Sergio Alberto Feldman - História Medieval

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Sergio Alberto Feldman

Universidade Federal do Espírito Santo História


Secretaria de Ensino a Distância Licenciatura
Universidade Federal do Espírito Santo
Secretaria de Ensino a Distância

Sergio Alberto Feldman

Vitória
2015
Presidente da República Coordenadora Adjunta UAB da UFES Laboratório de Design Instrucional (ldi)
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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)


(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Feldman, Sérgio Alberto.


F312h História medieval / Sergio Alberto Feldman. - Vitória :
Universidade Federal do Espírito Santo, Secretaria de Ensino a Distância, 2015.

138 p. : il. ; 23 cm

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-63765-09-3

1. Idade Média - História. 2. Feudalismo. I. Título.

CDU: 94(100)”04/14”

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direito de autor no Brasil.
Introdução: Idade Média? Era de trevas? 6
tema 1
a transição do mundo antigo para o medievo 10
1.1 Breves reflexões sobre a queda do Império Romano do Ocidente 12
1.2 Os visigodos e o Império Romano (primeira fase das invasões) 13
1.3 Vândalos, suevos e alanos (segunda fase das invasões) 14
1.4 Estudo de caso I – O Reino Visigótico de Toledo: origens do modelo social ibérico 17
1.5 Estudo de caso II – Os francos: da dinastia merovíngia sob Clóvis até os carolíngios 25

Tema 2
O Feudalismo 32
2.1 Uma breve periodização e contextualização 33
2.2 As origens do feudalismo e o contexto de sua criação 34
2.3 Economia agrária e autossuficiente 36
2.4 O modelo social 39
2.5 Classes? Castas? Uma sociedade estratificada 42
2.6 Transformação do sistema 47

Tema 3
Igreja Medieval 48
3.1 Introdução 49
3.2 A liderança espiritual da Igreja 51
3.3 As relações entre o papado e os imperadores 52
3.4 A construção da doutrina hierocrática 54
3.5 A ordem de Cluny e a reforma da Igreja no Ocidente medieval 57
3.6 O controle da sociedade, o controle do corpo e o controle das armas 59
3.7 A oposição: os imperadores, os cismas, a crítica, a hierocracia e as heresias 61
3.8 O papado entre o Cativeiro de Avignon e o Grande Cisma 66
tema 4
Império Bizantino E Islã Medieval 70
4.1 O Império Bizantino entre a Roma Imperial e a cultura grega 71
4.2 As polêmicas religiosas no Império Bizantino 76
4.3 A luta entre bizantinos e persas: Heráclio x Cosroes 77
4.4 A Arábia e seu isolamento: o período pré-islâmico 78
4.5 Maomé e sua trajetória: de caravaneiro a profeta 81
4.6 Doutrinas do Islã: cinco pilares 81
4.7 A expansão do Islã: reflexões e análises 84
4.8 O califado de Damasco e o califado de Bagdá 87
4.9 O Islã no Ocidente: a presença muçulmana na Hispânia 91

tema 5
Cultura arte e religião 92
5.1 A era das trevas? 93
5.2 O monarquismo: a manutenção dos saberes e da cultura 94
5.3 O Renascimento carolíngio 98
5.4 A Idade Média central (séc. xi a xiii) 99
5.5 A universidade medieval 104
5.6 A literatura medieval 106
5.7 Reflexões finais 108

tema 6
O Ocidente medieval
entre a expansão, a retração e a renovação 110
6.1 Os saberes e os poderes 111
6.2 As Cruzadas 111
6.3 A reconquista cristã na Península Ibérica 118
6.4 O renascimento urbano e comercial 125
6.5 A Peste Negra e a crise do sistema 132
6.6 Guerra dos Cem Anos 134
6.7 A expansão marítima e colonial portuguesa 135

Considerações finais 136


Referências 138
Idade Média?
Era de trevas?
aros alunos, apresento este livro sobre a Idade Média como
um esforço de reflexão sobre um período da História que é
clássico, importante e controverso. Neste curso de História
EAD, inicialmente, gostaria de chamar sua atenção sobre
a própria denominação do período. Por que uma Idade “média”? Seria um
período entre dois outros? Haveria um sentido valorativo ou depreciativo
nessa designação?
Para responder a essas questões, em primeiro lugar, devemos considerar
que os historiadores e os pensadores responsáveis por alcunhar o período
como Idade Média já não viviam mais nele e o depreciavam. Alguns, vivendo
nos séculos XV e XVI; já outros, nos séculos XVIII e XIX. A maior parte des-
ses estudiosos, com notáveis exceções, consideraram a época como uma Era
das Trevas. Em segundo lugar, chamo atenção para o fato de que se deve
considerar a alteridade como característica fundamental das sociedades.
O olhar do historiador sobre o “outro” e o “diferente” não pode comportar
noções preconceituosas sob o risco de transformar nosso ofício num tribu-
nal injusto e opressor.
Entretanto, para identificar a razão de a Idade Média ter sido objeto de
tanta depreciação, tentaremos identificar em linhas gerais seus principais
detratores. Os primeiros, como dito, viviam nos séculos XV e XVI. Eram pen-
sadores que se identificavam com a civilização clássica, a saber, o período

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greco-romano, e a comparavam de maneira pejorativa com o período que
denominaram de “medieval”. Ansiavam restaurar a beleza da arte greco-
romana, que enfatizava os corpos atléticos e a beleza física; trazer às artes
temas da mitologia grega/romana e a exaltação do belo, pelo belo e sem rela-
ção com o religioso; ampliar e libertar o pensamento sob o signo da filosofia
que já renascera no período medieval, mas atrelada à teologia, fato que os
humanistas do Renascimento queriam separar; restaurar o direito romano
e fortalecer através deste os estados nacionais que ora renasciam e reduzir
a inserção do clero na legislação do cotidiano, da cidade e do reino dimi-
nuindo o controle social da Igreja e repassando-o para os estados e gover-
nantes. Podemos afirmar que os responsáveis por titular esse tempo de Idade
“Média” foram, principalmente, os humanistas, os artistas e os pensadores
do Renascimento. Mas o que foi o Renascimento? Entre uma diversidade
de interpretações e explicações, pode-se dizer que foi o período de retorno
aos padrões e valores da cultura clássica da Antiguidade e de condenação do
período medieval. Assim denegriam o medievo, considerando-o uma era de
Trevas, dominada pela Igreja, irrelevante e obscura e que não legara nada ao
Ocidente europeu. O segundo agrupamento a dar um sentido aviltante ao
Medievo vivia nos séculos XVIII e XIX. Eram pensadores também críticos ao
clero e às instituições surgidas na Idade Média. Um historiador do período,
Jacob Burckhardt (1860), na obra A civilização do Renascimento na Itália, ao

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exaltar os avanços da Renascença, destacava os defeitos do pensamento
medieval por meio da condenação dos controles sociais nele vigentes. Dessa
forma, em dois períodos subsequentes, o Medievo foi representado como
uma era de trevas. Isso não é uma verdade absoluta e merece sua atenção e
reflexão. Trata-se de uma avaliação que demonstra ter um fundo ideológico.
A polarização e o hábito de exaltar um grupo, um partido ou uma ideia
fazendo o uso da estigmatização do oposto ou diferente é uma atitude
comum em todos os setores da vida, em todos os lugares e tempos. Bem X
Mal; Deus X Diabo; espiritual X material; Eu x Outro. Essa maneira de defi-
nir uma identidade positiva e alocada no campo do bem através do uso de
uma alteridade (alter = outro) definida de maneira negativa e associada à
malignidade é perigosa e tendenciosa. Há aspectos positivos e negativos
em todos os períodos. O período medieval, ao contrário do proposto pelos
pensadores acima elencados, foi bastante importante na construção do
Ocidente e do mundo moderno, legando saberes e técnicas, e não apenas
um período de obscuridade.
O mundo greco-romano se baseava no trabalho escravo e os homens livres
podiam se dedicar à política, ao culto da mente e do corpo. Este conjunto
definia um conceito denominado otium (ócio), que era um privilégio dos
homens livres e cidadãos. A escassez de escravos no final do período imperial
foi um dos motivos da queda do Império Romano do Ocidente.

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No Medievo também houve exploração de mão de obra servil e até
mesmo resíduos de escravidão, mas havia prolongados vazios demográficos
que geravam falta de recursos humanos. Por isso verificaram-se importantes
avanços, por exemplo, na busca de novas formas de aproveitamento do solo,
por meio da implementação de técnicas agrícolas e artesanais. Os grandes
desenvolvimentos dos últimos séculos da Idade Média possibilitaram, con-
traditoriamente, sua própria superação, a transformação e o rompimento do
sistema. Sem o Medievo não haveria Renascimento, que herdou do período
anterior os progressos técnicos e suas descobertas. Neste livro tentaremos
abordar exatamente o legado da Idade Média, cuja contribuição vai muito
além do fato de ser o intermediário entre a Antiguidade e o Renascimento.
Alertamos, porém, que não deixaremos de apresentar suas idiossincrasias
e contradições de modo que possamos construir um conhecimento crítico,
mas de modo algum preconceituoso.

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A transição do mundo
antigo para o medievo

10
historiografia tradicional convencionou que a Idade Média
começou em 476 com a deposição do último imperador do
Império Romano do Ocidente, Rômulo Augústulo, e se encer-
rou com a tomada da cidade de Constantinopla, a Roma do
Oriente, pelos turcos otomanos em 1453. Há quem prefira a data de 1492, que
é considerada o marco da descoberta da América por Colombo. Isso tudo
são convenções e demarcações temporais para facilitar a compreensão e a
escrita da História.
Em nossos dias, há duas escolas que refletem sobre o período inicial do
que se convencionou chamar Idade Média. Uma afirma que após o ano de
476 ocorreu a Primeira Idade Média, cuja característica mais importante é ter
sido uma era de transição entre a Antiguidade e o Medievo. Já a outra escola
denominou o período como Antiguidade Tardia, pois a transição teria sido
mais lenta e demorada, na qual sobreviveram elementos do período clás-
sico, mas fortemente influenciados pelo cristianismo, e elementos de ori-
gem germânica, que lentamente foram agregados. Há permanências e con-
tinuidades (da Antiguidade), há transformações e também novos elementos
que aparecem. Entre os seguidores desta linha há divergências internas:
alguns consideram que o período começa com Diocleciano (virada do século
III para o IV); outros advogam que se inicia com Teodósio quando ele dividiu
o Império Romano em duas partes (oriente e ocidente) em 395. Alguns apon-
tam a data tradicional de 476. E outros ainda, as conquistas de Justiniano
na primeira metade do século VI. Também em relação ao final divergem –
tópico que será discutido mais adiante. Interessa, contudo, que ambas as
escolas historiográficas concordam com a importância da tradição greco-
-romana, as contribuições dos povos germânicos e o cristianismo como
elemento de união dessas culturas. O aporte cultural grego e romano não
cessará de ser considerado um elemento-chave. O mundo ocidental sempre
terá aspectos dos saberes clássicos influenciando nas suas percepções de
mundo. A filosofia grega e o direito romano são dois fortes exemplos, entre
muitos saberes que nunca perderam certa influência através do tempo, nos
espaços do mundo ocidental.

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Os germânicos eram menos desenvolvidos em alguns campos do saber,
mas seu legado para o medievo será notável. A Igreja será o cimento que
moldará as estruturas sociais, culturais e até políticas. Sua pujança e seu
crescimento são notáveis. A Igreja assimila tanto saberes clássicos quanto
germânicos em prol de manter o seu avanço e evangelização dos pagãos.

1.1 Breves reflexões sobre a queda do


Império Romano do Ocidente
Invasões bárbaras? O que seriam os bárbaros? Trata-se de conceito uti-
lizado pelos gregos para denominar “os não gregos”, aqueles que não
conheciam a língua e a cultura gregas. Heródoto, considerado o pai da
História, denominava os persas de bárbaros. Essa desvalorização não é
correta e nem justa, pois tende a desvalorizar a cultura do outro e a des-
considerar a alteridade. Alguns povos denominados bárbaros poderiam
ser menos refinados culturalmente e desenvolvidos tecnologicamente. O
uso de um conceito que “etiqueta” os outros é sempre digno de reflexão e
de dúvida. Os germânicos eram menos desenvolvidos que a maior parte
dos romanos, geralmente mais refinados. Mas de fato houve invasões
ditas “bárbaras”?
É preciso considerar que uma parte dos germânicos adentrara o Império
décadas ou até séculos antes de sua queda. Esses povos se juntaram aos
romanos na condição de colonos para cultivar e defender terras nos limi-
tes (limes) imperiais. Aprenderam a língua latina e parte deles se alfabeti-
zou e romanizou. Já muitos outros eram aceitos como aliados dos romanos,
ingressando no exército em divisões compostas por germânicos. Esses acor-
dos se denominavam foedus (federados) e obrigavam as partes a se proteger
mutuamente. Os imigrantes acolhidos, todavia, foram lentamente se roma-
nizando. Não era uma profunda aculturação, mas o processo os aproximava
continuamente da cultura romana.
As “invasões” não se efetuaram apenas por meio de enfrentamentos
armados e, muitas vezes, os germânicos iniciaram sua aproximação com o
Império Romano sem maiores conflitos. Enquanto os exércitos imperiais
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eram fortes, tratava-se apenas de uma ameaça pontual. Quando o Império
do Ocidente se enfraqueceu, tais invasões se tornaram um forte abalo, cujo
clímax foi o aparecimento dos hunos, povo asiático, no Ocidente.

1.2 Os visigodos e o Império Romano


(primeira fase das invasões)
Os hunos eram exímios cavaleiros que ocuparam a região da atual Rússia
e Ucrânia, por volta de 375. Os ostrogodos se submeteram e os visigodos
hostilizados optaram por pedir asilo ao Império Romano. Os imperado-
res eram Valente e seu jovem sobrinho Valentiniano II. O primeiro optou
por aceitar os visigodos na condição de aliados fazendo um foedus, tra-
tado pelo qual entravam no Império na condição de colonos e soldados.
Estabeleceram-se inicialmente no norte da Península Balcânica, e revol-
taram-se, principalmente porque foram vítimas de maus tratos. O impera-
dor Valente organizou um exército para conter os revoltosos, mas, quando
esperava reforços, optou por atacá-los. Roma foi derrotada de maneira fra-
gorosa na batalha de Andrinopla ou Adrianópolis (378) e, após ser ferido,
Valente foi morto num incêndio.
Tratava-se da maior derrota infringida a um exército romano dentro do
território imperial. No front oriental alguns imperadores já haviam sido
derrotados pelos persas, mas fora dos espaços imperiais. A derrota abalou
a moral imperial e, com a ascensão de Teodósio, o Grande, estabeleceu-se
um novo acordo entre os romanos e os visigodos, que voltaram a subs-
crever um foedus. Com a morte de Teodósio e sua sucessão por seus dois
filhos, Arcádio e Honório, o Império foi dividido em duas partes: ocidente
e oriente. A parte ocidental era a mais fraca e pobre, pois arrecadava menos
impostos e, portanto, possuía exércitos mais fracos para se defender.
Os visigodos não tardaram a marchar contra os romanos, mas foram
detidos pelo exército romano. Curiosamente, estes foram liderados por um
general vândalo, Estilicão, cuja qualidade militar convence os visigodos
a recuar. Estilicão, porém, foi afastado do exército e morto pelo impera-
dor Arcádio, temeroso de seu poder. Essa manobra deu novo ímpeto aos
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visigodos, que resolvem avançar novamente. Entraram na península itá-
lica, onde ficava Ravena, que abrigava a maior parte da família imperial
por ser um lugar fortificado, elevado e para fugir dos visigodos. Os germâ-
nicos liderados por Alarico avançaram sobre Roma e a invadiram em 410,
saqueando e queimando muitos edifícios públicos. Transitaram pelo sul da
Itália e acabaram chegando no sul da Gália (França atual). Depois dessa jor-
nada, obtiveram novamente um acordo de foedus e participam da batalha
de Chalons (451) em que o exército romano, com contribuição de diversos
povos germânicos, derrotou Átila, o rei dos hunos. Depois disso, os visi-
godos finalmente consolidaram a ocupação da região sudoeste da Gália,
tendo a cidade de Toulouse como sua capital e fundando, após 476, um
reino independente na região.

1.3 Vândalos, suevos e alanos


(segunda fase das invasões)
Ainda durante o movimento dos visigodos de leste para oeste, ocorreu nova
onda invasora. Em meio a um inverno muito intenso em 406, uma coalizão
de tribos cruzou o rio Reno, que era o limite (limes imperial). Eram vânda-
los, suevos e alanos famintos e desesperados por terras menos frias e mais
produtivas. Cruzaram a Gália imperial (atual França) e avançaram na direção
da Península Ibérica (atual Espanha). Cruzaram os Pirineus e invadiram a
Hispânia (nome que usaremos para a região da península Ibérica).
O governo imperial, percebendo o risco dos acontecimentos, convocou
os visigodos na condição de aliados (federados) e conclamou-os a expul-
sar os invasores. Essa reação, embora tardia, foi efetiva. O exército visi-
godo penetrou na Península Ibérica, acuou os suevos no noroeste da região
(atual Galícia) e derrotou os vândalos, que optaram por fugir para a África
do norte (429).
Na África, os vândalos tomaram a cidade de Hipona (430), a diocese de
Agostinho, célebre bispo, e, mais tarde, Cartago (439). Nesta região, os vân-
dalos assinaram um foedus (435), mas ocuparam as melhores terras com
franca posição hostil em relação à população romana. Não tardou para os
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vândalos ocuparem não só a região no entorno de Cartago (atual Tunísia)
como também, graças à criação de uma marinha sob a liderança de seu rei
Gensenrico, as ilhas do mar Tirreno: Córsega, Sardenha e Sicília. Em 455,
esse povo promoveu o segundo saque de Roma. Além disso, a presença vân-
dala na África e nas ilhas foi letal para o Império do Ocidente. O trigo da
África e da Sicília deixou de aprovisionar a Itália e as dificuldades de o pro-
duto chegar à Hispânia acentuaram a escassez de trigo e facilitaram a queda
do Império do Ocidente.
Os vândalos penetraram no território imperial já convertidos ao
Cristianismo, mas na versão ariana, que não era aceita pela Igreja oficial. E
nunca se converteram ao Cristianismo trinitário (o qual aceita a doutrina
da Trindade), que a partir de agora denominaremos católico. E, além disso,
promoveram perseguições aos católicos. Essa é uma das razões pelas quais
não se aproximaram da população local. A outra razão foi o confisco pleno
das terras da nobreza senatorial romana. Esse distanciamento fez com
que houvesse resistências a seu domínio. Quando o imperador do oriente,
Justiniano, empreendeu uma tentativa de reconquista do Império ociden-
tal, dirigiu ao reino vândalo a sua primeira invasão, que foi bem sucedida, e,
em 534, os bizantinos conquistaram a África do norte. Os vândalos, depois
desse cataclisma, desapareceram e não mais foram citados nos documen-
tos do período tardo antigo. O nome deles virou adjetivo. Por que a expres-
são vândalo é utilizada com sinônimo de destruidor, agressivo e depreda-
dor? Vamos debater sobre esse tema?
No final do século VI, a Itália já havia sido invadida algumas vezes e
Roma fora tomada por visigodos (410) e vândalos (455). O golpe fatal foi a
derrubada do último imperador ocidental, Rômulo Augústulo, em 476, por
um pequeno povo germânico, os hérulos. Convencionou-se estabelecer essa
data como o marco histórico da queda do Império Romano do Ocidente. A
partir de então não houve mais imperadores romanos em Roma, Milão ou
Ravena, ou seja, no ocidente.
Os imperadores do oriente, que a partir de agora chamaremos bizanti-
nos – pois a capital destes era Constantinopla, também conhecida como
Bizâncio (nome antigo da cidade), passam a ser os únicos imperadores, e os
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reinos germânicos compreendiam que haveria uma espécie de hierarquia e,
mesmo sendo reinos autônomos, simbolicamente o imperador precedia, ou
seja, era superior aos reis germânicos.
O mesmo ocorreu com os ostrogodos. Após a derrubada de Rômulo
(476), o imperador do Oriente, Anastásio, convocou seus aliados ostrogo-
dos a restaurar a ordem romana na Itália (483). O rei Teodorico, o Grande,
reuniu seu exército e derrubou os hérulos e seus aliados. Coletou as ban-
deiras e os estandartes romanos e os enviou ao imperador bizantino em
Constantinopla. Fez uma simulação de submissão, mas de fato estabeleceu
um reino ostrogodo na Itália. Manteve a lei romana e os tribunais romanos
para seus súditos romanos, leis e tribunais separados para os germânicos.
Não demitiu os funcionários públicos, pois isso acabaria com a adminis-
tração. Não interveio em questões religiosas, pois os ostrogodos eram aria-
nos e a maioria dos romanos era católica. As igrejas e o clero não foram
perturbados e não houve confisco de bens eclesiásticos. Os ostrogodos,
depois do ocorrido, realizaram o confisco de um terço das terras dos nobres
romanos. Esta era a pequena cota de guerra ou saque. Os vândalos, por sua
vez, confiscaram todas as terras e as repartiram com seus guerreiros. Os
visigodos, finalmente, tomaram dois terços e deixaram aos senhores roma-
nos um terço.
Os ostrogodos souberam manter uma relação cordial com a Igreja e com
os homens poderosos e/ou cultos das regiões conquistadas. Boécio e
Cassiodoro são dois sábios cristãos, do século VI, de fina estirpe senatorial
e amplos saberes. Ambos auxiliavam Teodorico a administrar seu reino,
mas a relação se deteriorou no final de seu reinado, que deu ensejo, no
século VII, à reconquista de Justiniano, que analisaremos adiante.

16
Mapa 1 – Migrações de povos e invasões

Fonte: p. 70 – Atlas Histórico Escolar – MEC

1.4 Estudo de caso i– O Reino Visigótico


de Toledo: origens do modelo social ibérico
Os visigodos, depois do saque de Roma, em 410, voltaram a realizar um pacto
com o Império e se tornar aliados por meio, novamente, de um tratado do tipo
foedus. Depois de perambular, como já descrevemos, estabeleceram-se no sul
da Gália, região da atual cidade de Toulouse. Com a invasão dos vândalos e
suevos à Península Ibérica (atuais Espanha e Portugal, que aqui denominamos
Hispânia), os visigodos foram chamados como aliados para retomar a sobera-
nia romana na região, cuja vitória já havíamos descrito na seção anterior.
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A sequência da história dos visigodos é muito importante para a história
dos reinos ibéricos e, por consequência, para a América Latina, pois fomos
colonizados por esses reinos a partir do século XVI. Os visigodos enfrentaram
os francos merovíngios em uma batalha decisiva em Vouillé (508) e foram
amplamente derrotados. Teriam sido dispersados e aniquilados, se não fosse
a intervenção do rei ostrogodo Teodorico, que tinha ligações dinásticas com a
família real visigoda. O resultado de tudo isso foi o reagrupamento dos visi-
godos que perderam a maior parte do reino visigótico de Toulouse, mas
migraram para o sul, cruzando os Pirineus e se estabelecendo na Hispânia.
Aos poucos consolidaram sua ocupação, submeteram a região e criaram um
novo reino, que passou a ser denominado Reino Visigótico de Toledo.
Os reis visigodos eram eleitos, inicialmente, por assembleias de guerrei-
ros e posteriormente pela nobreza. Isso criava brigas entre clãs tribais, can-
didatos, e dificultava a criação de dinastias reais. Numa dessas lutas entre
candidatos, um deles conclamou os bizantinos a ajudá-lo. Este postulante
ao trono venceu, mas permitiu a criação de uma ocupação bizantina no sul
da Hispânia, que perdurou por quase um século. Nesse clima de instabi-
lidade e sob a ameaça dos bizantinos ocuparem o restante da península,
ascendeu ao poder Liuva I, que se associou a seu irmão Leovigildo, que aca-
bou ficando sozinho no trono.
Leovigildo tinha alguns problemas internos e outros externos. Inter-
namente, a sociedade estava dividida em: a) visigodos que eram germâni-
cos, cristãos arianos e invasores; b) hispano-romanos católicos e subme-
tidos ao invasor. Havia duas religiões nas partes mais densamente habi-
tadas da Hispânia. E havia leis e tribunais diferentes para visigodos e para
hispano-romanos. Faltava certa unidade que aproximasse os dois grupos,
mesmo se mantidas as diferenças socioeconômicas.
Externamente havia algumas ameaças: a) os bizantinos, no sul da
Hispânia, eram um risco estratégico; b) os francos, no nordeste da região,
haviam derrotado anteriormente os visigodos e almejavam ocupar novos
espaços; c) os suevos haviam chegado à região na invasão de 408/409 e ocu-
pavam a parte noroeste da península; d) os povos autóctones, que já habita-
vam há muito tempo na região ou eram originários dela. Todos esses grupos
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ofereciam algum tipo de ameaça ou de resistência a uma unificação territo-
rial e criação de uma monarquia forte e organizada.
Leovigildo venceu todos os adversários e só não expulsou definitiva-
mente os bizantinos. Seu filho primogênito, Hermenegildo, era cristão
ariano, mas, ao se casar com uma princesa franca católica, se converteu à
mesma religião da esposa. Ele se uniu aos bizantinos, suevos e francos no
intuito de derrubar seu pai. Leovigildo subornou um dos reis francos que se
opôs ao rei franco coligado com seu filho. Derrotou duas vezes os suevos e
anexou seu reino ao reino visigótico. Venceu seu filho e retomou as terras
revoltosas. Venceu também povos autóctones, como os cântabros e os vas-
cones (ancestrais dos atuais bascos). Os bizantinos não atacaram, mas con-
seguiram manter a região sudeste sob sua ocupação. Isolado, Hermenegildo
foi derrotado por seu pai, Leovigildo, que manteve seu poder, mas pouco
depois morreu de maneira natural.
Vencedor nas batalhas, o rei Leovigildo alternou vários sucessos e ape-
nas um fracasso nas políticas internas. Fundou cidades: Victoriacum e
Recópolis. Isso era algo que nenhum monarca germânico havia feito, pois
era um direito e uma prerrogativa dos imperadores. E criou um cerimonial
de corte, assim como trono, manto real, cetro e outros símbolos que demar-
cavam sua condição superior diante da nobreza. E ainda no intuito de forta-
lecer o poder simbólico da monarquia mandou cunhar moedas com a efígie
(imagem em perfil) real. Isso também era um direito atribuído aos impera-
dores romanos e nenhum rei germânico havia realizado tais ações. Trata-se
da consolidação da: a) separação do reino em relação ao Império; b) tenta-
tiva de legitimação do poder monárquico; c) propaganda da nova situação
de poder através, por exemplo, das moedas que circulavam e difundiam a
nova condição. A monarquia almejava, portanto, reconhecimento social de
seu poder e hegemonia territorial em solo ibérico.
Começou-se a unificar juridicamente a Hispânia visigótica, criando o
Codex Revisus, que seria uma legislação que servia a toda a população, fos-
sem hispano-romanos, fossem visigodos. Já no âmbito das relações entre
as duas religiões principais, ambas cristãs, mas de diferentes versões, não
houve convergência. Leovigildo tentou criar uma mistura entre o catolicismo
19
e o arianismo, fundindo-as numa só doutrina. O episcopado católico, toda-
via, não aceitou essa aproximação e manteve-se distante do monarca. Este
foi o seu “calcanhar de Aquiles”, pois motivou a revolta de Hermenegildo,
seu filho, que no exílio foi assassinado. O único fracasso importante, com
efeito, foi a incapacidade de unificar religiosamente a população.

Mapa 2 – Estados bárbaros no século V

Fonte: p. 71 – Atlas Histórico Escolar – MEC

Leovigildo, apesar de suas vitórias, não consolidou a monarquia como


elemento agregador de uma unidade social e política. Com a sua morte e
também a de seu filho Hermenegildo, assumiu o trono o segundo filho,
20
Recaredo. Este aprendeu com os erros do pai e do irmão e optou por novo
caminho. Abriu importante diálogo com o episcopado. Primeiro, buscou
entendimento com o bispo Leandro de Sevilha, que era uma liderança cató-
lica e convenceu as lideranças eclesiásticas da necessidade da união. Depois,
estabeleceu conversações com o episcopado ariano e convenceu a maioria
da necessidade de unificar as igrejas. O êxito da estratégia de Recaredo se
concretizou num acordo que integrou os bispos arianos à Igreja católica
e, sem dúvida, as concessões do lado ariano foram amplamente maiores.
Grande parte desses bispos se integrou no catolicismo trinitário e as reações
e resistências foram sufocadas.
O rei Recaredo e o bispo Leandro de Sevilha convocaram um concílio em
Toledo (terceiro nesse local e com esse nome) em 587 no qual o acordo foi
selado. Foram sacramentados as decisões e os cânones dos concílios ecumêni-
cos orientais de Niceia (325), Constantinopla (381), além das decisões dos con-
cílios de Éfeso e Calcedônia (século V). O catolicismo se tornou a religião oficial
e o rei Recaredo foi comparado aos imperadores orientais: o novo Constantino.
Ele passou a ser exaltado pela Igreja hispânica como um santo. A união da coroa
e da Igreja sugeria uma unidade plena e augurava longa duração à monarquia
e à religião no território ibérico. Este é um marco identitário importante que
delimita a fundação de uma Hispânia cristã (posteriormente Espanha).
O prognóstico de estabilidade não se consolidou em médio prazo.
Vejamos alguns dos problemas a partir de três aspectos: a) questões religio-
sas, b) ameaças externas de outros países ou coalizões e c) a divisão interna
somada às tensões monarquia versus nobreza.
As resistências religiosas dos arianos foram facilmente sufocadas e o
catolicismo se tornou a religião majoritária e associada ao poder, sem maio-
res dificuldades. Persistiram no norte e no nordeste da Península Ibérica
amplos bolsões de paganismo, principalmente na Lusitânia, na Galícia e nas
Astúrias. Eram regiões pouco romanizadas, urbanizadas e, principalmente,
pouco cristianizadas. Amplamente rurais, essas localidades eram povoadas
escassamente por populações animistas (que adoravam elementos da natu-
reza: Sol, Lua, chuva e planetas), com baixos padrões de urbanização bem
diferentes das cidades do sul e do sudeste (região do Mediterrâneo).
21
Finalmente, precisamos ressaltar os judeus, minoria resistente às con-
versões e a evangelização. Estes eram bastante numerosos nas cidades,
ainda que fossem percentualmente poucos em relação ao total da popula-
ção. Recaredo, de maneira parcial, e mais tarde Sisebuto envidaram esforços
em convertê-los. Este último decretou a conversão forçada ou a opção de
exílio. Muitos se batizaram, mas há polêmicas sobre essa conversão. Haveria
um judaísmo às escondidas? Durante todo o século VII, pairava a acusação
de criptojudaísmo, que seria manter uma fachada de cristãos (católicos)
sinceros, mas não agir de maneira correta, pois se dizia que professavam o
judaísmo às escondidas. Muitos concílios toledanos emitiram cânones que
pressionavam os convertidos.
As ameaças externas não foram difíceis de contornar até o início do
século VIII. Os francos seguidamente ameaçavam o reino visigótico, mas
nunca mais o derrotaram da maneira como o fizeram em 409 (Vouillé).
Continuamente houve confrontos de fronteira na Aquitânia (região no sul
da Gália) que não alteraram o panorama. Já os bizantinos foram lentamente
acuados na região sudeste e finalmente expulsos no reinado de Suintila em
625. A última ameaça, porém, foi fatal: os árabes aliados aos norte-africa-
nos, conhecidos como berberes e recém-convertidos ao Islã, irromperam
na Hispânia em 711 e derrubaram o reino visigótico. Como isso foi possí-
vel? Uma das razões desse sucesso dos exércitos norte-africanos foi a falta
de coesão da monarquia e da nobreza visigótica, apesar dos esforços de
Recaredo e de muitos de seus sucessores.
Vejamos as dificuldades internas para compreender a fraqueza da monar-
quia. Um dos elementos mais desagregadores era a tradição visigótica de
eleger seus reis. Originalmente a coroa ficava com um guerreiro competente
e líder militar de alguma das famílias tradicionais visigóticas. Isso outor-
gava à assembleia de guerreiros certo poder. Não havia dinastias que se
sucediam. Filhos poderiam suceder seus pais, mas não por direito e nem
de forma automática. A assembleia de guerreiros foi, através do tempo, fil-
trada e apenas um grupo seleto de nobres passou a eleger o rei. Dentro deste
grupo, que chamaremos de assembleia de nobres, havia famílias poderosas,

22
ora coligadas, ora em conflito, pois cada uma delas pretendia eleger, como
rei, um membro de seu grupo ou subgrupo.
Isso gerou conflitos entre membros da nobreza, ora entre si, ora contra
o rei no poder. Os reis muitas vezes quiseram fortalecer seu poder e nomear
seus filhos como herdeiros do trono, criando uma dinastia. Quando o poder
real era suficiente para conter a oposição, isso ocorria; quando o monarca
era menos poderoso, ocorriam revoltas e regicídios (assassinatos ou mutila-
ções de reis ou herdeiros do trono). O bispo franco Gregório de Tours escre-
veu no final do século VI que os visigodos eram regicidas, pois matavam
seus monarcas.
Isidoro de Sevilha, irmão e herdeiro de Leandro, que o sucedeu como
bispo na mesma cidade, foi um grande líder espiritual e articulador das
relações entre a Igreja e a monarquia. Tentou atenuar o conflito entre
monarcas e setores da nobreza, afirmando que os reis eram sagrados e que
deveriam ser “intocáveis”. Fez uso do Antigo Testamento (Bíblia hebraica)
na qual há afirmações que enfatizam a unção dos reis hebreus e sua sacra-
lidade. Instituiu a unção dos reis, fato que deve ter sido consumado alguns
anos mais tarde.
A atuação de Isidoro de Sevilha não bastou. Os reis eram depostos sem
serem assassinados a partir de agora. Eram tonsurados, tornando-se mon-
ges e enviados a mosteiros, mas efetivamente seguiam sendo depostos. As
lutas intestinas entre grupos de nobres contra a monarquia e a disputa pelo
cargo de rei enfraqueceram a coroa.
Em meio a disputas entre uma facção liderada pelo rei Rodrigo, recém-
-empossado, e os filhos do rei anterior, ocorreu a invasão do exército
norte-africano. O grupo opositor fez um acordo com o invasor e, junto com
este, derrotou com facilidade o rei visigodo. Na sequência, gradualmente,
tomaram-se praças, fortes e cidades, geralmente por meio de pactos, man-
tendo-se o conde local como líder da cidade e preservando-se os bispos e
os direitos da população cristã. Alguns cristãos migraram para as regiões
norte e nordeste da península e encetaram certa resistência ao poder do
califado de Damasco, que a partir de então se tornou a entidade política
dominante na maior parte da região.
23
O legado visigótico pode ser considerado como um padrão identitário
Ser godo é ser nobre. Por quê? para os cristãos ibéricos no período em que começaram a reconquistar lenta-
Então devemos nos perguntar mente espaços tomados pelos muçulmanos. Isso ocorreu nos séculos seguin-
as razões pelas quais o godo é tes. O modelo jurídico e a religiosidade visigótica serviram como uma refe-
visto positivamente e vândalo é rência das novas monarquias medievais ibéricas. As influências e os padrões
visto como pejorativo. Godo virou da monarquia visigótica formaram a base da legitimação da monarquia cas-
substantivo e serviu para designar telhana. A nobreza medieval em todos os reinos ibéricos almejou encontrar
um estilo de construção de prédios nas suas origens, geralmente de maneira imaginária ou “criada”, seu vínculo
religiosos. Vândalo se tornou com casas nobres e personagens semilendários, que seriam parte da nobreza
adjetivo. Os dois povos saquearam goda. Ser godo significava ser nobre. Isso aparece até no romance de Miguel
a capital imperial, a cidade de de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha, que ironiza a nobreza do século XVI,
Roma: os visigodos em 410 e os enfatizando que o sangue nobre teria embasamento em origens godas.
vândalos em 455. Reflita sobre isso. Este mito gótico fundamentou as crenças na superioridade da nobreza
diante de outros estamentos ou grupos sociais. Demarcou longa duração na
qual alguns elementos da sociedade se consideravam superiores a outros. O
sangue era um marco separador e de contenção da ascensão social e integra-
ção de estamentos intermediários, tais como comerciantes ou artesãos enri-
quecidos. A Igreja ajudou na construção e na manutenção dessa separação.
As monarquias ibéricas, em especial a castelhana, trataram de se rela-
cionar com os visigodos e passaram a se considerar seus herdeiros, o que
gerava uma legitimidade e uma continuidade mítica. As monarquias cató-
licas, assim, se imbuíam de valores e sacralidade por defenderem a fé
“verdadeira” e por objetivarem expandi-la na qualidade de defensores da
Cristandade e do direito legítimo de retomar espaços ocupados por infiéis.
Isso se conecta no final da reconquista (veja tema seis), já no fim do perí-
odo medieval, com interesses mercantis, sobretudo na aquisição de especia-
rias e metais nobres, na obtenção de colônias para impulsionar a expansão
marítima portuguesa e a ocupação da América Latina. Assim, a história ibé-
rica, e seu anseio de retomada das terras perdidas ao Islã, transpassa os limites
da Península Ibérica e se expande para o norte da África, para as costas africa-
nas, para as Índias e para as Américas, estas últimas descobertas no final do
período medieval. A história medieval ibérica permite, como visto, conhecer
melhor nossas próprias raízes e a história de nosso continente americano.
24
Esperamos que essa abordagem demonstre a improcedência da afirma-
ção da Idade “Média” como uma Era das Trevas e mesmo como um perí-
odo obscuro o suficiente para ser caracterizada apenas como um momento
(muito longo) de passagem do mundo Antigo à época Moderna. Mas volte-
mos aos reinos germânicos.

1.5 Estudo de caso ii – Os francos: da dinastia


merovíngia sob Clóvis até os carolíngios
Os francos são um dos povos germânicos que mais demoraram a irromper nos
espaços imperiais cruzando as fronteiras (limes). Seus contatos com o Império
eram escassos e sua aculturação bastante superficial. Trata-se de um povo
germânico que ocupava a região dos Países Baixos (atuais Holanda e Bélgica)
e que não conseguiu se unificar antes do final do século V. O personagem que
se sobressai era um descendente (neto, talvez?) do legendário rei Meroveu,
nome emprestado a uma dinastia inteira – os merovíngios, e que governou os
francos e expandiu habilmente os domínios. Trata-se do rei Clóvis.
Antes dele os francos já haviam tomado alguns espaços na Gália romana.
Seu legado demarca a vitória sobre quase todos os seus inimigos e criou um
poderoso reino na região da Gália que abarcava praticamente toda a França
atual e algumas regiões limítrofes. Clóvis era pagão e nunca se convertera a
nenhuma vertente cristã, seja a ariana seja a católica. Sua esposa Clotilde,
que era católica, envidou todos os esforços para convertê-lo.
Com a queda do Império Romano do Ocidente em 476, o vazio político foi
preenchido por povos germânicos diversos. Um general romano denominado
Siagrius conseguiu reter a região noroeste da Gália e criar um reino indepen-
dente. Clóvis enfrentou-o e derrotou-o em 486, em Soissons, anexando seu
reino. Em seguida enfrentou os alamanos em Tolbiac (496) e os sobrepujou.
Naquele momento de sucesso, Clóvis foi convencido por sua esposa Clotilde
a se converter ao Cristianismo, na vertente católica. Conta-se um relato, pos-
sivelmente lendário, que antes da batalha ele fez uma promessa de se conver-
ter ao “deus” de Clotilde. Obtida a vitória, ele se deixou batizar, mas é evidente
a superficialidade da conversão dele e de todo seu exército.
25
A aproximação de Clóvis com o episcopado católico pode ter sido sin-
cera ou oportunista, algo impossível de se deduzir. Poderia, na realidade,
haver ambas as razões, pois a documentação que chegou até nós foi escrita
por clérigos, os únicos letrados nas terras do norte. A maior parte foi cole-
tada e escrita cerca de meio século depois da morte de Clóvis, pelo bispo
Gregório, da cidade de Tours, que na sua História dos Francos enaltece a
memória desse rei e a sua aproximação com a Igreja. Gregório de Tours
exalta um modelo a ser seguido pelos reis de sua época, portanto elogia a
imagem de Clóvis, ressaltando seus valores e minimizando seus defeitos,
na medida do possível.
Depois de se converter ao Cristianismo e se aliar ao episcopado católico,
o sucesso militar de Clóvis segue inalterado, o que foi interpretado como
resultado de sua adesão à fé “verdadeira”, mesmo se suas vitórias antece-
dessem a conversão. Em coalizão com os visigodos, os francos venceram os
burgúndios em Dijon em c. de 500. Após a vitória, os dois aliados discorda-
ram e se enfrentaram. A vitória de Clóvis em Vouillé (c. 507) lhe permitiu
consolidar seu domínio na maior parte da Gália. Já os visigodos, derrotados,
quase desapareceram, mas com ajuda de Teodorico, o rei ostrogodo da Itália,
se reergueram e se dirigiram à Hispânia, como já observamos no tópico
anterior. Os visigodos mantiveram apenas um pequeno trecho da Aquitânia
(sul da Gália) sob seu controle.
O poder de Clóvis foi imenso e até o imperador do oriente, Anástasio, o
homenageou enviando as tábuas consulares, ou seja, considerando-o um
magistrado imperial. Clóvis utilizou, por escolha sua, o diadema e a túnica
púrpura dos imperadores, repetindo a atitude de Leovigildo, que descreve-
mos no tópico sobre os visigodos.
A ascensão e os sucessos militares de Clóvis, somados à sua conversão
e à de seus guerreiros, foram um trunfo na aproximação entre os francos e
os galo-romanos. Essa aproximação foi seguramente lenta, mas a religião
comum ajudou a consolidar o processo de aliança. Ao se colocar como o
defensor da Igreja e do Cristianismo, Clóvis obteve o reconhecimento
público. As cerimônias de sagração e coroação dos reis francos se torna-
ram um modelo que sobreviveu até o século XVIII. A monarquia francesa se
26
considerava sucessora de Clóvis e, dessa maneira, adquiria legitimidade e
sensação de continuidade de longa tradição.
Com sua morte em 511, seu espólio foi dividido entre seus quatro her-
deiros, deixando seu reino esfacelado em quatro porções menores. A ati-
tude reflete a percepção dos povos germânicos que associavam os territórios
conquistados como bens privados. Não tinham a concepção de estado, nem
mesmo de reino, como coisa pública. A expressão em latim res pública deri-
vada da concepção romana de república, era remotamente conhecida dos
francos. Os visigodos, ao contrário dos francos, possuíam essa compreen-
são. Como dito antes, esse povo germânico foi lenta e parcialmente roma-
nizado; enquanto os francos se mantiveram por longo tempo apartados do
Império Romano, os visigodos se estabeleceram e transitaram pelos espaços
próximos do mar Mediterrâneo: Balcãs, Itália, a região de Toulouse e final-
mente a Hispânia. Foram lenta e gradualmente romanizados e parcialmente
aculturados às concepções políticas de res pública.
A divisão do reino franco, depois da morte de Clóvis, não impediu que,
em algum momento, os francos reunificassem momentaneamente os seus
territórios. Isso ocorreu com Clotário II. A tendência à fragmentação, porém,
prosseguiu depois deste monarca e permitiu também o enfraquecimento da
monarquia diante dos grandes senhores de terras. Os reis que se sucederam
perderam o ímpeto guerreiro e se desinteressaram da administração, repas-
sando-a a seu chefe de gabinete ou prefeito do palácio, que tinha o título de
major domus, ou seja, mordomo. Domus seria a casa ou palácio real e major
equivale a maior. Constituía-se, assim, numa figura que fazia as vezes do rei,
seja na administração, seja nas batalhas.
Os reis desse período são descritos como reis indolentes ou preguiçosos.
Curiosamente, surge uma dinastia de major domus ou prefeitos do palácio
quando assumiu esta função Pepino de Heristal (c. 679-714), o prefeito do
reino da Austrásia. Ele se estabeleceu como governante de fato após vencer
diversas guerras. Seu filho bastardo, Carlos Martel, é seu sucessor e elevado
à condição de herói, pois confrontou uma tropa de invasores muçulmanos
que saqueavam a região sul da Gália franca e derrotou-os em Poitiers no ano
de 732. Sua condição se fortaleceu com essa vitória.
27
Muitos historiadores tradicionais enfatizam essa batalha como a salva-
ção da Cristandade ocidental do perigo muçulmano, e a batalha se tornou
um paradigma historiográfico, religioso e “nacionalista” francês. Um mito?
Uma construção? Com efeito, a descrição da trajetória de Carlos Martel se
constituiu em símbolo da reação do Cristianismo contra o inimigo muçul-
mano e da condição francesa de monarquia sagrada.
A morte de Carlos Martel legou a seus filhos o poder de fato. Carlomano e
Pepino foram seus sucessores. Ambos se aproximaram da Igreja e a protege-
ram. Carlomano abdicou em 747, e Pepino obteve o apoio do papa Zacarias que
o proclamou rei, acabando com a dinastia merovíngia. O último rei merovíngio
foi internado num convento e desapareceu da história. O pregador Bonifácio
ungiu Pepino rei e, na sequência, o papa Estevão II o sagrou novo monarca.
Surgia, assim, nova dinastia, posteriormente denominada carolíngia. E se
consolidou definitivamente a aproximação entre os francos e o papado.
As boas relações já existentes entre o rei Clóvis e o episcopado galo-romano se
acentuaram nesse momento. A falta de legitimidade da dinastia carolíngia, que
efetivamente tinha destituído os merovíngios, fez com que se aproximassem do
papado que também estava enfraquecido e hostilizado pela presença dos lom-
bardos na Itália. Tanto Pepino quanto seu filho e efetivo sucessor, Carlos Magno,
intervieram na Itália e apoiaram a causa papal. Ambos reconheceram os direitos
do papado sobre as terras da Itália central, no entorno de Roma, desde 754.
Esse deve ter sido o período da elaboração do documento denominado
Donatio Constantini ou doação de Constantino. Sua autoria é desconhecida,
mas é atribuída ao imperador Constantino, o Grande, que reinou no iní-
cio do século IV e fundou a Roma do oriente, capital do Império Bizantino,
Constantinopla. O documento associa Constantino a uma pretensa doação
de amplos territórios imperiais na parte ocidental, especialmente a Itália,
para a Igreja católica. Embasada nesse documento, a Igreja reteve a sobera-
nia parcial ou total da Itália central até a unificação italiana no século XIX.
Cria-se o espólio que viria a ser denominado Patrimônio de São Pedro.

Também para enaltecer a grandeza do império e não diminuir a


supremacia pontifícia, mas antes adornar a sua dignidade que é

28
mais elevada do que a de um império terreal e a força da sua glória,
concedemos e entregamos ao já mencionado santíssimo pontífice,
o nosso [padre] Silvestre, o papa universal, e ao poder e jurisdição
dos pontífices seus sucessores, não apenas o nosso palácio ( I ), como
foi anteriormente citado, mas também a cidade de Roma e todas as
províncias, praças e cidades de toda a Itália e das regiões do Ocidente
[…] como uma possessão legal e permanente da Igreja Romana. […]
[Edictum Constantini ad Silvestrum Papam, in J.P. Migne, Patrologiae
Cursus Completus, Series Latina, t. VIII, Paris, 1844, col. 577].

As mútuas relações e dependências entre o papado e o reino franco se acen-


tuaram sob os governos de Pepino e de seu filho Carlos Magno. Depois da cam-
panha de Pepino em 754, seu filho penetrou na Itália, derrotou sucessivamente
os lombardos e realizou doações de terras do “domínio” papal. Já o papa Leão III,
no Natal do ano 800, consagrou Carlos Magno imperador dos romanos.
As vitórias militares de Carlos Magno foram expressivas. Venceu adversários
diversos e ampliou as posses. Colocou-se em marcha um trabalho diplomático
para tornar a nomeação e sagração do rei efetivas, de modo que não permanecesse
apenas no plano do simbólico. O imperador bizantino acabou concordando em
receber alguns territórios e reconheceu como imperador o soberano germânico.
Começava a ser moldado um modelo imperial que alternou formatações diver-
sas, mas que perdurou até o século XIX. O governo de Carlos Magno representou
um período de auge político, militar e cultural dos monarcas germânicos.
As mais expressivas vitórias de Carlos Magno se deram contra os lom-
bardos na Itália (774), em seguida os bávaros, os saxões e frísios (iniciada em
782) numa dificílima campanha que durou vinte anos, e sobre os ávaros em
direção aos seus territórios ao leste. As campanhas contra os muçulmanos
na Península Ibérica foram apenas parcialmente vitoriosas, tendo em vista
a derrota de Roncesvalles, na qual morreu Rolando, seu aparentado, cujo
desenlace é objeto da mais antiga canção de gesta conhecida. As canções
de gesta eram poemas escritos para serem cantados com acompanhamento
musical. A canção de Rolando consiste no manuscrito de Oxford em francês
antigo. No capítulo cinco dedicaremos maiores considerações ao tema.
29
Batalha de Roncesvalles (778): a morte de Rolando – ww

Fonte: Paris, Biblioteca Nacional da França, Departamento de manuscritos franceses 6465.

Um vasto Império permitiu ao imperador a ordenação de seus territórios.


Organizou a administração através de seus emissários – os missi dominici.
Legislou e cunhou moedas e, respeitando as leis e costumes locais, almejou
implantar alguns princípios jurídicos comuns.
Isso foi feito com a ajuda da Igreja que pretendia homogeneizar as pos-
turas diante da fé. O imperador se colocou como o vigário de Deus e defen-
sor da fé “verdadeira”. Era seu dever propagar o credo cristão e impedir que
houvesse desrespeito à Igreja. Na capital carolíngia, em Aix la Chapelle, fez
construir um palácio que recordava o palácio imperial de Constantinopla e
uma capela palatina que se assemelhava ao Santo Sepulcro. O império caro-
língio se constituiu como a base de um império germânico medieval que se
manteve, mesmo que enfraquecido, até a modernidade.

30
Mapa 3 – O império de Carlos Magno

Fonte: p. 72 – Atlas Histórico Escolar

31
O Feudalismo

32
Feudalismo é uma terminologia complexa que gera dificul-
dades de compreensão e, por outro lado, proporciona uma
diversidade de explicações. Tentaremos dividi-la em ele-
mentos para compreendê-la em partes e poder então obter
uma visão de conjunto. Busquemos inicialmente suas raízes, que provêm de
várias influências, mas tentaremos condensá-las.

2.1 Uma breve periodização e contextualização


Podemos definir essa ampla periodização para facilitar o entendimento. Três
grandes períodos podem ser considerados: o primeiro, que denominaremos
formação, começa ainda sob o Império Romano e se estende até o período
dos francos carolíngios, ou seja, do século III até o século VIII; o segundo, que
alcunharemos de cristalização, se inicia sob os primeiros monarcas franco-
-carolíngios e se estende até o século XII, no período das Cruzadas; o ter-
ceiro, que optamos por chamar de transformação, é um período de intensas
mudanças sociais e econômicas, que vai de meados do século XII até o final
do século XV, que a historiografia tradicional considera o marco do encerra-
mento do período medieval. Consideramos, ainda, a existência de um quarto
período que excede a nossa cronologia, e que denominamos pulverização,
no qual subsistem algumas instituições e costumes, mas em que o sistema já
está superado e sobreposto por um novo modelo social e econômico.
A par dessa periodização, é necessário salientar que o feudalismo se tor-
nou um termo de múltiplos usos e analogias. Muitos escritores e jornalistas
fazem uso do termo feudalismo para descrever algum tipo de exploração
de mão de obra de uma maneira que se assemelhe a servidão feudal. Isso
é anacronismo. Persistimos no uso dele apenas no contexto medieval do
Ocidente europeu. Trata-se originalmente de um sistema que se construiu e
foi utilizado na região do centro e do norte da França atual, que no período
romano era denominada Gália. A Gália romana será conquistada por alguns
povos bárbaros: visigodos na região da Aquitânia (sul e sudoeste); burgún-
dios no vale do Ródano (sudeste) e francos (noroeste). A partir do rei franco
Clóvis, membro da dinastia merovíngia e que reinou entre o final do século V
33
e início do século VI, a região foi unificada sob os francos, alternando-se
inicialmente os descendentes de Clóvis (merovíngios) e depois uma nova
dinastia franca denominada carolíngia, por causa do seu monarca mais
famoso, o rei e depois Imperador Carlos Magno. Voltemos agora nossas
atenções à montagem do sistema que é um fenômeno de média duração, ou
seja, durou alguns séculos. Começa ainda sob o Império Romano e continua
sob os reis germânicos.

2.2 As origens do feudalismo


e o contexto de sua criação
Uma das características mais marcantes do feudalismo seriam os vínculos
feudo-vassálicos que ligavam homem a homem, guerreiro a guerreiro, e
nesse tópico há duas influências mais marcantes: a da Antiguidade clássica
e a da sociedade germânica anterior às invasões. Assim as origens são ante-
riores ao período medieval, mas ainda existiam de certa maneira no mesmo.
Vejamos ambas.
No baixo Império Romano nos períodos de anarquia e guerra civil (século
III e depois), surgem guerreiros livres e ligados a senhores de terras que os
contratavam para segurança privada. Um dos nomes mais comuns desses
guerreiros era bucelários. Já entre os povos germânicos, havia uma tradição
já descrita no final do século I d.C. pelo cronista romano Tácito, em sua obra
Germânia, pela qual guerreiros livres se associavam a um chefe militar ao
qual serviam e com o qual compartilhavam os saques, tendo em conta certa
hierarquia interna. Essas duas formas de organização se mesclaram e cria-
ram uma espécie de clientela em torno de grandes senhores, numa época
em que o estado centralizado perdeu paulatinamente sua capacidade de
gerar segurança e estabilidade para a sociedade.
Os vínculos entre o senhor e seus guerreiros eram definidos através da
commendatio (que traduzimos como recomendação), uma espécie de con-
trato verbal e repleto de símbolos e rituais, que uniam dois homens livres:
o chefe ou senhor recebia os vassi sob sua proteção e autoridade, e os guer-
reiros juravam fidelidade e se comprometiam com a prestação de serviço
34
militar ao senhor. O ponto central da relação era militar, mas gerava impli-
cações sociais e econômicas.
Uma das responsabilidades do chefe era sustentar seus comandados,
oferecendo-lhes comida, vestimentas e abrigo. Como estamos falando de
um período conturbado em que ocorreram invasões e instabilidade, essa
tarefa não era fácil. Aos poucos se definiram meios de sustento ao vassus
através da concessão dos benefícios, que seriam geralmente pequenos lotes
de terra, nos quais havia alguns camponeses estabelecidos. O homem livre
e ao mesmo tempo guerreiro não exercia trabalho braçal, ou seja, não traba-
lhava na agricultura ou no artesanato, dedicando seu tempo livre para trei-
nar e exercitar-se nas artes marciais. Sendo assim, definiram-se duas hierar-
quias: senhores e vassalos, no âmbito da sociedade guerreira; e senhores e
trabalhadores que os sustentavam, no âmbito socioeconômico.
A necessidade de preencher de maneira regional o vazio gerado pelo
enfraquecimento do estado centralizado fez com que, através de uma diver-
sidade de pequenas versões, surgissem organizações sociais e militares que
ordenassem os espaços e gerassem algum tipo de estabilidade e segurança.
Outro dos motivos para essa montagem social era a escassez de moeda em
geral e de metais preciosos em específico, que impedia a circulação monetá-
ria. Os pagamentos eram em espécie e as trocas prevaleciam nas relações de
mercado. Isso aconteceu especificamente no Ocidente tardo-antigo e medie-
val, e não vale para o Oriente, onde existia moeda circulante. O comércio era
escasso e muito limitado a produtos de muita necessidade e que não podiam
ser produzidos numa determinada região. Era o caso de metais ou sal, por
exemplo, que nem sempre se podia obter em todas as localidades. A tendên-
cia do período era a autossuficiência. O benefício era uma maneira simples e
adequada de sustentar o vassus e assim obter sua lealdade e serviços.
Esse sistema que era parcialmente existente desde o Baixo Império
se desenvolveu no reino franco no período merovíngio e se manteve nos
séculos seguintes, com alterações e adaptações regionais e temporais. Nas
próximas páginas, analisaremos aspectos do sistema definindo temáti-
cas, não de maneira hierárquica, mas no intuito de tornar mais didática
sua compreensão.
35
Os povos germânicos tinham concepções diferentes de governo e de
estado daquelas existentes no Império Romano. Os romanos eram acos-
tumados a separar os bens públicos dos bens privados, evitando, assim,
misturar estes dois elementos. As terras conquistadas pelos romanos geral-
mente pertenciam ao Estado; no caso das exceções a essa regra, poderiam
ser entregues ao titular de um cargo ou função, mas não se tornavam bens
pessoais ou familiares e não passavam por herança a seus descendentes. O
direito romano tem bastante clareza ao diferenciar e definir direito público
do privado. Alguns povos germânicos que invadiram o império a partir
do século IV foram influenciados, em maior ou menor grau, pelo direito
romano, ainda assim, confundiam o público com o privado. Os visigodos
tiveram muito contato com as instituições romanas e certa influência do
direito romano e da concepção de estado imperial.
Já os francos permaneceram mais tempo do lado externo da fronteira
(limes imperial) e, portanto, foram menos impregnados com as concepções
políticas, jurídicas e institucionais dos romanos. Para os francos, o direito
do conquistador prevalecia e gerava a aquisição do território como bem pes-
soal e familiar, permitindo sua partilha e herança.

2.3 Economia agrária e autossuficiente


As cidades do Baixo Império na parte ocidental tiveram um lento, mas pro-
fundo esvaziamento. O empobrecimento de certos setores e a diminuição
do comércio a níveis elementares e residuais fizeram com que não houvesse
sustento para os setores sociais, menos favorecidos. Faltavam trabalho, ali-
mentos e perspectivas de revitalização das cidades. Isso gerou um lento pro-
cesso de migração da cidade para o campo.
Os grandes senhores estavam necessitados de mão de obra para suas
propriedades, pois escasseavam escravos, desde o século III. Homens livres
e sem trabalho se ofereciam para tanto e de diversas maneiras são aceitos
através de acordos de arrendamento de terras, em troca da prestação de ser-
viços, parcela de sua produção e outras obrigações. Não são escravos e tam-
pouco permanecem livres, pois, pelo estímulo do governo central romano,
36
são criadas fórmulas de vinculação desses migrantes ao trabalho da terra.
Criam-se jurisdições e termos legais para impedir que os homens livres que
optassem, por falta de escolha, por se vincular à agricultura, ali permane-
cessem de maneira contínua e permanente, e seus descendentes também
ali trabalhassem. Isso por que a escassez de alimentos era aguda, já no final
do século III.
Muitos autores denominam esse sistema como colonato. Os colonos
não eram escravos, mas ficaram vinculados ao trabalho agrícola. O sistema
se manteve e se ajustou às condições locais e permitiu que, nos últimos
séculos do Império do Ocidente, ocorresse uma transição de uma socie-
dade urbana e sofisticada nos hábitos e costumes (Alto Império) para uma
sociedade cada vez mais ruralizada, autossuficiente, pouco refinada e com
menos dependência do comércio.
No período das invasões germânicas o sistema foi mesclado e trans- As tarefas dos enólogos (produtores de vinho),
formado com a junção de costumes e formas de organização social e mili- afresco da Normandia, La Haye.

tar dos invasores. O resultado não é uniforme em todas as regiões, mas


se assemelha de uma maneira geral. O modelo feudal se consolida ape-
nas alguns séculos depois, nas suas diversas variantes, mas centrado no
campo, na produção agrícola e pastoril, com pouco comércio e no sentido
da autossuficiência.
O comércio nunca desaparecerá de maneira completa, pois sem-
pre havia produtos que não podiam ser produzidos na região: sal, cer-
tos metais, alguns tipos de artesanato. Alguns artesãos perambula-
vam pela Europa e exerciam trabalhos temporários para os senhores.
Comerciantes judeus, sírios ou lombardos continuaram a cruzar terras
e mares, de maneira moderada, mas o comércio, mesmo sendo escasso,
não desapareceu.
O feudalismo não se diferencia de outras sociedades pré-industriais, por
ter sido essencialmente agrário. O ponto-chave está no tipo de mão de obra e
na forma de vinculação entre o senhor da terra e o trabalhador desta.
A estrutura da propriedade rural que optamos por chamar de senhorio
era simples. Variava de tamanho, mas tinha na média cerca de duzentos
até trezentos hectares, conforme a riqueza do senhor e as características da
37
região. Geralmente era dividido em três setores, nos quais os servos execu-
tavam os trabalhos: a reserva senhorial, os lotes dos servos (denominados
mansi; sing. mansus) e as terras comunais.
A reserva senhorial era cerca de trinta por cento do senhorio. Os servos
trabalhavam nela alguns dias da semana, num regime de trabalho obrigató-
rio denominado corveia. O produto desse trabalho era integralmente entre-
gue ao senhor. A corveia era uma parte central do contrato de trabalho.
Os lotes dos servos eram uma área de cerca de quarenta a cinquenta por
cento do total do senhorio. Os lotes de cada família de servos deveriam sus-
tentá-los ainda que não superassem o tamanho de dois a três hectares. E
o senhor lhes cobrava uma diversidade de taxas. Citemos algumas delas: a
talha, que era um percentual de sua produção anual; a chevage, outra taxa
anual que demarcava sua condição servil; as banalidades, que eram taxas de
uso do moinho, do forno e do lagar. Caso o servo ou seu filho fosse se casar
com alguém de outra condição social ou ligada a outro senhor, deveria pagar
a formariage; já se o senhor fosse transmitir a propriedade a seu herdeiro, o
servo deveria pagar a “mão morta”.
A terceira parte do senhorio eram as terras comunais. Tratavam-se
de campos de pastagens, bosques, lagos e espaços não cultivados. Neles
poder-se-ia obter lenha, fundamental para o frio inverno europeu, pastos
para o gado e produtos silvestres, como o mel. O senhor e seus serviçais
domésticos usufruíam desse espaço sem ônus, já os servos deveriam arcar
com pagamentos para tal usufruto. A caça era um direito exclusivo do
senhor e de sua família e agregados.
Havia sempre o risco de os servos ficarem sem alimentos em épocas de
crise, mas o senhor os protegia e provia, visto serem a garantia de sua mão
de obra. Esse aspecto é muito importante, pois consolida a estrutura social.
Representações associam ao senhor características de bondade e caridade.
O senhor tem uma função múltipla: é o defensor da sociedade, é justo e
benigno. Além disso, sua condição de cavaleiro cristão o torna um elemento
sagrado e gerador de fertilidade nas colheitas.

38
2.4 O modelo social
A escravidão do período imperial romano se tornara incapaz de solucionar a
crise de mão de obra. O colono do final do período imperial se transformará
no servo do feudalismo. O vínculo do trabalhador com o senhor e com a
propriedade rural se consolida através de um contrato de trabalho. Este é
sacramentado por meio de uma cerimônia em que o juramento de servidão
é sacramentado por um ritual de caráter jurídico-religioso. Feito sob a cus-
tódia da Igreja e em nome de Deus, agrega uma relação de trabalho e serviços
à fé estabelecida.
Ao nível dos guerreiros se dá o mesmo. No assim denominado feuda-
lismo clássico o vínculo que unia o senhor/suserano e o guerreiro/vassalo
era determinado por um contrato, nem sempre escrito. Em regiões nas quais
a cultura letrada não se esvaíra se fazia um diploma ou contrato escrito. Isso
era obrigatório num acordo entre homens livres quando os dois componen-
tes eram de nível social importante. O contrato era realizado de maneira
ritualizada e constava de quatro momentos: a homenagem, a fidelidade, o
osculum e a investidura. Expliquemos um pouco cada uma delas.
A homenagem era, simbolicamente, a entrega de si mesmo ao seu
senhor, tornando-se “seu homem” e devendo servi-lo. Havia dois momen-
tos que se complementavam: a) in manu missio, na qual o vassalo desarmado
ajoelhava-se diante do seu suserano e depositava suas mãos entre as deles;
b) volo ou declaração de intenção ou vontade, pela qual o vassalo declarava
publicamente seu desejo de entrar na clientela do senhor.
A fidelidade (fides ou fidelitas) era um compromisso realizado através de
um juramento do guerreiro vassalo de ser fiel ao suserano. Poderia ser feito
sob a cruz, os Evangelhos ou relíquias com ossos de santos.
Já o osculum não era utilizado em todos os rituais de juramento de vas-
salagem, sendo mais comum no reino de França, e consistia de um beijo,
como um símbolo de amizade e de lealdade. O beijo não tem simbolismo
carnal e é apenas um gesto ritual.
A investidura era o último momento da cerimônia, na qual o senhor
investia o seu vassalo de um bem, geralmente um senhorio. Na cerimônia
39
era simbolizado por um objeto: anel, bastão, estandarte ou outro símbolo.
Em alguns períodos posteriores o bem poderia ser um rendimento, um
direito portuário ou alfandegário, mas nos primórdios do feudalismo era
uma propriedade rural.
O contrato feudo-vassálico propõe uma mutualidade, ou seja, obrigações
bilaterais. O senhor/suserano e o vassalo têm compromissos bilaterais: não
trair, proteger e não conspirar um contra o outro. O vassalo deve sempre
ajudar o senhor, na paz e na guerra. Tem duas obrigações fundamentais: o
auxilium ou ajuda e o consilium ou conselho, pois, além de ajudar, deveria
participar de certo tipo de corte do senhor na qual se decidia seja pela paz,
seja pela guerra e se realizavam julgamentos. A lei vigente era o costume
local e era moldada pelos suseranos para reger suas propriedades.
O auxilium era fundamentalmente a prestação de serviço militar junto ao
senhor, mas em certas ocasiões poderia ser ajuda em espécie ou em dinheiro.
Uma ampla variedade de tipos de auxilium poderia ser feita, dependendo do
contrato e do tamanho do feudo. O vassalo poderia lutar desacompanhado
e apenas armado e equipado, ou vir com uma hoste (hostis) ou tropa, que
seria um grupo de cavaleiros e/ou infantes armados e equipados. Por vezes
se tratava de uma expedição guerreira longa e ampla, ou apenas uma escolta
ou serviço de guarda a seu senhor. Muitas vezes o senhor se dirigia à pro-
priedade do vassalo e lá se hospedava, com seu séquito.
Batista Neto (1989, p. 22) frisa que,

no início, o aspecto mais importante da relação entre os guerreiros


era o chamado elemento pessoal, o vínculo que unia um homem a
outro; depois, com a multiplicação das concessões dos benefícios,
o elemento real (o benefício, o feudo, a terra, em suma) tornou-se
preponderante e alterou o esquema de relações.

Explicamos: os vassalos começaram a obter mais de um benefício ou


feudo e se fortaleceram, passando a impor a seus supostos senhores con-
dições mais brandas de retribuição. Limitaram os dias de serviço a cada
ano; as distâncias a serem percorridas nas campanhas militares. Alguns
40
obtiveram a concessão de pagar em dinheiro os valores para serem libera-
dos dos serviços militares e poderem contratar mercenários. Esta fórmula
se denominava escudágio e foi usada principalmente quando as campanhas
eram além mar, tal como os reis ingleses da dinastia Plantageneta na França.
Outra forma de auxilium era efetivamente através de ajuda pecuniária.
Seriam as mais comuns as seguintes: resgatar o senhor se caísse em cati-
veiro; quando o filho primogênito do senhor era sagrado cavaleiro; quando
a filha mais velha do senhor se casava; e quando o suserano partia para
uma cruzada.
O suserano também tinha deveres em relação ao vassalo, no que tange a
sua vida, sua honra e seus bens. O senhor não podia ferir nem a pessoa do
vassalo, nem sua família e não podia confiscar seus bens sem uma razão
grave. Deveria ajudá-lo a se defender, de maneira mútua, tal como o vassalo
deveria defender seu senhor.
O rompimento do contrato era comum, com o desaparecimento dos
mútuos compromissos. Bastava o vassalo se negar a cumprir seus compro-
missos militares ou se revoltar contra o senhor. Essa situação justificava o
confisco do feudo ou benefício, mas isso nem sempre era fácil. Era preciso
uma campanha militar que retomasse a propriedade. Outras possibilidades
existiam: o suserano não cumpria sua parte e o vassalo renunciava ao feudo
ou se revoltava e tentava conservar o benefício, à revelia de seu senhor que
não mantivera o contrato.
O feudo não era hereditário, pois o herdeiro nem sempre era confiável e
leal, mas a partir do século IX, há uma tendência que lentamente enfatiza a
herança, no sentido do elemento pessoal do contrato feudo-vassálico. E a
conflituosa condição de ter múltiplos suseranos gerava contradições graves
quando dois deles entravam em conflito. A quem o vassalo deveria servir?
Lutar a favor de um seria traição ao outro. A saída parcial foi definir um cri-
tério hierárquico ao primeiro dos suseranos, ou seja, o que lhe concedera o
benefício antes.
A questão da hereditariedade foi gradualmente definida entre 850 e 900,
quando filhos de vassalos pretenderam substituir seu pai falecido. Os suse-
ranos criaram uma taxa de transmissão, denominada relief (traduzida de
41
maneira simples, um resgate), que seria um valor variável de acordo com
o lugar e o tamanho do benefício, mas geralmente um valor elevado. Na
França poderia equivaler ao rendimento anual da terra. Além do valor pecu-
niário também era importante a consolidação de que o feudo pertencia ao
suserano e era concedido à família em troca de serviços, devendo, portanto,
ser resgatado a cada geração, que poderia voltar a usufruir do mesmo, mas
seguindo vinculado ao suserano e a seus herdeiros legais.
O feudo não seria propriedade plena do vassalo. Era uma concessão jurí-
dica imbricada num contrato de prestação bilateral de serviços e de fideli-
dade mútua. Caso fosse rompido o contrato, o feudo deveria ser devolvido
ao proprietário de juris, ou seja, legal. O rei teria a condição de suserano
superior. Em teoria, tratava-se do topo da pirâmide social e simbolicamente
era o suserano de todo o reino. A partir dele para baixo apareciam seus vas-
salos diretos, os grandes senhores. Estes, por sua vez, sendo vassalos do rei,
distribuíam as suas terras entre novos vassalos seus. Tornavam-se susera-
nos de uma larga linha de vassalos de nível intermediário.
No entanto, a hierarquia interna na sociedade guerreira era complexa
e não se organizava de maneira vertical. Assim, a pirâmide social não era
ordenada de cima para baixo, pois, muitas vezes, havia formas diversas
de ligação. Por exemplo, com a conquista das Ilhas Britânicas pelo duque
Guilherme da Normandia, este se tornou o rei inglês. Assim sendo, o rei
inglês era vassalo do rei francês, mas com mais terras e poder que este. Essa
situação se tornou deveras complexa e gerou conflitos e guerras. Muitos
outros casos de relações de vassalagem não eram verticais.

2.5 Classes? Castas?


Uma sociedade estratificada
O uso de uma hierarquia social em nossa sociedade contemporânea é defi-
nido através de um critério denominado classe. Classificamos o poder socio-
econômico dos componentes da nossa sociedade: classe baixa, média, alta e
subclasses, tal como média baixa, média alta.

42
Em sociedades mais tradicionais temos uma divisão em castas. Na
Índia a sociedade é definida através de castas: brâmanes, xátrias, vashyias
e sudras, além dos intocáveis, um grupo violentamente segregado. Os brâ-
manes seriam uma casta sacerdotal e são representados pela cabeça; os
xátrias seriam uma casta guerreira e de líderes políticos e são representados
pelos braços; os vashyias são os comerciantes e agricultores e são represen-
tados pelas pernas; os sudras, que no passado remoto eram escravos, são
os pés. Os sudras seriam os trabalhadores de baixo nível, mas ainda acima
dos intocáveis. No caso hindu há severas proibições para a realização de
casamento entre membros de duas castas diferentes. Os herdeiros dessas
relações seriam os intocáveis, uma espécie de párias sociais, segregados e
maltratados.
O feudalismo não se encaixa nessas categorizações. Tratava-se de uma
sociedade estratificada com relativa rigidez. Não tinha a flexibilidade e a
mobilidade social de uma sociedade de classes e tampouco a extrema rigi-
dez das castas. Escolhemos denominar o feudalismo como uma sociedade
estamental ou de ordens. De maneira geral costuma-se dizer que havia três
categorias sociais: laboratores, ou trabalhadores; bellatores, ou guerreiros;
oratores, ou clérigos. Os primeiros produziam bens de consumo e, espe-
cialmente, alimentos; os segundos protegiam a sociedade, defendendo-a e
mantendo a justiça; e os últimos realizavam a conexão entre os humanos e
Deus, protegendo espiritualmente a sociedade. Essa explicação é consoli-
dada e estabelecida desde os primórdios do feudalismo, mas é uma idealiza-
ção de uma sociedade hierarquizada. Repare que há certa relação com a divi-
são utilizada na sociedade hindu: sacerdotes, guerreiros e trabalhadores. A
semelhança para nesse ponto, pois a estratificação social não é tão rígida.
Essa divisão constrói uma representação social para justificar a condição
servil dos que trabalhavam e justificar o domínio das outras duas ordens ou
estamentos. A ordem clerical é quem elabora essa concepção de mundo. O
ponto de partida não é novo, mas ele é elaborado de uma perspectiva cristã.
Havia uma narrativa de origem greco-romana que contava de uma revolta
dos membros do corpo (pernas e braços) contra a cabeça e o tronco, que não
trabalhavam, mas comandavam e usufruíam dos resultados. Uma revolta
43
dos membros imobiliza o corpo, mas se continuasse a ser mantida geraria a
morte de todo o corpo. Uma sociedade seria um corpo e cada parte teria uma
função e todas usufruiriam dos benefícios, mas cada qual na sua atividade.
Essa concepção orgânica da sociedade será devidamente cristianizada
através de algumas alegorias. Fazendo uso de Paulo de Tarso e do bispo
Agostinho de Hipona, elaborava-se uma espécie de teologia social. O mundo
criado por Deus nele se inspiraria. Sendo Deus uno e trino, o mundo seria
um apenas, mas composto pelas três ordens que constituiriam um único
corpo social. Embasado na obra Cidade de Deus, de Agostinho, definia-se
uma hierarquia de méritos. A desigualdade entre os humanos era inerente
às suas ações, mas também devido à Graça divina, que não era explicável de
maneira racional. Uns nasciam para obedecer e trabalhar, outros para dirigir
e defender a sociedade. Os fiéis deveriam se conformar e executar sua fun-
ção mantendo o corpo social cristão incólume.
Paulo de Tarso, em Romanos 12, 4-5, concebe que a sociedade cristã é um
corpo coeso e funcional, mas que divide os componentes desta em catego-
rias e funções. “Pois assim como em um corpo temos muitos membros, e
todos os membros não têm a mesma função, assim também nós, embora
muitos somos um só corpo em Cristo, e cada membro está ligado a todos os
outros”. Adiante explicita que cada um teria diferentes dons, de acordo com
a Graça que nos foi dada. Havia uma hierarquia, mas ao mesmo tempo, a
concórdia cristã; a diversidade de funções não geraria conflito, pois se pro-
punha a coesão social, numa unidade através da fé.
Dividida em três ordens (ordo – termo que induz a reflexão de ser uma
ordem ou ordenação social emanada da vontade divina), a sociedade esta-
mental pretendia gerar estabilidade e continuidade no intuito de manter a
Cristandade unida em torno de seus ideais e direcionada para o seu objetivo
maior: a segunda vinda de Cristo, a Parusia e o Juízo Final. Juntam-se aqui
os interesses da nobreza que almeja dirigir a sociedade no campo social,
econômico e militar, com a ordem clerical que quer ordenar de uma forma
cristã a sociedade e manter o monopólio dos bens de salvação. A ordenação
social almeja criar uma Cristandade coesa para enfrentar as forças do mal e
direcionar a maioria da sociedade para a salvação.
44
A função religiosa era combater as forças do mal, o Diabo e seus aliados
através das orações, rituais de passagem e celebrações religiosas. A função
da nobreza guerreira era proteger a sociedade das invasões de grupos arma-
dos – pagãos, como os normandos, os eslavos e húngaros, ou infiéis, como
os muçulmanos. A necessidade de haver essas duas ordens era evidente,
pois sem estas a sociedade se desmoronaria. Os trabalhadores se conforma-
vam em exercer sua função tendo em vista a segurança relativa que o sis-
tema propunha gerar.
Os clérigos tinham múltiplas funções além de rezar. Definiam os parâ-
metros comportamentais dos leigos definindo a moral e os valores sociais.
O que era permitido e o que era proibido se fazer. Uma parte do baixo clero
secular (padres, por exemplo) era iletrada, mas a maior parte do clero regu-
lar (monges) era pelo menos letrada. A cultura literária se tornara quase um
monopólio de alguns setores clericais. O controle dos “saberes” permitia a
consolidação de um poder efetivo sobre a sociedade.
Controlar as relações com o mundo superior e sobrenatural permitia
à Igreja oferecer cura física e espiritual, consolo às dificuldades da vida e
um diálogo simbólico com Deus e com seus intermediários, os santos. Essa
condição permitiu à Igreja receber muitas doações e pagamentos que enri-
queceram seu patrimônio. Uma parcela grande das terras cultiváveis do
Ocidente medieval europeu pertencia à Igreja. Estima-se que se aproximou
de um terço do total.
As relações entre os oratores e os bellatores eram muito próximas. A Igreja
definirá entre os séculos X e XI a obrigatoriedade do celibato clerical. Isso
fortalecerá a manutenção dos bens e do patrimônio da Igreja, mas gerará a
necessidade de buscar novos quadros nas outras ordens. O baixo clero pode-
ria ser preenchido por excedentes populacionais da ordem dos laboratores,
ou seja, filhos dos camponeses. No nível do alto clero ocorre a entrada de
filhos não herdeiros da nobreza, geralmente os secundogênitos. Isso não
significava que houvesse vocação em todos os casos, mas sim a necessidade
de colocar esses membros da nobreza em cargos de poder e fortalecer as
alianças familiares.

45
Já os laboratores também não eram um segmento social uniforme. Uma
parcela bem pequena seguia na condição de escravos, sejam traficados,
sejam obtidos em guerra. Mantiveram alguma importância até o século VIII,
sendo depois na maioria incorporados ao trabalho servil.
A maioria se dividia em duas condições sociais mais comuns: servos e
vilões. Os vilões eram remanescentes de camponeses livres que não se colo-
caram sob a tutela de um senhor guerreiro. Até o século XI mantiveram
pequenas glebas e, a partir daí, as perderam, mas trabalhavam em condições
melhores e sem vínculo com a terra, ou seja, podiam romper o contrato de
trabalho e sair da propriedade do senhor.

Colheita de cerejas na Itália, missal romano atribuído à Bonifácio VIII, Bolonha.

O grupo maior e mais determinante eram os servos. A gestação dessa


forma de exploração de trabalho humano foi lenta e gradual, com variações
regionais e cronológicas. A escassez de mão de obra escrava era crônica e
vinha desde o Baixo Império. Generalizaremos para facilitar a compreen-
são. A servidão era um contrato de trabalho perpétuo e hereditário que colo-
cava o trabalhador vinculado a uma gleba de terra, e à família do senhor,
para sempre; uma maneira de não ficar sem a mão de obra e de garantir a
46
produção de alimentos. De parte do camponês, garantir o sustento mínimo
para si e para sua família. O servo tinha simultaneamente o direito de não
ser negociado e retirado da propriedade, tal como um escravo poderia ser
vendido, mas também não poderia mais sair desta. Os termos do trabalho,
já vimos antes, eram severos: corveia, chevage e banalidades entre outras.
Os descendentes de servos deveriam seguir sendo servos, ora por linha
materna, ora por linha paterna.
Temos, portanto, duas camadas sociais básicas: de um lado, os proprie-
tários de terras e dotados do poder político-militar que seriam os guerreiros
e, de outro os clérigos e, finalmente, os encarregados de trabalhar nestas ter-
ras que ofereciam seu trabalho, geralmente de maneira servil. Franco Junior
(1990, p. 30) nos diz que havia três tipos de relações sociais, duas horizon-
tais (uma interna à camada dominante e outra interna à camada dominada)
e uma vertical (entre as duas camadas). Na camada dominante as relações
se davam através do contrato feudo-vassálico que definia as relações entre
guerreiro e senhor.

2.6 Transformação do sistema


O feudalismo clássico existiu na região da antiga Gália, reino da França
medieval, entre os séculos VIII ou IX até o século XII. No período das
Cruzadas sofreu transformações e começou a ser alterado, inicialmente pelo
crescimento demográfico e depois pelas suas consequências: o crescimento
econômico, urbano e comercial. A produção de excedentes se fez necessária
e o comércio alterou as relações entre senhores e servos. O golpe maior veio
com a Peste Negra e a Guerra dos Cem Anos, que alteraram a oferta de mão
de obra e geraram escassez na produção de alimentos. As relações servis
persistiram de maneiras diferentes até a Revolução Francesa, mas o sistema
feudal estava em processo de pulverização desde o século XV.

47
Igreja Medieval

48
3.1 Introdução
Igreja medieval é herdeira das relações entabuladas entre o
Império Romano e a Igreja em formação em princípios do
século quarto. Cerca de meio século de perseguições rea-
lizadas pelos imperadores entre 250 e 306, com uma breve
interrupção no meio deste período, propiciou uma fase de aproximação,
inicialmente sob o signo da tolerância religiosa durante o século quarto con-
solidando um pacto: os imperadores protegeram a Igreja e, com Teodósio I,
o Grande, a Igreja se tornou a religião oficial do Império.
Os imperadores intervieram na Igreja e convocaram os concílios ecumê-
nicos tais como Niceia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia
(451). No âmbito desses concílios se definiram os dogmas da Igreja: o con-
ceito da Trindade1 e a cristologia, ou seja, a definição do caráter humano e
divino de Jesus, que é ao mesmo tempo o Filho (Deus) e também humano.
Dessa forma, a proteção e o controle imperial propiciaram a consolidação
de uma ortodoxia cristã que definiu o que era certo e o que não se aceitava
na teologia cristã. Uma unidade de crença e uma hierarquia estavam sendo
definidas. Para o Império, a unidade era condição sine qua non, pois a boa
relação com Deus garantiria a continuidade de Roma e de seu poder. As
divergências não seriam toleradas, e o Império ofereceria em troca a sua
proteção e apoio.
Essa postura gerou também a intervenção dos imperadores em assun-
tos eclesiásticos. Durante o seu reinado, Constantino, o Grande, interveio
nas discussões teológicas. Seu filho e um de seus herdeiros, Constâncio II,
adotou a linha cristã ariana que negava o dogma trinitário e perseguiu os
bispos e teólogos que adotavam esta linha. Alguns bispos adeptos da dou-
trina trinitária se opuseram e foram exilados, tal como o bispo Atanásio
de Alexandria, que viveu exilado por cerca de uma década e meia. A dou-
trina trinitária prevaleceu e se consolidou com Teodósio, o Grande. As

1. O conceito da Trindade é um dos pilares do Cristianismo, constituindo-se em um dogma, pelo


qual no Deus único há três “substâncias”: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Deus seria uno e trino
a um só tempo, e não haveria uma hierarquia ou existência prévia de nenhum deles.

49
intervenções deste mesmo imperador geraram firmes reações do bispo de
Milão, Ambrósio. Teodósio acabou aceitando as críticas e as punições e se
penitenciou. Já o imperador bizantino Justiniano interveio radicalmente
em assuntos religiosos e não aceitou oposição. Esta política de imperadores
que intervêm em assuntos clericais é denominada cesaropapismo, ou seja,
imperadores que atuam ou interferem em assuntos do papado.
A Igreja se tornava protegida e, ao mesmo tempo, efetivamente dominada
pelo poder imperial. Essa proteção dinamizou o crescimento da Igreja que já
era intenso antes da aproximação com o poder imperial e gerou ampla difu-
são e um intenso processo de evangelização, dentro dos limites imperiais
e além destes. A expansão da Igreja é rápida, mas há evidências de que em
muitos lugares ela não teria sido profunda. Em muitos lugares a conversão
era superficial e se mesclavam crenças monoteístas e cristãs com inserções
pagãs e politeístas. Como seria tal mistura religiosa possível?
O pesquisador Carlos Roberto Oliveira (1995) enfatiza que ocorre uma
evangelização, por vezes superficial, que incorpora crenças pagãs, trans-
forma deuses pagãos em santos da Igreja, num sincretismo2 que esconde
resquícios das religiões que em teoria estavam sendo substituídas. O papa
Gregório Magno acentua a ocupação de espaços sagrados de outras religi-
ões que devem ser purificados com água benta e depois transformados em
igrejas, mantendo assim uma relação dos camponeses evangelizados com
os antigos, e agora renovados, espaços sagrados.
Os autores divergem sobre as motivações da Igreja para incorporar essas
apropriações: seria uma estratégia oriunda da cúpula religiosa que serviria
para a conversão dos pagãos, ou seria a aceitação de uma tendência que teria
emanado ao nível da religiosidade popular que, simplificando conceitos e
crenças, realiza aproximações que facilitem as sínteses. Há a possibilidade
de terem ocorrido ações na direção da Igreja, tal como a posição de Gregório
Magno e também a síntese de conceitos, ocorrida no seio da religiosidade
popular, seja no campo, seja nas cidades empobrecidas.

2. Sincretismo é a mescla de conceitos relacionados a duas ou mais vertentes espirituais/religio-


sas, criando, ora numa, ora noutra, conceitos e expressões religiosas provenientes de doutrinas
por vezes opostas e conflitantes.

50
3.2 A liderança espiritual da Igreja
A Igreja primitiva foi liderada pelos apóstolos, que por sua vez delegaram
aos bispos a posição de liderar a Igreja ao nível das cidades de porte médio
do Império. A estrutura espacial foi delimitada pela divisão das provín-
cias do Império Romano. O bispado seria uma diocese e coordenaria as
cidades pequenas e as aldeias que circundavam essa unidade administra-
tiva e religiosa.
Nas grandes cidades, foram criadas arquidioceses sob a liderança hierár-
quica de um arcebispo. No caso das grandes metrópoles, tais como Roma,
Alexandria e Antioquia, que eram a um só tempo populosas e importantes,
e também polos fundadores e propagadores do Cristianismo, originaram-se
os metropolitanos ou patriarcas, que seriam os mais prestigiados líderes
religiosos da cristandade. Após a fundação de Constantinopla, esta também
foi elevada à condição de patriarcado, na condição de segunda Roma. Os
patriarcas seriam a cúpula da Igreja, podendo ser considerados num total
de quatro ou cinco: Roma, Antioquia, Alexandria, Constantinopla e, menos
prestigiado e influente, o patriarcado de Jerusalém.
A construção de uma primazia ou superioridade do “bispo de Roma” não
é imediata. A diocese teria sido fundada, de acordo a tradição, por Pedro, que
seria o “líder” do grupo apostólico, nomeado por Jesus (Mateus c. 16, vers. 18).
Fazendo uso de diversos outros versículos dos Evangelhos (tais como João
c. 21, vers. 15-17; Lucas c. 22, vers. 32), os bispos de Roma foram gradualmente
obtendo a primazia. Isso nem sempre era aceito pelos demais patriarcas, em
especial o de Constantinopla que se considerava em condição semelhante
ou próxima. Essas tensões não cessaram e no século XI causariam o Cisma
do Oriente (1053), separando a Igreja em dois blocos: um no Ocidente medie-
val, sob a direção do Papado em Roma, e outro denominado ortodoxo grego,
sob a liderança do patriarca de Constantinopla, no Império Bizantino e regi-
ões próximas.
Desde o início o prestígio do patriarca de Roma era muito elevado.
Damaso I (366-384) já insistia na aceitação da superioridade do pontífice
romano, diante dos demais. Leão Magno (440-461) enfatizou a supremacia
51
papal do Ocidente, o que não era aceito de maneira universal. A intenção de
trazer à Igreja uma hierarquia monárquica sempre existiu, mas não foi ple-
namente aceita, senão após cerca de cinco séculos de história.
Não se pode chamar o patriarca de Roma como o único Papa, antes do
pontificado de Gregório, o Magno (590-604), e mesmo esta posição não é
aceita como consenso. A liderança e a obra evangelizadora desse pontí-
fice nos permitem aceitá-lo como um marco na construção do prestígio
do pontificado romano, que definirá este como hegemônico no Ocidente
medieval cristão. Assim optamos por aceitar uma posição de prestígio
elevado e proeminência do patriarca romano no Ocidente tardo-antigo
e medieval, mesmo se no Oriente houvesse oposição e discordância. Os
patriarcas de Constantinopla geralmente se consideravam os segundos em
honra e posição, mas relutavam em aceitar o patriarca romano como supe-
rior de maneira plena.

3.3 As relações entre o papado


e os imperadores
Os imperadores romanos como já descrevemos no início deste texto, interfe-
riam nas questões eclesiásticas, pois consideravam que as relações com Deus
seriam vitais para a paz na terra. Ainda quando o paganismo era a base da reli-
gião imperial, os cultos e rituais eram vistos como uma questão fundamental
para que a Roma (República ou Império) se mantivesse estável e não fosse
invadida e derrotada por seus inimigos. A pax deorum3 dependia de os cultos
serem corretamente realizados e os deuses saciados. A aproximação com o
Cristianismo, que acaba por tornar-se a fé oficial, levou aos imperadores a
missão de não só proteger, mas também ter “razões de estado”, para que os
cultos fossem devidamente realizados e que o Deus, agora único, não punisse
a sociedade e engendrasse a queda do Império.

3. A pax deorum dependia do culto público aos deuses cívicos da Roma republicana ou imperial;
agradá-los para não os colocar contra o bem-estar da sociedade romana. As vitórias e a paz depen-
diam da vontade divina. Isso foi transladado para o culto cristão. As heresias passaram a ser con-
sideradas como uma ameaça à paz de Deus e risco de desequilíbrio à segurança do Estado romano.

52
As invasões bárbaras e a perda da parte ocidental do Império deman-
daram que Agostinho, bispo de Hipona (m. 430), tivesse que rever esses
conceitos e dizer que haveria dois níveis, um da cidade terrena e outro da
cidade divina: o que se via na terra era apenas um reflexo, um espelho
de outro nível, superior e espiritual, que seria a Cidade de Deus, que dá
nome à sua obra magna. Agostinho se baseou na concepção neoplatônica
que concebia o mundo em níveis distintos, mesclados, mas diferentes: um
nível mais elevado seria espiritual e seria o mundo das “ideias”, eterno e
superior, onde os bens espirituais prevaleceriam e haveria a salvação da
alma; outro nível mais terreno seria material ou carnal e seria apenas uma
espécie de ilusão dos sentidos, um mundo formal e enganoso em que as
pessoas poderiam se iludir e almejar prazeres e bens materiais ou senso-
riais e perder a salvação da alma.
Nessa percepção, a queda e ascensão de impérios seria uma parte dessa
visão material e efêmera da história. O bispo de Hipona concebeu a História
universal baseado no texto sagrado. Seis dias da Criação seriam seis eras da
História e o sétimo dia seria o tempo da Redenção, num juízo final. Para
Agostinho e alguns de seus antecessores, e depois dele os seus analistas e
seguidores, a sexta era teria começado com a Encarnação do Filho e termi-
naria com a segunda vinda de Cristo e o Juízo final. O sentido da História
seria partir da Criação e se concluir na Redenção. Deus já definira, ao criar
o mundo, qual seria o final do mesmo: a finalidade da História dependia de
outros fatores, mas o principal deles seria o papel da esposa de Cristo na
Terra, ou seja, a Igreja4.
Um dos papas que viveram na época de Agostinho de Hipona, o pontí-
fice Gelásio, em 494 enviou uma longa correspondência ao imperador do
Oriente, Anastásio, em que dizia que deveria haver uma separação entre
os poderes, tendo em vista que a ingerência do poder imperial nos assun-
tos eclesiásticos era excessiva. Como todo poder viria de Deus, de acordo
a afirmação de Paulo de Tarso, na Epístola aos Romanos (cap. 13), e quem

4. Muitos teólogos, denominados até esse período como PADRES DA IGREJA, concebiam um
casal sagrado: o esposo seria Cristo e a esposa e sua representante única na Terra, seria a Igreja.

53
representava Deus na Terra seria o papa, este era o intermediário direto desse
poder. Os erros e os pecados do próprio Imperador deveriam ser perdoados
através das orações e pedidos do papa. Gelásio definiu o poder papal como
sendo superior e Deus sendo o maior e verdadeiro governante: “[…] sumus et
verus Imperator […]”. Como a Igreja era a esposa de Cristo e sua representante
na Terra, a ela caberia o papel de intermediar entre Deus e os humanos, e
o poder que emanava de Deus era por ela outorgado aos governantes. Isso
ainda ficou na “teoria”.
O papa Gregório Magno, no final do século sexto (seu pontificado foi de
590 a 604), também equacionou as relações de poder. O imperador seria para
ele o governante universal e deveria ser acatado em questões temporais, ou
seja, na política e no governo dos cidadãos, mas exclusivamente nas ques-
tões materiais, políticas e sociais. O governo dos assuntos espirituais caberia
à Santa Igreja e aos seus representantes; nesse caso, especificamente, o Papa.
Gregório consolidou a sua influência sob a maior parte dos reinos bárbaros
e prosseguiu na obra de evangelização dos povos do Ocidente. Esse pontífice
enviou missionários ao norte da Europa, ainda profundamente pagã, e esta-
beleceu contatos com os visigodos recém-convertidos ao cristianismo trini-
tário, que sugerimos denominar católico ou universal, para ser melhor com-
preendido pelos leitores. Estabeleceu vínculos com os monarcas germânicos
que eram pagãos ou adeptos do cristianismo ariano e os incitou a conversão.

3.4 A construção da doutrina hierocrática


A Igreja não estava consolidada e seus passos tiveram de se dar sob a custódia e
proteção dos governantes laicos. O pontífice romano agora denominado papa
conseguiu obter bastante autonomia em relação aos imperadores bizantinos
ou romano-orientais, mas ficou à mercê de povos que se instalaram na penín-
sula itálica, tais como os lombardos, ainda não convertidos ao cristianismo.
Nesse contexto acontece a aproximação dos papas e dos reis francos.
Como já relatamos no tema um, no reino franco estava ocorrendo a deterio-
ração do poder da dinastia dos merovíngios. E a sucessão destes estava sendo
almejada pelos mordomos (maior domus, um tipo de primeiro ministro) da
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corte real. Um desses mordomos era Carlos Martel, vencedor de uma batalha
contra os muçulmanos em Poitiers (753), que teria impedido a ocupação do LEGITIMIDADE
sul da Gália (atual França) pelos infiéis. Mesmo sendo tal afirmação um exa- A legitimidade é o direto de
gero e podendo ser vista quase como um mito, em razão das pequenas pro- ostentar um cargo político ou
porções da pretensa “invasão” muçulmana, gerou prestígio à família cortesã. religioso, que pode ser obtido
O filho e herdeiro de Martel foi Pepino, o Breve, que se fez consagrar como através de diversas formas. O autor
rei e acabou com a dinastia merovíngia. Para melhorar a sua condição e ser Walter Ullman (2008) explica que
considerado legítimo, ele se aproximou da Igreja e ajudou o papa a se libertar o poder político tem duas formas
dos lombardos. Em seguida concedeu ao papa um território como herança e principais de consolidação de sua
com direitos a posse e domínio deste: o Patrimônio de São Pedro. legitimidade: a) a ascendente; b) a
Em troca foi diversas vezes consagrado como rei, recriando-se nessa descendente. A primeira pode ser
época o ritual de unção dos reis, à maneira bíblica, conforme sugerido na obtida de variadas maneiras, mas
Hispânia visigótica por Isidoro de Sevilha (m. 636) e aplicado em alguns dos sempre emana de baixo para cima.
reis visigodos no século sétimo, como já descrevemos no primeiro tema. A Um dos exemplos é a eleição de um
aliança dos reis carolíngios e do papado será mantida e recriada de diversas líder militar por uma assembleia
maneiras através dos tempos. O sucessor de Pepino, o Breve, seu filho Carlos de guerreiros, seja antes ou depois
Magno, será coroado e ampliará o seu reino de modo nunca antes ocorrido de uma conquista, seja no ensejo
entre os reinos germânicos. O papa articula a sua consagração como impera- de consolidar uma posição.
dor e depois, através de diplomacia e cessão de territórios, o imperador bizan- Também o poder político obtido
tino acata e consolida esse acerto. Com a aceitação do imperador do Oriente em eleições de qualquer tipo,
e as bênçãos da Igreja, o imperador ocidental, nesse caso um rei franco, obti- sob um sistema democrático ou
nha a legitimação de seu poder. Estava sendo criado o Império Germânico, no controlado, é do tipo ascendente.
qual inicialmente os papas possuíam um papel secundário, mas que logo se A segunda forma de legitimação
definiu como uma parceria entre papas e imperadores. Enquanto o impera- é a descendente e se embasa na
dor era forte, tal como Carlos Magno e, de maneira menos intensa, seu filho recepção do poder por outorga de
Luis, o Piedoso, a Igreja cumpriu a função de legitimar o poder imperial, mas Deus ou dos deuses, através de
foi manipulada por este. Isso não agradava o clero, mas este preferia ser pro- seu(s) representante(s) na Terra.
tegido pelos imperadores e manter a hegemonia religiosa.
Carlos Magno intervinha na escolha dos bispos, imiscuía-se nos assun-
tos eclesiásticos e era um imperador cesaropapista, que seria o chefe “de
fato” da Igreja. Seu filho Luis já não teve a mesma condição, mas, ainda
assim, governou a maior parte de seu reinado, sem dar atenção às queixas e
protestos clericais.
55
A Igreja tinha o controle do saber, pois a maioria da população era ile-
trada. Entre os letrados, a maioria absoluta estava nos quadros clericais.
Eram monges ou membros das camadas superiores do clero secular. Com
isso a Igreja começava a criar elementos teóricos para consolidar seu
domínio e justificar sua preeminência na sociedade. Um dos exemplos
desse esforço para inverter a posição da Igreja foi a definição da condição
de reis e imperadores por vontade divina. Essa construção legitimava as
monarquias e o império, mas oferecia à Igreja o importante papel de sacra-
lizar os governantes, visto que “todo poder vem de Deus” e a única inter-
mediária legítima entre Deus e a humanidade seria a Igreja. Outro exem-
plo seria a construção de provas que legitimassem o controle do Ocidente
Medieval pela Igreja, como herdeira do Império Romano, na parte ociden-
tal deste. Trata-se do documento “Doação de Constantino”, que se acredita
ter sido redigido no período carolíngio (século oitavo), mas se sugere ser
um documento concedido pelo imperador Constantino, o Grande (ou seja,
do século quarto). O documento relata que o Imperador foi acometido
por uma grave doença de pele, que se supõe ser a lepra. O papa Silvestre
recomenda que ele se banhe algumas vezes num rio (Tibre) e ele se cura.
A gratidão do imperador é imensa: redige um documento, pelo qual con-
cede a maior parte do Império Romano do Ocidente ao papa e aos seus
sucessores, de maneira integral e pela eternidade. Em seguida Constantino
parte para o Oriente e, como substituta de Roma, funda Constantinopla,
que se torna um legado da Igreja. O que os reis carolíngios haviam feito
de maneira parcial, criando o Patrimônio de São Pedro, era ampliado, de
maneira retroativa. O documento não surtiu efeito no período carolíngio,
mas na sequência dos fatos serviu como um dos argumentos para o pro-
cesso de construção de uma doutrina hierocrática e a plenitude do poder,
que adiante analisaremos.

56
3.5 A ordem de Cluny e a reforma da
Igreja no Ocidente medieval
A maior e mais organizada ordem monástica do ocidente medieval era a
ordem beneditina, criada no sexto século por Bento de Núrsia, na Itália. Os
beneditinos terão muita importância na expansão e no prestígio da Igreja.
Enfatizavam uma vida regrada pela oração, pelo trabalho e pelos estudos.
Boa parte de seu tempo era dedicada a copiar livros e com isso os mostei-
ros beneditinos ajudaram a conservar e preservar obras de importância
religiosa e cultural, inclusive do mundo clássico e que não se relacionavam
com a religião. A ordem existe até hoje e mantém muitos de seus princí-
pios e valores. No Brasil há diversos e prestigiados mosteiros de São Bento.
Falaremos um pouco mais dela no tema cinco.
No seio do beneditismo surge o núcleo de um movimento que terá
enorme importância na vida religiosa e cultural do Ocidente medieval. O
duque Guilherme da Aquitânia e também conde palatino de Borgonha funda
uma abadia em Cluny, na região borgonhesa, em 910. A partir dessa aba-
dia se criará, nos séculos seguintes, uma ordem monástica que propunha
reformas em diversos âmbitos da Igreja. Uma de suas alegações era a inter-
ferência dos laicos na escolha e na ordenação de cargos da alta hierarquia
eclesiástica, tal como os de abades e de bispos. O movimento propunha que
não se negociassem esses cargos, que eram cobiçados pelas famílias nobres
e pelos reis e imperadores, visto trazerem, com o cargo, a posse de bens,
terras e direitos pecuniários. O negócio com cargos e bens eclesiásticos foi
denominado simonia. A nobreza se opunha a essa posição, pois impediria
que os segundos filhos dos nobres pudessem ser ordenados – o intuito da
nobreza era fortalecer o poder e as riquezas de uma família com a ordenação
de alguns de seus membros como bispos e abades.
Os monges de Cluny também almejavam aclarar rigidamente a diferença
entre leigos e clérigos, exigindo a castidade e a continência sexual dos clé-
rigos. Até o ocasião em que o movimento se expande, percebemos que a
castidade e o celibato eram exigidos apenas dos membros do clero regular
(monges), mas não eram exigidos de padres, bispos e demais elementos do
57
clero secular. Tal exigência se relacionava com a anterior, pelo fato que se
propunha a manter no seio da Igreja apenas clérigos, que se afastassem dos
prazeres, da carnalidade, dos bens materiais e do poder político. O tema do
desregramento e da conduta carnal dos clérigos era denominado nicola-
ísmo e enfatizava a castidade clerical.
A ordem de Cluny é considerada por muitos autores como um dos
pilares da criação do caminho de Santiago e, por consequência, impulsor
do processo lento e gradual da reconquista cristã na Península Ibérica. Os
mosteiros de Cluny ou aqueles que se ligaram com essa ordem floresceram
ao longo do caminho de Santiago e influenciaram a religiosidade, seja na
Península Ibérica, seja no Ocidente medieval.
No âmbito da reforma cluniacense percebemos que, em poucas décadas,
o prestígio da abadia propiciou a ascensão de alguns de seus elementos a
cargos elevados e, depois de um século, começamos a encontrar papas elei-
tos que faziam parte do movimento. Estes papas quiseram alterar a forma
de se eleger os papas e impedir que os imperadores interferissem na escolha
dos papas e dos bispos do Império. A eleição passou a ser feita pela Cúria
romana, um colegiado de cardeais que, a partir de 1059, passou a eleger os
papas e ajudá-los a governar a Igreja.
Tal conflito se aguçou no pontificado de Gregório VII e o enfrentamento
se deu entre ele e o jovem imperador Henrique. Este imperador, como mui-
tos antes dele, concordava com várias das propostas reformistas, mas se
opunha à perda de influência na escolha e eleição de bispos e abades, pois
geraria fraqueza para o imperador. Cargos eclesiásticos eram fonte de poder
e riquezas e não poder nomear seus ocupantes traria fragilidade ao supremo
governante político. Alguns bispos tinham participação num colégio eleito-
ral que elegia os sucessores do imperador, ou seja, mesmo sendo clérigos,
influenciavam na política.
O embate teve diversas alternativas. Inicialmente o papa excomungou
o imperador e este se arrependeu indo a pé em pleno inverno ao palácio
papal, em Canossa, pedir perdão. Depois o imperador volta atrás e destitui
o papa e o manda exilar. Começa o que viria a ser chamado o conflito das
Investiduras, para definir quem nomeava os bispos no Império.
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O conflito gerou diversas situações, alternando as posições. O papa aca-
bou sendo deposto e exilado, mas não tardam a existir dois papas, gerando
o Cisma do Ocidente. Houve, então, simultaneamente, dois papas e até dois
imperadores que se opunham. Isso só se resolverá no século seguinte, em
1122, com a concordata de Worms, na qual o papa sai em posição fortalecida
e define a sua condição de efetivamente escolher os bispos, com a anuência
posterior do imperador.
Em paralelo, a Igreja oriental estava se separando do Ocidente e criando
a Igreja ortodoxa grega nesse mesmo período (1053). Essa separação pros-
seguirá até a contemporaneidade. Ironicamente a fragmentação da Igreja
coincidiu com o período de seu maior prestígio. Entre os papas que suce-
deram a Gregório VII, estava Urbano II, que no concílio de Clermont concla-
mou aquela que viria a ser a primeira Cruzada (1095-1096).

3.6 O controle da sociedade, o controle


do corpo e o controle das armas
A reforma cluniacense era um projeto amplo da Igreja que agora aflorava com
força e gerava amplas repercussões na sociedade. A Igreja concebia a sociedade
cristã como o veículo que serviria de espaço para a segunda vinda de Jesus: a
redenção dependia de que a sociedade alterasse seus comportamentos e fosse,
para tanto, devidamente transformada. O corpo social deveria ser purificado, e o
corpo individual também. Nos dois níveis dever-se-ia manter a “saúde pública”
evitando que os vícios capitais, termo que significava pecados, os desvios de
comportamento e as más condutas, impedissem a segunda vinda de Jesus.
Controlar os corpos era educar os leigos e controlá-los. A sexualidade
era apenas e exclusivamente permitida aos leigos, mas apenas com fins
reprodutivos. O prazer se torna ilícito. O corpo era sagrado e deveria ser um
templo. E o mesmo se daria com a violência. Numa sociedade composta por
sacerdotes (clero), trabalhadores (vilões, servos e outros) e nobreza guer-
reira, este último segmento deveria ser educado e desviado da pura e sim-
ples violência, para ser direcionado a causas mais “nobres”, justas e cristãs.
O modelo de cavaleiro cristão se delineia e começa a ser elaborado.
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Um cavaleiro cristão deveria defender os fracos e os indefesos, idosos,
donzelas e crianças, e não os oprimir ou saquear. Deveria batalhar pela fé e
pela verdade, mesmo se junto com isso houvesse proveito material, vanta-
gens e saques. Uma das estratégias da Igreja foi o controle dos tempos e dos
espaços permitidos para a guerra. Paz de Deus e trégua de Deus eram con-
ceitos que criaram um calendário restritivo à luta armada: dias santos ou
finais de semanas e muitas datas foram proibidas para exercitar a guerra e
atacar seus adversários. Espaços como igrejas, mosteiros, cemitérios, orfa-
natos e escolas foram definidos como protegidos. E determinados setores
da população não poderiam ser atingidos: clérigos, mulheres, crianças, pes-
soas idosas e, de uma maneira geral, os que não fossem bellatores. A ideia
era impedir a violência gratuita e desenfreada contra populações indefe-
sas, contra o patrimônio da Igreja e coagir os excessos. A teoria e a prática
social nem sempre coincidem, mas há uma lenta e gradual imposição des-
ses padrões, de forma relativa e parcial, pela Igreja no seio dos homens de
armas e dos governantes.
A outra atitude foi exportar a violência para fora do sistema. Já que
havia cavaleiros sedentos para lutar, conquistar ou saquear, ficaria melhor
se o fizessem contra os inimigos da Cristandade: infiéis como os muçul-
manos, pagãos na periferia da Europa e até, se preciso fosse, contra cismá-
ticos e hereges.
Os séculos X a XII foram o palco dessas ideias e das transformações que
atingiram todos os setores da sociedade. Surge aos poucos um estamento
de guerreiros, oriundos da nobreza já existente ou egressos de outros seg-
mentos sociais que ascendem à condição de bellatores e que, ao adquiri-
rem a espada e sagração como escudeiros ou cavaleiros cristãos, recebem
uma série de normas e atitudes como parâmetros comportamentais. A
sagração do cavaleiro na Igreja tenta condicioná-lo a agir dentro de uma
ampla gama de valores e atitudes cristãs: defender os fracos, tais como
idosos, mulheres, crianças, inválidos; não ferir clérigos e nem usurpar
bens eclesiásticos sob nenhuma hipótese; combater os inimigos da cris-
tandade, os pagãos ou infiéis e, em particular, os hereges que contaminam
a comunidade cristã.
60
O controle e o direcionamento da violência para “causas justas e sacraliza-
das” acabam por criar uma aparente justificativa para a guerra, que deixa de
ser apenas violência e agora adquire o hábito de justa, de correta e desejada por
Deus. Surgem ordens de monges cavaleiros, tais como os Hospitalários e os
Templários que se direcionavam para o Oriente, no sentido das Cruzadas, ou as
diversas ordens militares e religiosas criadas na Península Ibérica, tais com
as ordens de Santiago, Calatrava, Cristo e Avis, entre outras. Monges cavaleiros
se dedicam a combater os infiéis e a expandir a fé verdadeira, pela espada. Este
exército sagrado será engajado na defesa da fé verdadeira e da sua expansão.

O tema das Cruzadas e da Reconquista será analisado no tema seis desta obra

3.7 A oposição: os imperadores, os cismas,


a crítica, a hierocracia e as heresias
A Igreja no auge da hierocracia (séculos XII e XIII) teve que se confrontar
com resistência e oposição de vários tipos. Os guerreiros não se tornaram
subitamente dóceis e obedientes às normas clericais. Os reis e imperadores
não se submeteram passivamente às ordens dos papas e de seus represen-
tantes. Tal oposição foi enfrentada com firmeza e, nesse confronto, se alter-
naram avanços e retrocessos.
Os imperadores, desde o conflito das Investiduras, que já analisamos
acima, opuseram-se ao poder excessivo do papa e do episcopado nas ques-
tões políticas e no cotidiano da sociedade. Dois dos maiores opositores do
papado foram Frederico Barbarossa (ou Barba Roxa), que veio a falecer no
caminho para a terceira cruzada, e seu neto Frederico II, que viveu a maior
parte de seu reinado no sul da Itália, numa corte na qual muçulmanos, nor-
mandos e judeus transitavam e atuavam com muita liberdade.
Outro exemplo de oposição imperial é o caso do imperador Luis II
(Ludovico) da Baviera, que recebeu em sua corte e protegeu dois pensado-
res (filósofos e teólogos, efetivamente) que contestavam a ingerência dos
papas no governo laico e nos temas não espirituais: o professor universitá-
rio italiano Marsílio de Pádua e o teólogo franciscano de origem britânica
61
Guilherme (William) Ockham. Ambos estavam vinculados às universidades
e transitaram pela de Paris. Suas ideias foram consideradas heréticas e os
dois foram convocados à corte papal para esclarecimentos. Cientes dos ris-
cos, ambos – em momentos distintos, mas próximos – se refugiaram na corte
imperial. Protegidos por reis e imperadores, esses e outros pensadores refle-
tiram sobre o conceito, ainda embrionário nessa época, de separar o poder
secular (político) do poder clerical (ou eclesiástico). Para a maioria deles a
Igreja deveria apenas lidar com as questões espirituais e ser uma comunidade
de fiéis, sem se intrometer no governo e nas questões seculares. Isso permiti-
ria à Igreja ser pura e santa, não se corrompendo com temas profanos.
Esse tipo de crítica cresceu depois do ano Mil. Muitos esperavam a
segunda vinda de Cristo. Na esteira desse evento não concretizado, muitas
vertentes religiosas populares apareceram. Algumas delas se enquadraram
no seio da Igreja. Já outras foram muito críticas e não aceitavam o poder da
Igreja. Consideravam a Igreja muito rica para ser a verdadeira Igreja de Jesus
e dos apóstolos, que eram gente humilde e espiritual, não identificada com
a riqueza e a ostentação que viam na Igreja medieval. O modelo da pobreza
apostólica gerou questionamentos: seria essa Igreja rica, dona de terras e
repleta de ouro e riquezas a Igreja dos apóstolos?

Gárgulas na cobertura da catedral de Notre Dame de Paris

62
O misticismo e a religiosidade popular geraram alguns tipos de reação
a essa situação: a) uma vertente de pobreza apostólica e de espiritualidade,
que não questionou os dogmas e as crenças básicas da Igreja, apenas sua
riqueza e ostentação, propondo um retorno aos valores originais ou primor-
diais da Igreja; b) uma crítica mais radical e dualista que definia essa Igreja
como aquela das hostes do mal, por estar envolvida com os bens materiais, a
carnalidade e a riqueza. Tal posição encampou a concepção de origem mani-
queísta de que o mundo era o campo de uma luta entre o bem e o mal, o
espírito e a matéria. Os dois grupos de uma maneira geral foram alocados
pela Igreja no campo oposto e declarados como inimigos infiltrados no seio
da Cristandade, ou seja, como hereges.
A primeira vertente teve duas expressões mais conhecidas e merecem
ser analisadas: os valdenses, ou seja, os seguidores de Pedro Valdo, e os fran-
ciscanos, ou seja, os seguidores de Francisco de Assis. Uma foi considerada
herética e a outra foi incorporada à Igreja e a defendeu com extremo empe-
nho e dedicação. Vejamos ambas separadamente.
Valdésio de Lion, mais conhecido como Pedro de Valdo, era um rico
homem de negócios na região de Lion (Lião/Lyon) no centro sul da atual
França. Sua espiritualidade gerou nele uma crise existencial. Buscou a paz de
espírito no modelo de pobreza apostólica. Entregou a metade de seus bens
à sua esposa e filhos para não deixá-los à míngua. Com a outra metade tra-
duziu trechos da Bíblia e da Patrística que se relacionavam com suas ideias
e ideais para a língua local, para que os seus seguidores, conhecidos como
os pobres de Lion, pudessem ter acesso a uma parte dos textos sagrados, que
geralmente não eram lidos ou conhecidos por leigos, mas apenas recitados
ou contados pelos clérigos. Tornou-se muito popular e o bispo o advertiu.
Em 1179, Valdésio (Valdo) reuniu uma delegação e foi a Roma demonstrar
a sua pureza e sua submissão à Santa Sé. O papa os abençoou, mas advertiu
que deveriam aceitar a hierarquia episcopal e se submeter ao bispo local.
O que impediu essa inserção dos valdenses foi a questão das pregações
públicas, um direito reservado a quem fosse clérigo. Há indicações tam-
bém de que, para os valdenses, as mulheres, tal como em algumas comuni-
dades cristãs primitivas, poderiam pregar. Não estamos certos deste item,
63
mas o bispo local não lhes deu permissão para pregar e o grupo entrou na
marginalidade e foi declarado herético. Apesar das perseguições e de que
alguns foram posteriormente julgados e condenados pelo Santo Ofício da
Inquisição (que não existia na época de Valdo), os valdenses sobreviveram
e existem até nossos dias.
A segunda vertente é bem conhecida. Francisco, nascido na cidade ita-
liana de Assis, era o filho de um rico comerciante e também se sentiu ilumi-
nado por Deus a seguir a trilha dos apóstolos e viver em pobreza e simpli-
cidade. Vivendo na época do papa Inocêncio III (pontífice entre 1198-1216),
foi admitido como o líder de uma ordem monástica mendicante. Apesar
de ter ideias semelhantes às de Valdo e dos valdenses, Francisco e seus
seguidores se alinharam sob a hierarquia clerical e se submeteram ao papa.
Habilmente conduzida ao seio da Igreja, a ordem franciscana se tornou um
dos esteios da expansão e fortalecimento daquela. Admirados pela popula-
ção e dotados de uma rara espiritualidade, converteram-se em baluarte do
papado e da Cristandade.
Outro grupo de mendicantes será criado entre a virada do século XII para
o XIII, também sob Inocêncio e em paralelo aos franciscanos, mas sendo
desde seu início utilizado para a pregação, o combate as heresias e o ensino
nas universidades. Seu fundador foi o hispânico Domingos de Guzman.
Durante um trajeto terrestre entre a Península Ibérica e a Itália, o clérigo
contatou com populações que haviam assumido o dualismo albigense
(abaixo explicaremos) e iniciou uma longa tentativa de evangelizá-los, tra-
zendo-os de volta ao Cristianismo católico. Seus esforços não redundaram
em resultados notáveis, mas dirigiu-se ao papa Inocêncio III e solicitou a
criação de uma nova ordem mendicante: os dominicanos. Estes serão céle-
bres nos últimos séculos do Medievo, pois tiveram papel marcante no com-
bate às heresias, no ensino universitário e na coordenação do Santo Ofício
da Inquisição. Nos três casos, a defesa da Igreja e da ortodoxia eclesiástica
era o tópico principal.
A heresia que mais abalou a Igreja medieval foi certamente a heresia albi-
gense ou cátara. Essa heresia tinha algum tipo de relação com o dualismo
maniqueísta oriundo do Oriente. No Império Romano o maniqueísmo de
64
origem oriental (persa) foi considerado uma heresia e perseguido, antes de
o Cristianismo se consolidar como religião associada ao Império e se tor-
nar dominante. Isso, portanto, nos séculos III e V. No período medieval uma
nova onda de religiões maniqueístas vem de leste para oeste, vindo da Pérsia
(maniqueísmo e mazdeísmo), passando pela Armênia (paulicianos) e che-
gando à península balcânica (bogomilos). Todas essas expressões religiosas
eram dualistas, aceitando a existência de um deus bom (espiritual) em con-
flito com um deus mau (material, carnal). Um conflito cósmico no qual os
humanos deveriam se inserir e ajudar a combater o mal e libertar os espíri-
tos da carnalidade e da materialidade.
O dualismo maniqueísta chegou à Europa e acabou aparecendo no sul
da França. Alguns autores não veem tal processo de expansão de leste para
oeste e consideram que se trata de uma criação local. Na região conhecida
como Languedoc (que abarca todo o sul da França, incluída a Provença e
redondezas) havia muitas resistências à Igreja e um segmento clerical mal
preparado e inconsistente para combater a “heresia”. Relutamos em deno-
minar essas expressões religiosas como heresia, tendo em vista que essa era
a ótica clerical, para definir os excluídos ou contaminados com o erro, sob a
percepção oficial da Igreja.
Os albigenses se expandiram nessa região com facilidade, pois a maior
parte da nobreza local era muito crítica ao poder da Igreja e ambicionava
se apossar de suas riquezas. Por isso não reprimiam e nem repreendiam os
ditos hereges. O rei francês não tinha poder de coerção na região devido à
fragmentação feudal e ao poder dos grandes senhores locais. Esse terreno
se revelou propício a certo crescimento do catarismo albigense. Os vizinhos
cristãos católicos não achavam esta escolha religiosa estranha e conviviam
em harmonia com as diferenças. Quando a Igreja percebeu a expansão do
dualismo, este estava enraizado na região sul do reino da França.
O catarismo albigense fundamentava suas crenças no conceito de um
mundo em que havia dois poderes: um deus bom completamente espiri-
tual e, de outro lado, um deus mau que era o Criador do mundo material
e físico. O Deus do Gênesis seria o Demiurgo, criador da materialidade e
do mundo que percebemos pelos sentidos e que seria uma espécie de
65
macroprisão, local no qual os espíritos encarnados em corpos carnais
eram enclausurados na microprisão do corpo. O dualismo almejava liber-
tar os espíritos destas duas prisões: os corpos carnais e o mundo material.
A Igreja e também os judeus que seguiam o Deus Criador do Gênesis eram
seguidores do Demiurgo, do deus carnal e material. A riqueza e a ostenta-
ção da Igreja eram mais uma prova de tanto. O catarismo foi considerado
pela liderança eclesiástica como muito perigoso e ameaçador, um ferrenho
inimigo a ser combatido.
Com o fracasso da evangelização decidiu-se realizar uma expedição
armada contra os albigenses do sul da França. O papa Alexandre III, já
em 1179 conclamara a realização de uma cruzada. Isso se realizou apenas
no pontificado de Inocêncio III (1198-1216) em 1208/1209. Numa primeira
etapa os grandes senhores e o rei da França se omitiram de participar, mas
a pequena e a média nobreza se engajaram em busca da salvação (havia a
promessa de indulgências), de saque e do confisco de bens e propriedades
da nobreza meridional e sua outorga aos nobres sem posses ou secundogê-
nitos sem direitos a herança.
A cruzada alcançou o sul da França e batalhas foram travadas. Uma delas
foi o cerco a Beziers, que originou uma versão polêmica e repetida através
dos tempos, mesmo se não completamente comprovada. Diz-se que no
interior da cidade cercada havia tanto os fiéis cristãos católicos quanto os
considerados hereges cátaros albigenses. Os soldados, receosos de abater
indiscriminadamente todos sem distinguir os que eram bons cristãos e os
que eram heréticos, consultaram o legado papal, que não receou em dizer:
“Entrem na cidade e não temam em chacinar a população. Deus recolherá
os justos cristãos e deixará ao Diabo os pecadores heréticos”. A população
foi massacrada de maneira ampla e sem piedade. A Cruzada teve sucesso
parcial e alguns nobres do norte tomaram senhorios da nobreza do sul.
Oficialmente se encerrou em 1213. A última fortaleza albigense denominada
Montsegur veio a ser tomada somente em 1244.
O rei francês intervém e aproveita a repressão para se infiltrar no sul
e reocupar os espaços concedidos aos senhores do Languedoc. Junto virá
a Inquisição e a repressão aos albigenses se ordena e se sistematiza. A
66
Inquisição medieval foi entregue à ordem dominicana, que não permitiu
que as manifestações, consideradas heréticas pela Igreja, progredissem e se
espalhassem.
Outro espaço de combate às heresias foram as universidades medievais,
nas quais os dominicanos, especialmente, mas também outros monges,
beneditinos ou franciscanos, ensinavam a fé verdadeira e combatiam here-
sias e infiéis em suas leituras, escritos e debates. Analisaremos as universi-
dades no penúltimo capítulo.

3.8 O papado entre o Cativeiro


de Avignon e o Grande Cisma
A Igreja hegemônica e dominante consolidou seu poder e prestígio nos
séculos XII e XIII sob as cruzadas e no impacto da superação do impera-
dor pela Igreja na polêmica das Investiduras. Os pensadores eclesiásticos
predominaram na defesa de um conceito denominado em latim de ple-
nitudo potestatis e que traduziremos livremente por plenitude do poder.
Embasada nas afirmações de Paulo de Tarso (Epístola aos Romanos) e na
doutrina gelasiana (papa Gelásio define a separação dos poderes, v. acima),
a Igreja definiu que se todo poder vem de Deus e se a Igreja é representante
de Deus no mundo e a única que dialoga diretamente com a divindade, ela
teria a legitimidade e a representatividade de se colocar acima do Império
e dos reinos.
Essa concepção foi contestada por autores como João (Jean) de Paris,
Guilherme de Ockham e Marsílio de Pádua, que já citamos. Essas teses
que pretendiam definir diferentes espaços de atuação para o poder secular
e para o poder eclesiástico concebiam a Igreja dedicada às questões espi-
rituais e distante dos temas políticos. Marsílio, por exemplo, considerava
a Igreja como um coletivo de fiéis, que ele denominava “corpo místico de
Cristo”, e cuja formação fora coletiva (apóstolos) e embasada numa forma
mais ampla e participativa e não numa Igreja monárquica. Tomava corpo
uma concepção denominada conciliarista que apregoava que os bispos e
cardeais deveriam dirigir a Igreja, lado a lado com os papas.
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O conflito entre a Igreja hegemônica e os monarcas teve um momento
de crise quando se confrontaram o papa Bonifácio VIII (pontificado entre
1294 e 1303) e o rei Felipe IV (reinou de 1285-1314), denominado o Belo. O
papa enfatizou a sua plenitude do poder e sua condição superior em relação
aos imperadores e reis, através de uma bula em 1302. O rei francês efetiva-
mente desejava se apossar das cobranças de dízimos e taxas pela Igreja em
território francês. O papa foi sequestrado e maltratado em Anagni e veio a
morrer em 1303. O rei francês conseguiu que um bispo francês fosse eleito
papa Clemente V (pontificado de 1305 a 1314) e este transferiu a Cúria para
uma cidade no sul da França, denominada Avignon (Avinhão), na Provença.
Com a nomeação de mais nove cardeais franceses, o papado se estabeleceu
nesse local. Alguns autores denominam esse período como Cativeiro de
Avignon, estabelecendo um paralelo com o Exílio da Babilônia pelos judeus
conquistados pelos babilônios e a Igreja exilada pelo rei francês e mantida
longe de Roma.
O papado permaneceu em Avignon entre 1309 e 1378. Em meio à Guerra
dos Cem Anos, o papa Gregório XI retorna a Roma e, lá, vem a falecer. A
população romana pressiona o colégio de Cardeais a eleger um novo papa,
Urbano VI. Devido a atitudes arbitrárias desse grupo de cardeais, entre os
quais os cardeais franceses, elege-se outro papa, Clemente VII, que retorna
a Avignon. Começa o Grande Cisma da Igreja. Duas sedes e dois papas
simultâneos. E os temas políticos se imbricam no Cisma. A França, Castela,
Portugal, Escócia, Saboia, Aragão, Áustria, e Navarra apoiam Clemente e os
papas que lhe sucederam em Avignon. De outro lado, a Inglaterra, o Império,
Flandres, os estados escandinavos, a Hungria, a Boêmia, a Polônia e os esta-
dos italianos reconheciam Urbano e seus sucessores. Uma ampla e articu-
lada propaganda dos dois lados estigmatiza o outro lado. Isso enfraqueceu
ainda mais a Igreja. Muitos sugeriam a reforma da Igreja, sua moralização e
o conciliarismo como saídas.
Uma tentativa de reunificação complicou mais o panorama. Um con-
cílio reunido em Pisa em 1409 demite os dois papas e elege um novo:
Alexandre V. Nenhum dos outros papas se considera demitido e por meia
década teremos três papas. O imperador Sigismundo convoca o Concílio de
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Constança (1414 a 1417), que demite os três postulantes e elege um único
papa Martinho V (pontificado de 1417 a 1431). O Cisma gerou muita divisão
e enfraqueceu o papado. A reforma não ocorrerá, pois os papas do século XV
são monárquicos e muito próximos do estilo renascentista de viver e gover-
nar. Isso convergirá na maior crise da Igreja, que foi a Reforma Protestante.
Este tema, no entanto, extrapola nossa periodização.

69
Império Bizantino
e Islã medieval

70
4.1 O Império Bizantino entre a
Roma Imperial e a cultura grega
queda do Império Romano do ocidente com as invasões bár-
baras gerou uma situação nova. Os invasores germânicos
capturaram por algumas vezes Roma, a cidade formadora da
república e capital do império no seu auge, o que abalou o
prestígio imperial, mas não acabou com o Império. Este seguiu existindo
no Oriente por cerca de um milênio, ora forte e poderoso, ora sob a pressão
de inimigos poderosos; hostilizado pelos persas, depois por árabes muçul-
manos, em seguida por cruzados desviados de sua missão e, por fim, sob
a ameaça dos turcos islamizados. Estes tornaram os últimos séculos do
Império Romano do Oriente um período difícil e no qual o risco de anexa-
ção e desaparição era constante e que finalmente se sucedeu com a tomada
da capital imperial Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453, e com a
derrocada definitiva do Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino.
Busquemos as origens desse Império Bizantino e conheçamos um pouco de
sua longa história.
A cidade de Bizâncio era uma cidade fundada pelos gregos e, no iní-
cio do século IV, foi refundada e ampliada pelo imperador Constantino, o
Grande, nos anos que se seguiram à sua ascensão. A nova cidade recebeu
o nome de Constantinopla e foi considerada uma nova Roma ou segunda
Roma. Seu perímetro foi ampliado. A cidade ostentava a condição de
segunda capital do império. A cristianização do Império Romano a tornou
um dos patriarcados, junto com Roma, Antioquia, Alexandria e Jerusalém.
Como a maior parte da riqueza do império vinha das províncias orientais,
Constantinopla se tornou uma bela cidade com edifícios públicos e belas
igrejas e espaços urbanizados.
O imperador Constantino governou desde o oriente e se estabeleceu na
nova capital no final de seu reinado. Os demais imperadores transitavam
pelo Ocidente, mas habitavam em Constantinopla. O imperador Teodósio, o
Grande, cristianíssimo e muito respeitado, optou por dividir o império (395)
em duas partes; o Império do Ocidente com capital em Roma ficou com seu
71
filho Honório e o Império do Oriente com capital em Constantinopla ficou
com seu filho Arcádio (reinou de 395 a 408). Depois de 410, quando Roma
foi saqueada pela primeira vez pelos visigodos, as muralhas da segunda
Roma foram reformadas, por ordem de Teodósio II (408-450), neto do pri-
meiro deste nome fazendo uso de técnicas e materiais que permitiram que
fosse inexpugnável por terra, mesmo com o uso dos primeiros canhões
no medievo. Em menos de um século o Império do Ocidente estava ocu-
pado por exércitos de povos germânicos, denominados por muitos como
bárbaros, visto serem considerados inferiores culturalmente, mesmo que
militarmente prevalecessem. A data de 476 foi considerada como o marco
historiográfico que demarca a queda do Império Romano do Ocidente. Já
analisamos esse momento.
Algumas décadas depois ascendeu uma nova dinastia e o segundo impera-
dor desta foi Justiniano (527-565), que foi um grande governante. Sua esposa
Teodora foi uma personagem polêmica. O governo de Justiniano foi repleto
de problemas, como a revolta Nika (532), que envolveu opositores políticos
à nova dinastia, grupos de torcidas do hipódromo e a dissidência religiosa
dos monofisitas, que não aceitavam a postura cristã ortodoxa de Justiniano.
A cidade foi saqueada e uma parte de seus edifícios públicos queimados. O
general Belisário reprimiu violentamente os revoltosos massacrando-os
no hipódromo. Justianiano reconstruiu e ampliou as obras públicas, numa
política de aprimoramento urbano e de remodelação das fortalezas militares.
As tentativas de homogeneizar o cristianismo no império não foram
bem sucedidas: dissidências que a Igreja denominava heresias proliferaram:
monofisitas, nestorianos, maniqueus seguiram existindo e até núcleos de
paganismo ainda subsistiam. Os judeus foram hostilizados e muitas sinago-
gas foram destruídas por ordem imperial e muitas restrições a práticas judai-
cas foram decretadas.
No plano jurídico a obra legislativa do imperador foi magna. Recolheu,
editou e compilou toda a legislação romana que já fora parcialmente reco-
lhida e ordenada sob Teodósio, o Grande – o Codex Teodosianus. Uma obra
imensa foi organizada coletando ainda mais obras jurídicas antigas, compi-
lando, reordenando e legislando também. O amplo acervo jurídico coletado,
72
legislado e ordenado por Justiniano é a base legislativa do renascimento das
leis imperiais nos séculos XII e XIII, embasando os estudos jurídicos nas uni-
versidades medievais e será a base da criação da Lex (lei) romana.
No plano político-militar o imperador alternou fraqueza e grandeza,
vitória e humilhações. Acertou um pacto com os persas para se con-
centrar no seu projeto de restaurar o Império Romano e voltar a fazer do
Mediterrâneo o mare nostrum. Os persas não assumiram plenamente seus
compromissos e Justiniano teve que pagar tributos para recuperar espaços
invadidos. Conseguiu conter os hunos e os eslavos que ameaçaram a região
balcânica e a fronteira do Danúbio. Isso porque seu plano ambicionado era
recuperar o Império Romano do Ocidente, ocupado pelos exércitos germâ-
nicos (identificados pelos romanos como bárbaros). Mesmo se estes reinos
germânicos aceitassem uma espécie de vassalagem simbólica em relação
ao imperador oriental, Justiniano almejava recuperar plenamente os terri-
tórios perdidos no século anterior.
Organizou um grande exército que foi liderado por seus dois generais,
Belisário e Narses. O Império Oriental invadiu o norte da África e derrotou os
vândalos, reocupando a África romana. Depois de um breve retrocesso ocu-
pou as ilhas Baleares, a Sardenha e a Córsega, preparando o ataque à Itália. A
luta contra os ostrogodos na Itália durou quase vinte anos e foi muito des-
gastante. Ao final os ostrogodos foram derrotados e o território italiano foi
ocupado, mas o exército bizantino foi muito afetado pelas perdas humanas, o
desgaste de uma longa guerra e os gastos. A terceira etapa foi intervir em lutas
dinásticas dos visigodos na Península Ibérica (atual Espanha e Portugal). Os
bizantinos ocuparam territórios na parte sul e sudeste do reino visigótico
onde permaneceram por três quartos de século. Tomaram Córdoba, Valência,
Cartagena, Málaga e Múrcia. Em 625 o rei visigodo Suintila os desalojou e
retomou todas as cidades e territórios ocupados.

73
Mapa 1 – Império do Oriente e reconquista bizantina

74
Fonte: p. 74 e 75 (dupla) – Atlas Histórico Escolar

75
O Império Bizantino se tornou o nome mais conhecido do Império
Romano do Oriente, pois o nome anterior de Constantinopla era Bizâncio.
Não são sinônimos, mas se confundem e acabam significando, na prática,
a mesma coisa. Os territórios reocupados por Justiniano no Ocidente foram
gradualmente sendo perdidos. Muitos sinais dessa presença são encontra-
dos na Itália, em especial na cidade imperial de Ravena, na qual há algumas
belas igrejas bizantinas.

4.2 As polêmicas religiosas


no Império Bizantino
O império Bizantino foi o palco de muitos conflitos religiosos. Ainda
quando o império era unificado, na região oriental se confrontaram duas
facções cristãs: uma aceitava a Trindade com três componentes sem hie-
rarquia; já os seguidores de Ário, denominados posteriormente como aria-
nos, consideravam uma hierarquia e que o Pai teria criado o Filho. Outra
dissidência denominada macedonianismo estendia ao Espírito Santo essa
condição. Prevaleceu a doutrina trinitária. No concílio de Niceia (325) o aria-
nismo foi condenado, tendo sobrevivido ainda por um pouco mais de meio
século. Tanto o arianismo quanto o macedonianismo foram considerados
heréticos e condenados no concílio de Constantinopla (381). A doutrina da
Trindade se torna hegemônica e nunca mais é contestada. O arianismo, que
foi a religião oficial sob alguns imperadores, desaparece.
A outra polêmica que ocorre é a questão cristológica. Jesus Cristo, de
acordo com a doutrina oficial da igreja, seria, em “uma só pessoa, verda-
deiro Deus e verdadeiro homem”. Mas como explicar a mescla de duas natu-
rezas distintas? Duas vertentes se opuseram com veemência a esse dogma.
Por um lado os seguidores de Nestório, denominados nestorianos, diziam
que se tratava de duas pessoas: uma humana e outra divina. Questionou
Maria como a “mãe de Deus” (Theotókos) e a considerou apenas como “mãe
do homem Cristo” (Christotókos). O nestorianismo quebrava a unidade da
pessoa em Cristo.

76
Em contraponto, o monofisismo surgiu querendo refutar Nestório. Um
abade de nome Êutiques de Constantinopla, assim como também os dis-
cípulos de Cirilo enfatizaram apenas a natureza divina de Cristo e desco-
nheceram a natureza humana. Essa doutrina foi denominada como mono-
fisismo, pois apregoava uma só natureza de Cristo.
Um concílio reunido em Éfeso (431) condenou Nestório e seus seguido-
res; outro concílio reunido anos mais tarde em Calcedônia (451) condenou o
monofisismo. Os conflitos e polêmicas no império Bizantino não cessaram
nesse momento, prosseguindo e se alternando. A polêmica iconoclasta que
dividiu os seguidores e os opositores dos ícones ou imagens de santos e da
Virgem dividiu a sociedade bizantina nos séculos VII a IX. E finalmente um
conflito entre o papa e o patriarca de Constantinopla no século XI (1054)
selou a separação da igreja bizantina, daí em diante denominada ortodoxa,
da igreja católica romana liderada pelos papas em Roma. Tal cisma persis-
tiu até nossos dias. O termo ortodoxo significaria reto e correto. E católico
seria universal. Permanecem usos diferentes desses termos. As duas igrejas
se julgam universais e corretas, vale dizer.
A separação motivará parcialmente o movimento das Cruzadas. Ainda
ocorrerão novos problemas religiosos, mas não nos estenderemos em des-
crevê-los. A religiosidade no Oriente, em geral, e no Império Bizantino, em
específico, era muito complexa e refinada. Discutia-se na rua, nos espaços
públicos e privados e as polêmicas eram muitas vezes motivos de conflitos
aguçados. Alguns geraram pequenas e médias guerras civis. Alguns dos grupos
minoritários foram exilados ou fugiram para lugares ermos e mais seguros.

4.3 A luta entre bizantinos e persas:


Heráclio x Cosroes
O Império Romano teve um longo e difícil confronto com reinos e impérios
localizados no planalto iraniano (atual Irã, antiga Pérsia). Apesar de terem
se alternado povos e dinastias, era sempre nesta região ou próximo dela, tal
como na Mesopotâmia, que havia conflitos entre imperadores romanos ou
bizantinos contra reis partas ou sassânidas, por exemplo.
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O Império Bizantino se desgastara com a reconquista do Ocidente com
Justiniano (século VI) e se via acossado seguidamente pelos persas na fron-
teira oriental. Num desses conflitos, em 611, os persas atingem Antioquia.
Em 614, Jerusalém é cercada e ocupada pelas tropas do rei Cosroes, que não
tardam em tomar Alexandria e o Egito todo em 618-619. Em seguida se des-
locam na direção de Constantinopla, atingem o mar de Mármara e sitiam
parcialmente a capital. O imperador Heráclio percebe o risco, conclama os
seus súditos e os cristãos ocidentais a auxiliarem numa guerra santa contra
o persa “bárbaro” e pagão.
A reação ocorre e Heráclio, numa desgastante e demorada campanha,
vence o exército persa em 627 perto da cidade de Nínive, na Assíria, e per-
segue Cosroes até sua capital Ctesífon. Um tratado de paz é obtido e as pro-
víncias bizantinas são retomadas. Heráclio consegue reaver a Santa Cruz
e a transporta de maneira simbólica como um troféu religioso e militar. A
longa campanha exaurira as riquezas da maior parte do império, enfraque-
cera a sua força militar e tornara bizantinos e persas duas frágeis potências.
Em 634, exércitos árabes islamizados irrompem na fronteira sul do império
Bizantino e começam a invadi-lo.

4.4 A Arábia e seu isolamento:


o período pré-islâmico
A península arábica é uma região desértica ampla e margeada a leste
pelo golfo Pérsico, a oeste pelo mar Vermelho e a sul pelo oceano Índico.
Escassamente povoada no norte e no centro da península devido à escassez
de água. Nessas partes viviam tribos nômades, organizadas em clãs tribais
e que subsistiam do pastoreio e de uma escassa coleta nos oásis da região.
Já na parte sul da península há precipitação pluvial devido à proximidade
do oceano Índico e o clima de monções. Alguns autores denominam essa
região como Arábia verde ou Arábia feliz e coincide hoje com o Iêmen e o
Aden. Devido a essa característica havia pequenos núcleos urbanos, alguns
portos e conexões comerciais, seja com a África oriental, seja com a Índia, e
através de caravanas terrestres com os Impérios Persa e Bizantino. Era uma
78
rota secundária e mais longa, mas que serviu muito no período das guerras
entre Heráclio e Cosroes.
A região do Hedjaz é a parte ocidental da península Arábica. Sua impor-
tância era muito reduzida na antiguidade e seu isolamento era determinado
por estar numa região desértica. O deserto arábico era uma extensa região
erma com alguns pontos habitáveis, lugares nos quais havia fontes de água
e oásis. Havia uma rota de caravanas que ligava o sul do Império Bizantino
com o extremo sul da península e se estendia pelo interior de norte a sul,
não muito longe do mar Vermelho. Nesse trecho havia uma cidade de porte
pequeno que se localizava na metade dessa rota e se denominava Meca. As
caravanas atingiam a cidade no trajeto norte-sul-norte e ali obtinham um
lugar de descanso, água e alimentos. Um pequeno comércio ali se desenvol-
via, entre habitantes da cidade e as tribos nômades. Mas havia outra intera-
ção entre os locais e os nômades: a peregrinação.
Meca era uma espécie de cidade santuário. Não era a única, mas era uma
das mais importantes por estar bem localizada na rota de caravanas e pró-
xima a uma parte das tribos nômades. No centro da cidade havia uma cons-
trução que cercava um enorme meteorito negro, considerado uma dádiva
dos céus. O santuário era um ponto de confluência e agregação dessas tri-
bos e nas capelas adjacentes havia inúmeras imagens de deuses tribais,
gênios (djiins) e protetores das tribos. Esse complexo religioso era deno-
minado Caaba. Em um determinado período do ano as tribos se dirigiam
ao santuário e ali cultuavam seus ídolos tribais e reverenciavam a pedra
negra. Esse afluxo de pessoas revigorava o comércio local e gerava certo
tipo de poder ao clã coraixita guardião da Caaba. Este grupo era amplo na
cidade e estava envolvido seja no comércio, seja na prestação de serviços
aos peregrinos, seja, até mesmo, no governo local. Uma parte dos coraixitas
era rica e poderosa.
Havia inúmeras rivalidades tribais. Salientamos a dos habitantes de
Meca com os habitantes do sul, os iemenitas. Estes, envolvidos no comér-
cio, povoaram a localidade de Yatreb ou Yatrib, que viria a servir de refúgio
a Maomé. Assim tentavam desviar as rotas de caravanas e obter vanta-
gens materiais. Os habitantes de Meca se consideravam descendentes do
79
patriarca Abraão, através de seu filho Ismael, gerado com a concubina Agar
(Genesis, cap. 16, vers. 15-16). Os iemenitas se consideravam descendentes
de Abraão. Havia também rivalidades religiosas. No sul existiam pequenos
templos que tentavam catalisar as tribos do sul e seus djiins, para obter van-
tagens nas peregrinações. A população era na sua maioria politeísta e ani-
mista. Algumas tribos haviam se convertido tanto ao judaísmo quanto ao
cristianismo de vertente nestoriana.
A cultura nômade prevalecia em meio a algumas cidades de porte médio.
O limite entre as duas culturas era tênue: uma não tinha a mesma visão que
a outra em termos de bens e propriedades, por exemplo. As campanhas mili-
tares com finalidade de saque, obtenção de escravos e concubinas eram roti-
neiras. O estilo de vida beduíno valorizava a liberdade e a honra (com ênfase
no controle da sexualidade feminina) e a solidariedade entre os membros do
clã. A linhagem e a relação com a tribo e o clã superavam quaisquer outras
lealdades e ligações.
As regras da hospitalidade eram sagradas e valiam até para inimigos
que a solicitassem: dentro de certo perímetro e com certos códigos e atitu-
des, o inimigo poderia se alojar na tenda de um nômade beduíno, usufruir
de sua comida e bebida, dormir e depois partir. Após determinado tempo
e saindo do perímetro sagrado da hospitalidade, o hospedeiro poderia
perseguir e executar o ex-hóspede. Uma atitude diversa da que temos nas
comunidades sedentárias. A cultura e as tradições beduínas influenciarão
na nova religião.
Os nômades se aliavam e se combatiam através de pactos e de declara-
ções de guerra, seja pelo domínio dos oásis, seja por questões de honra e
de alianças. A luta pelos poços e rebanhos levava a uma sequência de lutas
e vinganças de sangue, que se repetiam em longos ciclos. Essa sociedade
era muito desunida, pulverizada e, portanto, incapaz de se organizar
como um estado, com um governo e um exército. Dessa forma, vivendo
na periferia de dois grandes impérios, o bizantino e o persa, estava fadada
a ser uma sociedade atrasada, fraca, desunida e sem expressão política
e econômica. O fator geográfico aumentava essa tendência e acentuava
essa fragilidade.
80
4.5 Maomé e sua trajetória:
de caravaneiro a profeta
Maomé era membro de uma rama menor e desapossada dos coraixitas. Atuou
como mercador e transitou pelas rotas de caravanas, mas desconhecemos até
onde chegou. Aparentemente pode ter chegado a Damasco, mas não há pro-
vas disso. Casou-se aos 25 anos com uma viúva rica, mais idosa do que ele, de
nome Khadija. Há evidências, no seu discurso religioso, de que Maomé deva
ter tido contato com judeus e cristãos e que estes tenham influenciado suas
percepções espirituais. Aos quarenta anos começou a meditar, ouvir vozes e
ter visões e profecias. Ele identificou-se como sendo o arcanjo Gabriel (Jibril).
Relutou em contar às pessoas o que via e ouvia, mas sua esposa o incentivou.
A revelação recebida falava de um deus único, universal, onisciente e
onipotente, diante de quem todos os seres humanos deveriam se subme-
ter e venerar: a palavra Islã (Islam) significa precisamente “submissão”.
Derivado desta expressão vem muçulmano (muslim), ou seja, aquele que se
submete ao deus único e universal. Não existe uma religião maometana:
pode se dizer muçulmana ou islâmica. O Islã foi criado a partir da revelação
de Alá a seu profeta Maomé. E esta ocorreu na cidade de Meca.

4.6 Doutrinas do Islã:


cinco pilares
O Islã é fundamentado em cinco pilares. São os princípios da religião e estão
baseados nos ensinamentos de Maomé. Através desses pilares se organizam
os ciclos diários, semanais e anuais da fé muçulmana. São estes:

1) Testemunho ou Shahada. Seria uma declaração que enfatiza a unidade


de Deus (Alá), sua onipotência, onisciência; nega todas as formas de ido-
latria, politeísmo e o culto de outros deuses, mas aceita a existência de
anjos e gênios, conciliando a nova religião com as crenças dos beduínos.
Nega com veemência a trindade e a encarnação. Concebe Jesus e Moisés
como profetas e plenamente humanos e os considera predecessores do
81
profeta perfeito Maomé, que também foi humano e mortal. Ainda assim
Maomé é exaltado como superior. No credo muçulmano se recita “Alá é
Alá e Maomé é seu Profeta”, ou seja, há um vínculo especial entre Deus
e seu profeta. Alá é eterno, inato, onisciente e onipotente. Como sabe de
tudo e nada lhe escapa, o fiel deve se entregar e servir a Deus, de todas as
formas e em todos os momentos. Obedecendo e se submetendo a Deus
(Alá) será recompensado e aceito no paraíso; caso contrário arderá nas
chamas do inferno. O testemunho é parte fundamental das declarações
de fé, incluídas no segundo pilar.

2) O segundo pilar é a oração (Salat) ou as cinco orações diárias. Nas cidades


de maioria muçulmana é usual haver uma mesquita. Tradicionalmente
no alto da torre da mesquita (minarete) se coloca um muezzin que chama
os fiéis à reza, através de gritos e conclamações. Hoje isso é feito através
de uma gravação com uma aparelhagem de som. As orações devem ser
preferencialmente feitas em comunidade, mas não precisam ser feitas
na mesquita, salvo nas sextas-feiras, dia sagrado de oração comunal.
Nesse dia deve-se ir à mesquita e orar com seus correligionários. Nos
outros dias pode se rezar numa praça, rua, no meio de um caminho,
num mercado. O fiel coloca um tapete no chão e realiza diversos movi-
mentos de prostração que simbolizam a submissão incondicional. Não
é um pedido de benesses e favores a Alá. Exige-se uma pureza ritual. Na
entrada de uma mesquita, ou próximo a ela, costuma haver um tanque
ou reservatório de água, com torneiras e pequenos bancos nos quais o
fiel faz as abluções. A ablução é uma limpeza ritual: lavam-se os mem-
bros superiores e inferiores e o rosto. Ao entrar na mesquita deve-se dei-
xar os sapatos de fora e entrar descalço. Recomenda-se a modéstia, que
seria estar com vestes limpas, recatadas e adequadas. E o que se deno-
mina intenção: estar concentrado na oração e não se distrair com temas
externos à devoção, como conversas ou reflexões sobre negócios, traba-
lho e problemas do cotidiano.

82
3) Zakat ou esmola. Tem certa correspondência com a tzedaká judaica ou a
caridade cristã (dízimo e outras). Os fiéis que tenham condição social devem
ajudar os pobres através de refeições, doações e ajudas diversas, inclusive
empregando o pobre para que este possa se sustentar. O conceito de um
coletivo islâmico, denominado ummah, uma espécie de nação não territo-
rial, gera uma solidariedade entre fiéis, que se ajudam uns aos outros. Há
um zakat obrigatório a todos os fiéis e formas de ajuda mútua adicionais.

4) Ramadan (Ramadã). É o mês de jejum, período de purificação e ascese


para Alá. Esse mês é relacionado com o recebimento do Corão, ou Alcorão.
Nele os fiéis se abstêm, desde o nascer até o pôr do sol de relações sexu-
ais, de comer e beber, inclusive de água – postura difícil na maioria dos
países islâmicos localizados próximos a desertos e/ou regiões quentes.
Isso é mais acentuado quando o Ramadan ocorre num mês de verão, visto
o calendário muçulmano ser lunar e se deslocar através do ano solar, ou
seja, o mês do Ramadan se move através do calendário solar. Nesse perí-
odo as refeições são feitas antes de o sol nascer e depois do pôr do sol,
período este em que há refeições familiares com confraternizações.

5) Hajj (Hadj). É uma peregrinação feita pelos fiéis, pelo menos uma vez na
vida, aos lugares sagrados do Islã. Maomé inicialmente direcionava as
orações para Jerusalém, mas como os judeus não o aclamaram profeta, ele
redirecionou as orações para Meca. Definiu o ponto de referência que nor-
teia (kibla ou qibla) as orações nesse sentido e definiu a visita ao santuário
no entorno da Caaba5, com os marcos da revelação de Alá como pontos de
referência. O muçulmano saudável deve se dirigir a Meca no período de um
mês do calendário destinado a essa visita. Há um roteiro de lugares e
eventos que demarcam a peregrinação. No período medieval era uma
difícil jornada, que poderia oferecer riscos e ameaças aos peregrinos, tal
como ataques de cruzados no período dessas expedições. Na atualidade
podem participar cerca de um a dois milhões de peregrinos a cada ano.

5. Caaba é um conjunto de lugares que ficam em Meca no qual se deu a Revelação de Alá a Maomé
através do arcanjo Gabriel. A pedra negra, um meteorito escuro, é o centro da mesma.

83
4.7 A expansão do Islã:
reflexões e análises
A expansão do Islã é um fenômeno histórico que gera explanações, refle-
xões e explicações múltiplas. Como habitantes de uma região periférica e
primordialmente habitada por tribos nômades pouco desenvolvidas no
plano cultural e tecnológico, conseguiram em algumas décadas se expandir
e criar um vasto império. Os árabes muçulmanos liderados pelos sucessores
de Maomé venceram o Império Bizantino e anexaram vastas regiões deste; já
o Império Persa foi completamente anexado pelos exércitos muçulmanos.
Como entender e explicar tais sucesso e a rapidez da conquista?
O Islã tradicional é adepto de que essa vitória foi obtida pela proteção
de Alá e pela verdade da fé. Assim sendo, o sucesso se explicaria de uma
maneira metafísica. Essa perspectiva religiosa não é suficiente para histo-
riadores e se torna simplista para uma reflexão racional.
Uma das explicações mais aceitas é aquela que contextualiza o conflito
anterior à conquista: persas e bizantinos combateram por quase trinta anos
e exauriram suas forças. Os dois grandes e poderosos impérios estavam
esfacelados ao final de um longo conflito. As elevadas cobranças de impos-
tos para gerar recursos que financiassem os exércitos geraram oposições e
muitas críticas de diversos setores sociais. Um fisco ostensivo gera oposi-
ções sociais em muitos setores.
E podemos agregar a isso um aspecto religioso e político. Como vimos, o
Império Bizantino era palco de confrontos teológicos agudos e exacerbados.
As dissidências religiosas eram muitas vezes reprimidas, pressionadas e até
perseguidas. Alguns setores da sociedade se revoltaram contra tal repressão
e muitas das minorias religiosas se exilaram, ora em lugares ermos do impé-
rio, ora em periferias e até mesmo fora do espaço imperial.
Os judeus também foram vivamente oprimidos pelos imperadores.
Justiniano e Heráclio perseguiram essa minoria em campanhas de conver-
são, geralmente pela pregação, mas por vezes com tentativas de conversão
forçada. Mesmo sendo minoria, os judeus tinham presença importante nas
cidades desenvolvidas.
84
Esse conjunto de fatores explica a fraqueza dos dois poderosos impérios.
Já na perspectiva dos conquistadores podemos citar alguns pontos fortes. As
estratégias militares dos invasores que tinham a cavalaria dotada dos reno-
mados cavalos árabes. E também a coesão obtida por Maomé ao juntar um
grupo heterogêneo nas origens das múltiplas tribos, mas coeso na nova fé e
considerando-se representantes do Deus universal. Uma unidade que nem
sempre serviu para manter os muçulmanos juntos, mas que, nesse período,
sob a crença de que seus sucessos eram um reflexo do apoio e incentivo do
Deus único, os manteve coesos.
E por fim a forma com que os conquistadores se relacionaram com as
populações conquistadas. Sabendo-se minoritários demograficamente e
compreendendo que as vitórias militares só se consolidariam e permane-
ceriam no tempo se a população dos impérios anteriores se sentisse bem
tratada e em condições melhores que sob o domínio dos impérios, adota-
ram de maneira ampla e geral duas posturas fundamentais: plena e absoluta
tolerância religiosa e diminuição da carga tributária dos novos súditos.
A tolerância às outras religiões era fundamentada numa leitura parcial dos
escritos de Maomé. O profeta do Islã tinha duas posturas diferentes em relação
aos infiéis. No começo de sua pregação queria converter os cristãos e, princi-
palmente, os judeus, sob a alegação de que ele era o terceiro e definitivo profeta.
Estaria sucedendo Moisés e Jesus e fecharia o ciclo. Assim as revelações par-
ciais feitas pelos dois se consolidariam na sua pessoa, na sua pregação e na sua
vertente religiosa. Maomé não teve sucesso com os judeus de Medina (Yatrib)
e nem conseguiu converter as tribos nômades que professavam o judaísmo.
Em virtude disso sua postura inicial foi respeitosa, tolerante e recep-
tiva aos seguidores dos monoteísmos, que o antecederam. Cognominou
os judeus e os cristãos como povos do Livro (Ahl Al Kitab), ou seja, parcial-
mente iluminados pela revelação. Exaltou suas religiões e estabeleceu uma
pretensa ponte para convencê-los a se converterem ao Islã. Diante da recusa
da maioria dos judeus e cristãos da Arábia a se converter, a sua postura se
tornou mais áspera e radical e colocou, por exemplo, as tribos judaicas entre
a opção de se converter ou morrer. Assim sendo Maomé teve duas posturas:
uma tolerante e respeitosa, que exaltava as religiões do livro monoteístas e
85
reveladas, e uma segunda postura menos conhecida e bastante radical, que
oferecia a morte aos que relutassem em se converter à nova religião.
Os sucessores de Maomé, denominados Califas, não optaram pela
segunda via no período das conquistas. Estrategicamente escolheram o
caminho da moderação, pois os exércitos invasores eram menos de dez por
cento em relação aos povos dominados. Evitaram converter a força e não
optaram por tal via, pelo menos nos três primeiros séculos, que denomina-
remos por Islã clássico. Foram tolerantes e permitiram que as populações
judaicas e cristãs permanecessem em seus territórios, mantivessem uma
grande parte de seus locais de culto e comemorassem as celebrações religio-
sas. E protegeram essas populações no campo religioso. O estatuto de tole-
rância denominou as comunidades protegidas como dhimma.
Havia algumas condições implícitas nessa tolerância: deviam usar certo
tipo de vestuário, marca de sua inferioridade. Eram obrigados a pagar um
imposto pessoal, cobrado de adultos infiéis, uma espécie de imposto per
capita denominado jizia, que representava um sinal de reconhecimento da
primazia do Islã e um resgate do serviço militar obrigatório aos fiéis muçul-
manos. Muitos foram aproveitados em funções administrativas, mas não
políticas, na economia e nas artes.
Os dhimmis não portavam armas, o que gerava uma situação de fraqueza.
Muitos cristãos e alguns judeus se converteram ao Islã para obter direitos
políticos e militares. Outros cristãos migraram para terras dominadas por
poderes cristãos. Assim, com o passar do tempo, diminuíram as minorias
cristãs sob o Islã, mas nunca desapareceram. Vale ressaltar que a condi-
ção jurídica e civil dos dhimmis sob o Islã era muitas vezes melhor que a de
minorias sob a cristandade no mesmo período.
Há um mito historiográfico bastante difundido de que houve conver-
sões forçadas. Isso não se fundamenta nos fatos, pelo menos no que tange
a judeus e cristãos. No caso das religiões dualistas da Pérsia, alguns autores
afirmam que houve sim perseguições e projetos de conversão forçadas. É o
caso do zoroastrismo. Trata-se de uma religião não monoteísta e considerada
fora do conceito de povos do Livro. Ainda assim não consideramos isso uma
norma no Islã clássico em relação aos povos conquistados fora da Arábia.
86
Podemos afirmar sem receio que o Islã clássico era tolerante e não forçou a
conversão da maioria dos povos conquistados, pelo menos até o século XI, o
que se alterará na sequência dos fatos, mas não analisaremos tais situações.

4.8 O califado de Damasco e o califado de Bagdá


Os primeiros governantes muçulmanos eram do círculo de Maomé. Foram
quatro califas denominados de rashidun ou bem guiados ou orientados.
Organizaram os árabes e coordenaram a expansão do Islã com coesão e
muito sucesso. Maomé não deixara claro como deveria ser a sua sucessão.
Uma linha minoritária preferia reservar essa honra à família do Profeta. No
caso, ao genro deste, Ali ibn Abi Talib, casado com a única filha de Maomé,
Fátima. A linha majoritária compreendia que qualquer fiel, bem preparado
e adequado, e desde que aceito pela maioria dos fiéis, poderia suceder. Uma
espécie de assembleia tribal de guerreiros seria o colégio eleitoral.
Inicialmente o poder foi concedido a Abu Bakr, parceiro do Profeta
desde o início. Em 634 o escolhido foi Omar (Umar), que consolidou um
avanço militar derrotando bizantinos e tomando a Síria, Israel, o Egito, a
Mesopotâmia e regiões diversas. Em cada lugar ocupado se colocavam forta-
lezas e guarnições militares e a tolerância religiosa estimulava a população
a não se converter e nem emigrar. Umar foi severo com os fiéis e brando com
os povos do Livro. O Império Bizantino foi fortemente abalado e ocupado
parcialmente por Umar, mas sobreviveu.
O terceiro califa, Utman, venceu os persas e ocupou todo seu império. A
riqueza dos saques e conquistas fluiu e ajudou a criar uma aristocracia rica
e poderosa. Isso começou a gerar conflitos e separações. Tensões internas
eram latentes.
Finalmente, Ali foi empossado como califa em 656. Os conflitos estavam
estalando e um dos seus opositores, Moawia (Umawiya), coraixita, mas de
outro ramo, contestou sua legitimidade. Uma guerra civil eclodiu e, em 661,
Ali foi assassinado. O novo califa concentrou os poderes e criou uma dinas-
tia com sucessão familiar. Transferiu a capital para Damasco e definiu o que
viria ser o califado omíada de Damasco.
87
Mapa 2 – Expansão do Islão (Islã)

A oposição dos dois filhos de Ali, Hassan e Hussein, não bastou para impedi-lo.
Uma guerra civil eclodiu. Não demorou para que Ali e, mais tarde, os seus dois
filhos fossem mortos e seus seguidores os tornassem mártires. Uma divisão no
seio do Islã se consolida. Os adversários de Moawia se definiram como um partido
88
Fonte: p. 76 e 77 (dupla) – Atlas Histórico Escolar
ou facção, a Shia, termo do qual surgirá o xiismo. Hassan acabou aceitando a ascen-
são de Moawia, mas mesmo assim acabou sendo assassinado em 669. Quando
Moawia morreu e seu filho e sucessor Yazid foi empossado em 680, os xiitas se
revoltaram, sendo massacrados em Karbala, local onde Hussein foi martirizado.
89
O xiismo ampliou suas posições e se tornou uma vertente muçulmana
que enfatiza mais o Corão que a Sunna, exalta o martírio e diverge em certos
temas dos demais fiéis.
O califado sob a dinastia omíada cresceu e se expandiu até o norte da
África e a Península Ibérica a oeste, e até a Ásia central e as margens do rio
Indo ao leste. Inspirados no modelo bizantino de governo e usando a arqui-
tetura bizantina como parâmetro de construções, o califado se tornou mais
aceitável para os cristãos, ainda em maioria. Usaram da elite cristã para
administrar os territórios recém-conquistados.
A dinastia estabeleceu o árabe como a língua oficial, criou unidades
monetárias em prata (dirhan) e em ouro (dinar), uniformizou a administra-
ção e adotou posturas tolerantes com os povos dominados. O califado pros-
perou e se expandiu.
Os omíadas governaram o califado por cerca de um século (661-750),
sendo derrubados do poder por uma revolta liderada por Abu Al Abas, que
estabeleceu uma nova dinastia, denominada dinastia abássida. Os abássi-
das reformularam o califado e fundaram uma nova capital: Bagdá. Cidade
planejada e urbanizada foi palco de muitas realizações culturais e religiosas.
Em Bagdá e no califado temos o encontro entre o Islã e o Oriente
culto e refinado. Obras de filosofia grega foram vertidas para o árabe
e refinadas polêmicas religiosas e filosóficas ocorreram no califado.
Estabeleceram-se vertentes jurídico-religiosas que definiram um Islã
mais complexo e sofisticado.
A literatura, em prosa e em verso prosperou. É muito conhecida a
obra As mil e uma noites, que recolhe lendas orientais, persas e hindus e
as imbui de uma aura mais islâmica. A medicina, a astrologia, a álgebra,
a geometria e as ciências naturais prosperaram numa época em que na
Europa cristã ainda estava mergulhada no período das invasões e a maio-
ria da população era iletrada.
A tradução de obras de filosofia – como as de Platão e de Aristóteles –, de
medicina – como as obras de Galeno e Hipócrates – e de muitos outros cam-
pos do saber humanos foram formas de manter e mais tarde transmitir ao
Ocidente tais saberes. Traduzidas antes do grego para o árabe, na Alta Idade
90
Média, e depois do árabe para o latim, na Idade Média central, foram uma
preciosa transmissão cultural e científica que permitirá que a Europa se erga
e se expanda pelo mundo afora.
Os abássidas governaram de maneira despótica e com muito brilho até
meados do século X. A partir desse período sobreviveram sem muito bri-
lho até 1258.

4.9 O Islã no Ocidente:


a presença muçulmana na Hispânia
A dinastia omíada derrubada em 750 em Damasco sobreviveu no Ocidente.
Um príncipe omíada conseguiu fugir ileso e se exilar na Península Ibérica. As
tropas locais de origem síria e leais à dinastia reconheceram Abder Rahman
como emir de Córdoba e criaram um emirado, teoricamente submisso aos
califas abássidas de Bagdá. Adotando uma política independente e adminis-
trando um território rico e desenvolvido, os omíadas do ocidente acabaram
por consolidar um novo califado. Emirado de Córdoba até 930 e califado a
partir de então, desfez-se em 1031. Foi uma organização social e política que
serviu de palco para interações culturais entre muçulmanos, judeus e cris-
tãos. O califado serviu como espaço de passagem da cultura oriental para
o Ocidente. Depois da queda do califado de Córdoba, os pequenos reinos
que o sucederam também cumpriram esse papel cultural e científico. O Islã
transmitiu ao Ocidente muito da cultura clássica que fora traduzida ao árabe
no califado de Bagdá e nos séculos XII e XIII será vertida ao Latim e às novas
línguas românicas. Isso ajudará os avanços em todas as áreas.
A transmissão da cultura clássica greco-romana do Oriente para o
Ocidente é responsável pela tradução das obras do filósofo Aristóteles, já
quase desconhecido no Ocidente. As suas obras geraram condições para o
neoaristotelismo, que foi fundamental para a escolástica cristã nos séculos
XII e XIII e teve influências diretas e indiretas em muitas das transformações
sociais, culturais e mesmo políticas. Falaremos disso no penúltimo tema.

91
Cultura, arte e religião

92
5.1 A era das trevas?
era medieval teria sido uma era das trevas? Essa reflexão e
essa discussão já travamos no tema primeiro e não a repe-
tiremos. Neste tema tentaremos ilustrar algumas das múl-
tiplas expressões culturais do medievo, e colocá-las no seu
contexto, no qual oferece formas de entendimento da realidade, dos con-
ceitos sociais e principalmente dos conceitos religiosos. É inevitável se
despir dos preconceitos ao analisar a cultura, seja de qualquer povo, reli-
gião, região ou sociedade. Quando analisamos outra cultura ou expressão
artística desta, não podemos nos utilizar de parâmetros de nossa socie-
dade ou época.
A era medieval é um período no qual a religião exerce um amplo controle
social e define o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é mal, a
partir de pressupostos espirituais. Assim a arte e a cultura estão fortemente
impregnadas desses conceitos.
Com a ascensão do Cristianismo à condição de religião oficial do Império
Romano no período entre os imperadores Constantino e Teodósio (século IV
da era comum), os padrões culturais greco-romanos, que definimos como
clássicos, vão perdendo espaço e sendo excluídos ou adaptados às novas
formas e estilos que se adéquam à associação do Império e da Igreja.
Esse momento é também um momento de enfraquecimento das estru-
turas políticas (queda do Império e ascensão dos reinos bárbaros); de
esvaziamento dos espaços urbanos e fluxo na direção dos espaços rurais;
de empobrecimento da população e uma sensível queda no comércio, na
circulação de moedas e na coleta de impostos; de uma queda demográfica
que acentua a falta de mão de obra especializada e gera uma sociedade
menos sofisticada.
Um dos múltiplos efeitos é a tendência ao empobrecimento cultural e o
aumento vertiginoso do número de iletrados. O analfabetismo é um dado
perceptível desde as últimas décadas do Império Romano do Ocidente. Os
iletrados são uma ampla maioria e a capacidade de ler e escrever se torna
um monopólio de uma elite. E dentro desse grupo a tendência é que sejam
93
normalmente clérigos: ora são membros do alto clero, bispos ou abades, ora
são monges. Raros se tornam os leigos letrados, pelo menos no período ini-
cial do medievo. A situação mudará apenas no final da era medieval, mas
de forma lenta e gradual. Assim sendo podemos compreender a importância
dos clérigos, na manutenção e na criação de expressões culturais e artísticas e
o motivo de elas serem invariavelmente de cunho religioso. E os monges são
claramente os que difundirão o conhecimento e as expressões culturais em
seu tempo e preservarão os saberes para as gerações vindouras. O mosteiro é
um bastião da fé, da religiosidade, mas também da cultura e das bibliotecas.

5.2 O monarquismo:
a manutenção dos saberes e da cultura
O monaquismo surgiu no Oriente, mas sua expressão inicial era de monges
isolados que se escondiam nos desertos e montanhas para rezar, meditar,
se distanciar da sociedade materialista e carnal e se espiritualizar. Eram os
eremitas ou anacoretas. Já no Ocidente há expressões do monaquismo que
se dirigem à criação de comunidades de monges. Os monges agrupados em
comunidades seriam os cenobitas. Também se denominam tais monges
como clero regular, pois se associam através de uma regra. Os precursores
desse movimento estavam preocupados com a crescente ignorância e o alto
grau de analfabetismo, mas também com a manutenção e propagação da fé
cristã verdadeira e oficial. No clero secular, os padres e presbíteros das paró-
quias eram geralmente analfabetos, ou semiletrados, quando muito.
Assim sendo, são fundados mosteiros, nos quais prevalecia uma regra,
uma espécie de norma de admissão e de conduta. Os candidatos ao mona-
cato deveriam passar por um período de observação, na condição de novi-
ços. Após esse período eram avaliados pelos monges e, caso aprovados, se
comprometiam a aceitar as normas de vida prescritas na regra. Em quase
todas as regras se definiam alguns destes padrões: ser celibatário; não
adquirir nem manter a posse de bens e riquezas materiais; aceitar a reclu-
são, ou seja, não sair do mosteiro, salvo com permissão do abade e com
alguma finalidade; trabalhar uma parte da jornada; participar das orações
94
coletivas espalhadas pelo dia e pela noite; estudar ou atuar nas ativida-
des religiosas/culturais, em particular na cópia de manuscritos de todos
os tipos, no espaço denominado, em latim, de scriptorium, uma mescla de
biblioteca com oficina de escrita.
Os monges ensinavam aos noviços a leitura e a escrita. Alguns aprofunda-
vam esses saberes, já outros se tornavam apenas semiletrados, mas podiam
ser copistas de manuscritos. Uns podiam ler e analisar obras de fundo reli-
gioso e até criar obras e reflexões devidamente analisadas por seus superio-
res e aprovadas se não tivessem objeções à interpretação ortodoxa, correta e
oficial da Igreja. Assim o mosteiro se torna uma “ilha” de saber e de cultura,
no Ocidente medieval, por mais de meio milênio.
Um dos fundadores de mosteiros foi Cassiodoro (490-581), que serviu
na corte de Teodorico, o rei ostrogodo. Na fase final de sua vida fundou um
mosteiro, numa propriedade de sua família, na costa sul da Itália, em
um local denominado Vivário (Vivarium), que albergava monges regula-
res junto com monges eremitas. Ali organizou uma vasta biblioteca que
preservou milhares de obras clássicas e cristãs, definindo um modelo de
biblioteca monástica.
A regra que mais se propagou e se manteve até nossos dias foi a bene-
ditina. Seu fundador foi Bento (Benedito) de Núrsia (480-547), que fundou
a abadia de Monte Cassino, destruída na segunda guerra mundial e depois
reconstruída. A regra beneditina se manteve através do medievo, tendo
sofrido reformas e alterações sob Cluny e Clairvaux (Císter), mas sendo a
mais importante pelo menos até o século XII. Perdeu espaço com o surgi-
mento e expansão das ordens mendicantes (dominicanos e franciscanos),
mas aparece até na história do Brasil, quando se fundam diversos mosteiros
de São Bento, entre os quais o de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, com
escolas, bibliotecas excelentes e claustros ativos até hoje.
Os monges, entre os quais se salientam os beneditinos, não difundiam
livremente os saberes clássicos, a cultura greco-romana, pois esta poderia
afetar as crenças da população e sugerir pensamentos anticristãos. As obras
clássicas eram ainda assim preservadas e mantidas, seguidas vezes copiadas
e escondidas em espaços restritos das bibliotecas monásticas.
95
Monges mais cultos e respeitados faziam uso de obras ditas pagãs, da
cultura greco-romana, mas de forma seletiva. Percebendo a beleza das for-
mas, o refinamento do estilo de tais escritos – sejam eles de pensadores e
filósofos gregos, como Platão, sejam de retóricos romanos, como Cícero,
sejam dos estoicos –, usavam trechos devidamente selecionados, mas des-
contextualizados. Recortavam um trecho de uma obra clássica, de modo
que, retirado do corpo dessa obra, servisse para ilustrar um saber ou uma
doutrina cristã. Era um corpo clássico com uma alma cristã. Até os jesuítas
assim o fizeram na catequese de índios.
A cultura monástica nos contemplou com alguns pensadores e escri-
tores notáveis. O primeiro deles transita entre os últimos anos do Império
Romano do Ocidente e o início das invasões bárbaras. É Agostinho, bispo de
Hipona (354-430), autor de uma vasta obra de cunho filosófico e religioso.
Pretendia ser monge, mas teve de assumir o clero secular. Ressaltamos duas
de suas obras mais notáveis: As Confissões, um escrito autobiográfico que
relata sua descoberta do cristianismo e sua conversão; Cidade de Deus, que
já comentamos no tema primeiro, um tratado de religião e filosofia que ana-
lisa o mundo, as relações de Deus com a Criação, a Revelação e o sentido da
história. Esta obra se tornou um dos pilares do Cristianismo e base de uma
filosofia da história: de onde viemos e para onde vamos.
Quatro premissas de sua obra: a primeira era a refutação do ceticismo,
que considera que, mesmo que os sentidos possam nos enganar nos julga-
mentos que fazemos, o fato de pensarmos define a nossa existência, algo
como o “penso, logo existo” de Descartes. A segunda premissa seria a nega-
ção do mal, pois Deus fez o mundo bom e, mesmo que possamos nos cor-
romper e pecar, o mal é apenas o distanciamento do Criador, que é comple-
tamente bom e fez o mundo bom. Podemos fazer errado uso do mundo, ao
nos distanciarmos de Deus, de sua revelação e de sua bondade. A terceira
premissa é a Graça. Nesta, o ser humano é dotado de livre arbítrio, mas o
que prevalece é a graça divina. O uso do livre arbítrio é precedido pelo dom
da Graça, que Deus concede a uns e não concede a outros. E a quarta e última
premissa é a Cidade de Deus, que é uma síntese entre o cristianismo e o neo-
platonismo pagão, no que tange ao conceito de mundo das ideias. A cidade
96
divina é uma realidade transcendente que é refletida de maneira imperfeita
na cidade dos homens, uma cópia imperfeita. Duas comunidades de huma-
nos convivem lado a lado: de um lado, os que se dedicam a Deus e à busca
da espiritualidade; de outro lado, os que se dedicam a si mesmos, à busca da
materialidade e dos bens terrenos.
Consolida-se, neste último conceito, o sentido da História. Alguns
seguirão a Igreja e seus ensinamentos e se salvarão no Juízo Final; já outros
não seguirão e serão condenados ao inferno, no Juízo Final. As concep-
ções de Agostinho demarcarão o medievo e a concepção de mundo da
Cristandade Ocidental.
Outros autores se destacam nos primeiros séculos do medievo. São cléri-
gos, geralmente monges, mas por vezes foram alçados à condição de bispos.
São autores de alguns gêneros literários, dentre os quais destacamos: um
gênero romano, outro cristão e um que é uma mescla dos dois e denomina-
mos gênero enciclopédico.
No gênero romano encontramos obras de caráter histórico escritas para
descrever tanto a expansão do Cristianismo e a conversão dos povos germâ-
nicos quanto para fortalecer as novas monarquias cristãs instauradas pelos
invasores. Citamos a obras do bispo galo-romano Gregório de Tours, que
descreve a formação do reino franco pelo rei Clóvis e seus sucessores; a obra
do monge Beda, o Venerável (675-735), que descreve a conversão das Ilhas
Britânicas ao Cristianismo; e a obra de Isidoro, bispo de Sevilha (570-636),
de quem já falamos no tema primeiro, que descreve a história dos reinos
germânicos na Península Ibérica com ênfase na presença visigoda e na
construção da monarquia cristã.
No gênero cristão temos uma ampla profusão de obras biográficas de bis-
pos e monges da Igreja. São obras que se pretendem exemplares, pois narram
a vida de santos (hagiografia) e de líderes eclesiásticos, que seriam modelos
de conduta cristã. Mesclam história com folclore e mitologia cristã. Servem
para ilustrar as prédicas dos clérigos nas igrejas, tendo em vista que a maio-
ria da população era iletrada. Os modelos de vida que prevalecem são clara-
mente os modelos eclesiásticos, sendo os personagens exemplares os bis-
pos e os santos, pois os únicos letrados que podem escrever, são os monges.
97
O último gênero é o enciclopédico, que visa preservar os saberes da cul-
tura clássica de uma maneira cristã e de uma forma condensada. A enciclo-
pédia medieval foi a coletânea Etimologias, de Isidoro de Sevilha, que, em
verbetes temáticos inseridos em uma variedade de livros, e tendo como base
as sete artes liberais romanas, explica todo o saber acumulado no mundo
greco-romano. Contém uma mescla de ciências e conhecimentos empíricos
com crenças e superstições. A obra de Beda, denominada De natura rerum,
pretende ser uma obra científica que explica a ordem da natureza.
O período inicial do medievo, que alguns autores denominam a Primeira
Idade Média, se encerra com a instalação do Império Carolíngio.

5.3 O Renascimento carolíngio


No contexto monástico podemos observar um breve momento de intensifi-
cação da preservação dos saberes eclesiásticos e, em grau menor, dos sabe-
res clássicos: o reinado de Carlos Magno e de seu filho Luis, o Pio, no final
do século VIII e início do século IX. O imperador Carlos, estimulado por seus
conselheiros, todos eles membros da Igreja, objetivou elevar os saberes do
estamento clerical. No intuito de que não se ensinasse a fé de maneira dis-
torcida e querendo melhorar o nível dos clérigos, instalaram-se, com patro-
cínio imperial, escolas monásticas e uma escola palatina. Além da questão
religiosa, é evidente que o imperador, que tinha centenas de funcionários
clérigos, queria melhorar o nível deles.
Esse investimento na cultura se limitou ao alto clero e a alguns elemen-
tos da ordem monástica, não socializando os saberes com o baixo clero
secular ou com a população laica. Um dos efeitos colaterais desse renasci-
mento foi a preservação de diversos textos clássicos, que interessavam ao
imperador, pois este se inspirava em modelos romanos, por exemplo em
Julio Cesar, Virgílio e Tito Lívio, que ou antecedem a instalação do Império
ou o exaltam. Houve, então, investimentos em copiar obras e uma forma de
copiar mais prática foi criada: a caligrafia denominada minúscula carolín-
gia. Assim, os mosteiros ampliaram seus acervos.

98
Após o reinado dos dois referidos imperadores, o movimento perde
força, a situação segue restringindo a cultura letrada aos mosteiros e os lei-
gos ficam alijados do conhecimento.
Isso não impede o desenvolvimento, em paralelo, de uma cultura popu-
lar, que denominamos folclórica. Através de relatos orais transmitidos de pai
para filho, os camponeses mantinham sua cultura e seus saberes, relatando
tradições antigas, lendas e narrativas. A Igreja, no intuito de converter a popu-
lação camponesa, lado a lado com a nobreza germânica, incorpora elementos
folclóricos e os cristianiza. Um exemplo é a inserção de personagens pagãos,
inclusive deuses, como santos da Igreja. Até mesmo os espaços sagrados dos
antigos templos pagãos são reciclados: ora se derrubam suas estruturas e no
mesmo local se reergue uma igreja, ora se aproveitam até mesmo os espaços
sagrados, purificando-os com água benta e orações para exorcizar os demô-
nios (leia-se: deuses pagãos) e os espaços se tornam puros e sacralizados.
Tal mistura de cristão e pagão é uma estratégia dos bispos e monges para
evangelizar os povos autóctones ou os invasores germânicos.

5.4 A Idade Média central (séc. xi a xiii)


O final do período das invasões e a estabilização motivaram o desenvol-
vimento de novas técnicas agrícolas, de modo a gerar mais alimentos, o
que, por sua vez, propiciou o crescimento demográfico. Analisaremos esse
assunto no tema seis (o último). Sucede-se, em paralelo, o aumento de
riquezas, o renascimento urbano e comercial e o reaparecimento da circu-
lação monetária. O reflexo de tudo isso é uma sucessão de manifestações
culturais e artísticas que refletem os avanços sociais. Uma destas é a arte
religiosa, que tem um notável avanço à época.
Há dois movimentos artísticos e religiosos que ocorrem nesse período e
que geraram notáveis contribuições culturais e artísticas. A arte e a arquite-
tura são espaços de manifestação do sagrado e dos valores eclesiásticos, em
todos os tempos. Isso é ainda mais intenso em um período em que a popu-
lação é amplamente iletrada. A arquitetura e a decoração das igrejas são uma
espécie de anúncio das verdades da fé e do destino dos justos e santos e do
99
triste destino dos descrentes e infiéis. As imagens podem fazer o analfabeto
entender a mensagem. Uma espécie de “outdoor” da fé.
Para passar sua mensagem, a arte clerical deve incorporar elementos
familiares, que tenham significado e sejam compreendidos para os que irão
vê-los. Nas palavras de Hilário Franco (1996, p. 134):

Isso naturalmente ocorreu de maneiras e com intensidades dife-


rentes, de acordo ao quadro histórico mais amplo. Entende-se
assim o forte conteúdo eclesiástico da arte românica dos séculos
XI-XII, que revela através de suas formas as estruturas sociais, polí-
ticas e econômicas do feudalismo, isto é, de um momento de soli-
dez no domínio das relações sociais por parte do clero. Por outro
lado, a arte gótica dos séculos XII-XV, ao revelar esteticamente as
transformações pelas quais passava a sociedade feudo-clerical,
abria mais espaço para abrigar manifestações culturais laicas.

Tentemos entender o que são esses dois movimentos arquitetônicos e


artísticos. Uma breve explicação para ilustrar o românico e depois o gótico.
A arte românica é de base rural e está conectada com o campo e o feuda-
lismo no seu auge. Insere temáticas agrárias e o folclore camponês mesclado
com temas cristãos. Nas suas paredes e pórticos, a presença de elementos do
bestiário medieval – animais reais ou imaginários, monstros que assustam
e geram a sensação de culpa – impregna um ambiente de atemorização ade-
quado aos camponeses ou nobres que viviam no campo. Não faltam altos-rele-
vos de Juízo Final, como veremos em catedrais góticas, mas com a presença
de pedras, plantas e monstros que são elementos simbólicos do imaginário
rural. Como sempre, existe a intenção de demonstrar que não há salvação
senão dentro da Igreja, mas com o uso de elementos compreensíveis aos fiéis.
As igrejas românicas também refletem as dificuldades técnicas lado
a lado com o desejo de construir igrejas “fortalezas de Deus”, com poucas
janelas, estrutura sólida, largas paredes e grossos pilares. Há pouca osten-
tação e luxo e uma arte mais contida. Esta foi sucedida, mesmo se em parte
convivem e acontecem, lado a lado, pela arte gótica.
100
A arte gótica foi criada numa região que estava em pleno processo de urba-
nização. Seu ponto inicial é a região próxima a Paris, incluindo esta também.
Denomina-se a região de Île-de-France (Ilha da França). Era uma região de
passagem entre as cidades italianas e a região de Flandres, atuais Bélgica e
Holanda. O comércio floresce nesse espaço e fomenta o crescimento urbano.
Os burgueses se enriquecem e começam a se interessar por cultura.
As cidades se revelam um espaço de liberdades e de contestações. A Igreja
precisa se confrontar com isso. A riqueza das cidades começa a gerar espaços
para que os habitantes destas, que chamaremos genericamente de burgueses,
começassem a se ilustrar mais. Aumentam os saberes na cidade e a oposição
ao monopólio do conhecimento pelo estamento clerical. O gótico é uma arte
religiosa, como tudo no medievo, mas não é uma arte exclusivamente ecle-
siástica. Os leigos apreciam a arte e podem ser inseridos nos projetos arqui-
tetônicos, sendo patrocinadores das novas catedrais, sejam os burgueses,
sejam os reis. A riqueza permite investir em arte e na construção de catedrais.
Certa aura de pecado emanava do lucro, dos juros e da aquisição de riquezas.
Isso fomentava o patrocínio de obras de caridade e catedrais.
A renovação espiritual deve agora encetar o diálogo entre fé e razão,
tendo em conta a reaparição das obras de Aristóteles e o surgimento das
universidades, das quais falaremos adiante. Uma nova percepção de Deus
como a Luz estimula a inserção de vitrais que iluminem e embelezem o inte-
rior das catedrais. O culto à Virgem cresce tendo em vista a ênfase no lado
humano de Cristo. As formas reais substituem gradualmente as simbólicas,
mesmo que algumas prevalecessem ainda. Também temos monstros e seres
estranhos na decoração das catedrais góticas, é fato. Basta ver os gárgulas no
alto de muitas catedrais góticas.
O sentido da decoração dessas catedrais é enfatizado no início do medievo
pelo papa Gregório Magno (540-604), que afirmou: “As obras de arte têm pleno
direito a existirem, pois o seu fim não é serem adoradas pelos fiéis, mas sim
ensinar os ignorantes. O que os doutos podem ler com a sua inteligência nos
livros, os ignorantes veem-no com os seus olhos nos quadros”. A função esté-
tica, somada ao simbolismo gerado pelas imagens, oferece ao fiel uma reflexão.
Mesmo iletrado, o “leitor das imagens” percebe o simbolismo na arte religiosa.
101
Relevo de Cristo em majestade, fachada ocidental da igreja de Santa Fé de Conques, França O melhor exemplo é a cena do
Juízo Final ilustrada nos portais das
catedrais. O estilo e a apresentação
podem variar, mas há alguns itens
que se repetem. Como podemos
ver nas imagens ao lado, em todos
eles, no centro do pórtico, que é em
forma de um semicírculo, está Jesus
Cristo, de pé e em ação. Sua mão di-
reita está alçada e se induz que ele
esteja punindo os pecadores coloca-
dos à sua esquerda (e na imagem do
lado direito), na parte inferior. Os
pecadores estão sendo arrastados
por pequenos demônios, ou julga-
dos por uma balança que computa
seus pecados e depois os atira ao in-
ferno, que por vezes aparece como
Fonte: O melhor da Arte Românica 1 – G & Z Edições. Lisboa Portugal

uma boca imensa e os devora. No


lado direito de Cristo (na imagem
do lado esquerdo) estão os justos
e fiéis que seguiram seus ensina-
mentos. Estão protegidos por sua
presença e sendo levados por seres
angelicais. Veja na imagem ao lado
o Cristo na catedral de Santa Fé de
Conques, na França atual.
Em muitas dessas representa-
ções aparecem personagens como
os patriarcas, profetas, evangelistas,
santos e mártires da Igreja.

102
Além desses Juízos Finais, temos Imagem da Igreja na catedral de Notre Dame de France

muitos outros simbolismos. Um de-


les é a inserção, na fachada princi-
pal das catedrais, de duas estátuas
de mulheres. Uma, alocada à direita,
é bela, altiva e ergue um estandarte
de vitória. Ela simboliza a Igreja ven-
cedora. Já no lado esquerdo aparece
outra mulher, que está curvada e al-
quebrada, com os olhos vendados,
mostrando que não enxerga a ver-
dade, com seu estandarte rachado e
com aparência de derrotada. Trata-se
da sinagoga. Veja ambas, na en-
trada da catedral de Nossa Senhora
da França (Notre Dame de France), a
Imagem da sinagoga na catedral de Notre Dame de France
principal de Paris.
Afora as catedrais, as esculturas
e baixos relevos nos pórticos, havia
ainda diversos tipos de decoração.
Sobreviveram milhares de ilustra-
ções no corpo de livros, as denomi-
nadas miniaturas. Uma delas é esta
página de uma Bíblia românica caste-
lhana, originária da cidade de Burgos
(atual Espanha), do século XII, rica-
mente decorada. São cenas do Velho
Testamento com ênfase no pecado
original, na parte superior da ima-
gem, cena amplamente desenhada
em inúmeras obras e espaços.

103
Ilustração da Bíblia românica de Burgos

Fonte: O melhor da Arte Românica 2. G & Z Edições. Lisboa Portugal

5.5 A universidade medieval


O autor Jacques Le Goff escreveu uma obra, denominada Os intelectuais na
Idade Média, em que reflete sobre as discussões e os atores sociais desse perí-
odo. A Universidade de Paris é apenas uma entre muitas que surgem no século
XIII. O fenômeno começara no século XII com as escolas urbanas. O cres-
cimento das cidades era acelerado e a necessidade de quadros intelectuais,
administrativos e clericais bem preparados gerava uma demanda crescente.
104
A dependência e o controle da igreja ainda eram muito fortes no século
XIII, o que impedia alguns avanços, mas já em 1179, no terceiro Concílio de
Latrão, a Igreja começava a admitir a existência das escolas, futuras univer-
sidades. E por todo o Ocidente medieval foram abertas. Na Península Ibérica
teremos Salamanca, que até hoje é uma cidade universitária; em Portugal
surgirá Coimbra. Há dezenas de outras universidades medievais que existem
até hoje. O que estudavam? Como estava organizado o saber?
Na base dos estudos estavam a sete artes liberais. O Trivium, composto
por Gramática, Retórica e Lógica; o Quadrivium, composto geralmente por
Aritmética, Geometria, Música e Astronomia (podendo haver pequenas
variações). Essa composição remontava à cultura clássica e seguiu sendo
usada por todo o medievo.
Na sequência dos estudos havia três especializações principais: a Teologia,
o Direito e a Medicina. A evolução e a nova complexidade da sociedade exi-
giram que tais estudos se aprimorassem. Buscaram-se elementos da cultura
greco-romana. Como resgatar esses saberes? Uma parte deles havia sobrevivido
em bibliotecas dos mosteiros, mas era insuficiente para o avanço dos estudos.
Um dos fatores que mais estimularam os estudos foi o contato com as obras
clássicas, geralmente através das relações com o Islã, com o Império Bizantino
e com os judeus. No Oriente, as obras dos filósofos gregos haviam sido proi-
bidas e banidas pelo imperador Justiniano, que mandou fechar a escola de
Atenas (século VI) e baniu os seus professores. Uma parte destes se alojara na
Pérsia e, quando os muçulmanos conquistam a Pérsia e partes substanciais
do Império Oriental, são recebidos e tratados com deferência pelos califas. Já
relatamos isso na descrição dos Califados. As obras de filosofia serão traduzi-
das do grego antigo para o árabe. Escolas filosóficas, como a de Bagdá, serão
palco de polêmicas filosófico-religiosas entre o Islã e a sabedoria clássica. Em
sua versão na língua árabe serão trazidas para o Ocidente medieval.
Em Palermo (na Sicília) e em Toledo e Múrcia (parte do reino de Castela, na
Península Ibérica), serão vertidas para o latim e introduzidas no Ocidente medie-
val. São as traduções das obras de Aristóteles que fomentarão novas reflexões e
forçarão a Igreja a estimular debates e diálogos, ora tensos, ora complexos, entre
a religião e o neoaristotelismo que fluía e gerava questionamentos.
105
A medicina medieval foi ampliada. Apareceram obras de Galeno e de
Hipócrates que foram traduzidas ao latim. Inicialmente eram médicos
judeus e muçulmanos, mas no final do medievo havia uma multidão de
médicos cristãos. Os ensinamentos de judeus e muçulmanos foram adqui-
ridos e aplicados. As restrições da Igreja aos estudos de anatomia humana
impediram alguns dos avanços.
O renascimento do direito romano se deu com a importação de mestres
bizantinos que ainda mantinham os estudos de direito romano. Tais estu-
dos eram de interesse dos imperadores germânicos no seu confronto com o
papado. Buscavam justificar a legitimidade de seu poder, embasados no direito
romano, e diminuir a forte pressão da Igreja, que considerava que, “se todo
poder vem de Deus” e se a “Igreja é a noiva e representante de Cristo na terra”,
por consequência, o papa está acima dos governantes, inclusive o Imperador
germânico. Os monarcas, entre os quais os reis da França e da Inglaterra, fize-
ram também uso dos juristas para ampliar seu poder e sua legitimidade.
As universidades foram palco de conflitos diversos. Salientemos dois deles:
com os hereges e com os averroístas. Este último grupo era influenciado pelo
neoaristotelismo radical, que se baseava no pensamento do filósofo muçul-
mano Averroes. A forte presença de professores originários da ordem mendi-
cante dominicana nos quadros das universidades reflete esses conflitos.
Os dominicanos surgiram no início do século XIII e sua inserção nas uni-
versidades foi imediata. Letrados e extremamente cultos, foram vistos pelos
seus críticos como sendo domini canni, ou seja, os “cães do Senhor”, por sua
postura em defesa do papado e do cristianismo oficial, diante de críticos e
opositores. Logo foram inseridos na Inquisição medieval que combatia os
hereges albigenses.

5.6 A literatura medieval


Há uma variedade de expressões literárias que surgem a partir do século
XI-XII. A maior parte da literatura em língua latina é erudita: crônicas, hagio-
grafias e poesias de cunho clássico. Uma parte menor da literatura latina é
popular, da qual se sobressaem os goliardos, um movimento de contestação
106
do poder eclesiástico que surgiu entre os estudantes pobres das universida-
des, mas que aparentemente tinha elementos de nível social elevado e até
clérigos. Escreveram obras satíricas, burlescas e até eróticas.
Já as obras escritas em línguas neolatinas arcaicas, que denominaremos
literatura vernácula, eram de vários gêneros. Um deles é a canção de gesta,
narrativa épica escrita em verso e que exalta a junção do cristão e do feu-
dal. A sua primeira e mais famosa obra é a canção de Rolando (Chanson de
Roland), que descreve os feitos e a morte em combate do primo de Carlos
Magno, de nome Rolando. Lançada em 1100, exalta os cavaleiros cristãos e
a cristianização da cavalaria. O herói que morre lutando pela sua fé é um
modelo para as cruzadas que se iniciavam.
Em contraponto com as canções de gesta, temos a matéria da Bretanha,
constituída por um conjunto de lendas e contos folclóricos de origem celta.
Pode ser dividida em três grandes ciclos: o primeiro gira em torno do len-
dário rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda; não tarda a ocorrer uma
clericalização e apropriação do tema e dos personagens para inserir o Santo
Graal e o casto Galaad. O segundo ciclo é focado no amor, puro para os leigos
e adúltero para a Igreja, entre Tristão e Isolda. O terceiro reunia narrativas
rimadas sobre o tema da cavalaria.
Outro gênero eram os fabliaux, contos cômicos escritos em verso, de
caráter satírico e repletos de obscenidade e grosserias. Escritos em verná-
culo, eram facilmente transmitidos e propagados. Ironizavam as institui-
ções, a Igreja e a sociedade feudo-clerical.
Mais um gênero que mesclava o laico com o clerical era a poesia amorosa
trovadoresca, que exaltava uma relação de amor espiritual, introvertendo
o erotismo. Era a submissão do poeta à “sua senhora”, transferindo para o
campo amoroso a relação feudo-vassálica, com claro paralelismo ao culto
da Nossa Senhora que se expandia nessa época. Era um amor espiritual com
a inserção da relação de vassalagem. O poeta servia e respeitava sua senhora,
tal como o cavaleiro ao seu suserano.
Há estudiosos, baseados em algumas poesias trovadorescas, que con-
testam essa interpretação e aludem a um desejo geralmente reprimido
do cavaleiro-jogral em relação à esposa de seu senhor, mas que podia
107
eventualmente ameaçar a fidelidade conjugal da dama, numa época em que
a Igreja institucionalizava o casamento como sacramento e pretendia con-
trolar a sociedade no campo das relações carnais.
Já na sequência do medievo podemos citar duas obras de suma importân-
cia escritas em linguagem vernacular e que podem ser consideradas como
precursoras do Renascimento italiano, mesmo que situadas e ambientadas
no medievo. Uma delas é a Divina Comédia, de autoria de Dante Alighieri,
escrita entre 1307 e 1321, mas associada ao século anterior no espírito. A obra
é um relato imaginário de uma viagem do autor a três espaços sobrenatu-
rais: o inferno, o purgatório e o paraíso, locais nos quais ele encontra e dia-
loga com muitos personagens, políticos, santos, teólogos, burgueses de sua
época, e a partir desses diálogos tece reflexões e críticas sociais. A escrita
em linguagem vernacular mais vulgar é concebida pelo autor para que todos
que a leiam possam entende-la. É a laicização da cultura e uma ponte para a
criação do italiano.
Outra obra que define as mudanças culturais é a obra Decameron, de
Giovanni Boccaccio (n. 1313), também florentino como Dante e leitor da
Divina Comédia, cujo título alguns creem ter sido dado por Boccaccio.
Decameron é de um realismo incomum no medievo. Descreve a sociedade
italiana do século XIII e mostra a hipocrisia, a perda de valores e a falsa reli-
giosidade. Não se exime de mostrar a carnalidade e a relações promíscuas de
clérigos, nobres e todo tipo de leigos.
As línguas nacionais começam a obter sua formatação. Das obras
de Dante e Boccaccio começa a florescer o italiano. O mesmo se dará em
Portugal com a literatura que gestará o português arcaico derivando-se do
latim, mas passando pelo castelhano e pelo galego (língua da Galícia, região
noroeste da Espanha atual).
Nas cortes de reis da Península Ibérica, a partir do reinado de Afonso X
de Leão e Castela, aparecem os poetas trovadores que compõem poemas no
idioma galego-português, influenciados pelo trovadorismo provençal. O
movimento ganha força na corte de Afonso III de Portugal e na de seu filho
e herdeiro D. Dinis. Não só eram mecenas das artes, como também poetas.
Ao compor tais poesias, os trovadores começam a dimensionar uma língua
108
nova. Na sequência, surge uma literatura em prosa: lendas e narrativas de
cavalaria tanto no modelo franco (estilo Chanson de Roland) quanto no bretão
(inspirado na Távola Redonda). Há evidências não aceitas por muitos críticos
de que a obra Amadis de Gaula, autor desconhecido, seja uma criação ibérica.
E foram também redigidas muitas crônicas de nobres e monarcas, entre
as quais se sobressaem as do cronista Fernão Lopes, autor de inúmeras nar-
rativas da vida de reis portugueses e senhor de um estilo que já começa a
definir uma nova língua: o português.

5.7 Reflexões finais


A amplitude da arte medieval é enorme. Expressa de maneiras diversas a
espiritualidade e a busca de Deus e suas expressões. Nas catedrais há uma
relação entre o homem e o Deus, superior e imenso. Não existe proporcio-
nalidade, nem a preocupação com o cotidiano humano. Os temas religio-
sos prevalecem de maneira ampla: cenas dos textos sagrados, muitos dos
momentos da vida de Jesus, a vida dos santos e de homens exemplares. O
homem comum está ausente.
Lentamente a arte começa a expressar a vida e os temas humanos, seja
na literatura, seja na pintura. Numa primeira etapa de transição aparece o
cotidiano do cavaleiro, seus feitos e sua bravura. Em seguida o burguês, que
pode financiar o pagamento de um artista que retrate a si e a sua família.
Não tarda a aparecer o dia a dia de labuta do camponês. O homem comum
começa a aparecer, lenta e timidamente.
Essa transição se dá especialmente na literatura e na pintura. A arte das
catedrais mantém-se distante de temas profanos e humanos.
A arte renascentista, que virá na sequência, inspira-se em temas clás-
sicos: mitologia greco-romana, expressões plásticas do corpo e da beleza
física de atletas, deuses e personagens. Isso sem deixar de retratar madonas
(Virgem Maria) e o menino Jesus, mas com expressões mais humanas e em
situações mais rotineiras. O corpo reaparece parcialmente e o homem read-
quire feições mais cotidianas.
A sociedade medieval seria uma era de trevas?
109
O ocidente medieval entre a
expansão, retração e renovação

110
6.1 Os saberes e os poderes
Um dos temas interessantes do medievo é a interação entre
os clérigos e os cavaleiros. Na maior parte do medievo eram
poucas as pessoas letradas, aquelas que sabiam ler e escrever.
Esses saberes e técnicas de aquisição do saber eram pratica-
mente um monopólio do estamento clerical. No tema quinto já analisamos
parcialmente essa temática. No tema terceiro estudamos a Igreja e perce-
bemos como esta objetivou o controle social e o direcionamento da violên-
cia para fora do sistema social, para fins que servissem à Cristandade, não
lesassem a população não militarizada, seja o clero (oratores), sejam os traba-
lhadores (laboratores), e não atingissem os fiéis em geral e, em específico, os
fragilizados: idosos, crianças e mulheres. Os clérigos objetivaram externali-
zar a guerra, no sentido militar, e internalizar nas mentes dos fiéis a luta con-
tra os pecados capitais, contra os desejos e tentações da luxúria, da gula, do
poder e da riqueza. Um grande campo de batalha era ordenado pelos detento-
res do saber para canalizar a violência contra o Diabo e seus aliados: infiéis,
hereges, pecadores e opositores da Igreja.

6.2 As Cruzadas
O conceito de guerra sagrada não é novo. Na sua origem, o conceito da luta
do homem contra as tentações e desejos, contra os pecados (na expressão
da época, “vícios”) criava na sociedade cristã a sensação de que havia uma
luta cósmica, entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo. Nas palavras de
Hilário Franco Junior, na obra Idade Média: nascimento do ocidente, há três
conceitos-chave para compreender o medievo: o contratualismo, o simbo-
lismo e o belicismo. Falamos um pouco disso nos temas anteriores. O beli-
cismo é o conceito-chave para entendermos as Cruzadas e a Reconquista
ibérica. A luta se travava em alguns níveis: um é terreno e imediato, visí-
vel e material, nos campos de batalha. Outro é no âmbito do simbolismo,
mais transcendental e espiritual: a Cristandade seria o exército do bem e

111
os infiéis, tanto os muçulmanos quanto os judeus, seriam o seu oposto, o
campo do erro e do mal.
A sociedade cristã no ocidente medieval estava numa fase de crescimento
e aumento demográfico. As invasões de povos tinham atenuado e mesmo se
acomodado. Ocorrera uma melhoria na produção agrícola com um relativo
aumento na oferta de alimentos. Isso estabilizara um pouco o sistema, mas
a demanda por mais terras cultiváveis era forte.
A diminuição da mortandade causada pelas guerras, pelas invasões e
pela fome gerara mais gente sem terras. Os filhos de nobres que não her-
davam buscavam formas de subsistir: casamentos com herdeiras de bens
imóveis; conquistas de novas terras; e, derivados disso, o saque e o botim
também. Há mais candidatos à posse das terras do que terras disponíveis. E
no tema da mão de obra para cultivar as terras, as novas condições começam
a gerar excedentes de trabalhadores, pois a própria estrutura do sistema feu-
dal não absorvia mais novos braços.
Sobram guerreiros e sobram trabalhadores. A incapacidade de integrá-los
começa a propiciar o aumento da violência. Bandos de guerreiros, acom-
panhados por filhos de camponeses que foram ejetados de suas terras, pela
falta de condição de absorvê-los. A liderança clerical se apercebe do pro-
blema e tenta controlar a violência com as regras que alinhamos no tema
terceiro: Paz de Deus e Trégua de Deus. O objetivo era reduzir os dias e limi-
tar os espaços nos quais é permitida a guerra. Assim, além de tentar mini-
mizar os tempos e locais de combate, ainda intentava controlar a violência
da nobreza, sacralizar a cavalaria incutindo-lhe rituais e ideais de justiça
e fé. Aos poucos essa estratégia traz resultados, mas não é suficiente. Urge
canalizar a violência para fora do sistema.
Outro aspecto que nos auxilia a entender o movimento das Cruzadas é o
costume da peregrinação. Essa tradição existia desde o Baixo Império. Havia
locais considerados sagrados e adequados para serem visitados e cultuados:
túmulos de santos e mártires da cristandade, ou dos apóstolos, mas principal-
mente os lugares pelos quais Jesus passou e foi sepultado. Os fiéis que residiam
no continente europeu afluíam para os lugares sagrados relacionados com os
primórdios do cristianismo: Nazaré, Belém, Jerusalém e demais localidades,
112
nas quais Jesus vivera e onde se supõe que estejam enterrados seus restos mor-
tais. Destacam-se o denominado Santo Sepulcro, que seria a tumba de Jesus,
e a Via Dolorosa, que é o trajeto percorrido por ele entre seu julgamento e sua
crucifixão. Esse trajeto era em muitos períodos perigoso e inóspito.
A peregrinação era o mais alto grau de penitência, e aos criminosos e
pecadores de todos os tipos se recomendava realizá-la como forma de obter
o perdão divino. Fiéis em geral almejavam também peregrinar para se alça-
rem mais alto nos degraus da espiritualidade. Esse movimento recebeu um
estímulo para crescer com a cristianização do reino da Hungria, que abriu
um caminho mais seguro. E uma rede de mosteiros foi criada oferecendo
hospedaria aos peregrinos, por volta do ano 1000.
No aspecto do conceito de guerra santa, temos que refletir que se tra-
tava de algo pouco espiritual e que se contradizia com a postura pregadora,
pacífica e cordata dos primeiros cristãos. Essa postura foi formatada aos
poucos e bastante influenciada pela definição feita por Agostinho, bispo de
Hipona, no começo do século V, que criara a figura da guerra justa. Seria esta
uma guerra defensiva ou permitida, caso fosse para reparar um mal feito
anteriormente, e justificada, pois estaria fazendo justiça diante de um erro.
Como Agostinho combatera diversas heresias, considerava que o combate
aos hereges renitentes, que se recusavam a aceitar as pregações evangélicas
da Igreja, era justificado.
O conceito não abarcaria infiéis, visto o herege ser alguém batizado e
que já teria feito parte da comunidade cristã, mas o termo foi estrategica-
mente alargado para conter a luta contra os infiéis. O papa João VIII, em 878,
estimulou esta percepção ao afirmar que haveria recompensas celestes aos
defensores da fé. O conceito de guerra santa estava sendo moldado.
Entre as motivações imediatas havia um franco avanço de muçulma-
nos nos espaços da Cristandade. A Península Ibérica, que denominamos
Hispânia, fora ocupada por invasores muçulmanos desde 711 e era espaço de
conflitos entre cristãos e muçulmanos, como veremos neste capítulo, mais
adiante. No leste, o Império Bizantino tinha sido parcialmente derrotado e
perdera muitos territórios ao que viria ser o califado de Damasco (tema 4).
O império se reorganiza, consegue conter os avanços dos muçulmanos e,
113
mesmo sem recuperar os territórios perdidos, se mantém e estabiliza. Até o
início do século XI, os bizantinos, mesmo com o território diminuído, supe-
ram os adversários. Alguns povos tentam invadir o império e são contidos.
No século XI, nas décadas anteriores às Cruzadas, um novo elemento
havia aparecido e prenunciava-se como ameaçador ao Império Bizantino
e ao cristianismo: recém-convertidos ao Islã, os turcos seldjúcidas, segui-
dores de um islamismo radical, haviam conquistado largos territórios e
ocupado partes da Pérsia, da Síria e da Ásia Menor. Avançaram na direção
de Constantinopla e derrotaram um exército bizantino em Manzikert em
1071. Ocuparam a maior parte da Anatólia e conseguiram se apoderar de
Jerusalém em 1078. Atemorizados, os bizantinos pedem ajuda ao papa e aos
governantes cristãos do Ocidente. O papa Gregório VII considera a possibi-
lidade de reunificar a Igreja tendo em vista o cisma de 1054, que separava
ortodoxos do Oriente e católicos do Ocidente. No entanto, fragilizado com o
conflito das Investiduras, nada faz para ajudar.
Novo apelo é feito pelo imperador Aleixo Comeno ao papa Urbano, que
concebe o gesto que foi interpretado pela historiografia oficial como sendo
o estalar do movimento das Cruzadas. Convoca um concílio eclesiástico
na localidade de Clermont-Ferrand (no sul da atual França) em 1095. Nesse
momento há rumores não comprováveis de que os turcos molestavam os
peregrinos, impedindo o livre acesso aos lugares sagrados. Essa notícia
ajuda a criar certo apoio. O imperador, em conflito com o papa, não era um
aliado viável, daí a razão da escolha do local do concílio no reino da França.
O papa declara a decisão plenamente endossada pelos cardeais e bispos pre-
sentes de realizar uma cruzada.
As Cruzadas pretenderam libertar a Terra Santa e tomar posse dos luga-
res sagrados do cristianismo, tal como o Santo Sepulcro, que, desde a der-
rocada dos bizantinos diante dos muçulmanos, estavam sob o controle de
governantes islâmicos. A pregação começou na França e atingiu o Império,
mas em forma de uma cruzada popular. O pregador conhecido como Pedro,
o Eremita, liderou um amplo grupo de elementos, a maioria das camadas
pobres. Muito misticismo e religiosidade popular geraram um grupo inicial

114
que, após saquear e cometer atos de violência no caminho, acabou sendo
dizimado facilmente pelos turcos na Ásia Menor.
Houve também uma cruzada denominada germânica, misturando nobres
decaídos e elementos populares que hostilizavam os judeus, entrando nas
cidades, saqueando e intimando os judeus a se converterem à força. A maio-
ria desses judeus opta pelo autossacrifício, imola sua família e se mata.
Estimam-se cerca de seis mil vítimas judaicas no período da cruzada germâ-
nica. O pretexto desses cruzados era que havia infiéis no seio da cristandade
e se deveria purificar a sociedade antes de combater os outros inimigos da
cruz no Oriente. Os movimentos populares são vistos pelo imperador, pelos
reis e pela nobreza com muita cautela.
A primeira cruzada oficial organizada pela Igreja teve a presença e a
liderança de grandes nobres. Nem o imperador, nem os reis a apoiaram ou
participaram dela. A maior parte era francesa. Cruzaram pelo continente a
Europa e chegaram a Constantinopla (1097). Um choque cultural ocorreu
entre os refinados bizantinos e os grosseiros ocidentais. O imperador, pre-
ocupado, logo os envia para Anatólia. Os cruzados são bem-sucedidos no
aspecto militar. Vencem os turcos e ocupam Antioquia (1097) e Jerusalém
(1099). A tomada de Jerusalém é feita com extrema violência: não são pou-
padas as populações civis, sejam mulheres e crianças, sejam clérigos de
qualquer denominação. Judeus, muçulmanos, cristãos orientais são igual-
mente chacinados sem mercê. O conceito de Paz de Deus apregoado pelos
monges de Cluny não vale aqui.
O autor Amin Malouf, na obra As cruzadas vistas pelos árabes, descreve
as crônicas das cruzadas através do olhar de muçulmanos. Estes definem
os cristãos em dois grupos: os Rum, termo derivado de romanos, que quali-
fica os bizantinos, pois mesmo sendo adversários eram civilizados e éticos;
e os Franj, termo derivado de francos, que equivaleria aos cruzados vindos
do reino franco ou da França, que eram violentos, selvagens e sem nenhuma
ética guerreira. É muito interessante perceber que esse contraste traz percep-
ções diferentes de dois grupos cristãos, ou seja, não classifica a alteridade (o
outro) pela religião apenas, mas pela forma de se relacionar com os demais
seres humanos.
115
Mapa 1 – Europa das Cruzadas
Fonte: p. 80 – Atlas Histórico Escolar – MEC

O sucesso inicial da cruzada gerou a ocupação de espaços e a criação de


quatro estados: o reino latino de Jerusalém, o condado de Edessa, o condado
de Trípoli e o principado de Antioquia. O líder da cruzada, Godofredo de
Bulhão, foi eleito e coroado rei, mas viveu apenas um ano. Toda a estrutura
desses estados era formatada sob as práticas feudo-vassálicas, no modelo
francês. Havia hierarquias feudais, votos de vassalagem e distribuição
de terras aos guerreiros que serviram aos senhores na conquista. O rei de
Jerusalém seria o suserano superior, mas nos reinos havia autonomia. O que
não havia eram servos ligados aos senhores através de juramentos de servi-
dão, pois os camponeses eram na sua maioria muçulmanos locais.

116
Nessa época e no Oriente latino, surgiram as ordens militares religiosas
que se ampliariam e surgiriam em outros locais da Cristandade, tal como na
Península Ibérica. As ordens surgidas no oriente foram várias, mas salienta-
remos duas: os Templários e os Hospitalários. Pretendiam proteger o cami-
nho de peregrinação e os lugares santos, acolher os peregrinos e enfrentar
os infiéis muçulmanos. As ordens crescerão e se fortalecerão tanto nume-
ricamente como financeiramente, perdendo aos poucos os seus objetivos.
A ocupação dos reinos não se manteve e há avanços e retrocessos na
presença cristã no Mediterrâneo oriental. A segunda cruzada fracassa e,
na esteira desta, Jerusalém é tomada por Saladino, o sultão do Egito, após a
derrota cruzada em 1187. A terceira cruzada mobiliza o imperador Frederico
I (Barba Ruiva ou Barbarossa), que morre no trajeto, o rei da França, Felipe II
Augusto, e o rei inglês Ricardo Coração de Leão. Saladino consegue resistir e
faz um acordo de livre circulação de peregrinos aos lugares santos, mas não
perde a soberania da região.
A quarta cruzada é um exemplo de desvio de objetivos e desvirtuamento do
sentido religioso. Mobilizada pelo papa Inocêncio III, é utilizada pelos venezia-
nos como expedição contra Constantinopla, tendo em vista que os cruzados não
tinham como pagar o transporte à Terra Santa e os venezianos haviam perdido o
monopólio comercial dentro do Império Bizantino, que o cedera aos genoveses.
Assim, por duas vezes Constantinopla é tomada e saqueada. Estabelecem-se
dois impérios orientais: o Latino, na prática dominado pelos venezianos, e
o Grego. Isso se deu por meio século, até que foram novamente unificados,
seguindo enfraquecidos e correndo sempre o risco de ocupação pelos turcos.
As demais cruzadas seguiram fracassando. O rei francês Luis IX, deno-
minado São Luis, foi líder de duas expedições cruzadas. Uma é a sétima
(1248-1254), dirigida a Damieta no Egito, que é tomada (1249). Em seguida o
monarca é capturado em Mansurah (1250) e teve que ser trocado pela cidade
antes conquistada, entregue como resgate. A oitava cruzada liderada pelo
mesmo rei Luís IX terminou com a sua morte por disenteria antes de reali-
zar o cerco de Túnis (1270). Os cruzados serão expulsos da última fortaleza
na Terra Santa, em 1291, com a tomada de Acre (Ako), e permanecerão ape-
nas na ilha de Chipre, por mais algum tempo.
117
A obsessão pela cruzada não desapareceu e muitas vezes houve planos
de retomar a região denominada Terra Santa. Em alguns concílios e nas
ideias de muitos pensadores e líderes cristãos aparece um projeto cruza-
dístico. Trata-se de um ideal que demarcou a maneira de pensar e de agir do
cristão europeu e seguiu justificando uma superioridade deste em relação
aos infiéis, não cristãos e não europeus.
Vale ressalvar que houve movimentos e projetos militares de expansão
e de conversão, seja no Báltico, seja na direção leste, que foram denomina-
dos como cruzadas. Por razões de espaço, optamos por enfatizar apenas as
Cruzadas do Oriente e a Reconquista da Península Ibérica, por suas íntimas
relações com a formação da América Latina e com o Brasil.

6.3 A reconquista cristã na Península Ibérica


A ocupação do espaço peninsular se dera pela invasão de 711. Um exército misto
de árabes e de populações berberes islamizadas, provenientes do norte da África,
penetra na Península Ibérica e gradualmente ocupa a maior parte do espaço.
Os cristãos só conseguem manter a autonomia nos espaços localizados
no extremo norte e noroeste, nas Astúrias e na Galícia. Segundo uma tradição
cristã, ocorre uma batalha nessa região entre um exército muçulmano e um
exército cristão liderado por um personagem mítico denominado Pelágio,
em 718, numa localidade denominada Covadonga. Não há evidencias his-
tóricas dessa narrativa, mas a tradição estabeleceu esse momento como o
início de um movimento de reconquista cristã, considerando Pelágio como
o fundador de um reino denominado Astúrias, que se estabeleceu efetiva-
mente alguns anos mais tarde em torno da capital Oviedo.
Inicialmente a ocupação islâmica se dá sob o controle do califado de
Damasco, ocupado pela dinastia omíada. Com a derrubada dessa dinastia,
um príncipe omíada, Abder Rahman I, consegue fugir do massacre da famí-
lia real e busca abrigo inicialmente no norte da África e de maneira defini-
tiva na Hispânia. Desembarca com suas tropas, e uma parte dos funcioná-
rios e do exército local mantém lealdade à dinastia. Cria-se então o emirado
omíada de Córdoba (755), que vai ter dificuldades diversas com oponentes
118
internos (muçulmanos leais a Bagdá, ou seja, à nova dinastia abássida, ou
simplesmente os que não se submetem) e externos.
No governo de Abder Rahman III (912-961) a situação se estabiliza e os
omíadas consolidam o status de califado. Administra um estado pacificado,
rico e organizado. Reforma e amplia a mesquita de Córdoba, que se torna o
maior santuário do Ocidente. Funda e constrói uma capital administrativa
próxima a Córdoba, que se denomina Medina Al-Azhara e é descrita como
um local de rara beleza e organização. O califado é poderoso e os reinos cris-
tãos localizados ao norte do rio Douro são impotentes para enfrentá-lo.
O reino das Astúrias conseguiu pelo menos ocupar partes do territó-
rio norte e nordeste e fundar castelos e pequenas cidades, na fronteira
do rio Douro. Os avanços eram contidos pelo califado que, ciclicamente,
fazia expedições de apresamento de escravos e de botim. A força do cali-
fado se manteve inalterada por cerca de um século. No final desse período
atingiu seu auge com o governo de um regente que se alcunhava Al Mansur
(o Vitorioso) e que saqueou o santuário de Santiago de Compostela. A sua
morte em 1002 apressou o final do Califado omíada que, em meio a lutas
pelo poder, se desfez, deixando a Hispânia muçulmana fragmentada em
múltiplos reinos denominados taifas. As taifas eram desunidas e assim se
tornaram mais fáceis de combater pelos reinos cristãos.
Os reinos cristãos eram vários e se uniam e dividiam muitas vezes. Para
efeitos de simplificação, dividimos em quatro blocos: 1) O reino de Navarra,
incrustado entre a França e a Hispânia, tendo parte de seu território nos
Pirineus. Parte de sua existência englobava outros reinos que foram se
separando. Tem muita relação com a construção do caminho de Santiago
de Compostela. 2) Na região da Catalunha, o condado de Barcelona, tendo
como origem a ocupação franca sob Carlos Magno e seu filho Luis, separou-
-se de seus vínculos franceses e aos poucos se uniu com Aragão. O reino de
Aragão se vinculara a Navarra, mas se tornou autônomo e, através de longos
conflitos, foi lentamente ocupando o vale do rio Ebro, com ajuda de expe-
dições cruzadas. 3) Na região central sobressai-se a marca de Castela, ligada
aos reis de Leão e que mais tarde se tornará um condado e finalmente reino.
O reino de Castela acabará se unindo ao reino de Leão e se tornando a maior
119
força cristã na luta com os reinos muçulmanos. 4) Tardiamente, uma parte
do reino de Leão se separará, inicialmente denominando-se condado portu-
calense e posteriormente reino de Portugal.
O reino de Navarra terá importância na consolidação do caminho de
Santiago, mas no movimento da reconquista ficará isolado entre a Península
Ibérica e o reino da França, não sendo mentor de avanços militares. Os
demais blocos de reinos serão protagonistas de lentos e graduais avanços do
norte para o sul da Península.
Os avanços iniciais foram estimulados pela Igreja, que conclamou exércitos
franceses em expedições que podem ser denominadas cruzadas, visto que algu-
mas tinham bulas papais convocando-as ou apoiando-as. A região central dos
Pirineus e o vale do Ebro eram seu objetivo. A tomada e a perda da fortaleza de
Barbastro em Aragão, em 1064, é uma cruzada que antecede a primeira cruzada
em quase trinta anos. O avanço nessa região foi lento e gradual e só se inten-
sificou no século XIII. O mesmo ocorreu em relação ao litoral mediterrâneo.
Castela e Leão, ora unidos, ora separados, foram mais efetivos na primeira
fase de avanços. Um exemplo é Afonso VI, que tomou e reteve a ex-capital
visigótica Toledo em 1085. Seu avanço para o sul foi contido no ano seguinte,
pela aparição de exércitos provenientes do norte da África. Tais contingen-
tes eram enviados por uma dinastia marroquina que era seguidora de uma
tendência muçulmana radical e que não permitiu desde então que cristãos e
judeus permanecessem sob os domínios do Islã, a menos que se convertes-
sem. Essa postura intolerante exacerbou o conflito e aumentou a belicosidade
e a propaganda, feita pelos dois lados, de que se tratava de uma guerra santa.
Lado a lado temos a figura histórica de El Cid, que lutou ora ao lado de
Afonso VI, ora servindo o emir de Zaragoza (muçulmano), ora, após a morte
deste, atuando como guerreiro independente e tomando a cidade de Valência,
ali criando uma espécie de principado livre. El Cid se tornou uma espécie de
símbolo de guerreiro cristão, mas obviamente não sempre alinhado com sua
identidade religiosa e muito mais disposto a usufruir das benesses da guerra.
Afonso VII (1126-1157) avançou para o sul e ocupou Castela Nova e come-
çou a avançar para Serra Morena. Fundou a ordem monástica militar de
Calatrava e enfrentou uma nova dinastia marroquina, a dos Almoades, que
120
acabou vencendo o rei castelhano em Alarcos (1195). Um pequeno recuo
cristão foi realizado.
Os reis da Península se unem e apelam à cruzada, pregada e preparada
durante seis anos na Itália, Provença e reino de França. Os reinos ibéricos
criam uma coalizão liderada por Castela: Navarra, Leão, Aragão e Portugal se
aliam em um raro consenso diante do perigo almôade. Após a retomada de
Calatrava, os europeus se retiram e permanecem apenas as tropas dos reinos
ibéricos. É travada a batalha decisiva de Las Navas de Tolosa em 1212, que é
um marco definidor. A vitória cristã será decisiva e permitirá avanços gradu-
ais no restante do século XIII de todos os reinos cristãos para o sul.
Na parte oriental da Península já ocorrera na metade do século XII a
união dos reinos de Aragão (que se separa de Navarra) e a Catalunha (antigo
condado de Barcelona) sob uma só dinastia. Estes dois reinos têm carac-
terísticas diferentes: Aragão era mais tradicional e focado no continente;
Catalunha tinha uma predisposição à navegação e ao mar e uma burguesia
ativa e empreendedora. Após a vitória de Las Navas de Tolosa, as duas enti-
dades unidas direcionam as suas energias a um projeto comum: a expulsão
dos muçulmanos do Mediterrâneo ocidental (denominado mar Tirreno). O
rei Jaime I, o Conquistador, se alia a Gênova e Pisa e ataca e conquista as
ilhas Baleares, tomando Maiorca, um centro comercial e marítimo impor-
tante. Em seguida em, 1237, organiza uma expedição e toma Valência, porto
e enclave importante. Seus sucessores seguirão no projeto de expansão e
ocuparão a Sicília em 1282. Aragão se torna uma potência mediterrânea e
afasta boa parte do poder islâmico dessa região.
Na parte central da Península o avanço castelhano-leonês foi reali-
zado por um rei que ascende ao trono unido de Leão e Castela: Fernando
III, depois canonizado. Ele e seu filho e sucessor Afonso X lançar-se-ão
numa campanha militar que gradualmente ocupa Córdoba (1236), Sevilha
(1246) e a maior parte da região central da Andaluzia. Na Andaluzia (sul da
Península) apenas persistem muçulmanos no poder no reino de Granada.
Este submeter-se-á a Castela, na forma de uma vassalagem. Por vezes ainda
haverá conflitos, até que, no final do século XV, os reis católicos Fernando e
Isabel realizem uma campanha e conquistem Granada.
121
Mapa 2 – A Península Ibérica
Na parte ocidental Portugal é o
último reino a aparecer e se conso-
lidar. O rei Afonso VI, o mesmo que
conquistou Toledo em 1086, tinha
ajuda de dois nobres borgonhe-
ses aos quais dotou de territórios e
ofereceu a cada um uma filha para
se casar. Henrique de Borgonha era
um deles e se casou com uma filha
natural (bastarda) do rei Afonso,
de nome Teresa. Recebeu um con-
dado que tinha a cidade do Porto
como centro político: o condado
Portucalense. O filho dessa união,
Afonso Henriques, dissociou-se da
coroa de Castela e combateu caste-
lhanos e muçulmanos vencendo-os
parcialmente. Em 1143 o papa reco-
nheceu a legitimidade de Afonso
Henriques como rei de Portugal.
O jovem monarca aproveitou a
passagem de uma frota cruzada com
alemães, ingleses e flamengos que ia
na direção da Terra Santa no intuito
de se incorporar à Segunda Cruzada.
O rei obteve ajuda deles para captu-
rar a cidade de Lisboa e a transfor-
mou em sua capital.
O avanço do século XIII foi fun-
damental para os objetivos de recon-
quistar a Península Ibérica. Apesar
das divisões de reinos e dos conflitos
Fonte: p. 78, 79 – Atlas Histórico Escolar – MEC

122
entre reinos cristãos, houve certa coesão. Como faltava gente, seja para com-
bater, seja para colonizar, organizaram-se projetos diversos. Um deles foi
a distribuição de terras a colonos que vinham do outro lado dos Pirineus,
do reino da França e de outros reinos. O termo para essa distribuição seria
repartimientos. Em razão da necessidade de colonos os reis aceitavam até
criminosos que eram anistiados, desde que se estabelecessem e permane-
cessem nos espaços fronteiriços.
As terras ao sul do rio Douro foram concedidas a camponeses vindos do
norte: Galícia e Astúrias. Já na região do vale do rio Ebro a carência de mão
de obra fez estimular “francos”, termo genérico para denominar imigrantes
do reino da França, mas também italianos, flamengos, alemães e ingleses,
por exemplo. A rota do caminho de Santiago ajudou a trazer peregrinos que
acabaram ficando de forma definitiva em Aragão e Navarra. Muitas cidades
foram ampliadas com bairros inteiros de “francos”, tendo sido criada nessa
época a expressão zona franca, ou seja, um espaço e um grupo isento par-
cialmente ou completamente de impostos.

123
As abadias serviram também para colonizar. Um exemplo é a abadia cis-
terciense de Alcobaça, em Portugal, fundada em 1153. Muitas mais foram
construídas e utilizadas como forma de ocupação de espaços e colonização
em todos os reinos ibéricos.
Para ocupar e manter militarmente os espaços fronteiriços foram cons-
truídas estradas, fortalezas e cidades muradas para abrigar os colonos.
Foram criadas Ordens Militares religiosas, que cuidavam de muitas forta-
lezas e apoiavam os reis nas batalhas e controle das conquistas. Entre as
ordens podemos citar Aviz (1147), em Portugal apenas; Alcântara (1156) e
Calatrava (1158), em Castela; e Santiago (1160), em Portugal e em Castela.
Essas organizações monástico-militares eram fortemente influenciadas
pela Regra Cisterciense, tal como as ordens dos Templários e Hospitalários,
que vimos antes e que também estavam presentes nos reinos ibéricos.
As novas terras conquistadas não eram necessariamente despovoadas de
muçulmanos e de judeus. Os judeus foram estimulados a participar da colo-
nização e receberam terras e direitos de comerciar e povoar as cidades fron-
teiriças. Já com os muçulmanos houve atitudes variadas. Muitas vezes eram
retirados das cidades, mas permaneciam no campo. A exceção foi Múrcia,
na costa mediterrânea, na qual os muçulmanos permaneceram e foi um
centro de difusão cultural.
O rei Afonso X, o Sábio (1252-1284), rei de Castela e filho do rei Fernando
III ascendeu ao poder num período em que os cristãos estavam em predo-
mínio e era visível que a Península tendia a ser tomada pelos reinos cristãos.
Ele compreendeu que o saber em diversas áreas do conhecimento teria mui-
tos avanços se os sábios muçulmanos fossem cooptados. Criou em Múrcia
uma escola de filosofia, das três religiões monoteístas. Era bem articulado
nas relações com judeus e muçulmanos: fundou em Sevilha uma escola,
para estudo de línguas, e um Studium Generale, uma espécie de universi-
dade. Mandou fazer traduções diversas do árabe para o latim. Traduziu o
Corão, o Talmud, textos relacionados com as duas outras religiões, litera-
tura, poesia, ciências e outros saberes.
Essa interação e trocas culturais foram interpretadas por historiado-
res de maneiras distintas: uns pensam que era um período de tolerância
124
religiosa; outros, de diálogo e de convivência e ricas trocas culturais; outros
ainda consideram que se trata de uma fachada de intercâmbios que per-
mitia aos cristãos estudarem melhor seus “inimigos” para combatê-los.
Alguns historiadores entendem que o modelo social ideal e idealizado da
Espanha seria esse de diálogo e convivência, no qual foi moldada a Espanha
moderna e contemporânea. Num século como o anterior (século XX), em
que se sucederam momentos de democracia e de ditadura, tais discussões
eram muito ideológicas.
Uma Espanha “pura” e plenamente cristã moldada nos campos batalha
da Reconquista refletia um ideal que se adequava ao período da ditadura
franquista: os cristãos medievais venceram os infiéis muçulmanos e ejeta-
ram os judeus deicidas e traidores. Já nos anos 1930 o general Franco, com
ajuda da Igreja, venceu e expulsou os republicanos e seus aliados socialistas,
anarquistas e comunistas, inimigos da Igreja, do bem e da verdade. Paralelos
que levaram a algumas escritas da História: uma exaltando o heroísmo cris-
tão e a luta de 700 anos; outra exaltando o diálogo e a convivência. Ambas
ideológicas e geralmente radicais.

6.4 O renascimento urbano e comercial


As cidades no Império Romano eram desenvolvidas e populosas, até o perí-
odo do Baixo Império. Ocorre então um lento, mas contínuo fluxo de migra-
ções para o campo, pois as cidades já não tinham como propiciar locais
de trabalho, condições de vida e alimentos para os habitantes. As cidades
ficaram esvaziadas no período das invasões e no estabelecimento dos rei-
nos bárbaros. Uma segunda vaga de invasões (nórdicos/vikings, húngaros e
sarracenos/muçulmanos) se sucedeu, mas não alterou muito o panorama.
Esse processo se manteve enquanto houve instabilidade devido às invasões
e o fluxo de crescimento demográfico era baixo. Não havendo excedentes de
população, não ocorreram mudanças sociais notáveis.
No século X começa lentamente uma mudança. Cessam as invasões e não
ocorrem guerras de porte notável. Os avanços agrícolas geram uma melhoria
na produção de alimentos: arado de ferro, rodízio entre três campos em três
125
anos, sendo que um deles descansa a cada ano, por exemplo. Um excedente
de alimentos que impulsiona a venda deles fora dos feudos. Os séculos XI e
XII mostram um crescimento demográfico bastante grande, gerando exce-
dentes populacionais. Isso explica em parte os movimentos das cruzadas e
a reconquista (também denominada cruzadas do ocidente), pois ocorria um
aumento de população. Tal excedente não consegue ser inserido no sistema
feudal, fechado e pouco influenciado pelas oscilações do mercado, por ser
autossuficiente. Os números do crescimento são difíceis de serem averigua-
dos com precisão, mas a arqueologia e a documentação existente permitem
uma avaliação razoável.
O autor Jônatas Batista Neto (1989) compara o crescimento da população
no continente europeu inteiro através de uma estatística possivelmente não
absoluta, mas que fornece uma noção relativa das alterações. Eis a variação:
67 milhões no ano 200, 27 milhões no ano 700, 73 milhões em 1347 (um ano
antes de a Peste Negra se espalhar), e 45 milhões em 1400. Essa estatística
exemplifica que há uma queda demográfica acentuada no período das inva-
sões e um crescimento entre o ano 1000 e a Peste Negra (1348). Após esta
data há um refluxo súbito que se segue por uma lenta e gradual retomada.
Os valores diminuem quando pensamos apenas na Europa ocidental.
Os excedentes populacionais podem ser absorvidos pelo clero. Já que
os clérigos são gradualmente proibidos de casar e devem manter a cas-
tidade, precisam preencher seus quadros com novos membros egres-
sos dos outros estamentos (não usamos o termo classes nesse período)
sociais. Filhos de camponeses que não têm terras para cultivar ou de
artesãos que não têm mercado para trabalhar podem ingressar no clero
secular (tornarem-se padres) ou no regular (aceitarem uma regra e torna-
rem-se monge). No caso dos filhos de nobres que não recebiam herança,
era habitual que o segundo filho homem se tornasse clérigo, mas devido
à condição superior se tornaria um bispo ou um abade de mosteiro ou,
ainda, seria nomeado para um cargo eclesiástico médio ou superior. Isso
aumentava o poder da família, pois nesses cargos havia riqueza e poder.
Essa foi uma das queixas da ordem de Cluny, contra a simonia, na assim
denominada reforma gregoriana.
126
O clero não absorve a maior parte do excedente populacional. Há alguns
fenômenos que ocorrem neste período e devem ser analisados. A primeira
válvula de escape já analisamos no tema da Igreja: bandos de desocupados
começam a guerrear e saquear a Europa. O movimento de Cluny direciona a
sociedade para gerar controles da violência interna (Paz de Deus e Trégua de
Deus). E por outro lado direciona para fora da Cristandade a mesma violên-
cia, sugerindo guerras com intuitos sacralizados contra infiéis. Expandir a
Cristandade, evangelizar e converter os infiéis, mas também, se necessário,
aniquilá-los em Cruzadas e guerras em defesa da fé e da Igreja.
A outra válvula de escape é pacífica e se organiza de maneira espontânea
por alguns setores dos excedentes populacionais marginalizados. Grupos
de pessoas, muitas vezes incentivados por nobres, clérigos ou pelo rei do
país criam ou renovam cidades semiabandonadas e vazias. Um fluxo, por
vezes lento, mas contínuo entre 900 e 1347, vai criando novas cidades ou
reativando algumas já existentes, porém decaídas. Artesãos e comercian-
tes se organizam em agremiações e sociedades, definem regras e condi-
ções para ingresso nelas. Geralmente essas associações eram denominadas
guildas. O crescimento urbano é muito intenso. As cidades voltam a ser
um lugar de geração de riquezas, produtos manufaturados e de distribui-
ção de produtos agrícolas.
As cidades eram inicialmente pertencentes aos reis ou a nobres. Os habi-
tantes delas vão lentamente obtendo direitos e autonomia. Muitas vezes
juntam dinheiro para comprar estes direitos que são outorgados pelos reis e
nobres através de uma carta. Na Península Ibérica na Reconquista, reis fun-
dam cidades e outorgam direitos através de uma carta para atrair popula-
ções e repovoar espaços. Assim as cidades vão se tornando espaços de maior
liberdade e autonomia municipal.
As cidades eram quase todas amuralhadas e mal urbanizadas. Ruas
estreitas, sem esgotos e sem fornecimento público de água. O lixo e os
detritos deixavam um cheiro invariavelmente ruim. As condições sani-
tárias eram precárias e, sendo um espaço pequeno e amuralhado, as pes-
soas viviam apertadas em espaços pequenos. As muralhas continham o
crescimento, mas com a criação de bairros fora das muralhas a cidade se
127
expandia. Inicialmente iam para fora os marginalizados: leprosos, prostitu-
tas, judeus e demais. Com o passar do tempo se criavam bairros externos e
muitas vezes uma segunda muralha que expandia a cidade.
O comércio renascia nessas pequenas e médias cidades. Entre o final
do Império Romano e o ano Mil, o comércio era escasso: só se comercia-
vam gêneros indispensáveis, como metais e sal, ou mão de obra escrava.
Por volta do ano Mil começa a aparecer um novo comércio. Os mentores
iniciais eram as cidades italianas: Veneza, Pisa e Gênova. O caso de Veneza
era mais marcante e pioneiro. Fazia comércio triangular no Mediterrâneo
oriental com apoio bizantino e numa região limítrofe entre a Cristandade e
o Islã. Extraía sal no mar Adriático e negociava escravos, metais e madeira
com Alexandria. Recebia pagamento em metal nobre: ouro do Sudão. Daí
os venezianos rumavam para Constantinopla, ponto final da rota comercial
que vinha do extremo Oriente, obtinham especiarias e seda e retornavam a
Veneza, de onde comerciavam com o resto da Europa.
As cidades de Genova e Pisa se aliaram com Aragão (vimos antes neste
trecho) e liberaram o Mar Tirreno/Mediterrâneo ocidental. Foram ajudados
pela ocupação da Sicília pelos normandos que se converteram ao cristia-
nismo. A isso se somaram os avanços das Cruzadas que fizeram muitas vezes
uso das naves das cidades italianas. O comércio na região do Mediterrâneo
foi intenso até os portugueses descobrirem uma nova rota para as Índias,
contornando a África.
Os normandos (também chamados vikings) tiveram um papel pioneiro
nas navegações fora do Mediterrâneo. Saíram do mar Báltico e ora atacaram,
ora comerciaram, ora faziam as duas coisas. Chegaram à França e obtive-
ram o ducado da Normandia; à Península Ibérica, onde saquearam Sevilha;
conquistaram a Sicília e o sul da Itália; criaram um reino normando eslavo
em Kiev (atual Ucrânia); navegaram em mar aberto no Atlântico norte che-
gando à Islândia, Groelândia e Terra Nova (região do atual Canadá). Assim
sendo, descobriram a América cinco séculos antes de Colombo. A coragem
e a ousadia desses guerreiros desbravadores geraram encontros culturais e
trocas comerciais.

128
Na região de Flandres (atuais Bélgica e Holanda) havia um crescente
artesanato têxtil. Adquiriam a lã inglesa e preparavam tecidos rústicos
que eram vendidos na região e nas cercanias. Uma parte chegava à Itália e
lá era refinada e tingida gerando tecidos de qualidade e roupas de luxo. As
cidades flamengas como Gand, Ypres, Bruges, Lille e Douai eram populo-
sas e repletas de artesãos. E como a região se conecta com o território ale-
mão (Império Germânico) pelos rios Reno e Mosa, tinha a possibilidade de
fazer comércio fluvial. Além disso, pelo mar Báltico atingia Lubeck e dali,
em rotas continentais, até a cidade de Novgorod (atual Rússia). Um imenso
trajeto que gerava na parte norte da Europa um comércio internacional.
Comerciavam-se ali produtos primários como mel, peles, cereais e madeira,
lado a lado com manufaturados.
Esse comércio e a cobiça do poderoso rei dinamarquês fizeram com que
uma liga de cerca de setenta cidades surgisse com o duplo objetivo: con-
trolar e assegurar a paz no mar Báltico e ampliar e desenvolver o comércio
nessa mesma região. Assim, algum tempo depois das cidades italianas, os
alemães e flamengos conseguiram ampliar e expandir o comércio interna-
cional no norte da Europa. E como essas duas regiões interagiam?
Tal conexão foi feita no meio do caminho entre Flandres e Itália, na
região da Champanhe, na qual se criaram as feiras no século XI. Em 1050
já se tem notícias de que em Troyes e Provins, por exemplo, havia fei-
ras comerciais para intercambiar produtos provenientes da Itália e do
Mediterrâneo com produtos originários de Flandres e do Báltico. Vendia-se
de tudo e havia gente de inúmeros locais que aparecia nas feiras. Surgiram
feiras em novos espaços.

129
Mapa 3 – Comércio medieval na Europa Central

Fonte: p. 82 – Atlas Histórico Escolar – MEC

130
O último fenômeno que optamos por descrever é o reaparecimento da
moeda. Moedas de metais nobres haviam desaparecido de circulação no
final do Império Romano do Ocidente. Nobres e reis poderosos as tinham,
mas não as colocavam em circulação. Assim os negócios eram dificultados,
pois sem moedas podiam-se efetuar apenas trocas de mercadorias. Cunhar
moedas era um direito do imperador ou de reis. Isso também dificultava.
A ausência de ouro fez com que se privilegiasse a prata, já que havia jazi-
das deste metal na Europa, que logo foram exploradas, e se começou a cunhar
moedas de prata. Gradualmente apareceram moedas de ouro, fazendo uso de
ouro africano, do Sudão ou do Senegal, que vinha através de trocas comerciais
dos venezianos ou florentinos. Surge o florim de ouro emitido por Florença
e depois o ducado de ouro cunhado pelos venezianos. O florim se tornou um
padrão por algum tempo, ajudando nos negócios e nos pagamentos.
A diversidade de tipos de moedas era um entrave para o comércio. Surge
a função de especialista em tipos de moedas que as trocava ou adquiria.
Havendo em circulação moedas múltiplas, o conhecimento das equivalên-
cias era uma função vital e antecipava os bancos. Estes não tardam a sur-
gir: os Peruzzi no século XIV e depois os Médici no XV predominaram em
Florença e estenderam seus negócios por toda Europa. No século XVI os
Fuggers no Império eram muito poderosos e riquíssimos.
A Igreja via com muito receio o comércio e ainda mais os juros bancá-
rios, sem os quais não haveria negócios. Inicialmente os judeus eram os
únicos que faziam empréstimos a juros. Tal negócio era chamado de usura.
O prestamista judeu era considerado um aliado do Diabo, visto que juros
eram, na percepção da Igreja, um pecado. Tomás de Aquino, célebre teólogo
e filósofo escolástico, dizia que “dinheiro não procria dinheiro” (em latim:
munus non parit munus), ou seja, o tempo a Deus pertence e não se pode
ganhar dinheiro lucrando com um dom que é divino.
O comércio e o artesanato geraram avanços de certos setores sociais.
Servos ejetados dos feudos puderam ter novas oportunidades e criar peque-
nos ateliers de trabalho nas novas cidades. Com o passar do tempo, os que
chegaram antes regulamentaram as profissões e criaram uma espécie de
sindicato, denominado guilda, que seria uma associação de comerciantes
131
ou artesãos, em cada um dos setores produtivos: tecelões, alfaiates, sapa-
teiros, marceneiros, vidraceiros, ferreiros e muitos outros. Os comerciantes
internacionais e locais também se especializaram e ocuparam os espaços,
criando uma espécie de reserva de mercado. Os associados nas guildas se
autodenominavam mestres (especialistas numa atividade) e criaram mui-
tas dificuldades para que novos artesãos pudessem ingressar nelas. Criaram
formas de serem sucedidos exclusivamente por filhos ou aparentados.
Os que vieram depois da consolidação das guildas eram obrigados a se
ofertar como mão de obra barata e servirem como aprendizes, aos mestres.
Isso gerou nas cidades tensões sociais e conflitos em certos momentos. Uma
divisão social hierarquizava grupos de habitantes nas cidades, que original-
mente eram um espaço de liberdade e poucas diferenças sociais. O governo
das cidades passa a ser controlado pelos mais ricos e poderosos, para evitar
a alteração das regras sociais e econômicas e manter sua riqueza e poder.

6.5 A Peste Negra e a crise do sistema


Os séculos XII e XIII foram de expansão tanto demográfica, urbana e comercial
quanto militar da Cristandade ocidental. A expansão foi geralmente desorde-
nada e gerou efeitos em médio prazo. Muitas florestas foram desbastadas para
abrir novos campos de cultivo e ampliar a produção de alimentos. Como hoje
sabemos, tais ações podem gerar desequilíbrio da natureza e efeitos danosos
ao clima. O século XIV apresentou as consequências dessa expansão.
No começo desse século houve uma interrupção na criação de novos
arroteamentos, ou seja, de novos campos de cultivo. A população crescia
em ritmo elevado e não se planejou um aumento na produção de alimentos.
Juntou-se a isso um período de chuvas violentas que iniciaram entre 1315 e
1317. As colheitas foram afetadas e começou a ocorrer fome. Por consequên-
cia da fome e da má alimentação, vieram a ocorrer epidemias. Ainda eram
regionais e de porte pequeno, mas sua continuidade através da primeira
metade do século XIV fez com que o crescimento demográfico cessasse e
a mortandade se intensificasse. As condições dos camponeses em várias
regiões eram de relativa desnutrição e debilidade. O cenário piorou com a
132
eclosão da Guerra dos Cem Anos (1337-1453) entre os reinos de França e da
Inglaterra. Adiante comentaremos brevemente esse conflito.
O autor Jônatas Batista Neto (1989) explica que a peste se trata de uma
doença infecciosa e se propaga através de ratos negros e pulgões. Apresenta
três aspectos principais no ser humano: a peste bubônica, quando aparecem
nos contaminados os bubões, ou seja, inchaços de cor escura, geralmente na
virilha e/ou nas axilas; a septicêmica, em que o bacilo passa rapidamente para
corrente sanguínea; e a pulmonar, que é mais comum nos países nórdicos e
no inverno e se manifesta como uma pneumonia.
As pestes são descritas desde que se escreve história, por exemplo, a peste
de Atenas na guerra com Esparta, descrita por Tucídides, historiador grego.
Há descrições mais antigas em todo o mundo antigo. Doenças contagiosas se
espalham mais em sociedades urbanas nas quais haja circulação de pessoas.
No contexto da Cristandade ocidental as condições de crescimento e urba-
nização eram propícias à expansão rápida e violenta da Peste. A epidemia do
século XIV começou na China entre 1333 e 1334. Comerciantes que traziam a
seda e as especiarias ao Ocidente também trouxeram a peste até Caffa (1346),
uma colônia genovesa no Mar Negro. Daí foi levada para Constantinopla.
Navios de comerciantes trouxeram a doença à Itália: Messina, Gênova, Pisa
e Veneza. Em seguida aparece em Florença, quando é descrita por Boccaccio.
Daí se espalhou por todo o continente. Chegou à Inglaterra, aos países nór-
dicos, e daí até a Islândia e a Groelândia. Por ter sido uma epidemia em
alguns continentes, podemos considerá-la uma pandemia.
A peste cessou provisoriamente, mas seguiu ciclicamente assolando
a Europa de maneira mais branda, geralmente regionalmente, durante os
séculos XVI e XVII. Só arrefeceu no século XVIII, pois se adotaram medidas
de higiene, saneamento e outras políticas públicas.
A culpa da peste foi explicada por parte do clero como sendo resultado
do pecado da sociedade. As minorias foram acusadas de envenenamento de
poços, em alguns lugares, tendo havido massacres de judeus, muçulmanos
(na Península Ibérica) e leprosos. O nível populacional atingiu seu patamar
mais baixo em 1440. A recuperação só se deu partir de 1470, sendo assim um
século de desequilíbrio e retração.
133
6.6 Guerra dos Cem Anos
Outro aspecto da crise foi uma prolongada guerra entre os reinos da França
e da Inglaterra que durou, com intervalos e tréguas temporárias, por mais
de cem anos (1337-1453). A Inglaterra tinha sido conquistada pelo duque
da Normandia, vassalo do rei da França, em 1066. Desde então o rei inglês
era vassalo do rei da França e mantinha algum tipo de posse no continente.
Após acertos, o último território francês sob domínio da coroa inglesa era
a Gasconha. As lealdades e as jurisdições eram muito confusas e geravam
conflito. Outra questão era a pirataria. O tema de maior importância era
Flandres (atual Bélgica e Holanda), região muito desenvolvida e vassala do
reino francês, mas que comerciava intensamente com a Inglaterra, fornece-
dora da lã para os manufaturados flamengos. Os interesses dos dois reinos
eram conflitantes em Flandres.
O motivo oficial da guerra foi a sucessão do trono francês: morre o rei
Carlos IV, em 1328, e não há sucessores em linha masculina na dinastia dos
Capetos, que governava a França desde 987. Assumiu o trono um primo do
monarca falecido, Filipe VI (1328-1350), que cria a dinastia dos Valois. O rei
inglês Eduardo III, que ainda estava na menoridade, era filho de Eduardo
II (1307-1327), casado com Isabel, irmã do último rei Capeto. Ambos esta-
vam no mesmo nível de parentesco. Isso motivou que, alguns anos depois,
Eduardo III denunciasse a coroação.
A guerra acaba sendo declarada e terá duas vitórias inglesas, mesmo a
Inglaterra sendo menos povoada que a França: Crècy (1346), Poitiers (1356),
na qual o rei francês cai prisioneiro. A derrota fragorosa deixa o reino da
França enfraquecido e submetido pelo tratado de Bretigny (1360). Os fran-
ceses se recuperam com Carlos V (1364-1380) e seu comandante Bertrand
Duguesclin, evitando grandes batalhas e tomando posições, recuperando a
iniciativa e muitas terras perdidas. Com a morte de diversos protagonistas,
assina-se novo tratado em 1396.
Uma nova rodada de batalhas acontece no começo do século XV: entram
novos elementos, como os borgonheses, que se aliam contra o rei francês e
se tornam uma terceira força. Os franceses são fragorosamente derrotados
134
pelos ingleses aliados aos borgonheses na batalha de Azincourt (1415). O
poder dos borgonheses cresce e o do rei da França decai. O herdeiro do trono
francês, intitulado Delfim era Carlos, depois Carlos VII. O reino estava divi-
dido em três partes: a parte norte sob os ingleses, incluída Paris; a Champanhe
estava ocupada pelos borgonheses; o rei da França dominava o vale do Loire
e o sul, menos a Gasconha, que seguia com os ingleses. Enfraquecido, o del-
fim Carlos só consegue sobreviver e se tornar rei devido à aparição de Joana
D’Arc, que propicia a sua coroação e posterior vitória, mesmo tendo sido
capturada e sentenciada por ingleses e borgonheses à fogueira, sendo quei-
mada em Ruão (Rouen) em 1431. Carlos VII não se esforça para salvá-la, mas
consegue se fortalecer e vencer a guerra lentamente, tomando praças fortes.
Faz um tratado em separado com os borgonheses, que haviam se desenten-
dido com os ingleses: tratado de Arras (1435). Os avanços franceses seguem
entre 1435 e 1453. Aos ingleses sobrará apenas o porto de Calais, que a França
recuperará somente em 1558.
A Guerra dos Cem Anos alterou os modelos de guerra. Aparecem técnicas
novas: os longos arcos usados pelos ingleses. A maior novidade foi a arti-
lharia e as armas de fogo, que foram evoluindo durante os anos da guerra
e geraram alterações na cavalaria pesada e nas suas armaduras. O reino da
França cria um exército nacional e passa a não depender apenas da nobreza.

6.7 A expansão marítima e colonial portuguesa


Em Portugal, no século XV, amplia-se um antigo projeto marítimo que expande
a presença portuguesa no Atlântico norte. As ilhas atlânticas como Açores,
Madeira, Canárias (depois perdidas para os espanhóis) e Cabo Verde são ocu-
padas e colonizadas. Portugal começa a criar feitorias nas costas africanas,
acaba encontrando a passagem marítima para as Índias e descobrindo o Brasil.
Essa temática, no entanto, deixaremos para outros livros e disciplinas.

135
Considerações finais
speramos que este estudo sintetizado do período, assim
denominado medieval, possa servir como uma reflexão ini-
cial sobre as percepções, saberes e a cultura de uma era de
construção de inúmeros conhecimentos, técnicas e cultura
que embasam a contemporaneidade.
Era das Trevas? Vemos em nosso cotidiano conflitos políticos, religiosos,
étnicos de todos os tipos e formas que podem ser comparados, com o devido
distanciamento, para evitar anacronismos, com crenças e preconceitos do
medievo. As trevas estão no nosso cotidiano: na violência urbana, nas guer-
ras que massacram populações civis aos milhares e por vezes milhões de
seres humanos, na fome e na miséria que grassa no “terceiro mundo”.
A tendência a qualificar o Outro como um ser negativo e valorizar gru-
pos sociais inteiros como inferiores já foi bastante estudada. De uma forma
geral, tendemos a hipervalorizar certos períodos da História como sendo
melhores e superiores e a desvalorizar outros com estereótipos e preconcei-
tos, considerando-os como uma era de Trevas.
O medievo legou muitos saberes, arte e cultura, técnicas que depois
foram aprimoradas e atingiram um grau de complexidade elevado. Mas

136
tudo começou com os andares inferiores da História e chegou aos andares
superiores graças ao esforço criativo dos operários que ergueram a base.
Apesar da nostalgia da era clássica que legou a cultura greco-romana, esta
só chegou a nós através da transmissão parcial pelos monges copistas, outra
pelos tradutores, também pela reelaboração das leis romanas e da filosofia
nas universidades medievais, pela habilidade dos artesãos que ergueram as
catedrais românicas e góticas, pelos comerciantes que cruzaram os mares
e aproximaram civilizações distantes e pelos exploradores que uniram a
Europa com os demais continentes.
Reflitam sobre os usos de termos: bárbaros diante de civilizados; cris-
tãos diante de muçulmanos; a civilização diante da barbárie; o bem diante
do mal; a verdade diante do erro e do desvio da fé. Todas essas discussões
e essas ponderações – que buscam a plena verdade e a excelência de certos
grupos, povos e raças diante de outros inferiores e falsos – estão no nosso
cotidiano. Estudar o medievo pode e deve servir para refletir sobre a nossa
realidade, ajudar no diálogo com a alteridade, a diversidade e a convivência
entre seres humanos diferentes. Esperamos que este estudo tenha ajudado
a refletir sobre um período rico em saberes, experiências e trocas culturais.

137
Referências
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FRANCO Jr., Hilário. Idade média: o nascimento do ocidente. São Paulo:


Brasiliense, 1990.

_________________ Feudalismo: uma sociedade, religiosa, guerreira e campo-


nesa. São Paulo: Moderna, 1999.

HEERS, Jacques. História medieval. São Paulo: DIFEL, 1974.

LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na idade média. 4. ed., São Paulo:


Brasiliense, 1995

LOYN, Henry R. Dicionário da idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

MALOUF, Amin. As cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo: Brasiliense, 1989.

MELERO MONEO, Marisa. O melhor da arte gótica 1 e 2. Lisboa: G & Z edições, s.d.

NOGUEIRA, Carlos Roberto. Ruptura e Permanência: A Cristianização dos Povos


Bárbaros. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n.29, p. 47-56, 1995.

ULLMANN, Walter. Law and society in the Middle Ages: an introduction to the
sources of medieval political ideas. Cambridge: Cambridge University, 2008.

138
ISBN 978-85-63765-09-3

www.neaad.ufes.br
(27) 4009 2208

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