MEDINA. Atenção Primária À Saúde em Tempos de COVID

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ESPAÇO TEMÁTICO: COVID-19 – CONTRIBUIÇÕES DA SAÚDE COLETIVA

THEMATIC SECTION: COVID-19 – PUBLIC HEALTH CONTRIBUTIONS

Atenção primária à saúde em tempos de


COVID-19: o que fazer?

Primary healthcare in times of COVID-19:


what to do?
Maria Guadalupe Medina 1
Atención primaria en salud en tiempos de la Lígia Giovanella 2
COVID-19: ¿qué debemos hacer? Aylene Bousquat 3
Maria Helena Magalhães de Mendonça 2
Rosana Aquino 1
Comitê Gestor da Rede de Pesquisa em Atenção
Primária à Saúde da Abrasco 4

doi: 10.1590/0102-311X00149720

A pandemia de COVID-19 é um desafio sem precedentes para a ciência e para a sociedade, cobrando 1 Instituto de Saúde Coletiva,
Universidade Federal da
respostas rápidas e diversas dos sistemas de saúde que precisam ser reorganizados, em todos os seus
Bahia, Salvador, Brasil.
componentes, para o seu enfrentamento. 2 Escola Nacional de Saúde

No Brasil, e em diversos países do mundo, a resposta sanitária tem sido centrada nos serviços hos- Pública Sergio Arouca,
pitalares, com ações para a ampliação do número de leitos, especialmente, de unidades de tratamento Fundação Oswaldo Cruz, Rio
de Janeiro, Brasil.
intensivo e respiradores pulmonares. Sem retirar a importância da adequada estruturação da atenção 3 Faculdade de Saúde Publica,

especializada voltada aos casos mais graves da COVID-19, é preciso alertar que, no âmbito da atenção Universidade de São Paulo,
primária à saúde (APS), muito pode e precisa ser feito. São Paulo, Brasil.
4 Outros membros listados ao
Na ausência de vacinas e de medicamentos específicos e devido à alta transmissibilidade da infec- final do artigo.
ção, as únicas intervenções eficazes para o controle da pandemia são medidas de saúde pública como
isolamento, distanciamento social e vigilância dos casos, com o propósito de reduzir o contágio, evi- Correspondência
M. G. Medina
tando sofrimento e morte, ao frear a velocidade da pandemia. Ao mesmo tempo é necessário dotar o
Instituto de Saúde Coletiva,
sistema de recursos para oferecer a atenção adequada e oportuna 1. Universidade Federal da
Nesse sentido, a reorganização dos serviços de APS para, simultaneamente, enfrentar a epidemia Bahia.
Rua Basílio da Gama s/n,
e manter a oferta regular de suas ações é imperativa, e seu necessário protagonismo e readequação
Salvador, BA 40110-040,
vêm sendo destacados em documentos e relatórios produzidos no país 2,3. Mesmo reconhecendo as Brasil.
diversas fragilidades de atuação das equipes, ressalta-se que a Estratégia Saúde da Família (ESF) é o [email protected]
modelo mais adequado por seus atributos de responsabilidade territorial e orientação comunitária,
para apoiar as populações em situação de isolamento social pois, mais do que nunca, é preciso manter
o contato e o vínculo das pessoas com os profissionais, responsáveis pelo cuidado à saúde.
Este artigo analisa possibilidades de atuação dos serviços de APS na rede do Sistema Único de
Saúde (SUS) que contribuam para o controle da epidemia e, simultaneamente, cumpram com a sua
função essencial de garantir atenção cotidiana e capilarizada.

Eixos de intervenção da APS

O enfrentamento à pandemia exige a elaboração de planos de gerenciamento de risco 4 em vários níveis


(nacional, estadual, municipal e local), fortalecendo a atuação no território, que considere: a população
a ser acompanhada (casos leves de COVID-19 e outros problemas de saúde); a adequada proteção

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença


Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodu-
ção em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja
corretamente citado. Cad. Saúde Pública 2020; 36(8):e00149720
2 Medina MG et al.

dos profissionais de saúde, com condição segura à realização do seu trabalho, evitando, também, que
sirvam de fonte de contaminação; as mudanças organizacionais compatíveis com a realidade local; as
necessidades de apoio logístico e operacional (incluindo transporte, material e equipamentos de segu-
rança e proteção); formação e educação permanente dos profissionais de saúde; mapeamento de poten-
cialidades e dificuldades de cada território; a retaguarda necessária a uma ação coordenada da APS com
outras instituições e serviços de saúde no território de abrangência das equipes ou fora dele; e parcerias
com as organizações comunitárias, potencializando habilidades e estimulando a solidariedade.
A atuação da APS pode ser sistematizada em quatro eixos: (i) vigilância em saúde nos territórios;
(ii) atenção aos usuários com COVID-19; (iii) suporte social a grupos vulneráveis; e (iv) continuidade
das ações próprias da APS.

Vigilância em saúde nos territórios

Visando a bloquear e reduzir o risco de expansão, a APS deve estar envolvida no gerenciamento de ris-
co da epidemia, atuando de forma articulada com a vigilância em saúde dos municípios, estabelecendo
fluxos de informação, em uma via de mão dupla, para aprimorar a qualidade das ações.
A notificação, detecção e acompanhamento dos casos, com isolamento domiciliar dos casos e
quarentena dos contatos são atividades centrais de mitigação da epidemia, a serem desenvolvidas
pelas equipes de APS.
O isolamento social pode ser incentivado por todos os profissionais da equipe, principalmente
pelos agentes comunitários de saúde (ACS), mobilizando lideranças e recursos locais com ampla
divulgação de informações e realização de medidas concretas. A literatura tem mostrado que os
ACS são importantes aliados no enfrentamento de epidemias 5, especialmente no que diz respeito à
conscientização da população e combate ao estigma relacionado à doença, o que realça o seu papel na
difusão de informações corretas sobre a prevenção de COVID-19, no combate às fake news e no apoio
a atividades educativas no território, relacionadas à higiene e proteção de trabalhadores e usuários nos
diversos equipamentos sociais, de modo que se constituam em ambientes seguros para a população.

Atenção aos usuários com COVID-19

Tem sido implementada a organização de fluxos distintos para o cuidado dos pacientes com quadros
leves, separando os sintomáticos respiratórios dos usuários com outros problemas que necessitam de
cuidado presencial, identificando e orientando indivíduos com maior risco de desenvolver quadros
graves e garantindo o encaminhamento oportuno daqueles que necessitam de cuidados de outros
níveis de atenção 6,7.
Ademais, as modalidades de atendimento on-line têm sido priorizadas e bastante difundidas, o
que impõe a necessidade de se estender o acesso à telefonia celular e Internet de forma rápida para
profissionais e usuários. A consulta remota deve ser realizada com base em protocolos, com mensa-
gens claras e objetivas, dando preferência ao vídeo, pois facilita o monitoramento de sinais vitais 8.
A qualidade do atendimento na APS e a continuidade do cuidado aos pacientes com COVID-19
só podem ser asseguradas com recursos adequados que garantam a segurança do paciente e reso-
lubilidade do problema. Na avaliação da gravidade dos casos e de sua evolução, a medição do nível
de saturação de oxigênio no sangue é importante, sendo necessário disponibilizar oxímetro para as
equipes, para uso na triagem, atendimento presencial e em domicílio, no acompanhamento de casos
suspeitos e confirmados. Quanto à continuidade do cuidado ao paciente, é mister que serviços de APS
estejam integrados à rede de emergência, hospitalar e de transporte sanitário, associada à regulação
de leitos com definição de fluxos e canais de comunicação abertos e ágeis, para a garantia de cuidado
oportuno, conforme a gravidade.

Suporte social a grupos vulneráveis

A ESF tem ampliado sua atuação na resposta às necessidades de populações socialmente vulneráveis
e de grupos de risco, como idosos e indivíduos que apresentam comorbidades, que vivem cotidiana-
mente situações de isolamento ou restrições, agora agravadas.

Cad. Saúde Pública 2020; 36(8):e00149720


ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE EM TEMPOS DE COVID-19 3

Para que possa, efetivamente, seguir as recomendações preventivas relacionadas à COVID-19,


essa população necessitará de todo tipo de apoio (sanitário, financeiro, psicológico e social), incluindo
atendimento pela rede de serviços de saúde e acesso aos mecanismos de proteção social.
Encontrar as melhores soluções para os problemas graves e diversos dos grupos populacionais
mais vulneráveis exige uma ação coordenada no território com as lideranças, equipamentos e institui-
ções locais, articulando as ações implementadas pelas equipes com as iniciativas comunitárias, muitas
já em andamento, destacando-se o engajamento comunitário como uma importante estratégia global
no enfrentamento da pandemia 9. Podem ser destacadas propostas como a oferta de abrigo em hotéis,
escolas ou outros equipamentos para pessoas em risco (idosos, doentes crônicos solitários, mulheres
vítimas de violência e população de rua) e apoio domiciliar para idosos que terão dificuldades de se
manter e de se cuidar. Iniciativas de engajamento comunitário vêm sendo observadas em experiências
de solidariedade, em que as próprias comunidades estão promovendo mutirões de distribuição de
cestas básicas, confecção de máscaras por artesãs locais e uso de escolas para o isolamento de casos
leves de COVID-19 10.

Continuidade das ações próprias da APS

As atividades de rotina da APS precisam ser preservadas em tempos de pandemia, até porque as pre-
visões apontam para um longo curso de convivência com o novo vírus, com alternância de maior e
menor isolamento social, o que exige readequação de certos procedimentos e incorporação de outros
para que a APS funcione cumprindo sua missão, incluindo novas formas de cuidado cotidiano à dis-
tância, evitando o risco de aprofundamento da exclusão do acesso e das desigualdades sociais.
O uso de tecnologias de informação e comunicação, como WhatsApp e telefone, para a realização
de teleconsulta, garante a oferta de ações de forma segura, de modo que não haja descontinuidade e
agravamento das condições dos usuários em tratamento. Sugere-se responder a demandas frequentes
de usuários – como a renovação de receitas e a busca por medicamentos – de modo que estes não
precisem se dirigir à unidade básica de saúde (UBS), seja prolongando o tempo de duração das pres-
crições, seja viabilizando a entrega domiciliar dos medicamentos pelo ACS, adotando-se os cuidados
necessários.
Buscar contatar por telefone os pacientes pré-agendados e realizar teleconsulta com médicos,
enfermeiros da equipe ou médicos residentes e internos, e a criação de agenda para teleconsulta são
iniciativas sugeridas por experiências em curso 11, lembrando-se que, para alguns, serão mantidos
atendimentos presenciais, assim como outras atividades de rotina, a exemplo da vacinação que precisa
ser realizada sem expor a população ao risco de contaminação.

Considerações finais

O fracasso de experiências internacionais de tentativas de enfrentamento da pandemia centradas no


cuidado individual hospitalar alertou para a necessidade de uma abordagem mais territorializada,
comunitária e domiciliar, e a necessidade de ativar a APS, forte e integral, em toda a sua potencia-
lidade. O modelo brasileiro, com suas equipes de saúde da família e enfoque territorial, apresentou
impactos positivos na saúde da população e tem papel importante na rede assistencial de cuidados,
além de poder contribuir vigorosamente para a abordagem comunitária, necessária no enfrentamento
de qualquer epidemia.
Não obstante essa potencialidade, as tentativas de desmantelamento da ESF, desde 2017, com
redução de agentes comunitários de saúde, flexibilização de carga horária de profissionais, aboli-
ção da prioridade para a ESF, extinção dos Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica
(NASF-AB), perda de profissionais com a finalização do Programa Mais Médicos, desincentivos a
abordagem territorial com o novo modelo de financiamento da atenção básica com base em número
de cadastrados, fragilizando o enfoque comunitário, entre outros 12, representam constrangimentos
importantes para uma atuação adequada da APS no enfrentamento da pandemia.
Essas ameaças recentes foram somadas a problemas cronicamente enfrentados na APS brasileira.
A precariedade das relações trabalhistas em grande parte das equipes, a prática de contratação de

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4 Medina MG et al.

organizações sociais e de outras formas de privatização da gestão de unidades básicas de saúde que
mercantiliza as relações e fragiliza vínculos, problemas organizacionais com baixa integração entre a
APS e outros níveis de atenção na rede regionalizada comprometendo a coordenação e continuidade
com a fragmentação do cuidado, a insuficiente mediação de ações intersetoriais para incidir na deter-
minação social, promover a saúde e reduzir as desigualdades, são alguns dos obstáculos para a exigida
atuação da ESF neste momento 13.
A crise sanitária atual amplificou as debilidades existentes e tem requerido recursos extraordiná-
rios da União para os estados e municípios, ainda insuficientes para apoiar as ações de vigilância e
cuidado da população. Com todos esses obstáculos, a presença de mais de 40 mil equipes de ESF em
todo país, ainda que por vezes incompletas, 260 mil ACS, 26 mil equipes de saúde bucal, cerca de 5
mil NASF, representam as bases do SUS e devem ser fortalecidas se almejamos obter êxito no enfren-
tamento desta pandemia.
Com todas as dificuldades, é preciso reconhecer que a capilaridade e pujança da força de trabalho
da ESF, além das inúmeras bem-sucedidas experiências municipais e locais, têm mostrado a força e
resiliência das equipes de SF nos mais diversos contextos.
Mais do que nunca precisamos de uma APS no SUS forte, vigilante, capilarizada, adaptada ao
contexto e fiel a seus princípios. A atual crise global é sanitária, política, econômica e social, e exige
inovação nos modos de operação e radicalização da lógica de intervenção comunitária no exercício
de novas formas de sociabilidade e de solidariedade.

Colaboradores Referências

Todos os autores participaram da concepção e reda- 1. Aquino E, Silveira IH, Pescarini J, Aquino R,
ção do artigo. Souza-Filho JA. Medidas de distanciamento
social no controle da pandemia de COVID-19:
potenciais impactos e desafios no Brasil. Ciênc
Informações adicionais Saúde Colet 2020; 25 Suppl 1:2423-46.
2. Rede de Pesquisa em APS da Abrasco. Desa-
fios da APS no SUS no enfrentamento da Co-
ORCID: Maria Guadalupe Medina (0000-0001-
vid-19. Relatório. In: Seminário Virtual Re-
7283-2947); Lígia Giovanella (0000-0002-6522-
de APS/ABRASCO. https://redeaps.org.br/
545X); Aylene Bousquat (0000-0003-2701-1570);
wp-content/uploads/2020/04/Relatorio-Re
Maria Helena Magalhães de Mendonça (0000- de-APS-_Semina%CC%81rio-APS-no-SUS-e-
0002-3917-9103); Rosana Aquino (0000-0003- Covid-16-Abril-2020-final.pdf (acessado em
3906-5170). 12/Jun/2020).
3. Engstrom E, Giovanella L, Melo E, Mendes A,
Grabois V, Mendonça MHM. Recomendações
Outros membros do Comitê Gestor para a organização da atenção primária à saú-
da Rede de Pesquisa em Atenção de no SUS no enfrentamento da COVID-19.
Primária à Saúde da Abrasco https://portal.fiocruz.br/documento/recomen
dacoes-para-organizacao-da-aps-no-sus-no-
Carlos Leonardo Cunha, Claunara S. Mendonça, -enfrentamento-da-covid-19 (acessado em 12/
Jun//2020).
Cristiane Spadacio, Daniela L. Carcereri, Elaine
4. Dunlop C, Howe A, Li D, Allen LN. The coro-
Thumé, Elaine Tomasi, Fúlvio Borges Nedel, Geral-
navirus outbreak: the central role of primary
do Cunha Cury, Luiz Augusto Fachinni, Márcia
care in emergency preparedness and response.
Guimarães de Mello Alves, Maria Catarina Salva-
BJGP Open 2020; 4:bjgpopen20X101041.
dor da Motta, Sandro Schreiber de Oliveira, Sonia 5. Bhaumik S, Moola S, Tyagi J, Nambiar D, Kako-
Acioli. ti M. Community health workers for pandemic
response: a rapid evidence synthesis. medRxiv
2020; 2 mai. https://www.medrxiv.org/conten
t/10.1101/2020.04.28.20082586v1.

Cad. Saúde Pública 2020; 36(8):e00149720

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