MEDINA. Atenção Primária À Saúde em Tempos de COVID
MEDINA. Atenção Primária À Saúde em Tempos de COVID
MEDINA. Atenção Primária À Saúde em Tempos de COVID
doi: 10.1590/0102-311X00149720
A pandemia de COVID-19 é um desafio sem precedentes para a ciência e para a sociedade, cobrando 1 Instituto de Saúde Coletiva,
Universidade Federal da
respostas rápidas e diversas dos sistemas de saúde que precisam ser reorganizados, em todos os seus
Bahia, Salvador, Brasil.
componentes, para o seu enfrentamento. 2 Escola Nacional de Saúde
No Brasil, e em diversos países do mundo, a resposta sanitária tem sido centrada nos serviços hos- Pública Sergio Arouca,
pitalares, com ações para a ampliação do número de leitos, especialmente, de unidades de tratamento Fundação Oswaldo Cruz, Rio
de Janeiro, Brasil.
intensivo e respiradores pulmonares. Sem retirar a importância da adequada estruturação da atenção 3 Faculdade de Saúde Publica,
especializada voltada aos casos mais graves da COVID-19, é preciso alertar que, no âmbito da atenção Universidade de São Paulo,
primária à saúde (APS), muito pode e precisa ser feito. São Paulo, Brasil.
4 Outros membros listados ao
Na ausência de vacinas e de medicamentos específicos e devido à alta transmissibilidade da infec- final do artigo.
ção, as únicas intervenções eficazes para o controle da pandemia são medidas de saúde pública como
isolamento, distanciamento social e vigilância dos casos, com o propósito de reduzir o contágio, evi- Correspondência
M. G. Medina
tando sofrimento e morte, ao frear a velocidade da pandemia. Ao mesmo tempo é necessário dotar o
Instituto de Saúde Coletiva,
sistema de recursos para oferecer a atenção adequada e oportuna 1. Universidade Federal da
Nesse sentido, a reorganização dos serviços de APS para, simultaneamente, enfrentar a epidemia Bahia.
Rua Basílio da Gama s/n,
e manter a oferta regular de suas ações é imperativa, e seu necessário protagonismo e readequação
Salvador, BA 40110-040,
vêm sendo destacados em documentos e relatórios produzidos no país 2,3. Mesmo reconhecendo as Brasil.
diversas fragilidades de atuação das equipes, ressalta-se que a Estratégia Saúde da Família (ESF) é o [email protected]
modelo mais adequado por seus atributos de responsabilidade territorial e orientação comunitária,
para apoiar as populações em situação de isolamento social pois, mais do que nunca, é preciso manter
o contato e o vínculo das pessoas com os profissionais, responsáveis pelo cuidado à saúde.
Este artigo analisa possibilidades de atuação dos serviços de APS na rede do Sistema Único de
Saúde (SUS) que contribuam para o controle da epidemia e, simultaneamente, cumpram com a sua
função essencial de garantir atenção cotidiana e capilarizada.
dos profissionais de saúde, com condição segura à realização do seu trabalho, evitando, também, que
sirvam de fonte de contaminação; as mudanças organizacionais compatíveis com a realidade local; as
necessidades de apoio logístico e operacional (incluindo transporte, material e equipamentos de segu-
rança e proteção); formação e educação permanente dos profissionais de saúde; mapeamento de poten-
cialidades e dificuldades de cada território; a retaguarda necessária a uma ação coordenada da APS com
outras instituições e serviços de saúde no território de abrangência das equipes ou fora dele; e parcerias
com as organizações comunitárias, potencializando habilidades e estimulando a solidariedade.
A atuação da APS pode ser sistematizada em quatro eixos: (i) vigilância em saúde nos territórios;
(ii) atenção aos usuários com COVID-19; (iii) suporte social a grupos vulneráveis; e (iv) continuidade
das ações próprias da APS.
Visando a bloquear e reduzir o risco de expansão, a APS deve estar envolvida no gerenciamento de ris-
co da epidemia, atuando de forma articulada com a vigilância em saúde dos municípios, estabelecendo
fluxos de informação, em uma via de mão dupla, para aprimorar a qualidade das ações.
A notificação, detecção e acompanhamento dos casos, com isolamento domiciliar dos casos e
quarentena dos contatos são atividades centrais de mitigação da epidemia, a serem desenvolvidas
pelas equipes de APS.
O isolamento social pode ser incentivado por todos os profissionais da equipe, principalmente
pelos agentes comunitários de saúde (ACS), mobilizando lideranças e recursos locais com ampla
divulgação de informações e realização de medidas concretas. A literatura tem mostrado que os
ACS são importantes aliados no enfrentamento de epidemias 5, especialmente no que diz respeito à
conscientização da população e combate ao estigma relacionado à doença, o que realça o seu papel na
difusão de informações corretas sobre a prevenção de COVID-19, no combate às fake news e no apoio
a atividades educativas no território, relacionadas à higiene e proteção de trabalhadores e usuários nos
diversos equipamentos sociais, de modo que se constituam em ambientes seguros para a população.
Tem sido implementada a organização de fluxos distintos para o cuidado dos pacientes com quadros
leves, separando os sintomáticos respiratórios dos usuários com outros problemas que necessitam de
cuidado presencial, identificando e orientando indivíduos com maior risco de desenvolver quadros
graves e garantindo o encaminhamento oportuno daqueles que necessitam de cuidados de outros
níveis de atenção 6,7.
Ademais, as modalidades de atendimento on-line têm sido priorizadas e bastante difundidas, o
que impõe a necessidade de se estender o acesso à telefonia celular e Internet de forma rápida para
profissionais e usuários. A consulta remota deve ser realizada com base em protocolos, com mensa-
gens claras e objetivas, dando preferência ao vídeo, pois facilita o monitoramento de sinais vitais 8.
A qualidade do atendimento na APS e a continuidade do cuidado aos pacientes com COVID-19
só podem ser asseguradas com recursos adequados que garantam a segurança do paciente e reso-
lubilidade do problema. Na avaliação da gravidade dos casos e de sua evolução, a medição do nível
de saturação de oxigênio no sangue é importante, sendo necessário disponibilizar oxímetro para as
equipes, para uso na triagem, atendimento presencial e em domicílio, no acompanhamento de casos
suspeitos e confirmados. Quanto à continuidade do cuidado ao paciente, é mister que serviços de APS
estejam integrados à rede de emergência, hospitalar e de transporte sanitário, associada à regulação
de leitos com definição de fluxos e canais de comunicação abertos e ágeis, para a garantia de cuidado
oportuno, conforme a gravidade.
A ESF tem ampliado sua atuação na resposta às necessidades de populações socialmente vulneráveis
e de grupos de risco, como idosos e indivíduos que apresentam comorbidades, que vivem cotidiana-
mente situações de isolamento ou restrições, agora agravadas.
As atividades de rotina da APS precisam ser preservadas em tempos de pandemia, até porque as pre-
visões apontam para um longo curso de convivência com o novo vírus, com alternância de maior e
menor isolamento social, o que exige readequação de certos procedimentos e incorporação de outros
para que a APS funcione cumprindo sua missão, incluindo novas formas de cuidado cotidiano à dis-
tância, evitando o risco de aprofundamento da exclusão do acesso e das desigualdades sociais.
O uso de tecnologias de informação e comunicação, como WhatsApp e telefone, para a realização
de teleconsulta, garante a oferta de ações de forma segura, de modo que não haja descontinuidade e
agravamento das condições dos usuários em tratamento. Sugere-se responder a demandas frequentes
de usuários – como a renovação de receitas e a busca por medicamentos – de modo que estes não
precisem se dirigir à unidade básica de saúde (UBS), seja prolongando o tempo de duração das pres-
crições, seja viabilizando a entrega domiciliar dos medicamentos pelo ACS, adotando-se os cuidados
necessários.
Buscar contatar por telefone os pacientes pré-agendados e realizar teleconsulta com médicos,
enfermeiros da equipe ou médicos residentes e internos, e a criação de agenda para teleconsulta são
iniciativas sugeridas por experiências em curso 11, lembrando-se que, para alguns, serão mantidos
atendimentos presenciais, assim como outras atividades de rotina, a exemplo da vacinação que precisa
ser realizada sem expor a população ao risco de contaminação.
Considerações finais
organizações sociais e de outras formas de privatização da gestão de unidades básicas de saúde que
mercantiliza as relações e fragiliza vínculos, problemas organizacionais com baixa integração entre a
APS e outros níveis de atenção na rede regionalizada comprometendo a coordenação e continuidade
com a fragmentação do cuidado, a insuficiente mediação de ações intersetoriais para incidir na deter-
minação social, promover a saúde e reduzir as desigualdades, são alguns dos obstáculos para a exigida
atuação da ESF neste momento 13.
A crise sanitária atual amplificou as debilidades existentes e tem requerido recursos extraordiná-
rios da União para os estados e municípios, ainda insuficientes para apoiar as ações de vigilância e
cuidado da população. Com todos esses obstáculos, a presença de mais de 40 mil equipes de ESF em
todo país, ainda que por vezes incompletas, 260 mil ACS, 26 mil equipes de saúde bucal, cerca de 5
mil NASF, representam as bases do SUS e devem ser fortalecidas se almejamos obter êxito no enfren-
tamento desta pandemia.
Com todas as dificuldades, é preciso reconhecer que a capilaridade e pujança da força de trabalho
da ESF, além das inúmeras bem-sucedidas experiências municipais e locais, têm mostrado a força e
resiliência das equipes de SF nos mais diversos contextos.
Mais do que nunca precisamos de uma APS no SUS forte, vigilante, capilarizada, adaptada ao
contexto e fiel a seus princípios. A atual crise global é sanitária, política, econômica e social, e exige
inovação nos modos de operação e radicalização da lógica de intervenção comunitária no exercício
de novas formas de sociabilidade e de solidariedade.
Colaboradores Referências
Todos os autores participaram da concepção e reda- 1. Aquino E, Silveira IH, Pescarini J, Aquino R,
ção do artigo. Souza-Filho JA. Medidas de distanciamento
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