorização prévia
para a prática de determinados actos ou categorias de actos;
intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas. Registe-
se a imperatividade da disposição que determina a necessidade
de autorização judicial prévia e específica para os actos de
disposição de bens imóveis (n.º 3 do citado artigo 145.º).
Decorre, pois, do exposto, em conformidade com o artigo
145.º, que o acompanhamento pode envolver uma representação
legal, como havíamos dito, assim como pode implicar o recurso
à assistência, mediante a autorização do acompanhante para
a prática de certos actos, ou consistir num mero apoio deste
à actuação do acompanhado, como sucede nas situações
contempladas na alínea e) do n.º 2 deste artigo 145.º.

V. A respeito dos actos do maior acompanhado, vale a pena


determo-nos aqui um pouco, pela relevância prática do tema.

Começamos pelos actos que o acompanhado pode, em


princípio, praticar livremente, que são os negócios da vida
corrente e o exercício dos direitos pessoais, designadamente
DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO ... • 105

os direitos de casar, de procriar, de perfilhar, de adoptar, de


cuidar e de educar os filhos, etc. (artigo 147.º).
Quanto ao internamento do maior acompanhado, prevê a
lei que o mesmo depende de “autorização expressa do tribunal”,
podendo embora, em caso de urgência, ser imediatamente
solicitado pelo acompanhante, sujeitando-se, neste caso, à
ratificação do juiz (artigo 148.º). Embora a letra da lei não o
diga, parece-nos que deve entender-se que a norma abrange
tanto o internamento por razões de saúde, num hospital ou
clínica particular, como o internamento num lar.
E, pergunta-se, quanto aos demais actos do maior
acompanhado? Quid iuris se ele celebrar um qualquer negócio
sem respeito pelas medidas de acompanhamento decretadas ou a
decretar? Tal como anteriormente, há aqui que distinguir três
situações. Tais actos são anuláveis, sem mais, se forem praticados
após o registo do acompanhamento (artigo 154.º, n.º 1, al. a)); são
também anuláveis os que forem praticados depois de anunciado
o início do processo, mas só se o acompanhamento vier a ser
instaurado e se tais actos forem prejudiciais ao acompanhado
— a este respeito, pelas mesmas razões que já anteriormente
subscrevíamos, o requisito do prejuízo deve reportar-se ao
momento da prática do acto e não ao momento da decisão20
(alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo); finalmente, quanto aos
actos anteriores ao anúncio do início do processo, aplica-se o
regime da incapacidade acidental (artigo 154.º, n.º 3) .
Importa ter em consideração, para este efeito, que as
decisões judiciais de acompanhamento devem ser oficiosamente
comunicadas à repartição do registo civil competente a fim de
serem registadas (artigo 1920.º-B), não podendo tais decisões
ser invocadas contra terceiros de boa fé enquanto não estiverem
registadas (artigo 1920.º-C), por força da remissão operada pelo
artigo 153.º, n.º 2, pese embora as cautelas com que o n.º 1 desta

20
Cfr. Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 238.
106 • A n tó n io P i n to Mo n t e iro

norma rodeia a publicidade a dar ao início, ao decurso e à decisão


final do processo, limitando-as ao “estritamente necessário para
defender os interesse do beneficiário ou de terceiros”.
Finalmente, sendo aqueles actos anuláveis, nos termos
referidos, põe-se o problema de saber se se aplica o regime
geral (artigo 287.º), ou, ao contrário, como sucedia com as
interdições e as inabilitações, a que se aplicava, em certos casos,
o regime especial da menoridade (artigo 125.º). A lei manda
atender ao prazo a partir do qual se deve intentar a acção de
anulação, que só começa a contar-se a partir do registo da
sentença (n.º 2 do artigo 154.º).

VI. Por último, prevê a lei que o acompanhamento cesse


ou se modifique mediante decisão judicial que reconheça a
cessação ou a modificação das causas que o justificaram (artigo
149.º, n.º 1), sendo certo que, enquanto estiver instaurado,
o tribunal deve rever as medidas decretadas, periodicamente,
em conformidade com o que constar da sentença, mas, no
mínimo, de cinco em cinco anos (artigo 155.º).

7. Conclusão

Vou concluir. Sempre em termos breves, apresentei as


razões por que era necessário alterar o Código Civil no tocante
aos institutos da interdição e da inabilitação e dei conta do
movimento internacional a tal respeito, com destaque para a
Convenção de Nova Iorque.
Percorri, de seguida, a Lei n.º 49/2018, que veio eliminar aqueles
institutos e consagrar o regime jurídico do maior acompanhado,
analisando os principais aspectos deste novo regime.
Trata-se, evidentemente, de uma primeira leitura, que carece,
ainda, de aprofundamento e reflexão. Mas o balanço da Lei é
francamente positivo. Claro que pode apontar-se-lhe alguma
indeterminação em vários aspectos e até alguma insuficiência no
tocante, por exemplo, ao regime da anulabilidade dos actos do
DAS INCAPACIDADES AO MAIOR ACOMPANHADO ... • 107

acompanhado que não observem as medidas de acompanhamento


decretadas ou a decretar, “maxime” quanto à legitimidade para
pedir a anulação e quanto ao prazo para esse efeito. A questão
estava facilitada, no regime anterior, pela remissão operada para o
artigo 125.º, sobre os actos do menor. Hoje, porém, no silêncio
da lei nova, pode suscitar-se a dúvida de saber se é de aplicar aos
actos do acompanhado que sejam anuláveis o regime geral do
artigo 287.º ou, por analogia, ainda que com adaptações, o regime
especial do artigo 125.º. É um bom desafio para o intérprete e a
ele voltaremos mais tarde, com maior vagar!
Seja como for, a Lei n.º 49/2018 veio dar resposta positiva às
preocupações que se faziam sentir no campo das incapacidades
das pessoas com deficiência, com a consagração deste novo
regime jurídico do maior acompanhado. A Lei acolheu a mudança
de paradigma já há muito anunciada, afastando-se do modelo de
tomada de decisões por substituição e abraçando o modelo do
acompanhamento, pela tomada de decisões com recurso à assistência
e apoio. “Proteger sem incapacitar”, recorde-se, é a palavra de ordem
do novo modelo. Mas fê-lo com realismo, permitindo o recurso
à representação legal quando, excepcionalmente, não houver
alternativa credível, no interesse do necessitado e por decisão judicial.
Temos hoje, pois, em vez do modelo do passado, rígido e dualista,
de tudo ou nada, de substituição, temos hoje, dizia, um regime que
segue um modelo flexível e monista, de acompanhamento ou apoio,
casuístico e reversível, que respeita na medida do possível a vontade
das pessoas e o seu poder de autodeterminação.
É claro que o sucesso, na prática, deste novo modelo
vai depender, em grande medida, dos tribunais, pela
responsabilidade acrescida que o novo regime lhes atribui,
na definição — e revisão — das medidas adequadas a cada
deficiente, a cada situação!
É esta mais uma tarefa que a lei confia aos tribunais, no
desempenho da nobre missão de servir a vida!
VALOR JURÍDICO DOS ATOS
DO MAIOR ACOMPANHADO

PAULO MOTA PINTO


Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

1. Introdução e enquadramento

O novo regime do maior acompanhado foi aprovado pela


Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, que alterou a Parte Geral
— alteração que só não é a mais recente alteração ao Código
Civil, porque depois dela foi também alterado o regime do
direito preferência do arrendatário, previsto no artigo 1091.º
do Código Civil, Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro. A Lei n.º
49/2018, de 14 de agosto, está com uma vacatio legis de 180
dias, e, por isso, entra em vigor no próximo 11 de fevereiro de
2019. Esta é a alteração mais profunda realizada na Parte Geral
do Código Civil desde a aprovação deste, em 1966, tendo
visado eliminar a previsão de uma incapacidade geral dos
interditos e dos inabilitados, adaptando o direito português à
Convenção da Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, adoptada pelas Nações Unidas em 30 de março

DOI: 10.47907/livro/2022/Maior_Acompanhado/Cap05
110 • pau l o m ota pi n to

de 20071. Em especial, o n.º 2 do artigo 12.º da Convenção,


afirmando que as pessoas com deficiências têm capacidade
jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos
os aspectos da vida, obrigava, segundo o entendimento quase
unânime da Convenção, à alteração do regime jurídico das
incapacidades, pois este retirava como regra a capacidade de
agir, ou capacidade de exercício de direitos, aos interditos e
inabilitados, por exemplo por surdez-mudez ou cegueira
ou por anomalia psíquica. Pelo contrário, entendia-se por
“capacidade jurídica”, para efeitos da Convenção, não apenas
a chamada capacidade de gozo de direitos (que é em sentido
técnico a capacidade jurídica), mas também esta capacidade
de agir ou capacidade de exercício de direitos.
Por esta razão, surgiram várias propostas de alteração do
regime das incapacidades, aliás já em conformidade com
propostas também feitas na doutrina2, tendo uma delas
sido elaborada no âmbito do Centro de Direito da Família
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. No
âmbito parlamentar, foram apresentados os Projetos de Lei
n.ºs 61/xiii, 755/xiii e 796/ xiii (pelo psd e pelo cds-pp), e
a Proposta de Lei n.º 110/xiii, apresentada pelo Governo, vindo
esta a culminar na Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto.
A Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, suprimiu os institutos
da interdição e da inabilitação, e substituiu-os pelo instituto
do “maior acompanhado”, ou do acompanhamento de adulto,
maior de idade. Em conformidade, foram introduzidas
alterações sistemáticas, no subtítulo sobre a pessoas singulares.

1
Aprovada pelas Resoluções da Assembleia da República nºs 56/2009
e 57/2009 (esta sobre o respectivo Protocolo Opcional), e ratificada pelos
Decretos do Presidente da República n.ºs 71/2009 e 72/2009.
2
V., designadamente, Rosa Cândido Martins, Menoridade, (in)ca-
pacidade e cuidado parental, Coimbra: Coimbra Editora, 2008; e Geraldo
Rocha Ribeiro, A protecção do incapaz adulto no direito português, Coim-
bra: Coimbra Editora, 2010.
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 111

A Subsecção iii da Secção V do Subtítulo sobre Pessoas


Singulares da Parte Geral (artigos 138.º a 156.º3) passou a
designar-se “Maiores acompanhados”. E, como se pretendeu
também evitar a qualificação da situação destes como sendo
a de incapazes em geral — para a substituir pela de apoio,
com acompanhamento, a cidadãos cuja capacidade apenas é
limitada na medida do necessário para sua proteção —, também
a própria Secção V, que antes se intitulava “Incapacidades”,
passou a intitular-se “Menores e maiores acompanhados”.
Em si, parece que nada teria impedido a preservação das
designações “interdito” ou “inabilitado”, podendo apenas ter-
se alterado o estatuto jurídico a elas ligado para o adaptar
à Convenção de Nova Iorque, limitando as restrições à
capacidade apenas ao necessário para proteção dessas pessoas,
e atribuindo a essas situações o significado de necessidade
de acompanhamento. O legislador quis, porém, frisar logo
ao nível da designação que não existe pela instituição do
acompanhamento uma alteração geral de status — uma
incapacidade geral —, como aquela que estava anteriormente
ligada à designação “interdito” e “inabilitado”, designações
que, pelo seu uso, tinham também já um certo valor
estigmatizante. Por isso, substituiu a designação do instituto
pela de “maior acompanhado”, fundindo neste a inabilitação
e a interdição. Essa designação, se permite veicular que as
medidas instituídas são apenas de acompanhamento, e no
interesse do maior, não permite, porém, desde logo perceber
que pode também continuar a existir — e que normalmente
existirá — uma limitação da capacidade de exercício de direitos
do maior acompanhado, como veremos.

3
Na falta de indicação diversa, os artigos doravante citados são do Có-
digo Civil de 1966, na redação dada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto.
112 • pau l o m ota pi n to

Apenas trataremos dos aspetos de direito material,


regulados no Código Civil4, relativos ao valor dos atos
do maior acompanhado, e sem proceder à análise dos
pressupostos do acompanhamento e do procedimento para a sua
instituição, para passar já a tratar do âmbito de necessidade de
acompanhamento para a prática de atos.

2. Âmbito do acompanhamento

Em correspondência com o princípio da proporcionalidade


das medidas de acompanhamento, em função do âmbito da
impossibilidade de cumprimento dos deveres e de exercício
dos direitos, o artigo 145.º, n.º 1, prevê que o âmbito do
acompanhamento se limita ao necessário — isto é, àquilo que
for indispensável para assegurar o cumprimento dos deveres
e o exercício dos direitos da pessoa acompanhada, e para
assegurar o seu bem-estar e recuperação. Trata-se de responder
plenamente à exigência da proporcionalidade na limitação

Além do Código Civil, a Lei n.º 49/2018 alterou vários outros diplo-
4

mas, para os adaptar à eliminação dos institutos da interdição e inabilitação


ou para melhor proteger o maior acompanhado. Assim, foram, entre outros,
alterados: a Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, no artigo 2.º, sobre o termo
da união de facto (pela situação de acompanhamento de maior, se assim
se estabelecer na sentença que a haja decretado, salvo se posterior ao início
da união); a Lei da Procriação Medicamente Assistida (Lei n.º 32/2006, de
26 de julho), artigo 6.º, para prever que as técnicas aí reguladas só podem
ser utilizadas em benefício de quem tenha, pelo menos, 18 anos de idade e
desde que não exista uma sentença de acompanhamento que vede o recurso
a tais técnicas; a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, que regula as diretivas
antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e
a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional
do Testamento Vital, para as adaptar à nova figura do maior acompanhado;
o Código de Processo Penal, para eliminar a referência a interditos por ano-
malia psíquica a propósito da capacidade para testemunhar (artigo 131.º,
n.º 1); o Código das Sociedades Comerciais e o Código Comercial, também
para eliminar as referências a interditos e inabilitados.
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 113

de um direito fundamental tão importante como o direito à


capacidade civil (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição)5.
Em função de cada caso, tendo em conta, portanto, o âmbito
da incapacidade natural da pessoa acompanhada para plena,
pessoal e conscientemente exercer os seus direitos e cumprir os seus
deveres, o tribunal pode cometer ou atribuir ao acompanhante
algum dos regimes seguintes: exercício das responsabilidades
parentais, ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
representação geral ou representação especial para certos atos,
indicando expressamente, neste caso, as categorias de atos para que
seja necessária; administração total ou parcial de bens; autorização
prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
ou intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
Em lugar de se prever uma incapacidade geral suprida pela
representação legal — como acontecia para o interdito —, ou
uma incapacidade para prática de atos de disposição de bens
entre vivos suprida pela assistência — como acontecia em regra
para o inabilitado —, o âmbito do acompanhamento passa, pois,
a ser variável em função das especificidades do caso concreto.
Esta solução será mais respeitadora do princípio da
proporcionalidade, e também do artigo 12.º da Convenção
de Nova Iorque. No entanto, é menos segura, e poderá
dificultar a previsão e o conhecimento por terceiros do âmbito
e da forma do acompanhamento a que o acompanhado está
sujeito, já que não existe um regime-regra ou mesmo só
tipicidade da forma de suprimento da situação da pessoa
acompanhada.
Quando for instituída, a representação legal segue o
regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo

5
V., no direito alemão, salientando a necessidade de respeito pela
proibição do excesso na restrição da capacidade civil, já Claus-Wilhelm
Canaris, “Verstösse gegen das verfassungsrechtliche Übermassverbot im
Recht der Geschäftsfähigkeit und im Schadensersatzrecht”, Juristenzeitung
(1987) 993-1004.
114 • pau l o m ota pi n to

o tribunal dispensar a constituição do conselho de família,


e à administração total ou parcial de bens aplica-se, com
as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e
seguintes. Mas o legislador precisou, no artigo 145.º, n.º 3,
que os atos de disposição de bens imóveis carecem (pelo menos)
de autorização judicial prévia e específica. Disposição que
apenas terá, portanto, utilidade para o caso de os atos serem
celebrados com assistência pelo acompanhado, pois quando
sejam celebrados pelo próprio representante legal a necessidade
de autorização judicial resultará já do artigo 1889.º, n.º 1 (e
do artigo 1935.º, n.º 1) do Código Civil.
No artigo 147.º prevêem-se exceções ao âmbito do
acompanhamento. Vejamos melhor essas exceções.
Salvo disposição especial da lei ou decisão judicial em
contrário, é livre a celebração de negócios da vida corrente.
Estes “negócios da vida corrente” não são mais precisamente
determinados pela lei — não se exigindo, por exemplo, que
apenas envolvam despesas ou disposições de bens de pequena
importância, nem que sejam atos que em concreto estejam ao
alcance da capacidade natural do acompanhado, ao contrário do
que se prevê para os menores no artigo 127.º, n.º 1, alínea b)6.
Se entendermos — como parece que deverá entender-
se — como “negócios da vida corrente” aqueles que o
acompanhado pratica normalmente, na sua vida, que não são
neste sentido extraordinários, não pode, porém, excluir-se que
um acompanhado (por exemplo, um profissional) celebre na

6
No direito alemão, foi introduzido em 2002 no bgb um novo
§ 105a, que abriu a possibilidade de incapazes maiores praticarem negócios
da vida corrente (“Geschäfte des täglichen Lebens”), com disposições de
bens de pequena importância. Quis-se assim prever um tratamento dife-
renciado, designadamente, das situações de deficiência mental, tendo em
conta a capacidade natural de cada pessoa, fazendo o estatuto jurídico
corresponder a essa capacidade natural. Criticamente, v., porém, Matthias
Casper, “Geschäfte des täglichen Lebens — kritische Anmerkungen zum
neuen § 105a bgb”, Neue Juristische Wochenschrift (2002) 3425-3430.
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 115

sua vida corrente negócios que não impliquem apenas despesas


ou disposições de bens de pequena importância. Pelo que, ou a
decisão judicial os proíbe especificamente, ou o acompanhado
estará, neste ponto, menos protegido do que o menor.
Diversa parece ser a situação quanto à relação entre “negócios
da vida corrente” e a capacidade natural do acompanhado.
Podem existir, é certo, negócios ao alcance da capacidade
natural do acompanhado que não sejam “negócios da vida
corrente” (por exemplo, a aquisição de um automóvel, ou de
um imóvel). E neste caso, se estiverem incluídos no âmbito do
acompanhamento decretado pela sentença, o acompanhado
não poderá praticá-los, pois não estão excetuados pela lei.
Já se o negócio não está ao alcance da capacidade natural
do acompanhado, dificilmente poderá ser considerado um
“negócio da vida corrente”, podendo utilizar-se a apreciação
dessa capacidade natural na determinação deste último conceito.
Já quanto aos atos de exercício de direitos pessoais — que
são livres salvo disposição especial da lei ou decisão judicial
—, incluem, entre outros, os direitos de casar ou de constituir
situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar,
de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher
profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar
domicílio e residência, de estabelecer relações com quem
entender e de testar (artigo 147.º, n.º 2). Há, é certo, outros
atos de exercício de direitos pessoais, além dos elencados
exemplificativamente, como as limitações voluntárias aos
direitos de personalidade do acompanhado. Quanto à
indisponibilidade relativa para disposições testamentárias ou
doações, continua prevista no artigo 2192.º, n.º 1 (aplicável às
doações por força do artigo 953.º), agora para as disposições
efetuadas por maior acompanhado a favor de acompanhante
ou do administrador legal dos seus bens.
Ainda sobre as exceções à incapacidade contidas no artigo
127.º, n.º 1, note-se que, por força da eliminação da remissão
para o regime da menoridade, que se fazia quanto aos interditos
e inabilitados (artigos 139.º e 156.º), não se aplica aos maiores
116 • pau l o m ota pi n to

acompanhados a previsão dessas exceções. A exceção da alínea


b) do artigo 127.º, n.º 1, encontra o seu equivalente — embora
incompleto, como vimos — no novo artigo 147.º. Mas não
excetuadas normativamente ficaram as hipóteses de atos de
disposição de bens que o acompanhado haja adquirido pelo seu
trabalho (mesmo depois de decretado o acompanhamento) e
dos atos relativos à profissão, arte ou ofício que o acompanhado
exerça — previstos, para os menores, no artigo 127.º, n.º 1,
alínea a) e c). Apenas a sentença de acompanhamento — e
não já o Código Civil — poderá, pois, excetuar esses atos do
âmbito da necessidade de acompanhamento, quando esta em
geral os abranger.
Note-se, ainda, que o legislador passou a prever
expressamente, a propósito dos poderes do acompanhante
(artigo 150.º), a proibição do acompanhante de atuação
em conflito de interesses com o acompanhado — o que antes
resultava das disposições sobre a tutela e o poder paternal
(artigos 1935.º, n.º 1, e 1892.º). Sendo necessária a prática do
ato, cabe ao acompanhante requerer ao tribunal autorização
ou as medidas concretamente convenientes. A violação deste
dever, que é concretização do princípio subjacente à proibição
do negócio consigo mesmo, tem as consequências previstas no
artigo 261.º: isto é, o negócio celebrado pelo acompanhante
(ou autorizado por ele) em conflito de interesses com o
acompanhado será anulável, a pedido do acompanhado. Pode,
porém, suscitar-se o problema de saber quem pode exercer
este direito de anulação quando o acompanhado não tiver
capacidade natural de querer e entender para o fazer — isto,
uma vez que não parece fazer sentido subordinar a prática do
ato à necessidade de acompanhamento, mas já não exigir este
para a sua anulação e, concomitantemente, para a sua eventual
confirmação. Neste sentido, e embora esteja em causa uma
concretização da proibição do conflito de interesses subjacente
ao regime do negócio consigo mesmo, tendo em conta a
especificidade resultante do facto de se tratar de casos de
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 117

representação legal ou de assistência pelo acompanhante, teria


feito sentido prever a possibilidade de anulação por terceiros
ou pelo Ministério Público7.

3. Distinção do regime dos atos do maior acompanhado


consoante o momento em que são praticados

Tal como atualmente (artigos 148.º, 149.ºe 150.º), o


valor dos atos praticados pelo valor maior acompanhado, e os
requisitos para a sua invalidação, dependem, no novo regime,
do momento em que são praticados. Distingue-se, assim: 1.º)
atos praticados em momento posterior ao registo da decisão de
acompanhamento, regulados no artigo 154.º, n.º 1, alínea
a), correspondente ao anterior artigo 148.º — isto, sendo
certo que se continua a prever que às decisões judiciais de
acompanhamento é aplicável o disposto nos artigos 1920.º-
B e 1920.º-C, pelo que tais decisões serão obrigatoriamente
registadas; 2.º) atos praticados no decurso da ação de
acompanhamento, isto é, depois de anunciado o início do
processo mas antes do registo da decisão de acompanhamento,
regulados no artigo 154., n.º 1, alínea b), correspondente ao
anterior artigo 149.º; e 3.º) atos praticados anteriormente ao
anúncio do início do processo, regidos pelo artigo 154.º, n.º 3,
correspondente ao artigo 150.º na redação anterior.
Importa notar que, segundo o novo regime, o início, o
decurso e a decisão final do processo de acompanhamento
passam a ter uma publicidade que deve ser “limitada ao
estritamente necessário para defender os interesses do
beneficiário ou de terceiros, sendo decidida, em cada caso,

7
Isto, porque a remissão para o regime do artigo 1893.º, aplicável à vio-
lação da proibição de aquisição de bens do filho pelo titular do poder pater-
nal, prevista no artigo 1892.º, não se afigura adequada, podendo o estatuto
de maior acompanhado nunca vir a cessar.
118 • pau l o m ota pi n to

pelo tribunal” (artigo 153.º). Segundo o novo artigo 893.º


do Código de Processo Civil, o “juiz decide, em face do caso,
que tipo de publicidade deve ser dada ao início, ao decurso
e à decisão final do processo”, e, quando necessário, pode
determinar “a publicação de anúncios em sítio oficial, a
regulamentar por portaria do membro do Governo responsável
pela área da justiça”. No entanto, quando o interesse do
beneficiário o justifique, o tribunal pode dirigir comunicações
e ordens a instituições de crédito, a intermediários financeiros,
a conservatórias do registo civil, predial ou comercial, a
administrações de sociedades ou a quaisquer outras entidades,
sobre o início do processo, como se prevê no novo artigo 894.º
do Código de Processo Civil.
Esta limitação da publicidade visa evitar a estigmatização
e o isolamento do acompanhado — rectius, da pessoa contra
a qual apenas foi iniciado um processo de instituição do
acompanhamento — do seu meio social e económico, como
efeito de uma publicidade alargada. É claro, porém, que resulta
daqui uma menor tutela dos terceiros e do comércio jurídico,
na medida em que para estes é importante conhecer o estatuto
jurídico das pessoas com quem tratam, e a consequente firmeza
e validade dos negócios que com eles celebram. Pelo que o
tribunal deverá decidir sobre o grau e formas de publicidade
dada ao início e decisão final do processo, ponderando tanto
o interesse da pessoa objeto do processo de acompanhamento e a
necessidade da sua proteção, como a necessidade de proteção de
terceiros e do comércio jurídico — por exemplo, tendo em conta
a circunstância de essa pessoa manter, ou não, uma atividade
económica, ou em geral negocial, com terceiros (por exemplo,
um estabelecimento comercial), e de estes terceiros poderem
também necessitar de proteção.
Em qualquer caso, o momento do anúncio do processo é
relevante para distinguir os atos praticados antes do início da
ação (rectius, antes do anúncio desse início) e os atos praticados
já no decurso da ação de acompanhamento, que estão sujeitos a
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 119

regimes diversos, designadamente, quanto aos requisitos para


a sua anulação.

4. Atos praticados em momento posterior ao registo da


decisão de acompanhamento

O valor dos atos patrimoniais do acompanhado é, como


se disse, regulado no artigo 154.º. Esses atos, praticados
pelo maior acompanhado, sem observância das medidas
de acompanhamento decretadas (sem representação, sem
autorização ou apoio pelo acompanhante), são anuláveis,
quando forem posteriores ao registo do acompanhamento.
Mantém-se, assim, não só a consequência da anulabilidade
(em conformidade com a ideia de que o vício visa proteger o
interesse privado do legitimado para anular, e não um interesse
público), como o princípio de que a proteção do incapaz — no
caso, do maior acompanhado — prevalece sobre a proteção da
boa fé e confiança de terceiros que ignorem essa situação. Em
todo o caso, na falta de registo das decisões, elas não podem —
como não podiam já as sentenças de interdição ou inabilitação
— ser invocadas contra terceiro de boa fé. Daqui resultará
já, portanto, a partir da decisão final, alguma proteção do
interesse do comércio jurídico e de terceiros que tratem com a
pessoa acompanhada.
A previsão geral da anulabilidade como consequência dos
atos praticados pelo maior acompanhado, depois do registo
da decisão de acompanhamento, sem observância das medidas
de acompanhamento decretadas, requer, porém, algumas
precisões.
Assim, e desde logo, cumpre notar que tal invalidade
é consequência de uma clara alteração do status jurídico do
acompanhado depois desse momento, a partir do qual deixa
de poder praticar validamente os atos incluídos no âmbito do
acompanhamento sem que sejam cumpridas as medidas de
acompanhamento decretadas — a representação legal, a
120 • pau l o m ota pi n to

autorização, outras medidas de apoio. Não é, pois, essa


invalidade, consequência de qualquer influência das causas
que justificaram o acompanhamento sobre o concreto ato que
foi praticado (naquele momento e circunstâncias concretos),
mas antes da falta de um requisito ou pressuposto essencial do
negócio, que é a capacidade negocial de exercício. Com efeito,
a anulação não depende da prova de que, no concreto momento
da prática do ato, o acompanhado não pôde compreender
ou não compreendeu a declaração, ou de que estava sujeito
uma limitação da vontade livre, devido à causa que veio a
justificar a instituição do acompanhamento, ou por qualquer
outra causa. É suficiente (como acontece até agora para os
interditos e para os inabilitados) a prova de que o negócio foi
praticado pelo acompanhado posteriormente ao registo da decisão
de acompanhamento. E isto, também sem que a contraparte
possa provar, para obstar à anulação, que no caso e momento
concretos o acompanhado, apesar de não ter observado as
medidas de acompanhamento decretadas, tinha perfeita
capacidade natural de querer e entender.
Do mesmo modo, o fundamento para a invalidade é
independente do conteúdo do ato, isto é, da apreciação sobre se
ele é mais ou menos favorável ou prejudicial ao acompanhado.
O prejuízo para o acompanhado não é requisito da
anulabilidade — como não era já para os interditos e para
os inabilitados e não é para o menor. É certo que, sendo o
ato apenas anulável, e não nulo, a pessoa legitimada para
intentar a ação de anulação tenderá a só iniciar esta ação se
entender que o ato não é favorável ao acompanhado. Mas
não está aqui em causa um qualquer prejuízo objetivamente
comprovável, ou sequer a prova de um prejuízo subjetivo
para o acompanhado, podendo tratar-se, por exemplo, de um
bom negócio que o acompanhado não podia praticar sem as
medidas de acompanhamento, e que a pessoa legitimada para
anular não pretende que subsista (por exemplo, uma venda
por bom preço de um objeto de estimação, ou de um quadro).
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 121

O fundamento da anulabilidade é a restrição da capacidade


negocial de exercício — como para os menores —, e não o
prejuízo para o agente.
Problemas mais graves se suscitam na determinação do regime
da anulabilidade em causa — em particular da legitimidade e
do prazo para a invocação — e da confirmação do negócio.
Com efeito ao eliminar a remissão para o regime dos menores,
o legislador da Lei n.º 49/2018 eliminou também a resposta
específica que para estes problemas se encontrava na redação
originária do Código Civil.

4.1. Legitimidade

A legitimidade para promover a anulação deixou de estar


prevista especificamente no Código Civil. Apenas existe
previsão específica para os maiores acompanhados no artigo
903.º do Código de Processo Civil, na sua nova redação.
Segundo esta norma, transitada a decisão, pode o acompanhante
requerer a anulação dos atos praticados pelo acompanhado,
quando estejam abrangidos pelo acompanhamento. A norma
refere-se expressamente apenas aos atos praticados após
expedição de comunicações a entidades, decidida pelo tribunal
(isto é, no decurso da ação), mas deve aplicar-se igualmente,
até por maioria de razão, à legitimidade para anular atos
praticados posteriormente ao registo do acompanhamento, dela
resultando, pois, que o acompanhante tem legitimidade para a
ação de anulação.
Já nos parece difícil defender que a legitimidade do
acompanhante para anular os atos do acompanhado, praticados
sem observância das medidas de acompanhamento, resulta
diretamente do regime geral do artigo 287.º, n.º 1, do Código
Civil, pois é claro que o acompanhante não é a pessoa em cujo
interesse a lei estabelece a anulabilidade. Justamente por isso,
a legitimidade prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a), não
decorria já do artigo 287.º, n.º 1. Apenas poderia, assim, tratar-
122 • pau l o m ota pi n to

se de uma legitimidade do acompanhante em substituição ou em


representação do próprio acompanhado (a pessoa em cujo interesse
a lei estabelece a anulabilidade), e, portanto, apenas para os casos
em que o acompanhante é representante legal daquele. Mas que
já não poderia incluir, por exemplo, os casos em que é apenas
assistente, pois então não se vê como poderia ter legitimidade
para anular em representação do acompanhado.
Do artigo 287.º, n.º 1, apenas decorreria, assim, a
legitimidade do próprio acompanhado para anular os atos
que ele praticou pessoalmente, sem observar as medidas de
acompanhamento decretadas. Simplesmente, não parece
fazer sentido que o acompanhado não possa praticar o ato sem
observar tais medidas, mas já possa decidir pessoalmente,
independentemente dessas medidas, se anula ou não o ato que
ele próprio praticou e que não podia praticar — e, se não
o anula, se o deixa convalidar pelo decurso do tempo ou o
confirma mesmo.
Nem se objete que o acompanhado pode ter entretanto
recuperado a capacidade natural de querer e entender, e que
o acompanhado não carece em geral de capacidade de exercício.
Quanto ao primeiro ponto, além de ignorar que a capacidade
natural em concreto, ou a sua ausência, é irrelevante para a
existência da anulabilidade do ato (e que, portanto, tem de ser
irrelevante para o início do decurso do prazo de anulação),
não permite impor o ónus de anular ao acompanhado só por
esse facto, pois a necessidade de acompanhamento mantém-
se. Quanto ao segundo, é claro que, independentemente
de o acompanhado poder não sofrer de uma incapacidade
geral, para aquele ato em concreto — e é da anulação ou
da convalidação desse ato que se trata — não dispunha de
capacidade sem observar as medidas de acompanhamento.
Pelo não deve também poder decidir sobre a sua convalidação
ou anulação sem tais medidas.
Entendemos, pois, que o problema da legitimidade do
próprio acompanhado para anular — e do início do decurso do
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 123

prazo para tanto — apenas poderá pôr-se quando cessa a causa


do acompanhamento, e este cessa ou é modificado, nos termos
do artigo 149.º, deixando de incluir o ato em causa. Qualquer
outra solução poderia deixar perigosamente desprotegido o
próprio acompanhado, obrigando-o a intentar uma ação de
anulação quando ainda carece de acompanhamento.
A eliminação da remissão para o regime dos menores deixou
também sem previsão específica a legitimidade dos herdeiros
do acompanhado para anular (artigo 125.º, n.º 1, alínea c)), a
qual apenas poderá agora resultar da aquisição, por sucessão
hereditária, desse direito potestativo, de que o acompanhado
dispunha, e que podia exercer atualmente (se já tinha cessado
o acompanhamento) ou em potência (caso faleça antes de
cessar o acompanhamento).

4.2 Prazo

Do mesmo modo, também o prazo dentro do qual a ação de


anulação deve ser proposta não ficou especificamente previsto
para os atos do acompanhado.
Pareceria dever recorrer-se ao regime geral do artigo 287.º,
n.º 1, do Código Civil, que prevê o prazo de um ano a contar
da cessação do vício que fundamenta a anulabilidade. A lei
esclareceu, no artigo 154.º, n.º 2, que esse prazo de anulação
só começa a contar-se a partir do registo da sentença, mas este
dies a quo só releva para os atos praticados anteriormente a
esse registo, na pendência da ação. Já para os atos posteriores
ao registo da sentença, a nova redação do Código Civil —
ao eliminar a remissão para o regime da menoridade (artigo
125.º) prevista para os interditos e para os inabilitados, em
conformidade com o afastamento de uma incapacidade geral
por equiparação com os menores — nada diz, porém, sobre o
termo inicial do prazo de anulação.
Pensamos que esse prazo deve ser de um ano a contar
do conhecimento do ato pela entidade que pode anular (e que
124 • pau l o m ota pi n to

é em regra o acompanhante, como vimos). E isto, não por


aplicação do artigo 287.º, n.º 1 (pois o vício não cessa com
tal conhecimento do ato pelo acompanhante), mas antes por
analogia com o disposto no artigo 125.º, n.º 1, alínea a), norma
que continuará assim a aplicar-se. E isto, quer quanto ao
termo inicial do prazo para anulação pelo acompanhante, quer
quanto ao seu termo final, uma vez que são tão procedentes
para o acompanhado como para os menores as razões que
justificam que, depois de cessado o acompanhamento, só a ele
deva caber o juízo sobre a anulação, e não ainda ao seu anterior
acompanhante. O acompanhante poderá anular, pois, no prazo
de um ano a contar do conhecimento do negócio, mas nunca
depois de cessar o acompanhamento, ou de ser modificado
por forma a deixar de incluir o ato em causa.
Já o próprio acompanhado terá um ano a contar da cessação
do acompanhamento, seja nos termos do artigo 287.º, n.º 1
(pois é nesse momento que cessa o vício), seja por aplicação
analógica da alínea b) do n.º 1 do artigo 125.º
E também os herdeiros poderão anular depois da morte
do acompanhado, dispondo para tanto de um ano, também
por aplicação analógica do artigo 125.º, n.º 1, alínea c).
Este prazo deverá ser de um ano, como prevê esta norma,
independentemente de estar já a correr quando o acompanhado
faleceu, por o acompanhamento ter sido levantado há menos
de um ano (pois a não ser assim o prazo poderia ser muito
exíguo), ou de ainda não ter começado a correr. Tal como os
herdeiros adquirem sempre o direito de anular, ainda que o
acompanhado falecido ainda o não pudesse fazer, também o
devem poder fazer no prazo de um ano a contar do falecimento,
previsto no artigo 125.º, n.º 1, alínea c).
De igual modo, apesar de a nova redação da lei civil, que
não prevê especificamente o prazo de anulação, não ressalvar
expressamente essa hipótese (como faz no artigo 125.º, n.º
1), a invocação da anulabilidade, por via de ação ou exceção,
poderá ter lugar a todo o tempo se o negócio ainda não estiver
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 125

cumprido, mesmo depois de esgotado o prazo de anulação, em


aplicação do disposto no artigo 287.º, n.º 2. Esta norma contém
uma regra geral aplicável a todos os prazos de anulabilidade,
segundo a qual, não estando o negócio ainda cumprido, ele
não é ainda uma realidade passada, pois o cumprimento irá
realizar-se no futuro, e deve manter-se o direito de anular,
quer como exceção contra a exigência de cumprimento, quer
por via de ação.
Estas legitimidades e prazos de anulação — para o
acompanhante, para o acompanhado e para os herdeiros —
são, aliás, a nosso ver, independentes entre si, pelo que, tal
como os menores depois de atingirem a maioridade, ou os
seus herdeiros, também o acompanhado depois de cessar o
acompanhamento, ou os seus herdeiros, podem anular ainda
que o prazo já se tivesse esgotado para outros legitimados.
Com efeito, a relevância da situação de facto, que justifica a
atribuição de legitimidade ao acompanhante, ao acompanhado
e aos herdeiros, e respetivos prazos, não difere da relevância
da situação dos menores, sendo independente da eliminação
da equiparação dos acompanhados aos menores quanto ao
âmbito da incapacidade — o regime da anulabilidade, no que
toca à legitimidade e aos prazos, deve, por isso, ser aplicado
analogicamente, arriscando-se qualquer outra solução a
proteger menos os maiores acompanhados do que os menores,
sem que isso seja imposto pelo respeito pelo princípio da
necessidade da limitação da capacidade civil.
Em todo o caso, e até por comparação com a previsão sobre
os prazos e legitimidade para anular na redação originária do
Código Civil, era recomendável maior clareza do legislador
na previsão legal explícita da legitimidade e do prazo (quer
na duração, quer no seu dies a quo) para a anulação dos atos
praticados pelo acompanhado sem observância das medidas de
acompanhamento decretadas, previsão que deixou de existir por
força da eliminação da remissão para o regime da menoridade.
E o mesmo pode dizer-se quanto ao regime da confirmação,
o qual está especificamente previsto para os menores no artigo
126 • pau l o m ota pi n to

125.º, n.º 2, mas não é aplicável aos maiores acompanhados.


Também quanto a estes temos, porém, por certo que a
ausência de aptidão para a prática de um ato sem observância
das medidas de acompanhamento tem de conduzir a igual
ausência de aptidão para o convalidar pelo decurso do prazo ou
para o confirmar expressa ou tacitamente.

5. Atos praticados no decurso da ação

Quanto aos atos da pessoa acompanhada praticados no decurso


da ação, isto é, depois de anunciado o início do processo — incluindo
depois do envio de comunicações a entidades como instituições
de crédito, intermediários financeiros, conservatórias do registo
civil, predial ou comercial, administrações de sociedades ou a
quaisquer outras, decidido pelo tribunal nos termos do artigo
894.º do Código de Processo Civil —, poderão também ser
anulados pelo acompanhante (artigo 903.º do mesmo Código),
mas apenas após a decisão final (no prazo de um ano), e caso se
mostrem prejudiciais ao acompanhado.
Exige-se, pois: 1.º) que a decisão final seja no sentido do
decretamento de medidas de acompanhamento; 2.º) que os
atos tenham sido praticados pela pessoa a acompanhar sem
que tais medidas, a decretar, tenham sido observadas; e 3.º) que
tais atos se mostrem prejudiciais ao acompanhado (artigo 154.º,
n.º 1, alínea b), do Código Civil, na nova redação).
Embora a redação da lei seja agora menos clara do que a do
artigo 149.º do Código Civil, na redação originária (que exigia
que “se mostre que o negócio causou prejuízo ao interdito”),
deve continuar a exigir-se, para estes atos praticados no
decurso da ação, que eles se mostrem logo prejudiciais no
momento da sua prática8 não relevando o prejuízo superveniente

8
Assim também já, para o regime atual, Carlos Alberto da Mota Pinto,
Teoria geral do direito civil, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, 232.
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 127

(por exemplo, devido a uma alteração dos valores dos bens em


causa) resultante de negócios que no momento em que foram
concluídos não eram prejudiciais à pessoa a acompanhar.
Com efeito, a maior proteção do acompanhado que
pareceria resultar da relevância também de atos que apenas
supervenientemente se mostram prejudiciais ao acompanhado
é mais do que contrabalançada pelo efeito de isolamento, e de
impedimento de continuação da sua atividade, com o início de
um processo de acompanhamento, que resultaria da potencial
relevância de um prejuízo superveniente: logo a partir desse
momento quaisquer terceiros se recusariam a contratar com a
pessoa objeto desse processo (e num momento em que ainda
se não pode saber sequer se o acompanhamento virá a ser
decretado), com receio de que os negócios que concluíssem
não ficassem firmes, ainda que não fossem prejudiciais a essa
pessoa a acompanhar no momento em que foram concluídos,
pois poderiam vir a ser impugnados com sucesso devido a uma
evolução que supervenientemente os viesse a tornar prejudiciais.
Afigura-se, aliás, que esta é a razão para a lei ter exigido, já
para a anulabilidade dos atos praticados no decurso da ação
pelo interdicendo ou pelo inabilitando, o requisito do prejuízo,
ao contrário do que acontece para os atos praticados depois da
decisão (atualmente, da decisão sobre o acompanhamento)9.
Enquanto para estes últimos a apreciação sobre a conveniência
de anular é deixada na dependência do interesse e vontade

E, no domínio do Código de Seabra, Manuel de Andrade, Teoria geral da


relação jurídica, vol. ii, Almedina, lições publicadas em 1960 por A. Ferrer
Correia e Rui de Alarcão, 87-88.
9
V. Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, ii, 88: sem
esse requisito do prejuízo, o “interdicendo ficava, pois, atado de pés e
mãos, sem possibilidades de concluir os negócios que lhe fossem necessá-
rios para adequadamente gerir os seus interesses, consequência tanto mais
grave e intolerável quanto é certo que pode vir a reconhecer-se que ele é
perfeitamente são de espírito, negando-se a requerida interdição. Para ob-
viar a tais inconvenientes é que a lei actual resolveu modificar este regime
no sentido indicado”,
128 • pau l o m ota pi n to

do legitimado, independentemente de um prejuízo objetivo,


tal poderia revelar-se gravoso para a pessoa contra quem foi
iniciado um processo de acompanhamento. Pois se mesmo os
negócios que não lhe fossem prejudiciais pudessem mais tarde
vir a ser anulados, essa pessoa seria logo excluída do tráfico
jurídico-negocial com o mero anúncio do início da ação, já
que ninguém quereria correr esse risco, num momento em
que não se sabe ainda sequer se o acompanhamento virá a ser
decretado. Justamente por isso, a lei exige o prejuízo, dando a
segurança à contraparte de que, se o negócio não prejudica o
incapaz, será firme (sendo que a lei até utiliza agora a expressão
“se mostrem prejudiciais”, legitimando a interrogação sobre se
esse prejuízo tem não só de ser logo originário como tem de
ser aparente para a contraparte).
Acresce que o risco de um prejuízo superveniente — não
previsível aquando da celebração do negócio (ou este seria logo
prejudicial) — é um risco geral, não específico da situação da
pessoa acompanhada, que não deve por força do decretamento
do acompanhamento poder ser transferido para a contraparte,
sob pena de isolar logo a pessoa em causa quando é iniciado
um processo de acompanhamento — e isto, mesmo que o
início do processo careça da autorização dessa pessoa ou do
suprimento dessa autorização.
Já não exige, porém, para anulação dos atos praticados
no decurso da ação: nem a prova de que o acompanhado
estivesse sob a concreta influência intelectual ou volitiva da
causa que fundamenta a instituição do acompanhamento no
momento do negócio (basta que o ato tenha sido praticado
no decurso da ação, que o acompanhamento venha a ser
decretado e que não tenham sido observadas as medidas de
acompanhamento que vieram a ser decretadas); nem a prova
de que a situação da pessoa contra a qual estava a correr um
processo de acompanhamento era conhecida ou reconhecível
pela contraparte (a prova da má fé desta), pois também aqui a
proteção da confiança e expetativa da contraparte cede perante
a proteção do acompanhado.
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 129

Os atos do acompanhado praticados no decurso da ação, se


forem anuláveis, poderão ser anulados pelo acompanhante, no
prazo de um ano a contar do registo da sentença (artigos 154.º,
n.º 2, do Código Civil, e 903.º do Código de Processo Civil).
Mas poderão também ser anulados pelo próprio acompanhado,
depois de cessado o acompanhamento, ou pelos seus herdeiros,
tal como vimos para os atos praticados depois do registo da
decisão de acompanhamento.

6. Atos anteriores ao anúncio do início da ação

Quanto aos atos praticados pela pessoa posteriormente


acompanhada, mas em momento anterior ao início do processo,
continua a aplicar-se — como se prevê hoje para a interdição
e para a inabilitação — o regime da incapacidade acidental
(remissão do artigo 154.º, n.º 3, para o artigo 257.º).
Assim, será necessário demonstrar, em primeiro lugar, que
no momento do ato a pessoa que veio posteriormente a ser
objeto de acompanhamento se encontrava impossibilitada de
entender o sentido da declaração ou não tinha o livre exercício
da vontade (artigo 257.º, n.º 1, primeira parte). Não basta
a existência posterior do acompanhamento, com dispensa da
prova das condições subjetivas do agente quando praticou o
ato, como acontece em geral para os atos praticados depois de
iniciado o processo, ou depois de registado o acompanhamento.
Além disso, requer-se que a situação de impossibilidade de
entender o sentido da declaração ou de falta do livre exercício
da vontade fosse conhecida do declaratário ou notória, isto
é, que uma pessoa de normal diligência a pudesse reconhecer
(artigo 257.º, n.º 1, segunda parte, e n.º 2). Trata-se de
exigência que é feita pela lei para proteger a confiança legítima
do declaratário na validade da declaração, a qual, para os atos
praticados antes do início do decurso da ação, prevalece sobre
a proteção do agente.
130 • pau l o m ota pi n to

O prazo de anulação será igualmente de um ano, mas a


contar da cessação da situação de impossibilidade de entender
o sentido da declaração ou de falta do livre exercício da vontade
(e não do registo da sentença de acompanhamento, pois a
anulação é independente deste), competindo a legitimidade para
anular ao próprio acompanhado (ou seus herdeiros), nos termos
do artigo 287.º, n.º 1, ou ao acompanhante (aqui apenas em
representação do acompanhado, se for seu representante legal).

7. Dolo do acompanhado

Também afetada pela eliminação da remissão para o regime


da menoridade foi a aplicação ao acompanhado do regime do
dolo do menor — isto é, o regime do dolo do acompanhado, que
utilize artifícios ou sugestões para fazer crer à outra parte que não
necessita para a prática do negócio de qualquer acompanhamento
(por exemplo, adulterando a sua identidade, a decisão de
acompanhamento, ou forjando uma decisão de cessação).
O problema é objeto do artigo 126.º do Código Civil,
segundo o qual o menor que tenha usado de dolo para se fazer
passar por maior não tem o direito de invocar a anulabilidade.
Discute-se, como se sabe10, se esse artigo 126.º visa impor
uma espécie de sanção, impedindo apenas o menor de invocar
a anulabilidade, ou proteger contra o dolo os interesses do
tráfico jurídico e do declaratário, por estar atenuado o ónus de
diligência deste último, não permitindo a nenhum legitimado
a anulação do negócio. Propendemos neste último sentido, e
entendemos também que, em qualquer caso, não está em causa
no artigo 126.º qualquer sanção ou obrigação de reparação a
cargo do incapaz.

V., por exemplo, C. Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª
10

ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra
Editora, 2005, 230.
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 131

É certo que se poderá por vezes chegar a soluções semelhantes,


pelo menos quanto a alguns maiores acompanhados, no sentido de
impedir que invoquem a anulabilidade depois de terem utilizado
de dolo, por recurso a figuras gerais como o abuso de direito,
nas modalidades de proibição do tu quoque, do dolus praeteritus
ou do venire contra factum proprium, desde que a limitação de
capacidade de que padeçam não impeça tal aplicação11.
Este último ponto está, porém, longe de ser claro. E, de
qualquer modo, entendemos, como dissemos, que a ratio do
impedimento previsto no artigo 126.º se prende, não com
um impedimento à atuação do menor ou do acompanhado,
mas com a tutela da confiança da contraparte. Pelo que
preferimos aplicar por analogia essa norma à situação do maior
acompanhado, sendo certo que esta aplicação, justificada pela
idêntica relevância material das situações do menor e do maior
acompanhado dolosos, não é impedida pela inexistência de
uma incapacidade geral deste último, ou pelo respeito pelo
princípio da proporcionalidade na limitação ao direito
fundamental à capacidade civil.

8. Aplicação no tempo

O regime jurídico do maior acompanhado, com a


eliminação dos institutos da interdição e da inabilitação, entra
em vigor, como dissemos, em fevereiro de 2018. A aplicação
no tempo deste diploma pode suscitar problemas, quer quanto
aos processos pendentes, quer quanto aos atos praticados pelo
incapaz, quer quanto ao âmbito das inabilitações e interdições
em vigor (de pretérito).

11
Considerando o regime do artigo 126.º do Código Civil como um
afloramento da regra expressa pela locução tu quoque, v. António Mene-
zes Cordeiro, Tratado de direito civil, iv: Parte Geral. Pessoas, Almedina,
2011, 481.
132 • pau l o m ota pi n to

O artigo 26.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 49/2018, previu que


essa lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e
de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor,
devendo o juiz utilizar os seus poderes de gestão processual e
de adequação formal para proceder às adaptações necessárias
nos processos pendentes, adequando-os ao novo regime.
Ao regime dos atos dos requeridos, por sua vez, aplica-se
a lei vigente no momento da sua prática (artigo 26.º, n.º 3,
da Lei n.º 49/2018). Trata-se da solução (tempus regit actum)
conforme com os princípios gerais de aplicação da lei no
tempo, e com o artigo 12.º do Código Civil.
Vimos que os negócios próprios da vida corrente do menor e
os atos pessoais continuam a ser livres, salvo disposição especial
da lei ou decisão judicial em contrário. E que no artigo 147.º
se qualificam também como atos pessoais os direitos de casar ou
de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou
de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de
escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de
fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem
entender e de testar. Problema delicado pode, porém, suscitar-se
no caso da alteração do âmbito da incapacidade, designadamente
naqueles casos em que a lei deixou de prever uma incapacidade
para a prática de determinados atos, ou para o exercício de
certas funções, e passou a remeter para a eventual restrição
concreta contida na sentença de acompanhamento — o que
acontece, como vimos, com a capacidade nupcial (novo artigo
1601.º, alínea b)), com a capacidade para perfilhar (novo artigo
1850.º, n.º 1), com o exercício do poder paternal (novo artigo
1913.º, n.º 1, alínea b)), com o poder de representar o filho e
de administrar os seus bens (novo artigo 1913.º, n.º 2), com o
exercício da tutela (novo artigo 1933.º, n.º 1, alínea b)), com o
exercício da administração de bens por maiores acompanhados
(novo artigo 1970.º, alínea a)), com o exercício das funções de
cabeça-de-casal (novo artigo 2082.º), ou com a capacidade para
testar (novo artigo 2189.º, alínea b)).
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 133

Previu-se que às interdições e inabilitações decretadas antes da


entrada em vigor da Lei n.º 49/2018 é aplicável o regime do
maior acompanhado, sendo atribuídos, no caso dos interditos,
ao acompanhante poderes gerais de representação ou cabendo,
no caso dos inabilitados, ao acompanhante autorizar os atos
antes submetidos à aprovação do curador. Os tutores e curadores
nomeados antes da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018
passam a acompanhantes, aplicando-se-lhes o novo regime legal
(artigo 26.º, n.ºs 4, 6 e 7, da citada Lei). Além disso, o juiz
pode autorizar a prática de atos pessoais, direta e livremente,
mediante requerimento justificado (artigo 26.º, n.º 5).
A orientação geral quanto a muitos destes atos — em
particular quanto à capacidade para casar, para perfilhar, para
testar, para exercer o poder paternal ou a tutela, para administrar
bens ou para exercer a função de cabeça de casal — foi a de
eliminar a proibição geral, ex vi legis, para casar, perfilhar, exercer
responsabilidades parentais ou a tutela, para administrar bens
ou para testar, remetendo antes para a restrição em concreto
destes direitos resultante da sentença de acompanhamento. Mas é
claro que as interdições ou inabilitações de pretérito resultam de
sentenças que não continham tais restrições, pois elas estavam
previstas na lei. Prevê-se, por isso, no artigo 26.º, n.º 8, da
Lei n.º 49/2018, que os acompanhamentos resultantes dos
n.ºs 4 a 6 desse artigo (isto é, resultantes da conversão das
interdições ou inabilitações de pretérito) “são revistos a pedido
do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, à luz
do regime atual”.
Pode, porém, duvidar-se de que tal revisão seja realizada
em todos os casos, antes de fevereiro de 2019. Pelo que se
suscitará a questão de saber se a esses interditos e inabilitados,
agora convertidos por força da lei em maiores acompanhados,
deve, como parece resulta da redação do artigo 26.º, n.ºs 3
a 6, na falta de decisão judicial e de norma legal restritiva,
passar a ser reconhecida capacidade para a prática daqueles
atos e para o exercício das funções referidas (como resulta da
134 • pau l o m ota pi n to

revogação das normas legais limitativas da capacidade). Ou se,


pelo contrário, continuarão a ser considerados incapazes, pelo
menos quanto à prática de atos pessoais, até à revisão de cada
acompanhamento resultante da conversão de interdições ou
inabilitações, apenas podendo ser praticados esses atos pessoais
direta e livremente se autorizados pelo juiz (como se prevê no
artigo 26.º, n.º 5).
Em qualquer caso, recomenda-se que se proceda, com
urgência, à revisão em concreto das situações desses interditos
e inabilitados de pretérito, a fim de declarar quais os atos
e funções que cada um deles poderá passar a desempenhar
validamente, de acordo com o novo regime legal do maior
acompanhado.

9. Qualificação da situação do maior acompanhado e


apreciação global

Não é este ainda o lugar e o tempo para proceder a uma


avaliação geral e aprofundada do novo regime do maior
acompanhado — a qual, além do mais, efetuada quando ainda
está a decorrer a vacatio legis, se arriscaria certamente a ser
prematura. Confirma-se, porém, que se trata, sem dúvida, de
uma alteração muito relevante no direito das pessoas previsto
no Código Civil.
Eliminou-se a incapacidade geral de maiores decretada pelo
tribunal (como acontecia com os interditos), e a sua equiparação
aos menores. A supressão da referência à incapacidade de maiores
não foi, porém, total. Pese embora a eliminação da designação
“incapacidades” (na epígrafe da Secção V do Capítulo I do
Subtítulo I do Título ii do Livro I do Código Civil, que passou
a ser intitulada «Menores e maiores acompanhados»), manteve-
se referência a uma incapacidade nalgumas normas. Assim, no
artigo 320.º, n.º 3, a propósito da suspensão da prestação a
favor de menores ou de maiores acompanhados, passou a dizer-
se que tal suspensão é “aplicável aos maiores acompanhados que
VALOR JURÍDICO DOS ATOS DO MAIOR ACOMPANHADO • 135

não tenham capacidade para exercer o seu direito, com a diferença


de que a incapacidade se considera finda, caso não tenha
cessado antes, passados três anos sobre o termo do prazo que
seria aplicável se a suspensão se não houvesse verificado” (itálico
aditado). Nesta norma (e também, por exemplo, no artigo
1643.º, n.º 1, alínea a), a propósito da anulação do casamento
com fundamento em impedimento dirimente, em que a lei se
refere a um “incapaz”), o próprio legislador reconhece, pois, que
a situação do maior acompanhado continua a ser, no domínio
abrangido pelo acompanhamento, a de uma incapacidade de
exercício de direitos.
Consoante o que se preveja na sentença — cujo papel na
configuração da restrição à capacidade de exercício avulta,
pois, em maior medida no futuro, como só acontecia antes,
e em limitada medida, para o inabilitado — a situação do
acompanhado poderá, pois, continuar a ser qualificada,
também dogmaticamente, como sendo a de uma incapacidade
para o exercício de direitos, pelo menos quando estiver sujeito
ao exercício das responsabilidades parentais ou no âmbito dos
atos ou categorias de atos sujeitos à exigência de representação
ou de autorização pelo acompanhado, ou quanto aos bens cuja
administração estiver entregue a um administrador.
Tratar-se-á então de atos para cuja prática o acompanhado
não tem aptidão sem observância das medidas de
acompanhamento decretadas, as quais consistirão, as mais
das vezes, na sua representação legal ou na sua assistência. E os
atos praticados pelo acompanhado sem respeitar essas medidas
— atos próprios ou atos não autorizados — continuam a ser
inválidos. Deve, portanto, continuar a falar-se, nesse âmbito,
de um incapaz, e de uma incapacidade de exercício de direitos,
embora a lei não preveja como regra a incapacidade geral de
agir dos maiores acompanhados, e o seu exato recorte dependa
da sentença de acompanhamento.
O regime do maior acompanhado respeita, pelo seu âmbito
e objetivos, os compromissos a que o Estado português se
obrigou, quando aprovou e ratificou a Convenção de Nova
136 • pau l o m ota pi n to

Iorque sobre os direitos das pessoas com deficiência. E,


pela sua maior maleabilidade e configurabilidade judicial
atendendo às circunstâncias concretas, pode dizer-se
também que corresponde melhor às exigências do princípio
da proporcionalidade na limitação do direito fundamental à
capacidade civil.
É certo que, num ou noutro aspeto técnico-jurídico (como
no que diz respeito ao regime da anulabilidade), poderiam
ter sido e podem ser introduzidas algumas benfeitorias, pelo
menos úteis, no regime do maior acompanhado. E, sobretudo,
a alteração do estatuto legal dos interditos e inabilitados
de pretérito para a prática de certos atos pessoais ou para o
desempenho de certas funções justifica que se recomende,
com urgência, a revisão, de acordo com o novo regime, das
situações concretas de acompanhamento de maiores resultantes
da conversão legal dessas interdições e inabilitações.
Mas globalmente, a apreciação que deve ser feita é, a
nosso ver, claramente a de que o novo regime corresponde
a um indiscutível progresso na previsão de instrumentos que,
com respeito pelo princípio da proporcionalidade e pelos
direitos fundamentais (incluindo o direito à capacidade civil)
das pessoas com deficiências, ou com outros problemas de
capacidade natural de querer e entender, permitam apoiar e
proteger essas pessoas. Neste sentido, ele corresponde também
a um importante avanço, até civilizacional, que não pode
deixar de ser efusivamente saudado!
O NOVO REGIME
DO MAIOR ACOMPANHADO
E O DIREITO DAS SOCIEDADES

PEDRO MAIA

1.Introdução

A Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, introduziu uma


profunda alteração no regime das incapacidades no direito
português, substituindo os institutos da interdição e da
inabilitação por um novo regime, o do maior acompanhado.
Uma alteração bem-vinda ao direito português, que assim
ficou alinhado com a tendência dos ordenamentos jurídicos
mais avançados e, sobretudo, se adaptou às necessidades e aos
interesses das pessoas maiores impossibilitadas, “por razões de
saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer,
plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos
mesmos termos, cumprir os seus deveres” (assim dispõe o novo
enunciado do artigo 138.º do Codigo Civil).

DOI: 10.47907/livro/2022/Maior_Acompanhado/Cap06
138 • P ED r o M a i a

O novo regime legal, além de merecer aplauso pelo seu


conteúdo, tem recebido justos elogios pela sua qualidade
técnica: na terminologia, no equilíbrio da redacção, no rigor
técnico, na arrumação sistemática1.
O núcleo essencial de intervenção do legislador foi,
consabidamente, o pretérito regime da interdição e
inabilitação, constante dos artigos 138.º a 156.º do Código
Civil. Naturalmente, não poderia deixar de ser objeto de novo
regime um conjunto de matérias, desde logo, de natureza
processual, mas também no corpo do Código Civil, que
diretamente dependiam de uma nova filosofia inspiradora. No
Anteprojeto da autoria de António Menezes Cordeiro, com
a colaboração de António Pinto Monteiro e Miguel Teixeira
de Sousa2, sustentou-se que o perímetro da reforma deveria
cingir-se às normas do Código Civil — desde logo, os artigos
138.º a 156.º, mas também outras normas que, neste diploma,
contivessem referências ao interdito ou inabilitado — e do
Código de Processo Civil na medida estritamente necessária.
Esta orientação básica de nível mínimo de modificação não
obstou a que outros pontos (“mais emblemáticos ou sensíveis”)
fossem também modificados. E assim, a par de uma norma
de remissão geral (artigo 23.º da Lei n.º 49/20183) — que

Vide António Pinto Monteiro, “Das incapacidades ao maior acom-


1

panhado — Breve apresentação da Lei n.º 49/2018”, Revista de Legislação


e de Jurisprudência 148/4013 (2018) 83 s.; Paulo Mota Pinto, “Valor ju-
rídico dos atos do maior acompanhado”, neste volume (embora ressalvan-
do que “num ou noutro aspeto técnico-jurídico (…) poderiam ter sido e
podem ser introduzidas algumas benfeitorias, pelos menos úteis no regime
do maior acompanhado”).
2
Cfr. António Menezes Cordeiro, “Da situação jurídica do maior
acompanhado — Anteprojeto de reforma”, Revista de Direito Civil 3/4
Coimbra: Almedina (2018) 689.
3
Aí se dispõe que “todas as referências legais a incapacidades por
interdição ou por inabilitação, que não tenham sido expressamente
alteradas pela presente lei, são havidas como remissões para o regime do
maior acompanhado, com as necessárias adaptações”.
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 139

dispensou o legislador de modificar pontualmente um número


vastíssimo de diplomas —, foi proposta a alteração de alguns
diplomas, para acolher um regime adaptado ao novo instituto
do maior acompanhado.
É esse o caso do Código das Sociedades Comerciais, que viu
alteradas duas normas: o artigo 186.º, n.º 1, al. b) — relativo à
exclusão de sócio de sociedade em nome coletivo — e o artigo
414.º-A, n.º 1, al. j) — respeitante a “incompatibilidades” de
membros do conselho fiscal da sociedade anónima.
Deste modo, foram diretamente alteradas três normas de
direito das sociedades:
i) o artigo 1003.º do Código Civil — relativo à exclusão de
sócio de sociedade civil;
ii) o artigo 186.º, nº 1, al. b), csc — aplicável à exclusão de
sócio de sociedade em nome coletivo;
iii) e o artigo 414.º-A, n.º 1, al. j), csc — sobre “impedi-
mentos” de membros do conselho fiscal da sociedade
anónima.
Sublinhe-se que estas alterações não constituem uma
revisão do regime no quadro do direito das sociedades — não se
trata de uma reforma do direito das sociedades —, mas tão-só,
por opção assumida do legislador, de uma adaptação (mínima)
de normas que continham uma referência literal e expressa à
interdição ou inabilitação.
A assumida e devidamente justificada opção do legislador
levou a que a reforma se repercutisse em outros preceitos e
aspetos de regime além dos que foram expressamente objeto de
alteração. Desde logo, nos regimes que acolhem os preceitos
alterados por via de remissão, como sucede com as sociedades
em comandita simples: nenhum preceito diretamente aplicável
a este tipo societário foi alterado, mas, em virtude da remissão
para as sociedades em nome coletivo (artigo 474.º csc),
verificou-se uma alteração indireta.
Por outro lado — e este é um aspeto bastante mais relevante
—, porque diversas normas do Código das Sociedades
140 • P ED r o M a i a

Comerciais, apesar de não invocarem o instituto da interdição


ou da inabilitação e de, por isso mesmo, não terem sido
alteradas, servem-se de um outro conceito que confronta com
aqueles institutos: o da “capacidade jurídica plena”. É o que
sucede no artigo 252º, nº 1 (o gerente deve ser uma pessoa
singular com capacidade jurídica plena), no artigo 357.º, n.º
2 (o representante comum dos obrigacionistas, sendo pessoa
singular, deve ter capacidade jurídica plena), no artigo 390º,
nº. 3 (os administradores das sociedades anónimas devem ser
pessoas singulares com capacidade jurídica plena), no artigo
414.º, n.º 3 (as pessoas singulares que integrem o conselho
fiscal da sociedade anónima devem ser pessoas com capacidade
jurídica plena), e no artigo 425.º, n.º 6, al. d) (os membros do
conselho de administração executivo não podem ser pessoas
singulares sem capacidade jurídica plena). Por via de remissões,
o âmbito de aplicação de algumas destas normas é estendido,
por exemplo, a sociedades em comandita por acções.
Como se verá (infra, 2. e 3.), a reforma do regime das
incapacidades veio colocar questões de interpretação específicas a
respeito deste conjunto de preceitos que não foram alterados, mas
cuja relação com os antigos institutos da interdição e da inabilitação,
bem como, agora, com o do maior acompanhado é incontornável.
Os três preceitos alterados serão apreciados em dois blocos
distintos: o primeiro bloco compõe-se do artigo 1003.º do
Código Civil e o artigo 186.º, n.º 1, al. b), do csc — ambos
aplicáveis à exclusão de sócio, num caso da sociedade civil, no
outro da sociedade em nome coletivo; noutro bloco iremos
apreciar o artigo 414º-A, nº 1, al. j), csc — que versa sobre
matéria inteiramente distinta (“impedimentos” de membros do
conselho fiscal da sociedade anónima) — e as suas implicações
sobre a interpretação de outras normas.
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 141

2. O artigo 1003.º do Código Civil e o artigo 186º, nº


1, al. b), do Código das Sociedades Comerciais

2.1. Enquadramento das opções do legislador

A redacção dos artigos 1003.º CCiv e 186.º, n.º 1, al. b), csc
era, até à reforma de 2018, praticamente idêntica: em caso de
interdição ou inabilitação, o sócio podia ser excluído. A exclusão
assentava numa deliberação dos sócios: em rigor, dos outros
sócios, uma vez que o sócio excluendo se encontrava impedido de
votar (v. artigos 1005.º CCiv e artigos 186º, nº 2, csc).
O regime estribava-se no entendimento de que, uma vez
declarado interdito ou inabilitado, o sócio teria de ser representado,
o que constituiria “intromissão”4 de um terceiro, incompatível
com o intuitus personae destas sociedades, a que alguns autores
juntavam o argumento de o sócio interdito ou inabilitado não
poder prestar a colaboração que estas sociedades reclamam5.

4
Cfr. Raúl Ventura, Novos estudos sobre sociedades anónimas e socieda-
des em nome colectivo, Coimbra: Almedina, 1994, 299.
5
Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.
ii, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, 319; A. J. Avelãs Nunes,
O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais, reimpr. da ed. de
1968, Coimbra: Almedina, 2002, 188 s.; Luís Brito Correia, Direito co-
mercial, ii, Lisboa: aafdl, 1989, 472 s. (juntando o argumento de que
um sócio interdito ou inabilitado pode afectar o crédito da sociedade);
António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, vol. ii, 2.ª ed., Coim-
bra: Almedina, 2014, 215 (“visa-se, grosso modo, reagir a situações que
tornem o sócio inaproveitável, em termos de fins da sociedade”); Luís Ma-
nuel Teles de Menezes Leitão, Pressupostos da exclusão de sócio nas socie-
dades comerciais, Lisboa: a.a.f.d.l., 1995, 68 s. (e também Idem, Direito
das Obrigações, iii, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2006, 287 (“não resta
qualquer alternativa que não seja a exclusão do sócio”, atento o carácter
intuitus personae do contrato que “impossibilita a intervenção do tutor ou
curador”); Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial,
vol. ii, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, 392 (em edição já posterior à
Lei n.º 49/2018, os fundamentos mantêm-se: v. Idem, Curso de Direito
142 • P ED r o M a i a

O direito de exclusão, consagrado nestes termos, não


constitui uma protecção ao interdito ou inabilitado. Bem ao
invés, é o interesse dos restantes sócios (ou da sociedade, se se
preferir) que fundamenta este regime. Como bem sublinha
Carolina Cunha, em texto ainda anterior à Reforma, “enquanto
o fundamento do resultado desta avaliação no plano civil (a
subtracção da capacidade de exercício) reside na tutela do
próprio interdito ou inabilitado, no plano societário o que
avulta é a protecção da própria sociedade contra as consequências
nefastas da permanência no seu seio de alguém judicialmente
reputado inepto para a gestão da sua própria esfera pessoal e
patrimonial” (sublinhados no original)6.
A sociedade, verificada a interdição ou inabilitação7,
tinha o direito — mas não o dever! — de excluir o sócio.
O que significa que a saída do sócio interdito ou inabilitado
assentaria na conveniência dos restantes sócios, serviria para
tutela do interesse destes, independentemente do interesse do
interdito ou inabilitado.
É certo que a exclusão “não é um confisco” e, portanto, o
sócio excluído terá direito a uma contrapartida. Mas não é
menos certo que essa contrapartida pode não constituir, por

Comercial, vol. ii, 6.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, 407); Pedro Roma-
no Martinez, Da cessação do contrato, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2006,
307 (fundamentando o direito de exclusão na “impossibilidade, ainda que
não culposa, de cumprimento de deveres do sócio interdito ou inabilita-
do); Carolina Cunha, “A exclusão de sócios”, in Problemas do Direito das
Sociedades, 2002, 209 s. (e também Idem, in Jorge Manuel Coutinho de
Abreu, coord., Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. iii
(Artigos 175.º a 245.º), 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, 106.
6
Cfr. Carolina Cunha, “A exclusão de sócios”, 209 (e também Idem,
in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, iii, 106).
7
Ou ainda antes de proferida sentença, desde que demonstrada a im-
possibilidade de o sócio cumprir os seus deveres, caso em que se fundará
na al. a) e não na al. b). Cfr., neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes
Leitão, Pressupostos da exclusão de sócio, 69 s.
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 143

muitas razões, uma compensação verdadeiramente adequada


ou, de todo o modo, uma compensação que torne a exclusão
vantajosa ou conveniente para o sócio excluído. Não é pelo
facto de existir direito ao pagamento de uma contrapartida
que a exclusão se torna do interesse do sócio, como é evidente.
A que acresce, aliás, o facto de os fundamentos invocados
em prol da solução legal poderem não se verificar no caso
concreto: o sócio interdito até podia não ser gerente nem ter
assumido nenhum dever de entrada em indústria; o contrato
de sociedade até podia admitir a representação do sócio por
quaisquer terceiros. Isto é: a interdição ou inabilitação podia,
atenta a sociedade civil ou em nome coletivo em concreto, não
trazer nenhuma perturbação à prossecução do interesse social.
Caso em que alguns autores admitiam que a deliberação de
exclusão pudesse ser havida como abusiva8.
Por isso mesmo, uma outra questão mais essencial se
imporia formular: não deveria um tal caso de exclusão
— pela sua sensibilidade, por não ser sequer automática
ou necessária a lesão do interesse social, por se impor a
necessidade de ponderação do interesse do sócio (interdito
ou inabilitado) carecer sempre de uma decisão judicial, em
vez de se bastar com uma simples deliberação dos sócios?
É esta a orientação seguida no direito germânico9, que nos
parece sem dúvida preferível. Os sócios podem querer a
exclusão, mas cabe ao tribunal, ponderada a situação e os
interesses em confronto, decidir se a exclusão se justifica.
Não era, porém, esta a solução do legislador português, nesta
matéria inspirado pelo direito italiano10.

8
Cfr., por exemplo, Raúl Ventura, Novos estudos sobre sociedades
anónimas, 300.
9
Vide § 140 hgb. Cfr., por exemplo, Schmidt, in Münchener Kom-
mentar zum hgb, 4. Aufl., 2016, C.H. Beck, 2017, § 100, anots. 64 s.
10
Vide Raúl Ventura, Novos estudos sobre sociedades anónimas, 296.
144 • P ED r o M a i a

Dizemos bem, não era. Com a nova redacção dada aos artigos
1003.º cciv e 186.º csc, apesar de não ter sido expressamente
modificada a arquitectura do regime da exclusão de sócio — que
continua a assentar numa deliberação dos sócios —, passou a
incluir-se uma referência à decisão judicial. Como veremos, os
termos em que se encontram redigidos os preceitos em apreço
suscitam dúvidas de interpretação, mas já não parece levantar-
se qualquer dúvida a respeito deste aspecto nuclear: a exclusão
de sócio com fundamento no acompanhamento de maior não
depende, apenas, da vontade dos restantes sócios. Com o que
se afastou o que poderia designar-se de princípio da suficiência
da deliberação social para a exclusão de um sócio11.
No sentido desta primeira conclusão — de grande relevo,
pela enorme importância que tem no novo regime — depõe
de forma muito esclarecedora a anotação constante do
anteprojeto em que a alteração legislativa se fundou. Com
efeito, na anotação à nova redacção proposta para o artigo
1003.º cciv12 pode ler-se:
“1. Substitui-se a referência a “interdição ou inabilitação” pelo
benefício do acompanhamento.
2. Todavia, torna-se inevitável passar pelo juiz: muitas situações de
acompanhamento podem não justificar a exclusão” (sublinhados
nossos).
Se já antes se afigurava criticável o sistema — que deixava
nas mãos dos restantes sócios a liberdade de proceder à exclusão,
independentemente da situação concreta tanto da sociedade, como

11
Identificando este princípio no regime pretérito, vide Manuel No-
gueira Serens, “Notas (Breves) sobre a Exoneração e a Exclusão de Sócios
da Sociedade Civil e da Sociedade em Nome Colectivo”, in Boletim de
Ciências Económicas: Homenagem ao Prof. Doutor António Avelãs Nunes
57/3 Coimbra: Coimbra Editora (2014) 3221.
Cfr. António Menezes Cordeiro, “Da situação jurídica do maior
12

acompanhado”, 703.
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 145

do sócio e dos motivos da interdição ou inabilitação13 —, com


o novo regime aquela anterior opção tornar-se-ia inaceitável.
Desde logo, em virtude de o leque de fundamentos da decisão
de acompanhamento de maior ser agora mais extenso do que o
da pretérita interdição ou inabilitação. Seria incompreensível
que o novo regime, procurando dispensar uma maior e mais
adequada tutela ao sujeito — o que justifica a possibilidade de
beneficiar do regime num leque mais alargado de situações14
—, acabasse por estender automaticamente as consequências
muito gravosas previstas para os casos extremos (de interdição
e de inabilitação) a casos muito menos severos que agora
justificam a medida de acompanhamento: mas não permitiriam
interditar ou inabilitar.
E também o espírito da reforma, muito centrada na proteção
do maior acompanhado e na flexibilidade e ductilidade do
respetivo regime, seria atraiçoada caso persistisse, como
fundamento automático de exclusão, uma qualquer situação
de acompanhamento.
Sendo este o enquadramento do novo regime — que merece
ser louvado —, importa agora apreciar mais de perto problemas
específicos com que a sua aplicação poderá confrontar-se.

13
Embora, no quadro do direito pretérito, M. Carneiro da Frada, in
Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina,
2011, 595, já sustentasse uma interpretação restritiva, quando o funda-
mento residisse na inabilitação do sócio: só a inabilitação que afectasse a
“capacidade comercial” do sócio constituía fundamento de exclusão.
14
No sentido de que os requisitos do acompanhamento são menos
exigentes — e, portanto, o universo de casos de acompanhamento excede
aquele que era abrangido pela interdição e pela inabilitação —, vide Mafalda
Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, Coimbra: Gestlegal, 2018, 52 s.
146 • P ED r o M a i a

2.2. A exclusão fundada no artigo 1003.º, b), cciv

Dispõe o artigo 1003.º, al. b), cciv que a exclusão de um


sócio pode dar-se nos casos previstos no contrato, e ainda
nos seguintes: “em caso de benefício do acompanhamento,
precedendo decisão do tribunal que o tenha decretado”.
A redacção da norma suscita uma primeira questão: quais
são os elementos para estabelecer a relação de precedência a
que o preceito se refere? Do espírito da lei e do seu propósito
expresso no anteprojeto de lei, tem de extrair que o tribunal se
pronunciará depois de os sócios deliberarem a exclusão. Não é o
tribunal (nem, muito menos, o requerente de acompanhamento)
que pode decidir — ou sequer tomar a iniciativa da decisão —
de exclusão: esta é, por definição, o resultado de uma vontade
dos (outros) sócios e, portanto, afigura-se inevitável a exigência
de uma deliberação social de exclusão15.
Pelo que, ao escrever “precedendo decisão do tribunal que o
tenha decretado”, o legislador se referia, certamente, à deliberação
de exclusão: é esta que precede a “decisão do tribunal”.

Em rigor, discute-se se a deliberação pode ser dispensada no caso


15

de a sociedade ter apenas dois sócios, subsistindo de todo o modo o ele-


mento essencial — a vontade, nesse caso, do outro sócio —, manifestada
(eventualmente) sem recurso a uma deliberação social. Na verdade, a re-
dacção do artigo 1005.º, n.º 3, CCiv — onde se estabelece a necessidade
de decisão judicial para a exclusão, quando a sociedade tenha apenas dois
sócios — tem suscitado a questão de saber se a deliberação é, em tal caso,
dispensada, ou se a decisão judicial exigida se segue à deliberação. Sobre a
matéria vide Avelãs Nunes, O direito de exclusão, 299; e Luís Brito Cor-
reia, Direito comercial, ii, 479 s.
Sublinhe-se que não é o mesmo o regime aplicável às sociedades civis e
às sociedades em nome coletivo. Embora o figurino acolhido pelo legislador
seja muito idêntico — a exclusão assenta, em regra, em deliberação dos
sócios, mas exige-se uma decisão judicial em sociedades de dois sócios —,
o legislador dispensava nas sociedades em nome coletivo decisão judicial
quando a exclusão se fundasse na interdição ou inabilitação do sócio (ainda
que a sociedade se compusesse de dois sócios). Acerca da ratio desta distin-
ção, vide Raúl Ventura, Novos estudos sobre sociedades anónimas, 302.
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 147

Por outro lado, apesar de o benefício de acompanhamento


também assentar numa decisão judicial, o preceito reporta-se,
ainda que não expressamente, a duas decisões judiciais distintas:
i) A decisão de benefício de acompanhamento — implícita
na primeira parte da alínea;
ii) E a (eventual) decisão, posterior àquela, sobre a exclusão
do sócio-maior acompanhado, no caso de a sociedade
assim ter (entretanto) deliberado — referida na segunda
parte da alínea.
Deste modo, para que a exclusão venha a ocorrer é
necessário que, tendo sido decretado o acompanhamento do
sócio, a sociedade venha a deliberar a sua exclusão e ainda
que, depois, o tribunal — aquele que tiver decretado o
acompanhamento — se pronuncie (e decida) nesse sentido.
O tribunal decide o acompanhamento e deverá ser chamado
a tomar uma nova decisão — caso os sócios hajam deliberado
a exclusão — a respeito desta16. Na verdade, parece claro que
na decisão sobre o acompanhamento o tribunal não poderá,
em nenhuma circunstância, pronunciar-se sobre uma exclusão
que ainda não pôde ser decidida, justamente por ainda não
existir, ao tempo, o fundamento de que depende. O tribunal
só pode pronunciar-se sobre a exclusão depois de esta ser
deliberada; por sua vez, a exclusão só poder ser deliberada
depois de ter sido decretado o acompanhamento; portanto,
na fase da (primeira) decisão a respeito do acompanhamento
o tribunal não pode apreciar uma exclusão (com fundamento
em ter sido decretado o acompanhamento), que logicamente
não existe nesse momento.
O acompanhamento de maior continua a ser um fundamento
de exclusão, mas esta — à semelhança, aliás, do que já sucedia

16
Aparentemente em sentido diferente, Jorge Manuel Coutinho de
Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. ii, 408, nota 990, que refere a
necessidade, apenas, da “prévia sentença judicial (decretando o acompa-
nhamento ou a insolvência)”.
148 • P ED r o M a i a

nos casos em que a sociedade se componha de dois sócios


apenas — não opera unicamente com a decisão da sociedade17,
carecendo de uma subsequente intervenção judicial.

2.3. A exclusão fundada no artigo 186º, nº 1, al. b), csc

O enunciado do artigo 186.º, n.º 1, al. b), csc, que era


praticamente igual ao do preceito correspondente para as
sociedades civis (artigo 1003.º, al. b)), passou a diferenciar-
se. A sociedade em nome coletivo18 pode excluir o sócio “em
caso de acompanhamento de maior, quando assim resulte da
decisão judicial de acompanhamento (…)”.
À semelhança do que sucede naquela disposição do Código
Civil, também o novo teor do artigo 186.º csc invoca a decisão
judicial: não é, portanto, o simples facto de ter sido decretado
o acompanhamento do maior que permite fundamentar, sem
mais, o direito de exclusão.
Contudo, em vez de exigir uma pronúncia do tribunal
sobre o caso concreto, reconhecendo o direito à exclusão —
na interpretação que fazemos do artigo 1003.º cciv —, o
artigo 186.º csc parece pressupor que a decisão judicial de
acompanhamento já se pronuncie sobre a matéria: a sociedade
pode excluir o sócio em caso de acompanhamento de maior
“quando assim resulte da decisão judicial de acompanhamento”.
É difícil admitir que a decisão judicial expressamente
preveja a exclusão do sócio: quando muito pode resultar da
decisão que tal exclusão ocorreu anteriormente19. Porém, não é a

Ou do outro sócio, para quem entenda que é dispensável a delibera-


17

ção da sociedade quando esta se componha de dois sócios apenas.


E também a sociedade em comandita simples, mercê da remissão do
18

artigo 474.º csc.


Por exemplo, se a decisão relacionar os bens (conforme se prevê no
19

artigo 902.º cpc) e destes já não constar a parte social, em virtude de o


maior acompanhado ter sido excluído.
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 149

essa hipótese que respeita a norma em apreço. O artigo 186.º csc


configura a possibilidade de o acompanhamento ser fundamento
de exclusão de sócio, pelo que, evidentemente, não se reporta a
uma exclusão anterior: para que a situação de acompanhamento
possa ser fundamento da exclusão tem de a preceder.
Uma vez que o sentido da norma é o de a exclusão ter na
decisão judicial o seu fundamento, apenas duas possibilidades
se anteveem.
A primeira consiste em resultar da decisão a impossibilidade
de o maior acompanhado cumprir as obrigações que sobre
ele impendem enquanto sócio. Por exemplo, cumprir a sua
obrigação de entrada em indústria. Ou cumprir a obrigação que
eventualmente tenha assumido de exercer o cargo de gerente.
Sendo este o caso, a decisão judicial nos termos em que
foi tomada revela a impossibilidade de o maior acompanhado
cumprir as suas obrigações de sócio e, portanto, deveria
admitir-se — é um entendimento possível, que estamos a
figurar — que, sem outra decisão ou sem nova pronúncia do
tribunal, ocorresse a exclusão.
Parece-nos, todavia, que esta solução, além de se apartar
sem motivo que consiga vislumbrar-se daquela que resulta
para as sociedades civis, acabaria por desproteger os interesses
do maior acompanhado. Na verdade, em muitos casos não será
evidente ou indiscutível que a situação de maior acompanhado
implique violação de deveres de sócio. Basta pensar nos casos
em que todos os sócios sejam gerentes da sociedade em nome
coletivo, mas em que não exista um dever específico de ocupar
o cargo. Nesse caso, a situação de maior acompanhado deve
suportar a exclusão?
Embora a letra da lei não se refira a uma decisão judicial tomada
em separado sobre a admissibilidade da exclusão — alude-se
unicamente à “decisão judicial de acompanhamento” —, parece-
nos que deve entender-se esta referência em termos amplos,
isto é, no sentido de que não respeita apenas à versão original
da decisão judicial de acompanhamento, mas a todas aquelas
150 • P ED r o M a i a

decisões que, subsequentemente, o tribunal venha a tomar


no âmbito do mesmo processo. Conforme decorre do artigo
155.º cciv, o tribunal pode rever a decisão de acompanhamento
proferida — tem até o dever de o fazer, no mínimo de cinco em
cinco anos — e, à semelhança do que sucede para as sociedades
civis, a exclusão de sócio deve ser avaliada pelo tribunal. Isto,
para que este possa, em face do caso concreto e dos motivos
do decretamento do acompanhamento de maior, decidir se a
exclusão pretendida pela sociedade deve ou não proceder.
Esta afigura ser a implicação inevitável do novo regime:
a grande variedade e flexibilidade de situações em que o
maior acompanhado pode encontrar-se e a variedade da sua
situação jurídica impedem que o fundamento para a exclusão
se estabeleça em abstrato e de modo automático. Como
justamente se refere na anotação ao artigo 1003.º “torna-se
inevitável [a exclusão] passar pelo juiz: muitas situações de
acompanhamento podem não justificar a exclusão”. Esta
fundamentação, apresentada a propósito da sociedade civil,
não pode deixar de valer, pela absoluta identidade de interesses
e mesmo de regimes, também para a sociedade em nome
coletivo.
Em suma: não obstante a divergência dos respetivos
enunciados normativos e não obstante algumas dificuldades
de interpretação que a letra dos preceitos possa suscitar, deve
entender-se que a exclusão de sócio (de uma sociedade civil
ou de uma sociedade em nome coletivo) com fundamento
no acompanhamento de maior carece de uma intervenção
judicial, que afira — em face das circunstâncias específicas que
determinaram o acompanhamento, das medidas decretadas e dos
deveres que na sociedade impendem sobre aquele sócio —, se a
exclusão se justifica.
Deste modo, a redacção do n.º 3 do artigo 186º csc, que
permaneceu inalterada, perdeu parte do seu sentido. De facto,
no que toca às sociedades compostas por dois sócios, afasta-
se o regime comum da exclusão — assente numa deliberação
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 151

da sociedade — para se exigir uma decisão judicial (artigo


186.º, n.º 3, csc). Porém, ao passo que, nas sociedades civis, a
exigência de uma decisão judicial se aplica se excepções (artigo
1005.º, n.º 3, cciv), o legislador comercial entendeu aplicar
tal regime apenas aos casos de exclusão com fundamento nas
alíneas a) e c) do artigo 186.º, n.º 1, csc, mantendo a regra da
mera deliberação para os casos da alínea b).
Independentemente da apreciação que devesse merecer
esta opção do legislador, o preceito dispensava sem dúvida a
intervenção do tribunal para a exclusão quando esta se fundasse
na interdição ou inabilitação do sócio. Uma vez que, mercê da
alteração agora introduzida na redacção do artigo 186º, nº 2,
al. b), essa intervenção passou a ser necessária sempre — quer
a sociedade se componha de dois sócios quer não —, os dizeres
do artigo 186.º, n.º 3, passaram a ter um alcance distinto.
Antes, ao mencionar apenas as alíneas a) e c), a lei afastava da
necessidade de intervenção judicial os casos previstos na al. b)
(interdição ou inabilitação); agora, ao mencionar as alíneas a)
e c), a lei acrescenta, mas apenas para os casos de sociedade de
dois sócios, a necessidade de intervenção judicial: intervenção
que, na hipótese da 1.ª parte da al. b) (maior acompanhado),
já é exigida, tenha a sociedade dois sócios ou mais. De modo
que, nas sociedades compostas por dois sócios, somente a
exclusão com fundamento em declaração de insolvência do
sócio não carece de decisão judicial (artigo 186.º, nº 2, al. b),
2.ª parte, e n.º 3, csc).

2.4. O direito de exoneração do maior acompanhado

As normas que regulam o direito de exoneração na sociedade


civil (artigo 1002.º cciv) e na sociedade em nome coletivo
(artigo 185.º csc) não foram alteradas. Dir-se-ia, portanto,
que a Reforma não modificou esse regime.
Não modificou, com certeza, mas, em nosso entender, deu
um novo contributo para a reasposta a uma questão que vinha
sendo bastante debatida.
152 • P ED r o M a i a

O direito de exclusão, conforme já foi sublinhado, visa a


tutela do interesse da sociedade (dos restantes sócios). Pelo que
pode bem suceder que, apesar de terem o direito de excluir o
maior acompanhado, os sócios prefiram mantê-lo na sociedade:
mantém-se ilimitadamente responsável pelas dívidas, a sua
intervenção na vida da sociedade pode ser dispensável… Quer
dizer: a situação de acompanhamento pode não prejudicar, em
nada, os interesses dos outros sócios e, portanto, estes podem
optar por não exercer o direito de exclusão.
Mas, perguntar-se-á: e a tutela dos interesses do maior
acompanhado?
Na verdade, a situação em que se encontre pode ser altamente
lesiva dos seus interesses, sobretudo no plano patrimonial.
A situação de maior acompanhado pode impossibilitá-lo
de exercer qualquer actividade de fiscalização da sociedade
ou controlo da actuação dos restantes sócios (enquanto
gerentes, desde logo); do mesmo passo que a sua qualidade
de sócio lhe impõe a assunção de responsabilidade por todas
as dívidas da sociedade. Num caso como este, a situação de
maior acompanhado implicará um gravíssimo desequilíbrio
da posição do sócio, posto que à máxima responsabilidade
que o tipo societário lhe impõe poderá não corresponder, de
facto, nenhum poder de gestão nem sequer de fiscalização da
atividade. Nas sociedades de responsabilidade ilimitada este
é um binómio essencial: a máxima responsabilidade de cada
sócio está associada ao máximo poder de gerir e de fiscalizar.
Pois bem. Tanto o artigo 1002.º cciv como o artigo 185º
csc preveem a possibilidade de exoneração quando ocorra
justa causa, respetivamente no n.º 2 e no nº 1, al. b). Mas a
esta cláusula geral, o artigo 185.º do csc acrescenta que há
justa causa de exoneração de um sócio quando, "contra o seu
voto expresso…” — e segue-se um elenco de casos.
A doutrina tem discutido se este elenco é taxativo ou
meramente exemplificativo, encontrando-se sustentada
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 153

tanto uma como outra posição 20. Concretamente a respeito


da questão que nos ocupa, não temos dúvidas em afirmar
que uma situação que pessoalmente impossibilite o sócio
de exercer aquele conteúdo mínimo e essencial de direitos
que a posição de sócio numa sociedade de responsabilidade
ilimitada tem de facultar — o direito de participar na
gestão da empresa social e de (pelo menos!) acompanhar
e fiscalizar a atividade — há-de permitir a desvinculação
do sócio. Impor ao sócio — antes interdito ou inabilitado,
hoje acompanhado — que se mantenha na sociedade sem
poder gerir, acompanhar a gestão ou sequer fiscalizar, ao
mesmo tempo que assume responsabilidade ilimitada pelas
dívidas sociais, afigura-se indefensável.
Dir-se-á, com certeza, que os sócios, se quiserem prevenir
essa situação, têm a possibilidade de incluir uma cláusula
nos estatutos que outorgue o direito de exoneração com tal
fundamento. Mas o argumento provaria de mais, porque
levaria então a sustentar que a lei não previsse nenhum
fundamento para a exoneração, posto que os sócios poderiam
sempre prever nos estatutos qualquer das causas de exoneração
agora estabelecidas na lei. A ser assim, não haveria razão para o
legislador estabelecer quaisquer causas de exoneração.

20
No sentido de que o elenco não é taxativo, vide Maria Augusta
França, “Direito à exoneração”, in Novas perspectivas do direito comercial,
Coimbra: Almedina, 1988, 205 s., António Menezes Cordeiro, Direito
das Sociedades, ii, 214 s., Tiago Soares da Fonseca, O Direito de Exone-
ração do Sócio no Código das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra,
2008, pp. 221ss., M. M. Carneiro da Frada, in Código das Sociedades
Comerciais Anotado, 594.
Sustentando, ao invés, a taxatividade do elenco, cfr. Raúl Ventura,
Novos estudos sobre sociedades anónimas, 289 s.; Luís Brito Correia, Di-
reito comercial, ii, 455 (embora em tom dubitativo), Jorge Manuel Cou-
tinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. ii, 398 s.; João Espírito
Santo, Exoneração do sócio no direito societário-mercantil português, Coim-
bra: Almedina, 2014, 713 s.; e Manuel Nogueira Serens, “Notas (Breves)
sobre a Exoneração”, 3223 (ao menos aparentemente, ao escrever que o
regime “se quis taxativo”).
154 • P ED r o M a i a

A questão é mesmo a de o legislador facultar uma


tutela mínima na situação porventura de maior debilidade
ou vulnerabilidade em que o sócio pode vir a encontrar-
se — estar pessoalmente impossibilitado de exercer os seus
direitos e de proteger os seus interesses —, não deixando à
discricionariedade dos sócios, mesmo perante uma tão justa
causa, a possibilidade de privarem o sócio do direito de se
desvincular mediante exoneração.
A orientação que subjaz à Reforma reforça, com certeza,
este entendimento. O assumido propósito de dispensar a
máxima tutela — e a tutela mais adequada e por isso mais
flexível — aos interesses do maior não pode virar-se, afinal,
contra ele, na sua qualidade de sócio de uma responsabilidade
ilimitada. Permitir-se-ia que os outros sócios, prosseguindo
os seus próprios interesses, excluíssem da sociedade o maior
acompanhado; mas já não se permitiria que este, para
salvaguarda do conteúdo útil essencial da sua posição, se
exonerasse! Ao maior acompanhado impor-se-ia a permanência
na sociedade se tal se mostrasse do interesse dos restantes
sócios, mas nada relevaria saber se essa mesma permanência
conflitua com o interesse do acompanhado.
Em suma: sem alterar o regime legal da exoneração de sócio, a
Reforma, pelo espírito que lhe subjaz, veio reforçar os argumentos
no sentido de que o elenco de justa causa de exoneração não é
taxativo e o entendimento de que, portanto, o acompanhamento
do sócio pode constituir justa causa de exoneração21.

21
Porém, tal como deixou de ser automática a exclusão em caso de
acompanhamento de maior, também não será automático o direito de
exoneração: terá de, em face das concretas circunstâncias do caso, avaliar-se a
existência de uma justa causa para o sócio se exonerar.
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 155

3.O artigo 414.º-A, n.º 1, al. j), csc

3.1.Enquadramento geral

Foi também dada uma nova redacção ao artigo 414.º-A,


n.º 1, al. j), csc. Onde antes se lia que não podem ser eleitos
ou designados membros do conselho fiscal, fiscal único ou
revisor oficial de contas “os interditos, inabilitados (…)”,
passou a ler-se que tal “incompatibilidade” impende sobre “os
maiores acompanhados dependentes de representação ou de
autorização prévia para a prática de atos patrimoniais (…)”.
A primeira diferença que ressalta no novo regime decorre
de a proibição ter passado a impender apenas sobre uma
parte dos maiores impossibilitados de exercerem plena, pessoal
e conscientemente os seus direitos. Com a nova redacção do
preceito, a “incompatibilidade” versa unicamente sobre os maiores
acompanhados a quem o tribunal tenha estabelecido o regime da
representação geral ou especial, a administração total ou parcial
de bens pelo acompanhante ou a necessidade de autorização
prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos
(alíneas b), c) e d)22 do artigo 145º, nº 2, cciv).
Apesar de o anteprojeto não expor o motivo da nova
redacção dada a esta norma, parece claro um duplo propósito:
i) Por um lado, não inibir o maior acompanhado do exer-
cício de funções para lá do justificado pela sua situação
pessoal concreta;
ii) Por outro lado, vedar que o exercício de importantes
funções de fiscalização das sociedades anónimas seja co-

22
E porventura também a alínea e), dependendo do conteúdo con-
creto da medida decretada (por exemplo, a exigência de o maior, podendo
celebrar negócios pessoalmente e sem necessidade de autorização, todavia
ter de o fazer com a presença do acompanhante).
156 • P ED r o M a i a

metido a pessoas que, conforme decorre de uma senten-


ça judicial, não gozam das condições pessoais necessárias
para assegurar o cumprimento dos seus deveres legais e
estatutários.
A conciliação destes dois propósitos foi alcançada através
do recorte, no universo dos limites que o regime do maior
acompanhado pode trazer ao exercício de direitos, daqueles que
devem obstar ao exercício das funções de membro do conselho
fiscal. E, portanto, tornando outros eventuais limites à atuação
do maior acompanhado não impeditivos do cargo. Em suma,
o maior acompanhado pode ser membro do conselho fiscal
contanto não se encontre dependente de representação ou de
autorização prévia pata a prática de atos patrimoniais.
Trata-se de uma solução idêntica à acolhida pelo legislador
alemão no § 100 da AktG, que fixou como requisito subjetivo
para integrar o Aufsichtsrat não estar sujeito, em parte ou na
totalidade, a consentimento para a prática de atos sobre o
seu património. A doutrina alemã sublinha que, incidindo a
limitação apenas sobre a prática de atos de natureza pessoal,
não existe obstáculo a integrar o órgão23.
Compreende-se o recorte que o legislador efetuou: um
limite na esfera de atos meramente pessoais não contende
com o exercício das competências e com os deveres inerentes
a um órgão de fiscalização de uma sociedade anónima, pelo
que não deverá impedir o maior acompanhado de ocupar tal
cargo. No fundo, projeta-se no regime do direito societário
a flexibilidade e a adequação que inspira o novo regime do
maior acompanhado, limitando-se, apenas na medida (hoc
sensu) do necessário, a capacidade de exercício do sujeito.
Compreensivelmente, por razões de certeza e de segurança,
o legislador estabeleceu em abstrato o critério que traça a

Cfr., por exemplo, Simons, in Hölters Aktiengesetz, 3. Aufl., Mün-


23

chen: C. H. Beck, 2017, § 100, anot. 7.


O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 157

fronteira, elegendo para esse efeito o facto de o maior estar ou


não limitado na prática de atos patrimoniais. Sendo a sociedade
anónima uma pessoa coletiva destinada ao exercício de uma
atividade económica e o seu fim o incremento patrimonial,
justifica-se que a patrimonialidade dos atos seja o critério
diferenciador.
O regime do artigo 414.º-A aplica-se, por remissão, a outros
órgãos de fiscalização da sociedade anónima, quando esta
adopte diferente estrutura de governo: a comissão de auditoria
(artigo 423.º-B, n.º 3, csc) e o conselho geral e de supervisão
(artigo 434.º, n.º 4). O maior acompanhado que não possa
integrar o conselho fiscal da sociedade anónima também
não poderá, portanto, integrar a comissão de auditoria ou o
conselho geral e de supervisão.
E não poderá igualmente pertencer o conselho fiscal de
sociedades de outro tipo — sociedades por quotas e sociedades
em comandita por acções24 —, mercê de normas que remetem
para a aplicação do regime do conselho fiscal da sociedade
anónima (respetivamente, os artigos 262.º, n.º 1, e 478.º).

3.2. Confronto do artigo 414.º-A, nº 1, al. j), com o artigo


414.º, nº 3, csc

A nova redacção da al. j) do artigo 414.º-A, nº 1, é


desconforme com o disposto no artigo 414.º, n.º 3, onde se
exige, para as pessoas singulares que integrem o conselho fiscal,

24
Não está expressamente prevista na lei a existência de órgão de
fiscalização nas sociedades em nome coletivo, nem nas sociedades em
comandita simples. Mas nada obsta a que os estatutos de tais sociedades
prevejam a existência de tal órgão, caso em que a referida norma lhe será
aplicável, por analogia com o disposto no artigo 262.º, n.º 1, csc: o conse-
lho fiscal não é de constituição obrigatória nas sociedades por quotas, mas,
exercendo os sócios a sua liberdade de o preverem nos estatutos, então
aquele terá de obedecer ao regime legal que o rege na sociedade anónima.
158 • P ED r o M a i a

a “capacidade jurídica plena”. Na versão anterior a agosto de


2018, a redacção deste preceito tornava, de facto, em parte
redundante a al. j) do artigo 414.º-A, n.º 2: se os membros
do conselho fiscal têm de ser “pessoas com capacidade jurídica
plena” — a não ser que se trate de sociedade de advogados ou
de revisores oficiais de contas (414.º, n.º 3, 1.ª parte) —, não
poderiam ser nem interditos nem inabilitados (além de não
poderem ser menores de idade). A proibição do artigo 414.º,
n.º 1, al. j), na verdade, nada acrescentava ao disposto no artigo
414.º, n.º 3 — embora tão-pouco colidisse com esta norma.
Já o mesmo não poderá afirmar-se em face da nova redacção
dada a este preceito pela Lei n.º 49/2018. Com efeito, a al. j)
do artigo 414º-A, n.º 1, apenas impede o exercício do cargo
no conselho fiscal ao maior acompanhado “dependente de
representação ou de autorização prévia para a prática de atos
patrimoniais”. O que significa que outras limitações à sua
capacidade — respeitantes, por exemplo, a atos de natureza
apenas pessoal (admitidas pelo artigo 147.º, n.º 1, in fine, cciv)
— não se inscrevem no âmbito da proibição do artigo 414.º-
A, n.º 1, al. j).
Contudo, se existirem tais limites, ainda que cingidos à
prática de atos não patrimoniais, não poderá dizer-se que o
maior acompanhado goza de uma “capacidade jurídica plena”25
e, portanto, não estará cumprido literalmente o requisito
estabelecido no artigo 414.º, n.º 3. O maior acompanhado
sujeito a um regime que limite a sua livre prática de atos de

25
Embora a lei tenha deixado de qualificar o acompanhado como um
“incapaz”, existem fortes e decisivas razões para entender que, embora em
medida (muito) variável, deva continuar-se a qualificar como incapacida-
de a situação em que o acompanhado pode encontrar-se, desde logo em
virtude de ter sido decretado algum dos regimes previstos no artigo 145.º
CCiv. Genericamente neste sentido, vide António Pinto Monteiro, “Das
incapacidades ao maior acompanhado”, 78s.; Mafalda Miranda Barbosa,
Maiores Acompanhados, 62 s.; e Paulo Mota Pinto, “Valor jurídico dos
atos do maior acompanhado”, neste volume.
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 159

natureza pessoal não estaria impedido de integrar o conselho


fiscal com base no disposto no artigo 414º-A, n.º 1, al. j)…,
mas não cumpriria o requisito subjetivo estabelecido no artigo
414.º, n.º 3, e, portanto, não poderia ser, afinal, membro do
conselho fiscal. De sorte que, na prática, o recorte desenhado
pelo legislador no artigo 414.º-A, n.º 1, al. j) — com o qual
se procurou cingir a “incompatibilidade” apenas a certos casos
de acompanhamento de maior — estaria prejudicado pelo
requisito subjetivo de carater mais exigente plasmado no artigo
414.º, n.º 3 (pessoa singular com capacidade jurídica plena).
A contradição que entre as duas normas se detecta não
pode deixar de ser ultrapassada com primazia do novo regime.
O disposto no artigo 414.º, n.º 3, deve ser entendido à
luz deste novo regime — e da linha orientadora essencial de
cercear a capacidade do maior acompanhado apenas na
medida estritamente necessária (princípio da necessidade)26 —,
entendendo-se a referência à “capacidade jurídica plena” como
respeitando à capacidade jurídica para a prática daqueles atos
que relevam na vida de uma sociedade: os atos de natureza
patrimonial. Ao disposto no 414.º-A, n.º 1, al. j), o artigo
414.º, nº 3, acrescenta a situação de menoridade: mas apenas
esta. O maior acompanhado só não poderá exercer funções
de membro do conselho fiscal se, tal como prescreve o artigo
414.º, n.º 1, al. j), estiver “dependente de representação ou de
autorização prévia para a prática de atos patrimoniais”.
Deste modo, a exigência constante do artigo 414.º,
n.º 3, deve sujeitar-se a uma interpretação restritiva, que
permita salvaguardar um sentido útil à alteração introduzida
pelo legislador na redacção do artigo 414.º-A, n.º 1, al. j).

26
Neste sentido, cfr. António Pinto Monteiro, “Das incapacidades
ao maior acompanhado”, 73 e 82; António Menezes Cordeiro, Tratado
de Direito Civil, vol. IV, 5º ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 559, Mafal-
da Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, 50; e Paulo Mota Pinto,
“Valor jurídico dos atos do maior acompanhado”, neste volume.
160 • P ED r o M a i a

Em suma, as duas normas, tal como sucedia antes, não têm


âmbitos exatamente coincidentes:
i) o sentido útil do artigo 414º, n.º 3, é vedar aos menores
a participação no conselho fiscal;
ii) constando do artigo 414.º-A, n.º 1, al. j), a limitação ao
exercício de funções por pessoas maiores de idade.
Antes, era sobre os incapazes interditos e inabilitados que
impendia esta limitação; presentemente, é apenas sobre os
maiores acompanhados “dependentes de representação ou de
autorização prévia para a prática de atos patrimoniais”.

3.3. O regime dos gerentes e administradores

Até à Reforma, o regime do csc sobre os requisitos subjetivos


para integrar um órgão societário tanto de administração, quanto
de fiscalização, embora não sendo literalmente idêntico para estes
dois grupos de órgãos, era, em substância, homogéneo. De facto, a
qualidade de gerente (de uma sociedade por quotas27) e a qualidade
de administrador de uma sociedade anónima encontra-se reservada
para as pessoas singulares com “capacidade jurídica plena” (cfr.,
respetivamente, artigos 252.º, n.º 1, 390.º, n.º 3, csc).
Conforme referimos, o acesso ao conselho fiscal, a par de uma
referência geral de teor idêntico àquela aplicável aos gerentes

Quanto às sociedades em nom coletivo, o regime fixado no artigo


27

191.º, n.º 3, csc apresenta uma nuance. Embora se proíba que uma pessoa
coletiva seja gerente — o que equivale a exigir que se trate de pessoa singu-
lar —, prevê-se expressamente a possibilidade de, nesse caso, o sócio-pes-
soa coletiva “nomear uma pessoa singular para, em nome próprio, exercer
esse cargo” (sobre este regime vide Alexandre Soveral Martins, in Código
das Sociedades Comerciais em Comentário, 130s.). Regime que não corres-
ponde ao expressamente previsto para a sociedade por quotas (sobre este,
vide por exemplo, Ricardo Costa, in Código das Sociedades Comerciais em
Comentário, vol. iv (Artigos 246.º a 270.º-G); Jorge Manuel Coutinho de
Abreu, coord., 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, 81 s.).
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 161

e administradores — “pessoas singulares com capacidade


jurídica plena” (artigo 414.º, n.º 3) —, estava ainda sujeito à
“incompatibilidade” prescrita para os “interditos ou inabilitados”
(artigo 414.º-A, n.º 1, al. j), na redacção anterior a agosto de 2018).
Ainda que em termos distintos, o problema que
identificámos anteriormente a respeito do atual regime do
conselho fiscal repete-se quanto aos gerentes das sociedades
por quotas e aos administradores das sociedades anónimas. Na
verdade, a referência que persiste à “capacidade jurídica plena”
tem uma de duas implicações:
i) Ou se entende que estão excluídos do exercício daquelas
funções além dos incapazes por menoridade, todos os
maiores acompanhados a quem tenha sido fixada uma
qualquer limitação à sua capacidade;
ii) Ou se entende, de harmonia com o disposto no artigo
414.º-A, n.º 1, al. j), que somente certas limitações à
prática de atos pelo maior acompanhado o impedem de
exercer funções de gerente ou de administrador.
No direito alemão, onde o nosso legislador colheu
importante inspiração, o regime a aplicar em caso de maior
acompanhado (Betreute) é sempre o mesmo, quer se trate
do órgão de fiscalização de uma sociedade anónima (§ 100
AktG) ou do órgão de administração seja de uma sociedade
anónima (§ 76 AktG), seja de uma sociedade por quotas (§ 6
GmbHG)28. A lei é explícita a este respeito, tendo o legislador
usado os mesmos termos para recortar os requisitos que a pessoa
singular há de preencher.

28
Vide, por exemplo, Hans-Joachim Mertens / Andreas Cahn, in
Kölner Kommentar zum Aktiengesetz, Band 2/1, 3. Aufl., Carl Heymanns,
2010, § 76, anot. 117; Hans-Joachim Mertens / Andreas Cahn, in Kölner
Kommentar zum Aktiengesetz, Band 2/2, 3. Aufl., Köln/Berlin/München:
Carl Heymanns, 2013, § 100, anot. 7, Uwe Schneider / Sven Schnei-
der, in Scholz Kommentar zum GmbH-Gesetz, Band I, Dr. Otto Schmidt,
11. Aufl., Köln: Dr. Otto Schmidt, 2012, § 6, anot. 23.
162 • P ED r o M a i a

Não foi esta a orientação seguida entre nós, tendo o legislador


optado por modificar apenas as normas do Código das Sociedades
Comerciais que invocassem diretamente o instituto da interdição
ou da inabilitação, mas deixando intocadas aquelas outras
normas que, sem convocarem literalmente tais institutos, se
conexionavam com eles. Encontram-se neste grupo os preceitos
que exigem a “capacidade jurídica plena”: antes esta exigência
excluía os interditos e os inabilitados — por não gozarem de
capacidade jurídica plena —, mas não é claro que, em face do
novo regime, deva excluir todos aqueles maiores acompanhados
que, em alguma medida, têm a sua capacidade limitada.
Não temos dúvidas de que o espírito da Reforma está plasmado
na nova redacção dada ao artigo 414.º-A, n.º 1, al. j), e só uma
interpretação conforme com esse novo regime deve ser admitida.
A não ser assim, os requisitos legais para o exercício de um cargo
de gerente não só seriam mais exigentes do que os aplicáveis à
fiscalização de uma (grande) sociedade anónima — posto que
qualquer limite à capacidade obstaria ao exercício do cargo de
administração, mas apenas certos limites impediriam o exercício
de funções de fiscalização —, como (e sobretudo!) se mostrariam
infundadamente restritivos do exercício o mais pleno possível pelo
maior acompanhado de todos os seus direitos. Ora, caso o tribunal
não tenha encontrado razões para limitar a prática de atos de natureza
patrimonial — isto é, caso o tribunal não tenha encontrado razões
para inibir o maior de gerir a sua esfera patrimonial —, não se
vislumbra, em abstrato, que possa então haver razão para o impedir
de exercer um cargo de gerência ou de administração da sociedade.
Dir-se-á, com certeza, que a gestão do património próprio
— aquela que o tribunal considerou — pode figurar-se no caso
concreto muito simples, essencialmente passiva e que daí não pode
inferir-se que o maior acompanhado já está igualmente apto a gerir
uma empresa, porventura de grande dimensão ou muito complexa.
Por certo que é assim. Mas trata-se de matéria que se
coloca já num outro plano: o da necessidade de se exigir uma
habilitação concretamente adequada às exigências que cada
O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO E O DIREITO DAS SOCIEDADES • 163

empresa societária — pela sua dimensão, pela complexidade


da atividade, pela exigência técnica, etc. — pode reclamar.
Contudo, como bem se sabe, ressalvados certos regimes
excecionais — mormente, no domínio financeiro —, a
lei não estabelece um requisito de habilitação técnica e de
adequação de competências e de capacidades para alguém
poder ser provido no cargo de gerente ou de administrador de
uma sociedade. Esse é um domínio deixado à autonomia dos
sócios, embora não possa excluir-se o seu controlo, desde logo,
mediante a aplicação do regime do abuso de direito.
De todo o modo, e para terminar, a interpretação dos artigos
262.º e 390.º csc, na parte em que exigem a capacidade jurídica
plena para o exercício do cargo de gerente ou de administrador
tem de fazer-se de harmonia com o novo regime trazido pela
reforma, mormente com a nova redacção do artigo 414.º-A,
n.º 1, al. j), csc. Assim, para tais efeitos, não está dotado de
“capacidade jurídica plena” quem seja menor, bem como (mas
apenas) o maior acompanhado “dependente de representação ou
de autorização prévia para a prática de atos patrimoniais”.

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O REGIME DO ACOMPANHAMENTO:
DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? 1

MAFALDA MIRANDA BARBOSA


Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

I. A lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, veio revogar os


institutos da interdição e da inabilitação e consagrar o regime

1
O texto que agora se publica corresponde, com pequenas alterações
e aditamentos, à nossa intervenção no colóquio sobre O novo regime do maior
acompanhado, que teve lugar no dia 13 de Dezembro de 2018, na Faculdade
de Direito de Coimbra. A nossa comunicação se aproximou muito (acrescen-
tando, contudo, alguns pontos e eliminando outros) daqueloutra que tínha-
mos proferido na ação de formação contínua dedicada ao novo regime dos
maiores acompanhados, que teve lugar no dia 11 de Dezembro de 2018, no
Centro de Estudos Judiciários, cujo texto também será publicado.
Para outras considerações, cf. Mafalda Miranda Barbosa, Maiores acompa-
nhados. Primeiras notas depois da aprovação da lei nº 49/2018, de 14 de Agosto,
Gestlegal, 2018. No estudo que agora se publica, cujo âmbito e intencionalida-
de diferem dos do que citamos, aprofundamos alguns argumentos em relação a
alguns pontos mais críticos da nova disciplina legal. Terá, no entanto, limitações,
decorrentes do facto de procurarmos manter a fidelidade a um registo oral.
166 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

do acompanhamento de maiores2. Fê-lo para dar resposta a


muitos problemas que se vinham fazendo sentir. Procuraremos
dar conta das soluções agora encontradas, refletindo sobre
se seria possível encontra-las no seio dos regimes pretéritos,
e sublinharemos outros (novos) problemas a que entretanto
somos conduzidos.

II. Antes da entrada em vigor da lei (que ocorrerá em


Fevereiro de 2019), os portadores de uma anomalia psíquica,
os surdos-mudos, os cegos, os pródigos, os que abusassem do
consumo de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes podiam
ser, no termo de um processo (de interdição ou de inabilitação,
consoante os fundamentos e, no caso de dizerem respeito a
ambas as incapacidades, consoante a gravidade dos mesmos),
considerados incapazes de exercício de direitos ou ver a sua
capacidade limitada, em ambos os casos para proteção dos
próprios. A regra, agora, é a da capacidade de exercício de
todos os que sejam maiores de dezoito anos, não se admitindo
situações genéricas de incapacidade a partir do momento em
que o sujeito atinge a maioridade.
Tal não equivale, é bom de ver, a uma falta de proteção da
pessoa. Prevêem-se medidas de acompanhamento que visam
garantir a salvaguarda dos interesses dos sujeitos em questão,
quando se mostrem impossibilitados, por razões de saúde,
deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena,
pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de cumprir os
seus deveres.
Mas há uma inversão dos termos da equação: da incapacidade
passamos para a capacidade. E se a seu tempo poderemos
concluir que, afinal, o acompanhamento de maiores pode

2
Cf., a este propósito, A. Menezes Cordeiro, “Da situação jurí-
dica do maior acompanhado. Estudo de política legislativa relativo a um
novo regime das denominadas incapacidades dos maiores”, Revista de Di-
reito Civil iii/3 (2018) 473 s.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 167

redundar na total incapacitação do sujeito, convém referir que


a “revolução coperniciana” a que se assiste não pode deixar de
ter consequências prático-dogmáticas que se traduzem, afinal,
na modelação do próprio regime.

III. São três as ideias chave que presidem ao novo regime.


Com a Lei n.º 49/2018, deixa de ser possível determinar uma
incapacidade genérica, de forma automática. As medidas de
acompanhamento são determinadas pelo juiz em função das
necessidades concretas do sujeito, consagrando-se um princípio
de necessidade, nos termos do artigo 145.º cc. Por outro lado,
o acompanhamento rege-se por uma ideia de subsidiariedade,
só tendo lugar quando as finalidades que com ele se prosseguem
não forem garantidas através do cumprimento de deveres
gerais de cooperação e assistência. Por fim, o acompanhamento
é pensado de modo a salvaguardar ao limite a vontade do
beneficiário, de acordo com uma ideia de autonomia, o que
se comprova também por três notas: o acompanhamento é
requerido, em regra, pelo futuro acompanhado ou com o seu
consentimento; o acompanhante é, em regra, escolhido pelo
acompanhado; e é possível celebrar-se um mandato com vista
ao acompanhamento.

IV. Estas três ideias centrais na modelação do regime do


acompanhamento de maiores libertam-nos da necessidade de
uma previsão taxativa e típica dos fundamentos de aplicação
da ou das medidas em causa. Na verdade, a taxatividade a
que eramos conduzidos no quadro do regime da interdição
e da inabilitação justificava-se pelo facto de estas soluções
implicarem de forma generalizante a supressão ou a
limitação da capacidade de exercício do sujeito. Sendo esta
uma decorrência da capacidade de gozo que o ordenamento
jurídico reconhece a todas as pessoas em nome da ineliminável
dignidade ética que as predica, entendia-se que o regime só
não contrariaria princípios fundamentais do ordenamento
168 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

jurídico se, sendo estabelecido em nome da proteção do


próprio incapaz, se restringisse às hipóteses em que fosse
imprescindível ter alguém a atuar ao lado ou em vez do maior.
Se, no passado, o caráter gravoso das medidas — a importar a
privação ou a restrição da capacidade de exercício — impunha
um cumprimento rigoroso de uma ideia de proporcionalidade
e necessidade que passaria, imperiosamente, pela natureza
excecional dos remédios, a apontar para a tipicidade dos
seus fundamentos, agora, não obstante a mesma natureza
excecional (e de uma ideia de necessidade que continua a
presidir ao regime), porque se parte da capacidade e não da
incapacidade e porque se acolhe a vontade do beneficiário,
o intérprete não tem de ficar limitado por um elenco rígido
de fundamentos. O legislador optou, por isso e bem, pela
delimitação do âmbito de relevância do instituto através de
conceitos indeterminados.

V. São dois os requisitos para que possa ser decretado o


acompanhamento, um de ordem subjetiva e outro de ordem
objetiva.
No que ao primeiro respeita, haveremos de considerar
a impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente
os direitos ou cumprir os deveres. Em causa está, portanto, a
possibilidade de o sujeito formar a sua vontade de um modo
natural e são. Por um lado, há-de ter as capacidades intelectuais
que lhe permitam compreender o alcance do ato que vai
praticar quando exerce o seu direito ou cumpre o seu dever.
Por outro lado, há-de ter o suficiente domínio da vontade que
lhe garanta que determinará o seu comportamento de acordo
com o pré-entendimento da situação concreta que tenha3. Em

3
Pode não ter tal domínio da vontade porque ela está fragilizada
ou porque não consegue torna-la atuante. Pense-se, por exemplo, na si-
tuação de um tetraplégico ou de uma pessoa que, sofrendo de uma atrofia
muscular que não o afeta intelectualmente, não consegue pôr em marcha
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 169

suma, trata-se da possibilidade de o sujeito se autodeterminar,


no que respeita ao exercício dos seus direitos e ao cumprimento
dos seus deveres. A lei prescinde agora dos requisitos da
habitualidade, permanência e durabilidade e permite que
o acompanhamento seja decretado em relação a um especial
domínio da vida do beneficiário e a situações transitórias. Pense-
se, por exemplo, no internamento subsequente a um acidente,
tratamento ou intervenção cirúrgica, que deixa a pessoa
impossibilitada de exercer os seus direitos por um período de
tempo relativamente curto. Mas continua a exigir-se uma certa
constância, até porque o acompanhamento só será decretado
quando não seja possível alcançar as finalidades que com ele se
prosseguem através de deveres gerais de cooperação e assistência
Quanto ao requisito de índole objetiva, exige-se que
a impossibilidade para exercer os direitos ou cumprir os
deveres se funde em razões de saúde, numa deficiência ou no
comportamento do beneficiário. Novamente, a formulação
afigura-se ampla, dando margem ao julgador para cumprir as
finalidades normativas do regime em função das especificidades
dos casos com que se depare. A jurisprudência terá, estamos
seguros disso, um papel fundamental na densificação deste
tríptico de fundamentos. Mas, enquanto os Tribunais (maxime
os Tribunais superiores) não se pronunciarem judicativamente
sobre estas questões, cabe à doutrina ensaiar algumas respostas.
Para tanto, será fundamental quer o conhecimento da base
sociológica que subjaz à disciplina jurídica em apreço, quer do
quadro regulativo anterior.
Nas razões de saúde integram-se quer as patologias de
ordem física, quer as patologias de ordem psíquica e mental.
Parece, portanto, haver um alargamento em relação ao quadro

a sua vontade, de modo que dela se poderá dizer que não tem o domínio
da vontade que lhe permita determinar o seu comportamento de acordo
com o seu entendimento.
170 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

de fundamentos das interdições e inabilitações, não se ficando


preso a uma ideia estrita de anomalia psíquica. Já no que
respeita à deficiência, integram-se na previsão normativa
os cegos e os surdos-mudos, a que já se referia o anterior
regime das interdições e inabilitações, tal como se integram as
deficiências mentais, aí também contempladas. Fundamental
é que a deficiência limite o desempenho do sujeito em
termos volitivos e/ou cognitivos. Serão, por isso, residuais as
situações de cegueira ou surdez-mudez que possam fundar o
regime do acompanhamento, na medida em que dificilmente
determinarão a limitação da possibilidade de exercer direitos
e cumprir deveres, o que não significa que sejam inexistentes.
Finalmente, no tocante ao segmento pelo seu comportamento,
se dúvidas parece não haver quanto à possibilidade de, por
essa via, se contemplarem os casos de comportamento
pródigo, comportamento condicionado pelo abuso de
bebidas alcoólicas e estupefacientes, hesita-se em saber se o
regime se queda nestas hipóteses ou se permite que outros
comportamentos inviabilizadores do exercício de direitos e
do cumprimento de deveres possam ser tidos em conta para
efeitos de decretamento do acompanhamento. Ora, como não
estamos balizados, na tarefa interpretativa, por um princípio
de tipicidade que limite a autónoma constituição normativa,
parece que podemos ir, orientados por este critério-guia,
além das hipóteses clássicas de prodigalidade, de consumo de
bebidas alcoólicas e de estupefacientes. Fundamental é que o
comportamento concreto se repercuta na impossibilidade de
exercer direitos e cumprir deveres, isto é, que o comportamento
seja causa, em concreto, pelo menos num domínio específico
da vida, da falta de autodeterminação da pessoa. Pense-se por
exemplo no sujeito A que é viciado em jogo, condicionando a
gestão dos seus interesses patrimoniais por causa dessa adição,
que curiosamente talvez já pudesse ser assimilado, outrora, pelo
âmbito de relevância da inabilitação, atenta a insuscetibilidade
metodologicamente comprovada de se dar cumprimento à
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 171

proibição de aplicação analógica de normas excecionais (por


não ser possível cindir a interpretação da analogia e por a
interpretação extensiva ser, afinal, um resultado interpretativo
a desconsiderar, substituindo-se pela extensão teleológica que
é, em si mesmo, analogia)4. Mas pense-se também no caso
decidido pelo Ac. stj de 29 de Abril de 2003, no qual estava
em causa um défice cultural evidente determinado por uma
vida dedicada à pastorícia e gerador de dificuldades óbvias de
atuação no tráfico negocial. Se outrora foi recusada (e bem) a
inabilitação, podemos agora pensar que, se o défice cultural
tiver sido causado por um comportamento do próprio sujeito,
é plausível pensar-se no acompanhamento a este propósito.
Na determinação do âmbito de relevância do
acompanhamento, haveremos de ter em conta uma outra
ideia. O regime é edificado com base num princípio de
subsidiariedade. Visando assegurar o bem-estar e a recuperação
do maior, garantir o pleno exercício dos seus direitos e o
cumprimento dos seus deveres, a medida de acompanhamento
só é decretada quando as finalidades que com ela se prosseguem
não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação
e assistência, o que significa que, independentemente da
verificação dos requisitos subjetivo e objetivo da medida de
acompanhamento, pode não se justificar normativamente a
nomeação de um acompanhante. Por último, reforçamos uma
nota: porque a ideia não é incapacitar o sujeito, mas auxiliá-
lo, dando-lhe o apoio necessário, para que exerça na plenitude
a sua capacidade jurídica, o intérprete deixa de estar preso
a uma lógica de taxatividade, o que torna viável uma maior

4
Para uma consideração da eventual possibilidade de, no quadro do
anterior regime da inabilitação, se poder chegar a uma solução próxima, cf.
Mafalda Miranda Barbosa, Maiores acompanhados. Primeiras notas depois da
aprovação da Lei nº49/2018, de 14 de Agosto, Gestlegal, 2018, 9 s. Sobre a
questão metodológica tratada em texto, cf. A. Castanheira Neves, Metodo-
logia Jurídica — Problemas fundamentais, Coimbra: Coimbra Editora, 1993.
172 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

flexibilidade. Acresce que o acompanhamento é decretado a


pedido do beneficiário ou mediante sua autorização. Assim
sendo, o julgador poderá ser menos restritivo. E se é verdade
que, em situações residuais, a mencionada autorização pode
ser suprida pelo tribunal e que, noutras, o Ministério Público
pode requerer o acompanhamento independentemente de
autorização, então, haveremos de reservar para essas hipóteses
um maior rigor no controlo dos fundamentos da adoção da
medida. Institui-se, portanto, um sistema móvel, em que a
falta de manifestação de vontade por parte do acompanhado
deve ser compensada por uma maior exigência na verificação
dos requisitos que se analisam neste ponto expositivo.

VI. O alargamento dos fundamentos do acompanhamento


de maiores é compensado pela menor rigidez do conteúdo
desse mesmo acompanhamento. Este conteúdo não está
definido a priori e não decorre automaticamente da lei. Pode
ir de um mínimo a um máximo, mas, em todo o caso, é o
juiz que determina em concreto, em função das necessidades
particulares do sujeito, a sua modelação. O acompanhamento
corresponde, na expressão de Pinto Monteiro, a um fato à
medida5 e, assim sendo, o desenho concreto que conheça fica
dependente das necessidades específicas do acompanhado.
Inultrapassável é, com efeito, a regra segundo a qual o
acompanhamento se deve limitar ao necessário. Orientado
por este padrão de necessidade, o Tribunal pode atribuir ao
acompanhante um ou vários poderes, consoante o que seja
requerido pela concreta situação do acompanhado, fazendo,
assim, intervir diversos regimes jurídicos. Entre as funções

5
A. Pinto Monteiro, “O Código Civil Português entre o elogio do
passado e um olhar sobre o futuro”, Revista de Legislação e de Jurisprudên-
cia 146/4002 (2017). No mesmo sentido, cf. A. Menezes Cordeiro, “Da
situação jurídica do maior acompanhado. Estudo de política legislativa rela-
tivo a um novo regime das denominadas incapacidades dos maiores”, 542.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 173

que se podem atribuir ao acompanhante, destacam-se, nos


termos do artigo 145.º/2 cc, o exercício das responsabilidades
parentais ou dos meios de as suprir; a representação geral ou
especial, com indicação expressa, neste caso, das categorias de
atos para que seja necessária; a administração total ou parcial
de bens; a autorização prévia para a prática de determinados
atos ou categorias de atos; intervenções de outro tipo.
Significa isto que as situações de acompanhamento podem
ser muito díspares, incluindo situações de assistência ou de
representação, que pode chegar a ser genérica. Mesmo nesses
casos, o acompanhado conserva, em regra, a capacidade
para a celebração de negócios da vida corrente (negócios
que a generalidade das pessoas celebra ou para satisfação das
necessidades do dia-a-dia ou para satisfação de necessidades
que, ultrapassando o quotidiano, fazem ainda parte do
ordinário da vida), nos termos do artigo 147.º/1 cc, bem
como continua a ter capacidade de exercício no tocante a
direitos pessoais, embora a decisão judicial ou a lei possam
determinar a exclusão da capacidade nestes casos.
O n.º 2 do artigo 147.º cc oferece um elenco exemplificativo
de direitos pessoais: direito de casar, de constituir uma união
de facto, de procriar, de perfilhar, de adotar, de cuidar e de
educar os filhos ou os adotados, de escolher a profissão, de
se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e
residência, de estabelecer relações com quem entender e de
testar. Quanto a estes direitos de natureza pessoal, há a destacar
duas notas. Em primeiro lugar, há mais direitos pessoais do
que aqueles que são referidos pelo legislador no citado artigo
147.º/2 cc. Em rigor, todos os direitos de personalidade
podem ser qualificados como direitos pessoais, o que significa
que, por norma, a limitação voluntária destes direitos pode
ser exercida livremente pelo acompanhado, exceto se a decisão
judicial decretar o contrário ou a lei dispuser de outro modo.
Em segundo lugar, importa ter em conta os artigos 1601.º,
1850.º e 2189.º cc. Referindo-se a direitos previstos no citado
174 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

n.º 2 do artigo 147.º cc, e lidando com a capacidade de gozo


de direitos, as alterações verificadas nas respetivas normas
permitem-nos dizer que a reforma introduzida pela Lei n.º
49/2018 também alargou a própria capacidade de gozo dos
sujeitos. É que, enquanto no anterior regime a previsão era,
genericamente, a da incapacidade para testar dos interditos
por anomalia psíquica, da incapacidade para perfilhar dos
interditos por anomalia psíquica, e a incapacidade para casar
dos interditos e inabilitados por anomalia psíquica, agora a
incapacidade fica dependente de ser decretada na sentença
que estabelece o acompanhamento, isto é, fica dependente da
concreta perturbação (e da específica valoração que o juiz dela
faça) do acompanhado.

VII. Vistas as coisas, o acompanhado pode sofrer uma


restrição tão ampla da sua capacidade que, na prática, fica
equiparado a um interdito. Simplesmente, tal só acontece
quando as circunstâncias concretas do sujeito o imponham.
O que antes era a regra, hoje é a exceção. A este propósito,
sublinhe-se que o juiz, em concreto, pode limitar até a
possibilidade de celebrar negócios da vida corrente e o exercício
dos direitos de natureza pessoal. A questão que se impõe é
se esta solução seria, na prática, muito diferente daquilo que
resultaria do regime anterior.
No que aos negócios da vida corrente diz respeito, o artigo
127.º/1 b) cc, prevendo que são excecionalmente válidos os
negócios da vida corrente do menor, que estejam ao abrigo
da sua capacidade natural e envolvam despesas de pequena
importância, era aplicável, por remissão do legislador, ao
interdito ou ao inabilitado. Significa isto que já anteriormente
o sujeito privado da sua capacidade de exercício poderia
celebrar negócios da vida corrente, desde que ao abrigo da sua
capacidade natural. Ora, não se exigindo agora o requisito da
capacidade natural, há que reconhecer que o juiz em concreto
pode excluir da capacidade de exercício do sujeito a celebração
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 175

deste tipo de negócios. Donde a diferença será apenas a da


referência à importância dos bens objeto do negócio.
No tocante aos direitos de natureza pessoal, importa
recordar que a limitação da capacidade de gozo não existia para
todos os interditos e inabilitados; os inabilitados mantinham
a capacidade de exercício no tocante à esfera pessoal (uma vez
que apenas se mostravam impossibilitados de reger os seus
bens); os interditos podiam, se justificado, exercer alguns
direitos pessoais (numa flexibilização que era obtida por via
de uma mobilização adaptativa do artigo 127.º cc, que aliás
continua a ser defendida para o caso dos menores). Ora,
talvez estas sejam as situações em que, de facto, se justificaria
a atuação do sujeito. Fora delas, pensar na capacidade talvez
seja ficcionar uma capacidade que não existe, desprotegendo
o sujeito. Mas, se assim é, então, talvez se vá constatar uma
coincidência prática entre as soluções que eram viabilizadas no
passado e aquelas que chegaremos agora se o juiz, em concreto,
limitar a capacidade.
Mas há que reconhecer que, porque o exercício dos direitos
de personalidade está umbilicalmente ligado à pessoa (a não
ser que em causa esteja a limitação voluntária desses direitos ou
a sua defesa em face da agressão de terceiros), o mais provável
é que o juiz não limite o seu exercício em concreto, sobretudo
quando em causa esteja a simples liberdade genérica de ação o
que, contrariamente ao que ocorreria no quadro dos regimes
anteriores, pode conduzir à necessidade de repensar o âmbito
do próprio artigo 491.º cc e da responsabilidade que, por
via do preceito, pode ser assacada a quem tenha o dever de
vigilância sobre o naturalmente incapaz. É que mesmo não
se confundindo o naturalmente incapaz com o incapaz de
exercício de direitos, há situações em que, porque o sujeito
reclamará a sua liberdade de movimentos ou de ação, o âmbito
de um eventual dever de vigilância se pode reduzir.
176 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

VIII. O acompanhante pode, assim, ter de assistir ou


representar o acompanhado. E o novo regime acaba por
estabelecer limites para a atuação do próprio acompanhante.
No que diz aos atos de disposição de bens imóveis, determina
o artigo 145.º/3 cc que eles carecem sempre de autorização
judicial específica. Tratando-se de um ato do acompanhante
em nome do acompanhado, tal já resultava das regras do artigo
1938.º cc, conjugado com o artigo 1889.º cc. Estes preceitos
são, aliás, mais amplos. De facto, enquanto a norma do artigo
145.º/3 cc fala da disposição6 de bens imóveis, o artigo
1938.º/1 a) cc refere-se à alienação e oneração de bens não
suscetíveis de deterioração. E, embora o conceito de disposição
pareça ser, em certa medida, mais amplo do que o de alienação,
as restantes alíneas dos artigos citados contemplam hipóteses
que se integrariam no conceito de disposição7. A verdade é
que os preceitos em questão se continuam a aplicar ao maior
acompanhado, não pela equiparação ao menor — que inexiste

6
O conceito de ato de disposição não se confunde com o de ato
de alienação. Basta pensar que a doação, configurando uma alienação da
coisa, escapa à distinção entre os atos de disposição e os atos de mera ad-
ministração, por não ser um ato de gestão patrimonial — nesse sentido,
cf. Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. A. Pinto
Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, 406 s.,
em especial 410. Pense-se, ainda, que alguns atos que, sendo considerados
atos de disposição (arrendamento superior a 6 anos), não envolvem qual-
quer alienação e que determinados atos de alienação podem não se confi-
gurar como atos de disposição (quanto a estes veja-se, contudo, as demais
alíneas dos citados artigos 1889.º e 1938.º). Nessa medida, o recurso às
regras da tutela pode ser importante não só pela delimitação mais ampla
do objeto em questão, como pela própria natureza do negócio em causa.
7
Note-se, porém, que quem compra também celebra um negócio
de disposição, donde o artigo 145.º/3 acaba por, nessa perspetiva, parecer
mais amplo do que os restantes artigos citados. Mas só nessa perspetiva.
O artigo 1938.º/1 b) refere-se à hipótese de aquisição de bens, móveis ou
imóveis, como aplicação de capitais do menor. Simplesmente, o preceito
parece apontar para uma ideia de negócio aquisitivo de investimento e não
para uma mera compra.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 177

— mas por expressa determinação do artigo 145.º/4 cc 8.


Resta, portanto, a questão de saber se o n.º 3 do artigo 145.º
se deve ou não aplicar às situações em que o acompanhante
se limita a dar a sua autorização para que o acompanhado
atue e aos atos para os quais o acompanhado mantém a sua
capacidade. No que aos últimos diz respeito, a resposta há-de
ser claramente negativa. Na verdade, se estamos num domínio
em que o maior tem capacidade de exercício de direitos, que não
foi excecionada pelo juiz em face das peculiaridades do caso,
então, haveremos de considerar que aqueles atos em concreto
estão fora do âmbito do acompanhamento, não havendo
razão para se impor o controlo judicial prévio e específico.
Pense-se na hipótese em que A é sujeito a uma medida de
acompanhamento em virtude da impossibilidade de exercer
pessoalmente determinados direitos, fruto de uma adição de
jogo. A compulsão de A para jogar determina que ele dissipe
património, o que leva a que o juiz ordene a representação ou a
assistência em todos os negócios que envolvam uma alienação
de património acima de determinado montante. A celebra com
B um contrato de arrendamento por 7 anos, para sua habitação
permanente. Lidamos com um negócio de disposição que, não
obstante, não está contemplado na sentença. Cremos que em
relação a ele não se justifica a necessidade de obtenção de uma
autorização judicial prévia e específica.
Mas também no que respeita aos atos do acompanhado
autorizados pelo acompanhante, cremos que a resposta
deve ser negativa. Integrando-se no âmbito de relevância da
previsão do citado preceito, a situação do acompanhado ficaria
mais limitada do que a do inabilitado, contra aquela que era a
intencionalidade da disciplina normativa. Se o acompanhado

8
Também o artigo 1937.º cc continua a ser aplicável. Note-se
que, em rigor, a doação não integra o conceito de ato de disposição, por
não se tratar de um ato de gestão patrimonial, pelo que, na ausência de
previsão expressa, o artigo 145.º/3 cc não contemplaria estas hipóteses.
178 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

apenas necessita de assistência, isso significa que ele próprio


pode funcionar como controlo da atuação do acompanhante. O
artigo 145.º/3 cc visa isso mesmo: impedir abusos por parte do
acompanhante (e não o suprimento de qualquer incapacidade
pontual, determinada pelo juiz, uma vez que para tanto bastaria
a atuação do próprio acompanhante). Simplesmente, a atuação
conjunta nas hipóteses de assistência parece afastar a relevância
da intencionalidade normativa. Sem que haja qualquer
contradição com o artigo 150.º cc. É que agora não se trata de
obter a autorização do acompanhado para a celebração válida
do negócio jurídico, mas de considerar que, numa situação
em que não há conflito de interesses, não se tem de sujeitar o
negócio ao crivo do tribunal pelo simples facto de ele incidir
sobre um imóvel e configurar um ato de disposição, porque,
na ausência daquele conflito, o próprio acompanhado poderá
controlar eventuais abusos. Na verdade, a iniciativa negocial é,
nestes casos, do acompanhado, recebendo para a validade do
negócio a autorização do acompanhante. Vejamos. No caso
em que é ordenada a assistência, a vontade do acompanhado
está presente e é manifestada e, de acordo com a valoração
normativa, ela deve ser ponderada conjuntamente com o
interesse. No fundo, desde que não haja uma contrariedade
aberta entre interesse e vontade, parece que aquela deve ser
salvaguardada. Ora, nestes casos, a iniciativa negocial é do
acompanhado (vontade). A autorização do acompanhante
salvaguarda o interesse. Mas o próprio acompanhado pode ver
se há ou não preterição do seu interesse, abstendo-se de agir
em caso afirmativo. A autorização do acompanhante serve,
apenas, para refrear a vontade, naquelas hipóteses em que não
há uma absoluta ausência de autodeterminação. Não se parece,
por isso, justificar o controlo por parte do tribunal. Se assim
fosse, estar-se-ia a equiparar, para estes efeitos, as situações de
assistência às situações de representação, tendo em conta apenas
o interesse. Note-se, aliás, que em caso de conflito de interesses
será aplicável o artigo 150.º cc. Ademais, pergunta-se por que
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 179

razão se instituiria essa cautela no caso dos bens imóveis e não


no tocante a outros bens que podem assumir tanta ou maior
importância, atento o fenómeno de desmaterialização da
riqueza a que se assiste atualmente. No caso de representação,
a vontade do acompanhado está efetivamente ausente. Apenas
conta o interesse. Se houver conflito de interesses entre o
acompanhante e o acompanhado, aplicar-se-á o artigo 150.º
cc. Não havendo, tratando-se de um ato de disposição de bem
imóvel, aplicar-se-á o disposto no artigo 145.º/3 cc. Mas a
essa solução já se chegaria pela aplicação dos artigos 1889.º e
1938.º cc, com um âmbito mais amplo (é certo que há mais
atos de disposição do que atos de alienação, mas também é
certo que as restantes alíneas do artigo 1889.º e as alíneas do
artigo 1938.º contemplam essas outras hipóteses). Redunda
este entendimento num esvaziamento do conteúdo útil do
artigo 145.º/3 cc, na medida em que aqueles preceitos são
aplicáveis por força do artigo 145.º/4 cc. Não cremos que
possa proceder um entendimento segundo o qual este artigo
154.º/4 cc faz uma remissão para os aspetos orgânicos da
tutela e não para os poderes do tutor. Não só nada na norma
autoriza tal interpretação, como, a não se considerarem
aplicáveis aquelas normas, porque, em rigor, a doação não se
integra na summa divisio entre atos de disposição e atos de
mera administração, ela ficaria fora do âmbito de aplicação do
artigo 145.º/3 cc, não se podendo mobilizar o artigo 1937.º
cc, gerando-se um verdadeiro paradoxo jurídico.
Outras são, aliás, as críticas que podem ser dirigidas ao
conteúdo do artigo 145.º/3 cc, como referido acima. Na
verdade, por que razão se haveria de restringir a imposição aos
bens imóveis, quando atualmente há formas de riqueza tão ou
mais importantes que a propriedade imobiliária?

IX. Se, porventura, o acompanhado praticar um dos atos para


os quais a sentença definiu que ele deveria ser representado ou
assistido, tal negócio é anulável, nos termos do artigo 154.º cc.
180 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

Haveremos, porém, de ter em conta diversos momentos


para poder afirmar com segurança qual o valor do ato
praticado. Assim, se for levado a cabo depois do registo do
acompanhamento, a anulabilidade avulta sem outros requisitos
adicionais. Porém, se praticado depois de anunciado o início do
processo de acompanhamento, mas antes daquele registo, o ato
é anulável, exigindo-se, contudo, que uma decisão final de
acompanhamento seja decretada e que tenha causado prejuízo
do acompanhado. Estas eram já exigências que o Código
Civil formulava para a anulabilidade dos atos praticados pelo
interdito ou pelo inabilitado, na pendência do processo, nos
termos do anterior artigo 149.º cc, aplicado diretamente
(no primeiro caso) ou por remissão do artigo 156.º cc (no
segundo caso). Colocava-se, então, o problema de saber se o
caráter prejudicial se deveria aferir por referência ao momento
da prática do ato ou do ajuizamento, entendendo a melhor
doutrina que a referida prejudicialidade se teria de aferir
por referência ao primeiro momento — o da celebração do
negócio9. Assim, e colhendo os ensinamentos da doutrina
anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 49/2018, não
devem ser tidas em conta as valorizações ou as desvalorizações
do bem ou direito posteriores à celebração do negócio.
Já no tocante aos negócios gratuitos, devem ser sempre
considerados prejudiciais10.
Aos atos anteriores ao anúncio do início do processo de
acompanhamento, aplicar-se-á o regime da incapacidade
acidental. O artigo 154.º/3 cc remete, assim, para o artigo
257.º cc, nos termos do qual “a declaração negocial feita por
quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente
incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre
exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja

9
C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 237 s.
10
C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 238.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 181

notório ou conhecido do declaratário”, sendo o facto notório


“quando uma pessoa de normal diligência o teria podido
notar”.
A anulabilidade do negócio celebrado antes do anúncio
do início do processo de acompanhamento é, assim, aferida
caso a caso, em face das circunstâncias existentes no momento
dessa celebração. Exige-se para que ele possa ser anulado, em
primeiro lugar, que o sujeito estivesse momentaneamente
incapacitado, isto é, que, no momento da prática do ato
(momento em que a declaração negocial foi emitida), estivesse
incapaz de entender o alcance do seu ato e/ou de determinar a
sua vontade de acordo com um pré-entendimento que tivesse,
e, em segundo lugar, que esse estado de incapacidade fosse
conhecido ou notório da contraparte. Sê-lo-á, quando uma
pessoa de normal diligência a teria podido notar.
O artigo 154.º/2 cc dispõe que “o prazo dentro do qual
a ação de anulação deve ser proposta só começa a contar-se a
partir do registo da sentença”. A referência é feita, obviamente,
para o caso dos negócios celebrados durante a pendência
do processo de acompanhamento. Contudo, nada mais é
esclarecido pelo legislador no tocante a prazos para arguir a
anulabilidade, por um lado, nem no tocante à legitimidade para
o efeito, por outro lado. E, tratando-se de uma anulabilidade
(contrariamente ao que sucederia no âmbito da nulidade),
não pode deixar de se enfrentar quer a questão relativa a saber
quem pode invocá-la, quer a questão de determinar dentro de
que período o poderá fazer.
No regime da interdição e da inabilitação, o problema
resolvia-se facilmente por determinação do legislador. Sendo
o interdito equiparado ao menor, nos termos do artigo 139.º
cc, e aplicando-se ao inabilitado o regime da interdição em
tudo o que não fosse expressamente consagrado a propósito da
inabilitação, nos termos do artigo 156.º cc, as questões que
agora enunciamos eram resolvidas à luz do artigo 125.º cc.
182 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

Assim, tendo em conta uma disciplina normativa que


determinava a anulabilidade dos atos dos incapazes maiores,
quando praticados depois do registo da sentença de interdição
ou inabilitação, quando levados a cabo na pendência do
processo, desde que a interdição ou inabilitação viessem
a ser efetivamente decretadas e o ato causasse prejuízo,
quando praticados antes da publicidade da ação, verificados
que estivessem os requisitos da incapacidade acidental,
considerava-se, no tocante aos negócios celebrados nos dois
primeiros períodos, que tinham legitimidade para arguir a sua
anulabilidade o representante legal ou o assistente, consoante
os casos, no prazo de um ano a contar do conhecimento, mas
nunca depois de a incapacidade ter sido levantada; o interdito
ou inabilitado, no prazo de um ano a contar do levantamento
da interdição ou inabilitação; os herdeiros, no prazo de um
ano a contar da morte do incapaz, desde que ela ocorresse
antes de esgotado o prazo a que nos referimos em último lugar.
Quid iuris, depois da aprovação da Lei n.º 49/2018?
Perdendo-se a remissão para o artigo 125.º cc, O
acompanhado é, para todos os efeitos, tido como capaz,
ainda que, em concreto, o acompanhamento possa conduzir à
limitação da sua capacidade de exercício (e, em última instância,
à privação dessa capacidade). Por isso, não é equiparado a um
menor. A anterior remissão para o regime da menoridade
desaparece e, com a alteração da intencionalidade predicativa
da medida de proteção dos maiores com debilidades mentais,
físicas ou comportamentais, desaparece também o fundamento
para podermos operar automaticamente essa remissão. O
artigo 125.º cc deixa, por isso, de se aplicar (pelo menos
automaticamente) a maiores e vê confinado o seu âmbito de
relevância aos menores.
Na falta de previsão expressa do legislador, ter-se-á de
aplicar o regime regra contido no artigo 287.º cc, que terá de
ser interpretado à luz do caso concreto.
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 183

Pensemos, primeiro, nos atos praticados depois do registo


do acompanhamento e nos atos praticados na pendência do
processo de acompanhamento. A anulabilidade prevista no
artigo 154.º cc foi estabelecida no interesse do acompanhado.
Assim, por princípio, haveremos de considerar que tem
legitimidade para arguir a anulabilidade. E o acompanhante
terá legitimidade? Este pode representar o acompanhado ou
assisti-lo consoante os casos. Assim, a atuação do acompanhante
em nome do acompanhado ou ao lado do acompanhado deve
ser entendida como a atuação do próprio sujeito beneficiário
da medida de proteção, donde a legitimidade do último
deve estender-se ao primeiro. Não está aqui em causa um
alargamento da legitimidade ativa, mas a consideração de
que o acompanhante age, nos casos em que tem poderes
de representação, como se fosse o próprio acompanhado, e
orienta-o, sempre que tenha poderes de assistência.
Mas a solução de “alargamento” da legitimidade ao
acompanhante só se compreende na articulação dos prazos de
arguição dessa mesma anulabilidade. Esse prazo é de um ano
a contar da cessação do vício que lhe serve de fundamento.
O vício cessa quando a situação de acompanhamento (e,
necessariamente, os fundamentos dela) desaparece. O
acompanhado teria um ano a contar do levantamento do
acompanhamento para arguir a anulabilidade. Acontece que
este levantamento pode nunca vir a ocorrer. Além de que
pode haver interesse em que a desvinculação tenha lugar
num momento prévio. Assim, surgiria o acompanhante a
representar o acompanhado, quando exista essa representação,
ou a orientá-lo, nos casos de atos sujeitos a autorização. O
prazo seria, nestas hipóteses, de um ano a contar do momento
em que cada um deles estivesse em condições de agir, ou seja,
a partir do momento do conhecimento, mas nunca depois do
levantamento do acompanhamento, por nessa fase deixar de
fazer sentido a intervenção do acompanhante. Além disso,
a solução parece também intencionada pelo n.º 2 do artigo
184 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

154.º cc (ou seja, no tocante aos atos praticados na pendência


do processo, o prazo a que aludimos só começa a contar
depois do registo da sentença, mesmo que o conhecimento
seja anterior) e pelo artigo 903.º cpc.
Quer isto dizer que, embora o artigo 125.º cc apenas
se aplique, na sua literalidade e sem a remissão expressa do
legislador, a menores, porque a não aplicação da solução que o
legislador dispensou aos atos daqueles que ainda não perfizeram
dezoito anos aos maiores que beneficiam de acompanhamento
viola a intencionalidade normativa do sistema, haveremos
de considerar que ela se aplica por adaptação aos atos dos
acompanhados. A adaptação implica, porém, que se analise a
posição de cada um dos sujeitos cuja legitimidade se reclama.
Quid iuris, por isso, no que respeita à legitimidade dos
herdeiros? Ocupando os sucessíveis a posição jurídica do de
cuius, dir-se-á que sim, sendo apenas problemática a definição
do prazo em que poderão atuar. Se o acompanhamento já
tiver sido levantado no momento em que ocorre a morte, o
prazo há-de ser apenas o tempo que restaria ao de cuius; se o
acompanhamento ainda não tiver sido levantado quando o
acompanhado morrer, então, haveremos de contar o prazo de
um ano a partir da morte.
Resta-nos analisar o problema por referência aos atos
praticados antes do anúncio do início do processo de
acompanhamento. Quanto à anulabilidade destes, a verificar-
se, tem legitimidade para a invocar o sujeito que, no momento
da celebração do negócio, estava incapacitado de entender e
querer, no prazo de um ano a contar do momento em que as
suas capacidades cognitivas e volitivas lhe permitem a correta
perceção do alcance do ato que praticou e o perfeito domínio da
sua vontade. Quanto ao acompanhante, ele terá legitimidade,
desde que o ato em questão seja um daqueles em relação ao
qual há necessidade de representação ou de assistência. O
prazo será de um ano a contar do conhecimento, não podendo
começar a correr, por aplicação analógica do n.º 2 do artigo
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 185

154.º cc, antes do registo do acompanhamento. Não se lhe


poderá, porém, atribuir legitimidade se o prazo do maior já
tivesse expirado no momento em que o acompanhamento
tenha sido decretado. No fundo, não decorrido o prazo, ele
renova-se a partir do registo do acompanhamento
Em suma, havendo representação, o acompanhado tem
um ano a contar do levantamento para requerer a anulação
do negócio (por ser esse o momento em que cessa o vício,
nos termos do artigo 287.º cc). O acompanhante, atuando
como representante, tem um ano a contar do momento em
que pode agir em representação do maior, ou seja, um ano
a contar do conhecimento (ou, se estiverem em causa atos
praticados na pendência do processo, um ano a contar da
data em que o acompanhamento é registado, a não ser que o
conhecimento ocorra depois). Mas porque a eventual inação
do acompanhante não pode ser imputada ao acompanhado,
não devemos fazer depender o prazo e a legitimidade deste
(depois de levantado o acompanhamento) do destino que foi
dado quer ao prazo, quer a legitimidade do acompanhante.
Repare-se que esta ideia de representação (que nos permite
mobilizar a intencionalidade normativa do artigo 125.º cc,
numa forma de adaptação extensiva do preceito, fazendo-o
equiparar à compreensão do artigo 287.º cc conformada à
luz das exigências do caso concreto) não é posta em causa
pelo artigo 1938.º/1/e) cc, exatamente por estarmos aqui
diante de uma hipótese em que a demora na propositura
da ação pode gerar prejuízos (é essa consideração que, aliás,
justifica o alargamento da legitimidade ao acompanhante).
No caso de assistência, os termos do problema são outros. O
acompanhado terá sempre um ano a contar do levantamento
do acompanhamento. Contudo, porque pode haver interesse
imediato na desvinculação (ou porque o levantamento do
acompanhamento pode não ser expectável ou nem vir a
ocorrer), o acompanhante pode agir, arguindo a anulabilidade
do ato, tendo o acompanhado a seu lado. O prazo é de um
186 • M a fa l da M i r a n da B a r bo sa

ano a contar do conhecimento que o acompanhante haja tido


do negócio. Contudo, tal não invalida o prazo de um ano do
próprio acompanhado a que fizemos referência. Em primeiro
lugar, mais uma vez, não podemos imputar ao acompanhado a
inação do acompanhante (e aqui não há qualquer contradição
com o que se disse em relação ao artigo 145.º/3, uma vez que
partimos agora de uma omissão e não da positiva autorização
de um ato de iniciativa do maior). Em segundo lugar, a
legitimidade do acompanhante é aqui, por interpretação
corretiva do sistema, na conjugação entre a solução predisposta
pelo artigo 287.º e a intencionalidade do artigo 125.º cc, a
do próprio acompanhado, o que em termos processuais terá
consequências (o artigo 125.º cc sendo mobilizado, por
adaptação, não pode aplicar-se automaticamente. Aliás, no
que respeita às hipóteses de assistência, o acompanhante deve
estar apenas ao lado do acompanhado no processo, embora
a sua posição prevaleça sobre a deste), donde aquilo a que se
assiste é a uma mera antecipação de uma legitimidade que
apenas ocorrerá depois do levantamento do acompanhamento.
Assim sendo, em face da inação do acompanhante, nada
impedirá o acompanhado de agir posteriormente. Poder-se-á
questionar por que razão não se alarga a solução do 125.º cc
aos herdeiros do maior acompanhado, no tocante ao prazo.
Na verdade, se o acompanhamento já tivesse sido levantado,
os herdeiros não passam a dispor do prazo de um ano a contar
da morte. Isto pode levantar constrangimentos do ponto de
vista da tempestividade processual, que devem ser superados
com base numa interpretação corretiva do regime da
caducidade. De facto, não podemos aplicar a solução do artigo
125.º automaticamente, porque falta cumprir um dos dois
momentos da analogia jurídica. Se a analogia problemática
está presente, parece falhar a analogia judicativa. Enquanto
no caso do menor o que está em causa é a salvaguarda do
seu interesse, no caso do maior acompanhado, o interesse
tem de surgir sempre balizado pela vontade (já que se parte
O REGIME DO ACOMPANHAMENTO: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE? • 187

sempre de uma ideia de salvaguarda da autonomia, que


leva, inclusivamente, a que, em regra, o acompanhante seja
escolhido pelo acompanhado). Isto quer dizer que, caso o
levantamento do acompanhamento já tivesse ocorrido, não
tendo ainda o antigo acompanhado agido processualmente,
ficamos privados de razões para autonomizar um novo prazo
(há que atender mais à vontade daquele que agora não é já
acompanhado do que ao seu interesse; o prazo há-de ser apenas
aquele que ainda não tinha sido completado).
O MAIOR ACOMPANHADO
E O CONSENTIMENTO
PARA ATOS EM SAÚDE

ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA


Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

1. Introdução

A Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, introduziu o regime


do maior acompanhado, revogando os institutos clássicos da
interdição e da inabilitação. Subjacente a esta reforma encontra-se
o enaltecimento da dignidade da pessoa e da atribuição de primazia
à autonomia dos maiores acompanhados, nomeadamente através
do exercício pessoal, da forma mais ampla possível, dos seus
direitos e da observância dos seus deveres.
Na base desta reforma, que modificou de forma substancial
a Parte Geral do Código Civil, esteve a necessidade de adaptar
este Código ao direito internacional, designadamente à
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas
190 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

com Deficiência (Nova Iorque, 2007), 1 e, de algum modo


também, à Convenção sobre os Direitos do Homem e a
Biomedicina do Conselho da Europa (Oviedo, 1997).2
O regime jurídico do maior acompanhado “representa
um avanço na concretização dos pressupostos da Convenção
sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, nomeadamente
os que se referem às esferas da autonomia e liberdade, e à
promoção do respeito pela sua dignidade”3 e visa ultrapassar a
inflexibilidade, estigmatização e rigidez associados ao regime
que vigorou desde a versão originária do nosso Código Civil.
A regulação presente no Código Civil requer uma análise
sobre o âmbito e conteúdo do acompanhamento, as novas
categorias dogmáticas (o acompanhado, o acompanhante (s)),
mas também da capacidade do acompanhado relativamente
ao exercício de direitos de personalidade, nomeadamente na
área da saúde.
Algumas intervenções na área da saúde mereceram
regulação especial, outras não. Quanto a estas, uma vez que
não há previsão expressa e suficientemente densificada e
ajustada referente às decisões em saúde, colocam-se maiores
dificuldades ao intérprete e na vida prática do instituto,4 até

1
Adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque,
no dia 13 de Dezembro de 2006. Foram publicadas em Diário da Repú-
blica as Resoluções da Assembleia da República n.º 56/2009 e nº57/2009,
que aprovam a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
adotada em Nova Iorque em 30 de Março de 2007, e respectivo Protocolo
Opcional. Foram ainda publicados os Decretos do Presidente da Repú-
blica n.º 71/2009 e n.º 72/2009, que ratificam a referida Convenção e
Protocolo Opcional.
Aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da Repú-
2

blica n.º 1/2001, de 03/01 e ratificada pelo Decreto do Presidente da


República n.º 1/2001, de 03/01, publicada em Diário da República I-A,
n.º2, de 03/01/2001.
3
Parecer 100/cnecv/2018 (p. 11).
4
Neste sentido, vd. o Parecer do Conselho Nacional de Ética para as
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 191

porque, em regra, não será realizada por juristas, mas por


profissionais de saúde e técnicos de serviço social. Com efeito,
esta temática assume extrema importância numa sociedade
envelhecida e perante pessoas com doença e/ou deficiência.
De acordo com a referida Convenção de Nova Iorque,
pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de
natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação
com diversas barreiras, podem obstruir a sua participação
plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas.5
São vários os preceitos a saudar no âmbito da Convenção
de Nova Iorque e que apontam “para legislação que preserve a
independência e autonomia da pessoa portadora de deficiência,
incluindo a liberdade de fazer as suas próprias escolhas”6. Desde
logo, o artigo 25.º merece a nossa atenção, uma vez que apela
à importância do direito à saúde. Aí se dispõe: “Os Estados
Partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm direito
ao gozo do melhor estado de saúde possível sem discriminação
com base na deficiência. Os Estados Partes tomam todas as
medidas apropriadas para garantir o acesso às pessoas com
deficiência aos serviços de saúde que tenham em conta as
especificidades do género, incluindo a reabilitação relacionada
com a saúde. Os Estados Partes devem, nomeadamente: a)
Providenciar às pessoas com deficiência a mesma gama,

Ciências da Vida 100/cnecv/2017 (p. 13) e, reiterando o mesmo enten-


dimento no Parecer 102/cnecv/2018 (alínea h), p. 4).
5
Já em 9 de dezembro de 1975, a Assembleia geral das Organizações
das Nações Unidas — onu (2018), aprova a Resolução nº 30/84, intitu-
lada de Declaração dos direitos das pessoas deficientes, expressava o termo
“pessoas deficientes” referindo-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar
por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida indivi-
dual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou
não, em suas capacidades físicas ou mentais.
Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida 100/
6

cnecv/2017, 3.
192 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

qualidade e padrão de serviços e programas de saúde gratuitos


ou a preços acessíveis iguais aos prestados às demais, incluindo
na área da saúde sexual e reprodutiva e programas de saúde
pública dirigidos à população em geral; (…)”.
Ademais no mesmo preceito, reforça-se a ideia do
consentimento livre e informado. Prescreve a alínea d): “Exigir
aos profissionais de saúde a prestação de cuidados às pessoas
com deficiência com a mesma qualidade dos dispensados às
demais, com base no consentimento livre e informado, inter
alia, da sensibilização para os direitos humanos, dignidade,
autonomia e necessidades das pessoas com deficiência através
da formação e promulgação de normas deontológicas para o
sector público e privado da saúde.”
Por fim, destaca-se na alínea e) a consagração da proibição
da discriminação contra pessoas com deficiência na obtenção
de seguros de saúde e seguros de vida e na alínea f ) a referência
à prevenção da recusa discriminatória de cuidados ou serviços
de saúde ou alimentação e líquidos, com base na deficiência.
Merecem ainda atenção, neste contexto, os preceitos da
Constituição da República Portuguesa: 71.º/1 e 72.º/1 da
crp, em que, no primeiro, faz-se impender sobre o estado
a realização de “uma política nacional de prevenção e de
tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores
de deficiência e de apoio às suas famílias a desenvolver uma
pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de
respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da
efetiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos
e deveres dos pais e dos tutores”, e no segundo enfatiza-se
que “as pessoas idosas “têm o direito à segurança económica
e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário
que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o
isolamento ou a marginalização social”.
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 193

2. Limitações voluntárias aos direitos de personalidade


do maior acompanhado, em especial na área da
saúde

É sabido que os direitos de personalidade surgem como


direitos “absolutos”, “inalienáveis”, e “irrenunciáveis”, uma
vez que integram o conteúdo mínimo da personalidade7.
O consentimento do lesado (artigo 340.º do c.c.)
tem importância neste campo, uma vez que concretiza a
possibilidade de limitação voluntária ao exercício de direitos
de personalidade (artigo 81.º do c.c.), sem prejuízo daquele
não implicar a extinção do direito e de se exigir um destinatário
que beneficie dos seus efeitos8. Ademais, essa mesma limitação
está balizada pelo respeito dos princípios da ordem pública
(artigos 81.º c.c. e 280.º c.c.), sob pena de ser declarada
nula, no âmbito dos negócios jurídicos, ou ainda de não ser
relevante como circunstância que exclui a ilicitude do ato
lesivo e a consequente responsabilidade civil do lesante.
Ora, a possibilidade de limitação voluntária de direitos de
personalidade pressupõe a capacidade de exercício de direitos
— “a idoneidade para actuar juridicamente, exercendo
direitos ou assumindo obrigações, por acto próprio e exclusivo
ou mediante representante voluntário ou procurador, isto é,
um representante escolhido pelo próprio representado”9 —

7
Cf. Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. A.
Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra Editora, 2012,
209 e 215.
8
Cf. Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 215. No-
te-se que, quando é legal, a limitação voluntária é sempre revogável, sem
prejuízo da obrigação de indemnizar os prejuízos causados às legítimas
expectativas da outra parte. (n.º 2 do artigo 81.º).
9
Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 221.
194 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

sendo que, em princípio, todas as pessoas têm capacidade de


exercício de direitos. Podemos concluir pela excecionalidade
das incapacidades, pelo que onde a lei não as consagre de modo
expresso, estar-se-á no âmbito da capacidade de exercício.
As incapacidades dos maiores no c.c. de 1966 eram
pautadas por um “regime binário”, que assenta na distinção
entre interdição e inabilitação. Com efeito, a sua “finalidade é a
declaração da incapacidade e o respetivo suprimento por via da
representação jurídica e da assistência, no âmbito do exercício
de direitos de natureza patrimonial”10. Tradicionalmente, o
Código estabelecia a interdição e a inabilitação como institutos
aos quais subjazia a incapacidade de exercício do maior, o
que significa que este necessitava de ser representado (no caso
da interdição — artigos 124.º e 125.º/2), ou assistido e/ou
representado por um curador (no caso da inabilitação, v.g.
artigo 153.º) aquando da sua atuação, sob pena de os seus
atos serem suscetíveis de ser declarados nulos ou anuláveis (a
artigos 148.º, 149.º, 150.º, 156.º).11
Todavia, em regra, o inabilitado mantinha plena autonomia
e capacidade de exercício quanto aos atos pessoais, entre os quais
se incluem a disposição de direitos de personalidade, também

10
Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida-
100/cnecv/2017 (p. 2).
11
No âmbito da interdição, cujo incapaz é equiparado ao menor (ar-
tigo 139.º) — a forma de suprir a incapacidade é por meio do instituto
da representação legal, através de um tutor, mesmo nas áreas da saúde, em
regra. Por sua vez, no âmbito da inabilitação, à qual subjaz uma incapaci-
dade menos grave, o mecanismo mobilizado para suprir a incapacidade é
a assistência, por meio de um curador, sendo que estavam sujeitos a auto-
rização do curador os atos de disposição entre vivos (em regra, apenas tem
estes poderes), bem como os especificados na sentença (artigo 153.º), sem
prejuízo de poder determinar-se que a administração do património do
inabilitado seja entregue pelo tribunal ao curador (funcionando neste últi-
mo caso como forma de suprimento da incapacidade o instituto da repre-
sentação). Cf. Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 243.
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 195

no âmbito da saúde.12 Ora, se o regime da inabilitação poderia


ter a plasticidade necessária para que o tribunal enquadrasse
no caso concreto os atos “especificados na sentença” que
deveriam estar sujeitos a um regime de assistência (ou mesmo
de representação legal), a verdade é que esse regime não teve a
utilização devida, com as referidas adaptações ao caso concreto.
Na verdade, as estatísticas indicam que — por exemplo em
2016 — houve 3136 interdições para 259 inabilitações. Ou
seja, este regime que se poderia dizer mais conforme ao Direito
Internacional apenas foi utilizado em menos de 8% dos casos. E
essa foi uma constante da última década — em que os operadores
da justiça já teriam a obrigação de conhecer a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência! Trata-se de um instrumento
internacional ao qual Portugal se encontra vinculado, sendo que os
mesmos, de acordo com o n.º 2 do artigo 8.º da crp, constituem
direito internacional convencional, o qual tem valor supralegal,
pelo que os preceitos do Código Civil têm de ser interpretados
em sintonia com o direito internacional.
O regime tradicional foi alvo de várias críticas: “Desde
logo a rigidez da dicotomia interdição/inabilitação que obsta à
maximização dos espaços de capacidade de que a pessoa ainda
é portadora; o carácter estigmatizante da denominação dos
instrumentos de proteção; o papel da família que ora dá, ao
necessitado, todo o apoio no seu seio, ora o desconhece; o tipo de
publicidade previsto na lei, com anúncios prévios nos tribunais e
nos jornais, perturbador do recato e da reserva pessoal e familiar
que sempre deveria acompanhar situações deste tipo”13.
O novo regime jurídico, de que em seguida cuidaremos,
pretende dar resposta às críticas apresentadas. Parte-se agora

12
Cf. André G. Dias Pereira, “A Capacidade para Consentir”, in
António Pinto Monteiro, org., A Parte Geral do Código Civil e a Teoria
Geral do Direito Civil, vol. ii, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, 199-249.
13
Proposta de lei n.º 110/xiii, que estabelece o regime do maior
acompanhado, em substituição dos institutos da interdição e da inabili-
tação, p. 3.
196 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

do respeito pela dignidade (artigos 1.º e 13.º/1 da crp), da


primazia da autonomia e da plena capacidade dos maiores
(artigo 147.º). Assim, ainda que a lei não trate em específico
das matérias do foro médico, podemos concluir que estas se
enquadram no novo artigo 147.º, uma vez que a lista não
é taxativa. Logo, se partimos da ideia da plena capacidade
de exercício de direitos e se a mesma não sofreu restrições
(“círculos de incapacidade”), concluímos que o consentimento
para a prática de atos médicos é, em regra, plenamente eficaz.

3. Breve análise do regime da Lei n.º 49/2018 de 14 de


agosto

3.1. O acompanhado

A nova redação do artigo 138.º, ao contrário dos anteriores


preceitos relativos à interdição e inabilitação, não adota uma
enumeração taxativa dos fundamentos para a adoção da
medida de acompanhamento. Assim, dispõe que: “O maior
impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu
comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente,
os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus
deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas
neste Código”. Desta feita, verificamos que o legislador
estabeleceu o âmbito de aplicação do instituto através da
consagração de conceitos indeterminados14.
Por sua vez, para que o acompanhamento possa ser decretado
exige-se a observância de um requisito de ordem subjetiva (“a
impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente

Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados — Primeiras


14

notas depois da aprovação da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, Coimbra:


Gestlegal, 2018, 53.
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 197

os direitos ou cumprir os deveres”), ou seja, “trata-se da


possibilidade de o sujeito se autodeterminar, no que respeita ao
exercício dos seus direitos e ao cumprimento dos seus deveres”.
Note-se que, desapareceram os pressupostos da habitualidade
e durabilidade, todavia continua a exigir-se uma certa ideia de
constância, admitindo-se que o acompanhamento possa ser
decretado em relação a situações temporárias.
Já no plano do requisito objetivo, “exige-se que a
impossibilidade para exercer os direitos ou cumprir os
deveres se funde em razões de saúde, numa deficiência ou
no comportamento do beneficiário”, o que surge como uma
“formulação ampla”, conferindo “maior margem ao julgador
para cumprir as finalidades normativas do regime em função
das especificidades do caso”15 concreto.
No âmbito da saúde, integram-se quer patologias de
ordem física, quer patologias de ordem psíquica e mental
— “parece portanto haver um alargamento em relação ao
quadro de fundamentos das interdições e inabilitações” …
“deixamos de estar limitados à noção de anomalia psíquica
e pelas dificuldades de recondução de algumas doenças
que, afetando sistemicamente o corpo humano, podem não
contender diretamente com a mente, v.g. doenças do sistema
nervoso periférico que, provocando um atrofia muscular
absolutamente incapacitante não alteram o pensamento. Por
outro lado, porque se abandona o requisito da durabilidade
da situação, podemos reconduzir às razões de saúde um estado
de coma transitório provocado por um acidente ou uma
intervenção cirúrgica envolta em problemas”16. Note-se que
continuam a integrar este âmbito as hipóteses que já antes
eram contempladas pelas incapacidades dos maiores, v.g.
esquizofrenias, depressões, etc.

15
Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, 53.
16
Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, 54-55.
198 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

Por deficiência, deve atender-se à definição fornecida pela oms.


No entanto, considera-se que se integram neste âmbito os cegos e os
surdos-mudos (a que já se aludia no regime anterior das interdições
e inabilitações, tal como as deficiências mentais); “fundamental
é que a deficiência limite o desempenho do sujeito em termos
volitivos e/ou cognitivos. Serão por isso residuais as situações de
cegueira ou surdez-mudez que possam fundar o regime do maior
acompanhado, na medida em que dificilmente determinarão a
possibilidade de exercer direitos e cumprir deveres”17.
Porém, de mais difícil interpretação surge a referência a
“pelo seu comportamento”. Surge-nos dúvidas sobre aquilo a
que o legislador se quis referir com “comportamento” do maior.
Atendendo às regras da interpretação e através da mobilização
do elemento histórico, parece-nos que o legislador se quis
referir, sobretudo, aos antigos casos que poderiam justificar
a inabilitação: abuso de bebidas alcoólicas, estupefacientes
e prodigalidade. Todavia, devemos acrescentar o requisito
patológico, medicamente comprovado, associado a esses
comportamentos, pois seria inconstitucional privar a pessoa da
sua capacidade apenas por razões morais ou de comportamento
social. Tal limitação da capacidade configuraria uma violação
do direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo
26.º, n.º 1 da crp). Assumem assim relevo as novas adições
(maxime, o fenómeno do jogo a dinheiro no espaço virtual) e
o fenómeno da patologia dual.
Por fim, salientamos que o regime do maior acompanhado
assenta num princípio de subsidiariedade, que nos termos do
artigo 140.º/1, salienta que
“O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar,
a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos
e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou
determinadas por sentença”.

17
Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, 55.
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 199

Por seu turno, no n.º 2 prevê que “A medida não tem


lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através
dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso
caibam”. Assim, daqui decorre que antes da intervenção estatal,
através dos órgãos judiciais que podem limitar ou modelar a
capacidade de exercício das pessoas, se faz apelo aos deveres
familiares, resultantes quer do casamento, quer da relação de
filiação (ou adoção), que impõem deveres de cooperação e de
assistência. Assim, é sabido que sobre os cônjuges recaem os
deveres pessoais de coabitação, auxílio e assistência e sobre os
filhos recaem os deveres de auxílio e assistência.18
Em síntese, queremos cidadãos livres, pelo que a exigência
do regime se limitar ao minimamente necessário visa,
precisamente, garantir ou assegurar a autodeterminação
e capacidades do maior em cada caso, pelo que não haverá
acompanhamento quando os deveres de assistência e
cooperação bastarem para a proteção da pessoa.
Muito importante, numa perspetiva de promoção da
autodeterminação e planeamento da velhice e da doença, é o
facto de o acompanhamento poder ser requerido pelo próprio
(artigo 141.º, n.º 1). É um aspeto de louvar, pois permite a
autodeterminação em caso de doença, designadamente no
início de um processo demencial ou, mediante autorização
deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente
sucessível ou, independentemente de autorização, pelo
Ministério Público. A autorização do beneficiário pode ser
suprida pelo tribunal, nos termos do artigo 141.º, n.º 2.

18
Cf. André G. Dias Pereira / Juliana Campos, “O envelhecimento:
apontamento acerca dos deveres da família e as respostas jurídico-civis e
criminais”, Revista da Faculdade de Direito e Ciência Política da Universi-
dade Lusófona do Porto (2018) 61-80.
200 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

3.2. Âmbito e conteúdo do acompanhamento

A regra é a de que “a medida de acompanhamento deverá


ter um âmbito mínimo necessário”19, o qual deverá ser aferido
atendendo à situação concreta do acompanhado, nos termos
do novo artigo 145.º.
Assim, entre as funções que podem atribuir-se ao
acompanhante (em função de cada caso e independentemente
do que seja pedido) destacam-se no n.º 2:
“a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as
suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação
expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja
necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou
categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.”
Pela nossa parte, parece-nos não ter sido a melhor
opção a ordem pela qual são apresentadas as medidas
de acompanhamento. Vejamos: se se visa a máxima
autonomia possível, deveria a lei apresentar, em primeiro
lugar, as medidas menos restritivas e só em último lugar,
e em casos absolutamente excecionais, deveria apresentar
a hipótese de representação geral ou mesmo de “exercício
das responsabilidades parentais”. Esta última hipótese —
pensada seguramente para os casos em que a grave deficiência
já acompanhe a pessoa na menoridade, aponta para uma
infantilização do adulto acompanhado e seria possível maior
arrojo legislativo; a primeira faz correr o risco de que a
reforma se venha a revelar malsucedida.

Neste sentido, Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciên-


19

cias da Vida - 100/cnecv/2018 (p. 6)


O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 201

Expliquemos: se, nos últimos anos, cerca de 90% dos


processos de incapacidade resultam em interdição e menos de
10% em inabilitação, o legislador ao colocar em destaque a
possibilidade de “representação geral”, não estará a facilitar
o caminho — o caminho de uma representação geral — para
eventuais dificuldades que o “juiz-alfaiate” possa ter para tecer
o “fato à medida” (na feliz expressão de Pinto Monteiro)?20
Veremos, dentro de alguns anos, se a “representação geral”
foi aplicada em casos excecionais e de forma subsidiária,
como prescreve o n.º 1 do artigo 145.º “O acompanhamento
limita-se ao necessário” e resulta do próprio n.º 2 do artigo
18.º da Constituição (princípio da proporcionalidade)? Ou
confirmaremos que houve uma mera “burla de etiquetas”,
substituído o nomen iuris de interdição, pelo “maior
acompanhado sujeito ao regime de representação geral”? É
papel da doutrina e da jurisprudência interpretar a norma de
acordo com a Convenção de Nova Iorque e as medidas de
acompanhamento devem ser apenas as necessárias e devem
potenciar a autonomia da pessoa e não limitar essa mesma
capacidade.
O dever de cuidado e diligência é colocado em destaque
(artigo 146.º). O “acompanhante privilegia o bem-estar e a
recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a
um bonus pater familiae, tendo em conta as circunstâncias da
situação concreta.”
Por seu turno, o n.º 2 do artigo 146.º contempla uma
solução arrojada que nos leva a questionar se estamos perante
uma norma imperfeita. Com efeito, o preceito dispõe que
“o acompanhante mantém um contacto permanente com
o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma

20
Cf. António Pinto Monteiro, “Das Incapacidades ao Maior Acom-
panhado: breve apresentação da lei n.º 49/2018”, Cadernos do cej: O Novo
regime Jurídico do Maior Acompanhado — <http://www.cej.mj.pt/cej/re-
cursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf>.
202 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal


considere adequada”. A lei estabelece um dever de visita mensal,
tornando a relação (entre o acompanhado e o acompanhante)
paralela à relação que se estabelece no âmbito das relações
parentais com menores? Tal propósito visa um efetivo apoio
ou suporte moral e um acompanhamento não apenas jurídico,
mas também existencial, ao maior acompanhado. Parece-nos
uma solução ambiciosa, mas que pode desconsiderar muitas
situações da vida social, em que pelas distâncias geográficas
e as dificuldades da vida profissional, muitos candidatos a
acompanhante, designadamente os filhos do acompanhado,
poderão ter dificuldade em cumprir com este dever de visita
(no mínimo, mensal).
Assim sendo, deverá o tribunal favorecer a escolha por
alguém que, mesmo não tendo relações familiares, esteja mais
próximo e mais disponível para assumir esta responsabilidade.
Por isso mesmo deveria o legislador ter tido a coragem
de equacionar — pelo menos não proibir — uma relação
de acompanhamento a título profissional, com a consequente
onerosidade que lhe estaria associada. O artigo 151.º veda
essa possibilidade, apenas admitindo a “alocação” de despesas,
o que deverá querer dizer, o reembolso ou ressarcimento de
despesas.
Poderia o legislador ter ido ainda mais longe, permitindo a
designação de uma pessoa coletiva, devidamente credenciada e
fiscalizada, para o exercício da função de acompanhante. Quem
conhece e frequenta a realidade, muitas vezes em situações de
internamento, de muitas pessoas de maior idade e com graves
doenças, sabe que a profissionalização do acompanhamento
e a abertura à nomeação de pessoas coletivas poderia ser um
passo positivo para a vida concreta de muitos cidadãos. O
Código Civil manteve-se preso a um modelo mais familiar,
de maior entrega e altruísmo por parte do acompanhante, um
modelo quiçá “romântico”, que talvez já não acompanhe as
exigências práticas da vida hodierna.
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 203

Este dever de visita depara-se ainda com uma debilidade


do lado jurídico. Qual a sanção do incumprimento do dever
de visita? No limite, poder-se-á nomear outro acompanhante?
Não estamos seguros que o faltoso sinta essa mudança como
sanção ou como um alívio das suas tarefas familiares ou
sociais.... Naturalmente, poder-se-á equacionar um caso de
responsabilidade civil, pelo que não é indiferente esta previsão
legal do dever de visita, mas também pode afastar alguns
candidatos do encargo de ser acompanhante.

3.3. O acompanhante

Atendendo ao novo artigo 143.º, verifica-se que é


acompanhante o (1) maior, (2) no pleno exercício dos seus
direitos e que (3) é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu
representante (4) sendo designado judicialmente.
Consideramos muito positiva a possibilidade de o
próprio (artigo 141.º) ter a possibilidade de requerer o
acompanhamento, sem prejuízo da função de decidir sobre o
acompanhamento caber ao tribunal.
No n.º 2 do artigo 143.º, estabelece-se que “na falta de
escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à
pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso
do beneficiário”, apresentando de seguida uma lista não taxativa
(atendendo à referência ao advérbio “designadamente”): a) Ao
cônjuge não separado, judicialmente ou de facto; b) Ao unido
de facto; c) A qualquer dos pais; d) À pessoa designada pelos
pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais,
em testamento ou em documento autêntico ou autenticado; e)
Aos filhos maiores; f) A qualquer dos avós; g) À pessoa indicada
pela instituição em que o acompanhado esteja integrado; h) Ao
mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes
de representação; i) A outra pessoa idónea. Por sua vez, o n.º 3
refere a possibilidade de serem designados vários acompanhantes
com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada
um, com observância dos números anteriores.
204 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

Com efeito, consideramos que este elenco carece de


algumas observações o que nos leva a concluir pela necessidade
de um aperfeiçoamento, sob pena de estarmos diante uma
“novilíngua” jurídica. Vejamos:
Assim, a alínea a) confere a possibilidade de ser
acompanhante o “cônjuge não separado, judicialmente ou de
facto”. O Parecer do cnecv dá conta deste aspeto na alínea
g) do ponto 3: (associa-se) “de uma forma nada rigorosa e
que se presta a equívocos, duas situações juridicamente muito
distintas, a dos “cônjuges separados de pessoas e bens” e dos
“cônjuges separados de facto”.
Também na redação do artigo 147.º há lapsos técnicos
de Direito da Família, pois fala em “constituir situações de
união”, quando quererá referir-se a constituir situações de
“união de facto” (Lei n.º 7/2001, de 11 de maio).
Por outro lado, refere-se o ato de educar “os filhos ou os
adotados”, criando uma distinção entre filiação natural e
filiação adotiva que está em completa contradição com o
espírito do instituto da adoção, segundo o qual “o adotado
adquire a situação de filho do adotante e integra-se com os
seus descendentes na família deste” (artigo 1986.º).
Trata-se de estranhas faltas de rigor conceptual e
terminológico de importantíssimos institutos de Direito da
Família, que não abonam em favor da qualidade do Código
Civil, na comemoração dos seus 50 anos.
Criticamos ainda o termo de “acompanhante” (artigo
143.º). Com efeito, consideramos que o mesmo vai gerar
muita incompreensão e confusão nos serviços de saúde. É
que, no mundo hospitalar, há já a longa tradição da chamada
“pessoa de referência”, que se distingue do “acompanhante”.
A primeira é a pessoa a quem se transmitem as informações
mais importantes e se pedem apoios materiais e conselhos
para as decisões clínicas. Os “acompanhantes” são aqueles que
vêm prestar visita durante um internamento. E isto consta
de Lei aprovada pela Assembleia da República. Com efeito,
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 205

o Capítulo iii da Lei n.º 15/2014, de 21 de março, intitulado


“Acompanhamento do utente dos serviços de saúde”21, prevê
expressamente o referido nomen:
“Artigo 13.º (Acompanhante)
1 — Nos casos em que a situação clínica não permita ao
utente escolher livremente o acompanhante, os serviços devem
promover o direito ao acompanhamento, podendo para esse
efeito solicitar a demonstração do parentesco ou da relação com
o utente invocados pelo acompanhante.
2 — A natureza do parentesco ou da relação referida no número
anterior não pode ser invocada para impedir o acompanhamento.
3 — Quando a pessoa internada não esteja acompanhada, a
administração do estabelecimento de saúde deve diligenciar para
que lhe seja prestado o atendimento personalizado necessário e
adequado à situação.”
Está instalada a confusão terminológica e conceptual nas
clínicas, nos hospitais, nos Estabelecimentos Residenciais para
Pessoas Idosas e nas Unidades de Cuidados Continuados...
Haverá dois tipos de acompanhantes: os “acompanhantes” do
Código Civil, que correspondem ao antigo tutor ou curador,
que eram muitas vezes (mas não necessariamente) a “pessoa de
referência” e os “acompanhantes” da Lei dos direitos e deveres
dos utentes, que correspondem às pessoas que vêm prestar

21
Lei n.º 15/2014, de 21 de março (Lei dos Direitos e Deveres dos
Pacientes); Capítulo iii (Acompanhamento do utente dos serviços de saú-
de). Especifica o artigo 12.º da mesma Lei: Direito ao acompanhamento.
1 — Nos serviços de urgência do sns, a todos é reconhecido e garantido o
direito de acompanhamento por uma pessoa por si indicada, devendo ser
prestada essa informação na admissão pelo serviço. 2 — É reconhecido à
mulher grávida internada em estabelecimento de saúde o direito de acom-
panhamento, durante todas as fases do trabalho de parto, por qualquer
pessoa por si escolhida. 3 — É reconhecido o direito de acompanhamento
familiar a crianças internadas em estabelecimento de saúde, bem como a
pessoas com deficiência, a pessoas em situação de dependência e a pessoas
com doença incurável em estado avançado e em estado final de vida.
206 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

visita e dar apoio emocional e afetivo às pessoas doentes.


Uma nomenclatura que se quis não discriminatória, mas
que se revela não só semioticamente perturbadora, como
juridicamente confusa.
A solução deverá passar por uma revisão da nomenclatura
utilizada. Talvez a mudança da Lei n.º 15/2014, de 21 de
março, pareça mais fácil, dada a altíssima dignidade do Código
Civil. Porém, na semântica da língua portuguesa, a designação
de acompanhante assenta bem na função social daquele que
acompanha ou visita a pessoa internada...
Olhando o direito do nosso país irmão e que também
modificou o seu Código Civil, para acolher as exigências
da Convenção de Nova Iorque, constatamos que, no Brasil,
se optou por uma designação com maior tradição técnico-
jurídica, por um lado, mantendo a curatela (o que, no fundo,
é mais transparente do que aceitar um acompanhante com
poderes de representação geral) e, por outro, acrescentando o
instituto da “Tomada de Decisão Apoiada.” 22

4. Capacidade do acompanhado: o exercício de


direitos de personalidade/pessoais (e negócios da
vida corrente)

O artigo 147.º (sob a epígrafe Direitos pessoais e negócios


da vida corrente) procede à reafirmação da capacidade dos
maiores, uma vez que estabelece que “o acompanhado pode
exercer de forma livre o exercício dos seus direitos pessoais e
a celebração de negócios da sua vida corrente, a não ser que
haja uma disposição da lei ou decisão judicial em contrário”.23

Cf. Nelson Rosenvald, “A Tomada de Decisão Apoiada — Primei-


22

ras Linhas Sobre Um Novo Modelo Jurídico Promocional Da Pessoa Com


Deficiência” in <http://www.ibdfam.org.br/assets/upload/anais/253.pdf>.
23
Neste sentido dispõe o n.º 1: “O exercício pelo acompanhado de
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 207

Por sua vez, no n.º 2 a lei consagra como direitos pessoais


os “direitos de casar ou de constituir situações de união, de
procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os
filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no
país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de
estabelecer relações com quem entender e de testar”.
Desta feita, atendendo à letra da lei, constatamos que
a mesma não cuida das matérias do foro médico ou do
exercício dos direitos de personalidade na área da saúde.
Todavia, importa salientar que a lei não é taxativa (“são
pessoais, entre outros”). Assim sendo, e retomando o que já
foi dito, se partimos da ideia da capacidade e se ela não sofreu
restrições para a prática de atos médicos, então é porque o
maior é plenamente capaz para o exercício dos direitos de
personalidade na área da saúde.

5. O exercício dos direitos de personalidade na área da


saúde: as intervenções reguladas

A Lei n.º 49/2018 reviu a regulamentação de algumas


intervenções médicas: (1) Internamento, (2) pma —
Procriação Medicamente Assistida, (3) Investigação Clínica,
(4) Lei de Saúde Mental, (5) Lei das Declarações Antecipadas
de Vontade. Analisemos:

5.1. O internamento

No que concerne ao (artigo 148.º), o n.º 1 do artigo


148.º dispõe: “O internamento do maior acompanhado
depende de autorização expressa do tribunal.”

direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo


disposição da lei ou decisão judicial em contrário.”
208 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

Primeiramente, importa referir que o legislador atendeu


especificamente ao internamento, todavia fê-lo de forma contida,
uma vez que não se identificam quaisquer pressupostos para a
restrição dos direitos fundamentais que são colocados em causa
nesta sede, v.g. o direito à liberdade (artigo 27.º da crp). Esta
falta de determinação das condições de um internamento poderá
levantar problemas de constitucionalidade, face ao n.º 2 do artigo
18.º da crp. Acresce que a lei não é suficientemente precisa na
concretização do tipo de internamento. Por outras palavras,
surgem-nos dúvidas sobre se estão aqui incluídas as hipóteses de
internamento hospitalar de curta duração, de internamento em
Estabelecimento Residencial para Pessoas Idosas, de internamento
em Unidades de Cuidados Continuados e Integrados24.
Ademais, refere-se no n.º 2 que o internamento do maior
acompanhado fica dependente de ratificação (?) do juiz: “Em
caso de urgência, pode o internamento ser imediatamente
solicitado pelo acompanhante, ficando sujeito à ratificação do
juiz”.25 A Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24 de Julho)
prevê o internamento compulsivo de urgência, exigindo depois,
no prazo de 48 horas, a confirmação judicial desse internamento.
Confirmação do internamento e não ratificação, parece-nos,
seria uma opção mais adequada no plano conceptual.

Sobre a referida imprecisão conceitual já se pronunciou o cnecv no


24

Parecer 100/cnecv/2018, tendo concluído que: “No que se refere ao “in-


ternamento”, a formulação é muito imprecisa, pois dever-se-ia distinguir
o tipo de internamento e o grau de necessidade de acompanhamento da
pessoa, tendo em conta as instituições e recursos atualmente disponíveis.”
(Parecer 100/cnecv/2018)” (p.10).
Parece-nos estranha a utilização de uma terminologia própria da
25

representação sem poderes, consagrada no artigo 268.º do Código Civil,


num ato de internamento do maior acompanhado. Quererá isto indiciar
que o internamento ordenado pelo acompanhante é válido, mas ineficaz
e que a eficácia será atribuída pelo tribunal? Que consequências terá esta
solução no plano patrimonial? A relação jurídica de internamento, muitas
vezes onerosa, não gera efeitos judicialmente exigíveis?
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 209

Por outro lado, questionamos a necessidade da autorização


para todas as situações de internamento. A doutrina terá que
detalhar os vários tipos de internamento, propondo-se agora,
os seguintes subsídios:
a) o internamento ao abrigo da Lei de Saúde Mental deverá
reger-se pela lei especial (Lei n.º 36/98, de 24 de Julho),
não sendo o consentimento do acompanhante suficiente
para configurar uma situação de internamento voluntário,
salvo se isso estiver expressamente previsto na sentença de
acompanhamento;26
b) quanto ao internamento em situação de emergência, não
vemos necessidade de autorização expressa do tribunal, pois
resulta de uma decisão clínica — exclusivamente médica —
com vista a satisfazer os melhores interesses da pessoa doente
(por exemplo, internamento com pneumonia em que a pessoa
careça de oxigénio);
c) o internamento em unidade de cuidados continuados
integrados (ucci): estes internamentos dão-se muitas vezes
após alta hospitalar, mas em que o doente carece de cuidados
médicos especializados; o tempo de internamento é limitado
no tempo (dependendo da tipologia) e é medicamente
prescrito; donde, também nos parece excessivo o recurso a
“autorização expressa do tribunal”;
d) internamento (de longa duração)27, a pedido de familiares,
maxime do acompanhante, em Estabelecimentos Residenciais
para Pessoas Idosas (erpi) (ou casos similares) será o caso em

26
Cf. o artigo 5.º, n.º 1, alínea “c) Decidir receber ou recusar as inter-
venções diagnósticas e terapêuticas propostas, salvo quando for caso de in-
ternamento compulsivo ou em situações de urgência em que a não intervenção
criaria riscos comprovados para o próprio ou para terceiros.”
27
No caso de um internamento para descanso do cuidador, tipologia
típica das ucci, mas que também pode existir em erpi, também nos parece
desnecessária a autorização judicial.
210 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

que se poderá justificar a “autorização expressa do tribunal”,


pois — atendendo à teleologia da norma — é nestes casos
que faz sentido uma avaliação imparcial, por um Juiz, da
necessidade e adequação de um internamento de longa
duração, pois isto significa uma radical mudança do projeto de
vida e de direitos fundamentais, como o de estabelecer domicílio
e o desenvolvimento da personalidade. Direitos fundamentais
cuja limitação não se deverá bastar com o requerimento do
acompanhante, antes exige um dever de proteção estadual,
através do tribunal.
Pena é que a lei não ofereça critérios que devam orientar o
Juiz na sua decisão.

5.2. Procriação Medicamente Assistida

O artigo 7.º da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, leva a


cabo uma alteração à Lei da Procriação Medicamente Assistida,
que passará a contar com o artigo 6.º: “2 — As técnicas só
podem ser utilizadas em benefício de quem tenha, pelo
menos, 18 anos de idade e desde que não exista uma sentença
de acompanhamento que vede o recurso a tais técnicas.»
O direito a constituir família (artigo 36.º), no qual se situa
também o direito de acesso, de forma geral, às técnicas de pma
é um direito fundamental e a sua limitação carece de uma
profunda justificação. A Lei entendeu que o Juiz pode ter
competências para essa limitação, o que também não é isento de
dúvidas. Mesmo que se considere o melhor interesse da criança
a nascer e algum tipo de razões eugénicas, tradicionalmente
invocadas nos impedimentos matrimoniais,28 julgamos que a
lei deveria ter sido mais rigorosa na determinação de critérios,

Heloísa G. Santos / André Dias Pereira, Genética para Todos — de


28

Mendel à Revolução Genómica do Século xxi — a prática, a ética, as leis e a


sociedade, Lisboa: Gradiva, 2019, 116 s.
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 211

a serem preenchidos — no caso concreto — pelo tribunal.


Assim, antevemos que só em casos excecionais e devidamente
previstos e justificados na sentença de acompanhamento se pode
afastar o direito de acesso ás técnicas de pma por parte de um
maior acompanhado.

5.3. Investigação clínica

No que respeita aos participantes maiores incapazes de


prestar consentimento informado, o novo n.º 2 do artigo 8.º
da Lei n.º 21/2014, de 14 de abril, prevê: “a) For obtido o
consentimento informado do acompanhante com poderes de
representação especial, nos termos do número seguinte, o qual
deve refletir a vontade presumível do participante.”
Merece referência o facto de já na versão originária (de
2014) o caput do n.º 2 prever: “A realização de estudos clínicos
com maiores que, antes do início da sua incapacidade, não
tenham dado nem recusado o consentimento informado (...).” Isto
significa que no âmbito do Direito da Saúde, e em especial,
no direito da experimentação em seres humanos se promove
o máximo respeito pela autonomia do participante no ensaio
clínico, mesmo que sujeito ao regime do maior acompanhado.
Esta norma está em linha com a Convenção sobre os
Direitos Humanos e a Biomedicina, que prevê, no artigo 17.º
(Proteção das pessoas que careçam de capacidade para consentir
numa investigação): o direito de oposição da pessoa, mesmo
que sujeita ao regime do maior acompanhado: “v) A pessoa
em causa não tenha manifestado a sua oposição.”
Do mesmo passo, o Regulamento (UE) n. ° 536/2014
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de
2014, relativo aos ensaios clínicos de medicamentos para uso
humano, estabelece no artigo 31.º as seguintes exigências:
“b) O sujeito incapaz recebeu as informações referidas no artigo
29.o, n.o 2, de forma adequada tendo em conta a sua capacidade
de compreensão das mesmas; c) O investigador respeita o
212 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

desejo explícito de um sujeito incapaz que possa formar uma


opinião e avaliar as informações referidas no artigo 29.o, n.o 2,
de se recusar a participar ou de ser retirado do ensaio clínico a
qualquer momento.”
Em suma, o acompanhado tem sempre o direito de veto,
no âmbito dos ensaios clínicos de medicamentos!29

5.4. Lei da Saúde Mental

O artigo 14.º da Lei n.º 49/2018 procede a uma


alteração à Lei de Saúde Mental, que passa a contar com o
artigo 5.º com a seguinte redação:
“3 — Os direitos referidos nas alíneas c), d) e e)30 do n.º 1 são
exercidos pelos representantes legais quando os doentes sejam

29
Note-se que este Regulamento europeu contém uma norma muito
polémica, por permitir intervenções antes do consentimento, nas situa-
ções de emergência (artigo 35.º) (Ensaios clínicos em situações de emer-
gência): “1. Em derrogação do disposto no artigo 28.º, n.º 1, alíneas b) e
c), no artigo 31.º, n.º 1, alíneas a) e b), e no artigo 32.º, n.º 1, alíneas a)
e b), pode ser obtido o consentimento esclarecido para participar num ensaio
clínico e podem ser fornecidas informações sobre o ensaio clínico após a decisão
de incluir o sujeito no ensaio clínico, contanto que essa decisão seja toma-
da no momento da primeira intervenção no sujeito do ensaio, de acordo
com o protocolo relativo à realização desse ensaio clínico, e que estejam
reunidas todas as condições seguintes (...). Esta norma visa aumentar a
capacidade de investigar novos fármacos que visem debelar as principais
causas de morte na Europa, designadamente o avc (acidente vascular cere-
bral), enfarte do miocárdio, que são grandes causas de morte e de grande
incapacidade em Portugal (e na Europa).
30
Recordamos que os direitos em causa são: “c) Decidir receber ou
recusar as intervenções diagnósticas e terapêuticas propostas, salvo quan-
do for caso de internamento compulsivo ou em situações de urgência
em que a não intervenção criaria riscos comprovados para o próprio ou
para terceiros; d) Não ser submetido a electroconvulsivoterapia sem o
seu prévio consentimento escrito; e) Aceitar ou recusar, nos termos da
legislação em vigor, a participação em investigações, ensaios clínicos ou
actividades de formação;”
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 213

menores de 14 anos ou maiores acompanhados e a sentença de


acompanhamento não faculte o exercício direto de direitos pessoais.”
Por um lado, teria sido uma boa oportunidade para atualizar
a idade da maioridade para cuidados de saúde para 16 anos,
em linha com a modificação operada no artigo 38.º, n.º 3 do
Código Penal em 2007 (Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro)
e que tem sido acompanhado pela legislação e pela doutrina
nacional.
Também nos parece pouco feliz a expressão de que o maior
acompanhado (quando no âmbito da lei de Saúde Mental)
estará, em princípio, sujeito ao regime da representação legal.
Parece que a Convenção de Nova Iorque ficou esquecida
nesta redação do n.º 3. Os princípios da necessidade e
proporcionalidade foram olvidados ao entrar no mundo da
psiquiatria?
Antes se aponta para uma infantilização, equiparando
o maior acompanhado ao menor de 14 anos e exigindo —
se bem compreendemos a norma — que seja a sentença de
acompanhamento a facultar o exercício direto de direitos
pessoais? Quando deveria ser exatamente o oposto! Em
regra, o maior sujeito a acompanhamento manteria a sua
capacidade de exercício dos seus direitos pessoais intocada e,
excecionalmente, a sentença poderia limitar esse exercício,
adotando o modelo da substituição, com um representante
legal (“acompanhante”).

5.5. Diretivas Antecipadas de Vontade e o mandato com vista


ao acompanhamento

A doutrina internacional vem apelando para a necessidade


de, em sociedades envelhecidas, se promover a planificação
do envelhecimento e o planeamento dos cuidados de saúde
214 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

(ageing planning, health-care planning).31 Isto é especialmente


importante nas áreas das demências, do Alzheimer ou mesmo
de um tumor cerebral.
A regulamentação das Diretivas Antecipadas de Vontade,
seja na forma de testamento vital, seja na modalidade de
nomeação de procuradores de saúde, foi um passo em frente,
que a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, trouxe ao nosso
ordenamento jurídico.
Ainda assim, o mandato com vista ao acompanhamento
era uma necessidade imperiosa para regular matérias da vida
quotidiana de gestão do património, visto que os primeiros
instrumentos estavam limitados aos assuntos de saúde32.
No que concerne ao mandato com vista a acompanhamento,
prescreve o artigo 156.º: “1 — O maior pode, prevenindo uma
eventual necessidade de acompanhamento, celebrar um mandato
para a gestão dos seus interesses, com ou sem poderes de representação.”
Merece louvor, o n.º 3 do artigo 156.º que prevê que “no
momento em que é decretado o acompanhamento, o tribunal
aproveita, no todo ou em parte, e tem-no em conta na definição
do âmbito da proteção e na designação do acompanhante.”
O cnecv criticou esta formulação lacunosa e aberta e
pouco regulamentado:
“O “Mandato com vista a acompanhamento” (proposta de
redação para o artigo 156.º) que, tendo em conta os fundamentos
e objetivos anunciados para a reforma, deveria ser central no

André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabili-


31

dade Médica, Publicações do Centro de Direito Biomédico, 22, Coimbra:


Coimbra Editora, 2015, 513.
Com efeito, reza o artigo 12.º (Procuração de cuidados de saúde):
32

“1 — A procuração de cuidados de saúde é o documento pelo qual se


atribui a uma pessoa, voluntariamente e de forma gratuita, poderes repre-
sentativos em matéria de cuidados de saúde, para que aquela os exerça no
caso de o outorgante se encontrar incapaz de expressar de forma pessoal e
autónoma a sua vontade.”
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 215

estatuto do maior acompanhado, aparece como complementar


e regulado de forma insatisfatória, não incluindo soluções sobre
possíveis impedimentos do mandatário designado, nem concretizando
os seus deveres de conduta.” (Parecer 100/cnecv/2018)
Já nos parece questionável o previsto no novo n.º 3 do
artigo 14.º (da Lei das Diretivas Antecipadas de Vontade)
que prevê que “a procuração pode ser revogada por decisão do
tribunal que instaure o acompanhamento de maior”. Impõe-
se muita cautela judicial — pode constituir uma injustificada
aniquilação da autonomia! Na medida do possível deve sempre
ter-se em conta a vontade do sujeito.33
Finalmente, com a Lei n.º 49/2018, o artigo 4.º (Requisitos
de capacidade) passou a ter a seguinte redação:
“Podem outorgar um documento de diretivas antecipadas de
vontade as pessoas que, cumulativamente: a) Sejam maiores de
idade; b) Não estejam em situação de acompanhamento, caso a
sentença que a haja decretado vede o exercício do direito pessoal
de testar; c) Se encontrem capazes de dar o seu consentimento
consciente, livre e esclarecido.”
Parece-nos que só em casos excecionais, de completa ausência
de discernimento, poderá o tribunal impedir a pessoa de redigir
um testamento vital ou de nomear um procurador de cuidados
de saúde, dada a natureza pessoalíssima destas faculdades.

6. O exercício de direitos de personalidade —


intervenções não reguladas

A Lei n.º 49/2018 não regula outras intervenções médicas,


designadamente: (1) Tratamentos médicos em geral, tais como:

33
O máximo respeito possível pela vontade anteriormente manifes-
tada é uma exigência do Artigo 9.º da Convenção de Oviedo e pelas Re-
comendações do Conselho da Europa: coe 1999, Council of Europe. rec
(99)4. on principles concerning the legal protection of incapable adults.
216 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

cirurgias, quimioterapias, diálise, cuidados respiratórios; (2)


Medicina reprodutiva: Interrupção Voluntária da Gravidez,
Esterilização; (3) Transplante de órgãos; (4) Fim de Vida,
Cuidados paliativos, Sedação paliativa, recusa de alimentação
e de hidratação.

6.1. Tratamentos médicos em geral

A lei nunca conseguiria regular todos as intervenções.


Compete ao intérprete ir adaptando o Direito em vigor às
novas exigências do respeito pela autonomia dos maiores
acompanhados.
Fazem parte dos tratamentos médicos em geral: cirurgias,
quimioterapias, diálise, cuidados respiratórios, fisioterapia,
medicamentação, etc. Importa referir que relativamente aos
tratamentos em geral, a regra geral é a de que o maior é livre
de decidir; em regra, respeita-se a capacidade e autonomia do
maior acompanhado.34
Parece-nos que pode ser importante a distinção entre as
intervenções minor e as intervenções major. No caso das primeiras
intervenções, deverá ser reservado o maior poder de decisão
possível para a pessoa (maior acompanhado); no caso das
segundas, poderá ser necessário a aplicação efetiva do regime
de acompanhamento, mas sempre com respeito pelo quadro de
valores e as opiniões anteriormente expressas pelo doente.35

Segundo o artigo 147.º/ 1: “O exercício pelo acompanhado de di-


34

reitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo


disposição da lei ou decisão judicial em contrário.”
Concordamos com o teor das seguintes normas do Regulamento n.º
35

707/2016 (Regulamento de Deontologia Médica) que prevê, no artigo 21.º


(Doentes incapazes de dar o consentimento): “1 — O consentimento dos
menores ou de doentes com alterações cognitivas que os tornem incapazes,
temporária ou definitivamente, de dar o seu consentimento, deve ser solici-
tado ao seu representante legal, se possível. 2 — Quando existir uma diretiva
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 217

A Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina


(em vigor em Portugal desde dezembro de 2001), estatui, no
artigo 6.º (Protecção das pessoas que careçam de capacidade
para prestar o seu consentimento):
“3 — Sempre que, nos termos da lei, um maior careça, em
virtude de deficiência mental, de doença ou por motivo similar,
de capacidade para consentir numa intervenção, esta não poderá
ser efectuada sem a autorização do seu representante, de uma
autoridade ou de uma pessoa ou instância designada pela lei.

A pessoa em causa deve, na medida do possível, participar no


processo de autorização.”
Eis um comando a ter sempre presente na vida quotidiana
da ação médica.

6.2. Medicina reprodutiva

Relativamente à interrupção voluntária da gravidez,


o artigo 142.º do Código Penal regula o consentimento nos
seguintes termos:
“5 — No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou
psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, conforme
os casos, o consentimento é prestado pelo representante legal,
por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer
parentes da linha colateral.”

antecipada de vontade ou a nomeação de um procurador de cuidados de saúde


por parte do doente, o médico deve respeitar as suas decisões nos termos previs-
tos na lei, sem prejuízo do exercício do direito à objeção de consciência. 5
— Para os efeitos do presente artigo entende-se como melhor interesse do
doente a decisão que este tomaria de forma livre e esclarecida se para tal tivesse
capacidade. 6 — A informação fornecida pelos representantes legais, fami-
liares ou pessoas das relações próximas é relevante para o esclarecimento da
vontade dos doentes. 7 — Cabe ao médico ponderar, em cada caso, a necessi-
dade de requerer ao tribunal o suprimento judicial de consentimento do doente.”
218 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

Devemos interpretar este artigo em conformidade com o


novo regime do maior acompanhado e, nos casos (excecionais)
em que o tribunal opte pela representação geral (ou especial
para intervenções médicas), então deverá ser o acompanhante
a autorizar o ato médico. Nos restantes casos, deve ser a
própria maior acompanhada a consentir, pois entra no âmbito
dos direitos pessoais, previstos no artigo 147.º
Relativamente à esterilização, é de saudar que se tenha
abandonado a estranha proposta de lei de 2017,36 mas é
criticável o atual silêncio da lei. A doutrina moderna entende
que deve ser proibida a esterilização (não terapêutica), não
apenas por uma renovada conceção dos direitos humanos da
pessoa portadora de deficiência, mas também considerando a
evolução dos dispositivos médicos e dos medicamentos que
visam evitar a gravidez.
Donde, apesar de este novo regime não se referir a esta
matéria, entendemos como cada vez menos justificada a
possibilidade de uma esterilização (não terapêutica) de um
maior acompanhado, em razão de haver meios médicos menos
limitadores do direito à integridade física e moral.

6.3. Transplante de órgãos

O artigo 6.º da Lei n.º 12/93 prevê normas que devem ser
interpretadas de acordo com a lei posterior.
“4 — São sempre proibidas a dádiva e a colheita de órgãos ou
de tecidos não regeneráveis quando envolvam menores ou outros
incapazes.”

36
O Parecer 100/cnecv/2018) afirmava: “A proposta de redação para
o artigo 148.º (“Internamento e medidas anticoncecionais”) representa,
objetivamente, uma agressão aos direitos fundamentais das pessoas. Com
efeito, não existe qualquer justificação para ser de exigir que o recurso a
métodos anticoncecionais possa depender de autorização judicial”.
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 219

Assim, os maiores acompanhados estão impossibilitados


de dar órgãos ou de tecidos não regeneráveis em todas as
circunstâncias? Em respeito à Convenção de Nova Iorque,
deveremos fazer a interpretação menos restritiva possível,
pelo que poderá haver casos de maiores acompanhados,
mas com muito discernimento e capacidade de decisão, a
quem não poderá ser vedada esta faculdade de manter um
comportamento altamente altruísta.
No n.º 5 prevê-se:
“A dádiva e a colheita de órgãos, de tecidos ou de células
regeneráveis que envolvam menores ou outros incapazes só podem
ser efectuadas quando se verifiquem os seguintes requisitos
cumulativos: a) Inexistência de dador capaz compatível; b) O
receptor ser irmão ou irmã do dador; c) A dádiva ser necessária
à preservação da vida do receptor.”37
O artigo 8.º do Lei n.º 12/93, prevê:
“5 — A colheita em maiores incapazes por razões de anomalia
psíquica só pode ser feita mediante autorização judicial.”
Deveremos (a) fazer uma interpretação ampla a exigir
autorização judicial para todos os maiores acompanhados? Ou
(b) uma interpretação restrita e exigir autorização judicial

37
O artigo 20.º A Convenção de Oviedo (Protecção das pessoas que
careçam de capacidade para consentir na colheita de um órgão) regula no
mesmo sentido: 1 — Nenhuma colheita de órgão ou de tecido poderá ser
efectuada em pessoas que careçam de capacidade para prestar o seu consen-
timento, nos termos do artigo 5.º 2 — A título excepcional e nas condições
de protecção previstas na lei, a colheita de tecidos regeneráveis numa pes-
soa que careça de capacidade para prestar o seu consentimento poderá ser
autorizada se estiverem reunidas as seguintes condições: i) Quando não se
disponha de dador compatível gozando de capacidade para prestar consen-
timento; ii) O receptor for um irmão ou uma irmã do dador; iii) A dádiva
seja de natureza a preservar a vida do receptor; iv) A autorização prevista nos
n.os 2 e 3 do artigo 6.º tenha sido dada de forma específica e por escrito, nos
termos da lei e em conformidade com a instância competente; mas acrescen-
ta: v) O potencial dador não manifeste a sua oposição.”
220 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

apenas quando a sentença de acompanhamento o exija? Ou ainda


(c) uma interpretação moderada, a exigir autorização judicial
quando a sentença preveja a representação legal?
Parece-nos que onde se fala de maiores incapazes, devemos
considerar os maiores sujeitos ao regime do acompanhamento.
E o acompanhante só deve ser chamado a decidir quando tenha
poderes de representação geral ou específica para atos médicos
em geral ou este ato de dádiva em especial. Nos restantes
casos, em que o maior acompanhado tenha maior amplitude
de decisão e apenas careça de medidas de apoio, é o próprio
que deve ter a faculdade de consentir na dádiva de tecidos ou
de células regeneráveis. Esta interpretação poderá ampliar o
âmbito subjetivo de dadores, pelo que se exige aos tribunais
um especial cuidado na regulação concreta dos poderes do
acompanhante e do acompanhado.

6.4. Fim de Vida

A Lei n.º 31/2018, de 18 de julho, regula os direitos das


pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida. Esta
lei, imbuída de um espírito autonomista, consagra vários
direitos de recusa que merecem aqui ser referidos:
Para além do direito ao consentimento informado (artigo
5.º), consagra-se o “direito a recusar, nos termos da lei, o suporte
artificial das funções vitais e a recusar a prestação de tratamentos não
proporcionais nem adequados ao seu estado clínico e tratamentos, de
qualquer natureza, que não visem exclusivamente a diminuição
do sofrimento e a manutenção do conforto do doente, ou que
prolonguem ou agravem esse sofrimento".
O artigo 8.º (Prognóstico vital breve) prevê ainda que:
“1 — As pessoas com prognóstico vital estimado em semanas
ou dias, que apresentem sintomas de sofrimento não controlado
pelas medidas de primeira linha previstas no n.º 1 do artigo 6.º,
têm direito a receber sedação paliativa com fármacos sedativos
devidamente titulados e ajustados exclusivamente ao propósito
O MAIOR ACOMPANHADO E O CONSENTIMENTO PARA ATOS EM SAÚDE • 221

de tratamento do sofrimento, de acordo com os princípios da


boa prática clínica e da leges artis. (...)”
3 — À pessoa em situação de últimos dias de vida, é assegurado
o direito à recusa alimentar ou à prestação de determinados
cuidados de higiene pessoal, respeitando, assim, o processo
natural e fisiológico da sua condição clínica.”
Considerando que algumas destas pessoas poderão estar
com um estado de consciência alterado, é de salientar que o
legislador teve uma perspetiva respeitadora da vontade concreta
dessa pessoa vulnerável e não seguiu a tese segundo a qual
se deve promover “os melhores interesses da pessoa” (numa
perspetiva objetiva), o que redundaria numa heteronomia
atentatória do seu direito de recusa.
Tendo esta lei sido publicada a 18 de julho e a relativa ao
maior acompanhado a 14 de agosto, o artigo 11.º (Discrepância
de vontades ou decisões) ainda lança mão do conceito de
“representantes legais”, pelo que carece já de interpretação
adaptada ao novo regime do maior acompanhado.38

7. Conclusão

O ordenamento jurídico nacional, em especial o direito


civil e o direito da medicina ficaram mais ricos, mais atuais
e conformes às exigências éticas e normativas do moderno
pensamento dos direitos humanos, plasmado na Convenção
sobre as Pessoas com Deficiência. Nesse sentido, esta foi uma
boa reforma. Que foi no bom sentido. Terá sido propósito

38
“1 — Em caso de discordância insanável entre os doentes ou seus
representantes legais e os profissionais de saúde quanto às medidas a aplicar,
ou entre aqueles e as entidades prestadoras quanto aos cuidados de saúde
prestados, é facultado aos doentes ou aos seus representantes legais o acesso
aos conselhos de ética das entidades prestadoras de cuidados de saúde.”
222 • A n d r é G o n ç a l o D i as P e r e i r a

do legislador histórico deixar as normas com conceitos


indeterminados e com uma regulamentação mínima, num
esforço — muito defendido pelas correntes metodológicas
da segunda metade do século xx — de reforço dos poderes do
tribunal e de permitir que o Direito seja constituído por um
“juiz alfaiate” que saiba coser um “fato à medida” e que reputem
importante que o Código Civil mantenha normas curtas e
elegantes. Vimos, porém, que a ausência de densidade normativa
vai perturbar algumas matérias como, por exemplo, os poderes
do mandatário, e, na área médica, o regime do internamento e
de algumas intervenções médico-cirúrgicas. Compete à doutrina
colmatar lacunas e oferecer critérios de decisão.
Cumpre a todos os operadores sociais e jurídicos promover
o máximo de autonomia possível dos maiores que venham a ser
sujeitos ao regime de acompanhamento e será bom sinal se as
sentenças de acompanhamento optarem mais vezes por medidas
que não a “representação geral” (alínea b) do n.º 2 do artigo 145.º).
Ou seja, a reforma terá sido bem-sucedida se tivermos muito mais
sentenças a optar pelas “intervenções de outro tipo” (alínea e)), ou
pela “autorização prévia para a prática de determinados atos ou
categoria de atos” (alínea d)).
Na que respeita à área da vida pessoal, em que se inclui a saúde,
a regra será a da capacidade sem limitações, embora seja adequado
— com vista a cumprir o dever de proteção dos cidadãos — que
algumas sentenças venham a prever medidas de apoio “à tomada
de decisão” (usando de empréstimo a expressão da lei brasileira).
E, sobretudo, o mandato com vista ao acompanhamento,
conjugado com o regime das diretivas antecipadas de vontade
permitirão trazer à prática do direito luso o planeamento
da velhice e o planeamento da doença, como ferramentas
de cumprir um direito fundamental, o desenvolvimento da
personalidade (artigo 26.º, n.º 1 da Constituição).
SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ
ANTES DE SER OBJECTO DE
MEDIDAS DE ACOMPANHAMENTO

MARIA INÊS DE OLIVEIRA MARTINS


Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

I. Ponto de partida: contornos de uma hipótese típica1

Para tomar o peso às normas que enquadram a situação


do maior que, embora tenha fundamento para o ser, não foi
(ou não foi ainda) objecto de medidas de acompanhamento,
partamos de uma hipótese prática.

1
O texto que agora se publica corresponde ao que serviu de base
à intervenção com o título “ Situação do maior acompanhado antes de
ser objecto de medidas de acompanhamento”, apresentada no Colóquio
“O novo regime do maior acompanhado”, a 13 de Dezembro de 2018.
Mantém-se, nesta versão escrita, o estilo fluido, limitando-se as notas e
indicações bibliográficas. Todas as normas citadas pertencem ao Código
civil português, salvo indicação em contrário.
224 • MA R I A I N Ê S DE O L I V E I R A MA R T I NS

Embora o alcance potencial do regime do acompanhamento


se mostre amplo e o seu alcance real não se tenha ainda
precisado2, cingir-nos-emos à situação do sujeito afectado
por uma limitação na sua capacidade de facto para a formação
da sua vontade juridicamente relevante. Trata-se, pois, de uma
limitação que actua no plano das suas faculdades cognitivas,

2
Com a amplitude da fattispecie do artigo 138.º — reportando-se
ao maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu
comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus di-
reitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres — concorre a
amplitude do espectro de medidas de acompanhamento decretáveis, que a
lei não vincula a um figurino determinado, permitindo, no artigo 145.º,
n.º 2, quaisquer intervenções devidamente explicitadas. Pelo menos numa
primeira abordagem reentram, assim, na letra da lei os casos em que a
pessoa enfrenta limitações (físicas) na mera formulação ou exteriorização
da vontade, tendo plena capacidade de facto para a formação de uma von-
tade íntegra (pense-se no sujeito a quem doença neurológica impeça de
se locomover, ou de falar e escrever, mas que mantenha íntegras as suas
capacidades de avaliação de situações e determinação de uma vontade em
consonância); assim como se poderia equacionar se cabem aqui os casos
em que a pessoa carece de apoio na prática de operações materiais, que não
estão ao serviço da emissão de declarações negociais ou da manifestação da
vontade subjacente aos quase negócios jurídicos (pense-se no sujeito que
precisa de quem o auxilie na sua higiene pessoal e doméstica ou confecção
de alimentos diária). Na primeira hipótese teremos, porém, casos tenden-
cialmente solucionáveis no âmbito da representação voluntária, podendo a
pessoa servir-se das limitadas vias de comunicação que lhe estejam acessíveis
para nomear um procurador; o instituto do acompanhamento terá eventual-
mente utilidade quando os sujeitos voluntariamente nomeados se escusem
a actuar, permitindo uma nomeação com eficácia judicial. Na segunda hi-
pótese, teremos casos enquadrados pelo estatuto do cuidador informal, ou
pelo regime do Modelo de Apoio à Vida Independente (Decreto-Lei n.º
129/2017, de 9 de Outubro) — que, ao contrário do regime do acompa-
nhamento, são vocacionados para um cuidado constante (vs. o artigo 146.º,
apontando para uma periodicidade mínima aceitável mensal das visitas do
acompanhante), e contemplam a retribuição que tal exige, quando o sujeito
prestador não se encontre vinculado por deveres de cooperação (vs. o artigo
151.º, n.º 1, que parte de um princípio de gratuitidade do exercício das
funções pelo acompanhante).
SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO DE MEDIDAS ... • 225

afectando a capacidade de retenção, organização e interpretação


de informação; ou que cria descompensações no plano volitivo.
Neste último plano, tender-se-á a pensar nas situações de
compulsão para a prática de negócios jurídicos, especialmente
visadas na prodigalidade, enquanto fundamento da revogada
inabilitação. Porém, poderão estar igualmente aqui em causa
situações de inibição ou apatia patológicas, que impeçam o sujeito
de levar a cabo os actos jurídicos do seu interesse.
Na nossa hipótese, não houve decretamento de medidas
de acompanhamento, pelo que (salvo intervenção das normas
sobre incapacidade acidental, a que aludiremos abaixo) o
sujeito mantém a sua capacidade para o exercício de direitos
no âmbito afectado pela incapacidade de facto.
Com efeito, note-se que o sujeito poderá manter capacidade de
exercício nesses âmbitos, mesmo que o acompanhamento venha a
ser decretado. Por exemplo, em situações como as que referimos
ainda agora, em que o sujeito padece de períodos de prostração e
apatia, este estará suficientemente protegido através da nomeação
de um representante legal que possa actuar concorrentemente face
a ele — que mantém, assim, capacidade —, colmatando as suas
omissões. Nestas situações, o sujeito não se prejudica pela
celebração de negócios jurídicos, que seja necessário vedar
ou destruir; prejudica-se pela falta de celebração de negócios
do seu interesse. Torna-se aqui visível o quanto o escopo da
promoção da autonomia, que preside ao actual regime, pode
prescindir do arsenal negativo de limitação da capacidade de
exercício, e destruição de negócios jurídicos celebrados sem
ela, ou celebrados na antecâmara da sua supressão, e munir-se
de instrumentos positivos, em que a actuação de um terceiro é
concorrente da da pessoa afectada e pode mesmo ser promocional
desta (v.g., compreendendo deveres de esclarecimento e apoio
na decisão da pessoa, quando por ela solicitado).
Tornando ao recorte dos pressupostos da análise, estaremos
perante contextos em que as limitações à capacidade de facto
põem em causa, na terminologia do Código civil, a capacidade
226 • MA R I A I N Ê S DE O L I V E I R A MA R T I NS

do sujeito de exercer de modo pleno, pessoal e consciente


os seus direitos e deveres. Em concreto, poderão impedi-lo,
por exemplo, de: contratar serviços de enfermagem ou apoio
doméstico, ou para realização de uma reparação urgente em
sua casa; administrar devidamente o seu património, v.g.,
imobiliário, controlando o pagamento de rendas, renegociando
contratos, contratando reparações necessárias assegurando
a venda de uma colheita; fazer os pagamentos relativos aos
seus serviços correntes; adquirir medicamentos ou outros bens
necessários à estabilização da sua saúde; avaliar a informação
prestada quanto a certo acto médico proposto e consentir
na sua prática; pagar salários de cuidadores; cumprir as suas
obrigações fiscais; requerer prestações suplementares junto da
segurança social,...
Na hipótese pressuposta, não há sujeitos de quem se possa
exigir o cumprimento de deveres de cooperação ou assistência
(artigo 140.º, n.º 2). Dada a restrição do círculo a quem
incumbe tais deveres, basta que o sujeito não seja casado
(artigos 1672.º e 1674.º), não tenha filhos ou pais vivos ou
conhecidos (1874.º, quanto a ambos os casos) para que o
vácuo se verifique.
Não está, por último, em marcha um processo tendente a
decretar medidas de acompanhamento. Tal pode dever-se à
falta de iniciativa do próprio afectado, associada a inércia ou
falta de outros sujeitos a quem a lei atribua legitimidade para tal
(artigo 141.º, n.º 1). Prefigure-se a hipótese em que o sujeito,
não tendo cônjuge, tão-pouco esteja em união de facto ou tenha
parentes sucessíveis; ou o caso em que o sujeito desconhece
que há um processo de acompanhamento; ou conhece-o, mas
receia ser declarado incapaz, ou é avesso a que um tribunal
adopte certas medidas imperativas que o vincularão na sua
esfera; ou conhece-o, mas é incapaz de vencer as suas limitações
volitivas para pôr em marcha a acção. Tão-pouco estarão, pois,
disponíveis as respostas próprias das providências cautelares, já
que também estas brotam de um processo judicial.
SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO DE MEDIDAS ... • 227

Na verdade, embora o arco lógico que antecede a


instauração de um processo de acompanhamento evocasse
antes de mais a aplicação do regime da incapacidade acidental,
previsto no artigo 257.º, a verdade é que este não resolve todos
os problemas suscitados pela incapacidade de facto. Trata-se
de um regime dotado de feição negativa, permitindo apenas
libertar o incapaz, por via anulatória, de negócios jurídicos
celebrados sem capacidade de facto3; não fornece, pois,
resposta para a necessidade da pessoa afectada de que alguém
actue no seu interesse. Em situações como as que recortámos,
tende a ter protagonismo o papel dos vizinhos: estes não são
parentes, pelo que não têm legitimidade para requerer o início
do processo de acompanhamento; e estão existencialmente
próximos, pelo que poderão aperceber-se das necessidades do
incapaz de facto. Resta ver como se enquadra a sua actuação.

II. Vias de enquadramento

Quanto às vias disponíveis para acolher estas hipóteses,


comece-se por salientar que, para lá da auto-tutela patente
no mandato em vista de representação, o nosso ordenamento
não cria uma solução específica para a tutela do incapaz de
facto à margem do processo judicial de acompanhamento.
Abordagem diferente é, por exemplo, a dos ordenamentos
espanhol ou francês que, respectivamente, com os institutos
da guarda de hecho ou da sauvegarde de justice, procuram

3
Claro está que poderão interferir também os regimes da redução
(292.º) e conversão (293.º) de negócios jurídicos, que permitirão o apro-
veitamento de parte dos efeitos jurídicos, ou a prossecução dos efeitos
práticos do negócio em causa. Porém, estes requerem que tenha sido cele-
brado o negócio anulável, o que estará comprometido em caso de limita-
ções volitivas; e estão associados a riscos probatórios (de prova de vontade
hipotética contrária, no caso da redução, ou de se não provar vontade
hipotética concordante, no caso da conversão).
228 • MA R I A I N Ê S DE O L I V E I R A MA R T I NS

permitir um funcionamento estável e controlado de


soluções informais4.
As várias vias de protecção extrajudicial disponíveis no
ordenamento nacional correspondem, como veremos, a
institutos gerais que actuam aqui de modo pontual, não
havendo, na verdade, como, sem concitar a intervenção
controladora do Ministério Público, conseguir certeza quanto
ao efeito destas intervenções, ou garantir mesmo que servem
efectivamente a protecção do sujeito afectado.
Analisaremos em primeiro lugar soluções assentes na
própria iniciativa da pessoa afectada, sendo uma manifestação
de auto-tutela. Passaremos depois às situações em que a tutela
parte da iniciativa de terceiros.

§1. Auto-tutela

a) Mandato em vista do acompanhamento

A via extrajudicial específica de prover de modo duradouro


às necessidades colocadas por uma incapacidade de facto é a
do mandato em vista do acompanhamento. Constando a sua
análise crítica de um outro texto deste escrito5, limitamo-nos
aqui a fazer-lhe referência.

4
Cfr. Paula Távora Vítor, A administração do património das pessoas
com capacidade diminuída, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, 101 e s.;
Montserrat Pereña Vicente, “La transformación de la guarda de hecho
en el anteproyecto de Ley”, Revista de Derecho Civil 3 (2018) 61-83, pas-
sim; François Terré / Dominique Fenouillet, Droit civil, Les personnes,
Paris: Dalloz, 2012, 716 e s.
5
Da autoria de Paula Távora Vítor.
SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO DE MEDIDAS ... • 229

b) Contratos duradouros que incluam prestações de apoio de


processos de decisão e eventualmente celebração ou execução de
negócios pelo maior

Têm aqui relevância, sobretudo, contratos celebrados com


entidades que explorem residências seniores ou de acolhimento
de sujeitos com necessidades especiais. Trata-se tipicamente
de contratos mistos, que incluem sobretudo a prestação de
serviços diversos, e podem incluir também o fornecimento de
bens (v.g., alimentares).
Para o que aqui importa, podem incluir, desde logo,
prestações acessórias de apoio nos negócios da vida corrente
— por exemplo, auxílio na compreensão de contratos com
entidades bancárias, ou na compreensão do conteúdo e
exercício de direitos em relação à Segurança social. Nestes
casos, porém, há um mero apoio à decisão autónoma por
parte da pessoa afectada, e não a prática de actos jurídicos por
conta desta. Em função dos contornos da sua incapacidade de
facto, a prática de actos necessários ou convenientes poderá,
pois, ficar comprometida.
Os contratos podem, porém, incluir uma verdadeira
obrigação, assumida pela instituição de acolhimento, de
praticar actos jurídicos em nome ou por conta do maior.
Estaremos então perante a prestação característica do contrato
de mandato, conforme descrita pelo artigo 1157.º. E incidirão,
pois, as regras do mandato sobre o correspondente segmento
do contrato misto em causa6.

6
Defendendo a aplicação do método combinatório quanto às nor-
mas ou problemas que tocam directamente e apenas a prestação em causa,
Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, Contratos complexos e comple-
xos contratuais, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, 311 e s. Embora, como
é claro, a falta de capacidade afecte o contrato na sua unidade, as normas
relativas à aprovação da actuação do mandatário — aprovação que poderá
ficar comprometida por falta de capacidade — concernem directamente e
apenas à prestação típica do mandato.
230 • MA R I A I N Ê S DE O L I V E I R A MA R T I NS

c) Contratos de mandato relativamente ad hoc

Trata-se agora das situações em que o sujeito contrata com


outrem para assegurar a prática de actos jurídicos necessários
para resolução de um certo problema prático com que se
debata. Contrata, por exemplo, um advogado para assegurar
a gestão do seu património; ou pede a um vizinho que se
dirija em vez dele ao Banco, que cobre as rendas que lhe são
devidas, ou que o ajude a encontrar um enfermeiro ou auxiliar
doméstico e “trate” com ele o respectivo contrato.
Estaremos perante contratos de mandato, onerosos ou
gratuitos, e nos quais os poderes outorgados ao mandatário estão
delimitados pelo âmbito e subsistência do problema a tratar.

d) Problemas colocados pela limitação da capacidade de facto do


mandante

A celebração do contrato de mandato pressupõe, como


ocorre face a qualquer outro contrato, a capacidade das partes.
Tal não retira, porém, parece-nos, ao mandato interesse
prático para afrontar problemas de falta de capacidade de
facto do mandante para a prática de actos jurídicos. Assim,
se pensarmos nas limitações volitivas acima referidas,
descortinaremos situações em que o sujeito tem capacidade
para a celebração do contrato de mandato, embora a sua
inibição ou prostração o impeça da prática dos concretos
actos jurídicos que o integram (pense-se no sujeito que pede
ao seu vizinho que encontre alguém que lhe preste serviços de
limpeza ou reparação doméstica, que trate a sua contratação e
faça o respectivo pagamento).
Tão-pouco se pode dizer que um contrato validamente
celebrado não venha a enfrentar vicissitudes por falta de
capacidade do mandante. Sendo este um contrato duradouro,
pode a capacidade de facto do mandante vir a degradar-se ao
SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO DE MEDIDAS ... • 231

longo da sua vigência, assim como pode vir a ser instaurado um


processo de acompanhamento, com decretamento de uma esfera
de incapacidade de exercício que afecte o âmbito do mandato.
A perda de capacidade jurídica para o exercício de direitos
projecta-se sobre o contrato celebrado. Assim, para futuro,
o mandato caduca por falta de capacidade do mandante
(artigo 1174.º, b). E, quanto aos efeitos que o contrato haja
já produzido, colocam-se problemas no plano da aprovação
dos actos praticados em sua execução. Com efeito, uma vez
executado o mandato, o mandatário deve informar de tal o
mandante, prestar-lhe contas e entregar-lhe o que recebeu
e não despendeu no exercício do mandato (artigo 1161.º).
Tal é a base para que o mandante possa controlar a actuação
do mandatário e, caso o seu juízo seja favorável, proceder
à aprovação do mandato, nos termos do artigo 1163.º.
Produzem-se então as consequências da irresponsabilização
do mandatário pelos danos causados, ainda que com
culpa sua, bem como do reconhecimento da exactidão das
contas e dos créditos por ele reclamados e da outorga a ele,
mandatário, do direito às despesas com juros legais a partir
da sua realização, à indemnização dos prejuízos que tenha
sofrido com a gestão (artigos 469.º e 468.º, n.º 1, aplicáveis
por analogia) e à sua remuneração, quando não se tenha
convencionado diversamente.
Uma vez que se trate de perda de capacidade jurídica para
o exercício de direitos, devidamente decretada por tribunal,
tais efeitos não gerarão problemas de monta: no processo
de acompanhamento terá sido organizado o suprimento da
incapacidade declarada, cabendo agora ao acompanhante a
celebração de novos contratos de mandato e a aprovação ou
rejeição do mandato executado.
Surgirão já, porém, dificuldades quando não tenha havido
decretamento judicial da incapacidade, mas a capacidade
esteja de facto comprometida — encontrando-se entretanto
o mandante, por exemplo, em estado de confusão mental
232 • MA R I A I N Ê S DE O L I V E I R A MA R T I NS

ou profunda apatia. Perante a total omissão da parte do


mandante, poderia operar o artigo 1163.º, o qual determina
que, comunicada a execução ou inexecução do mandato, o
silêncio do mandante por tempo superior àquele em que teria
de pronunciar-se, segundo os usos ou, na falta destes, de acordo
com a natureza do assunto, vale como aprovação da conduta
do mandatário, ainda que este haja excedido os limites do
mandato ou desrespeitado as instruções do mandante, salvo
acordo em contrário. Na verdade, pese embora a sua epígrafe,
que se refere à aprovação tácita da execução, a norma cria, sim,
uma das hipóteses em que o silêncio possui valor declarativo7.
Ora, quer se considere que o silêncio é aí valorado como
simples facto jurídico associado à produção de um puro
efeito ex lege, quer se considere que ele é valorado como
comportamento concludente que suporta uma verdadeira
declaração negocial8, a mobilização da norma em causa revela-
se problemática quando tal silêncio provenha da esfera de um
incapaz de facto. Considerando-se que a norma se reporta
a uma verdadeira declaração negocial, estará a sua eficácia
comprometida pela falta de consciência da declaração que se
poderá frequentemente verificar da parte do incapaz, o qual não
reunirá condições para imputar à sua omissão valor de declaração;
e sempre são aqui aplicáveis as regras gerais da capacidade, e
entre elas a da incapacidade acidental9. E, quando se queria

Paulo Mota Pinto, Declaração tácita e comportamento concludente no


7

negócio jurídico, Coimbra: Almedina, 1995, 665-666.


Sobre a discussão em causa, Paulo Mota Pinto, Declaração tácita,
8

690 e s. , defendendo a qualificação do silêncio enquadrado pelo artigo


1163.º como facto concludente em Carlos Alberto da Mota Pinto / An-
tónio Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil,
Coimbra: Coimbra Editora, 2005, 424, em nota.
Paulo Mota Pinto, Declaração tácita, 412 e s., 703 e 704 e s. No-
9

te-se que na p. 714 se rejeita a relevância da falta de consciência do valor


declarativo do silêncio nas hipóteses em que o silêncio é objecto de valo-
SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO DE MEDIDAS ... • 233

qualificar o silêncio como puro facto jurídico, tão-pouco a norma


deve vigorar na sua plena extensão. Haverá que proceder à sua
redução teleológica, pelo menos quando a falta de capacidade
de facto seja cognoscível para o mandatário-declaratário — e,
tornando à hipótese pressuposta da actuação de um vizinho,
que mantém o contacto próximo com o sujeito afectado, essa
possibilidade não será uma mera hipótese teórica. Havendo
cognoscibilidade das limitações que impedem a declaração de
uma vontade íntegra, faltará a confiança legítima em que a sua
aprovação, decorrente dos usos ou de acordo com a natureza
do negócio, pudesse de algum modo ser pretendida pelo
mandante omisso10. De outro modo, produzir-se-ia aliás uma
antinomia normativa em relação ao regime da incapacidade
acidental, já que o mandatário ficaria em melhor posição no
caso de total omissão da sua contraparte, do que no caso de
emissão de verdadeira declaração de aprovação, porquanto,
reunindo-se incapacidade de facto e cognoscibilidade dela, a
declaração seria anulável.
Perante esta constelação de incapacidade de facto não
suprida, em suma, encontramos, em prejuízo dos interesses
do mandante, a falta das faculdades necessárias a um
efectivo controlo da execução do mandato; e, em prejuízo do
mandatário, a omissão da declaração de aprovação do mandato,
que lhe permitiria efectivar os seus direitos e ver-se liberto de
responsabilidades — sendo que na generalidade destes casos a
tal omissão não poderá ser atribuído valor declarativo.

ração típica pelos usos; parece-nos, porém, que esta é das hipóteses em
que a falta de consciência é mais funda do que o mero desconhecimento
do significado do comportamento omissivo, derivando de limitações que
atingem o próprio substrato desse juízo, incidindo na capacidade de ava-
liar globalmente a situação em causa, ou mesmo de actuar face a ela.
10
Paulo Mota Pinto, Declaração tácita, 715-717; nos demais casos,
poderá eventualmente apelar-se ao carácter de força maior de uma incapa-
cidade de facto profunda.
234 • MA R I A I N Ê S DE O L I V E I R A MA R T I NS

§2. Hetero-tutela

a) Consentimento presumido

No plano da hetero-tutela dos interesses do incapaz de


facto, releva, em primeiro lugar, a figura do consentimento
presumido, abrigada no artigo 340.º, n.º 3. Nos seus termos,
tem-se por consentida a lesão quando esta se deu no interesse
do lesado e de acordo com a sua vontade presumível.
O consentimento presumido configura uma causa de
justificação para uma ingerência na esfera alheia que de
outro modo seria ilícita. Ao contrário das hipóteses de
consentimento propriamente ditas, não assenta em razões de
autodeterminação do lesado, mas numa razão de necessidade11.
Por isso, tem uma intencionalidade inteiramente idêntica à
gestão de negócios, de que falaremos de seguida12.
Porém, ao contrário da gestão de negócios, esta figura não
enquadra regulatoriamente toda a intervenção não autorizada,
não definindo os direitos e deveres que a acompanham. Limita-
se a responder à questão da ilicitude/licitude de quem interfere
de modo não autorizado na esfera de outrem. Por isso, tem
consabidamente um grande alcance em sede de intervenções
médicas que revistam carácter de urgência ou perigo iminente,
que não permita, em tempo útil, apurar a vontade real do
sujeito.

11
Geraldo Rocha Ribeiro, A protecção do incapaz adulto no Direito
português, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, 243 e s.
12
Aliás, alguma doutrina considera que se trata de uma manifestação
da gestão de negócios enquanto causa de justificação (Philipp Brennecke,
Är ztliche Geschäftsführung ohne Auftrag, Heidelberg, etc: Springer, 2010,
esp. 232 e s.).
SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO DE MEDIDAS ... • 235

Para a determinação dos direitos e obrigações que promanem


da intervenção não autorizada, e para o enquadramento de
intervenções que impliquem a prática de actos jurídicos que
afectem terceiros, teremos que recorrer aos quadros mais
amplos da gestão de negócios.

b) Gestão de negócios

i) Enquadramento

Nos termos do artigo 464.º cc, dá-se a gestão de negócios


quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio no
interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal estar
autorizada. Abordaremos aqui o instituto de modo funcional,
ou seja, apenas na medida do requerido para o tratamento dos
problemas aqui tratados.
No tocante aos pressupostos da intervenção, é de interesse
lembrar que o negócio alheio se compreende como “interesse
alheio”, podendo ser moral ou material13; e que se exige em
geral que haja intenção de actuar em proveito alheio, não
bastando a utilidade objectiva da intervenção14. Relativamente
à falta de autorização do gestor, salientam-se os casos, muito
comuns nesta sede, em que um sujeito, autorizado a actuar
em vista de certa finalidade, acaba por ser sentir compelido a
actuar para lá do âmbito material dos poderes concedidos, ou
depois de eles se extinguirem. É o caso do vizinho mandatado
para assegurar um serviço de reparação, que, no curso dessa
actividade, se apercebe de que há outras reparações urgentes,
a que o incapaz não logra atender, incumbindo-se também da
sua contratação; ou que paga despesas correntes do incapaz ou

13
João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, Coimbra:
Almedina, 2000, 452.
14
Geraldo Rocha Ribeiro, A protecção do incapaz adulto, 252.
236 • MA R I A I N Ê S DE O L I V E I R A MA R T I NS

adquire medicamentos de que este necessite, usando montantes


ou dados bancários que o incapaz lhe tenha indicado para
uma outra finalidade, quando se apercebe de que ele não logra
realizar tais tarefas em tempo útil.
A actuação ao serviço deste interesse alheio, não sendo
autorizada, seria à partida ilícita; ela apenas se justifica na
medida em que seja necessária, tendo feição subsidiária.
Assim, no momento em que a intervenção tem lugar, esta deve
aparecer como exigida para evitar a produção de prejuízos
graves na esfera do dominus, que este parece não estar em
condições de evitar. E também o âmbito e conteúdo dos
poderes do gestor se encontram limitados pelo mesmo critério,
apenas lhe permitindo adoptar actos estritamente necessários
à protecção do dominus.
Antes de entrarmos na análise dos problemas suscitados
pela incapacidade de facto do dominus, saliente-se que, em
função do âmbito de capacidade que este aparente deter, será
possível que a gestão cesse a breve trecho e seja substituída por
medidas de tutela voluntárias. Com efeito, um dos deveres
que impendem sobre o gestor é o de, conforme o artigo
465.º b), avisar o dono do negócio, logo que seja possível, de
que assumiu a gestão. Tomando conhecimento da gestão, o
dominus poderá então manter o negócio sob o seu controlo,
ainda que indirecto: pode então transformar a intervenção
num mandato, ou, preferindo-o, mandatar outro sujeito15.
Tudo isto só vale, porém, se o maior portador de deficiência
tiver capacidade (ao menos, aparente) para o mandato, sendo
precludido pela aplicação das regras da incapacidade acidental.

Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, 466; Luís Manuel Teles de


15

Menezes Leitão, Direito das obrigações, I, Coimbra: Almedina, 2010, 517.


SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO DE MEDIDAS ... • 237

ii) Problemas suscitados pela incapacidade de facto para a aprovação da


gestão

Em primeiro lugar, o regime suscita problemas em sede de


apreciação da actuação do gestor. Problemas que, tal como
visto acima em relação à aprovação da execução do mandato,
se alinham em duas frentes: falta tanto o controlo do
cumprimento dos deveres do gestor e da conformidade da sua
actuação (artigo 465.º); como o reconhecimento dos direitos
que lhe competem — reembolso de despesas, indemnização
de prejuízos, e eventual atribuição de remuneração16 —, e a
certeza de que não terá que reparar os por danos causados por
sua culpa.
Ora, tal apreciação pode ser efectuada por uma de duas
vias. Em primeiro lugar, através da aprovação da gestão por
parte do dominus, enquanto juízo global em relação à actuação
do gestor, considerando-a conforme ao seu interesse e à sua
vontade (artigo 469.º)17. Em alternativa, assenta na iniciativa
do gestor, que prova que actuou de modo regular e em
conformidade com o interesse e a vontade do dominus18.
Em qualquer caso, porém, é necessário que o dominus,
ou alguém por ele, possa escrutinar e aprovar a gestão —
o que se torna inviável quer quando o dominus se remeta à
pura inacção (nem sequer em termos formais se pode apelar
aqui a uma norma como a do 1163.º), quer quando ao gestor
seja cognoscível a incapacidade de facto (atento o regime da
incapacidade acidental)19.

16
Segundo L. M. T. Menezes Leitão, Direito das obrigações, I, 520,
a remuneração deveria ser devida mesmo quando não se tratasse de ac-
tividade profissional, já que na sociedade actual a prestação de serviços
geralmente implica uma retribuição.
17
Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, 467; L. M. T. Menezes
Leitão, Direito das obrigações, I, 520.
18
Antunes Varela, Das obrigações em geral, I. 468-469.
19
Paula Távora Vítor, A administração do património das pessoas com
238 • MA R I A I N Ê S DE O L I V E I R A MA R T I NS

Idêntico vácuo de competência se verifica no tocante à


ratificação de cada um dos negócios celebrados, quando a
gestão tenha sido representativa (artigo 268.º) 20. Não havendo
ratificação, o negócio não produz efeitos, nem em relação ao
dominus, nem em relação ao gestor21.
O sujeito legitimado para o preenchimento deste vazio
é o Ministério Público, a quem a lei atribui a competência
cimeira de representação dos incapazes (artigo 3.º, n.º 1, a),
do Estatuto do Ministério Público). É a ele que incumbe o
suprimento do consentimento do incapaz, o que vale também
quando se trate de mera incapacidade de facto (artigos 2.º,
n.º 1, a) e 3.º, n.º 4, do Decreto-Lei 272/2001, de 13 de
Outubro que regula os Processos da competência do mp e das
Conservatórias do Registo Civil)22.

capacidade diminuída, 99-100; salientando a relevância da vontade infor-


mada do gestor (que a aprovação apenas procede se o dono tiver um co-
nhecimento suficiente da execução), Júlio Manuel Vieira Gomes, A gestão
de negócios, Um instituto jurídico numa encruzilhada, Separata do bfd 39
(1993) 177.
20
Paula Távora Vítor, A administração do património das pessoas com
capacidade diminuída, 100-101. Também em sede de representação sem
poderes encontramos uma norma pela qual ao silêncio se atribui valor de-
clarativo, parecendo ele aqui ser valorado como mero facto jurídico (Paulo
Mota Pinto, Declaração tácita, 714). Trata-se do n.º 3 do artigo 268.º, nos
termos do qual se considera negada a ratificação, se não for feita dentro do
prazo que a outra parte fixar para o efeito. Porém, o efeito que dele decorre é
o da rejeição da ratificação, não correspondendo o accionamento da norma
sequer a uma solução à partida desejável do ponto de vista dos interesses da
contraparte (mais ainda, atento o disposto no n.º 4 do mesmo preceito).
21
Se foi realizada alguma prestação, há lugar à sua restituição de acor-
do com as regras do enriquecimento sem causa (L. M. T. Menezes Leitão,
Direito das obrigações, I, 522).
Paula Távora Vítor, A administração do património das pessoas com
22

capacidade diminuída, 107 e s.; Geraldo Rocha Ribeiro, A protecção do


incapaz adulto, 237 e s.
SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO DE MEDIDAS ... • 239

Não tendo o dever de concitar a actuação do Ministério


Público, o gestor parece ter legitimidade para requerer que
este supra a falta de declaração do incapaz — tem interesse
directo na causa, já que retira utilidade da procedência da
acção (artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, do cpc).
Porém, acautelado que possa ficar o interesse do concreto
gestor ou contrapartes dos negócios por ele celebrados, tal não
significa que fique acautelada a generalidade dos interesses
do dominus incapaz. O Ministério Público não tem vocação
para assegurar uma administração regular do património,
mas apenas para controlar e validar certos actos que sejam
apresentados perante ele.
Dispõe já, sim, de legitimidade para requerer a instauração
de um processo de acompanhamento, o que poderá afigurar-se
indicado — mais ainda porque, uma vez iniciado o processo, o
tribunal poderá então nomear um acompanhante provisório,
com competência para aprovar ou não a gestão e ratificar ou
não os negócios em causa.

iii) Problemas quanto à aptidão da gestão de negócios para enquadrar uma


adequada administração da esfera do incapaz

Resulta já de quanto fomos dizendo que o instituto da


gestão de negócios, nos seus quadros gerais, não fornece um
bom enquadramento para uma adequada administração da
generalidade dos interesses do incapaz.
É assim quer se tenha assumido gestão representativa, quer
se trate de gestão não representativa.
Tratando-se de gestão representativa, a tentativa do gestor
de celebrar negócios em nome do dominus pode ser desde logo
inviabilizada, se a contraparte pedir a justificação dos poderes
do representante, precavendo-se contra a falta deles (cfr. artigo
260.º). Não tendo o gestor como provar os seus poderes, a
declaração em causa não produzirá efeitos.
240 • MA R I A I N Ê S DE O L I V E I R A MA R T I NS

Ainda que os negócios passem este primeiro crivo, não


procedendo a contraparte ao escrutínio da legitimidade do
gestor, ver-se-ão então expostos à incerteza derivada da falta
de sujeito legitimado para os ratificar, a que aludimos acima.
O negócio não produzirá então efeitos perante o dono — e,
tratando-se de uma situação de ineficácia, esta pode manter-se
por um lapso temporal consideravelmente longo e indefinido.
Para obviar a este estado de incerteza, poderá a contraparte
revogar ou rejeitar o negócio, ou eventualmente suscitar a recusa
de ratificação; e, por via judicial, como visto, poderá ser suscitada
a intervenção pontual do Ministério Público. Nenhuma destas
soluções é, porém, desejável, redundando em desincentivos à
contratação com o gestor de negócios do incapaz.
Claro está que os riscos da actuação sem poderes não
são privativos das situações de incapacidade de facto, e que
a contraparte pode sempre precaver-se pedindo, conforme
referido, a justificação dos poderes do representante23.
Contudo, a dimensão do problema é aqui maior, já que a
situação de falta de capacidade pode prolongar-se no tempo e
dar origem a várias situações de actuação sem poderes.
Tratando-se de gestão não representativa, o gestor actua em
seu próprio nome, sem revelar à contraparte a identidade do
dono, a quem transferirá os efeitos práticos da sua actuação24.
Os problemas aqui detectados decorrem das incertezas quanto
à recuperação dos custos incorridos pelo gestor e percepção da
remuneração que lhe fosse devida, e que vimos vendo serem
fruto das dificuldades em obter a aprovação da gestão.
Ora, a prossecução dos interesses do incapaz de facto será
muito plausivelmente onerosa para quem dela se desincumbe.
Poderá exigir uma boa quantidade de tempo, prejudicando
o exercício de outras actividades; e provavelmente consumirá

23
Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, 469.
24
Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, 455-456.
SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO DE MEDIDAS ... • 241

também recursos materiais. Acresce ainda, decisivamente, que


quem a inicia, não a pode interromper injustificadamente: o
466.º, n.º 1, protege o dominus, impondo a reparação dos
danos causados com a interrupção injustificada da gestão. No
caso de incapacidade de facto, entende-se que o gestor tem
que a manter até que cesse a incapacidade ou seja determinado
um modo de a suprir25.
Por outro lado, não há, salvo onde incida dever de garante
penal, dever de assumir a gestão de negócio alheio. A posição
de garante para efeitos jurídico-penais poderá aqui surgir
nas constelações de “monopólio de facto”26 — nas hipóteses
em causa, seria o caso em que o vizinho é o único sujeito
em condições de agir, tendo um domínio fáctico absoluto e
próximo da situação, estando, por outro lado, os bens jurídicos
do incapaz de facto em perigo agudo e iminente e podendo o
vizinho levar a cabo uma acção de protecção dos bens jurídicos
sem incorrer numa situação danosa ou perigosa para si mesmo.
O fundamento para esta manifestação do dever é a abissal
desproporção entre o perigo agudo que impende sobre o bem
jurídico e a quantidade de esforço necessária para o salvar. Tal
pode estar presente em situações extremas e pontuais, mas não
enquadra a generalidade dos casos, em que não se imporá ao
gestor que intervenha.
Encontramos, em suma, poderosos desincentivos à assunção
da gestão, que, associados ao facto de não haver em geral
qualquer dever de a assumir, ou sequer de alertar o Ministério
Público ou a Segurança Social, geram vazios na protecção do
incapaz de facto.

25
Paula Távora Vítor, A administração do património das pessoas com
capacidade diminuída, 96-97; Geraldo Rocha Ribeiro, A protecção do in-
capaz adulto, 253.
26
Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal, Parte geral, I, Questões fundamen-
tais, A doutrina geral do crime, Coimbra: Coimbra Editora, , 2007, 938 e s.
242 • MA R I A I N Ê S DE O L I V E I R A MA R T I NS

III. Conclusão

O sobrevoo rápido deste arco lógico prévio a (ou


independente de) um processo de decretamento de medidas
de acompanhamento permite-nos extrair algumas conclusões.
Vimos que os mecanismos disponíveis para protecção do
incapaz de facto nesta sede são mecanismos de feição geral, e
não talhados para a incapacidade; e que apenas se adequam a
dar respostas pontuais, não garantindo a produção de efeitos
com estabilidade. Mesmo a intervenção do Ministério Público
em sede de suprimento do consentimento serve para controlar
e validar certos actos específicos, e não para assegurar uma
administração regular do património.
O actual regime que enquadra a limitação da capacidade
de facto de sujeitos maiores parece, pois, verdadeiramente
dependente da intervenção do tribunal, que poderá decretar
medidas duradouras para protecção geral da pessoa e bens do
maior e, entretanto, decretar medidas de tutela provisória.
Deve lembrar-se que esta não é a situação desejável do ponto
de vista do princípio da necessidade e subsidiariedade, que,
concretizado em relação a este âmbito já pela Recomendação
n.º R (99) 4 do Conselho da Europa (Principes concernant la
protection juridique des majeurs, Princípio 5), determina que
as medidas de tutela informal devem ter prevalência face às
medidas de carácter judicial.
De resto, a intervenção do tribunal está dependente do seu
accionamento pelos sujeitos legitimados. Assim, se a pessoa em
causa se encontrar manietada pela sua incapacidade de facto,
ou tiver receios em relação à ablação da sua competência, e
não interpuser a acção, e se por outro lado não estiver casada
ou unida de facto, e não tiver contacto próximo com qualquer
parente sucessível, restará apenas a legitimidade do Ministério
Público para fazer o sistema de protecção funcionar. Enquanto
SITUAÇÃO DO MAIOR INCAPAZ ANTES DE SER OBJECTO DE MEDIDAS ... • 243

o Ministério Público não for alertado (e não há dever geral


de o fazer), a situação do incapaz poderá precarizar-se de
modo crescente. Justificar-se-ia, pois, porventura criar um
dever de o advertir para situações em que um sujeito, por
sofrer de uma limitação da sua capacidade de facto, não logre
gerir devidamente a sua pessoa ou os seus bens, criando-se
assim uma ponte entre as pessoas factualmente próximas do
contexto da incapacidade de facto e aquele que é o vértice do
sistema de sua protecção.
O “MANDATO
COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO”

PAULA TÁVORA VÍTOR

1. Introdução

O presente texto debruça-se sobre aquele que é porventura


o instrumento de proteção mais discreto introduzido pela
nova lei (Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto), mas, apesar
disso, o seu instrumento primeiro — o “mandato com vista
ao acompanhamento” (mva). A afirmação da centralidade dos
instrumentos voluntários de planeamento das situações de
diminuição de capacidade, e deste mandato em particular,
não espantará uma vez que se escora nos instrumentos
internacionais que moldam o novo paradigma de salvaguarda
das pessoas com capacidade diminuída, é plenamente assumida
nas reformas mais recentes de outros ordenamentos jurídicos1

1
Pense-se, por exemplo, no papel assumido por estes instrumentos
na recentíssima reforma austríaca de Julho de 2018 (2. Erwachsenenschut-
z-Gesetz (222/me) ou no funcionamento do princípio da necessidade no
246 • Pau l a Távor a V ítor

e é considerada a via mais relevante para abordar problemas


transfronteiriços de proteção de adultos vulneráveis, no atual
entendimento da aplicação da Convenção da Haia de 20002.
Este apelo intemporal ao controlo da própria vida a que
os instrumentos voluntários respondem, à possibilidade de
decidir mesmo quando a faculdade de a entender e de nos
determinarmos em função desse entendimento já não exista,
não é meramente o produto do atual entendimento do que
comporta o exercício dos direitos fundamentais, mas este
torna urgente a criação de meios para a sua concretização.
A presença de instrumentos jurídicos com este fito no
ordenamento jurídico português não é inédita, mas é recente.
Em 2012, foram introduzidas as diretivas antecipadas de
vontade, sob a forma de testamento vital, e o procurador para
cuidados de saúde3. Todavia, estas figuras ocupam ainda uma

ordenamento jurídico alemão, que determina que, na presença de Vorsor-


gevollmacht, não seja instituída a Betreuung (para. 1896 (3) bgb).
2
Vejam-se as conclusões e recomendações da disponíveis em <https://
assets.hcch.net/docs/88f10f24-81ad-42ac-842c-315025679d40.pdf>, mas
também Paul Lagarde, Explanatory Report on the Protection of Adults Conven-
tion, The Hague: Hague Conference on Private International Law, 2017, 74.
3
Foram consagradas na Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, mas eram
já anteriormente objeto de atenção por parte da doutrina nacional. Ver,
entre outros, João Carlos Loureiro, “Metáfora do Vegetal ou Metáfora
do Pessoal? — considerações em torno do estado vegetativo crónico”, Ca-
dernos de Bioética 8, 41; André Dias Pereira, O Consentimento Informado
na Relação Médico Paciente. Estudo de Direito Civil, Coimbra: Coimbra
Editora, 2004, 250 s.; Paula Távora Vítor, “Procurador para Cuidados
de Saúde — importância de um novo decisor”, Lex Medicinae — Revista
Portuguesa de Direito da Saúde 1/1 (2005); Vera Lúcia Raposo, “Directivas
antecipadas de vontade: em busca da lei perdida”, Revista do Ministério
Público 125 (Janeiro/Março de 2011); Geraldo Rocha Ribeiro, “Direito à
autodeterminação e directivas antecipadas: o caso português”, Lex Medici-
nae — Revista Portuguesa de Direito da Saúde 10/19 (2013); Paula Távora
Vítor, “O apelo de Ulisses — o novo regime do Procurador de Cuidados
de Saúde na lei portuguesa”, Revista Julgar (2014); Geraldo Rocha Ribei-
ro, “O sistema de proteção de adultos (incapazes) do Código Civil à luz
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 247

posição muito lateral no sistema de salvaguarda de adultos, pelo


caráter limitado do seu objeto. Não acontece o mesmo com
o novo mva, potencialmente abrangente de todas as matérias
que digam respeito à vida do mandante, e que deve, portanto,
assumir um papel de charneira no seio da sua proteção.

2. A centralidade do “mandato com vista ao


acompanhamento”

A centralidade da figura do mva decorre de dois princípios


estruturantes que presidem ao novo paradigma de salvaguarda
das pessoas vulneráveis: o princípio da autonomia e o princípio
da subsidiariedade.
A consagração de instrumentos voluntários no seio dos
sistemas de salvaguarda de adultos é o testemunho do atual
entendimento de que a sua situação jurídica deixou de ser
entendida como o problema de alguns, de uma categoria
excludente e excluída, a que pertenceriam os tradicionalmente
chamados incapazes semper et nunc ou os que a doença mental
teria lançado para as franjas da condição humana. As soluções
jurídicas que agora se avançam dirão respeito potencialmente a
todos, reconhecendo o interesse em planear uma incapacidade
futura a todos os que estejam em condições de o fazer. De
facto, o princípio da autonomia, é precisamente um dos
princípios estruturantes do novo sistema4. E é-o também pelo
papel que a promoção da autonomia das pessoas desempenha

do art. 12.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pes-
soas com Deficiência”, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente
Rui Moura Ramos, vol. ii, Almedina, 2016, 1144-1150.
4
Veja-se na expressão constitucional do direito ao livre desenvolvi-
mento da personalidade (artigo 26.º da crp) J. J. Gomes Canotilho /
Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., vol.
I, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 464-465, e as recomendações do
Conselho da Europa de 1999 e de 2009.
248 • Pau l a Távor a V ítor

como um dos elementos essenciais na reabilitação na área da


saúde mental5.
Para além do respeito pela autonomia, a compreensão hodierna
da salvaguarda dos direitos fundamentais de todos os cidadãos
também depõe a favor do mva 6. O princípio da subsidiariedade7,
consagrado constitucionalmente8, plasmado na Convenção das
Nações Unidas9 e enunciado já nas incontornáveis Recomendações
do Conselho da Europa de 1999 e de 200910 sobre estas matérias
assume aqui um papel diretivo. Este princípio determina que
sejam privilegiados meios menos formais e menos intrusivos, quer
produtos de autodeterminação, quer resultado da intervenção de
terceiros. Daqui decorre que, de forma a salvaguardar os interesses
do beneficiário, o sistema deverá, antes de mais, respeitar a
determinação que cada um faça do seu esquema de apoio, através

Sofia Marques / Fernando Vieira, “Proteção da Autonomia na Inca-


5

pacidade — novas exigências ao regime jurídico português”, Revista Julgar


34 (2018) 65.
Daí também o favor que colheu de António Pinto Monteiro, “Das
6

Incapacidades ao Maior Acompanhado, Breve Apresentação da Lei n.º


49/2018”, rlj 148 (Novembro-Dezembro de 2018) 77.
7
A este propósito no contexto nacional, veja-se a análise de Geraldo
Rocha Ribeiro, A Protecção do Incapaz Adulto no Direito Português, Coim-
bra: Coimbra Editora, 2010, em particular 449-452.
8
V. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da Repú-
blica Portuguesa Anotada, 392-393.
9
Ver, em particular, o Preâmbulo da Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
10
Ver conseil de l’europe (Conselho da Europa), Principes concer-
nant la protection juridique des majeurs incapables — Recommandation n.
R (99) 4 et exposé des motifs, Strasbourg: Editions du Conseil de l’Europe,
juillet, 1999, em particular o princípio 5, e Principles concerning conti-
nuing powers of attorney and advance directives for incapacity (Recommenda-
tion cm/Rec(2009)11 adopted by the Committee of Ministers of the Council
of Europe on 9 December 2009 and explanatory memorandum).Council of
Europe Publishing.
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 249

do exercício da sua autonomia e conceder relevância jurídica ao


importante fenómeno social da prestação de cuidado pelas estruturas
familiares e sociais. Só a prioridade concedida a estes meios permite
acautelar a esfera da vida privada (e, por vezes, familiar) da pessoa
de forma mais efetiva.11
Ora, também em função deste princípio, o mva é o primeiro
instrumento do sistema, precedendo qualquer recurso a meios
formais, mas também a meios informais. Quanto a estes, aliás,
importa referir que o legislador optou por não proceder à sua
densificação, nomeadamente através da previsão de figuras de
gestão de negócios plus, adaptadas à situação de um dominus negotii
com capacidade diminuída, que existem noutros ordenamentos
jurídicos12. A referência aos meios informais no novo regime do
maior acompanhado remete para “deveres gerais de cooperação e
de assistência”. Tal tipo de deveres existe no âmbito familiar, em
que o dever de cooperação é necessariamente limitado apenas ao
cônjuge, quanto aos sujeitos obrigados (artigo 1674.º do Código
Civil) e a pais e filhos (artigo 1874.º do Código Civil); e o dever
de assistência diz respeito garantia do sustento patrimonial, à
margem, portanto das matérias que aqui nos ocupam13. Só se
poderá pensar adicionalmente em deveres de carácter assistencial

11
Equacionando o direito ao livre desenvolvimento da personalidade
como justificador de limites à interferência do Estado, v. Luísa Neto,
“Vulnerabilidade e Capacidade de gozo e de exercício de direitos à luz do
livre desenvolvimento da personalidade constitucionalmente previsto”, in
Autonomia e capacitação: os desafios dos cidadãos portadores de deficiência
(e-book) (investigadoras responsáveis: Luísa Neto e Anabela Costa Leão),
publicação correspondente a catas do seminário “Autonomia e capacitação:
os desafios dos cidadãos portadores de deficiência”, Porto: Universidade do
Porto / Biblioteca Red / Centro de Investigação Político-Económica, 94.
12
Veja-se a guarda de hecho no ordenamento jurídico espanhol (artigo
304.º do Código Civil espanhol) ou a figura da gestão de negócios na sau-
vegarde de justice francesa (artigo 436.º do Code Civil).
13
Paula Távora Vítor, “O dever familiar de cuidar dos mais velhos”,
Lex Familiae — Revista Portuguesa de Direito da Família 5/10 Coimbra
Editora, Coimbra (2008) 49-54.
250 • Pau l a Távor a V ítor

que decorram de determinados contratos, nomeadamente de


prestação de serviços, mas, neste caso, nem impropriamente
poderemos crismá-los como gerais14. Por fim, há que equacionar
a possibilidade de o legislador se ter querido referir de forma
muito ampla aos deveres de instituições com incumbências nesta
área (veja-se, a este propósito, o funcionamento do “modelo de
apoio à vida independente” — mavi (Decreto-lei n.º 129/2017,
de 9 de outubro).

3. A figura jurídica eleita

O regime do maior acompanhado introduziu com o mva


uma nova figura de mandato (artigo 156.º do Código Civil),
que alarga o leque dos instrumentos jurídicos disponíveis no
nosso ordenamento jurídico, servindo a ideia de flexibilidade
que se quererá introduzir.
Ao consagrar um novo instrumento voluntário de apoio às
situações de capacidade diminuída, optou pelo mandato e não
pela procuração, que decalcaria os durable ou enduring powers
of attorney anglo-saxónicos. A figura do mandato permite-nos
fazer face a uma das críticas dirigidas ao instrumento dos países
de common law — o facto de este mecanismo não criar para o
representante a obrigação de agir15. Ao abrigo da mera procuração,
o representante poderia em qualquer altura cessar a sua atuação,

Nem gerais serão também os “direitos não clínicos” que decorrem


14

do artigo 9.º da Lei 31/2018, de 18 de julho, nomeadamente da sua al. d),


que permite designar familiar ou cuidador de referência que assista a pessoa.
15
Ver esta ideia já em Carolyn Dessin, “Acting as an Agent Under a
Financial Durable Power of Attorney: An Unscripted Role”, Nebraska Law
Review (1996) 586, para a figura do common law ou, a propósito do mandat de
protection future francês, a necessidade de extrair as consequências do mandato
geral em Phillipe Potentier, “Le mandat de protection future entre écriture
et pratique”, Defrénois, la Revue du Notariat 10 (8 mars 2018) 31.
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 251

deixando a pessoa vulnerável numa situação de desproteção16.


Ora, o mandato, enquanto contrato de prestação de serviços,
cria para o mandatário uma obrigação de agir. E, assim, a inação
deste pode inclusivamente gerar a sua responsabilidade pelo
incumprimento de deveres contratuais. Tal assume particular
importância uma vez que estamos a eleger um instrumento
voluntário para servir a situação de um mandante potencialmente
frágil, para fazer face ao declínio das suas capacidades.
Desta forma, já o defendi17, o mandato pode cumprir a
função representativa do power of attorney (se estivermos perante
o mandato com representação), mas combate o “carácter
abstrato” da procuração, oferecendo uma relação subjacente,
reguladora do quando e do como da atuação do representante18.
O legislador de 2018 optou pelo mandato, mas optou
por um modelo minimalista no tratamento desta figura.
Consagrou-lhe apenas o artigo 156.º do Código Civil, que
encapsula uma série de matérias: trata da previsão da figura
do mandato “com vista a acompanhamento”; aceita a sua
configuração alternativa como mandato com representação e
sem representação; remete para o regime geral do mandato;
mas admite que recorte “direitos envolvidos e o âmbito
da eventual representação, bem como quaisquer outros
elementos ou condições de exercício”; aborda a articulação
com o acompanhamento (“e tem-no em conta na definição

Paula Távora Vítor, A Administração do Património das Pessoas com


16

Capacidade Diminuída, Coimbra: Coimbra Editora, 237.


17
Defendi na minha dissertação de mestrado em Ciências Jurídico-Ci-
vilísticas, que concluí com a elaboração de uma proposta de regulamenta-
ção de instrumentos alternativos à tutela e à curatela, que fosse introduzi-
do o mandato como mecanismo de proteção dos adultos com capacidade
diminuída. Este trabalho veio a ser publicado em Paula Távora Vítor, A
Administração do Património das Pessoas com Capacidade Diminuída, e esta
proposta pode ser consultada nas páginas 324-326.
Paula Távora Vítor, A Administração do Património das Pessoas com
18

Capacidade Diminuída, 237-238.


252 • Pau l a Távor a V ítor

do âmbito da proteção e na designação do acompanhante”), e;


prevê a extinção por revogação ou por decisão judicial.
A contenção assumida não nos impede — antes convoca —
que se decomponham as suas opções e que tentemos encontrar
no seio da norma e do sistema as várias dimensões do seu regime.
É essa primeira abordagem que me proponho fazer nesta sede.

4. Aspetos do regime do mva

I. Sujeitos

a) Mandante

Em primeiro lugar, importa definir quem é a figura do


mandante em dois momentos: (i) quem é quando celebra o
negócio jurídico; (ii) quem é quando visa beneficiar deste. Em
ambos os casos, este ser está relacionado com a sua aptidão
para se determinar, com a sua capacidade de facto (ainda que
não tenha — e em princípio não deverá ter — expressão em
qualquer incapacitação jurídica).
O mva insere-se no âmbito dos instrumentos voluntários de
proteção e, como tal, no momento fundador, importa averiguar
se a vontade expressa pelo mandante é regular, nomeadamente se
este tem capacidade para a formar e exprimir. Ao contrário dos
outros instrumentos voluntários de proteção do ordenamento
jurídico português (as diretivas antecipadas de vontade, na forma
de testamento vital, e o procurador de cuidados de saúde), que
se ocupam diretamente desta questão19, o regime do mva não se
detém sobre a capacidade exigida, a não ser numa medida limitada.
Aquele que celebra este contrato é identificado como uma pessoa
“maior” (artigo 156.º, n.º 1, do Código Civil). Tal implicaria,
desde logo, excluir os menores de idade, mas deixa espaço para

19
Cf. artigos 4.º e 11.º Lei n.º 25/2012, de 16 de julho.
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 253

equacionar o status da pessoa maior. Face ao atual desenho do


regime, deixamos de poder remeter para categorias de “adultos
incapacitado”, ou seja, para aqueles cuja falta de “capacidade
para o exercício de direitos” judicialmente decretada os excluísse
necessariamente do “tráfico jurídico”. De facto, ainda que tenha
havido a prévia instauração do acompanhamento20, uma vez que
esta nova medida não comporta definições rígidas de círculos de
incapacidade — tendencialmente nunca a aplicando21 —, existe
a possibilidade de o maior acompanhado manter a possibilidade
de tomar disposições para situações futuras de agravamento da
sua condição, em que admita, por exemplo, vir beneficiar de um
mandatário “com vista ao acompanhamento”, nomeadamente
de um representante voluntário. É certo que, do ponto de vista
literal, o n.º 1 do artigo 156.º do Código Civil parece querer
referir-se à celebração no passado deste contrato, tendo em
vista o acompanhamento que virá a ser necessário no futuro,
uma vez que se refere a prevenir “uma eventual necessidade de
acompanhamento”22. Creio, todavia, que negar a possibilidade do
exercício da autonomia prospetiva por se encontrar já instaurada

20
V. Cristina de Amunatégui Rodriguez, Incapacitación y Mandato,
Madrid: La Ley, 2008, 238, que refere a possibilidade de pessoa sujeita a
curatela recorrer ao mandato se este recair sobre a esfera de capacidade em
que poderia atuar por si.
21
Em conformidade, aliás, com a Convenção das Nações Unidas dos
Direitos das Pessoas com Deficiência — cf. artigo 12.º da cdpd, e Theresia
Degener / Andrew Begg, “From Invisible Citizens to Agents of Change:
A Short History of the Struggle”, in Valentina Della Fina / Rachele Cera
/ Giuseppe Palmisano, ed., The United Nations Convention on the Rights of
Persons with Disabilities. A Commentary, Springer, 2017, 23.
22
Ver as situações relativas ao mandat de protection future e a possibi-
lidade de recurso a este por parte do maior sob curatela (artigo 477.º, al.
2 do Code Civil) ou sob sauvegarde de justice (artigo 435.º, al. 2 do Code
Civil). Valerie Depadt, « Quelques réflexions sur le mandat de protection
future », in Études en l'honneur du professeur Jérôme Huet, l.g.d.j., 2017,
117; e Phillipe Potentier, “Le mandat de protection future», 23.
254 • Pau l a Távor a V ítor

uma medida de acompanhamento quando tal exercício é possível,


quer do ponto de vista do recorte jurídico daquela medida, quer
do ponto de vista fáctico, seria uma restrição inaceitável, apoiada
num argumento de natureza meramente formal e contrária ao
espírito que nos devemos esforçar por imprimir coerentemente
ao sistema. A referência a “uma eventual necessidade de
acompanhamento” tem o sentido útil de remeter para a situação
de facto que justifica o instrumento do mva e que este serve.
Para além disso, independentemente da medida de
acompanhamento — e portanto, para além de uma verificação
formal do status —, haverá que averiguar se, em concreto, a
“capacidade de querer e entender”23, ou seja, as aptidões cognitivas
e volitivas implicadas nesta decisão, se encontram presentes.
Assim o exige o respeito pela autodeterminação de cada sujeito.
Este é, aliás, um entendimento que assume particular relevância
quando lidamos com doenças neurodegenerativas.
A forma como se averigua esta capacidade em concreto não
é abordada pela lei; não é, por exemplo, referida uma instância
de controlo no regime do maior acompanhado, todavia, o
cumprimento de exigências de forma que amiúde se impõe aos
negócios jurídicos, permitirá voltar a abordar este problema.
Num segundo momento, há que perceber em que
situação se deve encontrar o mandante que pode já começar
a beneficiar do funcionamento do mva, tendo em conta que
a figura do beneficiário das medidas de acompanhamento24 é

23
Ver, a propósito do conceito técnico civilístico tradicionalmente
consolidado, C. A. da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed.
por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra Edi-
tora, 2005, 221; Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil
Português, 4.ª reimpr. da ed. de 1992, Coimbra, Almedina, 2007, 309 s.;
e A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, iv, Parte Geral, 4.ª ed.,
Coimbra, Almedina, 2016, 368.
O artigo 138.º do Código Civil refere-se no plural às “medidas de
24

acompanhamento previstas neste Código”. Estas incluirão, sem dúvida, a


medida institucional do acompanhamento, mas também as medidas pro-
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 255

caracterizada como “[o] maior impossibilitado, por razões de


saúde ou pelo seu comportamento, de exercer plena, pessoal e
conscientemente os seus direitos ou de, nos mesmos termos,
cumprir os seus deveres” (artigo 138.º do Código Civil).
Em primeiro lugar, importa referir que não é necessário
que se decrete uma medida de acompanhamento stricto sensu
e que, portanto, se nomeie um acompanhante, embora este
possa coexistir com o mandatário. Em segundo lugar, não
decorre da lei que deva existir o decretamento de um âmbito
de incapacidade pelo tribunal. Deste modo, o mandante pode
conservar plenamente a sua capacidade de agir no mundo
jurídico, o que está em conformidade com a orientação
internacional na área25. Por último, deve concluir-se que apenas
se exige uma situação de facto que convoque a atuação deste
particular mandatário. Esta não se pode reconduzir, todavia,
a um conceito clínico. Implica uma ponderação jurídica que
terá na sua base a consideração do quadro global da pessoa
do beneficiário e que, portanto, vai buscar a sua referência
ao “conceito social” crismado pela Convenção de 2006 das
Nações Unidas dos Direitos das Pessoas com Deficiência26.

visórias (v. artigo 139.º, n.º 2). Para além disso, penso que também aqui
parece ser visado o mva, ainda que, do ponto de vista técnico, de acordo
com a fixação terminológica levada a cabo pela Recomendação do Conse-
lho da Europa R(99)4 não se possa reconduzir à categoria de “medidas de
proteção” (conseil de l’europe (Conselho da Europa), Principes concer-
nant la protection juridique des majeurs incapables, 25).
25
Ver nota 21. Cf. também a opção austríaca da nova Sec. 242 (2)
abgb.
26
Cf. o considerando (e) da Convenção das Nações Unidas dos Direi-
tos das Pessoas com Deficiência e Rachele Cera, “Preamble”, in Valentina
Della Fina / Rachele Cera / Giuseppe Palmisano, ed., The United Na-
tions Convention on the Rights of Persons with Disabilities. A Commentary,
Springer, 2017, 84. Sobre a evolução dos modelos de entendimento da
deficiência, ver ainda J. Correia Gomes, “Constitucionalismo, deficiência
mental e discapacidade: um apelo aos direitos”, Revista Julgar 29 (2016)
256 • Pau l a Távor a V ítor

Apesar da ausência de menção legal expressa neste sentido,


é para o momento em que se verifique esta situação que me
parece dever ser diferida a produção dos efeitos do mva. Esta
situação de facto, todavia, não tem de se caracterizar por um
carácter totalizante. O mva é, aliás, especialmente talhado para
fazer face a situações em que a diminuição de capacidade tem
um carácter meramente parcial27.

b) Mandatário

Também do lado do mandatário, se optou por não se


proceder a uma definição, nem das exigências do ponto de vista
da sua capacidade — que terá de se reconduzir, pelo menos, à
capacidade necessária para praticar os atos objeto do mva, nem
quanto ao âmbito da determinação das categorias de pessoas
que possam exercer o cargo de mandatário. Na verdade, não
assistimos à preocupação que norteou, na Lei n.º 25/2012,
o afastamento de certos grupos do exercício das funções de
procurador de cuidados de saúde, um regime que veda o
cargo àqueles que tenham tido intervenção no ato, prevenindo
eventual suspeição motivada pelo seu fácil acesso, bem como
aos proprietários e os gestores de entidades que administram ou
prestam cuidados de saúde28, pelo perigo de abuso potenciado

em particular p. 123 s.
27
Parece, portanto, ser de interpretar cum grano salis a referência do
Estudo Legislativo ao exemplo do recurso ao mva em caso de “doenças
invalidantes progressivas” que conduzam à “total dependência”. Cf. A.
Menezes Cordeiro / A. Pinto Monteiro, Da situação jurídica do maior
acompanhado, Estudo de política legislativa relativo a um novo regime das in-
capacidades denominadas dos maiores, 129, in <http://www.smmp.pt/wp-
-content/uploads/Estudo_Menezes-CordeiroPinto-Monteiromts.pdf>.
Nas alterações operadas pela Lei n.º 49/2018, aliás, dá-se uma po-
28

sição de especial favor ao exercício de funções de acompanhamento no


contexto institucional, ao prever-se que o acompanhamento possa ser de-
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 257

pelas relações de sujeição nestes contextos, mas também com


um fim de prevenção de suspeição29.30 Aliás, os instrumentos
internacionais31 chamam a atenção para a existência de conflitos
de interesses entre as pessoas internadas e as instituições que as
acolhem.

II. Conteúdo

A figura do mva é prevista “para a gestão dos [...] interesses”


do mandante. Adota a lei, assim, uma formulação genérica que
permite que seja exercido quer quanto a matérias do foro pessoal,
quer quanto às matérias do campo tradicional do mandato,
o patrimonial, tão destacado na própria conceptualização do
mandato enquanto sustentáculo jurídico para uma atividade
“por conta” de outrem.
Ora, ao abarcar também matérias de cariz pessoal (e aqui
teremos de ter em conta que o carácter estritamente pessoal
de algumas destas exclui a representação), não podemos deixar
de destacar as decisões na área da saúde e lembrar dois pontos
essenciais: (i) que existem instrumentos voluntários nesta área que
podem ser concorrentes ou conflituantes, e; (ii) que, ainda que
não existam, haverá que equacionar se o mandatário em vista

ferido à “pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja


integrado” (artigo 143.º, n.º 2, al. g) do Código Civil).
29
Paula Távora Vítor, “O apelo de Ulisses”, 238.
30
A. Menezes Cordeiro, que afirma aderir em abstrato à figura do
mandato para estes fins, manifesta reticências quanto ao seu possível apro-
veitamento pelo mandatário, mas centra-se antes na “influência de pa-
rentes não-desinteressados”. A. Menezes Cordeiro, “Da situação jurídica
do maior acompanhado, Estudo de política legislativa relativo a um novo
regime das incapacidades denominadas dos maiores”, Revista de Direito
Civil 3/3 (2018) 550.
31
conseil de l’europe (Conselho da Europa), Principes concernant la
protection juridique des majeurs incapables, 27.
258 • Pau l a Távor a V ítor

do acompanhamento deverá estar sujeito aos mesmos limites


impostos à figura do acompanhante no âmbito das decisões de
saúde. Na verdade, há específicas decisões em matéria médica
em que o legislador entendeu limitar o poder decisório deste,
adaptando as normas que diziam respeito à figura do tutor32.
Devemos entender que as razões de proteção que presidem
a estes casos valem tanto para o mandato como para a medida
institucional de proteção do acompanhamento. Deve fazer-
se, todavia, uma ressalva, e neste ponto não posso deixar
de seguir de perto o que já escrevi a propósito da figura do
procurador de cuidados de saúde, para o caso de o afastamento
daquelas exigências estar previsto pelo próprio mandante no
instrumento voluntário. Nesse caso, prevalece a expressão da
sua autonomia, que entendeu conceder esse poder mais amplo
ao mandatário. Assim, parece ser de admitir, por exemplo, que o
mandante, ciente da existência de uma doença familiar, preveja
a possibilidade de doar futuramente um órgão a membro
da sua família e que queira garantir isto na eventualidade da
sua diminuição futura de capacidade ou que queira conceder
poderes ao mandante para decidir acerca da sua participação
em ensaio clínico ainda que os riscos superem os eventuais

32
Vejam-se, por exemplo, as exigências Lei n.º 12/93, de 22 de Abril,
relativa à colheita e transplante de órgãos, tecidos e células de origem hu-
mana, que proíbe sempre a dádiva e a colheita de órgãos ou de tecidos
não regeneráveis quando estejam em causa incapazes (artigo 6.º, n.º 4).
Esta relação já tinha sido equacionada relativamente a outro decisor, o
procurador de cuidados de saúde em Paula Távora Vítor, “O apelo de
Ulisses”, 242. Ou atente-se, também, no artigo 8.º, n.º 2, al. a) da Lei da
Investigação Clínica (Lei n.º 21/2014, de 16 de abril), que na sua nova
redação determina que, a “realização de estudos clínicos com maiores que,
antes do início da sua incapacidade, não tenham dado nem recusado o
consentimento informado só é possível quando (...) [tenha sido] obtido o
consentimento informado do acompanhante com poderes de representa-
ção especial (...) o qual deve refletir a vontade presumível do participante.
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 259

benefícios para a sua pessoa33.


Ao contrário das opções tomadas noutros ordenamentos
jurídicos34, não existe limitação ab initio, por determinação
legal, dos poderes que podem ser concedidos ou das matérias
que podem ser abrangidas no âmbito do mva, mas também
não se procede à densificação do regime através de regras que
vinculem o mandatário a especiais deveres de contacto pessoal
e de prestação de informação35.
O novo artigo 156.º do Código Civil abre-se também
ao exercício da autonomia do mandante, admitindo que
o mandato “especifica os direitos envolvidos e o âmbito da
eventual representação, bem como quaisquer outros elementos
ou condições de exercício”. Poderá, assim, o mandante indicar
os poderes atribuídos ao mandatário, fixar as regras que devem
presidir à sua atuação, inclusivamente especificar os seus
desejos que devem ser prosseguidos.
Por fim, a norma que consagra o mva toma a opção pouco
comum no âmbito dos regimes das figuras homólogas de
admitir, ao lado do mandato com representação, também
o mandato sem representação. De facto, tem-se considerado
que a especificidade deste tipo de instrumentos se prende

33
Paula Távora Vítor, “O apelo de Ulisses”, 242.
34
No mandat de protection future, por exemplo, distingue-se entre
mandato lavrado notarialmente (artigo 489.º do Code Civil) e mandato
redigido em documento particular (artigo 492.º do Code Civil) e, no caso
deste último, limitam-se os poderes do mandatário aos poderes do tutor
sem autorização do tribunal.
35
Pensemos, a título de exemplo, no elenco de deveres proposto na
disposição respeitante às obrigações do mandatário (artigo 1184.º-E) no
trabalho conjunto com Geraldo Rocha Ribeiro – Paula Távora Vítor /
Geraldo Rocha Ribeiro Proposta de Lei sobre a Condição Jurídica das Pes-
soas Maiores em Situação de Incapacidade. Revisão do Código Civil, Centro
de Direito da Família, 17 de janeiro de 2017, in <http://www.centrode-
direitodafamilia.org/relatórios/2017/“proposta-de-lei-sobre-condição-ju-
r%C3%ADdica-das-pessoas-maiores-em-situação-de>.
260 • Pau l a Távor a V ítor

com a atribuição de poderes de representação voluntária em


situações de incapacidade do mandante36. Foi à sombra destas
considerações que foram introduzidos os enduring powers of
attorney do espaço do common law e nas figuras homólogas dos
ordenamentos de civil law, têm sido a procuração e o mandato
com representação os mecanismos eleitos37.

III. Meios de controlo

O ordenamento jurídico português não se tem demonstrado


recetivo à previsão instâncias de controlo que permitam
supervisionar quem age ao abrigo de um instrumento voluntário
de salvaguarda das pessoas maiores. Não o fez no âmbito da
procuração para cuidados de saúde e reiterou a sua opção no
mva 38. Não é esta, todavia, a tendência internacional com o
selo das recomendações do Conselho da Europa39, nem das
soluções de outros ordenamentos jurídicos40, que tanto num

36
V. Cristina de Amunatégui Rodriguez, Incapacitación y Mandato, 220.
V. artigo 477.º do Code Civil francês, artigo 2130.º e 2166.º do
37

Código Civil do Québec e para. 1901 a bgb.


Segundo o Estudo de Política Legislativa de A. Menezes Cordeiro e A.
38

Pinto Monteiro, “sujeitar estes mandatos a “fiscalização” prévia sem fazer


o mesmo quanto a mandatos “comuns” não seria operativo” e reitera que
“não há controlo quanto ao seu exercício”. Cf. A. Menezes Cordeiro /
A. Pinto Monteiro, “Da situação jurídica do maior acompanhado”, 129.
conseil de l’europe (Conselho da Europa), Principes concernant la
39

protection juridique des majeurs incapables, no seu Princípio 16 e Princípio


12 da Recommendation cm/Rec(2009)11 of the Committee of Ministers
to member states on principles concerning continuing powers of attorney
and advance directives for incapacity (Adopted by the Committee of Minis-
ters on 9 December 2009 at the 1073rd meeting of the Ministers’ Deputies).
Cf. a este propósito, o artigo 2169.º do Código Civil do Québec,
40

que prevê a prestação de contas ao menos uma vez ao ano e quando o


mandato termina ao tutor ou ao curador, ou a possibilidade de nomeação
do Kontrollbetreuer no âmbito da Vorsorgevollmacht (§1896 (3) bgb).
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 261

momento inicial, como supervenientemente, prevêem estes


expedientes. Tal função poderia ter sido assumida entre nós
pelo Ministério Público, cujas competências em matéria civil
têm sido progressivamente afinadas41.
Teremos, todavia, que encontrar um expediente que permita,
quando se justifique, controlar se o procurador norteia a sua
ação pelos desejos expressos no documento ou identificáveis
ou pelos melhores interesses do outorgante, na ausência dos
primeiros. Parece-me que aqui a via adequada será recorrer
ao controlo judicial42, requerendo as “providências destinadas
a evitar a consumação de qualquer ameaça à personalidade
física ou moral ou a atenuar os efeitos de ofensa já cometida”,
no âmbito de um processo especial de tutela da personalidade,
nos termos do artigo 1474.º do Código de Processo Civil.
Para além desta possibilidade, dada a plasticidade que o
próprio desenho da medida de acompanhamento pode assumir,
o artigo 143.º, n.º 3, do Código Civil, sustenta a possibilidade
de se designar um acompanhante com poderes de controlo
relativamente a este mandato, à semelhança da figura do
Kontrolbetreuer da lei alemã43.

41
Já o tinha proposto em Paula Távora Vítor, A Administração do Pa-
trimónio das Pessoas com Capacidade Diminuída, 325; e foi novamente assu-
mido em Idem / Geraldo Rocha Ribeiro, Proposta de Lei sobre a Condição
Jurídica das Pessoas Maiores em Situação de Incapacidade. Para uma análise
genérica mais recente das competências do Ministério Público em matéria
cível, nomeadamente no quando traçado pelo Decreto-lei n.º 272/2001,
de 13 de outubro, ver Ana Massena / Margarida Paz, “A competência de-
cisória e a intervenção do Ministério Público no âmbito do Decreto-lei n.º
272/2001, de 13 de outubro”, Revista do cej 1 (1.º semestre de 2015).
42
V. Valerie Depadt, “Quelques réflexions sur le mandat de protection
future”, 124 s., que considera a intervenção judicial no controlo do man-
dat de protection future do direito francês como “inédita”, tanto do ponto
de vista do direito dos contratos, por assumir maior importância, como
do ponto de vista do direito da proteção das pessoas, por ficar aquém da
tradicionalmente assumida pelo juge des tutelles.
43
Dietmar Kurze, Vorsorgerecht, Vollmacht, Patientenverfügung, leibzei-
262 • Pau l a Távor a V ítor

IV. Coordenação com outros instrumentos

O sistema de salvaguarda das pessoas com capacidade


diminuída que agora recebeu um novo recorte, integra vários
instrumentos — entre medidas e mecanismos de apoio e
proteção. Desde logo, a medida de apoio do acompanhamento,
enquanto a nova medida institucional consagrada, mas também
os outros instrumentos voluntários de proteção (nomeadamente
as diretivas antecipadas de vontade e o procurador de cuidados
de saúde) que têm aparecido amiúde neste discurso, surgem
tanto como referências para compreender o novo regime,
como enquanto peças que se devem integrar no sistema.
O legislador de 2018 reconhece no regime do mandato,
uma bipolaridade potencial do sistema ao consagrar que “[n]o
momento em que é decretado o acompanhamento, o tribunal
aproveita o mandato, no todo ou em parte, e tem-no em
conta na definição do âmbito da proteção e na designação do
acompanhante” (artigo 156.º, n.º 3, do Código Civil).
Desde logo, ao tê-lo em conta, o tribunal pode considerar
que: (i) o mva se revela suficiente para responder à situação
do beneficiário, não se justificando, desde logo, ao abrigo
do princípio da subsidiariedade, qualquer recurso ao
acompanhamento; se assim não for, (ii) a formulação da lei
ainda comporta que se admitam patamares de intervenção
concorrentes, conjuntos ou complementares da medida de
acompanhamento face ao mecanismo do mandato. Só assim,
aliás, se consegue o pleno aproveitamento de instrumentos desta
índole. Este depende também, em boa medida, de o sistema
em que se inserem permitir, em coerência com as exigências de

tige Verfügungen, hrg. Dietmar Kurze, München: C. H. Beck, 2017, 297 s.


O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 263

flexibilidade do paradigma e com o princípio da subsidiariedade,


que este tipo de figura opere de forma não só alternativa44.
O que acontecerá, todavia, no caso de conflito entre
mandatário e acompanhante?
O novo regime não se pronuncia, mas a solução deverá
ser dar prevalência à atuação do mandatário, operando aqui
também o princípio da subsidiariedade, que dá prioridade a
um instrumento produto da autonomia sobre uma medida
institucional, heteronomamente determinada.. Na verdade,
a coexistência entre esferas de atuação de mandatário e
acompanhante terá sido já objeto de escrutínio no momento
em que se decreta o acompanhamento. Se estivermos perante a
concessão de poderes mais genéricos ao acompanhante, ainda
temos o argumento de que deverá prevalecer a competência
especial do mandatário. Em todos os casos, todavia, esta é a
única forma de garantir o respeito pela vontade da pessoa
incapacitada, que, de outra forma, perderia a sua relevância.
Todavia, como vimos, existem outros instrumentos voluntários
a ter em conta e também se deveria admitir a sua coexistência,
na medida em que não se observasse uma sobreposição de
objeto ou de poderes. Para casos de conflito, poder-se-ia dizer
que uma hierarquia teria já sido estabelecida entre as diretivas
antecipadas e instrumentos de representação voluntária. E, na
verdade, tal aconteceu na Lei n.º 25/2012, quando se trata de
fazer prevalecer o “discurso direto” do outorgante no testamento
vital, sobre as decisões de um “terceiro” (em sentido impróprio),
o representante. Será possível transpor esta valoração para o
caso do mandatário em vista do acompanhamento (que pode,
aliás, nem ser um representante)? Deverá aqui equacionar-se
o funcionamento do argumento da identidade de razão, mas
tal valeria apenas neste âmbito limitado. E quando se tratasse

44
Note-se que o n.º 2 do artigo 1174.º do Código Civil se refere ao
mandato genérico.
264 • Pau l a Távor a V ítor

de confrontar dois decisores exteriores — procurador de


cuidados de saúde e mandatário em vista do acompanhamento
— mas cuja designação é igualmente produto do exercício
da autodeterminação do seu beneficiário? Partindo da
interpretação da vontade do mandante, na ausência de critérios
expressos e sem considerações de ordem principialista a tecer,
terá de prevalecer uma análise do âmbito material da atuação
de cada um e, revelando-se coincidente, a preferência dada à
última expressão desta vontade, ao instrumento mais recente.

V. Forma

O facto de nos encontrarmos potencialmente perante um


mandante vulnerável tem levado a que alguns instrumentos
homólogos do mva se sujeitem a especiais exigências de forma45.
O que acontecerá com a nossa figura, face à ausência de
menção expressa? Estará sujeita ao princípio geral de liberdade
de forma (artigo 219.º do Código Civil) ou outras regras serão
aplicáveis?
Na verdade, o artigo 156.º do Código Civil remete para
o regime geral do mandato e, quanto a este, não se fazem
particulares exigências. Ao mandato (se houver representação)
pode estar associado o instrumento que outorgue os poderes
representativos, a procuração, e, neste caso, o artigo 262.º, n.º
2 do Código Civil determina que “[s]alvo disposição legal em
contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio
que o procurador deva realizar”. Ora, o complexo de atos que
podem estar implicados num mva é dificilmente determinável

45
Por exemplo, o mandat de protection deve assumir a forma de ato
notarial ou de escrito privado realizado perante de testemunhas (artigo
2166.º do Código Civil do Québec). Na Áustria, exige-se a forma escrita e
assinatura perante notário, advogado ou associação de proteção de adultos
(secs. 262 e 266 abgb).
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 265

— desde atos de natureza patrimonial da mais diversa índole


e respeitantes aos mais diversos tipos de bens, até decisões
que dizem respeito ao foro pessoal, como a determinação
de residência ou o consentimento médico, cuja precipitação
formal é alvo de grande incerteza. Sustentei já a propósito da
procuração para cuidados de saúde em particular, cuja forma
não é inequívoca, que a exigência da lei no sentido da expressão
clara e inequívoca da vontade aponta para a necessidade de ser
expressa e que, apesar de não haver uma relação necessária entre
a forma escrita46 e esta inequivocidade, temos de reconhecer
que é um meio mais seguro do que a expressão oral, com todas
as dificuldades de prova que lhe estão associadas. A procuração
para cuidados de saúde beneficia, todavia, da analogia com
o testamento vital, que deve ser assinado presencialmente
perante funcionário do rentev ou notário47.
As razões que estão na base da exigência de um documento
escrito para estes dois instrumentos também se poderão encontrar
no mva. Na verdade, não se pede menor ponderação e certeza
do que nas diretivas antecipadas e na procuração de cuidados
de saúde. A exigência de um momento deste género em que se
plasma formalmente o mva é, aliás, essencial para a determinação
da capacidade do mandante, que tem de ser capaz, nos termos
analisados, no momento em que manifesta a sua vontade. Ora,
tal tem de ser feito perante instâncias adequadas para controlar

46
A preferência pela forma escrita no âmbito dos instrumentos vol-
untários pode encontrar-se também no princípio 5 da Recommendation
cm/Rec(2009)11 of the Committee of Ministers to member states on principles
concerning continuing powers of attorney and advance directives for inca-
pacity (Adopted by the Committee of Ministers on 9 December 2009 at the
1073rd meeting of the Ministers’ Deputies).
47
Artigo 3.º da Lei n.º 25/2012; e Paula Távora Vítor, “O apelo de
Ulisses”, 247.
266 • Pau l a Távor a V ítor

tal capacidade e, à cabeça, teríamos o notário48.4950 Este poderia


desempenhar um importante papel na clarificação das intenções
do mandante e no aconselhamento quanto à escolha das soluções
mais adequadas para prosseguir tais intentos51. Dir-se-ia que
no regime do mandato, a intervenção do tribunal representa
esse crivo. Todavia, o tribunal só aparecerá eventualmente num
momento posterior, apto a avaliar a situação de facto que convoca
o início da produção dos seus efeitos, se se tratar da instauração
conjunta do acompanhamento, mas não o momento pretérito
em que se constituiu.52

48
Cf. artigo 4.º do Estatuto do Notariado.
49
Note-se que o mandat de protection future francês tanto admite a forma
de documento particular como de ato notarial. No entanto, quanto à primei-
ra, a nova proposta de reforma do regime de proteção jurídica das pessoas
maiores pretende imprimir-lhe maior exigência, com a assinatura por advoga-
do e a adoção de um modelo definido pelo Conseil d’État — artigo 5.º do pro-
jeto de lei — artigo 492.º do Code Civil (https://www.senat.fr/rap/l06-212/
l06-21229.html). Para uma crítica da menor exigência de forma, v. Valerie
Depadt, “Quelques réflexions sur le mandat de protection future”, 118.
Sugestão análoga no contexto espanhol, fazia Cristina de Amunaté-
50

gui Rodriguez, Incapacitación y Mandato, 257.


No sentido deste papel do notário no mandat de protection future
51

francês, ver Phillipe Potentier, “Le mandat de protection future”, 24.


Questão diferente diz respeito à publicidade que poderia ser dada a es-
52

tes instrumentos por via registral e que está consagrada tanto para as direti-
vas antecipadas com a figura do rentev (art. 16.º da Lei n.º 25/2012) como
para figuras homólogas do mav. A questão da publicidade ocupa também a
figura francesa para a qual está prevista a criação de um registo especial por
parte do Conseil d’État d’État (cf. artigo 477-1 do Code Civil), a solução aus-
tríaca que remete para o Österreichisches Zentrales Vertretungsverzeichnis (Sec.
263 abgb) ou o registo escocês do power of attorney, que se deve fazer junto
do Office of the Public Guardian (Sec. 19, Adults with Incapacity (Scotland)
Act 2000).
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 267

VI. Produção de efeitos

O momento a partir do qual o mandante pode começar a


beneficiar do funcionamento do mva será aquele em que se
inicia a sua produção de efeitos.
A nova lei não é totalmente clara a este respeito. O
mva será celebrado “prevenindo uma eventual necessidade de
acompanhamento” (itálico meu), diz-nos o artigo 156.º, n.º 1,
do Código Civil. Todavia, tal remete, antes de mais, para uma
situação de vulnerabilidade que convoca a intervenção do
sistema de salvaguarda de pessoas maiores. Ora, esta salvaguarda
poderia ser desde logo acautelada se o mva começasse a
produzir imediatamente os seus efeitos, perdurando após a
verificação superveniente do quadro que o tinha convocado.
Poderá, todavia, entender-se que só se justifica que este
mecanismo produza efeitos quando o mandatário se encontrar
na mencionada situação– à semelhança dos springing durable
powers of attorney53.
A lei parece pressupor uma intervenção judicial quando estatui
que “no momento em que é decretado o acompanhamento, o
tribunal aproveita o mandato, no todo ou em parte, e tem-no
em conta na definição do âmbito da proteção e na designação
do acompanhante” (artigo 156.º, n.º 3 do Código Civil) e existe
a expressa menção no regime do maior acompanhado de que “o
acompanhamento é decidido pelo tribunal” (artigo 139.º do
Código Civil). Já percebemos, no entanto, que pode não ser
instaurado o acompanhamento, enquanto medida de proteção.
Ora, é verdade que o funcionamento de qualquer instrumento
que implique uma restrição de capacidade deve assentar na
formulação de um juízo judicial em função do caso concreto,
uma vez que não pode ser-lhe negado o seu carácter de decisões

53
Não é o caso do mandat de protection future francês. Para o período
anterior à situação de capacidade diminuída deverá recorrer-se ao manda-
to geral. Phillipe Potentier, “Le mandat de protection future», 24.
268 • Pau l a Távor a V ítor

de natureza jurisdicional e, logo, sujeita à reserva absoluta de


jurisdição54. No entanto, esta exigência só se justifica na medida
em que exista a potencialidade de afetar a capacidade — só
aqui estamos perante a restrição de direitos fundamentais. Não
seria necessária, portanto, quando, no âmbito do sistema do
acompanhamento esta possibilidade de incapacitação não se
colocasse, como seria o caso de fazer funcionar instrumentos
da índole do mandato. Assim, o mva pode não se sujeitar a
um momento de escrutínio judicial para produção dos seus
efeitos55. Note-se, aliás, que o próprio artigo do mandato,
ao admitir a possibilidade de modelação pelo mandante, de
“outros elementos ou condições de exercício” (artigo 156.º, n.º
2) poderá compreender a descrição da situação de facto que
espoletará a sua eficácia.

VII. Extinção

O mva conhece o seu fim por diversas vias, que contam


com expressa referência na lei.
Desde logo, a lei prevê que se extinga por livre revogação por
parte do mandante. Esta livre revogabilidade compreende-se
facilmente relativamente a um mandante que seja plenamente
capaz e ainda relativamente àquele que mantém a capacidade
que lhe que lhe permita em concreto tomar esta decisão.
Todavia, podemos estar perante uma situação em que uma
diminuição da capacidade superveniente já não o permite

Para esta análise ainda no contexto do regime anterior em Paula


54

Távora Vítor, A Administração do Património das Pessoas com Capacidade


Diminuída, 153 s.
55
No mandato do Québec, a eficácia é subordinada à incapacidade su-
perveniente do mandante e à homologação do Tribunal, a pedido do man-
datário designado (artigo 2166.º do Código Civil do Québec). No caso
francês, combina-se a apresentação de um atestado médico, nos termos
regulados pela lei, com o registo no tribunal (artigo 488.º do Code Civil).
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 269

fazer. Neste caso, devemos adotar uma posição conservadora


(à semelhança, aliás, do que o Bundesverfassungsgericht fez
quanto aos poderes do Kontrolbetreuer) quanto à possibilidade
de um eventual acompanhante com poderes mais genéricos
ter uma atuação relevante neste contexto, substituindo-se
ao mandante e revogando ele mesmo o mandato56.57 Deste
modo, este deve ser um caso que deverá antes ser integrado na
segunda via de extinção, a extinção por via judicial.
Na verdade, o tribunal pode fazer cessar o mandato quando
seja “razoável presumir” ser vontade do mandante revogar o
mandato. Também este poder de extinção por via judicial não
pode deixar de ser interpretado de forma muito contida. Na
verdade, não podem interferir aqui juízos externos ao critério
puramente subjetivado da vontade do mandante. Daí que a
“razoabilidade” que tenha de estar na base desta decisão só possa
reconduzir-se a casos-limite que afastem de forma evidente uma
vontade expressa em favor de uma vontade presumida.
Para além disso, parece que uma decisão judicial também
poderá vir a extinguir o mva (pelo menos) parcialmente. De
facto, a formulação positiva de que “o tribunal aproveita o
mandato, no todo ou em parte, e tem-no em conta na definição
do âmbito da proteção e na designação do acompanhante”
(artigo 156.º, n.º 3), pode ser vista, no seu reverso, como
a possibilidade de o tribunal não aproveitar outra parte do
mandato58. Aqui, tal possibilidade é facultada sem que se

56
Ver a decisão do Bundesverfassungsgericht de 10.10.2008 (1 BvR
1415/08), Zeitschrift für das gesamte Familienrecht (FamRZ) (2008) 2260
ss. relativamente ao Kontrolbetreuer.
57
Cristina de Amunatégui admite que o mandante tenha previsto me-
canismos de controlo, no âmbito dos quais concede a outras pessoas esta
faculdade de revogar o mandato. Cristina de Amunatégui Rodriguez,
Incapacitación y Mandato, 277.
58
Note-se que a al. b) do artigo 1174.º se refere ao regime geral do
mandato e não ao mva.
270 • Pau l a Távor a V ítor

aponte qualquer critério. No entanto, em consonância com o


padrão anteriormente apontado e com o carácter estruturante
que o princípio da autonomia deve assumir no sistema, não pode
senão dar-se um alcance muito restrito a esta possibilidade (e
sempre de acordo com o critério subjetivizado da vontade do
mandante)59.60 61
Por fim, importa equacionar a posição do mandatário, ao
qual nenhuma referência é feita no vontade expressa em favor
de uma vontade presumida A regra do artigo 1170.º do Código
Civil (no regime geral do mandato) consagra a possibilidade de
revogar livremente o mandato a todas as partes, e só afasta esta
possibilidade para o mandante e nos casos em que o mandato
foi concedido no interesse do mandatário ou de terceiro. O
mandante passa a estar liberto de tais peias pelo art.º 156.º
do Código Civil. Pode, portanto, revogar livremente. Quanto

Ver, neste sentido, a decisão do Bundesgerichtshof (bgh) de 30


59

março 2011 (xii zb 537/10) (http://juris.bundesgerichtshof.de/cgi-bin/


rechtsprechung/document.py?Gericht=bgh&Art=en&sid=f90ef0309aa-
c8091aaa4c549be24dd53&nr=56238&pos=29&anz=34).
60
O mesmo terá de ser defendido para o instrumento próximo que é
a procuração de cuidados de saúde, uma vez que a nova redação do n.º 3
do artigo 14.º da Lei n.º 25/2012, admite que a procuração possa ser re-
vogada por decisão do tribunal que instaure o acompanhamento de maior.
61
A caducidade do mandato nos termos dos artigos 1174.º, al. b)
e 1175.º, referir-se-á ao mandato genérico e não ao mva, sob pena de
inutilizar aquele que deve ser o instrumento mais relevante resultante do
novo paradigma. Na verdade, as preocupações (e as soluções) subjacentes
a estas normas prendem-se com instrumentos em que a conciliação com o
regime do acompanhamento não teve oportunidade de ser levada a cabo
e pensada de forma congruente em sede judicial. Ora, quando está em
causa o mva, o tribunal, ao decretar o acompanhamento, tem-no em conta
e estabelece os termos do funcionamento destes mecanismos em função
do quadro global e da situação concreta do beneficiário. É o artigo 156.º
que regula os casos de extinção do mva, obedecendo à lógica do sistema.
Parece entender de forma diversa, quanto ao artigo 1175.º, n.º 2, Mafalda
Miranda Barbosa, em Maiores Acompanhados, Primeiras Notas depois da
aprovação da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, Gestlegal, 2018, 59.
O “MANDATO COM VISTA AO ACOMPANHAMENTO” • 271

à posição do mandatário, ou se preserva a faculdade de


livremente revogar o mandato ou extrai-se da leitura do artigo
156.º, lex specialis face ao regime geral do contrato, que, sendo
só prevista a livre revogabilidade para o mandante, a contrario
está afastada para o mandatário. Na verdade, uma leitura
que tenha em conta a situação de particular vulnerabilidade
do mandante só poderá ser adequadamente satisfeita através
da possibilidade de renúncia por parte do mandatário – isso
parece certo –, mas seria necessário sujeitá-la a exigências
que permitissem não lançar o mandante num vazio de
proteção (desde o recurso a um segundo “mandatário”, no
impedimento do primeiro, à informação prestada a um
eventual acompanhante ou ao Ministério Público)62.

5. Breve nota conclusiva

O mva constitui o mais emblemático instrumento


introduzido pela reforma operada pela Lei n.º 49/2018.
É a figura que corporiza de forma mais plena os princípios
da autonomia e da subsidiariedade, mas também a ideia de
preservação de capacidade e valorização da vontade em todas
as suas manifestações que é inerente ao novo paradigma
internacional e a que têm obedecido as reformas mais recentes
dos ordenamentos jurídicos da nossa esfera. A consagração
legislativa desta figura — que é efetivamente diversa do
mandato geral, do ponto de vista da lógica que lhe está
subjacente e do seu regime, não obstante a remissão operada
— fez-se de forma contida. Pede-se, portanto, à doutrina e à
jurisprudência um efetivo labor de desenvolvimento, de forma
a que se criem as melhores condições para a sua concretização.

Veja-se, neste sentido, a nossa proposta de arts. 1184.º-E e 1184.º-F,


62

em Paula Távora Vítor / Geraldo Rocha Ribeiro, Proposta de Lei sobre a


Condição Jurídica das Pessoas Maiores em Situação de Incapacidade, 79-80.
272 • Pau l a Távor a V ítor

O mva não é a solução de segunda linha tolerada pelo regime


do acompanhamento. É o instrumento primeiro do sistema
e as medidas de acompanhamento devem favorecê-lo e
conformar-se em função deste. Há, portanto, um caminho
cultural a percorrer para que este assuma o seu lugar devido
no sistema — do ponto de vista da cultura jurídica, para
que o saiba compreender e promover, e do ponto de vista da
cultura social, para que superemos a inércia na previsão das
intempéries futuras que continua a ser nota da “síntese total
da psicologia e da história psicológica da nação portuguesa”63.

63
Fernando Pessoa, “Em mim o espírito de Lutero” (manuscrito),
5.09.1908, in Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer- Textos para um Novo
Mapa, vol. ii, Lisboa: Editorial Estampa, 1990, 76-77, em inglês no origi-
nal. Também em inglês se conta o número significativo de lasting powers of
attorney, regulados pelo Mental Capacity Act 2005, para os quais foi requerido
registo no Office of the Public Guardian de Inglaterra e Gales e que pode ser
consultado em Ministry of Justice, Family court statistics quarterly: July to Sep-
tember 2018 (2018) https://www.gov.uk/government/statistics/family-court-sta-
tistics-quarterly-july-to-september-2018.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS
FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ...
(CASAMENTO, PERFILHAÇÃO E TESTAMENTO)

ROSA CÂNDIDO MARTINS


Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

1. Introdução

O casamento, a perfilhação e o testamento, como negócios


jurídicos eminentemente pessoais que são, não podem deixar
de suscitar uma reflexão particular quando se trata de definir a
“capacidade” para os praticar.
Justifica-se, por conseguinte, neste momento — o da
Reforma da Parte Geral do Código Civil quanto às (in)
capacidades dos sujeitos maiores de idade — recordar o que
anteriormente se disse a propósito da capacidade jurídica e da
capacidade de exercício para a prática de actos pessoalíssimos 1.

1
Cf. Rosa Cândido Martins, Menoridade, (in)capacidade e cuidado
274 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

A recente Reforma da Parte Geral do Código Civil


quanto às (in)capacidades traduz uma profunda alteração
de paradigma no que diz respeito ao Direito das Pessoas. Na
verdade, a Reforma opera a inversão do princípio tradicional
da incapacidade geral dos “incapazes” maiores e acolhe as
principais consequências de tal inversão. Tais consequências
situam-se não só ao nível da própria capacidade jurídica
destes sujeitos, mas ainda mais relevante, ao nível da sua
personalidade jurídica. Quer isto dizer, da sua consideração
como pessoas, dotadas de uma indeclinável dignidade, como
sujeitos de direitos, como titulares de direitos fundamentais
a serem respeitados, pese embora a sua situação de maior
inabilidade ou inaptidão para prosseguir os seus interesses e,
portanto, a sua maior vulnerabilidade.
O novo Regime do Maior Acompanhado, ao optar por uma
mudança de paradigma, procurou dar resposta à necessidade de
adequar o regime jurídico das pessoas maiores com capacidade
diminuída 2 ao actual estado civilizacional. Tal necessidade já
vinha sendo sugerida por parte de alguma doutrina 3, atenta às
alterações legislativas nesta matéria em países do nosso horizonte
cultural e jurídico 4, e tornou-se urgente em face da recomendação

parental. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. Esta publicação consiste na


dissertação de mestrado elaborada após o estudo da a (in)capacidade por
menoridade, das suas formas de suprimento e do enquadramento jurídico
a conceder às hoje chamadas responsabilidades parentais.
Seguimos aqui a autora que, pela primeira vez, em língua portuguesa,
2

utilizou a expressão “adultos com capacidade diminuída” com o objectivo


de acentuar a esfera de capacidade existente e não a esfera de incapacidade.
Cf. P. Távora Vítor, A administração do património, 13, em especial, nota 7.
3
Cf. R. G. Alves, “Alguns aspectos”, 132-135; P. Távora Vítor, A admi-
nistração do património, em especial, 165 e s.; G. Rocha Ribeiro, A protecção do
incapaz, em especial, 383 e s.; J. Duarte Pinheiro, “As pessoas com deficiên-
cias”, 476-480; e A. Pinto Monteiro, “O Código Civil Português”, 150-154.
Cf. G. Rocha Ribeiro, A protecção do incapaz, 291 e s.; A . Pinto
4

Monteiro, “Das incapacidades”, 75; e A. Menezes Cordeiro, Da situa-


ção jurídica, 72-77.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 275

de reforma do regime jurídico português das incapacidades pelo


Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiência, no seu relatório
de 20 de Maio de 2016. Tal relatório avançou com a proposta de
revogação dos institutos da interdição e da inabilitação e com a
proposta de criação de um regime mais inclusivo das pessoas com
deficiência que respeitasse e assegurasse os direitos fundamentais
de que são titulares 5.
O regime jurídico relativo a esta matéria plasmado no
Código Civil de 1966, porém, permaneceu intocado nestas
cinco décadas que passaram. Durante este período de tempo, o
mundo social, cultural, científico, económico e jurídico mudou.
Mudou, sobretudo, a consciência e a visibilidade da
vulnerabilidade, enquanto qualidade “universal”, “constante”
e “inevitável”6 da vida do ser humano e “inerente à condição
humana”7. A vulnerabilidade é, hoje, tida como um “fenómeno
transversal e universal que pode afectar qualquer pessoa de
maneira episódica ou permanente” 8. A tal maior consciência
e visibilidade da vulnerabilidade não foi estranho o fenómeno
do envelhecimento da população e os efeitos da pirâmide
demográfica invertida, característica das sociedades dos dias
de hoje. Esta realidade sociológica bem como os avanços da
ciência médica, nas áreas da saúde mental e da deficiência,
determinaram uma nova representação social dos adultos com
capacidade diminuída 9.

5
Cf. P. Távora Vítor / G. Rocha Ribeiro, Proposta de Lei, Centro de
Direito da Família, 3; e A. Menezes Cordeiro, Da situação jurídica, 85.
6
Cf. M. A. Fineman, The autonomy, 35.
7
Cf. M. A. Fineman, “Cracking”, 18; e Idem, “The vulnerable”, 1 e 8.
8
Cf. L. Neto, “Vulnerabilidade e capacidade de gozo”,95.
9
Num sentido semelhante, vide G. Rocha Ribeiro, A protecção do in-
capaz, 10 e 12. Mais recentemente, fornecendo dados estatísticos quanto
ao fenómeno do envelhecimento da população e sublinhando a importân-
cia para a mudança de percepção social das pessoas maiores com capacida-
276 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

A evolução que sofreram a concepção de pessoa humana


e a sua dignidade não deixou de marcar a necessidade de
construção de uma condição jurídica diferente das pessoas
maiores com capacidade diminuída que espelhasse, com
verdade, o seu estatuto de pessoa jurídica.
Ganhou densidade a ideia de que a dignidade da pessoa
humana é uma “nota intrínseca” do ser humano que
pressupõe o seu “reconhecimento originário e não derivado”
e que simboliza o “reconhecimento do seu valor absoluto”,
fundando-se na “autonomia ética” da pessoa 10. Deste modo, a
eleição da dignidade da pessoa humana — enquanto referente
fundante do Estado de direito democrático social — sustenta a
afirmação de que o reconhecimento de personalidade jurídica
a todo o ser humano 11 é um postulado axiológico do actual
estado civilizacional e da “própria ideia de Direito” 12.
O Direito, ele mesmo, foi objecto de mutações impressivas
a este respeito. Assim, a entrada em vigor da Constituição
da República Portuguesa em 1976 traduziu-se na instituição
de uma nova ordem constitucional que rompeu, em muitos
aspectos, com a ordem constitucional anterior. Tal ruptura
ditou transformações significativas, por exemplo, no Direito
da família e no Direito das sucessões, de modo a adequar

de diminuída e da evolução da ciência médica a respeito do entendimento


da saúde mental e da deficiência, acompanhada da evolução da resposta
farmacológica a estes estados da pessoa, vide P. Távora Vítor, “Os novos
regimes”, 127.
10
Cf. J. C. Gonçalves Loureiro, “O direito”, 279-280.
11
Num sentido semelhante, configurando o princípio da dignidade
da pessoa humana como um dos princípios estruturantes de um regime
jurídico que vise dar adequada resposta à protecção e à promoção da au-
tonomia das pessoas maiores com capacidade diminuída, vide G. Rocha
Ribeiro, A protecção do incapaz, 14-26.
Neste sentido, vide A. Castanheira Neves, A revolução, 207-208; e
12

Idem, “Justiça e Direito”, 259-260.


ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 277

a disciplina das relações jurídicas de família e as relações


jurídicas sucessórias aos novos valores e princípios da nova
Constituição, que veio a culminar na Reforma de 1977. O
mesmo não aconteceu, no entanto, com o regime jurídico das
(in)capacidades das pessoas maiores. Crê-se que foi necessário
um maior amadurecimento e desenvolvimento dos novos
valores e princípios que informam a nossa Lei fundamental
para que tal viesse a acontecer.
Assim, para a Reforma em que o Regime do Maior
Acompanhado se traduz foi crucial, por um lado, o
reconhecimento da “base antropológica” da qual a Constituição
parte, ao fundar a República Portuguesa na dignidade da pessoa
humana (artigo 1.º crp), e, por outro lado, a atenção prestada
ao compromisso do Estado de direito democrático quanto ao
“respeito e garantia de efectivação dos direitos fundamentais”
(artigo 2.º crp) 13.
O reconhecimento de tal “base antropológica” potenciou
soluções jurídicas novas para os problemas colocados pela
situação das pessoas maiores com capacidade diminuída, que
assentam na percepção daquelas pessoas como titulares de
direitos fundamentais 14, em especial, titulares de um direito
ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1, crp).
O reconhecimento deste direito a todas as pessoas — corolário
do princípio da dignidade da pessoa humana — contribuiu de
modo decisivo, como se verá de seguida, para a configuração

13
Quanto à base antropológica “constitucionalmente estruturante do
Estado de direito” e à sua densificação no “respeito e garantia de efecti-
vação dos direitos fundamentais”, vide J. J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional, 248. Num sentido semelhante, L. Neto, “Vulnerabilidade
e capacidade de gozo”,91.
14
Com efeito, tais direitos mais não são do que uma concretização
do princípio personocêntrico, na base do acolhimento constitucional da
dignidade da pessoa humana. Neste sentido, vide J. J. Gomes Canotilho
/ Vital Moreira, Constituição, 198.
278 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

de uma nova condição jurídica das pessoas maiores com


capacidade diminuída, mais consentânea com a ideia de
respeito pela autodeterminação da pessoa na definição do seu
projecto de vida e pela sua concreta realização 15.
A consagração constitucional do direito ao desenvolvimento
da personalidade teve como objectivo primeiro a tutela da
individualidade de cada pessoa. Tal tutela abrange um direito
à diferença, radicado na liberdade e na autonomia da pessoa 16.
A individualidade de cada um reflecte-se, desde logo, na sua
personalidade e no modo como, com liberdade e autonomia,
cada um a desenvolve. O direito ao desenvolvimento da
personalidade visa, portanto, proteger a personalidade do seu
titular enquanto substrato da sua individualidade 17.
O direito ao livre desenvolvimento da personalidade comporta,
portanto, não só uma dimensão estática do “ser pessoa”, mas
também uma “dimensão dinâmica que aponta para a ‘pessoa
em devir’” 18. A pessoa humana é, assim, protegida na liberdade
de conformação da sua personalidade, enquanto expressão
primeira da sua liberdade de autodeterminação. O direito ao
desenvolvimento da personalidade integra uma dimensão de
“protecção de liberdade de acção” 19 e surge como um direito
a um reduto legítimo de liberdade e de realização pessoal sem
intervenção do Estado ou de terceiros 20. Deste modo, o Estado

15
Sobre a princípio da autodeterminação como um dos princípios
basilares de um sistema de protecção dos incapazes adultos, vide G. Rocha
Ribeiro, A protecção do incapaz, 39-49.
Cf. P. Mota Pinto, “O Direito”, 157-158; e J. de Sousa Ribeiro,
16

“Os direitos de personalidade”, 253.


17
Cf. P. Mota Pinto, “O Direito”, 163.
18
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 464.
19
Cf. U. Di Fabio, “gg Art. 2 Abs. 1”, Rn. 12-13.
Cf. J. Miranda / R. Medeiros, Constituição Portuguesa, 449-449. Num
20

sentido semelhante, vide L. Neto, “Vulnerabilidade e capacidade de gozo”, 93.


ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 279

não pode impor um determinado modelo de personalidade


“em nome de uma boa cidadania, de uma certa concepção de
progresso ideológico, ou de qualquer outro standard” 21. Ora, a
dimensão de “protecção de liberdade de acção” da pessoa implica
que a sua liberdade de decisão e de acção não sejam coarctadas
injustificadamente e que o seu direito à autodeterminação seja
respeitado 22. Quer isto dizer, que qualquer restrição ao direito
ao desenvolvimento da personalidade deve observar o princípio
da proporcionalidade em sentido amplo nas suas dimensões
de necessidade, adequação e proporcionalidade 23. Estas
implicações do reconhecimento do direito ao desenvolvimento
da personalidade não deixaram de ser tomadas em linha de conta
como traves mestras da recente Reforma do regime jurídico das
incapacidades. Com efeito, a Reforma colocou no centro do
regime a figura do beneficiário e procurou dotar o regime jurídico
das pessoas maiores com capacidade diminuída da flexibilidade
necessária à adaptação à situação concreta 24.
Ao sentido individual do direito ao desenvolvimento
da personalidade acresce igualmente um sentido social ou
relacional 25, de particular relevância na inserção da pessoa com
capacidade diminuída na vida comunitária — critério orientador
de uma conformação da condição jurídica destas pessoas — por
oposição a uma sua estigmatização e segregação26.

21
Cf. P. Mota Pinto, “O Direito”, 167 e 196.
22
Num sentido semelhante, vide L. Neto, “Vulnerabilidade e capaci-
dade de gozo”, 94.
23
Sobre os subprincípios constitutivos do princípio da proporcionalidade
em sentido amplo, vide J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 269-
270.
24
Cf. P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 128, 130-131.
25
Num sentido semelhante, vide P. Mota Pinto, “O Direito”,
158-159; L. Neto, “Vulnerabilidade e capacidade de gozo”, 92.
26
Veja-se a Exposição de Motivos da Proposta do Centro de Direito
da Família em que Paula Távora Vítor e Gerado Rocha Ribeiro sustentam
280 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

No sentido do reconhecimento das pessoas maiores


com capacidade diminuída como verdadeiros titulares de
direitos fundamentais concorreu também um dos princípios
estruturantes do Estado de direito democrático e social e do
sistema de direitos fundamentais: o princípio da igualdade
(artigo 13.º crp) 27. Este princípio tem de acompanhar
qualquer restrição ao direito ao livre desenvolvimento da
personalidade e ao direito à capacidade civil (artigo 26.º, n.º
1, crp) das pessoas maiores com capacidade diminuída 28. Na
verdade, o referido princípio tem na sua base a igual dignidade
social de todos os cidadãos, consubstanciando-se num
“corolário da igual dignidade de todas as pessoas” “cujo sentido
imediato consiste na proclamação da idêntica ‘validade cívica’
de todos os cidadãos, independentemente da sua inserção

a necessidade de um enquadramento jurídico para a situação das pessoas


com capacidade diminuída que permita a sua inclusão comunitária. Cf. P.
Távora Vítor / G. Rocha Ribeiro, Proposta de Lei, Centro de Direito da
Família,1. De uma outra perspectiva, o artigo 140.º CCiv assinala como
objectivo do Regime do Maior Acompanhado assegurar o bem-estar, a
recuperação e o pleno exercício da capacidade de agir das pessoas maio-
res com capacidade diminuída. Tal objectivo é salientado pela doutrina
quando se pronuncia acerca da escolha das medidas de acompanhamento.
Cf. A. Pinto Monteiro, “Das incapacidades”, 82.
27
Sobre o princípio da igualdade como princípio basilar de um regi-
me jurídico que vise dar adequada resposta à protecção e à promoção da
autonomia das pessoas maiores com capacidade diminuída, vide G. Rocha
Ribeiro, A protecção do incapaz, 26 e s.
28
É também especialmente relevante neste âmbito das restrições ao
direito da capacidade civil o princípio da proporcionalidade em sentido
amplo também conhecido como princípio da proibição do excesso. Por
conseguinte, só se pode admitir qualquer restrição legal à capacidade jurí-
dica de uma pessoa se e na medida em que tal restrição vise a protecção e
a promoção dos interesses e dos direitos fundamentais da pessoa em causa.
Cf. P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 129-130. Veja-se ainda o clássico
estudo de C.W. Canaris sobre a aplicação do pricípio da proibição do ex-
cesso no domínio das “incapacidades”, Claus Wilhelm Canaris, Verstöße
gegen das Verfassungsrechtliche Übermaßverbot, 993-1004.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 281

económica, social, cultural e política”29. Trata-se de um


princípio constitucional que não se dirige somente à regulação
das relações entre o cidadão e o Estado, mas à regulação das
relações entre privados 30. Na verdade, a eficácia externa deste
princípio terá “operacionalidade prática nos casos de abuso
de direito por parte dos poderes privados, sobretudo quando
o próprio estatuto da igualdade jurídica (conjugado com o
princípio da dignidade da pessoa humana) é perturbado por
regulações jurídico-civis” 31. Tal operacionalidade prática do
princípio da igualdade assume especial relevância nas relações
de cuidado informais e, até mesmo, na conformação legal
das relações de cuidado estabelecidas na lei, em que um dos
sujeitos, o cuidador, detém poderes materiais e/ou jurídicos
mais ou menos amplos, que se projectam na esfera jurídica da
pessoa maior com capacidade diminuída 32.
O legislador ordinário, estando vinculado ao princípio da
igualdade na conformação do novo regime jurídico das pessoas
com capacidade diminuída, teve de tomar em consideração
as três dimensões que o âmbito de protecção do princípio
da igualdade na ordem jurídico-constitucional portuguesa
integra, a saber: a proibição do arbítrio, a proibição de
discriminação e a obrigação de diferenciação 33.
A primeira consiste na proibição de tratamento desigual
e arbitrário relativamente a situações fundamentalmente
iguais e na proibição de tratamento igual e arbitrário para
situações manifestamente desiguais 34. A arbitrariedade

29
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 337.
30
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 338.
31
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 338.
32
Neste sentido, vide G. Rocha Ribeiro, A protecção do incapaz,32-33.
33
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 339.
34
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 339. Cf.
J. Miranda / R. Medeiros, Constituição Portuguesa, 167-168.
282 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

reside na diferenciação de tratamento sem ter para tanto


uma “justificação razoável, de acordo com critérios de valor
objectivos, constitucionalmente relevantes” 35.
Deste modo, o legislador, ao consagrar a inversão do
princípio tradicional da incapacidade geral dos “incapazes”
maiores, e admitindo a incapacidade como excepção, teve
necessariamente de fundamentar o tratamento desigual, em
que a sujeição a uma medida de acompanhamento se traduz,
em critérios objectivos conformes aos valores constitucionais.
Mais ainda, o legislador teve igualmente de respeitar as novas
exigências de justificação das restrições à capacidade 36 das
pessoas maiores com capacidade diminuída 37.
A proibição de discriminação não determina que qualquer
diferenciação de tratamento seja ilegítima; dita sim que qualquer
diferenciação de tratamento tenha que ter “fundamento
material bastante” 38 e, portanto, não se baseie em nenhum dos
critérios subjectivos enumerados no n.º 2 do artigo 13.º crp 39.
Estes “factores de desigualdade”40 ou “factores de

35
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 339.
Neste sentido, explicitando que “a mera verificação de falta ou limi-
36

tação da capacidade natural de uma pessoa não é bastante para decretar a


sua incapacidade nem para atribuir a terceiro poderes de decisão em substi-
tuição”, vide P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 139.
37
Sustentando que o regime tradicional das “incapacidades” das pessoas
maiores “não garante um cabal respeito pelo princípio da igualdade, uma vez
que nem sempre se justificará um tratamento radicalmente diferente dos inca-
pazes em relação aos capazes”. Cf. G. Rocha Ribeiro, A protecção do incapaz, 35.
38
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 341.
Cf. J. Miranda / R. Medeiros, Constituição Portuguesa, 167. Sobre
39

o princípio da igualdade, as suas dimensões e a sua influência na necessi-


dade de mudança do estatuto das pessoas com capacidade diminuída, vide
J. Correia Gomes, “Constitucionalismo, deficiência mental”, 133-137.
40
Cf. J. Miranda / R. Medeiros, Constituição Portuguesa, 172.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 283

discriminação ilegítimos”41 constam de um elenco meramente


exemplificativo 42. Esta conclusão torna-se hoje mais fácil
depois do reconhecimento constitucional de um direito pessoal
à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação
(artigo 26.º, n.º 1, crp) 43.Consequentemente, podem existir
outros factores de discriminação que, apesar de não estarem
expressamente previstos, se revelem contrários ao Estado de
direito democrático e social 44 e a outros valores que resultem
fundamentais para a consciência ético-jurídica da comunidade
correspondente 45, como se pode afirmar ser hoje o valor da
dignidade da pessoa humana. Muito embora a situação de
inabilidade ou inaptidão para prosseguir os seus interesses,
a situação de diminuição de capacidade e a deficiência não
estejam enunciadas no elenco do n.º 2 do artigo 13.º crp,
estas circunstâncias podem constituir também factores
de discriminação tidos por inadmissíveis no actual estado
civilizacional. Assim, o Regime do Maior Acompanhado deve
ser lido e interpretado à luz da proibição da discriminação das
pessoas com capacidade diminuída enquanto dimensão do
princípio da igualdade 46.

41
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 340.
42
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 340; J.
Miranda / R. Medeiros, Constituição Portuguesa, 172.
43
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 340; J.
Miranda / R. Medeiros, Constituição Portuguesa, 172.
44
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 340.
45
Num sentido semelhante, J. Miranda / R. Medeiros, Constituição
Portuguesa, 172.
46
Num sentido semelhante, incluindo a “deficiência” no elenco dos
factores de discriminação ilegítimos a acrescer aos enunciados no n.º 2 do
artigo 13.º crp e daí retirando a consequência da proibição da privação da
capacidade jurídica automática em função da situação de deficiência, vide
P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 130-139.
284 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

A terceira dimensão do princípio da igualdade é a obrigação


de diferenciação. Esta dimensão aparece ligada a uma vertente
material do princípio da igualdade que impõe ao Estado e à
sociedade que “criem e recriem as oportunidades e as condições
para que a todos permitam usufruir dos mesmos direitos e
cumprir os mesmos deveres” 47 ou, por outras palavras, que
impõe ao Estado e à sociedade a compensação da desigualdade
de oportunidades, eliminando-as ou atenuando-as48. Tal
objectivo não é estranho à Reforma da Parte Geral do Código
Civil quanto às (in)capacidades quando esta procura prever
diferentes soluções jurídicas que se adaptem aos interesses e
reais necessidades das pessoas com capacidade diminuída 49. Na
verdade, o novo regime, ao aceitar e promover a capacidade de
que gozem as pessoas com capacidade diminuída, está a permitir
o acesso a determinados direitos, designadamente direitos
fundamentais, que lhes eram negados pelo regime anterior 50.
É de realçar a tomada em consideração do regime específico
dos direitos, liberdades e garantias que os torna directamente
aplicáveis não só nas relações entre a pessoa e o Estado, mas
também entre os particulares (artigo 18.º crp). Deste modo, a
Constituição converte-se em “estatuto fundamental da ordem
jurídica, das relações sociais em geral, e não apenas da ordem

47
Cf. J. Miranda / R. Medeiros, Constituição Portuguesa, 164.
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 341342.
48

Num sentido semelhante, vide L. Neto, “Vulnerabilidade e capacidade de


gozo”, 91.
49
Cf. P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 140.
Sustentando que o anterior regime das incapacidades das pessoas
50

maiores assente nos institutos da interdição da inabilitação se encontrava


em manifesta desconformidade com os valores e princípios constitucionais,
sendo necessário um novo sistema que garantisse os direitos fundamentais
das pessoas maiores com capacidade diminuída, vide P. Távora Vítor / G.
Rocha Ribeiro, Proposta de Lei, Centro de Direito da Família, 5-6.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 285

jurídica do Estado e das suas relações com a sociedade” 51 ou,


dito de outro modo, “traduz a mutação operada nas relações
entre a lei e os direitos do cidadão: de direitos fundamentais
apenas no âmbito da lei transitou-se para a ideia da lei apenas
no âmbito dos direitos fundamentais” 52.
A titularidade dos direitos , liberdades e garantias incorporados
na Constituição não pode deixar de ser reconhecida a todas as
pessoas (artigo 12.º crp) 53, designadamente às pessoas maiores
com capacidade diminuída (artigo 71.º, n.º 1, 1.ª parte, crp),
ficando excluídos o exercício e o cumprimento dos direitos e
deveres para os quais se encontrem incapacitadas (artigo 71.º,
n.º 1, 2.ª parte, crp). Todavia, esta restrição está sujeita ao
princípio da proporcionalidade, devendo o legislador ordinário
limitar tais direitos apenas no que se afigurar “estritamente
necessário” e na medida em que assim seja de facto. O legislador
ordinário está obrigado a “escolher as situações menos gravosas
e mais consentâneas com o respeito pelo princípio de que os
cidadãos portadores de deficiência gozam plenamente dos
direitos conferidos aos cidadãos em geral”54.

51
Cf. . J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 381.
52
Cf. L. Neto, “Vulnerabilidade e capacidade de gozo”,91.
53
Há que atender neste contexto ao princípio universalidade dos
direitos fundamentais que se consubstancia no reconhecimento da
titularidade de direitos (e deveres) fundamentais a “todos os cidadãos”, a
todas as pessoas, pelo simples facto de o serem. Num sentido semelhante,
vide J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 416 e J. Miranda /
R. Medeiros, Constituição Portuguesa, 155-156.
54
Cf. J. Miranda / R. Medeiros, Constituição Portuguesa,1005 e
1006. Veja-se ainda, sobre o estatuto constitucional das pessoas maiores
com capacidade diminuída, as ambiguidades que podem resultar da inser-
ção sistemática do artigo 71.º crp e a interpretação a fazer desta norma, no
sentido de não diferenciar os cidadãos em geral dos cidadãos com capaci-
dade diminuída, atribuindo aos primeiros um estatuto pleno de capacida-
de e aos segundos um estatuto limitado, J. Correia Gomes, “Constitucio-
nalismo, deficiência mental”, 131-133.
286 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

Foi igualmente determinante a consideração de que é tarefa


do Estado não só respeitar os direitos fundamentais, mas
também garantir a sua concreta realização. Tal garantia assume
importância tanto nas relações entre a pessoa e o Estado bem
como nas relações entre ela e outros privados. Com efeito,
são muitas vezes estes quem está em verdadeiras condições de
os garantir 55, como acontece com os cuidadores informais
das pessoas maiores com capacidade diminuída. Ora, como
já se disse, os direitos, liberdades e garantias são também
directamente aplicáveis nas relações entre particulares (artigo
18.º, n.º 1, crp). Assim sendo, cabe ao Estado, neste âmbito,
uma função de controlo do efectivo respeito e realização
concreta dos direitos fundamentais das pessoas maiores com
capacidade diminuída, em especial nos casos de relações de
cuidado em que estas estejam envolvidas e que possam suscitar
abusos por parte dos cuidadores em virtude da especial
vulnerabilidade das primeiras 56.
Acresce que o legislador ordinário se encontra vinculado pelos
direitos fundamentais 57. Assim, os direitos fundamentais devem
ser “compreendidos, interpretados e aplicados como normas
jurídicas vinculativas”. O que quer significar que a Constituição
retirou ao legislador ordinário a possibilidade de reconhecer ou
não tais direitos e de garantir ou não a sua efectivação 58.
A nova ordem constitucional, embora não de forma
imediata, veio determinar a mudança do regime jurídico
tradicional das “incapacidades” das pessoas maiores. Tal
regime mutilava não só a titularidade bem como o próprio

Sobre a incumbência do Estado de direito democrático de respeitar


55

e garantir a efectivação dos direitos fundamentais, vide J. J. Gomes Cano-


tilho / Vital Moreira, Constituição, 208.
56
Em sentido semelhante, vide P. Távora Vítor / G. Rocha Ribeiro,
Proposta de Lei, Centro de Direito da Família, 26.
57
Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 440-442.
58
Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 378.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 287

exercício de certos direitos fundamentais. Acreditava-se que o


anterior regime, plasmado no Código Civil, protegia melhor e
de forma mais eficaz os “incapazes maiores” de si próprios 59,
de terceiros 60 e que conseguia, simultaneamente, atingir a
finalidade de protecção do comércio jurídico 61.
A necessidade de mudança fez-se sentir ainda em virtude
de novos instrumentos de Direito internacional de índole
convencional a que o Estado Português aderiu. Pela importância
e inovação das suas soluções, assim como pela decisiva
influência no recorte do novo regime jurídico português das
pessoas com capacidade diminuída, deve ser atribuída especial
relevância à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência (cdpd), aprovada e ratificada sem
formulação de qualquer reserva pelo Estado Português.
Nesta introdução, merece particular atenção o artigo 12.º
da referida Convenção. A importância deste artigo reside,
em primeiro lugar, no apontar das traves mestras do regime
da capacidade jurídica das pessoas com deficiência — que
se encontra nos antípodas das soluções apresentadas pelos
regimes tradicionais “das incapacidades”. Em segundo lugar,
a importância desta norma reside no facto de a questão da
capacidade jurídica funcionar como pressuposto para o
reconhecimento de muitos dos direitos acolhidos no texto
da convenção às pessoas com deficiência. De facto, a negação
de capacidade jurídica às pessoas com deficiência permitiu a
violação de muitos dos seus direitos fundamentais62.

59
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria geral, II, 77; C. A. Mota
Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, 277;
A. Menezes Cordeiro, Tratado, ii, 799; M. Miranda Barbosa, Maiores
acompanhados, 10; J. de Oliveira Ascensão, Direito Civil, I, 2.ª ed., 173.
60
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria geral, ii, 77.
61
Cf. H. E. Hörster, A parte geral, 319.
62
Cf. T. Degener / A. Begg, “From invisible citizens”, 23.
288 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

Por isso, o artigo 12.º começa com a declaração de que os


“Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o
direito ao reconhecimento da sua personalidade jurídica perante
a lei em qualquer lugar” (artigo 12.º, n.º 1, cdpd) — consciente
da íntima ligação entre a personalidade jurídica e a capacidade
jurídica, ainda que aqui o termo seja utilizado em sentido
impróprio como se verá adiante — e prossegue afirmando que
os “Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiência
têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as
outras, em todos os aspectos da vida”( artigo 12.º, n.º 2, cdpd).
A Convenção visa, assim, estabelecer o princípio da igualdade
como trave mestra do regime jurídico da capacidade das pessoas
com deficiência, ou seja, almeja promover a não discriminação
das pessoas com deficiência e assegurar o pleno e igual gozo de
todos os direitos humanos por tais pessoas, através da eliminação
de todos os obstáculos à plena e concreta realização destes
direitos 63. Acresce que o reconhecimento de igual capacidade
jurídica às pessoas com deficiência potencia a efectivação de
outros princípios basilares do sistema da Convenção como a
afirmação e o reconhecimento da dignidade da pessoa humana,
da autodeterminação de cada pessoa na condução da sua vida,
através das escolhas que vai fazendo, e da participação integral
na vida social sem discriminações baseadas na deficiência ou
inabilidade ou inaptidão para a realização de certas tarefas 64.
A Convenção, no entanto, não se basta com aquela inclusão
do princípio da igualdade no regime da capacidade jurídica.
Do texto da Convenção resulta ser necessário comprometer
os Estados Partes com a exigência de tomarem “as medidas

Cf. M. Keys, “Article 12”, 264. Num sentido semelhante, extrain-


63

do consequências a nível dos concretos recortes de uma nova condição


jurídica das pessoas com capacidade diminuída e da consideração da sua
capacidade jurídica, vide P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 128.
64
Cf. M. Keys, “Article 12”, 265.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 289

apropriadas para providenciar o acesso às pessoas com


deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua
capacidade jurídica” (artigo 12.º, n.º 3, cdpd). A referência a
tais medidas deve interpretar-se no sentido de que a remoção
de todos os obstáculos ao reconhecimento da capacidade
jurídica das pessoas com deficiência promoverá a sua “plena e
efectiva participação” na vida em sociedade e a realização do
princípio da igualdade 65.
Já ficou dito que o não reconhecimento de capacidade
jurídica às pessoas com deficiência se saldou na criação de
condições propícias à violação dos seus direitos fundamentais.
Assim, a Convenção no n.º 4 do artigo 12.º vem reclamar
dos Estados Partes a garantia que “todas as medidas que se
relacionem com o exercício da capacidade jurídica” ofereçam
“as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso, de
acordo com o direito internacional dos direitos humanos”.
Por um lado, a Convenção parte do princípio de que o
reconhecimento de capacidade jurídica às pessoas com
deficiência é essencial para que estas tenham, como todas as
outras pessoas, acesso a todos os direitos humanos como, por
exemplo, o direito à integridade pessoal 66. Por outro lado, a
Convenção parte do pressuposto de que a violação deste e de
outros direitos pode resultar do próprio sistema de protecção
e das medidas por ele previstas. Deste modo, a Convenção
requer que tais medidas sejam “proporcionais e adaptadas às
circunstâncias da pessoa” 67, que sejam aplicadas “no período

65
Cf. M. Keys, “Article 12”, 265.
66
Cf. M. Keys, “Article 12”, 266.
67
Paula Távora Vítor sustenta que a Convenção consagra aqui o “prin-
cípio da proporcionalidade em sentido amplo nas suas várias dimensões
(necessidade, adequação e proporcionalidade), como princípio dirigente
na conformação de instrumentos que se relacionem com o ‘exercício da
capacidade jurídica’ (...)”. Cf. P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 128.
290 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

de tempo mais curto possível” e que estejam “sujeitas a um


controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial
competente e imparcial”.
A exposição quanto aos fundamentos e princípios em que
se ancora o Regime do Maior Acompanhado — que se quer
que seja um regime de protecção e promoção dos direitos
das pessoas com capacidade diminuída — não foi exaustiva.
Procurou-se apenas mostrar a necessidade de alteração de
regime, sobretudo, em face dos novos dados jurídicos. De
entre estes, foi dada maior relevância àqueles que mais
influência terão na interpretação e aplicação do regime
particular quanto ao exercício de direitos pessoalíssimos por
pessoas com capacidade diminuída. Sem prejuízo, no entanto,
da referência a outros princípios basilares do sistema — como
o princípio da flexibilidade — sempre que se mostre necessária
a sua convocação para a leitura e interpretação das normas
respeitantes ao exercício de direitos pessoais.
Antes, porém, de analisar o novo regime, cumpre reafirmar
a estreita ligação entre personalidade jurídica, subjectividade
jurídica e capacidade jurídica, as diferenças entre os conceitos
de capacidade jurídica e capacidade de agir e as suas
consequências quanto ao exercício dos actos pessoalíssimos
nos sistemas tradicionais da incapacidade das pessoas maiores.

2. A estreita ligação entre personalidade jurídica,


subjectividade jurídica e capacidade jurídica

Importa começar por salientar que os manuais de Teoria


Geral do Direito Civil usualmente insistem na íntima conexão 68

68
A relação entre personalidade jurídica e capacidade jurídica já foi,
entre nós, na vigência do Código de Seabra, uma relação de identidade. Esta
relação de identidade tinha acolhimento tanto a nível legislativo (artigo 1.º
Código de Seabra: “Só o homem é susceptível de direitos e obrigações. Nisto
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 291

entre a noção de capacidade jurídica e a noção de personalidade


jurídica. Esta perspectiva no tratamento da capacidade jurídica
não deve ser entendida como um mero expediente de exposição
das matérias. Subjaz-lhe uma ideia importante: aquilo que o
Direito entender por personalidade jurídica, num determinado
estado civilizacional, marcará incondicionalmente o que o
Direito entender por capacidade jurídica.
A personalidade jurídica não é hodiernamente considerada
como um “produto do direito positivo” 69, cujo reconhecimento
se encontra na disponibilidade do legislador ordinário,
atribuindo-a ou recusando-a, de modo arbitrário, com base
em factores que obtêm hoje a qualificação de factores de
discriminação ilegítimos. Pelo contrário, a personalidade
jurídica traduz-se na leitura que o Direito faz do valor da
pessoa humana, segundo a consciência ético-jurídica 70 no
estado actual da nossa civilização, que reconhece a dignidade
da pessoa humana como valor primordial 71.
A personalidade jurídica traduz-se “na projecção no Direito
(no mundo do normativo jurídico) da personalidade humana” 72.

consiste a sua capacidade jurídica ou a sua personalidade”), como a nível dou-


trinal. Cf. L. da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, I, 169; e M.
A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, I, 3031. O mesmo se passa ainda
hoje no sistema jurídico alemão, em que a lei (§ 1 bgb) e doutrina sustentam
que a relação entre personalidade jurídica e capacidade jurídica se traduz
numa relação de identidade. De facto, os autores alemães não distinguem
personalidade jurídica de capacidade jurídica, vide, por todos, M. Wolf / J.
Neuner, Allgemeiner Teil, 117 e s. Para uma crítica de tal relação de identi-
ficação, vide P. Stanzione, Capacità e minore età, 85 e s.
69
Cf. A. De Cupis, Persona fisica (diritto vigente), 1019.
70
Cf. Orlando de Carvalho, Teoria Geral, 162.
71
Cf. C. A. Mota Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro
e P. Mota Pinto, 99-100, 193; L. A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral,
I, 196.
72
Cf. O de Carvalho, Teoria Geral, 162.
292 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

A personalidade jurídica radica, portanto, sobre o substracto


ontológico e axiológico 73 da personalidade humana que reclama
ao Direito para a personalidade jurídica as características da
essencialidade, indissolubilidade e da ilimitabilidade 74.
Acresce que a pessoa humana, ao conceber-se e reconhe-
cer-se como pessoa em sentido jurídico, exige necessariamente
o reconhecimento da sua qualidade de sujeito de direito. A
personalidade jurídica postula o reconhecimento à pessoa
humana da sua qualidade de sujeito de direito 75. “A personalidade
jurídica, como projecção da personalidade humana, constitui
juridicamente um esse, a subjectividade jurídica constitui um
posse”. Não é possível reconhecer a qualidade de pessoa jurídica
a alguém que não tenha “o estatuto permanente de sujeito de
direito” 76. Com efeito, a subjectividade jurídica revela-se como
“condição indispensável da realização por cada homem dos seus
fins ou interesses na vida com os outros” 77.
Cumpre então saber em que consiste a subjectividade
jurídica. A subjectividade jurídica pode ser definida como a
“susceptibilidade abstracta” de ser titular autónomo de direitos
e de estar adstrito a deveres 78 ou, dito de outro modo, como a

73
Cf. O. de Carvalho, Os direitos do Homem, 17-18; Idem, Teoria
Geral, 161; e R. Capelo de Sousa, Teoria Geral, 247 (nota 622).
74
A personalidade jurídica é essencial porque “pressupõe a personalida-
de humana”; é indissolúvel da personalidade humana e é ilimitada tal como
o é a personalidade humana. Cf. O. de Carvalho, Os direitos do Homem,
2123; Idem, Teoria Geral, 162-163.
75
Cf. O. de Carvalho, Teoria Geral, 164.
76
Cf. O. de Carvalho, Teoria Geral, 163-164.
77
Cf. C. A. Mota Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro e
P. Mota Pinto, Teoria Geral, 100.
78
Cf. C. A. Mota Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro e
P. Mota Pinto, 100; L. A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, I, 128-129
e 131; J. de Castro Mendes, Teoria geral, 82; H. E. Hörster , A Parte
Geral, 308, 323-324; e M. Wolf / J. Neuner, Allgemeiner Teil, 118.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 293

possibilidade para ser titular de relações jurídicas 79.


À categoria da subjectividade jurídica está intimamente
ligada uma outra categoria: a capacidade jurídica. A capacidade
jurídica é “o conteúdo necessário da subjectividade jurídica” 80
e consiste na “susceptibilidade concreta” 81 de ser titular de
direitos e obrigações 82, sendo proibida a sua renúncia total ou
parcial (artigos 67.º e 69.º CCiv).
Importa sublinhar que de acordo com a orientação tradicional
do estudo do sistema das incapacidades, a capacidade jurídica
se traduzia na aptidão genérica para ser titular de um círculo
maior ou menor de direitos e deveres 83. Assim, entendia-se
que um sujeito de direito podia ter capacidade em maior ou
menor medida sendo sempre pessoa 84. Na verdade, de acordo
com o entendimento tradicional desta matéria, todas as pessoas
possuíam capacidade jurídica 85. Todavia, a capacidade jurídica
não se verificava de modo igual em todas as pessoas. O Direito
não reconhecia a todas a pessoas a mesma capacidade jurídica,
em função de certas condições da pessoa ou de certas situações
em que esta se encontrasse 86. Esta potencialidade para ser, em

79
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, I, 30; C. A. da
Mota Pinto, Teoria Geral, 98.
80
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, I, 31; C. A. da
Mota Pinto, Teoria Geral, 194.
81
Cf. O. de Carvalho, Teoria Geral, 163 e 165.
82
Cf. C. A. Mota Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro e
P. Mota Pinto, 100; O. de Carvalho, Teoria Geral, 165.
83
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, I, 31; C. A. Mota
Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, 194.
84
Cf. C. A. Mota Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro
e P. Mota Pinto, 194.
85
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, I, 33.
86
Cf. C. A. Mota Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro
e P. Mota Pinto, 194.
294 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

concreto, titular de direitos e deveres podia então variar de


sujeito para sujeito. A capacidade jurídica era entendida
como uma noção de cariz quantitativo, incorporando a ideia
de medida, ao contrário da noção de personalidade jurídica,
noção de cariz qualitativo que não admitia, e não admite,
gradações 87.
Em face da hodierna representação cultural e social da
pessoa humana e da densidade que adquiriu para o Direito o
princípio da dignidade da pessoa humana, deve afirmar-se que
a subjectividade jurídica não pode deixar de ser, por força do
imperativo constitucional da igualdade, a mesma para todas as
pessoas 88. Por conseguinte, a capacidade jurídica, a ela inerente,
também terá de ser igual para todas as pessoas 89. A Constituição
suporta a afirmação anterior na medida em que consagra um
direito à capacidade civil (artigo 26.º, n.º1, crp) que não pode
senão assentar no direito de todas as pessoas serem reconhecidas
como pessoas jurídicas e como sujeitos de direito 90.
Julga-se que o entendimento tradicional da capacidade
jurídica não podia subsistir no nosso estado civilizacional.
Na verdade, o novo Regime do Maior Acompanhado deve
ser interpretado como tendo redesenhado o sistema de
incapacidades, reconhecendo a todas as pessoas capacidade
jurídica em igual medida.

Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, I, 31; C. A. Mota


87

Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, 194 e
220; L. A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, I, 131-132 ; J. de Castro
Mendes, Teoria geral, 85 e 87; H. E. Hörster, A Parte Geral, 309; J. de
Oliveira Ascensão, Teoria Geral, I, 142-145; R. Capelo de Sousa, Teoria
Geral, I, 250-251.
88
Cf. M. Wolf; J. Neuner, Allgemeiner Teil, 118.
89
Cf. H. E. Hörster, A Parte Geral, 294.
90
Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 465.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 295

3. Capacidade jurídica e capacidade de agir

De acordo com o sistema tradicional de incapacidades,


a capacidade jurídica e a capacidade de agir têm somente
em comum a ideia de medida, mas não se confundem,
colocando-se em planos fundamentalmente distintos91.
Importa, portanto, recortar com exactidão o âmbito de cada
uma 92.
Como já se referiu anteriormente, a capacidade jurídica
define-se como a susceptibilidade de se ser, em concreto,
titular de direitos e deveres. Tal possibilidade, por ser inerente
à personalidade jurídica, é reconhecida a todo o ser humano,
independentemente das suas aptidões ou habilidades.
Por sua vez, a capacidade de agir distingue-se da primeira
pois consiste na idoneidade para actuar de forma juridicamente
relevante, ou seja, traduz-se na susceptibilidade de exercer
direitos e cumprir obrigações, adquirir direitos ou assumir
obrigações, por acto próprio, exclusivo e autónomo. Por outras
palavras, pode definir-se como a aptidão do sujeito para actuar
pessoal e autonomamente, exercendo os direitos que adquiriu
ou lhe foram atribuídos e cumprindo as obrigações a que está
adstrito93. Essencial ao reconhecimento de capacidade de agir
a um determinado sujeito é a verificação de que este apresenta

91
L. A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, I, 134.
92
Adverte-se para o facto de se falar em capacidade jurídica e capaci-
dade de agir e não em capacidade de gozo e capacidade de exercício. Con-
sidera-se a primeira terminologia mais adequada por se entender que não
existe uma verdadeira contraposição entre gozo e exercício. Neste sentido,
Pasquale Stanzione, sustenta que “o gozo de um determinado bem não
pode andar afastado do correlativo exercício”. Cf. P. Stanzione, Capacità
e minore età, 241-243.
93
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, I, 31-32; C. Al-
berto da Mota Pinto, Teoria Geral, 195; O. de Carvalho, Teoria Geral,
167; L. A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, I, 134; J. de Castro Men-
des, Teoria geral, 85-86; H. E. Hörster, A Parte Geral, 309310; R. Cape-
lo de Sousa, Teoria Geral, 251-252.
296 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

capacidade natural para querer e entender94 .


Por esta razão, e ao contrário da capacidade jurídica, a
capacidade de agir não é igual para todas as pessoas. Pode
um sujeito possuir capacidade jurídica, mas ser considerado
pela ordem jurídica incapaz de agir porque nem todas as
pessoas apresentam a mesma capacidade natural para querer e
entender. De facto, terá de ser este o critério orientador para
o reconhecimento em concreto da medida da capacidade de
agir a cada pessoa.
Para uma cabal compreensão do regime do suprimento das
incapacidades, no âmbito do sistema tradicional e no actual
sistema de protecção e promoção dos direitos das pessoas com
capacidade diminuída, afigura-se ainda necessário perspectivar
a capacidade jurídica e a capacidade de agir pondo em relevo o
seu perfil negativo, ou seja, perspectivá-las como incapacidades.
De acordo com a doutrina civilista, na origem da diferença
do regime de suprimento das incapacidades estavam os seus
diversos fundamentos. Na verdade, a incapacidade de agir
visava, em primeira linha, a protecção do incapaz 95, enquanto
que a incapacidade jurídica radicaria sobretudo noutros
interesses, designadamente “motivos de interesse público
bastante ponderosos” ou interesses de ordem social, além dos
interesses do incapaz 96.
Deste modo, a incapacidade jurídica, ao implicar a
insusceptibilidade do sujeito para ser titular de certos direitos
e estar adstrito a certas obrigações, determinaria a proibição,
pela ordem jurídica, da actuação jurídica do incapaz ou de

94
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, I, 32.
Neste sentido, vide M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral,
95

II, 77; C. A. Mota Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro e P.
Mota Pinto, 220; H. E. Hörster, A Parte Geral,318-319; J. de Oliveira
Ascensão, Teoria Geral, 173; R. Capelo de Sousa, Teoria Geral, 330.
96
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, ii, 107; R. Capelo
de Sousa, Teoria Geral, 253.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 297

outrem, no seu lugar e em seu nome. A incapacidade jurídica


seria, assim, insuprível 97.
A incapacidade de agir enquanto insusceptibilidade para
actuar juridicamente, por acto próprio e exclusivo ou através
de representante voluntário, exercendo e adquirindo direitos
ou cumprindo e assumindo obrigações, por seu turno,
implicaria igualmente a proibição, pela ordem jurídica, de
o incapaz realizar tais actos. Contudo, esses mesmos actos
poderiam e deveriam ser praticados por outrem, no nome e
no interesse do incapaz, o seu representante legal, ou então
pelo próprio incapaz, através da autorização ou da aprovação
por outra pessoa, o assistente. A incapacidade de agir seria,
pois, suprível 98.
A plena capacidade de agir só é reconhecida aos sujeitos
maiores de idade (artigo 130º CCiv), a não ser que sejam
beneficiários de uma medida de acompanhamento em sede da
qual se tenha procedido a essa restrição, de acordo com a efectiva
capacidade natural para querer e entender. No entanto, no estado
actual da nossa civilização, o sistema das incapacidades devia
assumir, como princípio geral, a plena capacidade de agir para
todos os sujeitos e, por conseguinte, as respectivas limitações ou
restrições deviam estar expressamente previstas na lei e, em caso
de dúvida, deviam ser restritivamente interpretadas 99.
Acredita-se ter sido esta a orientação do Regime do Maior
Acompanhado, que eliminou as incapacidades jurídicas,

97
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, ii, 70; C. A. Mota Pin-
to, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, 222; L. A. Car-
valho Fernandes, Teoria Geral, I, 138; R. Capelo de Sousa, Teoria Geral, 253.
98
Cf. M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral, ii, 71; C. A. Mota
Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, 222; L.
A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, I, 138; R. Capelo de Sousa, Teoria
Geral, 254.
Cf. L. Díez Picazo / A. Gullón, Instituciones I/1, 126; e I. Bran-
99

don, Vers un nouveau regime, 227.


298 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

como já se viu, e que tem por excepcionais as situações de


necessidade de suprimento da incapacidade de agir, observando
as três dimensões do princípio da proporcionalidade em sentido
amplo (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido
estrito) e respeitando o princípio da dignidade da pessoa
humana 100. Na verdade, o artigo 140.º CCiv determina que
“o acompanhamento (...) visa o pleno exercício dos direitos [do
acompanhado] e o cumprimento dos seus deveres” e o n.º 1 do
artigo 145.º CCiv afirma que o acompanhamento se limita ao
necessário. Assim, parece dever interpretar-se este novo regime
como potenciador da autodeterminação das pessoas maiores com
capacidade diminuída, promovendo a sua actuação jurídica na
medida do possível, ou seja, na medida da sua capacidade natural
para querer e entender. Uma tal interpretação é corroborada
pelo carácter excepcional dos mecanismos de protecção que se
traduzam numa substituição101 da pessoa maior com capacidade
diminuída na realização dos seus direitos, deveres e interesses
patrimoniais e pessoais.

4. O regime do maior acompanhado, a rejeição da capa-


cidade jurídica no âmbito dos actos pessoalíssimos e o
problema da capacidade de exercício para a sua prática

As categorias da capacidade jurídica e da capacidade de agir


revelam-se para o sistema tradicional das incapacidades como
categorias essencialmente diferentes. A distinção entre elas
apresenta-se necessária, lógica e evidente. Na verdade, quando
as preocupações com os interesses patrimoniais se sobrepunham
aos interesses pessoais das pessoas maiores com capacidade
diminuída, a aplicação daquelas categorias não oferecia qualquer

100
Cf. A . Pinto Monteiro, “Das incapacidades”, 79.
101
Cf. A . Pinto Monteiro, “Das incapacidades”, 78.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 299

dificuldade ou resistência. O que pode ser explicado uma vez


que a distinção entre capacidade jurídica e capacidade de agir
tem a sua origem no direito civil patrimonial 102.
Ora, quando o jurista se propõe aplicá-las ao âmbito dos
direitos puramente pessoais, a necessidade, a evidência e a lógica
da distinção parecem desaparecer e revela-se o seu carácter
artificial. As dificuldades de ajustamento dos conceitos às
situações concretas começam a aparecer, uma vez que em sede
de direitos pessoais a distinção entre titularidade e exercício não
faz sentido 103. De facto, quando em causa estão direitos que
mais não são do que manifestações da própria personalidade,
não tem qualquer sentido útil o reconhecimento da idoneidade
para a sua titularidade (capacidade jurídica) desacompanhado
do reconhecimento da aptidão para os exercer (capacidade de
agir) 104.
A consideração das especiais características e necessidades
das pessoas maiores com capacidade diminuída, com base
na sua falta de aptidão ou habilidade para prosseguir os seus
interesses e, portanto, na sua especial vulnerabilidade, reclama
uma exigência ainda maior de protecção e de promoção da sua
autonomia no âmbito dos direitos pessoalíssimos.
Na verdade, a Exposição de Motivos da Proposta de Lei
n.º 110/xiii afirma “a possibilidade de o maior acompanhado,
salvo decisão expressa do juiz em contrário, manter a liberdade
para a prática de diversos actos pessoais”, dos quais destacamos
o direito a casar, o direito a perfilhar e o direito a testar. Tal
texto veio a transitar, com algumas modificações, para o
novo artigo 147.º CCiv. Se a pessoa maior com capacidade
diminuída é livre de exercer estes actos pessoalíssimos é

102
Neste sentido, vide P. Stanzione, Capacità e minore etá, 162 e s., 249, 286.
103
Neste sentido, vide P. Stanzione, Capacità e minore età, 249 e s.;
M. Giorgianni, In tema di capacità, 103.
104
Neste sentido, vide P. Stanzione, Capacità e minore etá, 250-251.
300 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

porque lhe é reconhecida capacidade jurídica para o efeito.


Dito de outro modo, é porque lhe é reconhecida a titularidade
de tais direitos. A importância deste reconhecimento radica
no facto de as restrições tradicionais à capacidade jurídica
se reconduzirem precisamente quanto à titularidade, em
concreto, dos referidos direitos pessoais 105.
Reconhecida a titularidade de tais direitos, o problema que
agora se coloca, no âmbito dos direitos puramente pessoais,
não é já um problema de titularidade, mas sim de exercício.
A questão consiste agora em saber se as pessoas maiores com
capacidade diminuída detêm a capacidade natural de querer e
de entender bastante para a prática dos actos em que se traduz
o exercício dos seus direitos pessoais. A esta questão a resposta
da Reforma foi, em termos gerais, uma resposta positiva. Assim,
o maior acompanhado pode exercer livremente os seus direitos
pessoais — exemplificativamente enumerados no n.º 3 do
artigo 147.º CCiv —, sendo “o reconhecimento da liberdade
para a prática de direitos pessoais” uma das finalidades deste
novo esquema de tratamento jurídico das (in)capacidades das
pessoas maiores 106. Tal liberdade, porém, não é ilimitada.
Isso seria desconhecer a necessidade de protecção das pessoas
maiores também nestes casos. Por isso, o anteprojecto e a
lei fazem depender essa liberdade de “disposição legal ou de
decisão em contrário” (artigo 147.º, n.º 1, in fine, CCiv).
Tal solução merece algumas considerações que decorrem, em
primeiro lugar, de se julgar em desconformidade com o espírito
da Reforma que aponta para a preservação da capacidade
(de exercício) existente em matéria de direitos pessoais 107.

105
Cf. C. A. Mota Pinto, Teoria geral, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro
e P. Mota Pinto, 223.
106
Veja-se a anotação ao artigo 147.º do Anteprojecto de Reforma, em
anexo a A. Menezes Cordeiro, Da situação jurídica, 124.
107
Neste sentido, vide P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 135-136.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 301

Na verdade, as restrições aos direitos pessoais do maior


acompanhado não deveriam estar dependentes de um juízo
abstracto formulado pelo legislador, sem atender aos específicos
recortes do caso concreto.
Em segundo lugar, crê-se que no novo sistema das (in)
capacidades, à tradicional finalidade de protecção das
pessoas maiores com capacidade diminuída se deve juntar,
complementando a primeira, a finalidade de promoção da sua
autonomia. Por conseguinte, pensa-se que a melhor solução,
para não desproteger estas pessoas e para simultaneamente
promover a sua autodeterminação, seria sujeitar a restrição da
liberdade para o exercício de um direito pessoal de autorização
por uma autoridade oficial (o tribunal, o conservador, o
notário) 108, no momento da prática do acto, perante as
circunstâncias do caso. Deste modo se adequaria efectivamente
a decisão ao caso concreto109, em especial à aptidão, à habilidade
e aos interesses da pessoa do maior acompanhado 110. Preservar-
se-ia também o princípio da flexibilidade que reclama soluções
diversas e diversificadas em função da concreta situação em que
se encontre a pessoa maior com capacidade diminuída 111.

4.1. O direito a celebrar casamento

O direito a celebrar casamento, enquanto direito


fundamental constitucionalmente consagrado, consiste numa
manifestação do direito geral de liberdade.
Em primeiro lugar, trata-se de um direito de defesa da
liberdade de casar. A consagração constitucional deste direito

108
Neste sentido, vide P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 135.
109
Neste sentido, vide P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 134.
110
Cf. G. Rocha Ribeiro, A protecção do incapaz, 426-427.
111
Sobre o princípio da flexibilidade, vide P. Távora Vítor, “Os novos
regimes”, 129.
302 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

visa salvaguardar a decisão livre e autónoma de celebrar


casamento. Quer-se acautelar que o direito seja exercido sem
interferência do Estado ou de terceiros.
Em segundo lugar, o direito de celebrar casamento
comporta várias dimensões: o direito de casar ou não casar;
o direito de escolher com quem casar; o direito de escolher o
momento em que casar 112.
Tal direito está consagrado no catálogo constitucional
dos direitos, liberdades e garantias, no artigo 36.º, n.º 1, 2.ª
parte, crp, que declara que “todos têm o direito de contrair
casamento em condições de plena igualdade”. A liberdade de
celebrar casamento, porém, comporta restrições. Na verdade,
o direito a celebrar casamento é um direito pessoalíssimo, ou
seja, um direito que pela sua essência está intimamente ligado
à pessoa do seu titular. Trata-se de um daqueles direitos que
podem definir-se como existenciais, como direitos essenciais à
própria qualidade de ser pessoa, sem os quais a pessoa, pelo
simples facto de o ser, não pode ser compreendida, no estado
actual da nossa civilização. Por conseguinte, não pode negar-
se a sua titularidade a qualquer pessoa em função das suas
características. Pode tão-só, para protecção da própria pessoa e
para protecção dos interesses dos terceiros envolvidos, em certas
circunstâncias, restringir-se o seu exercício.
O preceito referido não é susceptível de ser entendido de
modo literal. Se assim não fosse, teriam de ser considerados
desconformes à Constituição todos os impedimentos
matrimoniais previstos na lei civil, na medida em que se
reconduzem a restrições à liberdade de celebrar casamento 113.
Trata-se, com efeito, de requisitos de capacidade de exercício
do direito em causa que o legislador constituinte não quis

112
Cf. J. Miranda / R. Medeiros, Constituição Portuguesa, 586; J. J.
Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, 562.
113
Cf. F. M. Pereira Coelho / G. Oliveira, Curso, Vol. I, 130-131.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 303

pura e simplesmente banir. O propósito do legislador


constituinte terá sido tão-só o de impor ao legislador
ordinário a obrigação de se certificar que os impedimentos
matrimoniais estabelecidos se revelam necessários, adequados
e proporcionais aos objectivos de protecção da pessoa titular
do direito e dos terceiros afectados. Para tanto, devem ter por
base interesses públicos fundamentais 114.
O Regime do Maior Acompanhado veio eliminar o
impedimento matrimonial com base na interdição e na
inabilitação por anomalia psíquica, que estava em franca
contradição com o espírito do novo regime de protecção e
promoção dos direitos das pessoas maiores com capacidade
diminuída.
O impedimento ao casamento dos interditos ou
inabilitados por anomalia psíquica contrariava igualmente o
disposto no artigo 23.º, n.º1, a), da Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência 115. Na
verdade, este artigo impõe aos Estados Partes que tomem
“todas as medidas apropriadas e efectivas” com o objectivo
de erradicar a discriminação contra as pessoas com
deficiência no que respeita ao direito a celebrar casamento
“em condições de igualdade com as demais”, por forma a
que a todas as pessoas com deficiência em idade núbil seja
reconhecido o direito a casar, “com base no livre e total
consentimento dos futuros cônjuges”.
Entre as “medidas efectivas e apropriadas” para eliminar toda
e qualquer discriminação contra as pessoas com deficiência
quanto ao direito a celebrar casamento cabe necessariamente
uma alteração legislativa que compatibilizasse a legislação

114
Neste sentido, vide F. M. Pereira Coelho / G. Oliveira, Curso,
Vol. I, 131; e J. Duarte Pinheiro, O Direito da família, 72.
115
Veja-se a anotação ao artigo 1601.º, b) do Anteprojecto de Refor-
ma, em anexo a A. Menezes Cordeiro, Da situação jurídica, 133.
304 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

nacional a este respeito com a Convenção, modificando ou


revogando a lei em vigor 116.
O actual artigo 1601.º, b), do Código Civil estabelece
que são impedimentos dirimentes absolutos “a demência
notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a decisão
de acompanhamento, quando a sentença respectiva assim o
determine”. Julga-se que se pretendeu desta forma acomodar
as exigências acima referidas. Permite-se, assim, o exercício
livre do direito a celebrar casamento por pessoas maiores com
capacidade diminuída, a não ser que a sentença que decrete
a medida de acompanhamento determine o contrário. Esta
restrição aparece justificada na anotação ao artigo 1601.º,
b), do Anteprojecto de Reforma relativamente aos “casos
mais graves” em que o casamento de maiores acompanhados
não faria sentido” 117. Este juízo seria emitido pelo tribunal,
no momento de decidir acerca da aplicação da medida de
acompanhamento. Refere-se ainda a possibilidade de a
restrição do direito a casar ser revista supervenientemente
numa outra sentença 118 que venha a decretar a cessação ou a
modificação da medida de acompanhamento, nos termos do
actual artigo 149.º, n.º 1, do Código Civil.
Parece que, neste campo, o legislador não foi inteiramente
congruente com a ideia da concessão da capacidade de exercício
no âmbito dos actos pessoais até onde fosse possível, enquanto
expressão do direito à autodeterminação. Na verdade, a
previsão da limitação do exercício do direito fundamental a
celebrar casamento por sentença judicial que decrete a medida
do acompanhamento não é susceptível de atingir aquele

116
Cf. V. Della Fina, “Article 23”, 434.
Veja-se a anotação ao artigo 1601.º, b) do Anteprojecto de Refor-
117

ma, em anexo a A. Menezes Cordeiro, Da situação jurídica, 133.


Veja-se a anotação ao artigo 1601.º, b) do Anteprojecto de Refor-
118

ma, em anexo a A. Menezes Cordeiro, Da situação jurídica, 133.


ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 305

objectivo. A sentença que decreta o acompanhamento não


pode senão formular um juízo apriorístico sobre a específica
capacidade de exercício do direito a celebrar casamento 119.
Crê-se ainda que, de acordo com o novo espírito do sistema,
a sentença que limitar este direito a celebrar casamento deveria
ser actual. A decisão judicial deveria expressar um juízo
proferido em face da concreta capacidade da pessoa maior
no momento em que o problema se põe, ou seja, deveria
traduzir-se numa avaliação casuística e não numa avaliação em
termos gerais da capacidade do acompanhado para querer e
entender o acto que vai praticar e as suas consequências a nível
pessoal e patrimonial. Tal solução afigura-se mais adequada
aos princípios da autonomia, da dignidade da pessoa e
da flexibilidade, porquanto se traduz na possibilidade de
adequação da medida de acompanhamento às singularidades
de cada caso. Compreende-se a escolha pela decisão judicial
como meio de acautelar o direito fundamental em causa. Os
tribunais têm que aplicar a Constituição e, ao restringir um
direito, liberdade e garantia, não podem senão fazê-lo de forma
necessária, adequada e proporcional. A lei poderia ter preferido
uma avaliação da capacidade do maior acompanhado para
casar em sede própria, no processo preliminar de casamento.
Neste caso, a apreciação de tal capacidade seria feita pelo
Conservador do Registo Civil, podendo eventualmente estar
sujeita a homologação judicial.

4.2. O direito a testar

O testamento, pelas suas particulares características, requer


regras especiais no que respeita à capacidade do seu autor. Com
efeito, sendo o testamento um negócio jurídico pessoal (artigo

119
Num sentido semelhante, vide P. Távora Vítor, “Os novos regi-
mes”, 135.
306 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

2182.º, n.º 1, CCiv) 120, cuja prática espelha o direito de


autodeterminação da pessoa a nível patrimonial e pessoal, exige
uma capacidade especial, diversa da dos negócios jurídicos em
geral. Uma capacidade natural de querer e entender os efeitos
a nível patrimonial e a nível pessoal que o testamento produz
enquanto acto ao serviço do direito de propriedade do seu
autor, mas também ao serviço da sua própria personalidade
(artigo 2179.º, n.os 1 e 2, CCiv) 121.
Importa então averiguar qual a capacidade exigida para a
sua prática. A regra que a lei enuncia quanto à capacidade
testamentária activa é a de que podem fazer testamento todas
as pessoas que a lei não declare incapazes para o efeito (artigo
2188.º CCiv). Assim, a capacidade é a regra e a incapacidade
é a excepção 122.
No regime anterior eram considerados incapazes para testar
os menores não emancipados e os interditos por anomalia
psíquica. Limitava-se em absoluto o direito de testar a estas
duas categorias de pessoas. Não se aproveitando em relação a
elas qualquer capacidade para querer e entender os efeitos do
testamento.
O novo Regime do Maior Acompanhado, procurando
prosseguir os novos valores e princípios em que se fundam os
sistemas de protecção e promoção das pessoas maiores com
capacidade diminuída, tenta preservar a capacidade de exercício
destas pessoas no âmbito do exercício dos direitos pessoais 123
e, em consequência, revogou a norma que estabelecia a
incapacidade para testar dos interditos por anomalia psíquica.

120
Cf. R. Capelo de Sousa, Lições, 168-169.
121
Cf. R. Capelo de Sousa, Lições, 166167. Referindo-se a este pro-
pósito ao conteúdo atípico do testamento, vide F. M. Pereira Coelho,
Direito das Sucessões, 329-330.
122
Cf. R. Capelo de Sousa, Lições, 172.
123
Cf. P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 135.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 307

Na verdade, tal resposta da lei ao problema do exercício do


direito de testar por parte de pessoas maiores com capacidade
diminuída não se revelava uma solução conforme aos novos valores
e princípios em que o novo regime assenta 124, designadamente o
respeito pela autonomia da pessoa e pelo seu consequente direito
de autodeterminação a nível patrimonial e pessoal.
A lei determina agora como incapazes de testar os menores
não emancipados e os maiores acompanhados relativamente
aos quais a sentença de acompanhamento tenha determinado
tal incapacidade (artigo 2189.º, a) e b), CCiv). Trata-se de
uma incapacidade de agir e não de uma incapacidade jurídica.
Deste modo se admite que a ordem jurídica não pode deixar
de reconhecer a toda e a qualquer pessoa a titularidade do
direito a testar. Não era este o regime do sistema tradicional
das incapacidades em que a incapacidade para testar figurava
como incapacidade jurídica 125.
De acordo com o novo Regime do Maior Acompanhado, a
lei pode limitar o exercício desse direito à concreta inexistência
de uma certa aptidão ou habilidade de uma pessoa para
determinar os seus interesses patrimoniais e pessoais. Todavia,
no caso das pessoas maiores com capacidade diminuída,
apenas o pode fazer através de uma decisão judicial que decrete
a medida de acompanhamento. A restrição do direito de testar
fica, deste modo, reservada para “os casos mais graves” 126.
Também em matéria de liberdade para testar se compreendem
bem as reservas à restrição do direito correspondente e a
exigência de que tal restrição seja decidida por uma sentença
judicial. Com efeito, como já se disse para a limitação do

124
Cf. a anotação ao artigo 2189.º b) do Anteprojecto de Reforma, em
anexo a A. Menezes Cordeiro, Da situação jurídica, 141.
125
Cf. Pires de Lima; Antunes Varela, Código Civil Anotado, VI,
308-309; G. Oliveira, O testamento, 101; e R. Capelo de Sousa, Lições, 172.
126
Cf. anotação ao artigo 2189.º do Anteprojecto de Reforma, em
anexo a A. Menezes Cordeiro, Da situação jurídica, 141.
308 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

direito a celebrar casamento, só uma sentença judicial pode


oferecer as garantias suficientes de que a restrição respeitará o
princípio da proporcionalidade em sentido amplo.
No entanto, formulam-se também neste caso as mesmas
dúvidas a respeito da actualidade do juízo de apreciação da
incapacidade que resulte da sentença que venha a decretar o
acompanhamento. Na verdade, sustenta-se igualmente que tal
juízo de limitação do direito a testar deva ser temporalmente o
mais próximo do momento da elaboração do testamento e que
deva atender às circunstâncias singulares de cada caso e dos
interesses pessoais e patrimoniais de cada pessoa em concreto.
Entende-se que o legislador poderia ter ponderado uma
outra solução. Com efeito, a avaliação da capacidade para
testar do maior acompanhado poderia ser feita em sede própria
para a prática do acto 127, ou seja, tal apreciação poderia ficar
a caber ao notário, sem prejuízo da decisão tomada quanto
à capacidade para elaborar testamento poder ser objecto de
controlo judicial.

4.3. O direito a perfilhar

A perfilhação é o acto pelo qual se dá, por via de regra, o


reconhecimento jurídico da paternidade fora do casamento.
Trata-se de uma declaração de um determinado homem
no sentido de expressar a sua convicção de que é pai de
um determinado filho 128. Pode caracterizar-se como um
acto pessoal129 pelo que coloca especiais problemas quanto
à definição da capacidade para a sua prática. Na verdade, é
necessário avaliar se o perfilhante está em “condições para

127
Neste sentido, vide P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 135-136.
128
Cf. G. Oliveira, Estabelecimento, 140-141.
129
Cf. G. Oliveira, Estabelecimento, 143.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 309

formular um juízo ponderado sobre a autoria da perfilhação” 130.


No que respeita à capacidade para perfilhar parece a Reforma
não ter seguido o princípio geral de que o exercício pelo maior
acompanhado de direitos pessoais é livre (artigo 147.º do CCiv).
Não reproduziu a Reforma no artigo 1850.º do Código Civil a ideia
de que a capacidade de exercício para a prática destes actos é a regra,
sendo as restrições excepcionais e determinadas pela decisão judicial
que determinou a aplicação da medida de acompanhamento. Na
verdade, a redação da norma — “têm capacidade para perfilhar (...)
se não forem maiores acompanhados com restrições ao exercício
de direitos pessoais" — parece não quadrar bem com o espírito e
com os princípios do novo Regime do Maior Acompanhado bem
como com as suas fontes já referidas. Parece que tal expressão não
se adequa à liberdade para a prática de actos que se traduzam no
exercício de direitos pessoais fundamentais 131, como é o caso do
direito a perfilhar.
Em face da anotação do Anteprojecto de Reforma ao artigo
1850.º, em que se afirma que uma vez mais se “aflora aqui a
manutenção da capacidade de exercício de direitos pessoais
por parte do maior acompanhado, salvo decisão judicial”,
crê-se não ter sido propósito do legislador infirmar as suas
opções fundamentais nesta matéria. Entende-se que o
legislador não visou aqui contrariar o princípio da capacidade
de agir das pessoas maiores com capacidade diminuída e a
excepcionalidade das restrições ao exercício dos seus direitos
pessoais sempre sujeitas a decisão judicial. Assim, sustenta-se
ser de interpretar restritivamente a norma em questão em face

130
Cf. G. Oliveira, Estabelecimento, 161.
131
O direito a perfilhar enquanto direito a estabelecer as correspon-
dentes relações de filiação pode enquadrar-se no direito a constituir fa-
mília constitucionalmente consagrado. Cf. F. M. Pereira Coelho / G.
Oliveira, Curso, Vol. I, 137-138.
310 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

dos valores e dos princípios estruturantes do novo sistema 132.


Volta a referir-se a preferência por uma solução que se
pautasse pela actualidade da avaliação da capacidade natural
para querer e entender os efeitos da perfilhação no momento
da prática do acto. A avaliação da capacidade para perfilhar
deve ser também, segundo se entende, feita no momento da
perfilhação e em face das particulares características da pessoa
do perfilhante e do caso concreto.
Tal apreciação poderia ser assumida pelo Conservador do
Registo Civil — perante quem é efectuada a declaração em que
se consubstancia a perfilhação (artigo 1853.º, a), CCiv) —,
pelo notário — perante quem é lavrado o testamento de cujo
conteúdo conste uma perfilhação (artigo 1853.º, b), CCiv)
ou, perante quem é lavrada a escritura pública de perfilhação
(artigo 1853.º, c), CCiv) — ou, ainda, nos casos mais habituais,
no decurso de uma acção de averiguação oficiosa, perante o
Ministério Público 133. Acrescenta-se a possibilidade de tal
avaliação da capacidade ser sujeita a homologação judicial.

5. Conclusão

No que respeita à capacidade das pessoas maiores com


capacidade diminuída para celebrar casamento, fazer testamento
e perfilhar, julga-se que o Regime do Maior Acompanhado
procurou ajustar-se a uma transformação dos valores e dos
princípios jurídicos, nacionais e internacionais, que passaram
a constituir as traves mestras dos sistemas de protecção e
promoção dos direitos daquelas pessoas. Com efeito, procurou
adequar o regime jurídico que regula estas matérias às novas
exigências que o respeito de tais valores e princípios impõem.

132
Neste sentido, vide P. Távora Vítor, “Os novos regimes”, 135.
133
Cf. G. Oliveira, Estabelecimento, 151-152.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 311

Em primeiro lugar, cumpre realçar a abolição da categoria


da incapacidade jurídica. O legislador, ao romper com a
diferença tradicional entre capacidade jurídica e capacidade de
agir, justamente quanto aos actos de celebrar casamento, testar
e perfilhar, veio reconhecer a todas as pessoas a titularidade
desses mesmos direitos pessoais. Por conseguinte, deixou
de negar às pessoas maiores com capacidade diminuída a
titularidade de direitos essenciais à própria ideia de pessoa.
Reconheceu-lhes de modo pleno personalidade e subjectividade
jurídicas como determina o princípio da dignidade da pessoa
humana e o princípio da igualdade. Considera-se ter sido este
um avanço significativo em relação ao tradicional sistema de
incapacidades.
Em segundo lugar, o Regime do Maior Acompanhado veio
consagrar o princípio da capacidade de agir relativamente aos
actos pessoais, prevendo como excepcionais as situações de
incapacidade. Deste modo, as pessoas maiores com capacidade
diminuída são, em princípio, capazes de celebrar casamento,
de fazer testamento e de perfilhar. Só assim não será nos “casos
mais graves”. Quer isto dizer, nos casos em que a sentença que
decretar o acompanhamento determinar que falta ao maior
acompanhado a capacidade natural para querer e entender os
efeitos de um ou de todos esses actos.
Em terceiro lugar, o novo regime mostrou ter
compreendido bem a importância das restrições à capacidade
— designadamente quando em causa estejam direitos
fundamentais — e o carácter imperioso de uma justificação
que cumpra os critérios da necessidade, adequação e
proporcionalidade em sentido estrito. Por essa razão, o
legislador delegou no julgador a produção desse juízo.
Cumpre igualmente dizer que nem todo o caminho está feito
e que algumas soluções do Regime do Maior Acompanhado
não se coadunam com os valores e princípios que servem de
fundamento aos sistemas de protecção e promoção dos direitos
das pessoas com capacidade diminuída no estado actual da
nossa civilização.
312 • R O SA C Â ND I DO MA R T I NS

Em primeiro lugar, nalguns casos ainda se remete para a lei a


formulação do juízo de (in)capacidade do maior acompanhado
para a prática de determinados actos. Pense-se nos casos dos
actos pessoais e actos da vida corrente cujo regime consta do
artigo 147.º do Código Civil. Como já ficou exposto, jul-
ga-se não ser esta a solução mais ajustada à ideia de preservação,
em matéria de direitos pessoais, da capacidade (de exercício)
existente. Na verdade, o juízo do legislador apenas pode ser um
juízo abstracto e apriorístico que não tem em consideração a
pessoa concreta do maior acompanhado nem as suas específicas
circunstâncias.
Em segundo lugar, a solução de transferir o juízo sobre a
apreciação da (in)capacidade do maior acompanhado para
a sentença de acompanhamento, embora compreensível,
também não se concilia com uma das finalidades da
Reforma: promover a autodeterminação da pessoa maior
com capacidade diminuída. Com efeito, a decisão judicial
que decretar o acompanhamento, ao restringir o exercício de
um direito pessoal, formulará também um juízo apriorístico
e não um juízo concreto e actual, atendendo às singularidades
de cada caso. Tendo em vista acautelar os inconvenientes de
tal solução, avançou-se com a proposta de que a realização
de actos pessoais ficasse dependente da autorização de uma
autoridade oficial que se pronunciaria no momento da prática
do acto, aventando-se a possibilidade de tal autorização ser
sujeita a controlo judicial.
Estes avanços e “recuos” do Regime do Maior
Acompanhado reflectem-se no específico regime do direito a
celebrar casamento, do direito a testar e do direito a perfilhar.
Assim, espera-se que tal regime venha a ser modificado nos
aspectos assinalados, de molde a tornar efectivos os valores e
os princípios jurídicos, que devem informar, no nosso estado
civilizacional, os sistemas de protecção e promoção dos direitos
das pessoas maiores com capacidade diminuída.
ACOMPANHAMENTO E NEGÓCIOS FORA DO “COMÉRCIO JURÍDICO” ... • 313

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Condição Jurídica das Pessoas Maiores em Situação de Incapaci-
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org/projectos-de-investiga%C3%A7%C3%A3o-de-2017>.
Wolf, Manfred / Neuner, Jörg — Allgemeiner Teil des Bürgerlichen
Rechts. 11., voll. neu bearb. Aufl. des von Karl Larenz begrün-
deten Werkes. München: C. H. Beck, 2016.
O INSTITUTO DO MAIOR
ACOMPANHADO À LUZ DA
CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE
E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

GERALDO ROCHA RIBEIRO


Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

I. Intróito

O presente artigo corresponde ao desenvolvimento das ideias


apresentadas no Colóquio denominado «O Novo Regime do
Maior Acompanhado», realizado na Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra em 13 de Dezembro de 2018.
Com este trabalho pretende-se lançar a discussão sobre
alguns dos aspectos da revisão do regime das incapacidades
320 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

do Código Civil para um sistema de salvaguarda de interesses


da pessoa maior, a que o legislador designou de maior
acompanhado.
Não é aqui o momento de fazer uma apreciação ampla do
novo regime, antes o propósito de discutir criticamente os
princípios fundadores do novo regime e a sua transposição no
normativo legal do Código Civil e Código Processo Civil em
que assenta o novo regime jurídico.
Já tivemos oportunidade de trabalhar nestas matérias.
Foi, aliás, este o objecto da minha dissertação de mestrado
enquadrada na linha de investigação do Centro de Direito da
Família(1). Onde se incluem ainda os trabalhados de Paula
Távora Vítor (2) o que, por solicitação do Ministério da
Justiça, levou à elaboração de um estudo e proposta de revisão
do Código Civil com vista a um novo sistema de salvaguarda
dos direitos e interesses das pessoas maiores(3).
Naturalmente, este trabalho de intensa reflexão sobre
a condição jurídica das pessoas maiores em situações de
discapacidade servirá de ponte para a análise crítica que
aqui fazemos sobre o novo regime do maior acompanhado,
precisamente aquele que teve acolhimento legal.
Convido, por isso, o leitor a fazer um retrospectiva dos
antecedentes à aprovação da actual lei, nomeadamente
o Projeto de Lei n.º 61/xiii/1.ª (psd e cds-pp) — «66.ª
Alteração ao Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47

1
A Protecção do Incapaz Adulto no Direito Português, Coimbra: Coim-
bra Editora, 2011.
2
De destacar a dissertação de Mestrado: A Administração do Património
das Pessoas com Capacidade Diminuída, Coimbra: Coimbra Editora, 2008.
3
Paula Távora Vítor / Geraldo Rocha Ribeiro. Proposta de Lei sobre a
Condição Jurídica das Pessoas Maiores em Situação de Incapacidade. Revi-
são do Código Civil, Centro de Direito da Família, 17 de janeiro de 2017,
in <http://www.centrodedireitodafamilia.org> [em linha] acedido em 1 de
Fevereiro de 2019.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 321

344, de 25 de Novembro de 1966, modificando o regime das


incapacidades e seu suprimento, e adequação de um conjunto
de legislação avulsa a este novo regime» (4) e que espoletou o
pedido do Ministério da Justiça ao Centro de Direito da Família
para elaboração de um projecto alternativo, condicente com
o espírito e direitos consagrados na Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos das Pessoas com deficiência.
Foi na sequência deste projecto do Centro de Direito da
Família que foi elaborado o Estudo Legislativo designado de
«Da situação do maior acompanhado — estudo de política
legislativa relativo a um novo regime das denominadas
incapacidades dos maiores» e, após consultas públicas, que foi
apreciado e aprovado o projecto de lei e consequente Lei n.º
49/2018, 14-08 (5).
Como súmula da principais alterações operadas ao sistema
servimo-nos do denominado «Estudo de política legislativa
relativo a um novo regime das denominadas incapacidades dos
maiores» que acentua as seguintes notas: adopção de um modelo
monista, material e de conformação judicial; «abertura» ao
maior acompanhado, salvo decisão expressa do juiz contrário, de
diversos actos pessoais, processo de matriz predominantemente
de «jurisdição voluntária»; e, em termos de técnica legislativa,
a adoção de um modelo não regulamentar (6). Por último, é
feita pelos autores do estudo acima mencionado uma referência
expressa ao instituto alemão da Betreuung como modelo em que
se baseou o regime português do maior acompanhado e que,

4
Será pertinente ver, entre outras, a nossa intervenção e de Paula Távora
Vítor na Assembleia da República a respeito da discussão pública.
5
Para remissão para estes consulte-se o e-book do cej [em linha]. Lis-
boa: Centro de Estudos Judiciários, 2019. [Consultado em 15 de Fevereiro
de 2019].
6
«Da situação jurídica do maior acompanhado. Estudo de política legis-
lativa relativo a um novo regime das denominadas incapacidades dos maio-
res» [em linha] disponível no sítio. p. 104.
322 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

por isso, servirá, quando pertinente, de bordão interpretativo à


solução legal adoptada.
É, aliás, a referência a este exemplo alemão que trataremos
autonomamente para revelar os escolhos do modelo adoptado e
as dificuldades que este encerra em termos de compatibilidade
com a Convenção de Nova Iorque sobre os direitos das pessoas
com deficiência (de ora em diante designada por Convenção) (7).
Perante a multiplicidade de fontes constitucionais, internacionais
(desde logo a Convenção Europeia dos Direitos Humanos) e
legais, devemos ter em consideração o entrecruzar e a valoração
harmoniosa dos direitos e interesses da pessoa maior no desenho
e aplicação do novo paradigma da sua proteção. Existe uma teia
axiológica-normativa que dinamicamente impele as múltiplas
ordens jurídicas e suas garantias e instituições a uma construção
conforme com os direitos da pessoa maior e à qual o próprio
regime da Betreuung não tem sido alheio.
O novo regime do Código Civil é a realização infra-
constitucional das liberdades e direitos das pessoas com
deficiência, aqui designadas como beneficiárias e, enquanto
tal, deve ser visto como um sistema garantístico daquelas
posições jurídicas. Desde logo e por referência ao artigo
12.º, n.º3 da Convenção, este sistema assenta nos princípios
não discriminação, autodeterminação, subsidiariedade e
proporcionalidade (elencados no artigo 3.º da Convenção8),

7
A Convenção foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República
nº 56/2009, 30-07 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº
71/2009, 30-07. Portugal aderiu ainda ao Protocolo Opcional à Convenção so-
bre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adoptado em Nova Iorque em 30 de
Março de 2007, aprovado Resolução da Assembleia da República nº 57/2009,
30-07 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 72/2009, 30-07.
8
Devem ainda ser tidos em consideração os princípios elencados no
artigo 3.º da Convenção: Respeito pela dignidade inerente, autonomia in-
dividual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e in-
dependência das pessoas, não discriminação, participação e inclusão plena
e efectiva na sociedade, respeito pela diferença e aceitação das pessoas com
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 323

o que impõe uma intervenção que tutele o beneficiário


dos riscos de heterodeterminação de interesses, relações de
subordinação e conflitos de interesses (em especial na relação
com o cuidador designado como acompanhante) e que o
defenda face a intervenções abusivas e arbitrárias do Estado.

II. Relevância da Convenção quanto ao modelo de


salvaguarda dos direitos e interesses da pessoa maior

A condição social da deficiência não pode em momento


algum colocar em causa a autodeterminação de interesses da
pessoa com deficiência. O que é relevante quanto os direitos
consagrados na Convenção, em especial o artigo 12.º da
Convenção, é que estes não carecem de qualquer acto de
mediação para a sua plena eficácia na ordem jurídica dos
Estados contratantes. A natureza self-executing (efeito directo)
destes direitos reforça a condição das pessoas com deficiência
independentemente das diferentes perspectivas jurídicas ao
pressupor a garantia de igualdade de todos perante a lei, logo de
uma igual aptidão potencial (9). No entanto não se basta com o
mero reconhecimento potencial, antes pressupõe, a dotação de
meios para que seja o próprio interessado a agir e não para ser
arredado do processo de decisão sobre a sua esfera de interesses.
Não basta o mero reconhecimento estático de capacidade
jurídica de gozo, é também necessário o reconhecimento de
capacidade de agir (ou de exercício de direitos), artigo 12.º, n.ºs

deficiência como parte da diversidade humana e humanidade, igualdade


de oportunidade, acessibilidade, igualdade entre homens e mulheres, res-
peito pelas características de desenvolvimento das crianças com deficiência
a preservarem as suas identidades.
9
Valentin Aichele / Jochen von Bernstorff. „Das Menschenrecht
auf gleiche Anerkennung vor dem Recht: Zur Auslegung von Art. 12 der
Un-Behindertenrechtskonvention. BtPrax — Betreuungsrechtliche Pra-
xis“, 19/5 (2010) 199-203, p. 201.
324 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

2, 3 e 4 da Convenção(10).
O conceito de deficiência é perspectivada em termos sociais,
ou seja, resulta da relação entre as limitações da pessoa no
contexto de interacção social (“...em conjugação com os factores
do meio, lhe limitar ou dificultar a actividade e a participação em
condições de igualdade com as demais pessoas”, artigo 2.º da Lei
n.º 38/2004, 18-08, Regime Jurídico da Prevenção, Habilitação,
Reabilitação e Participação da Pessoa com Deficiência). O
pleno reconhecimento de igualdade das pessoas com deficiência
implica um núcleo reforçado de garantias e direitos contra abusos
praticados (11). E, como veremos, parte de um paradigma assente
na reabilitação e autonomia pessoal (12).
A mera consagração do princípio da igualdade e
reconhecimento de capacidade legal não é suficiente para
dissipar as dúvidas e controvérsia sobre a necessidade e limites
dos meios de suprimento, nomeadamente a intervenção de
terceiros. A questão que se coloca é se serão admitidas, à luz
da Convenção, modelos de protecção fundados nos institutos

Valentin Aichele / Jochen von Bernstorff. „Das Menschen-


10

recht“, 199-203, p. 201.


Neste sentido, ainda que há luz da Convenção Europeia dos Di-
11

reitos do Homem, vejam-se os acórdãos Shtukaturov c. Rússia e Stanev


c. Bulgária. Ver ainda Klaus Lachwitz. „Übereinkommen der Vereinten
Nationen über die Rechte von Menschen mit Behinderung. BtPrax —
Betreuungsrechtliche Praxis”, 17/4: 143-48, p. 146; Michael L. Perlim.
“Striking for the Guardians and Protectors of the Mind: The Conven-
tion on the Rights of Persons with Mental Disabilities and the Future
of Guardianship Law”. Penn State Law Review, 117/1 (2012) 1159-90,
p. 1169; Sheila Wildeman. “Protecting Rights and Building Capacities:
Challenges to Global Mental Health Policy in Light of the Convention on
the Rights of Persons with Disabilities”. Journal of Law, Medicine & Ethics
41/1 (Spring 2013) 48-73, p. 53.
12
Antonio Jiménez Lara. “Conceptos y Tipologías De La Discapa-
cidad. Documentos y Normativas de Classificación más Relevantes”. in
Rafael de Lorenzo / Luis Cayo Pérez Bueno, org., Tratado sobre Disca-
pacidad. Pamplona: Aranzadi, 177-205, p. 190.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 325

tradicionais da representação legal como a tutela? Basta ver


que, a título de curiosidade, o Canadá formulou uma reserva ao
artigo 12.º sobre o sentido do reconhecimento de capacidade
legal e recurso às medidas de suprimento de incapacidade,
ressalvando a sua legitimidade e fundamento legal (13). No
entanto, a vinculação da intervenção de protecção ao princípio
da igualdade e proporcionalidade convoca a necessidade de
instrumentos adequados às necessidades e interesses da pessoa
com deficiência. Logo, não se podem desconvocar modelos de
protecção fundados na representação para pessoas totalmente
inaptas a governar e exercerem a sua esfera de interesses. O
que se impõe é que tal só seja necessário e possível perante
os casos de absoluta inaptidão da pessoa, mas sempre com a
salvaguarda de que qualquer intervenção tem que assegurar
e promover a autodeterminação de interesses. O foco de
tensão entre autonomia e protecção é transportado para um
abordagem dinâmica e dominantemente casuística, o que traz
consigo a necessidade de garantias procedimentais a favor da
pessoa com deficiência (14).
Entre elas conta-se a garantia de acesso à justiça para
obtenção de um tutela jurisdicional efectiva (artigos 13.º
e 19.º da Constituição e artigo 6.º, n.º1 da Convenção
Europeia dos Direitos Humanos (15)). Isto pressupõe que a
pessoa tenha legitimidade para recorrer aos tribunais para
o exercício e defesa dos seus direitos, nomeadamente a sua

13
Nandini Devi / Jerome Bickenbach / Gerold Stucki. “Moving
towards substituted or supported decision-making? Article 12 of the Con-
vention on the Rights of Persons with Disabilities”, European Journal of
Disability Research 5 (2011) 249-64, p. 251.
14
Neste sentido ver Volker Lipp. „Betreuungsrecht und Un-Behinder-
tenrechtskonvention“. FamRZ 59/2512 (2012) 669-79, p. 676.
15
De ora em diante designada cedh.
326 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

capacidade judiciária (16). Mesmo quando sejam chamados

16
O Tribunal Europeu dos Direitos Homem, de ora em diante tedh,
no Caso Golder c. Reino Unido, req. n.º 4451/70, §36: «... article 6 para. 1
(art. 6-1) secures to everyone the right to have any claim relating to his civil
rights and obligations brought before a court or tribunal». Aliás no caso
Stanev c. Bulgária, o Tribunal Europeu deixa claro que ao beneficiário deve
ser assegurada legitimidade processual activa para desafiar judicial a medida,
enquanto direito a um processo equitativo. Ver ainda o caso Plesó c. Hungria,
req. n.º 41242/08, que cita directamente a Convenção das Nações Unidas,
bem como o princípio n.º 16 dos Princípios para a protecção das pessoas
com doença mental e para o melhoramento dos cuidados de saúde mental,
adoptados pela Resolução n.º 46/119 da Assembleia Geral das Nações Uni-
das, de 17 de Dezembro de 1991. Transcrevendo:
«1. Uma pessoa só pode ingressar involuntariamente numa
instituição de saúde mental como paciente, ou, tendo já ingressado
voluntariamente como paciente, só pode ser retida como paciente
involuntária se, e apenas se, um profissional de saúde mental.
Qualificado autorizado por lei para esse efeito determinar, em
conformidade com o Princípio 4, que essa pessoa tem uma doença
mental e considerar:
a) Que, devido a essa doença mental, existe séria probabilidade de
dano imediato ou iminente para essa pessoa ou para terceiros; ou
b) Que, no caso de uma pessoa cuja doença mental seja grave e
cuja capacidade de discernimento esteja diminuída, o não ingresso
ou a não retenção dessa pessoa seja suscetível de levar a uma grave
deterioração do seu estado ou impeça a prestação de tratamento
adequado que só possa ser assegurado mediante o ingresso numa
instituição de saúde mental em conformidade com o princípio da
alternativa menos restritiva.
No caso referido na alínea b), deverá ser consultado, sempre que
possível, um segundo profissional de saúde mental, independente
do primeiro. Se tal consulta tiver lugar, o ingresso involuntário ou
a retenção involuntária não podem ocorrer a menos que o segundo
profissional de saúde mental concorde.
2. Inicialmente, as medidas de ingresso involuntário ou retenção
involuntária serão tomadas por um período curto definido no
direito interno para fins de observação e tratamento preliminar,
enquanto se aguarda a decisão do organismo de revisão sobre a
medida de ingresso ou retenção. Os motivos do ingresso ou da
retenção serão comunicados ao paciente sem demora e a ocorrência
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 327

à liça o superior interesse objectivo da pessoa para justificar


limitações à capacidade para gestão de assuntos da esfera
pessoal e/ou patrimonial. A bem-intencionada defesa dos
interesses objectivos da pessoa colidem com a sua autonomia,
logo com a sua dignidade, pelo que se impõe a garantia de
acesso aos tribunais e de uma tutela efectiva dos direitos e
interesses da pessoa (17). Não pode ocorrer uma bifurcação
entre a protecção substantiva e a protecção adjectiva (18).
Tal convoca especiais cautelas interpretativas do artigo
138º do Código Civil (19).

do ingresso ou da retenção e os motivos que a justificam serão


também comunicados rapidamente e em detalhe ao organismo
de revisão, ao representante pessoal do paciente, se existente, e, a
menos que o paciente se oponha, à família do paciente.
3. Uma instituição de saúde mental apenas poderá receber pacientes
involuntários caso tenha sido designada para o fazer por uma
autoridade competente prescrita pela legislação interna.»
17
O tedh tem determinado que o acesso aos tribunais, direito con-
sagrado no artigo 6.º, n.º 1 cedh, implica que quaisquer limitações à ca-
pacidade não podem afectar a capacidade e legitimidade da pessoa, objecto
da protecção, reagir contra as mesmas. Assim se pronunciou o Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos no caso Winterwerp c. Países Baixos, n.º
6301/73, §75: “Whatever the justification for depriving a person of un-
sound mind of the capacity to administer his property, the guarantees laid
down in Article 6 para. 1 (art. 6-1) must nevertheless be respected. While,
as has been indicated above in connection with Article 5 para. 4 (art. 5-4)
(see paragraphs 60 and 63), mental illness may render legitimate certain
limitations upon the exercise of the “right to a court”, it cannot warrant
the total absence of that right as embodied in Article 6 para. 1 (art. 6-1)”.
18
Stephanie Ortoleva. “Inaccessible Justice: Human Rights, Persons
with Disabilities and the Legal System”. The ilsa Journal of International &
Comparative Law 17/2 (2011) 281-320, p. 284-285.
19
Cautelas que não são assumidas por alguma doutrina que, inex-
plicavelmente, não logra alcançar o substracto axiológico-normativo da
reforma e a função garantística dos direitos fundamentais das pessoas com
deficiência. Aliás, a consideração de que o anterior regime oferecia flexibi-
lidade demonstra incompreensão, bem como desconhecimento de alguma
328 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

Numa leitura perfunctória, o alargamento produzido pela


utilização dos conceitos deficiência, doença e comportamento
permite concluir que nestes encontramos as causas previamente
previstas pelos institutos da interdição e inabilitação. É o
que sucede com os conceitos de anomalia psíquica, surdez,
mudez, cegueira e, quanto aos comportamentos, aqueles que
são aditivos e que estavam previstos para a inabilitação (artigo
152.º na anterior versão do Código Civil). Ao contrário do
que sucedia até aqui, encontramos novos conceitos despidos
da construção dogmática e jurisprudência que na sua
etimologia e semântica extravasam as comportas definidas
quanto ao anterior regime, isto é, permitem um alargamento
dos pressupostos constitutivos do acompanhamento.
O alargamento do campo subjectivo dos possíveis beneficiários
do acompanhamento, muito além do prescrito nos artigos 138.º
e 152.º na anterior versão do Código Civil, não altera a matriz
funcional do novo instituto: salvaguarda e inclusão dos direitos
e interesses da pessoa com deficiência (na sua noção social). A
subsidiariedade e proporcionalidade em sentido amplo são
critérios de justificação do recurso da medida institucional, que
parte da real vantagem da medida e do recorte à medida das
necessidades do beneficiário. Em termos abstractos, os conceitos
agora consagrados encerram um conteúdo que vai muito além
das anteriores causas de interdição e inabilitação. Porém, tal
não pode iludir o intérprete avisado de que tal plasticidade dos
elementos constitutivos da medida de acompanhamento permite
abrir as comportas da intervenção estadual na esfera privada e, em

doutrina no sentido de interpretar conforme a interdição e inabilitação aos


direitos fundamentais da pessoas com capacidade diminuída. Por isso, dentro
de um espartilho de entendimento truncado consegue admitir intervenções
na esfera jurídica de pessoas maiores sem tecer qualquer linha ou considera-
ção sobre a autodeterminação do beneficiário, respeito pela sua liberdade de
consciência e direito ao livre desenvolvimento da personalidade. O que é ma-
nifestamente contrário ao espirito e direitos consagrados na Convenção e in-
terpretação actualista dos direitos fundamentais consagrados na Constituição.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 329

especial, na esfera jus-fundamental do beneficiário.


O ponto de partida passa pela avaliação pericial da
condição da pessoa, ajuizando-se falta de condições para agir
no mundo jurídico e não comportamentos avulsos ou per se.
Ainda que a lei não se restrinja às condições psíquicas, as faltas
ou limitações da capacidade de acção têm que corresponder a
uma inaptidão para exercer e cumprir os seus deveres. É, pois,
essencial que da condição do beneficiário resulte a exclusão
ou restrição da livre formação ou formulação da vontade ou
autonomia, em termos de originar a inaptidão do indivíduo
para tratar da sua vida e prosseguir os seus interesses. Só
mediante este juízo negativo de competência é que se poderá
justificar o acompanhamento. Para isso torna-se necessário
estabelecer uma correspondência entre inaptidão ou limitação
com a necessidade de acautelar os interesses do beneficiário
dentro do contexto social onde se insere. Por isso, quando se
usa o, agora comum, chavão do fato à medida, tal significa
uma medida personalizada e de conteúdo situacional, ou seja,
ter-se-á que avaliar o meio em que vive o beneficiário, a sua
personalidade, a sua situação pessoal e a sua vida relacional.
O elencar de pressupostos pretensamente objectivos e
subjectivos do acompanhamento não é por isso adequado
ao instituto. A medida será sempre subjectiva na sua
fundamentação, modelação, execução e extinção, porque
as limitações resultam do contexto onde o beneficiário age
na relação eu-mundo. As razões de saúde, deficiência ou
de comportamento do beneficiário condicionadoras da
formação ou formulação da sua vontade apenas relevam por
contraponto aos factores sociais e ambientais em que pessoa
interage e de acordo com as suas necessidades. O impacto
de uma determinada patologia ou deficiência será sempre
particular atento o estado de evolução, condições particulares
do beneficiário e meios de apoio disponíveis.
Pensemos, por exemplo, nos casos de esclerose lateral
amiotrófica. Stephen Hawking teve acesso a meios técnicos
330 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

e mecânicos que permitiam a sua inclusão na formulação e


expressão da sua vontade. Estes meios associados à prestação
de cuidado material, tornavam-no numa pessoa autónoma
por mitigação das barreiras físicas e sociais que condicionavam
a liberdade de formulação e externação da sua vontade. Outra
pessoa, com as mesmas patologias sem acesso aos meios que
estiveram ao dispor de Stephen Hawking, estaria no polo
oposto, ou seja, poder-se-ia encontrar numa situação de
absoluta incapacidade para formular uma qualquer vontade.
Em ambos os casos a patologia seria a mesma — o chamado
critério objectivo —, no entanto a situação concreta de cada
um dos beneficiários demonstra um impacto diametralmente
oposto no que tange à autodeterminação da esfera de interesses.
O mesmo exemplo poderia ser reportado a Christopher
Reeve, que sofreu lesões na medula espinhal por causa de um
acidente de cavalo. Ou ainda o caso de Michael J. Fox, a quem
foi diagnosticado Parkinson (doença neurológica). Destes
exemplos, resulta que a condição médica, o critério objectivo, é
susceptível de ser ultrapassado ou mitigado se estiverem ou forem
disponibilizados meios de superar as barreiras sociais resultantes
da condição médica e funcional que padece o beneficiário.
A falta de alcance do impacto da mudança de paradigma
é centrar a discussão na análise das qualidades do beneficiário
quanto ao governo da sua esfera de interesses, quer numa
perspectiva estática, quer numa perspectiva dinâmica.
Demonstrativo disso é que, independentemente da expressa
previsão legal, a prevalência da autodeterminação do beneficiário
incorpora um núcleo irredutível do novo regime(20). Não

Neste sentido a §1896 (1a) bgb introduzida com a segunda revisão da


20

lei alemã, e consequentemente o bgb (2. Betreuungsrechtsänderungsgesetz (2.


BtÄndG), 1-7-2005. Na sequência da decisão do Oberlandsgericht da Bavie-
ra esta alteração torna incontornável o consentimento ou o seu suprimento
como pressuposto sine qua non para a constituição da Betreuung. Contudo,
não basta o mero consentimento para justificar a constituição da medida se
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 331

pode existir nenhuma medida decretada contra a vontade de


um beneficiário que seja capaz de se autodeterminar (21). A
construção adoptada no artigo 141.º, n.º 1 e 2 deixa antever
parte do impacto que se consagra à autodeterminação do
beneficiário. A legitimidade primeira é a deste. Só com a sua
autorização ou com o suprimento daquele é que se encontram
verificados os pressupostos para o prosseguimento do processo.

não se verificar uma situação de necessidade, quer quanto à verificação da


condição subjectiva do beneficiário, quem a necessidade da medida apresen-
tar «reais vantagens para este e se fundar em motivos legítimos» (formulação
retirada da proposta do Centro de Direito da Família do artigo 139.º). Para
o direito alemão, ver Dieter Schwab, (MüKoBGB/Schwab, 7. Aufl. (beck-
-online.beck.de) 2017, bgb § 1896 Rn. 3).
Veja-se a decisão do Tribunal Constitucional alemão (1. Kammer
des Ersten Senats), Beschluss vom 20.1.2015 – 1 BvR 665/14). Nesta,
o Tribunal Constitucional alemão estabelece os limites entre as situações
de comportamentos aditivos e comportamentos aditivos integrantes de
problemas de saúde mental. O alcoolismo assume foros de saúde mental
a partir do momento em que a dependência condiciona a liberdade de
acção, toldando, desta feita, a capacidade de agir de facto (para. 31). No
entanto para determinar este juízo, é necessário aferir de forma crítica a
prova pericial e, fundamental, ouvir o beneficiário ( para. 32). A recusa
expressa deste à constituição da medida impõe um juízo qualificado de
necessidade da medida que vai além da verificação dos requisitos subjecti-
vos estatuídos na §1896 bgb (para. 35). É necessário justificar a dispensa/
suprimento do consentimento do beneficiário e a constituição compulsiva
da medida. Esta configura uma intervenção que coloca em causa o modelo
de apoio-assistência consagrado no artigo1 12.º, n.º 3 da Convenção. O
mesmo deve ser transposto para a interpretação, por leitura articulada, dos
artigos 138.º, 140.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1 do Código Civil. Veja-se ainda
Roland Rosenow. Betreuungsrechtliche Unterbringung und Zwangsbe-
handlung vor dem Hintergrund der un-brk, BtPrax — Betreuungsrecht-
liche Praxis 2/2013: 39-44, p. 39.
21
Entendimento confirmado na decisão do o Oberlandsgericht da Ba-
viera, BayObLG, Beschluss vom 25.11.1993, 3 z br 190 / 93, BtPrax — Be-
treuungsrechtliche Praxis. 1994, 59-61. Impressivo e actual, veja-se o bgh,
decisão de 31.10.2018, xii zb 552 / 17. A relevância da prova pericial para
determinar a aptidão de formação de uma vontade livre (bgh — xii zb
455/15, FamRZ (2016) 970, para. 6 e ss e bgh — xii zb 632/12, FamRZ
(2014), 647 para. 6 e ss.).
332 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

Não se pode por isso ignorar a referência que o legislador


português elegeu. A este respeito a §1896 bgb, no aditamento
do parágrafo (1a) (22), torna incontornável o valor intrínseco
da dignidade e autodeterminação do beneficiário enquanto
pressuposto e condição de constituição e manutenção do
acompanhamento (23). Uma vez que está em causa a potencial
restrição dos direitos fundamentais do beneficiário, os mesmos
assumem uma função abrogante de qualquer interpretação
restritiva que não assente na prevalência de um interesse
próprio do beneficiário.
Por isso, só pode prosseguir o processo de acompanhamento
se houver autorização do beneficiário ou o seu suprimento.
É um pressuposto processual inultrapassável. Apesar da
cumulação de pedidos expressamente admitida no artigo
141.º, n.º 2 do Código Civil (24), a flexibilidade processual
conferida ao processo especial e a natureza de jurisdição
voluntária (artigo 891.º do Código de Processo Civil) deve
garantir que a aferição da vontade do beneficiário é acautelada
desde o primeiro momento e independentemente de resposta
(artigo 896.º do Código de Processo Civil).
Destarte, o artigo 895.º do Código de Processo Civil deve ser
lido de uma forma hábil. A previsão de um momento em que o
juiz deve proferir despacho liminar significa que deve existir um

22
Aqui na sua versão inglesa: «(1a) A custodian may not be appointed
against the free will of the person of full age» (https://www.gesetze-im-inter-
net.de [em linha] acedido em 1 de Fevereiro de 2019).
Volker Lipp. „Assistenzprinzip und Erwachsenenschutz — Zur Kritik
23

des Fachausschusses zur un-Behindertenrechtskonvention am Betreuungs-


recht“. FamRZ (2017) 4-11, p. 9.
De forma algo perplexa, a previsão está na lei substantiva. Compreen-
24

demos a mitigação e sobreposição entre as esferas substantivas e processuais


que, perante o interesse exclusivo da medida funcionaliza o processo ao su-
jeito destinatário de salvaguarda de interesses permitindo a atribuição de
uma feição predominante de jurisdição voluntária. Não obstante, afigura-se
confuso a previsão de tal pressuposto no Código Civil.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 333

controlo dos pressupostos de instauração do acompanhamento


e direcção activa no desenho do processo aos interesses do
concreto beneficiário. Nesta fase, mais do que apurar as condições
subjectivas do artigo 138.º Código Civil, deverá ser tida em
consideração a verificação do pressuposto do consentimento do
beneficiário ou necessidade do seu suprimento, o princípio da
subsidiariedade e eventual necessidade do acompanhamento. É
neste momento que o juiz deve sindicar os pressupostos que
legitimem a intervenção na esfera jurídica do beneficiário,
nomeadamente a existência ou não de instrumentos voluntários
ou situações de facto adequadas. Deve assumir uma actividade
de gestão processual pró-activa centrada na identificação dos
pressupostos subjectivos e, fundamental, na inventariação das
necessidades do beneficiário.
Neste ponto, o Ministério Público assume especial
importância enquanto figura charneira na triagem dos
processos que justificam o recurso à figura de acompanhamento
através dos processos administrativos por si levados a cabo.
Quando não seja aquele o requerente, deve então o Tribunal
em articulação com o Ministério Público, a quem cabe uma
intervenção acessória, adequar o processo à pessoa a salvaguardar
os interesses. Isto impõe flexibilidade na abordagem aos actos
processuais pré-instrutórios a realizar. Por exemplo, deve o
tribunal realizar as diligências necessárias para a produção
de prova documental relevante, nomeadamente solicitar
os relatórios e exames clínicos necessários (25), bem como
ordenar a produção de relatório social. Este é fundamental
para compreender o impacto das condicionantes que impõe
ao beneficiário e que permitem individualizar as necessidades

25
Devem ser juntas pelo requerente todas as informações clínicas dis-
poníveis sobre o beneficiário, devendo o tribunal no despacho liminar
convidar para serem juntos esses elementos ou solicitar e oficiar relató-
rio social ou perícia, desde logo cumprindo o artigo 3.º, n.º 2 Lei n.º
45/2004, 19-08 (Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais e Forenses).
334 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

que este tem. Pelo que não se compreende a incompreensão


do legislador no que toca à definição social de deficiência
quanto à construção das regras processuais. Cabe por isso ao
operadores judiciários conformarem o processo em atenção ao
espírito e fins do sistema (26).
Para existir necessidade de cuidado, é obrigatório que se
determine se a pessoa quer esse cuidado. Seria absolutamente
perverso permitir que, perante um tão amplo leque de
possibilidades de intervenção, se discutisse a necessidade
da medida sem antes determinar se a mesma é querida pelo

Como ponto de referência sobre os actos a realizar, desde o controlo


26

da subsidiariedade e inventariação da necessidade veja-se o artigo 896.º


da proposta do Centro de Direito da Família de alteração do Código de
Processo Civil:
«1. Recebido o requerimento inicial, o processo vai com vista ao
Ministério Público, caso não seja o requerente, que informará o juiz
da existência de mandato em previsão da incapacidade ou gestão de
negócios, sem prejuízo de promover o que tiver por conveniente;
sendo o Ministério Público o requerente, tais informações devem
ser prestadas no requerimento inicial.
2. Se não houver motivo para o indeferimento liminar, o juiz
ordena a citação do requerido para a conferência preliminar a
realizar nos 30 dias imediatos e nomeia perito, caso entenda que
existem indícios para a instauração de curatela.
3. O juiz pode determinar a notificação do mandatário em previsão
da incapacidade ou de qualquer outra pessoa cuja presença
seja relevante para o processo para comparecer na conferência
preliminar.
4. A data da conferência é notificada ao requerente.
5. O juiz pode realizar as diligências necessárias para a produção de
prova documental relevante, nomeadamente solicitar os relatórios
e exames clínicos necessários, bem como ordenar a produção de
relatório social.
6. O juiz pode dispensar a realização de exame pericial se somente
for requerida a atribuição de deveres de cuidado ao curador e o
requerimento for acompanhado de relatório clínico subscrito por
dois médicos especialistas, nos termos do n.º 1 do artigo 899.º.».
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 335

próprio beneficiário. O querer não afasta a necessidade de


intervenção compulsiva perante situações de inaptidão para
formar uma vontade livre e esclarecida quanto à identificação
dos seus interesses em perigo e da grave importância. No
entanto tal intervenção só poderá ser válida se ultrapassar o
espartilho dos pressupostos e juízo de proporcionalidade do
acompanhamento. Este espartilho será tanto mais estreito
quanto mais intrusivo. Desde logo, perante âmbitos de
atribuição que pressupõe incapacidades de agir ou atribuição de
poderes de representação ou ainda poderes de decisão quanto
à fixação da residência ou internamento que pressuponha a
limitação da liberdade, mais exigente será a fundamentação
da decisão e a clara identificação das necessidades (verdadeira
inventariação) e a adequação do âmbito de poderes-deveres a
atribuir ao acompanhante.
Os «fundamentos atendíveis», do artigo 141.º, n.º 2 do
Código Civil, revelam-se uma opção infeliz do legislador,
em particular perante o comando constitucional do artigo
18.º, n.º 2 da Constituição. O fundamento atendível terá
obrigatoriamente que se referir à falta de uma vontade
livre e esclarecida, pois existindo uma vontade bastante,
não é admissível a constituição do acompanhamento por
violação directa da dignidade da pessoa humana, artigo 1.º
da Constituição (27). Não bastará uma vontade desconforme
a norma ou convenção social ou pouco ortodoxa, antes
terá que resultar de uma vontade viciada na sua formação.
Viciação que resulta da condição do beneficiário e da falta
ou limitação das suas faculdades cognitivas que o impedem
de tomar, autónoma e responsavelmente, uma decisão quanto
à necessidade do acompanhamento e, cumulativamente, por

27
Tribunal Constitucional alemão (2. Kammer des Ersten Senats), Beschluss vom
2. 7. 2010 — 1 BvR 2579/08, (njw 2010, beck-online) p. 3360 e Tribunal Cons-
titucional alemão (1. Kammer des Ersten Senats), Beschluss vom 20.1.2015 – 1
BvR 665/14, (njw 2015, 1666, beck-online). p. 1667.
336 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

causa da sua recusa ou ausência de consentimento, o colocam


numa situação de grave perigo de lesão dos seus interesses
pessoais e/ou patrimoniais (28).
Problemática se torna a aferição da legitimidade directa
do Ministério Público quando se pressupõe a desnecessidade
de autorização do beneficiário. No entanto, a autorização,
tal como o legislador a designa, não se prescinde sem
que se demonstre que a vontade do beneficiário deve ser
suprida. A ausência de norma expressa não afasta a força
jurisgénica da autodeterminação do beneficiário e que se
opõe a todos, incluindo ao Ministério Público. Desde logo
pela natureza de direitos, liberdades e garantia, consagrados
nos artigos 1.º (dignidade da pessoa humana), 13.º (direito
à não discriminação (29)), e 26.º, n.º 1 (direito ao livre
desenvolvimento da personalidade e direito à capacidade
civil), que se aplicam directamente, conforme o artigo 18.º,
n.º1 da Constituição. Podemos ainda acrescentar, em virtude
da reserva da vida privada a defesa do direito do beneficiário
em se recusar a uma intervenção protectiva, pois a mudança de
paradigma assenta no valor de inclusão e não de uma vocação
paternalista (30). Demonstrativo disso é a adopção do modelo

Na proposta do cdf, artigo 144.º, n.º 2: O tribunal pode dispensar


28

o consentimento se o beneficiário:
a) Não for capaz de entender e querer o sentido e alcance da necessi-
dade d[o acompanhamento] e seus efeitos, ou;
b) Em razão da limitação ou alteração das faculdades mentais, e por
força dela, criar uma situação de perigo grave para interesses jurídicos pró-
prios, de relevante valor.
29
Entendemos, inclusive, que a partir da Convenção integra no n.º 2 do
artigo 13.º da Constituição um novo critério suspeito de discriminação que
impõe um ónus de fundamentação contra decisões que diferenciem pessoas
com deficiência. No caso, que limitam a sua capacidade jurídica, quer de
jurídica de gozo ou de agir e judiciária.
Em particular perante as situações de comportamentos aditivos. O
30

acompanhamento não permite fundar intervenções compulsivas recusadas


O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 337

de apoio-assistência em detrimento do modelo de substituição


(artigo 12.º, n.º 3 da Convenção).
A autodeterminação do beneficiário será um pressuposto
substantivo da validade da medida de acompanhamento, vigência e
extinção e, por maioria de razão enquanto meio de realização daquele
direito, pressuposto processual primário para o prosseguimento da
acção de instauração do acompanhamento. Sem o consentimento
do beneficiário, e sem que existam fundamentos nos termos acima
expostos para o suprir, a acção não pode prosseguir devendo
proferir-se indeferimento liminar. Entendemos inclusive, que
o processo de suprimento, ainda que possa ser cumulado com
o pedido de instauração de medida de acompanhamento, deve
manter a sua natureza autónoma e cuja decisão é pré-judicial
ao prosseguimento da acção de acompanhamento. Deverá ser
tramitado como um incidente, com uma estrutura própria, nos
termos do artigo 292.º e seguintes do Código de Processo Civil,
sem prejuízo da adequação formal devida ao caso concreto, atentos
os poderes típicos de jurisdição voluntária conferidos ao juiz (artigo
891.º, n.º1 do Código de Processo Civil).

pelo beneficiário. O nosso sistema não admite, por respeito à dignidade da


pessoa humana, o tratamento compulsivo ao alcoolismo e toxicodependên-
cia, logo por mais autodestrutivo que seja o comportamento, enquanto não
for associado a uma patologia incapacitante para a formação da vontade não
é admissível instaurar o acompanhamento. No caso do consumo da droga
veja-se a evolução legislativa. Hoje encontra-se suprimida a possibilidade de
recorrer ao tratamento compulsivo outrora admitido no artigo 39.º, n.º 3 do
Decreto-Lei n.º 430/83, 13-12. Regredindo em termos de história legislativa,
o Decreto-Lei nº 792/76, 05-11 admitia o tratamento compulsivo por força
da “inimputabilidade” reconhecida os toxicodependentes por força da sua de-
pendência. Com o Decreto-Lei n.º 430/83, 13-12, já não se basta com a in-
vocação da condição de imputabilidade do consumidor, era necessário invocar
o interesse publico na proteçcão da saúde pública e individual do consumidor
como fundamento para um tratamento não consentido. Acabando tal possi-
bilidade por ser eliminada, passa a se reconhecer ao toxicodependente, no que
à tutela da saúde diz respeito, a posição jurídica de paciente, logo enquanto
titular do direito à autodeterminação dos cuidados de saúde.
338 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

A. A articulação entre da Convenção Europeia dos Direitos


Humanos e a Convenção das Nações Unidas sobre os
direitos das pessoas com deficiência

O conceito de associação constitucional entre os diferentes


tribunais (Tribunais Constitucionais, Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos e Tribunal de Justiça da União Europeia)
(Verfassungsverbunds kennzeichnet) marca a unidade material do
direito europeu e nacional (31). Baseia-se nas ideias compartilhadas
seculares, conceitos e princípios de direito e constituição na
Europa Ocidental. A estas acrescem o alargamento a outros
instrumentos que compõem um quadro de valores comum de
partilha dos Estados a eles vinculados (em particular pela adesão
de todos os Estados Membros e a própria União Europeia à
Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das pessoas com
deficiência). Cria-se uma malha jus-fundamental que se estende
para lá da mera compreensão dualista do direito internacional
público. Num certo sentido — continuando as metáforas —
podemos mesmo falar um fenómeno análogo ao de uma liga
metálica no qual se forma um resultado melhorado quer no
âmbito dos direitos, quer nas suas garantias, em confronto com
os instrumentos isoladamente considerados.
A tutela dos direitos é vista como processo transformativo
e evolutivo. A Convenção Europeia dos Direitos Humanos
é omissa quanto à valoração de fontes que lhe são estranhas
ou externas, não tomando qualquer posição sobre a possível
função mediata ou não de direito a integrar na interpretação.
No entanto, ainda que esteja afastada a oponibilidade das
disposições da Convenção das Nações Unidas ao Tribunal

31
Giegerich fala da cooperação (Kooperationsverhältnis) entre os tribu-
nais constitucionais nacionais, Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e
Tribunal de Justiça como meio de realização da tarefa de promoção e defe-
sa dos direitos humanos (Das Kooperationsverhältnis zwischen deutscher
Gerichtsbarkeit und EuGH. Deutsches Verwaltungsblatt [1994]) p. 102.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 339

Europeu dos Direitos Humanos, tal instrumento é tomado


em consideração como critério ou directriz interpretativa
daquelas disposições (32). Neste ponto, a interpretação e o
recurso à análise comparada na construção de um direito de
matriz comum permite construir um consenso europeu ainda que
circunscrito (33). Por isso, a perspectiva dinâmica e evolutiva
adoptada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos quanto
à interpretação dos direitos fundamentais consagrados na
cedh tem consequências evidentes. Por isso, no caso Stafford
c. ru reconheceu-se a vocação do Tribunal Europeu para uma
interpretação dinâmica e evolutiva para o aperfeiçoamento do
sistema consagrado na Convenção e Protocolos (34).
Não se pode por isso ignorar o impacto da jurisprudência do
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e o seu movimento
de pêndulo entre os ordenamentos nacionais e o sistema da
convenção. Luzius Wildhaber fala de um processo biunívoco/
two-way process entre a evolução dos ordenamentos nacionais
que influencia a alteração da jurisprudência e por outro lado
o efeito de assimilação da jurisprudência nos ordenamentos
nacionais que designada osmose jurisprudencial (35). Estabelece-
se uma vector axial entre diferentes ordenamentos jurídicos,

32
Oliver Lewis. “Council of Europe”. in The un Convention on the
Rights of Persons with Disabilities in Practice: A Comparative Analysis of the
Role of Courts, ed. Lisa Waddington e Anna Lawson, Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2018. 90-91.
33
Kanstantsin Dzehtsiarou. “Comparative Law in the Reasoning of
the European Court of Human Rights”. University College Dublin Law Re-
view 10 (2010) 109-140.
34
Stafford v United Kingdom, Req. n.º 46295/99, 28 de Maio 2002,
par. 69.
35
Discurso proferido na abertura do ano judicial em 23 de Janeiro
de 2003 disponível no sítio <http://www.echr.coe.int>. Ver ainda Alastair
Mowbray. “The Creativity of the European Court of Human Rights”.
Human Rights Law Review 5/1 (2005) 57–79, p. 65.
340 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

interdependentes e de uma matriz axiológica-normativa


necessariamente comum (36). Não se pode por isso ignorar,
assim, a jurisprudência do Tribunal Europeu, em particular
quanto aos artigos 5.º e 8.º da Convenção Europeia dos Direitos
Humanos e que servirá de parâmetro interpretativo para as
normas em branco ou inalteradas deixadas inexplicavelmente
pelo legislador em matérias sensíveis ao beneficiário (37).

B. O sistema é garantia dos direitos fundamentais da pessoa


com deficiência

No actual modelo, partir para a análise da lei tendo


em consideração os tradicionais cânones, consiste numa
incompreensão da unidade do sistema jurídico e da sua
fundação nos valores da dignidade da pessoa humana e
direitos fundamentais. Mais importante, caso se pretendesse
ancorar a análise da lei nas premissas positivas desta, estar-se-
ia a desrespeitar a hierarquia normativa em que se enquadra
a Convenção enquanto norma de valor supra-legal, de acordo
com o artigo 8.º, n.º 2 da Constituição, o que, no nosso
entendimento, concretiza os princípios e valores partilhados
pelo ordenamento jurídico português.
Há uma transformação do conceito de deficiência que está
muito além da tríade consagrada em 1989 pela International
Classification of Impariments, Disabilities and Handicaps (icidh,
Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e
Desvantagens), da Organização Mundial de Saúde. Em 2001, a
mesma organização procede à revisão daquela classificação para

Oliver Lewis. “Council of Europe”. 89-93. Alastair Mowbray. “The


36

Creativity of the European Court of Human Rights”. 65.


Aliás, lamentamos que o foco de preocupação continue a centrar-se
37

no valor dos actos realizados pelo beneficiário com total desconsideração


pela garantia e desenho de uma medida de cuidado garantística e inclusiva.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 341

Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e


Saúde (International Classification of functioning, disability and
Health) (38). Coloca-se em evidência a questão nas barreiras
sociais com que se confronta a pessoa, muito mais do que
o diagnóstico clínico. As barreiras resultam da intersecção
da pessoa entre as condições de saúde, contexto e factores
pessoais. Funcionalmente parte-se da perspectiva biológica,
individual e social e não já situacional (39). As três dimensões
são equivalentes em significado e são diferentes dimensões de
um único fenómeno de capacidade diminuída (ou na tradução
oficial de disabilities: incapacidade) (40). O conceito social de
deficiência não se esgota na sua componente funcional, antes

38
De ora em diante designada por cif. Para uma breve descrição da clas-
sificação e evolução veja-se o sítio do Instituto Nacional para a Reabilitação:
<http://www.inr.pt>.
39
Veja-se, inter alia, Simona Giordano. “A Heaven without Giants or
Dwarfs Equality, Gender, and Disabilities”, 23 Cambridge Quarterly Health-
care Ethics 22 (2014) 25; Rob Imrie. “Demystifying disability: A review of the
International Classification of Functioning, Disability and Health”. Sociology
of Health & Illness 26/3 (2004) 287-305, em esp. p. 295. A classificação de de-
ficiência de 1980 assentava num conceito medico-funcional sem consideração
das barreiras sociais que per se implicam limitações ou dificuldades de inclusão
muito além da mera condição médica (Jerome Bickenbach et al. “Models of
disablement, universalism and the international classification of impairments,
disabilities and handicaps”, Social Science and Medicine 48/9: 1173–1187, p.
1176). Por isso a dimensão social da deficiência convoca um valor de não dis-
criminação que respeite a individualidade e identidade da pessoa e promova,
a partir da concreta situação, a sua efectiva inclusão. A dimensão social «seeks
to develop the conception that ‘mind, body, and environment are not easily
separable but rather mutually constitute each other in complex ways’» (D.
Marks, Disability: Controversial Debates and Psychosocial Perspectives. London:
Routledge, 25). In this sense, the icf conceives of disability as ‘a compound
phenomenon to which individual and social elements are both integral’ (Je-
rome Bickenbach et al., ibid., 1177).
40
Para uma versão em português da «Classificação Internacional de Fun-
cionalidade, Incapacidade e Saúde», disponível <http://www.inr.pt> [em li-
nha] acedido em 25 de Janeiro de 2019.
342 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

é o produto do contexto social e ambiental em que a pessoa


vive e se relaciona e que traduz a sua identidade. Por isso, não
são irrelevante os sistemas sociais existentes e factores pessoais
como a idade, género, estado social, etc. (41). Segundo Rob
Imrie, a cif afasta-se da classificação de 1980, na medida em
que não concebe a deficiência como condição pré-social ou
imune ao contexto sócio-cultural em que se encontra a pessoa.
A deficiência pressupõe que a discapacidade se assuma um
conceito relacional e não por referência a limitações funcionais
(42). A etiologia da condição médico-funcional é neutra para
fins de classificação. Fernando Fontes distingue «‘deficiência’ e
‘incapacidade’, referindo-se a primeira ao fenómeno socialmente
construído de exclusão e opressão das pessoas com deficiência
por parte da sociedade e, a segunda, aos aspectos individuais,
biológicos e corporais. (...). O novo modelo social conseguiu
ainda transformar a deficiência numa questão social e política,
mais do que um problema medico e individual. A deficiência
não é, desta forma, criada pela incapacidade, mas sim pela
sociedade que deficientiza as pessoas com incapacidades»(43).
Desta feita, o problema não reside na limitação do desempenho
do sujeito pela sua condição médico-funcional, mas sim nas
barreiras sociais que o impedem de participar activamente em
posição de igualdade face aos demais. A questão não é a aptidão
que a pessoa revela, mas em que medida a sociedade a impede de
exercer autonomamente os seus direitos. É neste pressuposto que
deve ser formulada a avaliação do objecto do acompanhamento.
Daí a relevância de se construir o acompanhamento a partir da
inventariação das necessidades do beneficiário e da adequação
do seu conteúdo como instrumento de inclusão e não partir de

41
Jerome Bickenbach et al. “Models of disablement”, 1184.
42
Rob Imrie. “Demystifying disability”, 293.
Fernando Fontes. “Pessoas com deficiência e políticas sociais em
43

Portugal: Da caridade à cidadania social”. Revista Crítica de Ciências So-


ciais 86 (Setembro 2009) 73-93, p. 76.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 343

juízos prévios de inaptidão ou inabilidade. O acompanhamento


constrói-se no e a partir do respeito dos direitos fundamentais do
beneficiário num estrito juízo de adequação e proporcionalidade.
Não reconhecer o efeito transformativo do conceito é ignorar o
alcance da alteração legislativa e querer em velhos odres colocar
vinho novo (44).

III. O impacto do artigo 12.º no ordenamento jurídico


português numa perspectiva comparada com a
alteração do Código Civil

Não vamos aprofundar este ponto, uma vez que já tivemos


oportunidade de nos debruçar sobre ele (45). Vamos, contudo,
dar conta das seguintes notas: o princípio da igualdade
(ou na sua dimensão negativa, não discriminação) veda ao
legislador a consagração de incapacidades ope legis, bem como
a manutenção ou criação de normas que permitam a restrição
dessa capacidade em situações de discriminação. Esta premissa
é importante para entender que o princípio da igualdade tem
como valor matriz a presunção de plena capacidade da pessoa
maior (artigo 12.º. n.º 2 da Convenção).
Logo, o artigo 147.º é uma norma redundante perante
aquele comando, encerrando o perigo de abrir pela janela o
que se quis fechar com a porta. Desde logo, a aparente garantia

44
Encontra-se, assim, ultrapassado o entendimento pugnado por Mafal-
da Miranda Barbosa, que não pode ser chamado à colação para interpretação
do regime do maior acompanhado (Maiores acompanhados. Primeiras notas
depois da aprovação da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto. Coimbra: GestLegal,
2018, 55).
45
Veja-se o nosso trabalho “O sistema de protecção de adultos (incapazes)
do Código Civil à luz do artigo 12.º da Convenção das Nações Unidas sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência”. in Estudos em Homenagem ao Conselheiro
Presidente Rui Moura Ramos, vol. ii, Coimbra: Almedina, 2016, 1105-1172.
344 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

de direitos da pessoa com deficiência traz consigo o potencial


efeito de discriminação indirecta.
Expliquemos.
O legislador pretende garantir o respeito pelos direitos de
personalidade da pessoa beneficiária ao reconhecê-los como
espaço de autonomia e de capacidade acção. Contudo no
mesmo n.º 1 daquele artigo 147.º, remata o legislador, de forma
geral e indeterminada, que tal exercício não é livre. A norma
que no seu conteúdo e função é garantítisca, admite a restrição
da capacidade do beneficiário. Na construção da norma denota-
se a manutenção de uma intervenção a partir da incapacidade e
não de suprimento das necessidades do beneficiário.
Aliás, não se alcança a utilidade da norma a partir do artigo
12.º, n.º 2 e 4 da Convenção. Segundo o «Estudo legislativo»
a consagração na lei desta liberdade seria necessária porque
«à semelhança do que se passa com os menores: eles são, à
partida, permitidos. Este ponto é essencial: permite, ao maior
acompanhado, levar uma vida totalmente normal, se a sua
condição o facultar» (46).
Ora, a presunção de plena capacidade consagrada no artigo
12.º da Convenção não é um mero direito objectivo, antes integra
o estatuto jurídico da pessoa maior e confere-lhe liberdade de
agir. Em termos sistemáticos, se reconhecemos o pleno estatuto
de pessoa maior, pressupomos a plena capacidade jurídica e de
agir desta, pelo que perde sentido útil a menção de que é livre
a celebração de negócios da vida corrente, em especial quando
na segunda parte se admite restrição por lei ou por decisão
judicial. Ainda que se possa compreender a reserva quanto aos
direitos pessoais (ainda que com as críticas, veja-se infra), a
inclusão dos negócios de vida corrente pressupõe que a esfera
residual de actuação da pessoa pode ser igualmente negada (em

46
«Da situação do maior acompanhado — estudo de política legislativa
relativo a um novo regime das denominadas incapacidades dos maiores». p. 124.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 345

termos gramaticais estes negócios têm como mesmo predicado


o previsto para os direitos pessoais). O que vai além do regime
da interdição onde se admitia a aplicação do artigo 127.º, pelo
menos quanto ao n.º 1 alínea a) (47).
Não compreendemos, por isso, a utilidade desta previsão.
Podemos tentar encontrar resquícios de racionalidade na opção.
Um deles seria o transplante da §105a bgb e a posição crítica de
Claus-Wilhelm Canaris sobre a sanção dos actos realizados por
pessoas maiores sem plena capacidade de agir (48). Contudo,

47
A este respeito tivemos oportunidade de escrever: «a privação abso-
luta da capacidade de agir apenas será possível quanto aos actos patrimo-
niais, ressalvada a capacidade de facto para a prática dos actos elencados
no artigo 127.º, em particular o n.º 1, al. b) CC relativo aos actos de vida
corrente. Quanto aos actos pessoais, pela sua natureza, a incapacidade de
agir não pode ser decretada, em termos gerais e abstractos, sob pena de
uma tal compressão da personalidade jurídica da pessoa esvaziar a pro-
tecção constitucional e legal o princípio da dignidade da pessoa humana
e direito ao livre desenvolvimento da personalidade». A este respeito Luís
A. Carvalho Fernandes admitia, à luz do anterior regime, a possibilidade
de privar em absoluto a capacidade de agir de uma pessoa se abstrairmos
dos “direitos que só admitem exercício pessoal — direito à vida, por exem-
plo —, cuja actuação envolve, em certos aspectos, meros actos materiais”
(Teoria Geral do Direito Civil, Introdução, Pressupostos da Relação Jurídica,
vol. I, 3.ª ed., Lisboa: Universidade Católica, 2001, 129). Todavia, esta
possibilidade resulta da situação de facto em que se encontra a pessoa —
absoluta incompetência para se autodeterminar — e não por efeito geral
de uma sentença constitutiva constitucionalmente inadmissível.
48
Claus-Wilhelm Canaris. „Verstöße gegen das verfassungsrechtliche
Übermaßverbot im Recht der Geschäftsfähigkeit und im Schadensersatz-
recht“. jz (1987) 913-1004. Sobre a §105a bgb introduzido na reforma
de 2002 e a Convenção das Nações Unidas veja-se Volker Lipp. “Die
neue Geschäftsfähigkeit Erwachsener”. FamRZ 11 (2003) 721-729; To-
bias Fröschle. „Rück- und Ausblick: 25 Jahre Betreuungsrecht“. BtPrax
— Betreuungsrechtliche Praxis 3 (2017) 91-93; Andreas Spickhoff. Mü-
KoBGB. 8. Aufl. 2018, bgb § 105a; Matthias Casper. „Geschäfte des
täglichen Lebens — kritische Anmerkungen zum neuen § 105a bgb“. njw
(2002) 3425-3430. A este respeito Jürgen Kohler fala da revisão de 2002
com a introdução da §105a bgb como resolução de um não problema
(„Die Kunst, ein nicht vorhandenes Problem nicht zu lösen — oder die
Smartiegeset“, jz 7 (2004) 348-349.
346 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

a ser assim fica por saber qual a pertinência de tal disposição


quando o acompanhamento não confere um estatuto
jurídico de incapacidade (não é à toa que sistematicamente
a Secção V se designa «menores e maiores acompanhados»
e não «incapacidades»). A relação jurídica emergente do
acompanhamento nos seus pressupostos e regime encontra-se
num polo diametralmente oposto ao estatuto de menoridade.
A justificação do artigo 127.º do Código Civil assenta no
reconhecimento de espaços de autonomia e progressivo
reconhecimento de capacidade de agir em função do processo
natural de crescimento e regressão da incapacidade por
menoridade. A isto sobrevém o facto de um negócio realizado
por alguém sem capacidade natural não determinar a nulidade,
mas tão somente a anulabilidade, artigo 257.º do Código
Civil (49). O que confere a faculdade do beneficiário confirmar
o negócio por si realizado na medida em que conserva e goza
da presunção de plena capacidade jurídica (artigo 288.º, n.º 1
e 2 do Código Civil). Aquela disposição é, por isso, supérflua
e resulta de um transplante legal desnecessário em face do
nosso sistema jurídico. Apenas serve para inadmissivelmente
legitimar uma interpretação contrária à Convenção que é
justificar a restrição da capacidade jurídica do beneficiário.

Deve ser dado nota que na Alemanha a falta de capacidade determina


a nulidade do acto realizado pelo beneficiário e que justificou o estudo
de Canaris. O que, manifestamente, não é caso do ordenamento jurídico
português onde a sanção mais grave apenas se pode retirar dos negócios
realizados com falta de consciência na declaração e que, pela natureza da
divergência da vontade, a ineficácia resulta da ausência de um elemento
decisivo para a existência de um negócio jurídico imputado a uma vonta-
de: vontades de acção e negocial.
A possibilidade de um vício mais grave ocorreria através do enqua-
49

dramento nas divergências da vontade no âmbito da falta de consciência


da declaração, artigo 246.º do Código Civil.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 347

IV. Fontes e bases interpretativas

A Lei n.º 49/2018, 14-08 e respectivo projecto foi


antecedido de um trabalho denominado «Estudo Legislativo».
Este partiu do projecto elaborado pelo Centro de Direito da
Família e adoptou uma abordagem geométrica do articulado
normativo assumindo expressamente como modelo de
referência a Betreuung alemã (50). Face à opção tomada pelo
legislador quanto ao paradigma de instituto adoptado,
entendemos relevante fazer um paralelo entre as soluções
alemãs e as adoptadas pelo legislador português, em especial
perante uma regulação «lacunosa» do instituto em matérias
particularmente sensíveis aos interesses d0 beneficiário (por
exemplo, não existe regulação especial, nomeadamente, quanto
às questões dos cuidados de saúde, interrupção voluntária da
gravidez, planeamento familiar, articulação com a lei de saúde
mental, em especial nos regimes de tratamento em abulatório).
Esta referência deve servir como matriz interpretativa do novo
regime, mais até do que direito comparado, como meio de
suprir as insuficiências na fundamentação das soluções ou
esclarecimento das opções.
À referência do direito alemão, deve ser tido em conta o
próprio projecto do Centro de Direito da Família. Ainda que
o estudo deixe claro que se recusa um «modelo regulamentar»,
não pode o interprete ignorar o paralelo de algumas soluções
que o projecto que veio a tomar a forma de lei adoptou face
àquele projecto que não chegou a ver a luz do dia.

50
Para uma breve descrição do regime ver a nossa tese. Ainda que desac-
tualizada, uma vez que desde a publicação já ocorreram 5 alterações legisla-
tivas. Para uma versão do bgb em língua inglesa consultar o sítio oficial do
Ministério da Justiça alemã (https://www.gesetze-im-internet.de/englisch_
bgb/). Não é, por isso, necessário sujeitar o leitor ao conhecimento de língua
alemã, tenho em consideração a utilização do inglês como língua franca.
348 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

O paradigma que resulta do modelo consagrado na


Convenção, o projecto do Centro de Direito da Família e
o Estudo Legislativo servirão de bordão para compreender
criticamente o sentido valorativo do novo modelo de
salvaguarda de interesses da pessoa maior.

V. O modelo de referência escolhido pelo legislador


português: Betreuung

C. Antes da Betreuung, existia a Sachwalterschaft... hoje


Erwachsenenschutzgesetz

Ao contrário do que é referido no estudo legislativo, é


posição comum na doutrina alemã, que foi o ordenamento
austríaco a introduzir um modelo de salvaguarda de interesses
modelar e com abolição da incapacidade como instrumento
de protecção (51).
O ordenamento jurídico alemão procedeu, em 1990,
à reforma do direito à tutela e curatela — Betreuungsgsetz
(BtG) —, tendo entrado em vigor o novo regime em 1992
(52). Entretanto, este já foi objecto de alterações em 1998 (1.
BtÄndG, entrou em vigor a 1.1.1999), 2005 (2. BtÄndG,
entrou em vigor a 1.7.2005), 2008 (3. BtÄndG, entrou
em vigor a 01.09.2009) (53). Do instituto alemão apenas

51
Dieter Schwab. MüKoBGB, Buch 4. Familienrecht Abschnitt 3. Vor-
mundschaft, Rechtliche Betreuung, Pflegschaft Titel 2. Rechtliche Betreu-
ung Vorbemerkung Rn. 1-3, beck-online, Rn. 1-3.
52
O instituto alemão da Betreuung baseou-se na Sachwalterschaft aus-
tríaca, aprovada em 1984. O legisladro austríaco propositamente escolheu o
nome para reforçar a ideia de protecção e cuidado jurídico dos assuntos do
incapaz. Razão pela qual, atento a evolução do paradigma tenha em 2017
alterado o nome do instituto para Erwachsenenschutz.
53
Sobre as notas do regime remetemos para o nosso A Protecção do
Incapaz Adulto no Direito Português.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 349

chamaremos à colação aspectos que sejam relevantes para a


interpretação da medida de acompanhamento.
No entanto, porque passou despercebido à doutrina
portuguesa, o modelo alemão baseou-se na solução austríaca
a Sachwalterschaft. Esta precede a revisão alemã como é
amiudamente reconhecido pela doutrina alemã (54) e a
última revisão entrou em vigor em 1 de Julho de 2018 e que
levou, inclusive, à mudança de designação. Hoje, o instituto
designa-se por Erwachsenenschutzrecht (direito de salvaguarda/
protecção de pessoas maiores) (55).
A mudança incorpora as premissas do sistema de salvaguarda
de interesses da pessoa maior de idade, através do afastamento
da vocação instrumental de garantia do comércio jurídico e
consequente confiança de terceiros que assumiu o anterior
regime inicial, para um modelo de verdadeira salvaguarda dos
interesses do beneficiário. Este é o centro da relação da relação
jurídica de cuidado, enquanto destinatário do mecanismo
legal de inclusão e sujeito titular activo de liberdades e direitos.
Para isso, conserva o beneficiário a sua autonomia e liberdade
quanto à escolha do seu cuidador e à modelação do conteúdo
da medida aos seus interesses. O modelo assenta agora em
4 pilares, dando preferência aos mecanismos voluntários da
Vorsorgevollmacht (§1002 e seguintes Allgemeines bürgerliches
Gesetzbuch (abgb)) em detrimento da intervenção judicial.
Quando esta seja necessária (gewählte Erwachsenenvertretung),

54
Volker Lipp. „Assistenzprinzip und Erwachsenenschutz“, 3; Michael
Ganner. „Das österreichische Sachwalterrecht (Teil 1)“. BtPrax — Betreu-
ungsrechtliche Praxis 6 (2017) 238-241; do mesmo autor — „Das österreichi-
sche Sachwalterrecht — eine Erfolgsgeschichte? (Teil 2)“, BtPrax — Betreu-
ungsrechtliche Praxis 1 (2008) 3-6; Idem. Freiheit und Fürsorge: Der Mensch
als Rechtsperson (Zu Funktion und Stellung der rechtlichen Betreuung im Pri-
vatrecht), Mannheim: Mohr Siebeck, 2000, 12 s.
Para uma leitura geral Michael Ganner. „Das neue österreichische
55

Erwachsenenschutzrecht“. BtPrax — Betreuungsrechtliche Praxis 4 (2018)


128-134.
350 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

as medidas encontram-se sempre limitadas no tempo


(realização do fim a que se destinam, com o prazo máximo de
3 anos, § 246 (1) Zif. 5 abgb), prevalecendo no segundo pilar
a vontade do beneficiário na designação do cuidador e com
controlo judicial limitado. A possibilidade de uma intervenção
mais ampla (3 e 4 pilares — §268 abgb) é verdadeiramente
residual (ou assim pretende o legislador) devendo os poderes
ser circunscritos ao estritamente necessário, distinguindo-se
este terceiro pilar do desenho da medida, que deve ser feito
integrado nas respostas da família por oposição à figura do
cuidador profissional (quarto pilar).
Em termos de impacto da medida em sede de capacidade de
agir, vale a plena presunção de capacidade jurídica às pessoas
maiores de 18 anos. A instauração da medida não restringe
ou afecta a capacidade do beneficiário, sem prejuízo de tal ser
necessário para a realização de determinados actos e sempre
sujeito a um estrito controlo da proporcionalidade na aferição
da necessidade e adequação da restrição em função da defesa
de interesses relevantes e perante um sério e grave risco para o
beneficiário (§ 242 (2) abgb).
Outro ponto importante da alteração diz respeito à
concretização da medida a partir do terceiro e quarto pilar.
A importância da compreensão do ambiente e contexto do
beneficiário é decisiva para o desenho do conteúdo da medida
e fundamental para a escolha do cuidador. O conhecimento
do contexto social onde o beneficiário vive e a sua audição
são fundamentais para a compreensão das necessidades e real
vantagem da medida. Este contacto directo, em honra do
princípio da imediação, convoca a adequação processual, para
que seja garantida logo no primeiro momento o contacto com
o beneficiário, para aferição dos pressupostos de continuação
da acção (Erstanhörung)(56). Esta interacção deve ocorrer

56
Esta preocupação de condensação do processo entre aferir da subsi-
diariedade e necessidade da medida tinha, na proposta do cdf o seu eco
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 351

mesmo em situações em que já se encontrando instaurada


a medida, existam decisões relevantes a tomar, como por
exemplo a mudança de residência.
Com a actual revisão, concretiza-se o dever de informação
do beneficiário, na medida em que se impõe ao cuidador
com poderes de representação a informação e consulta prévia
em tempo razoável como condição de eficácia do exercício
daqueles poderes (§§ 241 (2) abgb). Apenas em situações de
risco é que se prescinde do dever de consulta e informação
prévio ao exercício dos poderes de representação.

quer no despacho liminar e na audiência preliminar. Aliás, tal operação


pode ser realizada Transcrevendo:
Artigo 896.º
Saneamento
1. Recebido o requerimento inicial, o processo vai com vista ao
Ministério Público, caso não seja o requerente, que informará o juiz
da existência de mandato em previsão da incapacidade ou gestão de
negócios, sem prejuízo de promover o que tiver por conveniente;
sendo o Ministério Público o requerente, tais informações devem
ser prestadas no requerimento inicial.
(...)
5. O juiz pode realizar as diligências necessárias para a produção de
prova documental relevante, nomeadamente solicitar os relatórios
e exames clínicos necessários, bem como ordenar a produção de
relatório social. (...)
Artigo 898.º
Conferência preliminar e audição do requerido
1. A audição do requerido é obrigatória.
2. No caso de a comparência pessoal do requerido ser impossível ou
representar sacrifício excessivo, deve o juiz deslocar-se à residência
do requerido ou ao local em que este se encontre, com ressalva da
intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana deste.
3. Na conferência preliminar, realizam-se as diligências probatórias
necessárias à averiguação da existência dos pressupostos para
instauração de curatela e, sendo caso disso, da capacidade para
efeitos do artigo 144.º do Código Civil.
(...)
352 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

De destacar a preocupação do desenho legal da medida no que


toca à inclusão no processo de decisão, em especial no que tange
aos cuidados de saúde. A previsão na §252 (2) abgb da consulta
de pessoas próximas do beneficiário e do iter de decisão por este
realizado ou nas limitações como meio de suprir as eventuais
falhas na formação ou formulação de vontade, tendo como limite
inultrapassável a actuação contrária à sua vontade (§252 (2) in
fine abgb) (57). O apoio na tomada de decisão é feito a partir do
próprio processo, não sendo possível sê-lo por reconstrução da
vontade do beneficiário por representante voluntário ou legal.

D. Betreuung: um modelo em crise?

1. O parecer do Comité dos Direitos das Pessoas com


Deficiência

O Comité, no seu parecer, entre várias observações,


reforçou a necessidade de eliminar todas as formas de medidas
de substituição da decisão e a sua modificação por medidas
de apoio nos termos do artigo 12.º, n.ºs 2 e 3 da Convenção,
bem como nos termos do comentário geral n.º 1 do Comité
(2014), quanto ao princípio da igualdade (58).
O problema coloca-se, assim, no conteúdo da medida de
Betreuung, quando esta preveja a atribuição de poderes de
representação que se sobreponham ou consumam a iniciativa
e aptidão de agir do beneficiário. Segundo o Comité, estes
poderes significam uma restrição à capacidade jurídica

57
Michael Ganner. „Das neue österreichische Erwachsenenschutz-
recht“. 128-134.
58
committee on the rights of persons with disabilities, crpd/c/
deu/co/1 (General comment on Article 12: Equal recognition before the
law), disponível no sítio <www.ohchr.org> em linha, acedido em 14 de Fe-
vereiro de 2019, para. 26.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 353

discriminatória (59),à qual a Betreuung não é imune. Assim,


ao contrário do defendido pelo Governo Federal, o Comité
colocou sérias dúvidas sobre a compatibilidade da Betreuung
com a Convenção, em especial o seu artigo 12.º, n.º 3 (60). A
obrigação de eliminação de quaisquer restrições à capacidade
jurídica do beneficiário é imperativa para assegurar o respeito
pelo princípio da igualdade e proibição de discriminação
directa e indirecta (61) e, como tal, devem ser rejeitados
modelos substitutivos de decisão(62). Estes, pela vocação
paternalista que encerram tendem a recusar o reconhecimento
da capacidade de agir do beneficiário e a nomear alguém que
o substitua por ordem a critérios objectivos dos melhores
interesses, que se podem revelar contrários à vontade daquele.
Por isso, é imperiosa a necessidade de um novo modelo de
apoio à tomada de decisão e inclusão no respectivo processo,
pelo que se prescinde da incapacidade como instrumento de
salvaguarda e se exige a necessidade prévia de avaliação da
capacidade e competência do beneficiário. O busílis do modelo
de apoio é aferir as concretas necessidades do beneficiário e
construir a medida a partir da vontade e interesses directamente

59
committee on the rights of persons with disabilities — Gen-
eral comment on Article 12: Equal recognition before the law, Eleventh
session, <https://www.ohchr.org> [em linha] consultado em 12 de Janeiro
de 2019, para. 24, 25.
60
Dagmar Brosey. „Der General Comment No. 1 zu Art. 12 der un-
brk und die Umsetzung im deutschen Recht“. BtPrax - Betreuungsrechtli-
che Praxis 5 (2014) 211-215, p. 211.
61
committee on the rights of persons with disabilities — Gen-
eral comment on Article 12: Equal recognition before the law, Eleventh
session, <https://www.ohchr.org> [em linha] consultado em 12 de Janeiro
de 2019. para 24, 25.
62 committee on the rights of persons with disabilities —
General comment on Article 12: Equal recognition before the law, Eleventh
session, <https://www.ohchr.org> [em linha] consultado em 12 de Janeiro de
2019. Para. 26, 29.
354 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

e indirectamente manifestados pelo beneficiário. Evita-se,


assim, o recurso a critérios objectivos em favor da melhor
interpretação da vontade e interesses («best interpretation of will
and preferences»). Para isso é necessário assegurar as garantias
previstas no artigo 12.º, n.º 4 da Convenção e a garantia
de autodeterminação total sobre o processo de instauração,
revisão, modificação e cessação das medidas (63).
O princípio da não discriminação constitui a trave mestre
do sistema de direitos humanos consagrado na Convenção,
sendo o artigo 12.º o seu elemento pivot. O n.º 2 consagra
o princípio da igualdade, cabendo aos Estados prever
instrumentos que assegurem a materialização desse comando
axiológico-normativo pela adopção do modelo de apoio/
assistência. Modelo este que a Convenção elegeu como o
idóneo a romper as barreiras sociais e a incluir a pessoa
com deficiência no processo de decisão sobre a sua esfera
de interesses e consequente autodeterminação. Para que tal
modelo alcance estes objectivos, estabelece o n.º 4 garantias
para uma efectivização do modelo de apoio/assistência: o
«exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos,
vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de
interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas
às circunstâncias da pessoa, aplicam-se no período de tempo
mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por
uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e
imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais
medidas afectam os direitos e interesses da pessoa».
A crítica formulada contra o modelo alemão prende-se,
por isso, com o carácter expansivo da Betreuung que tende a

63
Volker Lipp. „Assistenzprinzip und Erwachsenenschutz“, 6. Wer-
ner Bienwald. „Betreuungsrecht im internationalen Kontext. Aktuelle
Aspekte in Deutschland, Berichte und Beiträge vom 4. Weltkongress Be-
treuungsrecht — 15. Betreuungsgerichtstag vom 14.–17. September 2016
in Erkner“, FamRZ (2017) 1828.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 355

implementar-se a partir de uma medida de apoio/assistência:


a substituição. A atribuição de poderes de representação
e medidas compulsivas são o standard do sistema que a
Convenção pretendeu erradicar e que o modelo legal da
Betreuung admite, desde logo, as §§1903, 1904, 1905, 1906,
1906a bgb.

2. Críticas e interpretações

Volker Lipp dá conta que o ordenamento alemão, desde a


revogação do instituto da Entmündigung (equivalente à nossa
interdição) em 1992, dá relevo à capacidade natural, tendo em
atenção aos elementos essenciais do negócio jurídico e numa
base caso-a-caso. A ineficácia do negócio ou acto jurídico resulta
da ausência de elementos essenciais aferidos a partir de uma
concreta situação e não enquanto sanção à condição da pessoa
com deficiência. Uma vez atingida a maioridade, toda pessoa
adquire a capacidade legal plena de agir legalmente (capacidade
de agir, capacidade nupcial, testamentária, etc.) (64). Todavia,
como aponta o Comité, o modelo de apoio e sua concretização
pode significar a incorporação de um sistema de substituição, em
particular através da atribuição de poderes de representação (65).
A possibilidade de atribuição de poderes de representação surge
como resposta a uma situação de necessidade, para a qual os meios
de apoio para a formação ou formulação de uma vontade livre e
esclarecida do beneficiário não sejam possíveis (§1901 (1) bgb)
(66). Por isso, o sentido normativo do âmbito de atribuições que
abarque poderes de representação legal é de um instrumento de
realização autodeterminada do beneficiário, ora representado, e por

64
Volker Lipp. „Assistenzprinzip und Erwachsenenschutz“, 7.
65
Alfons Wenker. „Art. 12 un-brk und die Selbstbestimmung be-
treuter Menschen“. BtPrax — Betreuungsrechtliche Praxis 2 (2015) 51-53.
Volker Lipp. „Rechtliche Betreuung und das Recht auf Freiheit.
66

BtPrax — Betreuungsrechtliche“. Praxis 2 (2008) 51-56, p. 52.


356 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

isso a actuação do representante não é livre, antes funcionalizada,


já não aos interesses objectivamente considerados mas à vontade e
interesses manifestados e queridos ou desejados pelo beneficiário.
Para tal, deve o Betreuer contactar e ouvir o beneficiário e decidir
em conformidade com a posição deste (§§ 1901 (3) 1 e 2 e 1901a
(1) ( 2) bgb). Daí a importância do contacto directo e próximo
enquanto dever do Betreuer (§ 1901 Abs. 3 S. 3 bgb). Nem
perante a ausência de uma vontade se escuda o Betreuer de uma
decisão personalizada, i. é, de procurar a sua vontade presumida ou
escala de interesses e preferências manifestadas pelo beneficiário.
A possibilidade de recorrer ao critério objectivo dos melhores
interesses apresenta-se apenas como mecanismo de ultima ratio
( §§ 1901 (2), 1901a (2) bgb) (67).
Em termos de sindicância, cabe ao tribunal rever a
medida e se necessário afastar o Betreuer, bem como é aquele
o competente para apreciar e autorizar o Betreuer a realizar
determinados actos em relação ao beneficiário (por exemplo,
§§ 1904, 1906, 1907, 1908i em conjugação com as §§ 1821
e 1822, todos do bgb). Ao direito substantivo contrapõem-
se as garantias processuais, entre elas a nomeação de um
curador ad litem (Verfahrenspfleger §276 FamFG — Código
do processo de jurisdição voluntária) e a imediação na audição
do beneficiário (§277 FamFG) (68).

67
Volker Lipp. „Assistenzprinzip und Erwachsenenschutz“, 9. Este au-
tor concebe a incapacidade como medida preventiva e efectivação da me-
dida de apoio/assistência (Freiheit und Fürsorge, 241). Numa abordagem
alternativa, Michael Ganner pugna para a intervenção protectiva ser no
quadro do direito de consumidor („Stand und Perspektiven des Erwachse-
nenschutzes in rechtsvergleichender Sicht (Teil 1)“. BtPrax — Betreuungs-
rechtliche Praxis 5 (2013) 171-175, p. 173.
68
Vide Valentin Aichele / Jochen von Bernstorff. „Das Menschen-
recht“, 199-203; Dagmar Brosey. „Der General Comment No. 1 zu Art. 12
der un-brk und die Umsetzung im deutschen Recht“. BtPrax — Betreuungs-
rechtliche Praxis 5 (2014) 211-215; Idem. „Anforderungen an einen Eingriff
in das Recht auf gleiche Anerkennung vor dem Recht“. BtPrax — Betreuungs-
rechtliche Praxis 6 (2014) 243-247 ; Michael Ganner. „Stand und Perspekti-
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 357

Uma decisão do Tribunal Constitucional alemão, já de


2016, sem confrontar directamente o sistema da Convenção,
admite como interpretação conforme a esta a adopção de
medidas compulsivas de cuidados de saúde em situações limite
como concretização da obrigação positiva de proteger a vida
e integridade física do beneficiário (69). A natureza intrusiva e
substitutiva das medidas, entende o tribunal, serão conformes
a Convenção enquanto instrumentos de ultima ratio e de
aplicação residual às situações mais graves (70).

ven des Erwachsenenschutzes in rechtsvergleichender Sicht (Teil 1)“. BtPrax


— Betreuungsrechtliche Praxis 5 (2013) 171-175; Uwe Harm. „Stellungnahme
zur Kritik des un-Fachausschusses zum deutschen Betreuungsrecht“. BtPrax
— Betreuungsrechtliche Praxis 4 (2015) 135-137; Volker Lipp. „un-Behinder-
tenrechtskonvention und Betreuungsrecht“. BtPrax — Betreuungsrechtliche
Praxis 6/2010. pp. 263267; Idem. „Betreuungsrecht und un-Behinderten-
rechtskonvention“. FamRZ 9 (2012) 669-679; Roland Rosenow. „Betreu-
ungsrechtliche Unterbringung und Zwangsbehandlung vor dem Hintergrund
der un-brk“. BtPrax — Betreuungsrechtliche Praxis 2 (2013) 39-44; Alfons
Wenker. „Art. 12 un-brk und die Selbstbestimmung betreuter Menschen.
Was muss sich bei den Betreuungsgerichten nach erfolgter Betreuerbestellung
ändern?“. BtPrax — Betreuungsrechtliche Praxis 2 (2015) 51-53.
69
tribunal constitucional alemão, “1. Senat, Beschluss v.
26.7.2016 – 1 BvL 8/15“, FamRZ (2016) 1738-1747. Ver ainda Shtuka-
turov c. Rússia, req. N.º 44009/05, 27 de Março de 2008,
70
Volker Lipp, „Rechtliche Betreuung“, 51-56, p. 9. Dagmar Brosey.
"Anforderungen an einen Eingriff in das Recht auf gleiche Anerkennung
vor dem Recht", BtPrax — Betreuungsrechtliche Praxis 6 (2014) 243-247.
Na decisão do tribunal da Baviera admite-se a intervenção contra a von-
tade do beneficiário perante uma falha ou limitação deste para se autode-
terminar. A sua liberdade encontra-se coarctada por falhas no processo de
formação de uma vontade perfeita e, por isso, estaria justificada a intromis-
são na esfera jurídica do beneficiário sempre com respeito pela liberdade de
consciência e de livre desenvolvimento da sua personalidade (BayObLG, Fa-
mRZ 1993, 998, 999; ver ainda olg Hamm, FamRZ (2000) 494, 496; olg
Köln, FamRZ (2000) 908; olg Frankfurt, BtPrax — Betreuungsrechtliche
Praxis 1997, 123. MüKoBGB/-Schwab, bgb § 1903 Rdnr. 6; Knittel, bgb
§ 1903 Rdnr. 17; hk-bur/Bauer, § 1903 Rdnr. 65; Palandt/Diederichsen,
§ 1903 Rdnr. 5; Bienwald/Sonnenfeld/Hoffmann/Bienwald, § 1903 Rdnr.
358 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

Volker Lipp perspectiva o sistema como dotado de respostas


amplas e suficientemente flexíveis para uma resposta adequada
ao caso concreto. Cabe ao aplicador o papel de garante da
posição do beneficiário, mesmo perante as situações de
incapacidade. Estas devem ser delimitadas e precisas no seu
alcance, devendo a actuação do terceiro cuidador ser conforme
à vontade e interesses do beneficiário (71).
Isto sem prejuízo de em situações limite se tornar necessário
nomear um Betreuer com poderes para actuar contra o beneficiário,
se este representar um perigo sério para os seus próprios interesses e
nunca para a protecção de terceiros. Esta possibilidade é excepcional
e deve ser fundada e objecto de um estreito escrutínio (72).
Para isso a Declaração de Iocoama de 2016 configura os
princípios estruturais de um sistema assente no cuidado informal
e voluntário e de funcionamento verdadeiramente subsidiário
(73). O beneficiário é o destinatário da função de salvaguarda do
sistema, mas antes de mais é um sujeito titular de direitos que
devem ser garantidos na sua plenitude. Para isso a intervenção
terá que ir muito além do instituto civil da Betreuung, sendo
necessária uma intervenção social (§279 (2) FamFG) como
primeiro patamar dissuasor da intervenção mais intrusiva (74).

38; Jürgens/Jürgens, § 1903 Rdnr. 2; Knittel/Seitz, BtPrax 2007, 18, 20.


71
Volker Lipp. „Rechtliche Betreuung“, 51-56, p.8.
72
Volker Lipp. „Rechtliche Betreuung“, 51-56, p.9.
Resultante do 4.º Congresso Mundial de protecção de pessoas maio-
73

res realizado em Erkner/Berlim, em 16 de Setembro de 2016 e disponível


em <https://www.international-guardianship.com>.
74
Volker Lipp. „Rechtliche Betreuung“, 51-56, p. 10-11.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 359

VI. Linhas mestres do edifício jurídico de salvaguarda


dos direitos e interesses do beneficiário

Os principais valores estruturais e que vinculam a


comunidade jurídica nas suas múltiplas manifestações,
produzindo efeitos horizontais e verticais são a dignidade da
pessoa humana e autodeterminação (aqui enquanto realização
da liberdade positiva e negativa da pessoa humana).
Estes trilham o núcleo ou esferas de protecção cujas camadas
se tendem a compactar e a opor perante intervenções que lhes
sejam contrárias. E a premissa, para que não haja dúvidas
e equívocos, é de um sistema que visa garantir os direitos e
interesses da pessoa maior e, enquanto tal, um instrumento de
inclusão plena na participação da vida social e jurídica. Aqui
entendida no sentido universal da mesma. A particularidade
da maioridade corresponde à concepção social e jurídica do
culminar de um processo de crescimento e autonomização
com vista à afirmação da plena dignidade e capacidade.
Uma das primeiras notas passa por recusar a colagem do
estatuto do beneficiário ao regime da menoridade. A aparente
proximidade das funções a cargo do «cuidador» assenta na
concepção dogmática de direitos funcionais, mas tão-só. O
conteúdo e feixe de vínculos constitutivos da responsabilidade
do acompanhante para com o beneficiário são distintos,
na génese, execução e extinção. A relação jurídica de
acompanhamento não pode espelhar, em momento algum,
uma estrutura vertical de subordinação ou de contracção da
autodeterminação de interesses do beneficiário. O sistema
parte do polo diametralmente oposto (75). A relação não

75
Sobre uma leitura crítica dos poderes das responsabilidades parentais e
seus limites em confronto com a autodeterminação da criança e jovem ver o nos-
so “Os menores: a dialéctica entre emancipação pessoal e protecção. análise de
um caso de internamento em comunidade terapêutica contra a vontade de um
menor de 17 anos toxicodependente”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor
360 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

é hierárquica e muito menos de subordinação, antes de


promoção da autodeterminação do beneficiário. Os poderes
funcionais do acompanhante devem ser exercidos para efectivar
a soberania do beneficiário sobre a sua esfera de interesses.
Não basta afirmar um direito de audição ou participação, antes
um direito de decisão inalienável do beneficiário que condiciona
a legitimidade da intervenção do acompanhante, e que está
presente em todas as vicissitudes da relação jurídica. Desde a sua
constituição, passando pela sua execução e até à sua extinção.
Esta referência é fundamental para compreender que o
desenho da medida de acompanhamento parte da correlação
causal entre necessidades do beneficiário e poderes atribuídos
por sentença. As diversas alíneas do artigo 145.º, n.º 2 não
devem ser vistas como dispostos numa ordem de precedência
ou hierarquia. Os princípios que orientam a sua intervenção,
em particular o da necessidade consagrado no n.º 1 do
mesmo artigo assim o determinam. A vermos tal estruturação
a mesma deve ser invertida pelo contrário por respeito aos
artigos 5.º, n.ºs 1 e 2 e 12.º e 4 da Convenção (76). Não é

Manuel da Costa Andrade, vol. iii, Coimbra: Instituto Jurídico, 2017.


O processo de crescimento e aquisição de plena cidadania pressupõe, mais
do que autoridade, um processo de decisão participada. Sobre visão da infân-
cia e responsabilidades parentais ver Mary John. Children’s Rights and Power:
Charging Up for a New Century, Jessica Kingsley Publishers Kindle ed., 2003.
posição 466 e seguintes. Numa visão crítica da posição do menor na família
e respectiva protecção ver Guilherme de Oliveira. “A criança maltratada”, in
Temas de Direito da Família, Coimbra: Coimbra Editora, 2001.
76
Não podemos deixar de dar nota do absurdo constante na alínea a) do
n.º 2 do artigo 145.º cc. Esta disposição apresenta-se claramente desfasada e
conflituante com a unidade do sistema jurídico. As responsabilidades paren-
tais são reguladas em função do interesse da criança de acordo com um qua-
dro normativo próprio e respectiva jurisdição. A possibilidade de se discutir
as responsabilidades parentais no processo de constituição ou modificação
do acompanhamento não só é uma aberração jurídica, como se revela pro-
fundamente preconceituosa sobre o que se deve entender como paradigma
da salvaguarda de pessoas maiores. Assim, não só não é possível regular as
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 361

a partir da capacidade ou incapacidade do beneficiário que


se determina a constituição do acompanhamento, antes a
necessidade de salvaguarda de interesses para os quais somente
o acompanhamento pode acautelar. Não só a incapacidade
não é condição de constituição do acompanhamento, como

responsabilidades parentais em sede de processo de acompanhamento, aten-


to os diferentes destinatários e regimes jurídicos (são absolutamente contra-
ditórios), como a possibilidade de conferir tal possibilidade de atribuição do
exercício ao acompanhante sai da órbita do instituto da limitação das res-
ponsabilidades parentais q (artigo 1907.º do Código Civil). A previsão desta
norma resulta do apego aos velhos cânones do quadro legal revogado, onde
se manteve, erradamente, como causa de inibição a instauração do acompa-
nhamento (ainda que qualificada como ope legis, o facto, a mesma resulta de
uma decisão judicial, porque encontra-se sistemática mal enquadrada (para
não falar da própria formulação ao utilizar «apenas no casos». Mais uma vez
o legislador preocupa-se em dizer o que é a esfera de autodeterminação e
exercício do beneficiário, o que deixa antever que o estatuto de plena capa-
cidade não é a regra). Será, quanto muito, uma causa de inibição nos termos
do artigo 1915.º, uma vez que pode nem tão pouco estar em causa a aptidão
para o exercício dos direitos-deveres pessoais, como o convívio). Mais uma
vez, parte-se do apego à capacidade jurídica enquanto condição da pessoa
para ser titular e exercer direitos e deveres, e não perspectivar o modelo à luz
das necessidades do beneficiário. A incapacidade e inaptidão do beneficiário
no exercício das responsabilidades parentais devem ser considerados auto-
nomamente no processo de regulação das responsabilidades parentais à luz
do interesse prevalente que é o superior interesse da criança. Mais uma vez,
salvaguardando as situações de responsabilidade criminal, a mera condição
de deficiência (aqui no sentido dado pela Convenção de Nova Iorque) não é
impeditiva per se de não ser titular e exercer as responsabilidades parentais.
Ainda a favor deste entendimento é o modelo adoptado como referência pelo
legislador português — a Betreuung — e em que a possibilidade de incluir no
âmbito de atribuições do acompanhante a regulação das responsabilidades
para com menores é uma condição impossível atento o objecto e interesses
distintos das medidas (Ulrich Engelfried. “Betreute Menschen mit min-
derjährigen Kindern”. BtPrax — Betreuungsrechtliche Praxis 1 (2013) 13-16,
p. 14). Isto sem prejuízo do dever do acompanhante comunicar ou informar
o tribunal ou o Ministério Público perante a insuficiência do beneficiário
em assegurar o superior interesse da criança. Não pode é, a partir da relação
de acompanhamento, pretender substituir-se ou assumir responsabilidade
directa para com o filho menor de idade (ibid., 15).
362 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

não é a partir da incapacidade que se recorta o âmbito de


atribuições. É a partir da autodeterminação do beneficiário e
da necessidade de salvaguarda de direitos e interesses daquele
que se constituiu, modela e se extingue o acompanhamento.
Compete ao próprio beneficiário, por respeito à sua
dignidade, autodeterminar a sua esfera de interesses. A
ausência ou limitação da capacidade de autodeterminação
imediata não afasta a manifestação da sua vontade anterior à
incapacidade, pelo que as opiniões e interesses anteriormente
manifestados terão obrigatoriamente de ser considerados,
sendo aqueles tanto mais vinculativos quanto maior for o seu
grau de concretude, a forma das declarações e a capacidade de
autodeterminação na data em que foram formuladas. Quando
seja necessário recorrer a um terceiro para apoiar ou assistir a
formação ou formulação da vontade do beneficiário, aquele
terá que se vincular ao querido e desejado por este e não a
padronização por critérios estritamente objectivos. (77).
A função da medida de salvaguarda do beneficiário deve
ser dupla: assegurar e promover a autodeterminação do
assistido e assegurar o seu cuidado pessoal e patrimonial. A
definição dos limites entre um e outro objectivo, apesar de
difícil, é determinante para evitar intervenções paternalistas
do Estado. De facto, a vinculação funcional ao interesse da
pessoa protegida, na sua dimensão subjectiva, pode implicar
que se postergue a função de cuidado relativamente a
situações de perigo por si criadas, ou que aquela não tem
capacidade para remover (78).

Volker Lipp foca a função da Betreuung na organização do cuidado, com


77

vista a suprir as limitações da pessoa que não é capaz de agir sozinha, promo-
vendo a sua participação no comércio jurídico (Freiheit und Fürsorge, 51. Ver
também Uwe John. Die Organisierte Rechtsperson. System und Probleme der
Personifikation im Zivilrecht, Berlin: Duncker und Humblot, 1977, 74 s.; e
Hans-Martin Pawlowski. Allgemeiner Teil es bgb. Grundlehren des bürgerlichen
Rechts, 5. neubearbeite Auflage, Heidelberg: C.F. Müller, 1998, 63).
78
Volker Lipp. Freiheit und Fürsorge, 77.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 363

Mas, ancorando esta asserção nos valores da igualdade, da


proporcionalidade e do cuidado, não pode defender-se uma
intervenção por critérios objectivos, derrogando a vontade e
interesses subjectivos do beneficiário. O termo de comparação
terá que ser referente à liberdade de consentimento de que
goza a pessoa não assistida. A esta é reconhecida autonomia
para consentir ou acordar numa auto ou hetero-lesão dos seus
interesses, desde que isso não prejudique terceiros ou não
ofenda os bons costumes ou a ordem pública (79).
Neste sentido, ao beneficiário terá que ser reconhecida
igual faculdade, para consentir ou dissentir numa intervenção,
por terceiros, sobre a sua pessoa (80), ainda que no momento
se encontre limitada na sua competência volitiva ou
intelectual. Exige-se, por isso, o respeito pelo princípio da
proporcionalidade na adequação dos limites do cuidado(81). A
indeterminação do conceito de superior interesse do incapaz
é benéfica à prossecução dos seus interesses, bem como
necessária à concretização individual da sua margem própria
de decisão e actuação.
Toda a actuação sobre a esfera pessoal ou patrimonial do
beneficiário terá que ser feita por referência aos interesses,
vontade e valores manifestados anteriormente ao fenómeno
incapacitante (82). O recurso a critérios objectivos apresenta-

79
Jürgen Schwabe. „Der Schutz des Menschen vor sich selbst“. jz
(1998) 66 e s.
80
A respeito do dissentimento sobre tratamentos médicos, afirmou o
Tribunal Constitucional alemão que os doentes psiquiátricos têm o direito
de dissentir de um tratamento médico: “Freiheit zur Krankheit” (Tribunal
Constitucional alemão 23.3.1998, FamRZ (1998), p. 896).
81
Dieter Schwab. “Strukturfragen des geplanten Betreuungsrechts,” em
Staat, Kirche, Wissenschaft in einer pluralistischen Gesellschaft. Festschrift zum
65. Geburtstag von Paul Mikat, Berlin: Duncker u. Humblot, 1989, 1313;
Volker Lipp. Freiheit und Fürsorge, 77.
82
Neste ponto afigurar-se-ia crucial que norma principal consagrada no
364 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

se, como já aludimos, como ultima ratio, na ausência de


meios para reconstruir a vontade da pessoa incapaz, isto é,
na impossibilidade de determinar a vontade presumida da
pessoa. Mesmo a objectivização dos critérios de actuação não
prescinde de um esforço de avaliação individual desses mesmos
critérios, atento o momento e a oportunidade da situação (83).
Na realidade, tanto assim é que aquele que actue como
cuidador, seja de facto, seja legal, tem de se conformar com os
interesses e desejos do incapaz, vinculando-se à escala de valores
deste e não à sua própria (84). Os limites a serem estabelecidos à
consideração da vontade do incapaz, sê-lo-ão por referência aos
limites impostos à pessoa que não padece de uma incapacidade

artigo 140.º fosse antes próxima da proposta do cdf, no seu artigo 140.º:
Interesses do beneficiário
1. A protecção conferida ao beneficiário determina-se de acordo
com a sua vontade real presente ou, quando se encontre incapaz
de entender ou querer, de acordo com a vontade previamente
manifestada.
2. Na ausência de manifestação de vontade, deve ser tida em conta
a vontade presumida e, na impossibilidade de a determinar, deve
ser considerado o melhor interesse do beneficiário.
3. O beneficiário tem o direito a ser informado e a participar, na
medida da sua capacidade de entender e querer, nos processos de
decisão sobre os assuntos que sejam do seu interesse.
83
Erwin Deutsch. “Das terapeutische Privileg des Artzes — Nicht-
aufklärung zugunsten des Patienten”, Neue Juristische Wochenschrift (1980)
1307; Jens-michael Kuhlmann. Einwilligung in die Heilbehandlung alter
Menschen, Frankfurt am Main: Lang, 1996, 127 s. e 142 s.; Volker Lipp.
Freiheit und Fürsorge, 50. Este último acentua a necessidade de se proceder
a uma ponderação e definição da vontade presumida atento o caso concreto
(“bei Gelegenheit”).
84
Reportando-nos à esfera de actuação médica, a fixação de um crité-
rio de decisão individualizado e personalizado tem como consequência que
nem sempre a opção médica deve ser uma decisão tomada pelo cuidador
(Ana Isabel Berrocal Lanzarot / José Carlos Abellán Salort, Autono-
mía, libertad y testamentos vitales (Régimen jurídico y publicidad), Madrid:
Dykinson, 2009, 90).
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 365

ou limitação, ou seja, ponderando-se as regras gerais relativas ao


consentimento e validade das declarações negociais.
As declarações antecipadas devem vincular a definição do
interesse subjectivo da pessoa num momento de incapacidade,
desde que ofereçam garantias de certeza e clareza. Cumpridos estes
requisitos, não se poderá afastar a vontade então expressamente
manifestada pela objectivação de um qualquer critério, pois
os critérios de normalidade ou a automática transferência de
valores do acompanhante para o beneficiário representam uma
coisificação desta última, negando-se a sua plena dignidade (85).
O beneficiário é igualmente o primeiro responsável pela
decisão, na medida da sua competência para se autodeterminar.
Deve ser, assim, salvaguardada, como prius metodológico, a
actuação do beneficiário a favor de si mesmo, sendo subsidiária
a actuação do acompanhante, considerados sempre o risco e
relevância do assunto e a capacidade situacional da pessoa para
se autodeterminar (86).
Coloca-se ainda em questão, neste âmbito, qual o papel da
família ou de pessoas próximas, quer no momento da decisão sobre
um assunto ou acto na vida da pessoa, quer na concretização do
seu superior interesse. Aqueles que se presumem constituírem o
círculo de afectos mais próximo do beneficiário são determinantes,
quando em causa esteja uma decisão de relevo, para aferir dos
interesses subjectivos da pessoa. Mesmo nas situações em que
ao acompanhante ou representante não tenham sido atribuídos

85
A este respeito, Ronald Dworkin afirma que as pessoas não são bons
juízes em causa própria, quanto à definição dos seus melhores interesses,
quanto a situações que elas nunca enfrentaram, e, por se tratar de situações
limite, a sua vontade e desejos podem drasticamente ser alterados. Contudo,
tendo sido manifestada uma vontade prospectiva, o desrespeito da mesma,
quando emitida por uma pessoa plenamente capaz, que compreendeu inte-
gralmente o seu sentido e efeitos, implicaria a violação do bem jurídico auto-
determinação (Life’s Dominion: An argument about Abortion. Euthanasia, and
Individual Freedom, New York: Vintage Books, 1994, 225-229).
86
Volker Lipp. Freiheit und Fürsorge, 53.
366 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

poderes para decidir sobre um determinado assunto (pensemos


na situação de uma assistência instaurada para gestão da massa
patrimonial, mas em que o estado clínico incapacitante da pessoa
a impede de consentir numa intervenção médica arriscada),
devem ser ouvidos familiares e pessoas próximas do incapaz, para
aferir da vontade deste (87). Este dever pode ser ilidido se, por
razões de vida, integridade e saúde, não for possível estabelecer
um contacto prévio com as pessoas com atribuições e próximas
do círculo de vida do protegido.
Por último, essencial na materialização deste princípio e
na determinação do critério-guia de actuação é a promoção e
desenvolvimento da qualidade de vida e bem-estar da pessoa
protegida. Dotar a pessoa de condições e meios de se auto-
promover e viver autonomamente é o pressuposto essencial
para assegurar a plena manifestação da autodeterminação
remanescente do incapaz. Por aqui se parte para a materialização
do reequilíbrio do beneficiário, promovendo-se a sua igualdade
relativamente aos demais cidadãos (88).
O sistema é construído a partir da presunção de plena
capacidade e de garantia dos direitos interesses do beneficiário,
em particular opondo-se ao acompanhante. A hetero-
determinação é proibida, devendo prevalecer sempre a vontade
do beneficiário.
Existem duas normas, a meu ver, muito problemáticas na
compatibilidade com o novo paradigma jus-fundamental. A
primeira já foi objecto de tratamento e diz respeito à aparente
abordagem garantística que encerra em si um perigoso
pressuposto de admissibilidade de restrição da capacidade

Peter Bartlett. The Mental Capacity Act 2005, 2nd ed., Oxford: Ox-
87

ford University Press, 2008, 55.


Ronald dworkin. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality,
88

Harvard: Harvard University Press, 2002, 59; António de Araújo. Cidadãos


Portadores de Deficiência, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, 138-140.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 367

jurídica de gozo da pessoa maior. A segunda prende-se com o


artigo 148.º do Código Civil. Prevê a norma dispõe, sobre a
epígrafe «internamento» e que trataremos infra.
Há o sério risco de uma lei que se quer garante dos direitos
fundamentais do beneficiário se converta num instrumento de
agressão pelo recorte da medida num fato feito em função de
exclusão e negação — já não de toda a dimensão e instrumentos
jurídicos de acção como ocorria com a interdição —, mas de
nucleares esferas pessoais. O que não pode ocorrer sob pena
de violação do artigo 12.º da Convenção das Nações Unidas e
dos artigos 13.º, 18.º e 26.º, n.º 1 da Constituição.
Com isto não excluímos a necessidade de conferir poderes-
deveres de autoridade conducentes a justificar uma restrição
à autodeterminação. O juízo de restrição deve, também ele,
em sede de dinâmica da relação jurídica de acompanhamento,
ser circunscrito à concreta necessidade do beneficiário. Não
se basta, por isso, com a sua constituição, antes incorpora
uma relação entre beneficiário e acompanhante e um feixe
complexos de direitos e deveres, nos quais a prevalência e
eficácia directa dos direitos fundamentais se mantém e se
fazem sentir com especial acuidade.
A conformidade do acompanhamento sente-se, ou deve
sentir-se, na execução da relação. Por isso, não pode a medida
partir de um desenho restritivo da capacidade, porquanto
esvazia o estatuto jurídico do beneficiário e tornará desnecessária
a medida de acompanhamento em si. Não podemos olvidar
que a relação é pessoal e como tal só existe porque há uma
pessoa nomeada a desempenhar funções de acompanhante.
A importância do elemento pessoal é tal que é necessário
o contacto directo com o beneficiário. Daí que a órbita da
medida se centre no critério de necessidade enquanto força
jurisgénica constitutiva da titularidade de direito e deveres dos
sujeitos que compõem a relação jurídica de acompanhamento.
Não existe, nem deve ser recuperado, um estatuto objectivo
restritivo da capacidade jurídica do beneficiário, esse paradigma
368 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

foi superado com a revogação da interdição e inabilitação.


Por isso não é função do tribunal determinar o que pode ou
não fazer autonomamente, antes em que medida se chama
o acompanhante a desempenhar uma função de garante da
autodeterminação de interesses do beneficiário. E isto significa
que pode ser contra o beneficiário em situações limites. Pensar
o contrário — determinar exaustivamente o que pode ou não
fazer o beneficiário — significa deslocar, à semelhança das
interdições e inabilitações, o eixo legal, representando o mesmo
juízo de incapacidade e consequente substituição de decisão.
Não há medida de apoio quando se concede a definição
de um estatuto jurídico objectivo da aptidão do beneficiário
num juízo de prognose ex ante que, em última instância, nega
à plena dignidade da pessoa humana por recurso a critérios
exclusivamente decorrentes da sua condição de deficiência.
Não só no que seria a exigência de prevista no artigo 18.º,
n.º 2 e 3 da Constituição quando pensamos no internamento
como meio de limitação da liberdade do beneficiário. Desde
logo, pela garantia de liberdade e o catálogo fechado de
excepções. No caso dos beneficiários, apenas enquadrando na
alínea h) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição. Isto significa
que não é qualquer local (89). Ainda assim não ficam resolvidos
os problemas da norma que parca no seu conteúdo, nem tão

89
Os direitos fundamentais não prescindem da necessidade e justificação
da intervenção pública na protecção do beneficiário contra a sua auto-colo-
cação em risco por razões de saúde mental (BVerfGE 58, 208, p. 224 s.). No
mesmo sentido o artigo 12.º da Lei de Saúde Mental e a permissão constitu-
cional prevista no artigo 23.º, n.º 3, alínea h) da Constituição. No entanto
é necessário que tal intervenção se apresente como ultima ratio perante a
impossibilidade ou dificuldade em encontrar medidas menos restritivas e
que sejam idóneas a assegurar a protecção do beneficiário. A possibilidade de
limitação da liberdade do beneficiário apenas será possível perante a ausência
de opções idóneas e de uma afecção à capacidade de agir do beneficiário que
o impeça de compreender e decidir livremente sobre o comportamento que
coloque em causa os seus interesses (bgh, Beschluss vom 17.08.2011, xii zb
241 / 11, BtPrax — Betreuungsrechtliche Praxis (2011) 259-260).
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 369

pouco almeja a garantia e conteúdo de uma cláusula geral. No


entanto a base principial determina o critério a seguir, desde
logo que não pode resultar de uma restrição da liberdade da
pessoa contra a sua vontade. A decisão terá que se fundar na
necessidade de tutela de direitos e interesses relevantes do
beneficiário para os quais o internamento é o meio adequado
e idóneo à sua salvaguarda. A isto acresce a obrigatoriedade
de ser em instituição adequada a alcançar os fins que fundam
o internamento e por tempo limitado. Valem com toda a
pertinência as considerações da jurisprudência do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos a respeito dos artigos 3.º e 5
da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, bem como os
artigos 14.º e 15.º da Convenção.
Podemos igualmente alargar o seu âmbito para as situações
em que o acompanhante pretende alterar a residência do
beneficiário. Esta alteração produz um impacto substancial na
vida a pessoa e deverá ser sindicada como meio de acautelar o
respeito pela vontade e prossecução dos interesses do beneficiário.
Em termos processuais, a admissibilidade da pretensão do
acompanhante parte da verificação do primeiro pressuposto, a
incapacidade de decidir autonomamente do beneficiário (assim
resulta da dignidade da pessoa humana, artigo 1.º, igualdade,
artigo 13.º, direitos ao livre desenvolvimento da personalidade
e capacidade civil, artigo 26.º, n.º1 e 4, direitos de pessoas com
deficiência, artigo 71.º, n.º1 e direito à habitação das pessoas de
terceira idade, artigo 71.º, todos da Constituição) (90).

90
A intervenção contrária à vontade do beneficiário e ausência de ca-
pacidade para este reagir judicialmente contra a medida viola os artigos
6.º e 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, quando não se
permite àquele reagir contra medidas que implicam uma intromissão e
consequente restrição aos seus direito fundamentos. Neste sentido veja-se
Shtukaturov c. Rússia, req. 44009/05. Veja-se ainda o A.N. c. Lituánia,
req. 17280/08, onde reforça a necessidade de garantias procedimentais de
defesa e de audição do beneficiário em processo que pressupõe a restrição
da sua capacidade, em termos do artigo 6.º, bem como a violação do arti-
370 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

A relação pessoal e deveres de cuidado pressupõe a


responsabilização do acompanhante em assegurar, no caso
concreto, um actuação livre, pelo que, se condicionada e viciada,
então os deveres de cuidado prevalecem na garantia da formação
de uma vontade eficaz ou tomada de medidas excepcionais de
salvaguarda. Por isso, o foco prende-se com os limites da actuação
do acompanhante nas áreas mais sensíveis e na definição do
estatuto objectivo dos poderes-deveres daquele. Por exemplo,
o acompanhante poderá quer mudar a sua residência, podendo
esta mudança significar a mudança de residência do beneficiário.
Quando a mudança de residência diga respeito ao beneficiário, a
oposição deste poderá determinar a necessidade de substituição
do acompanhante. O mesmo pode ocorrer quando a mudança
seja somente do acompanhante, porquanto pode ser posta em
causa a relação de proximidade subjacente ao acompanhamento
e que não é mitigada pela intervenção de auxiliares ou terceiros
mandatados pelo acompanhante.
No acórdão do Tribunal Constitucional alemão (91)
foi expressamente aduzido que uma medida restritiva
da liberdade, como o internamento, mesmo quando
autorizada pelo Betreuer não perde a sua natureza e
propensão restritiva, pelo que justifica o controlo prévio
das decisões por ele tomadas (92). Daí, continuando a
seguir o aresto, o artigo 12.º, n.º 4 da Convenção impõe
aos Estados a obrigação de adequar o Sistema de suficientes
garantias para a salvaguarda de autodeterminação e
reconhecimento de capacidade jurídica. A isto acresce a

go 8.º por não ter sido ouvido pessoalmente pelo tribunal no processo de
restrição da sua capacidade.
91
Tribunal Constitucional alemão (njw 2011, beck-online) p. 2113.
No âmbito das interevnções restrititva da liberdade do beneficiário em
92

situação de internamento veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional ale-


mão, decisão de 10.02.1960 — 1 BvR 526/53, 29/58. njw 18 (1960) 811-813.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 371

protecção contra conflitos de interesses entre o beneficiário


e o acompanhante e contra riscos de abusos, assegurando
uma intervenção proporcional( 93). Daí a justificação da
intervenção compulsória ter que resultar de uma concreta
necessidade e se fundar numa deficiente formação de vontade
idónea a autodeterminar os interesses e para proteger interesses
relevantes para o beneficiário ( 94). Uma protecção contra si
próprio que não é absoluta e contra qualquer perigo, em especial
perante alguém com capacidade bastante para compreender
e autoconformar o seu comportamento e aceitar em sede
responsabilidade própria as consequências dessa decisão.
Tal é importante para limitar intervenções abusivas pela
mera invocação de comportamentos desviantes ou fora da
norma, estes só assumem foros de juridicidade para efeitos
e justificação do acompanhamento na medida da falta
de capacidade para formar exteriorizar uma vontade no
exercício da sua liberdade. Continuando a seguir o acórdão
alemão, a relação de acompanhamento não confere soberania
ao Estado de impor uma norma de comportamento e, qual
instrumento de agressão, corrigir e colocar o beneficiário
de acordo com a norma ou convenção social (95).
Reiteramos: o sistema é garantístico e não restritivo, pelo que
não se pode restringir, sem mais, a capacidade do beneficiário

93
Tribunal Constitucional alemão (njw (2011), beck-online) 2113,
para. 53.
94
Tribunal Constitucional alemão (njw (2011), beck-online) 2113,
para. 54.
95
Tribunal Constitucional alemão, njw 2011, 2113, para. 55. No
acórdão de 2015, afirma-se que não assiste poder ao Estado para limitar a
liberdade de consciência da pessoa sem um fundamento de um perigo sério
e grave para os interesses próprios ou de terceiros (Tribunal Constitucional
alemão (1. Kammer des Ersten Senats), Beschluss vom 20.1.2015 – 1 BvR
665/14, (njw 2015, 1666, beck-online). p. 1667).
372 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

para decidir, em particular em questões tão sensíveis para os


seus direitos fundamentais (96) (97).

VII. Conclusões

O principal mote conclusivo do nosso artigo não pode


deixar de respeitar o que nele se observou, em particular que
a técnica legislativa adoptada é desadequada aos direitos e
interesses envolvidos e desconforme com o exemplo de outros
ordenamentos jurídicos próximos do nosso — em especial o
alemão, que declaradamente lhe serviu de referência —, o que
cria especiais dificuldades ao intérprete.
O intérprete e aplicador não podem ignorar a transversalidade
da relação jurídica de acompanhamento, em especial a partir
da posição jurídica do sujeito destinatário do novo instituto. É
na raiz que encontramos o fio condutor do novo sistema e, por
isso, a interpretação do novo instituto terá que ser feita dentro
das balizas axiológico-normativas dos direitos fundamentais
consagrados na Constituição, concretizados pela Convenção
das Nações Unidas.
A utilização de cláusulas gerais afigura-se como uma boa
técnica legislativa enquanto critério normativo a concretizar
pelo tribunal, mas para que funcione é necessário que
se atenda à base principial que subjaz aos direitos em
confronto. Esta técnica é, porém, insuficiente perante
exigências constitucionais sobre os requisitos de restrição
dos direitos, liberdades e garantias. Em particular a norma
do internamento, artigo 148.º e a norma sobre a autorização
para constituição do acompanhamento, artigo 141.º, devem

96
Ver Tribunal Constitucional alemão (njw 1982, , beck-online)p. 691.
Plesó c. Hungria, para. 38. Neste o Tribunal Europeu dos Direitos
97

Humanos cita directamente a Convenção das Nações Unidas, ainda que so-
mente o artigo 12.º e não também o artigo 14.º.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 373

ser mediadas por um juízo jus-fundamental e constitucional.


Não podemos admitir um sistema que erradique a premissa
fundamental em que assenta: o acompanhamento não visa a
substituição, antes o apoio (assistência, no sentido não estrito)
para a formação de decisão e governo de interesses. Assim, a
autorização, para efeitos do artigo 141.º, deve ser enquadrada
processualmente como um incidente da instância constitutivo
de um pressuposto processual necessário ao prosseguimento da
acção. É uma decisão que deve ser autónoma e distinta, porque
se trata de um pressuposto sine qua non de prosseguimento
da acção de constituição de acompanhamento. Deverá ser
qualificado, por isso, como um verdadeiro incidente pela sua
estrutura e como meio de tutelar os direitos do beneficiário
por respeito ao princípio da igualdade e autodeterminação.
A decisão que dispense a autorização deve, assim, ser vista
como decisão autónoma susceptível de recurso autónomo, nos
termos do artigo 644.º, n.º 1 a) do Código de Processo Civil.
A respeito do internamento previsto no artigo 149.º, esta
decisão dever ser vista como uma forma de controlo da actuação
do acompanhante no exercício dos seus poderes adstritos aos
cuidados de saúde e bem-estar. Não como um processo alternativo
de execução de finalidades adstritas à lei de saúde mental.
Cabe ao leitor deste artigo sindicar e apreciar criticamente
todas as propostas de interpretação do novo desenho legal.
Para isso é relevante ver o direito de outros ordenamentos e
sua evolução, bem como a doutrina que existe sobre o assunto
antes da alteração da legislação. O legislador chegou a esta
solução, bem ou mal, a partir de um caminho doutrinal
e jurisprudencial que já há muito se foi fazendo. Este não
pode ser ignorado, em especial quando alguns autores, sobre
a manta da novidade, visam recauchutar velhos problemas
e velhas doutrinas que se encontram ultrapassadas ou
secundarizadas, por aquilo que é o propósito da alteração.
Partir do pressuposto, como alguns o fazem, de que nada
existia antes e selecionar a doutrina, em nada contribui para
374 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

a discussão doutrinal de um assunto absolutamente essencial


à comunidade. Todos nós caminhamos para a dependência e
vulnerabilidade (ou já nos encontramos nos encontramos), pelo
que todos somos potenciais destinatários deste novo regime e,
independentemente da idade, deficiência ou condição médica,
somos titulares de iguais direitos e deveres.
Por último, existem equívocos que devem ser desfeitos.
A preocupação geométrica e de nomenclatura não deve tolher
o intérprete e muito menos admitir que ele parta de pré-
conceitos. Dizer que existem modelos regulamentares ou
instrumentais é partir de uma discussão e classificação estéril
se não se tem em conta as soluções materiais e que não
contribui para a transparência do processo legislativo. Aliás,
não compreendemos o que se pretende com a qualificação de
modelos instrumentais (98). Salvo o devido respeito, o nome
não determina o regime. Se o projecto do Centro de Direito
da Família é instrumental por oposição ao modelo material
— aquele que supostamente estará subjacente ao projecto que
baseou as actuais soluções legislativas — certamente é porque
não se ignora o seu alcance e as soluções nele dispostas.
Aliás, se há pecado original do projecto que veio a dar à
luz como lei é a falta de rigor terminológico que choca com a
matriz do Código Civil (entre outros, vejam-se «autorização
prévia», «livre e conscientemente» (99), «autorização judicial

Segundo o estudo legislativo: «Também instrumentais são o Projeto


98

de Lei n.º 6i/xiii (salvaguarda, tutela, curatela e tutela e curatela provisórias)


e a Proposta do Centro de Direito da Família (curatela).»
Tende-se a identificar dois elementos integrantes da vontade: intelec-
99

tual e volitivo. A vontade depende da formação de uma vontade, ou seja,


liberdade de acção pressupõe a aptidão intelectual. Não se fala em liberdade
e não existir vontade. Por isso o legislador original do código fala em capa-
cidade de « entender e querer», artigos 257.º, n.º 1, 263.º, 488.º e 2199.º
do Código Civil).
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 375

prévia e específica.»(100) e ausência de regulamentação em


matérias sensíveis para a esfera de direitos do beneficiário
(desde logo, questões relativas à capacidade procriativa,
interrupção voluntária da gravidez, reserva da vida privada).
Pelo que alguma “formalidade” teria certamente sido adequada
para compensar a “materialidade” deste projecto.
Mais, encontramos várias redundâncias contrárias à vocação
de parte geral do Código Civil. Bem como a inabilidade de
determinar o conteúdo normativo e a sua articulação sistemática
entre o direito substantivo e processual. Compreendemos
as dificuldades num campo onde o entrecruzar das normas
materiais e processuais esbate as diferenças no tipo de normas,
é um campo de normas muitas vezes híbridas onde a dimensão
administrativa da gestão de interesses conflui mecanismos
simultaneamente de direito substantivo e processual. Em
especial, pela associação à tutela jurisdicional efectiva que
deve ser garantida ao beneficiário.
No entanto, se tal é assim, que seja o legislador capaz de
antecipar estas dificuldades e regulá-las uma única vez e não
reproduzir normas em diferentes diplomas, não vá o aplicador
se esquecer de articular direito substantivo com direito
processual. Exemplos disso são as normas sobre a cumulação
de pedidos no artigo 141.º, n.º 3 do Código Civil e artigo
892.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e a redundância
quanto às normas sobre publicidade (artigo 153.º do Código
Civil e artigo 893.º do Código de Processo Civil).
Outro ponto crítico é a abordagem puramente geométrica e
de nomenclatura levada a cabo pela lei. A natureza regulamentar
ou instrumental apontada ao projecto do Centro de Direito
da Família tinha um propósito formal principal e de realização

100
O carácter espúrio do rigor jurídico que pautava a linguagem cuidada
do código civil e que se afirma redundante e, por isso, inútil. Se é autorização
é necessariamente prévia, caso contrário estaríamos perante a confirmação.
376 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

metodológica. Bem como o termo utilizado «curatela» tinha


uma sedimentação e conteúdo normativo próprio e idóneo à
concretização do modelo de apoio-assistência. Em particular
quando a pretensa comparação não se afigura acertada e
correcta perante o conteúdo do dispositivo previsto no bgb
e âmbito de matérias incluídas na regulação do FamFG. O
projecto do Centro de Direito da Família não se limitou a
um transplante inacabado de um instituto estrangeiro, antes
avançou com uma solução combinada entre binómio cuidado
voluntário e cuidado legal para a resposta às necessidades e
idiossincrasias portuguesas. O modelo monista e material a
existir — e se tal é relevante em termos de nomenclatura —
foi o do projecto do Centro de Direito da Família, onde a
preocupação de garantir os direitos e interesses do beneficiário
foram a pedra de toque de todo o edifício proposto.
Basta ver a leveza como na lei se consagram normas sobre
restrição da liberdade do beneficiário sem concretizar os
pressupostos que justificam a decisão do acompanhante e sem
previsão de processo especial; a ausência de uma articulação do
regime do Código Civil com a lei de saúde mental e dimensão
de coordenação e acompanhamento contínuo; a falta de
regulação de matérias sensíveis como a reserva da vida privada,
o segredo e direitos reprodutivos, entre outros (101). A respeito
dos direitos reprodutivos a falta de coragem do legislador resvala
para a vulnerabilidade do estatuto da pessoa maior. Manter
intocado o artigo 142.º do Código Penal e não prever uma regra
própria sobre os limites do acompanhante em matéria de saúde

101
Desta feita, não podemos deixar de reparar que a colagem que se pre-
tendeu é infundada, assim como mostra que o estudo legislativo pecou pela
ausência de uma abordagem além de um único modelo que, como vimos,
é também objecto de críticas. Logo, recuso a qualificação e consideração
formulada por Nuno Luís Lopes Ribeiro e a sua adesão acrítica ao «Estudo
legislativo», O maior acompanhado — Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, O
Novo regime jurídico do maior acompanhado, [em linha] Lisboa: Centro de
Estudos Judiciários, 2019. consultado em 14 de Fevereiro de 2019. p. 76.
O INSTITUTO DO MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE... • 377

reprodutiva demonstra uma omissão grave na concretização de


um sistema garantístico, em particular perante a preservação de
representação ex lege (102) quando deveria ser o próprio modelo de
acompanhamento a dar uma resposta clara a esta magna questão.
Vencida a espuma da torrente da novidade, os grandes
desafios com que o aplicador se confronta são a constituição e
recorte da medida, num primeiro momento, e a dinâmica da
nova relação jurídica, num segundo. É necessário concretizar o
feixe de vínculos emergentes da complexidade da relação, em
especial o âmbito de competência da intervenção de cuidado
pelo acompanhante. É no exercício dos poderes-deveres do
acompanhante que os grandes desafios do instituto do maior
acompanhado se irão colocar ao aplicador, em especial na
necessidade de assegurar o exercício daqueles para inclusão do
beneficiário no autogoverno dos seus interesses e afastar os riscos
de subordinação do beneficiário à vontade do acompanhante.
Pena, por isso, que alguma doutrina se mantenha arreigada à
comparação dos efeitos da incapacidade do decretamento da
medida de acompanhamento com a incapacidade de agir.
A medida de acompanhamento, enquadrada num sistema
mais amplo de salvaguarda de direitos e interesses da pessoa
maior, assume uma dimensão pública inerente ao objecto da
relação jurídica. Os direitos e interesses do beneficiário cumprem
uma função de poder e de garantia que exige um acesso real
a uma tutela jurisdicional efectiva, que garanta e promova os
direitos fundamentais sem discriminação, e as interferências e
intervenções na esfera jurídica jus-fundamental do beneficiário
têm que estar previstas na lei e respeitar os princípios da
subsidiariedade e proporcionalidade em sentido amplo,

102
Transcrevendo o artigo 142.º, n.º 5 do Código Penal: «5 — No
caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz,
respectiva e sucessivamente, conforme os casos, o consentimento é pres-
tado pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua
falta, por quaisquer parentes da linha colateral.»
378 • G ERALDO R OC H A RI B EIR O

delimitando, assim, os poderes funcionais do acompanhante.


Concluindo, o acompanhamento é um instrumento,
um meio para a plena realização dos direitos e interesses do
beneficiário. Não é um fim em si mesmo e deve ser visto como
concretização infra-constitucional e supra-legal dos direitos
fundamentais consagrados da Constituição e Convenção das
Nações Unidas (sem prejuízo da relevância da Convenção
Europeia dos Direitos Humanos). O sistema, na sua visão
global atenta a unidade da ordem jurídica, é garantia das
liberdades e direitos do beneficiário, devendo o sistema
do maior acompanhado assegurar a previsibilidade e não
arbitrariedade da intervenção estadual e do acompanhante
designado porque o sistema constrói-se objectivamente a partir
de uma intervenção restritiva. A interpretação das normas que
protegem direitos tem que ser feita a partir da afirmação e
promoção dos direitos fundamentais do beneficiário.
O sistema do maior acompanhado tem que se
construir enquanto realização da garantia de liberdade de
autodeterminação de interesses do beneficiário e tutela
contra intervenções paternalistas e heterodeterminadas dos
interesses daquele (103). A não se alcançar este desiderato, a se
limitar a uma aplicação estritamente formalista ou adaptada
de velhas práticas e métodos, estaremos a corporizar a
privação de direitos civis de pessoas a quem o Estado tem uma
obrigação fundamental de assegurar efectivamente a sua não
discriminação e a concretização da sua plena dignidade.
Posto isto, o novo regime deve consagrar um estatuto de
garantia e protecção dos direitos fundamentais da pessoa com
deficiência onde a distinção entre direito público e privado
não é essencial (104). Devem estes ser vistos como duas faces

103
Volker Lipp. „Rechtliche Betreuung“, 51-56, p. 56.
Guido Alpa. Diritto civile italiano. Due secoli di storia, Bologna: Il
104

Mulino, 2018, 570-571.


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da mesma moeda que, na garantia de harmonia interna do


sistema, assegurem o pleno desenvolvimento e afirmação
da pessoa com deficiência e não sirvam de fundamento de
subalternização desta.

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