Clarividente
Clarividente
Clarividente
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RAFAEL SANTOS
“There's a time to live and a time to die
When it's time to meet the maker”
THE CLAIRVOYANT – IRON MAIDEN
“ CARA, EU PRECISO, PELAMOR DE DEUS!” Ele estendia a mão
desesperado.
“Calmaí, brother. Relaxa!” O homem olhou com um sorriso cínico
segurando um pacote na mão. Pegou alguma coisa da mão de um mendigo e
passou o bagulho. “O que que cê tem aí?” Virou-se para ele pegando outro
pino na pochete.
O coração disparou. Ele sabia que não tinha mais nada.
“Bora, nóia, desembucha!”
Sacudiu a cabeça para os lados em desespero, evitando olhar para o
marginal.
“Tá de sacanagem! Some da minha frente!” Rosnou ameaçador e
seguiu com seu negócio escuso.
Jean sentou-se no chão, encolheu-se num canto tremendo enquanto
as negociações prosseguiam.
“Ei, garoto. Tá frio pra caralho hoje.” Uma mulher raquítica se
aproximou. “Vem cá, fica perto do fogo.” Ela o conduziu até a fogueira
fedorenta. Espantar o frio parecia reconfortante, mas não aliviou em nada a
expressão severa no rosto do jovem: dentes trincados e olhos vermelhos
arregalados. Parecia esculpida pelo mais puro pavor. Ele encarava vidrado o
traficante, as pernas sacudiam, as mãos torciam os trapos da calça que
vestia.
“Você é novo por aqui, né?” tentou chamar a atenção do rapaz. Sem
sucesso. “Não é bom encarar assim, ele já te enxotou... Vai acabar
arrumando problema.” O rapaz olhou para ela.
“Não esquenta, não. Não é assim que vou morrer.” Respondeu com
uma voz embargada. Endireitou-se e encheu o peito de ar como quem busca
coragem.
“Morrer? Provavelmente, não... Mas ele vai te deixar numa merda
pior que você já tá!” ela o encarou observando o efeito da frase. Funcionou.
As palavras minaram a pouca coragem do rapaz e ele voltou a se encolher.
Os olhos agora fixados nela.
“Tem quanto tempo que tu tá nessa merda?”
“Desde 2001.” ele respondeu sem pensar.
“Não parece ter aprendido as manhas da rua.” Ela falou fitando o
traficante.
“Não, isso não.” encolheu-se ainda mais abraçando os joelhos e
desviando o olhar. “Nunca usei.”
A mulher riu. “Não força! Olha pra você.”
“Não foi isso.”
“Qual foi? Crack?”
“Caralho, não enche!” ele não era um viciado. “Me deixa em paz!”
“Ninguém entra nessa merda por nada!” Ela fez uma pausa. O
semblante transfigurou-se em tristeza, olhos caídos sob sobrancelhas
arqueadas. Da boca trêmula a voz soou mais branda, arrependida.
“Desculpa, tá. Qual teu nome? Diz aí. Quem sabe eu fico com pena e divido
o teco com você.”
Os dois se encararam e se estudaram. Era difícil dizer qual deles
estava pior.
“Jean.”
“Margareth.” respondeu acendendo um cigarro. “Pronto. Você já
sabe mais de mim que qualquer um aqui e acho que eu também... Vai
dividir sua miséria?”
“Começou em 2001. Eu ia passar as férias de julho com meu tio nos
Estados Unidos.”
“Hum, riquinho.”
“Ah, não fode! Quer ouvir a porra da história ou vai ficar me
zuando?”
“Não tá mais aqui quem falou.” Ela ficou séria, deu um trago longo
no cigarro, soltou a fumaça na noite fria e passou pro rapaz. “Conta.”
Ele relutou, mas apanhou o cigarro e prosseguiu.
“Pouco antes da viagem eu tive um sonho que me deixou doente.”
Ele falava do passado como se não tivesse muita certeza, a fumaça que
escapava dos lábios parecia nublar ainda mais as lembranças. “Minha mãe
tentou me convencer de que não tinha relação, mas eu nunca esqueci disso.”
“Ela deve estar preocupada com você agora.”
“Ela morreu. Foi o pior sonho que tive...” Ele rememorou
angustiado, a lembrança deixava o paladar mais amargo que o cigarro. “Não
vou falar dele.”
“Tudo bem. Me conta da viagem.”
“Eu fiquei muito doente, não viajei, graças à Deus.” Ele contraía o
rosto, como se lembrar fosse doloroso. “O pesadelo me deixou com um
pânico terrível, fiquei meses sem conseguir sair de casa.”
“O que você sonhou pra te deixar tão apavorado?”
“Meus sonhos sempre me deixam apavorado. Eu sonhei que meu tio
tinha se suicidado, se jogado de um prédio, mas não foi isso que me deu
medo.” Jean se encolheu ainda mais, o medo ou o vento frio fazia-o tremer.
Margareth se abaixou na sua frente, encarou seus olhos apavorados,
interessada no relato. “Começou com uma explosão muito alta. Fiquei
surdo por um tempo, inclusive. Quando acordei assustado, meu ouvido doía
e eu não conseguia ouvir nada.” Recordou levando as mãos as orelhas.
“Mas antes de acordar, quando o meu ouvido parou de zunir, eu ouvi gritos
desesperados e, às vezes, ainda escuto eles aqui, cheios de medo.” ele calou
e ficou parado com o olhar perdido no horizonte, como se fitasse o passado.
Margareth se aproximou um pouco, mas o rapaz não notou. Sua mente
parecia ter viajado para longe, saído e deixado ali, somente a casca em
forma de corpo. Ela tocou em seu braço e, repentinamente, como se desse o
play em um aparelho eletrônico, ele retomou a história.
“Senti um cheiro horrível de queimado, coisas queimando, carne.
Senti que estava no inferno, o calor era insuportável. Eu estava queimando.
O chão tremia e cada vez mais vozes se juntavam ao coro desesperado.”
fez uma pausa para dar o último trago no cigarro, jogou fora a bituca e
soltou a fumaça lentamente, seu rosto se abrandou observando a fumaça se
dissipar no ar. “Foi então que vi meu tio pular da janela do prédio e isso foi
um alívio.” deu um sorriso estranho. “Porque era muito alto e sempre
acordamos quando experimentamos a sensação de cair.”
Como se a alma retornasse para o corpo, o rapaz acordou do sonho
revivido e encarou a mulher que o olhava com olhos marejados.
“O pesadelo foi tão real... Quando acordei não ouvia nada, tava
pelando de febre, nada baixava, parecia que meu corpo tava pegando fogo.
Fiquei dois meses internado, e um dia, acordei sem nada, nem dor, nem
febre, nada... Tudo sumiu. Me deram alta no mesmo dia que meu tio
morreu: 11 de setembro de 2001.”
“Não foi esse dia que...”
“Sim, foi horrível. Meu tio tava lá.” Interrompeu. “Ele não se
matou, foi um impulso, desespero. Ele pulou. Um monte de gente fez isso
aquele dia. Eu também faria.”
“Foi muito triste.”
“E foi só o começo. Tive outros sonhos. Muitos outros. Achei que
fossem só pesadelos, mas não eram.
A mulher se endireitou para aguardar a próxima história.
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