A Aveleira e A Madressilva - Lia Neiva
A Aveleira e A Madressilva - Lia Neiva
A Aveleira e A Madressilva - Lia Neiva
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N338a
1a edição, 2013
2a edição, 2014
O romance de Tristão e Isolda é uma das mais bonitas lendas celtas conhecidas.
Os primeiros indícios da presença desse antigo povo, na Europa, datam do
segundo milênio a.C., em regiões onde hoje ficam a Suíça e o sul da Alemanha.
Sem nunca se estabelecerem como nação, os celtas viveram em tribos distintas,
mas partilharam a mesma cultura, falaram dialetos provenientes de um mesmo
idioma e tiveram em comum o prazer pela vida, o gosto pela luta e o pendor pela
fabulação. Graças a sua grande habilidade no fabrico de armas de ferro, suas
tribos se espalharam pelo continente e chegaram a ocupar Roma, só a
abandonando após o recebimento de um vultoso resgate. Com as invasões
germânicas e eslavas vindas do norte e a expansão do império romano, a
migração celta terminou no primeiro milênio a.C., com as tribos se
estabelecendo em regiões da Britânia, Irlanda, Escócia, País de Gales e Ilha de
Mann. É desses territórios insulares, especialmente da Irlanda, que provém a
maior parte das fantásticas e belas histórias da mitologia céltica, entre elas a de
Tristão e Isolda.
Originalmente cantadas ou recitadas pelos bardos, os poetas itinerantes que,
deslocando-se de um local para o outro, deleitavam as populações, essas
histórias falam de amor, de aventuras e de épicas batalhas entre os homens e os
deuses. Somente nos séculos vi e vii d.C. elas ganharam uma forma escrita,
através dos registros feitos pelos monges, que cristianizaram as diversas tribos
celtas.
Muitas histórias se apresentam com diferentes versões em consequência da
diversidade das fontes utilizadas nas transcrições e, sobretudo, devido à ação
moralizadora dos monges escribas, que apagaram ou minimizaram alguns dos
elementos pagãos da cultura celta — às vezes sutis, às vezes radicais, essas
interferências chegam, em alguns casos, a modificar substancialmente um
mesmo enredo. Entretanto, apesar de tudo, as lendas celtas ainda guardam muito
da primitiva magia das antigas tribos de onde se originaram.
A história de Tristão e Isolda, tal como a de Romeu e Julieta, é sobre paixão
e tragédia, mas, ao contrário desta, fragmentou-se, não sobreviveu intacta. No
século xii, escritores na França, na Alemanha e na Noruega, guiando-se pelos
trechos aos quais tiveram acesso, criaram suas próprias versões medievais desse
romance, sem contudo produzir um texto completo, contentando-se em escrever
apenas alguns trechos da trama. Somente no século xiii surgiu um texto que,
agregando os episódios conhecidos, deu unidade à história. Nos anos 1800, a
lenda ganharia outras versões, inclusive a da ópera de Richard Wagner.
Como não podia deixar de acontecer, os muitos escritos sobre a paixão do
cavaleiro Tristão e de Isolda, a rainha de Marc, rei da Cornualha, contêm
inúmeras variações, mas seus enredos sempre evoluem em torno de um núcleo
comum.
Em A aveleira e a madressilva — a paixão de Tristão e Isolda isso também
acontece e, junto à consagrada temática da lenda, coexistem a realidade histórica
das tribos celtas e as situações e pormenores, que, nascidos da imaginação da
autora, tentam dar ao belo e conturbado romance um matiz mais intimista.
I
O vinho de ervas
***
***
Tristão não era o único a se deixar levar por recordações: também Isolda se
perdia em lembranças. Memórias atormentadoras. Torturava-a ter sido enganada
pelo sobrinho de Marc. Ele a manipulara para conquistar a sua simpatia e, mais
facilmente, conseguir o que fora buscar na Irlanda: sua mão em casamento para
dá-la ao tio. O homem, que chegara moribundo ao castelo de Weisefort e
recebera dela os cuidados salvadores, era um embusteiro. E pensar que ela lhe
oferecera uma amizade sincera e havia se mortificado por tê-lo injustamente
execrado pela morte de seu tio Morholt! Todos, na corte irlandesa, tinham-no
como herói por ter se arriscado para salvá-los, mas ela sabia que o destemor dele
não fora motivado por uma causa nobre; aquela demonstração de bravura fora
apenas o primeiro passo na perseguição de seu objetivo. Tudo não passara de um
risco calculado. O cavaleiro Tristão era um homem astucioso, que zombara da
sua credulidade. Como seus sorrisos e galanteios haviam sido mentirosos! Como
bem ocultara que a cortejava para outro! Ah, quanto fingimento, quanta
hipocrisia, quanta insensibilidade! Cantara-lhe versos amorosos cujo ardor não
sentia. Dirigira-lhe meigas frases, deitara-lhe sorrisos; tudo para conquistar-lhe o
coração para um rei distante, um homem de corpo velho e certamente
desinteressado pelos prazeres da vida. Como pudera uma mulher tão sagaz, tão
ardilosa, se deixar lograr daquela forma? Ah, como odiava Tristão! Além do
mais, o que a esperava em terras da Britânia, nos braços de um marido
desconhecido? E como seriam as mulheres na corte de Tintagel? O que
pensariam de seus modos desembaraçados, de seu gosto pela liberdade, de seu
riso franco, de seu amor pela aventura? E foi assim, com amargura, que ela
interpelou o mar:
— Por que o poderoso Nuada não convoca seus monstros marinhos para
encrespar as ondas e empurrar este barco para as profundezas, matando-nos a
todos? Eu não tenho medo da morte, pois sei que o Outro Mundo é feito de
alegrias. E, lá, minha vida será melhor do que na Cornualha.
***
Bela senhora, minha eterna adoração por vosso encanto e vossa graça
austera.
Bela princesa de cabeleira rutilante, que empalidece o sol,
eis-me aos vossos pés para vos servir com ardor.
Vosso sorriso entra-me peito adentro.
Vossa lembrança tira-me o sono e vosso olhar azul cala-me fundo.
Feliz de quem conseguir vosso coração e puder amar-vos para sempre.
***
***
***
***
Os encontros junto ao pinheiro se repetiram noite após noite, e os olhos da
rainha voltaram a brilhar. Ela sorria com facilidade, encantando a todos. O rei
vivia dias radiantes, e tudo parecia perfeito. Mas o sorriso nos lábios de Isolda e
a luz em seu olhar chamaram a atenção de Andret, que, mais uma vez
desconfiado, procurou seus comparsas. Foi Gondoine quem, com voz melíflua,
sugeriu como descobrir os motivos da súbita alegria da rainha.
— No bosque de Zennon, onde os arbustos têm espinhos mortais e as árvores
tortuosas projetam sombras sinistras, mora um adivinho corcunda, que, através
da posição das estrelas, desvenda os segredos do mundo. Ele conhece o oculto e
lê a mente e o coração dos homens. Seus poderes são grandes e sua ambição,
maior ainda. Por ouro ele pressagia o futuro e, se preciso for, ensina quais
caminhos seguir para modificá-lo a contento. É um feiticeiro sem escrúpulos; um
mago com o qual já tratei e me foi de grande valia. Por um punhado de moedas,
ele contará ao rei tudo sobre Isolda.
— Perfeito, Gondoine! Amanhã cedo iremos procurá-lo — regozijou-se
Andret.
Na manhã seguinte, logo ao raiar do sol, os quatro cavaleiros partiram para
Zennon. A distância a percorrer era grande e, para não perder tempo, eles
esporearam os cavalos e os puseram a galope. À medida que cavalgavam para o
norte, a paisagem se transformava, tornando-se selvagem e pantanosa. Um vento
frio sibilava, e a neblina do mar amortalhava os campos e as árvores. Ao fim de
uma hora, o bosque foi avistado. Sombrio e compacto, era a morada ideal para
um praticante da magia.
A cabana do adivinho ficava à beira de uma pequena clareira atapetada de
folhas murchas; no centro dela se erguiam dois pilares de granito, coroados por
uma grande pedra horizontal; parecia um altar de tempos imemoriais. À chegada
dos cavaleiros, o adivinho corcunda apareceu. Era um anão de pele rugosa e
cabelos desgrenhados, a quem Gondoine saudou com respeito:
— Bom dia, Frocin! Cavalgamos desde Tintagel somente para consultá-lo.
— Trouxeram ouro?
— Várias moedas — respondeu Andret.
— Então, como posso ajudá-los?
— Use de seus dons divinatórios e diga-nos que espécie de sentimento une a
mulher e o sobrinho do nosso amado rei.
O anão deu um riso escarninho e cacarejou:
— Uma viagem tão longa pressupõe interesses muito particulares. — E
balançou a mão, fazendo tilintar algumas moedas. — Se o pagamento for do
meu agrado, minha magia funcionará, e eu desvendarei o vínculo entre a rainha e
o cavaleiro. Paguem-me e, quando as estrelas aparecerem, eu lhes contarei o que
elas dizem. — E outra vez fez tilintar as moedas.
Andret entregou-lhe um saco de couro bastante pesado.
— Satisfeito?
— Meus olhos sempre se deliciam com o fulgor do ouro — respondeu o
anão, espiando o conteúdo da bolsa. — Hoje, as estrelas se abrirão para mim.
Quando a noite caiu, Frocin cumpriu o prometido. Olhando o céu através de
um estranho instrumento, ele vasculhou os quatro cantos da abóboda celeste,
fazendo medições e cálculos. Os barões esperavam calados e atentos.
— Cavaleiros, a conjunção das estrelas não mente: a rainha Isolda é infiel ao
rei!
Os barões sorriram e se parabenizaram. A resposta de Frocin era exatamente
o que desejavam ouvir. Mas somente transmiti-la ao rei não seria o suficiente,
pois Marc, outra vez, não lhes daria ouvido. A frase fatídica precisava sair dos
lábios do próprio feiticeiro, e levá-lo a Tintagel era apenas uma questão de
moedas.
Acertado o preço, os barões e Frocin galoparam de volta ao castelo, lá
chegando antes de raiar o dia. Esperaram pelas primeiras horas da manhã e
procuraram Marc.
— O que faz aqui o feiticeiro de Zennon? — o rei perguntou.
Andret respondeu:
— Majestade, nós já tentamos avisar-vos dos rumores que brotam em vossa
corte. Não fomos acreditados e, por isso, trouxemos Frocin para vos revelar o
aviltante crime praticado contra vossa honra.
E, antes que o atarantado rei reagisse, o corcunda relatou o descoberto nas
estrelas e terminou dizendo:
— É fácil comprovar as minhas palavras: basta dirigir-vos ao pomar na hora
gorda da noite, pois é lá que, protegidos pelas densas sombras, a rainha e o
cavaleiro Tristão se encontram para saciar os seus desejos impuros. Será muito
simples surpreendê-los: anunciai que vos ausentareis do castelo por dois dias e
duas noites em uma caçada a javalis selvagens; ordenai aos servos que vos
preparem vossos cães e vossos monteiros, vossa escolta e comitiva; despedi-vos
tranquilamente da rainha e parti à última claridade da tarde. Passai a primeira
noite na floresta e, no início da segunda, abandonai a caçada e retornai a
Tintagel, trazendo vosso arco e vossas flechas. Dirigi-vos ao pomar e escondei-
vos entre os galhos do grande pinheiro junto à fonte de mármore. Ao chegar a
hora, os amantes se deitarão ao pé da árvore e vós podereis lavar a honra sem
qualquer remorso.
Marc sabia dos poderes do feiticeiro e dos acertos dos seus vaticínios e, por
isso, o seu coração se apertou. Estariam a traí-lo os seus entes mais queridos?
Seria extremamente doloroso se as terríveis insinuações contra eles se provassem
verdadeiras.
— Amanhã eu o porei à prova, Frocin! Amanhã, quando a noite cair! — A
voz do rei era triste.
Os preparativos e a caçada aconteceram como haviam sido planejados: os
monteiros reuniram os cães de caça, os cavalariços arriaram as montarias, o
séquito foi arrebanhado, os estandartes erguidos e as despedidas feitas.
— Só voltaremos depois de amanhã, querida esposa! Brangien e as aias se
ocuparão de entreter-vos.
— Parti tranquilo, querido esposo, e retornai em segurança, pois javalis são
matadores de homens. — A apreensão de Isolda era sincera. Ela realmente se
preocupava com a vida do rei. Não se importava em traí-lo, mas não queria vê-lo
morto.
A trompa soou, e a comitiva se foi.
Isolda viveu a alegria de poder passar duas noites de paixão nos braços do
amado, sem a terrível preocupação de voltar ao aposento real antes que Marc
acordasse.
Os quatro barões se regozijavam com o bom andamento do plano, antevendo
o escândalo do flagrante e o castigo que seria imposto ao traiçoeiro casal, para
não mencionar, é claro, que o desaparecimento de Tristão iria abrir-lhes as portas
de um futuro promissor. Tudo se resolveria muito em breve.
Ignorando a trama para desmascará-los, os amantes esperavam ansiosos
pelos momentos apaixonados que desfrutariam durante a providencial ausência
do rei. Quando a hora chegou, Tristão deixou a casa de Gorvenal e se dirigiu ao
pomar. Sentou-se junto ao pinheiro mencionado por Brangien e começou a partir
os gravetos que lançaria à água para chamar Isolda. A lua cheia brilhava
esplendorosa, clareando o pomar. As árvores deitavam sombras, manchando o
solo. Uma noite perfeita para apreciar o belo rosto da amada; uma noite
maravilhosa para amar sem sobressaltos. O príncipe aproximou-se do riacho e
inclinou-se para jogar os gravetos, vendo, então, nitidamente refletida na água, a
figura do tio encarapitado entre os galhos do pinheiro. Estático, para não
demonstrar sua descoberta, ele compreendeu a cilada: a caçada fora um engodo,
e Marc retornara secretamente a Tintagel e escondera-se para surpreendê-los.
Como poderia ter sabido daquele local? Quem o informara? Era um mistério que
ele não tinha tempo para desvendar. Desafortunadamente, só vira a imagem de
Marc após ter lançado os gravetos para Isolda, que, dentro de instantes, correria
para os seus braços. Como impedir o flagrante? Não era por sua vida que ele
temia; seu terror era imaginar a querida criatura amarrada à estaca da fogueira,
que a devoraria até os ossos, no terrível castigo reservado aos traidores.
Precisava avisá-la do perigo, e o único modo de fazê-lo era portando-se de
maneira diferente do habitual. Ela perceberia seu comportamento estranho e se
acautelaria. Em vez de adiantar-se a abrir seus braços para enlaçá-la, ele voltou a
sentar-se junto ao pinheiro. Logo ouviu os queridos passos. O caminhar sempre
aguardado com ansiedade tornava-se, naquele instante, dolorosamente temido. A
rainha chegava. Seu amor chegava. Que a grande divindade dos discursos
persuasivos, o poderoso Oghma, os inspirasse nas frases certas para matar as
suspeitas do rei. E, para sorte daquela paixão, o deus primordial o ouviu.
Isolda era uma mulher sagaz e, ao ver Tristão encostado ao tronco,
compreendeu que algo inusitado havia acontecido. Olhou para a fonte e também
viu o reflexo de Marc. Imediatamente soube o que fazer:
— Recebi o vosso recado e me apressei ao vosso encontro, meu amigo —
disse, recatada. — Por que me chamastes?
O moço levantou-se e explicou, cerimonioso:
— Desculpai-me, minha rainha, por tirar-vos do palácio a esta hora da noite,
porém tenho algo muito sério a contar. Tão delicado é o assunto que não requer
testemunhas. Por isso vos chamei neste ermo.
— Falai, meu caro príncipe! O que há de tão perturbador que não possa ser
dito na presença de outros?
— O problema diz respeito a nosso querido Marc. Uma intriga chegou aos
ouvidos de vosso esposo; uma terrível calúnia, acusando-nos de trair a confiança
dele.
— Como? De que maneira?
— Há, na corte, quem duvide da pureza da nossa amizade. Dizem que o
sentimento que nos une não é casto e nos acusam de uma relação pecaminosa e
repulsiva.
— Basta, cavaleiro Tristão! Isso é abominável! Quem ousa duvidar do meu
amor por Marc?
— Não tenho ideia, minha senhora! Tudo o que sei é que o meu estimado tio
está sendo assediado com essa falsidade e muito sofre com a nossa suposta
traição.
— Não posso crer em tamanha ignomínia! O meu amor é totalmente do
homem que me teve virgem em seus braços. Ele é o único que o meu coração
deseja, e só vivo para amá-lo.
— Eu estou seguro desse afeto, minha rainha. Entretanto, o rei se deixa
influenciar, seguramente por aqueles que me querem afastar de Tintagel.
Cortesãos ambiciosos, que temem a minha presença junto dele. Saiba, Vossa
Majestade, que foi por ordem de meu tio que troquei o castelo pela casa de
Gorvenal. A intenção dele foi de afastar-me para aplacar os rumores aviltantes.
Eu o amo e parte-me o coração saber que, mesmo sem culpa, contribuo para o
sofrimento dele. O irmão de minha mãe é como um pai para mim.
— Marc é um homem justo e sabe reconhecer a virtude quando a vê. Ele
jamais duvidará que o sentimento entre nós não seja consequência de nosso amor
por ele. Esse é o afeto que nos une! A mulher e o sobrinho de um homem se
gostam por afeição a ele. Não pode ser diferente, e meu esposo sabe disso.
— Infelizmente, cara senhora, no caso em questão, tal não acontece. Marc
está envenenado de ciúme e não compreende essa verdade. Ele deveria saber
que, se vos preso tanto, é por vos dever a minha vida. Por duas vezes me
salvastes da morte. Como, então, não vos amar de modo fraternal? Mas a intriga
torna-o cego à realidade, e ele me vê como um vilão.
— Pobre e querido Marc! Preciso retornar ao castelo e dizer da imensa
injustiça que nos faz. Ele é um homem digno e escutará a voz da razão. Ela irá
restaurar sua confiança em nós e, em breve, ele vos chamará de volta. Até breve,
caro príncipe! Estou feliz por ter vindo ao vosso encontro.
Os dois se despediram respeitosamente, e Isolda partiu. Tristão se demorou
mais alguns instantes — para causar efeito — e, depois, saiu cabisbaixo.
Marc desceu do pinheiro sentindo-se o mais vil dos homens. Como pudera
desconfiar de duas pessoas que o amavam tanto? A confissão de Isolda, “o meu
amor é totalmente do homem que me teve virgem em seus braços”, encheu-o de
alegria.
— Perdoe-me, Isolda! Perdoe-me, sobrinho!
E, lembrando-se das palavras do anão, murmurou, irritado:
— Amanhã, mandarei enforcá-lo, pérfida criatura! E, quando raiar o sol, irei
pessoalmente trazer de volta o meu querido sobrinho, a quem tão injustamente
castiguei.
***
***
***
***
Um vento frio soprava do mar, mas não impedia que o povo de Tintagel se
juntasse para um último olhar aos condenados. À passagem dos amantes, as
gentes choravam, pois não fora o cavaleiro quem salvara os seus filhos da
terrível escravidão na Irlanda? Não fora o bravo quem arriscara a vida por eles?
O audaz cavaleiro e nenhum outro? E a bela rainha sempre lhes sorrindo e
acenando! Tão jovens e tão lindos! Seria justo alegrarem-se com as suas mortes?
Momentos traumáticos geram emoções fortes, e um amor infeliz e trágico
tem a capacidade de criar grande comoção. E, como é comum acontecer com
multidões, a compaixão prevaleceu, e Marc, de vítima, tornou-se algoz. Aos
olhos do povo, o rei bondoso transformou-se num carrasco desalmado. Os
cortesãos que o seguiam e que, no princípio da caminhada, haviam escarnecido
dos amantes contiveram-se com medo da turba inconformada.
Brangien e Perinis, bastante acabrunhados, acompanhavam o desfile
macabro. Arrepiava-os o pensamento da pira de espinheiro negro afiada como
lâmina, que rasgaria os corpos queridos, fazendo-os sangrar antes mesmo que
queimassem. Mas Gorvenal, conhecendo muito bem o seu querido Tristão e
tendo extrema confiança em sua engenhosidade, aguardava uma reviravolta nos
acontecimentos com seu cavalo e sua espada escondidos numa ravina próxima à
fogueira.
No caminho por onde passava a funesta procissão, levando os desgraçados
que iam morrer por amor, erguia-se um pequeno templo. Ficava bem à beira do
penhasco, quase a cair no abismo. Ao vê-lo, Tristão pediu aos guardas que o
deixassem entrar e orar aos deuses. Implorou que o desamarrassem, pois não
havia como escapar daquele templo à borda do despenhadeiro. Certificando-se
da impossibilidade de fuga, os homens concordaram. A verdadeira intenção do
príncipe era jogar-se de uma pequena abertura existente na parede do fundo e
mergulhar no mar, que espumava nas rochas lá embaixo. Se conseguisse escapar
das pedras, tentaria resgatar Isolda. Uma ideia louca era melhor do que
nenhuma. E assim ele fez: correu e lançou-se das alturas. Surpreendidos, só
restou aos guardas informar o rei daquele pulo para a morte.
A notícia do gesto de Tristão causou reações opostas: Marc se enfureceu,
pois o queria ardendo na fogueira; o povo festejou, pois não o queria ardendo na
fogueira. Brangien e Perinis pediram às divindades piedade para o pobre
príncipe, e Gorvenal rejubilou-se na certeza de que o seu querido pupilo saltara
para além das rochas e não se deixara afogar no mar que tanto adorava.
Confiante, o escudeiro procurou seu cavalo e galopou para encontrar Tristão em
algum lugar mais à frente. E Isolda? Ela acalentava a esperança de que o amado
sobrevivesse e, assim, conseguiu esboçar um sorriso discreto. Com Tristão a
salvo, ela morreria tranquila. Tal é o amor como o deles: a vida do outro vale
mais do que a própria.
Contrariando as probabilidades, Tristão escapou das rochas afiadas e nadou
rente ao costão, deslocando-se paralelamente à sinistra procissão que levava
Isolda. Bom nadador, ele se adiantou a ela e escalou a escarpa que levava ao
topo, encontrando-se com Gorvenal. Os dois se esconderam, aguardando a
passagem da condenada. Súbito, ouviram um ruído de gelar o sangue: o som das
matracas dos leprosos. Um bando das míseras criaturas se aproximava. Cerca de
quarenta homens a quem a doença havia roído as carnes. A uns faltavam partes
do rosto, a outros um pé, um braço, alguns dedos. Os corpos putrefatos exalavam
um odor pestilento, nauseabundo mesmo. O grupo estava esfarrapado e sujo; os
doentes caminhavam claudicantes, muitos deles apoiados em toscos cajados e
muletas. Os rostos, que ainda podiam ser reconhecidos como tal, mostravam
desespero. Em alguns, por trás do desalento, via-se um traço de maldade no que
restava da boca; maldade nascida das condições inumanas em que viviam:
banidos de suas casas, enxotados dos vilarejos, excluídos, desterrados, anulados.
Mortos-vivos.
As duas procissões, caminhando em sentidos opostos, encontraram-se
exatamente no local da fogueira, no momento mesmo em que Isolda era
escoltada à pira. À visão dos temidos estropiados, um frêmito de horror
percorreu os que vinham de Tintagel, e eles recuaram apavorados. Os leprosos
gargalharam de satisfação ante o pavor demonstrado pelos sadios, e um dos
doentes bastante deformado adiantou-se, com os olhos brilhando de cobiça ao
ver Isolda.
— Meu nome é Yvain e sou o chefe desta turba. Ao que parece, a bela dama
será imolada na fogueira. Isso é um desperdício, lindos senhores! Seu delito deve
ser muito grave para merecer tal castigo, porém, uma grande falta pede uma
pena maior do que uma morte rápida. A fumaça a sufocará em instantes, antes
mesmo que as labaredas a queimem; será demasiado fácil. Entreguem-nos a
dama para nosso prazer, e ela sofrerá muito mais. O contato com o nosso corpo a
encherá de horror e repulsa. Nossa doença logo será a dela, e sua morte virá
lentamente e em grande agonia. O que acham da minha proposta os distintos
senhores?
Isolda gritou de terror:
— Deixai-me queimar, Majestade! Lançai-me à fogueira, mas não me
entregueis aos leprosos!
Marc, sem demonstrar pena ou escrúpulo, simplesmente agarrou-a pelo
braço e se encaminhou para Yvain.
— Leve-a! — E virou as costas para quem fora sua rainha.
Os leprosos exultaram, e o povo de Tintagel chorou, maldizendo o rei em seu
coração. Até os quatro barões tremeram. E tremeram também Gorvenal e
Tristão. O príncipe quis atacar os leprosos e libertar Isolda imediatamente, mas
foi contido por seu fiel escudeiro:
— Espere o momento certo; deixe que o rei e a comitiva se afastem de volta
para o castelo, levando de roldão os nobres e também o povo que chora por
vocês. Ataque quando os leprosos estiverem sozinhos. Tome a minha cota e
proteja-se com ela. Monte o meu cavalo e invista contra eles, que fugirão em
alvoroço.
— O que seria de mim sem os seus conselhos, Gorvenal?
O bom homem apenas sorriu e o abraçou.
Ao se verem sós, os leprosos cutucaram Isolda com as suas muletas,
ordenando-lhe que caminhasse. Olhavam-na com gulodice e diziam-lhe
obscenidades. Silenciosamente, Tristão e Gorvenal tomaram a mesma direção
que eles.
Quando a distância entre o séquito real e o bando de esquartejados tornou-se
grande o bastante para impedir que o primeiro acudisse o segundo, Tristão
investiu. Gritando o nome da amada, ele galopou entre os leprosos, causando
pânico. O cavalo escoiceava, e o cavaleiro brandia a espada golpeando o ar. Ele
procurava Yvain. Achou-o e decepou sua cabeça de um só golpe. Sem a
liderança do chefe, os outros correram para salvar o que ainda lhes restava de
vida, abandonando Isolda, que se ajoelhou chorando. Foi a primeira vez que
aquela brava e altiva irlandesa se entregou às lágrimas. Os amantes se abraçaram
impetuosamente, beijando-se e beijando-se, trocando palavras de alívio e
conforto. Gorvenal aproximou-se e disse, preocupado:
— Tristão, nós precisamos achar um esconderijo, pois logo encontrarão o
corpo de Yvain, e Marc saberá que você está vivo e resgatou a rainha. A fúria
dele será imensa.
VII
A fuga para Morois
***
Mesmo sabendo que nem Marc nem seus nobres adentravam tanto na
floresta, os três não permaneciam mais de dois dias no mesmo lugar. Ao
entardecer, Tristão e Gorvenal construíam pequenos abrigos para passarem a
noite, e logo se tornaram hábeis na construção deles. A vida era rude, mas a
liberdade a tornava encantadora. Tudo era prazeroso: banhar-se em riachos
cristalinos, dormir sobre camadas de folhas e flores, colher frutos silvestres e
caçar a carne das refeições. Não lamentavam a falta do conforto do castelo e das
iguarias da sua mesa, mas seus corpos se afilavam a cada dia. O anel de
esmeralda, presente de Marc na noite de núpcias, girava folgado no dedo de
Isolda. A falta do leite, dos ovos, do pão e do precioso sal os enfraquecia, e eles
se esgotavam facilmente. Suas roupas estavam em farrapos, mas o ânimo
mantinha-se inteiro.
Um dia, eles ouviram o latido de um cão. Era um som bastante familiar a
Tristão, e ele não teve dúvidas: vinha de Husdent, o seu maravilhoso perdigueiro
que ficara em Tintagel. De alguma forma, o animal seguira o seu rastro e
conseguira encontrá-lo.
— Husdent! Husdent! Venha! Venha!
O perdigueiro apareceu entre as moitas e correu para o dono. Saltou, ganiu e
lambeu as mãos que o acariciavam. Era o seu modo de dizer da saudade que
sentira e da alegria de reencontrá-lo. Isolda também o afagou, e ele agradeceu
encostando a cabeça em seu colo. O belo cão malhado de castanho estava magro
e sujo, com pelo baço e olhos remelentos. Não havia dúvida de que tinha penado
muito para encontrar Tristão.
— Nunca vi Husdent tão alegre. É comovente! — disse Gorvenal.
Depois de muito festejar o dono, o cão se acalmou e deitou-se aos pés dele;
naquela noite, foram quatro na cabana.
***
A vida em Morois seguia uma rotina: fugir, fugir e fugir, tomando, sempre,
uma direção diferente. Husdent voltou aos antigos hábitos de latir à vista da caça
abatida, e de perseguir, barulhento, todos os ruídos da mata; isso aborreceu
Tristão, temeroso de que a algazarra do perdigueiro atraísse um caminhante
extraviado que os delatasse a Marc. Para evitar o desastre, resolveu sacrificar o
seu fiel companheiro. Com o coração pesado, ele pegou sua espada, mas foi
contido por Isolda:
— Meu amigo, isso é monstruoso — ela o advertiu. — Na Irlanda, aprendi
com um couteiro de meu pai como aquietar um cão de caça. Deixe-me treinar
Husdent.
E assim, todas as manhãs, ela se ocupava do animal com grande prazer. Em
pouco tempo o cão se tornou o mais silencioso membro do grupo.
Os dias passaram; os meses passaram, e os fugitivos continuavam em sua
vida rústica e frugal, sentindo-se tão seguros atrás da barreira de árvores quanto
se estivessem abrigados pelas grossas muralhas de um castelo. Eles já não
pensavam tanto em seus inimigos, mas muito teriam se alegrado se soubessem
da morte de Frocin, trespassado pela espada de Marc, que o julgava o mais
culpado por sua desdita degradante.
A paixão de Isolda e Tristão não esmorecia e, em seus leitos perfumados,
eles se amavam, achando também espaço para ternura. Uma noite, Tristão lhe
sussurrou as palavras que haveriam de ser repetidas por poetas pelos séculos
afora: “Minha bela amiga, não há você sem mim, nem eu sem você”.
Mas a satisfação tinha um preço, como bem mostrava o triste aspecto de seus
corpos macilentos. Quem mais pagava era Isolda, cujos sedosos cabelos da cor
do sol haviam perdido o brilho e a maciez, enquanto sua pele, de um cálido
branco rosado, tornara-se descorada e fria. Entretanto, de seus lábios não saía um
queixume, um lamento; estar com o amado compensava todas as agruras.
O inverno chegou, e o chão cobriu-se de neve; o preço da felicidade
aumentou. Entocados em uma providencial gruta, Isolda, Tristão, Gorvenal e
Husdent sobreviviam com muito sofrimento. O frio cortante fazia estragos
consideráveis, e eles se enrolavam nas peles dos animais abatidos. Caçar para
sobreviver era uma tortura. Banhar-se no riacho, impossível. Resistir à
adversidade, uma façanha extraordinária. Quando o último floco de neve
derreteu e uma brisa morna soprou, eles renasceram. Porém, indiferentes às
necessidades deles, os solstícios se sucederam, trazendo os bons e os maus dias.
Foi na segunda primavera em Morois que os quatro encontraram, por acaso,
a cabana do ermitão. O homem os acolheu e, como conhecia a eficácia de ervas
e plantas, cuidou de seus ferimentos. Sabe-se lá por que artes, Ogrin — este era
o seu nome — logo adivinhou a identidade deles, e Tristão contou-lhe tudo o que
se havia passado.
O ermitão escutou com atenção e depois disse:
— Nobre cavaleiro, eu acho que a rainha deve ser devolvida ao homem a
quem pertence.
Tristão objetou violentamente:
— Isolda pertence a mim, pois, quando Marc a entregou aos leprosos, perdeu
os seus direitos de marido.
— Talvez! Talvez! Mas a verdade é que o rei de Tintagel oferece cem
moedas de ouro a quem vos encontrar. Eu sei!
— Como?
— Não importa! Aconselho-vos a devolver a rainha ao seu legítimo esposo.
— Nunca! Eu prefiro uma vida de perigos e de pobreza com Isolda do que
uma rica e calma existência sem ela.
— E eu nunca fui tão feliz — completou a rainha.
Husdent rosnou, e Gorvenal dirigiu-se ao ermitão:
— Você os ouviu. Nosso lugar é longe de Tintagel. Adeus, meu bom
homem!
E, sem esperar resposta, os quatro desapareceram entre as árvores.
Não muito depois desse encontro, algo inesperado aconteceu. Gorvenal
levara seu cavalo para beber no riacho e ouviu um barulho diferente dos
habituais ruídos: os latidos de vários cães e as pancadas surdas dos cascos de
uma montaria. “Com certeza um caçador”, ele pensou e, escondendo-se por trás
de um tronco, esperou pelo homem. Para sua surpresa, quem surgiu foi
Guenelon, uma das quatro criaturas que Tristão mais odiava no mundo. Ele
estava sozinho e caminhava, puxando a montaria; Gorvenal desembainhou a
espada e esperou. Um minuto ou dois e Guenelon ficou ao seu alcance; o
escudeiro saltou sobre ele e feriu-o com várias estocadas, cada qual mais funda.
O barão caiu morto e Gorvenal, de um só golpe, decepou sua cabeça para
mostrá-la a Tristão. Depois, banhou-se no riacho para livrar-se do sangue do
morto. Apoderou-se da montaria dele para dá-la a Isolda e voltou ao abrigo
empunhando o macabro troféu. A rainha e Tristão dormiam abraçados, e para
alegrá-los ao acordar, o fiel escudeiro equilibrou a cabeça de Guenelon numa das
traves do teto. Era o melhor presente que lhes poderia dar.
Depois da comemoração daquela morte, os três confabularam, e Gorvenal
voltou para junto do corpo de Guenelon e o arrastou para onde, se encontrado,
aquele cadáver sem cabeça desencorajaria outros valentes de adentrarem Morois.
Menos um barão significava mais segurança, e o sono dos fugitivos tornou-se
mais reparador, mais profundo, mais benéfico.
A primavera passou e outro verão chegou. Um calor úmido subia do chão,
mesmo nas madrugadas. Certa manhã, Tristão despertou, viu Isolda adormecida,
beijou-lhe a face, pegou o arco que não falha, um punhado de flechas e, também,
sua espada, que cingiu ao cinturão. Confiante em suas habilidades, partiu para
caçar. Não foi uma caçada proveitosa, já que, com o apavorante calor, nem os
animais deixavam as suas tocas. Depois de uma procura inútil, molhado de suor
e muito cansado, Tristão retornou. Isolda ainda dormia, e ele se deitou junto
dela; exausto, nem guardou a espada, limitando-se a desprendê-la da cintura e a
colocá-la entre eles. Adormeceu em um instante.
***
***
Não muito depois da partida de Marc, o sono de Isolda foi interrompido por
um pesadelo, e ela acordou gritando por Tristão, que, pensando tratar-se de
algum perigo, se pôs de pé e procurou pela espada. Em vez da sua, achou a do
rei.
— Marc esteve aqui — disse, assustado. — Levou minha espada e deixou a
dele.
— E trocou meu anel de esmeralda pelo de jaspe que lhe ofereci quando nos
casamos. E nos deixou uma de suas luvas. Tristão, meu amigo, diga-me qual o
significado de tudo isso.
— É uma intimidação. Marc quer mostrar sua autoridade de rei poderoso.
Logo ele voltará trazendo reforços e nos levará para Tintagel, onde nos queimará
como havia prometido. Bela amada, temos que fugir o mais rápido possível. Vou
procurar Gorvenal e Husdent e, em seguida, partiremos.
E assim os quatro seguiram céleres para as terras de Gales. Tudo o que
desejavam era se distanciar da ira do rei. Por três dias, só pararam para dormir.
Quase não comeram e não se desviaram para procurar água. Os homens iam
alerta e com a espada desembainhada; de noite, o sono deles era leve como o ar.
Durante o dia, Isolda e Tristão se observavam furtivamente e mostravam uma
expressão diferente; era como se estivessem perdidos em pensamentos novos. E
estavam. O príncipe se dava conta de que Marc, ao encontrá-los adormecidos,
poderia tê-los matado e não o fizera. A luva e a troca do anel e da espada não
assinalavam vingança. O rei quisera apenas lhes mostrar que os encontrara e os
deixara viver. Marc os perdoara, e as tropas de Tintagel não os iriam capturar. A
generosidade do tio era inacreditável, e Tristão se envergonhou de tê-lo julgado
capaz de destruí-los. A grandeza do rei o fez sentir-se pequeno. Olhou para
Isolda e culpou-se por seu estado deplorável. Sua paixão a desgraçara. Ele
mudara o rumo daquela vida e a fizera trocar sedas por farrapos, o conforto de
um castelo por abrigos de galhos e leitos de folhagens. Seu corpo, antes coberto
de joias, exibia arranhões e machucados. E ele se perguntou como podia, assim
de repente, ver o que antes não vira. Seu amor por Isolda era o mesmo, seu
carinho não diminuíra e, no entanto, uma súbita urgência de devolver-lhe a vida
antiga apossara-se dele. Uma ideia o tomou de assalto: o filtro! O efeito mágico
da beberagem da rainha da Irlanda terminara. Os três anos do sortilégio haviam
acabado, e a paixão imposta também. Será? Ele amara Isolda bem antes dos
goles do vinho de ervas. Não fora a infusão que os unira. Mais cedo ou mais
tarde, eles trairiam Marc. Ele o sabia. Sua atração pela bela Isolda, a Loura, era
mais antiga do que o episódio da calmaria. Verdade ou mentira? Deveria culpar o
filtro? Sim ou não? Aquelas eram perguntas sem respostas. Porém, estava muito
clara, para ele, a necessidade de devolver sua amada a Marc, o melhor e mais
generoso dos homens; era sua obrigação restaurar a vida que ela abandonara e,
pelo bem dela, ele renunciaria àquele amor. Seu coração se despedaçaria, mas
Isolda tinha que retornar a Tintagel.
A rainha também mergulhara em perguntas sem respostas. Olhava Tristão e
se condoía da sua miséria. O belo príncipe, que um dia deveria reinar em
Loonnois, estava reduzido a um mero fugitivo, e tudo por sua causa. Cabia-lhe
toda a culpa. Ela o relembrou em Weisefort, cantando-lhe lindas canções de
amor, e compreendeu que já, então, o desejava mesmo sem o saber. Deveria
culpar o filtro pela paixão que os arruinara? Não sabia a resposta. Mas sabia que
precisava fazê-lo retornar à vida de outrora. Ela o amaria para sempre, mas era
preciso deixá-lo ir. Marc demonstrara que os havia perdoado. Era tempo de agir.
Tristão interrompeu as divagações de Isolda com um comentário
surpreendente:
— Não vejo necessidade de irmos para Gales; em vez disso, precisamos nos
encontrar com o ermitão e ter com ele uma conversa.
E assim foi feito; os três esporearam seus cavalos e foram procurar Ogrin.
VIII
O encontro no Vau Venturoso
***
À porta de sua cabana, Ogrin não ficou nada surpreso com a chegada
daqueles visitantes, que desmontaram de seus cavalos e o saudaram com apreço.
Quem primeiro falou foi o sobrinho de Marc:
— Viemos para conversar, ermitão!
— Já faz quase um ano que nos encontramos e é fácil ver que os vossos
problemas continuam. Na época, o cavaleiro preferia correr riscos a devolver a
rainha ao rei, e ela dizia viver os melhores momentos de sua vida. Que desejais,
então, de mim?
— Queremos ouvir o que a sua sabedoria tem a nos dizer, depois de
considerar o que lhe vamos contar.
E Tristão falou, sem nada esconder. Falou da visita de Marc, do medo de
serem perseguidos e presos, da intenção de fugirem para Gales e do alívio ao se
darem conta de que ele não lhes fizera nenhum mal. Depois, perguntou como
deveriam agir dali em diante.
O ermitão escutou em silêncio, avaliando cada palavra.
— O que nos aconselha? Nosso amor é imenso, maior do que a nossa vida,
mas o sofrimento pela dor do outro é insuportável e estamos cheios de
incertezas. Angustia-me ver os padecimentos de Isolda causados pela vida
extremamente rude que levamos.
— E eu me atormento com o deplorável aspecto do meu amado e me
pergunto se é justo despojá-lo da privilegiada posição a que tem direito —
confessou Isolda.
O sábio homem sorriu. Na primeira visita, estarem juntos era tudo que
desejavam; nada os preocupava. Nem a pobreza, nem a solidão da floresta, nem
o frio, nem a fome. Mas a pedra angular daquele relacionamento mudara. O
bem-estar do outro, agora, parecia fundamental. Teria a magia do vinho de ervas
se esgotado? Seria essa a razão daquela drástica mudança ou se tratava apenas de
uma questão de bom senso ante a atitude receptiva de Marc? A resposta àquela
pergunta não importava diante dos escrúpulos anunciados, e ele já sabia o que
aconselhar.
— Acho que é tempo de escreverdes ao rei e aclarar os fatos. Contai-lhe
como vos sentis e apontai uma solução. O rei mostrou-se magnânimo e, com
certeza, aceitará vossa proposta. Dizei-me exatamente o que desejais, e eu o
escreverei.
— Mencione o filtro amoroso preparado pela rainha de Weisefort e diga que
a rainha Isolda e eu vivemos, os últimos três anos, sob a influência e os poderes
encantatórios da poção mágica. Explique que nós jamais nos relacionamos de
forma vergonhosa. Que nosso convívio nunca se apoiou em sentimentos
degradantes e que, sob nenhuma condição, o quisemos afrontar. Que, agora,
livres dos efeitos do filtro, nós imploramos por seu perdão. Diga que a rainha
deseja retornar a Tintagel e viver junto dele, e que a minha maior alegria é voltar
a servi-lo como antes, mas que, se a minha presença não for bem-vinda,
oferecerei meus serviços a um rei distante e viverei afastado da Cornualha para
sempre. Peça-lhe para informar aos nobres a minha disposição de enfrentar, em
um duelo até a morte, quem, dentre eles, duvidar das minhas afirmações. Diga-
lhe que, se ele não aceitar Isolda, eu a levarei de volta para a Irlanda, onde ela
um dia reinará em paz. Finalmente, escreva que a resposta dele seja deixada na
forquilha pintada de vermelho, no lado sul da floresta de Morois.
— Muito bem! Se isso é o desejado, isso será escrito.
E, sem perda de tempo, a carta foi preparada e selada com o anel de Tristão.
— Quem levará vossa mensagem ao rei? — perguntou o ermitão.
— Quem se não eu mesmo? — respondeu o príncipe.
— O risco de serdes morto antes de entregá-la a Marc é grande — alertou
Ogrin.
— Mesmo assim, é meu dever fazê-lo. Gorvenal me acompanhará e, com
ele, estarei seguro. Partiremos sem demora, pois a escuridão da noite nos
acobertará quando chegarmos a Tintagel.
Isolda despediu-se de seu amado com um apaixonado beijo e desejou-lhe
boa sorte.
Cavalgar até as proximidades do castelo não foi problema. Tristão
desmontou e, entregando seu cavalo ao escudeiro, ordenou-lhe que o esperasse
ali mesmo. Não se demoraria, ele disse.
O plano para entregar a carta era audaz, mas simples: esgueirar-se até
embaixo do quarto de Marc, escalar a parede que levava até ele, prender o
pergaminho em um canto da janela, chamar pelo tio, identificar-se e dizer-lhe
que o lesse. Depois, descer rapidamente e sumir pelo mesmo caminho por onde
viera.
Tudo aconteceu como planejado. E mais: ao ouvir seu nome e ver o
pergaminho preso no peitoril da janela, Marc chamou por Tristão várias vezes,
mas não teve resposta.
De manhã, o rei reuniu seus nobres no grande salão e pediu ao sábio do reino
que lesse a carta. A mensagem despertou muita surpresa e foi ouvida com
atenção; a parte referente ao duelo causou arrepios nos fidalgos e todos eles
acharam melhor atribuir aos poderes do filtro irlandês o que quer que tivesse
acontecido entre o sobrinho do rei e a rainha. Ninguém se atreveu a pensar o
contrário. Duvidar das palavras do cavaleiro Tristão era, no mínimo, muito
arriscado. Assim, as opiniões foram todas favoráveis à volta de Isolda a Tintagel,
mas os conselheiros objetaram quanto ao retorno de Tristão:
— Deixai que ele se vá, Majestade, pois calúnias podem ser novamente
ditas, e as falsas acusações entristecerão a rainha, que já tanto sofreu.
O sábio da corte imediatamente escreveu a resposta ditada pelo rei, que a
mandou colocar no local combinado.
Tristão, escondido perto da forquilha, viu chegar o mensageiro e apanhou o
pergaminho assim que o homem desapareceu na estrada; depois, ávido pela
resposta, galopou para a cabana de Ogrin.
— Leia-nos o que diz meu tio — pediu ao ermitão.
Ogrin quebrou o lacre com o sinete real e leu:
“Eu, Marc, rei de vastos domínios na Cornualha, concordo com a volta de
Isolda ao castelo de Tintagel, onde lhe serão restituídos todos os privilégios de
sua posição. Porém, acatando a opinião de meus mais ponderados conselheiros,
não permito o retorno de Tristão à corte. Ordeno que parta para longe e estimo
que sirva a outro rei tão bem como serviu a mim. Lamento ter dele injustamente
desconfiado, e lhe desejo sorte e vida longa. Determino também que, dentro de
três dias, ele escolte a rainha até a margem esquerda do Vau Venturoso, onde nos
encontraremos; depois, que prossiga rumo ao mar e embarque para o exílio.”
A recusa do tio em permitir sua permanência até mesmo na Cornualha muito
entristeceu Tristão, pois significava a impossibilidade de ver a mulher amada.
Isolda também se ressentiu, e culpou os odiosos barões pela terrível decisão de
Marc. Gorvenal e Ogrin os consolaram, argumentando que o banimento do
príncipe não seria eterno; apenas o tempo necessário para que as maledicências
fossem esquecidas.
Vendo que a aparência de Isolda em nada lembrava a de uma rainha, o
ermitão rumou para uma aldeia não muito longe, onde, com as suas economias
de muitos anos, comprou uma túnica de seda branca, uma capa de tecido púrpura
— a cor da realeza — e algumas peles de esquilo cinzento para orná-la. Tratou
também de adquirir um belo cavalo branco, que mandou ajaezar pelo melhor
ferreiro. Isolda comoveu-se com a sensibilidade de Ogrin e prometeu
recompensá-lo com ouro equivalente a muitas vezes os seus gastos. Tristão
também foi presenteado com calções, camisa e gibão. Assim paramentados, a
rainha e o cavaleiro fariam uma digna aparição.
Os três dias que antecederam a ida até o Vau Venturoso foram de muita
amargura para os amantes, que trocaram tristes juras de amor eterno. Na hora da
partida para o local do encontro, Isolda retirou do dedo o anel de ouro e jaspe
que Marc lhe restituíra e disse com voz embargada:
— Belo amigo, leve esta joia; ela me representará junto a si, e, quando as
saudades forem insuportáveis, acaricie-a como se a mim acariciasse, toque-a
como se tocasse o meu corpo. Isso diminuirá a sua tristeza. Este aro de ouro nos
unirá, por mais longe que estejamos um do outro.
Tristão colocou o anel no dedo mínimo e tomou as mãos de Isolda entre as
suas.
— Bela e querida amiga, deixo-lhe Husdent, já que vocês muito se
afeiçoaram. O nosso bom companheiro estará sempre a seu lado e a fará
lembrar-se de mim e do nosso grande amor.
Isolda tremia de emoção e, com muito esforço, sussurrou-lhe:
— Eu cuidarei dele com o maior desvelo, e ele será a minha maior alegria.
Antes do nosso adeus, empenho minha palavra de estar presente sempre que o
meu amado amigo precisar de mim. Envie-me o anel como sinal, e irei ter com
você. Não haverá rei, nem mar, nem florestas que me impeçam de vê-lo.
— Prometo-lhe que assim farei, amada da minha vida.
E os dois se abraçaram e se beijaram numa despedida como a Cornualha
nunca antes conhecera e jamais voltaria a testemunhar, pois o amor deles era o
maior dentre os amores.
Tristão, Isolda e Gorvenal acenaram para o ermitão e, seguidos por Husdent,
cavalgaram em direção ao lugar determinado por Marc. No meio do caminho, o
escudeiro despediu-se da rainha e tomou a direção do local onde mais tarde se
encontraria com o príncipe para, juntos, seguirem rumo ao exílio. Assim são os
verdadeiros amigos: fiéis na riqueza e na pobreza.
***
***
***
***
***
***
***
E ela honrou a palavra dada. Depois de uma troca de mensagens com Dinas,
ficou acertado que o encontro com Tristão seria dali a dois dias, quando ela,
Marc e toda a corte partiriam para um período de caçadas no castelo de Lancien.
Tristão deveria esperá-la escondido atrás de determinado arbusto às margens do
caminho e, quando a visse surgir em seu belo palafrém, imitasse o canto dos
pássaros e aguardasse. Ela se encarregaria do resto. Nada poderia dar errado.
***
E Tristão sofre durante todo um ano por amor a Isolda, a Loura. Lembra-se do
último encontro e prefere morrer a viver com o desdém da amada. A presença da
esposa é um fardo a ser carregado sem alívio. Exaspera-se e desespera-se,
atormentado pelo desejo de voltar à Cornualha e rever a outra. Procura um barco
de mercadores e parte, sem aviso. Chega a Tintagel e logo pergunta pelos
soberanos.
— Estão em seu castelo.
Tristão precisa encontrar um jeito de estar com Isolda sem enfrentar a fúria
de Marc. Ele tem uma ideia: pedir para ver os reis fingindo-se de louco, pois é
costume de todos os soberanos acolher, para sua distração, os doidos que os
procuram.
Para não ser reconhecido, ele se disfarça, trocando de roupa com um homem
vestido de gibão gasto e remendado; o traje é perfeito para o tresloucado que ele
vai interpretar. Igual aos loucos de verdade, ele corta o cabelo rente ao couro
cabeludo e raspa o alto da cabeça. Completando o embuste, tinge o rosto com
um sumo de ervas, tornando-se irreconhecível. Para testar o disfarce, diz frases
sem sentido fazendo rir os pescadores do porto. Satisfeito com o resultado e para
completar a dissimulação, ele usa um pedaço de pau como cajado. Travestido de
louco, Tristão parte para encontrar o seu amor.
A aventura corre como planejada: ele tem permissão de entrar para alegrar os
reis com seus absurdos e asneiras. Vê Isolda e a acha ainda mais fascinante,
apesar do olhar tristonho; o tio, sorridente, pergunta qual é o seu nome e, então,
Tristão inicia a representação. Disfarçando a voz, ele responde:
— Meu nome? Não sei, mas sou filho de Urgan, o Peludo! Chamam-me,
simplesmente, o Doido.
Marc ri e faz outras perguntas. O louco dá cambalhotas, grita, gesticula e
responde com mais asneiras. A corte aplaude as tolices.
O tio quer saber que motivo o trouxe a Tintagel.
Apontando Isolda, o doido explica:
— Vim buscá-la para morar em minha casa nas nuvens e comer estrelas.
As gargalhadas estrondam.
— E por que ela iria com você? — Marc pergunta.
— Porque eu enlouqueci por causa dela.
A rainha não acha graça, mas o rei chora de rir.
A farsa continua, e as falas do louco vão se tornando mais pessoais. Diz que
ama a rainha Isolda e que sempre a amou. Que enfrentou um dragão só para
conhecê-la, que já matou por amor a ela, que dormiu ao relento para ficar com
ela. Isolda se perturba, pensa que o louco sabe demais e pede a Marc que o
expulse. Diz-se cansada de ouvir sandices e dirige ao doido palavras ásperas.
Chama-o de vadio e de ordinário. Ele não se importa com os insultos e, pegando
o cajado, esgrime o ar, duelando com gigantes e anões imaginários. Marc
aplaude. O louco, exausto, senta-se no meio do grande salão e descansa. O rei
ordena que o recompensem com moedas e, segurando a mão de Isolda, retira-se.
A rainha manda chamar Brangien e conta-lhe a respeito do louco. Está
segura de que ele é um embusteiro perverso agindo a mando de Andret para
desgraçá-la com o rei. Tem medo dele que, de alguma forma, sabe de sua vida
com Tristão. Por isso, ela o maldiz outra vez.
— E se ele for o próprio Tristão? — pergunta a aia.
— Impossível! Ele é horrendo e asqueroso, e sua voz é gutural e áspera. Não
pode ser Tristão. Vá procurá-lo e verá.
A moça obedece e tem um disparatado diálogo com o louco; já vai escorraçá-
lo quando Husdent, o perdigueiro de Tristão, surge correndo e festeja a presença
de seu dono, ganindo e pulando ao seu redor. A felicidade de rever o cão faz o
príncipe abandonar a representação e, com voz normal, ele lhe diz muitas
palavras afetuosas.
Brangien compreende tudo e, depois de cumprimentar Tristão pelo logro,
leva-o ao encontro da rainha. Isolda o abraça e beija com alegria, pedindo-lhe
perdão pelas injúrias.
Por três dias os dois se encontram, sempre acobertados por Brangien. Mas
três dias não são suficientes para aquietar a paixão, e eles se lamentam. Tristão
precisa partir e, com ternura, diz:
— Amiga querida, igual à aveleira e à madressilva, Tristão e Isolda só
sobrevivem juntos; só existimos nos braços um do outro; se nos separarmos, só a
morte para nos socorrer; somente ela para nos libertar de nossa imensa tristeza.
Por isso, este não é um adeus definitivo.
— Não será, meu amado!
É um romance belo e trágico.
***
Tristão retorna à Armórica e à Isolda das Mãos Brancas. Vive uma vida sem
sentido, com o pensamento sempre em Tintagel. Ele sofre, e sua amargura é
ainda maior sem Gorvenal, morto em um confronto com inimigos do duque. O
escudeiro lutara bravamente, mas fora subjugado por sete adversários. A perda
do mestre e amigo é arrasadora, e ele não tem sua amada para consolá-lo.
Sozinho, Tristão chora por seu mestre, por Isolda e por si próprio. É um réquiem
feito de lágrimas.
Seu desconsolo é infinito e rouba-lhe a concentração. Ele se descuida. Não
tem ânimo. Combate sem interesse. Um dia, deixa-se enganar, cai em uma cilada
e paga o preço da desatenção: é ferido por uma lança envenenada. Kaherdin o
leva para o castelo, onde vários médicos se debruçam sobre o seu leito; mas eles
ignoram qual a substância que o destrói. É um veneno desconhecido, que vem de
outras terras, eles dizem.
Os sábios de Hoël tentam de tudo: emplastros, lacerações, banhos quentes,
banhos frios, pós e pólvora. Nada faz efeito, e o príncipe piora a cada dia, a cada
hora, a cada instante. Isolda das Mãos Brancas se desvela inutilmente. Uma
vermelhidão escura circunda a ferida, que não fecha e que pulsa com vida
própria. O belo Tristão está desfigurado e quase sem forças. Os médicos
balançam a cabeça, sem nenhuma confiança em seus remédios; e o ferido,
percebendo aquele sinal inequívoco, chama Kaherdin:
— Amigo, sinto que estou para morrer, mas ainda resta uma esperança:
minha bela Isolda. Em sua Irlanda existem ervas para curar os mais terríveis
males, e ela as tem em Tintagel. Procure minha amada e deixe que ela veja o
meu anel de jaspe; conte-lhe o meu estado e ela virá me salvar. Sei que o seu
querer por mim só é igualado pelo desejo que tenho dela. Apesar de afastados
por brigas de amor, nós permanecemos um só, e nada nem ninguém pode mudar
isso. Nosso amor é indestrutível e transcende qualquer dificuldade. Foi assim no
passado e será assim agora e sempre. Ah, Kaherdin, você é a pessoa mais
próxima que tenho na Armórica! A única a quem posso pedir para trazer Isolda,
a minha amada dos cabelos dourados. — E, mais uma vez, ele a descreve,
exaltando sua extraordinária beleza.
Kaherdin o ouve desolado e promete:
— Você é mais do que um cunhado e um amigo: é meu irmão! Eu voltarei
com a sua Isolda.
— Meu tempo se esgota, Kaherdin, e, de hoje em diante, apenas a certeza
dessa vinda me manterá vivo. E, quando o meu amor chegar, seus
conhecimentos espantarão a morte que ronda este quarto. A minha bela amiga
me salvará com suas poções secretas. Traga-a o mais breve possível e, quando o
seu barco se avizinhar deste castelo, quando esta casa se tornar visível mesmo
que de longe, ice, no mastro grande, uma vela branca como sinal da querida
presença de Isolda. Eu estarei à janela e poderei sentir as emanações
vivificadoras de seu amor por mim. Meu amigo, meu irmão, não mencione esta
conversa à minha esposa das mãos brancas. Justifique a viagem dizendo-lhe que
vai comerciar com cortes da Britânia. Ela é ingênua e acreditará. Faço-lhe
apenas mais um reparo: se, por razões imperiosas, Isolda não estiver com você,
ice uma vela negra.
***
Isolda das Mãos Brancas, repousando por trás de um reposteiro, ouve o que
dizem Tristão e Kaherdin.
O ódio e o amor caminham lado a lado, e é igualmente fácil entregar-se tanto
a um quanto ao outro. Um gesto, um olhar, uma palavra fazem a mágica. E, se
para tanto uma só palavra basta, que dirá, então, toda uma conversa? A mulher,
que entendera e aceitara o “impedimento” de Tristão, sente-se traída além do
suportável e mergulha em uma raiva surda. Num átimo, consome-se e exaure-se.
No vazio em seu peito instala-se o terrível desejo de vingança. Cega de ódio, ela
tem necessidade de ferir os responsáveis por sua miséria. Feri-los a que preço
for, sem nem mesmo pensar no que lhe caberá pagar em troca. E, jubilosa, ela
arquiteta um plano.
***
***
No castelo de Carhaix, Tristão definha. Por muitos dias ele se arrastara até a
janela à procura de uma vela branca, porém, agora, isso já não é possível: as
forças lhe faltam e ele jaz no leito. Quem avista a embarcação é Isolda das Mãos
Brancas.
— Tristão, Kaherdin está de volta! Seu barco está contornando a falésia.
O príncipe tenta levantar-se.
— Qual é a cor da vela do mastro grande?
— É preta!
Tristão estremece. Não pode acreditar.
— Tem certeza?
— Vejo-a muito bem! É preta; negra como a cor do meu pior pesadelo.
Tristão dá um longo suspiro, e lágrimas escorrem de seus olhos. Isolda não
mais se importa. Desconsolado, ele abre mão da vida, e suas últimas palavras
são: “Isolda, meu amor, minha amada”.
***
Dos romances de amor trágico, Shakespeare nos legou dois inesquecíveis: Otelo
e Desdêmona; e Romeu e Julieta. Nas duas peças, a paixão cede lugar ao engano
— na primeira, a causa é a inveja e o ciúme; na segunda, o ódio e a ambição
entre famílias inimigas. Neste caso, uma nuance de destino trágico se delineia, à
luz de desencontros imprevisíveis, não apenas tramados, como no caso do mouro
a serviço de Veneza. Com Tristão e Isolda, as motivações se mesclam, e o fado
aparece como decisivo para transformá-lo em mito.
Nasce de uma lenda celta que deambula pela Europa no final do primeiro
milênio graças à oralidade e ao reconto, até ancorar-se no início do segundo, em
meio a autores normandos do amor cortês medieval, resgatados por penas
francesas (Chrétien de Troyes, Marie de France), inglesas (Thomas da Inglaterra,
Thomas Mallory) e ainda alemãs (E. von Oberg, G. von Strasburg), ora dentro,
ora fora do ciclo arturiano, por vozes trovadorescas, transformando-se em ópera
wagneriana e se difundindo com o romantismo.
O trágico da existência humana está na impossibilidade de controlar seu
tempo e destino, por mais sábio, valoroso e generoso que seja o homem: às
vezes, olhando o passado, somos capazes de entender os caminhos da paixão e o
desenlace; em outras, os fios embaralham-se insuspeitadamente e recordamos as
moiras, que, a seu gosto, promovem um desfecho nefasto quando se está a um
passo da harmonia.
Uma história com essa força — envolvendo magias, poções, enganos,
abandonos, disputas, lealdades, traições, simbologias e mistérios — poderia
parecer afastada da pós-modernidade, com a sua distância da universalidade, do
absoluto, da permanência; estamos no tempo do fragmento, do relativo, do
efêmero. Contudo, a condição humana não pode abdicar de seu desejo, de sua
expectativa de plenitude, e controlar a ansiedade pelo bem-estar, pela felicidade
duradoura. Mas o que nos cabe é, afinal, a contingência. Não há insubmissão,
aflição, indiferença que possam domar as circunstâncias que estão além da
vontade de cada um.
Claro está que, entre Ulisses na sua odisseia e Tristão na sua tragédia, vai-se
mais de um milênio e se esboça uma elaboração que, pouco a pouco, retira dos
deuses o poder de interferir na vida dos homens, mas os deixa cada vez mais
entregues a seus atos e aos de seus contemporâneos. Não chegamos aos
pensadores renascentistas que inauguram o império da razão e que, do
iluminismo, postulam um saber tudo que promete nosso domínio sobre os males
e sobre a própria natureza. Sabemos que a ciência e a tecnologia são extensões
poderosas da mente humana, mas seu coração, isto é, seus afetos, sentimentos e
percepções, tem aspirações que a inteligência pura não sossega.
Por isso, não se trata de investida anacrônica, a que faz Lia Neiva, na
retomada desta memória mítica, para lembrar aos jovens de hoje que há amores
que valem a vida e que não há poder que possa governar o destino que cada
homem elege para si: muitas são as ingerências do tempo, das circunstâncias e
circunstantes, embora possamos desejar e buscar realizar nosso bem-querer; a
questão é: sabemos qual é ele? Como sabê-lo? Narrativas como esta dão muita
linha à imaginação e ao pensamento, para que aprendamos as dobras da vida e
nos tornemos mais sujeitos dela.
Em português, no Brasil, algumas poucas versões se apresentaram
recentemente, e, sem pretender comparações, adianto que o ritmo da narração, o
enredo absolutamente bem urdido e a riqueza das imagens deste reconto de Lia
Neiva são admiráveis na conquista de leitores experientes em busca de aventura
e ação, que vão esbarrar com a ética, a discussão moral, as relações de amor e
amizade, direito e dever. Mas também leitores inexperientes, neoleitores, podem
ser seduzidos pela história fascinante, pela linguagem sem rebuscamentos, pela
sucessão ágil dos acontecimentos, embora a história pareça longa.
Basta que um bom mediador aponte no mapa-múndi o universo espacial da
narrativa, apresente na linha do tempo a era provável dos eventos, comente o
mundo da cultura celta, sua remanescência na cultura contemporânea e as lutas
de um amor maior que o medo e a morte: a viagem estará com bilhete carimbado
de ida e volta para uma discussão viva sobre a liberdade, o desejo, as tramas, a
virtude e o vício, a sagacidade e a limitação humana.
Tristão e Isolda, pelo volume de experiências que propicia, está entre as
obras clássicas que abrem caminho para outras leituras que nos resgatam
mundos distantes do nosso, aparentemente, e, no entanto, podem alimentar o
debate sobre nossa autonomia frente ao sistema, à sociedade e a ditos acasos que
nos acompanham. Coincidência ou não, este livro narra de novo uma história
que não morre no coração dos homens, justamente numa época em que se dá
conta da enorme carência de afetos seguros e duradouros, comprometidos, que
nos ameaça e nos torna frágeis, inseguros. A obra é corajosa, sem julgamentos
fáceis, sem maniqueísmos costumeiros que separam bons e maus, mocinhos e
vilões: vilania e integridade não estão isoladas e só raramente a História nos
deixa entrever figuras que superaram os limites.
Fruto evidente de pesquisa, nesta bela adaptação — que é uma forma de
mediar histórias por esta ou aquela razão já rarefeitas em sua circulação — há o
dedo mágico de uma escritora experiente, que sabe seduzir o leitor com a
linguagem que narra sensibilizando, estimulando o imaginário e abrindo o
horizonte para fazer ecoar os impasses das personagens na reflexão das pessoas.
Uma história como esta, bem contada, não tem idade, nem ela, nem seus leitores.
Eliana Yunes
Doutora em letras, crítica e especialista em leitura