Clarividente

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Clarividente

Copyright © Rafael Santos, 2019


Todos os Direitos Reservados.

Nenhuma parte deste ebook pode ser reproduzida sob quaisquer meios existentes sem
autorização por escrito do autor. (Lei 9610/98)

Capa: Márcio Pacheco | @marcio_c_pacheco


Revisão: Leandro Aguiar

Código ASIN: B07VCMCKQB

1. Ficção brasileira 2. Drama- Ficção


CLARIVIDENTE
Um Conto da Antologia Pesadelos
Mórbidos

RAFAEL SANTOS
“There's a time to live and a time to die
When it's time to meet the maker”
THE CLAIRVOYANT – IRON MAIDEN
“ CARA, EU PRECISO, PELAMOR DE DEUS!” Ele estendia a mão
desesperado.
“Calmaí, brother. Relaxa!” O homem olhou com um sorriso cínico
segurando um pacote na mão. Pegou alguma coisa da mão de um mendigo e
passou o bagulho. “O que que cê tem aí?” Virou-se para ele pegando outro
pino na pochete.
O coração disparou. Ele sabia que não tinha mais nada.
“Bora, nóia, desembucha!”
Sacudiu a cabeça para os lados em desespero, evitando olhar para o
marginal.
“Tá de sacanagem! Some da minha frente!” Rosnou ameaçador e
seguiu com seu negócio escuso.
Jean sentou-se no chão, encolheu-se num canto tremendo enquanto
as negociações prosseguiam.
“Ei, garoto. Tá frio pra caralho hoje.” Uma mulher raquítica se
aproximou. “Vem cá, fica perto do fogo.” Ela o conduziu até a fogueira
fedorenta. Espantar o frio parecia reconfortante, mas não aliviou em nada a
expressão severa no rosto do jovem: dentes trincados e olhos vermelhos
arregalados. Parecia esculpida pelo mais puro pavor. Ele encarava vidrado o
traficante, as pernas sacudiam, as mãos torciam os trapos da calça que
vestia.
“Você é novo por aqui, né?” tentou chamar a atenção do rapaz. Sem
sucesso. “Não é bom encarar assim, ele já te enxotou... Vai acabar
arrumando problema.” O rapaz olhou para ela.
“Não esquenta, não. Não é assim que vou morrer.” Respondeu com
uma voz embargada. Endireitou-se e encheu o peito de ar como quem busca
coragem.
“Morrer? Provavelmente, não... Mas ele vai te deixar numa merda
pior que você já tá!” ela o encarou observando o efeito da frase. Funcionou.
As palavras minaram a pouca coragem do rapaz e ele voltou a se encolher.
Os olhos agora fixados nela.
“Tem quanto tempo que tu tá nessa merda?”
“Desde 2001.” ele respondeu sem pensar.
“Não parece ter aprendido as manhas da rua.” Ela falou fitando o
traficante.
“Não, isso não.” encolheu-se ainda mais abraçando os joelhos e
desviando o olhar. “Nunca usei.”
A mulher riu. “Não força! Olha pra você.”
“Não foi isso.”
“Qual foi? Crack?”
“Caralho, não enche!” ele não era um viciado. “Me deixa em paz!”
“Ninguém entra nessa merda por nada!” Ela fez uma pausa. O
semblante transfigurou-se em tristeza, olhos caídos sob sobrancelhas
arqueadas. Da boca trêmula a voz soou mais branda, arrependida.
“Desculpa, tá. Qual teu nome? Diz aí. Quem sabe eu fico com pena e divido
o teco com você.”
Os dois se encararam e se estudaram. Era difícil dizer qual deles
estava pior.
“Jean.”
“Margareth.” respondeu acendendo um cigarro. “Pronto. Você já
sabe mais de mim que qualquer um aqui e acho que eu também... Vai
dividir sua miséria?”
“Começou em 2001. Eu ia passar as férias de julho com meu tio nos
Estados Unidos.”
“Hum, riquinho.”
“Ah, não fode! Quer ouvir a porra da história ou vai ficar me
zuando?”
“Não tá mais aqui quem falou.” Ela ficou séria, deu um trago longo
no cigarro, soltou a fumaça na noite fria e passou pro rapaz. “Conta.”
Ele relutou, mas apanhou o cigarro e prosseguiu.
“Pouco antes da viagem eu tive um sonho que me deixou doente.”
Ele falava do passado como se não tivesse muita certeza, a fumaça que
escapava dos lábios parecia nublar ainda mais as lembranças. “Minha mãe
tentou me convencer de que não tinha relação, mas eu nunca esqueci disso.”
“Ela deve estar preocupada com você agora.”
“Ela morreu. Foi o pior sonho que tive...” Ele rememorou
angustiado, a lembrança deixava o paladar mais amargo que o cigarro. “Não
vou falar dele.”
“Tudo bem. Me conta da viagem.”
“Eu fiquei muito doente, não viajei, graças à Deus.” Ele contraía o
rosto, como se lembrar fosse doloroso. “O pesadelo me deixou com um
pânico terrível, fiquei meses sem conseguir sair de casa.”
“O que você sonhou pra te deixar tão apavorado?”
“Meus sonhos sempre me deixam apavorado. Eu sonhei que meu tio
tinha se suicidado, se jogado de um prédio, mas não foi isso que me deu
medo.” Jean se encolheu ainda mais, o medo ou o vento frio fazia-o tremer.
Margareth se abaixou na sua frente, encarou seus olhos apavorados,
interessada no relato. “Começou com uma explosão muito alta. Fiquei
surdo por um tempo, inclusive. Quando acordei assustado, meu ouvido doía
e eu não conseguia ouvir nada.” Recordou levando as mãos as orelhas.
“Mas antes de acordar, quando o meu ouvido parou de zunir, eu ouvi gritos
desesperados e, às vezes, ainda escuto eles aqui, cheios de medo.” ele calou
e ficou parado com o olhar perdido no horizonte, como se fitasse o passado.
Margareth se aproximou um pouco, mas o rapaz não notou. Sua mente
parecia ter viajado para longe, saído e deixado ali, somente a casca em
forma de corpo. Ela tocou em seu braço e, repentinamente, como se desse o
play em um aparelho eletrônico, ele retomou a história.
“Senti um cheiro horrível de queimado, coisas queimando, carne.
Senti que estava no inferno, o calor era insuportável. Eu estava queimando.
O chão tremia e cada vez mais vozes se juntavam ao coro desesperado.”
fez uma pausa para dar o último trago no cigarro, jogou fora a bituca e
soltou a fumaça lentamente, seu rosto se abrandou observando a fumaça se
dissipar no ar. “Foi então que vi meu tio pular da janela do prédio e isso foi
um alívio.” deu um sorriso estranho. “Porque era muito alto e sempre
acordamos quando experimentamos a sensação de cair.”
Como se a alma retornasse para o corpo, o rapaz acordou do sonho
revivido e encarou a mulher que o olhava com olhos marejados.
“O pesadelo foi tão real... Quando acordei não ouvia nada, tava
pelando de febre, nada baixava, parecia que meu corpo tava pegando fogo.
Fiquei dois meses internado, e um dia, acordei sem nada, nem dor, nem
febre, nada... Tudo sumiu. Me deram alta no mesmo dia que meu tio
morreu: 11 de setembro de 2001.”
“Não foi esse dia que...”
“Sim, foi horrível. Meu tio tava lá.” Interrompeu. “Ele não se
matou, foi um impulso, desespero. Ele pulou. Um monte de gente fez isso
aquele dia. Eu também faria.”
“Foi muito triste.”
“E foi só o começo. Tive outros sonhos. Muitos outros. Achei que
fossem só pesadelos, mas não eram.
A mulher se endireitou para aguardar a próxima história.

“Na época da faculdade eu namorei uma menina linda, inteligente,


engraçada, muito especial. Ela era extrovertida e eu sempre fui esquisitão,
mas nos dávamos bem a maioria das vezes.” A fala do rapaz trazia um
apaixonado tom de saudosismo. “Ela tinha acabado de defender sua tese de
monografia e estava feliz de verdade, era uma energia que contagiava. Ela
queria comemorar. Chamou os amigos pra sair, tava muito empolgada
quando me convidou, mas eu tive um pesadelo terrível naquela tarde,
acordei péssimo e pedi pra ela não ir.” Os olhos de Jean se encheram de
lágrimas. “Nós brigamos. Ela pensou que fosse ciúmes e eu não tive
coragem de contar o motivo. Ela saiu batendo a porta e eu fiquei no meu
quarto remoendo angustiado o pesadelo que tive durante o cochilo da
tarde.” Ele secou as lágrimas que começaram a escorrer.
Margareth sacou mais um cigarro barato do bolso, acendeu e
entregou a Jean, sem nem tragar. Ele olhou o brilho na ponta do cigarro por
um tempo, puxou e soprou a fumaça pra cima.
“Era assim que ela fazia pra me provocar quando fumava. Nunca
gostei de cigarro”
Margareth riu. “Continua a história”
“Ouvi vozes desesperadas que me assombravam, gritos terríveis de
ouvir. O céu estava em chamas. Nuvens negras desciam sobre a multidão
apavorada que corria sem direção se atropelando, derrubando, pisoteando.
As nuvens cresciam e sufocavam. As pessoas começaram a cair e eu senti
que eu também ia. Não conseguia respirar. Aí a campainha tocou e eu
acordei. Ela me salvou e a gente brigou. Passei a noite chorando achando
que era o fim, que aquela era a nossa última briga.
“E foi?” Lançou a pergunta impaciente.
Jean estava com o rosto lavado pelas lágrimas silenciosas.
“Foi.” Ele disse com a voz trêmula. “Naquela noite, teve um
incêndio na boate que ela tava. Eu podia ter falado, mas não fiz nada, só
deixei ela ir, sem nem me despedir.”
Jean encarou a mulher na sua frente. Ela estava com lágrimas nos
olhos, mas a dúvida na sua expressão entregava o ceticismo.
“Tranquei minha faculdade e voltei pra cá. Passei a acompanhar os
noticiários, comprar jornais, todos eles. Foi quando tive a certeza que nunca
foram só pesadelos, nunca. A tragédia acontecia. Acidentes, homicídios,
suicídios. Todos os meus sonhos, mais cedo ou mais tarde, viravam
notícia.”
“E você nunca fez nada pra evitar?”
“Eu queria, Deus sabe o quanto eu queria.” Disse voltando os olhos
pro céu sem segurar o choro.
“Sua mãe...” a mulher disse engasgada. “Você também sonhou?”
Jean sacudiu a cabeça freneticamente em afirmação. As lágrimas
ganharam a companhia de audíveis soluços num choro copioso e sofrido.
Margareth pôs a mão no seu ombro para consolá-lo, mas, por fim, resolveu
deixá-lo externar sua dor. Se levantou e aproximou-se da fogueira. Acendeu
mais um cigarro e remoeu sua própria dor enquanto as cinzas consumiam
lentamente. O silêncio imperou por um tempo indizível. E quando ela se
virou para Jean, ele a encarava fixamente com seus grandes olhos
vermelhos. O rapaz tomou fôlego, reassumiu seu comportamento distante e
voltou a narrar suas lembranças.
“Desde aquele dia em 2001 essa coisa me acompanha, eu fugi
enquanto pude, mas a morte me escolta, me segue, como uma sombra, o
tempo todo atrás de mim.” Fez uma pausa e sua voz ficou mais soturna.
“Você consegue imaginar o terror que domina alguém que tem certeza que
seus sonhos se realizam quando ela sonha com a própria morte? Eu vou
morrer dormindo.”
“Você inventa cada uma...” ela disse com um estranho sorriso
nostálgico.
Jean engoliu seco.
“E você, como afundou nessa merda?” ele devolveu irritado depois
de abrir seu passado repleto de feridas e ouvir, em troca, a chacota da
mulher.
Margareth emudeceu, se fechou em uma carranca amarga e
deprimente.
“Foi seu filho...” Jean disse olhando fixamente nos olhos da mulher.
“ Você perdeu ele.”
Uma lágrima correu pelo rosto envelhecido de Margareth.
“Você perdeu tudo. Não tem mais pra onde ir. Meu Deus, que
horrível!” Exclamou como se uma cena de horror passasse diante dos seus
olhos. “Era seu sonho, sua casa, sua família... Tudo desmoronou.”
Margareth também. A mulher caiu ajoelhada no chão como se as
pernas não pudessem mais sustentá-la.
“Eu tô tentando achar.” A mulher debulhava-se em lágrimas. “Eu
escuto a voz dele desde a primeira vez que usei isso!” Ela tirou um pino do
bolso. “Sei que vou encontrar uma hora, é por isso que afundei nessa lama!
Eu só quero achar meu menino! Ele está perto, eu sei, eu sinto, mas eu não
consigo achar. Não consigo.”
Jean abraçou a mulher em frangalhos e as lágrimas dos dois se
misturavam no chão sujo embaixo do viaduto.
“É difícil acreditar em você, mas não sei como, você sabe do meu
menino.” Margareth passou a cocaína para Jean. “Eu já afundei minha cara
nessa droga a noite toda! Passei horas revirando pó, lembranças e
escombros, ouvindo a voz dele sem conseguir achar... Pode ficar! Eu já
perdi a esperança.”
“Você tá tão perto. Não desiste agora!” Ele diz devolvendo a droga.
“E o seu sonho?”
“Eu entendi ele agora.”
Margareth espalhou o pó na mão e inalou profundamente. Jean
observava a decadência de uma mãe que perdeu o filho e, com olhos
marejados, deitou no colo dela.
“Você tem os olhos do meu filho.” Ela disse afagando os cabelos de
Jean num cafuné. Os dois sorriram e adormeceram...
Para nunca mais acordar.
Sobre o Autor:

Nascido no Rio de Janeiro, capital, em 1988. Amante de fantasia e


terror, ingressou no mercado editorial em 2018, quando publicou seu
primeiro conto, Relacionamento a Distância, na antologia Expresso 666, da
editora Andross. Ainda em 2018, foi finalista do concurso de contos Paulo
Leminski. Recentemente, publicou o conto Purgatório, na antologia
Sombras da Noite, da editora Rouxinol e o conto folclórico Matim-Taperê
de forma independente na Amazon.
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Outros contos:

Relacionamento a Distância
A Lápide da Bruxa
Matim-Taperê

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