Sergio Alberto Feldman - História Medieval
Sergio Alberto Feldman - História Medieval
Sergio Alberto Feldman - História Medieval
Vitória
2015
Presidente da República Coordenadora Adjunta UAB da UFES Laboratório de Design Instrucional (ldi)
Dilma Rousseff Maria José Campos Rodrigues
Gerência
Ministro da Educação Diretor do Centro de Ciências Coordenação:
Renato Janine Ribeiro Humanas e Naturais (CCHN) Letícia Pedruzzi Fonseca
Renato Rodrigues Neto Equipe:
Diretoria de Educação a Distância Giulliano Kenzo Costa Pereira
DED/CAPES/MEC Coordenador do Curso de Graduação Patrícia Campos Lima
Jean Marc Georges Mutzig Licenciatura em História – EAD/UFES
Geraldo Antônio Soares Diagramação
Coordenação:
UNIVERSIDADE FEDERAL Revisora de Conteúdo Geyza Dalmásio Muniz
DO ESPÍRITO SANTO Adriana Pereira Campos Equipe:
Antônio Victor Simões
Reitor Revisora de Linguagem
Reinaldo Centoducatte Fernanda Scopel Ilustração
Coordenação:
Secretária de Ensino a Distância – SEAD Design Gráfico Priscilla Garone
Maria José Campos Rodrigues Laboratório de Design Instrucional – SEAD Equipe:
Paulo Caldas
Diretor Acadêmico – SEAD sead
Júlio Francelino Ferreira Filho Av. Fernando Ferrari, nº 514 Impressão
CEP 29075-910, Goiabeiras Tavares&Tavares
Coordenadora UAB da UFES Vitória – ES
Teresa Cristina Janes Carneiro (27) 4009-2208
138 p. : il. ; 23 cm
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-63765-09-3
CDU: 94(100)”04/14”
Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir deste trabalho para fins
não comerciais, desde que atribuam ao autor o devido crédito pela criação original.
A reprodução de imagens nesta obra tem caráter pedagógico e científico, amparada pelos limites do direito de autor, de
acordo com a lei nº 9.610/1998, art. 46, III (citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação,
de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir,
indicando-se o nome do autor e a origem da obra). Toda reprodução foi realizada com amparo legal do regime geral de
direito de autor no Brasil.
Introdução: Idade Média? Era de trevas? 6
tema 1
a transição do mundo antigo para o medievo 10
1.1 Breves reflexões sobre a queda do Império Romano do Ocidente 12
1.2 Os visigodos e o Império Romano (primeira fase das invasões) 13
1.3 Vândalos, suevos e alanos (segunda fase das invasões) 14
1.4 Estudo de caso I – O Reino Visigótico de Toledo: origens do modelo social ibérico 17
1.5 Estudo de caso II – Os francos: da dinastia merovíngia sob Clóvis até os carolíngios 25
Tema 2
O Feudalismo 32
2.1 Uma breve periodização e contextualização 33
2.2 As origens do feudalismo e o contexto de sua criação 34
2.3 Economia agrária e autossuficiente 36
2.4 O modelo social 39
2.5 Classes? Castas? Uma sociedade estratificada 42
2.6 Transformação do sistema 47
Tema 3
Igreja Medieval 48
3.1 Introdução 49
3.2 A liderança espiritual da Igreja 51
3.3 As relações entre o papado e os imperadores 52
3.4 A construção da doutrina hierocrática 54
3.5 A ordem de Cluny e a reforma da Igreja no Ocidente medieval 57
3.6 O controle da sociedade, o controle do corpo e o controle das armas 59
3.7 A oposição: os imperadores, os cismas, a crítica, a hierocracia e as heresias 61
3.8 O papado entre o Cativeiro de Avignon e o Grande Cisma 66
tema 4
Império Bizantino E Islã Medieval 70
4.1 O Império Bizantino entre a Roma Imperial e a cultura grega 71
4.2 As polêmicas religiosas no Império Bizantino 76
4.3 A luta entre bizantinos e persas: Heráclio x Cosroes 77
4.4 A Arábia e seu isolamento: o período pré-islâmico 78
4.5 Maomé e sua trajetória: de caravaneiro a profeta 81
4.6 Doutrinas do Islã: cinco pilares 81
4.7 A expansão do Islã: reflexões e análises 84
4.8 O califado de Damasco e o califado de Bagdá 87
4.9 O Islã no Ocidente: a presença muçulmana na Hispânia 91
tema 5
Cultura arte e religião 92
5.1 A era das trevas? 93
5.2 O monarquismo: a manutenção dos saberes e da cultura 94
5.3 O Renascimento carolíngio 98
5.4 A Idade Média central (séc. xi a xiii) 99
5.5 A universidade medieval 104
5.6 A literatura medieval 106
5.7 Reflexões finais 108
tema 6
O Ocidente medieval
entre a expansão, a retração e a renovação 110
6.1 Os saberes e os poderes 111
6.2 As Cruzadas 111
6.3 A reconquista cristã na Península Ibérica 118
6.4 O renascimento urbano e comercial 125
6.5 A Peste Negra e a crise do sistema 132
6.6 Guerra dos Cem Anos 134
6.7 A expansão marítima e colonial portuguesa 135
6
greco-romano, e a comparavam de maneira pejorativa com o período que
denominaram de “medieval”. Ansiavam restaurar a beleza da arte greco-
romana, que enfatizava os corpos atléticos e a beleza física; trazer às artes
temas da mitologia grega/romana e a exaltação do belo, pelo belo e sem rela-
ção com o religioso; ampliar e libertar o pensamento sob o signo da filosofia
que já renascera no período medieval, mas atrelada à teologia, fato que os
humanistas do Renascimento queriam separar; restaurar o direito romano
e fortalecer através deste os estados nacionais que ora renasciam e reduzir
a inserção do clero na legislação do cotidiano, da cidade e do reino dimi-
nuindo o controle social da Igreja e repassando-o para os estados e gover-
nantes. Podemos afirmar que os responsáveis por titular esse tempo de Idade
“Média” foram, principalmente, os humanistas, os artistas e os pensadores
do Renascimento. Mas o que foi o Renascimento? Entre uma diversidade
de interpretações e explicações, pode-se dizer que foi o período de retorno
aos padrões e valores da cultura clássica da Antiguidade e de condenação do
período medieval. Assim denegriam o medievo, considerando-o uma era de
Trevas, dominada pela Igreja, irrelevante e obscura e que não legara nada ao
Ocidente europeu. O segundo agrupamento a dar um sentido aviltante ao
Medievo vivia nos séculos XVIII e XIX. Eram pensadores também críticos ao
clero e às instituições surgidas na Idade Média. Um historiador do período,
Jacob Burckhardt (1860), na obra A civilização do Renascimento na Itália, ao
7
exaltar os avanços da Renascença, destacava os defeitos do pensamento
medieval por meio da condenação dos controles sociais nele vigentes. Dessa
forma, em dois períodos subsequentes, o Medievo foi representado como
uma era de trevas. Isso não é uma verdade absoluta e merece sua atenção e
reflexão. Trata-se de uma avaliação que demonstra ter um fundo ideológico.
A polarização e o hábito de exaltar um grupo, um partido ou uma ideia
fazendo o uso da estigmatização do oposto ou diferente é uma atitude
comum em todos os setores da vida, em todos os lugares e tempos. Bem X
Mal; Deus X Diabo; espiritual X material; Eu x Outro. Essa maneira de defi-
nir uma identidade positiva e alocada no campo do bem através do uso de
uma alteridade (alter = outro) definida de maneira negativa e associada à
malignidade é perigosa e tendenciosa. Há aspectos positivos e negativos
em todos os períodos. O período medieval, ao contrário do proposto pelos
pensadores acima elencados, foi bastante importante na construção do
Ocidente e do mundo moderno, legando saberes e técnicas, e não apenas
um período de obscuridade.
O mundo greco-romano se baseava no trabalho escravo e os homens livres
podiam se dedicar à política, ao culto da mente e do corpo. Este conjunto
definia um conceito denominado otium (ócio), que era um privilégio dos
homens livres e cidadãos. A escassez de escravos no final do período imperial
foi um dos motivos da queda do Império Romano do Ocidente.
8
No Medievo também houve exploração de mão de obra servil e até
mesmo resíduos de escravidão, mas havia prolongados vazios demográficos
que geravam falta de recursos humanos. Por isso verificaram-se importantes
avanços, por exemplo, na busca de novas formas de aproveitamento do solo,
por meio da implementação de técnicas agrícolas e artesanais. Os grandes
desenvolvimentos dos últimos séculos da Idade Média possibilitaram, con-
traditoriamente, sua própria superação, a transformação e o rompimento do
sistema. Sem o Medievo não haveria Renascimento, que herdou do período
anterior os progressos técnicos e suas descobertas. Neste livro tentaremos
abordar exatamente o legado da Idade Média, cuja contribuição vai muito
além do fato de ser o intermediário entre a Antiguidade e o Renascimento.
Alertamos, porém, que não deixaremos de apresentar suas idiossincrasias
e contradições de modo que possamos construir um conhecimento crítico,
mas de modo algum preconceituoso.
9
A transição do mundo
antigo para o medievo
10
historiografia tradicional convencionou que a Idade Média
começou em 476 com a deposição do último imperador do
Império Romano do Ocidente, Rômulo Augústulo, e se encer-
rou com a tomada da cidade de Constantinopla, a Roma do
Oriente, pelos turcos otomanos em 1453. Há quem prefira a data de 1492, que
é considerada o marco da descoberta da América por Colombo. Isso tudo
são convenções e demarcações temporais para facilitar a compreensão e a
escrita da História.
Em nossos dias, há duas escolas que refletem sobre o período inicial do
que se convencionou chamar Idade Média. Uma afirma que após o ano de
476 ocorreu a Primeira Idade Média, cuja característica mais importante é ter
sido uma era de transição entre a Antiguidade e o Medievo. Já a outra escola
denominou o período como Antiguidade Tardia, pois a transição teria sido
mais lenta e demorada, na qual sobreviveram elementos do período clás-
sico, mas fortemente influenciados pelo cristianismo, e elementos de ori-
gem germânica, que lentamente foram agregados. Há permanências e con-
tinuidades (da Antiguidade), há transformações e também novos elementos
que aparecem. Entre os seguidores desta linha há divergências internas:
alguns consideram que o período começa com Diocleciano (virada do século
III para o IV); outros advogam que se inicia com Teodósio quando ele dividiu
o Império Romano em duas partes (oriente e ocidente) em 395. Alguns apon-
tam a data tradicional de 476. E outros ainda, as conquistas de Justiniano
na primeira metade do século VI. Também em relação ao final divergem –
tópico que será discutido mais adiante. Interessa, contudo, que ambas as
escolas historiográficas concordam com a importância da tradição greco-
-romana, as contribuições dos povos germânicos e o cristianismo como
elemento de união dessas culturas. O aporte cultural grego e romano não
cessará de ser considerado um elemento-chave. O mundo ocidental sempre
terá aspectos dos saberes clássicos influenciando nas suas percepções de
mundo. A filosofia grega e o direito romano são dois fortes exemplos, entre
muitos saberes que nunca perderam certa influência através do tempo, nos
espaços do mundo ocidental.
11
Os germânicos eram menos desenvolvidos em alguns campos do saber,
mas seu legado para o medievo será notável. A Igreja será o cimento que
moldará as estruturas sociais, culturais e até políticas. Sua pujança e seu
crescimento são notáveis. A Igreja assimila tanto saberes clássicos quanto
germânicos em prol de manter o seu avanço e evangelização dos pagãos.
16
Mapa 1 – Migrações de povos e invasões
22
ora coligadas, ora em conflito, pois cada uma delas pretendia eleger, como
rei, um membro de seu grupo ou subgrupo.
Isso gerou conflitos entre membros da nobreza, ora entre si, ora contra
o rei no poder. Os reis muitas vezes quiseram fortalecer seu poder e nomear
seus filhos como herdeiros do trono, criando uma dinastia. Quando o poder
real era suficiente para conter a oposição, isso ocorria; quando o monarca
era menos poderoso, ocorriam revoltas e regicídios (assassinatos ou mutila-
ções de reis ou herdeiros do trono). O bispo franco Gregório de Tours escre-
veu no final do século VI que os visigodos eram regicidas, pois matavam
seus monarcas.
Isidoro de Sevilha, irmão e herdeiro de Leandro, que o sucedeu como
bispo na mesma cidade, foi um grande líder espiritual e articulador das
relações entre a Igreja e a monarquia. Tentou atenuar o conflito entre
monarcas e setores da nobreza, afirmando que os reis eram sagrados e que
deveriam ser “intocáveis”. Fez uso do Antigo Testamento (Bíblia hebraica)
na qual há afirmações que enfatizam a unção dos reis hebreus e sua sacra-
lidade. Instituiu a unção dos reis, fato que deve ter sido consumado alguns
anos mais tarde.
A atuação de Isidoro de Sevilha não bastou. Os reis eram depostos sem
serem assassinados a partir de agora. Eram tonsurados, tornando-se mon-
ges e enviados a mosteiros, mas efetivamente seguiam sendo depostos. As
lutas intestinas entre grupos de nobres contra a monarquia e a disputa pelo
cargo de rei enfraqueceram a coroa.
Em meio a disputas entre uma facção liderada pelo rei Rodrigo, recém-
-empossado, e os filhos do rei anterior, ocorreu a invasão do exército
norte-africano. O grupo opositor fez um acordo com o invasor e, junto com
este, derrotou com facilidade o rei visigodo. Na sequência, gradualmente,
tomaram-se praças, fortes e cidades, geralmente por meio de pactos, man-
tendo-se o conde local como líder da cidade e preservando-se os bispos e
os direitos da população cristã. Alguns cristãos migraram para as regiões
norte e nordeste da península e encetaram certa resistência ao poder do
califado de Damasco, que a partir de então se tornou a entidade política
dominante na maior parte da região.
23
O legado visigótico pode ser considerado como um padrão identitário
Ser godo é ser nobre. Por quê? para os cristãos ibéricos no período em que começaram a reconquistar lenta-
Então devemos nos perguntar mente espaços tomados pelos muçulmanos. Isso ocorreu nos séculos seguin-
as razões pelas quais o godo é tes. O modelo jurídico e a religiosidade visigótica serviram como uma refe-
visto positivamente e vândalo é rência das novas monarquias medievais ibéricas. As influências e os padrões
visto como pejorativo. Godo virou da monarquia visigótica formaram a base da legitimação da monarquia cas-
substantivo e serviu para designar telhana. A nobreza medieval em todos os reinos ibéricos almejou encontrar
um estilo de construção de prédios nas suas origens, geralmente de maneira imaginária ou “criada”, seu vínculo
religiosos. Vândalo se tornou com casas nobres e personagens semilendários, que seriam parte da nobreza
adjetivo. Os dois povos saquearam goda. Ser godo significava ser nobre. Isso aparece até no romance de Miguel
a capital imperial, a cidade de de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha, que ironiza a nobreza do século XVI,
Roma: os visigodos em 410 e os enfatizando que o sangue nobre teria embasamento em origens godas.
vândalos em 455. Reflita sobre isso. Este mito gótico fundamentou as crenças na superioridade da nobreza
diante de outros estamentos ou grupos sociais. Demarcou longa duração na
qual alguns elementos da sociedade se consideravam superiores a outros. O
sangue era um marco separador e de contenção da ascensão social e integra-
ção de estamentos intermediários, tais como comerciantes ou artesãos enri-
quecidos. A Igreja ajudou na construção e na manutenção dessa separação.
As monarquias ibéricas, em especial a castelhana, trataram de se rela-
cionar com os visigodos e passaram a se considerar seus herdeiros, o que
gerava uma legitimidade e uma continuidade mítica. As monarquias cató-
licas, assim, se imbuíam de valores e sacralidade por defenderem a fé
“verdadeira” e por objetivarem expandi-la na qualidade de defensores da
Cristandade e do direito legítimo de retomar espaços ocupados por infiéis.
Isso se conecta no final da reconquista (veja tema seis), já no fim do perí-
odo medieval, com interesses mercantis, sobretudo na aquisição de especia-
rias e metais nobres, na obtenção de colônias para impulsionar a expansão
marítima portuguesa e a ocupação da América Latina. Assim, a história ibé-
rica, e seu anseio de retomada das terras perdidas ao Islã, transpassa os limites
da Península Ibérica e se expande para o norte da África, para as costas africa-
nas, para as Índias e para as Américas, estas últimas descobertas no final do
período medieval. A história medieval ibérica permite, como visto, conhecer
melhor nossas próprias raízes e a história de nosso continente americano.
24
Esperamos que essa abordagem demonstre a improcedência da afirma-
ção da Idade “Média” como uma Era das Trevas e mesmo como um perí-
odo obscuro o suficiente para ser caracterizada apenas como um momento
(muito longo) de passagem do mundo Antigo à época Moderna. Mas volte-
mos aos reinos germânicos.
28
mais elevada do que a de um império terreal e a força da sua glória,
concedemos e entregamos ao já mencionado santíssimo pontífice,
o nosso [padre] Silvestre, o papa universal, e ao poder e jurisdição
dos pontífices seus sucessores, não apenas o nosso palácio ( I ), como
foi anteriormente citado, mas também a cidade de Roma e todas as
províncias, praças e cidades de toda a Itália e das regiões do Ocidente
[…] como uma possessão legal e permanente da Igreja Romana. […]
[Edictum Constantini ad Silvestrum Papam, in J.P. Migne, Patrologiae
Cursus Completus, Series Latina, t. VIII, Paris, 1844, col. 577].
30
Mapa 3 – O império de Carlos Magno
31
O Feudalismo
32
Feudalismo é uma terminologia complexa que gera dificul-
dades de compreensão e, por outro lado, proporciona uma
diversidade de explicações. Tentaremos dividi-la em ele-
mentos para compreendê-la em partes e poder então obter
uma visão de conjunto. Busquemos inicialmente suas raízes, que provêm de
várias influências, mas tentaremos condensá-las.
38
2.4 O modelo social
A escravidão do período imperial romano se tornara incapaz de solucionar a
crise de mão de obra. O colono do final do período imperial se transformará
no servo do feudalismo. O vínculo do trabalhador com o senhor e com a
propriedade rural se consolida através de um contrato de trabalho. Este é
sacramentado por meio de uma cerimônia em que o juramento de servidão
é sacramentado por um ritual de caráter jurídico-religioso. Feito sob a cus-
tódia da Igreja e em nome de Deus, agrega uma relação de trabalho e serviços
à fé estabelecida.
Ao nível dos guerreiros se dá o mesmo. No assim denominado feuda-
lismo clássico o vínculo que unia o senhor/suserano e o guerreiro/vassalo
era determinado por um contrato, nem sempre escrito. Em regiões nas quais
a cultura letrada não se esvaíra se fazia um diploma ou contrato escrito. Isso
era obrigatório num acordo entre homens livres quando os dois componen-
tes eram de nível social importante. O contrato era realizado de maneira
ritualizada e constava de quatro momentos: a homenagem, a fidelidade, o
osculum e a investidura. Expliquemos um pouco cada uma delas.
A homenagem era, simbolicamente, a entrega de si mesmo ao seu
senhor, tornando-se “seu homem” e devendo servi-lo. Havia dois momen-
tos que se complementavam: a) in manu missio, na qual o vassalo desarmado
ajoelhava-se diante do seu suserano e depositava suas mãos entre as deles;
b) volo ou declaração de intenção ou vontade, pela qual o vassalo declarava
publicamente seu desejo de entrar na clientela do senhor.
A fidelidade (fides ou fidelitas) era um compromisso realizado através de
um juramento do guerreiro vassalo de ser fiel ao suserano. Poderia ser feito
sob a cruz, os Evangelhos ou relíquias com ossos de santos.
Já o osculum não era utilizado em todos os rituais de juramento de vas-
salagem, sendo mais comum no reino de França, e consistia de um beijo,
como um símbolo de amizade e de lealdade. O beijo não tem simbolismo
carnal e é apenas um gesto ritual.
A investidura era o último momento da cerimônia, na qual o senhor
investia o seu vassalo de um bem, geralmente um senhorio. Na cerimônia
39
era simbolizado por um objeto: anel, bastão, estandarte ou outro símbolo.
Em alguns períodos posteriores o bem poderia ser um rendimento, um
direito portuário ou alfandegário, mas nos primórdios do feudalismo era
uma propriedade rural.
O contrato feudo-vassálico propõe uma mutualidade, ou seja, obrigações
bilaterais. O senhor/suserano e o vassalo têm compromissos bilaterais: não
trair, proteger e não conspirar um contra o outro. O vassalo deve sempre
ajudar o senhor, na paz e na guerra. Tem duas obrigações fundamentais: o
auxilium ou ajuda e o consilium ou conselho, pois, além de ajudar, deveria
participar de certo tipo de corte do senhor na qual se decidia seja pela paz,
seja pela guerra e se realizavam julgamentos. A lei vigente era o costume
local e era moldada pelos suseranos para reger suas propriedades.
O auxilium era fundamentalmente a prestação de serviço militar junto ao
senhor, mas em certas ocasiões poderia ser ajuda em espécie ou em dinheiro.
Uma ampla variedade de tipos de auxilium poderia ser feita, dependendo do
contrato e do tamanho do feudo. O vassalo poderia lutar desacompanhado
e apenas armado e equipado, ou vir com uma hoste (hostis) ou tropa, que
seria um grupo de cavaleiros e/ou infantes armados e equipados. Por vezes
se tratava de uma expedição guerreira longa e ampla, ou apenas uma escolta
ou serviço de guarda a seu senhor. Muitas vezes o senhor se dirigia à pro-
priedade do vassalo e lá se hospedava, com seu séquito.
Batista Neto (1989, p. 22) frisa que,
42
Em sociedades mais tradicionais temos uma divisão em castas. Na
Índia a sociedade é definida através de castas: brâmanes, xátrias, vashyias
e sudras, além dos intocáveis, um grupo violentamente segregado. Os brâ-
manes seriam uma casta sacerdotal e são representados pela cabeça; os
xátrias seriam uma casta guerreira e de líderes políticos e são representados
pelos braços; os vashyias são os comerciantes e agricultores e são represen-
tados pelas pernas; os sudras, que no passado remoto eram escravos, são
os pés. Os sudras seriam os trabalhadores de baixo nível, mas ainda acima
dos intocáveis. No caso hindu há severas proibições para a realização de
casamento entre membros de duas castas diferentes. Os herdeiros dessas
relações seriam os intocáveis, uma espécie de párias sociais, segregados e
maltratados.
O feudalismo não se encaixa nessas categorizações. Tratava-se de uma
sociedade estratificada com relativa rigidez. Não tinha a flexibilidade e a
mobilidade social de uma sociedade de classes e tampouco a extrema rigi-
dez das castas. Escolhemos denominar o feudalismo como uma sociedade
estamental ou de ordens. De maneira geral costuma-se dizer que havia três
categorias sociais: laboratores, ou trabalhadores; bellatores, ou guerreiros;
oratores, ou clérigos. Os primeiros produziam bens de consumo e, espe-
cialmente, alimentos; os segundos protegiam a sociedade, defendendo-a e
mantendo a justiça; e os últimos realizavam a conexão entre os humanos e
Deus, protegendo espiritualmente a sociedade. Essa explicação é consoli-
dada e estabelecida desde os primórdios do feudalismo, mas é uma idealiza-
ção de uma sociedade hierarquizada. Repare que há certa relação com a divi-
são utilizada na sociedade hindu: sacerdotes, guerreiros e trabalhadores. A
semelhança para nesse ponto, pois a estratificação social não é tão rígida.
Essa divisão constrói uma representação social para justificar a condição
servil dos que trabalhavam e justificar o domínio das outras duas ordens ou
estamentos. A ordem clerical é quem elabora essa concepção de mundo. O
ponto de partida não é novo, mas ele é elaborado de uma perspectiva cristã.
Havia uma narrativa de origem greco-romana que contava de uma revolta
dos membros do corpo (pernas e braços) contra a cabeça e o tronco, que não
trabalhavam, mas comandavam e usufruíam dos resultados. Uma revolta
43
dos membros imobiliza o corpo, mas se continuasse a ser mantida geraria a
morte de todo o corpo. Uma sociedade seria um corpo e cada parte teria uma
função e todas usufruiriam dos benefícios, mas cada qual na sua atividade.
Essa concepção orgânica da sociedade será devidamente cristianizada
através de algumas alegorias. Fazendo uso de Paulo de Tarso e do bispo
Agostinho de Hipona, elaborava-se uma espécie de teologia social. O mundo
criado por Deus nele se inspiraria. Sendo Deus uno e trino, o mundo seria
um apenas, mas composto pelas três ordens que constituiriam um único
corpo social. Embasado na obra Cidade de Deus, de Agostinho, definia-se
uma hierarquia de méritos. A desigualdade entre os humanos era inerente
às suas ações, mas também devido à Graça divina, que não era explicável de
maneira racional. Uns nasciam para obedecer e trabalhar, outros para dirigir
e defender a sociedade. Os fiéis deveriam se conformar e executar sua fun-
ção mantendo o corpo social cristão incólume.
Paulo de Tarso, em Romanos 12, 4-5, concebe que a sociedade cristã é um
corpo coeso e funcional, mas que divide os componentes desta em catego-
rias e funções. “Pois assim como em um corpo temos muitos membros, e
todos os membros não têm a mesma função, assim também nós, embora
muitos somos um só corpo em Cristo, e cada membro está ligado a todos os
outros”. Adiante explicita que cada um teria diferentes dons, de acordo com
a Graça que nos foi dada. Havia uma hierarquia, mas ao mesmo tempo, a
concórdia cristã; a diversidade de funções não geraria conflito, pois se pro-
punha a coesão social, numa unidade através da fé.
Dividida em três ordens (ordo – termo que induz a reflexão de ser uma
ordem ou ordenação social emanada da vontade divina), a sociedade esta-
mental pretendia gerar estabilidade e continuidade no intuito de manter a
Cristandade unida em torno de seus ideais e direcionada para o seu objetivo
maior: a segunda vinda de Cristo, a Parusia e o Juízo Final. Juntam-se aqui
os interesses da nobreza que almeja dirigir a sociedade no campo social,
econômico e militar, com a ordem clerical que quer ordenar de uma forma
cristã a sociedade e manter o monopólio dos bens de salvação. A ordenação
social almeja criar uma Cristandade coesa para enfrentar as forças do mal e
direcionar a maioria da sociedade para a salvação.
44
A função religiosa era combater as forças do mal, o Diabo e seus aliados
através das orações, rituais de passagem e celebrações religiosas. A função
da nobreza guerreira era proteger a sociedade das invasões de grupos arma-
dos – pagãos, como os normandos, os eslavos e húngaros, ou infiéis, como
os muçulmanos. A necessidade de haver essas duas ordens era evidente,
pois sem estas a sociedade se desmoronaria. Os trabalhadores se conforma-
vam em exercer sua função tendo em vista a segurança relativa que o sis-
tema propunha gerar.
Os clérigos tinham múltiplas funções além de rezar. Definiam os parâ-
metros comportamentais dos leigos definindo a moral e os valores sociais.
O que era permitido e o que era proibido se fazer. Uma parte do baixo clero
secular (padres, por exemplo) era iletrada, mas a maior parte do clero regu-
lar (monges) era pelo menos letrada. A cultura literária se tornara quase um
monopólio de alguns setores clericais. O controle dos “saberes” permitia a
consolidação de um poder efetivo sobre a sociedade.
Controlar as relações com o mundo superior e sobrenatural permitia
à Igreja oferecer cura física e espiritual, consolo às dificuldades da vida e
um diálogo simbólico com Deus e com seus intermediários, os santos. Essa
condição permitiu à Igreja receber muitas doações e pagamentos que enri-
queceram seu patrimônio. Uma parcela grande das terras cultiváveis do
Ocidente medieval europeu pertencia à Igreja. Estima-se que se aproximou
de um terço do total.
As relações entre os oratores e os bellatores eram muito próximas. A Igreja
definirá entre os séculos X e XI a obrigatoriedade do celibato clerical. Isso
fortalecerá a manutenção dos bens e do patrimônio da Igreja, mas gerará a
necessidade de buscar novos quadros nas outras ordens. O baixo clero pode-
ria ser preenchido por excedentes populacionais da ordem dos laboratores,
ou seja, filhos dos camponeses. No nível do alto clero ocorre a entrada de
filhos não herdeiros da nobreza, geralmente os secundogênitos. Isso não
significava que houvesse vocação em todos os casos, mas sim a necessidade
de colocar esses membros da nobreza em cargos de poder e fortalecer as
alianças familiares.
45
Já os laboratores também não eram um segmento social uniforme. Uma
parcela bem pequena seguia na condição de escravos, sejam traficados,
sejam obtidos em guerra. Mantiveram alguma importância até o século VIII,
sendo depois na maioria incorporados ao trabalho servil.
A maioria se dividia em duas condições sociais mais comuns: servos e
vilões. Os vilões eram remanescentes de camponeses livres que não se colo-
caram sob a tutela de um senhor guerreiro. Até o século XI mantiveram
pequenas glebas e, a partir daí, as perderam, mas trabalhavam em condições
melhores e sem vínculo com a terra, ou seja, podiam romper o contrato de
trabalho e sair da propriedade do senhor.
47
Igreja Medieval
48
3.1 Introdução
Igreja medieval é herdeira das relações entabuladas entre o
Império Romano e a Igreja em formação em princípios do
século quarto. Cerca de meio século de perseguições rea-
lizadas pelos imperadores entre 250 e 306, com uma breve
interrupção no meio deste período, propiciou uma fase de aproximação,
inicialmente sob o signo da tolerância religiosa durante o século quarto con-
solidando um pacto: os imperadores protegeram a Igreja e, com Teodósio I,
o Grande, a Igreja se tornou a religião oficial do Império.
Os imperadores intervieram na Igreja e convocaram os concílios ecumê-
nicos tais como Niceia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia
(451). No âmbito desses concílios se definiram os dogmas da Igreja: o con-
ceito da Trindade1 e a cristologia, ou seja, a definição do caráter humano e
divino de Jesus, que é ao mesmo tempo o Filho (Deus) e também humano.
Dessa forma, a proteção e o controle imperial propiciaram a consolidação
de uma ortodoxia cristã que definiu o que era certo e o que não se aceitava
na teologia cristã. Uma unidade de crença e uma hierarquia estavam sendo
definidas. Para o Império, a unidade era condição sine qua non, pois a boa
relação com Deus garantiria a continuidade de Roma e de seu poder. As
divergências não seriam toleradas, e o Império ofereceria em troca a sua
proteção e apoio.
Essa postura gerou também a intervenção dos imperadores em assun-
tos eclesiásticos. Durante o seu reinado, Constantino, o Grande, interveio
nas discussões teológicas. Seu filho e um de seus herdeiros, Constâncio II,
adotou a linha cristã ariana que negava o dogma trinitário e perseguiu os
bispos e teólogos que adotavam esta linha. Alguns bispos adeptos da dou-
trina trinitária se opuseram e foram exilados, tal como o bispo Atanásio
de Alexandria, que viveu exilado por cerca de uma década e meia. A dou-
trina trinitária prevaleceu e se consolidou com Teodósio, o Grande. As
49
intervenções deste mesmo imperador geraram firmes reações do bispo de
Milão, Ambrósio. Teodósio acabou aceitando as críticas e as punições e se
penitenciou. Já o imperador bizantino Justiniano interveio radicalmente
em assuntos religiosos e não aceitou oposição. Esta política de imperadores
que intervêm em assuntos clericais é denominada cesaropapismo, ou seja,
imperadores que atuam ou interferem em assuntos do papado.
A Igreja se tornava protegida e, ao mesmo tempo, efetivamente dominada
pelo poder imperial. Essa proteção dinamizou o crescimento da Igreja que já
era intenso antes da aproximação com o poder imperial e gerou ampla difu-
são e um intenso processo de evangelização, dentro dos limites imperiais
e além destes. A expansão da Igreja é rápida, mas há evidências de que em
muitos lugares ela não teria sido profunda. Em muitos lugares a conversão
era superficial e se mesclavam crenças monoteístas e cristãs com inserções
pagãs e politeístas. Como seria tal mistura religiosa possível?
O pesquisador Carlos Roberto Oliveira (1995) enfatiza que ocorre uma
evangelização, por vezes superficial, que incorpora crenças pagãs, trans-
forma deuses pagãos em santos da Igreja, num sincretismo2 que esconde
resquícios das religiões que em teoria estavam sendo substituídas. O papa
Gregório Magno acentua a ocupação de espaços sagrados de outras religi-
ões que devem ser purificados com água benta e depois transformados em
igrejas, mantendo assim uma relação dos camponeses evangelizados com
os antigos, e agora renovados, espaços sagrados.
Os autores divergem sobre as motivações da Igreja para incorporar essas
apropriações: seria uma estratégia oriunda da cúpula religiosa que serviria
para a conversão dos pagãos, ou seria a aceitação de uma tendência que teria
emanado ao nível da religiosidade popular que, simplificando conceitos e
crenças, realiza aproximações que facilitem as sínteses. Há a possibilidade
de terem ocorrido ações na direção da Igreja, tal como a posição de Gregório
Magno e também a síntese de conceitos, ocorrida no seio da religiosidade
popular, seja no campo, seja nas cidades empobrecidas.
50
3.2 A liderança espiritual da Igreja
A Igreja primitiva foi liderada pelos apóstolos, que por sua vez delegaram
aos bispos a posição de liderar a Igreja ao nível das cidades de porte médio
do Império. A estrutura espacial foi delimitada pela divisão das provín-
cias do Império Romano. O bispado seria uma diocese e coordenaria as
cidades pequenas e as aldeias que circundavam essa unidade administra-
tiva e religiosa.
Nas grandes cidades, foram criadas arquidioceses sob a liderança hierár-
quica de um arcebispo. No caso das grandes metrópoles, tais como Roma,
Alexandria e Antioquia, que eram a um só tempo populosas e importantes,
e também polos fundadores e propagadores do Cristianismo, originaram-se
os metropolitanos ou patriarcas, que seriam os mais prestigiados líderes
religiosos da cristandade. Após a fundação de Constantinopla, esta também
foi elevada à condição de patriarcado, na condição de segunda Roma. Os
patriarcas seriam a cúpula da Igreja, podendo ser considerados num total
de quatro ou cinco: Roma, Antioquia, Alexandria, Constantinopla e, menos
prestigiado e influente, o patriarcado de Jerusalém.
A construção de uma primazia ou superioridade do “bispo de Roma” não
é imediata. A diocese teria sido fundada, de acordo a tradição, por Pedro, que
seria o “líder” do grupo apostólico, nomeado por Jesus (Mateus c. 16, vers. 18).
Fazendo uso de diversos outros versículos dos Evangelhos (tais como João
c. 21, vers. 15-17; Lucas c. 22, vers. 32), os bispos de Roma foram gradualmente
obtendo a primazia. Isso nem sempre era aceito pelos demais patriarcas, em
especial o de Constantinopla que se considerava em condição semelhante
ou próxima. Essas tensões não cessaram e no século XI causariam o Cisma
do Oriente (1053), separando a Igreja em dois blocos: um no Ocidente medie-
val, sob a direção do Papado em Roma, e outro denominado ortodoxo grego,
sob a liderança do patriarca de Constantinopla, no Império Bizantino e regi-
ões próximas.
Desde o início o prestígio do patriarca de Roma era muito elevado.
Damaso I (366-384) já insistia na aceitação da superioridade do pontífice
romano, diante dos demais. Leão Magno (440-461) enfatizou a supremacia
51
papal do Ocidente, o que não era aceito de maneira universal. A intenção de
trazer à Igreja uma hierarquia monárquica sempre existiu, mas não foi ple-
namente aceita, senão após cerca de cinco séculos de história.
Não se pode chamar o patriarca de Roma como o único Papa, antes do
pontificado de Gregório, o Magno (590-604), e mesmo esta posição não é
aceita como consenso. A liderança e a obra evangelizadora desse pontí-
fice nos permitem aceitá-lo como um marco na construção do prestígio
do pontificado romano, que definirá este como hegemônico no Ocidente
medieval cristão. Assim optamos por aceitar uma posição de prestígio
elevado e proeminência do patriarca romano no Ocidente tardo-antigo
e medieval, mesmo se no Oriente houvesse oposição e discordância. Os
patriarcas de Constantinopla geralmente se consideravam os segundos em
honra e posição, mas relutavam em aceitar o patriarca romano como supe-
rior de maneira plena.
3. A pax deorum dependia do culto público aos deuses cívicos da Roma republicana ou imperial;
agradá-los para não os colocar contra o bem-estar da sociedade romana. As vitórias e a paz depen-
diam da vontade divina. Isso foi transladado para o culto cristão. As heresias passaram a ser con-
sideradas como uma ameaça à paz de Deus e risco de desequilíbrio à segurança do Estado romano.
52
As invasões bárbaras e a perda da parte ocidental do Império deman-
daram que Agostinho, bispo de Hipona (m. 430), tivesse que rever esses
conceitos e dizer que haveria dois níveis, um da cidade terrena e outro da
cidade divina: o que se via na terra era apenas um reflexo, um espelho
de outro nível, superior e espiritual, que seria a Cidade de Deus, que dá
nome à sua obra magna. Agostinho se baseou na concepção neoplatônica
que concebia o mundo em níveis distintos, mesclados, mas diferentes: um
nível mais elevado seria espiritual e seria o mundo das “ideias”, eterno e
superior, onde os bens espirituais prevaleceriam e haveria a salvação da
alma; outro nível mais terreno seria material ou carnal e seria apenas uma
espécie de ilusão dos sentidos, um mundo formal e enganoso em que as
pessoas poderiam se iludir e almejar prazeres e bens materiais ou senso-
riais e perder a salvação da alma.
Nessa percepção, a queda e ascensão de impérios seria uma parte dessa
visão material e efêmera da história. O bispo de Hipona concebeu a História
universal baseado no texto sagrado. Seis dias da Criação seriam seis eras da
História e o sétimo dia seria o tempo da Redenção, num juízo final. Para
Agostinho e alguns de seus antecessores, e depois dele os seus analistas e
seguidores, a sexta era teria começado com a Encarnação do Filho e termi-
naria com a segunda vinda de Cristo e o Juízo final. O sentido da História
seria partir da Criação e se concluir na Redenção. Deus já definira, ao criar
o mundo, qual seria o final do mesmo: a finalidade da História dependia de
outros fatores, mas o principal deles seria o papel da esposa de Cristo na
Terra, ou seja, a Igreja4.
Um dos papas que viveram na época de Agostinho de Hipona, o pontí-
fice Gelásio, em 494 enviou uma longa correspondência ao imperador do
Oriente, Anastásio, em que dizia que deveria haver uma separação entre
os poderes, tendo em vista que a ingerência do poder imperial nos assun-
tos eclesiásticos era excessiva. Como todo poder viria de Deus, de acordo
a afirmação de Paulo de Tarso, na Epístola aos Romanos (cap. 13), e quem
4. Muitos teólogos, denominados até esse período como PADRES DA IGREJA, concebiam um
casal sagrado: o esposo seria Cristo e a esposa e sua representante única na Terra, seria a Igreja.
53
representava Deus na Terra seria o papa, este era o intermediário direto desse
poder. Os erros e os pecados do próprio Imperador deveriam ser perdoados
através das orações e pedidos do papa. Gelásio definiu o poder papal como
sendo superior e Deus sendo o maior e verdadeiro governante: “[…] sumus et
verus Imperator […]”. Como a Igreja era a esposa de Cristo e sua representante
na Terra, a ela caberia o papel de intermediar entre Deus e os humanos, e
o poder que emanava de Deus era por ela outorgado aos governantes. Isso
ainda ficou na “teoria”.
O papa Gregório Magno, no final do século sexto (seu pontificado foi de
590 a 604), também equacionou as relações de poder. O imperador seria para
ele o governante universal e deveria ser acatado em questões temporais, ou
seja, na política e no governo dos cidadãos, mas exclusivamente nas ques-
tões materiais, políticas e sociais. O governo dos assuntos espirituais caberia
à Santa Igreja e aos seus representantes; nesse caso, especificamente, o Papa.
Gregório consolidou a sua influência sob a maior parte dos reinos bárbaros
e prosseguiu na obra de evangelização dos povos do Ocidente. Esse pontífice
enviou missionários ao norte da Europa, ainda profundamente pagã, e esta-
beleceu contatos com os visigodos recém-convertidos ao cristianismo trini-
tário, que sugerimos denominar católico ou universal, para ser melhor com-
preendido pelos leitores. Estabeleceu vínculos com os monarcas germânicos
que eram pagãos ou adeptos do cristianismo ariano e os incitou a conversão.
56
3.5 A ordem de Cluny e a reforma da
Igreja no Ocidente medieval
A maior e mais organizada ordem monástica do ocidente medieval era a
ordem beneditina, criada no sexto século por Bento de Núrsia, na Itália. Os
beneditinos terão muita importância na expansão e no prestígio da Igreja.
Enfatizavam uma vida regrada pela oração, pelo trabalho e pelos estudos.
Boa parte de seu tempo era dedicada a copiar livros e com isso os mostei-
ros beneditinos ajudaram a conservar e preservar obras de importância
religiosa e cultural, inclusive do mundo clássico e que não se relacionavam
com a religião. A ordem existe até hoje e mantém muitos de seus princí-
pios e valores. No Brasil há diversos e prestigiados mosteiros de São Bento.
Falaremos um pouco mais dela no tema cinco.
No seio do beneditismo surge o núcleo de um movimento que terá
enorme importância na vida religiosa e cultural do Ocidente medieval. O
duque Guilherme da Aquitânia e também conde palatino de Borgonha funda
uma abadia em Cluny, na região borgonhesa, em 910. A partir dessa aba-
dia se criará, nos séculos seguintes, uma ordem monástica que propunha
reformas em diversos âmbitos da Igreja. Uma de suas alegações era a inter-
ferência dos laicos na escolha e na ordenação de cargos da alta hierarquia
eclesiástica, tal como os de abades e de bispos. O movimento propunha que
não se negociassem esses cargos, que eram cobiçados pelas famílias nobres
e pelos reis e imperadores, visto trazerem, com o cargo, a posse de bens,
terras e direitos pecuniários. O negócio com cargos e bens eclesiásticos foi
denominado simonia. A nobreza se opunha a essa posição, pois impediria
que os segundos filhos dos nobres pudessem ser ordenados – o intuito da
nobreza era fortalecer o poder e as riquezas de uma família com a ordenação
de alguns de seus membros como bispos e abades.
Os monges de Cluny também almejavam aclarar rigidamente a diferença
entre leigos e clérigos, exigindo a castidade e a continência sexual dos clé-
rigos. Até o ocasião em que o movimento se expande, percebemos que a
castidade e o celibato eram exigidos apenas dos membros do clero regular
(monges), mas não eram exigidos de padres, bispos e demais elementos do
57
clero secular. Tal exigência se relacionava com a anterior, pelo fato que se
propunha a manter no seio da Igreja apenas clérigos, que se afastassem dos
prazeres, da carnalidade, dos bens materiais e do poder político. O tema do
desregramento e da conduta carnal dos clérigos era denominado nicola-
ísmo e enfatizava a castidade clerical.
A ordem de Cluny é considerada por muitos autores como um dos
pilares da criação do caminho de Santiago e, por consequência, impulsor
do processo lento e gradual da reconquista cristã na Península Ibérica. Os
mosteiros de Cluny ou aqueles que se ligaram com essa ordem floresceram
ao longo do caminho de Santiago e influenciaram a religiosidade, seja na
Península Ibérica, seja no Ocidente medieval.
No âmbito da reforma cluniacense percebemos que, em poucas décadas,
o prestígio da abadia propiciou a ascensão de alguns de seus elementos a
cargos elevados e, depois de um século, começamos a encontrar papas elei-
tos que faziam parte do movimento. Estes papas quiseram alterar a forma
de se eleger os papas e impedir que os imperadores interferissem na escolha
dos papas e dos bispos do Império. A eleição passou a ser feita pela Cúria
romana, um colegiado de cardeais que, a partir de 1059, passou a eleger os
papas e ajudá-los a governar a Igreja.
Tal conflito se aguçou no pontificado de Gregório VII e o enfrentamento
se deu entre ele e o jovem imperador Henrique. Este imperador, como mui-
tos antes dele, concordava com várias das propostas reformistas, mas se
opunha à perda de influência na escolha e eleição de bispos e abades, pois
geraria fraqueza para o imperador. Cargos eclesiásticos eram fonte de poder
e riquezas e não poder nomear seus ocupantes traria fragilidade ao supremo
governante político. Alguns bispos tinham participação num colégio eleito-
ral que elegia os sucessores do imperador, ou seja, mesmo sendo clérigos,
influenciavam na política.
O embate teve diversas alternativas. Inicialmente o papa excomungou
o imperador e este se arrependeu indo a pé em pleno inverno ao palácio
papal, em Canossa, pedir perdão. Depois o imperador volta atrás e destitui
o papa e o manda exilar. Começa o que viria a ser chamado o conflito das
Investiduras, para definir quem nomeava os bispos no Império.
58
O conflito gerou diversas situações, alternando as posições. O papa aca-
bou sendo deposto e exilado, mas não tardam a existir dois papas, gerando
o Cisma do Ocidente. Houve, então, simultaneamente, dois papas e até dois
imperadores que se opunham. Isso só se resolverá no século seguinte, em
1122, com a concordata de Worms, na qual o papa sai em posição fortalecida
e define a sua condição de efetivamente escolher os bispos, com a anuência
posterior do imperador.
Em paralelo, a Igreja oriental estava se separando do Ocidente e criando
a Igreja ortodoxa grega nesse mesmo período (1053). Essa separação pros-
seguirá até a contemporaneidade. Ironicamente a fragmentação da Igreja
coincidiu com o período de seu maior prestígio. Entre os papas que suce-
deram a Gregório VII, estava Urbano II, que no concílio de Clermont concla-
mou aquela que viria a ser a primeira Cruzada (1095-1096).
O tema das Cruzadas e da Reconquista será analisado no tema seis desta obra
62
O misticismo e a religiosidade popular geraram alguns tipos de reação
a essa situação: a) uma vertente de pobreza apostólica e de espiritualidade,
que não questionou os dogmas e as crenças básicas da Igreja, apenas sua
riqueza e ostentação, propondo um retorno aos valores originais ou primor-
diais da Igreja; b) uma crítica mais radical e dualista que definia essa Igreja
como aquela das hostes do mal, por estar envolvida com os bens materiais, a
carnalidade e a riqueza. Tal posição encampou a concepção de origem mani-
queísta de que o mundo era o campo de uma luta entre o bem e o mal, o
espírito e a matéria. Os dois grupos de uma maneira geral foram alocados
pela Igreja no campo oposto e declarados como inimigos infiltrados no seio
da Cristandade, ou seja, como hereges.
A primeira vertente teve duas expressões mais conhecidas e merecem
ser analisadas: os valdenses, ou seja, os seguidores de Pedro Valdo, e os fran-
ciscanos, ou seja, os seguidores de Francisco de Assis. Uma foi considerada
herética e a outra foi incorporada à Igreja e a defendeu com extremo empe-
nho e dedicação. Vejamos ambas separadamente.
Valdésio de Lion, mais conhecido como Pedro de Valdo, era um rico
homem de negócios na região de Lion (Lião/Lyon) no centro sul da atual
França. Sua espiritualidade gerou nele uma crise existencial. Buscou a paz de
espírito no modelo de pobreza apostólica. Entregou a metade de seus bens
à sua esposa e filhos para não deixá-los à míngua. Com a outra metade tra-
duziu trechos da Bíblia e da Patrística que se relacionavam com suas ideias
e ideais para a língua local, para que os seus seguidores, conhecidos como
os pobres de Lion, pudessem ter acesso a uma parte dos textos sagrados, que
geralmente não eram lidos ou conhecidos por leigos, mas apenas recitados
ou contados pelos clérigos. Tornou-se muito popular e o bispo o advertiu.
Em 1179, Valdésio (Valdo) reuniu uma delegação e foi a Roma demonstrar
a sua pureza e sua submissão à Santa Sé. O papa os abençoou, mas advertiu
que deveriam aceitar a hierarquia episcopal e se submeter ao bispo local.
O que impediu essa inserção dos valdenses foi a questão das pregações
públicas, um direito reservado a quem fosse clérigo. Há indicações tam-
bém de que, para os valdenses, as mulheres, tal como em algumas comuni-
dades cristãs primitivas, poderiam pregar. Não estamos certos deste item,
63
mas o bispo local não lhes deu permissão para pregar e o grupo entrou na
marginalidade e foi declarado herético. Apesar das perseguições e de que
alguns foram posteriormente julgados e condenados pelo Santo Ofício da
Inquisição (que não existia na época de Valdo), os valdenses sobreviveram
e existem até nossos dias.
A segunda vertente é bem conhecida. Francisco, nascido na cidade ita-
liana de Assis, era o filho de um rico comerciante e também se sentiu ilumi-
nado por Deus a seguir a trilha dos apóstolos e viver em pobreza e simpli-
cidade. Vivendo na época do papa Inocêncio III (pontífice entre 1198-1216),
foi admitido como o líder de uma ordem monástica mendicante. Apesar
de ter ideias semelhantes às de Valdo e dos valdenses, Francisco e seus
seguidores se alinharam sob a hierarquia clerical e se submeteram ao papa.
Habilmente conduzida ao seio da Igreja, a ordem franciscana se tornou um
dos esteios da expansão e fortalecimento daquela. Admirados pela popula-
ção e dotados de uma rara espiritualidade, converteram-se em baluarte do
papado e da Cristandade.
Outro grupo de mendicantes será criado entre a virada do século XII para
o XIII, também sob Inocêncio e em paralelo aos franciscanos, mas sendo
desde seu início utilizado para a pregação, o combate as heresias e o ensino
nas universidades. Seu fundador foi o hispânico Domingos de Guzman.
Durante um trajeto terrestre entre a Península Ibérica e a Itália, o clérigo
contatou com populações que haviam assumido o dualismo albigense
(abaixo explicaremos) e iniciou uma longa tentativa de evangelizá-los, tra-
zendo-os de volta ao Cristianismo católico. Seus esforços não redundaram
em resultados notáveis, mas dirigiu-se ao papa Inocêncio III e solicitou a
criação de uma nova ordem mendicante: os dominicanos. Estes serão céle-
bres nos últimos séculos do Medievo, pois tiveram papel marcante no com-
bate às heresias, no ensino universitário e na coordenação do Santo Ofício
da Inquisição. Nos três casos, a defesa da Igreja e da ortodoxia eclesiástica
era o tópico principal.
A heresia que mais abalou a Igreja medieval foi certamente a heresia albi-
gense ou cátara. Essa heresia tinha algum tipo de relação com o dualismo
maniqueísta oriundo do Oriente. No Império Romano o maniqueísmo de
64
origem oriental (persa) foi considerado uma heresia e perseguido, antes de
o Cristianismo se consolidar como religião associada ao Império e se tor-
nar dominante. Isso, portanto, nos séculos III e V. No período medieval uma
nova onda de religiões maniqueístas vem de leste para oeste, vindo da Pérsia
(maniqueísmo e mazdeísmo), passando pela Armênia (paulicianos) e che-
gando à península balcânica (bogomilos). Todas essas expressões religiosas
eram dualistas, aceitando a existência de um deus bom (espiritual) em con-
flito com um deus mau (material, carnal). Um conflito cósmico no qual os
humanos deveriam se inserir e ajudar a combater o mal e libertar os espíri-
tos da carnalidade e da materialidade.
O dualismo maniqueísta chegou à Europa e acabou aparecendo no sul
da França. Alguns autores não veem tal processo de expansão de leste para
oeste e consideram que se trata de uma criação local. Na região conhecida
como Languedoc (que abarca todo o sul da França, incluída a Provença e
redondezas) havia muitas resistências à Igreja e um segmento clerical mal
preparado e inconsistente para combater a “heresia”. Relutamos em deno-
minar essas expressões religiosas como heresia, tendo em vista que essa era
a ótica clerical, para definir os excluídos ou contaminados com o erro, sob a
percepção oficial da Igreja.
Os albigenses se expandiram nessa região com facilidade, pois a maior
parte da nobreza local era muito crítica ao poder da Igreja e ambicionava
se apossar de suas riquezas. Por isso não reprimiam e nem repreendiam os
ditos hereges. O rei francês não tinha poder de coerção na região devido à
fragmentação feudal e ao poder dos grandes senhores locais. Esse terreno
se revelou propício a certo crescimento do catarismo albigense. Os vizinhos
cristãos católicos não achavam esta escolha religiosa estranha e conviviam
em harmonia com as diferenças. Quando a Igreja percebeu a expansão do
dualismo, este estava enraizado na região sul do reino da França.
O catarismo albigense fundamentava suas crenças no conceito de um
mundo em que havia dois poderes: um deus bom completamente espiri-
tual e, de outro lado, um deus mau que era o Criador do mundo material
e físico. O Deus do Gênesis seria o Demiurgo, criador da materialidade e
do mundo que percebemos pelos sentidos e que seria uma espécie de
65
macroprisão, local no qual os espíritos encarnados em corpos carnais
eram enclausurados na microprisão do corpo. O dualismo almejava liber-
tar os espíritos destas duas prisões: os corpos carnais e o mundo material.
A Igreja e também os judeus que seguiam o Deus Criador do Gênesis eram
seguidores do Demiurgo, do deus carnal e material. A riqueza e a ostenta-
ção da Igreja eram mais uma prova de tanto. O catarismo foi considerado
pela liderança eclesiástica como muito perigoso e ameaçador, um ferrenho
inimigo a ser combatido.
Com o fracasso da evangelização decidiu-se realizar uma expedição
armada contra os albigenses do sul da França. O papa Alexandre III, já
em 1179 conclamara a realização de uma cruzada. Isso se realizou apenas
no pontificado de Inocêncio III (1198-1216) em 1208/1209. Numa primeira
etapa os grandes senhores e o rei da França se omitiram de participar, mas
a pequena e a média nobreza se engajaram em busca da salvação (havia a
promessa de indulgências), de saque e do confisco de bens e propriedades
da nobreza meridional e sua outorga aos nobres sem posses ou secundogê-
nitos sem direitos a herança.
A cruzada alcançou o sul da França e batalhas foram travadas. Uma delas
foi o cerco a Beziers, que originou uma versão polêmica e repetida através
dos tempos, mesmo se não completamente comprovada. Diz-se que no
interior da cidade cercada havia tanto os fiéis cristãos católicos quanto os
considerados hereges cátaros albigenses. Os soldados, receosos de abater
indiscriminadamente todos sem distinguir os que eram bons cristãos e os
que eram heréticos, consultaram o legado papal, que não receou em dizer:
“Entrem na cidade e não temam em chacinar a população. Deus recolherá
os justos cristãos e deixará ao Diabo os pecadores heréticos”. A população
foi massacrada de maneira ampla e sem piedade. A Cruzada teve sucesso
parcial e alguns nobres do norte tomaram senhorios da nobreza do sul.
Oficialmente se encerrou em 1213. A última fortaleza albigense denominada
Montsegur veio a ser tomada somente em 1244.
O rei francês intervém e aproveita a repressão para se infiltrar no sul
e reocupar os espaços concedidos aos senhores do Languedoc. Junto virá
a Inquisição e a repressão aos albigenses se ordena e se sistematiza. A
66
Inquisição medieval foi entregue à ordem dominicana, que não permitiu
que as manifestações, consideradas heréticas pela Igreja, progredissem e se
espalhassem.
Outro espaço de combate às heresias foram as universidades medievais,
nas quais os dominicanos, especialmente, mas também outros monges,
beneditinos ou franciscanos, ensinavam a fé verdadeira e combatiam here-
sias e infiéis em suas leituras, escritos e debates. Analisaremos as universi-
dades no penúltimo capítulo.
69
Império Bizantino
e Islã medieval
70
4.1 O Império Bizantino entre a
Roma Imperial e a cultura grega
queda do Império Romano do ocidente com as invasões bár-
baras gerou uma situação nova. Os invasores germânicos
capturaram por algumas vezes Roma, a cidade formadora da
república e capital do império no seu auge, o que abalou o
prestígio imperial, mas não acabou com o Império. Este seguiu existindo
no Oriente por cerca de um milênio, ora forte e poderoso, ora sob a pressão
de inimigos poderosos; hostilizado pelos persas, depois por árabes muçul-
manos, em seguida por cruzados desviados de sua missão e, por fim, sob
a ameaça dos turcos islamizados. Estes tornaram os últimos séculos do
Império Romano do Oriente um período difícil e no qual o risco de anexa-
ção e desaparição era constante e que finalmente se sucedeu com a tomada
da capital imperial Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453, e com a
derrocada definitiva do Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino.
Busquemos as origens desse Império Bizantino e conheçamos um pouco de
sua longa história.
A cidade de Bizâncio era uma cidade fundada pelos gregos e, no iní-
cio do século IV, foi refundada e ampliada pelo imperador Constantino, o
Grande, nos anos que se seguiram à sua ascensão. A nova cidade recebeu
o nome de Constantinopla e foi considerada uma nova Roma ou segunda
Roma. Seu perímetro foi ampliado. A cidade ostentava a condição de
segunda capital do império. A cristianização do Império Romano a tornou
um dos patriarcados, junto com Roma, Antioquia, Alexandria e Jerusalém.
Como a maior parte da riqueza do império vinha das províncias orientais,
Constantinopla se tornou uma bela cidade com edifícios públicos e belas
igrejas e espaços urbanizados.
O imperador Constantino governou desde o oriente e se estabeleceu na
nova capital no final de seu reinado. Os demais imperadores transitavam
pelo Ocidente, mas habitavam em Constantinopla. O imperador Teodósio, o
Grande, cristianíssimo e muito respeitado, optou por dividir o império (395)
em duas partes; o Império do Ocidente com capital em Roma ficou com seu
71
filho Honório e o Império do Oriente com capital em Constantinopla ficou
com seu filho Arcádio (reinou de 395 a 408). Depois de 410, quando Roma
foi saqueada pela primeira vez pelos visigodos, as muralhas da segunda
Roma foram reformadas, por ordem de Teodósio II (408-450), neto do pri-
meiro deste nome fazendo uso de técnicas e materiais que permitiram que
fosse inexpugnável por terra, mesmo com o uso dos primeiros canhões
no medievo. Em menos de um século o Império do Ocidente estava ocu-
pado por exércitos de povos germânicos, denominados por muitos como
bárbaros, visto serem considerados inferiores culturalmente, mesmo que
militarmente prevalecessem. A data de 476 foi considerada como o marco
historiográfico que demarca a queda do Império Romano do Ocidente. Já
analisamos esse momento.
Algumas décadas depois ascendeu uma nova dinastia e o segundo impera-
dor desta foi Justiniano (527-565), que foi um grande governante. Sua esposa
Teodora foi uma personagem polêmica. O governo de Justiniano foi repleto
de problemas, como a revolta Nika (532), que envolveu opositores políticos
à nova dinastia, grupos de torcidas do hipódromo e a dissidência religiosa
dos monofisitas, que não aceitavam a postura cristã ortodoxa de Justiniano.
A cidade foi saqueada e uma parte de seus edifícios públicos queimados. O
general Belisário reprimiu violentamente os revoltosos massacrando-os
no hipódromo. Justianiano reconstruiu e ampliou as obras públicas, numa
política de aprimoramento urbano e de remodelação das fortalezas militares.
As tentativas de homogeneizar o cristianismo no império não foram
bem sucedidas: dissidências que a Igreja denominava heresias proliferaram:
monofisitas, nestorianos, maniqueus seguiram existindo e até núcleos de
paganismo ainda subsistiam. Os judeus foram hostilizados e muitas sinago-
gas foram destruídas por ordem imperial e muitas restrições a práticas judai-
cas foram decretadas.
No plano jurídico a obra legislativa do imperador foi magna. Recolheu,
editou e compilou toda a legislação romana que já fora parcialmente reco-
lhida e ordenada sob Teodósio, o Grande – o Codex Teodosianus. Uma obra
imensa foi organizada coletando ainda mais obras jurídicas antigas, compi-
lando, reordenando e legislando também. O amplo acervo jurídico coletado,
72
legislado e ordenado por Justiniano é a base legislativa do renascimento das
leis imperiais nos séculos XII e XIII, embasando os estudos jurídicos nas uni-
versidades medievais e será a base da criação da Lex (lei) romana.
No plano político-militar o imperador alternou fraqueza e grandeza,
vitória e humilhações. Acertou um pacto com os persas para se con-
centrar no seu projeto de restaurar o Império Romano e voltar a fazer do
Mediterrâneo o mare nostrum. Os persas não assumiram plenamente seus
compromissos e Justiniano teve que pagar tributos para recuperar espaços
invadidos. Conseguiu conter os hunos e os eslavos que ameaçaram a região
balcânica e a fronteira do Danúbio. Isso porque seu plano ambicionado era
recuperar o Império Romano do Ocidente, ocupado pelos exércitos germâ-
nicos (identificados pelos romanos como bárbaros). Mesmo se estes reinos
germânicos aceitassem uma espécie de vassalagem simbólica em relação
ao imperador oriental, Justiniano almejava recuperar plenamente os terri-
tórios perdidos no século anterior.
Organizou um grande exército que foi liderado por seus dois generais,
Belisário e Narses. O Império Oriental invadiu o norte da África e derrotou os
vândalos, reocupando a África romana. Depois de um breve retrocesso ocu-
pou as ilhas Baleares, a Sardenha e a Córsega, preparando o ataque à Itália. A
luta contra os ostrogodos na Itália durou quase vinte anos e foi muito des-
gastante. Ao final os ostrogodos foram derrotados e o território italiano foi
ocupado, mas o exército bizantino foi muito afetado pelas perdas humanas, o
desgaste de uma longa guerra e os gastos. A terceira etapa foi intervir em lutas
dinásticas dos visigodos na Península Ibérica (atual Espanha e Portugal). Os
bizantinos ocuparam territórios na parte sul e sudeste do reino visigótico
onde permaneceram por três quartos de século. Tomaram Córdoba, Valência,
Cartagena, Málaga e Múrcia. Em 625 o rei visigodo Suintila os desalojou e
retomou todas as cidades e territórios ocupados.
73
Mapa 1 – Império do Oriente e reconquista bizantina
74
Fonte: p. 74 e 75 (dupla) – Atlas Histórico Escolar
75
O Império Bizantino se tornou o nome mais conhecido do Império
Romano do Oriente, pois o nome anterior de Constantinopla era Bizâncio.
Não são sinônimos, mas se confundem e acabam significando, na prática,
a mesma coisa. Os territórios reocupados por Justiniano no Ocidente foram
gradualmente sendo perdidos. Muitos sinais dessa presença são encontra-
dos na Itália, em especial na cidade imperial de Ravena, na qual há algumas
belas igrejas bizantinas.
76
Em contraponto, o monofisismo surgiu querendo refutar Nestório. Um
abade de nome Êutiques de Constantinopla, assim como também os dis-
cípulos de Cirilo enfatizaram apenas a natureza divina de Cristo e desco-
nheceram a natureza humana. Essa doutrina foi denominada como mono-
fisismo, pois apregoava uma só natureza de Cristo.
Um concílio reunido em Éfeso (431) condenou Nestório e seus seguido-
res; outro concílio reunido anos mais tarde em Calcedônia (451) condenou o
monofisismo. Os conflitos e polêmicas no império Bizantino não cessaram
nesse momento, prosseguindo e se alternando. A polêmica iconoclasta que
dividiu os seguidores e os opositores dos ícones ou imagens de santos e da
Virgem dividiu a sociedade bizantina nos séculos VII a IX. E finalmente um
conflito entre o papa e o patriarca de Constantinopla no século XI (1054)
selou a separação da igreja bizantina, daí em diante denominada ortodoxa,
da igreja católica romana liderada pelos papas em Roma. Tal cisma persis-
tiu até nossos dias. O termo ortodoxo significaria reto e correto. E católico
seria universal. Permanecem usos diferentes desses termos. As duas igrejas
se julgam universais e corretas, vale dizer.
A separação motivará parcialmente o movimento das Cruzadas. Ainda
ocorrerão novos problemas religiosos, mas não nos estenderemos em des-
crevê-los. A religiosidade no Oriente, em geral, e no Império Bizantino, em
específico, era muito complexa e refinada. Discutia-se na rua, nos espaços
públicos e privados e as polêmicas eram muitas vezes motivos de conflitos
aguçados. Alguns geraram pequenas e médias guerras civis. Alguns dos grupos
minoritários foram exilados ou fugiram para lugares ermos e mais seguros.
82
3) Zakat ou esmola. Tem certa correspondência com a tzedaká judaica ou a
caridade cristã (dízimo e outras). Os fiéis que tenham condição social devem
ajudar os pobres através de refeições, doações e ajudas diversas, inclusive
empregando o pobre para que este possa se sustentar. O conceito de um
coletivo islâmico, denominado ummah, uma espécie de nação não territo-
rial, gera uma solidariedade entre fiéis, que se ajudam uns aos outros. Há
um zakat obrigatório a todos os fiéis e formas de ajuda mútua adicionais.
5) Hajj (Hadj). É uma peregrinação feita pelos fiéis, pelo menos uma vez na
vida, aos lugares sagrados do Islã. Maomé inicialmente direcionava as
orações para Jerusalém, mas como os judeus não o aclamaram profeta, ele
redirecionou as orações para Meca. Definiu o ponto de referência que nor-
teia (kibla ou qibla) as orações nesse sentido e definiu a visita ao santuário
no entorno da Caaba5, com os marcos da revelação de Alá como pontos de
referência. O muçulmano saudável deve se dirigir a Meca no período de um
mês do calendário destinado a essa visita. Há um roteiro de lugares e
eventos que demarcam a peregrinação. No período medieval era uma
difícil jornada, que poderia oferecer riscos e ameaças aos peregrinos, tal
como ataques de cruzados no período dessas expedições. Na atualidade
podem participar cerca de um a dois milhões de peregrinos a cada ano.
5. Caaba é um conjunto de lugares que ficam em Meca no qual se deu a Revelação de Alá a Maomé
através do arcanjo Gabriel. A pedra negra, um meteorito escuro, é o centro da mesma.
83
4.7 A expansão do Islã:
reflexões e análises
A expansão do Islã é um fenômeno histórico que gera explanações, refle-
xões e explicações múltiplas. Como habitantes de uma região periférica e
primordialmente habitada por tribos nômades pouco desenvolvidas no
plano cultural e tecnológico, conseguiram em algumas décadas se expandir
e criar um vasto império. Os árabes muçulmanos liderados pelos sucessores
de Maomé venceram o Império Bizantino e anexaram vastas regiões deste; já
o Império Persa foi completamente anexado pelos exércitos muçulmanos.
Como entender e explicar tais sucesso e a rapidez da conquista?
O Islã tradicional é adepto de que essa vitória foi obtida pela proteção
de Alá e pela verdade da fé. Assim sendo, o sucesso se explicaria de uma
maneira metafísica. Essa perspectiva religiosa não é suficiente para histo-
riadores e se torna simplista para uma reflexão racional.
Uma das explicações mais aceitas é aquela que contextualiza o conflito
anterior à conquista: persas e bizantinos combateram por quase trinta anos
e exauriram suas forças. Os dois grandes e poderosos impérios estavam
esfacelados ao final de um longo conflito. As elevadas cobranças de impos-
tos para gerar recursos que financiassem os exércitos geraram oposições e
muitas críticas de diversos setores sociais. Um fisco ostensivo gera oposi-
ções sociais em muitos setores.
E podemos agregar a isso um aspecto religioso e político. Como vimos, o
Império Bizantino era palco de confrontos teológicos agudos e exacerbados.
As dissidências religiosas eram muitas vezes reprimidas, pressionadas e até
perseguidas. Alguns setores da sociedade se revoltaram contra tal repressão
e muitas das minorias religiosas se exilaram, ora em lugares ermos do impé-
rio, ora em periferias e até mesmo fora do espaço imperial.
Os judeus também foram vivamente oprimidos pelos imperadores.
Justiniano e Heráclio perseguiram essa minoria em campanhas de conver-
são, geralmente pela pregação, mas por vezes com tentativas de conversão
forçada. Mesmo sendo minoria, os judeus tinham presença importante nas
cidades desenvolvidas.
84
Esse conjunto de fatores explica a fraqueza dos dois poderosos impérios.
Já na perspectiva dos conquistadores podemos citar alguns pontos fortes. As
estratégias militares dos invasores que tinham a cavalaria dotada dos reno-
mados cavalos árabes. E também a coesão obtida por Maomé ao juntar um
grupo heterogêneo nas origens das múltiplas tribos, mas coeso na nova fé e
considerando-se representantes do Deus universal. Uma unidade que nem
sempre serviu para manter os muçulmanos juntos, mas que, nesse período,
sob a crença de que seus sucessos eram um reflexo do apoio e incentivo do
Deus único, os manteve coesos.
E por fim a forma com que os conquistadores se relacionaram com as
populações conquistadas. Sabendo-se minoritários demograficamente e
compreendendo que as vitórias militares só se consolidariam e permane-
ceriam no tempo se a população dos impérios anteriores se sentisse bem
tratada e em condições melhores que sob o domínio dos impérios, adota-
ram de maneira ampla e geral duas posturas fundamentais: plena e absoluta
tolerância religiosa e diminuição da carga tributária dos novos súditos.
A tolerância às outras religiões era fundamentada numa leitura parcial dos
escritos de Maomé. O profeta do Islã tinha duas posturas diferentes em relação
aos infiéis. No começo de sua pregação queria converter os cristãos e, princi-
palmente, os judeus, sob a alegação de que ele era o terceiro e definitivo profeta.
Estaria sucedendo Moisés e Jesus e fecharia o ciclo. Assim as revelações par-
ciais feitas pelos dois se consolidariam na sua pessoa, na sua pregação e na sua
vertente religiosa. Maomé não teve sucesso com os judeus de Medina (Yatrib)
e nem conseguiu converter as tribos nômades que professavam o judaísmo.
Em virtude disso sua postura inicial foi respeitosa, tolerante e recep-
tiva aos seguidores dos monoteísmos, que o antecederam. Cognominou
os judeus e os cristãos como povos do Livro (Ahl Al Kitab), ou seja, parcial-
mente iluminados pela revelação. Exaltou suas religiões e estabeleceu uma
pretensa ponte para convencê-los a se converterem ao Islã. Diante da recusa
da maioria dos judeus e cristãos da Arábia a se converter, a sua postura se
tornou mais áspera e radical e colocou, por exemplo, as tribos judaicas entre
a opção de se converter ou morrer. Assim sendo Maomé teve duas posturas:
uma tolerante e respeitosa, que exaltava as religiões do livro monoteístas e
85
reveladas, e uma segunda postura menos conhecida e bastante radical, que
oferecia a morte aos que relutassem em se converter à nova religião.
Os sucessores de Maomé, denominados Califas, não optaram pela
segunda via no período das conquistas. Estrategicamente escolheram o
caminho da moderação, pois os exércitos invasores eram menos de dez por
cento em relação aos povos dominados. Evitaram converter a força e não
optaram por tal via, pelo menos nos três primeiros séculos, que denomina-
remos por Islã clássico. Foram tolerantes e permitiram que as populações
judaicas e cristãs permanecessem em seus territórios, mantivessem uma
grande parte de seus locais de culto e comemorassem as celebrações religio-
sas. E protegeram essas populações no campo religioso. O estatuto de tole-
rância denominou as comunidades protegidas como dhimma.
Havia algumas condições implícitas nessa tolerância: deviam usar certo
tipo de vestuário, marca de sua inferioridade. Eram obrigados a pagar um
imposto pessoal, cobrado de adultos infiéis, uma espécie de imposto per
capita denominado jizia, que representava um sinal de reconhecimento da
primazia do Islã e um resgate do serviço militar obrigatório aos fiéis muçul-
manos. Muitos foram aproveitados em funções administrativas, mas não
políticas, na economia e nas artes.
Os dhimmis não portavam armas, o que gerava uma situação de fraqueza.
Muitos cristãos e alguns judeus se converteram ao Islã para obter direitos
políticos e militares. Outros cristãos migraram para terras dominadas por
poderes cristãos. Assim, com o passar do tempo, diminuíram as minorias
cristãs sob o Islã, mas nunca desapareceram. Vale ressaltar que a condi-
ção jurídica e civil dos dhimmis sob o Islã era muitas vezes melhor que a de
minorias sob a cristandade no mesmo período.
Há um mito historiográfico bastante difundido de que houve conver-
sões forçadas. Isso não se fundamenta nos fatos, pelo menos no que tange
a judeus e cristãos. No caso das religiões dualistas da Pérsia, alguns autores
afirmam que houve sim perseguições e projetos de conversão forçadas. É o
caso do zoroastrismo. Trata-se de uma religião não monoteísta e considerada
fora do conceito de povos do Livro. Ainda assim não consideramos isso uma
norma no Islã clássico em relação aos povos conquistados fora da Arábia.
86
Podemos afirmar sem receio que o Islã clássico era tolerante e não forçou a
conversão da maioria dos povos conquistados, pelo menos até o século XI, o
que se alterará na sequência dos fatos, mas não analisaremos tais situações.
A oposição dos dois filhos de Ali, Hassan e Hussein, não bastou para impedi-lo.
Uma guerra civil eclodiu. Não demorou para que Ali e, mais tarde, os seus dois
filhos fossem mortos e seus seguidores os tornassem mártires. Uma divisão no
seio do Islã se consolida. Os adversários de Moawia se definiram como um partido
88
Fonte: p. 76 e 77 (dupla) – Atlas Histórico Escolar
ou facção, a Shia, termo do qual surgirá o xiismo. Hassan acabou aceitando a ascen-
são de Moawia, mas mesmo assim acabou sendo assassinado em 669. Quando
Moawia morreu e seu filho e sucessor Yazid foi empossado em 680, os xiitas se
revoltaram, sendo massacrados em Karbala, local onde Hussein foi martirizado.
89
O xiismo ampliou suas posições e se tornou uma vertente muçulmana
que enfatiza mais o Corão que a Sunna, exalta o martírio e diverge em certos
temas dos demais fiéis.
O califado sob a dinastia omíada cresceu e se expandiu até o norte da
África e a Península Ibérica a oeste, e até a Ásia central e as margens do rio
Indo ao leste. Inspirados no modelo bizantino de governo e usando a arqui-
tetura bizantina como parâmetro de construções, o califado se tornou mais
aceitável para os cristãos, ainda em maioria. Usaram da elite cristã para
administrar os territórios recém-conquistados.
A dinastia estabeleceu o árabe como a língua oficial, criou unidades
monetárias em prata (dirhan) e em ouro (dinar), uniformizou a administra-
ção e adotou posturas tolerantes com os povos dominados. O califado pros-
perou e se expandiu.
Os omíadas governaram o califado por cerca de um século (661-750),
sendo derrubados do poder por uma revolta liderada por Abu Al Abas, que
estabeleceu uma nova dinastia, denominada dinastia abássida. Os abássi-
das reformularam o califado e fundaram uma nova capital: Bagdá. Cidade
planejada e urbanizada foi palco de muitas realizações culturais e religiosas.
Em Bagdá e no califado temos o encontro entre o Islã e o Oriente
culto e refinado. Obras de filosofia grega foram vertidas para o árabe
e refinadas polêmicas religiosas e filosóficas ocorreram no califado.
Estabeleceram-se vertentes jurídico-religiosas que definiram um Islã
mais complexo e sofisticado.
A literatura, em prosa e em verso prosperou. É muito conhecida a
obra As mil e uma noites, que recolhe lendas orientais, persas e hindus e
as imbui de uma aura mais islâmica. A medicina, a astrologia, a álgebra,
a geometria e as ciências naturais prosperaram numa época em que na
Europa cristã ainda estava mergulhada no período das invasões e a maio-
ria da população era iletrada.
A tradução de obras de filosofia – como as de Platão e de Aristóteles –, de
medicina – como as obras de Galeno e Hipócrates – e de muitos outros cam-
pos do saber humanos foram formas de manter e mais tarde transmitir ao
Ocidente tais saberes. Traduzidas antes do grego para o árabe, na Alta Idade
90
Média, e depois do árabe para o latim, na Idade Média central, foram uma
preciosa transmissão cultural e científica que permitirá que a Europa se erga
e se expanda pelo mundo afora.
Os abássidas governaram de maneira despótica e com muito brilho até
meados do século X. A partir desse período sobreviveram sem muito bri-
lho até 1258.
91
Cultura, arte e religião
92
5.1 A era das trevas?
era medieval teria sido uma era das trevas? Essa reflexão e
essa discussão já travamos no tema primeiro e não a repe-
tiremos. Neste tema tentaremos ilustrar algumas das múl-
tiplas expressões culturais do medievo, e colocá-las no seu
contexto, no qual oferece formas de entendimento da realidade, dos con-
ceitos sociais e principalmente dos conceitos religiosos. É inevitável se
despir dos preconceitos ao analisar a cultura, seja de qualquer povo, reli-
gião, região ou sociedade. Quando analisamos outra cultura ou expressão
artística desta, não podemos nos utilizar de parâmetros de nossa socie-
dade ou época.
A era medieval é um período no qual a religião exerce um amplo controle
social e define o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é mal, a
partir de pressupostos espirituais. Assim a arte e a cultura estão fortemente
impregnadas desses conceitos.
Com a ascensão do Cristianismo à condição de religião oficial do Império
Romano no período entre os imperadores Constantino e Teodósio (século IV
da era comum), os padrões culturais greco-romanos, que definimos como
clássicos, vão perdendo espaço e sendo excluídos ou adaptados às novas
formas e estilos que se adéquam à associação do Império e da Igreja.
Esse momento é também um momento de enfraquecimento das estru-
turas políticas (queda do Império e ascensão dos reinos bárbaros); de
esvaziamento dos espaços urbanos e fluxo na direção dos espaços rurais;
de empobrecimento da população e uma sensível queda no comércio, na
circulação de moedas e na coleta de impostos; de uma queda demográfica
que acentua a falta de mão de obra especializada e gera uma sociedade
menos sofisticada.
Um dos múltiplos efeitos é a tendência ao empobrecimento cultural e o
aumento vertiginoso do número de iletrados. O analfabetismo é um dado
perceptível desde as últimas décadas do Império Romano do Ocidente. Os
iletrados são uma ampla maioria e a capacidade de ler e escrever se torna
um monopólio de uma elite. E dentro desse grupo a tendência é que sejam
93
normalmente clérigos: ora são membros do alto clero, bispos ou abades, ora
são monges. Raros se tornam os leigos letrados, pelo menos no período ini-
cial do medievo. A situação mudará apenas no final da era medieval, mas
de forma lenta e gradual. Assim sendo podemos compreender a importância
dos clérigos, na manutenção e na criação de expressões culturais e artísticas e
o motivo de elas serem invariavelmente de cunho religioso. E os monges são
claramente os que difundirão o conhecimento e as expressões culturais em
seu tempo e preservarão os saberes para as gerações vindouras. O mosteiro é
um bastião da fé, da religiosidade, mas também da cultura e das bibliotecas.
5.2 O monarquismo:
a manutenção dos saberes e da cultura
O monaquismo surgiu no Oriente, mas sua expressão inicial era de monges
isolados que se escondiam nos desertos e montanhas para rezar, meditar,
se distanciar da sociedade materialista e carnal e se espiritualizar. Eram os
eremitas ou anacoretas. Já no Ocidente há expressões do monaquismo que
se dirigem à criação de comunidades de monges. Os monges agrupados em
comunidades seriam os cenobitas. Também se denominam tais monges
como clero regular, pois se associam através de uma regra. Os precursores
desse movimento estavam preocupados com a crescente ignorância e o alto
grau de analfabetismo, mas também com a manutenção e propagação da fé
cristã verdadeira e oficial. No clero secular, os padres e presbíteros das paró-
quias eram geralmente analfabetos, ou semiletrados, quando muito.
Assim sendo, são fundados mosteiros, nos quais prevalecia uma regra,
uma espécie de norma de admissão e de conduta. Os candidatos ao mona-
cato deveriam passar por um período de observação, na condição de novi-
ços. Após esse período eram avaliados pelos monges e, caso aprovados, se
comprometiam a aceitar as normas de vida prescritas na regra. Em quase
todas as regras se definiam alguns destes padrões: ser celibatário; não
adquirir nem manter a posse de bens e riquezas materiais; aceitar a reclu-
são, ou seja, não sair do mosteiro, salvo com permissão do abade e com
alguma finalidade; trabalhar uma parte da jornada; participar das orações
94
coletivas espalhadas pelo dia e pela noite; estudar ou atuar nas ativida-
des religiosas/culturais, em particular na cópia de manuscritos de todos
os tipos, no espaço denominado, em latim, de scriptorium, uma mescla de
biblioteca com oficina de escrita.
Os monges ensinavam aos noviços a leitura e a escrita. Alguns aprofunda-
vam esses saberes, já outros se tornavam apenas semiletrados, mas podiam
ser copistas de manuscritos. Uns podiam ler e analisar obras de fundo reli-
gioso e até criar obras e reflexões devidamente analisadas por seus superio-
res e aprovadas se não tivessem objeções à interpretação ortodoxa, correta e
oficial da Igreja. Assim o mosteiro se torna uma “ilha” de saber e de cultura,
no Ocidente medieval, por mais de meio milênio.
Um dos fundadores de mosteiros foi Cassiodoro (490-581), que serviu
na corte de Teodorico, o rei ostrogodo. Na fase final de sua vida fundou um
mosteiro, numa propriedade de sua família, na costa sul da Itália, em
um local denominado Vivário (Vivarium), que albergava monges regula-
res junto com monges eremitas. Ali organizou uma vasta biblioteca que
preservou milhares de obras clássicas e cristãs, definindo um modelo de
biblioteca monástica.
A regra que mais se propagou e se manteve até nossos dias foi a bene-
ditina. Seu fundador foi Bento (Benedito) de Núrsia (480-547), que fundou
a abadia de Monte Cassino, destruída na segunda guerra mundial e depois
reconstruída. A regra beneditina se manteve através do medievo, tendo
sofrido reformas e alterações sob Cluny e Clairvaux (Císter), mas sendo a
mais importante pelo menos até o século XII. Perdeu espaço com o surgi-
mento e expansão das ordens mendicantes (dominicanos e franciscanos),
mas aparece até na história do Brasil, quando se fundam diversos mosteiros
de São Bento, entre os quais o de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, com
escolas, bibliotecas excelentes e claustros ativos até hoje.
Os monges, entre os quais se salientam os beneditinos, não difundiam
livremente os saberes clássicos, a cultura greco-romana, pois esta poderia
afetar as crenças da população e sugerir pensamentos anticristãos. As obras
clássicas eram ainda assim preservadas e mantidas, seguidas vezes copiadas
e escondidas em espaços restritos das bibliotecas monásticas.
95
Monges mais cultos e respeitados faziam uso de obras ditas pagãs, da
cultura greco-romana, mas de forma seletiva. Percebendo a beleza das for-
mas, o refinamento do estilo de tais escritos – sejam eles de pensadores e
filósofos gregos, como Platão, sejam de retóricos romanos, como Cícero,
sejam dos estoicos –, usavam trechos devidamente selecionados, mas des-
contextualizados. Recortavam um trecho de uma obra clássica, de modo
que, retirado do corpo dessa obra, servisse para ilustrar um saber ou uma
doutrina cristã. Era um corpo clássico com uma alma cristã. Até os jesuítas
assim o fizeram na catequese de índios.
A cultura monástica nos contemplou com alguns pensadores e escri-
tores notáveis. O primeiro deles transita entre os últimos anos do Império
Romano do Ocidente e o início das invasões bárbaras. É Agostinho, bispo de
Hipona (354-430), autor de uma vasta obra de cunho filosófico e religioso.
Pretendia ser monge, mas teve de assumir o clero secular. Ressaltamos duas
de suas obras mais notáveis: As Confissões, um escrito autobiográfico que
relata sua descoberta do cristianismo e sua conversão; Cidade de Deus, que
já comentamos no tema primeiro, um tratado de religião e filosofia que ana-
lisa o mundo, as relações de Deus com a Criação, a Revelação e o sentido da
história. Esta obra se tornou um dos pilares do Cristianismo e base de uma
filosofia da história: de onde viemos e para onde vamos.
Quatro premissas de sua obra: a primeira era a refutação do ceticismo,
que considera que, mesmo que os sentidos possam nos enganar nos julga-
mentos que fazemos, o fato de pensarmos define a nossa existência, algo
como o “penso, logo existo” de Descartes. A segunda premissa seria a nega-
ção do mal, pois Deus fez o mundo bom e, mesmo que possamos nos cor-
romper e pecar, o mal é apenas o distanciamento do Criador, que é comple-
tamente bom e fez o mundo bom. Podemos fazer errado uso do mundo, ao
nos distanciarmos de Deus, de sua revelação e de sua bondade. A terceira
premissa é a Graça. Nesta, o ser humano é dotado de livre arbítrio, mas o
que prevalece é a graça divina. O uso do livre arbítrio é precedido pelo dom
da Graça, que Deus concede a uns e não concede a outros. E a quarta e última
premissa é a Cidade de Deus, que é uma síntese entre o cristianismo e o neo-
platonismo pagão, no que tange ao conceito de mundo das ideias. A cidade
96
divina é uma realidade transcendente que é refletida de maneira imperfeita
na cidade dos homens, uma cópia imperfeita. Duas comunidades de huma-
nos convivem lado a lado: de um lado, os que se dedicam a Deus e à busca
da espiritualidade; de outro lado, os que se dedicam a si mesmos, à busca da
materialidade e dos bens terrenos.
Consolida-se, neste último conceito, o sentido da História. Alguns
seguirão a Igreja e seus ensinamentos e se salvarão no Juízo Final; já outros
não seguirão e serão condenados ao inferno, no Juízo Final. As concep-
ções de Agostinho demarcarão o medievo e a concepção de mundo da
Cristandade Ocidental.
Outros autores se destacam nos primeiros séculos do medievo. São cléri-
gos, geralmente monges, mas por vezes foram alçados à condição de bispos.
São autores de alguns gêneros literários, dentre os quais destacamos: um
gênero romano, outro cristão e um que é uma mescla dos dois e denomina-
mos gênero enciclopédico.
No gênero romano encontramos obras de caráter histórico escritas para
descrever tanto a expansão do Cristianismo e a conversão dos povos germâ-
nicos quanto para fortalecer as novas monarquias cristãs instauradas pelos
invasores. Citamos a obras do bispo galo-romano Gregório de Tours, que
descreve a formação do reino franco pelo rei Clóvis e seus sucessores; a obra
do monge Beda, o Venerável (675-735), que descreve a conversão das Ilhas
Britânicas ao Cristianismo; e a obra de Isidoro, bispo de Sevilha (570-636),
de quem já falamos no tema primeiro, que descreve a história dos reinos
germânicos na Península Ibérica com ênfase na presença visigoda e na
construção da monarquia cristã.
No gênero cristão temos uma ampla profusão de obras biográficas de bis-
pos e monges da Igreja. São obras que se pretendem exemplares, pois narram
a vida de santos (hagiografia) e de líderes eclesiásticos, que seriam modelos
de conduta cristã. Mesclam história com folclore e mitologia cristã. Servem
para ilustrar as prédicas dos clérigos nas igrejas, tendo em vista que a maio-
ria da população era iletrada. Os modelos de vida que prevalecem são clara-
mente os modelos eclesiásticos, sendo os personagens exemplares os bis-
pos e os santos, pois os únicos letrados que podem escrever, são os monges.
97
O último gênero é o enciclopédico, que visa preservar os saberes da cul-
tura clássica de uma maneira cristã e de uma forma condensada. A enciclo-
pédia medieval foi a coletânea Etimologias, de Isidoro de Sevilha, que, em
verbetes temáticos inseridos em uma variedade de livros, e tendo como base
as sete artes liberais romanas, explica todo o saber acumulado no mundo
greco-romano. Contém uma mescla de ciências e conhecimentos empíricos
com crenças e superstições. A obra de Beda, denominada De natura rerum,
pretende ser uma obra científica que explica a ordem da natureza.
O período inicial do medievo, que alguns autores denominam a Primeira
Idade Média, se encerra com a instalação do Império Carolíngio.
98
Após o reinado dos dois referidos imperadores, o movimento perde
força, a situação segue restringindo a cultura letrada aos mosteiros e os lei-
gos ficam alijados do conhecimento.
Isso não impede o desenvolvimento, em paralelo, de uma cultura popu-
lar, que denominamos folclórica. Através de relatos orais transmitidos de pai
para filho, os camponeses mantinham sua cultura e seus saberes, relatando
tradições antigas, lendas e narrativas. A Igreja, no intuito de converter a popu-
lação camponesa, lado a lado com a nobreza germânica, incorpora elementos
folclóricos e os cristianiza. Um exemplo é a inserção de personagens pagãos,
inclusive deuses, como santos da Igreja. Até mesmo os espaços sagrados dos
antigos templos pagãos são reciclados: ora se derrubam suas estruturas e no
mesmo local se reergue uma igreja, ora se aproveitam até mesmo os espaços
sagrados, purificando-os com água benta e orações para exorcizar os demô-
nios (leia-se: deuses pagãos) e os espaços se tornam puros e sacralizados.
Tal mistura de cristão e pagão é uma estratégia dos bispos e monges para
evangelizar os povos autóctones ou os invasores germânicos.
102
Além desses Juízos Finais, temos Imagem da Igreja na catedral de Notre Dame de France
103
Ilustração da Bíblia românica de Burgos
110
6.1 Os saberes e os poderes
Um dos temas interessantes do medievo é a interação entre
os clérigos e os cavaleiros. Na maior parte do medievo eram
poucas as pessoas letradas, aquelas que sabiam ler e escrever.
Esses saberes e técnicas de aquisição do saber eram pratica-
mente um monopólio do estamento clerical. No tema quinto já analisamos
parcialmente essa temática. No tema terceiro estudamos a Igreja e perce-
bemos como esta objetivou o controle social e o direcionamento da violên-
cia para fora do sistema social, para fins que servissem à Cristandade, não
lesassem a população não militarizada, seja o clero (oratores), sejam os traba-
lhadores (laboratores), e não atingissem os fiéis em geral e, em específico, os
fragilizados: idosos, crianças e mulheres. Os clérigos objetivaram externali-
zar a guerra, no sentido militar, e internalizar nas mentes dos fiéis a luta con-
tra os pecados capitais, contra os desejos e tentações da luxúria, da gula, do
poder e da riqueza. Um grande campo de batalha era ordenado pelos detento-
res do saber para canalizar a violência contra o Diabo e seus aliados: infiéis,
hereges, pecadores e opositores da Igreja.
6.2 As Cruzadas
O conceito de guerra sagrada não é novo. Na sua origem, o conceito da luta
do homem contra as tentações e desejos, contra os pecados (na expressão
da época, “vícios”) criava na sociedade cristã a sensação de que havia uma
luta cósmica, entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo. Nas palavras de
Hilário Franco Junior, na obra Idade Média: nascimento do ocidente, há três
conceitos-chave para compreender o medievo: o contratualismo, o simbo-
lismo e o belicismo. Falamos um pouco disso nos temas anteriores. O beli-
cismo é o conceito-chave para entendermos as Cruzadas e a Reconquista
ibérica. A luta se travava em alguns níveis: um é terreno e imediato, visí-
vel e material, nos campos de batalha. Outro é no âmbito do simbolismo,
mais transcendental e espiritual: a Cristandade seria o exército do bem e
111
os infiéis, tanto os muçulmanos quanto os judeus, seriam o seu oposto, o
campo do erro e do mal.
A sociedade cristã no ocidente medieval estava numa fase de crescimento
e aumento demográfico. As invasões de povos tinham atenuado e mesmo se
acomodado. Ocorrera uma melhoria na produção agrícola com um relativo
aumento na oferta de alimentos. Isso estabilizara um pouco o sistema, mas
a demanda por mais terras cultiváveis era forte.
A diminuição da mortandade causada pelas guerras, pelas invasões e
pela fome gerara mais gente sem terras. Os filhos de nobres que não her-
davam buscavam formas de subsistir: casamentos com herdeiras de bens
imóveis; conquistas de novas terras; e, derivados disso, o saque e o botim
também. Há mais candidatos à posse das terras do que terras disponíveis. E
no tema da mão de obra para cultivar as terras, as novas condições começam
a gerar excedentes de trabalhadores, pois a própria estrutura do sistema feu-
dal não absorvia mais novos braços.
Sobram guerreiros e sobram trabalhadores. A incapacidade de integrá-los
começa a propiciar o aumento da violência. Bandos de guerreiros, acom-
panhados por filhos de camponeses que foram ejetados de suas terras, pela
falta de condição de absorvê-los. A liderança clerical se apercebe do pro-
blema e tenta controlar a violência com as regras que alinhamos no tema
terceiro: Paz de Deus e Trégua de Deus. O objetivo era reduzir os dias e limi-
tar os espaços nos quais é permitida a guerra. Assim, além de tentar mini-
mizar os tempos e locais de combate, ainda intentava controlar a violência
da nobreza, sacralizar a cavalaria incutindo-lhe rituais e ideais de justiça
e fé. Aos poucos essa estratégia traz resultados, mas não é suficiente. Urge
canalizar a violência para fora do sistema.
Outro aspecto que nos auxilia a entender o movimento das Cruzadas é o
costume da peregrinação. Essa tradição existia desde o Baixo Império. Havia
locais considerados sagrados e adequados para serem visitados e cultuados:
túmulos de santos e mártires da cristandade, ou dos apóstolos, mas principal-
mente os lugares pelos quais Jesus passou e foi sepultado. Os fiéis que residiam
no continente europeu afluíam para os lugares sagrados relacionados com os
primórdios do cristianismo: Nazaré, Belém, Jerusalém e demais localidades,
112
nas quais Jesus vivera e onde se supõe que estejam enterrados seus restos mor-
tais. Destacam-se o denominado Santo Sepulcro, que seria a tumba de Jesus,
e a Via Dolorosa, que é o trajeto percorrido por ele entre seu julgamento e sua
crucifixão. Esse trajeto era em muitos períodos perigoso e inóspito.
A peregrinação era o mais alto grau de penitência, e aos criminosos e
pecadores de todos os tipos se recomendava realizá-la como forma de obter
o perdão divino. Fiéis em geral almejavam também peregrinar para se alça-
rem mais alto nos degraus da espiritualidade. Esse movimento recebeu um
estímulo para crescer com a cristianização do reino da Hungria, que abriu
um caminho mais seguro. E uma rede de mosteiros foi criada oferecendo
hospedaria aos peregrinos, por volta do ano 1000.
No aspecto do conceito de guerra santa, temos que refletir que se tra-
tava de algo pouco espiritual e que se contradizia com a postura pregadora,
pacífica e cordata dos primeiros cristãos. Essa postura foi formatada aos
poucos e bastante influenciada pela definição feita por Agostinho, bispo de
Hipona, no começo do século V, que criara a figura da guerra justa. Seria esta
uma guerra defensiva ou permitida, caso fosse para reparar um mal feito
anteriormente, e justificada, pois estaria fazendo justiça diante de um erro.
Como Agostinho combatera diversas heresias, considerava que o combate
aos hereges renitentes, que se recusavam a aceitar as pregações evangélicas
da Igreja, era justificado.
O conceito não abarcaria infiéis, visto o herege ser alguém batizado e
que já teria feito parte da comunidade cristã, mas o termo foi estrategica-
mente alargado para conter a luta contra os infiéis. O papa João VIII, em 878,
estimulou esta percepção ao afirmar que haveria recompensas celestes aos
defensores da fé. O conceito de guerra santa estava sendo moldado.
Entre as motivações imediatas havia um franco avanço de muçulma-
nos nos espaços da Cristandade. A Península Ibérica, que denominamos
Hispânia, fora ocupada por invasores muçulmanos desde 711 e era espaço de
conflitos entre cristãos e muçulmanos, como veremos neste capítulo, mais
adiante. No leste, o Império Bizantino tinha sido parcialmente derrotado e
perdera muitos territórios ao que viria ser o califado de Damasco (tema 4).
O império se reorganiza, consegue conter os avanços dos muçulmanos e,
113
mesmo sem recuperar os territórios perdidos, se mantém e estabiliza. Até o
início do século XI, os bizantinos, mesmo com o território diminuído, supe-
ram os adversários. Alguns povos tentam invadir o império e são contidos.
No século XI, nas décadas anteriores às Cruzadas, um novo elemento
havia aparecido e prenunciava-se como ameaçador ao Império Bizantino
e ao cristianismo: recém-convertidos ao Islã, os turcos seldjúcidas, segui-
dores de um islamismo radical, haviam conquistado largos territórios e
ocupado partes da Pérsia, da Síria e da Ásia Menor. Avançaram na direção
de Constantinopla e derrotaram um exército bizantino em Manzikert em
1071. Ocuparam a maior parte da Anatólia e conseguiram se apoderar de
Jerusalém em 1078. Atemorizados, os bizantinos pedem ajuda ao papa e aos
governantes cristãos do Ocidente. O papa Gregório VII considera a possibi-
lidade de reunificar a Igreja tendo em vista o cisma de 1054, que separava
ortodoxos do Oriente e católicos do Ocidente. No entanto, fragilizado com o
conflito das Investiduras, nada faz para ajudar.
Novo apelo é feito pelo imperador Aleixo Comeno ao papa Urbano, que
concebe o gesto que foi interpretado pela historiografia oficial como sendo
o estalar do movimento das Cruzadas. Convoca um concílio eclesiástico
na localidade de Clermont-Ferrand (no sul da atual França) em 1095. Nesse
momento há rumores não comprováveis de que os turcos molestavam os
peregrinos, impedindo o livre acesso aos lugares sagrados. Essa notícia
ajuda a criar certo apoio. O imperador, em conflito com o papa, não era um
aliado viável, daí a razão da escolha do local do concílio no reino da França.
O papa declara a decisão plenamente endossada pelos cardeais e bispos pre-
sentes de realizar uma cruzada.
As Cruzadas pretenderam libertar a Terra Santa e tomar posse dos luga-
res sagrados do cristianismo, tal como o Santo Sepulcro, que, desde a der-
rocada dos bizantinos diante dos muçulmanos, estavam sob o controle de
governantes islâmicos. A pregação começou na França e atingiu o Império,
mas em forma de uma cruzada popular. O pregador conhecido como Pedro,
o Eremita, liderou um amplo grupo de elementos, a maioria das camadas
pobres. Muito misticismo e religiosidade popular geraram um grupo inicial
114
que, após saquear e cometer atos de violência no caminho, acabou sendo
dizimado facilmente pelos turcos na Ásia Menor.
Houve também uma cruzada denominada germânica, misturando nobres
decaídos e elementos populares que hostilizavam os judeus, entrando nas
cidades, saqueando e intimando os judeus a se converterem à força. A maio-
ria desses judeus opta pelo autossacrifício, imola sua família e se mata.
Estimam-se cerca de seis mil vítimas judaicas no período da cruzada germâ-
nica. O pretexto desses cruzados era que havia infiéis no seio da cristandade
e se deveria purificar a sociedade antes de combater os outros inimigos da
cruz no Oriente. Os movimentos populares são vistos pelo imperador, pelos
reis e pela nobreza com muita cautela.
A primeira cruzada oficial organizada pela Igreja teve a presença e a
liderança de grandes nobres. Nem o imperador, nem os reis a apoiaram ou
participaram dela. A maior parte era francesa. Cruzaram pelo continente a
Europa e chegaram a Constantinopla (1097). Um choque cultural ocorreu
entre os refinados bizantinos e os grosseiros ocidentais. O imperador, pre-
ocupado, logo os envia para Anatólia. Os cruzados são bem-sucedidos no
aspecto militar. Vencem os turcos e ocupam Antioquia (1097) e Jerusalém
(1099). A tomada de Jerusalém é feita com extrema violência: não são pou-
padas as populações civis, sejam mulheres e crianças, sejam clérigos de
qualquer denominação. Judeus, muçulmanos, cristãos orientais são igual-
mente chacinados sem mercê. O conceito de Paz de Deus apregoado pelos
monges de Cluny não vale aqui.
O autor Amin Malouf, na obra As cruzadas vistas pelos árabes, descreve
as crônicas das cruzadas através do olhar de muçulmanos. Estes definem
os cristãos em dois grupos: os Rum, termo derivado de romanos, que quali-
fica os bizantinos, pois mesmo sendo adversários eram civilizados e éticos;
e os Franj, termo derivado de francos, que equivaleria aos cruzados vindos
do reino franco ou da França, que eram violentos, selvagens e sem nenhuma
ética guerreira. É muito interessante perceber que esse contraste traz percep-
ções diferentes de dois grupos cristãos, ou seja, não classifica a alteridade (o
outro) pela religião apenas, mas pela forma de se relacionar com os demais
seres humanos.
115
Mapa 1 – Europa das Cruzadas
Fonte: p. 80 – Atlas Histórico Escolar – MEC
116
Nessa época e no Oriente latino, surgiram as ordens militares religiosas
que se ampliariam e surgiriam em outros locais da Cristandade, tal como na
Península Ibérica. As ordens surgidas no oriente foram várias, mas salienta-
remos duas: os Templários e os Hospitalários. Pretendiam proteger o cami-
nho de peregrinação e os lugares santos, acolher os peregrinos e enfrentar
os infiéis muçulmanos. As ordens crescerão e se fortalecerão tanto nume-
ricamente como financeiramente, perdendo aos poucos os seus objetivos.
A ocupação dos reinos não se manteve e há avanços e retrocessos na
presença cristã no Mediterrâneo oriental. A segunda cruzada fracassa e,
na esteira desta, Jerusalém é tomada por Saladino, o sultão do Egito, após a
derrota cruzada em 1187. A terceira cruzada mobiliza o imperador Frederico
I (Barba Ruiva ou Barbarossa), que morre no trajeto, o rei da França, Felipe II
Augusto, e o rei inglês Ricardo Coração de Leão. Saladino consegue resistir e
faz um acordo de livre circulação de peregrinos aos lugares santos, mas não
perde a soberania da região.
A quarta cruzada é um exemplo de desvio de objetivos e desvirtuamento do
sentido religioso. Mobilizada pelo papa Inocêncio III, é utilizada pelos venezia-
nos como expedição contra Constantinopla, tendo em vista que os cruzados não
tinham como pagar o transporte à Terra Santa e os venezianos haviam perdido o
monopólio comercial dentro do Império Bizantino, que o cedera aos genoveses.
Assim, por duas vezes Constantinopla é tomada e saqueada. Estabelecem-se
dois impérios orientais: o Latino, na prática dominado pelos venezianos, e
o Grego. Isso se deu por meio século, até que foram novamente unificados,
seguindo enfraquecidos e correndo sempre o risco de ocupação pelos turcos.
As demais cruzadas seguiram fracassando. O rei francês Luis IX, deno-
minado São Luis, foi líder de duas expedições cruzadas. Uma é a sétima
(1248-1254), dirigida a Damieta no Egito, que é tomada (1249). Em seguida o
monarca é capturado em Mansurah (1250) e teve que ser trocado pela cidade
antes conquistada, entregue como resgate. A oitava cruzada liderada pelo
mesmo rei Luís IX terminou com a sua morte por disenteria antes de reali-
zar o cerco de Túnis (1270). Os cruzados serão expulsos da última fortaleza
na Terra Santa, em 1291, com a tomada de Acre (Ako), e permanecerão ape-
nas na ilha de Chipre, por mais algum tempo.
117
A obsessão pela cruzada não desapareceu e muitas vezes houve planos
de retomar a região denominada Terra Santa. Em alguns concílios e nas
ideias de muitos pensadores e líderes cristãos aparece um projeto cruza-
dístico. Trata-se de um ideal que demarcou a maneira de pensar e de agir do
cristão europeu e seguiu justificando uma superioridade deste em relação
aos infiéis, não cristãos e não europeus.
Vale ressalvar que houve movimentos e projetos militares de expansão
e de conversão, seja no Báltico, seja na direção leste, que foram denomina-
dos como cruzadas. Por razões de espaço, optamos por enfatizar apenas as
Cruzadas do Oriente e a Reconquista da Península Ibérica, por suas íntimas
relações com a formação da América Latina e com o Brasil.
122
entre reinos cristãos, houve certa coesão. Como faltava gente, seja para com-
bater, seja para colonizar, organizaram-se projetos diversos. Um deles foi
a distribuição de terras a colonos que vinham do outro lado dos Pirineus,
do reino da França e de outros reinos. O termo para essa distribuição seria
repartimientos. Em razão da necessidade de colonos os reis aceitavam até
criminosos que eram anistiados, desde que se estabelecessem e permane-
cessem nos espaços fronteiriços.
As terras ao sul do rio Douro foram concedidas a camponeses vindos do
norte: Galícia e Astúrias. Já na região do vale do rio Ebro a carência de mão
de obra fez estimular “francos”, termo genérico para denominar imigrantes
do reino da França, mas também italianos, flamengos, alemães e ingleses,
por exemplo. A rota do caminho de Santiago ajudou a trazer peregrinos que
acabaram ficando de forma definitiva em Aragão e Navarra. Muitas cidades
foram ampliadas com bairros inteiros de “francos”, tendo sido criada nessa
época a expressão zona franca, ou seja, um espaço e um grupo isento par-
cialmente ou completamente de impostos.
123
As abadias serviram também para colonizar. Um exemplo é a abadia cis-
terciense de Alcobaça, em Portugal, fundada em 1153. Muitas mais foram
construídas e utilizadas como forma de ocupação de espaços e colonização
em todos os reinos ibéricos.
Para ocupar e manter militarmente os espaços fronteiriços foram cons-
truídas estradas, fortalezas e cidades muradas para abrigar os colonos.
Foram criadas Ordens Militares religiosas, que cuidavam de muitas forta-
lezas e apoiavam os reis nas batalhas e controle das conquistas. Entre as
ordens podemos citar Aviz (1147), em Portugal apenas; Alcântara (1156) e
Calatrava (1158), em Castela; e Santiago (1160), em Portugal e em Castela.
Essas organizações monástico-militares eram fortemente influenciadas
pela Regra Cisterciense, tal como as ordens dos Templários e Hospitalários,
que vimos antes e que também estavam presentes nos reinos ibéricos.
As novas terras conquistadas não eram necessariamente despovoadas de
muçulmanos e de judeus. Os judeus foram estimulados a participar da colo-
nização e receberam terras e direitos de comerciar e povoar as cidades fron-
teiriças. Já com os muçulmanos houve atitudes variadas. Muitas vezes eram
retirados das cidades, mas permaneciam no campo. A exceção foi Múrcia,
na costa mediterrânea, na qual os muçulmanos permaneceram e foi um
centro de difusão cultural.
O rei Afonso X, o Sábio (1252-1284), rei de Castela e filho do rei Fernando
III ascendeu ao poder num período em que os cristãos estavam em predo-
mínio e era visível que a Península tendia a ser tomada pelos reinos cristãos.
Ele compreendeu que o saber em diversas áreas do conhecimento teria mui-
tos avanços se os sábios muçulmanos fossem cooptados. Criou em Múrcia
uma escola de filosofia, das três religiões monoteístas. Era bem articulado
nas relações com judeus e muçulmanos: fundou em Sevilha uma escola,
para estudo de línguas, e um Studium Generale, uma espécie de universi-
dade. Mandou fazer traduções diversas do árabe para o latim. Traduziu o
Corão, o Talmud, textos relacionados com as duas outras religiões, litera-
tura, poesia, ciências e outros saberes.
Essa interação e trocas culturais foram interpretadas por historiado-
res de maneiras distintas: uns pensam que era um período de tolerância
124
religiosa; outros, de diálogo e de convivência e ricas trocas culturais; outros
ainda consideram que se trata de uma fachada de intercâmbios que per-
mitia aos cristãos estudarem melhor seus “inimigos” para combatê-los.
Alguns historiadores entendem que o modelo social ideal e idealizado da
Espanha seria esse de diálogo e convivência, no qual foi moldada a Espanha
moderna e contemporânea. Num século como o anterior (século XX), em
que se sucederam momentos de democracia e de ditadura, tais discussões
eram muito ideológicas.
Uma Espanha “pura” e plenamente cristã moldada nos campos batalha
da Reconquista refletia um ideal que se adequava ao período da ditadura
franquista: os cristãos medievais venceram os infiéis muçulmanos e ejeta-
ram os judeus deicidas e traidores. Já nos anos 1930 o general Franco, com
ajuda da Igreja, venceu e expulsou os republicanos e seus aliados socialistas,
anarquistas e comunistas, inimigos da Igreja, do bem e da verdade. Paralelos
que levaram a algumas escritas da História: uma exaltando o heroísmo cris-
tão e a luta de 700 anos; outra exaltando o diálogo e a convivência. Ambas
ideológicas e geralmente radicais.
128
Na região de Flandres (atuais Bélgica e Holanda) havia um crescente
artesanato têxtil. Adquiriam a lã inglesa e preparavam tecidos rústicos
que eram vendidos na região e nas cercanias. Uma parte chegava à Itália e
lá era refinada e tingida gerando tecidos de qualidade e roupas de luxo. As
cidades flamengas como Gand, Ypres, Bruges, Lille e Douai eram populo-
sas e repletas de artesãos. E como a região se conecta com o território ale-
mão (Império Germânico) pelos rios Reno e Mosa, tinha a possibilidade de
fazer comércio fluvial. Além disso, pelo mar Báltico atingia Lubeck e dali,
em rotas continentais, até a cidade de Novgorod (atual Rússia). Um imenso
trajeto que gerava na parte norte da Europa um comércio internacional.
Comerciavam-se ali produtos primários como mel, peles, cereais e madeira,
lado a lado com manufaturados.
Esse comércio e a cobiça do poderoso rei dinamarquês fizeram com que
uma liga de cerca de setenta cidades surgisse com o duplo objetivo: con-
trolar e assegurar a paz no mar Báltico e ampliar e desenvolver o comércio
nessa mesma região. Assim, algum tempo depois das cidades italianas, os
alemães e flamengos conseguiram ampliar e expandir o comércio interna-
cional no norte da Europa. E como essas duas regiões interagiam?
Tal conexão foi feita no meio do caminho entre Flandres e Itália, na
região da Champanhe, na qual se criaram as feiras no século XI. Em 1050
já se tem notícias de que em Troyes e Provins, por exemplo, havia fei-
ras comerciais para intercambiar produtos provenientes da Itália e do
Mediterrâneo com produtos originários de Flandres e do Báltico. Vendia-se
de tudo e havia gente de inúmeros locais que aparecia nas feiras. Surgiram
feiras em novos espaços.
129
Mapa 3 – Comércio medieval na Europa Central
130
O último fenômeno que optamos por descrever é o reaparecimento da
moeda. Moedas de metais nobres haviam desaparecido de circulação no
final do Império Romano do Ocidente. Nobres e reis poderosos as tinham,
mas não as colocavam em circulação. Assim os negócios eram dificultados,
pois sem moedas podiam-se efetuar apenas trocas de mercadorias. Cunhar
moedas era um direito do imperador ou de reis. Isso também dificultava.
A ausência de ouro fez com que se privilegiasse a prata, já que havia jazi-
das deste metal na Europa, que logo foram exploradas, e se começou a cunhar
moedas de prata. Gradualmente apareceram moedas de ouro, fazendo uso de
ouro africano, do Sudão ou do Senegal, que vinha através de trocas comerciais
dos venezianos ou florentinos. Surge o florim de ouro emitido por Florença
e depois o ducado de ouro cunhado pelos venezianos. O florim se tornou um
padrão por algum tempo, ajudando nos negócios e nos pagamentos.
A diversidade de tipos de moedas era um entrave para o comércio. Surge
a função de especialista em tipos de moedas que as trocava ou adquiria.
Havendo em circulação moedas múltiplas, o conhecimento das equivalên-
cias era uma função vital e antecipava os bancos. Estes não tardam a sur-
gir: os Peruzzi no século XIV e depois os Médici no XV predominaram em
Florença e estenderam seus negócios por toda Europa. No século XVI os
Fuggers no Império eram muito poderosos e riquíssimos.
A Igreja via com muito receio o comércio e ainda mais os juros bancá-
rios, sem os quais não haveria negócios. Inicialmente os judeus eram os
únicos que faziam empréstimos a juros. Tal negócio era chamado de usura.
O prestamista judeu era considerado um aliado do Diabo, visto que juros
eram, na percepção da Igreja, um pecado. Tomás de Aquino, célebre teólogo
e filósofo escolástico, dizia que “dinheiro não procria dinheiro” (em latim:
munus non parit munus), ou seja, o tempo a Deus pertence e não se pode
ganhar dinheiro lucrando com um dom que é divino.
O comércio e o artesanato geraram avanços de certos setores sociais.
Servos ejetados dos feudos puderam ter novas oportunidades e criar peque-
nos ateliers de trabalho nas novas cidades. Com o passar do tempo, os que
chegaram antes regulamentaram as profissões e criaram uma espécie de
sindicato, denominado guilda, que seria uma associação de comerciantes
131
ou artesãos, em cada um dos setores produtivos: tecelões, alfaiates, sapa-
teiros, marceneiros, vidraceiros, ferreiros e muitos outros. Os comerciantes
internacionais e locais também se especializaram e ocuparam os espaços,
criando uma espécie de reserva de mercado. Os associados nas guildas se
autodenominavam mestres (especialistas numa atividade) e criaram mui-
tas dificuldades para que novos artesãos pudessem ingressar nelas. Criaram
formas de serem sucedidos exclusivamente por filhos ou aparentados.
Os que vieram depois da consolidação das guildas eram obrigados a se
ofertar como mão de obra barata e servirem como aprendizes, aos mestres.
Isso gerou nas cidades tensões sociais e conflitos em certos momentos. Uma
divisão social hierarquizava grupos de habitantes nas cidades, que original-
mente eram um espaço de liberdade e poucas diferenças sociais. O governo
das cidades passa a ser controlado pelos mais ricos e poderosos, para evitar
a alteração das regras sociais e econômicas e manter sua riqueza e poder.
135
Considerações finais
speramos que este estudo sintetizado do período, assim
denominado medieval, possa servir como uma reflexão ini-
cial sobre as percepções, saberes e a cultura de uma era de
construção de inúmeros conhecimentos, técnicas e cultura
que embasam a contemporaneidade.
Era das Trevas? Vemos em nosso cotidiano conflitos políticos, religiosos,
étnicos de todos os tipos e formas que podem ser comparados, com o devido
distanciamento, para evitar anacronismos, com crenças e preconceitos do
medievo. As trevas estão no nosso cotidiano: na violência urbana, nas guer-
ras que massacram populações civis aos milhares e por vezes milhões de
seres humanos, na fome e na miséria que grassa no “terceiro mundo”.
A tendência a qualificar o Outro como um ser negativo e valorizar gru-
pos sociais inteiros como inferiores já foi bastante estudada. De uma forma
geral, tendemos a hipervalorizar certos períodos da História como sendo
melhores e superiores e a desvalorizar outros com estereótipos e preconcei-
tos, considerando-os como uma era de Trevas.
O medievo legou muitos saberes, arte e cultura, técnicas que depois
foram aprimoradas e atingiram um grau de complexidade elevado. Mas
136
tudo começou com os andares inferiores da História e chegou aos andares
superiores graças ao esforço criativo dos operários que ergueram a base.
Apesar da nostalgia da era clássica que legou a cultura greco-romana, esta
só chegou a nós através da transmissão parcial pelos monges copistas, outra
pelos tradutores, também pela reelaboração das leis romanas e da filosofia
nas universidades medievais, pela habilidade dos artesãos que ergueram as
catedrais românicas e góticas, pelos comerciantes que cruzaram os mares
e aproximaram civilizações distantes e pelos exploradores que uniram a
Europa com os demais continentes.
Reflitam sobre os usos de termos: bárbaros diante de civilizados; cris-
tãos diante de muçulmanos; a civilização diante da barbárie; o bem diante
do mal; a verdade diante do erro e do desvio da fé. Todas essas discussões
e essas ponderações – que buscam a plena verdade e a excelência de certos
grupos, povos e raças diante de outros inferiores e falsos – estão no nosso
cotidiano. Estudar o medievo pode e deve servir para refletir sobre a nossa
realidade, ajudar no diálogo com a alteridade, a diversidade e a convivência
entre seres humanos diferentes. Esperamos que este estudo tenha ajudado
a refletir sobre um período rico em saberes, experiências e trocas culturais.
137
Referências
BATISTA NETO, Jônatas. História da baixa idade média. São Paulo: Ática, 1989.
LOYN, Henry R. Dicionário da idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
MALOUF, Amin. As cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo: Brasiliense, 1989.
MELERO MONEO, Marisa. O melhor da arte gótica 1 e 2. Lisboa: G & Z edições, s.d.
ULLMANN, Walter. Law and society in the Middle Ages: an introduction to the
sources of medieval political ideas. Cambridge: Cambridge University, 2008.
138
ISBN 978-85-63765-09-3
www.neaad.ufes.br
(27) 4009 2208