Artigo Mirella Celeri

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Faculdade Santa Marcelina

Mirella Zilli Celeri

Canto Vivo: reflexões sobre expressividade na performance vocal

Trabalho apresentado como


requisito parcial para a conclusão
da pós-graduação lato sensu
Canção Popular: criação, produção
musical e performance sob
orientação da Profa. Dra. JOANA
MARIZ.
1
Canto Vivo: reflexões sobre expressividade na performance vocal

Mirella Zilli Celeri (Faculdade Santa Marcelina)

Resumo: O presente trabalho se propõe a investigar a possibilidade de construção


do que chamamos de um “estado de arte” na performance em canto popular. Para
isso, realizamos uma análise crítica comparada de textos escritos por intelectuais e
artistas das áreas da Performance, Música, Voz Cantada, Interpretação e Canção
que nos trouxeram um recorte sobre reflexões e práticas, nessa direção.

Palavras-chave:. Performance; Expressividade; Voz Cantada; Canto Popular;


Canção; Interpretação

1. INTRODUÇÃO

O que faz com que certos cantores nos levem a acreditar em cada palavra de
seu canto, durante cada segundo de uma canção? Como nos transportam, a partir
da sua voz cantada, por caminhos melódicos, para um “não-tempo” onde o que
cantam se transforma em “realidade” por alguns minutos? Como conseguem
provocar espanto1, euforia, tristeza, reflexão ou mesmo um instantâneo momento de
alegria, tirando-nos do transe cotidiano? Por que é tão comum ouvir adjetivos como:
sublime, mágico, místico, divino, relacionados ao canto de artistas que exercem tal
encantamento? Ainda que cada ouvinte seja dotado de uma experiência pessoal e
sensibilidade únicas, o que lhes proporciona diferentes percepções acerca de
objetos de arte, é fato que alguns cantores tem a capacidade de, efetivamente,
perpetuar esse encantamento, atravessando um sem fim de fronteiras físicas,
culturais, geracionais, estéticas e mercadológicas.

Esse canto é passível de construção? O que pode ser estudado, almejado ou mesmo
treinado na busca de um “estado de arte” pelo cantor popular? Quais seriam
possíveis reflexões e práticas para se construir uma performance vocal que tenha
um componente criador, e, portanto, transformador, em alguma medida?
1
Aqui nos referimos ao espanto que gera poesia, da fala do poeta, escritor e teatrólogo Ferreira Gullar,
em 2015: “ A poesia, como vejo, nasce do espanto”, que nesse caso, provocaria sensações no
ouvinte, remetendo-o a um estado poético.
2
Para tratar deste tema, acessaremos trabalhos de alguns estudiosos dos
campos da performance, interpretação, canto popular e canção. De suas
descobertas e reflexões nessas áreas de conhecimento, e, claro, longe da pretensão
de se encerrar o assunto, buscaremos extrair ideias e práticas que possam alimentar
a possível construção e execução de uma performance vocal expressiva, verdadeira
e artística.

2. EM TORNO DO CONCEITO DE PERFORMANCE

A tentativa de encontrar uma definição para o termo performance, para


apoiarmos nossa reflexão, mostrou-se uma iniciativa complexa. De realizar tarefas,
artísticas ou não, a sua equiparação ao conceito de desempenho, a palavra de
origem francesa chega a definir, até mesmo, o “modo sob o qual algo existe ou se
manifesta”2. A seguir, indicaremos algumas abordagens, que embora não sejam
conclusivas, nos ajudam a iluminar esse caminho.

Foi na Idade Média que Paul Zumthor, também historiador da literatura e


linguista, encontrou um período histórico para focar seus estudos sobre a oralidade.
A partir desses estudos, além dos trovadores de então, colocou-se em contato com
praticantes da voz de diversos continentes, desde os griots3 do Burkina-Faso, os
rakugoka4 do Japão, cançonetistas ou recitantes na Europa e

2
PERFORMANCE, in: Wikipedia .A palavra tem suas origens no francês antigo: parformance, de
parformer — accomplir — (fazer, cumprir, conseguir, concluir) podendo significar ainda levar alguma
tarefa ao seu sucesso. Palavra que se origina do latim, formada pelo prefixo latino per mais formáre
(formar, dar forma, estabelecer). (...) pode significar iniciar, fazer, executar ou desenvolver uma
determinada tarefa. (...). Segundo o Dicionário Aurélio per pode assumir o significado de movimento
através, proximidade, intensidade ou totalidade, (...) (1.ª ed.). Apresenta uma função de ênfase, como
em perambulante (per- + ambulante). O substantivo forma, também de origem latina, é registado no
Dicionário Aurélio (1.ª ed.) em dezessete significados distintos, destacando-se limites exteriores da
matéria de que é constituído um corpo, e que confere a este um feitio ou configuração particular. De
outra forma o define o Dicionário Etimológico de António Geraldo da Cunha, como modo sob o qual
uma coisa existe ou se manifesta (ex:configuração, feitio,feição,exterior)
3
GRIOT, In: Wikipedia. Também grafado griô; com a forma feminina griote, jali ou jeli (djeli ou djéli na
ortografia francesa), é o indivíduo que na África Ocidental tem por vocação preservar e transmitir as
histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo. Existem griots músicos e griots contadores de
histórias.
4
RAKUGO, In: Wikipedia. é um entretenimento japonês baseado em monólogos humorísticos, cujas
origens datam do século XVII. O humorista (Rakugoka) apresenta-se sempre em solo, sentado num
tatame sobre o palco (chamado Koza) e munido apenas de um leque de papel. Em geral as histórias
contadas envolvem longos diálogos entre dois ou mais personagens, sendo que a alternância das
falas é percebida pelo espectador apenas em função do tom de voz do ator, ou de um leve
3
América, chegando a ter contato, inclusive, com repentistas brasileiros. Deste
processo, o qual durou mais de quinze anos, desenvolve duas constatações:

A primeira se fundamentava em uma constatação empírica,


indefinidamente feita e refeita: é que a performance é o único modo vivo
de comunicação poética. O sentido que eu dou à palavra “vivo” vai se
explicar em seguida. Poderíamos, de forma mais mecanicista, dizer que
é o único modo eficaz. A segunda conclusão era que a performance é um
fenômeno heterogêneo, do qual é impossível dar uma definição simples.
(ZUMTHOR, 2007, p. 34)

E poética é a forma como ele descreve o que diferencia, a grosso modo, segundo
suas próprias palavras, um discurso poético, daquele que não o é. O poético,
segundo o autor:

...tem de profundo, fundamental necessidade, para ser percebido em sua


qualidade e para gerar seus efeitos, da presença ativa de um corpo: de
um sujeito em sua plenitude psicofisiológica particular, sua maneira
própria de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê, respira, abre-se
aos perfumes, ao tato das coisas. (ZUMTHOR, 2007, p. 35)

Essa presença ativa de um corpo, uma voz a emprestar sua maneira de


existir e se expressar, abre um espaço bastante amplo para o intérprete, razão pela
qual esses conceitos, performance e interpretação, são muitas vezes discutidos
simultaneamente por diversos autores. Assim, “diferenças na interpretação são
responsáveis pela riqueza e variedade na execução musical e podem ser
investigadas entre vários intérpretes ou entre várias instâncias de um mesmo
intérprete. ” (GERLING e SOUZA, 2000, p.115). Em sua tese de doutorado, a
cantora, compositora, instrumentista e educadora musical Regina Machado
compartilha relevante contribuição para o canto popular ao analisar os fonogramas
que registram interpretações de diferentes pares de cantores (as)

movimento com a cabeça. Rakugo significa, literalmente, "palavras caídas". O gênero humorístico foi
conhecido originalmente como karukuchi (piadas), adquirindo a atual denominação a partir do Período
Meiji (1867–1912).

4
para uma mesma canção, ao longo de oito canções. À luz da Semiótica da Canção
de Luiz Tatit, desenvolve e facilita o entendimento dos gestos vocais desses
cantores, em seus contextos musicais, associando as diferenças desses gestos aos
sentidos que criam ou valorizam, tratando do que denomina “Qualidade Emotiva”
dessas vozes, tema que abordaremos mais adiante.

Em capítulo dedicado aos Perfomance Studies5 do professor, pesquisador e


diretor de teatro Richard Schechner, a escritora Josette Féral considera que as
reflexões sobre a performance (o performativo) se inscrevem globalmente, nos
Estados Unidos, numa perspectiva que afirma que “a realidade não é percebida
como tal, mas através de interpretações, de construções de aspectos significantes.
(...). Essas interpretações devem ser multiperspectivadas (...)”
(FÉRAL, 2009, p.50), devendo levar em conta inúmeros pontos de vista ao mesmo
tempo, bem como sua contextualização. Sobre Schechner, diz que o mesmo
identifica oito tipos de performances, também não exaustivos, mas que cobririam
boa parte desse tipo de manifestação, a saber: situações cotidianas (como cozinhar
por exemplo), performances artísticas, ocupações esportivas/recreativas, situações
de trabalho, contextos tecnológicos, relações de sexo, rituais sacros e profanos e
jogos (FÉRAL, 2009, p.56). Segundo ele, essas categorias partilham características
comuns aos jogos e aos rituais, características estas que seriam o fundamento da
própria performance. Dos rituais, herdaria a natureza “espetacular”, as ações
representadas ou restauradas, as quais veiculam um sentido. Dos jogos, um estado,
atividade, uma “erupção de liberdade” ligada a regras, ou não, bem como a
descontração, o divertimento. A performance possui algo que Josette chama de
“falso”, conceito que considera importante para seu entendimento. Tal afirmação
também nos remete à ideia do sociólogo Émile Durkhein, segundo o qual todo
discurso é uma mentira que mais esconde do que revela, pois nunca daria conta de
cobrir todas as suas possibilidades de significados.

5
Estudos da Performance (tradução nossa). Título original do livro de Richard Schechner:
“Performance Studies: an introduction”
5
O ato de performar, segundo Schechner, está ligado a combinações de ações
evocadas a partir de quatro verbos/expressões: ser (being)/comportar-se(to behave),
fazer (doing), mostrar fazendo (showing doing), que seria como “sublinhar” a ação, e
explicar essa “exposição” do fazer (explaining showing doing). Neste último caso,
contemplaria o trabalho dos críticos, a refletir não só sobre o mundo da performance
como, também, sobre a performance do mundo. Assim, as performances seriam
feitas de “comportamentos representados, restaurados por ações que as pessoas
treinam executar, que praticam, que repetem” (FÉRAL, 2009, p.64).

“Único” modo vivo de comunicação poética, a partir da presença ativa de um


corpo, comportamento representado, o fazer que se mostra em forma de espetáculo,
o jogo, com sua liberdade e regras (ainda que a regra seja a “ausência de regras”), a
fruição, a comunicação de sentidos que contém uma multiplicidade de maneiras de
dizer, e também de ser recebida, a depender de um contexto/cultura. A partir destes
pontos de partida acerca do conceito de performance, seguimos.

3. SOBRE A “MÚSICA VIVA”

Um relato pessoal da infância de Paul Zumthor parece, literalmente, dar forma


aos conceitos que vimos e, segundo ele, também permaneceu subjacente ao que
ele ensinou durante sua vida. Ele narra que, a essa época (anos 30), as ruas de
Paris eram habitadas por diversos cantores de rua, pelos quais caminhava em suas
idas e vindas do subúrbio para o colégio onde estudava. Nesse relato, revela seu
prazer em assisti-los, junto com outras pessoas que se aglomeravam ao redor
desses cantores, interagindo com eles, em coro, a partir de folhetos com o texto da
música. Zumthor descreve a cena e também seu entorno, com a presença do
camelô, o som dos risos das meninas, as pessoas saindo de seus trabalhos, o céu
de Paris e suas cores no começo do inverno, entre outras sensações sobre o que
acontecia nesses momentos e que tinham uma força poética particular a partir de
sua visão. E diz que tudo isso fazia parte da canção.

6
Ao mesmo tempo, quando apenas lia o texto da música, via que sua ação não
suscitava essas sensações. Ao lembrar-se da sua melodia, no entanto, “ a ilusão era
um pouco mais forte, mas não bastava, verdadeiramente”. Desse modo, entendeu
que a “forma” era a regra. Que qualquer análise parcial da experiência, negaria a
essa “forma”. Ou seja, “ a forma não é regida pela regra, ela é a regra. Uma regra a
todo instante recriada, existindo apenas na paixão do homem que, a todo instante,
adere a ela, num encontro luminoso”. (ZUMTHOR, 2007, p.29)

Deslocando-nos para o nosso tempo, encontramos na produção musical


contemporânea exemplos de profissionais da área, cuja estética privilegia o que,
inspirados em Zumthor, poderíamos chamar de “música viva”.

A ECM Records (Edition of Contemporary Music), selo alemão dedicado à


música contemporânea, tem, através da visão de seu fundador, Manfred Eicher, um
modus operandi para a produção de álbuns, que envolve gravar suas músicas ao
vivo, em no máximo dois dias, e mixá-las em apenas um dia. Para Eicher, é mais
importante o som produzido no momento da performance e as ideias musicais que
podem surgir durante este fazer, do que a “perfeição” perseguida em repetidas
gravações ou edições que acabam por criar um novo produto sonoro. Desse modo,
o renomado selo estabeleceu sua reputação em torno de gravações que se tornaram
referências como as de Keith Jarrett, Chick Corea, Egberto Gismonti e Meredith
Monk, para mencionar alguns. Muitos álbuns deste selo são referidos como
“clássicos”, o que, independentemente da estética, de alguma forma demonstra um
tipo de música que, reverbera ao longo do tempo e cujo feitio se assemelha ao
próprio conceito de performance.

No Brasil, temos o exemplo de André Magalhães, que depois de cinquenta anos de


carreira como músico, educador, produtor musical/cultural e pesquisador de cultura
popular, lançou seu primeiro álbum, “Para Ti – Batuque e Melodia dos Cantos” (Selo
Circus – 2019). Para realizar este trabalho, descrito como “autobiográfico e étnico
cultural”, visto que visita e celebra os encontros e experiências musicais que teve ao
longo de sua trajetória, relata que para criar, buscou como inspiração a recordação
de momentos em que se emocionara de forma profunda. E nos conta sobre a voz da
cantora Luizinha da Tenda São José, a quem pediu, certa vez, que lhe cantasse algo
de improviso, como era de costume

7
para ela. E Luizinha cantou o que lhe veio no momento, melodia e letra preenchidas
por uma voz expressiva, o que foi captado pelo gravador de Magalhães. Cerca de
quinze anos depois esse fragmento de voz o inspirou a criar de uma dupla de
músicas (“Ondas ao Mar” e “Ondas do Mar”) que compõe esse álbum. Em
entrevista, o músico conta este caso, assim como revela a importância do acaso na
sua realização musical e da abertura que julga necessária como postura para que se
possa receber e criar música. Assim, a resultante musical de seu álbum se alinha
com seu gatilho mercadológico: “Você já sentiu música? ”. Veremos mais adiante,
com Clara Bastos, a idéia do corpo alojar conhecimento através dos sentidos diante
das experiências vividas. Essa apreensão de conhecimento não necessitaria da
racionalidade, atributo o qual nos acostumamos a separar, como entidade distinta,
das sensações. Essa postura de disponibilidade para receber e criar música, como
prega Magalhães, estaria atrelada ao “estado de presença” e seria, também,
importante elemento formante do ato da performance.

O que esses exemplos de produção musical nos sugerem,


independentemente da estética, é que parece existir algo “mágico” no momento da
performance e que isso faz parte da criação não só de diferentes estéticas, mas de
um fazer musical poético, ainda que haja posterior manipulação ou montagem a
partir desse som, como no caso de Magalhães. Depreendemos que desse momento
haja algo que possa se refletir na expressividade do cantor, à maneira do ator e do
bailarino, em que a ação artística se materializa durante “instantes” e termina, para
nunca mais acontecer da mesma maneira. Que nele resida o “encontro luminoso”
com a paixão do corpo vivo do músico que a ele adere. Encontro que almejamos
através do canto.
8
4. SOBRE A EXPRESSIVIDADE

Para tratar sobre a expressividade, recorremos a ideias de artistas que


também atuam como educadoras musicais, com o intuito de contemplar a possível
construção dessa qualidade. Iniciamos com as reflexões da compositora, saxofonista
e educadora musical espanhola Chefa Alonso, as quais comentaremos a partir de
trabalhos diretamente ligados ao canto popular. A crença de Alonso acerca da
eficácia no ensino musical, e que vamos generalizar para o fazer musical, contempla
três fundamentos. O primeiro é de que o repertório do praticante de música esteja
vinculado ao mundo contemporâneo. Ainda que confirme o valor de se estudar a
cultura e a música do passado, considera imprescindível que o estudante inclua em
seu repertório músicas de seu tempo. Assim, conseguiria expressar sua maneira de
ver a vida, seus desejos e expectativas estéticas, aprendendo mais sobre si mesmo.
De fato, parece natural que as músicas de um tempo se comuniquem de forma mais
assertiva com as pessoas desse tempo e que esse fator seja algo a ser considerado
na busca de um canto que “tenha o que dizer” nesse tempo. Essa idéia corrobora
com o próprio
conceito de Zeitgeist6, segundo o qual, por natureza, a arte reflete a cultura de uma
época, sendo o artista/performer seu agente.

A segunda variável (para eficácia no ensino/fazer musical) seria considerar as


peculiaridades de cada indivíduo, suas necessidades expressivas, sua cultura
musical e sua maneira de aprender. Sobre esse conceito e sua relação com a
técnica, afirma que:
6
ZEITGEIST, in: Wikipedia é um termo alemão cuja tradução significa espírito da época ou sinal dos
tempos, mas, em uma tradução mais apurada: espírito do tempo. O Zeitgeist significa, em suma, o
conjunto do clima intelectual, sociológico e cultural de uma pequena região até a abrangência do
mundo todo em uma certa época da história, ou as características genéricas de um determinado
período de tempo. (…) Hegel acreditava que a arte reflete, por sua própria natureza, a cultura da
época em que esta foi feita. Cultura e arte são conceitos inseparáveis porque um determinado artista é
um produto de sua época e, assim sendo, carrega essa cultura em qualquer trabalho que faça.
Consequentemente, ele acreditava que no mundo moderno não seria possível recriar arte clássica,
que havia surgido do Zeitgeist em que os artistas clássicos viviam; ou seja, durante a Antiguidade
Clássica. A arte clássica dependia puramente da filosofia e da teoria da arte, sem o acréscimo feito
pelo Zeitgeist do mundo moderno, de uma função social moralizante.

9
O ensino acadêmico convencional, basicamente associado à cultura
escrita e à crença de que só existe uma boa maneira de aprender e de
ensinar, centra-se, acima de tudo, em se conseguir uma técnica
adequada para interpretar “corretamente” a música escrita e se esquece,
muitas vezes, das necessidades expressivas do músico, criando uma
separação entre a técnica instrumental e a expressividade individual. (…)
A técnica só ajuda a diminuir essa distância (entre o que o músico sente
e o que pode expressar) quando se coloca em função das necessidades
expressivas de cada indivíduo (ALONSO, 2008, p.53; tradução nossa)7

Entretanto, parece haver uma obsessão, que se estende desde as artes ditas
eruditas às populares, onde a busca pela técnica com finalidade de se atingir o “jeito
certo” de fazer música, ou pela performance que impressiona pela rapidez com que
um músico é capaz de tocar seu instrumento ou pela extensão e potência de uma
voz, por exemplo, é, em parte, apoiada por uma falta de formação cultural que
compreenda a arte e seu papel na humanidade, como aponta a cantora e professora
Joana Mariz em artigo sobre expressividade. Assim sendo, apenas ignora a
grandeza de outros tipos de manifestação artística menos, digamos, “pungentes”.

Por fim, a terceira variável que Alonso considera fundamental no ensino


musical é o estudo da improvisação, que iremos enxergar a partir de seu caráter
“explorador” e “libertário” para pensá-lo no contexto do canto popular. Segundo
Alonso, “Através da improvisação se aprofunda a relação entre o músico e o
instrumento, já que o estudante tem que fazer uma exploração e uma investigação
pessoal das possibilidades que seu instrumento lhe oferece”8(ALONSO, 2008, p.58
tradução nossa).

Ao entregar-se à experiência da performance, o músico precisa enfrentar


imprevistos e tomar decisões, o que envolve correr riscos, situação que a autora

7
“La enseñanza académica, básicamente asociada a la cultura escrita y la creencia de que sólo existe
una buena manera de aprender y de enseñar, se centra, sobre todo, en conseguir una técnica
adecuada para interpretar “correctamente” la música escrita, y se olvida, muchas veces, de las
necesidades expresivas del músico, creando una separación entre la técnica instrumental y la
expresividad individual.” (…) “La técnica sólo ayuda a disminuir esa distancia (entre lo que siente y lo
que puede expresar) cuando se pone en función de las necesidades expresivas de cada indivíduo.”
8
“A través de la improvisación se profundiza la relación entre el músico y el instrumento, ya que el
estudiante tiene que hacer una exploración y una investigación personal de las posibilidades que su
instrumento le ofrece.”

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compara ao próprio transcurso da vida. Segundo Alonso, os erros são materiais
puros, frutos do inconsciente do músico e podem servir como inspiração. Ao serem
“aceitos”, podem servir de estopim para soluções criativas. Ao mesmo tempo,
explorar novos sons através do instrumento, a voz, no nosso caso, parece poder
contribuir para a ampliação de um repertório de gestos vocais, os quais, trazidos ao
campo do “conhecido” em termos sonoros e musculares, poderiam ser acionados
por ele para servir a possíveis necessidades expressivas. A curiosidade seria
combustível para essa investigação.

Acessando saberes da pedagogia vocal no canto popular, Mariz, comenta


sobre a experiência da cantora e professora Consiglia Latorre, a qual propõe a seus
alunos a imitação a partir de grandes referências da música popular. Latorre acredita
que, assim, os alunos possam chegar à depuração de um estilo próprio. Sobre o
recurso da imitação, entendemos que além da exploração de sons, ele traria um
componente lúdico que é compatível com o momento vivido na performance. Mariz
compartilha, ainda, a abordagem de Regina Machado, segundo a qual no canto
popular brasileiro, cabe a busca de uma marca vocal bem definida. Para isso,
Machado privilegia o uso de trechos de canção popular como estratégia de estudo,
onde vemos a aproximação da busca da expressividade junto ao próprio objeto da
performance. Mariz arremata essas ideias, declarando que ambas reafirmam a
importância de o cantor reconhecer sua descendência com relação a uma linhagem
artística em que o cantor se insira e a qual possa expandir. Para isso, nos
lembramos da fala de Machado sobre a escuta pautada pela admiração. Buscar
responder sobre quais cantores (as) nos emocionam e por que, nos ajudariam a
reconhecer a nossa própria busca.

Pelo que pudemos refletir ao longo das estratégias no ensino de música e


canto dessas importantes referências, certamente calcadas, também, em suas
experiências como performers, buscar um caminho pessoal de expressão com
finalidade do fazer artístico, envolve uma construção complexa. Envolve a escuta do
que veio antes, o entendimento da descendência artística e também um olhar para a
música de seu tempo. Envolve aventurar-se na experimentação de sons que seu
próprio corpo pode emitir ou aprender e a busca de uma maneira própria de se
dizer/cantar a partir do que se ouviu e experimentou. Envolve a prática, onde vai
efetivamente colocar-se à disposição da canção, o desfrute e o cultivo de um
11
espírito de curiosidade, que acreditamos não se restringir ao campo da música, mas
que pode se enriquecer, também, pela apreciação de outras linguagens artísticas.
Finalmente, mas sem afirmar que a busca termina aqui, envolve a reflexão sobre
como o canto se insere num contexto cultural mais amplo, onde o cantor que se
pretende artista, tem um papel que, a partir dele, pode reverberar, gerando
transformações.

5. TESOUROS D´O CANCIONISTA

Sendo a canção o material sobre o qual o cantor popular irá se debruçar para
realizar o seu trabalho interpretativo, acreditamos na importância de se estudar esse
objeto de arte que reside na cultura e no afeto de todo brasileiro, independentemente
de sua preferência estética. “Além de construir a identidade sonora do país, (a
canção) se pôs em sintonia com a tendência mundial de traduzir os conteúdos
humanos relevantes” (TATIT, 2004, p.11). Ou seja, também compõem o “espírito” do
seu tempo. Assim, à medida em que ouvimos e repetimos a escuta das canções,
reiteramos esses conteúdos, fazendo reverberar as sensações que nos provocam.
Mas de que forma essas sensações são fomentadas?

Neste tópico, apontaremos o olhar para as reflexões feitas por Luiz Tatit em
seu livro “O Cancionista”, onde o compositor, músico, linguista e professor
universitário sintetiza conceitos complexos de forma a demonstrar o papel do
compositor: com que recursos ele cria a canção, que orientações atribui a ela e qual
o papel do cantor nesse processo, pela lente de sua “Semiótica da Canção”.

Sobre o compositor, Tatit afirma que este é portador de um “modo de dizer”: não é “ o
quê”, mas o “como” ele cria que faz com que a letra se reitere, assemelhando-se à
fala cotidiana. E adiciona que ele equilibra os elementos melódicos, linguísticos, os
parâmetros musicais e a entoação coloquial, como que sem esforço. Sobre o cantor,
considerado por ele como sendo, também, um cancionista, afirma que ele seria o
portador de gestos vocais, que aprimoram ou modificam o projeto do compositor, o
que aprofundaremos a partir da fala de

12
Luciano Berio e do trabalho de Regina Machado, este último em diálogo com o
vocabulário cancionista.

Segundo Tatit, o entendimento sobre possíveis modos de dizer se encontra na


forma como o cancionista articula a integração entre a melodia e a letra. Na canção,
as vogais são vistas como campo para o possível prolongamento de notas,
enquanto as consoantes fragmentam as frases, e a depender dessa articulação e de
como esses elementos se reiteram, vão gerar o que ele chama de passionalização
ou tematização.

À medida em que o compositor utiliza recursos como: prolongamento de


vogais, saltos intervalares, ampliação de tessitura, ele acaba por reduzir o
andamento e destacar o contorno melódico. Ao fazê-lo, demonstra um desejo de não
estar sob ação da paixão, em virtude de uma disjunção entre o sujeito e o objeto, ou
mesmo da falta de um objeto. Daí sua compatibilidade com canções sobre disjunção
amorosa, por exemplo. Nesse caso, privilegia a linearidade da melodia, levando o
ouvinte para o estado em que se encontra, a modalidade do “ser”, convidando-o à
inação.

Quando faz o caminho “inverso”, reduzindo a duração das vogais e as


variações de frequência, acaba por aumentar o andamento, fragmentando a melodia
a partir das consoantes. Nessa não-linearidade, gera motivos melódicos, com
periodicidade nos acentos, reiteração dos temas, que acabam por convidar o corpo a
participar dessa conjunção. Sentimos, assim, “aquele” impulso de bater os pés, de
mexer o corpo em sintonia com o ritmo da canção. Nesse caso, a ação toma a frente
da expressão e estamos diante da modalidade do “fazer”. Essa modalidade seria
propícia às construções de personagens e exaltação de valores
universais ou valores-objeto, a pátria, a música de um povo, entre outros.

Acreditamos que a mera observação dessas modalidades, as quais podem,


inclusive, coexistir numa mesma canção, quando da escuta musical, já possa ajudar
o cantor a desvendar possíveis motivações do compositor ou dos personagens da
canção, favorecendo a construção da sua interpretação. Neste caso, a percepção do
cantor, baseada na sensação que a canção lhe desperta, poderia se associar a um
aspecto tido como racional para melhor se integrar ao projeto da canção, sendo
recurso na preparação da performance.
13
Outro conceito abordado pelo autor, e que estrutura aquilo que considera
como a naturalidade na canção, é a figurativização, que seria o “processo geral de
programação entoativa da melodia e de estabelecimento coloquial do texto” (TATIT,
1996, p. 21). “A melodia entoativa” seria, então, “o tesouro óbvio e secreto do
cancionista. (TATIT, 1996, p.11) É através da figurativização que ouvimos a voz que
fala na voz que canta. A percepção de que a linha melódica possa corresponder a
uma inflexão entoativa criaria o que Tatit chama de “verdade enunciativa” e esse
processo acarretaria no aumento de confiança por parte de quem ouve, naquele que
compõe. Naturalmente, essa característica está ligada à musicalidade da língua em
questão. Do trecho abaixo, podemos capturar como o autor enxerga o processo que
leva o cancionista na direção da eficácia da canção e também, a participação do
cantor nessa direção:

Da fala ao canto há um processo geral de corporificação: da forma


fonológica passa-se à substância fonética. A primeira é cristalizada na
segunda. As relações in absentia materializam-se in praesentia. A gramática
linguística cede espaço à gramática de recorrência musical. A
voz articulada do intelecto converte-se em expressão do corpo que sente.
As inflexões caóticas das entoações, dependentes da sintaxe do texto,
ganham periodicidade, sentido próprio e se perpetuam em movimento
cíclico como um ritual. É a estabilização da frequência e da duração por
leis musicais que passam a interagir com as leis linguísticas. Aquelas
fixam e ordenam todo perfil melódico e ainda estabelecem uma
regularidade para o texto, metrificando seus acentos e aliterando sua
sonoridade. Como extensão do corpo do cancionista, surge o timbre da
voz. Como parâmetro do afeto investido, a intensidade.

A voz que canta prenuncia, para além de um certo corpo vivo, um corpo
imortal. Um corpo imortalizado em sua extensão timbrística. Um corpo
materializado nas durações melódicas. É quando o cancionista
ultrapassa a realidade opressora do dia-a-dia, proporcionando viagens
intermitentes aos seus ouvintes. É quando o cancionista tem o poder de
aliviar as tensões do cotidiano, substituindo-as por tensões melódicas,
em que só se inscrevem conteúdos afetivos ou estímulos somáticos.
A voz que fala, esta sim prenuncia o corpo vivo, o corpo que respira, o
corpo que está ali, na hora do canto. Da voz que fala emana o gesto oral
mais corriqueiro, mais próximo da imperfeição humana. É quando o
artista parece gente. É quando o ouvinte se sente também um pouco
artista.

Dessa singular convivência entre o corpo vivo e o corpo imortal brotam o


efeito de encanto e o sentido de eficácia na canção popular. (TATIT, 1996
p.15)

14
Ao revelar as suas descobertas a partir dos elos entre a melodia e a letra na
canção, Tatit nos leva a reconhecer neste enlace, possíveis sentidos a serem
expressos através dela, assim como o impacto que os recursos entoativos tem na
eficácia da canção e, consequentemente, a manipulação dos elementos prosódicos
pelo cantor. Assim, o autor oferece ao cantor novas perspectivas a serem
trabalhadas na construção da sua performance. Adicionalmente, ao conferir
ao cantor um poder criador, que, a seu ver, emerge a partir do timbre, e que o
“imortaliza”, gerando o encantamento ou “estado de arte, Tatit nos incita o desejo de
ir além deste atributo da voz, para adentrar um pouco mais nas camadas que estão
por baixo deste cantar.

6. O SOM DA PESSOA9

A música vocal mais significante das últimas poucas décadas, (tem


investigado) a possibilidade de explorar e absorver musicalmente a face
total da linguagem. Afastando-se da articulação puramente silábica do
texto, a música vocal pode tratar a totalidade das suas configurações,
incluindo a fonética e os sempre presentes gestos vocais. Pode ser útil
para o compositor lembrar que o som de uma voz é sempre uma citação,
um gesto. A voz, não importa o que faça, mesmo o barulho mais simples,
é inescapavelmente cheia de sentido: sempre engatilha associações e
carrega nela mesma um modelo, tanto natural quanto cultural. (...) a voz
humana, por sua natureza, está sobrecarregada com traços de
experiências musicais e não musicais e associações quotidianas. (BERIO
apud HERR, 2006, p. 20).

Se a voz, por si só, já é portadora de significados, e “a expressividade vocal é


um patrimônio de todos os falantes, intrinsecamente cantores potenciais” (MARIZ,
2016 p.128), como o cantor profissional, na condição de intérprete, realiza a
mediação de sentidos da canção? Como se prepara e executa a performance de
maneira a traduzir um “estado de arte”? Quais são possíveis considerações sobre o
que é eficiência na performance cantada?

9
Título de canção do Gilberto Gil.
15
Em trabalho sobre a pesquisa e preparação que antecede a performance
musical, a cantora lírica, regente coral e educadora musical Martha Herr compartilha
o que acredita serem passos na busca da eficiência na performance. Herr define o
canto como “uma arte performática de forte base intelectual e científica, (base) que
serve para informar a inspiração artística” (HERR, 2007, p.7). Seu entendimento
sobre eficiência na performance é a “obtenção do efeito visado” ou “a legitimação do
desempenho, de acordo com objetivos pré-determinados pelo performer, sejam
esses objetivos técnicos, expressivos, estéticos ou outros” (HERR, 2007, p.13).
Complementa sua crença com citação de Pareyson: “não se espera que o intérprete
deva chegar a algum tipo de “verdade” definitiva, mas que apenas execute a obra
verdadeiramente. ” (PAREYSON apud Apro, 2006, p.28). Nesse caso,
“verdadeiramente”, segundo seu entendimento, também seria “eficientemente”.

O pensamento de Herr caminha no sentido de que é preciso “organizar


dados”, conectando o que está disperso para se construir uma performance e que
sua eficiência está diretamente atrelada ao “arranjo dessas informações”, assim
como Tatit vê a eficiencia na canção a partir da forma como o cancionista articula a
melodia e a letra, manipulando os recursos entoativos (ainda que esses processos
aconteçam de forma intuitiva). A cantora crê que é na complementação da
informação contida na partitura, a partir do “Instinto Musical Informado” (expressão
criada pela autora) pela pesquisa e pelo estudo, que o artista “dá a chispa de
inspiração” que completa a performance musical e o leva “além do nível de
competência profissional para o de expressão ou realização artística”, que temos
chamado de “estado de arte”. Em outros termos, parece crer que esse estado seria
consequência do arranjo de informações, que, filtrados pelo instinto do artista, o faria
viabilizar um desempenho de acordo com o efeito previamente estabelecido. Quanto
ao tipo de informação a ser considerada nesse preparo, começa pelo o
entendimento sobre a relação texto-música, corroborando com o caminho traçado por
Tatit. Na sequência, menciona a escolha do timbre, ou “colorido” vocal, exaltando a
plasticidade deste atributo, o qual pode ser usado a favor da expressão desejada, o
que também será confirmado por Machado. No mais, comenta a possibilidade de
inclusão de elementos teatrais, uso de técnicas estendidas e /ou, de elementos
eletroacústicos, quando aplicável e, também, o

16
que chama de “estrutura musical”, que define como o preparo musical do cantor,
propriamente: a repetição, o treinamento para refinamento escuta e da memória
muscular que “mantém as notas no lugar”. Enfim, a partir dessa organização de
informações, e portando a intenção de performar de maneira verdadeira, o instinto
musical do artista se encarregaria de acender a inspiração. Interessante observar
seu modo de pensar o preparo do cantor para a atuação. Sendo uma musicista
erudita, decerto que há uma expectativa geral acerca da técnica, “adequação” de um
modo de cantar de acordo com determinado repertório, entre outros aspectos, o que,
sob o ponto de vista de Alonso, ganha uma visão mais libertadora no sentido da
espontaneidade da expressão do artista. Outro ponto que nos desperta a atenção é
a crença na obtenção de um efeito visado, que se contrapõe com a singularidade do
momento vivido na performance, e que jamais se repete e que veremos se
relacionar em fluxo com o seu entorno. Mesmo assim, à sua maneira, Herr considera
as “chispas de inspiração”, as quais efetivamente experimentou nas suas
performances como cantora.
Assumidamente cancionista, Machado pondera que o cantor popular
manipulará aspectos da voz para conferir credibilidade ao canto. Segundo a autora,
a produção de sentido se reconfigura no seu gesto interpretativo e ele manipulará
aspectos da voz para alcançar esse resultado. Esses aspectos, que ela denomina
“níveis da voz” se referem aos níveis físico (inerentes à natureza da voz, como a
extensão e tessitura, registros vocais e timbre), o nível técnico (relativo à fonação e
ressonância) e o nível interpretativo (através do qual o cantor manipula a articulação
rítmica, o timbre e finalmente, o gesto interpretativo). Este último culmina na
materialização da compreensão do cantor diante da composição. Fazendo escolhas
na fonação e ressonância, timbre, articulação rítmica e também a partir da
capacidade entoativa, o cantor cria um gesto, que a autora denomina como sendo a
“Qualidade Emotiva” da voz. Assim, o cantor pode fazer uso (ou não) de vibrato para
exaltar um estado passional, pode realizar transposições de registro (ou não) para
exaltar aspectos disfóricos, escurecer o timbre para comunicar introspecção, fazer
uso de um canto que se aproxima da voz falada para melhor “convencer” acerca de
determinada mensagem, entre tantas outras possibilidades que não se revelam
como regras, mas formas de o artista manipular os gestos vocais de acordo com o
seu modo de dizer.

17
Para interpretar uma canção, então, o cantor percorre um processo através
do qual escolhe sua tonalidade, o que viabilizará uma resultante em termos de
sonoridade a ser compatibilizada com os conteúdos da canção. A partir dessa
escolha, define, também, o aspecto timbrístico da voz, considerando, também, a
escolha do andamento e do arranjo musical como ingredientes que influenciarão a
ação vocal.

Sobre expressividade e timbre, inserimos um “parêntesis”. Machado defende


que cantores que apoiaram suas vozes na condição natural de seus timbres, o que
obviamente pode incluir uma opção não só estética, mas mercadológica, ficaram
aquém da significação que poderiam imprimir em seus cantos. E que os que
demandavam um desejo expressivo de ir além dessa condição, fazendo uso de
entoações faladas e manipulando o timbre, puderam expandir o gesto interpretativo.
Nesse ponto, Herr e Machado convergem no sentido de que a escolha do timbre é
bastante relevante em seus efeitos na interpretação. A exemplo disso, podemos citar
as cantoras Cathy Berberian e Gal Costa, que usaram ou usam da plasticidade de
seus timbres (além de outros tantos atributos) para dar voz a diferentes repertórios,
épocas, emoções e estéticas. Ainda sobre timbre, Machado complementa que a sua
manipulação pode alcançar alterações significativas, gerando uma “descontinuidade
na escuta” que seria fator de informação, atraindo a atenção do ouvinte.

Somados à manipulação dos aspectos da voz para traduzir sentidos inscritos


na canção, Regina aponta, ainda, que a eficácia nessa comunicação se baseia na
forma como “a inteligência sensível dos intérpretes se posicionou para criar um
gesto vocal capaz de expressar emoções e conduzir o ouvinte por estados emotivos
compatíveis” (MACHADO, 2012. p.61). E assim, complementando a Semiótica da
Canção de Tatit, sistematiza os regimes para o que denomina “Qualidade Emotiva
da Voz” da seguinte maneira:

18
Passional : quando predominam durações vocálicas, muitas vezes
cobertas por algum tipo de vibrato, e a expansão pelo campo da tessitura
com utilização de diversos sub-registros vocais, à maneira de Dalva de
Oliveira em “Ave Maria no Morro”10;
Passional Figurativizada : quando aos valores da passionalização soma
se a presença da fala, criando interjeições que reforçam a dramaticidade
da interpretação; como João Gilberto em sua interpretação para a mesma
“Ave Maria no Morro”11
Passional Tematizada: quando os valores da passionalização somam-se
às reiterações motívicas, os ataques consonantais, ao modo de Tom
Jobim em “Samba do Avião”12
Tematizada: quando predominam as reiterações e recortes rítmicos com
pouca expansão pelo campo da tessitura e’ utilização restrita dos sub
registros vocais, como Gilberto Gil em sua interpretação para o “Samba
do Avião”13;
Tematizado Passional: quando às reiterações e os recortes rítmicos
somam-se a expansão pelo campo da tessitura e as durações vocálicas
(...) ao feitio de Ná Ozzetti em sua versão para “Na Batucada da Vida”14;
Tematizada Figurativizada: quando soma-se a fala aos valores da
tematização, à maneira de Carmen Miranda, na mesma “Na Batucada da
Vida”15 (MACHADO, 2012, p.157)

A partir do reconhecimento da “Qualidade Emotiva” da voz, na escuta atenta


de diferentes interpretações de canções, podemos ampliar o entendimento sobre
como esses intérpretes acionaram seus gestos vocais, à sua maneira, e como essas
escolhas comunicam os sentidos inscritos na canção, configurando novo campo de
aprendizado que não somente é trazido à consciência, como também pode ser
experimentado no estudo, no desenvolvimento de uma identidade vocal e, claro, na
performance.

Observamos uma característica comum às perspectivas apresentadas por


Tatit, Herr e Machado à medida em que ao se aproximarem do momento em que
ocorre o “estado de arte”, ademais da forma como estruturam a preparação ou
entendimento da performance e da canção, fazem o uso de expressões que revelam
a integração de elementos aparentemente opostos. Tatit menciona o encontro do
corpo mortal com o corpo “imortal” como sendo o instante em que o

10
Composição de Herivelto Martins, fonograma da Revivendo Discos (1942)
11
Idem anterior, fonograma da Polygram/Phillips (1991)
12
Composição do próprio Tom Jobim, fonograma da Phonogram/Phillips (1971)
13
Composição de Tom Jobim, fonograma da WEA (1977)
14
Composição de Ary Barroso e Luiz Peixoto, fonograma da MCD (2009)
15
Idem anterior, fonograma da Revivendo Discos (1934)
19
encantamento acontece. Herr faz alusão ao “instinto informado” que eleva o
performer para o nível de expressão artística, enquanto Machado valoriza a
“inteligência sensível” do cantor como virtude para a manipulação da voz na busca
por adentrar o campo sagrado da realização artística, que nenhuma análise seria
capaz de elucidar.

7. PELOS SETE BURACOS DA MINHA CABEÇA16

Diante daquilo que pode ser construído e o “lugar” sagrado onde a arte
acontece, ainda reside o corpo do artista. E através dele, nos voltamos para um
intrigante elemento que constitui a performance: a presença. Ou, melhor dizendo, o
estado de presença. A contrabaixista Clara Bastos, que conta com a prerrogativa de
ter participado de performances musicais ao lado Itamar Assumpção, inclusive,
defende que o estado de presença é um dos aspectos formantes da performance
musical, a qual, incorporando esse estado, de forma consciente, pode ampliar os
efeitos da atuação artística, no músico e, consequentemente no ouvinte. O efeito que
ora chamamos de “mágico”, ora de eficácia, ora “estado de arte”, o tal “algo mais”
que buscamos, parece se alimentar desse estado para acontecer.

Está sendo pressuposto aqui o fato de que na performance de um artista


músico haveria uma ação que pode ser conscientemente almejada, além
de toda a preparação prévia: a obtenção de um “estado de presença”.
Esse estado seria essencial para uma performance viva, isto é, uma
performance que além de conseguir manter agregados todos os
elementos necessários para sua efetivação, possa dotar-se de uma força
extra, capaz de alcançar níveis artísticos mais significativos.

Além de acionar todos os conhecimentos prévios obtidos através das


práticas usuais de estudo, dadas em situações privadas, o “estado de
presença” colocaria em atuação as percepções extramusicais referentes
a ações corporais, aspectos de cognição, à respiração, ao seu entorno. ”
(BASTOS, 2019, p.14)

16
Expressão contida na letra da canção “A Tua Presença Morena” de Caetano Veloso.
20
Para apresentar a ideia de presença/estado de presença, a autora recorre a
estudiosos das áreas da cognição, filosofia, neurologia e biologia, iluminando novos
caminhos para a reflexão sobre a performance. Um dos autores acessado por
Bastos é o teórico literário e filósofo Hans Ulrich Gumbrecht, que pondera que a
partir da Idade Média começamos a submergir, gradativamente, na “cultura de
sentido”, que privilegia o pensamento, a busca pelo porquê das coisas em
detrimento de uma “cultura de presença”.

Se a mente é a autorreferência predominante, está implícito que os seres


humanos se entendem como excêntricos ao mundo (...), enquanto nas
“culturas de presença” os seres humanos consideram que seus corpos
fazem parte de uma cosmologia (...). Nesse caso não se veem como
excêntricos ao mundo, mas como parte do mundo (GUMBRECHT apud
Bastos, 2019, p. 27)

Diante desse ponto de vista, as sensações que o corpo assimila, seriam


menos importantes do que descrevê-las a partir de um raciocínio lógico. Ao mesmo
tempo que evidencia a condição em que moldamos nosso modo de pensar,
Gumbrecht não defende a cultura de presença em detrimento da cultura de sentido.
Outrossim, acredita no equilíbrio e a alternância entre ambas, o que nos parece
oferecer uma visão mais integrada da nossa existência. Ao mencionar Wania Storolli,
Bastos aponta que a artista e pesquisadora na área da voz e performance avalia que
“a ruptura desse padrão de entendimento reconhece a operação da mente como
uma rede emergente e autônoma e não como um fluxo de informação entre o interior
e o exterior, a partir de um aparato input-output.”. (BASTOS, 2019, pag.20). Bastos
também compara essas ideias a outras reflexões de Zumthor que afirmam que a
cognição não pode deixar de ter em conta o valor da experiência, pois os sentidos, a
visão, a audição, o tato, o olfato e o paladar, seriam não somente órgãos de registro,
mas também órgãos de conhecimento. Aprender com a própria experiência parece
ser uma premissa da própria vida, a imprimir conhecimento nesse “sistema” feito de
corpo e alma. Isso nos leva a reconhecer o impacto da performance o tanto no
“sistema” de quem a realizar, tanto quanto no de quem a recebe, através de todos os
seus sentidos.

21
Buscaremos aproximar o entendimento sobre presença e performance a
partir dos autores acessados, para em seguida, dar enfoque para o “estado de arte”,
como uma nova perspectiva. Ao discorrer sobre a presença, cuja definição parece
tão difusa quanto a da própria performance, Gumbrecht informa que a primeira
possui substância, ocupa espaço e “se revela sendo”, assim como o corpo. Ou seja,
se aproxima da forma como Schechner e Zumthor a compreendem. Do primeiro,
herda a convocação dos verbos de ação com base no “ser” (being), “fazer” (doing) e
o “mostrar fazendo”, que sublinharia a ação. Do
segundo, a ideia de materialidade contida no ato performático e que necessita do
que denomina como sendo “presença ativa de um corpo”. Com relação ao que
chamamos de “estado de arte” na performance, Zumthor a denominaria de
“experiência poética”, enquanto Gumbrecht a descreveria como “momento de
intensidade”. Já Peter Brook, estudioso da área do teatro acessado por Bastos, esse
momento em que o ilógico irrompe seria chamado de “arrebatamento”.

Como, então, acessar conscientemente o estado de presença, essencial para


que esse momento “mágico” ocorra? Gumbrecht responderia que através de uma
atitude de redenção, no sentido de “nos desobrigarmos de seguir o movimento
constante que nos é imposto externamente” (GUMBRECHT, apud Bastos, 2019,
pág.31), entrando num fluxo que nós mesmos acionamos e para o qual nos
entregamos. A predisposição a fazê-lo, nos levaria para um estado onde a alegria se
manifesta no corpo, também arrebatado por esse fluxo, como a sensação de prazer
que o performer sente após a realização artística. Ou seja, no desejo de construir
uma performance que possa ter um componente que transporte o ouvinte para uma
“nova realidade” de onde possa observar a poesia da vida, é preciso ter a
pré-disposição a se entregar de antemão. A prática da improvisação, apregoada por
Chefa Alonso e também mencionada por Bastos, também contribuiria para acessar o
estado de presença. A contrabaixista se vale, também, de estudos realizados em
torno dos efeitos que a meditação pode gerar no cérebro, os quais seriam similares
ao estado de presença. Assim, a meditação, amparada por mais um estudo
mencionado por Bastos, desta vez com foco na fisiologia da meditação por Roberto
Serafim Simões, facilitaria a atenção focada, estado de atenção plena “exigido” na
performance musical. Depreendemos que a meditação, ademais de outros
benefícios adicionais, poderia ser uma prática que

22
facilitaria a percepção desse estado pelo corpo, através dos sentidos,
convertendo-se em “conhecimento” (do corpo), a ser acessado na performance.

8. É PELOS PALCOS QUE VIVO17 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o intuito de entender a possibilidade de construção de uma performance


vocal visando a realização artística, percorremos um caminho que acessou o que é a
performance, através de ideias e metáforas, por perspectivas de estudiosos de áreas
diversas. Calcados na materialidade e efemeridade da performance, tendo a
presença de um corpo vivo em mente, buscamos na produção musical exemplos
que tivessem algo a dizer sobre o momento em que a performance se converte em
fonograma, sob o ponto de vista de profissionais que privilegiam a espontaneidade
no fazer musical. Amparados por referências no fazer e no ensino de música e do
canto, pudemos observar diferentes estratégias usadas para o desenvolvimento da
expressividade e de um modo de dizer próprio do aluno, que aproximamos da
realização musical. Encontramos na canção popular e na sistematização do
entendimento desse objeto de arte, um modelo que facilita o reconhecimento de
possíveis sentidos “escondidos” no enlace entre a melodia e a letra, bem como o
impacto dos recursos entoativos na comunicação desses sentidos. Aprendemos que
a voz, tem sentido nela mesma, ainda que desprovida de elementos semânticos e
que seres falantes são cantores potenciais, desmistificando, ao menos em parte, o
cantor. Observamos formas preparação para a performance vocal e escolhas que
podem ser feitas pelo cantor para configurar os gestos vocais que imprimirão o seu
“modo de dizer”. Apoiados na escuta pautada pela admiração, percebemos a
importância de reconhecer a nossa descendência artística, que nos situa na nossa
cultura, ao mesmo tempo que estejamos conectados com o nosso tempo, o que
também nos situa enquanto

17
Referência a letra da canção “Quem Canta Seus Males Espanta” de Itamar Assumpção
23
indivíduos. Ouvimos o alerta sobre a importância de entender o papel do artista
como agente de transformação (a começar por si próprio) e, portanto, portador de
responsabilidade a partir das escolhas que faz. Nos descobrimos como parte de uma
cultura de sentido, que nos levou a “buscar entender” e “saber os porquês” a todo
momento o, que, invariavelmente, nos levou, ao final de cada tema, à “chispa”, a
“imortalidade”, ao “sagrado”, ao “mágico”. Por fim, nos aproximamos do estado de
presença, que através do corpo e da redenção, desencadeia a performance viva,
desvelando o fazer artístico, em fluxo acionado pelo próprio performer.

E percebemos que esse caminho, mostra a nossa forma de percorrê-lo nesse


momento. Que há cantores que nos arrebatam sem conhecimento técnico, assim
como os que o fazem a partir da disciplina da prática diária. Há os “sãos” e os que
transformam suas “perturbações” em expressão artística. Há os “livres” e os que
preferem seguir um “script”, antes de se entregarem ao momento em que “tudo”
acontece. Há os que se arrebatam e arrebatam o outro. Há os que, mesmo
acessando seus momentos de intensidade, não alcançam o ouvinte. Porque o
encantamento acontece no encantado.

No corpo do cantor, restam-lhe as memórias de suas experiências e a


possibilidade de entregar-se ao “canto vivo”, oferenda materializada em voz, em que
seu canto, se funde com sua existência, dilatando o tempo e impelindo-o ao
encontro mágico com o outro.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Dos Acordes, 2008.
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