A Lenda Do Milagre de Ourique
A Lenda Do Milagre de Ourique
A Lenda Do Milagre de Ourique
Não se sabe ao certo que em lugar do Alentejo, Afonso Henriques e seus homens,
em 1139, travaram uma batalha contra os muçulmanos. Diz a tradição, que o
conflito se deu no dia de São Tiago de Compostela, mas, quanto a isso, não há
documentação confiável. Afonso e sua tropa se veem cercados por numerosos
inimigos. Mesmo com a desvantagem, inspirados por Deus, os homens lançam-se
à refrega, vencem os contrários e, ali no campo, o conde é proclamado rei. Daí o
dizer que em Ourique nasceu Portugal.
Evidente que bons cristãos viram nisso um ato da Providência Divina. Acontece,
porém, que foram passando os séculos, e essa história, que no início era bastante
esquemática e lacônica, passou a ser, digamos, incrementada. Se os detalhes
foram inventados ou transmitidos por tradição, não podemos saber com toda
certeza. E, no fim das contas, isso não nos importa. O importante, para as
finalidades deste curso, é que os portugueses que rumaram às Índias, com
grande perigo de morte, acreditavam firmemente na história e em seus detalhes
— falsos ou não.
Veja, o marco inicial das navegações, nos livros didáticos, é a tomada de Ceuta,
em 1415. Mas a empreitada ainda não havia começado realmente. Então, em
1419, ainda no prólogo da epopeia marítima, publicou-se uma crônica narrando
com vários elementos novos os sucessos em Ourique. Agora já se falava no
eremita e na aparição de Cristo: “[...] tangeu-se a campanha, e ele saiu-se fora de
sua tenda, e assim como ele disse e deu testemunho em sua história, viu Nosso
Senhor Jesus Cristo com a Cruz pela guisa que o ermitão lhe dissera e adorou-o
com grande prazer e lágrimas” [3].
Então Jesus anuncia a Afonso que ele vai vencer e será proclamado rei, o que de
fato acontece. Após o combate, como homenagem Àquele que lhe havia
concedido tamanha graça, o rei faz, ali no campo, a bandeira da nova pátria: “[...]
por se lembrar da mercê que Deus naquele dia fizera, pôs sobre as armas brancas
que ele trazia uma cruz toda azul e, pelos cinco reis que lhe Deus fizera vencer,
departiu a cruz em cinco escudos” [4].
Isso é de uma importância espiritual imensurável para a Igreja portuguesa. Aí está
a explicação das armas dos reis de Portugal que sobrevivem até hoje, na bandeira
da República. O brasão de Portugal, fundamentalmente, apesar das variações
históricas, é formado por: um escudo num centro branco com cinco escudetes
azuis, formando uma cruz; dentro de cada um desses escudos estão bolas
brancas (besantes), dispostas como num dado; o número cinco “em aspas”, como
se diz em heráldica. Essa é a parte central representando as cinco chagas de
Cristo; os escudos simbolizam a proteção que Deus deu contra os cinco reis
mouros. Ao redor, contornando o escudo em vermelho, vê-se sete castelos
dourados.
Evangelização
Sem considerar se isso está certo ou errado, estamos aqui apenas apontando
para um fato. O mundo medieval não era ainda o da separação moderna entre
Igreja e Estado. E, na prática, por mais que fira certas suscetibilidades, a história
mostra o seguinte: os povos que são hoje majoritariamente cristãos tiveram um
rei cristão. E mais: a América Latina hoje é católica porque houve um dia os reis
católicos de Espanha e os reis católicos de Portugal. Já os Estados Unidos são
protestantes porque na Inglaterra houve reis que, infelizmente, eram protestantes.
Na Rússia, o rei virou ortodoxo e o povo inteiro o seguiu; na Grécia, o imperador do
Oriente rompeu com Roma e assim os gregos se mantiveram rompidos. Aliás, no
caso romano, o processo não foi assim: conforme já vimos, o crescimento das
comunidades cristãs foi lento e orgânico, e a oficialização da Igreja só serviu para
facilitar um desenvolvimento inexorável. Nisso se tem um exemplo positivo dessa
união da Igreja que inspira a política e da política que favorece a Igreja.
Pelo contrário, os países onde triunfa o ateísmo são os da chamada separação
entre Igreja e Estado, os “Estados laicos”. Porque o Estado “laico” pode ser aquele
em que a política não se intromete e deixa a Igreja evangelizar o quanto quiser, ou
pode ser aquele em que somente os ateus e materialistas têm plena cidadania, e
os cristãos precisam viver suas convicções de forma muito escondida, privada.
Voltemos ao nosso assunto. Com o passar do tempo, o mito de Ourique foi sendo
ainda mais elaborado, e no século XVII se começou a incluir nas palavras de
Cristo a Afonso uma espécie de profecia das navegações, mencionando, entre
outras coisas, a instauração de um reino a ser cristianizado em terras estranhas. É
o que se lê na crônica do frade de Santa Cruz, Antônio Brandão. O texto se acha
na sua obra Monarquia Lusitana, na Parte Três.
É interessante que essa crônica foi escrita em 1632. O Brasil, portanto, já estava
descoberto, as navegações já haviam chegado no seu auge e, na verdade,
Portugal vivia um momento de retração. Isso porque, após a morte do rei Dom
Sebastião, que não deixou sucessores, a coroa portuguesa foi assumida pelo rei
da Espanha — formando a chamada União Ibérica — e Portugal terminou
herdando os inimigos do país vizinho, especialmente a Holanda e a Inglaterra.
Armado, com espada e rodela, saí fora dos reais e subitamente vi à parte
direita contra o nascente um raio resplandecente e indo-se pouco a pouco
clarificando, cada hora se fazia maior, e pondo de propósito os olhos para
aquela parte, vi de repente, no próprio raio, o sinal da Cruz, mais
resplandecente que o Sol, e Jesus Cristo crucificado nela [6].
É Afonso Henriques dizendo que seria melhor Cristo aparecer lá para os mouros,
pois ele já tem fé. E então ele relata a resposta de Jesus:
O Senhor, com um tom de voz suave, que minhas orelhas indignas ouviram,
me disse: ‘Não te apareci deste modo para acrescentar tua fé, mas para
fortalecer teu coração neste conflito, e fundar os princípios do teu reino
sobre pedra firme. Confia, Afonso, porque não só vencerás esta batalha, mas
todas as outras em que pelejares contra os inimigos da minha Cruz.
Acharás tua gente alegre e esforçada para peleja, e te pedirá que entres na
batalha com o título de Rei. Não ponhas dúvida, mas tudo quanto te pedirem
lhes concede facilmente. Eu sou o fundador e o destruidor dos reinos e
impérios, e quero em ti e teus descendentes fundar para mim um império, por
cujo meio seja meu nome publicado entre as nações mais estranhas [8].
Conclusão
Nas próximas aulas, falaremos do início das navegações com o Infante Dom
Henrique. Então junto do espírito de cruzado, de que já falamos longamente,
precisava acrescentar esse outro elemento fundamental do imaginário dos
navegadores: a aparição de Jesus a Afonso no campo de Ourique. Pois, não custa
lembrar, o cerne da nossa investigação é este: entender o que movia esses
homens; o que os fez entrar naqueles barcos rumo ao desconhecido, aos perigos,
à morte. E queremos entendê-los não para repeti-los necessariamente, mas para
que façamos um exame de consciência. Precisamos ver onde eles erraram, onde
foram cruéis, onde foram injustos; mas também precisamos reconhecer suas
virtudes humanas e, sim, suas virtudes cristãs.
Sugestões bibliográficas
Para quem deseja ler um pouco mais a respeito do milagre de Ourique, deixo as
seguintes sugestões:
Referências
Nota
4. Ibidem, p. 3.
8. Ibidem, p. 16-17.