Ensaios Filosoficos Volume XIV

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ORNELAS, S.

Ensaios Filosóficos, Volume XIV– Dezembro/2016

Teatro de atletismo afetivo

Sonia Torres Ornelas1


Tradução: Adriano Negris e Felipe Ribeiro

Resumo
Este artigo fornece uma perspectiva da criação teatral como abandono da definição
tradicional de representação, em favor do corpo. Nesse sentido, se expõe os vetores
vitais que transformam a noção de espaço do cênico. A criação no teatro é realizada
como experimentação onde desaparecem as fronteiras das diversas artes. Trata-se de um
teatro de atletismo afetivo, que se refere à invenção de linguagens que transbordam a
linguagem gramaticalmente organizada.

Palavras-chave
Corpo, crueldade, espaço intensivo, afectos, movimento.

Abstract
This essay offers a perspective of the theatrical creation as an abandon of the traditional definition
of representation to make possible the entrance of the body. In this way, there are suggested vital
vectors which transform the notion of scenic space. Theatrical creation is effectuated as
experimentation where all the frontiers between several arts disappear. It treats of an affective
athleticism that refers to the invention of languages that overflow the language grammatically
organized.

Keywords
Body, cruelty, intensive space, affection, movement.

_________________________
1
Doutora em Filosofia pela FFyL-UNAM, professora de filosofía na FFyL-UNAM e em La Salle.
E-mail:[email protected]
ORNELAS, S. Ensaios Filosóficos, Volume XIV– Dezembro/2016

1 - Oriente e Ocidente: atletismo e representação plástica de um texto


Se fosse possível delinear o caráter do teatro, teríamos que dizer que se trata de
uma corporeidade onde desaparecem os limites da poesia, música, dança, pintura, e o
espiritual se afirma como expressão física no espaço. Essa é a magia do teatro oriental,
particularmente o balinês, finamente codificado e ritualizado nos caminhos de uma
verdade cárnea que, em cada um de seus movimentos, inquieta. O teatro deve nos
afetar, restaurar a concepção de uma vida turbulenta e ardentemente condensada, disse
Antonin Artaud, que celebra o casamento entre a arte e a vida exaltada por Nietzsche. É
bem sabido que no Ocidente não se considera a cênica balinesa como teatro, mas como
dança. No entanto os corpos criam uma teatralidade que não pode viver distante da
música, eles se atrevem a lógica da fuga, desviam, quebram e fazem que nesse cenário
tudo ondule “em” um ritmo “que se prolonga e gagueja, como se pulverizassem metais
preciosos (...) como se os sons de solidões profundas se precipitassem em chuviscos de
cristais"(Artaud 2002, 58).
O caráter ritual faz os corpos entrarem por veredas não conhecidas, todavia, os
aventuram nas violências da vida, pois esses são o teatro da crueldade, lugar paradoxal
onde se transmutam as intenções em intensidades. "Em Nietzsche já existe um teatro da
crueldade a partir do momento que se vê o movimento nas entranhas da Terra" (cf.
Deleuze 2006, 34). O movimento constitui a magia do teatro e do espaço cênico, ou
melhor, o vazio desse espaço, pois o encantamento se produz na forma como ele é
preenchido. A dança balinesa se faz com linhas dinâmicas que atuam imediatamente
sobre espírito. Crueldade, feixe de instintos criativos. A crueldade é uma noção que
persiste na obra de Antonin Artaud, que sabe que se trata de uma expressão que engana
as fronteiras da significação sem ficar desprovida de sentido, um sentido ricamente
artístico que nasce do caos. A crueldade franqueia aos umbrais das formas para afundar
nos mares das forças.
O teatro ocidental, apoiado na forma da palavra organizada gramaticalmente,
bloqueia todo abalo do puro sussurro, esse tremor ligeiro que escapa à função orgânica
do olhar. Esse teatro não faz outra coisa que exercitar a materialização visual e plástica
do texto oral, acomodando as subjetivações em diálogos postos a serviço da
representação. É um espetáculo, ou seja, uma forma de passar o tempo, gastá-lo, como
se o tempo nos pertencesse e fosse um recurso renovável. O espetáculo se consolida
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definindo sujeitos e objetos em lugares estáveis; implica espectadores que pretende


transmitir ou comunicar-lhes algo, um sentimento, uma anedota, ou uma história.
A cena teatro oriental se preenche com fragmentos múltiplos e simultâneos. No
lugar de estruturas gramaticais, sons e suspiros. Nesse teatro surge "uma linguagem que
fala antes das palavras, gestos que se elaboram antes dos corpos organizados, máscaras
antes dos corpos, toda uma potência terrível" (Deleuze 2006, 35). Fora da
representação, o teatro se realizada como o ato de assistir ao nascimento do mundo
durante um processo de invenção em que a língua balbucia e as emoções se derramam
nos materiais de expressão que desviam das conexões regulares entre as imagens e as
palavras.

No Ocidente se reduziu tudo aquilo que é próprio do teatral, tudo que não pode
se representar através da palavra (...) A cena é um espaço físico concreto que
exige ser ocupado e expressado com sua linguagem específica, uma linguagem
que deverá se dirigir a todos os sentidos2.

A submissão da arte à lógica gramatical é amplamente denunciada por


Nietzsche, de maneira notável no que diz respeito à música de Wagner, pois nela a letra
domina a paisagem melódica e, acima de tudo, impõe certezas na boca do personagem
dramático Parsifal. De acordo com Deleuze tal extravagância estria as planícies para
fazer com que o fundo da ópera seja o sentido, a significação objetiva que se dirige, em
primeiro lugar, ao cérebro. A música morre em intervalos, não funciona como uma voz
desterritorializada, apenas um ritornelo, que Deleuze e Guattari muitas vezes se referem
como “buraco negro”. O ritornelo é um “tra-la-la” cantarolado por uma criança, porque
na voz infantil não se define as distinções de tessitura3. A música, o teatro e todas as
artes passam por devires minoritários: a criança é a expressão de uma involução
criadora. No cinema, a figura da criança anuncia o caráter derivado dos corpos, seu
enfraquecimento frente às potências da psique. Não se compreenderia o neorrealismo
italiano sem a inclusão de crianças que fazem sensível o eclipse da imagem-ação.
Quando se diz que Mozart e Berg4 compõem a partir de ritornelos, talvez
devesse se entender que a música nasce em sua garganta latejante e logo em seguida

_________________________
2
Cf. A. Artaud, O Teatro e seu Duplo, p. 52, contracapa, assim como p. 134. Artaud aponta as diferenças
entre a cultura oriental e ocidental: o teatro balinês depende de gestos e símbolos, utiliza a cena para o
ritual e a transcendência; os atores entram em contato com o inconsciente. Teatro ocidental se baseia no
diálogo, e usa o palco para a ética e a moral, argumenta que a linguagem das palavras é o melhor.
3
Disposição das notas para se acomodarem a uma determinada voz ou a um dado instrumento (N. do T.).
4
Deleuze diz que Alban Berg (1885-1935) é um compositor austríaco considerado como um dos mais
influentes na ópera do século XX. Wozzeck e Lulú são as duas óperas mais conhecidas e interessantes.
Discípulo de Arnold Schoenberg de 1904, utiliza as técnicas de seu professor. Veja, Gilles Deleuze,
Derrames. Entre el capitalismo y la esquizofrenia (Buenos Aires: Cactus, 2005), 321.
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recai no papel pautado em clave de Sol (cantata, notas agudas de uma melodia) e em
clave de Fá (notas graves, baixas, instrumentais, piano, órgão, baixo).

A música vocal ocidental é determinada pelo tenor, o contralto e contra-tenor


inglês e seu correlato italiano, o castrato. O tenor é o que sustenta a linha, e
depois estão as linhas superiores contralto, soprano. No entanto, essas vozes
são de crianças ou feitas para crianças.5

Não é de se estranhar que Artaud evoque uma linguagem orientada a todos os


sentidos, uma linguagem propriamente teatral, corporal, cruel no sentido de infra-
humano e brutal. O teatro da crueldade é o encontro de um corpo sem órgãos que ocorre
quando se suprime toda a significação, todo fantasma, e se põe a operar o desejo para
além do indivíduo, e a obra deixa de ser o drama para transparecer a verdadeira obra
teatral que é a cena invadida por ondas de dor ou de prazer, de frio ou de calor. "O
corpo sem órgãos não é um lugar, nem está em algum lugar; é matéria intensa, não
formada; energia. O corpo sem órgãos é o campo de imanência do desejo "(Deleuze
2000, 156). O glorioso encontro que faz Deleuze na obra de Artaud é o corpo sem
órgãos, esse princípio plástico que transforma o inconsciente em uma fábrica que
produz e distribui de acordo com uma causalidade múltipla e inesgotável,
compreensível unicamente como uma dinâmica de fluxos.
O devir afetivo do teatro acontece na retirada da interpretação e no julgamento
em favor do movimento: quando o acaso e a possibilidade começam a funcionar para
além do ator e do público e se dissolvem as contradições, uma vez que o princípio das
transformações não possui contrário e se torna sensível nos corpos ainda não entregue a
nenhum logos. O teatral, conforme Artaud, concerne aos corpos não organizados
sumariamente. O teatro afetivo cria espaços lisos; deforma6, uma vez que atores
trabalham sobre um corpo cheio de inscrições, hábitos, de temores e de esperanças,
códigos e clichês que devem apagar para encontrar algo vital, uma possibilidade. E, uma
possibilidade é coisa diversa da possibilidade lógica; esta aponta para a certeza, aquela,
para a incerteza e a indeterminação. O teatro afetivo é uma estranha fidelidade ao que
está sempre por vir, aos povos que, todavia, não existem, diz Deleuze, nos fazendo

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5
A Deleuze acha divertido saber que Dominique Fernandez se indigna que as mulheres cultivem uma
voz de soprano, pois o soprano natural está na voz da infantil, antes de qualquer complicação de gênero
sexual.
6
Deleuze desenvolve um pensamento frutífera e fecunda sobre as diferenças entre as noções de espaço
amplo e espaço intensivo. Intensive é dado por uma síntese assimétrica do espaço sensata infundadas
(effondé), que não obedece a natureza referencial de objetos, e que está a perturbar as funções visuais e
sem espaços ópticos, estriados, sujeitos a pontos e linhas (espaços amplos, físicos), mas os haptics,
suaves, como o Saara, frequentemente invocada. Suave isso não significa <vazia>, mas intensa ou
povoado por intensidades. É um espaço de vida.
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recordar que “povo” é uma categoria estética porque alude ao possível, ou seja, a
criação artística.
"A obra de arte abandona o reino da representação para se fazer experiência,
empirismo, sensação"7. Experimentar conjura a representação da experiência, abre aos
afectos, tratados por Artaud e por Deleuze como potências impessoais. Assim,
experimentar consiste em um contínuo colocar em marcha e em dança, optar por
movimentos e não por palavras. Os afectos e perceptos não significam afecções e
percepções; ao contrário, eles insinuam modos da sensação, matéria expressiva pré-
subjetiva proporcionadora de alguma realidade artística. Os afectos são mais comuns na
dança e na música. A dança etérea, quase irreal, a música impregnada de uma
sensualidade que arde com graça os apetites inflama. Os perceptos, na poesia, na
literatura e na pintura. O teatro sintetiza estas artes em um composto inorgânico onde as
intensidades estremecem os corpos: a dor contrai, o terror quebra, a alegria expande, o
ciúme retorce.

2 - O ator é um atleta afetivo


“O ator é como um atleta, ainda que de outra índole, pois atua em diferente
plano; é um atleta do coração” (Artaud 2002, 127). Um atleta correndo em circuitos
interiores a velocidade de um grito convulsivo; alguém que translada as funções do
pensamento ao coração e desata as paixões das dobradiças da abstração. Soltos, ao final,
os frenesis se enaltecem no sintoma que os revela e reveste ao mesmo tempo. O ator
improvisa avatares no seu corpo, e ao improvisar se une ao mundo devindo outro e
outro com ele. Tal é a operação de um coração pensante e um espírito comovente e
pleno de materialidade.
O atletismo afetivo coloca em conclave respiração e expressão; “o alimento
dinamiza a vida, fazendo-a arder em sua substância mesma (Artaud 2002, 130). As
emoções possuem um ritmo próprio que regula a bússola da respiração e empurra o
corpo em torrentes centrifugas que estendem o espaço artístico, ou o recolhe
aglutinando em um punhado de emoções. A expressão é elástica, se prolonga em gestos,
ou se aquieta suavemente. Artaud elabora uma série de variedades das cadencias
femininas e masculinas; umas, graciosas e fatigadas como a úmida brisa da selva, as

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7
Gilles Deleuze. Diferença e Repetição. (Buenos Aires: Routledge, 2006), 79. Deleuze transforma o
significado do empirismo do primeiro livro escrito empirismo e subjetividade. A filosofia de Hume
abandona a ideia de que o empirismo refere-se às tensões da experiência e a priori. Deleuze desenvolve
um empirismo não indicando que parte da tabula rasa, vazia. Pensei que começa em um <dois>, metade
de uma colcha de retalhos de matéria têxtil que tornam possíveis alterações na forma pela adição de novas
peças de tecido. Assim, o empirismo é um novo poder, e até mesmo uma lógica diferente.
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outras ardentes como raio na tormenta; umas suplicam, as outras expõem. “Tudo que é
feminino é invocação” (Artaud, 2002, 132). No entanto ambas existem no jogo das
respirações e nos músculos agitados pela afetividade que substitui as estratégias
linguísticas da designação. Linguagem possível, clama Artaud, absurdo de superfície,
agrega Deleuze, humor poético que transborda os limites da ironia racional. O humor
vive no teatro, revoluciona o real, tende ao anárquico; coloca o corpo em cena, ou
melhor ainda, faz do corpo um palco.

Conclusões
O teatro considerado como um atletismo afetivo faz da crueldade um retorno do
espírito da fábula; e a fábula se conecta com as potências do falso, mais do que com a
imaginação. As potências do falso operam nos corpos, os descompõem até fazê-los
corpos sem órgãos povoados de emoções intraduzíveis. O falso não conserva valores
positivos epistemológicos ou morais; indica melhor o ato de falsear uma realidade
criando espaços artísticos. A imaginação, por outro lado, é de ordem psicológica, alheia
ao momento meramente criativo da teatralidade. De fato, Deleuze prescinde da noção de
“imaginação”, a entende problemática, porque seu estatuto ontológico escapa aos jogos
de conceito e da sensação. O afetivo cria linguagens menores dentro da própria
linguagem, isto é, não renuncia por completo a palavra, porém subtrai dela toda
arbitrariedade, e a utiliza espacialmente, estimulando a materialidade que é própria para
perverter o estabelecido. Essas linguagens corporais são signos, e uma vez que os signos
são figuras do mundo, os atores convertidos em atletas do coração entram em um devir-
hieróglifo, o que Artaud chama de automatismos.
O ator da crueldade é um atleta afetivo que atravessa os umbrais intensivos, o
que Deleuze nomeia intermezzo¸ou simplesmente entre, para indicar que tudo acontece
no meio; que é um meio onde os mundos nascem de uma virgindade juvenil, porque não
estão submetidos às leis da significância e da subjetivação. Esses mundos nascentes são
os espaços dos afectos e dos perceptos. Os afectos são devires não humanos do homem,
expressam o inconsciente, o delírio, a alucinação, todas essas atmosferas da psique que
se insinuam nos gestos e posturas corporais. Os perceptos são devires não humanos da
paisagem que se imprime na pintura e na literatura, oferecendo uma expressão física
precisa, como a que se alcança no teatro balinês, onde toda expressão é expressão física
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no espaço. O teatro da crueldade ou teatro do corpo, feito de afectos e perceptos, revoga


o teatro da representação próprio do Ocidente, feito de afecções, sentimentos,
percepções e opiniões.

Referências Bibliográficas

ARTAUD, Antonin. El teatro y su doble. México: Grupo Editorial Tomo, 2002.


DELEUZE, Gilles. Derrames. Entre el capitalismo y la esquizofrenia. Buenos Aires:
Cactus, 2005.
DELEUZE, Gilles. Diferencia y repetición. Buenos Aires: Amorrortu, 2006.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. El AntiEdipo. Capitalismo y esquizofrenia.
Barcelona: Paidós, 1998.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil mesetas. Capitalismo y esquizofrenia.
Valencia: Pre-Textos, 2000.

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