Dici - Insuficiência Linguaportugueza

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 182

AKFONSO DE E.

TAUNAY

INSÜFFIC1EINCIA E DEFICIÊNCIA
DOS GRANDES

DICCIONARIOS PORTUGUEZES

TOü HS
ARRAULT E C

1928

<
«^ c^w t^yU. ^^, ^ y*~ ~f~"

INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

DOS GRANDES

DICCIONARIOS PORTUGUEZES
VOLUMES PUBLICADOS PELO AUTOR
FICÇÃO
Leonor de Ávila, r o m a n c e brasileiro seiscentista.
LINGÜÍSTICA.
Léxico de termos technicos e scientificos.
Léxico de lacunas.
Vocabulário de omissões.
Reparos ao Novo Diccionario de Cândido de Figueiredo
A terminologia scientifica em geral e a deficiência dos grandes dic-
cionarios portuguezes.
Collectanea de falhas.
HISTORIA DO BRASIL
Grandes vultos da Independência Brasileira.
Na Bahia colonial.
Rio de Janeiro de ant-.nho.
Sob El Rey Nosso Senhor.
No Brasil imperial.
A' gloria dos Andradas.
Da Reino ao Império.
Viagens e viajantes.
HISTORIA DE S. PAULO
Na era das bandeiras.
f

A gloria das Monções.


Historia Geral das Bandeiras paulistas, 1" t o m o (até 16281.
Historia Geral das Bandeiras paulistas, 2- t o m o (até 1641).
Historia Geral das Bandeiras paulistas. S" t o m o (até 1GJ1).
Um grandt bandeirante: Bartholomeu Paes de Abreu.
Collectanea de documentos da antiga cartographia paulista.
Ensaio de Carta Geral das Bandeiras Paulistas.
Estudos de historia colonial paulista,
Antigos aspectos paulistas.
HISTORIA DA CIDADE DE S. PAULO
S. Paulo nos primeiros annos.
S. Paulo no século XVI.
Piratininga.
Non ducor duco.
Historia seiscentista da villa de S. Paulo, 1° t o m o (1601-1651).
Historia seiscentista ea villa de S. Paulo, 2° tomo (1651-166i>).
Historia antiga da Abbadia de S. Paulo (1598-1772).
HISTORIA DA LITTERATURA E DA ARTE NO BRASIL
A missão artística de 1816.
Nicolau A. Taunay, Documentos sobre sua vida e sua obra.
Escriptitrrs coloniaes.
Pedro Taques e seu tempo.
ASSUMPTOS SCIEHTIFICOS
Ensaio de bibliographia referente ao Brasil e ás sciencias nalurae»
(em collaboração) (/* parte). Litteratura estrangeira.
Ensaio de bibliographia referente ao Brasil e ás sciencias nataraet
{IP parte). Litteratura estrangeira.
TRADLCCÕES
A Retirada da Laguna.
N o PRELO E EM PREPARAÇÃO
Historia Geral das Bandeiras Paulistas, i' t o m o .
Historia seiscentista da villa de S. Pauto, 3 ' tomo.
Na Bahia de D. João VI.

O depositário geral das obras do A u t o r á a C o m p a n h i a de


M e l h o r a m e n t o s de Saõ Paulo, Rua Libero Badaró 86, Saõ Paulo,
AFFONSO DE E. TAUNAY

INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA
DOS GRANDES

DICCIONARIOS PORTUGUEZES
— Polemica com o Snr. Cândido de Figueiredo —

TOURS
ARRAULT E C •

1928
A ANSA, PAULO, AUGUSTO e CLARISSE,

LEMBRANÇA MUITO GRATA Á SUA

AFFE1ÇÃO DE FILHOS OPTIMOS.


A GUISA DE PREFACIO

Abundantes reparos por mim feitos, em 1923, na


imprensa fluminense e paulista á deficiência scien-
tifica dos grandes diccionarios portuguezes e a pro-
pósito da terceira edição a de 1923 do Novo Dic-
cionario de Cândido de Figueiredo levaram o Ilustre
philologo a responder-me pela imprensa e depois
pelos seus Combates sem sangue, livro editado em
princípios de 1925. Mostrou-se muito agastado na
sua contestação mas não assumiu aquelle tom de
irritação violenta que era tanto seu e ainda neste
mesmo volume o levou a dizer tão duras (e injustas)
cousas a outro de seus reparadores.
Pouco depois fallecia o douto philologo e poly-
grapho que tão elevados serviços prestou á lingua
portugueza. Era, meu intento reunir em liviO os
meus reparos assaz largamente divulgados pelo
publico brasileiro. Receiava porem faltar á genero-
sidade para com a memória do adversário recém
desapparecido. Mas ao mesmo tempo me lembrei
de que se freqüentes vezes falara em tom irônico
nem por isso deixara sempre de proclamar o meu
grande apreço pelos méritos do illustre contendor. E
VIII A GUISA D E PREFACIO

felizmente jamais o destratara como jamais aliás


estou certo que o faria, tão avesso me supponho a
processos a que sou visceralmente adverso.
E como se trata agora da reimpressão do que foi
publicado na imprensa, bastante tempo antes do falle-
cimento do douto diccionarista, entendo justificar
o reapparecimento dos meus reparos, desvaliosos
mas sinceros, com a possibilidade de servirem para
possível melhoria, não só da próxima e imminente
apparição da quarta edição do Novo Diccionario —
obra cheia de elevados méritos, de summa utilidade
e que constantemente manuseio — como a novas
tiragens de outros grandes léxicos de fiossa língua.
Dia a dia cresce a importância da terminologia
scientifica e mais se avoluma o seu lugar na lingua-
gem vulgar. Ocioso é recordal-o se não até accaciano.
Palavras que ha pouco só viviam aos lábios de scien-
tistas ou especialistas são hoje correntes até em ro-
das de gente pouco instruída.
E tal o império do prestigio destes vocábulos que,
em todas as grandes línguas do Universo, abrem-se-
lhes as paginas dos grandes diccionaristas de par
em par. E as edições successivas dos grandes léxi-
cos, de renome mundial, apressam-se em registar
os avolumamentos dessa terminologia cada vez mais
extensa e mais precisa.
Com o portuguez tal ainda não se deu de modo que
corresponda ás exigências das civilisações hodier-
nas e ao estado actual da Sciencia.
Parece muito longe ainda o dia em que ha de surgir
o Webster do mundo lusitano.
Já comtudo uma tentativa séria e digna de todo
o applauso houve: a publicação da Encyclopedia por-
tugueza illustrada, redigida pelo Dr. Maximiano de
A GUISA D E PREFACIO IX

Lemos cuja única edição, de princípios do século xx


está hoje antiquada e muito deficiente. Para ella
foi, aliás, immenso aproveitado o excellente Nouveau
Larousse Illustré lembremol-o de passagem, por amor
á justiça.
Nella se averba comtudo, o melhor, ou antes o
único vocabulário scientifico avultado da lingua por-
tugueza, e vocabulário revestido de autoridade, o
que é essencial. Muito longe, porém, está de poder
ser comparado a um diccionario do typo Webster.
E' em todo o caso excellente fonte informativa. Para
nós brasileiros falta-lhe e muito a technologia vulgar
aliás justificadamente ausente de suas paginas pois
é um léxico portuguez e a terminologia portugueza
e brasileira diflerem immenso hoje.
Quanto aos diccionarios correntes da lingua ao
alcance do publico o que nelles se nota é a deficiên-
cia desanimadora do vocabulário scientifico e as nu-
merosas erronias de suas definições, obsoletas em
geral.
Tomemos por exemplo Caldas Aulete. E' o seu
diccionario primoroso quanto á parte vernacular.
Mas quantas dezenas de milhares de lacunas vulgares
ha a 'se lhe inculcar!
E como é pobre em matéria de technologia scienti-
fica e frouxo senão deplorável em exacção definitoria!
Os demais léxicos F. Adolpho Coelho, João de
Deus, Seguier para só falarmos dos mais modernos
quasi que se limitam a ser diccionarios da linguagem
vulgar. Todos deficientissimbs em relação aos brasi-
leirismos, aliás recordemol-o..
Entendeu o Snr. Cândido de Figueiredo, realizar
em matéria de diccionario lusitano, um ensaio no
gênero Webster, fazendo notar quanto, até então,
X A GUISA D E PREFACIO

fora escassíssimo o inventario do portuguez, no que


tinha carradas de razão.
Inventariando como fez os recursos de nossa lingua
prestou pois relevantes, relevantissimos serviços.
Já a primeira edição do seu Novo Diccionario
trouxe enorme vocabulário, a mais, sobre os dos ou-
tros mais reputados léxicos, como os de Aulete, Fran-
cisco Adoplho Coelho, Moraes, etc.
Avolumou-se immenso este inventario com a se-
gunda e a terceira edições da prestante obra.
Affirma o seu autor ter catalogado 137.000 vocá-
bulos.
E' muito, é enorme e isto sobremodo lhe honra os
esforços.
Mas, ars longa! infelizmente está o Novo Diccio-
nario muito longe, ainda, de ser o léxico exigido pelo
estado cultural presente da lingua portugueza, hole
patrimônio de uns quarenta milhões de indivíduos.
E isto por muitos motivos sérios.
Primeiro pela deficiência em matéria de brasilei-
rismos e neologismos de todo o gênero nascidos da
plastificação litteraria e jornalística do portuguez no
Brasil e em Portugal, do colossal avolumamento da
technologia industrial e da scientifica, da creação
de enormes nomenclaturas derivadas de inventos
modernos, etc.
Ha cem mil palavras vulgares, correntes no Brasil
que o Snr. Cândido de Figueiredo desconhece. O
Rev. Pe. Carlos Teschauer nos seus léxicos e eu nos
três que publiquei em 1909, 1914 e 1924 Léxico de
termos technicos e scientificos, Léxico de lacunas e
Vocabulário de omissões arrolámos uns vinte mi]
vocábulos, lacunas do Novo Diccionario! Algum
esforço mais teríamos dobrado a colheita.
A GUISA DE PREFACIO XI

Desafiado por um sceptico a descobrir três lacu-


nas nas edições de três grandes jornaes brasileiros
publicados num mesmo dia, demonstrei em publico
que as tiragens de dous grandes jornaes paulistas, e
um carioca, de 17 de fevereiro de 1924, tinham 106
lacunas do diccionario do Sr. Cândido de Figuei-
redo!
Além da sua extrema lacunosidade o léxico figuei-
rediano resente-se da falta de cultura geral scienti-
fica do seu autor.
Tivesse-a o Snr. Cândido de Figueiredo á altura
da complexa factura que um léxico das dimensões
e da importância do seu exigem e não daria provas
de atrazo, recolhendo innumerás vezes, definições
erradíssimas, noções de uma sciencia obsoleta, de-
mostrando ausência de methodisação dos assumptos
scientificos e, peior, abonando significados com a
autoridade nulla, até de noticias da imprensa diária!
ou haurindo informações em mananciaes turvos,
como quando esteia um ror de definições chimicas
com as opiniões de uma Technologia rural!
Além dos numerosíssimos brasüeirismos deturpa-
dos, falhos, insufficientes e até disparatados ha no
léxico figueiredeano numerosas heresias scientificas.
Já em matéria de botânica o demonstrou do modo
mais vehemente quanto é errado o Novo Diccionario,
o eminente conhecedor da sciencia florestal, e pre-
zado amigo, Dr. Edmundo Navarro de Andrade,
em magistraes estudos que a Revista do Brasil pu-
blicou.
Não menos suggestivos e corroboradores do que
avanço os reparos do Sr. Rodolpho von Ihering,
nos Contos de um naturalista, quanto á zoologia.
Taes, infelizmente, o intenso amor próprio do douto
XII A GUISA DE PREFACIO

diccionarista e a sua confiança em si que se deixou


ás vezes arrastar a verdadeiros excessos. Só assim
se explica a sua aversão por uma obra cuja consulta
immenso lhe seria proveitosa : exactamente essa
mesma Encyclopedia portugueza illustrada redigida
por seu eminente compatriota Maximiano de Le-
mos a que me referi. A seu respeito guarda o mais
rigoroso silencio. Como que jamais soube que a hou-
vessem publicado. Cala-lhe até o titulo na resenha
extensa das fontes que indica haver consultado!
Preferiu á chimica deste seguro mentor a de uma
Technologia rural qualquer...
Não é a presumpção que me leva a assim expri-
mir-me. Bem sei o que são os meus recursos, mas
tomei a precaução de cotejar as definições e os
ensinamentos do Novo Diccionario com os dessas
autoridades, universalmente acatadas, dos grandes
léxicos encyclopedicos e dos maiores scientistas con-
temporâneos.
O meu único trabalho foi fazer esta approxima-
ção leal e honestamente.
Assim como se apresenta a edição do Novo Diccio-
nario, em 1923, é digna da mais severa censura e
da maior deconfiança.
Receiando, acima de tudo, infringir o preceito
salutar do ne sutor peço aos benevolos leitores não
se esqueçam de que não sou quem emenda ao Novo
Diccionario e sim apenas o porta voz das mais aba-
lisadas autoridades das grandes encyclopedias con-
temporâneas e das maiores línguas Assim queiram
dar-se, uma vez ou outra, ao trabalho de cotejar as
minhas affirmativas com as das fontes invocadas.
Appareceu-nos, em fins de 1925, uma edição do
Diccionario Contemporâneo de Caldas Aulete, ancio-
A GUISA DE PREFACIO XIII

samente esperada no Brasil pois desde muito se exgo-


tara a primeira tiragem do optimo léxico cujos vo-
lumes attingiam, entre nós, ultimamente, enorme
preço.
Não ha quem não tenha o léxico de Santos Va-
lente — Caldas Aulete como obra da mais elevada e
justa reputação.
Compenetraram-se os seus autores da perfeita
justeza da observação do pensador francez : un dic-
tionnaire sans exemples est un squelette e fizeram com
que os seus verbetes vocabulares surgissem acom-
panhados da mais apropriada e bem escolhida exem-
plificação.
Dahi o grande favor que do publico mereceu e,
desde muito, provocou o esgotamento de sua pri-
meira tiragem.
A' luz do critério moderno, e da cultura actual,
as definições dos termos scientificos da primeira edi-
ção do diccionario de Caldas são freqüentemente
desvaliosas senão muitas vezes errôneas e até em
certas casos ridículas.
No interessante e vivaz prefacio desta primeira
edição metteu Caldas Aulete á bulha os diccionaris-
tas seus velhos antecessores.
Ridiculisa Bluteau e suas numerosas « inepcias »,
verbera a ignorância de Moraes a inserir as noções
da mais atrazada e antiga sciencia, a continua inca-
pacidade definitoria de Roquette, « a ignorância da
idéia e o burlesco da forma » de Lacerda em matéria
de technologia medica, etc. E realmente, cabe-lhe
muita razão, pois nos léxicos censurados se nos de-
param verbetes e verbetes dignos do bestunto do
famoso Bacellar.
Ha no emtanto no seu diccionario numerosas
XIV A GUISA D E PREFACIO

definições que hoje tanto valem como as que ver-


bera aos velhos diccionaristas.
E' o que se dá em matéria de zoologia, physica
e chimica, mineral e orgânica, por exemplo. Inculca
noções que hoje não são mais exactas, mas forçoso
é reconhecer que a sua superioridade definitoria em
1881 sobre a de Cândido de Figueiredo em 1923 é
simplesmente positiva.
No grande léxico figueiredeano abundam os dis-
lates e são freqüentes até as parvoices. Assim nos
viesse porem a reedição e ampliação do Diccionario
Contemporâneo digna do seu grande valor vernacular
e abrigando larga technologia scientifica modernis-
sima e rigorosamente definida! Assim também hou-
vesse esta nova edição recolhido a mais farta messe
de brasileirismos e demais lusitanismos extra euro-
peus podendo portanto aspirar a uma situação de
Webster de toda a gente de lingua lusa que « cerca
em derredor este rotundo Globo e sua superfície tam
limada ».
Infelizmente tal não se deu á altura das geraes
esperanças e desejos. No rápido folheido que me foi
dado fazer desta segunda tiragem de Aulete avolu-
mado por Silva Bastos já infelizmente verifiquei
muitos motivos sérios de desgosto e decepção: Quer
me parecer que é obra freqüentemente victima do
atabalhoamento dos seus confeccionadores.
Nem tem firmeza de orthographia pois ora escre-
ved Brasil com s, ora com z. Continua o diccionario
a affirmar ao publico cousas que eram verdadeiras
em 1881 e são falsas em 1925, só porque foram con-
servadas, na integra, os verbetes de Caldas Aulete,
ha quasi meio século.
E' realmente pena que não tenha sido melhor cui-
A GUISA DE PREFACIO XV

dada esta tiragem de tão pfestante diccionario que


certamente demandou grandes despezas para a sua
confecção.
Precisa o portuguez, e quanto antes, ter um dic-
cionario no gênero do de Webster. Precisa de um
Webster. A existência de um léxico, como o famoso
vocabulário monumental, de que pode dispor o
inglez, corresponde ao fornecimento de elementos
culturaes de inapreciavel valor e de que imperiosa-
mente temos necessidade.
Res non verba, dirá a sorrir o leitor a quem não
seja extranho o jardim das flores latinas e das phrases
feitas corriqueiras.
O problema da elaboração do Webster portuguez
ou antes do Webster brasileiro, a meu ver se reduz a
mera questão de dinheiro. Verdade é que deman-
dará além do enorme esforço dos diccionaristas
(que a um homem só não será possível levar a cabo
empreza de tamanho vulto) fortíssimas despezas,
muitas e muitas centenas de contos de reis se se
ptetender realisar obra que mereça applausos e es-
teja ao nivel da cultura moderna.
O Sr. Professor Jeronymo de Azevedo, digno di-
rector da Bibliotheca do Estado de S. Paulo, poz
mãos a obra a uma empreza de largo fôlego preten-
dendo publicar volumosissimo « Repertório Geral »
da lingua portugueza. Deste tentamen dois volumes
se originaram muito vultuosos, e valiosos, e no em-
tanto encerrando apenas pequeno numero dos vocá-
bulos em A. A superveniencia da guerra mundial e
as desastrosas conseqüências econômicas delia de-
correntes nos primeiros annos da conflagração fize-
ram com que a tão prestante tentativa fracassasse.
Parece-nos comtudo que o plano traçado pelo
XVI A GUISA D E PREFACIO

prof. Azevedo não era dos mais felizes nem corres-


ponderia aos reclamos da opinião publica como um
diccionario do typo Webster. E realmente incorpo-
rou elle ao seu repertório as contribuições integraes
de grande numero de velhos diccionarios portuguezes
o que em numerosos casos provocava demasias e
redundâncias e ao mesmo tempo incluiu-lhe ainda
numerosos artigos extranhos á philologia sobre his-
toria, biographia, geographia, etc.
Dahi a enorme extensão tomada pelos difTerentes
verbetes articulares, freqüentemente.
INSÜPPICIENCIÁ E DEFICIÊNCIA
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGEZES

Revista do vocabulário zoológico gymnasial do Dic-


cionario de Figueiredo. Lacunas e mais lacunas No-
menclatura dos grupos zoológicos inferiores. Au-
sências em barda de termos vulgares. A cellula
animal.

Muito embora se jacte o Sr. Cândido de Figueiredo


de haver tido insano trabalho para no seu Novo
Diccionario incluir tudo quanto de mais moderno ha,
em matéria de technologia scientifica, apresenta-se
a sua aliás muito preslante obra, atrazada e ana-
chronica por deficiência de conhecimentos e insuffi-
ciencia definitoria dos autores antigos que foram
« os espiritos-santos » do douto diccionarista.
Tomemos por exemplo, e muito summariamente,
a zoologia, mas ao nivel do que é exigido dos nossos
gymnasistas em matéria de Historia Natural, que
acima não pretendemos ir, receiosos de postergar
o salutarissimo preceito do ne suior.
A começarmos pelo principio examinemos o que
sobre a cellula animal inculca o N. D.
2 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Si é exacto que nos fala em nucléolo e hyaloplasma,


nada diz de morphoplasma e ergastoplasma.
Das substancias chromaticas do núcleo não fala
da pyrenina nem da amphipyrenina, embora averbe
linina, mas não o seu synonymo plastina nuclear,
assim como paralinina.
Incrível é que nada diga de enchilema. Caryo-
soma, cenlrosoma, plasmosoma, são palavras que des-
conhece e admira que averbe áster.
Pasmoso deixe amitose no tinteiro assim como
mitose! Verdade é que menciona caryocinese, mas
lhe desconhece o synonymo; cytodiérese. Espirema ?
Será possível que lhe falte espirema ? Pois falta,
como prophase, anáphase, metaphase, ielophase, cen-
trodesmose.
Assim, pois, na technologia da cellula animal, fal-
tam ao Sr. Cândido de Figueiredo nada menos de
quinze termos vulgares!
Tratando-se dos tecidos animaes não menos no-
tável é a deficiência do Novo Diccionario! Vejo
por exemplo que nelle nãô ha : flbrohyalino.
Cuidando das grandes divisões dos animaes é sim-
plesmente extraordinário que o N. D. silencie a
propósito de cytozoario, synonymo de protozoario e
de histozoario synonymo moderno de metazoariol
A respeito de ciliophoros reina o mais absoluto
silencio nas austeras columnas. Assim nada fala da
sua característica cytostoma.
Curioso que porifero não appareça! Parazoario é
vocábulo desconhecido ao Sr. C. de F que no em-
tanto averba enterozoario, mas como synonymo de
helmintho. Morula, blastula, gastrula, são palavras
que o N. D. menciona.
Também si o não fizesse, santo Deus! Mas celoma
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 3

e celomocelios são cousas que ninguém ali encontrará.


Da technologia de differenciação animal ninguém
espere achar no léxico do Sr. C, palavras hoje vul-
gares, como homaxomico e monaxomico, embora se
leia radiaria.
A grande classificação zoológica para o Sr. C. de
F., e modernissima é a de Cuvier, em 1812! Podia ser
a de Linneu com os seus seis grupos e até a de Aris-
tóteles...
A's modernas consagra justo desprezo. Assim
nada quer saber de cnidarios nem de protostomios
e deuteroslomios, chetognathos e escolécidas, etc.
Curioso que de vez em quando escape algum a esta
rasoura como succedeu a ctenophoro e acranio.
A' technologia dos protozoarios faltam-lhe gre-
garoide, arboroide, zygoplasta, chromatophoro, cine-
tonucleo, embora cite trichocysto, gemmiparidade e
não espotulação, o que é indisculpavel. Em matéria
de reproducção dos protozoarios é o N . D . da mais
deplorável lacunosidade.
Debalde nelle procurará o consulente isogameto,
macrogameto, microgameto, isogamia, anisogamia.
Passemos a examinar o que nos diz o Sr. C. das
subdivisões dos protozoarios. Dos rhizopodos já
principia por nos dizer simplesmente que são ani-
maes cujos pés semelham a raizes sem nos dar a sua
determinação na escala zoológica, o que constitue
enorme defeito.
Das quatro ordem dos rhizopodos duas ficaram
no tinteiro : amebinos e heliozoarios!
De flagellados e cíliados, vocábulos hoje essen-
ciaes na technologia dos protozoarios, nada também
diz o N. D. « Fecha-se o Sr. C. de F .em copas » a
seu respeito 1
4 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Não fala de flagellados, mas cita trypanosoma.


Mas antes não o fizesse, pois, affirma que só ha um
trypanosoma!! e uma trypanosomiaséü Fala nas leish-
manias (no supplemento). Também si não falasse/
Mas de piroplasma nicklesl embora mencione espi-
rocheta.
Tratando dos esporozoarios não encontramos espo-
rogonia nem eschyzogonia, espofocyto, esporozoito,
merozoito, microgametocyto, zigote, eschyzonte! Lem-
bremos ainda que o Sr. C. de F. nada diz do grupo
incerto e importantíssimo dos chlamydozoarios.
A definição que de esporozoario dá o illustre phi-
lologo é fraquinha.
Dentro os principaes esporozoarios estão as gre-
garinas e coccidios. Das primeiras diz o Sr. C. de F
esta belleza : « gênero de vermes (sic) intestinaes que
abrange duas espécies que vivem no corpo de certos
insectos »!
Bumba! promove o douto philologo protozoario a
verme! verme parasita de insectos!
Até parece o caso do Fritz da Grande Duqueza de
Gerolstein, que de soldado passou a feldmarechal,
instantaneamente.
Ainda bem que as gregarinas não subiram de vez
ás culminancias dos vertebrados...
De coccidios debalde queira alguém encontrar
rasto pelas paginas do Novo Diccionario. A defini-
ção de hematozoario serve para um diccionario me-
ramente da lingua e não para o que se gaba de tão
solido cabedal scientifico. Tratando dos espongia-
rios nenhum mal haveria que o N. D. definisse pori-
fera e calcispongia.
Onde ficaram porém cornusilicoso, espongina,
periforo, porocyio, choanocyto ?
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES D

Cuidando dos celentereos, dá-nos o N. D. de 1923


a mostra palpável do seu misoneismo e do seu atrazo,
pois nelle não figuram os grandes grupos modernos
dos cnidarios e des ctenarios.
Apparece-nos como indicio de melhoria para a
quarta edição o termo cnidoblasto.
E si é verdade que o N. D. averba acraspeda,
anihozoario, alcyonario, ctenophoro, hypostoma, ma-
nubrio, umbella, zoanthario, em compensação são
as deficiências enormes, e noto a ausência de pala-
vras essenciaes como: cenenchyma, estomodio, meso-
glea, scyphopolypo, scyphistoma.
De hydrozoarios nada lemos; quanto mais de scy-
phozoarios ?! Os siphonophoros que são celentereos,
rebaixa-os o Sr. C. de F. á categoria de protozoarios.
Segunda phase de Fritz.
São no seu dizer um « gênero de protozoarios ».
Entre os acalephos menciona o N. D. as pelasgias
e rhizostomas, mas não as lucenarias. Dos coralliarios
a definição está ali right. Mas de ctenophoro, « typo
de celenterado », diz que é um « mollusco ».
Na technologia dos echinodermos ha deficiências
serias: falta asteroide, por exemplo.
Mas o que se não pôde admittir é que o Sr. C. de
F. chame aos bryozoarios molluscos, quando são
vermes, são anelidos marinhos.
Molluscoides passavam por ser... em 1870. E a
sciencia progride.
Passemos aos vermes, e com a devida venia de
nosso illustre e incansável helminthologo Dr. Lauro
Travassos seja nos permittido metter o intromettido
bedelho num cantinho desse enorme campo da zoo-
logia.
A definição do verme do Sr. Cândido de Figuei-
6 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

redo é sobremodo confusa e indigna de uma obra


que tem. as pretenções do Novo Diccionario. 0
Sr. Rodolpho von Ihering a critica acerbamente.
Fallando da palavra lombriga entende o Sr. Cân-
dido que o nome é vulgar se applica ao verme intes-
tinal Ascaris lumbricoides que é um nematodio e ao
olygocheto que é um annelideo, a nossa vulgarissima
minhoca. Só se em Portugal... no Brasil lombriga e
minhoca são cousas diversissimas. O Sr. Ihering a
este respeito escreve : « Dispensa commenta-
rios. »
Em matéria de vermes, está o JV. D. « mal servido ».
Fala-nos em plathélminthos, nemathelminthos e ane-
lideos, as três grandes divisões deste enorme e deplo-
rável grupo perseguidor da pobre humanidade com
o amarellão, a filariose e quanta praga mais ha de
semelhante « naipe ».
Mas, em matéria de anelideos, solta-nos o N. D.
uma! das famosas, das famosiásimas.«Classe de ani-
maes vertebrados, a que a sangue-suga e a minhoca
servem de typo! » Horresco...
Além da vertebração da minhoca e da sangue-
suga, ainda ha ahi a reparar a invaginação da classe
dos hirudinos, que é autônoma. Sobre hirudinos
nada entendeu dizer o Sr. C. de F.!
Nem siquer lhe acudiu á mente o episódio horri-
pilante da morte do Bastardo de Bayão, contado,
prodigiosamente, naquella admirável historia truc-
tesindica, que se encaixa na não menos admirável!
Illustre Casa de Ramires.
Que estupendo papel literário ali representam os
hirudinos, para o Sr. C. de F. despiciendos!
Não se quiz lembrar o douto diccionarista dos
tempos da sua adolescência, e da minha infância,
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 7

em que, pelos povoados do seu Portugal e do meu


Brasil ainda viviam ás voltas com os hirudinos os
sympathicos escanhoadores e rapa-queixos.
Arrancavam dentes a chave, manejavam a lanceta
para tirar onças de sangue e applicavam hirudinos,
applicavam bichas.
Não lhe occorreu a velha e troca saudação lusi-
tana do saúde e bichas l que maliciosamente achava
o Sr. Carlos de Laet dever substituir a formula mal
traduzida de « Saúde e fraternidade... ».
Assim, deixou os hirudinos no tinteiro o que é
injusto.
Merece a classe das sangue-sugas magistralmente
revista por César Pinto, no enorme tomo XIII da
Revista do Museu Paulista, a homenagem da recon-
sideração do acto, não por ella, aparentada como é
aos parasitas, mumbavas, onzeneiros e agiotas, mas
pela digna corporação dos figaros de antanho e dos
sympathicos proprietários da tradicionalissima (entre
cariocas), casa das Bichas monstro, á rua de Uru-
guayana, situada já em tempo « oncino » á rua da
Valia da leal cidade sebastianense.
A technologia moderna dos vermes anda bem mal
tratada pelo Novo Diccionario. Si nelle encontra-
mos cercaria e cenuro, filaria, hexacaniho e hydatida,
nephridia e proglottis, por exemplo, faltam-lhe sporo-
cysto, gordiaceo, miracideo, otocyto, onychosphera,
parapodo, redia, rostello, etc.
Ha, porém, lacunas mais importantes, muitas dei-
las absolutamente imperdoáveis. Não encontro pla-
naria para certas lesmas, por exemplo.
Acerca dos olygochetos e polychetos, fecha-se nova-
mente em copas o Sr. C. de F.
Falando dos cestodos ou cestodes, diz o douto dic-
8 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

cionarista : « Verme da classe dos helminthos? »


Que é helmintho, então?
Que se diria do lexicographo que definisse, por
exemplo, fox terrier : typo de cão da espécie dos ca-
chorros?
Debalde procurará alguém no Ar. D. vestígios de
alguns dos principaes plathelminthos e nemathelmin-
thos. Nada encontrará a respeito dos polystomas, da
bilharzia, do ankylostomo (!), do bothriocephalo. Do
ankylostomo! veja-se bem! Do ankylostomo, santo
Deus!
Nada se encontrará acerca dos chetognathas, nem
dos chelopodos e onycophoros. Falando da anguillula,
affirma o Sr. C. de F. que é um insecto que ataca as
raizes das videiras. Não será um verme? um nema-
thelmintho do gênero da Heterodera radicicola, que
tantos malefícios causa aos nossos cafésaes flumi-
nenses e mineiros e a que se refere o eminente amigo
Alipio de Miranda Ribeiro, nas suas excellentes
Noções syntheticas de zoologia brasüica ?
Consinta agora o benevolo leitor pequeno pa-
renthese.
Mais uma vez, livre-me Deus de pretender pos-
tergar o principio elementar e salutarissimo do JVe
sutor! arvorando-me em zoólogo, quando apenas
desta sciencia conheço os rudimentos.
Assim, para o cotejo que realizo, tomei dois guias
da máxima segurança, dois naturalistas brasileiros,
da mais larga e conceituosa reputação, os Drs. Alipio
de Miranda Ribeiro e Cândido de Mello Leitão,
cujas obras valiosas ultimamente publicadas — as
Noções syntheticas e os Elementos de zoologia, mere-
ceram, dos doutos, geraes applausos. São dois scien-
tistas dos que mais honram nossa cultura nacional
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 9

e estão ao par das mais recentes conquistas das


sciencias.
Continuemos a vêr si o Novo Diccionario, bem pos-
terior, comtudo, a ambas as obras citadas, está
em condições de informar aos seus leitores o que signi-.
fica a technologia (aliás elementar, e destinada a fins
didacticos gymnasiaes), dos dois excellentes livros.
II

Revisão dos crustáceos e molluscos. O Sr. Cândido de


Figueiredo admitte, como a mais recente, a classi-
ficação de Cuvier em 1812! Revisão dos echinoder~
mos, dos peixes, batrachios e reptis.

Dos dois grandes grupos de crustáceos, os ento-


mosiraceos e malacostraceos dá o Sr. C. de F. defi-
nições razoáveis. Mas, de merostomos nada diz, nem
das limulas, o que constitue sensivel lacuna.
Da technologia carcinologica mais corriqueira
faltam muitos termos : carcinologo, carcinologico,
balamo, nauplio, zoê, pléopodo, coxopodoto, basipodito,
endopodito, escaphocerito pereiopodos, telson, hepato-
cancreas.
Em todo o caso, figuram protopodio, decapodo,
copepodo, macruro, cirripodo, branchiopodo. O nome
ostracodo que o Sr. C. de F. attribue a um « gênero
de mollusco microscópio », reserva-se hoje a uma
ordem de crustáceos.
Passemos aos molluscos. Definindo a palavra, dá
largas o Sr. C. de F. aos seus conhecimentos zooló-
gicos... de 1812. Documentemos o caso, que é curioso.
a Nome dos animaes sem vertebras, que formam
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 11

uma das ramificações do reino animal e que compre-


hendem seis classes : cephalópodes, exterópodes,
gasterópodes, acéphalos, brachiópodes e cirrhopodes. »
Em matéria de classificação de molluscos, ha nu-
merosas e sérias divergências. Os mais modernos
autores admittem cinco classes : os gastrôpodos,
cephalópodos, scaphópodos, lamellibranchios, e placó-
phoros, outras põem pterópodos em vez de placó-
phoros, outros querem só quatro classes : gastrô-
podos, cephalópodos, lamellibranchios e amphineuros.
Synthetizando o que de mais moderno havia em
1917, admitte Mello Leitão, em seus optimos Elemen-
tos de Zoologia, cinco classes : cephalópodos, gasteró-
podos, escaphópodos, lamellibranchios esolenogastros.
Mas, que a subdivisão do Sr. C. de F. é velhinha,
velhinha, não ha duvida. Diz o Webster's New In-
ternational Dictionary, de 1920, á palavra mollusca :
« In old classifications the brachiopoda and some-
times the cirrhipeds were included » (se. entre os
molluscos).
Outra prova da antigüidade da classificação do
Sr. C. de F. e de quanto é ella veneravel (pela velhice,
entenda-se), dá-nos a presença dos acéphalos, nome
inventado por Cuvier, em 1789. O termo lamelli-
branchio é de Blainville, e de 1816, e inteiramente
supplantou acephalo.
Falando dos brachiopodos,. diz Whitney, com a
sua formidável autoridade : « Pelos velhos natura-
listas, os brachiopodos eram considerados molluscos
verdadeiros; pelas mais recentes (escreve o infor-
mante, em 1907), foram separados dos molluscos,
passando a ser « molluscoides ».
Os cirrhopodes do Sr. C. de F. querem os mais re-
centes diccionarios scientificos sejam os mesmos
12 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

cirripedios que não são molluscos e sim crustáceos


Os molluscos do Sr. C. de F. são os dos quatn
ramos e dezenove classes de Cuvier, em 1812.
Na Encyclopedia Britannica, nona edição, 1883
leio que os cirrhopodes foram, em 1830, ainda en
vida de Cuvier, destacados dos molluscos, devidí
aos trabalhos magistraes de J. Vaughan Thompson
e annexados aos crustáceos.
Ergo a classificação dos molluscos, dada como u;
to date, para 1923, pelo Sr. C. de Figueiredo, era real
mente novíssima... em 1812.
Examinemos perfunctoriamente, agora, o que sobn
a nomenclatura vulgar dos molluseos nos conta (
N. D.
Faltam-lhe epipodio, palleal, limbo, lunula,- con-
chyolina, odontophoro, columéllar, ctenidia, osphradia
rhinophoro.
Encontramos sepiostario, apenas. Ausentes se achan
noventa por cento da technologia mais vulgar doí
molluscos!
A' nomenclatura vulgar dos echinodermos faltan
bivio e trivio, madreporito, pedicéllaria, lanterna d<
Aristóteles, espheridea e muito mais.
Com surpresa vemos surgir ambulacre. Das cincc
classes de echinodermos não menciona o Sr. Candidí
de Figueiredo os asteroides e ophiuroides. A crinoidt
e echinoide define mal.
Os tunicados, grupo autônomo, segundo as ideai
modernas, incorpora-os o Sr. Cândido de Figueiredí
aos molluscos.
Das suas três ordens nada diz dos appendicularios
As duas outras teima em conservar entre os mol
luscos, o que é sobiemodo anachronico.
Quanto á nomenclatura dos tunicados abundante:
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 13

se lhe apresentam as lacunas; assim, por exemplo: de-


balde procuramos no Novo Diccionario, endoslylo,esto-
modeo, typhlosolis, doliolo, urochordio. Inesperada-
mente nos surge salpa, de definição incompleta, aliás.
Passemos agora aos vertebrados, começando pelos
peixes.
A technologia destes animaes é a mais fraca no
Novo Diccionario. Onde estão gamoina, ctenoide,
dermolrichio, diphicerco, heterocerco, amphiceles, ho-
mocerco, physostomo, physoclisto, hemibranchios,
pseudobranchios ? E isto para nos contentarmos
com um exame muito summario aliás.
Em todo o caso, encontram-se placoide, ganoide,
cycloide, holobranchios. Das cinco classes modernas
dos peixes não registra o Novo Diccionario: elasmo-
branchios, marsipobranchios (cujo synonymo cyclos-
tomos averba) mencionando porem, as outras três.
Assim, pois, como acabamos de expor, é lacuno-
sissimo o Novo Diccionario, em relação á technologia
dos grandes grupos importantíssimos que acabo de
revistar. E somente quanto ao vocabulário mais cor-
riqueiro, porque só me limito a este.
Não menos notável do que em relação aos demais
grupos é a deficiência do Novo Diccionarioquanto aos
batrachios que inculca Santo Breve da Marca!—como
reptis!!! Como reptis! A saparia saltitante e « gambe-
teira » rebaixada á reptação! Santo Breve da Marca!
Assim nelle não se recordam termos da technologia
corrente como uroslylo, gymnophione! apodo, percnni-
branchio, neotemia, pedogenese, aglosso, phaneroglosso,
etc. Menciona, comtudoanuro, gyrino, modelo.
Nos reptis não menos sensiveis são as lacunas :
debalde procuraremos pleurodonte, acrodonte, o que
representa notável lacuna. Manda a justiça que se
14 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

digaque o Novo Diccionario consigna ihecodonte, au-


tosaurio. Quanto á divisão actual dos reptis actuaes
em cinco ordens, nada diz o Novo Diccionario dos
rhynnocephalos e crocodilianos. Aos lacertilios, como
se diz no Brasil, chama-se lacertinos, o que não tem
importância. A propósito das grandes famílias dos
lacertilios o Novo Diccionario « fecha-se em copas »
quando trata dos geckonideos, iguanideos, scindi-
deos, tejideos, amphisbenideos. Só nos menciona os
anguideos! Sói
Não poderemos deixar este grupo sem lembrar
uma nova e bella cincada do Sr. Cândido.
Definindo licranço diz o doutíssimo diccionarista
« pequeno réptil, um pouco semelhante á vibora mas
sem a cabeça chata (Amphisbaena cinerea Vandelli).
Mas como também affirme que amphisbena, ou an-
fisbena é o nome genérico das « serpentes de duas
cabeças » o licranço é um ophidio, já que passa por
serpente e não um lacertilio conclusão erradíssima
no dizer dos zoólogos. Ora, ora, ora, responder nos á
superior o douto diccionarista : « de pato a ganso
é pouco o avanço, de lacertilio a ophidio nem um
passo hal Os Srs. estão fazendo distincções de lana
caprina ».
Emfim em matéria de zoologia digam os zoólogos.
Para elles appello sem grande receio de perder o
processo motivado pelos licranços.
A nomenclatura dos ophidios, importantíssima
para o Brasil, esta é vergonhosamente iacunosa no
Novo Diccionario. Debalde, ali procurámos, boideo,
typhlopideo, glauconideo, proteroglypho, etc.
Mostrando ouvir cantar o gallo sem saber onde,
insere o Sr. Cândido de Figueiredo, viperideo, com a
autoridade inderrocavel do Jornal do Commerci0
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 15

do Rio de Janeiro, de 5 de setembro de 1915. Impa-


gável critério! E' sempre o mesmo, o que documenta
definições de chimica com uma Technologia rural!
como já ficou demonstrado.
Os resultados de consulta a taes autoridades são
admiráveis. E' por isto que o Sr. Cândido escreve
Colubrideas : « família de reptis que têm por typo a
cobra? » mas que cobra? então todos os ophidios
são colubrideõs? Pois não é cobra em nossa lingua
um nome genérico dos ophidios?
A definição arranjada pelo sr. Cândido de Figuei-
redo recorda-me uma passagem famosa de certo
romance francez de outróra, de não sei que idiota
e cujo scenario é o Brasil: « Cet affreux serpent, qu"au
Brésil on appelle cobra «... E é um portuguez que
nos diz agora : « colubrideõs : família de reptis que
tem por typo a cobra »!
Porque então por analogia não escreve : cebideos,
familia de símios que têm por typo o macaco?
E ainda a propósito de ophidios não nos diz o
Sr. Cândido de Figueiredo : « Cobra, s. f. réptil da
família das serpentes »!
Da familia, leia-se bem! E mais adeante como nos
ensine que serpente é synonymo de cobra definirei
de accordo com estes ensinamentos :
« Cobra, s. f. réptil da familia das cobras. »
« Serpente, s. f. réptil da familia das serpentes. »
Não é archi-logico?
E não deixemos os répteis sem lembrar — last but...
este inglezinho é tão batido! — que o Sr. Cândido de
Figueiredo não nos inculca as tartarugas como rep-
tis! São amphibios... do gênero das capivaras? do
gênero das lontras? Que grupo zoológico é este o dos
amphibios?
III

Nomenclatura dos insectos. Omissões em barda ê d.s


mais vulgares termos. Technologia obsoleta. O enorme
atrazo do « Novo Diccionario » em matéria enlomolo-
gica. Dezesete ordens suppressas cm vinte e seis.
Definições ambíguas, viciosas e erradas. A nomen-
clatura dos arachnideos. Lacunas innumeras e de-
ploráveis. As fontes de informação scientifica do
Sr. C. de Figueiredo. Os jornaes da imprensa diária.

Proseguindo em nossa despretenciosa e singela


analyse passemos agora a ver o que ha no Novo
Diccionario em matéria da technologia entornologica.
Ecydse é cousa que no prestan te léxico se não encon-
trará.
Hexapodo hoje exclusivamente reservado aos in-
sectos, quer o Sr. C. de F que se estenda aos « in-
sectos apteros! » noção inacceitavel.
A nomenclatura entornologica vejo que lhe faltam
palavras essenciaes como clypeo, gena, paraglosse,
tegula, halteres pubillo, hemidytro, empodio, espira-
culo, cercópodo, oviposiíor, frenulo, relinaculo legmina,
embora mencione epicraneo (mas não como vocábulo
entomologico) hypopharinge, ligula, patagio (aliás
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 17

definido como exclusivo dos morcegos), elytro (tam-


bém si até isto faltasse!).
Continuemos a nossa summarissima inspecção.
Debalde se procurará encontrar ocella, omnatidia,
retinula, rhabdbm, vitrella, chordotonal, corneagenico
epimorpho. Ootheca para oN.D. é privativo do ovario
dos fetos, em botânica.
Acerca da ootheca, dos insectos, nada ha! Mas o
que dá exacta noção do atrazo da technologia do
N. D. é a ausência de pupa! Ignora o Sr. C. de F.
este synonymo da velha chrysalida. Si mostra conhe-
cer parthenogenese, ignora heterogamia.
Ha dezenas e dezenas de termos correntes dos pro-
legomenos da nomenclatura entornologica que o
N. D. não menciona.
Os quasi trinta que ora apontei disto dão nitida idéa.
Vejamos agora outro assumpto em que do modo
mais completo se evidencia o atrazo das noções
inculcadas pelo N. D. em matéria de entomologia.
Para o Sr. C. de F. os insectos ainda estão espalha-
dos por meia dúzia de ordens, quando dos progressos
da sciencia tem nascido subdivisões numerosas.
Houvesse o douto diccionarista consultado os léxi-
cos modernos em vez de recorrer aos seus carunchosos
e bolorentos ripanços do tempo de Fabricius ou de
Goedaert e veria que as autoridades actuaes accei-
tam vinte e seis ordens entomologicas. Mas o Sr. C.
de F. contenta-se com meia dúzia. « Aqui estou, aqui
fico!» brada nos macmahoniano. Nada o demoverá.
Para elle só ha coleopteros, lepidopteros, dipteros,
orthopteros, thysanuros, thysanopteros, isopteros,
hymenopteros, neuropteros. Onde ficam os ano
pluros, collembolas, dermapteros, embiopteros, ephe
meropteros, plecopteros, odonatos, mallophagos, pso-
3
18 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

copteros, strepsiteros, rynchota, megalopteros, mecop-


teros, tricopteros, siphonapteros, proturos, zorapteros ?
Assim, das 26 ordens actuaes (cf. o Manual oj
Entomology de Maxwell Lefroy, Londres, 923, pag.
xiv) só nos revela o N. D. a existência de nove!
E não se pense que as definições referentes a estas
nove ordens sejam impeccaveis.
Freqüentemente vemos o Sr. C. de F. chamar
« gênero de insectos » o que devia ser «ordem de insec-
tos ».
Tratando dos hymenopteros dá-nos o Sr. Cândido
tal definição que delia se pôde deprehender que nem
todas as formigas pertencem a esta ordem.
Definindo lepidopteros escreve o illustre philo-
logo : « Diz-se de uma classe de insectos que passam
por metamorphoses completas desde o estado de ovo
ao de borboleta.»
Isto é insignificativo; não differencia a ordem lepi-
doptera pois metamorphoses completas realizam,
os coleopteros, os dipteros, os hymenopteros, etc,
egualmente.
Devia o douto diccionarista citar-lhes o numero
de azas, lembrar-lhes a escamação que lhe deu o
nome, etc.
Também merece reparos a definição de diptero.
Nada diz o N. D. das azas posteriores destes insectos
os balancins. A technologia dos dipteros no N. D. é
sobremodo deficiente. Assim em relação aos nossos
mosquitos tão conhecidos como os stegomya, sto-
moxys e phlebotomos nada ha. Et j'en passe...
Antes de deixarmos os insectos porém reservemos
uma boa para o fin mot de Ia fin.
« Potó, diz o Sr. Cândido de Figueiredo, m Brás.
Insecto noctivago cuja urina (sic)l é cáustica. »
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 19

Urina de insecto!
Insecto a urinar!
Esta é das arábias 1
Passemos porém aos arachnideos.
Da sua nomenclatura vulgar falta-nos chelicera!
cephalothorax que o Sr. C. de F. attribue aos insectos,
postabdomen, cheia, chelifero, pedipalpo (nome de
familia apenas segundo o Sr. C. de F.), escopula,
patella, protario.
Com surpreza encontramos cribello e calamistro.
Este ultimo vocábulo abonado pelo Século de Lis-
boa, na edição do Norte de 5 de junho de 19191!
Preciosa indicação acerca das fontes documentaes
scientificas do Sr. C. de F.!!!
E' por isto que define os termos da chimica or-
gânica segundo o que lhe refere uma Technologia
rural e informa aos seus leitores que « hertziano é
uma variedade de telegrapho» segundo aprendeu no
Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, a 13 de
junho de 1901!... Sem commentarios!
Tratando das nove ordens dos arachnideos nada
encontramos no N. D. sobre os escorpionideos, pha-
langideos, podogonos, pseudoescorpionideos, palpi-
grados, solifugos.
Os araneidos quer o Sr. C. de F. que sejam familia
em vez de ordem. O que elle diz dos acarinos está
perfeito.
Os pedipalpos inculca-os como familia quando
constituem uma ordem. Dos ixodideos, a que perten-
cem os carrapatos (para o Sr. C. de F., crustáceos!)
ha uma boa definição.
Dos seus affins, os demodex, injustificadamente nada
diz o N. D. quando, no emtanto, se refere aos sar-
coptas da carne e tyrogliphos do queijo.
20 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Abramos agora especial parentheseparacommentar


umaMefinição hoje monstruosa, do Novo Diccionario,
a de Myriapodo « classe de insectos (!!??) que se dis-
tinguem por grande numero de pés ». Misericórdia! A
lacraia insecto! O piolho de cobra insecto! os embuás
insectos! Mas está na ordem como os peixes-cetaceos,
os carrapatos-crustaceos; as tararugas-peixes!
Copiou o Sr. Cândido de Figueiredo a definição de
Aulete quasi ipsis verbis... Misericórdia! Psalmo 501
Misericórdia mei Deus!
Que revolução na zoologia! Só que ella já está feita
desde os tempos « em que Judas trocou de botas »
da locução popular.
E o Sr. Cândido que disto nada sabia! A sua zoo-
logia é a de 1815.
De que serve haverem os mais notáveis zoólogos
decretado que insectos só podem ser chamados os
hexapodos ? « arthrópodos providos de três pares de
patas articuladas sobre a parte thoracica do corpo »
(cf. Alipio de Miranda Ribeiro, Noções syntheticas
de zoologia brasilica, p. 62).
Com um piparote liquida o N. D. esta gentalha
pretenciosa, toda, no nosso anno da graça de 1923.
Piecolha-se a sua insignificancia... O que vale é a
sciencia de outr'ora; a sciencia do « seu tempo ».
Destes novos insectos myriapodos, recommenda-
dos pelo douto diccionarista distinguem hoje os
zoólogos os chilopodos e diplopodos, bicharada acerea
da qual o Sr. C. de F guarda aquelle famoso silencio
que Boileau irrogava ao seu confrade Conrart e a
que qualificava prudente.
Também não esperemos encontrar os vocábulos
gnatochiliario e maxillipodo da nomenclatura cor-
rente dos myriapodos. E fazem falta!
IV

Nomenclatura ornithologica. Sempre a mesma defi-


ciência. Num maré magnum de lacunas. Ausência
dos nomes das ordens e das familias.

Vejamos agora como o Sr. Cândido de Figueiredo,


trata as aves ou, antes, como as maltrata.
Falando-se de aves, comecemos pela nomencla-
tura das pennas. O eixo destas, o scapo, é cousa que
se não menciona no Novo Diccionario, nem tão
pouco calamo, rachis e vexillo, palavras, aliás, aver-
badas no léxico figueiredeano, mas com outras accep-
ções. Umbilico, radiolo, hamulo, ninguém os achará,
e ainda menos hyporachis.
Plumula para o Novo Diccionario não se applica
ás pennas curtas e macias, o duvet dos francezes, e
sim somente a uma « parte do embryão vegetal ».
Vibrissa são apenas pêlos das fossas nasaes e nunca
pennas « de calamo curto, rachis longo e delgado,
semelhando um pêlo ».
Egretía, de feição exaggeradamente gallicistica,
não surge no Novo Diccionario, e ahi é o caso de lhe
darmos parabéns. O nosso vocabulário necessita de
estabelecer outro substantivo menos francelho
22 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Neossoptilo, teleoptilo, pteryla, pterylographia, pte-


rytose, paraptero, apterylo, hypoptero, eis ahi um rór
de omisões a mais. Rectriz, vectriz, remigia são ad-
jectivos antiquissimos da nomenclatura ornithologica
e o Novo Diccionario os averba.
Também si o não fizesse 1 E' como si por exemplo
não desse uropygio! Seria demais...
Da nomenclatura dos pigmentos, a que sáo devi-
das as cores das pennas das aves, não cogita o Novo
Diccionario. Assim nelle não ha zooxanthina, ,zoo-
fulvina, zooerythrina, zoomelanina, turacoverdina.
Poderia mencional-os comtudo, que, desde 1909,
lhe indiquei estas lacunas sensíveis no meu Léxico
de termos technicos e scientificos.
Mas com a sua incommensuravel vaidade achou
o Sr. Cândido de Figueiredo indigno de sua grandeza
receber indicações denm João Fernandes de além-
mar. E assim deixou de mencionar taes vocábulos.
— Quem o prejudicado? Infantil critério!
Podotheca e ramphotheca encontramol-os averba-
dos, mas não acrotarso nem ceroma...
Deixemos de lado a nomenclatura do tarso do
craneo, do bico em que as lacunas do Novo Diccio-
nario pullulam, por assim dizer, e lembremos que
emmateria da forma do bico, o que é de maior
importância nas aves, o Novo Diccionario ignora
paragnatho, metagnatho. Quanto a epignatho e hypo-
gnatho, são para elle apenas dois termos da tera-
tologia, mostrando desconhecer que se applicam o
primeiro aos papagaios e aos rapaces e segundo ao
talhamar.
Percorro a osteologia das aves e percebo que delia
quasi nada se transplantou para as paginas do Novo
Diccionario. Uma lastimai Poderia apontar mais de
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 23

cem omissões, o mesmo quanto á descripç&o dos de-


mais tecidos animaes.
Para não tornar demais enfadonho, este requisi-
torio contra a deplorável insufliciencia do Novo Dic-
cionario, passo a analysar o que nelle se menciona
acerca das subdivisões das aves.
Devoto dos velhíssimos bonzos das sciencias na-
turaes, ignora o sr. Cândido de Figueiredo os tra-
balhos de Gadow; dahi a ausência, no seu Novo Dic-
cionario, dos nomes das duas modernas grandes
subclasses : archeornithos e neornithos.
Os três grupos das odontolcas, ratitas e carinatas
brilham pela mais absoluta ausência! A's ratitas
pertencem as nossas emas, de cuja ordem rheifor-
mes e de cuja familia rheideos jamais ouviu falar o
Sr. Cândido do Figueiredo, ao que parece.
Só dos carinatas brasileiros ha, segundo Gadow,
vinte e cinco ordens. Rarissimas conhece o Sr. Cân-
dido de Figueiredo, cuja ornis ainda se regula pela
subdivisão de classes, velha como a Sé de Braga, e
« os tempos do onça », na era em que comprehendia
palmipedes, pernaltas, trepadores, gallinaceos, rapi-
neiros e columbinos.
Os íinamiformes com a sua familia única tinamideos,
ignora-lhes o Sr. Cândido de Figueiredo a existência.
Representam-na no Brasil o delicioso macuco, a
esquiva jaó, a quasi exterminada perdiz a vulgar
codorniz, etc.
Falando do tinamu, protesta o Sr. Cândido de Fi-
gueiredo contra os que o classificam como galli-
naceo : o interessante é que tinamu vem a ser galli-
cismo que nós outros brasileiros ignoramos.
Seu correspondente é o nosso conhecidissimo ma-
cuco!
24 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Os galliformes não se benzeram com o sésamo do


Novo Diccionario, com as suas duas famílias brasi-
leiras os cracideos e os odontophorideos.
A' primeira pertencem o mutum (gallinaceo para
o Sr. C.) o jacú e a jacutinga (também gallinaceos);
á segunda o urú ou capoeira (idemj. Ignora Sr. C.
de F. que os antigos gallinaceos pertencem hoje á
familia dos phaisanideos (peru, gallo, pavão, faizão,
gallinha da Angola, etc).
Seria um nunca acabar! Seria um nunca acabar
revistarmos ordem por ordem. Basta lembremos
que seus nomes são pertinazmente « inencontraveis »
no A7. D.
Si tal se dá com as ordems, que esperar quanto á
nomenclatura das nossas grandes famílias de aves?
Zero e mais zero!
Assim a esmo ali procuro os rallideos (das nossas
saracuras), os trochilideos (beijaflores), trogonideos
(surucuás), rhamphastideos (tucanos), picideos (pica-
paus) tyranideos (bentevis), etc, etc, etc.
Seria um nunca acabar! Só ahi ha centenas de
omissões a apontar...
E si, de vez em quando, nesse maremagnum de
lacunas, apparece um ou outro nome de familia de
nossas aves é que as vezes sáo os de grupos repre-
sentados também em Portugal, como por exemplo
no caso dos turdideos (melros e sabiás).
Mas assim mesmo é tão lacunoso o N. D. que nem
menciona os hirundinideos. E no em tanto ha em Por-
tugal andorinhas!
E si surge alguma excepção applicavel ao Brasil
essa mesma freqüentemente vem em muito mau
estado, como se dá com os psittacideos assim defi-
nidos. « Familia de aves que comprehende os aras
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 25

(??!!! sic) e os papagaios. » Então arara é papa-


gaio? É que signifia ará ? povoroso gallicismo numa
obra tão infensa ao consórcio gallo-lusitano, como se
gaba o douto diccionarista!
E tanto não é portuguez que si no próprio corpo
do Novo Diccionario procurarmos ará não o encon-
tramos, quando nelle se averba arara, que é o nome
verdadeiro e aliás muito mal definido).
« Ave trepadora, espécie de papagaio!!! » Não é
tal. As araras não são espécies de papagaios. Umas
e outros vem a ser psittacideos, mas ninguém confun-
dirá araras com papagaios, como também ninguém
encambulhará umas e> outros com os periquitos!
Que falta faz ao Sr. C. de F. o conhecimento da
magistral Revisão dos psittacideos brasileiros, da
lavra do meu eminente amigo prof. Alipio de Miranda
Ribeiro, o nosso illustre zoólogo!
Assim, pois, vêem os bondosos leitores que em
matéria ornithologica o Novo Diccionario merece ser
chamado Novo Lacunario, a preencher.
Em matéria de nomes vulgares então ha cousas
impagáveis! Ab uno : em vez de siriema, da nossa
vulgarissima siriema, escreve o Sr. C. de F sirema,
dando-lhe este espantoso significado : Ave pernoita,
notável pela guerra que move a todos os animaes l!!
Outras definições detestáveis. :
«Jacú, ave gallinacea, avermelhada do Brasil. »
Mas quantas aves estão nestas condições, os urús,
os inambús, as perdizes, as codornas...
João de barro define a o Sr. Cândido de Figueiredo
ave amarella e tico tico como « passarinho de papo
amarello ». Como estão bem caracterisados! Pretende
ainda que no Brasil João grande e Gaivota são a
mesma cousa quando não ha tal.
Dizimação de mammiferos pelo « Novo Diccionario ».
Ausência de numerosos vocábulos corriqueiros.

A' technologia mammalogica faltam ao Novo


Diccionario como á dos demais grupos vocábulos e
vocábulos absolutamente vulgares.
Nella não se encontram termos dos mais corri-
queiros. Assim si o N. D. nos fala de animaes planti-
grados e digitigrados, nada refere dos unguligrados,
semidigitigrados e semiplantigrados.
Não ha quem ignore quão importante — capital
até — vem a ser o estudo das formulas dentaes dos
mammiferos. Delle nasce uma technologia riquís-
sima.
Não é, porém, a que insere o N. D. que neste par-
ticular até parece herdeiro do santo varão Job.
E realmente, onde escondeu o Sr. Cândido de Fi-
gueiredo triconodonte, secodonte, lophodonte, etc, etc?
O vocabulário dos diversos apparelhos physiolo-
logicos vai pela mesma penúria.
Examinemos, porém, um aspecto mais interessante,
a subdivisão actual dos mammiferos.
Em matéria de actualidade, já demonstrei de sobra
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 27

que a contemporaneidade do N. D. é a de Cuvier


ainda. Vive na época napoleonica, o alentado e pres-
tante léxico.
Assim cái-me a alma aos pés ao verificar que no
emtanto menciona as três sub-classes actuaes dos
mammiferos : ornithodelphos, didelphos e monodel-
phos. Que progresso!
Mas logo depois noto a ausência de prototheriano,
metatheriano e eutheriano, synonymos correntes das
três sub-classes.
Nos didelphos vejo que o Sr. C. de F. ignora a exis-
tência das duas grandes ordens : os diprotodontes e
os polyprotodontes.
Das famílias desses marsupiaes bem podia o N. D.
indicar-nos a do didelphideos que encerra os nossos
nojentos gambás, mucuras, sariguês, raposas, como
são chamados pelo paiz, cuicas e goiquicas.
Mas qual! Passemos agora aos monodelphos.
Esquecer alguma das suas nove ordens, é cousa
incomprehensivel, inacceitavel para um léxico que
se preza de moderno e altamente scientifico como se
inculca o N. D.
Si é verdade que averba os velhos nomes cetáceo,
cheiroptero, carnívoro, desdentado, insectivoro, roedor,
ungulado, primata (também si o não fizesse!), ainda
assim deixa de o fazer em relação a sirenio.
Em matéria de desdentados ha a maior deficiên-
cia; não se averba o synonymo paratherianos, nem
as suas duas subordens xenarthros e nomarihros.
Mas indesculpável, acima de tudo é a ausência de
três vocábulos hoje correntissimos das famílias dessa
ordem : myrmecophagideos (tamanduás), bradypo-
dideos (preguiças), e dasypodideos (tatu's). Quanta
omissão grave!
28 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Nos ungulados vemos o N. D. ignorar dentre as


subordens actuaes, a dos hyracoides, mencionando,
comtudo, as três outras.
Ainda bem, valha-nos esta excepçãozinha!
Mas já aos perissodactylos vemos faltarem os ver-
betes relativos aos rhinocerontideos e tapirideos, o
que é pasmoso. Mencionam-se os equideos. Também
si até esta palavra faltasse : equideo...
Em matéria de artiodactylos o N. D. consigna os
dois grandes grupos ruminantes e suinos, palavras
velhíssimas, cujas definições estão ali insufficientes,
á luz do critério moderno zoológico.
Basta dizer que para o Sr. C. de F. suino é o syno-
nymo exclusivo de porco, quando para os zoólogos
modernos o hippopotamo é um suino...
Das três grandes famílias de suinos dá-nos o A'. D.
suideos, mas não hippopotamideos, nem tayassui-
deos (queixadas, cattetos).
Os ruminantes, estes, hoje se distribuem entre os
grupos dos tragulinos, tylopodos e pecoros, três pa-
lavras ignoradas totalmente pelo Sr. C. de F
Dos canideos, que são tragulinos, nada diz o N. D.
Dos pecoros fala-nos dos camelideos e bovideos ou
cavicornios, mas nada dos girafideos, nem dos antilo-
caprideos.
Já que o prestante léxico não cuida dos sirenios,
é natural que nelle nada exista sobre os trichechideos,
os nossos « peixes boi».
Em matéria da subdivisão moderna dos cetáceos,
o Novo Diccionario é simplesmente detestável.
Ignora-lhes os nomes das duas subordens : mys-
tacocetos e odonlocetos. Nem dos primeiros nada diz
de suas duas famílias : balenopterideos e balenideos;
dos segundos (odontocetos), vem com surpreza a
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 29

menção dos physeterideos, a' que chama physeterios,


mas nada encontro' sobre a familia dos platanisti-
deos, os nossos botos amazônicos, surgindo porém
um verbete sobre os deíphinideos, agora intitulados
delphininos.
Tratando dos carnivores, averba o Novo Diccio-
nario,fissipede,mas o que admira, e muito, nada diz
do nome da segunda subordem : os pinnipedes!
(phocas).
VI

Final da revisão dos grupos zoológicos. Ainda os


mammiferos, os carnívoros, roedores, cheiropleros e
primatas. Lacunas em barda. Novas e serias erro-
nias.

Vejamos, agora, como se comporta o Novo Dic-


cionario, em relação á technologia moderna da
systhematica dos carnívoros : herpesloides, arcloides,
os dois grandes grupos de Winge, são palavras que
o volumoso léxico não imprimiu. Os herpestoides
comprehendem três famílias : hyenideos (não men-
cionada), viverrideos e felideos (averbadas).
Os arctoides se espalham por quatro famílias :
mustelideos, ursideos (mencionadas pelo Novo Dic-
cionario), canideos eprocyonideos (não mencionadas! 1).
Não falar em canideos é simplesmente... adorável...
Em matéria de nomes vulgares brasileiros, deste
grupo, traz o Novo Diccionario, disparates numero-
sos; citemos alguns, de polpa.
As jaguatiricas são felideos, e o Sr. Cândido de Fi-
gueiredo quer que sejam « cães bravios do Brasil »!
Das sussuaranas diz apenas : « animaes carnívoros
da America do Sul ». Dos guaxinins, procionydeos,
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 31

affirma que são raposas, canideos, portanto. Dos


furões (mustellideos) escreve : « mammiferos vermi-
formes (???!!!) ».
Como? Mammiferos-heleminthoides, lombrigas-
mammiferas?
Com toda a propriedade observa a tal respeito o
Sr. Rodolpho von Ihering : « Ainda que o furão
fosse inteiramente apodo a sua semelhança com os
vermes seria igual á dó ovo com o espeto. »
Falando do pangolim escreve o Sr. Gandido de
Figueiredo a seguinte e pittoresca definição « mam-
mifero africano e asiático que se enrola em forma de
bola quanto o atacam ».
Será aceitável uma definição de tal ordem num
diccionario que se respeite? que tem aspirações a
uma como que pequena encyclopedia portugueza?
Que pensaria, que diria o Sr. Cândido de algum
confrade diccionarista que definisse : « gato, mammi-
fero, europeu, africano, asiático, americano e oceâ-
nico que quando atacado faz fú! fú! fú! »?
E no emtanto esta definição não é digno pendant
da sua de pangolim ? Se o Sr. Cândido de Figuei-
redo de vez renunciasse aos seus processos de ir
buscar definições de chimica numa Technologia Ru-
ral e recorresse a quem lhe inculcasse reaes noções
scientificas poderíamos ler no Novo Diccionario
cousas como esta : Pangolim nome de uma espécie
de mammif ero da ordem Edentata que serve de typo
ao gênero Manis da familia Manidae « Encyclopedia
Brilannica, ed. de 1910).
Os roedores comprehendem duas grandes or-
dens : a dos simplicidentados e a dos duplicidentados.
Nem de uma, nem de outra, jamais ouviu falar o
Sr. Cândido de Figueiredo!...
32 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Os simplicidenlados comprehendem hoje cinco


grupos : anomaluros, aplodontes, histricomorphos,
myomorphos, sciuromorphos.
Nada disto nos inculca o Novo Diccionario, que
« ouvindo cantar o gallo», apenas relata que os anoma-
luros são roedores da ilha de Fernando Pó. E dá-se
por muito satisfeito! Acerca das outras quatro :
zero e zero!
Dos sciuromorphos ha os castoridcos e sciurideos,
palavras ausentes do Novo Diccionario. Os myomor-
phos tém a sua longa nomenclatura ainda mais mal-
tratada, nas suas sete famílias de ratos, ratões e
ratazanas, domésticos e sylvestres arganazes e jer-
boas.
Ainda bem que não ficaram no inteiro os murideos.
Também,'seria jamais!
Quanto aos histricomorphos, das suas oito famílias,
vemos a ausência dos pedetideos, octodontideos (ratos
de bambu, ratos de espinho), chinchillideos (chinchil-
las, vizeachas), erethizontideos (ouriços-caixeiros), di-
nomyideos (pacaranas), dasyproctideos (pacas e co-
tias) e caviideos (préás, mocos, capivaras).
A esta terrível chacina apenas escaparam os hys-
tricideos (porcos espinho) a que o Novo Diccionario
chama hystriceos. Sete lacunas num total de oito
termos!
E o Sr. Cândido de Figueiredo julga impeccavel,
riquíssimo, o seu vocabulário 1
Quanto á nomenclatura vulgar dos roedores nem
sempre é razoável; por exemplo do ouriço caixeiro
não diz que seja roedor.
Não deixaremos os roedores, comtudo, sem falar
nos duplicidentados, cujo synonymo lagomorphos, o
Novo Diccionario ignora, embora fale de uma das
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 33

famílias desses lagomorphos ou leporideos (coelhos,


lebres, tapitis, etc).
E diz-nos o Sr. R. von Ihering que na segunda
edição do Novo Diccionario se aífirmava ser preá
synonymo de roedor. Na terceira emendou'a mão
como fez com ftorianista e outros.
A nomenclatura dos morcegos deixa também im-
menso a desejar : megachiropteros, microchiropteros,
as duas sub-ordens lá não apparecem.
A palavra morcego também define muito mal o
Novo Diccionario delia diz Gênero de mammiferos
em vez de Ordem. Ainda bem que nos inculca que
se trata de mammiferos!
A segunda subordem é a única entre nós repre-
sentada. Conta cinco famílias, das quaes três brasi-
leiras também : vespertilionideos, phyllostomideos,
emballonurideos. De nenhuma dellas dá o Novo
Diccionario signal de existência...
Falta-nos agora falar dos primatas. Começa o
Novo Diccionario definindo muito mal a palavra
macaco que é um termo que abrange todos os pri-
matas e não só um gênero de mammiferos quadru-
manos como inculca o Sr. Cândido de Figueiredo.
Das duas sub-ordens de primatas o Novo Diccio-
nario menciona uma a dos lemuroides a que chama
lémures.
Mas nada diz da outra : a dos anthropoides. Isto
nos dá mais uma vez idáa frizante do atrazo do léxico
figueiredeano.
Os lemuroides são também chamados prosimios,
vocábulo com que jamais sonhou o douto dicciona-
rista. Das suas três famílias lemurideos, chiromyi-
deos, tarsiideas falará o Novo Diccionario opportu-
namente em alguma edição longínqua. Por emquanto
i
34 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

não... Ainda é muito cedo, estes nomes são invenção


de intrujões...
Da segunda sub-ordem a dos anthropoides nada
fala o Sr. Cândido! Será possível!
Isto nos dá nova mostra do atrazo do seu léxico.
Desconhece o Sr. Cândido a existência deste vocá-
bulo! E' simplesmente pasmoso! Inculca ignorar o
que seja anthropoide, simio anthropoide, a sub-ordem
a que pertencem o orangotango, o gorilla, o chim-
panzé!
Para o Sr. Cândido de Figueiredo, anthropoide é
adjectivo ou então um « ser imaginado por alguns
anthropologos, como transição do animal para —
o homem ».
Ergo, o gorilla, o orangotango, estão evoluindo,
para se revestirem dos caracteres humanos.
Ignora o douto philologo que o termo designa os
. grandes macacos, e genericamente os maiores prima-
tas I Phantastico!
Manes do illustre Daniel Giraud Elliott!
Os anthropoides são catarrhinos ou platyrrhinos;
a ambas as palavras menciona o Novo Diccionario,
o que surprehende, dada a sua pobreza habitual em
matéria vocabular scientifica.
Das duas famílias dos primeiros omitte duas!
Os anthropomorphideos ou simiideos e os cercopi-
thecideos. Total duas!
Dos nossos macacos brasileiros, vejamos si men-
ciona as famílias : não nos fala nem em cebideos nem
em hapalideos!
Dos primeiros e de suas quatro sub famílias, tão
nossas conhecidas, mycetineos (guaribas), pithe-
ciineos (cuxiús), acteineos (sagüis), e cebineos (muri-
quis), só averba o quarto vocábulo.
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 35

Temos assim terminado a nossa revisão summaria,


quanto possível, da nomenclatura primacial zooló-
gica, do Novo Diccionario.
Para levar a effeito servime — quero mais uma
vez lembralo — do excellente Compêndio de Zoolo-
gia do illustre amigo e eminente arachnologo Dr.
C. F. de Mello Leitão e das não menos dignas de
apreço Noções syntheticas de Zoologia brasilica, obra
do eminente zoólogo Dr. Alipio de Miranda Ribeiro
de cuja amizade também tanto me desvaneço. São
dous livros que sobremodo honram a cultura brasi-
leira e synthetisam tudo quanto mais moderno ha a
cerca da sciencia de Lamarck e Darwin.
A quem a haja acompanhado patentissimo se
torna, quanto o volumoso léxico figueiredeano é
a seu respeito, insufficientissimo e mais que defei-
tuoso, e quanto freqüentemente inculca noções ab-
solutamente errôneas e ás vezes monstruosamente
erradas.
Acaso conferirá este resultado com o escopo colli-
mado pelo eminente philologo em seu prefacio :
« Procurei não omittir os mais recentes descobri-
mentos em qualquer época da actividade humana,
e dando ao meu trabalho feição sensivelmente ency-
clopedica, obedeci ao propósito de basear em novos
processos uma obra que não podendo ter tudo, tivesse
ao menos alguma cousa de tudo e de novo? »
Realmente pelos exemplos que adduzi, tão nume-
rosos, pelo menos uma parte deste programma se
realizou! Demonstra o volumoso léxico a lógica do
methodo da sua factura e o valor da consulta ou o
valor do aproveitamento das fontes consultadas!
Em summa, em vez de aproveitar as definições
zoológicas mais recentes, apegou-se o Sr. Cândido
36 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

de Figueiredo, ás antigas, obsoletas, condemnadas,


velhas por vezes, de quasi um século.
Mencionando nomes salteados e raros, dentre a
nomenclatura actual das ordens e famílias zoológi-
cas, revelou o eminente philologo, a deficencia cul-
tural generalisada que o levou a escolher estes vo-
cábulos a esmo, ao acaso do encontro das leituras
feitas e citações avistadas, aqui e acolá, quando o
mais elementar critério o obrigava a citar todos os
vocábulos pertencentes a um mesmo grupo ou abs-
ter-se de mencionar egualmente todos.
Sim, porque, uma obra que reclama c com que
energia! — a primazia entre os diccionarios da lin-
gua, não pôde ter tantas e tão inexplicáveis desca-
hidas, tantas e tão injustificadas lacunas, tantas e
tão deploráveis erronias.
VII

O Sr. Cândido de Figueiredo e a ecologia. Inacredi-


tável confissão da fraqueza do douto diccionarista.
A lacunosidade de seu vocabulário de physica.
Omissões inacreditáveis. Pasmosas definições de
aeroplano, periscopio, thermomultiplicador, etc.

Pede-me contas o Sr. Cândido de Figueiredo por


ter tido a audácia de lhe haver indicado como lacuna
do seu diccionario, iconotheca e ecologia.
« Regista o termo erudito iconotheca, sem nos
dizer quem o autorisa ou se foi elle quem o inventou;
e regista ecologia, sem nos indicar a razão do termo
ou a sua composição, o que é indispensável para a
diccionarisação dos termos scientificos!!! »
Iconotheca não o inventei; foi-me suggerida a sua
apresentação pelo letreiro impresso existente, com
esta palavra, tão racional, á entrada de uma secção,
do archivo da Companhia Melhoramentos de S. Paulo,
á rua Libero Badaró, 90, em S. Paulo. A grande em-
preza editora paulista possue uma collecção já pre-
ciosa de estampas brasileiras e estrangeiras de toda
a espécie, gravuras antigas, desenhos recentes, sce-
nas de todo o gênero e milhares de retratos.
38 INSUFF1CIENCIA E DEFICIÊNCIA

Quanto a ecologia... Mas este caso precisa de demo-


rada attenção, que é realmente precioso.
Começo por agradecer ao Sr. Cândido de Figueiredo
o argumento temível que contra si próprio teve a
gentileza involuntária de me offerecer.
Será possível que o illustre philologo venha pedir
a mim, a mim, « homem bom e ingênuo, que ha um
século, com a minha intelligencia e amor ao tra-
balho, poderia ser um vocabularista mais ou menos
aceitável? » venha pedir-me credenciaes para eco-
logia ? Será possível que o Sr. Cândido de Figueiredo
« hoje que os tempos são outros » precise de que eu
lhe aponte o pedigree de ecologia ? Será preciso que
< eu, desconhecedor da sciencia de Bopp, Schlegel,
Grimm, Muller, Whitney, que impõe ao dicciona-
rista deveres e processos », será possível seja eu
quem deva documentar as pretenções de ecologia a
transpor os augustos humbraes do Diccionario do
Sr. Cândido?
Santo Deus de Misericórdia! Santos e santas do
ceu! Dar-se-á, acaso, o facto de que o Sr. Cândido de
Figueiredo jamais se haja encontrado com ecologia ?
jamais lhe haja lançado os olhos em cima, jamais
haja ouvido falar em ecologia ? até o anno da graça
de N. Senhor Jesus Christo de 1923? Pois então!
um diccionarista do seu tomo! um sabedor da sciencia
de Whitney e de Burnouf, um manipulador conti-
nuo de diccionarios scientificos, até hoje nunca ouviu
falar em ecologia ? a um amante, como elle, do voca-
bulário das sciencias naturaes jamais se deparou
ecologia ? Será verdadeiramente possível que tão
grande philologo venha pedir a um pobre diabo de
colleccionador de lacunas, a quem trata dente su-
perbo, provas do que sejam os títulos de ingresso de
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 39

ecologia ao sancta santorum do Novo Diccionario da


lingua portugueza ?
Não, não é possível! Não se trata aqui de um caso
de cochilo homerico, de vulgar quando-que bônus.
Ao omittir ecologia estava o Sr. Cândido, certamente,
sob a acção de uma ligeira crise amnesica, essa mesma
crise que o levou ao esquecimento de anaphyllaxia,
palavra aliás de hontem, contemporânea da pri-
meira edição do seu diccionario, hoje em vésperas de
quarta, a de 1896.
Mas vamos á substancia do caso, que é o impor-
tante. Pede-me o Sr. Cândido de Figueiredo severas
contas do atrevimento em lhe suggerir como lacuna
do seu diccionario a palavra ecologia e eu lh'as vou
dar, creio que cabáes.
Começo recorrendo á grande autoridade, á formi-
dável autoridade do grande philologo de quem o
Sr. Cândido se proclama discípulo, o illustre William
Dwight Whitney, sob cuja direcção se edificou um
dos maiores monumentos encyclopedicos de todos
os tempos : The Century Diclionnary and Cyclopedia,
geralmente chamado Diccionario de Whitney.
Na edição de 1909, 1909! 1909! veja-se bem :
1909!!! ahi procuro Ecology e o grande philologo
americano me manda ver : QZcology que assim define
depois de lher dar a etymologia hellenica : « In biol :
the science of animal and vegetable economy; the
study of the phenomena of the life-history of orga-
nisms in their individual and reciprocai relations;
the doctrine of the laws of animal and vegetable
activities, as manifested in their modes of life. Thus,
parasitism, socialism, and nest building are promi-
nent in the scope of oecology. »
E o diccionarista ajunta á palavra, tão magistral-
40 INSUFFICIENClA E DEFICIÊNCIA

mente explicada, o seu adjectivo cecological; of or


pertaining to ozcology. E assim é Whitney quem res^
ponde ao Sr. Cândido e não o ínfimo catador de bra-
sileirismos.
Passemos agora a outra encyclopedia de alto re-
nome : o Nouveau Larouse illustré, redigida pelo
illustre philologo contemporâneo Cláudio Auge.
Creio que o Sr. Cândido de Figueiredo lhe acatará
a auctoridade. No exemplar que desde 1907 possuo,
leio : CEcologie (du gr. oikos maison et logos discours,
science) n. f. Science des rapports des organismcs
avec le monde extérieur ambiant, avec des conditions
organiques (biologiques) ou inorganiques (cosmiques)
de 1'existence. »
Dá a própria definição do inventor do neologismo,
Haeckel.
Consulto depois a soberba, a soberbissima Ency-
clopedia universal ilustrada europeo-americana, dos
editores Hijos de J. Espasa, a encyclopedia de Es-
pasa, como é geralmente chamada.
« Ecologia (etim-del. gr. oikos, casa y logos, trata-
dos) f. Hist. nat. Se denomina asi, modernamente Ia
parte de Ia biologia que estudia ei modo de vivir de
los animales y de Ias plantas y sus relaciones con
los seres que los rodean; pertenecen pues à Ia eco-
logia ei estúdio de Ia alimentacion, Ia habitacion, Ia
distribucion geográfica, Ia influencia dei clima y de!
ambiente, los fenômenos de parasitismo, simbiosis
y comensalismo, ei cuidado de Ias crias, Ia vida en
sociedad, etc. »
Passo a consultar o léxico monumental, diccio-
nario padrão da lingua ingleza, o « Webster ». Têm
geralmente os edirores de diccionarios a esperteza
de não querer fixar a data da publicação de suas edi-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 41

ções. Sabem de sobra que, se ha obra que não deva,


não possa envelhecer, essa é o diccionario, sobretudo
o encyclopedico. « Engordar, senhoras! é envelhecer »
diz um annuhcio celebre de thyroidina. « Confessar
a idade é decahir! » dizem de si para si os dicciona-
ristas. A este planosinho não fugiram os editores do
Sr. Cândido de Figueiredo. A' folha de rosto do Novo
Diccionario nenhum millesimo compromettçdor se
assignala.
Mas não tem os do « Webster » este receio, pois
sabem que as suas tiragens vão umas atraz das ou-
tras, rapidamente. Feitos estes pequenos reparos,
notemos o que diz o formidável léxico :
Renuncia á forma erudita cecology em troca da
simplificada e hoje corrente ecology, de que dá uma
definição, para o nosso caso preciosa, pois põe em
relevo a grande importância deste termo acerca de
cuja existência o Sr. Cândido de Figueiredo se mostra
tão admirado : e ainda nos relata e abona a presença,
no vocabulário inglez, de nada menos de quatro
derivados do neologismo (quando Whitney e La-
rousse só trazem um) : ecologic, ecological, ecologi-
cally, ecologist!
Contras estas autoridades se insurgirá o Sr. Cân-
dido de Figueiredo?
Provavelmente!
Assim define Webster :
« Ecology, n. AIso cecology (gr. oikos, house logy)
Biol. The branch of biology which deals with the
mutual relations between organisms and their envi-
ronment, bionomics. This term is now more widely
used in botany than in zoology and includes : phy-
siological ecology which deals with the study of the
reaction to environment; physiographic ecology Avhich
42 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

deals with edaphic plant societies; and geographic


ecology or ecological phytogeography which has to
do with the leading plant formations from the cli-
matic aspect. »
Quer ainda o Sr. Cândido de Figueiredo mais pas-
saportes para conceder a ecologia a insignc honra de
surgir nas paginas do Novo Diccionario ?
Fica por Webster sabendo que o termo tomou
enorme importância que se refere a departamentos
diversos. E como prova de quanto tem avultado no
conjuncto das sciencias naturaes ainda lhe repito o
argumento de que Whitney em 1909 lhe conhecia
um único derivado cecological. Webster em 1920
lhe apontava nada menos de quatro citados (cf.
pag. 697) ecologic, ecological, ccologically, ecologist.
Nos nossos bellos e bárbaros Brasis tem a palavra
tido a maior divulgação. Ecologia, ecologo, ecológico,
ecologicamente, a cada passo saltam ao bico da penna
dos nossos scientistas. A' porfia os empregam os
nossos mais abalisados naturalistas Alipio de Miranda
Ribeiro, Mello Leitão, Neiva e quantos e quantos
mais? Se ainda não se acha o Sr. Cândido de Figuei-
redo satisfeito, indague de Lauro Travassos, Adol-
pho Lutz, Afranio do Amaral, Beaurepaire Aragão,
Almeida Cunha, Costa Lima, Carlos Moreira, A.
Ducke, H. Luederwaldt, A. Hempel, Roquette
Pinto, R. Gliesch, Álvaro da Silveira, Olympio da
Fonseca, César Diogo, Bourguy Snethlage, May,
Pirajá da Silva, Alberto Sampaio, J. Melzer, Borg-
meier, Campos Porto, G. Kuhlmann, Gomes de
Faria. José B. Arantes, Aristides M. da Cunha,
d'Utra e Silva e quantos e quantos mais da magní-
fica pleiade de zoólogos e botânicos que tanto brilho
dão actualmente aos estudos das sciencias naturaes
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 43

no Brasil, indague o Sr. Cândido de Figueiredo, de


qualquer delles, se ecologia e seus derivados são pa-
lavras ignotas, que ainda precisam de credenciaes!
E ainda : se foi por mim inventada!!??
A tal ponto chega a prodigiosa vaidade do Sr. Cân-
dido de Figueiredo que lhe havendo eu citado eco-
logia como lacuna de seu diccionario, por suggestão
que aliás recebi do meu presado e joven primo e il-
lustrado amigo, Dr. Edgard Teixeira Leite — lhe
havendo eu apontado ecologia como omissão do Novo
Diccionario e como neologismo creado por Haeckel,
em vez de tirar o caso a limpo, commigo investiu
irritado a clamar « o Sr. Taunay regista ecologia
sem nos indicar a razão do termo ou a sua compo-
sição, o que é indispensável para a diccionarisação
dos termos scientificos ».
Entretanto escrevi « Ecologia — sciencia que es-
tuda as relações mutuas de todos os organismos vi-
vendo num mesmo meio e sua adaptação ao meio
que os cerca ».
Não ha ahi então a«razão do termo» ? Quanto á sua
etymologia não querendo infringir o ne sutor, deixei
de a dar. Que me custaria porém enfeitar-me com a
sciencia de Whitney e dos demais encyclopedistas ?
Seja como for, o Sr. Cândido de Figueiredo impu-
gnou a minha proposta de se conceder entrada a
ecologia na paginas do Novo Diccionario.
Pois bem, se não se dá por satisfeito com as indi-
cações de procedência ultramarina ainda lhe avento
a hypothese de recorrer aos naturalistas portuguezes,
que os ha tão numerosos quanto dignos do maior
acatamento.
Aposto que não existirá um único ignorante do
que sejam ecologia e seus derivados...
44 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Em vez de arremeter contra mim, quanto não


teria lucrado o Sr. Cândido em consultar a qualquer
naturalista seu compatriota.
E nem precisaria fazel-o. Bastava que consultasse
um diccionario scientifico portuguez de largo presti-
gio e avultado tomo : Encyclopedia Portugueza
Illustrada que sob a direcção do Dr. Maximiliano de
Lemos se publicou em principio do século. E' a
única neste gênero em lingua portugueza ao que sai-
bamos. Contra ella move o Sr. C. de F. a continua
conspiração do silencio. Nem a menciona na sua
extensa resenha de escriptos e obras consultadas.
Se no entanto houvesse o douto diccionarista re-
corrido a esta Encyclopedia de que tão pouco faz
teria recebido a mais proveitosa licção :
« GScologia (de oikos, casa, e logos, discurso, scien-
cia), sciencia das relações do organismo com o mundo
exterior circundante com as condições orgânicas
(biológicas) ou inorgânicas (cósmicas) da existência
(Haeckel). E depois menciona a Encyclopedia de
Lemos o adjectivo cecologico. Veja o que perdeu o
Sr. Cândido com o seu orgulho!
Mas... Quos vanitas vult perdere...
Resultado : confessou o Sr .Cândido de Figueiredo,
em publico e raso, que em 1923 não sabia da exis-
tência de ecologia e seus derivados! Confessou por-
tanto que os seus mentores em matéria de biologia
estão atrazados de pelo menos um terço de século,
senão mais... estão nas mesmas condições de seus
mentores de chimica, gente equivalentista.
E ainda se fossem dos bons equivalentistas!...
Porque se taes consultores não proviessem de eras
« priscas », em suas paginas se depararia ao Sr. Cân-
dido de Figueiredo' e mais de uma vez, muitas e
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 45

muitas vezes, ecologia pelo menos, se não o substan-


tivo e seus derivados.
Fez a palavra enorme e rapidíssima carreira, tal
qual succedeu nos últimos annos a um heologismo
proposto por Ch. Richet — anaphylaxia (outro termo
celebre), que ainda não soou aos ouvidos do Sr. Cân-
dido de Figueiredo, ao que parece, pois pelo menos
não apparece nas paginas da edição do Novo Dic-
cionario, a de 1923, lembremol-o de passagem.
Admittir que o Sr. Cândido não saiba quem haja
sido Haeckel-Ernesto Henrique Haeckel, é coisa que
se não pôde conceber. Pois nem assim, nem apadri-
nhada por tão famoso patrono, mereceu a pobre eco-
logia as honras do sésamo? Porque? Só porque ódio
in autore ductus nella viu o Sr. Cândido de Figueiredo
que lhe era suggerida pelo João Fernandes, catador
de alguns milhares de lacunas geralmente brasileiras
do seu diccionario « irreprehensivel ».
Porque geralmente é o Sr. C. de F. muito pouco
exigente quanto á documentação com que legalisa
a aceitação de palavras scientificas por elle recolhi- ,
das como lacunares.
Um exemplosinho — e soberbo! — basta para
deixar o caso perfeitamente explanado. Vejamos só :
Hertziano (N. D., t. I, pag. 1002 da 3 a edição,
columna 1, palavra 15a). Hertziano, adj. Diz-se de uma
variedade de télegrapho (sic, sic, sicl), cf. Jornal do
Commercio do Rio de 13 jun. 1901 (sic, sic, sic!).
É com a autoridade scientifica de uma noticia da
gazetilha do Jornal do Commercio que o Sr. Cândido
de Figueiredo cobre hertziano! autorisa a sua inclusão
no Novo Diccionario!
Hertziano, variedade de télegrapho! E só isto!
Mas se o Jornal do Commercio já o disse! É a repe-
46 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

tição do caso da Technologia rural abonadora da chi-


mica. Que pena não haja surgido pelas columnas do
Correio de Freixo de Espada a Cinta esta malsinada
palavra a ecologia I A ella se atiraria o Sr. Cândido
de Figueiredo como gato a bofes! E haveria de tela
como perfeitamente legalisada com todos os passa-
portes.
Não! não é possível que pesquizando ardorosa-
mente nos livros de sciencia, para, como tanto se
gaba, nelles descobrir termos ainda não diccionari-
sados, não se haja o Sr. Cândido de Figueiredo avis-
tado com ecologia e seus derivados! Só se jamais quiz
estender o campo de sua procura aos livros publica-
dos de 1900 para cá e se entende que, ha um quarto
de século, as sciencias naturaes estacionaram.
D'ahi a sua lacuna, mais que deplorável, inquali-
ficável, para um léxico cujo autor vive a lhe procla-
mar a primazia dentre os demais diccionarios da
lingua portugueza.
E assim se demonstra que o vocabulário das scien-
cias naturaes, no Novo Diccionario, corre parelhas
com o da chimica.
Uma outra hypothese se nos apresenta ao espirito
porém, inspirada pelo muito respeito que professamos
por um diccionarista do tomo do illustre philologo.
Se para ecologia conceder o placet, o dignus esi
entrare no gazophyllacio do seu Novo Diccionario
vem o Sr. Cândido de Figueiredo exigir-me creden-
ciaes, a mim, pobre e humilde colleccionador de bra-
sileirismos, sem pretenções algumas a philologo, é
que no momento estava passando por forte crise
amnesica.
Esta lhe varreu da memória, a palavra ecologia
muito e muito sua conhecida, certamente.
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 47

Infelizmente foi esta crise profunda, prolongada e


extensissima, pois igualemente lhe roubou da reten-
tiva numerosíssimos termos, hoje corriqueiros, exis-
tentes os mais delles em livros gymnasiaes.
Foi ella que lhe pregou a peça de lhe tornarem
esquecidas : auto-inductor, auto-induçcão, anti-ca-
thodo, astatisação, aero-thermometro, adiabatico, auto-
excitação, auto-excitador, aperiodico, amperagem, bi-
refracção, biaxial, canaes (raios), calor de fusão,
calor de vaporisação, calor especifico, conductancia,
convecção, convectivo, curie, coheror, conlra-pressão,
carcel, chrono-photographia, capacitancia, detector,
diphasico, desactivação, dilatometro, espectrographo,
erg, espectrographia, espectro-photometro, entropia,
epidiascopo, equivalente (mecânico do calor), emana-
ção (do radio), equipotencial, extracorrente, espintha-
riscopio, electrodynamometro, freqüência, frequencime-
tro, gaz perfeito, gauss, hysteresis, henry, hygrographo,
hyposcopio, inclinatoria, infravermelho, impedancia,
inversor, joule, kilowatt, kerzen, lux, lumen, linha de
força, multipolar, monophasico, microfarad, micro-
telephone, nicol, ondometro, oscillador, osmometro,
polyzonal, potencimetro, phototelegraphia, phot, ruptor,
syntonisar, syntono, synlonisação, self-inducção, self-
inductor, violle, turbo-alternador, turbo-dynamo,
thermo-elemento, thermochrose, tonometria, teleme-
canica, televisão, teledynamica, ultra-violeta, watt,
watt-horometro, wattagem, wattometro, aberrascopio,
d'arsonvalisação, declinometro, dichromasia, diplex,
dynametro, ebullioscopia, electro-coagulação, electro-
capillaridade, electrocutor, eutexia, eutectico, foco-
metro, hodographo invar, tonometria.
Num abrir e fechar de olhos, percorrendo rapida-
mente as paginas de um compêndio de gymnasio,
48 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

como o Tratado elementar de physica de Branly e evo-


cando-me as suas indicações, por analogia de situa-
ções, outras palavras, num pequeno lapso de tempo,
õccorreram-me a esmo mais de cem lacunas do Novo
Diccionario, nascidas da crise amnesica do seu il-
lustre autor.
Não ha duvida que destas omissões nem todas têm
a mesma importância.
Já que tanto porém se desvanece o Sr. Cândido de
Figueiredo de haver dado ao seu Novo Diccionario
abundantíssima e modernissima nomenclatura tech-
nologica e scientifica e disto tanto alarde faz, im-
menso alarde faz — « procurei não omittir os mais
recentes descobrimentos em qualquer esphera da acti-
vidade humana » (cf. pag. xi) — já que se gaba de
estar ao par do avanço geral das sciencias, como ex-
plicar que nesse anno de graça de 1923 brilhem pela
ausência nas paginas do Novo Diccionario, além de
ecologia, palavras que estão aos lábios dos meninos
preparatorianos de physica, como watt e kilowatt,
erg, joule e amperagem, nicol e self-inducção, mono-
phasico e diphasico, emanação, extra-corrente, incli-
natoria, ultra-violeta, etc, etc, etc. Se até calor espe-
cifico não inculca o Novo Diccionario o que venha
significar!?
Será porém o próprio Sr. Cândido quem nos dará
a definição exacta daquillo que elle entende ser o
ultra-moderno no sentido do inventariamento dos
diversos departamentos do saber humano.
« Procurou não omittir os mais recentes descobri-
mentos em qualquer esphera da actividade humana »
e obedecendo a este critério assim em 1923 (1-9-2-3),
definiu cathodo : o Diz-se do raio invisível (sic) que
penetra os corpos opacos e que determinou o re-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 49

cente (sic!) processo photographico de RoentgenU »


Quanto revelação traz esta preciosa definição!
Confusão absoluta entre os raios cathodicos e a
placa de que se desprendem no tubo de Crookes, o
cathodo; confusão tremenda entre os raios cathodi-
cos de Crookes e os raios X de Róntgen; demons-
tração mais do que evidente de que a definição do
Sr. Cândido vem de 1896, quando começaram os
raios X a, fazer barulho no mundo, e sobretudo de
que s. s. a tal respeito ouviu cantar o gallo... De
modo que a radiographia de 1923 é atnesma de 1896.
Não progrediu um passo?!
O « processo photographico » de Roentgen é o
« recente » para o Sr. Cândido (1896)! — em que o
raio invisível cathodo penetra os corpos opacos!
É bom lembrar-ainda que em geral a physica do
Sr. Cândido « não vae lá muito das pernas » como
diz a engraçada expressão de nossa giria brasileira
contemporânea.
Alguns exemplosinhos edificantes.
Na definição de kilogrammetro, por exemplo, ha
uma excrescencia relativa ao tempo que corre por
conta do diccionarista mas que os physicos repellem.
« Periscopio, affirma o Sr. Cândido. O mesmo que
kaleidoscopio. » Que tal? que tal? Eis uma cousa
que deve ser levada ao conhecimento dos comman-
dantes dos submarinos! Vemos estes intrépidos nave-
gadores armados de kaleidoscopios! desses que os
bazares de brinquedos vendem, a observar a super-
fície das águas!
Delicioso « engano » ! Kaleidoscopio synonymo
de periscopio!
Thermomultiplicador afiança o Sr. Cândido é um
« maquinismo thermometrico muito sensível ».
50 INSUFFIC1ENC1A E DEFICIÊNCIA

Manes de Melloni!« maquinista thermometricol t


Também protesto contra o seguinte :
Thermographo, machinismo que regista as tem-
peraturas!! Que tal?
Dentre os numerosos vocábulos começados por
thermo e que o Novo Diccionario averba, muitos ha
pessimamente definidos como thermocauterio em que
o diccionarista confunde o apparelho com o processo
thermogeneo em que um caso especial é generalisado,
thermomanometro, etc. A physica do Snr. Cândido
corre parelhas com a sua chimica.
Mas basta e basta! esta já vae longa demais.
Uma ultimasinha porém para deixar bem patente
mais uma vez que o Sr. Cândido de Figueiredo, como
tanto se jacta « procurou não omittir os mais recentes
descobrimentos em qualquer esphera da actividade
humana ».
Foi o que o levou « magistralmente « definir aero-
plano.
Esta porém é tão curiosa! é tão espantosa que nos
obriga a abrir novo e largo parenthesis.
Na segunda edição do Novo Diccionario lê-se i
seguinte maravilha. « Aeroplano : apparelho aeros-
tático, movido a vapor e sustentado sobre planos oi
lâminas postas em acção por um motor da força d<
um cavallo. Inventado recentemente em 1896 poi
Langleyü » (sic, sic, sic!). Stupete, gentes!
Commentando esta estupafaciente definição ex
primiu-?e o Dr. Araújo, de Botucatú, em artigo d;
Folha da Noite, de S. Paulo, em princípios de abri
de 1924, e epigraphado No Mundo dos doutos: « Las
timavel é o fracasso do Sr. Cândido de Figueiredo
quando pontifica que « aeroplano » é um apparelh
aerostatico, movido a vapor e sustentado sobre pia
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 5l

nos ou lâminas postos em acção por um motor de


força de um cavallo. Inventado recentemente, em
1896, por Langley ». E' o caso : — Prrr... pega!
pega! apita... ladrão! Definição de figurinha de car-
teira de cigarro ou photographia ordinária... O
Sr. Cândido de Figueiredo viu de outrora, muito alto o'
aeroplano... E isso na terra dos valentes e destemidos
sulcadores dos ares atlânticos, Sacadura Cabral e
Gago Coutinho.
Commentada essa definição, á altura do seu dis-
late, daria um volume de fôlego em pândegas e gar-
galhadas! E' bôa! E aposto que essa definição é de
origem futurista! Não ha outra entrada para tão
ampla sahida... Futurismo de lâminas sustentadas
sobre planos a cavallo, como quem faz cálculos dos
caminhos a transpor para a luz da lua « que illumina
a terra de noite », com a força de um motor, sem tro-
picar nem cahir.
Não é possível não haja alguém avisado o Sr. C.
de F. da sua bacellarice a propósito de aeroplano.
Mas pretender que dê o braço a torcer é sobrehu-
mana empreza. Era porém a coisa de tal ordem que
entendeu mais prudente « dar-lhe um geitinho ».
Pensou bem no caso e achou-lhe solução excellente,
irretorquivel... là no seu entender.
Assim lemos esta belleza na edição de 1923 :
Aeroplano (a-e), m. Apparelho aerostatico (sic!!)
movido a vapor, e formado de planos ou de lâminas
e de um motor. (Foi inventado, recentemente, em
1896, por Langley.)
Está tudo sanado com a modificação do numero de
cavallos vapor do motor; este deixou também de ser
o propulsor dos taes planos, ou lâminas, da defini-
ção velha para lhes ser somente o associado. Mas Lan-
52 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

gley, este ficou intangível, cada vez até mais recente


de 1912 a 1923.
Toda esta cambada,*esta legião de Santos Dumont,
Chanutte, Wilbur e Orville Wright e quejandos in-
ventoresinhos, tudo isto foi annullado, de uma pen-
nada dogmática para maior gloria de Langley e de
sua recente (em 1923) invenção (de 1896!!!).
Está tudo explicado. Assim como a chimica do
Novo Diccionario é aquella « bellezinha », a aviação
do Sr. Cândido de Figueiredo parou recentemente...
em 1896 com a radiologia, com os aeroplanos-acros-
tatos, os aviões-balões movidos a vapor!
Por estas e outras, é que inderrocavelmente es-
teiado nessa sciencia up-to-date, gangento e soberbo,
acabrunhando os humilimos caçadores de lacunas
com o peso immenso do seu desprezo infindo veio o
Sr. Cândido de Figueiredo exigir-me, para poder dar
ao vocábulo entrada no gazophyllacio do Novo Dic-
cionario da Lingua Portugueza as credenciaes de
ecologia.
VIII

A chimica do « Novo Diccionario». Fontes informativas


antiquissimas. Nomenclatura desueta. Fluor corpo
ainda não isolado... em 1923. Fluorhydrico syno-
nymo de ftuorico. O ácido hydro-fiuosilicico, combi-
nação binaria! Noções obsoletas sobre os ácidos
sulfurico e azolico. Sulfito o mesmo que sulfato!
Ácido phosphoroso o mesmo que ácido phospho-
rico! Ozona « cheiro » Radio, substancia que se
encontra no baryo. Anhydridos, corpos que se não
combinam com a água. Misoneismo inveterado.

Com grande curiosidade se recebeu no Brasil a


terceira edição (1923) do Diccionario da Lingua Por-
tugueza, do Sr. Cândido de Figueiredo, que, desde
muitos annos, se anunciava prestes a surgir.
Representava a segunda tiragem do alentado léxico
muito prestante serviço ao inventariamento dos re-
cursos de nossa lingua. Jamais se imprimira tão rica
e extensa catalogação dos vocábulos portuguezes,
luso-coloniaes e brasileiros.
Havia, comtudo, muitas e graves falhas nesse ten-
tamen digno de applausos, certamente; assim por
exemplo nelle se notavam deficiência considerável
54 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

da colheita dos brasileirismos, impropriedade dos


significados de numerosos vocábulos nossos, notável
lacunosidade das diversas technologias scientificas,
obsoletismo freqüente das definições scientificas, e
presença freqüente de definições viciosas.
Foram muitos destes defeitos apontados ao Sr. C.
de F. por diversos reparadores de Portugal e do
Brasil. Assim se esperava que a terceira edição do
Novo Diccionario viesse escoimada de muitos dos seus
vicios e lacunas.
Infelizmente tal não se deu. Persistiu o Sr. C.
de F. em manter a quasi totalidade dos defeitos e
vicios da sua segunda tiragem.
Examinando as diversas faces da nova edição já,
entre nós, vários reparadores autorisados apontaram
as graves emendas que o seu texto está reclamando.
Assim por exemplo, ainda e ultimamente, ao que
saibamos, em São Paulo, os Srs. Dr. Edmundo Na-
varro de Andrade, a propósito da botânica e da syl-
vicultura do Novo Diccionario e o Sr. Rodolpho
von Ihering, acerca da sua nomenclatura zoológica,
vulgar, da fauna brasileira.
Em artigos incisivos da Revista do Brasil, que tive-
ram enorme divulgação, apontou o Dr. Navarro
deslises numerosos, erros sérios e até verdadeiros
disparates colhidos entre as definições do Novo Dic-
cionario. Também nos inculcou o Sr. Ihering uma
boa vintena senão mais, de lapsos de igual teor,
alguns dos quaes verdadeiramente estupefa-
cientes.
Como causa principal de taes successos aponta o
Dr. Navarro a teimosia vaidosa do illustre philologo
em pretender arvorar-se em encyclopedista, capaz
de definir sem o alheio concurso todo o vocabulário
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 55

das mil e uma subdivisões do moderno saber. Dahi


uma serie de resultados deploráveis.
Seja-nos agora dado como mero e modesto estu-
dioso examinar algumas tantas definições da chimica
do Novo Diccionario, em sua terceira edição.
O que do mais perfuntorio exame resalta desse
vocabulário é que para o exemplificar lançou o Sr. C.
de F. mão de livros muito antigos, quasi contem-
porâneos de Thenard e de Berzelius em geral.
D'ahi a sua technologia equivalentista hoje de-
sueta. Mas, como ao mesmo tempo, averba o diccio-
narista muitos nomes novos das recentes descobertas
d'ahi decorre uma « mistura de grelos » sobremodo
desconcertante. Em que pé dansaremos? é o caso de
se repetir o conhecido adagao francez. Para muitas das
definições da terceira edição, das que já na primeira
appareceram, mereceria tal exemplificação o quali-
ficativo affonsino se esdfcuxulo não fosse appücar o
adjectivo medieval, já contemporâneo de Ourique,
a uma sciencia nascida na segunda metade do sé-
culo XVIII.
Não fora isto e seria o caso de se dizer que taes
significados, eram « do tempo dos affonsinhos »,
quando nem ainda se falava nos fígados de enxofre
nas caparosas e quejandos termos da nomenclatura
dos alchimicos, já mais próximos de nós.
Ha uma indicação preciosa da data das mais re-
centes obras de consulta chimica corrente do Sr. C.
de F. E' a que se encontra na palavra flúor, assim
definida pelo illustre philologo : « corpo simples,
ainda não insulado ». Ora quer isto dizer simples-
mente que a chimica do Sr. C. «stá atrazada de quasi
quarenta annos! Sim, porque desde 1886, realisando
o illustre Moissan a electrolyse do ácido fluorhydrico
56 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

conseguiu isolar o mysterioso e terrível « phtoro »


causador da morte se não me engano de um dos
seus tenazes e infelizes perseguidores, os irmãos
Knox (cf. Jungfleisch, Manipulações de chimica,
p. 439).-
Assim em 1923, no anno da graça de Nosso Senhor
Jesus Christo,* de mil novecentos e vinte e três, per-
siste o Sr. Cândido de Figueiredo em contestar a
grande, a máxima gloria, do illustre sábio que foi
Henrique Moissan, a denegar-lhe que o flúor já tenha
sido isolado! De que serviu pois ao glorioso sábio dos
fornos electricos, das pedras preciosas artificiaes,
triumphar, numa serie de experiências notabilissi-
mas, das diíficuldades terríveis em que predecessores
illustres do porte de quem? de Linneu! de Davy!
de Fremy! haviam sido desastrados?
Decretou o Sr. C. de F. que o flúor « ainda não
foi insulado » Candidus locutus est... Não dicutamos
pois : o flúor está pedindo o seu insulador, pela voz
do Sr. Cândido de Figueiredo.
E já que estamos em flúor, vejamos o que vae pela
vizinhança do vencido de Moissan. (Que carrancismo
o nosso! persistirmos em duvidar das affirmações
do Sr. Cândido de Figueiredo!)
« Fluorhydrico ou fiuoridrico, aífirma o Sr. Cân-
dido de Figueiredo, diz-se de um ácido formado pela
combinação do hydrogenio com uma base! » Ora,
sendo a constituição do ácido fluorhydrico F1H
segue-se que o flúor é uma base! Não ha como fugir
a esta interpretação.
E além de tudo se o Sr. Cândido affirma que o
flúor ainda não foi insulado como sabe que é uma
base? E onde fica a noção moderna de base chimica?
derrocada nos seus característicos essenciaes? Então,
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 57

neste caso, por analogia, do ácido chlorhydrico se


poderá dizer que é formado pela combinação do
hydrogenio com uma base!» Então base e metalloide
são synonymos?
Fluorico, continua o Sr. Cândido, é o mesmo
que fluorhydrico. Isto se diria « em tempo do Onça »
quando reinava a maior imprecisão nas regras da
nomenclatura chimica. Então neste caso chlorhydrico
e chlorico; bromhydrico e bromico, etc, seriam a
mesma cousa, quando todos sabem que o primeiro
termo, em hydricò, se refere a uma combinação bi-
naria, não oxygenada, e o segundo a uma ternaria
oxygenada. Muito mais esdrúxulo é o que o Sr. Cân-
dido de Figueiredo affirma de fluosilicico.« Diz-se
de um ácido resultante da combinação do silício e
do flúor.» Esta definição quadraria ao Fl4 Si fluo-
reto de silício, se o Snr. Cândido não a houvesse
invalidado dizendo que se trata de um ácido. Nin-
guém a~attribuirá entretanto ao ácido fluosilicico,
ou hydroíluosilicico, que é um ternario Fl6SiH2. E
depois se a uma combinação binaria de flúor e silí-
cio attribue o illustre philologo a aridez, onde fica
a noção essencial da hydrogenação dos ácidos?
E' simplesmente curioso este « lapso »...
Vejamos agora o que o Sr. Cândido de Figueiredo
affirma de dous dos mais conhecidos ácidos da chi-
mica mineral e da industria universal, o azotico e o
sulfurico, conhecidos de gregos e troyanos, quer sob
as designações scientificas, quer sob os nomes vulgares
de agua-forte e vitriolo.
« Azotico, pormenorisa o Sr. C. de F., diz-se do
ácido que é uma combinação do azoto com o oxy-
genio. » Esta noção é velha como a Sé de Braga e o
leitor moderno a repelle como inspirada no equiva-
58 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

lentismo já moribundo, ha quarenta annos atraz.


Tomou-a o Sr. C. de F. do Diccionario de Larousse,
da letra A, do Dictionnaire Universel du XIXe siècle,
que data das vizinhanças de 1865. « Azotico, avança
o Larousse, se diz do ácido que é o quinto grau da
oxydação do azoto, AzO5 HO.» Não querendo perder
espaço supprimiu o Sr. Cândido a referencia a esse
« quinto grau » que hoje nos parece pittoresco. Ao
velho Larousse contrapomos o novo Larousse : o
Nouveau Larousse Illustre, que, por misoneismo,
desdenhou o Sr. C. de F. consultar. « Azotico affirma
o Nouveau Larousse » diz se de um anhydrido formado
pela oxydação do azoto (Az205) e também de um
ácido resultante da hydratação deste anhydrido
(Az03H), Perfeito! perfeitíssimo! dirá qualquer leitor
moderno.
Vá porém algum estudantesinho de humanidades
guiar-se pela definição do Sr. C. de F. e ficará atto-
nito. Como? se um diccionarista de tal tomo garante
que se trata de uma combinação binaria, de oxygenio
e azoto, como se ha de justificar a formula Az08H
do ácido azotico?
Assim se applicarão hoje os dizeres do Sr. C. de
F. á definição dos numerosos oxydos do azoto e
nunca ao ácido azotico.
Do ácido sulfurico avança o nosso illustre philo-
logo : « Diz se do ácido que resulta da combinação
do enxofre com o oxygenio ». Já o velho Larousse,
seu provável mentor, na lettra S, do seu grande dic-
cionario, anterior a 1880, escrevia cousa mais aceitá-
vel : « Diz se de um dos ácidos do enxofre ». Isto
« ainda vae », embora seja sobremodo indeterminado
pois ha numerosos « ácidos do enxofre ». Só os da
seriethionica... Mas emfimainda vae... Mas o Nou-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 59

veau Larousse Illustre este está absolutamente ali


right quando define : « Diz se de um anhydrido for-
mado pela oxydação do enxofre (SO3) e também de
um ácido resultante da hydratação deste anhy-
drido » (S04H2).
Serviria a definição do Sr. C. de F. para qualquer
dos anhydridos sulfurico e sulfuroso SO3 e SO2.
Assim, gerando real confusão, distinctos como são
estes dous oxydos do enxofre, deve ser repudiada.
Será também necessário proceder do mesmo modo
quanto ao significado que o diccionarista dá de
« sulfuroso » — ácido que resulta da combustão do
enxofre. Segundo os conhecimentos modernos é o
anhydrido SO2, que nasce da combustão do enxofre
e não o ácido S03H2, gerador dos sulfitos e até hoje
não isolado, a não ser no estado de dissolução n'agua.
Já que estamos a percorrer o capitulo dos compos-
tos sulfurosos apontemos uma de mestre! « Sulfito,
affirma o Sr. C. de F., é o sal resultante da combi-
nação do ácido sulfurico (sic! sic!) com uma base!!
Exactamente o que algumas linhas acima diz de
sulfato! De modo que sulfito e sulfato são uma e mes-
missima cousa! Assim pois temos S03Na2 = S04Na2
e S0 3 K 3 = S04K2!! Misericórdia! Mas tudo está
sanado com a explicação doutíssima do diccionarista.
(Do latim sulfur...) »
Em todo o caso caridosamente ouso aconselhar
aos consulentes do douto philologo que quando es-
tiverem precisados de « refrescar o sangue » não
tomem uma dose de sulfito de sódio em vez de sul-
fato.
Pois se são uma e mesma cousa!
Que o façam e verão se neste caso as mesmas cau-
sas darão os mesmos effeitos e se o sulfito lhes
60 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

trará os resultados do « sal admirável » de Glauber.


As mesmas informações, antiquadas e desuetas,
inspiraram ao Sr. C. de F a definição do ácido phos-
phorico. Para o leitor moderno ella quadra ao anhy-
drido phosphorico. Mas o que ninguém pode admittir
é um absurdo deste jaez : « Phosphoroso; diz se do
ácido também chamado phosphorico! » O ácido
phosphorico é P0 4 H e o phosphoroso P0 3 H 4 . Assim
pois P0 4 H 3 = P0 3 H e com esta equaçãosinha, ir-
resistível como um projectil de 420, derriba o nosso
douto philologo o grande principio lavoisieriano,
alicerce do edifício da chimica moderna, além de dar
um golpe mortal na regra fundamental de nomen-
clatura a respeito dos compostos diversamente oxy-
genados. Já é ter autoridade! Entretanto, em 1882,
escrevia Caldas Aulette, ás vezes, definições mais
acertadas do que as da modernissima edição do Novo
Diccionario, obra a que o Diccionario Contemporâneo
.procedeu de 41 annos!
« Sulfuroso — gaz ácido que se oblem pela com-
bustão do enxofre. » Também é correcto o que diz o
mesmo Caldas de sulfito e sulfato, fugindo á tremenda
cincada em que cahiu o seu illustre confrade.
Para os leitores modernos são muitas as suas defi-
nições, comtudo, rejeitaveis. Quadravam bem para
o tempo em que surgiu o seu excellente diccionario,
cheio de preciosos predicados e digno do enorme
apreço em que é tido. Pena seja tão lacunoso.
Além destas definições anachronicas averba o
Sr. C. de F. umas tantas outras que se mostram mais
alguma cousa do que obsoletas, merecendo portanto
absoluta repulsa. Assim por exemplo o que de
« ozona » nos conta, ou « ozone » como lhe chama :
« cheiro (cheiro, note-se bem) que se desenvolve sob
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 61

a influencia das descargas electricas e que é devido


ao estado particular que as descargas produzem no
oxygenio ».
Confunde o illustre philologo causas e effeitos.
Assim, para elle, ozone é apenas uma das proprie-
dades organolepticas do oxygenio, submettido á
influencia das descargas electricas...
A esta opinião, opponhamos a de um joão fernandes
fuao Jungfleisch.o nullissimo collaborador constante
de outra nullidade maior, se é possível assim dizer,
personagem que respondia aos nomes ignotos de
Marcellino Berthelot. — « Ozona — polymerisação
do oxygenio, provocada por diversas influencias,
como as das scentelhas elétricas, da oxydação do
phosphoro ao ar humido e sobretudo da descarga
obscura ou effluvio electrico ».
Assim se atreve o alludido joão-ninguem a affirmar
que ozona é uma condensação do oxygenio e não
apenas « um cheiro ».
Poderia a definição do Sr. C. de F. servir, talvez
lá pelos annos de 1840, quando Schoenbein chamou
a attenção dos chimicos para o cheiro de maresia do
« oxygenio electrisado » a que elle appellidou ozona.
J á porém estaria deslocada a definição do Sr. C.
de F., alguns annos mais tarde, quando Becquerel e
Fremy demonstraram que a ozona é um polymero
do oxygenio (O3),' uma modificação allotropica do
oxygenio. E' o que nos ensina outro ignorante : o
Sr. L. Troost, do Instituto de França, nos seus po-
pularissimos Elementos de Chimica. Mais scientifica
é a definição de Caldas Aulete em 1882 do que a
do Sr. C. de F., quarenta e um annos mais tarde,
« ozone-oxygenio electrisado ». Vale isto mais do
que o tal « cheiro » que tanto impressionou o illustre
62 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

philologo e á ozona como que dá ares de tempero de


cozinha.
A's vezes exemplifica o Sr. C. de F. as suas defi-
nições com umas formulas. Mas nem sempre é feliz.
Assim falando da Lana philosophica dos alchimicos,
escreve : « antigo nome do oxydo de zinco, da formula
ZO » (sic!). Queremos crer que ahi haja um erro de
imprensa; ZO por ZnO pois também, aos céus brada-
ria semelhante « lapso ». Seria um nunca acabar re-
gistrarmos as definições obsoletas da chimica do Novo
Diccionario entremeiadas de impropriedades e erros
palmares, do theor de alguns dos que nesta rápida
resenha apontámos.
Ha no muito presta nte vocabulário do Sr. C. de
F. tanta cousa esdrúxula, deficiente e errada em ma-
téria de chimica que o reparador se encontra abar-
bado com o embaraço da escolha da matéria para as
suas observações. Assim vejamos ainda a definição
de radio, « substancia descoberta em 1899, que se
contem no baryo »! Em vez de dizer « na pechblenda,
em companhia do baryo » affirmou o Sr. C. de F.
que o radio se contem no baryo! E o menos que se
lhe pode arguir é ter ouvido cantar o gallo...
Esdrúxulas são as definições de ammoniaco, de
cal, etc, etc. Contrarias ás idéas modernas as de
potassa, soda, baryta, magnesia, etc, que o Sr. C.
de F. com a gente do tempo do Onça intitula oxy-
dos e os autores de hoje com o progresso da sciencia
hydratos básicos.
Mas e o que o Sr. C. de F. diz de anhydrido...?
« Termo genérico que designa aos ácidos anhydros,
isto é, os que se não combinam com a água?!! »
De modo que os anhydridos phosphorico e sulfu-
rico, por exemplo, são inertes em presença da água?
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 63

Que bello quinau no palerma do Sr. Jungíleisch que


(Manipulations de Chimie, 443) do anhydrido phos-
phorico, affirma : « Composto extremamente ávido
de água! » Que lindo quinau ainda no pateta do
Sr. L. Proost (ob. cit., 175) quando este incompetentis-
simo pacovio de chimico garante ser o anhydrido sul-
furico tão ávido de água que « uma pequena quanti-
dade deste liquido lançada sobre elle combina-se com
incandescencia, vaporisaçãoinstatanea e explosão »!1
Que atrevimento destes dous quidams, destes bee-
cios, desmentirem asserções do Novo Diccionario ?
Mas basta, basta, e basta!
Antes porém, ainda « queremos aventurar-nos a
uma pequena e innocua prophecia.
Ha de se imprimir a quarta edição do Novo Dic-
cionario e nada se corrigirá. Aferrado aos seus ripan-
ços bolorentos abroquela-se o Sr. C. de F. num mi-
soneismo impagável. E virá gangento sustentando a
inatacabilidade dos seus significados.
Lembra-nos esta attitude a de certa senhora, de
uma das mais velhas famílias paulistas, viuva rica,
idosa, e, como poucas, exquisitona, cujo anecdotario
é sobremodo popular em sua cidade natal, no oeste
de São Paulo. Desejando partir para a Europa esteve
em Santos muitos dias, a çxaminar as melhores
accommodações dos melhores e mais luxuosos transa-
tlânticos e a aborrecer a meio mundo com as inter-
mináveis hesitações e os constantes pedidos de in-
formações.
Não que fizesse questão de preços, pois gasta lar-
gamente e gosta do conforto e da boa vida.
Depois de muito matutar firmou a escolha do
navio e com estupefacção souberam os povos que
partira para Lisboa, num pequeno veleiro iitoeu,
64 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

lugre, patacho ou cousa que valha! Era o aferramento


inconsciente, instinctivo e desequilibrado — á tra-
dição, ao passado, que a levava a navegar, a atra-
vessar o Atlântico do mesmo modo que, no sentido
inverso, o haviam feito os seus ancestres martim-
affonsinos, em princípios do século xvi.
Aferra-se como vimos o Sr. C. de F ás defini-
ções equivalentarias, ás vezes. Nem sempre... antes
sempre o fizesse, em vez de se abeberar a outras
fontes... e que fontes!
Porque já de uma vez não recorre então á chimica
do phlogislico ou á dos quatro elementos hellenicos?...
Não queremos, porém, terminar esta aranzel sem
endereçar, por mero espirito de caridade, instante
recommendação aos nossos preparatorianos, candi-
datos á approvação nos exames da physica e chimica.
— Cuidado, rapaziada! todo o cuidado com a chi-
mica do Novo Diccionario. Não recorram vocês ás
suas definições que é pau pela certa, é bomba na cer-
tíssima! Irão todos vocês ao pau que será uma bel-
leza! Não se esqueçam do brado de alarma caste-
lhano, burlesco e pittoresco, tão popular no nosso
Estado : Cuidau Bernau I Bem o conhecem, certa-
mente. Assim pois a cada um de vocês o repito.
Lembrem-se vocês, rapaziada! da triste, da tris-
tíssima idéia de dizerem aos seus examinadores que
o flúor ainda não foi isolado! que fluorico e fluorhy-
drico são a mesma cousa! que sulfito e sulfato são
a mesmissima cousa! que o ácido phosphorico é o
« mesminho » ácido phosphoroso! que oxydo de
zinco é ZO! que ozona é um cheiro! que o radio se
contem no baryo! que os anhydridos não se combi-
nam com a água! etc, etc, etc.
Se na banca examinadora houver algum « estou-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 65

rado » vocês além de reprovados, além de paulifi-


cados como dizem em sua gíria estudantal — vocês
ainda se arriscam a apanhar...
Assim pois rapaziada! mais uma vez Cuidau,
Bernau I
IX

Definições insufficientes, omissões imperdoáveis. In


determinação de significados. Lacunas sobre lacu-
nas. Erros e impropriedades. Obsoletismo extraor-
dinário das fontes de consulta. Chimica inculcada
por uma « Technologia rural» etc.

Proseguindo no meu aliás muito perfunctorio


exame do valor das definições chimicas da terceira
edição do Novo Diccionario do Sr. Cândido de Figuei-
redo, rapidamente revistemos o que nelle .ha de mais
saliente em relação á chimica orgânica.
São-lhe os significados geralmente deficientissimos
se não impróprios de obra de tal porte.
Comecemos pelos das diversas funcções da chimica
dos compostos do carbono.
Álcool, diz o Sr. C. de F., é o «liquido resultante de
destillação de qualquer substancia fermentavel ».
Sob o ponto de vista chimico tal definição é inexis-
tente, « branca nuvem » e, se álcool só vem a ser o
que diz o Novo Diccionario, então a fermentação
da urina deve dar álcool em abundância. E assim
poderíamos multiplicar os exemplos desta natureza.
Sob o ponto de vista chimico, que para os alcooes
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 67

é o essencial, a definição a adoptar-se só pôde ser a


seguinte « princípios neutros, ternarios, de carbono,
oxygenio e hydrogenio, capazes de se unir directa-
mente aos ácidos e de os neutralisar, formando água».
Depois disto se poderá dizer, em addendo, que os
alcooes geralmente se obtém pela distillação, etc.
Mas naturalmente na sua quarta edição 'teimará
o Sr. C. de F. em manter a sua « impeccavel » defi-
nição. A outra é a do do joão fernandes da chimica :
Marcellino Berthelot, homem « curioso » da sciencia
lavoisieriana. Continuando a tratar dos alcooes, diz
Sr. C. de F. que o methylicoé o « espirito de madeira
adoptado como agente para a desnaturação dos al-
cooes ».
E realmente o álcool methylico, vulgarmente cha-
mado espirito de madeira, é, por barato, empregado
para tal fim.
Mas uma definição desta natureza será a sufficiente
para o diccionario que se jacta da primazia na litte-
ratura luso-brasileira? Que diria o Sr. C. de F. de
algum diccionarista seu confrade, que definisse
« Peru : animal que serve para os pratos de honra dos
banquetes »? « Gato : animal que caça ratazanas e
camondongos ».
O Sr. C. de F., que tanto gosta de se apavonar com
o emprego de uma formulasinhas nas suas defini-
ções, para que não escreveu que o álcool methylico
corresponde a CH40, por exemplo? Mas... prosi-
gamos. Do álcool ethylico nada diz o douto dicciona-
rista o que é simplesmente inexplicável. Exacta-
mente do mais importante dos alcooes! Mas uma
lacuna para aquella lista innumeravel das falhas do
Novo Diccionario onde só nós descobrimos mais de
doze mil omissões e o nosso illustre consocio R. P.
68 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Carlos Teschauer, um rôr de milhares também.


Continuemos porém a nos alcoolisar... elevada-
mente. Que affirmará o illustre philologo do álcool
propylico?
« Diz-se de um dos alcooes dos vinhos cuja formula
chimica é C3OH8. » Quanta deficiência! Se ha dous
alcooes propylicos! O primário CH3 CHa CH2 OH e
o secundário CH3 CH3 CHOHI Segundo o ukasedo
Sr. C. de F. deve um desapparecer para que se não
perturbem a ordem e a serenidade olympicas das
definições do Novo Diccionario.
Prosigamos na nossa alcoolisação ascendente —
en tout bien tout honneur... Leva-nos ella aos sympa-
thicos alcooes butylicos interessantes ternarios de
que ha quatro conhecidos, como qualquer prepara-
toriano sabe, se é que tem receio do sinistro pau, da
bomba, ou raposa, como se diz em Portugal.
São quatro os alcooes butylicos : dous primários,
um secundário e um terciario. Mas o Sr. C. de F. fu-
silou três dos coitados.
« Diz-se de um dos alcooes dos vinhos cuja formula
chimica é C4H10O. » Mas, illustre philologo, se ha
quatro destes alcooes butylicos, todos elles dese-
jando ardentemente viver? CH3 CH2 CH2 CH2
OH (1) — CH3 CH2 CHOH CH3 (2) — CH.3 CH.8
CH. CH2 OH (3) e CH3 CH3 CH3 COH (4)? Deixe os
coitados que vivam!
Foi o Sr. C. de F. com este alcoolicidio mais longe
do que o sujeito da popular pilhéria quando affirmava
que os quatro evangelistas eram três. Esaó (sic) e
seu filho Jacú (sic).
Mas estou a ouvir o douto diccionarista bater o
pé. « Não senhor! só ha um! Quem affirmar o con-
trario é rematado idiota 1 »
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 69

E eu me atrevo a lhe responder. E este idiota con-


tinua a ser. o N. N. chamado Marcellino Berthelot,
no seu Tratado de Chimica Orgânica.
Deixemos porém os alcooes monoatonicos e exa-
minemos o que o Sr. C. de F. diz dos polyatomicos.
Já com o primeiro, o glycol nos prega uma hypo-
these.
« Glycol, afiança; substancia intermediária ao
álcool e á glycerina pelas suas propriedades physicas
e chimicas. » Isto é, muito nebuloso... Realmente o
glycol é um álcool duas vezes álcool e a glycerina o
é três vezes. Mas com a definição incompleta do N.
D. não se comprehende esta intermediação. Desap-
pareceria tal indeterminação se o Sr. C. de F. escre-
vesse : « Glycol o mais simples dos alcooes diatomicos,
duas vezes álcool primário, de formula CHa OH.
CH2 OH.
A definição da glycerina sob o ponto de vista chi-
mico não vale « dous caracóes ». Serve para qualquer
Diccionario do povo, quando muito : « liquido xaro-
poso de sabor açucarado, base de todas as gorduras. »
Nem uma palavrinha sobre a funcção trialcoolica
do liquido do grande Scheele!
Como índice chronologico, a definição do Sr. Cân-
dido é porém preciosa; mostra-nos o atrazo de seus
informantes em matéria scientifica.
Repete as idéias de Chevreul, em 1814, aliás jus-
tíssimas, quando este illustre chimico affirmou que
os corpos graxos podem ser considerados como for7
mados de ácidos graxos e de uma matéria que hydra-
tada fornecia a glycerina.
Mas isto em 1814, illustre philologo! Em 1854
deixou Berthelot insophismavelmente esclarecido
que a glycerina é um álcool triatomico e os corpos gor-
70 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

durosos naturaes, óleos e gorduras, os etheres glyce-


ricos dos ácidos graxos.
Se nos lembrarmos de procurar no N. D. os alcooes
polyatomicos, novas lacunas, e numerosas, nos sal-
tarão aos olhos mesmo quando se tratar de compostos
vulgares,
E além de tudo ha imperdoáveis omissões refe-
rentes a compostos que os mais elementares com-
pêndios de chimica nos apontam como a arabita, a
dulcita, a sorbita, etc. Mais lacunas! Mais lacunas!
Passemos depois deste rápido passeio pelas regiões
da dry law a ver o que dos phenoes nos ensina o
Sr. C. de F.
« Phenoes — corpos ternarios, compostos de car-
bono, hydrogenio e oxigênio e provenientes de um
carbureto pela substituição de um átomo de hydro-
genio por um oxhydrilo. »
Não basta! Está a definição indeterminada. Assim
tanto serve para os phenoes como para os alcooes.
Ergo, para o Sr. C. de F. álcool é synonymo de phe-
nol. E não ha tal; não ha estudantezinho de prepa-
ratórios ignorante de que se os alcooes tem grandes
analogias com os phenoes também com elles mantém
muito fundas differenças. Teria o Sr. C. de F. dado
uma definição irreprehensivel se não se houvesse
« esquecido » de dizer que o carbureto a que allude
pertence á serie benzenica.
Pois se etymologicamente phenol vem de pheno
e se pheno é synonymo de benzeno 1 Se o mais simples
dos phenoes, o C6H5OH, vulgar e impropriamente
designado por ácido phenico também é chamado ben-
zenol!
De nitrila nem uma palavra fala o Sr. C. de F.
Mais uma lacuna! — das mais sensíveis!
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 71

Muito mais grave porém a ausência imperdoável


de cetona, correspondente a importantíssimo aggru-
pamento funccional.
No Novo Diccionario não achamos cetona, nem
ketona nem quetona o mesmo silencio Tut-an-Kham-
menico reina no seu supplemento. Lembra-nos o
valle dos Reis... Entretanto mostra o Sr. C. de F.
conhecer a existência da acetona, a mais simples
das cetonas, e a camphora, embora não pareça saber
que este producto, inimigo dos insectos e da deusa
cyprina nascida da onda amarga, seja uma cetona do
borneol ou álcool campholico. (Mais duas lacunas do
N. D. Quanta lacuna! quanta lacuna!).
A definição que dos aldehydos dá o Sr. C. de F. é
correcta mas já que estamos neste capitulo notemos
a propósito do mais simples dos aldehydos, H.CHO,
o aldehydoformico ou methanal (mais uma lacuna!
e das cabelludas! quanta lacuna!) também chamado
formol; notemos quanto a propósito deste corpo é
o N. D. de dolorosa insufficiencia. « Formol — pre-
paração antiseptica applicavel especialmente contra
a mordedura venenosa de certos animaes. »
Então é uma espécie de Sabão russo, de Maravilha
curativa de Humphreys, de Doe ? Gelol cura qualquer
dôr ? transformado agora em Picou ? formol tira
qualquer comichão!?
Tinha o illustre philologo a obrigação de escrever :
« Formol — aldehydoformico ou methanal composto
ternario de formula H.CHO proveniente da deshy-
drogenação do álcool methylico.»
Se o formol do Sr. C. de F. se mostra tão deficiente,
o seu chloral vem a ser destestavel. « Chloral, diz o
douto diccionarista, mistura de chloro e álcool!! »
Affirma portanto que o chloral é C2H.6OH-f-Cl3,
72 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

p. ex., o chloral, entretanto, não é uma mistura, e


sim um corpo perfeitamente definido C2C130H ou
em formula racional CCPCHO aldehydo trichlorado.
Não provém de uma mistura de chloro gazoso e
álcool e sim de uma verdadeira reacção em duas
phases em que se dá a eliminação do ácido chlorhy-
drico. Vá algum desastrado « misturar chloro e ál-
cool » e tomal-o como sedativo e hypnotico, e verá
a belleza que lhe succede!
As equações qualquer compcndiosinho as men-
ciona :
C2H8OH-f-Cl2 = CH.3CH0+2C1H (1) e
CH.3CHO+ 3C12 = CCPCHO + 3C1H (2).
Tinha o N.D.a obrigação de definir o chloral como
« aldehydo trichlorado nascido da acção de uma
corrente de chloro sobre o álcool concentrado quanto
possível, e resfriado ».
Não podemos porém abandonar os aldehydos e
cetonas sem ainda deixar patentissimo quanto a chi-
mica orgânica do Sr. Cândido de Figueiredo está
atrazada de numerosos decennios. Afere-se pelo
paradigma da sua chimica mineral.
Prova irrefragavel do que avanço é o seguinte :
ignora o douto diccionarista, e por completo, a exis-
tência dos trabalhos de Fischer, dos memoráveis,
dos extraordinários trabalhos de Fischer, sobre os
assucares, revelados ao mundo scientifico, ha muito
pouco tempo, só em 1892, antes portanto, muito
antes, do apparecimento da primeira edição do Novo
Diccionario (1899).
E' por isto que debalde procuramos na terceira
edição do grosso léxico figueirediano de hoje as pa-
lavras corriqueiras para os gymnasiastas que são :
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 73

tídose e cetose; biose e triose; hexose, hexobiose, hexo-


tripse, etc, etc.
Quanta lacuna! quanta lacuna!, estou a presentira
gemebunda observação do meu eminente contra
dictado... Quanta lacuna, quanta lacuna Iretrucolhe
serviçal.
Ha mais de cem mil no seu diccionario, illustre
mestre!
Mas a culpa é sua! Olhe que aldose, cetose, biose, etc,
já podiam ter apparecido na sua primeira edição!
o diabo é o Sr. pensar que os livros de chimica im-
pressos em 1860 estão em 1923 up to date... Um con-
selhosinho... grátis, benevolo e útil. Para a sua quarta
edição compre livros de sciencia moderna e faça
amende honorable dos « enganos » da terceira tiragem
do seu prestante léxico.
Olha que inculcar a leitores de 1923 as noções da
chimica de 1860 ég rave e é feio para um homem do
seu valor. Diga pois peccavi, peccavil... e corrija.
Lembre-se do seu florianista I que de sectário da es-
cola litteraria de Florian na 2° edição do N. D. pas-
sou a sêr — gente vira casaca! — partidário do Mare-
chal Floriano na terceira.
Esta amende honorable causou optima impressão
nestes bellos e bárbaros Brasis... vamos illustre phi.
lologo, coragem! e faça a devida amende hono-
rable
Passemos agora á funcção ether. E' boa a defini-
ção do N. D. e abrange os casos dos etheres saes e dos
etheres oxidos. Nada ha a se lhe ajuntar e a se lhe
restringir. Apenas ha a se lhe fazer justiça. Que pena
porém que o douto philologo, escudado em boas
autoridades e não nos seus autores de eras pre-affon-
sinas, seus habituaes conselheiros, para a technologia
74 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

scientifica, não haja mantido o mesmo nivel ao fazer


a descripção dos mais importantes etheres.
Comecemos pelos dos carburetos graxos ;
O que de chloroformio avança é insufficientissimo.
« Substancia liquida, incolor e aromatica, de proprie-
dades anesthesicas. Isto se applica, palavra por pa-
lavra, também, ao ether sulfurico, ao chloreto de
ethyla. Cioso dos créditos da sua obra tinha o Sr. C.
de F. a obrigação de dizer que chloroformio é um
derivado trichlorado do methano ou formeno. E já
que gosta de se enfeitar com umas formulasinhas
podia pospor-lhe : da formula CH.C13. A quem fala
em chloroformio açodem logo as analogias do bromo-
formio e do iodoformio.
Do primeiro diz o Sr. C. de F. « substancia anes-
thesica que contém bromo e é análoga ao chlorofor-
mio ». Ainda vá lá embora muito mais correcto fosse
escrever que se trata de um derivado tribromado do
methano. Do iodoformio refere o Sr. C. de F. « com-
posto solido resultante da acção do iodo sobre o
álcool ». Seria muito mais correcto que escrevesse
resultante da acção do iodo sobre uma solução alcoó-
lica de potassa.
Lancemos agora uma vista d'o!hos sobre os ácidos
orgânicos, muito perfunctoria aliás, como todos estes
nossos reparos; o que o Sr. Cândido conta do mais
simples de todos, do ácido formico é simplesmente
delicioso, é até capaz de evocar aquelle lindo Mi-
nuete do nosso grande Gonçalves Crespo (?!?!)
Espaçoso é o salão, jarras a cada canto
Admira-se o lavor dos tectos de pau santo...

Como isto é elegante... E como continua bem...


DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 75

Cadeiras de espaldar com fulvas pregarias


Um enorme sofá; largas tapeçarias.
Sob o espelho se aninha um cravo marchetado
Mimo outr'ora da casa e prenda de um noivado

— Mas que approximação esdrúxula! commen-


tará o leitor assombrado. Este homem, está com o
sotão apinhado de macaquinhos! Praia da Saudade!
pensarão os fluminenses. Kilometro 111! Juquery!
aventarão os paulistas.
— Mas não é tão esdrúxula assim, caro leitor,
redarguirei. O lindo Minueto termina a nos contar
que quando das cordas do marchetado clavecino
resoou velha melodia :

Do eburnea pallidez doentia do teclado


Manso e manso evolou-se o aroma do passado...

Assim também ao meditar sobre a definição do


ácido formico pelo Sr. Cândido de Figueiredo — tão
saborosa e repassada de archaismo singelo — senti:

Manso e manso evolar-se o aroma do passado

Senti-me em pleno século xvinl Pompa dour!


Manon Lescaut! Des Grieux! Voltaire! cadeirinhas!
perucas empoadas! Pombal! minuetes! Frederico o
Grande! Encyclopedistas! Watteau! um delicioso
cinematographo...
— « Ácido formico, sussurra-me o Novo Diccio-
nario (terceira edição 1913) — diz-se de um ácido
que se extrahe das formigas. »
Percebo agora o immortal Lavoisier a confabular
com os seus grandes contemporâneos : Priestley,
76 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Cavendish, Scheele. Acabam de saber que das for-


migas se extrahe um ácido. E apezar de filhos do sé-
culo voltaireano não se mostram scep ticos deposi-
tam toda a confiança na honradez e na capacidade
6cientifica de Samuel Fischer que se diz o descobridor
do novo ácido obtido de modo muito original. Cap-
turou um grande formigueiro, pol-o numa retorta e
distilou-o!
Riem-se os grandes paredros da chimica. Singular
processo! E eu vejo o sábio Samuel Fischer, naquelle
anno da graça de 1760, de cabelleira empoada, calça
de tufos de renda e casaco de damasquilho verde,
enthusiasmado com a sua descoberta, sorrindo a des-
usar :
« gracioso no tapete
Dançando airosamente o airoso minuete »
« Ácido que se extrahe das formigas... » o processo
dá certo mas... continua a ser usado só pelos consu-
lentes do Sr. Cândido de Figueiredo.
Que pena assim seja! que a industria se sirva hoje
de processos diversos do de Fischer, preconisado
pelo Sr. C. de F.
Para que foi este idiota de Berthelot inventar o
seu processo de desdobramento do ácido oxalico em
ácido formico e gaz carbônico?!
Matou assim um artigo de exportação notável que
podia dar excellentes lucros ao Brasil : a exportação
da saúva, por exemplo. Matéria prima temol-a abun-
dante. Pena se não utilise a industria, do ácido for-
mico e dos formiatos, do processo descoberto em 1760
por Samuel Fischer! E em 1923 recommendado pelo
Sr. Cândido de Figueiredo que jamais dará guarida
nas columnas do Novo Diccionario a ume definição
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 77

absurda de ácido formico, como esta proposta por


pretencioso, do gênero de fuão Jungfleisch.
« Ácido monobasico da formula H.COOH tam-
bém chamado methanoico que existe normalmente
em vários líquidos biológicos como o sangue, a urina,
a seiva das urtigas, secreções de numerosos insec-
tos, etc. » diz-nos grave o illustre autor moderno.
Não! nao serve...
A quanto disparate nos levou a evocação de Fis-
éher, preparando o ácido formico pelo processo re-
commendado ainda hoje pelo Sr. C. de F. decorridos
cento e sessenta e cinco annos! Assim depois desta
larga e deplorável digressão voltemos ao terreno da
austeridade que abandonáramos eu, e o leitor, por
mau gosto meu.
Do importantíssimo ácido acetico apenas diz o
Sr. C. de F. a Relativo ao vinagre. Ácido »? Fala de
pyrolenhoso, synonymo de acetico mas sem mostrar
que conhece tal synonymia. Dentre os homólogos
superiores do ácido acetico nada diz o Sr. C. do pro-
pionico. (Quanta lacuna!) Do butyrico abona-lhe a
definição com uma Technologia rural! Singular do-
cumentador! Assim se pode abonar ácido azotico com
um Manual do gravador e oxydos de chumbo com o
Manual do pintor de paredes e grades!
Também são immediatos os resultados dos sábios
ensinamentos da Technologia rural. Inculcam ao
Sr. Cândido de Figueiredo, que ácido butyrico é um só
quando ha dous com este nome procedentes dos al-
cooes primários do mesmo appellido. Está ahi no
que dá procurar ensinamentos da chimica fora dos
livros de chimica... o peior é que o Sr. Cândido passa
adeante a sciencia technologico rural...
Tratando dos ácidos bi-basicos o que do ácido
78 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

oxalico nos inculca o Sr. C. é deficientissimo, é


velho! é velho! Ao ácido succinico protege o JV. D.
com o

a Muro de silencio e treva em torno »

do forte verso antheriano (quanta lacuna!), o mesmo


quanto ao succinico (quanta lacuna! quanta lacuna!)
mas não quanto ao malonico. (Admira!)
Tratando dos ácidos de funcção mixta mais uma'
vez recorre o Sr. C. de F. ao seu vademecum em ma-
téria de chimica orgânica a Technologia rural. *• '^:s-
« Lactico — diz-se de um ácido que existe no soro
do leite; cf. Technologia rural, 20 e 117. »
Mas como é mal recompensada esta fidelidade
martim-de-freitica do illustre philologo ao seu que-
rido mentor!
Leva-o este a um desastre grande. Sim porque
não ha ácido lactico e sim ácidos lacticos e o normal
também é encontrado no sueco gástrico. Qualquer
compendiosinho gymnasial inculcaria ao douto
diccionarista uma definição como esta : « Lactico —
diz-se dos, ácidos derivados, do propano, de funcção
mixta, uma vez álcool e uma vez ácido, e por isto
chamados propanoloicos. O ácido lactico normal é
álcool primário e o de fermentação álcool secundá-
rio, etc. »
Dos ácidos malico e citrico dá o N. D. definições
insignificantes. Mas já acerca dos ácidos tartricos
inculca erronia seria. Pensa o diccionarista que só
ha um ácido tartrico quando existem nada menos de
quatro!
Mas então de que serviram os notabilissimos tra-
balhos de Pasteur sobre os ácidos tartricos?
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 79

— Pasteur-versus Technologia rural ? indago cu-


rioso e respeitoso. — Technologia rural l responde-me
sobranceiro o eminente diccionarista.
Technologia rural, for everl ignarissimo amigo !...
Ainda tem duvidas a tal respeito?
X

Definições viciosas. Lacunas imperdoáveis. Indeter-


minação de significados. Obsoletismo das fontes
informativas do « Novo Diccionario ». Inclusão de
verdadeiros dislates.

Examinemos agora umas tantas definições do


Novo Diccionario relativas aos hydrocarburetos. E
a principiar do principio principiemos pelo methano,
cuja exemplificação é fraquinha, mas emfim « serve ».
A do carbureto immediatamente superior, o ethano,
é simplesmente fraquissima. « Variedade de carbo-
reto do grupo formenico. » Mas isto se adapta a uma
infinidade de carburetos dirão comnosco os que tive-
rem umas tinturasinhas do assumpto. O mesmo se
dirá do propano. Mas já em butano o « tempo » se
enfarrusca são dous os butanos e o Sr. Cândido quer
que sejam um; quer talvez a frateni-siamezação dos
dous. Peior ainda para os penlanos pois estes o Sr. C.
de F. entendeu dal-os como inexistentes.« Os Srs. es-
tão prohibidos de existir!» disse-lhes, segundo parece,
pois os coitados foram « barrados » do N. D. e só
agora surge em seu favor o meu protesto, o meu pe-
dido generoso de habeas-corpus.
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 81

Dos hexanos que são vários, depois de ter « quei-


mado » os seus antecedentes immediatos, permit-
tiu-se o Sr. C. de F. a liberdade de dizer que só são
um e único! E o mesmo se dá com os heptanos e oc-
tanos! O resto foi submettido á celebre lei mexicana
da fuga! Quanto carbureticidio praticado pelo
Sr. C. de F.l
Não deixarei porem a serie formenica sem um
ultimo e innocente reparo.
Lança-me em rosto, severamente, o Sr. Cândido
de Figueiredo a horrenda heresia de haver escripto
gazolina. Ensina-me, complacente e compassivo, a
escrever gasolina porque a palavra procede de gas,
Mau grado a minha insufficiencia philologica, com-
provada e apregoada (por mim, a começar) sou for-
çado a declarar ao douto diccionarista que desta vez
me insurjo contra a sua autoridade augusta. Pri-
meiro porque sou brasileiro e toda a gente no Brasil
escreve gaz e certamente-continuará n escrever gaz
por esses annos afora, apezar da gri.aria_do Sr. C.
de F., segundo porque diccionaristas illustres, quasi
tão illustres quanto o autor d'0 que se não deve dizer,
como Caldas Aulette, me ensinam a dizer gaz.
Agora, recebida esta licção do meu douto contra-
dictado permitta-me elle que o interpelle (embora
arvorado em metediço procurador da verdade) a
propósito da definição chimica que de gazolina inculca
« Gazolina, affirma o Sr. C. de F. : carbonato de
hydrogenio liquido ».
Mas que é isto? Que carbonato de hydrogenio é este?
Será acaso C03H2, como o sulfato de hydrogenio
pôde ser SO4 H 2 ?MasC0 3 H 2 vem a ser CO2 + H 2 0;
anhydrido carbônico em dissolução na água, aquillo
que nas confeitarias se chama vulgarmente sy-
i
82 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

phão, e tanto é apreciado pelos habitues do whisky


and soda...
Então serão a mesma cousa gazolina ou gasolina
e syphão? Veremos algum dia em algum carbu-
rador de automóvel, ainda nosso desconhecido, mas
não do Sr. Cândido, queimar-se syphão ? e pararem
os automóveis á porta das confeitarias em longas
filas, para alli comprarem syphões ? O Sr. Cândido
é reservado; talvez esteja ao par de alguma desco-
berta nova, alguma gazolina de invenção recente
que seja um « carbonato de hydrogenio liquido ».
Quiçá esteja também imminente a revelação de
uma destas descobertas que assombram o mundo e
tornam a Humanidade estarrecida... Gazolina-sy-
phão... quem viver verá...
Passemos agora porém á serie ethylenica.
São-lhe deficientissimas as definições, de propy-
leno ou propeno, butyleno ou buteno, etc. Na ace-
tylenica não vemos mencionados ethino, propino,
butino, etc, etc (Quanta lacuna 1 quanta lacuna!)
Parece o Sr. C. de F. ignorar a existência da nomen-
clatura essencial chamada de Genebra, nascida da
famosa convenção de 1892.
Os nomes antigos dos carburetos acetylenicos al-
guns dos quaes rebarbativos, como allyleno, croto-
nyleno, valeryleno, etc, estes surgem nas columnas
do AT.D. Talvez transplantados da celebre Technologia
Rural, Homero á cabeceira de Alexandre, em matéria
de chimica orgânica, para o nosso illustre philologo.
Dentre os carburetos terebenicos, vemos que o Sr. C.
de F. desconhece o australeno e q terebenro. (Quanta
lacuna!) Encaixa o terpeno na serie benzenica e da
terpina apenas refere que é « um medicamento diu-
retico e anti-neuralgico ». Da borracha e da gutta-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 83

percha nada fala sob o ponto de vista chimico, no


emtanto notável.
De benzina ô-lhe a definição fraquinha. Mas a que
não pode ser admittida é a de tolueno « combinação
de carbone e hydrogenio ». A ser isto sufficiente então
tolueno é methano, tolueno é ethyleno, tolueno é
acetyleno, é naphtalina, benzina, parafina, borra-
cha, petróleo, é essência de alfazema, é terebentina,
é o diabo a quatro! e se mais mundo houvera lá
chegara!! Quem fala em tolueno pensa logo em xyleno
ou antes nos xylenos. Ahi se sae o Sr. C. de F.
menos mal; apenas põe um singular quando devia
falar no plural. Da naphtalina nada diz e no emtanto
dos naphtoes dá um bom significado. De anthraceno
nada vale a definição sob o ponto de vista chimico.
Nos ácidos aromaticos vemos um significado des-
valioso para o ácido benzoico, o que o N. D. diz do
ácido salicylico já se falava muito antes de se pensar
em começar a construir a Sé de Braga. Conta-nos o
Sr. C. de F. que a sua preparação se baseia na reac-
ção da potassa sobre a essência de Wintergreen
quando hoje se usa da acção do anhydrido carbô-
nico, sob pressão, sobre o phenato de sódio.
Mas basta!
Não quero comtudo terminar esta lenga-lenga sem
me referir a duas questões ainda relativas aos ácidos
aromaticos.
Dos ácidos phtalicos garante o Sr. C. de F. —
suppondo aliás que só haja um — « Diz-se de um
ácido produzido pela acção do ácido azotico sobre o
bichloreto de naphtalina » — Tetrachloreto aliás,
C10 H3C14 ousa rectificar um João Ninguém da chi-
mica orgânica, o Sr. E. Jungfleisch (cf. Manipula-
tions de chimie, p. 771). Mas o melhor dos bons peda-
84 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

ços, deixamol-o para o fim; é o que o Sr. C. de F.


consagrou ao ácido mellico. Segundo a licção dos
mestres este ácido benzo hexocarbonico e portanto
correspondente á formula C6 (COOH)6 se obtém
graças á oxydação do carbureto pelo permanganato
de potássio em solução alcalina ou pela acção do
ácido azotico fumante e chlorato de potássio. Em
summa provém da reacçãoC6H6 -f 6C02 = C6(COOH)6
contesta-o formalmente o Sr. C. de F. :
« Mellico — Diz-se de um ácido que é o hydrato
de cálcio!!??!! » Que pensar de semelhante desco-
berta?
O hydrato de cálcio é C6 (OH)2 assim pois chegamos
á seguinte e espantosa equação
C6(COOH)6 = Ca(OH)2
que annuncia aos quatro cantos do nosso micro-
cosmo outra e notável conseqüência : Um ácido orgâ-
nico e um hydrato metallico são uma e mesma cousa!
E adeus! está por terra toda a mole da chimica
moderna...
No rapidíssimo e perfunctorissimo exame que das
definições chimicas do Novo Diccionario realisei
escudado na opinião de algum dos maiores nomes da
chimica contemporânea nada ha que seja meu. Nada
mais fiz do que comparar as asserções do Sr. C.
de F. ás dos mestres como Berthelot, Jungfleisch,
Troost, Moissan, Joannis e outros.
Não receio poisa menor contradicta. Respigando,
muitíssimo de leve na technologia chimica do Novo
Diccionario apontei-lhe numerosos erros e falhas.
Serão ellas justificáveis perante um publico algum
tanto lettrado? Não, de modo algum. Podia o
Sr. Cândido facilmente ter evitado a critica justíssima
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 85

não fora a incommensuravel Vaidade que o domina


e o pendor invencível pelo miBoneismo.
Porque não recorreu, para a technologia scienti-
fica, aos grandes diccionarios encyclopedicos, tão
ao seu alcance?
Porque prefere a Technologia rural aos tratados
de chimica dos grandes mestres? Para que recorreu
a uns tantos livrecos de desprezível e paleontologica
sciencia (?). D'ahi o bello resultado colhido.

Agora que com algum cuidado e demora percori


o Novo Diccionario, nítido se me apresenta o seu
« quadro clinico » se me é permittida a compa-
ração
Ao fazer o Sr. C. de Figueiredo a sua primeira
edição, a de 1899, lançou mão para a exemplificação
da technologia scientifica, de uma serie de livros já
naquelle tempo muito atrazados, dos compêndios
equivalentistas bolorentos e lacunosos em chimica
mineral e orgânica. Com estes « preciosos » elementos
construiu a base do seu Novo Diccionario, a trama
da sua technologia scientifica, que imaginou andar
up to date. Pensou depoisem realisar a segunda edi-
ção. Foi pois collectando durante quatorze annos
muitos milhares de termos que não haviam appare-
cido na primeira tiragem. De muitos obteve excel-
lentes definições que transcreveu ipsis verbis. Mas
nada alterou da parte antiga do seu vocabulário.
Assim appareceu em 1913 a segunda edição muito
accrescida, mas pejada de cousas velhas, archaicas,
pre-archeanas, sobretudo em matéria scientifica.
E erradas... e erradíssimas...
Preparou o Sr. Cândido a terceira tiragem a que
engordaram largamente muitos milhares de novos
86 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

vocábulos da technologia scientifica. Mas os resíduos


indesejáveis das edições anteriores continuaram a
infeccionar a economia do vocabulário, graças ao
emperramento, ao carrancismo e a vaidade do douto
philologo e digamos a verdade : a deficiência da cul-
tura geral.
Tudo isto reapparecerá na quartaedição que o
Sr. Cândido annuncia para 1925 ou 1926. Toda esta
serie enorme de dislates, de grotescos e de erros, vol-
tará intacta.
Um ultimo argumento quero invocar demonstrando
quanto ao editar a sua primeira tiragem já o cabedal
scientifico nella utilisado pelo diccionarista datava
de priscas eras :
Recorramos ao prefacio da primeira edição do
Novo Diccionario a Conversação preliminar que an-
tecede o vocabulário, e voltou a ser o prefacio da ter-
ceira tiragem. Depois de se gabar a valer da enorme
colheita de termos, jamais diccionarisados ainda, em
portuguez, e obtidos dos mais recentes ramos das
sciencias modernas jacta-se o illustre philologo: «Pro-
curei não omittir os mais recentes descobrimentos
em qualquer esphera da actividade humana — o
cinematographo, a icerya, o radioscopio, a melinite,
o acetylene e tantissimos outros. E dando ao meu
trabalho feição sensivelmente encyclopedica, obe-
deci ao propósito de basear em novos processos, uma
obra que, não podendo ter tudo, tivesse ao menos
alguma cousa de tudo e de novo ».
Isto de considerar o acetyleno como novidade
novíssima, a 10 de março de 1899, data da assignatura
da conversação bem dá idéia do valor das fontes de
que se serviu o douto diccionarista para- a parte chi-
mica do seu léxico.
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 87

Descobriu Davy o acetyleno em 1836! Veja-s-i


bem, 1836! ;
Wóhler, em 1862, preparou-o pelo processo geral
de hoje, carbureto de cálcio e água. Veja-se bem,
1862! Neste mesmo anno deu Berthelot a conhecer
ao mundo scientifico os resultados definitivos de sua
gloriosa synthese do acetyleno, obtida pelo arco vol-
taico de electrodos de carvão, chimicamente puros,
no ovo electrico por onde passava uma corrente de
hydrogenio! synthese esta fecundissima que todos os
estudantes da chimica gymnasial conhecem e da qual
obteve o immortal chimico a benzina, por polymeri-
sação do acetyleno, o styroleno e o hydreto de naph-
talina, também por polymerisação, etc. Tudo isto
data de 1862!
Pois bem, decorridos 37 annos! em 1899! vem o
Sr. Cândido de Figueiredo no seu diccionario, apre-
sentar o acetylene a catalogalo « entre os mais re-
centes descobrimentos em qualquer esphera da acti-
vidade humana »!
E' simplesmente pasmoso!
1836! 1862! 1899!... Acetyleno novidade em 1899!!
Até parece a nossa historia da preguiça convidada
para madrinha num baptisado.
Ao mesmo tempo que se jacta do modernismo do
acetyleno que acabara de definir exalta o Sr. C. de
F. o de icerya; verdadeiro fin de siècle em 1899, no
seu entender.
Pois bem Icerya, data de 1874, tinha vinte e cinco
annos quando o Sr. C. de F. imaginava que acabara
de nascer!!!
Foi o nome creado naquelle anno por Signoret,
entomologista francez para um gênero de cochi-
nilhas (cf. Zoological Record, vol. I, 1874, pag. 488,
88 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

onde se lê uma nota de critica a propósito da valiosa


memória do scientista francez Essai sur les cochenilles
ou gallinsecles resumindo diversas apreciações). Foi
ahi que Signoret creou a palavra Icerya. Se o Sr. C.
de F. duvidar da autoridade do Zoological Record
ainda lhe aconselho a consulta ao famoso Universal
Index to genera in zoology de Scudder (Samuel H.);
leia á pag. 159 da segunda parte (edição de 1882,
1882! veja-se bem) Icerya, Sign, Ham. Zoological
Record, 1874.
E' esta palavra, de 1874, que o Sr. C. de F vem
inculcar-nos como a ultima das novidades scienti-
ficas em 1899! quando já ultrapassara a maioridade,
era eleitora e elegivel, fizera o serviço militar e
desde muito podia gosar das delicias da paterni-
dade.
O que elle fez foi ainda, e cada vez mais, por igno-
rância das regras da nomenclatura dual« enterrar-se »
confundindo espécies e gêneros, pois a sua definição
de icerya refere-se a uma espécie, á Icerya purchasi,
cochinilha australiana do gênero Icerya, c deter-
minada por Maskell em 1878!
Se o Sr. C. de F. duvidar do que lhe affirmo dê-se
ao pequeno trabalho de recorrer ás Transactions of
the New Zealand Institute, vol. XI, pag. 221, anno
de 1878.
E' a informação que me ministra um coccidiologo
de universal reputação, o Dr. Adolpho Hempel, que
tanto illustra o corpo do funccionalismo scientifico
do nosso estado. E' me muito grata esta referencia,
prudente além d°s mais pois receio sobre modo o
perigo de poder vir a ser gralho depennado.
Assim em 1899 entendia o Snr. C. de F. « fazer
um bonito » perante a roda dos admiradores lem-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 89

brando que a essa gente fizera a revelação da pala-


vra Icerya, modernidade modernissima.
« Icerya ou iceria, dogmatisa, espécie de cochi-
nilha que é originaria da Austrália e ataca as arvores,
sugando-lhes a seiva das folhas (icerya purchasi,
Maskell). » Quantos erros nestas linhas! Inculca o
Sr. C. de F. que icerya é privativa da espécie de Mas-
kell quando o nome é o do gênero e escreve icerya pur-
chasi quando devia escrever Icerya purchasi.
Mas a novidade de 1899 era de 1878!
Como as noticias chegam atrazadas em Portugal,
quando precisam da divulgação do Sr. Cândido de
Figueiredo!
Agora vejamos se melinite em 1899, era assim tão
grande novidade.
' Cremos que não, ou antes affiançamos que não.
E realmente, na biographia do inventor da melinite,
Turpin, no Nouveau Larousse illustre, se conta que o
invento data de 1887. Estava velho de doze annos
quando o Sr. C. de F. annunciou que era o dernier cri
da sciencia moderna.
Para a confecção do Novo Diccionario mereceu
a chimica, do douto diccionarista, o maior carinho,
gaba-se elle. A nomenclatura desta sciencia deu-lhe
terríveis pesadellos. Não sabia de todo como manter
certo equilíbrio sobretudo ante a complicação sempre
crescente das denominações da chimica orgânica.
Mas sahiu-se admiravelmente de tantos e tão cres-
pas difficuldades. D'ahi a formidável colheita de
termos inéditos da technologia chimica, obtida «-pelo
esforço próprio, e pela cooperação de alguns dos mais
notáveis homens de sciencia ». Assim « conseguin
registrar largamente a nomenclatura chimica, em
visível desproporção com o que até agora, a tal
90 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

respeito, se tinha feito em trabalhos congêneres ».


E dando-se ares de quem está perfeitamente ao
par do mecanismo dessa nomenclatura technologica
modernissima da chimica orgânica ainda nos diz o
Sr. Cândido de Figueiredo que se viu forçado a se
deter ante o emmaranhamento progressivo dos nomes
actuaes dos complexissimos compostos orgânicos.
Precisou abrir excepções porém como no caso de
pentadecylparatolylcetona,« pela sua estreita relação
com a radiscopia » (de 1899 é bom que se o lembre)
e da phanylhydroquinazolona « producto phamaceu-
tico amargo e excitante do estômago » (ahi talvez
por motivos de gratidão pessoal, as reminiscencias de
algum dia de azia). Não se abalançou porém a regis-
tar paranitrophenyldehydrohexonecarboxylico nem oxy-
ditrichloroethylidenadiamina.
Analysada a sua « fitinha », a sua bancaçãosinha »,
como tanto se diz hoje, na nossa gíria, ouso indagar
do illustre philologo se não seria mais útil ao publico
estudioso que o N. D. inserisse cetona e nitrila, aldose
e cetose, biose e hexose, ácido succinico e tantos mais
nomes vulgares e até bonitos em vez do tal «producto
pharmaceutico amargo e excitante do estômago »
infelizmente citado sem o acompanhamento ulil do
nome do respectivo boticário.
Como graças ^a Deus até agora não soffro do estô-
mago e não tenho motivos de gratidão especial á
tal phenylhydroquinazolona, confesso que esta droga
pouco me attrahe. Acho-lhe até rebarbativos os ap-
pellidos. Esta desinencia em lona considero-a ines-
thetica.
Mas cada um de nós tem lá os seus achaques e
como certa vez me dei muito bem ingerindo umas
tantas pitadas de certo sal effervescente quero de-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 91

monstrar-lhe o meu reconhecimento em publico e


razo humildemente pedindo, ao meu illustre contra-
dictado o obséquio de inserir na quarta edição do
seu importantíssimo léxico o nome sympathico do
alludido sal que é diuretico e muito mais outras
cousas (segundo o prospecto). O nome é sympathico
repito-o, e euphonico; mavioso mesmo :
Methylglyoxalidinaquinodiethylenodiamina.
Seu principal defeito é não poder entrar inteiro
num alexandrino. Mas isto hoje já não constitue uma
capitis diminutio para uma palavra que se respeite
desde que Eduardo Garrido (com reprobabilissima
irreverência 1) precisando de uma rima para o nome
da deusa odysseica da famosa ilha, novamente cele-
brisada ainda ultimamente por Eça de Queiroz, es-
creveu, a abrir precedente, notável e futurista :

Pois bella deuza Calypso,


Nos aqui estamos e p'so
Almente a comprimentamos.

Não sei se será bem assim mas o caso é mais ou


menos isso ou antes « é p*so ».
Voltemos porém à nos moutons.
Imaginem os leitores o que seria da chimica orgâ-
nica no Novo Diccionario se o illustre philologo não
lhe houvesse consagrado tanto interesse, sobretudo
atravez da notável Technologia rural...
Santa Barbara! São Jeronymo! Santo Breve da
Marca!
E' "tempo porém de acabarmos e vamos fazel-o,
synthetisando as descobertas que nos proporcina-
ram algumas das definições da terceira edição do
Novo Diccionario, em rapidíssimo exame.
92 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

1) Álcool — liquido resultante da destillação de


qualquer substancia fermentavel.
2) Álcool propylico — só ha um, diz o N. D. quando
existem dous.
3) Álcool butylico — só ha um, diz o N. D. quando
existem quatro.
4) Phenol — o mesmo que álcool, quando tal não
se dá.
5) Ausência dos nomes de funcções orgânicas de
máxima importância como cetona, nitrila, etc.
6) Chloral, mistura quando é combinação.
7) Ausência absoluta de referencias a corpos notá-
veis como as aldoses e cetoses, o ácido succinico, etc.
8) Impropriedade de definições de glycol, glyce-
rina, chloroformio, álcool methylico, bromoformio,
iodoformio, ácido formico, ácidos oxalico, malico,
citrico, acetico, formol, ethano, propano, butano,
propeno, tolueno, xyleno, naphtalina, terpina, etc
9) Ácido butyrico, um só — são dous.
10) Ácido lactico um só — são dous.
11) Ácido tartrico um só — são quatro.
12) Inaudita definição de gazolina — idem do ácido
mellico, etc.
12) Radio-metal existente no baryo.
13) Anhydrido-acidoque senão combina com a água.
14) Definições esdrúxulas de cal, amoníaco, etc.
E obsoletas depotassa, soda, baryta, etc,etc,etc!
Assim, pois, seja me permittido reiterar aos nossos
gymnasiastas que tratem de se precaver contra os
ensinamentos do Novo Diccionario, em matéria de
chimica mineral e orgânica. Senão! Cuidado com a
infallivel bomba! Consinta a rapaziada que mais
uma vez venha advertila, amistosa e desinteressa-
damente : Cuidau, Bernau l
XI

A quarta edição do « Novo Diccionario ». Inveteração


no erro. Manutenção de erronias muitas dellas mons-
truosas, quer em zoologia, quer em chimica e physica
quer quanto a brasileirismos. Pequeno, numero de
reclamações attendidas.

Trabalhando indefessamente ultimava o douto


philologo Sr. Cândido de Figueiredo a quarta edição
do seu léxico, que acaba de sahir dos prelos, quando
a morte o colheu.
Verifico que acceitou diversos dos meus reparos
e sinto que não o haja feito em muito maior escala,
porque com isto lucrariam o seu diccionario e o
publico dos seus numerosos consulentes em geral.
Grave immodestia parece estar a ditar-me esses taes
conceitos, mas não ha tal. Nenhuma das emendas
por mim apontadas se estriba em conhecimentos que
eu haja alardeado. Nada mais fiz do que cotejar as
definições de Cândido de Figueiredo com as- dos
grandes diccionarios de reputação universal e indis-
cutível autoridade, estas monumentaes encyclopedias
que são os léxicos de Webster, Whitney, a Grande
Encyclopedia, o Nouveau Larousse illustre, etc.
94 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

obras nascidas da collaboração de dezenas de espe-


cialistas eminentes.
Também em matéria de brasileirismos em geral
não quiz o Sr. C. de F. acceitar a maior parte das
minhas suggestões.
Assim continuou a afiirmar que a abelha «guaxupé»
é uma espécie de penteado usado pelas mulheres do
Brasil; « florianesco » o qualificativo usado para de-
finir o estylo do fabulista francez Florian; « barriga
verde » e « brasileirada » são termos injuriosos para
os catharinenses e brasileiros; os « cagoans »? índios
de São Paulo; « paulista », significa habitante do
Estado de S. Paulo; « paranista », habitante do Es-
tado do Paraná; « paraenses », « maranhense »,« per-
nambucano », « mineiro », etc, querem dizer habi-
tantes do Pará, Maranhão, etc; que « sabinada »
(a revolta bahiana de 1837) é o nome de um partido;
« gereraca » (?) uma cobra venenosa do Brasil;« agri-
mensurando ><, o graduando de agronomia; « mam-
bembe » lugar afastado; « trepa moleque » um pen-
teado (quando é um pente); que « morpheia » é entre
nós synonymo de elephantiase;«irará » um quadrú-
pede semelhante ao macaco (?); « aragão » um sino
(quando é um repique especial);« caucheiro » o explo-
rador das seringueiras; que « jurado » no Brasil é
synonymo de jury (!!), etc, etc.
Em matéria de technologia vulgar zoológica bra-
sileira persistem quasi todos os mesmos erros da
terceira edição; sinão vejamos; o « carrapato »
continua a ser um crustáceo (!!); o « golfinho » um
peixe cetáceo (!); a « siba » (peixe) um mollusco;
« embuá » (myriapodo) um insecto; « pitu'» (cama-
rão) um peixe. O « barbeiro » inocula o « trypano-
soma », o que nos mostra que o diccionarista sup-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 95

punha só haver um « trypanosoma » (o que alias o


confirma a definição de « trypanosomiase »); o
« potó » é um insecto que urina, etc.
Na quarta edição do N. D.,« pirarucu » continua
a ser o mesmo que bacalhau; e escorpião o mesmo
que lacrau; « água viva » (celenterio) mollusco.
Dos erros que apontei o douto lexicographo á
sorrelfa corrigiu três.
Assim quanto á motuca. Definia a palavra na ter-
ceira edição « espécie de mosca da região do Ama-
zonas »; agora escreveu mais acertadamente : « es-
pécie de moscardo grande que persegue os gados».
Jequitirana boia definida « borboleta venenosa do
sertão » passou a ser, como lhe aventei, « insecto
hemiptero dos sertões ». Esse « dos sertões » vae aliás
por conta do meu illustre contradictado.
Sararaca, que desde a primeira edição nos vinha
como « flecha com que os indios do Amazonas « ca-
çam as tartarugas e outros peixes », passou a ser
« espécie de frecha com que os selvagens matam a
tarturuga e vários peixes ».
Havia na technologia brasileira zoológica do N. D.
um verbete quasi digno do famoso Bernardo Ba-
cellar : o celebre diccionarista que definiu macaco :
«animal de tregeitos delirantes »; abdômen, parte do
umbigo : castiçal, « o que dá fogo e luz ».
Deste mesmo Bacellar, relatemol-o entre parenthe-
sis, porque é engraçado, narra Pinheiro Chagas im-
pagável historia :
« Estava compondo o seu diccionario e chegou ao
termo syllogismo. Ignorando o que fosse, tratou de
procurar alguém que lh'o explicasse; deram-lhe a
explicação e elle não a entendeu. Então, para torna-
rem o caso mais claro, disseram-lhe que syllogismo
96 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

era um raciocínio que provinha da fusão e combi-


nação de duas premissas como no coz de umas ce-
roulas se fundem as duas pernas das ditas. O pobre
ainda não percebeu, mas julgou que salvara a diffi-
culdade, escrevendo : syllogismo, raciocínio sobre
duas premissas. Vide ceroulas!
«Ha, na terceira edição do N.D.,um verbete voca-
bular relativo a supposto brasileirismo, digno do bom
Bernardo de Lima e Mello Bacellar : sirema, s. f.;
bras. Ave pernalta notável pela guerra que faz a
todos os animaes. »
Attendendo á reclamação que apresentei desap-
pareceu da actual quarta edição esta espantosa re-
ferencia ao tremendo bicho Attila da nossa pobre
fauna, sem fero ingente e temeroso toque de clarim
daretirada prudente e acertadissima.
Em matéria de chimica está a terceira e dição do
Novo Diccionario de Cândido de Figueiredo
apinhado de erronias graves, ás vezes monstruosas
até.
Firmado na autoridade dos mestres, apontei-as
ao illustre diccionarista pedindo-lhe que não sacri-
ficasse a quarta edição do seu prestantissimo léxico
nelle incluindo tantos dislates inculcados pelos pés-
simos conselheiros que tivera a infelicidade de ouvir.
E inexplicavelmente, convém lembral-o. Pois
ninguém de critério comprehenderá porque preferiu
consultar uns anonymos autores de livrecos de vulga-
rização, que constantemente cita a se abonar com
a autoridade da obra de seu eminente compatriota
o Dr. Maximiano de Lemos: a Encyclopedia portu-
gueza illustrada.
Vejo com verdadeiro pesar reapparecerem na
quarta edição do Novo Diccionario cousas como
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES. 97

estas : « flúor » corpo simples ainda não isolado


(quando Moissan o isolou em 1889); «fluorhydrico»
ácido formado pela combinação do hydrogenio
com uma base (!); « fluorico » « o mesmo » que
fluorhydrico; « fluosilicico » combinação do silício
com o « flúor » (!); « azotico » ácido proveniente de
combinação do azoto com o- oxygenio; sulfurico
ácido da combinação do enxofre com o oxygenio;
« sulfito » sal resultante do ácido sulfurico (!!);
« phosphoroso » ácido também chamado phos-
phorico; « ozona » « cheiro » desenvolvido no oxy-
genio sob a influencia das descargas electricas;
« radio » substancia que se contem no baryo; « ar-
senito » o mesmo que arseniato. Chamei a atten-
ção do douto diccionarista para o absurdo que dis-
sera de anhydrido « ácido que se não combina com a
água » e para a formula errada da «lana philosophica »
mas não se deu ao trabalho de consultar os mestres.
Em matéria de chimica orgânica foram algumas
poucas das minhas reclamações attendidas. Assim
quanto á definição de « álcool » mas não quanto aos
erros contidos nas dos alcooes propylicos e butylicos,
glycerina, phenol, etc. O que affirma de chloral é
um dislate que se repete da terceira edição. Também
não attendeu ao que lhe representei acerca da defi-
ciência das definições dos ácidos tartarico e lactico,
do chloroformio, iodoformio e bromoformio, assim
como quanto ao processo inculcado como moderno
para a preparação do ácido formico (distillando for-
migas como fazia Samuel Fischer em 1760). Não
quiz incorporar ao seu vocabulário os termos hoje
corriqueiros de funcções da chimica orgânica como
cetona e nitrila, etc, os da nomenclatura dos assu-
cares, etc
98 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

E infelizmente não se quiz convencer o illustre


diccionarista que se equivocara gravemente affir-
mando verdadeiros absurdos como quando disse que
chloral era uma « mistura de chloro e álcool, « dichlo-
rado » significa chloreto de methyla e o ácido mellico
é um synonymo do hydrato de cálcio!!
Assim também não explica a sua reluctancia em
acceitar as numerosas suggestões de nomes capazes
de preencher as lacunas de muitas séries de que men-
ciona aliás numerosos termos. E' o que se deu com
os pentanos, heptanos, etc, e os nomes de carburetos
conhecidissimos como o australeno, o terebeno, os
ethino, butino, propino, o naphtaleno, etc.
Muito peior, porém quando persiste em affirmar
que gazolina ou gasolina, como quer, vem a ser
« carbonato de hydrogenio liquido » dando-lhe uma
feição de syphão de confeitaria, gaz carbônico dissol-
vido na água.
A physica do Novo Diccionario nunca a examinei
detidamente, nem mesmo do modo perfunctorio
com que percorri os seus verbetes relativos á chimica.
Nella ha muita cousa a emendar e muita erronia
seria. Apontei alguns deslizes destes e com surpreza
agora noto que o illustre diccionarista acceitou pelo
menos uma de minhas reclamações. Affirmara na
terceira edição que periscopio era o mesmo que ca-
leidoscópio, verdadeira monstruosidade. Agora disse
certo : periscopio, « tubo óptico usado pelos subma-
rinos como instrumento de visão ». Também lhe cha-
mei a attenção para a inacceitavel definição de aero-
plano : « apparelho aerostatico movido a vapor e
sustentado sobre planos ou lâminas postos em acção
por um motor da força de um cavallo, inventado
recentemente por Langley, em 1896 ». Assim se lia
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZÇS 99

na primeira edição do Novo Diccionario] A definição


da terceira é ainda detestável : « apparelho aeros-
tatico movido a vapor e formado de planos ou de
lâminas e de um motor. Foi inventado recentemente,
em 1896, por Langley ».
Protestei energicamente mas o douto diccionarista
só me attendeu em parte. Em todo o caso, retirou
aquelle absurdo « movido a vapor » mantendo, po-
rém, o « apparelho aerostatico » e affirmando que foi
inventado, recentemente, por Langley, em 1896.
Ora, dizer-se em 1926 que 1896 é recentemente.':.
E ainda affirmar que Langley é o inventor do aero-
plano... Em todo o caso, melhorou a definição e va-
leu de alguma cousa o meu "protesto.
Não quiz por forma alguma, porém, o illustre lexi-
cographo, convencer-se de que ninguém diz raio
catodo e sim raio catodico, como lhe observei. E na
definição de catodo faz uma absurda confusão de
raios catodicos e raios X...
Inculquei-lhe um ror de lacunas de palavras scien
tificas hoje as mais corriqueiras como anaphylaxia,
ecologia, amperagem, birefringencia, syntonisar, tele-
dynamica, self-inducção, ultra-violeta, etc, etc.
Aventei-lhe centenas, acceitou varias de minhas
suggestões como as que se referem a watt e kilowatt
(que aportuguezou para vatio e quilovatio) adiabatico
e uns poucos termos mais. Em todo o caso advertido
lealmente que fora dos defeitos, das definições de
diversos vocábulos emperrou em não querer modi-
fical-as como no caso de voltagem em que vem esta
exemplificação, indigna de um diccionario que se
respeita :« conjunto dos voltios que funccionam num
aparelho electrico ».
Esperava eu que a quarta edição do Novo Dic-
100 INSUFFIClENCIA E DEFICIÊNCIA

cionario de Cândido Figueiredo viesse corrigida de


muita definição viciosa que na terceira se contem e
augmentada de numerossimas falhas que lhe haviam
sido apontadas, sobretudo pelo Padre Teschauer e
por mim. Tal não se deu absolutamente. Continua
a ser lacunosissimo o grande léxico que apenas inven-
tariou pouco mais de metade das palavras do portu-
guez de hoje, da lingua falada em todo o orbe lusi-
tano.
Em matéria de technologia scientifica zoológica,
corriqueira, apontara lhe eu á terceira edição cen-
tenas de lacunas. Poucas foram removidas nesta
quarta. E no emtanto são algumas dellas da máxima
importância.
Mas já seria bom que se houvesse expurgado de
muitos erros sérios, por vezes de verdadeiros dislate».
Mas não : assim continua a affirmar que as grega-
rinas que são esporozoarios, vem a ser um « gênero
de vermes intestinaes que vivem em grande quanti-
dade no corpo de certos insectos ». Sustenta que os
bryozoarios, vermes, são molluscos; que lombriga é
ao mesmo tempo o ascaris e a minhoca. Dos cestodos
diz : « vermes da classe dos helminthos » como de-
finição do valor da seguinte : fox terrier, cão da classe
dos cachorros ». Persiste em affirmar que a anguilula,
que é um verme, seja um insecto. E as lacunas pullu-
lam. Tratando dos molluscos traz a quarta edição
do N. D. a classificação de Cuvier (de 1812) hoje to-
talmente abandonada.
Tratando do licranço a nova edição continua a
fazer crer que este lacertilio é uma serpente. Aver-
bando colubrideõs persiste em affirmar que estas « ser-
pentes tem por typo a cobra »!!
E define cobra : réptil da familia das serpentes...
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 101

E como nos ensine que cobra é synonymo de ser-


pente chegamos á seguinte e lógica conclusão :
« cobra, réptil da familia das cobras; serpente, réptil
da familia das serpentes ».
Das actuaes 26 ordens de insectos continuam au-
sentes da quarta edição mais da metade. E as que
ficam tem definições por vezes deploráveis : a be-
souro nome genérico dos coleopteros como todos
sabem, restringe aos « amarellos e pretos ». A defi-
nição de hymenoptero é a mais defeituosa pois exclue
muitas espécies de formigas desta ordem! Os myria-
podos continuam a ser insectos; as araras espécies
de papagaios; a nomenclatura das aves prosegue
lacunosissima. O mesmo se dá com a dos mammi-
feros a que faltam termos e termos dos mais vulgares.
Assim brilham pela ausência palavras corriqueiras
como a da sub-ordem das phocas : pinnipedes; de
famílias essenciaes como os hyenideos, procyonideos,
e até canideos!
E continua a quarta edição com os erros da ter-
ceira a affirmar que a nossa jaguaratirica é um cão
bravio quando^todos nós sabemos que é um felideo.
O furão teima em ser o « mammifero vermiforme »
o que com tanta propriedade já ridiculisou o Sr. Ro-
dolpho von Ihering chamando lhe «lombriga mam-
mifera ». Continua o Novo Diccionario na nova ti-
ragem a ignorar que anthropoide é adjectivador da
subordem dos grandes primatas a que pertencem o
orangotango, o gorilla, o chimpanzé.
Verificado assim que a quarta edição do Novo
Diccionario da lingua portugueza encerra os seus
velhos erros quasi todos, e apresenta enorme lacu-
nosidade em matéria da technologia scientifica e
vulgar, e dos, brasileirismos cada vez mais se me
102 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

impõe a convicção de que precisamos e dos modo mais


vehemente, de um diccionario de confiança. E de
um diccionario brasileiro da lingua portugueza. O
nosso vocabulário é incomparavelmente mais rico
do que o de além mar. A lingua de 35 milhões de
indivíduos ha de ser fatalmente mais rica do que a
de sete. O futuro da lingua portugueza está no Brasil,
acaba deafiirmalo como maior critério eminente phi-
lologo allemão a que ainda ha dias se referia João
Ribeiro.
Mas a organisação de um diccionario moderno,
como as outras grandes línguas já o possuem custa
hoje grandes sommas. Requer collaboração escolhida
e numerosa. O Sr. Cândido de Figueiredo vivia in-
gênua e generosamente embalado na illusão de que
estava em condições de por si só fazer um diccionario
moderno.
Era um philologo notável mas isto não lhe bas-
tava. Sua cultura geral vinha a ser muito deficiente.
O que pretendeu fazer era obra boa para o tempo de
Moraes e de Bluteau. Ou ficasse no terreno philo-
logico, restrictamente, ou desistisse de querer por si
fazer um diccionario enclycopedico.
A desobediência a este critério levou-o a encher as
suas paginas de centenas de dislates que lhe tiram a
confiançados consulentes. O que realisou foi muito
mas muito aquém das exigências modernas. Preci-
samos de um diccionario impeccavel, no gênero do
de Webster. Assim de tal se compenetre o governo
nacional. Grande gloria assistirá ao presidente que
promover a erecção de um monumento ao nosso
caro idioma portuguez nas paginas do volumoso, do
impeccavel Diccionario brasileiro da lingua portu-
gueza, expoente da cultura de nossa terra.
XII

Deficiência dos grandes diccionarios da lingua em


matéria de brasileirismos. Numero enorme de re-
gionalismos de divulgação restricta.

No prefacio do meu Léxico de Lacunas, collec-


tanea de mais de cinco mil vocábulos, não averbados
pelos grandes diccionaristas do portuguez, e que em
1914 foi impressa, lembrei quanto é deficiente ainda
o inventario de nossa lingua, sobretudo no que diz
respeito aos brasileirismos.
Quem percorrer as diversas zonas de nosso paiz,
de prompto verificará a existência de innumeras
palavras autochtonas, se me é permittida esta ex-
pressão, quiçá inadequada, cuja esphera de propa-
gação se limita, muitas vezes, a um raio relativamente
pequeno.
Assim se dá, por exemplo, com grande quanti-
dade de termos do norte de S. Paulo, que o oeste do
Estado por completo desconhece e vice versa.
De Estado a Estado, embora se trate de circums-
cripções limitrophes, a divergência no sentido de
innumeras palavras abrange latitudes, por vezes
extraordinárias. Assim se dá, por exemplo, entre o
104 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Rio de Janeiro e S. Paulo, cidades que, no emtanto


mantêm relações as mais intensas e de mil naturezas.
Para só citar um exemplo : patife, para os fluminenses
é velhaco, para os paulistas apenas medroso.
Ha palavras que em S. Paulo têm signicação obs-
cena e no Rio accepção innocente e até carinhosa.
Relatou-me José Veríssimo ter ouvido, creio que em
Sergipe ou Alagoas, empregar correntemente, tomo
synonymo de virago, uma palavra que é das mais
cruas obscenidades no sul do Brasil. Assim, também
em S. Paulo ouve-se por vezes, aos lábios das pessoas
mais « recatadas, um adjectivo.synonymo de«espan-
dongado », cuja assonancia, simplesmente pavorosa,
tem etymologia a mais soez, palavra da giria estu-
dantal ou soldadesca carioca, das visinhanças de
1895, pois bem me recordo do seu apparecimento.
Transportando-se a quinhentos kilometros do seu
nascedouro, perdeu a palavra a virulência chula para
assumir feição totalmente innocua. Singular trans-
formação que leva a applicar aos vocábulos a philo-
sophia do habent sua fata...
Entre o norte do Brasil e o sul é, ás vezes, immensa
a divergência do vocabulário. Correm na Amazô-
nia centenas, milhares de palavras e locuções, tão
completamente estranhas aos bahianos, fluminenses,
mineiros, etc, quanto estes e aquelles ignoram to-
talmente innumeros dos provincianismos familiares
aos riograndenses do sul. Haja vista o que se dá
com o opulento vocabulário amazonense de Alberto
Rangel, tão extranho á gente do sul quanto a enorme
copia de gauchismos de Alcides Maya e Roque Cal-
lage.
Uns e outros termos freqüentemente nos deixam,
a nós leitores do centro do paiz, inteiramente a quo
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 105

do que possam significar. Nem nos podem valer os


léxicos regionaes, pois aos grandes diccionarios é
inútil pensar recorrer. Coruja e Romaguera Corrêa
para os gauchismos dos modernos autores são tão
deficientes quanto Chermont de Miranda para os
do Pará e da Amazônia em geral. O mesmo se dava
em relação aos vocabulários de regionalismos pau-
listas empregados por Valdomiro Silveira, Monteiro
Lobato e Cornelio Pires e, em grande parte, eluci-
dados ultimamente por Amadeu Amaral no seu Dia-
lecto caipira.
Constantemente agora nos apparecem livros cheios
de novidades regionaes, verdadeiras revelações no
sentido de se avolumar o inventario dos brasileiris-
mos e no gênero da Terra do Sol, de Gustavo Bar-
roso, das Tropas e boiadas, de Carvalho Ramos, etc
Do que nos resta recolher e averbar dá-nos idéa
o que, sem objectivo especial, aliás, apontaram Ar-
thur Neiva e Belisario Penna, na sua interessantís-
sima e tão fecunda jornada scientifica pelo sul do
Piauhy, norte, centro e sul de Goyaz. Centenas de
palavras averbaram, ignotas aos nossos lexicogra-
phos, e muitas dellas tão piltorescas! tão adequadas
á sua expressividade ingênua...
Não ha zona do Brasil, por circumscripta que seja,
onde não occorram muitas e muitas palavras locaes,
termos desuetos, obsoletissimos, vocábulos que per-
deram a significação.
Assim, por exemplo : na segunda edição do seu
diccionario, dizia o Sr. Cândido de Figueiredo, a citar
um trecho de Bernardes, que não sabia que sentido
attribuir á palavra « sobroço »
Na magnífica Terra de Sol, sem favor algum um
dos melhores livros nacionaes, veiu Gustavo Barroso
106 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

revelar a vitalidade desta velha palavra, no Ceará,


a significar : receio, susto. Averbei-a no Léxico de
Lacunas e o Sr. Cândido de Figueiredo deu-lhe foros
de cidade na terceira edição do seu diccionario,
attribuindo-lhe ainda o significado de « embaraço »,
« impedimento » e a mencionar que Felinto Elysio
a empregou. Assim muitas e muitas palavras tidas
por obsoletas, totalmente esquecidas nos grandes
centros, e nas regiões de maior cultura do Brasil,
persistem acantonadas em determinada esphera de
acção, resistindo ao aniquilamento soffrido alhures,
verificado em quasi toda a parte.
E' o que succede em certa região de S. Paulo, nos
municípios ribeirinhos do Tietê, e cujo centro de po-
voamento e civilização foi Ytu' Nesta velha cidade,
tão fortemente cheia de individualidade ainda, cor-
rem muitos termos obsoletos, com um raio de divul-
gação restricto, que attinge algumas dezenas de kilo-
metros.
E' o que, por exemplo, se dá com o verbo mancar,
na accepção de faltar, falhar, e que aliás, segundo
nota o Sr. Cândido de Figueiredo, na terceira edição
do Diccionario, continua ainda usado « na região
de S. Francisco », querendo com isto provavelmente
referir-se á região do rio S. Francisco. Em Ytu' diz-se,
por exemplo : « Vou sempre a São Paulo, mas durante
a colheita manco uns mezes. »
Curioso é que, ás vezes, um accidente geographico
de vulto sirva de fronteira ás palavras. E' o que se
dá com os municípios ribeirinhos do Parahyba,
mineiros e fluminenses, e as palavras papeata e pa-
peateiro. Papeata, para os mineiros da Matta, quer
dizer scena ridícula, demonstração de sentimentos
falsos, exaggerados, fingimento, fita, como é tão
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 107

vulgar dizer-se hoje. Papeateiro é o equivalente do


fiteiro, hoje correntissimo em todo o Brasil, mas fi-
teiro de certa categoria. Ha ahi uma nuance intra-
duzivel. Pois bem, o Parahyba serve de fronteira
a estas duas palavras. Pelo menos, jamais as ouvi á
sua margem direita, entre fluminenses, ao passo que
as encontrei popularissimas em Juiz de Fora e nos
municípios da Matta, a poucos kilometros da linha
fluminense,
O mesmo succede em outras regiões do Brasil.
E'o rio de S. Francisco uma fronteira sobremodo
acentuada, separando zonas de divulgação de pala-
vras.
Facto curioso é o que se dá com a synonymia
vulgar da Manihot utilissima, planta nacional por
excellencia. Mandioca é aipim do Rio de Janeiro
ao S. Francisco e aipim é palavra quasi desconhe-
cida em S.Paulo. Do grande caudalparao norte passa
a ser macachera palavra que os fluminenses tanto
ignoram quanto os paulistas a aipim.
Para grande numero de casos é o S. Francisco
antransponivel fronteira de numerosos vocábulos
não só de Sergipe para Alagoas como entre as duas
grandes regiões a bahiana e a pernambucana. Dá
me o erudito amigo, Comm. Tiburtino Mondim
Pestana, distincto sergipano residente em S. Panlo
ha longos annos diversos exemplos do que acabei de
avançar

Em Sergipe: Em Alagoas :
Caapeba Pariparoba
Fedegoso Mangerioba
Crista degallo Fedegoso
Saruê Timbú
Quiri Taça
108 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Macossá Pamonha
Cuia Quenco
Robalo Camorim

etc, etc, que os exemplos avultam.


Ha também palavras vulgarissimas, da linguagem
corrente, cujos derivados são regionalismos de res-
tricta esphera de divulgação : assim em S. Paulo
criou-se o verbo casamentear (fazer hypotheses ou
espalhar .boatos acerca de possíveis ou prováveis
combinações matrimoniaes), dizendo-se verbi gralia,
« andam casamenteando muito Ernesto e Albertina,
quando elles mal se conhecem ». No Rio de Janeiro
ninguém emprega tal palavra. Em Campinas, e
outras cidades do oeste de S. Paulo, diz-se universal-
mente apromptação por preparativo. « Aprompta-
ção de viagem », « apromptações de festa, casa-
mento », etc E jamais ouvi tal substantivo onde
quer que seja, fora daquella zona paulista.
A experiência me convenceu de que deve haver pelo
menos uns cem mil brasileirismos, que os grandes
léxicos da lingua não contemplaram ainda.
Pouco tenho viajado nas diversas zonas do paiz
a não ser quanto a S. Paulo, Rio de Janeiro e Minas,
mas sempre me succedeu descobrir regionalismos,
por vezes numerosos, ao percorrer novas directrizes,
sobretudo pondo-me em contacto com pessoas do
povo, caipiras e caboclos.
E isto a todos succede a cada passo. Arthur Neiva,
em certa occasião, passou quatro ou cinco dias em
Iguape e pouco depois, a rememorar as palavras
ali ouvidas, e ainda não suas conhecidas, deu-me uma
contribuição extensa de lacunas dos grandes diccio-
narios.
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 109

Nem sempre é coisa fácil surprehender estes regio-


nalismos. Se os interlocutores percebem que se esta
querendo apprehendel-os calam-se, como commigo
succedeu diversas vezes, durante excursões de pesca
com caiçaras do littoral paulista e do interior do Es-
tado. Intimidavam-se, pensando que a minha atten-
ção e curiosidade eram motivadas pelo espirito de
zombaria de sua ignorância e rudeza de lingua. Assim,
em certa occasião, agastou-se um caipira porque
insisti que me explicasse o que queria dizer quando
affirmava haver caça abundante num brumado perto
do rio Mogy Guassu", ou Uuassu', como pittoresca-
mente dizem os caiçaras do centro de S. Paulo e,
ás vezes, até pessoas de posição, fugindo ao g inicial
das palavras numa gutturalidade, attenuada em aspi-
ração prolongada, que supponho provir do atavismo
ou do contacto tupico de antanho .
E' um sotaque pittoresco e curioso, indefinivel,
que leva certos indivíduos a pronunciar, por exemplo,
« aanso » pór ganso, num emittir de vozes que, ás
vezes, parecem dizer também « gaanso », com um g
quasi imperceptível, como o r inglez em iron. São
muito interessantes estas modalidades intermedias.
E' o que se dá com o r e o /, também no oeste de
S. Paulo, onde correntemente se avisinham, e de
tal modo, os phonemas que é impossível distinguir-se
sua linha de separação.
Assim, uma pessoa chamada Alves de Camargo,
por exemplo, a declinar os nomes, não pronunciará
frisantemente Arves de Camalgo, como fazem os
habitantes de muitas outras zonas brasileiras em que
se troca o r pelo l e vice versa. Dirá num rolar de
lingua, sobremodo característico, qualquer coisa que
8 e pareça com Arlves de Camarlgo. E isto me recorda
110 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

outro vicio curioso de linguagem, summamente com-


mum entre bahianos, até dos mais educados, o des-
locamento dos logares das vogaes de certos diph-
tongos que os leva a dizer muntio, otio, circutio, por
muito, oito e circuito, etc.
Não será este vicio tão vulgar quanto o da sup-
pressão do h junto ao l, que este é quasi universal
na Bahia, que diz pileria e muler, como é tão sabido
em todo o Brasil, não será talvaz o caso tão po-
pular quanto a canua de cucos do Pará, masnão deixa
de ser espalhadissimo, do Mucury ao Rio Real e do
Atlântico á serra do Duro.
Mas quanta digressão! dirá o leitor benevolo.
Assim, voltemos ao assumpto de que nos afastá-
mos : a saber da difficuldade de caçada de brasilei-
rismos inéditos, entre a gente do povo, devida ao
acanhamento e retracção dos consultados. Certo dia
assistia eu ao levantamento de uma rede de pesca,
num tanque do município de Limeira. Apanhara ella
muitos cascudos, traíras, bagres, etc. « Mecê venha
ajudar-nos a desembramar estes peixes », pediu um
dos pescadores a um dos presentes. Era a primeira vez
que me encontrava com o verbo, novo synonymo de
desenredar. Achei-o curioso e indaguei : Como é que
você disse? Desembramar ? Fitou-me o interpellado,
como admirado de tal ignorância acerca de tão vul-
gar palavra; perturbou-sé um pouco, porque desde
muito percebera que eu lhe prestava attenção ás
expressões e, afinal, respondeu com certa impa-
ciência :
Eu não sei se está certo, mas de pequeno falo
ansin.
Tive depois o ensejo de notar, quanto, em Limeira
e municípios visinhos, eram correntes desembramar
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 111

(desenleiar, desatar, desamarrar, desnovellar, etc.)


e seu antonymo embramar. Ou antes, é mais justo
que embramar tenha a prioridade e assim seja des-
embramar o antonymo.
XIII

A extranha lacunosidade dos grandes diccionarios por-


luguezes em matéria de brasileirismos. Ausência de
palavras derivadas correntes em todo o Brasil. O im-
menso avolumamenio da lingua entre nós.

Leia alguém, diariamente, três ou quatro dos


grandes jornaes brasileiros, na parte editorial e na
ineditorial. E, certamente, não deixará em cada
jornal, de recolher, pelo menos, um termo, senão
mais, ainda não averbados nos grandes diccionarios
da lingua. Não só ha uma tendência nacional extre-
mamente acentuada para a criação de neologismos,
e palavras derivadas, como o progresso e aperfei-
çoamento das industrias antigas e a criação das
novas, o apparecimento de invenções, que tomam
logo enorme impulso, trazem grandes contingentes
vocabulares recentes e recentissimos. Já nem me quero
referir á technologia scientifica que esta, annual-
mente, se avoluma de modo prodigioso e, a cada
passo, provoca a entrada, para a linguagem cor-
rente, de numerosíssimas palavras que estão nos lá-
bios de todos, em continua recordação.
Assim se dá, por exemplo, com a technologia ra-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 1 1 3

diologica, com a da aviação, da aeronáutica, serum-


therapica, etc, etc. As descobertas scientificas,
trazem á linguagem vulgar, preciosíssimas contri-
buições, de expressividade admirável. Assim, por
exemplo, antigamente se dizia de um indivíduo farto,
fartíssimo, mais que enfarado de um assumpto, que
estava saturado; já hoje, a descoberta de Richet nos
permitte comparação muito mais poderosa decla-
rando anaphylatisado o que o antigo saturado não
exprimia bastante ainda. E assim por deante.
Dahi, o avolumamento continuo, do vocabulário.
O numero de palavras derivadas cresce, no Brasil,
parallelamente, de modo extraordinário. E, real-
mente, porque não hão de os diccionarios consignar
adjectivos procedentes de certos verbos usuaes,
quando outros adjectivos de formação idêntica, são
recolhidos. Por que motivo, por exemplo, se fecha
a porta a ábalador e agrupador quando se recebem
aniquilador e animador ?
Não é corrente ouvir-se dizer, por exemplo : a
derrota eleitoral recente, ábalador a do prestigio
político do deputado X.? o movimento agrupador
das opposições ao governo accentua-se dia a dia?
E como se diz agrupador se diria agremiador, que tam-
bém os actuaes novíssimos diccionarios não recolhe-
ram ainda. Com os advérbios de modo, dá-se a mesma
coisa. Por que recusar averbamento a termos como
altisonantemenle, por exemplo, ou, melhor, clango-
rosamente, que se dirá com a maior naturalidade
quando se recolhe clamorosamente e estrepitosa-
mente ? Não se dirá com a mesma precisão que as
trompas de uma banda de musica atroaram os ares
estrepitosamente ou clangorosamente. E não será até
mais adequado o segundo advérbio?
114 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Ha, também, uma infinidade de substantivos


derivados, cujos suffixos em agem, ento e ismo,
ista, etc, andam á boca de todos, e entretanto,
ainda não passaram para os diccionarios, quando
outra infinidade de palavras do mesmo jaez já al-
cançaram a honra do dignus est entrare.
Quem, por acaso, estranhará ler nos jornaes :
« Com o seu prestigio promoveu X. o acoberiamento
dos criminosos pela própria policia local? o adhesismo
geral foi conseqüência característica do movimento
revolucionário; F. nega a G. o direito da açuda-
gem das águas do ribeirão que passa pelas terras
de ambos. »
O Sr. Cândido de Figueiredo registra acanhamenjo,
mas não encalistramento, universal no nosso paiz.
Açudagem, açudamento, represamento, são palavras
tão correntes, como barragem.
O Sr. C. de Figueiredo, apenas cita esta ultima,
a que curiosamente, para nós brasileiros, não dá o
sentido de muro represador de águas, definindo-a
assim : « Tapume feito de troncos e ramos entrelaça-
dos, dentro da água dos rios, para impedir a passa-
gem do peixe, obrígando-o a convergir para determi-
nado ponto. » Eis uma definição inteiramente inex-
pressiva para nós outros. Barragem, em Portugal,
é o que todos aqui conhecemos por cercado de peixe
ou, mais vulgar e concisamente, mais brasileira e
simplesmente, pary. Entretanto, a cada passo nos
referimos ás barragens da Light no « Ribeirão das
Lages », em Votorantim e mil e outros pontos. Ha
uma obra official da Inspectoria de Seccas, Perfis
de barragem. Barragem é tão conhecido * como re-
presa.
Vocábulos em ismo e ista são hoje incontáveis
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 1 1 5

entre nós, tem universal aceitação e a maior divul-


gação; no emtanto, ainda se acham á espera do sé-
samo dos lexicographos. Só agora é que o Sr. Cândido
de Figueiredo concedeu ingresso a altista e baixista,
palavras milhões de vezes empregadas, diariamente,
nos nossos centros de negócios, e que lhe apontá-
mos, como lacunas de sua segunda edição. E ainda
assim mesmo entendeu restringir-lhes a significa-
ção, restricção contra a qual nos insurgimos. Altista,
diz o Sr. Cândido de Figueiredo, é um brasileirismo
pelo qual se designa o bolsista que joga na alta do
cambio. Baixista, bolsista que joga na baixa do cam-
bio.
Quem, no Brasil, não sabe que ha altistas e baixis-
tas do café, do algodão, da farinha de trigo, dos títu-
los de empresas, etc, etc?
E' colossal o numero de derivados usados na
nossa imprensa que se tornam corrente na linguagem
vulgar. Ha uma tendência accentuadissima em avo-
lumar o numero destas palavras que leva a crear
adjectivos, substantivos, verbos, com terminações
sobremodo exóticas, por vezes. Assim se deu com o
adjectivo marechalicio, empregado diariamente por
centenas de articulistas, durante a grande campanha
presidencial de 1909-1910 entre o civilismo e o her-
mismo, para se designar a candidatura do marechal
Hermes da Fonseca.
Não merecerá ser recolhido um termo que teve a
maior vitalidade e cuja existência se manteve até
hoje. Voltou á baila com enorme insistência, a pro-
pósito do pronunciamento de julho de 1922, che-
fiado pelo mesmo marechal.
Ha, além destes derivados, também a considerar
os neologismos de formação literária, de origem helle-
116 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

nica ou latina, que se arraizaram no portuguez fa-


lado no Brasil. O grande precursor deste movimento,
entre nós, foi Castro Lopes, a quem não faltaram os
imitadores e continuadores. O Sr. Cândido de Figuei-
redo negou a entrada aos seus convescote, nasoculos,
ancenubio, ao passo que aceitou cardápio, preconicio,
runimol, lucivelo, não sabemos por que, pois tanto
uns como outros, provêm da mesma fonte e de aba-
lisada origem.
Não julgamos exagerar, no emtanto, aífirmando
que não ha quasi entre brasileiros cultas, quem
ignore que convescote, quer dizer pic-nic, e nasoculos
pince-nez. Ficaram estes neologismos inventados por
Castro Lopes tão incorporados á lingua, como car-
dápio e preconicio, por exemplo, que estes estão in-
destructivelmente aceitos.
Os neologismos de formação latina e grega, também
se avolumaram muito no Brasil, alguns fizeram
enorme carreira, como necrotério, proposto pormeu
pae, ha muito averbado pelo Sr. Cândido de Figuei-
redo que na ultima edi ção do seu diccionario não lhe
indica a procedência brasileira e no artigo referente
à palavra morgue, manda ver o nosso termo em
logar do gallicismo dispensável.
Ha numerosas palavras deste jaez formadas no
Brasil e com bastante divulgação : algumas della,s
bem formadas, outras por demais pedantescas, como
por exemplo, a podosphera, que um jornalista quiz,
por força, acclimar para substituir o britannismo do
foolball, aliás, hoje, convertido na horrível detur-
pação prosodica do futebol, inculcadora de péssima
pronuncia ingleza.
Dia a dia cresce e cresce immenso a riqueza verbal
do portuguez falado e escripto no Brasil. Os annuncios
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 117

dos jornaes disto dão a maior prova : leia alguém,


com attenção, os avisos de leilão, as descripções de
fabricas á venda, a relação dos machinismos e meca-
nismos das industrias, dos seus accessorios e sobre-
salentes, recorra depois aos nossos mais completos
diccionarios. Verá que immensa quantidade de pala-
vras existem á boca do povo, sem a exemplificação
dos léxicos.
A technologia do automóvel, por exemplo, está
toda por entrar para os diccionarios, e, é sobremodo,
considerável. E poderão os lexicographos deixar de
constatar a existência de palavras que todo o mundo
hoje conhece como volante, klakson, esterçar, cáter,
manica, etc?
E cada industria tem technologia de larga extensão
nos mesmos casos,. As machinas criam verbos adjec-
tivos e substantivos. Assim como de calandra se
tirou calandrar, calandragem, calandreiro, calandrado
de cada machina nova nasce uma série de termos
que se tornam de uso familiar e corrente nos meios
industriaes.
O que também resta a consignar nos nossos léxicos,
em matéria de nomenclatura vulgar botânica, zoológi-
ca, mineralogica, etc, é immenso e cremos que para um
paiz da vastidão do nosso, jamais se poderá recolher os
nomes que as constituem, tanto mais quanto o mesmo
objecto tem uma infinidade de appellidos. Vemos uma
arvore chamar-se Tresmarias em determinado logar; a
dez léguas de distancia ninguém lhe chamará senão
Primavera; em outra zona terá nome de origem tupica;
em outro dos nossos Estados, um appellido africano,
etc O mesmo se dá com os pássaros, com os peixes,
insectos, etc Nesse ponto, a synonymia até hoje reco-
lhida é ainda muito pobre.
118 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Tomemos por exemplo o caso do Bucco chacuru


de que falámos. Não tem este pássaro mais de
dez nomesnas diversas zonas do paiz?
Uma colheita de brasileirismos, ha de ser ampla,
sempre, a quem viajar com certa demora em qual-
quer zona do paiz. Disto, tenho as mais evidentes
provas por experiência própria, pelo facto de pedir
contribuições a pessoas freqüentemente sem illus-
tração e muitas vezes da mais modesta condição social.
Em Ouro Preto, a conversar vinte minutos com o
sacristão da admirável egreja de S. Francisco, ouvi
logo uma dúzia de palavras que desconhecia e das
quaes metade era inédita para os grandes dicciona-
rios. Noutra occasião, numa estada em estação
de águas, tive o prazer da excellente convivência
com um moço distinctissimo, grande agricultor no
sul da Bahia e advogado de renome, o Dr. Paschoal
Amando Camelyer. Num instante, quando lhe falei
na cachimonia de colleccionar lacunas, acudiram-lhe
á mente mais de uma centena de bahianismos da
zona- cacáoeira, totalmente estranhos aos nossos
diccionaristas.
Ha, no mínimo, em cada município do Brasil, uma
centena de termos locaes, inéditos até hoje, incluindo-
se ahi a nomenclatura vulgar das sciencias naturaes.
Assim sendo elles, mil tresentos e cincoenta, mais ou
menos, não será difficil avaliar em cem mil os brasi-
leirismos inéditos, descontadas as repetições prová-
veis entre districtos visinhos. Houvesse em cada
uma destes circumscripções municipaes um dedicado
á faina da polheita de regionalismos, e no fim de
pouco tempo veríamos quanta palavra existe por
ahi vivaz, a que ainda não se deu os foros da cida-
dania portugueza.
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 119

E no meio desta enxurrada de vocábulos, quanta


coisa pittoresca, quanta coisa preciosa, quanta
palavra expressiva e de formação intelligente, se
não philosophica até, filha da simplicidade popular
e verdadeira vox Dei!
XIV

Os trabalhos valiosos de Teschauer. A enorme colheita


de brasileirismos realisada pelo douto jesuíta.
Reparos summarios a seus processos.

A's considerações que aqui expendo veio reforçar,


quer-me parecer, o apparecimento de trabalho sobre-
modo útil e opportuno do R. P. Carlos Teschauer :
Novo Vocabulário nacional. E' mais uma contri-
buição excellente com que o illustre jesuíta brinda
as nossas letras.
Na classe dos estrangeiros beneméritos do Brasil,
figura sob muitos e muitos títulos de real louvor
este illustre membro da Companhia de Jesus que,
vindo estabelecer-se em nosso paiz, trouxe á sua
pátria de adopção as veras do coração affectuoso.
Pertence a uma pleiade que á sua província riogran-
dense cobre do maior prestigio, figurando ao lado
de Hafkemeyer, Rick Schupp e outros. A Teschauer
devem as nossas letras históricas obras do valor da
Historia do Rio Grande do Sul, da Vida de Roque
Gonzalez, e a nossa philologia as excellentes Apos-
tillas ao diccionario de vocábulos brasileiros, em dois
volumes, além, do recentissimo Novo Vocabulário na-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 121

cional, terceiro tomo dessa série valiosa. Registam-se


aqui oito mil e quinhentos vocábulos nacionaes. Da
sua bibliographia se infere quanto o autor é um
formidável ledor de livros, opusculos, periódicos,
de todo o gênero, publicados em nosso paiz, e ledor
attentissimo. Difficil será achar-se quem neste parti-
cular o acompanhe, pela variedade da leitura, impossí-
vel quem o supere.
Publicando, ha annos, o seu Novo Vocabulário
brasileiro, affirmava o douto jesuíta exactamente o
que também proclamámos : « o avolumamento con-
tinuo do numero de palavras hoje corrente no Brasil
é a prova eloqüente -do continuo e relativamente
ligeiro desenvolvimento do idioma nacional e ao
mesmo tempo a affirmação mais enérgica da nacio-
nalidade brasileira ». Agora na pequena advertência
ao Novo Vocabulário nacional, adduz : « O primeiro
centenário da Independência política deve marcar
o primeiro passo de nossa independência intellectual
que já se manifesta em milhares e milhares de vocá-
bulos nacionaes que não tem entendimento nem
significação em Portugal. Ufanos, escreve Oliveira
Lima, celebramos a independência no centenário do
nascimento da nação brasileira; a uma nova nacio-
nalidade deve corresponder não só uma literatura
própria, como uma lingua differenciada. » O novo
livro de Teschauer em que se lêm mais de oito mil
e quinhentos (8.500) vocábulos nacionaes é ao lado
de outras semelhantes manifestações uma prova
na verdade modesta, porém, eloqüente, do continuo
desenvolvimento da propriedade lingüística, affir-
mação enérgica da nacionalidade brasileira e de
sua independência intellectual.
E' de lastimar que o Rev. P. Teschauer não tenha
122 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

tido um pouco mais de paciência e um pouco mais de


arrojo para fundir num volume, num diccionario
geral de brasileirismos, todos os léxicos regionaes
e vocabulários brasileiros, e as suas próprias obras.
Teria certamente um diccionario de cem mil vocá-
bulos dos quaes pelo menos cincoenta mil desconhe-
cidos em Portugal e ainda não averbados pelos mais
modernos lexicographos.
Procedendo por partes, como está fazendo, algum
tanto dispersivamente, como que age segundo o
critério dos naturalistas, empolgados e freqüente-
mente allucinados pela idéa fixa de salvaguardar
direitos á prioridade das descobertas de gêneros e
espécies novas, a lançarem, açodadamente, notas
previas e noticias preliminares, com as diagnoses
de seus achados, freqüentemente illusorios, que hoje
as mais das vezes, as grandes revisões dos grupos
zoológicos e botânicos tragam estas esperanças,
atirando-as á valia commum da synonymia.
Outro facto para mim inexplicável occorre nos
optimos trabalhos de Teschauer.
Porque, de vez em quando intercala elle nomes
geographicos e históricos ás palavras vulgares dos
seus léxicos?! São tão poucas que apenas perfazem
uma série insignificante de apontamentos não phílo-
logicos, que, no emtanto, tomam bastante espaço
dos livros. Por que citar algumas dezenas de rios.
serras, lagos, etc, ou de factos históricos? Por que
esta restricção? Por que falar na serra sorocabana da
Arassoiaba, isoladamente, quando não e menciona
nem sequer as demais serras paulistas? E para que
mencionar um ou outro facto histórico como a da
matança de Uruassu', no Rio Grande do Norte, sob
o domínio hollandez, isoladamente? Não atino com
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 1 2 3

o critério que levou ainda agora o illustre autor a


realizar semelhantes enxertias ao seu excellente
livro, a que, aliás, faz enorme falta uma boa intro-
ducção, obrigatória, em taes casos.
Outro ponto de vista que também não apanho
bem, é o seguinte ; Por que razão escolheu o autor
palavras salteadas dos diversos léxicos de que se
serviu para a sua collecção, abandonando numero-
síssimos vocábulos que deveria ter mencionado, e,
inexplicavelmente, a meu ver, deixa em silencio?
Assim, em relação ao meu modesto Léxico de la-
cunas, fez a honra de citar muitas centenas de pala-
vras, mas intervaladamente. Esta collecção tem
umas 5.500 palavras, omissões da segunda edição
de Cândido de Figueiredo. Dellas escolheu o Padre
Teschauer uma meia dúzia de centenas e semeou-as
pelo seu excellente Vocabulário, acompanhadas até
dos meus exemplos.
Tomo duas paginas de meu trabalho : 58 e 59,
em que averbo 53 lacunas, destas cita o R. P. Tes-
chauer casa de prego, casamenteação, casamentear,
casamenticio, cassununga, castanheiro, catanduva,
catanduval, catatau, nove palavras e abandona 44,
de numerosas categorias, as mais diversas, algumas
das quaes correntes na linguagem vulgar como casca
grossa (indivíduo grosseiro), cascabulho (estudante
de humanidades), catimbueira (espiga de milho
defeituosa, na Matta de Minas), etc. Assim succede
a quasi todas as paginas, e esta selecção me parece
sobremodo exquisita, comquanto haja notado que
o illustre autor não quiz averbar, em geral, a nomen-
clatura botânica e zoológica, muito embora sejam
nas suas paginas freqüentes as excepções. Assim
colloca Catiguá, arvore meliacea, e recusa catw-
124 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

canhemt arvore protacea, fala no papagaio caturrita


(Bolborrynchus monachus) e deixa o periquito
catorra (Conurus murinus).
Realmente não sei como explicar semelhante facto
que me parece verdadeira anomalia. Fora de duvida,
comtudo, é que o Novo Vocabulário nacional, do
R. P. Teschauer, representa subsídios de valor para
o grande diccionario da lingua falada no Brasil, que
mais dias menos dias se elaborará.
A paciência com que o seu autor colligiu estas
achegas, o cuidado e a meticulosidade das trans-
cripções, dão-lhe real valia.
Por elle se vé como se plastifica, diariamente, o por-
tuguez que falamos, como adquire elementos novos,
como se avoluma, como tende ao enrique cimento
continuo pela derivação dos elementos classificados.
Tome-se por exemplo uma serie de vocábulos
apontados pelo R. P. Teschauer, por elle colleccio-
nados e nascidos do prefixo Des. Que riqueza de
exemplos, quanta palavra abonada pelos maiores
nomes das nossas letras : desabonador, desadmj.-
nislrar, desaguisar-se, desaproveüado, desbachareli-
sação, descultura, despoliticalhar, despresentir, des-
temerosamente, desfraternisar, desgarantir, desvirgular,
desobumbrar-se, despontuar, etc, de Ruy Barbosa;
desbote de José de Alencar; desmortificado, de Ma-
chado de Assis, etc. Mais de quatrocentos vocábulos
assim derivados adduz o P. Teschauer subordinados
ao prefixo des, colhidos em dezenas de escriptores
nossos, illustres ou notados.
Das omissões que apontei também principiadas
por des recolheu o autor de Novo Vocabulário na-
cional, mais de duas dezenas, mais ou menos a terça
parte do que colligira eu.
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 125

0 que o R. P. Teschauer, com tanta paciência e


pertinácia, está realizando, desacompanhado, daria
enorme colheita se fosse levado a cabo por diversas
pessoas em differentes zonas do paiz. Houvesse por
exemplo algum mecenas que annunciasse pagar
mil réis por palavra ainda não mencionada nos gran-
des diccionarios portuguezes, no do Sr. Cândido de
Figueiredo, por exemplo, comtanto, porém, que se
provasse que tal palavra já houvesse sido impressa,
em livro, ou no jornalismo, até I o de janeiro de 1927,
digamos. Acudiriam os pesquizadores a percorrer
os jornaes e as revistas, os livros e os opusculos e
dentro em breve estariam — disto estou convencido
— levantados e documentados uns cincoenta mil
vocábulos novos. Custaria a caçada uns cincoenta
contos de réis, quantia que intimidaria os nossos
pagadores, mas que, mesmo para muitas das fortunas
do Brasil, não vem a ser coisa que as arraze.
Assim, e a titulo de curiosa experiência, occorresse
a um dos nossos pequenos millionarios semelhante
idéa e não a quizesse achar inteiramente estapa-
fúrdia. Veria surgir de todos os cantos um vocabu-
lário novo e rico, totalmente ignorado dos lexico-
graphos. E se então se pedisse a contribuição da
linguagem falada sem a exigência do passaporte da
impressão, teríamos com a maior facilidade cem ou
cento e cincoenta mil palavras a mais. Mas que o
caçador de omissões se restringisse só ás palavras
acompanhadas da certidão de baptismo. Haveria
de se ver afogado numa enxurrada de lacunas brasi-
leiras, para seu maior gáudio e desprazer dos diccio-
naristas typo Cândido de Figueiredo a quem parece
inquietar o enorme avolumamento da linguagem
brasilica.
XV

A pobreza do vocabulário portuguez em face do das


demais grandes línguas. As contribuições alienígenas
no Brasil.

Por que esta relutância em avolumar o vocabu-


lário portuguez? e sobretudo com as contribuições
brasileiras? Será a nossa lingua por demais rica, com
os 137.000 termos que Figueiredo inventariou? Não
representa isto entretanto uma cifra baixissima?
quando se sabe que os « Webster », os « Standart »
inglezes e americanos, de hoje, revelam a existência
de quinhentos mil vocábulos inglezes? que os diccio-
narios allemães consignam mais de 300.000 palavras
e os francezes já estão acima de 250.000? Das quantas
línguas civilizadas é a portugueza das mais pobres,
quanto ás technologias ninguém o ignora.
Porque razão refugará Cândido de Figueiredo os
nossos termos technicos como « abarcadeira »,
« alargador », « arranca-estacas », « arranca pregos »,
« atiçador », etc, que lhe suggeri numerosos, quando
não poz a menor objecção a recolher alguns britan-
nismos realmente pavorosos que a construcção das
estradas de ferro enraizou em Portugal como a chu-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 1 2 7

lipa » (o nosso a dormente »), de « sleeper » e outros


não menos rebarbativos e desimaginosos?
Não se acha tão differenciado o portuguez ainda
que estejam os lexicographos a olhar com o « dente
superbo » horaciano para as contribuições que lhe
avolumem-o inventario. E a prova disto vem a ser
a enorme difficuldade em que se debatem os que até
agora têm pretendido organizar diccionarios tech-
nicos entre nós. Não sabem como traduzir centenas,
milhares de palavras, das technologias ingleza, allemã
e franceza.
Precisam aportuguezar os vocabulários estrangeiros
que os correspondentes a estes termos, hoje impres-
cindiveis, não os encontrarão certamente no Novo
Diccionario, sobretudo quando neste tanta má
vontade houve em deixar entrar os escassos recursos
technologicos brasileiros.
De quanto as vozes luzitanas são defficientes
neste capitulo vocabular prova-o a carreira feita
em S. Paulo, por exemplo, por palavras de excellente
derivação latina, portanto perfeitamente aceitáveis
por nós outros, mas de importação italiana no gênero
de « lanificio », manufactura de lans, que Cândido
de Figueiredo já acolheu.
Muitos delles podemos tomal-os sem a menor
relutância, embora haja alguns, entretanto hoje
correntissimos, na linguagem vulgar, cujo italia-
nismo é muito mais forte do que o latinismo. Houve
neste particular, no Estado de S. Paulo, devido a
influencia italiana, a criação de enorme numero de
substantivos deste gênero. Apregoam os annuncios
de fabricas : o a capellificio », da firma X; o « pasti-
ficio », de Y; o « cottonificio », de Z; o « vinificio »,
de V, etc, designando as fabricas de chapéus, de
128 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

massas alimentares, tecidos de algodão, e estabele-


cimentos vinhateiros. Surgem até neologismos
de aspecto rebarbativo como o « sericificio » de
um cidadão que gaba a sua manufactura de sedas.
Mas que remédio terão os lexicographos senão reco-
lher taes palavras desde o momento em que se tornem
universalmente usadas pela linguagem vulgar e na
imprensa? Brevemente teremos « phophorificios » e
quiçá até « vassourificios » ou « panellificios » ao se
generalizar esta tendência em se designar uma
fabrica por um só substantivo que vejo dia a dia
maior nos annuncios dos jornaes paulistas.
Grande volume tomou contemporaneamente o
numero de substantivos em « ária » que designam
officinas ou estabelecimento de commercio.
Se outr'ora se dizia sapataria e alfaiataria hoje
se lêm nas ruas annuncios de « engomaderias » que o
Sr. Cândido aceitou, de«fecularias»,«amiderias», etc,
nomes de fabricas de fecula e de polvilho, etc, a que
o illustre lexicographo applicou o seu veto.
Apparecem diariamente termos novos os mais
imprevistos, freqüentemente de má ou péssima
derivação que conviria refugar se possível. Assim
já vi em Santos uma taboleta annunciando uma
« jouraria » e no Rio de Janeiro outra pedindo empre-
gadas « joureiras », duas palavras derivadas do
« point à jour », renda, que, creio tem numerossimos
apreciadores nos nossos bons Brasis.
Naturalmente será de muito se aconselhar o « in
médio virtus » para não desfigurar demais o nosso
portuguez já enxertado de contribuições extralusi-
tanas nessa « terra de todos » em que o Brasil se está
convertendo, pelo menos em certas zonas meridio-
naes.
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 129

Mas se milhares e milhares de arabismos seculares


pertencem indestructivelmente ao cabedal da lingua
os annõs hão de forçosamente dar ganho de causa
a milhares e milhares de estrangeirismos de varias
procedências que pleiteam a sua inclusão nos léxicos
do portuguez falado no Brasil e hão de lhes forçar
as portas, infallivelmente. Assim se dará com grande
numero de italianismos no Estado de S. Paulo que
evoluem de seu idioma, ou dialecto de origem, para
uma lingua pittorescamente chamada em S. Paulo
de « juó-bananere », hybrido italo lusitano com
assonancias fanhosas desagradáveis e um sotaque
tão esquesito, tão singular, que a todos chama
attenção E do « juó bananere » para o portuguez
E já não é o mesmo portuguez falado pelos italianos
natos. Os brasileiros filhos de immigrantes italianos
que se mantém agglomerados e ouvem os pães falar
a lingua materna pronunciam o portuguez de modo
muito diverso do dos seus progenitores e também
muito differente do dos luso-paulistas. Os filhos de
« Juó bananere » (João Bananeira), espirituoso e
popular typo literário criado por Marcondes Machado
para symbolizar o italiano meridional « carcamano »
que fala um portuguez tão pavoroso como o próprio
patuá materno, a que estropia; os filhos de « Juó
bananere » lançam nos meios em que vivem, pala-
vras que fazem grande carreira. Assim se deu com
a interjeição « Chau! » que não sei como se deverá
graphar : sciau! (?) chau! (?) siau (?) e significa
até logo! até mais ver! passe bem!
Tomou esta saudação de uns tempos para cá
enorme voga. Bem me recordo que a ouvi pelas
primeiras vezes ha uns dez annos. Hoje, a cada
passo, escuto-a proferida já por muitos brasileiros.
10
130 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Ignoro-lhe a origem^ talvez provenha da Baixa


Itália, e seja um plebeismo. Mas indubitavel é que
tem actualmente enorme divulgação na capital pau-
lista e adjacências, embora entre ainda a gente do
povo.
Pelo facto porém de se tratar de um italianismo
acclimâdo no Brasil poderão os futuros lexicogra-
phos do portuguez repellil-o? Absolutamente não,
quando já consignam como correntes milhares e
milhares de inserções americanas e africanas prove-
nientes de línguas sem -a mínima affinidade com a
nossa. E que mal faz estejam a avolumar o nosso
léxico, abundantemente. Não é isto o indicio do
desenvolvimento cultural do paiz, de um passo para
adcante em süa civilização?
Assim não pensa porém, carrançamente o diccio-
narista typo Cândido de Figueiredo, afferrado a
um misôneisHio absolutamente inaceitável. Tal a
vehemencia desta feição do illustro philologo por-
tuguez que até com o vocabulário de Ruy Barbosa
se deu á fraqueza de o repellir quanto a numerosíssi-
mas lacunas do seu NOPO Diccionario.
Insophismavelmente o demonstrou o escriptor
amazonense Sr. João Leda. Indignado retrucou
lhe o douto diccionarista explicando que se assim
procedera fora por ignorar o significado de taes
palavras.
Ficara Ruy de lhos dar mas nunca o fizera, até
que a morte o surprehendera.
Parecenos tal resposta pouco leal, porque nas
columnas do Novo Diccionario poderia o seu autor
ter procedido como fizera em relação a numerosos
autores de que cita palavras numerosas fazendo-as
seguir de uma interrogação. Nestes casos estão :
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 131

Algazuna (de Cortesão), Avezlmão (Gil Vicente),


Langroia (Camillo), Minhana (Antero Figueiredo),
Meigra (Jorge de Vasconcellos), Góes (Díõgo do
Couto), Gamacha (Soropita), etc.
Em summa, resumindo opiniões longamente expen-
didas, creio, firmemente, que ha mais de cem mil
brasileirismos vivazes, que estão á espera de registro
nos grandes léxicos.
Corroborando tal modo de ver cartas recebi, provo-
cadas por certas considerações, de amigos e de infor-
mantes desconhecidos. Escrevem-me do sertão do
noroeste de S. Paulo : « Viesse você passar uns dias
comnosco, que encontraria uma grande turma de
derrubadores da matta, que aqui tenho, vinda do
alto S. Francisco, « bahianos » do norte de Minas,
do sul da Bahia, quiçá de Pernambuco, que o termo
é genérico. Não imagina você quanta palavra em-
pregam que nos outros paulistas, jamais ouvimos.
Num instante recolheria você centenas, pois, além
de tudo são uns cabras sobremodo falantes, intelli-
gentes e nada acanhados como os nossos embiocados
caiçaras. »
Em outra carta diz-me o Sr. Antônio C. Cotrim
Costa : « Tem o senhor toda a razão quando recorda
a grande deficiência do inventario dos brasileirismos
do Sr. C. de Figueiredo. Por curiosidade, percorri-Jhe
as paginas da ultima edição do Diccionario, verifi-
cando que lhe faltam numerosíssimas palavras das
mais corriqueiras do nosso falar diário em S. Paulo.
Assim, por exemplo : dodoe, passa moleque, mata-
burros, tapeação, farrista, frege, fregista, gallista,
azarar, grudento, etc, e quantas mais! Num ins-
tante me occorreram muitos dos nossos termos, dos
quaes encontrei bem poucos no diccionario do senhor
132 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Cândido. Disse o senhor uma grande verdade ac


affirmar haver dezenas de milhares de brasileirismos
a recolher. »
Outro informante espontâneo e generoso, o Sr. Fran-
cisco T. de Freitas, escreve-me de Cachoeira de
Marianna — que qualifica de «logarejo do município
de Marianna » —• enviando-me minuciosos regiona-
lismos, muitos dos quaes sobremaneira interessantes,
inteiramente meus desconhecidos e não averbados
pelo Sr. C. de Figueiredo. « Imagino que alguns são
como que propriedade deste meio, pois nunca os
ouvi pronunciados em outras localidades » diz-mo
o amável informante. Dentre as palavras que me com-
munica algumas ha sobremodo pittorescas e expres-
sivas.
O trabalho de colleccionar lacunas é muito enfa-
donho, porém, por causa da conferência dos vocá-
bulos com os já apontados pelos diccionarios, para
se verificar se são inéditos ou não.
E assim deixarei de lado esta faina, tendo coisa
muito mais importante a fazer e já havendo, aliás,
suggerido aos grandes lexicographos muitos milhares
de omissões aos seus vocabulários. Assim não pre-
tendo de todo continuar neste trabalho cansativo
e em que para o Léxico de lacunas, fui do modo mais
caridoso auxiliado por meu joven primo Dr. Eurico
Teixeira Leite, da maneira mais dedicada e sobretudo
mais intelligente.
XVI

Demonstração inilludivel. Argumentos irrespondíveis.

Os reparos que em 1924 fiz, pelas columnas d'O


Jornal do Rio de Janeiro, a propósito da extrema
lacunosidade do Novo Diccionario de Figueiredo leva-
ram um reparador a escrever me anonymamente a
dizer me umas tantas ironias a propósito do que eu
avançara. Respondendo lhe em puplico escrevi:
Os singelos reparos que no Jornal publiquei, em
diversos artigos, provocaram, da parte de diversos
amantes dos estudos lingüísticos, observações que
tiveram a gentileza de me communicar, ora de
approvação dos meus conceitos, ora de restricção
e mesmo de desapprovação.
Entendo, comtudo, que devo, publicamente, res-
ponder a um destes communicados, o do Sr.Bartho-
lomeu Chassim Bocarro, de S. Paulo, nome certa-
mente cryptonymico, com os seus appellidos de
aspecto typicamente paulista e bandeirante. Pôde
bem ser, comtudo, que os Paes do meu consulente,
pessoa aliás sobremodo cortez ao que percebo,
pelo menos epistolarmente falando, hajam querido
impor-lhe as nomes de algum ancestre sertanista.
134 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Emfim, talvez deseje o Sr. Bartholomeu Chassim


Bocarro — quiçá descendente de Gonçalo Simões
Chassim e de Estevam Raposo Bocarro — com o
pseudonymo que se attribue, recordar algum amigo
« potentado paulista de estima e veneração, a quem
sempre coube a honra do real serviço, e pessoa tão
principal, que serviu os honrosos e primeiros cargos
da Republica de sua cidade, em cujo político governo
teve muita aceitação o seu voto, como o de cavalheiro
de veneração, autoridade e respeito », como diria o
bom Pedro Taques.
Não quiz o Sr. Bocarro recorrer aos appellidos
medievaes da raça e intitular-se Payo Godins ou
Moninho Soares. Foi mais brasileiro. Ao responder-
lhe agora não lhe diria eu, comtudo, em hypothese
alguma, Bofél mentes pela gorja! primeiro, porque
a chapa é por demais estafada, desde que Eça de
Queiroz a pôz em moda na sua admirável historia
trutesindica; segundo, porque o meu reparador é o
mais educado e gentil dos reparadores, embora não
de todo destituído de certa ironia. E já que se assigna
Bartholomeu Chassim Bocarro permitta que lhe
declare quanto me parece ser pessoa « adornada de
civilidade, cortez política, e boa instrucção dos casos
de grammatica », como alguém que, outr'ora, pro-
veitosamente, « houvesse estudado nos pateos do
Collegio dos Reverendos Padres da Companhia, em
S. Paulo, sabendo estabelecer um perpetuo louvoi
pelo mérito da literatura que ali aprendera ». Istc
diria ainda o boníssimo Pedro Taques, á vista dos
termos da epístola do amável reparador que, muite
cortez, mas scepticamente, indaga se realmentí
sustento o que nestas mesmas columnas affirmei, ha
duas semanas : a Leia alguém, diariamente, três ou
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 135

quatro dos grandes jornaes brasileiros na parte edito-


rial e na ineditorial. E certamente não deixará, em
cada jornal, de recolher pelo menos um termo, se
não mais, ainda não averbado nos grandes diccio-
narios da lingua. »
Recebi a carta do Sr. Bartholomeu, segunda,
18 de fevereiro, pela manhã e immédiatamente
resolvi documentar a contradicta que se me impunha
o esteiamento de minha asserção com um argumento
absolutamente ad rem.
Tinha á mão o Jornal, o Correio Paulistano, o
Estado de São Paulo, de domingo, 17. Apostei
commigo mesmo como não descobriria três lacunas
nestes jornaes, como me bastaria, e sim trinta, mos-
trando assim ao meu amável contrariador quanto
fora eu modesto em avançar uma proposição que lhe
parecera tão exagerada.
Comecei pelo O Jornal, que sairá com bellissima
edição de 16 paginas, recheiado de optima matéria,
superfino é inútil lembral-o, tão habituados estamos,
todos, aos triumphos diários dos seus números esplen-
didos.
Não pretendia, esgaravatal-o, escarafunchal-o,
como aliás quanto aos outros dois jornae6, nem
mesmo examinal-o a fundo, tão convencido estava
de que me daria logo ó que desejava, uma dúzia de
omissões do diccionario crivo do Sr. Cândido de Fi-
gueiredo, e crivo de cem mil furos brasileiros.
Seria acreditável poder alguém descobrir alguma
lacuna no artigo de fundo Transformação de menta-
lidade? Havena alguma omissão naquella linguagem
clara, singela, moderada, lógica, vestindo freqüen-
temente verdadeiros primores de bom senso e pátrio-
136 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

tismo, e a que nos habituou, desde muito, a columna


de honra do Jornal ? Não! Qual! Seria até estulto
procurar agulha em palheiro. Pois bem! salta-me
logo aos olhos um bacharelato que o Sr. Cândido não
averba. No segundo artigo, sobre o Ensino municipal,
acode-me logo outra : inarredavcl, que bem podia
no Novo Diccionario achar-se entre inarrecadavel
e inarticulavel. E lá vem outra : accentuadamente.
No interessante O conto do « Jornal», assignado pelo
Sr. Luiz Lamego, surgc-me irrealizado e em Remé-
dios caseiros no sertão e na Bretanha, em que João
do Norte mais uma vez prende os leitores com aquella
capacidade attraente, tanto sua, vejo logo folclórico,
e nordestino. Termino a pagina com o grande rodapé
dominical de Agrippino Grieco, Gralhas e pavões.
E' certo que, naquellas sete meias columnas, tão
ricas de vocabulário como de erudição literária, hão
de as lacunas apparecer. E não me engano. Avisto-me
logo com escorcha, fancarista, lanhante, pastichar,
livresco. Assim sóa primeira pagina d'0 Jornal, dá-
me onze lacunas.
A segunda, muito menos literária, tem o costu-
meiro e bom artigo de XXX, sobre Política e Polí-
ticos. Lá está um inapellavelmente, desconhecido do
Sr. Cândido de Figueiredo.
Continuando a percorrer a pagina lagarta rosada
se me depara pouco depois bandeirismo. Na pagina
seguinte, auguro que o humorismo de Mendes Fra-
dique, com as suas approximações freqüentemente
do irresistível cômico, me apresentarão uma lacuna
pelo menos. E lá descubro logo páo d'agua, ignoto
do Sr. Cândido.
A' pagina 4 do mesmo o Jornal, apparece-me logo
trosse (nome de uma jóia, ao que me parece), rubri-
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 137

negro, prompto (indivíduo sem dinheiro), quarentão,


investigador (da policia).
A' pagina 5 e sempre á vol d^oiseau : nada,- se me
depara, adeante me encontro com toxico-maniaco
espinthariscopia com a pedidos, syntonizar, synto-
nização, microfarad, selectividade, radiofreqüência,
tope, inductancia, coplagem (só o « radio jornal »
dá-me oito lacunas) : cortador (alfaiate); ás paginas
seguintes, 8 e 9, avisto-me com electro-pathologico,
roqueira (do algodoeiro?), licuriseiro (palmeira),
ponta de pariz, calda bordaleza, gommose, á pagina 10,
thesophista; ás seguintes : auto-omnibus, chuva,
chuveiro, ilhama (artigos de carnaval). Assim, num
exame aliás perfunctorio, recolho nada menos de
43 palavras impressas na edição de 17 de fevereiro
de 1924 do Jornal e que se não me deparam no
Novo Diccionario da Lingua portugueza.
Dentre ellas ha diversas inventadas pelos articu-
listas, mas a enorme maioria pertence inquestio-
navelmente á linguagem vulgar brasileira.
Occorre exactamente e contra o costume que este
numero do Correio Paulistano, não se mostre
dos mais propícios á pesquiza de lacunas; primeiro,
por trazer largo serviço telegraphico e noticiário,
pequena collaboração literária, devido a grande
massa de matéria official paga, relativa ao serviço
eleitoral. E não é em editaes para eleições que se
deva fazer pesquizas de omissões aos diccionarios.
Assim mesmo faço colheita superior á espectativa.
A « safra não quebrou », como se diz em technologia
cafeeira, a falar da colheita da « preciosa rubiacea »;
pelo contrario, « rendeu ». Esperava dez lacunas,
uma por pagina, em media, e apanho doze, a saber :
metragem, phidiesco, papa-nickel, metapsychotherapia,
138 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

filmar, filmagem, filmador, escolismo, caça-tostões,


benzol, vegetalizador e concerlador (regente organi-
sador de concertos musicaes). E destas palavras
pelo menos metade pertence ao vocabulário de todos
os dias como: metragem,filmagem,escotismo, filmar,
filmador, papa-nickeis (pequeno apparelho prohibido
pela policia, muito conhecido de todos).
A edição do Estado de S, Paulo, de 17 de fe-
vereiro de 1924, saiu muito volumosa, como geral-
mente nesse dia de semana. Vinte e seis paginas de
grande formato, apinhadas de annuncios e cheiaB
de matéria editorial.
Aposto commigo mesmo que nellas descobrirei
pelo menos doze lacunas do diccionario do Sr. C. de
F. A' primeira pagina do jornal, avisto-me logo com
lança-perfume, á segunda se me depara uma serie de
feissimos anglicismos acelimados pelo sport no Brasil
e hoje correntissimos: ringue, recorde, reide, e fala-
se em lagarta rosada (a gosypiélla), praga dos algo-
doaes. A' terceira pagina, um fabricante de machinas
para café annuncia os seus separadores, que o Sr.
Cândido desconhece, assim como centro de mesa, as-
sim como vesperal, neologismodo Snr. Cláudio de Sou-
za. A' pagina quatro me encontro com geladeira!
Mais adeante surgem numa entrevista de Oliveira
Vianna : eugenico, eugenistico, centripetismo, assim
como ainda leio : esportismo, esportista, esportico,
escotismo, o horrível futebol, seleccionado, e em annun-
cios, passo a encontrar hormotherapia, hormonico.
Rapidamente percorro a parte commercial, onde me
avisto com terceirasórte (technologia do algodão),
somenos-bom (idem), demerara (typo de assucar),
disponível (caie em grão). Nas paginas de annuncios
fervilham as lacunas: um conta correntista e um mo
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 139

torista, offerecem prestámos; vendem-se : um auto-


çaminhão, cellophones, de jazz band, auto pianos.
Num annuncio de funilaria, leio tesourão e crava-
deira, da technologia da estamparia, fresadora,
machina de marcenaria, amassadeira, machina da
olaria; pastificio, fabrica de massas alimentares;
desdobro, termo de serraria; pianola câmara de ar,
francano (graminea forrageira). Um negociante de
artigos para esporte annuncia : chuteiras, botinas
ferradas para footballers; tornoseleiras de couro, e
fala-me do pingue-pongue, naturalizado brasileiro.
Outra fabrica de machinas para a lavoura apregoa
os seus ciscadores, evaporadores, semeadeiras. Leio
depois mais lacunas : radio-telephonia, alto-falante,
misturador (de concreto); para brisas, porta-pneu-
maticos (do automóvel); tamburão, da industria de
louças.
Ahi estão, pois, cincoenta vocábulos lacunares
numa só edição do Estado de S. Paulo, quando
só me compromettera a descobrir um! E ninguém
creia que o numero de jornal haja sido estudado a
fundo, pois apenas o examinei rapidamente.
Assim vé o meu sceptico contradictor, o Sr. Bartho-
lomeu Bocarro, quão modesto fui na avaliação da
colheita. Prometti-lhe três vocábulos ignotos ao
Sr. Cândido de Figueiredo, em três números de
grandes jornaes diários brasileiros, tomados a esmo.
E dou-lhe quarenta e dois « pescados » do Jornal,
doze no Correio Paulistano, cincoenta no Estado de
São Paulo.
Nada menos de cento e quatro omissões, á terceira
edição do Novo Diccionario da Lingua portugueza,
colleccionadas num domingo.
Tivesse eu a paciência de examinar as três folhas
140 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

com mais attenção e chegaria a 150, certamente.


Fizesse o mesmo em todos os grandes órgãos da
imprensa fluminense e paulista, editados a 17 de
fevereiro, e só num dia recolheria mil lacunas! das
quaes metade pertencente ao vocabulário da vida
diária. Estendesse o meu raio de exame a todos os
jornaes do Brasil, também saidos a 17 de fevereiro
e recolheria duas mil palavras. E podesse levar a
cabo tão extenuante faina, durante um anno inteiro,
que alinharia vinte mil, senão mais, lacunas. E longe
estaria ainda de fazer a colheita total dos brasilei-
rismos existentes que a immensa maioria destes
termos, ainda inéditos, não tem o ensejo de surgir
á tona das columnas dos periódicos...
Assim não se admire mais o Sr. Bocarro do que
lhe affirmei e aos meus demais leitores : duvidou que
lhe apontasse três palavras novas, colhidas em três
das nossas grandes folhas diárias e no mesmo dia.
Dei-lhe mais de cem...
Ediga-se depois que o maior inventario da lingua,
o Novo Diccionario, é pouco lacunoso... E acrescente
se que não precisa rr os de um « diccionario brasileiro
da lingua portugueza »!
XVII

Comprobação do escasso inventariamento dos brasilei-


rismos. Lacunas de procedência bahiana.

Já por vezes emitti a opinião de que uns cem mil


brasileirismos ainda estão ausentes das columnas
dos nossos mais completos léxicos. Tinha Cândido
de Figueiredo a ingenuidade de suppor que no seu
Novo Diccionario se reuniam todos, senão quasi todos,
os brasileirismos. E irritava-se deveras quanto se
lhe apontavam lacunas e sobretudo quando taes
deficiências lhe eram assignaladas em publico.
E, no emtanto, com que facilidade se faz a collecta
de taes omissões, torno a lembralo!
Basta que me desloque um pouco de S. Paulo para,
a cada passo, esteja a ouvir palavras de summa vi-
talidade, inteiramente novas para mim, regionalismos
pittorescos, expressivos, curiosos.
Assim se deu na minha agradabilissima, inesque-
cível excursão pelo Estado da Bahia em agosto de
1927. Ali apprehendi, a conversar com uns e outros,
muitas dezenas de « bahianismos » que me eram to-
talmente alheios. Rarissimos no emtanto os que vi
averbados no Novo Diccionario de Figueiredo.
142 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

O primero que me acudiu ao ouvido fui aliás encon-


tral-o registado no léxico figueirediano. Ouvi-o de
uma senhora, da mais alta posição social, cujo do-
naire e distincção de maneiras, tacto, affabilidade de
trato e illustração, são absolutamente admiráveis.
Contava-me o terrível desastre succedido a um filho
que ficara sob as rodas de um bonde no momento
em que pongava. Surprezo lhe perguntei o que queria
dizer tal verbo e delia soube que significava pretender
alguém tomar um vehiculo em movimento. E tinha
até o seu antonymo despongar. Verifiquei depois que
ambos já haviam sido averbados por C. de Figuei-
redo. São aliás dois verbos muito úteis evitando os
longos circumloquios habituaes : « pular no bonde
andando » e « pular do bonde andando ».
Depois aprendi de diversas pessoas, regionalismos
que pude annotar. Infelizmente deixei de o fazer
em relação a muitos outros. Entre os que se me gra-
varam na memória quero citar alguns. Assim certo
dia ouvi sympathico « chauffeur » muito popular na
capital bahiana e que responde á alcunha de Caboclo
falar ao Dr. Mario Barbosa, o distincto secretario do
governador do Estado que haviam querido fazer-lhe
um mandu' (uma intriga, uma encrenca) que tivera
de rebater.
Figueiredo annota esta palavra como brasilei-
rismo e synonymo de «tolo ». Vi-a substantivada e
com accepção inteiramente diversa.
— Eu não gosto de xanxadas l ouvi certa vez de
pessoa de condição humilde que me explicou signi-
ficar tal termo desordem, barulho, delle se havendo
formado o adjectivo xanxeiro (?). Ainda um outro
vocábulo tive o ensejo de aprender e de sentido que
se approxima do de xanxada: fusué.
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 143

Nas pequenas viagens marítimas que realizei da


Bahia a Santo Amaro e a Cachoeira coube-me
apanhar outras palavras novas.
Assim me preveniu o mestre da lancha, receioso de
que me molhasse com o respingo das ondas : « Vos-
mecê ahi toma barrufo. » E' uma palavra muito cu-
riosa, muito velha, obsoleta, morta, ao que parece,
em Portugal e synonymo de borrifo. Continua viva na
região do Recôncavo como sobroço no Ceará e Piauhy.
Como o mar estivesse bastante encarneirado disse
o mesmo mestre que havia muita cascalhada. Na
nossa ida a Santo Amaro não pudemos entrar no
canal que vae a Santo Antônio dos Calmons porque
com a maré vasante havia perigo da nossa excellente
Dois de julho enxurriar (encalhar).
E como passássemos em frente á antiga armação
de baleias, em Itaparica, falou um dos bons compa-
nheiros, de tão bella viagem, na technologia dos ba-
leeiros. Lembrou caxarreu e madrijo, faquinhas e
facões. Surgiu ahi um termo para mim totalmente
novo : moço d'alma: (1), o pescador a quem incumbe
dar o golpe de misericórdia ao cetáceo já quasi ago-
nico.
Na Feira de S. Anna deu-rne o distincto prefeito
daquella linda cidade, patrioticamente administrada,
coronel Amoldo Silva, a explicação de diversas pa-
lavras : assim nagô, côr de um pello de boi, fusco e
rajado, fau'la, mentira, de que procede o adjectivo
fauleiro,fincudo,mosquito pernilongo ;(enraçar cruzar
raças de animaes).
E o Dr. Mario Barbosa, filho da Feira, me expli-
cou que o nosso gado caracu' ali é chamado peduro,
sendo que á cruza de caracu' e zebu' se dá o nome de
malabar. E citou-me entre outras palavras regionaes
144 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

sacuê, a nossa gallinha d'angola cujo grito os bahianos


interpretam como a traducção de com quem? com
quem? quando aqui no Sul queremos que o gallinaceo
viva a apregoar que está fraco, como todos sabe-
mos.
Na Feira de S. Anna, ainda, se me depararam os
adjectivos lascadiço, que me parece muito bem for-
mado e applicavel a madeiras que com facilidade
racham e ferrista (irascivel).
Outro adjectivo que achei sobremodo pittoresco
foi carcasso, applicado a indivíduos que têm o peito
encovado.
Nenhum destes termos existe no Diccionario de
Cândido de Figueiredo. No interior da Bahia ouvi a
palavra cabroeira, significando baile reles, « fuso »,
como aqui diz a giria e não uma reunião de « cabras»,
como indica C. de F.
Outro verbo que me fez espécie e me era inteira-
mente desconhecido vem a ser infusar, palavra com-
munissima na Bahia. Notei-a pela primeira vez aos
lábios do distincto e sympathico vigário de São
Gonçalo dos Campos, padre Braullio Seixas. Quer
dizer sobrar; não ter sahida commercial, « encalhar».
Por exemplo : « Compreicem saccas de farinha, das
quaes metade infusou, ha mais de um mez. Tenho-as
encostadas ». Este verbo não o regista C. de F.
De um « chauffeurzinho » preto, muito pernóstico,
intelligente e muitíssimo imprudente, no seu amor
á velocidade, ouvi applicar um verbo que me pareceu
portuguez de lei e perfeitamente digno de substituir
o nosso esterçar, italianismo generalizado em São
Paulo : estorcer.
Como estivesse a lhe acenar com o perigo de uma
cambalhota do carro, redarguiu-me, rindo : —
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 145

« Sr. Dr., não se assuste que eu estorço sempre a


tempo; sangue frio não me falta! »
Palavra curiosa, cuja existência me foi referida
por distincto official do serviço de protecção aos índios
no Sul da Bahia, o Dr. Vicente Teixeira da Fonseca
Vasconcellos vem a ser sequeiro, synonymo de ca-
choeira ou corredeira. Relatou-me ainda que tam-
bém no Sul da Bahia chamam burara as roças pe-
quenas recem-queimadas. Figueiredo pretende que
significa arvore cahida.
De amabilissimo e culto companheiro de viagem
ao Recôncavo, o Dr. Agenor Pacheco Pereira, tomei
conhecimento de multas palavras novas da techno-
logia do fabrico do assucar e do álcool e do plantio
da canna, além de vários termos usuaes. Assim me
citou, entre diversas cangancha (trapaça), aliás aver-
bada por Figueiredo do que se deriva o adjectivo
cangancheiro, não recolhido pelo diccionarista.
Do Dr.Madureira de Pinho, secretario da Segurança
Publica, e homem de larga e bella cultura, ouvi que
a giria policial bahiana tem grande riqueza verbal
e é diversa da do Rio de Janeiro e do Sul. Dentre os
muitos vocábulos com que exemplificou a asserção :
recordo-me de caxixe e caxixeiro, correspondentes
exactos dos nossos grillo e grilleiro, termos da região
cacaueira, que hoje tem grande divulgação em todo
o Estado.
Pássaros, muito nossos tembem, são chamados de
modo diverso. Assim, o tuvucué, freqüentíssimo no
Recôncavo, ali é appellidado : querréquexé, onoma-
topaicamente, ou carrega-madeira, nome que lhe
valeu a nidificação curiosissima. Neste capitulo,
apresentam-se enormes divergências.
* Nomes para nós vulgares são na Bahia totalmente
11
146 INSUFFIC1ENCIA E DEFICIÊNCIA

desconhecidos, em matéria de nomenclatura, zooló-


gica e botânica. E até na da designação de profissões;
assim, ouvi chamarem aos nossos « conductores »,
(de bonde), « caixeiros >.
E uma das mais curiosas palavras que tive o en-
sejo de apprehender proveia da technologia bovina;
no interior da Bahia chamam paulista uma região ana-
tômica do boi, o psoas, si me não engano, segundo me
informou o distincto e amável prefeito da cidade de
Cachoeira : Dr. Cândido Vacarezza. E' o nome an-
tiquissimo e suppõe-se que provenha de algum gado
das campinas do Sul, que tivesse este músculo avan-
tajado.
Estou certo de que milhares e milhares de brasi-
leirismos da Bahia estão por ser averbados. Num abrir
a fechar d'olhos, deu-me, certa vez, o distincto moço
belmontense, Dr. Paschoal Camelyer, como, já, aliás,
deixei relatado, mais de duas centenas, talvez de re-
gionalismos da sua zona, ausentes do diccionario de
Figueiredo. Que não haverá a recolher do Mucury ao
Real, do Atlântico á Serra do Duro, naquella área
immensa de quasi seiscentos mil kilometros quadra-
dos? Milhares e milhares de vocábulos, que precisam
entrar para o diccionario brasileiro da lingua portu-
gueza, ainda por se fazer.
E vulgares aos lábios de mais de três milhões de
brasileiros...
XVIII

Suprema humilhação. Confissão de derrota.


Acto de contricção,

Explicando os irrefragaveis motivos que o leva-


ram a pôr de quarentena, milhares das lacunas do seu
diccionario, que lhe apontei esmaga-me o Sr. Cândido
de Figueiredo nos seus Combates sem sangue com a
superioridade das suas armas de philologo.
Quando o eminente grammatico verbera a insuffi-
ciencia com que me preparei para Jhe fazer reparos
de ordem diccionaristica tenho até a impressão de
que affronto os murros de Jack Dempsey. « Ha um
século clama-me, eathedratica e majestosamente,
poderia o Sr. Taunay, com a sua intelligencia, o seu
amor ao trabalho, ser um vocabularista mais ou
menos aceitável. »
« Hoje os tempos são outros. A sciencia de Bopp,
Schlegel, Grimm, Burnouf, Müller, Whitney impõe
aos diccionaristas deVeres e proccessos que o
Sr. Taunay desconhece porque ninguém tem a
obrigação de ser philologo. »
Gela-me esta voz profunda, solemne e austera, do
illustre lexicographo, E se, já, desde o principio de
148 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

nossa turra, lhe declarara que, em matéria de lin-


güística, apenas pretendia ser o que sou : um muito
mesquinho caçador de lacunas brasileiras, ao seu
diccionario, lealmente coligidas, e verificador da
justeza das definições do illustre autor do grande
léxico, lealmente cotejadas, ainda mais me convenço,
agora, de quanto devo recolher-me á minha insigni-
ficancia infinda.
Vejo-me como um dos nautas do Gama, a ouvir
os primeiros ribombos do cavo bramido adamas-
toreo e esta situação petrificante me recorda uma
anecdotasinha collegial que meu Pae muito se com-
prazia em repetir : Freqüentava elle as aulas do
quarto anno do Collegio de D. Pedro II e tinha
como professor de historia universal certo Bacharel
Gonçalves, personagem espectaculoso e bombástico,
como raros, mas lente muito aproveitável pelas
aptidões, bom preparo e irreprehensivel manutenção
da disciplina.
Sua linguagem, estudadamente emphatica, sum-
mamente ridícula seria se á estudantada não cau-
sasse a mais forte impressão de superioridade
intellectual.
Admirava-o immenso aquelle auditório de crilas (1)
de doze aos quatorze annos de idade. Nos dias de
sabatina e « sermão de lagrimas » assumia então
o Bacharel Gonçalves attitudes e ares superhumanos,
aos olhos dos jovens e fanatisados admiradores.
Momentos havia em que a toda a aula apostrophava
com immenso, infindo, inexprimivel desdém : « Não
passam os senhores de miseráveis vermes que raste-
jam á base da enorme montanha da Sciencia, de cujo

(1) Lacuna do Novo Diccionario do Sr. Cândido de Figueiraio.


DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 149

elevadíssimo pincaro eu os contemplo, melancólico


e compassivo! »
E num gesto largo, mixto de commiseração, dis-
plicência e desalento, convidava a turma toda,
humilhadissima, estarrecida, semi-petrificada pelo
terror, que o contemplava alcandorado naquelle
cume inattingivel, olympico, do Saber, convidava
aquelles vermes todos a se lhe sumirem, logo e logo,
da presença augusta...
Assim, também, me vejo rastejando á base da
immensa montanha livresca, sagrada e intangível,
constituída pela obra de Justo Lipsio e Ducange,
Casaubon e Scaligero, pae e filhos, os Estienne e os
Maurinos Webster, Littré e Diez, etc
E como por associação de idéias se me apresenta
a visão do cume olympico dessa montanha enorme
numa scena idêntica a que ideiou Ingres para o seu
famoso e conhecidissimo quadro da « Apotheose de
Homero ».
De louros coroa a Gloria ao épico da Iliada, sob
os.applausos dos maiores estros da litteratura uni-
versal, de Virgílio e Horacio, a Dante e a Camões
ao Ariosto e a Milton, a Byron e a Gcethe.
São agora o gênio da lingua portugueza e o da
philologia comparada que, sob as palmas enthu-
siasticas de Bopp e de Schlegel, de Whitney e Bur-
nouf, Grimm e Müller, etc, coroam o Sr. Cândido
de Figueiredo, modesto e commovido.
E á direita e á esquerda do throno soberbo em que
magestosamente se empaveza o apotheosado, envolto
na túnica branca dos triumphadores, estendem-se
e perfilam-se as longas theorias dos grammaticos,
dos humanistas, dos eruditos, dos philologos, dos
lexicographos, das antigas eras e das recentes.
150 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

Barbudos e austeros, calvos e serenos, fitam os


enlevados olhares no rosto olympico do enthronisado
confrade E, com os braços alçados, apontam-no
com o transporte máximo de enthusiasmo compa-
tível com a gravidade da sua feição de legisladores
da faculdade suprema, característica divina de nossa
espécie pensante e sabia : a da palavra.
Alli estão todos, todos! desde Dionysio o Thracio, o
velhíssimo primaz dos grammaticos hellenos, até
os grammaticologos fanáticos de nossos dias.
São os homens a quem devorou a excogitação
exhaustiva, exigida pelas difficuldades terríveis do
dativo grego; os que gastaram a vida na pesquiza
« arduerrima » das subtilezas etymologicas; os desco-
bridores argutíssimos de ascendências vocabulares,
do abolorio eqüino de « alfana » e da filiação de rato
a mus; os que queimaram o tecido nobre encepha-
lico, nos problemas terríveis da philologia comparada,
e descobriram que cardápio e Copacabana tem ori-
gens tupycas; os que prodigalisaram o cabedal
riquíssimo de sua phosphorescencia cerebral a ven-
tilar as nugas dos factos da linguagem e das gramma-
tiquices.
Formam, no fundo do quadro, os batalhões cerra-
dos dos eruditos byzantinos, dos humanistas italianos
e flamengos da Renascença, a gente das escolas de
Padua e de Bolonha, de Piza e de Veneza, de Pariz
e de Lovaina, de Antuérpia e Salamanca.
E no primeiro plano figura toda a rapaziada illustre
de nossa era, os gigantes do século xix, Dietz,
Bréal, Bopp e Schlegel, Whitney e Bournouf, Max
Miiller, Grimm os ídolos do Sr. Cândido de Figuei-
redo.
Curioso é que a um canto possa eu perceber duas
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 1 5 1

figuras cuja presença me causa pasmo. Espíritos


rebeldes! alli vieram ter, para receber certamente
o justo castigo imposto á sua pretenção inaudita
e descommedida prosapia. Ousaram dissentir da
opinião do mestre! ousaram afastar-se do coro da
unanimidade acclamadora da gloria do apotheosado!
Também alli estão os dous discolos o portuguez e
o brasileiro, condemnados a sobraçar os autos de
delicto de sua culpa horrenda : o Gralho depennado
e os Fados da linguagem, livros da irreverência e
da demolição insolente de uma obra pyramidal,
cathedralesca, torre-eiffelesca...
Sentenciados a assistir á cerimonia olympiana,
com que contricção se conservam quedos e mudos
quando o coro daquelles grandes homens, de todas
as eras, festivamente estruge em mil vozes fatalmente
clangorosas : « Alçou-se aos galarins de immorre-
doura gloria! »
Ante a magestade da estupenda scena sinto-me
litteralmente achatado, positivamente acaçapado,
com a face de encontro á terra. Sinto-me qual aquelle
infimo verme da base da montanha sobre a qual se
erguia erecto, e immenso, o formidando Bacharel
Gonçalves.
— Basta! basta! cicia docemente o triumphador,
aos acclamadores de sua fama.
Mas a esta altura ouço lhe a voz, ao mesmo tempo
suave e grave, repassada de infinda austeridade e
tão cheia de firmeza quanto de persuasão justiceira.
Descobriu-me e interpela-me compassivo e meigo :
— Vae-te! retira-te de minha presença e some
de minhas vistas! Que fazes aqui? pobresinhol
Ignoras a sciencia de Bopp, de Schlegel, de Whitney
e Burnouf! Ha cem annos atraz podias ser um diccio-
152 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

narista razoável. Hoje não! Vae-te! some te^de


minha presença!
Tomado de infindo respeito levanto os olhos e
percebo nos rostos geniaes dos grandes mestres da
philologia a confirmação da imperativa ordem :
— Não nos podes comprehender! clama me um
assomado.
— Quem és tú, minus habens ? verbera me outro.
— Porque não nasceste um século antes, animal?
apostropha me um terceiro furibundo e quiçá belli-
coso. *
E, um por um, os grandes do humanismo e da
philologia acabrunham me com os seus anathemas.
Espavorido, ponho me a rastejar em reptação
retrograda. E tão acabrunhado pela magestade da
scena e a magnitude da reprovação daquella assem-
bléa de colossos que prorompo em brados insopita-
veis, entrecortados de soluços atroadores :
— Perdão, augusto mestre! Perdão, augusta
assembléa! Peccavi! Deixae-me passar este latinsi-
nho. Cor contrictum et humiliatum 1 E mais este!
Vem a calhar. E' do Miserere mei Deus l
Reconheço o meu erro immenso, o meu orgulho
horrendo!
Não! de ora em deante, serei o primeiro a apre-
goar a exactidão de tudo o que contestei ao Novo
Diccionario da Lingua portugueza...
Assim passo a affirmar :
Que sirema é a tremenda ave pernalta do Brasil,
notável pela guerra que move « a todos os ani-
maes»...,
Que aeroplano é uma machina aerostatica movida
a vapor por um motor da força de um cavallo vapor,
Que periscopio é o mesmo que kaleidoscopio,
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 1 5 3

Que o flúor no anno da graça de 1923 ainda não


fora isolado*
Que a sarataca é uma flecha com que os índios do
Amazonas matam as tartarugas e « outros peixes »,
Que florianesco se diz no Brasil do estylo do fabu-
lista Florian,
Que florianisla é o sectário da escola litteraria do
fabulista Florian.
Não basta? Ah não? Dou novas arrhas da minha
submissão. Declaro ainda : a bradar : Piedade!
Piedade!
Que o ácido mellico é o mesmo que hydrato de
cálcio,
Que o lacrau é um insecto,
Que oN golfinho é um peixe da familia dos cetá-
ceos,
Que a abelha guaxupé é um penteado das mulheres
brasileiros,
Que o furão é um « mammifero vermiforme »,
Que o carrapato é um crustáceo,
Que os anhydridos nunca se combinam com a
água,
Que os sulfitos procedem do ácido sulfurico,
Que o ácido phosphoroso é o mesmo ácido phos-
phorico,
Que dente é osso,
Que no Brasil jury é synonymo de jurado,
Que no Novo Diccionario não ha lacunas!
Desdigo me á face de Deus e des homens de todas
as observações irreverentes que fiz a essa intangível
quintessência do saber humano que é o Novo Diccio-
nario da Lingua portugueza.
E continuo a pedir, longa e longamente, perdão
para as minhas heresias atrozes quando percebo
154 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

que já a minha humilima personalidade não merece


mais um dx de attenção.
É que a apotheose chegou ao seu ponto culminante :
Baixa dos céus possante ave, a librar-se sobre as
azas, necessariamente robustas; vem descendo lenta
e lentamente. É o rapineiro querido do Pae dos
Deuses e raptor de Ganymedes. É o pássaro jovino,
symbolico do gênio. Traz ao bico, fatalmente adunco,
a coroa dos louros incontestavelmente apollineos,
consagradores da gloria.
Baixa e baixa, desce e desce. Esvoaça sereno e
compassado. E paira por sobre o occiput merovin-
giamente cabelludo daquelle a quem vem coroar.
Mas; ó portentosa circumstancia!
Extranha águia! Exquisita ave! Mas não é uma
águia! É... é... é um gralho! e um gralho implume!
um gralho depennado!
Não posso crer noque vejo! capacito-me de que
a inveja a mesquinhez, o rancor impotente, a dor
da humilhação recém soíTrida perturbam-me a
visão. E são estes sentimentos subalternos de minha
humanidade desprezível do lodo de minha carne,
que me obliteram a observação exacta das cousas.
E repito com o poeta :
A

0 humaine nature!
Que vaux-tu donc ? tu ries que fange et pourrilure!
Mas não é que percebo o maliciosissimo sorriso
com que um dos dous discolos, condemnados a assistir
á solennidade, encara, e analysa a extranha alimaria
e a aponta ao seu companheiro de rebeldia?
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 155

E assim se me desvaneceu, com tão profundo


abalo, a visão magnífica daquella consagração apo-
theotica, terminada á moda da scena, inesquecivel-
mente illustre, da coroação do impagável Major na
Mam'zelle Nitouche...

x
ÍNDICE

I
A' guisa de prefacio vir
fíevisla do vocabulário zoológico gymnasial. Lacunas e mais lacunas.
Nomenclatura dos grupos zoológicos inferiores. Ausências em
barda de termos vulgares 1

11
Revisão dos crustáceos e molluscos. O snr. Cândido de Figueiredo
admilte como a mais recente a classificação de Cuvier-em íS/2.
Revisão dos echinodermos, dos peixes, batrachios e reptis 10

III
Nomenclatura dos insectos. Ommissòes em barda e dos mais vul-
gares termos. Indicio evidente do atrazo do Aouo Diccionario em
matéria de entomologia. Dezesele ordens de insectos suppressas
em vinte e seis. Definições ambíguas, viciosas e erradas. A nomen-
clatura dos arachnideos. Lacunas innumeras e deploráveis. As
Jantes de informações scientificas do N. D. Os jornaes da imprensa
diária 16

IV
V
Nomenclatura ornithologica. Sempre a mesma deficiência. Num ma-
remagnum de lacunas. Ausência dos nomes das ordens e dai'fa-
mílias 21
158 INSUFFICIENCIA E DEFICIÊNCIA

A nomenclatura dos mammiferos no Novo Diccionario. Ausência de


numerosos vocábulos corriqueiros 26"

VI
Final da revisão dos grupos zoológicos. Ainda os mammiferos, os
carnívoros, roedores, cheiropteros e primatas. Lacunas em barda.
Novas e serias erronias. 30

VII
t

O Sr. Cândido de Figueiredo e a ecologia. Inacreditável confissão do


ignorância do douto diccionarista. A lacunosidade de seu vocabu-
tario de physica. Omissões inacreditáveis. Pasmosa definição de aero-
plano, periscopio, etc. 37

VIII
A chimica do Novo Diccionario. Fontes informativas antiquissimas.
Nomenclatura desueta. Fluor, corpo ainda não isolado... em 1923.
Fluorhydrico, synonymo de fluorico. O ácido hydro-fluosilicico,
combinação binaria I Noções obsoletas sobre os ácidos sulfurico c
azotico. Sulfito o mesmo que sulfato I Ácido phosphoroso o mesmo
que ácido phosphorico! Ozona, cheiro! Radio, substancia que se en-
contra no baryo. Definições esdrúxulas de cal e ammoniaco. Anhy-
dridos, corpos que se não combinam com a água. Noções erroneat
sobre bases. Misoneismo inveterado.

IX
.4 chimica orgânica do Novo Diccionario. Definições insufficienlet,
omissões imperdoáveis. Lacunas sobre lacunas. Er/os e impro-
priedadts. Obsoletismo extraordinário das fontes de consulta.
Chimica inculcada por uma Technologia rural 6ft

Definições viciosas. Lacunas imperdoáveis. Indeterminação de signi-


ficados. Obsoletismo das fontes informativas do « Novo Dicciona-
rio ». Inclusão de verdadeiros dislates. 80

XI
A quarta edição do Novo Diccionario. Inveteração no erro. Manuten
DOS GRANDES DICCIONARIOS PORTUGUEZES 159 1

fão proposital de numtrosas erronias monstruosas quer em zoolo-


gia, quer em physica e fhimica quer quanto a brasileirismos. Peque-
no numero das reclamações altendidas. 93

XII
A deficiência dos grandes diccionarios da lingua em matéria de bra-
sileirismos. Numero enorme de regionalismos de divulgação menor
não averbados. . 103-

XIII
A extranha lacunosidade dos grandes diccionarios porluguezes em
matéria de brasileirismos. Ausência da palavras derivadas correntes
em todo o Brasil. O immenso avolumamentodalínguaenlre nós. 112

XIV
Os trabalhos valiosos de Teschauer. A enorme colheita de brasileiris-
mos realisada pelo douto jesuíta. Reparos summarios a seus pro-
cessos. 120

xv
A pobreza do vocabulário portuguez em face do das demais grandes
línguas. As contribuições alienígenas no Brasil. 126

XVI
Demonstração inilludivel. Argumentos irrespondíveis 133

XVII
Comprobação do escasso inventariamento dos brasileirismos. Lacu-
nas de procedência bahiana 111

XVIII
Suprema humilhação. Confissão de derrota. Aclo de contricção. UT

«9- 6231-28. — Tours (France), Imprimerie Arrault et O

Você também pode gostar