Teoria Da Literatura I - CESAD

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Teoria da Literatura I

Antonio Cardoso Filho

São Cristóvão/SE
2011
Teoria da Literatura I
Elaboração de Conteúdo
Antonio Cardoso Filho

Projeto Gráfico e Capa


Hermeson Alves de Menezes

Diagramação
Neverton Correia da Silva

Copyright © 2011, Universidade Federal de Sergipe / CESAD.


Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada
por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia
autorização por escrito da UFS.

Ficha catalográfica produzida pela Biblioteca Central


Universidade Federal de Sergipe

Cardoso Filho, Antonio.


C268i Teoria da Literatura I / Antonio Cardoso Filho -- São
Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, CESAD, 2011.

ISBN: 978-85-61385-03-3

1. Linguística. 2. Linguagem. 3. Estudos literários. I.Título.

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Fone(79) 2105 - 6600 - Fax(79) 2105- 6474
Sumário
AULA 1
O que é teoria da Literatura?............................................................. 07

AULA 2
A palavra “literatura” e seu uso ao longo da história.......................... 21

AULA 3
A visão platônica sobre a literatura................................................... 35

AULA 4
Perspectivas neoplatônicas da literatura............................................ 45

AULA 5
A concepção aristotélica da literatura................................................. 55

AULA 6
O gênero lírico.................................................................................... 65

AULA 7
O gênero épico....................................................................................81

AULA 8
Novas modalidades do gênero épico................................................. 93

AULA 9
O gênero dramático...........................................................................111

AULA 10
O poema e seus constituintes (1ª parte).......................................... 123
O poema e seus constituintes (2ª parte).......................................... 137
Aula 1

O QUE É TEORIA DA LITERATURA?

META
Mostrar em que consiste a teoria da literatura e distingui-la da literatura propriamente dita e
dos estudos críticos sobre a obra literária.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
saber o que é uma teoria;
- Reconhecer o campo de ação da teoria da literatura;
- Identificar o objeto de estudo da teoria literária;
- Distinguir a teoria da literatura da literatura propriamente dita e do estudo interpretativo da
literatura.

PRÉ-REQUISITOS
Estudos literários realizados no nível médio.

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

Meu caro aluno, esse é o nosso primeiro contato. Seremos compan-


heiros de trabalho nesse semestre e, agora, va-mos começar uma jornada
que terá fases, mas não terá fim. Quando você terminar seu curso de
graduação, terá encerrado uma etapa importante, mas não terá chegado ao
final da viagem. Aí estará apenas o começo da maior empreitada: a vida
profissional. Você poderá gostar mais dessas abstrações teóricas ou gostar
menos, entretanto, de alguma forma estará lidando com elas e tenha certeza
de que quanto mais você for interessado nos estudos das obras literárias,
tanto maior será o seu desejo de conhecer melhor as teorias que lhe darão o
suporte necessário para entender o modo de elaborá-las e compreendê-las.
Por isso, com certeza irá gostar desta matéria. Assim, vejamos!
Todos já estudamos literatura. Aqueles que entram em uma Uni-
versidade sabem, pelo menos superficialmente, o que é um poema, um
romance ou um conto. Embora a literatura seja uma realidade bem mais
ampla – porque os textos literários são feitos de forma muito mais diversi-
ficada do que simplesmente nos três modos que acabamos de citar – esse
conhecimento nos permite pensar que a obra literária é para nós alguma
coisa de familiar. Certo! É verdade que nossa experiência escolar nos dá
alguns elementos para pensar tanto a literatura, como as ideias principais
da obra, o tempo e as condições em que ela surgiu, a vida do autor, entre
outros elementos da criação literária que estudaremos mais adiante, mas
também é verdade que tudo isso nos leva a um conhecimento muito mais
exterior e superficial do fato literário do que a um conhecimento interior e
essencial desse mesmo fato. Vamos juntos, então, refletir sobre três campos
distintos, embora possam parecer a mesma coisa para os que não avançaram
nos estudos. Esses três campos são:
1 - a teoria da literatura;
2 - a literatura;
3 - o estudo crítico da literatura.

Para início de conversa, tomemos a noção de teoria da literatura. Primei-


ramente, vamos pensar um pouco sobre o que é uma teoria. Esse termo vem
do grego theoría e tem como radical théa, que significa uma “observação
respeitosa”. Apesar de aplicar-se a contextos diferentes, em sentido geral,
podemos dizer que “teoria” é qualquer atividade da linguagem que busca
conceituar ou explicar um dado da realidade empírica ou da realidade
intelectiva. Trata-se, então, de uma forma de conhecimento especulativo.
Ver glossário no Indica um conjunto organizado de ideias apoiado em hipóteses gerais que
final da Aula pretendem esclarecer, tornar compreensível um determinado objeto de
estudo. Assim, uma teoria é um princípio geral e sistemático que visa à
compreensão de um objeto do conhecimento.

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Que é teoria da literatura? Aula 1

Gil Vicente (Fonte: http://www. prof2000.pt).

Uma vez que já temos noção do que é uma teoria, como aplicá-la
à literatura? Bem, podemos dizer que a teoria da literatura é o conjunto
de princípios gerais e sistemáticos que visam à compreensão e explica-
ção técnica da literatura. Agora, gostaria de trazer para cá outro ponto
que é o seguinte: é muito comum o uso da expressão “teoria literária”.
Porém, por mais presente que esteja no dia-a-dia de nossas conversas,
essa expressão requer um alerta. Do ponto de vista do uso linguístico,
quer dizer, da forma de falar, não há problema em seu emprego porque
o adjetivo “literário” refere-se ao que é relativo à literatura. E é exata-
mente disso que estamos tratando. Mas se pensamos que no segundo
item da nossa discussão de hoje está a questão do que é literário e do
que não é literário, poderemos ficar um pouco surpresos e perguntar: “A
teoria literária é mesmo literária, ou seja, é literatura?” Claro que você
já desconfia de que a resposta a essa pergunta é NÃO. O simples fato
de ser uma teoria acadêmica, totalmente comprometida com uma lógica
racional de seus argumentos, retira-a da condição de ato poético, de ato
de criação imaginativa (poiesis). Portanto, o melhor seria falar em “teoria
da literatura”, como estamos fazendo aqui. Entretanto, isso não significa Ver glossário no
dizer que não se deva usar a expressão adjetivada, até porque ela é de final da Aula

uso corrente, utilizada nos manuais didáticos, nos salões de debate e nos
corredores das faculdades de Letras. Precisamos apenas ter consciência

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Teoria da Literatura I

da sua real significação, consciência da natureza do discurso que faz uma


teoria e assim poderemos fazer uso da expressão sem medo.
Bem, uma vez esclarecido que a teoria literária não é “literária” (não
sorria, isso é sério mesmo), vamos em frente.

Literatura ou não literatura? - Eis a questão!

O estudo do texto literário, a leitura crítica dele não é um trabalho sobre


o fazer literário, mas sobre o feito literário. É um trabalho voltado para o
fenômeno literário acabado, realizado enquanto obra, enquanto texto con-
creto. A teoria da literatura, contudo, é uma sistematização do saber sobre
o fazer literário. Preocupa-se com uma reflexão sobre o ser da literatura
e se debruça sobre aquilo que faz um determinado texto ser literário, ou
seja, volta-se para o modo de funcionamento do discurso enquanto arte
da palavra. Essa teoria se ocupa em identificar os elementos próprios da
literatura, em lidar com a estrutura que organiza as obras em suas par-
ticularidades de gênero (a lírica, a épica, a dramaturgia etc.). Se se trata de
uma composição em verso na sua organização formal, a teoria vai falar da
métrica, das figuras de linguagem, da rítmica, da rímica, da estrofação etc.
Se o assunto é a prosa, a teoria vai tratar das personagens, do enredo, do
ponto de vista narrativo, da estrutura narrativa em suas várias modalidades

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Que é teoria da literatura? Aula 1
como romance, conto, novela, fábula e ainda segue até os textos dramáticos
como tragédia, comédia, drama, auto etc.
Mas atenção! No caso da dramaturgia, a teoria literária restringe-se à orga-
nização textual e não à atuação dos atores no palco. Aqui já se trata de arte cênica.
René WELLEK e Austin WARREN (1976, p. 44) explicam a teoria
da literatura como “o estudo dos princípios da literatura e das suas catego-
rias, dos seus critérios e matérias semelhantes”. Porém, a teoria literária
não trabalha apenas os aspectos formais intrínsecos da obra; também se
preocupa com as relações que a literatura estabelece com outros ramos do Ver glossário no
conhecimento e, para tanto, lança mão de várias ciências como a Linguística, final da Aula
a Semiologia, a Sociologia, a História, a Psicanálise, entre outros.
A literatura não se faz com textos isolados uns dos outros, ou fechados
dentro de uma época ou de um espaço geográfico, o que evidencia uma
visão mais relacional das obras entre si e das obras com o espaço onde
aparecem e com o tempo. Não só o tempo em que surgiram, mas também
o tempo que vão atravessando ao longo de sua história. Isso revela um dina-
mismo maior entre a literatura, suas formas de apresentação e a realidade
do homem enquanto sujeito circunstanciado na História. A essa visão mais
global da produção literária, WELLEK e WARREN (1976, p. 49) chamam
de “perspectivismo,” cuja explicação é dada nos seguintes termos:

O “perspectivismo” quer dizer que nós reconhecemos haver uma poesia,


uma literatura, comparável em todas as épocas em que se desenvolve
e evolui, cheia de possibilidades. A literatura não é uma série de obras
singulares sem nada em comum, nem uma série de obras encerradas em
ciclos temporais como o Romantismo ou o Classiscismo [...].

A diversidade de formas e expressões – tanto no interior de cada


obra, quanto ao longo da história literária, não só receberá, na interpretação
dos estudiosos, um ordenamento lógico, a partir dos princípios gerais da
teoria, mas também trará diferenças que vão interferir na própria teoria.
De qualquer modo, a teoria será um fio condutor na compreensão do que
há em comum e do que há de diferente na organização das obras.

ATIVIDADES

A fim de fixar melhor o que acabamos de desenvolver, imagine que


você é professor de Teoria da Literatura e um aluno lhe pede para escrever
um parágrafo de 5 a 7 linhas, explicando em que consiste esse campo de
estudo, ou seja, de que ele trata. O que você escreveria para ele? Redija
esse parágrafo.

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Teoria da Literatura I

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Lembre-se de que da literatura fazem parte os romances, os contos, os
poemas, as crônicas, entre outros textos. Pensando um pouco sobre
os assuntos contidos neles e sobre o modo como são feitos, você
encontrará uma boa resposta.

O QUE É AFINAL A LITERATURA?

No que se refere à literatura, vejamos o seguinte. Falando da forma


mais generalizada possível, já que este assunto será retomado logo adiante,
dizemos que a literatura – como qualquer outra forma de arte – é criação.
Muito bem! Mas, como a matéria prima dessa arte é a palavra, aí começa
uma história diferente que vai distingui-la, em alguns aspectos, das demais
artes como a pintura, a escultura, a música etc. Nesse campo da linguagem,
a literatura é o resultado de um trabalho particular feito com a palavra, de
tal modo que encontramos nela (na literatura) um modo específico de func-
ionamento do discurso que só pode ser bem compreendido por estudiosos
da linguagem, por pesquisadores das ciências humanas, por filósofos, mas
principalmente por aqueles que se dedicam à pesquisa específica do fato
literário.
O professor português Vítor Manuel de Aguiar e Silva afirma que

a obra literária é sempre um artefacto, um objecto produzido no


espaço e no tempo – um objeto, como escreve Lukács, que se separa
Ver glossário no do sujeito criador [...] possuindo uma realidade material, uma textura
final da Aula semiótica sem as quais não seriam possíveis nem a leitura, nem o
juízo estéticos (AGUIAR E SILVA, 1997, p. 34).

A explicação dada mostra a literatura como um objeto que o autor


entrega ao público e que, uma vez oferecido, torna-se independente do
seu criador e sustenta a sua materialidade de letra, de frase, de parágrafo,
de capítulo. Em outras palavras, sustenta a sua realidade de obra acabada
cujos constituintes têm a capacidade de produzir os mais diversos sentidos
através das muitas leituras por que vai passar. Essa multiplicidade de senti-
dos que a obra vai receber ao longo de suas leituras decorre dos pontos de
vista que orientam o trabalho do leitor, e esses pontos de vista resultam da
consideração de que aquele texto pertence a um campo estético e, portanto,
os “juízos”, isto é, as interpretações dadas, os sentidos a ele atribuídos são
relativos a esse campo.
Sendo assim, meu caro aluno, sobre tais juízos não se busca uma prova
na realidade existencial das pessoas, das coisas ou dos acontecimentos.

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Que é teoria da literatura? Aula 1
Busca-se uma demonstração da procedência lógica das ideias apresentadas
em cada leitura interpretativa: busca-se a capacidade argumentativa do leitor
a partir do que está escrito no texto, visto que o importante é entrar na ca-
pacidade geradora de sentidos que o próprio texto oferece em sua condição
de potência semiológica. E o que é essa potência semiológica, senão a
capacidade que o texto tem de suscitar infinitamente novas significações
ao longo dos anos e dos séculos? O texto suscita novos sentidos a cada
novo leitor, mas também é capaz de estimular novas significações a cada
nova leitura do mesmo leitor. Essa característica dá legitimidade ao uso do
termo “poética” para toda obra de literatura, ressaltando no fato literário a
dimensão de “expressão criativa” em que o escritor transforma o mundo.
Nesse sentido, fala-se de poética sem uma preocupação com distinções
entre prosa e poesia, porque a poesia (poiesis), a criação é o ponto central
de toda literatura. Sem criação, sem poiesis não há literatura, portanto, a
poética é a base essencial de todo texto literário.
Guimarães Rosa (1976, p. 3) em Aletria e hermenêutica, primeiro
Prefácio do seu livro “Tutameia: terceiras estórias”, diz que “A estória não Ver glossário no
quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História”. Com isso, final da Aula
o escritor destaca o caráter independente da natureza do literário em face da
realidade existencial da vida. Os dados da realidade são apenas estímulos,
pressupostos que requerem um trabalho de transformação no campo da
linguagem para poder constituir-se no espaço novo da literatura. Essa é a
razão pela qual não se busca o verdadeiro na literatura, mas sim o veros-
símil, aquilo que é possível de acontecer no enredo da obra.

ATIVIDADES

É obrigação do escritor procurar fidelidade entre o que diz em sua obra


e os acontecimentos da realidade existencial? O que você acha?

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


A partir do que você compreendeu sobre o que é a arte literária exponha
a sua opinião quanto ao compromisso ou não compromisso do literato
em relação aos fatos objetivos da realidade.

Carlos Drummond de Andrade (1976, p. 76), ensinando poeticamente


o que é e o que não é poesia, diz no poema Procura da Poesia:

Não faças versos sobre acontecimentos.


Não há criação nem morte perante a poesia.

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Teoria da Literatura I

Diante dela, a vida é um sol estático,


não aquece nem ilumina.
Com essa afirmação, você percebe que o poeta está defendendo a tese
de que a poesia não se faz com fatos ou com emoções superficiais, nem com
eflúvios psicológicos ou com arroubos de entusiasmo, mas ela consiste em
um trabalho sobre a linguagem que resulte em uma autonomia da palavra
e, nesse processo de metaforização, faz-se o poema, expressão material,
Ver glossário no discursiva do que a linguagem pode produzir no interior da palavra. Diz ele:
final da Aula
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Então, a título de resumo, já que voltaremos mais adiante a discutir esse


assunto, poderíamos dizer que a literatura é uma escrita criativa, imaginativa,
não comprometida com a veracidade empírica dos seus ditos e cujo objetivo
é ser um texto com valor estético próprio. Mas falar assim da literatura é
simples. O fato é que por mais que tentemos ser claros e definitivos na
conceituação, haverá sempre a possibilidade de nossa ideia ser questionada
em algum aspecto, porque, ao longo da história, os textos literários foram
recebendo tratamento diferente, ou seja, foram sendo compreendidos de
acordo com o momento cultural da comunidade que os produzia. Assim
é que Platão via Homero como um grande poeta, mas não lhe reservava
nenhum lugar na República, pois considerava a poesia imitativa como a
escrita do falso, corruptora dos bons costumes, já que seu caráter criativo e
imitativo a afastava da verdade. Os sermões do Pe. Antônio Vieira foram
escritos para cristianizar, conscientizar os ouvintes sobre os valores éticos
do Evangelho. Não foram escritos para fruição dos ouvintes enquanto
eram proferidos no púlpito das igrejas, ou deleite dos futuros leitores, e, no
entanto, estão incluídos nas páginas da literatura brasileira. Portanto, falar
sobre o conceito ou a natureza da literatura exige que se faça uma reflexão
mais aprofundada do que simplesmente considerar a visão que se teve em
uma determinada época ou algum aspecto que se tem ainda hoje sobre esse
fenômeno da cultura.

ESTUDO CRÍTICO DA LITERATURA

Finalmente, vamos conversar um pouco sobre o estudo crítico da


literatura. Você já compreende o que é literatura, já conhece também al-
guns pontos básicos do que é a teoria da literatura. Pois bem! De posse
do conhecimento do texto literário que vem pela leitura e de posse dos
conhecimentos teóricos que vêm pelo estudo, só nos resta usar esses dois

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Que é teoria da literatura? Aula 1
conhecimentos para fazer uma leitura interpretativa, uma hermenêutica
do texto. Enquanto a literatura se volta para a produção escrita na qual o Ver glossário no
funcionamento da linguagem tem suas particularidades de caráter esté- final da Aula
tico, o estudo crítico da literatura é a organização de um saber sobre uma
determinada obra, são as conclusões a que o leitor chega no exercício de
interpretação, depois de eleger um certo tema para ser o caminho principal
de sua leitura. No ato de leitura de um poema, ou de uma obra em prosa,
as palavras ganham uma intensificação em sua capacidade de significar. O
sujeito que fala no texto, quer seja o eu-lírico, quer seja o narrador, não
“espera ser compreendido” no significado “denotado” de seu discurso.
Pelo contrário, o discurso posto no texto quer ser alvo constante de novas
interpretações. Dessa interrelação entre o texto e o leitor, nasce uma parce-
ria criadora que vai gerar o ato de leitura, de tal modo que a interpretação
nunca é o efeito de uma simples visão do leitor sobre o texto, mas é sempre
o resultado de uma interação entre ambos.

Você sabia que o texto literário é uma forma de conhecimento? Isso


mesmo! Ele é uma forma de conhecimento à medida que traz uma inter-
pretação do mundo, isto é, das pessoas, dos objetos, dos fenômenos da
natureza, das instituições sociais, dos desejos humanos, das crenças, da
ciência, enfim de tudo aquilo que compõe o quadro cultural no qual as
pessoas estão mergulhadas.
Você vai estudar esse assunto na Aula 3 . Por enquanto, vamos apenas
dizer que o estudo do texto requer também outras formas de conhecimento
além do literário para poder apreender as várias faces do saber que estão

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Teoria da Literatura I

presentes na obra. Essas outras formas de conhecimento pertencem tam-


bém a outros campos de saber que não é o campo do saber especificamente
literário. Tais campos são os da Linguistica, da Sociologia, da Antropologia,
da Filosofia, da Semiologia, entre outros.

CONCLUSÃO
Terminando essa conversa hoje, você está percebendo que, para se
estudar o texto literário, é necessário saber mais do que decifrar o texto
em seus sentidos imediatos. É preciso reunir pelo menos um pouco de
condição, para refletir acerca desses outros campos do saber e poder situar
o texto literário nas várias relações que ele estabelece, não só com a lingua-
gem, mas também com outras áreas que falam do modo de ser e de viver
do homem como: a sociedade, a política, a religião, os tabus, os sistemas
ideológicos etc.
Depois dessas informações que nos ensinam a distinguir teoria da
literatura de literatura e de estudo crítico da literatura, vamos, na próxima
Aula, ver a trajetória pela qual passou o termo “literatura” bem como as
transformações que aconteceram nele en quanto um conceito.

ATIVIDADES

Destaque nesta aula três diferenças entre o texto literário e o seu estudo
crítico e, para cada diferença que você apontar, dê uma breve explicação.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Você já viu que o texto literário é aquele que chamamos de literatura.
Sabe também que depois de lê-lo podemos fazer uma interpretação,
conversando ou elaborando um texto escrito. Logo, o texto literário
– trabalho do escritor ou do poeta –, não é a sua interpretação, a sua
crítica. Estas são trabalho do leitor. Então, sabendo dessa diferença,
faça a Atividade acima.

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Que é teoria da literatura? Aula 1

RESUMO
• A teoria da literatura é a ciência da literatura, é a consciência conceitual
sobre o fazer literário.
• A teoria da literatura é um conjunto de regras e princípios que revela e
esclarece os mecanismos do fazer literário, isto é, volta-se para aquilo que
constitui e organiza a obra.
• A teoria da literatura, a literatura e o estudo interpretativo da obra são
realidades diferentes no uso da linguagem.
• A teoria da literatura se ocupa com aquilo que organiza a obra em seus
aspectos de gênero, categoria narrativa, enfoque lírico etc.
• A literatura é um trabalho com a linguagem e na linguagem.
• A obra literária é um trabalho que, uma vez entregue ao público, segue o
seu curso independentemente do autor.
• A obra literária é um campo aberto de significações, daí poder-se dizer
que todo texto é uma potência semiológica.
• A obra literária não tem compromisso com a realidade histórica e constrói
sua própria realidade no discurso.
• O texto literário requer sempre uma nova leitura, ou seja, uma nova ma-
neira de ser visto, porque nessa dinâmica é que está a sua natureza literária.
• O estudo crítico do texto literário é um exercício de interpretação, de
produção de significações.
• O texto literário é um objeto artístico que se abre à multiplicidade de
sentidos que cada leitura oferece.
• A obra literária é feita a partir das experiências de vida do autor em todos
os aspectos que sua Cultura lhe oferece, e não à revelia deles.

ATIVIDADES
Se você está seguindo a orientação para fazer as atividades, está indo
bem. Então, para melhor fixação ainda de tudo o que foi explanado, será
muito bom que forme um grupo de 4 pessoas (você e mais três), para discutir
os itens abaixo e respondê-los por escrito, redigindo para cada resposta um
texto entre 5 e 10 linhas. Vá em frente; você vai se dar bem!
1. Em que consiste o estudo interpretativo do texto literário?
2. Destaque um ponto comum entre a literatura e a teoria da literatura e
explique por que esse ponto é importante.
3. Que diferenças você faz entre o trabalho do historiador e o trabalho do escritor?
4. Procure em um dicionário de linguistica o conceito de Semiologia e explique
por que o trabalho de interpretação da obra literária é um processo semiológico.
Use suas próprias palavras; o importante é você dizer como compreendeu.

17
Teoria da Literatura I

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Essas atividades são bem claras, portanto, retorne ao texto e responda
ao que se pede.

PRÓXIMA AULA

Estudaremos na aula 2 alguns conceitos de Cultura e de Arte, e você


vai entender que esta última é produto da anterior. Até lá!

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da literatura. 8 ed. Coimbra:


Almedina, 1997.
ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras estórias. 4 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1976.
ANDRADE, Carlos Drummond. Reunião: 10 livros de poesia. 7 ed. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1976.
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. 3 ed. Mem
Martins: Publicações Europa-América, 1976.
GONÇALVES, Magaly Trindade, BELLODI, Zina C. Teoria da literatura
“revisitada”. 2. Ed, Petrópolis: Vozes, 2005.

GLÓSSARIO
Realidade empírica: Aquela que se baseia na experiência, na observação
do que se passa na realidade e não nos pressupostos da ciência.

Objeto: Qualquer coisa que é apreendida pelo conhecimento. O objeto


pode ser tanto algo material como uma cadeira, como pode ser uma
entidade não material como a matemática, o amor, a política. O objeto
do conhecimento é tudo aquilo de que trata uma teoria, um conceito
ou uma reflexão filosófica. Tudo aquilo que é alvo de um conjunto
de ideias.

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Que é teoria da literatura? Aula 1
Poiesis: Termo grego do qual surge a palavra “poesia”. Significa criação,
atividade criadora da palavra.

Intrínseco: Indica o caráter interno, interior de um objeto; que é próprio


dele. Diz respeito a uma característica relativa ao ser da coisa. Opõe-se
a “extrínseco”, isto é, que está fora.

Semiótica/ Semiologia: Embora alguns estudiosos procurem dar uma


certa distinção entre a Semiótica e a Semiologia, ambas, de modo geral,
são tomadas como ciências dos signos, como estudo dos signos no
campo social.

Georg Lukács: Filósofo húngaro (1885-1975). Aderiu ao


marxismo e militou no clandestino Partido Comunista
da Hungria, em 1918. Nesse período, publicou História
e Consciência de Classe (1923). Além de pensador do
marxismo político, foi um dos mais influentes críticos
literários do século XX. Publicou A teoria do romance
(1916), obra que repudiou após aderir ao marxismo clássico.

joão GuimarãesRosa: Médico, diplomata e escritor


brasileiro (1908-1967). Sua obra ficou marcada pela
presença do sertão como palco das ações e pela
linguagem inovadora, que utiliza elementos populares
e regionais, com fortes traços de narrativa falada. É
considerado um dos maiores escritores brasileiros
de todos os tempos, ao lado de Machado de Assis.
Publicou Grande Sertão: Veredas (1956).

Carlos D. de Andrade: Poeta mineiro (1902-1987). Formado em


Farmácia. Durante a maior parte da vida foi funcionário público. É
considerado um dos principais poetas da literatura brasileira. Publicou
Sentimento do Mundo (1940), A Rosa do Povo (1945) e Antologia
Poética (1962) além de outros livros.

Metaforização: Termo derivado de “metáfora”. O conceito de metáfora


não é tão simples, pois ela tem relação com várias outras figuras como
o símbolo, a metonímia, o mito, entre outras. De maneira geral, a
metáfora é tomada como a grande figura de linguagem, pois abarca
várias outras.

19
Teoria da Literatura I

República: Nome de uma obra do filósofo grego Platão. A República,


na verdade, é o Estado, a coisa pública. O livro trata de questões
relativas ao funcionamento ideal da sociedade através do respeito à
Verdade. Em algumas partes, Platão fala da literatura, particularmente
no Livro X, onde vai dizer que a poesia está longe da Verdade, então,
está no campo do falso.

Hermenêutica: Ciência que trata da interpretação. Começou com a


busca de explicação para os textos sagrados.

Eu-lírico: O eu que fala no poema. Com essa expressão, faz-se


uma distinção entre o sujeito que se expressa no poema e o poeta,
enquanto pessoa existencial na realidade da vida. O poeta tem endereço
residencial, carteira de identidade etc. Ao contrário, o “eu lírico” existe
apenas na composição poética.

Narrador: É uma categoria da narrativa. Da mesma forma que o eu


lírico não é o poeta, o narrador não é o autor do romance, do conto
ou de outro tipo de narrativa literária. O narrador é aquele que narra,
que conta a história, por isso é uma instância do discurso e não existe
fora dele.

Pe. Antônio Vieira: Religioso, escritor e orador


português da Companhia de Jesus (1608-1697). Um
dos mais influentes personagens do século XVII em
termos de política. Destacou-se como missionário em
terras brasileiras. Autor de célebres sermões, como
Sermão da Quinta, Sermão da Sexagésima, Sermão de
Santo António aos Peixes e Sermão pelo Bom Sucesso
da armas de Portugal contra as de Holanda

Homero: Poeta grego de quem se sabe pouco. Atribui-se,


como tempo provável de sua vida, o período entre os
séculos IX e VIII a.C. Escreveu duas das obras de maior
consideração da literatura universal: Ilíada e Odisséia.

Platão: Filósofo grego (428/27 a.C.-347 a.C.). Discípulo


de Sócrates, fundador da Academia e mestre de
Aristóteles.

20
Aula 2

A PALAVRA “LITERATURA” E SEU USO


AO LONGO DA HISTÓRIA

META
Traçar descritivamente um panorama geral da evolução histórica do termo literatura e do
seu conceito desde os primórdios até o século XX.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
- Compreender o sentido etimológico do termo “literatura”;
- Descrever a maleabilidade e a transitoriedade das concepções de literatura;
- Organizar o histórico das transformações semânticas do termo “literatura”

PRÉ-REQUISITOS
Estudos de teoria literária realizados no nível médio.

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

Hoje vamos entrar num estudo bastante restrito. Examinaremos a


origem da palavra “literatura” e os no-vos contornos que o seu sentido
foi ganhando. Mas, a fim de você se situar nesse processo de mudanças de
forma vocabular e de significações, vamos contar um pouco da pré-história
de nosso idioma. Conhecer o pouco da história é agradável porque satisfaz
nossa curiosidade sobre detalhes que em geral não colocamos na hora das
discussões principais.
Sabemos que a língua portuguesa nasceu das transformações que o
latim sofreu na Península Ibérica, ou Península Hispânica, e não foram
poucas as transformações. E por que o latim, nascido no “Latium” – uma
região distante da Itália Central – foi parar na Península Ibérica? Bem, tudo
começou por uma situação de guerra.
Em 219 a.C. a cidade de Sagunto, na Espanha, foi cercada por Aníbal,
um general cartaginês. Vendo-se incapaz de reagir contra o cerco, a cidade
pediu ajuda a Roma, que já havia percebido a ameaça do avanço expansioni-
sta de Cartago para os romanos que viviam na região mediterrânea. Assim,
com o objetivo – mas também com a boa desculpa – de proteger Sagunto, a
política e os interesses do Império Romano chegaram à Ibéria e, com eles
Ver glossário no a língua latina, que passou a sofrer tanto as influências de outras línguas já
final da Aula faladas na Península como as conseqüências de uma fala despreocupada
das regras gramaticais e dos traços do estilo retórico dos mestres.
Por outro lado, o povo adquiria costumes e hábitos lingüísticos próprios
que só podem ser compreendidos pelo contexto cultural. Esses fatores,
aliados a outros mais, resultaram em modificações profundas nas palavras
e no modo de expressão de seus usuários. A título de exemplo, vejamos
o seguinte: no latim erudito existia a palavra Equus para designar cavalo;
mas, ao animal equino que fazia trabalhos para o homem, dava-se o nome
de caballu (termo vulgar). Este vocábulo sofreu alterações resultando no
termo “cavalo”, utilizado hoje no português comum por falantes de todas
as classes. A esse modo popular de falar deu-se o nome de latim vulgar,
que significa a maneira espontânea de as pessoas se comunicarem, livres
das exigências gramaticais. Entretanto, não foi só do latim vulgar que nossa
língua recebeu influências.
Existia também uma presença forte do latim clássico, ou erudito, que
era o latim normalmente escrito e obediente às regras ensinadas nas escolas,
regras seguidas pelos bons escritores. Nesse último caso está a palavra
literatura como veremos logo adiante. Entretanto, quando esse termo lit-
eratura apareceu, no século XVI, já havia muito tempo de organização da
língua, pois o primeiro texto escrito totalmente em português, pertence ao
século XII. É a Cantiga da Ribeirinha, um poema feito para ser musicado, que
Paio Soares de Taveirós escreveu a fim de dedicar a Maria Paes Ribeiro,

22
A palavra “literatura” e seu uso ao longo da história Aula 2
amante de D. Sancho I e conhecida como “A Ribeirinha”. Essa cantiga foi
datada, no século XX, pela filóloga Carolina Michaelis de Vasconcelos Ver glossário no
como sendo de 1189 (século XII). final da Aula

SOBRE AS ORIGENS DA PALAVRA “LITERATURA”

A PALAVRA LITERATURA

Do texto inaugural da língua portuguesa – a Cantiga da Ribeirinha – até


o surgimento da palavra “literatura”, passaram-se quatro séculos, pois esse
termo só aparece escrito pela primeira vez em português no ano de 1510.
Considerando nossa realidade do século XXI, já existem muitos séculos de
sua presença em nossa cultura, e, de tanto ouvirmos falar dele no dia-a-dia,
não o associamos de imediato à letra, que é o nome com que chamamos

23
Teoria da Literatura I

cada um dos caracteres do nosso alfabeto e que está intimamente ligado


ao termo literatura.

Ruinas do Coliseu de Roma, Itália (Fonte: http://www.ctiturismo.com.br).

A palavra letra vem do latim erudito littera. O fato é que com a expansão
do Império Romano, a língua latina foi não só se distanciando de seu berço
como também foi misturando-se às outras línguas e adquirindo sons diversos
e combinações diferentes desses sons na fala do povo. Essa nova realidade
da língua veio a ser chamada, como dissemos acima, de latim vulgar, isto é,
latim do uso comum, e a essas transformações deu-se o nome de evolução
Ver glossário no fonética. Veja então o que aconteceu! O termo littera já tinha passado por
final da Aula algumas dessas transformações e, no século XIII, é encontrado o registro
dele como letera. E mesmo nessa palavra houve ainda a perda do segundo
“e”, por um processo fonético chamado síncope, o que deu origem ao
termo letra, com o sentido de um símbolo que representa um determinado
som e serve para desenhar esse som em uma superfície que pode ser pedra,
papiro, pergaminho, couro, papel etc. Como toda letra é um traço que faz
um desenho, o resultado é a grafia. Então, da letra depende o desenho da
língua falada, ou seja, a inscrição no papel do que se diz oralmente, podendo
tal inscrição tornar permanente a fala de alguém.
Mas a palavra latina littera não fica isolada nela mesma. Dela também
derivam outras palavras no próprio latim, como litterarius, que nos dá
“literário”. Por sua vez, por via erudita, litteratus origina “literato”. Mas
você lembra que dissemos há pouco que littera evoluiu para lettera no uso
popular? Pois bem, de lettera chegamos a “leteradura”, “letradura” com
registro encontrado no século XIV. Daqui também chegamos a “letrado”
– aquele que tem o conhecimento das letras, que tem competência para

24
A palavra “literatura” e seu uso ao longo da história Aula 2
ler e escrever textos. Contudo, na formação do nosso termo “literatura”,
prevaleceu a palavra latina erudita litteratura.
Tudo bem! Chegamos lá! Mas é cedo para achar que tudo está resolvido
porque, mesmo sabendo da etimologia de “literatura”, a compreensão
do seu conceito no campo da arte, tal como o entendemos atualmente,
ainda não acontece, pois o sentido dessa palavra em suas origens é bem
diferente. Na realidade, naquela época, literatura significava a mesma coisa
que “gramática”. A literatura era o trabalho de ensinar a ler e a escrever, de
tal modo que o latim litteratura e o grego grammatiké indicavam a mesma
coisa. Littera e gramma significavam “letra” e os professores que ensinavam a
leitura e a escrita eram chamados de litterator (em latim) ou grammatikós (em
grego), bem diferentemente do sentido que têm hoje o literato e o gramático.

UM POUCO DE HISTÓRIA SOBRE


O CONCEITO

Acabamos de ver um pouco das origens do termo “literatura”. Todos


sabemos que as palavras existem para dar nome às coisas, atribuir-lhes
sentido e relacionar idéias entre si. No segundo caso, “atribuir sentido”, já
vimos que “literatura” significava o ensino da língua, o saber relacionado
à arte de ler e de escrever, portanto, dizia respeito à gramática, à erudição.
Com o desenvolvimento do cristianismo e de sua ascensão social e
política, muitos estudiosos faziam parte do grupo de evangelizadores. Os
mosteiros tornaram-se lugares não só de oração, de contemplação e de
formação religiosa mas também de estudos culturais e pesquisas filológicas.
Essa é a razão pela qual vamos encontrar autores cristãos como Tertuliano,
São Jerônimo (que viveram em épocas distintas), criando categorias textuais Ver glossário no
e chamando de Escritura o conjunto dos textos sagrados, aqueles que eram final da Aula

considerados inspirados por Deus; e dando o nome de Literatura a todos


os demais textos não religiosos ou considerados pagãos. Aqui temos uma
classificação dos textos escritos em duas categorias, partindo do critério
de ser sagrado ou profano.
Nas línguas européias, o sentido de literatura era essencialmente igual
ao sentido original latino: o saber e a ciência em geral, e quando se falava em
“literatura”, “letras” ou mesmo “letras humanas” se queria significar com
isso as várias formas de conhecimento tanto de poetas e oradores quanto
de gramáticos, filósofos e matemáticos. No século XVII já se falava em
“belas letras”. Mas, em resumo, pode-se dizer que até a primeira metade
do século XVIII, para indicar o que hoje se chama “literatura”, falava-se
em eloqüência, poesia, verso.
Em 1773, os monges beneditinos de Saint-Maur iniciaram a publicação
da História Literária da França. Nesse livro, o adjetivo “literário” significava
o estudo “da origem e do progresso, da decadência e da recuperação da

25
Teoria da Literatura I

ciência entre os gauleses e os franceses” (AGUIAR E SILVA, 1997, p. 3


– tradução nossa), ou seja, essa história literária se ocupava das ciências e
das artes, e, nesse último caso, independia do fato de a sua matéria prima
ser a palavra ou não. Daí a Filosofia, a Matemática ou a Gramática estarem
incluídas na Literatura.
Francisco Dias Gomes fala do “sistema literário” como o conjunto
Ver glossário no das obras que se voltam para “a Escultura, a Pintura, a Mathematica, a
final da Aula Historia, a Eloquencia, a Musica, e a Poesia” (ibidem), tomando a literatura
na mesma concepção que já estava contida na obra dos monges beneditinos.
O século XVIII, na Europa, foi palco de uma série de transformações
culturais. A Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra do século XVII,
avançava. Agora se tem o emprego da energia a vapor na indústria têxtil.
Newton aparece com sua Física; busca-se uma visão racional da vida; quer-
se o espírito científico, que encontra no modo de funcionamento das coisas
as explicações para suas causas e conseqüências. É um momento em que o
homem quer tomar posse do mundo através da razão e da ciência.
Se o século XVIII foi chamado de “Século das Luzes”, as luzes que
o iluminaram estavam nesse espírito que pesquisava e refletia, analisava e
tirava conclusões sobre a realidade social, religiosa, econômica, política etc.
Era o senso crítico e a penetrante capacidade de pensar vistos em muitos,
como Kant, Voltaire, Diderot, Rousseau, entre outros. Uma nova organiza-
ção social se configurava e dessa nova postura diante dos acontecimentos
e das formas de pensamento iam surgindo também novas concepções
sobre o mundo e aquilo que o organizava. A visão sobre a literatura não
escapou a essas transformações e uma nova perspectiva surgiu sem que
as anteriores tivessem desaparecido. Vai-se encontrar então a figura de
Voltaire (1694–1778) que, ao escrever sobre o verbete “literatura”, em seu
Dicionário Filosófico, encontra dificuldade para traduzir com precisão o seu
sentido e então diz que literatura é um desses termos vagos muito freqüen-
tes em todas as línguas. Ele repete o sentido já conhecido entre gregos e
latinos, e diz que a literatura é uma “forma particular de conhecimento”;
um conhecimento das obras de bom gosto que trazem prazer na leitura; um
conhecimento do bem escrever; um conhecimento crítico sobre as coisas.
Mas essa visão ainda não considera a literatura como uma arte com suas
características próprias.
Ao tratar dessa forma particular de conhecimento (a literatura), Vol-
taire faz uma distinção na qual não escapa um sentido pejorativo para esse
mesmo conhecimento. É quando distingue gênio de literato. No saber do
gênio, ele coloca a capacidade criadora no trabalho sobre a linguagem que
apresenta padrão retórico elevado e beleza. Aí estão exemplificados Homero,
na Antiguidade, e Corneille, no século XVII. Eles são capazes não apenas
de falar sobre a realidade, de narrar fatos de maneira profunda, sutil, mas
também o fazem de modo a conquistar o gosto pelo assunto e pela leitura.

26
A palavra “literatura” e seu uso ao longo da história Aula 2
São capazes de escrever de tal modo que seduzem e arrebatam o leitor para
o seu texto. É a genialidade da criação associada à competência para dizer
bem. Todo o trabalho vai na direção da beleza e da retórica. A atenção de
Voltaire está voltada para os efeitos estéticos da prosa e da poesia; daí tais
textos serem chamados também de “bela literatura”.

Sábio trabalhando no seu gabinete, 1827. Rio de Janeiro, Museu Castro Maia, IPHAN.

Ora, se há uma ‘bela literatura”, há uma literatura que não é bela? Para
Voltaire, sim. Como “bela literatura”, têm-se os textos bem escritos, bem
elaborados, agradáveis e com preocupação estética. Os gênios são seus
mestres. Em contraposição, como “literatura”, Voltaire coloca os textos
que mostram um trabalho bem feito com a palavra, com correção, mas
sem preocupação estética. Esse é o trabalho do literato. Mesmo quando
considera a genialidade do poeta na “bela literatura”, Voltaire vê o con-
hecimento aí contido como ilusório. Diferentemente disso, ele vê como
superior o conhecimento do sábio – expresso na Filosofia e na ciência – que
requer pesquisa, maior aprofundamento e maior reflexão. Temos assim que
na comparação entre o gênio e o literato e entre o sábio e o literato, o literato
é sempre posto numa categoria inferior.
Mas em Voltaire se destaca uma novidade: é o fato de ele ter retirado
do campo da literatura a pintura, a arquitetura, a música, diferentemente
do que pensava Francisco Dias Gomes.
Em 1751, Diderot (1713-1784), no trabalho Pesquisas filosóficas sobre
a origem e a natureza do belo, usa a palavra “literatura” com um sentido
que merece atenção. Diz ele:

27
Teoria da Literatura I

Ou se consideram as relações nos costumes e se tem o belo moral,


ou se consideram as relações nas obras de literatura e se tem o belo
literário, ou se consideram as relações nas peças de música, e se tem
o belo musical” (SILVA, 1977, p. 6 – grifo nosso).

Nessa afirmação se encontram diferentes tipos de belo e a Literatura já


encontra um espaço particularizado para o seu reconhecimento. Trata-se do
espaço da língua, do discurso e tudo o que está fora desse espaço está fora
da literatura, o que já é um passo significativo para uma concepção mais
específica da literatura. Nesse texto aparecem dois novos significados que
vão ser cada vez mais utilizados a partir da segunda metade do século XVIII
e que podemos traduzir como: a) a literatura é um trabalho de linguagem
que se ocupa de questões estéticas; b) a literatura é uma forma particular
de expressão artística.
Ainda do século XVIII vem, oriunda de Lessing, a idéia de literatura
como um conjunto de textos literários. Daí expandiu-se a noção de litera-
tura, significando o conjunto das obras de um lugar como conhecemos
hoje tão comumente ao falar em literatura brasileira, literatura portuguesa,
literatura regional, literatura nacional etc. Nesta última denominação, temos
um aspecto visivelmente político chamando a atenção para a identidade de
povo que expressa pela arte suas vivências, sua ideologia, suas crenças, sua
visão de mundo.
No século XIX, Verlaine traz para a literatura uma noção de fala
Ver glossário no inconseqüente ou sem compromisso com a verdade, revelando uma visão
final da Aula pejorativa do texto, que aparece em expressões do tipo “Isso não passa de
literatura”. Esse sentido se encontra no poema Arte poética, de Verlaine com
a expressão “E tudo o mais é literatura”.
No século XX, as pesquisas sobre a linguagem ganham impulso e o
conceito de literatura recebe um tratamento específico que nunca ocorreu
anteriormente. Agora, em meio a visões tradicionais que priorizam os fa-
tos não literários na interpretação da obra, surge a ideia de literatura como
uma forma de expressão artística construída na palavra e pela palavra com
finalidade estética, ou seja, a literatura é um modo particular de funcio-
namento da linguagem que em sua natureza de ser literário rompe com
qualquer interesse fora da estética literária. Mas o termo literatura continua
ainda a ser usado e compreendido em acepções que nada têm a ver com
sua especificidade. Por exemplo, ele é usado para indicar:
a) conjunto das obras literárias produzidas em uma época. Por exemplo,
temos: “literatura jesuítica”, “literatura do século XVI”, literatura da Contra-
Reforma;
b) conjunto de obras que chamam a atenção pelos assuntos tratados como
ocorre em “literatura de espionagem”, “literatura feminina”;
c) bibliografia de uma área do conhecimento. Nesse sentido é muito comum
a expressão “literatura médica” ou ainda “literatura sobre Fernando Pessoa”;

28
A palavra “literatura” e seu uso ao longo da história Aula 2
d) livro que trata de História ou de Teoria Literária em frases como “Este
livro é de literatura”, referindo-se a um livro didático que estuda a literatura
e não apenas a um romance, conto etc. que contém em sua construção as
condições de um texto literário.

CONCLUSÃO

Com tantas mudanças e tantos usos do termo, chegamos à conclusão


de que discutir sobre o que é literatura não é uma tarefa tão simples. Ao
longo da história, aliás, na quase totalidade do tempo em que se fala em
literatura, o sentido é diferente do que conhecemos hoje. E não se pode falar
numa dinâmica da arte literária, pois a palavra não designava, na maioria
das vezes, o campo artístico.
Vimos ainda que as modificações surgidas decorriam de fatores soci-
ais, religiosos, filosóficos e lingüísticos também. Não há uma tomada de
consciência sobre o ser da literatura. Pelo contrário, diante de tão variadas
significações, constatamos que a palavra se presta a muitos empregos. Vários
deles estão em uso na língua de todo dia, mas nenhum diz o que é espe-
cífico da literatura ou pelo menos nenhum fala do que ocorre na natureza
intrínseca dos textos literários e permite identificá-los como tais. Como essa
questão do que define a literatura também é controversa, deixamos para
tratar dela na aula sobre a autonomia do texto literário. Ali discutiremos
um pouco sobre o assunto.
Por enquanto, nosso tema vai andar por uma revisão dos fundamentos
primeiros do conceito de literatura e, para começar, vamos conversar com
Platão na próxima aula.

RESUMO
• A palavra “literatura” surge na língua portuguesa, no século XVI (1510),
quatroséculo depois do poema Cantiga da Ribeirinha (1189), de Paio Soares
de Taveiros.
• Até a primeira metade do século XVIII, os textos que hoje seriam chama-
dos literários recebiam o nome de verso, poesia, eloqüência.
• Nas línguas da Europa, até o século XVIII, literatura significava ciência
em geral, por isso, quando se falava em “literatura” ou aparecia o termo
“letras”, era para designar o conhecimento, não importava se se referia aos
poetas, aos oradores, aos gramáticos, aos filósofos ou aos matemáticos.
• Nos primeiros séculos do cristianismo, vamos encontrar religiosos envolvi-
dos com os estudos culturais voltados para a Filologia e para a interpretação

29
Teoria da Literatura I

de textos. Entre eles estão Tertuliano (155-220) e São Jerônimo (347-420)


fazendo uma divisão dos textos em sagrados e profanos. Aos textos sagra-
dos, considerados de inspiração divina, chamaram de escritura; aos textos
profanos deram o nome de literatura. Daí a expressão “Escritura sagrada”.
Então literatura era qualquer texto voltado para a poesia, a eloquência, a
gramática, de tal modo que o literato (na cultura latina) e o gramático (na
cultura grega) eram profissionais do mesmo ofício: voltavam-se para o
ensino da leitura e da escrita.
• No século XVIII, encontramos algumas visões sobre a literatura:
√ No livro História literária da França (1773), os monges de Saint-
Maur empregavam o adjetivo “literário” para indicar o estudo da Gramática,
da Filosofia e da Matemática.
√ O poeta português, Francisco Dias Gomes (1745-1795), chama de
“sistema literário” o conjunto dos livros que tratam de poesia e de retórica,
mas inclui nele os que tratam de escultura, de pintura, de Matemática, de
História e de música.
√ Com Voltaire (1694-1778), a literatura ainda não é vista como uma
arte particular, mas já está colocada em um campo mais restrito. É uma
forma particular do conhecimento voltado para o prazer da leitura e a arte
do bem escrever.
√ Com Diderot (1713-1784), na obra Pesquisas filosóficas sobre a
origem e a natureza do belo, o belo literário já está particularizado na lit-
eratura e não se mistura com o belo de outras expressões culturais. Nesse
texto, literatura aparece como um trabalho de linguagem com preocupação
estética.
√ Com Lessing (1729-1781), a palavra literatura vai indicar um con-
junto de textos literários.
• Assim, considerando Voltaire, Diderot, Lessing além de alguns dados
históricos, podemos dizer que foi no século XVIII que o conceito de lit-
eratura recebeu as bases que sustentam sua concepção na atualidade. Mas
isso não significa que havia uma visão uniforme. Ideias diferentes também
se faziam presentes naquele século XVIII, como você viu nesta aula.
• No século XIX, com Verlaine, a literatura é uma fala inconsequente ou
sem compromisso com a verdade.
• No século XX, o termo literatura é empregado em vários sentidos além do
sentido de obra de ficção em que a palavra tem fins estéticos. Veja alguns:
√ texto retórico bem trabalhado, mas sem maiores consequências;
√ conjunto de obras literárias de uma região, de uma época ou mesmo
de um autor ou de um assunto determinado;
√ bibliografia de uma determinada área do conhecimento;
√ livros que tratam teoricamente ou que fazem análise crítica dos
textos literários.

30
A palavra “literatura” e seu uso ao longo da história Aula 2

ATIVIDADES

Considerando que o tema dessa aula é o surgimento da palavra “litera-


tura” e o uso que ela foi tendo ao longo do tempo, destaque no texto ideias
que você considera importantes e com elas organize um questionário com
10 perguntas. Para cada pergunta, você mesmo escreva a resposta.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Existe um resumo desta aula, mas como você percebe, o que estou
solicitando precisa mais do que a leitura desse resumo. Por isso retome
o texto completo e releia-o atentamente, verificando que partes
merecem uma pergunta cuja resposta vai ajudar a assimilar o que é
mais importante nesta aula.

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da literatura. 8 ed. Coimbra:


Almedina, 1997.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira
da língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro: Enciclopaedia Britanica
Editores, 1978.
GONÇALVES, Magaly Trindade, BELLODI, Zina C. Teoria da literatura
“revisitada”. 2. Ed, Petrópolis: Vozes, 2005.
SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. 2 ed. Rio de
Janeiro: Livros de Portugal, 1970.

31
Teoria da Literatura I

GLÓSSARIO

Ibéria: Nome que os gregos, desde os tempos antigos, deram ao que


hoje é chamado de Península Ibérica onde se encontram Portugal e
Espanha.

Paio Soares de Taveirós: Trovador atuante entre os séculos XII e XIII.


De origem da pequena nobreza galega. Foi o autor da célebre Cantiga
da garvaia, durante muito tempo considerada a primeira obra poética
em língua galaico-portuguesa.

D. Sancho I: Nobre português (1154-1212). Segundo rei de


Portugal, filho de D. Afonso I. Com a morte de Afonso Henriques,
em 1185, Sancho I foi coroado rei de Portugal.

Carolina M. Vasconcelos: Filóloga alemã (1851-1925).


A mais célebre filóloga da língua portuguesa. Foi crítica
literária, escritora, lexicógrafa e a primeira mulher a
lecionar numa universidade portuguesa, a Universidade
de Coimbra. Publicou Poesias de Sá de Miranda (1885) e
História da Literatura Portuguesa (1897).

Síncope: Desaparecimento de fonema(s) no interior de vocábulo.

Grafia: Palavra que vem do grego –graph(o) originada de graphein


que significa escrever, desenhar.

Tertuliano: Escritor cartaginês (155-222). Foi jurista


em Roma, converteu-se ao Cristianismo por volta de
193 e estabeleceu-seem Cartago, pondo sua erudição a
serviço da fé. A partir de 207 passou ao montanismo e
permaneceu separado da Igreja até a morte. Publicou
Apologeticum, O testemunho da alma e A prescrição
dos hereges.

São Jerônimo: Padre. Nasceu em Strídon (347), e fale-


ceu perto de Belém (419/420). Traduziu a Bíblia do grego
antigo e do hebraico para o latim. A edição de São Jerônimo,
a Vulgata, é o texto bíblico oficial da Igreja Católica Romana.

32
A palavra “literatura” e seu uso ao longo da história Aula 2
Francisco Dias Gomes : Poeta português (1745-1795). Crítico literário
contemporâneo da História Literária da França, escrita no século
XVIII, pelos monges beneditinos de Saint-Maur.

Santo Agostinho: (354 - 430) Foi bispo de Hipona (atual


Annaba, na Argélia). É considerado um dos fundadores
da teologia. Seu pensamento exerceu grande influência
em toda a Idade Média, e ainda hoje serve de base para
muitas afirmações teológicas.

Voltaire: Filósofo francês (1694-1778). Seu nome


verdadeiro era François Marie Arouet. Escreveu tragédias,
poemas, contos, mas destacou-se principalmente como
filósofo, tendo sido um dos expoentes do Iluminismo
Francês. Publicou Dicionário filosófico (1764).

Denis Diderot: Filósofo, escritor e crítico francês (1713-


1784). Um dos expoentes do Iluminismo e ideólogo
da Revolução Francesa. Junto a d’Alembert, planejou
e organizou a Enciclopédia, sob o título Dictionnaire
raisonné des scien- ces, des arts et des métiers (1750). Essa
obra compreendeu 17 volumes de texto e 11 de pranchas
de ilustração, publicados entre 1751 e 1772.

Corneille: Dramaturgo francês (1606-1684). Considerado


o fundador da tragédia francesa. Um dos três maiores
dramaturgos franceses do século XVII, ao lado de Racine
e Molliere. Escreveu Le Cid.

Gotthold E. Lessing: Escritor e dramaturgo alemão


(1729-1781). Expoente do Classicismo alemão, é
considerado um dos maiores escritores alemães do século
XVIII. Publicou Miss Sara Sampson (1755), Laooconte
(1766) e Nathan, o Sábio (1779).

Jean-Jacques Rousseau: Filósofo suíço (1712-1778). Um


dos mais importantes pensadores europeus do século XVIII,
sua obra inspirou reformas políticas e educacionais. Entrou
em contato com os enciclopedistas, tendo contribuído para a
Enciclopédia com 376 verbetes. Publicou Do contrato social
(1762) e Emílio (1762).

33
Teoria da Literatura I

Paul Verlaine: Poeta francês (1844-1896). Ficou


conhecido como o “Príncipe dos Poetas”. Publicou
Poemas Saturninos (1866), Romances sem Palavras
(1874) e Sabedoria (1881).

34
Aula 3
A VISÃO PLATÔNICA SOBRE
A LITERATURA

META
Apresentar as idéias de Platão, particularmente em A República, a respeito da literatura.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
- Examinar o livro A República de Platão, destacando suas afirmações sobre o poeta e a
poesia;
- Compreender que nas idéias de Platão sobre a literatura encontra-se um interesse
político-filosófico e não, literário;
- Identificar a influência do pensamento de Platão em correntes do pensamento crítico
dos séculos XIX e XX.

PRÉ-REQUISITOS
Estudos literários das aulas anteriores.

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

Vamos agora dar um salto longo para trás na história da filosofia. Da


filosofia? Sim, da filosofia. Não se surpre-enda. A questão é que embora
estejamos no campo literário, quando queremos remontar às origens do
pensamento teórico sobre a literatura vamos chegar aos filósofos Platão
e Aristóteles. Mas, nesta aula, ficaremos com o primeiro. Você acha que
por ter vivido há tanto tempo Platão está ultrapassado ou pelo menos
desatualizado? Nem pense nisso. Apesar de os estudos terem realmente
avançado na área da teoria da literatura, Platão ainda encontra lugar nos
estudos teóricos, não para ajudar na compreensão do ser da obra literária
enquanto uma expressão de linguagem com valor estético próprio, mas
para mostrar dentro do panorama da literatura o lugar de artefato social
em que foi colocada sem outra serventia que lhe desse reconhecimento de
válida por si mesma.
Com esse esclarecimento inicial, comecemos nosso assunto.

Platão e Aristóteles (Fonte: http://mozart.wunderblogs.com).

36
A visão platônica sobre a literatura Aula 3
VISÃO PLATÔNICA

Pelo que se tem documentado, Platão foi o primeiro pensador a tecer


considerações sobre a literatura. Mas, como era filósofo e não literato, a
sua preocupação se voltava para o campo da filosofia e seu objetivo era
alcançar a verdade das coisas. Daí os comentários dele sobre a literatura,
que nessa época não recebia esse nome mas o nome de poesia, se orga-
nizava em torno de um interesse não literário. Na verdade, ele nunca criou
uma teoria sistemática da literatura. Nos muitos dos seus Diálogos encon-
tramos afirmações a respeito da arte e da poesia que servem de reflexão,
ainda que para serem refutadas, até hoje. Para Platão, a verdade devia ser
o destino para onde convergiam todos os interesses do homem. Mas aí ele
se defrontava com um problema não pequeno diante da literatura que, não
sendo filosofia, não estava interessada na verdade nem na metafísica nem
no sentido transcendental das coisas.
Ora, para Platão, a verdade estava fora do mundo aparente. A verdade
estava nas idéias e tudo o que aparecia aos sentidos, ou seja, todo o mundo
do fenômeno era um mundo de aparência e, se era aparente, não era ver-
dadeiro. Se não era verdadeiro, era falso. Aqui temos um problema sério.
É que Platão criou imaginariamente um Estado ideal, a república, quer
dizer, a coisa pública, do povo. Para que o Estado funcionasse direito era
necessário que nele tudo se orientasse pela verdade. Então qualquer coisa
que escapasse a esse interesse devia ser banida da República sob pena de
este Estado desmoronar política, administrativa e socialmente. Ele mesmo
considerava esse Estado tão perfeito quanto possível. E, para resguardar
essa perfeição, determinou que não se admitisse nele a poesia puramente
imitativa, sentenciando que “nunca se deve dar acolhida a essa espécie de
poesia” (PLATÃO, p. 270). A parte puramente imitativa da poesia era aquela
que não se voltava para pelo menos um dos interesses do Estado como o
louvor aos deuses, a honraria aos heróis ou a homenagem aos generais, aos
homens valentes que defendiam o Estado. A poesia imitativa era, assim,
aquela que se ocupava da criação, do trabalho de linguagem como uma
forma de contar histórias, de recuperar as lendas, de atualizar os mitos
imaginários com o fim apenas de deleitar o leitor ou o ouvinte. A esse tipo
de poesia Platão se dirigia com um ímpeto nocivo. Dizia ele: “A mim me
parece que esse gênero de poesia é veneno para os que o ouvem, se não
estiverem munidos de seu antídoto, que consiste em dar o justo valor a
tais coisas” (PLATÃO, p. 271). O “justo valor” era considerar essa poesia
como bela, sim, mas sem perder de vista que era perigosa por não tratar
de fatos reais, verdadeiros. Em Platão, o caráter imitativo da arte a coloca
num lugar desfavorável, se comparada aos ideais do Estado:

37
Teoria da Literatura I

[...] toda a arte imitativa, por um lado está muito afastada da verdade
em tudo que tem por seu objeto e por outro, a parte de nós mesmos
com que ela se une em relação de amizade está muito distanciada da
sabedoria e nada se propõe de verdadeiro e sólido. [...] A imitação
é, portanto, má em si, une-se ao que há de mal em nós e só pode
produzir maus efeitos (PLATÃO, p. 279-280).

Para Platão, a literatura está afastada da verdade em três níveis, e explica


essa distância tomando o exemplo da cama. Vejamos como ele pensa esse
caso. A verdade da cama está na idéia de cama. De posse dessa idéia, o
carpinteiro toma a madeira e vai moldando suas formas de acordo com o
pensamento que tem em mente. Não importa que seja redonda, quadrada
ou retangular. Trata-se de uma cama, e de uma cama em segundo estágio,
segundo nível, pois a cama propriamente dita, isto é, a cama em sua essência
está na idéia, feita por Deus. O pintor que reproduz a cama imita camas
feitas pelo carpinteiro e aí fica esclarecido o afastamento, em três níveis,
da arte em relação à verdade. Fazendo um resumo, lemos: existe a idéia do
leito, que é sua essência; portanto, primeiro nível. Existe o leito feito pelo
carpinteiro, que é apenas um leito aparente, um leito de segundo grau, e
existe o leito trabalhado pelo pintor, que é artista. Esse último leito já é
uma imitação em terceiro grau . Com isso fica justificada platonicamente
a tese do distanciamento em três níveis. O carpinteiro é um artífice que
traz para o mundo aparente o que se encontra no mundo transcendente.
O pintor ao reproduzir o feito do artífice, torna-se apenas um imitador.
Diz ele: “Quem compõe tragédias na sua qualidade de imitador, está três
graus afastado do rei e da verdade” (PLATÃO, p. 274). Estar afastado do
rei significa estar afastado do que é certo, perfeito; é estar afastado daquele
que contempla a verdade em si mesma e a verdade na essência das coisas.
No afã de demonstrar a veracidade de sua idéia, Platão pergunta se Homero,
por acaso, já levou adiante uma guerra ou pelo menos já a orientou a partir
de seus conselhos. E resumindo a natureza do trabalho do poeta afirma:
“Todos os poetas [...] são imitadores de fantasmas e jamais chegam à
realidade” (PLATÃO, p. 277). Esse comentário não é um desrespeito a
Homero ou à poesia. Platão reconhecia o valor de ambos. O problema se
colocava quando não havia precaução contra os malefícios que ela podia
trazer pela sedução, pelo fascínio que exercia sobre os leitores. A respeito
dessa competência do poeta ele diz:

Assim o poeta, sem outro talento que o de imitar, mediante certa


colocação de palavras e expressões figuradas, sabe tão bem dar a cada
parte as cores que lhe pertencem que, ou fale do ofício de sapateiro
ou trate de guerra e outros temas quaisquer, seu discurso ajudado pela
medida, pelo número e pela harmonia persuade aos que o ouvem e
só julgam pelos versos de que se acha perfeitamente instruído nas

38
A visão platônica sobre a literatura Aula 3
coisas tratadas. Tão grande e poderoso é, por natureza, o prestígio da
poesia! Pois acho que sabes o que são os versos dos poetas quando se
lhes tira o colorido que lhes empresta a música” (PLATÃO, p. 277).

No livro (ou diálogo) Fedro, Platão diz que o poeta não deve ser sub-
metido à censura. Esse juízo aparentemente favorável nada tem de defesa
ou de valorização estética. Ele decorre do fato de Platão achar que o poeta
se deixa levar pela emoção, pelo imaginativo. A censura deve ser evitada
porque ele é alguém que se entrega aos impulsos íntimos, tornando-se um
possesso no momento de proferir a palavra divina. No diálogo Íon, o poeta
aparece como um rapsodo inspirado por Deus e falando ao povo. O próprio Ver glossário no
Íon, personagem central do diálogo, é um rapsodo que recita versos de final da Aula
poetas reconhecidos, fazendo alguns acréscimos e modificações por conta
própria. Essa inspiração na verdade é vista como o estado de possessão
em que o rapsodo é colocado, portanto, ele não é alguém que esteja no uso
da razão. Nem por isso deixa de influenciar seus ouvintes com suas con-

39
Teoria da Literatura I

struções imaginativas, daí a sua desonestidade. Para que a poesia pudesse


ser admitida na República era necessário que o artista tivesse consciência
do que estava imitando e demonstrasse interesse nas coisas da realidade
objetiva, mas a beleza que exibe em sua obra está calcada numa fantasia,
por isso nada tem de real. Como na República tudo deve estar organizado
a partir da verdade, a poesia deve se voltar para os hinos aos deuses, e para
a homenagem aos homens de destaque porque assim ela estará prestando
um serviço útil e contribuindo para a formação do caráter do cidadão.

Nesse modo de ver as coisas, caso se admita a entrada do espírito


lânguido e emotivo da poesia lírica ou mesmo o espírito simplesmente
imitativo da épica se estará abrindo mão da razão e da ordem que são os
melhores conselheiros para o bem comum, e o resultado desta concessão
será a presença do prazer mas também da dor e do desregramento no Es-
tado. Tal prioridade dos interesses do Estado em detrimento da descarga
emocional das pessoas visava também à preservação do indivíduo, embora
este fosse considerado menor que o Estado. No Livro II, Platão já havia
afirmado que “o Estado é maior que o homem”, pois a causa da existência
do Estado é “a impossibilidade de cada indivíduo bastar-se a si mesmo”
(PLATÃO, p. 47), por isso, o Estado são “muitos homens com o propósito
de se servirem uns dos outros” (PLATÃO, p. 47). E nessa tarefa de serviço
mútuo estão suas ações que precisam ganhar sentido na lógica de funciona-
mento da sociedade e, como a sociedade não é algo abstrato, mas engajada
nos vários setores que a compõem – como a política, a administração, a
religião, os costumes – tudo o que aparece nela deve prever e preservar
a boa ordem de sua continuidade. A poesia, isto é, a literatura, como um
fenômeno social, não fica excluída dessa exigência. E se é feita a partir do
meramente imitativo sem outra finalidade que o gozo de sua fruição, ela não
pode ser admitida como algo bom na República pelo perigo que representa
à manutenção da ordem e dos ideais do Estado.

40
A visão platônica sobre a literatura Aula 3
Platão passou pela experiência do fracasso político de sua cidade,
quando, ainda moço, viu a derrota de Atenas. Achou que essa derrota se
deveu à democracia e, assim, defendeu a idéia de que a cidade devia ser
governada por uma aristocracia intelectual, daí ter afirmado que “Os sábios
deverão dirigir e governar, e os ignorantes deverão segui-los”.

CONCLUSÃO
Como vimos, o principal lugar em que Platão trata da literatura é o Livro X
d’A República. Livro esse em que ele vai traçar também as normas que devem
reger a sociedade. Vimos também que Platão não chega a ser propriamente
um teórico da literatura, já que as referências que ele lhe faz são todas voltadas
para o melhor funcionamento da sociedade. A literatura não é vista por ela
mesma, mas apenas como um artefato social que pode ter ou não serventia
política na ordem do Estado, a depender de suas condições. A valorização
que ela poderia receber na República vem de critérios extraliterários, critérios
que nada têm a ver com a linguagem ou a arte.
Mas não é só dessa vertente que vêm as restrições à poesia, é também
de um posicionamento epistemológico pelo qual a verdadeira realidade está
na idéia do objeto e nunca no próprio objeto enquanto manifestação de um
fenômeno na realidade empírica. Daí a poesia ter sido relegada à condição
de falsidade. Em síntese, podemos dizer que em Platão, a literatura enquanto
tal não foi o alvo de suas considerações. Ela aí aparece apenas como um
dado da realidade o qual, sob certas condições, pode obter um valor social,
mas todas as condições levadas em conta são extraliterárias.

RESUMO
- Platão foi o primeiro pensador de que se tem notícia a tratar da literatura,
mas o seu interesse é a política, que mantém a ordem na organização do
Estado.
- A República é o Estado, e o pensamento de Platão é uma apreciação ética,
quer dizer, voltada para os costumes e os valores da sociedade organizada.
- O Estado é um modo de funcionamento da sociedade. O Estado, diz
ele, são “muitos homens com o propósito de se servirem uns dos outros.”
- A poesia apenas voltada para si mesma é prejudicial, pois além de não
contribuir para a ordem do Estado, favorece a corrupção dos costumes.
- No Íon, Platão diz que o rapsodo não deve ser levado a sério nem tam-
bém ser censurado, pois nesse momento ele está possuído por um espírito.
- A verdade está no campo das idéias. Só essa verdade é perfeita, pois é
criação divina. Tudo o mais é imitação e, portanto, está distanciado dela,
não pertence à sua essência.

41
Teoria da Literatura I

- Na República, a poesia – como uma simples imitação – aparece como um


feito humano afastado da verdade em três graus ou níveis.
- Para Platão, todos os poetas são imitadores de fantasmas e jamais chegam
à realidade.
- A literatura em Platão é tomada apenas do ponto de vista ético e político-
filosófico. O seu valor consiste não em ter uma razão própria de ser, mas em
poder servir à sociedade. Assim, todo o valor da literatura vem de elementos
externos a ela e não dos seus próprios constituintes.

ATIVIDADES

Retome o desenvolvimento desta aula e destaque dele 10 idéias que você


considera importantes para o aprendizado do seu conteúdo. Faça em forma
de tópicos como você vê no “Resumo”, mas não utilize esse resumo. Veja
que ele já foi tirado do desenvolvimento. Ao elaborar cada tópico procure
usar suas palavras.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Como essa atividade é clara por si mesma, dispensa maiores explicações.

REFERÊNCIAS

GARCIA-ROZA, Luís Alfredo. Palavra e verdade: na filosofia antiga e


na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
PLATÃO. A República. São Paulo: Hemus, s.d.
WILLIAM JR., K. Wimsatt; BROOKS, Cleanth. Crítica literária: breve
história. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1971.

GLÓSSARIO
Rapsodo: Era o poeta ou decla-mador que saía de cidade em cidade
recitando partes de poemas épicos de outros poetas reconhecidos e
famosos, mas principalmente dos poemas de Homero.

Íon: “Diálogo” de Platão que trata da conversa entre Sócrates e Íon


sobre a poesia (ou rapsódia).

Lânguido: Fraco, debilitado.

Fedro: É um dos diálogos de Platão onde Sócrates e Fedro discutem


questões relativas ao amor e à beleza.

42
Aula 4

PERSPECTIVAS NEOPLATÔNICAS
DA LITERATURA
META
Mostrar a continuidade da concepção platônica ao longo das teorias literárias e sua
influência até os nossos dias.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
- Listar os aspectos linguisticos em que se baseavam as pesquisas do retóricos
alexandrinos;
- Identificar a concepção didática de Horácio e seus desdobramentos para o social;
- Distinguir os traços estilísticos que deveriam conter o texto literário, segundo a concepção
de Longino.

PRÉ-REQUISITOS
A aula 3, que corresponde às ideias de Platão sobre a literatura.

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

Caro aluno, acabamos de ver que o ponto de vista de Platão sobre a


literatura é exclusivamente utilitário. Se tal possi-bilidade estiver excluída,
é a literatura que é refutada. Essa visão pragmática teve vários adeptos e
não será incorreto dizer que ainda hoje encontramos quem a defenda. Mas
vamos tomar o tempo próximo a Platão, para ver desde lá alguns dos de-
fensores de sua tese. Esses são os chamados seguidores de Platão, aqueles
que deram continuidade ao seu pensamento. Vários foram esses nomes, mas
alguns tiveram mais destaque porque legaram uma concepção de literatura
que trazia idéias não explícitas em Platão, embora os fundamentos fossem
os mesmos. A título de exemplo, podemos citar os helenistas-alexandrinos,
Horácio, Longino, Sainte-Beuve, Hipólito Taine, entre vários outros.

RETÓRICOS ALEXANDRINOS

Esses estudiosos às vezes são chamados de helenistas-alexandrinos,


Ver glossário no e essa denominação se deve ao seguinte: o nome “helenista” indica a região
final da Aula da Hélade (Grécia antiga). Historicamente o termo é empregado para indicar
o tempo que vai da morte de Alexandre, no século IV a.C., até a conquista
da Grécia pelos romanos no século II a.C., portanto, compreende um
período de dois séculos.

46
Perspectivas neoplatônicas da literatura Aula 4
Em seus empreendimentos de conquista e de expansão, Alexandre
fundou duas cidades que vieram a se destacar na pesquisa: Pérgamo e Alex-
andria. De modo geral, podemos dizer que os helenistas-alexandrinos não
trouxeram grandes contribuições para a literatura, mas seus pesquisadores
ajudaram – através do trabalho voltado para a linguagem – na recuperação e
no aprimoramento de textos mais antigos. Tratava-se de uma preocupação
filológica com o texto. O aspecto verbal era o que atraía o interesse deles,
de modo que muito antes de os pensadores do século XIX chamarem a
atenção para a palavra e para a frase como segmento básico dos estudos de
literatura, os teóricos alexandrinos já o tinham feito. Podemos dizer então
que em Alexandria tais estudos estavam dedicados à gramática e à retórica.
Esses pesquisadores, que também eram leitores, editores e comentadores dos
escritores antigos como Homero (séc. VIII a. C.), Hesíodo (séc. VIII a. C.),
Píndaro (522 a. C. - 438 a. C.), de modo geral, faziam uma revisão dos textos,
quer na parte gramatical, quer na recuperação da sua originalidade, livrando-
os de acréscimos e de outras interferências que foram sofrendo ao longo do
tempo. Porém, é verdade que os alexandrinos deram uma maior contribuição
aos textos dos poetas que tiveram sua obra publicada em Alexandria do que
aos textos de Homero que foram organizados antes do período alexandrino.
Em Pérgamo, atual Bergama, na Turquia, o interesse dos pesquisadores ia
além da gramática. Eles investigavam os textos, preocupando-se também com
aspectos literários, artísticos e filosóficos, trazendo ao campo da arte uma contri-
buição mais importante do que a contribuição dos pesquisadores de Alexandria.
Um dos estudiosos mais destacados de Pérgamo foi Crates de Malo, que chamou
a atenção para leituras alegóricas e não apenas denotativas da obra de Homero.
O período helenista-alexandrino foi um tempo de muitas realizações
na arte e na ciência. Se esse período não teve o grande destaque do período Ver glossário no
clássico, pode-se dizer que na ciência foi até mais importante. Quem já não final da Aula
ouviu falar na Geometria euclidiana? Pois bem, Euclides foi um professor
de Geometria nascido em Alexandria em torno do ano 300 a.C.

A VISÃO DIDÁTICA DE HORÁCIO

Outro destaque foi Horácio, cujo nome latino era Quintus Horatius
Flaccus. Nascido no século I a.C., era um amante da literatura e um dos
expoentes do pensamento grego. Foi o maior difusor das ideias de Platão
na Europa. Como bom leitor da obra de Platão, recebeu dela as bases para
o pensamento que organizou depois acerca da literatura. Sob a influência
de Platão e de Aristóteles, fez uma reflexão sobre a literatura que é muito
mais a continuação do pensamento do primeiro filósofo do que do segundo.
Apesar de ser um conhecedor de ambos, a temática horaciana da literatura
como instrumento prazeroso de ensino está calcada na visão pragmática,
isto é, utilitária, de Platão.

47
Teoria da Literatura I

Os aspectos técnicos organizacionais da obra já salientados em Aris-


tóteles foram por Horácio interpretados segundo a concepção platônica, de
modo que em sua teoria da literatura não havia lugar para o texto em si. A
sua máxima “ensinar deleitando” o fez pensar em um código de regras que
ensinasse a pessoa a fazer o texto literário de maneira mais eficaz. Como
homem de letras, foi professor de literatura da família Pisão, para quem
escreveu uma carta conhecida como Epístola aos Pisões dedicada ao cônsul
romano Lúcio Pisão e aos seus filhos. Nessa carta, Horácio reúne uma série
de preceitos que orientam o fazer literário. Poderíamos dizer que essa carta
se constitui numa teoria da literatura organizada por ele. Não sem razão,
Quintiliano, no século I d.C., deu-lhe o título de “Arte Poética”. Vejamos
Ver glossário no algumas das lições de Horácio: 1 – o poeta só deve escolher um assunto
final da Aula que tenha condições de desenvolver; 2 – esse assunto deve ser exposto de
forma ordenada de tal modo que o leitor possa compreendê-lo; 3 – durante
a exposição, as ideias devem ser claras e objetivas; 4 – os assuntos que vão
ser tratados devem passar por uma seleção para evitar repetição enfadonha
e comprometedora da satisfação durante a leitura; 5 – a linguagem deve ser
correta e elegante. Como se vê, o pensamento de Horácio não demonstra
uma preocupação em tratar a natureza da obra, não demonstra interesse
em refletir sobre o ser da literatura. A carta é um somatório de regras téc-
nicas que visam à composição do texto poético.
O enfoque sobre as partes constituintes do texto remetem à Poética
de Aristóteles, entretanto, toda a orientação tem em vista fazer da literatura
sempre um texto capaz de transmitir conhecimento, capaz de ensinar e ao
mesmo tempo dar prazer. Com isso Horácio remete o texto literariomais
para o carater político do que para o carater criativo. Daí se poder dizer
que, embora tomando Aristóteles em vários aspectos da organização da
obra, sua concepção geral colocava a literatura como instrumento de ensino,
o que se encaixa na visão utilitária já presente em Platão. Para Horácio, a
literatura era apenas um gênero textual que continha uma temática exposta
de modo lógico e objetivo, em linguagem clara e elegante, fato que coloca
a literatura mais do lado da retórica do que da poetica. Se considerarmos
a teoria da literatura que conhecemos hoje, podemos dizer que Horácio
foi apenas um professor de produção de texto para assuntos de poesia.
Qualquer tema, desde que dominado pelo poeta e tratado de acordo com
seus interesses, poderia ser considerado literatura.
A mistura de ideias que Horácio fez entre Platão e Aristóteles, com
prejuízo para a essência do pensamento aristotélico, contribuiu para que
este último não fosse alvo do devido interesse, quando os humanistas do
Renascimento o retomaram em seus estudos. Aristóteles estava de tal modo
conhecido através da leitura de Horácio – até poderíamos dizer, confundido
com ele – , que não recebeu uma atenção maior dos novos pesquisadores no
momento em que poderia ter recuperado a originalidade do seu pensamento.

48
Perspectivas neoplatônicas da literatura Aula 4
A visão de Horácio acerca da literatura, ou seja, a visão da literatura com
finalidade didática foi o suporte para o surgimento de outras concepções
também utilitárias da literatura. É o que ocorre com a literatura moralista,
que busca difundir ideias morais e religiosas como ocorre com José de
Anchieta em seus poemas catequéticos; a literatura de auto-ajuda, que Ver glossário no
pretende orientar em atos de conduta; a literatura de formação espiritualista, final da Aula
que procura transmitir valores éticos vinculados à dimensão espiritual, a
exemplo de Zíbia Gaspareto; a literatura politizada comprometida com
o engajamento social e político, costumeiramente chamada de “literatura
engajada”, que vai nos caminhos de Sartre; a literatura filosófica de fundo
ficcional e informativo de Jostein Gaarder etc.

O PSICOLOGISMO DE LONGINO

Depois de muitos anos orientados pela visão prática e didática de Horá-


cio, um vento novo começa a soprar sem que venha a ofuscar a penetração
dos preceitos dele. São as ideias de Longino (séc. III d. C.), um grego de cuja
história não se tem muita certeza. Há inclusive quem se refira a ele como
o pseudo-Longino. A ele é atribuída a obra Do sublime na qual surge uma
outra concepção de literatura. Ao se falar em “sublime”, somos levados a
um aspecto diferente do que se conhecia até então nos estudos de literatura:
é a dimensão psicológica, é a consideração dos valores afetivos implicados
na poesia, decorrentes não apenas das condições emotivas do autor, mas
também das condições emotivas que a obra deve suscitar no leitor.
Essa novidade, contudo, não acrescentava muito ao que já acontecia
na esteira do pensamento de Platão à medida que a tônica deste filósofo
estava em justificar a literatura por fatores extraliterários como sociedade,
política e religião. Agora a literatura está sendo vista pelo prisma das ha-
bilidades psíquicas nas quais o autor e o leitor estão sendo levados em
consideração. Longino vincula a psicologia do autor – principalmente suas
aptidões para criar um clima envolvente e atrair o leitor promovendo uma
atmosfera semelhante ao que ele pretende – à qualidade da obra. Mais uma
vez a literatura encontra-se à mercê de causas estranhas à sua condição de
linguagem. A obra é avaliada pelo tipo de ideias expostas e pelos desdobra-
mentos afetivos que essas ideias geram no leitor; pelo aspecto importante
do assunto abordado; e, finalmente, pelas emoções e enlevos provocados
na leitura. No autor é destacada, como valor indispensável, a capacidade
de ter ideias suficientemente fortes para comover; a capacidade emocional
e intelectual de mergulhar na situação que narra ou descreve; a habilidade
para traduzir as ideias com emoção; a competência para elaborar um texto
elegante, correto, belo, atraente e, assim, ser um texto de valor; a capacidade
para elaborar linguagem figurada num estilo dinâmico e comovente. Para
Longino, toda obra deve ser organizada de tal forma que produza emoções

49
Teoria da Literatura I

fortes e boas no leitor e, nesse resultado, está a sua condição sublime. Então,
o objetivo da literatura é emocionar, empolgar, enlevar.

OUTROS NOMES
Um terceiro nome é Sainte-Beuve (Charles Augustin de Sainte-Beuve)
que viveu no século XIX. Sainte-Beuve dirigiu seu interesse para as relações
entre a obra e o sujeito que a produziu. A importância que deu a essa relação
era tão forte que, segundo ele, para se compreender a obra é necessário
conhecer antes a vida do autor. Pode-se considerar nele uma certa preo-
cupação com a cientificidade dos estudos críticos, mas é verdade também
que nesses estudos nada remetia ao cerne do literário.
O mesmo vai acontecer com Hyppólito Taine, também um pensador
Ver glossário no do século XIX, que pautou seus estudos de literatura nas ideias positiv-
final da Aula istas. Ele tentou compreender a obra a partir das condições do meio, do
momento e da raça. Enquanto Sainte-Beuve se volta para o artista e suas
circunstâncias pessoais, Taine tem um olhar mais abrangente, situando-o
em sua raça e nas circunstâncias da sociedade em que vive.
Outros pesquisadores continuaram o pensamento de Platão; não o
pensamento literal, mas a base do que o norteou, que era considerar a
arte não em sua dimensão ontológica, mas em seu uso para os interesses
político-sociais, portanto, não literários.
Só com a chegada dos estudos sobre estética formulados por Kant,
Hegel, e outros mais é que a teoria aristotélica da literatura veio a ser com-
preendida e valorizada.

CONCLUSÃO

O pensamento de Platão, vindo do século IV a.C., espalhou-se pelo


ocidente e chegou até nós. Portanto, não é algo do passado, mas do presente
através das várias linhas de pensamento que veem a literatura como um
dado social – que realmente é – mas que só se justifica pela aplicação de
suas representações à sociedade. Será que essa visão existe entre nós apenas
porque Platão a formulou? Não. Tanto Platão como os demais pensadores
posteriores deixaram-se levar pelo mais simples e pelo mais evidente da
literatura como lugar de uma história, ou como lugar de expressão de um
sentimento. Em suas concepções teóricas, deixaram-se levar pelo uso da
literatura nas atividades políticas, religiosas ou educativas. Tomaram um uso
possível das obras como a razão de ser da literatura. E não podemos dizer
que era cedo para que os antigos se dessem conta do aspecto literário das
obras independentemente da utilização que pudesse ser feita dela.
Aristóteles, como vamos ver na próxima aula, já tinha chamado a aten-
ção para as condições literárias da poesia (da literatura). Se suas ideias não
vingaram foi porque, dentre outros fatores, elas se reportavam ao interior do

50
Perspectivas neoplatônicas da literatura Aula 4
texto poético e não para as significações mais fáceis de serem apreendidas,
ou seja, aquelas que apresentavam a literatura como um espelho da vida, que
poderiam ser utilizadas em finalidades práticas da própria vida. Embora, no
século XX, essa especularidade tenha sido revelada como falsa, aos olhos
do leigo nos estudos literários ela ainda é fonte de equivocos ainda hoje. Ver glossário no
Juntando essa “semelhança” da literatura com a vida e o fato de que ela é final da Aula
fonte de conhecimento, não é difícil compreender a insistência de alguns
em sua função utilitária.

RESUMO

• Os retóricos alexandrinos procuravam estudar no texto literário os fenô-


menos linguísticos que o caracterizavam. Em muitos casos corrigiam esses
textos gramaticalmente e retiravam deles acréscimos que alguns tradutores
lhe tinham feito em trabalhos anteriores. Pode-se dizer que o trabalho dos
alexandrinos foi mais de ordem filológica e retórica do que de ordem estética.
• Já os pesquisadores de Pérgamo, em suas pesquisas, foram além do caráter
gramatical e retórico dos textos. Eles se voltaram também para os aspectos
literário, artístico e filosófico e, com isso, sua contribuição para os estudos
literários foi maior do que a dos alexandrinos.
• A base do pensamento de Horácio (séc. I a. C.) era a ideia de que o papel
da literatura era ensinar, transmitir conhecimento e, já que ela se faz pela
linguagem com seus recursos de encantamento poético e retórico, pode
prestar esse serviço de maneira agradável. Por isso sua tese maior é: “En-
sinar deleitando” (Docere cum delectare).
• Horácio em suas regras de orientação sobre a organização da obra literária
tomou várias ideias de Aristóteles, mas não desenvolveu seu pensamento a
partir delas. Pelo contrário, manteve-se na linha de Platão ao explicar a literatura
através do seu uso prático no social. Dessa forma ele prejudicou a divulgação do
verdadeiro Aristóteles, que ficou recolhida até chegarem os estudos de estética
com Kant e logo depois Hegel (1770-1831). Outros se seguiram.
• A Longino (séc. III d. C.) é atribuída a obra Do sublime. Nela o valor da
literatura está no potencial do texto para emocionar e enlevar o leitor. Do
lado do escritor, as qualidades louváveis estão em sua capacidade de ter
ideias suficientemente fortes para comover e em sua capacidade de elaborar
um texto elegante, correto e com uma temática voltada para o importante,
o grandioso, para o sublime.
• Em Longino, toda obra deve ser feita com a competência necessária para
emocionar. É a justificativa da obra pela via da psicologia humana. Ou a
obra produz efeitos emotivos fortes ou é desprovida de qualidade por lhe
faltarem uma dos condições importantes do sublime.

51
Teoria da Literatura I

ATIVIDADES

Com essa aula, mesmo tratando-se de continuadores das ideias de


Platão, ficamos diante de posições teóricas diferentes sobre a literatura. A
três delas foi dado um destaque maior: a dos alexandrinos, a de Horácio
e a de Longino. Faça uma tabela com três colunas, dedicando uma coluna
para cada um dos pensadores e relacione, paralelamente, cinco pontos de
diferença entre eles que você considera importantes para ter segurança
sobre as particularidades do pensamento de cada um.
Faça esse trabalho com bastante cuidado, porque ele será muito im-
portante para a tarefa da próxima aula.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Lembre-se de que os trabalhos dos alexandrinos não se ocupavam da


estética; que Horácio apoia-se tamtém em conceitos aristotélicos mas
teve como pano de fundo de seu pensamento as ideias de Platão; e
que Longino defendia a ideia de que a literatura devia emocionar o
leitor através dos recursos estilísticos.

PRÓXIMA AULA

Mais adiante, você conhecerá a concepção de Aristóteles sobre a lit-


eratura.

REFERÊNCIAS

AMORA, Antônio Soares. Introdução à teoria da literatura. São Paulo,


Cultrix, 1994.
GONÇALVES, Magaly Trindade, BELLODI, Zina C. Teoria da literatura
“revisitada”. 2. Ed, Petrópolis: Vozes, 2005.
WILLIAM JR., K. Wimsatt; BROOKS, Cleanth. Crítica literária: breve
história. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1971.

52
Perspectivas neoplatônicas da literatura Aula 4
GLÓSSARIO

Horácio: Poeta romano do século I a.C. Escreveu a


Arte Poética (Epístola aos Pisões). Juntamente com A
Poética de Aristóteles, foi considerada uma das principais
referências da teoria da literatura até o Renascimento.

Período helenista: É considerado como o momento de transição entre o


apogeu da cultura grega, o período clássico, e a implantação da cultura
romana. Este é o período compreendido entre a morte de Alexandre
(século IV a.C.) e a tomada da Grécia pelos romanos (século II a.C.).
O helenismo: é a difusão cultural do pensamento grego em regiões
fora da grécia. Essa cultura grega se manifestava nas artes, na literatura,
na política, na filosofia, entre outras coisas.

Período clássico: O período clássico grego é compreendido entre os


séculos VI e IV a.C. É a época em que se desenvolve o imperialismo,
primeiramente de Atenas, depois de Esparta e, por último, de Tebas.
O século V a.C. foi considerado o “Século de Ouro” ou “Século
de Péricles”, principalmente em Atenas. Foi a época gloriosa da
democracia. Paradoxalmente, esse século foi vivido com muitas
guerras que acabaram destruindo sucessivamente o imperialismo das
três cidades.

Quintiliano: Professor de oratória, nascido na Espanha,


no século I d.C.. Escreveu o livro mais importante
de retórica da antiguidade greco-romana: Instituição
oratória. Essa obra teve uma grande repercussão na Idade
Média e no Renascimento, juntamente com A poética de
Aristóteles e a Arte poética de Horácio.

José de Anchieta: O mais importante dos jesuítas que


estiveram no Brasil, Anchieta (1534-1597) nasceu em
Tenerife, Ilhas Canárias. Ingressou na Companhia de
Jesus em 1551. Veio para o Brasil em 1553, na comitiva
de Duarte da Costa. Escreveu Arte da gramática da
língua mais usada na costa do Brasil, primeira gramática
da língua tupi-guarani.

53
Teoria da Literatura I

Zíbia Gaspareto: Escritora espírita, autora de diversos livros


psicografados. Seus romances têm obtido grande sucesso
de vendas. Publicou Sem Medo de Viver, Laços Eternos,
Quando a Vida Escolhe e A Verdade de Cada Um.

Jean-Paul Sartre: Novelista e teatrólogo francês


(1905-1980). Maior intelectual do Existencialismo,
filosofia que proclama a total liberdade do ser humano.
Publicou O Ser e o Nada (1943) e O existencialismo é
um Humanismo (1946). Em 1964, foi premiado com o
Nobel de literatura, mas recusou o prêmio.

Jostein Gaarder: Filósofo e escritor norueguês (1952).


Consagrou-se internacionalmente com a publicação de
O mundo de Sofia (1991).

Hyppólito Taine: Historiador francês (1828-1873).


Considerado o maior positivista francês, depois de
Comte. Publicou De l’intelligence, entre vários outros
livros.

Hegel: Filósofo alemão (1770- 1831). Dedicou estudos


também à estética. Para ele, o objetivo da arte é utilizar a
força criadora do espírito; é também revelar a verdade de
modo sensível. Hegel classifica o Belo de duas formas:
o “belo natural” e o “belo artístico”. O belo artístico
é o resultado de uma elaboração do espírito, por isso
está relacionado com a verdade, que só pode ser obtida através do
espírito. Essa é a razão pela qual ele considera o belo artístico mais
importante do que o belo natural, que depende das condições de
ânimo do observador.

Especularidade: Refere-se a especular, que por sua vez diz respeito a


espelho, que tem a capacidade de refletir a imagem.

54
Aula 5

A CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA
DA LITERATURA
META
Mostrar a virada teórica do pensamento aristotélico em relação ao pensamento de Platão,
bem como seus efeitos sobre a compreensão da literatura como texto autônomo.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
- Identificar a visão aristotélica da literatura e seu posicionamento oposto ao de Platão;
- Reconhecer as bases aristotélicas para a compreensão da literatura como um fenômeno
em si.

PRÉ-REQUISITOS
A aula 5, que transmite o conceito de literatura segundo Platão.

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

Está na hora de darmos o salto da concepção platônica para a concep-


ção aristotélica da literatura. Então vamos começar.
Aristóteles é o autor das duas principais obras da Antiguidade que
Ver glossário no trataram do texto escrito: a Retórica e a Poética. Na primeira, ele apresenta
final da Aula as características que devem estar contidas no texto que pretende persuadir,
convencer e agradar. São as questões relativas à oratória. Na segunda, ele
lança as bases para uma nova visão sobre a literatura. Na verdade, o que
ele fez com as obras literárias foi analisar e revelar as partes que as consti-
tuíam, verificando a maneira como funcionavam no conjunto da obra. Esse
posicionamento o conduziu a uma abordagem ontológica que até então a
literatura não conhecia: uma abordagem sobre o ser da literatura. Tal foi
sua consciência sobre esse estudo que abriu a Poética afirmando: “Falemos
da poesia, – dela mesma e das suas espécies, da efetividade de cada uma
delas, da composição que se deve dar aos mitos...” (ARISTÓTELES, p.
68). A expressão enfática “dela mesma” demonstra a preocupação com
os elementos intrínsecos da poesia, que era o nome com que se tratava a
literatura. A sua visão sobre o texto literário inverte o encaminhamento de
Platão. Nesta nova ótica, a poesia, entenda-se, a literatura, começa a ganhar
um lugar novo. O paradigma, ou seja, o modelo platônico da diferença
entre essência e aparência já não tem validade, uma vez que agora a literatura
vai encontrar seu ser e sua razão de ser, quer dizer, sua justificativa como
produção humana nos próprios elementos que a constituem.

56
A concepção aristotélica da literatura Aula 5
CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA

Os gregos levam em consideração quatro gêneros de escrita: a retórica,


a poesia, a filosofia e a história. Na poesia – que corresponde ao que nós
chamamos hoje de literatura – estão incluídas as formas narrativas e dramáti-
cas. A poesia ganha em Aristóteles um estatuto próprio, e tem na Poética a sua
teoria, que é diferente da teoria da oratória, da eloqüência, isto é, a retórica.
Na Poética, Aristóteles trata da natureza da poesia, dos gêneros literários e Ver glossário no
final da Aula
da linguagem em que o texto está elaborado. Como você está percebendo,
os valores literários aristotélicos não confirmam a leitura que Horácio fez
da Poética, o que demonstra que a difusão do pensamento de Aristóteles
entre os romanos e entre os pensadores da Idade Média foi baseado em
uma deturpação feita por Horácio com sua preocupação didática e outros
mais como Cícero e Quintiliano, os quais, como bons retóricos romanos,
produziram regras sobre o bem escrever.
Ao contrário, Aristóteles nunca criou normas. Ele procurou ver em que
consistia o fenômeno literário, por isso foi descritivo em vez de normativo.
Afinal de contas, “De que é feita a literatura?”, “Como é feita a literatura?”
são perguntas básicas para se compreender sua Poética.
Rejeitando a ideia de falsidade, inutilidade ou nocividade da literatura,
Aristóteles toma as obras a partir da descrição de seus constituintes, como
já dissemos, e é deles que ela vai receber seu valor. Para ele, as formas da
literatura grega: a épica e a dramaturgia (tanto no âmbito da tragédia como
no âmbito da comédia) dependiam da mimese, da imitação, e diferenciava
cada uma a partir de três condições: o objeto imitado, o modo como se
dava a imitação e o meio de imitação.
A Poética é um estudo especial da epopeia e principalmente da tragédia:
um texto dramático que imita os homens de valor. O enredo é posto como
a parte principal da tragédia e se faz em torno de alguém cuja conduta é
moralmente louvável ainda que vá levar a um desfecho trágico. Um drama-
turgo famoso da Grécia foi Sófocles. Ele escreveu uma peça não menos
famosa: Édipo Rei. Como o título do texto já está indicando, Édipo é alguém
de linhagem nobre, mas também de atitudes nobres, o que o coloca como
uma figura compatível com as exigências da tragédia quanto à organização
da história.
Sobre a questão das diferenças e semelhanças entre os textos, podemos
dizer que a tragédia é diferente da comédia se se considera o objeto imitado
– os homens: a primeira considera os homens de grande valor, e a segunda,
os homens comuns. Mas esta mesma tragédia é semelhante à epopéia se
tomamos o modo de imitação: as duas se voltam para homens e feitos
heróicos. Se consideramos agora a comédia e a poesia satírica, vemos que
pelo modo como imitam as coisas são semelhantes, pois ambas procuram
ridicularizar pessoas e acontecimentos.

57
Teoria da Literatura I

No que diz respeito à organização da história, a obra é feita de tal forma


que se torna convincente e atraente para o ouvinte ou o espectador. O poeta
considera o possível e o necessário, ou seja, tudo se enquadra no provável,
no verossímil e no necessário; nada supérfluo ou dispensável constatado
no texto. É dentro do universo dessas condições que a verdade poética é
reconhecida e valorizada. Acrescente-se a isso, o fato de Aristóteles não
levar em conta a distinção entre realidade essencial e realidade existencial,
realidade verdadeira e realidade aparente e o resultado é que, nessa linha de
pensamento, a verdade nunca vai ser procurada fora da obra. Pelo contrário,
o que está presente na obra é o que é levado em consideração na busca
de sua verdade. Assim, na literatura, a verdade é sempre reflexiva, fala de
si mesma, porque ela se organiza a partir das condições em que o texto
foi constituído e, nessa constituição, estão em jogo valores universais da
realidade humana e não, fatores particulares da vida individual de alguém.
Mas como o tema da aula de hoje está interessado numa visão global
do pensamento de Aristóteles, vamos ver agora um pouco mais do que ele
diz sobre a tragédia. Deixemos a ele a palavra:

[A tragédia] é imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de


certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies
de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação
que se efetua], não por narrativa, mas mediante atores, e que,
suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas
emoções. Digo ornamentada a linguagem que tem ritmo, harmonia
e canto, e o servir-se separadamente de cada uma das espécies de
ornamentos significa que algumas partes da tragédia adotam só o
verso, e outras também o canto (ARISTÓTELES, 1966, p. 74).

É importante perceber que na concepção de “imitação de ações de


caráter elevado” está a ideia de ações sérias, praticadas por indivíduos
socialmente destacados, aristocratas ou fidalgos. Assim, o homem médio,
menos ainda o escravo, não protagoniza ações trágicas. Essa ideia só foi
superada com a chegada do “drama burguês”, no século XVIII (que valo-
rizou o novo homem produzido pela revolução industrial), e com a chegada
do Romantismo no século XIX.
O Renascimento acatou a doutrina de Aristóteles, mas introduziu
algumas modificações que geraram um novo tipo de tragédia. Nessa nova
roupagem, a tragédia renascentista continuou a buscar temas na Antigu-
idade e na Idade Média, mas também procurou um modo mais simples
de se fazer. Ao examinarmos a tragédia francesa, vemos uma tendência à
simplicidade, um gosto pelos assuntos psicológicos e uma preferência pelo
tema do amor. Racine, no século XVII, é um exemplo dessa preferência.

58
A concepção aristotélica da literatura Aula 5

Além disso, enquanto a tragédia clássica tratava da luta do herói contra


as forças do destino determinado pelos deuses, a tragédia do século XVII
tratava da luta do indivíduo contra as forças do meio social sintetizadas
em dois pontos: o amor e a honra. Essa luta ganha um rumo até chegar
a um impasse, cuja solução só chega através de desgraças que culminam
com a morte.
De acordo com Aristóteles, a tragédia se compõe de seis partes:
a) Fábula – é a história; é a imitação de uma ação; é a combinação dos atos
realizados. Os atos e a fábula são a finalidade da tragédia, daí serem também
sua parte mais importante.
b) Elocução – é a fala das personagens em suas várias manifestações: súplica,
ordem, explicação, ameaça, pergunta, resposta etc. Da elocução fazem parte
os fonemas, a sílaba, a frase, os diálogos etc.
Sobre a fábula e a elocução, Aristóteles adverte:

Deve pois o poeta ordenar as fábulas e compor as elocuções das


personagens, tendo-as à vista o mais que for possível, porque desta
sorte, vendo as coisas claramente, como se estivesse presente aos
mesmos sucessos, descobrirá o que convém e não lhe escapará
qualquer eventual contradição (ARISTÓTELES, 1966, p. 87).

c) Caráter – não aparece nas falas proferidas. É percebido quando as per-


sonagens tomam decisões de aceitar ou rejeitar algo.
d) Pensamento – são as ideias originadas no texto. Esses pensamentos dão
valor às coisas ou retiram valor; despertam emoções como piedade, medo,

59
Teoria da Literatura I

raiva; demonstram ou refutam outros pensamentos. O pensamento está


ligado primeiramente à retórica. É a expressão do assunto.
e) Espetáculo – é o desenrolar das cenas. Essa é a parte que tem menos a
ver com a literatura. Sobre ela Aristóteles diz que é o mais emocionante,
mas também é o menos artístico e menos próprio da poesia. Na verdade,
mesmo sem representação e sem atores, pode a tragédia manifestar seus
efeitos; além disso, a realização de um bom espetáculo mais depende do
cenógrafo que do poeta.
f) Canto – é a música, que consiste numa sucessão de sons para gerar uma
sensação agradável ao ouvido. A musicalidade é feita em função da poesia,
quer dizer, da literatura.

Finalmente, devemos dizer que os estudiosos do Renascimento reto-


maram a noção de unidade estética que já existia desde Platão. Baseados no
que já pensavam os primeiros teorizadores, mas principalmente, partindo
de Aristóteles, eles ensinaram que a tragédia obedecia a três unidades:
unidade de tempo, unidade de ação e unidade de lugar. A peça dramática
devia se passar em um espaço definido de tempo: “devia caber dentro de
um espaço de sol”. A fábula devia se realizar com ações completas, com-
pondo um quadro coeso de acontecimentos. Na sucessão dessas ações,
Ver glossário no nenhuma poderia ser dispensável ou passível de ser deslocada para outro
final da Aula ponto da história sob pena de alterar o conjunto da obra. A respeito da
unidade de lugar, eles não emitiram logo uma opinião, porque essa ideia

60
A concepção aristotélica da literatura Aula 5
não aparecia nem em Aristóteles nem em Horácio. Mas aos poucos foram
fazendo deduções a partir das unidades de tempo e de ação. Se o tempo era
contido em um dia e a ação deveria ser concentrada, então tiveram a ideia
de dever haver uma unidade de lugar e este precisaria estar circunscrito a
um certo local ou, no máximo, ao espaço de uma cidade. Estava formada
a regra das três unidades.
A tragédia deixou de ser produzida no século XIX, embora algumas
peças de Ibsen, ou o moderno teatro do absurdo sejam às vezes rotulados
como tragédias.

CONCLUSÃO

Da mesma forma que Platão, Aristóteles também era um filósofo.


Entretanto, na condição de um estudioso das questões da natureza, Aris-
tóteles estava habituado a verificar in loco os fatos para os quais precisava
de explicação. Assim é que diante das obras literárias não foi procurar em
ideias abstratas ou valores éticos a causa da literatura. Antes, penetrou
analiticamente nos textos e deles arrancou os elementos que iam dar base à
sua compreensão de poesia. Nesta atitude, está a novidade aristotélica para
a literatura. A poesia encontrou nele um lugar de reflexão sobre a natureza
do seu ser, suas formas de organização, a matéria de que é feita.
Em Aristóteles temos a literatura sendo tomada a partir de si mesma,
ficando salva da dependência de fatores extraliterários como sociedade,
política e religião. Nesse pensador, a literatura ganha autonomia. Infeliz-
mente sua difusão no mundo romano por meio de Horácio trouxe confusão
com a retórica e, consequentemente, uma perda significativa para os avanços
no estudo da literatura propriamente dita. Esse prejuízo atravessou toda a
Idade Média fazendo-se presente nas ações catequéticas da Igreja católica as
quais ajudavam a disseminar uma concepção pragmática, utilitária da litera-
tura, até que nos séculos XVIII e XIX os estudos filosóficos enveredaram
pela estética e recuperaram a originalidade do estagirita, quando a visão
ética e política de literatura cede lugar à visão estética.

61
Teoria da Literatura I

RESUMO

• Aristóteles é o autor da Poética, obra que trata da natureza da poesia,


e com isso inaugura os estudos ontológicos da literatura, embora depois
tenham ficado obscurecidos pela interpretação didática que Horácio lhes
conferiu. Esse obscurecimento também foi influenciado pela mistura com
a Retórica feita por outros retóricos como Cícero e Quintiliano.
• A poesia (como chamavam os gregos), ou seja, a literatura (como nós
chamamos) tem como base de sua organização a imitação, a mimese.
• Aristóteles recusou-se a ver a literatura como uma farsa, um feito afastado
da verdade. Ele achava que a verdade da poesia vem do próprio texto em
sua constituição de linguagem e de sentido.
• A distinção entre as formas literárias se faz pela verificação do objeto
imitado, do modo como é imitado e do meio de imitação.

ATIVIDADES

Reflita bastante sobre as diferenças fundamentais entre o pensamento


de Aristóteles e o de Platão. A partir dessa reflexão, escreva cinco pares de
oposição entre as teorias dos dois filósofos. Cada par opositivo dever ser
acompanhado de uma explicação que deixe claras as ideias que estão sendo
colocadas por você.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Lembre-se de que para Platão a verdade está no campo das ideias e


que a literatura por ser mera imitação das coisas está afastada do que
é realmente verdadeiro.
No entanto, para Aristóteles, o valor da literatura independe de suas
relações com a sociedade, a política ou a religião. Em sua obra Poética,
dá início a estudos ontológicos da literatura, onde prioriza a ideia de
que a poesia vem do próprio texto, em sua constituição de linguagem
e sentido.

62
A concepção aristotélica da literatura Aula 5

PRÓXIMA AULA

Logo mais lhe serão apresentadas as características que dão especifi-


cidade ao texto literário.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. A poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Porto Alegre:


Globo, 1966a.
_______. Arte retórica e arte poética. Tradução de Antônio Pinto de
Carvalho. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d.
GONÇALVES, Magaly Trindade, BELLODI, Zina C. Teoria da literatura
“revisitada”. 2. Ed, Petrópolis: Vozes, 2005.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 1998.
_______. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.

GLÓSSARIO

Retórica: Teoria da arte de usar a linguagem correta, clara, elegante e


com capacidade de convencer ou influenciar.

Paradigma: Modelo.

Oratória: Arte de falar. Antigamente estava unida à Retórica, mas


sempre houve uma distinção entre ambas que pode ser explicada
da seguinte maneira: a Retórica é a teoria sobre como fazer o bom
discurso; a Oratória já é a prática do discurso.

Aristóteles: Filósofo grego (384-322 a. C.). Aluno de Platão


e professor de Alexandre, o Grande, é considerado um
dos maiores pensadores de todos os tempos e criador do
pensamento lógico. É considerado por muitos o filósofo
que mais influenciou o pensamento ocidental.

Mimese: Iimitação.Em Aristóteles essa imitação trazia consigo a visão


particular do criador; não era simples reprodução.

63
Teoria da Literatura I

Sófocles: Dramaturgo grego (496 a 405 a.C.). Considerado


o continuador da obra de Ésquilo, concentrava em suas
tragédias a ação em um só personagem, destacando o
seu caráter e os traços de sua personalidade. Escreveu
Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona.

Racine: Jean-Racine (1639-1699) foi dramaturgo e


históriador francês. Escreveu: Andrômaca, Britânico,
Berenice, Ifigênia em Áulida e Fedra. Luís XIV o
nomeou historiógrafo do rei. Chegou a abandonar o
teatro, mas depois retornou a ele escrevendo as peças
“Ester” e “Atália”.

Coeso: Unido, ligado

Circunscrito: Restrito, limitado

In loco: No local, no lugar.

64
Aula 6
O GÊNERO LÍRICO

META
Apresentar o gênero lírico como o discurso baseado no sentimento.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
reconhecer o fundamento essencial do lírico;
estabelecer o modo de elaboração do texto lírico;
exemplificar as características sempre presentes no discurso lírico;
distinguir o texto lírico dos textos épico e dramático.

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

Como vocês já sabem, o gênero diz respeito a qualquer for- ma de texto


que produzimos, quer se refira a um estudo crítico ou trabalho acadêmico,
quer se refira a necessidades do cotidiano, contanto que reúna caracter-
ísticas comuns que o definam enquanto tal: carta, bilhete, receita de bolo,
memorando, romance etc. Ao modo de ser desses tipos de texto damos o
nome geral de gêneros textuais.
Quando a variedade se dá no campo da literatura, chamamos de
gêneros literários que, em última análise, também são gêneros textuais.
Ao encontrar textos em verso, estamos diante de um poema; ao encontrar
textos em prosa, narrando histórias curtas em torno de um só conflito e
com densidade de significação, temos um conto; se está desenvolvida uma
história com muitas personagens e vários núcleos dramáticos que depois
de um momento culminante vai ao desfecho, temos um romance. Assim,
vamos encontrando uma variedade grande de gêneros na literatura. Mas não
é só na estrutura formal que aparecem as diferenças de gênero. É também
na estrutura do estilo: no tipo de assunto abordado e no modo como é
tratado. Essa questão dos gêneros literários vem sendo estudada desde os
antigos. Quem primeiro tocou no assunto foi Platão.
O lírico, ou como se fala de forma mais geral, a poesia, não aparece
apenas no poema; ele está presente na prosa sempre que nela são encontra-
dos termos de forte carga emotiva, que suscitam imagens visuais e sonoras
pelo significado e pela combinação dos sons postos no texto. Quando isso
ocorre, dá-se o nome de “prosa poética” ou “poema em prosa”. A título
de exemplo de uma prosa poética, podemos citar a abertura do romance
Iracema de José de Alencar (1975, p. 11):

Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia


nas frondes da carnaúba; verdes mares, que brilhais como líquida
esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias
ensombradas de coqueiros; serenai, verdes mares, e alisai docemente
a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor
das águas.

Como se não bastasse a sonoridade já presente na leitura, esse trecho


até poderia ser segmentado e transformado em verso, como aponta o prof.
Hênio Tavares, e qualquer um, sem saber sua origem, iria tratá-lo como um
poema. Vejamos como ele ficaria:

64
O gênero lírico Aula 6

Depois dessas observações passemos aos comentários mais específicos


sobre o lírico.

GÊNERO LÍRICO

O adjetivo “lírico” vem do nome da lira, instrumento mu-sical uti-


lizado pelos gregos para acompanhar seus can-tos. Daí surgem também as
expressões “poema lírico”, “poesia lírica”. Até o final da Idade Média, os
poemas eram cantados, mas pouco a pouco foram afastando-se do acom-
panhamento musical, e o texto passou a ser mais trabalhado formalmente
através da divisão estrófica, da medida dos versos e do esquema rímico.
A rima vai surgir na literatura cristã e, segundo Emil Staiger (1974, p. 38),
com o objetivo de substituir “a variedade métrica da lírica antiga, que vai
aos poucos desaparecendo”.
Em relação ao conteúdo, a poesia lírica traz sempre um eu confessando
suas emoções, seu estado de espírito. O lírico está associado ao emotivo,
ao subjetivo. Hegel em sua Estética diz que o que se faz presente na poesia
lírica é o sujeito a partir de suas experiências individuais. Dessa forma – con-
tinua pensando ele – o conteúdo da poesia lírica vem dos juízos subjetivos,
das emoções, das alegrias, das dores, das angústias que, em determinado
momento, ocupam lugar na consciência do poeta e em outro momento
ocupam lugar na poesia que ele compõe.

65
Teoria da Literatura I

Procurei-me nesta água da minha memória


que povoa todas as distâncias da vida
e onde, como nos campos, se podia semear, talvez,
tanta imagem capaz de ficar florindo...

Procurei minha forma entre os aspectos das ondas,


para sentir, na noite, o aroma da minha duração.
(Cecília Meireles, Medida de significação )

O texto lírico não dá prioridade à realidade externa. Sua base de sus-


tentação não é a dimensão empírica dos fatos, a realidade objetiva com
que lidamos. É a interiorização dessa realidade. Importa o modo como
o sujeito lírico percebe esse mundo, como mergulha nele. O lírico é uma
tentativa de entrada no ser das coisas e à medida que o eu penetra nesse ser,
realiza um processo de revelação, de desvelamento do objeto, mas também
de confissão de si mesmo através dos símbolos que trazem sentido e ao
mesmo tempo ausência de sentido. É uma nova ordem de significação que
se apresenta no texto lírico. É o que Carmelita Fontes (1982, p. 54) diz
Ver glossário no em Poema do impossível:
final da Aula
Tecem-se fios de palavra sobre tua ausência de vaga em retirada
e os símbolos se acendem no bojo deste verbo impossível.

Mas essa condição não isola o poeta do mundo. Ele está contextualizado
no social, no político, no religioso, no econômico e é dentro desse contexto
que produz o lírico. Portanto, o mundo não se opõe ao lírico, apenas não se
oferece como lugar de história. Oferece-se como espaço de
interiorização. Tudo o que é dito sobre ele, aparece como
revelação íntima do sujeito poético e revelação do seu modo
de ser na percepção do poeta.
Emil Staiger, em Conceitos fundamentais da poética,
analisa os gêneros e busca neles os elementos determi-
nantes que os definem em sua particularidade. Sobre o
gênero lírico, ele aponta como características: a) o trabalho
sobre os sons, organizando a musicalidade; b) a presença
da repetição; c) a prevalência da lógica interna; d) a orga-
nização coordenativa do pensamento; e) a independência
em relação à norma gramatical.
Como os atos humanos ocorrem no tempo, antes de
tratar desses caracteres, vamos perguntar-nos sobre a base
de sustentação do lírico, sobre seu fundamento maior. Já
que ele está fora do ato de discorrer e do ato de refletir,
sabemos que seu campo de ação é o íntimo do sujeito.

66
O gênero lírico Aula 6
Assim, a recordação é a sua marca principal. Recordar é lembrar, é voltar
à memória. Vem do latim “recordare”, derivado de “cor”, que significa
coração. É o retorno ao “coração”. Recordar é ir de novo ao coração e,
para tanto, não é necessário discorrer, é necessário “expressar” o que está
dentro. É voltar a si mesmo. Por isso, a recordação é o traço característico
maior do ser lírico. Um fato que apareça narrado no texto não se quer
tomado enquanto acontecimento transcorrido, mas enquanto a expressão
do sentimento que envolveu esse fato. Mas, se você pensar bem, verá que
a recordação não é necessariamente uma ida ao passado.
É verdade que só o passado se acomoda decantado no interior do su-
jeito, o presente é inquieto em sua incerteza e o futuro é apenas uma hipó-
tese. Dessa constatação, deduzimos que só o passado cabe na recordação.
Se pensarmos, contudo, que o passado só aparece como presente e é desse
lugar de presente que o interior se manifesta, então podemos concluir que,
no lírico, não se trata verdadeiramente do passado, mas sempre do presente.
Os fatos não estão sendo tomados como acontecimentos da história inse-
ridos no curso do tempo, mas como expressões interiores de um sujeito
manifestadas em um determinado momento que, por mais que se repitam,
não fazem história porque não se encadeiam numa sucessividade, porém
retornam sobre si mesmas num constante reapresentar-se. Tome-se como
exemplo o poema Oração de Jorge de Lima (1980, p. 84):
Ver glossário no
final da Aula

Tocador de lira (Fonte: http://www.overmundo.com.br).

67
Teoria da Literatura I

– “Ave Maria cheia de graça...”


A tarde era tão bela, a vida era tão pura,
as mãos de minha mãe eram tão doces,
havia, lá no azul, um crepúsculo de ouro... lá longe...
– “Cheia de graça o senhor é convosco, bendita!
Bendita!”

Os outros meninos, minha irmã, meus irmãos menores, meus


[brinquedos, a casaria branca de minha
[terra, a burrinha do vigário pastando
[junto à capela... lá longe...
Ave cheia de graça
– “Bendita sois entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso
[ventre...”

E as mãos do sono sobre os meus olhos,


e as mãos de minha mãe sobre o meu sonho,
e as estampas do meu catecismo
para o meu sonho de ave!
e isso tudo tão longe... tão longe...

Ou ainda esses versos de Castro Alves (1998, p. 93)

BOA NOITE, Maria! Eu vou-me embora.


A lua nas janelas bate em cheio.
Boa noite, Maria! É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.

Boa noite!... e tu dizes – Boa noite.


Mas não digas assim por entre beijos...
Mas não mo digas descobrindo o peito,
– Mar de amor onde vagam meus desejos.

Dentro desse panorama maior da recordação, vamos situar as carac-


terísticas do lírico.
Sobre a musicalidade, sabemos que historicamente a música acompanha
as canções, os poemas, ao som de instrumentos, principalmente a lira. Mas,
atenção! O lirismo grego não se fazia como se faz modernamente. Naquela
época, os poemas voltados para o sentimento já eram feitos para ser canta-
dos. Em nossos dias, contudo, isso não anda acontecendo. Só excepciona-
lmente alguns poemas são tomados como letra de música. É verdade que
Castro Alves e Fagundes Varela fizeram poemas para serem cantados, mas
essa não era sua prática normal. Hoje em dia, também escutamos algumas

68
O gênero lírico Aula 6
músicas cuja letra é um poema da literatura, todavia, esse procedimento é
muito raro, está longe demais de ser a regra. As poesias são feitas para serem
lidas ou declamadas e, quase nunca, para serem cantadas. Essa mudança de
atitude tem uma explicação histórica.
Como já dissemos, depois da Idade Média o acompanhamento musical
foi desaparecendo e em seu lugar foram surgindo mecanismos substitutivos
para dar continuidade à presença da música e tornar o texto agradável. Sai-
se da musicalidade da lira e entra-se na musicalidade do texto, construindo
os versos a partir da escolha de fonemas que produzem efeitos sonoros no
interior e no final deles. É o caso das rimas, do ritmo e das várias figuras de
harmonia também chamadas de melopéia por dizerem respeito à melodia.

Auriverde pendão de minha terra,


Que a brisa do Brasil beija e balança
(Castro Alves)

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras


de luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...
( Cruz e Sousa)
Observe a sonoridade vinda da sucessão de fonemas oclusivos e
constritivos, vinda da combinação intencional dos surdos e sonoros e Ver glossário no
também do compasso impresso pelas pausas em determinados pontos do final da Aula

verso, criando uma cadência. Nos versos de Castro Alves, o jogo sônico
nos lembra o próprio movimento oscilante da bandeira sacudida pelo vento.
Nos versos de Cruz e Sousa (1991, p. 5), a predominância das constritivas,
o uso insistente da sibilante /s/ e da fricativa /f/ trazem a sensação de
algo evanescente que aparece, mas se esvai fluidamente. Esse conjunto de
elementos atrai a sonoridade agradável ou a musicalidade do texto.
Vamos agora à característica da repetição. Etimologicamente, verso
significa volta, retorno, quer dizer, volta ao ponto anterior, mas a repetição
aqui não é um simples retorno ao já visto. É um trabalho estilístico com
o objetivo de produzir um efeito sintático e semântico. Sintático porque
tem a ver com a articulação dos termos, das frases ou dos versos com a
composição; e semântico porque essa organização traz consequências de
sentido para o poema. Atente para o texto a seguir de Federico García
Lorca (2001, p. 279):

Às cinco horas da tarde.


Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o branco lençol
às cinco horas da tarde.

69
Teoria da Literatura I

Uma esporta de cal já prevenida


às cinco horas da tarde.
O mais era morte e somente morte
às cinco horas da tarde.
(Garcia Lorca)

Garcia Lorca, poeta espanhol, tem na alma o gosto pela tourada, e


compõe esse poema em homenagem a Ignácio Sánchez Mejías, toureiro
famoso, amado pelo povo espanhol e morto pelo touro em uma de suas
apresentações. Os versos postos um a um numa sintaxe coordenada de
pensamentos curtos, alternando-se com versos repetidos indicando a hora,
dão um clima denso, pesado, enlutado. A repetição da hora marca mais o
pesar dos sentimentos do que o horário de um acontecimento. Não é o
registro de um tempo. É a dor que faz o sujeito poético ficar paralisado no
tempo, como se nada mais interessasse. A alternância dos versos repetindo
a hora chega a lembrar o compasso do bombo, marcando a marcha lenta
do cortejo fúnebre. Um pouco da alma espanhola estava indo também ser
sepultado juntamente com Sánchez Mejías.
Como explica o próprio Emil Staiger (1975, p. 34), “a repetição lírica
não traz nada de novo ao utilizar as mesmas palavras. É a singularidade da
mesma disposição interior que ressoa de novo”.
Vamos pensar agora um pouco sobre a lógica interna. A lógica desen-
rolada no discurso não segue as relações de causa e efeito comuns no texto
épico ou narrativo. Os sentimentos se expressam como se no interior do
eu não houvesse lugar para a contradição ou para o sem-sentido. Tudo se
põe como se fosse claro por si mesmo. É o que nos mostra o texto abaixo
de Gilberto Mendonça Teles (1990, p. 20):
Ver glossário no
final da Aula Recolho a tarde nos olhos
cansados de tanta espera
e perco o rumo dos astros
na solidão do crepúsculo.
A sombra que se dissolve
na sombra que me antecede
não disfarça o impressionismo
do meu caminho sem rumo.

No poema intitulado Origem, Gilberto Mendonça (1990, p. 58) in-


tensifica ainda mais o uso da lógica interna como recurso fundamental à
entrada no eu. Um eu que se recusa à revelação pelo previsível, mas atrai o
leitor a fim de que ele mergulhe no interior da linguagem para de lá poder
resgatar alguma significação do sujeito poético:

70
O gênero lírico Aula 6
Agarro o azul do poema pelo fio
mais delgado de lã de seu discurso
e vou traçando as linhas do relâm-
pago no vidro opaco da janela.

Seu novelo de nuvens reduplica


a concreta visão desse animal
que se enreda em si mesmo, toureando
a púrpura do mito e se exibindo
diante da minha astúcia de momento.

Na organização do pensamento, predominam as orações coordena-


das, dando a fisionomia do eterno presente. As visões, os sentimentos, a
experiência íntima das coisas são postas de forma a traduzir a validade de
todos eles no curso do tempo. Tudo é posto no aqui e agora do discurso
e esse “aqui e agora” do discurso se transpõe para a atemporalidade de tal
modo que hoje se lê um verso ou um poema de Camões, feito no século
XVI, como se tivesse sido elaborado em nossos dias.
No item relativo à independência gramatical na composição lírica,
vemos a quebra das regras. Esse rompimento com a gramática não se con-
stitui um erro, mas um traço de estilo ou uma licença poética. De acordo
com as regras da fala corrente, a repetição e a inversão da ordem natural
da frase é um defeito. Os termos aí aparecem na ordem direta para efeito
de clareza imediata. Contudo, no lírico ele tem o seu lugar:

Salve, lindo pendão da esperança!


Salve, símbolo augusto da paz!
Tua nobre presença à lembrança
A grandeza da Pátria nos traz.
(Olavo Bilac)

(Fonte: http://www.jorgeduardo.com).

71
Teoria da Literatura I

A repetição de “Salve” não comprometeu a beleza e a elegância da


expressão, e os dois últimos versos, numa linguagem coloquial, seriam di-
tos: “Tua presença nobre nos traz à lembrança a grandeza da Pátria”. No
poema, entretanto, a inversão não trouxe nenhum prejuízo.
Outra característica que rompe com a norma gramatical geral é a quebra
do discurso em sua continuidade. Vejamos a seguir o poema Movimento
de Carmelita Fontes (1982, p. 36):

treme
o gesto é ansiedade
e a unidade
pão
escala teu desejo
p
r
e
c
i
p
i
t
a

t
e

restos

entreaberta flor
de ansiedades novas

Esses vários recursos de estilo, longe de denunciarem uma ignorância


sobre a língua, constroem um estilo que congrega ritmo, cadência, forma,
tensão, resultando desse conjunto de fatores a beleza do texto. A liberdade
do poeta na expressão dos seus sentimentos tem o objetivo de lhe garantir
as melhores condições de tradução do que se passa em sua interioridade.

72
O gênero lírico Aula 6
CONCLUSÃO

O lírico se faz sobre um fundo subjetivo. O centro de sua atenção é


o eu expresso nas emoções que refletem o in-terior. Esse eu não deve ser
confundido com o poeta enquanto pessoa viva, mas enquanto um dado
do discurso que centraliza a razão de ser dos ditos do poema. É o eu lírico
atraindo todas as atenções para ele. Os sentimentos postos no poema são
um trabalho de linguagem e não uma experiência real da vida na história
privada do poeta. Bem sabia disso Fernando Pessoa ao dizer no poema
Autopsicografia:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Octávio Paz diz que “os poetas não têm biografia. Sua biografia é sua
obra”, fazendo nessa afirmação uma nítida separação entre a realidade do
sujeito individual, inserido na vida, e a realidade do poeta como um eu que
fala no poema e só tem existência enquanto matéria de discurso. Neste, ele
surge e, somente nele, encontra um lugar de ser.

Octávio Paz, escritor mexicano vencedor do Nobel de Literatura de


1990 (Fonte:http://www.leabooks.com).

73
Teoria da Literatura I

RESUMO
- A base do lírico é a subjetividade. É sempre um eu confessando seu es-
tado de espírito.
- O lírico procura entrar no ser das coisas.
- Quando o lírico aborda a realidade externa, é apenas como um caminho
para chegar ao sujeito e não como fatos de uma história a ser relatada.
- Emil Staiger chama a atenção para algumas características do lírico: a
musicalidade, a repetição, a lógica interna, a construção coordenada e a
independência gramatical.
- A musicalidade é o trabalho feito com os fonemas, com a combinação de
termos, com as figuras de harmonia.
- A repetição é o emprego das mesmas palavras, dos mesmos versos ou da
mesma idéia. Mas essa repetição não traz algo novo, antes remete o leitor ao
mesmo aspecto numa recorrência constante ao mundo interior do eu lírico.
- A lógica interna é a independência em relação à racionalidade do discurso.
Não se procura uma lógica de causa e efeito
no que está dito no poema. Entra-se nele como se fosse uma comunhão
com o espírito do poeta.
- A construção coordenada (ou paratática) se faz constante porque o inter-
esse está em mostrar estados de espírito, sentimentos. Assim, as construções
subordinativas ficam em segundo plano.
- A independência gramatical é a liberdade sobre várias exigências do dis-
curso prático: uso livre das inversões, das repetições; possibilidade de cortar
a frase e até mesmo as palavras; aplicação livre da metáfora e da metonímia;
uso de jogos sonoros etc.

ATIVIDADES
1. Procure um site de busca e faça uma pequena pesquisa sobre quem foi
e quando viveu:
a) Fernando Pessoa
b) Cecília Meireles
c) Manuel Bandeira
2. Leia o texto abaixo e, a partir do que você aprendeu nesta aula:
a) faça alguns comentários sobre o que compreendeu a respeito das idéias
presentes nele;
b) selecione três características do lírico que você percebeu e, para cada
característica, dê explicações que justifiquem sua seleção.

74
O gênero lírico Aula 6
LINGUAGEM
Eu caminho seguro entre palavras
e páginas desertas. Nas retinas:
sonho de coisas claras e a lição
de outras coisas que invento
para o só testemunho
de minha construção
imaginária
de pedra
sobre
pedra
e cimento
e silêncio.

Da sintaxe invisível a certeza


e o desdobrar tão limpo das imagens
na vereda serena que dói fundo
no olhar preciso e vago consumindo
seu faro entre palavras.
Na estrutura
da língua se desgasta o meu segredo,
se desgastam meus dedos, a mais pura
moeda que circula desprezível
no cio deste ofício de buscar-te
na usura de ti,
nudez segura,
absoluta canção e voz
perene,
inicial.

(Gilberto M. Teles, Falavra, p. 38)

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Lembre-se que o lírico tem como base a subjetividade, pois tem como
essência a busca pelo íntimo do espírito. A musicalidade é uma das
características do lírico, assim como a independência gramatical.

75
Teoria da Literatura I

REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da literatura. 8 ed. Coimbra:
Almedina, 1997.
ALENCAR, José de. Iracema. 5 ed. São Paulo: Ática, 1975.
ALVES, Castro. Espumas flutuantes e outros poemas. São Paulo. Editora
Ática, 1998.
FONTES, Carmelita Pinto. Tempo de dezembro. Aracaju: Edição do
Governo do Estado de Sergipe – Subsecretaria de Cultura e Arte, 1982.
LIMA, Jorge de. Poesia completa. 2 ed. v. 1. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1980.
LORCA, Garcia. Antologia poética. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MEIRELES, Cecília. Poesias completas: viagem; vaga música. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira. 1976.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro:
1975.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel: 2001.
TAVARES, Hênio. Teoria literária. 11 ed. Belo Horizonte: Vila Rica Edi-
toras Reunidas. 1996.
TELES, Gilberto Mendonça. Falavra: antologia poética. Lisboa: Dinalivro,
1990.

GLÓSSARIO
Carmelita Fontes: Poetisa sergipana, nascida em Laranjeiras em 1933.
Atualmente é membro da Academia Sergipana de Letras e exerceu o
magistério na Universidade Federal de Sergipe e no Colégio Estadual
Atheneu Sergipense. Escreveu muitas crônicas para periódicos de
Aracaju e de Lisboa. No trabalho com a poesia publicou: Tempo
de Dezembro e Baladas do Inútil Silêncio, em parceria com Núbia
Marques e Giselda Morais.

Jorge de Lima: (1893 – 1953). Nascido em União dos


Palmares (Alagoas). Um dos poetas mais importantes do
modernismo brasileiro; sempre foi imbuído de convicções
religiosas católicas e fez de sua fé o terreno fecundo,
embora não exclusivo, para a sua poesia lírica.

76
O gênero lírico Aula 6
Cruz e Sousa: (1862 – 1898): Poeta simbolista, nascido
em Florianópolis (Santa Catarina). Filho de escravos
alforriados, recebeu do antigo senhor estima e cuidados.
Por isso, foi educado no Liceu de Santa Catarina. Sua
cultura, entretanto, nunca o livrou dos preconceitos
contra sua cor, daí ficar sempre marginalizado, vivendo de empregos
sem maior importância, salvo seu trabalho como jornalista, que
também não lhe trouxe maior reconhecimento. Seus livros de poesia
foram: Broquéis, Faróis e Últimos Sonetos. Foi reunida também sob
o nome de O livro derradeiro, sua produção espalhada em jornais e
revistas.

Fonemas oclusivos: Diz-se do fonema consonantal que, para ser


articulado, é necessário um momento de fechamento total da passagem
do ar pela boca. Assim ocorre com os fonemas /p/, /b/, /t/ entre
outros. Quando é necessária uma passagem do ar, o fonema é chamado
de constritivo. Por exemplo: /s/, /f/, /l/ e vários outros.

Sibilante: Que sibila; que produz ruído agudo e prolongado como


ocorre com o vento na quina dos prédios, como ocorre na asma, no
assobio etc. Também é o nome dado às consoantes fricativas alveolares
surdas, como acontece com o /s/ em: Silveira; mestiço; cipó; suscinto;
ficássemos. E ainda às consoantes fricativas alveolares sonoras, a
exemplo de: casamento; Zenóbia; exame etc.

Fricativas: Nome dado às consoantes que durante sua articulação


produz fricção, ao deixar escapar a corrente de ar. É o caso, por
exemplo, de /f/, /s/, /x/ (ch), /v/, /z/, /j/.

Garcia Lorca: (1898 – 1936) Poeta e dramaturgo


espanhol nascido na região de Granada e morto
também nos arredores desta cidade. Amigo do
poeta chileno Pablo Neruda de quem recebeu a
homenagem de uma Ode. De muita atividade literária
e consciência política, Garcia Lorca terminou sua
vida sendo perseguido e executado durante a Guerra
Civil Espanhola. Escreveu uma vasta obra literária. Dele se diz que
depois de Cervantes, nenhum outro autor espanhol tem sobre si uma
bibliografia tão grande e de alta qualidade.

77
Aula 7
O GÊNERO ÉPICO

META
Apresentar a origem e o desenvolvimento do gênero épico e suas consequências para a
narrativa moderna.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
identificar as fontes gregas do épico;
descrever as características que dominam a narrativa épica;
avaliar o distanciamento entre o narrador e o mundo épico narrado;
reconhecer os valores éticos cultivados pela epopéia.

PRÉ-REQUISITOS
estudar o épico relacionando-o com o lírico facilita a compreensão. Então, é importante que você reveja a lição 6.

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

Acabamos de estudar na aula passada a natureza do lírico. Agora vamos


ver um pouco o estudo da poesia épica, tam-bém conhecida como poesia
narrativa. Para começar nossa conversa, eu lhe digo que, etimologicamente,
epopéia é um termo grego formado pela junção de epos com poieo. Epos
significa palavra, canto, narrativa, recitação, e poieo significa fazer. Digo
ainda que, da mesma forma que o texto lírico era feito em verso, o texto
épico também utilizava o verso. Então, para se distinguir um do outro, só
examinar a forma de composição não era suficiente. Precisava ser consid-
erado o modo como o assunto era tratado e, nesse caso, o que se via na
epopéia era a presença de personagem heróica, a universalidade do tema
abordado e o caráter coletivo da ação. Tudo isso trabalhado para dar um
tom grandioso da história ou da lenda que servia de motivo para a obra.
Ao gênero épico, entretanto, não pertence apenas a epopéia. Nele
também se inclui a ficção de um modo geral. Apesar de esse gênero ser
narrativo e, portanto, abarcar várias modalidades de texto, é muito comum
ocorrer o seguinte: quando alguém fala em gênero épico, se pensa na epo-
péia, e quando alguém fala em narrativa se pensa em romance, novela e
conto. Mas, na verdade, todos eles estão dentro do espírito épico do texto,
embora haja características particulares em cada uma dessas formas. São
essas especificidades e vários outros aspectos do épico que passaremos a
estudar agora.

Corpo de Heitor sendo levado de volta a Tróia. Alto relevo romano em mármore (Fonte:
http://pt.wikipedia.org).

80
O gênero épico Aula 7
O GÊNERO ÉPICO

O canto épico, ou dito de outra forma, a história heróica dos antigos


vem dos hinos cantados nas festas de come-moração pela vitória de um
chefe guerreiro, de um rei ou de outra figura de destaque. Esses cantos, que
hoje chamamos poemas, na verdade eram narrativas de feitos grandiosos
que contavam com o interesse do povo. Há nelas uma mistura de arte e
política, porquanto se voltavam sempre para a nobreza do palácio onde
também eram cultivados. Como sua organização se baseia em episódios
sociais, o vigor textual decorre da continuidade da história e da força de
significação que estrutura seus elementos, construindo um sistema coeso,
e não apenas da múltipla variedade de suas formas. As personagens que
povoam a história são deuses e homens. E neste último caso, homens cujo
modo de vida se assemelha aos deuses no poder, na riqueza ou na grandeza
de personalidade.
Tendo a história ou a lenda como o apoio natural de sua elaboração,
o épico trabalha a partir do racional, do lógico, da objetividade. Mas, meu
caro aluno, não fique perturbado. Sei que você está pensando: mas não já
foi ensinado que a literatura é subjetividade? Como dizer agora que o épico
segue a objetividade? Perfeito! Você tem toda a razão! Por trás da literatura
existe sempre uma subjetividade, e disso nenhum texto escapa. A questão
da épica é que a preocupação do autor não está em mostrar sentimentos ou
estados de espírito. O foco de interesse dele é apresentar os fatos como se
eles tivessem vida própria, independentemente daquele que os conta. Por
isso, no texto narrativo há sempre uma voz – o narrador – que se encarrega
de contar os “fatos”. Usei aspas porque, a rigor, o que está sendo chamado
de “fato” não passa de discurso, de linguagem em cujo seio se forma todo e
qualquer referente de seu dito, de seu enunciado. A objetividade do gênero
épico consiste no afastamento do eu interior e na conseqüente aproximação
da realidade externa. Na épica, o sujeito (narrador) se afasta do mundo
narrado e tende a desaparecer por trás da diegese. Não importa o que ele
sente, mas o que ele mostra. O objetivo da epopéia é construir um mundo Ver glossário no
total e para isso necessita de fatos reais, de lendas ou de mitos. final da Aula
Os povos têm orgulho de sua história e para louvá-la lançam mão de
obras literárias grandiosas. São os famosos poemas épicos ou epopéias.
Dentre os mais conhecidos estão:
a) Ilíada e Odisséia de Homero, na Grécia. Estes são os textos mais anti-
gos de que se tem notícia neste gênero (c. IX a.C.) e é a partir deles que se
iniciam os primeiros estudos sobre a literatura com Platão e Aristóteles;
b) Eneida (século I a.C.) de Virgílio, em Roma. Trata da história de Enéias,
um herói grego que sai de sua cidade, Tróia, e viaja pela região do Lácio,
hoje Itália, e se torna um ancestral dos romanos;

81
Teoria da Literatura I

c) Paraíso Perdido (1667) de Milton, na Inglaterra. Poema baseado no livro


do Gênesis, trata da queda de Lúcifer;
d) Os Lusíadas (1572) de Camões, em Portugal. Trata das conquistas por-
tuguesas.

No Brasil do século XVIII, temos O Uraguai (1769) de Basílio da


Gama e Caramuru (1781) de Santa Rita Durão. Mas não são obras de maior
significação se comparadas às primeiras.
A Ilíada e a Odisséia revelam a civilização grega antiga. A Ilíada apre-
senta as guerras entre gregos e troianos e é mesclada de reflexões sobre a
vida humana, incluindo as relações entre os homens e os deuses. A Odis-
séia mostra as peripécias da viagem de Ulisses ao retornar para sua casa.
A fidelidade de Penélope, evitando seus muitos pretendentes, sempre na
expectativa de que Ulisses, seu marido, voltaria. A Eneida mostra os feitos
romanos. Os Lusíadas narram a grandeza das conquistas portuguesas e o
poder do seu Império. Em Caramuru é apresentado o naufrágio de Diogo
Álvares Correia e suas habilidades com a arma de fogo até conquistar a
estima dos índios e ter na índia Paraguaçu a mulher amada. Ao autor falta
criatividade e vigor na construção da realidade. Numa visão eurocêntrica das

82
O gênero épico Aula 7
coisas, Santa Rita Durão atribui a Paraguaçu uma fisionomia nada indígena,
pelo contrário, vestiu-a com a roupagem da mulher branca:

Paraguaçu gentil (tal nome teve)


Bem diversa de gente tão nojosa,
De cor tão alva como a branca neve, Ver glossário no
E donde não é neve, era de rosa; final da Aula
O nariz natural, boca mui breve,
Olhos de bela luz, testa espaçosa.

As grandes personagens da epopéia, ou seja,


seus heróis, não desempenham uma função indi-
vidual, por isso nunca podem ser tomados como
perfis solitários de heróis. O objetivo da epopéia
é sempre alcançar a coletividade, daí eles intera-
girem livremente com as demais personagens e
com os deuses a quem rendiam culto, demonst-
rando a importância da submissão aos superiores
como condição da ordem social e política. Os
mitos que serviam de base aos poemas épicos
em geral estão fundamentados em antigos mitos
religiosos dos ancestrais. Sobre essa questão, há
quem diga que o pensamento que fundamenta
essas crenças religiosas provém da necessidade
de sustentar a energia vital própria dos deuses
e das personagens. Como acontece com os reis
e os heróis, essas personagens participam da
divindade, e é com essa força que o mundo, a
natureza e o desenvolvimento dos povos podem
ser colocados em um sistema organizado. Dessa
força depende a continuidade do mundo e da
sociedade, por isso não se pode deixá-la entrar
em declínio, pois esse declínio seria a própria derrocada da humanidade.
Essa relação de intercâmbio estreito entre o terrestre e o celeste vai-se
fazer a partir de Homero que em sua obra humaniza os deuses, atribuindo
a eles os sentimentos característicos dos homens. Se por um lado eles
continuam deuses, por outro, são passíveis das mesmas reações humanas:
paixão, ódio, inveja, dissimulação etc...
Quanto às características do épico, podemos resumi-las dizendo, de
acordo com Emil Staiger que, diferentemente da poesia lírica, apoiada na
recordação, a poesia épica baseia-se na apresentação. Nela, o autor se co-
loca diante do mundo para mostrá-lo, registrar sua dinâmica, apontar seus
caracteres, em síntese, para apresentá-lo.

83
Teoria da Literatura I

Frontispício da primeira edição de Os Lusíadas (1572) (Fonte: http://www.


universal.pt).

Como traços do estilo épico, Staiger apresenta: a simetria, o distan-


ciamento, o desenrolar progressivo, a autonomia das partes, a ação, a
grandiloquência.
Por simetria entende-se a tendência da epopéia para manter o equilíbrio
de humor entre o sujeito que narra e o mundo narrado. Esse equilíbrio per-
mite ao sujeito narrador um afastamento das oscilações dos sentimentos.
Por isso Staiger (1975, p.77) equipara a simetria à inalterabilidade, dizendo:

A simetria equivale à inalterabilidade de ânimo do escritor que não é


dado aos altos e baixos da inconstante “disposição anímica”. Homero
ascende da torrente da existência e conserva-se firme, imutável frente
às coisas. Ele as vê de um único ponto de vista, de uma perspectiva
determinada.

Essa inalterabilidade não significa um desaparecimento do sujeito rela-


tor, pois ele está presente e se faz notar na condição de narrador. Desse
lugar, ele apresenta as personagens, faz comentários, elabora sínteses
históricas dentre outras formas de denunciar sua presença. Em suma, ele
aparece por trás do que diz. Examine esse trecho de Os Lusíadas (Canto
I, primeira estrofe):

As armas e os barões assinalados,


Que da ocidental praia lusitana,

84
O gênero épico Aula 7
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana
Em perigos e guerras esforçados Ver glossário no
Mais do que prometia a força humana, final da Aula
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram.

(Camões, Os Lusíadas, I, 1)

Esse como que alheamento do sujeito acarreta outra conseqüência: o


distanciamento. Os fatos ficam distanciados da interioridade do poeta, de
modo que os acontecimentos não surgem como recordação intimista, mas
como rememoração de fatos e por essa memória o poeta faz o trabalho de
reconstrução do mundo. “O longínquo é trazido ao presente, para diante de
nossos olhos, logo perante nós, [aparecer] como um mundo outro maravil-
hoso e maior.” (Staiger, 1975, p.79). Tentando ainda explicar a importância
da memória na poesia épica, Staiger (1975, p.80) lembra que “o valor do
rememorar épico [...] é justamente [...] vencer a terrível inconstância dos
homens e das coisas” e já que o poeta não fica submetido às inconstâncias
dos sentimentos, o mundo revelado tende a ganhar consistência de iden-
tidade própria como se existisse independentemente do poeta. O que no
lírico seria apenas estados de alma, no épico aparece como acontecimentos,
como fatos reais.
Veja o que você vai entender agora sobre o desenrolar progressivo. O
texto narrativo traz em sua constituição ações, e uma ação não se faz senão
pela conexão com outras. Esse processo se dá necessariamente no tempo.
Pouco a pouco os atos se encadeiam e as ações vão sendo mostradas. Note
essas estrofes do poema Caramuru:

Canto II

XXXII

Quando Gupeva, manso, e diferente,


Do que antes fora na fereza bruta,
Convoca a ouvi-lo a multidão fremente,
Que à roda estava da profunda gruta:
Posto no meio da confusa gente,
Que toda dele pende, e atenta escuta:
Valentes paiaiás (diz desta sorte)
Que herdais o brio da prosápia forte.

85
Teoria da Literatura I

XXXIV

Se ontem, do vil Sergipe surpreendidos,


Ver glossário no Vimos o grão terreiro posto a saco;
final da Aula Fomos cercados sim, mas não vencidos;
Não foi vitória, foi traição de um fraco.
Sabia bem por golpes repetidos,
Com quanto esforço na peleja ataco;
E como sem traição faria nada,
Não tendo eu armas, vem com mão armada.

Como resultado desse desenrolar progressivo da ação, ocorre a au-


tonomia das partes. Se no lírico vemos uma inter-relação forte entre os
elementos da composição construindo um universo denso e coeso, no texto
épico ocorre uma independência maior das partes. Não que não haja uma
perspectiva geral do conjunto; há, sim! Mas as particularidades de cada uma
delas têm muita importância e com isso conferem um ar de autonomia,
de valor por si mesmas. Se examinarmos o segundo e o terceiro dos dez
cantos de Caramuru, chegamos ao seguinte:
Primeiro canto: Naufrágio de Diogo Álvares Correia (chamado pelos
índios de Caramuru, que significa “Filho do Trovão”) e seus contatos com
Gupeva – o cacique – com quem luta contra o chefe Sergipe.
Segundo canto: Aparece a índia Paraguaçu que se casará com Diogo.
Terceiro ao quinto cantos: Exposição da lenda do dilúvio entre os habi-
tantes da selva e combates contra Jararaca, que simpatizava com Paraguaçu.
Sexto e sétimo cantos: Diogo e Paraguaçu viajam para a França e se
casam em Paris. Episódio da morte de Moema, amante de Diogo, a qual,
inconformada de ver Diogo ir embora com Paraguaçu, lança-se ao mar,
tentando acompanhar o navio. Mas, já sem forças para continuar presa ao
leme, submerge nas águas.
Cantos oitavo e nono: Retorno à Bahia e visões de Paraguaçu sobre os
combates que iam ser travados contra
os franceses e os holandeses.
Décimo canto: Chegada de Tomé
de Souza – primeiro governador geral.
Em comentários muito sucintos,
vimos as características gerais do
texto épico e algumas oposições em
relação ao texto lírico. No âmbito
geral, podemos afirmar que o poeta
épico narra ações sempre relacionadas
a personagens da nobreza ou que pos-
suem uma força de caráter reconhecida
Cena do filme Caramuru, de Guel Arraes. socialmente. Mas com a chegada do

86
O gênero épico Aula 7
século XVIII, a imitação dos padrões clássicos é posta em questão e novos
modelos são adotados.
Na modernidade, o herói é destituído de sua posição de importância,
e em seu lugar aparece o anti-herói, o homem vivendo suas lutas no co-
tidiano, seus combates para vencer preconceitos, suas façanhas para viver
o amor. Vemos, assim, a passagem das narrativas épicas para as narrativas
romanescas. Destas novas formas narrativas, algumas podemos conhecer
um pouco e é o que faremos na próxima aula.

CONCLUSÃO

Anarrativa épica consiste na existência de uma história con-tada por


um narrador. Nessa história existem partes que têm uma independência
muito maior do que ocorre no poema lírico, porque o poeta épico parte
sempre de perguntas: Quem? Como? Onde? Quando? É o mundo como
um cenário a ser observado e relatado, e isso ele faz basicamente através do
uso de personagens, espaço e acontecimentos, com o tempo permeando
essa estrutura tripartida. Toda essa estrutura é voltada para a apresentação,
para a rememoração de acontecimentos. A historicidade é uma constante
e a temática tem caráter universal. Embora feito por um sujeito, o texto
épico procura a impessoalidade no trato com a história, o mito, a lenda, as
realidades do cotidiano etc.
Como conceito geral, pode-se dizer que a epopéia é um texto literário
organizado segundo os critérios de uma narrativa em tom grandioso onde
são trabalhados acontecimentos pautados em fatos reais, lendários, místicos
e com personagens de heróis ou deuses.

87
Teoria da Literatura I

RESUMO

- Como você viu durante esta aula, a epopéia é uma narrativa feita em
tom grandioso por um narrador que apresenta histórias de personagens
moralmente elevadas.
- Um texto épico traz a figura do narrador que mantém um distanciamento
do mundo narrado, daí a objetividade com que se dá a narrativa.
- A essência do épico está na apresentação, porquanto, ao procurar manter
um afastamento do mundo narrado, aquele que narra não tem nos próprios
sentimentos o elemento principal do texto.
- As características principais do texto épico são: a) presença de ação; b)
simetria: inalterabilidade de humor do narrador; c) distanciamento: o nar-
rador procura apresentar o mundo externo, do lado de fora do seu íntimo,
como se ele nada tivesse a ver com o que conta. O que se passa no seu
interior não importa; d) desenrolar progressivo: as ações vão se dando
sucessivamente, num encadeamento; e) autonomia das partes: cada parte
tem uma organização que lhe dá auto-suficiência histórica e estrutural e,
portanto, poderia existir por si mesma. Essa capacidade é sua autonomia;
f) estilo grandioso: o estilo é grandioso pela escolha do tema, pelo caráter
das personagens centrais e pelos recursos lingüísticos de que o narrador
lança mão na composição do texto.

ATIVIDADES
Vamos supor que você foi convidado pelo seu professor para dar uma
aula sobre o gênero épico para seus colegas. Considerando essa hipótese,
retome esse texto e selecione também mais um texto sobre o mesmo assunto
em algum livro de teoria da literatura. Veja algum que você tem ou recorra
à biblioteca. Munido desses textos, prepare um esquema de exposição,
lembrando-se de que, como professor, você deve ser didático, ou seja, deve
ter um roteiro simples e objetivo para que suas explicações possam se fazer
de modo gradativo e claro. Não esqueça que o desejo maior do professor
é que seus alunos aprendam de forma mais rápida e mais eficaz, por isso
você vai selecionar apenas os pontos mais importantes do assunto.
Uma vez feito seu esquema de exposição, envie ao professor-tutor.
Então, mãos à obra!

88
O gênero épico Aula 7
COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Você viu que ao gênero épico pertence todo texto literário que relata
uma ação. A Ilíada é um grande exemplo de epopéia que envolve
combates e feitos heróicos.

PRÓXIMA AULA

Novas formas narrativas lhe serão mostradas na próxima aula.

REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da literatura. 8 ed. Coimbra:
Almedina, 1997.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel, 2001.
TAVARES, Hênio. Teoria literária. 11 ed. Belo Horizonte: Vila Rica Edi-
toras Reunidas, 1996.

GLÓSSARIO
Diegese: É um conceito de nar-ratologia, estudos literários,
dramatúrgicos e de cinema que diz respeito à dimensão ficcional de
uma narrativa. A diegese é a realidade própria da narrativa (“mundo
ficcional”, “vida fictícia”), à parte da realidade externa de quem lê (o
chamado “mundo real” ou “vida real”).
Termo de origem grega divulgado pelos estruturalistas franceses
para designar o conjunto de ações que formam uma história narrada
segundo certos princípios cronológicos.

Nojosa: Desgostosa, pesarosa.

Taprobana: Ilha do Ceilão, hoje Sri-Lanka, país asiático. Até antes


das grandes conquistas marítimas, era o limite do mundo conhecido.

Gupeva: Cacique com quem Diogo Álvares (o Caramuru) se une para


lutar contra Sergipe.

89
Teoria da Literatura I

Fereza: Perversidade, crueldade.

Paiaiá: Povo indígena, já extinto, que vivia na costa da Bahia.

Brio: Coragem, valentia, sentimento da própria dignidade.

Prosápia: Raça

Sergipe: Chefe indígena.

Grão: Grande

90
Aula 8

NOVAS MODALIDADES DO
GÊNERO ÉPICO
META
Introduzir algumas modalidades do gênero e mostrar as modificações na passagem da
épica clássica para a narrativa moderna.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
reconhecer as características do épico nos textos narrativos modernos;
identificar a estrutura do romance e nela ver os aspectos da epopeia que perduram;
distinguir os caracteres que definem o romance, a novela e o conto;
listar as semelhanças e as diferenças entre a fábula e o apólogo;
identificar as características da crônica e da parábola.

PRÉ-REQUISITOS
Rever o desenvolvimento do gênero épico na aula 7 é importante para entender as
características da narrativa épica agora.

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

Como acabamos de ver, uma das marcas principais do épico é a apre-


sentação. Dela estão cheios os poemas épicos. Mas com a mudança dos
costumes e dos valores culturais, a literatura também passou por transfor-
mações. As histórias contadas por uns e outros recebiam acréscimos em
várias partes e até mesmo novos episódios. Tão longas foram se tornando
que houve a necessidade de serem escritas e, também nessa condição, pas-
saram a ser alvo do interesse dos frequentadores da Corte, que as escutavam
ao som de instrumentos musicais. À medida que os versos eram cada vez
em número maior, a narrativa passou a ser feita em linha continuada na
página, ou seja, em prosa, e não mais em verso.
Essa atitude generalizou-se e estabeleceu-se como o modo adequado
de narrar histórias. Estava criada a narrativa prosificada e a organização
romanesca desponta como a estrutura mais próxima da epopeia. Mas as
narrativas não ficaram reduzidas a esse modo de escrita. Outras formas
também se consagraram como o conto e as narrativas menores, a exemplo
da crônica, da fábula, do apólogo e de tantas outras. Damos, a seguir, algu-
mas noções gerais das formas mais conhecidas. Você vai gostar de saber
distinguir uns dos outros e perceber que eles estão muito mais próximos
do seu dia-a-dia do que lhe parece.

Amadis de Gaula, novela de cavalaria popular


em Portugal, publicada no século XVI (Fonte:
http://www.demofilo.com).

94
Novas modalidades do gênero épico Aula 8
O ROMANCE

Sobre a origem da palavra “romance” consideraram-se algu-mas pos-


sibilidades, dentre as quais ela ter surgido do termo latino “romanice” que
estava presente na expressão “romanice loqui”, falar românico, ou seja, um
modo de falar o latim misturado com os sons e os vocábulos das línguas
das regiões conquistadas. Essa expressão se opunha ao “falar latino” (latine
loqui) usado na região do Lácio e vizinhanças. Durante a Idade Média,
essa palavra romance designava a língua usada pelos povos dominados. O
termo passou a ser utilizado depois para indicar o modo de falar do povo
em oposição ao modo de falar culto.
Mais adiante, a palavra começou a nomear narrativas literárias de caráter
popular feitas tanto em prosa quanto em verso. Entre as narrativas feitas
em prosa estavam as novelas ou romances de cavalaria muito cultivados na
Idade Média. Mas também eram chamadas novelas de cavalaria as narrativas
em verso, ou seja, os poemas narrativos ou épicos cujo assunto eram os
feitos de cavaleiros andantes ou questões relacionadas a temas amorosos,
moralistas ou satíricos.
Esses usos do termo eram presentes em Portugal, Espanha e França.
Mas na Espanha houve uma utilização maior de romance em verso, tor-
nando-se quase a forma exclusiva da sua literatura. Muitos desses poemas
tratavam dos empreendimentos de cavalaria ou, no caso da Espanha, trata-
vam das lutas contra os mouros para a retomada do domínio político. Esses
foram os sentidos que a palavra recebeu desde o século XII até o final do
classicismo, no século XVIII, quando passou a ser usada no sentido que
conhecemos hoje.
Então, desde meados do século XVIII, vemos um novo significado
para o romance, que permanece até nossos dias. Da mesma forma que a
epopeia, o romance procura trazer uma visão globalizante do mundo, por
isso se diz que ele é a evolução da epopeia entre nós. Melhor seria dizer: o
romance, em alguns aspectos, atualiza a epopeia à medida que não se volta
para o particular mas para o universal, considerando as novas estruturas
sociais que organizam a sociedade contemporânea. Ele recria o mundo
segundo a visão do romancista. Para tanto, este lança mão de toda forma
de conhecimento nos vários campos do saber como a política, a história, a
religião, a economia etc... Como bem explica Massaud Moisés (2000, p.166):

o romance encerra uma visão macroscópica da realidade, em que o


narrador procura abarcar o máximo, em amplitude e profundidade,
com as antenas da intuição, observação e fantasia. Seu anseio mais
íntimo consiste em captar todas as formas do mundo, todas as facetas
das coisas, todas as reverberações das trocas sociais.

95
Teoria da Literatura I

Com o intuito de alcançar essa abrangência, a narrativa romanesca


trabalha com muitas personagens tendo as principais verdadeiros perfis psi-
cológicos. Sua presença ao longo da história é um dos fatores que confere o
caráter de unidade ao todo da narrativa. Essa multiplicidade de personagens
aparece dentro de uma gama de núcleos dramáticos. É característico do
romance lidar com vários núcleos, pois isto possibilita uma maior riqueza
de aspectos a serem abordados, no tempo e no espaço. Quanto à lingua-
gem, também há uma riqueza de formas possíveis. A linguagem explora o
diálogo, a descrição, a narração – que não poderia faltar por ser o elemento
básico para a exposição dos fatos – e até a dissertação.
Então, tratar do romance é ir ao encontro das problemáticas possíveis
da existência. Ele é – fora do drama – o palco onde se desenrolam o trágico
e o sublime da vida.

O CONTO

Desde que o homem passou a usar a linguagem, as coisas começaram


a funcionar a partir das significações que recebiam e o pensamento deixou
de ser apenas imagens de coisas e passou a tornar-se também imagem de
palavra que simbolizava essas coisas. Por outro lado, o ser humano é movido
por impulsos, por vontades, isto é, por pulsões. E essas pulsões o estimulam
a buscar outros para comunicar-se, para dizer o que sente. O que é que você,
meu caro aluno, deduz logo desse modo de agir do ser humano? Se você
pensou: “Bem, nesse caso, ele estava sempre às voltas com a linguagem para
exprimir o que estava em sua cabeça”. Ótimo! É isso mesmo. Ele estava
sempre falando, traduzindo o que achava das coisas e dos acontecimentos;
estava sempre falando dos seus desejos e do que lhe acontecia.

A última ceia, pintura de Leonardo Da Vinci (Fonte: http://www.pime.org.br).

96
Novas modalidades do gênero épico Aula 8
Aí está o início do conto. Entenda: do ato de contar. Um conto, por-
tanto, é uma história; é um relato. Por isso, podemos dizer que desde que
o homem se organizou em comunidade, ele conta histórias, ele faz contos.
Claro que nesse momento você está pensando: mas, e isso que a gente
encontra nos livros de literatura é a mesma coisa que muitas histórias con-
tadas de geração em geração e não se sabe nem sua origem? É. Do ponto
de vista do ato de contar, é sim! Os contos, tais como o vemos hoje, são
relatos populares ou literários com começo, meio e fim. A diferença entre
ambos vai estar no fato de, nos literários, haver a preocupação com uma
técnica e um estilo de escrita que não estão presentes nos populares, nas-
cidos da espontaneidade da fala. Desse modo, de contos se organizaram as
histórias mais antigas de que se tem notícia. A Bíblia está cheia de contos:
uns puramente imaginativos com o objetivo de formar uma moral religiosa
baseada na fé em Deus, outros que pretendem ser relatos de histórias
verdadeiras. Por exemplo, o livro de Judite, o livro de Ester; a história de
Suzana são textos alegóricos, portanto, apenas ficção. Mas outros como a
narrativa da Ressurreição de Lázaro, a Última Ceia, a Condenação e morte
de Jesus são textos considerados históricos, baseado em
fatos verdadeiros e não, ficcionais, mesmo que no relato
sempre hoja um pouco da imaginação de quem relata.
Todas essas narrativas, contudo, são registros escritos
de histórias que corriam de boca em boca depois da
morte de Jesus.
Mas há narrativas criadas já com a intenção de ser
um escrito para ser lido e fruído apenas como uma
história, sem outra finalidade senão o ato de ler e o
prazer decorrente desse ato. Para encontrar as origens
desse tipo de conto são apresentadas algumas hipóteses,
mas nenhuma delas traz a resposta definitiva, até porque
muito do que se tem escrito há séculos é também a
escrita de relatos orais. Indo até a Antiguidade, pode-se
citar como exemplo de contos as histórias de Eumaneus,
entremeadas ao longo da Odisseia; as fábulas de Esopo.
Da Pérsia e da Arábia têm-se as histórias de As Mil e uma
Noites; as aventuras de Aladim e a lâmpada maravilhosa;
Simbá, o marujo, entre outros.
Do modo como é entendido atualmente, o conto
é uma narrativa curta, mas não simplista. É uma forma
literária que requer experiência do escritor. Tradicio-
nalmente, encontramos regras e descrições que falam
desse tipo de narrativa, entretanto ele não cabe no
fechamento de nenhum desses conceitos, pois sua re-
alização mostra uma liberdade de expressão tão grande Esopo (Grécia, séc. VI a.C.).

97
Teoria da Literatura I

a ponto de Mário de Andrade afirmar que “em verdade, sempre será conto
aquilo que seu autor batizar com o nome de conto”. O desejo de definir
o que é o conto atraiu teóricos antagônicos: enquanto uns defendem uma
teoria específica, outros recusam essa visão considerando-a estreita, tendo
em vista as várias possibilidades de fazê-lo. O próprio Mário de Andrade
tratou essa preocupação como um “inábil problema de estética literária”.
Olhando tradicionalmente para sua estrutura, podemos dizer que o
conto é a narrativa das unidades. Isto é compreensível se nos lembramos
de que uma vez iniciado, o conto quer ser encerrado, por isso já começa
perto do seu final. Observando a estrutura clássica do conto, temos entre
outros caracteres: unidade de ação, unidade de espaço, unidade de tempo e
poucas personagens. A título de exemplo, leia o conto de Carlos Carvalho
(1975, p.45-46), que é nosso contemporâneo.

Missa do Galo

Com a navalha no bolso, esperou a mulher na porta da igreja. Quando


ela apareceu, foi se chegando, pegou no braço dela e disse:
– Quero falar contigo, Maria.
Ela não respondeu. Puxou o braço e foi caminhando. Ele insistiu:
– Volta, Maria.
Ela parou no primeiro degrau. Olhou-o, antes de responder, e ele
sentiu vergonha da roupa amassada, da gravata puída, da barba de
dias.
– Não adianta, Justino, já disse.
– Não gostas de mim?
– Gosto.
– Então volta, Maria.
– Não adianta, Justino, não adianta.
Continuou a caminhar. Ele seguiu:
– Pensa nas crianças.
– Já pensei.
– Pensa em mim.
– É só o que faço.
– Então volta, Maria. Juro que vai ser diferente. Prometo que não boto bebida
na boca, largo tudo, juro.
– Das outras vezes foi a mesma coisa.
– Agora é diferente. Tenho até promessa de emprego, coisa firme, segura. Dá
um bom dinheiro. A gente aluga uma casinha...
– Não adianta.
Ele tremia, as lágrimas enchendo os olhos:
– Hoje é Natal, Maria, não tens pena de mim?
– Tenho, muita.
Procurou o lenço no bolso e encontrou o cabo frio da navalha.
– Então volta, Maria. Ou acabo fazendo uma besteira.

98
Novas modalidades do gênero épico Aula 8
Ela apressou o passo. Tentou alcançá-la, a mão suada apertando o
cabo da navalha.
– Não me obriga a fazer uma desgraça.
Sem diminuir o passo, ela olhou a navalha agora aberta na mão dele.
– Adeus, Justino.
E sumiu na esquina.
Ele se apoiou num muro e chorou muito. Depois, entrou num bar e
se embebedou. Antes que o galo cantasse pela terceira vez, negociou
a navalha para pagar a bebida.

Você percebeu a economia da linguagem, o uso intenso do diálogo, o


início da narrativa já próxima de seu fim, a pequena quantidade de perso-
nagens? Pois bem, tudo isso é verdadeiro, mas não se pode tomá-lo como
padrão do conto, pois outras formas de organização também aparecem
com textos muito longos, se comparados a este de Carlos Carvalho ou
muito curtos a ponto de surpreender o leitor, como acontece com A busca
da razão de Marina Colasanti (1986, p.65). Neste, o próprio título sugere
uma relação entre a razão e a maturidade: estas não chegam gratuitamente,
mas são resultado de um esforço constante até o momento em que se torna
possível o seu aparecimento. Aproveite o prazer de sua leitura:

A busca da razão

Sofreu muito com a adolescência.


Jovem, ainda se queixava.
Depois, todos os dias subia numa cadeira, agarrava
uma argola presa ao teto e, pendurado, deixava-se ficar.
Até a tarde em que se desprendeu esborrachando-
se no chão: estava maduro.

Muitas outras informações você terá sobre o


conto quando estudar a teoria da prosa no próximo
semestre. Agora, vamos continuar dando algumas
noções sobre outro tipo de narrativa: a novela.

A NOVELA

Depois de estudar o conto – essa narrativa


curta, que caiu no gosto do público pela brevidade
e pela tensão da linguagem – vamos examinar uma
narrativa longa, e, portanto, mais lenta: a novela.
A palavra “novela” provavelmente surgiu do
italiano novella, termo que se acredita ser proveni-
ente do latim novellus, nouvellae com o sentido de

99
Teoria da Literatura I

novo, recente. Então, uma novela era uma história nova, recente. Com o
tempo esse significado passou para embuxado, embaraçado como acon-
tece com o novelo de linha. Na Idade Média também era compreendida
como conto. Só com o romantismo esse termo recebe o sentido literário
conhecido atualmente.
Às vezes se diz que a novela é o texto cujo tamanho é intermediário
entre o conto e o romance, mas essa afirmação não tem nenhuma razão
lógica. O que vai diferenciar a novela do romance é a sua estrutura, mesmo
assim, essa diferença entre um e outro não é geral, pois o mesmo texto pode
receber designação diferente em países diferentes. Assim, o que para nós
de língua portuguesa é romance, o inglês chama de “roman” ou “novel”;
o que chamamos de conto literário, ele chama de “short story” (pequena
história); o que chamamos de conto popular, ele denominou “tale”.
Em meio a essa variedade de terminologia, vamos procurar entender
um pouco o conceito de novela tal como é utilizado em nossa língua e
como se deram suas origens. Passo agora a palavra ao professor Massaud
Moisés (1975, p. 154) que, resumidamente, diz o seguinte, na sétima edição
de seu livro A criação literária:
Durante a Idade Média, sobretudo a partir do século
XI, as obras antigas eram lidas e imitadas, mas não
a ponto de ocasionar o nascimento da novela como
forma autônoma, dotada de caráter próprio. A
paternidade coube às canções de gesta. Como se deu
o fenômeno?
É sabido que as canções de gesta giravam em torno
de feitos de guerra. Foi na França que a moda
floresceu, em consequência do esplendor sócio-
cultural subsequente às lutas pela conquista e dos
meios de produção que garantiam o ócio gerador de
arte. Cantadas por trovadores, as canções de gesta
confundiam o fantástico com o plano verídico,
ambos ligados aos feitos de guerra. Assim, ao
espírito cívico somava-se o deleite estético. Mas
a narrativa crescia de tamanho cada vez que o
mesmo trovador, ou outro, se dispunha a repeti-la.
É fácil imaginar que, a partir de certo instante, não
Rolando jura lealdade a Carlos Magno. De um manuscrito só estavam desfigurados os pretextos heróicos da
da Canção de Rolando (Fonte: http://www.upload.wiki- guerra efetivamente travada, como a extensão do
media.org).
poema havia atingido limites extremos e como a
memória individual fosse incapaz de retê-lo todo, fazia-se imperioso
transcrevê-lo no pergaminho a fim de conservar-lhe a identidade
e os pormenores. Entretanto, aconteceu algo de inesperado logo
após a transliteração: as canções passaram a ser lidas nos saraus
cortesanescos, com acompanhamento musical. O ato de ler em
público deve ter condicionado, nalguns casos (pois os fidalgos

100
Novas modalidades do gênero épico Aula 8
eram, no geral, analfabetos), o desejo da leitura individual e solitária.
Contemporaneamente, o alargamento desmesurado do texto levou
a pôr em prosa o conteúdo já de si narrativo dos versos. Daí para
a prosificação foi um passo. E com a prosificação de algumas das
canções de gesta, independentemente do fato de outras se haverem
mantido na forma primitiva, a novela despontava como forma
autônoma e caracterizada.

Mesmo considerando teoricamente essas diferenças, na prática não


existe esse rigor e, então, muitas obras organizadas como novela ou próxi-
mas dela são referidas como romance. Por exemplo: as obras de Érico
Veríssimo, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego seguem, via
de regra, a estrutura novelesca, mas os leitores e até os críticos se referem
a elas chamando-as de romance, de sorte que o termo romance é o mais
usado. Mas não se trata apenas de menor uso da palavra. A novela, por estar
relacionada a fatos populares, à aventura – e, por isso, não se volta para uma
abordagem profunda das questões tratadas – ficou um pouco em segundo
plano no reconhecimento do seu valor. Só excepcionalmente alcança o nível
de elaboração literária presente no conto e no romance.
Olhando o que caracteriza a novela, podemos dizer que é uma sucessão
de relatos cuja ligação se deve à permanência de uma ou mais persona-
gens, garantindo a coesão do texto como um todo. Daí poder prosseguir
sempre mais com acréscimos de novos episódios, já que sua estrutura é
de sucessividade e não de simultaneidade, como ocorre no romance. Nos
demais aspectos, há muitos elementos de semelhança: número ilimitado de
personagens, uso livre do tempo e do espaço, presença de diálogos breves,
presença também de narração, mas sem muitos rodeios, sem muitas divaga-
ções, portanto mais diretas; descrições mais carregadas de subjetividade e,
inclusive, possibilidade da presença de dissertação.

CRÔNICA

Vários são os sentidos do termo “crônica”. Etimologicamente, vem


de “chronos” (tempo) e, enquanto texto, significa a narração escrita de
acontecimentos obedecendo à sucessividade em que ocorreram, ou seja,
observando a sequência cronológica dos fatos. Fala-se em crônica na rádio,
e essa nós ouvimos, mas de qualquer modo o locutor lê um texto escrito.
Temos também a crônica do jornal, a crônica da revista, a crônica publicada
em livro. Em qualquer dessas formas, a crônica é o relato de um fato ou
o comentário de um assunto do dia-a-dia. Nela, o autor se permite uma
atitude crítica, irônica ou pitoresca e, com isso, ficcionaliza um pouco o
texto, dando a ele uma visão particular das coisas. Apelando para o tom
humorístico, no Brasil temos atualmente Fernando Sabino e Millôr Fer-
nandes para citar apenas dois.

101
Teoria da Literatura I

Há muito tempo atrás, no século XVI, Portugal mantinha seus cronistas.


Eram empregados da Corte encarregados de escrever a história. São con-
hecidos os cronistas portugueses que escreviam sobre os acontecimentos
do Palácio: Fernão Lopes, João de Barros e vários outros. A eles se deve
muito da história dos nobres.
Atualmente, tem-se como crônica uma narrativa real ou fictícia voltada
para um fato qualquer da vida, mas sempre em um tom coloquial de lin-
guagem, um tom característico da língua oral. Inclui também uma forma
espirituosa de dizer as coisas. Se a crônica contar uma história, e não
simplesmente um flagrante da vida, ela pode ser vista como um conto. Isso
ocorre muito com Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga e outros.
Você está percebendo, então, que não há uma definição muito pre-
cisa na classificação desses textos. Mas talvez lhe esclareça mais ver uma
crônica para servir de exemplo. Assim, leia a crônica de Drummond (1967,
p. 546) abaixo. Note o tom jocoso em uns trechos e um tom reflexivo em
outros, tudo convergindo para uma mistura entre a informação, a crítica e
a imaginação criativa:

Autobiografia para uma revista

Convidado pela Revista Acadêmica a escrever minha autobiografia,


relutei a princípio por me parecer que esse trabalho seria antes de
tudo manifestação de impudor. Refleti logo, porém, que, sendo
inevitável a biografia, era preferível que eu próprio a fizesse e não
outro. Primeiro, pela autoridade natural que me advém de ter vivido
a minha vida. Segundo, porque praticando aparentemente um ato de
vaidade, no fundo castigo o meu orgulho, contando sem ênfase os
pobres e miúdos acontecimentos que assinalam a minha passagem
pelo mundo, e evitando assim qualquer adjetivo ou palavra generosa,
com que o redator da revista quisesse, sincero ou não, gratificar-me.
Carlos Drummond de Andrade (Fonte: Isto posto, declaro que nasci em Itabira, Minas Gerais, no ano de
http://images.google.com.br). 1902, filho de pais burgueses, que me criaram no temor de Deus. Ao
sair do grupo escolar, tomei parte na guerra europeia (pesa-me dizê-lo
ao lado dos alemães). Quando o primeiro navio mercante brasileiro
foi torpedeado tive que retificar a minha posição. A esse tempo já
conhecia os padres alemães do Verbo divino (rápida passagem pelo
Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte). Dois anos em Friburgo, com
os jesuítas. Primeiro aluno da classe, é verdade que mais velhos que a
maioria dos colegas, comportava-me como um anjo, tinha saudades
da família, e todos os outros bons sentimentos, mas expulsaram-
me por “insubordinação mental”. O bom reitor que me fulminou
com essa sentença condenatória morreu, alguns anos depois, num
desastre de bonde da rua São Clemente. A saída brusca do colégio
teve influência enorme no desenvolvimento dos meus estudos e
de toda a minha vida. Perdi a fé. Perdi tempo. E sobretudo perdi

102
Novas modalidades do gênero épico Aula 8
a confiança na justiça dos que me julgavam. Mas ganhei a vida e
fiz alguns amigos inesquecíveis. Casado, fui lecionar geografia no
interior. Voltei a Belo Horizonte, como redator de jornais oficiais e
oficiosos. Mário Casa-santa levou-me para a burocracia, de que tenho
tirado o meu sustento. De repente, a vida começou a impor-se, a
desafiar-me com seus pontos de interrogação que se desmanchavam
para dar lugar a outros. Eu liquidava esses outros mas apareciam
novos. Meu primeiro livro, Alguma Poesia (1930), traduz uma
grande inexperiência do sofrimento e uma deleitação ingênua com
o próprio indivíduo. Já em Brejo das Almas (1934), alguma coisa se
compôs, se organizou; o individualismo será mais exacerbado, mas
há também uma consciência crescente da sua precariedade e uma
desaprovação tácita da conduta (ou falta de conduta) espiritual do
autor. Penso ter resolvido as contradições elementares da minha
poesia num terceiro volume, Sentimento do Mundo (1940). Só as
elementares: meu progresso é lentíssimo, componho muito pouco,
não me julgo substancialmente e permanentemente poeta. Entendo
que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero
honesto rotular-se de poeta que apenas verseje por dor-de-cotovelo,
falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças
líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos
da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os
poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê
de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. Infelizmente
exige-se pouco do nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor,
ao músico, ao romancista... Mas iríamos longe nesta conversa.
Entro para a antologia, não sem registrar que sou o autor confesso
de certo poema insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem
escandalizando meu tempo e serve até hoje para dividir no Brasil as
pessoas em duas categorias mentais:

No meio do caminho tinha uma pedra


tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

103
Teoria da Literatura I

FÁBULA

É uma narrativa curta, comparada às vezes com o apólogo. Desde o


romantismo é feita em prosa, porém até o século XVIII era normalmente
escrita em verso. Existe há muitos séculos, talvez de origem oriental e era
cultivada com esmero. Um dos seus melhores representantes na Antiguidade
Clássica foi Esopo, um escravo grego que viveu no século VI a.C. Na era
moderna, temos La Fontaine como seu principal difusor, com histórias pub-
licadas entre 1668 e 1694. Em língua portuguesa é realizada desde a Idade
Média, mas só a partir do século XVIII teve um maior desenvolvimento.
No século XIX, temos em Portugal Almeida Garrett com Fábulas e contos
(1853). No Brasil temos, já no século XX, Coelho Neto com Fabulário (1907),
Monteiro Lobato com Fábulas (1921), entre vários outros fabulistas da língua
portuguesa que poderiam ser citados. Desse último, muito conhecida é a
fábula “A raposa e as uvas”, da qual se tira uma lição: quem desfaz deseja.

As características básicas da fábula são:

1. o assunto em geral versa em torno da vida de animais, mas pode


também personificar coisas ou entidades abstratas como a lua, o sol, a
chuva, o rio, o amor, a saudade, o tempo etc.
2. tem por objetivo provocar, de uma forma explícita ou implícita,
uma lição de moral de forma implícita ou explícita.
Dessa maneira, a fábula trabalha sempre com o sentido alegórico sem
levar em consideração o verossímil. A ela interessa a passagem de uma
ideia moralista. A título de exemplo, examine abaixo a fábula “A raposa e
as uvas” de Monteiro Lobato:

Certa raposa esfaimada encontrou uma parreira carregadinha de


lindos cachos maduros, coisas de fazer vir água na boca. Mas tão
altos, que nem pulando.
O matreiro bicho torceu o focinho:
– Estão verdes – murmurou. – Uvas verdes, só para cachorros.
E foi-se.
Nisto, deu o vento e uma folha caiu.
A raposa, ouvindo o barulhinho, voltou depressa, e pôs-se a farejar.

104
Novas modalidades do gênero épico Aula 8

O APÓLOGO

O termo vem do grego “apólogos”, significando narração. Também é


uma narrativa curta e não se conhece sua origem. Supõe-se ter nascido no
Oriente, como a fábula, mas como já dissemos ao tratar desta, o apólogo é
muitas vezes visto como uma fábula, havendo quem tome um pela outra.
Em ambos é marcante e definidora a presença da personificação. Em
geral, o apólogo tem como personagens entidades inanimadas, enquanto Ver glossário no
a fábula traz entidades animadas. Muito conhecido entre nós é o texto Um final da Aula
Apólogo de Machado de Assis, também citado como A Agulha e a Linha.
Para servir de exemplo, colocamos esse texto a seguir:

UM APÓLOGO

ERA UMA VEZ uma agulha que disse a um novelo de linha:


– Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada para
fingir que vale alguma cousa neste mundo?
– Deixe-me, senhora.
– Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com
um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der
na cabeça.
– Que cabeça, senhora?A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha
não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que

105
Teoria da Literatura I

Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
– Mas você é orgulhosa.
– De certo que sou.
– Mas por quê?
– É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama,
quem é que os cose, senão eu?
– Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que
quem os cose sou eu, e muito eu?
– Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço
ao outro, dou feição aos babados...
– Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando
por você, que vem atrás, obedecendo ao que faço e mando...
– Também os batedores vão adiante do imperador.
– Você imperador?
– Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno,
indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho
obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não
sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a
modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira,
pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na
agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo
pano adiante, que era a melhor das sedas entre os dedos da costureira,
ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E
dizia a agulha:
– Então senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não
repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou
aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha
era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que
faz e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela
não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo
silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais o plic-plic-plic-plic
da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para
o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto
acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou
a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho para dar algum ponto
necessário. E enquanto compunnha o vestido da bela dama, e puxava
a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando abotoando,
acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
– Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa,
fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar
com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da
costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça

106
Novas modalidades do gênero épico Aula 8
grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: – Anda,
aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai
gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como
eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse,
abanando a cabeça: – também eu tenho servido de agulha a muita
linha ordinária!

A PARÁBOLA

É outra narrativa curta de natureza alegórica com objetivo moral e, nesse


sentido, é semelhante aos dois últimos gêneros de que tratamos (a fábula
e o apólogo) mas, diferentemente deles, a parábola lida com personagens
humanas, pois se volta sempre para um ensino mais espiritualizado. O sen-
tido da parábola é mais ético. O simbólico de sua mensagem, sua dimensão
metafórica, volta-se para um certo grupo de pessoas envolvidas em um
ensino particular e obscuro. A finalidade imediata da parábola, portanto, é
didática. Ela quer esclarecer a fim de alcançar seu objetivo maior que é ético.
Embora não seja de modo exclusivo, as parábolas estão presentes mesmo
é na Bíblia. Você deve conhecer várias, ou pelo menos as mais comentadas
como a do Filho Pródigo e a das Dez Virgens.

CONCLUSÃO
As formas narrativas contemporâneas são
novas expressões do que já se fazia na época clás-
sica. Cada uma, em suas particularidades, mostra o
mundo não a partir dos efeitos subjetivos, emotivos
que este provoca no escritor, mas a partir de um
distanciamento que permite o autor isentar-se do
que diz e mostrar os acontecimentos ou os assun-
tos como se valessem por si mesmos. É o chamado
mundo objetivado oposto ao mundo subjetivado.
Sabemos que qualquer olhar, qualquer modo
de ver as coisas, é influenciado pelo sujeito obser-
vador e, portanto, essas coisas entram no crivo do
subjetivo. Mas também é verdade que naquilo que
se conta pode estar presente o objetivo de revelar
o próprio sujeito que fala ou a realidade mostrada
enquanto tal. Nesse último caso, está o chamado
objetivo de narrar e dele fazem uso tanto as grandes
narrativas como as narrativas de menor dimensão.
O retorno do filho pródigo, de Rembrandt (Fonte:
http://bp1.blogger.com).

107
Teoria da Literatura I

RESUMO

• O romance traz uma visão geral, universal da realidade na qual o escri-


tor, através de sua imaginação, procura conferir profundidade e abarcar ao
máximo a complexidade da vida.
• A estrutura do romance trabalha com uma série de conflitos que se inter-
relacionam ganhando um nível progressivo de tensão até chegar ao clímax
de onde caminha para o desfecho da obra.
• O conto é, se comparado ao romance ou à novela, uma narrativa curta,
sintética. Nela tudo converge para a unidade e, por isso, a concentração
é uma de suas marcas mais fortes. Ele já inicia perto do final porque seu
desejo é manter o leitor tão interessado na conclusão dos fatos que faça a
leitura, como se diz popularmente, de um só fôlego.
• A novela, como o romance, trabalha em vários conflitos, mas naquela estes
não são tão intimamente relacionados. Em geral, o que faz a continuidade
coesa da narrativa é a presença dessa ou daquela personagem de um capítulo
em um outro seguinte. Essa característica dá uma tal independência das
partes que sempre é possível acrescentar mais um capítulo ou episódio sem
comprometer a condição de novela, o que não aconteceria no romance em
cuja intriga deve haver a simultaneidade de conflitos.
• Em suma, o conto é uma narrativa de um só núcleo; o romance e a novela
possuem vários núcleos. No romance esses núcleos se relacionam simulta-
neamente e, na novela, sucessivamente.

ATIVIDADES

Reúna-se no chat com outros colegas e discuta as características que


definem cada uma das formas literárias trabalhadas nesta aula. Ao final da
discussão, escreva um resumo, com suas próprias palavras, de cada uma
das formas.

108
Novas modalidades do gênero épico Aula 8
Damos a seguir a localização dos textos bíblicos citados, que fazem
parte do Novo Testamento. Quando a mesma narrativa está presente
em mais de um evangelista, escolhemos apenas um, conforme a relação
abaixo:
a) Parábola do filho pródigo: Lc 15, 11-32 (Lucas, capítulo 15,
versículos 11 a 32);
b) Parábola das dez virgens: Mt 25, 1-13;
c) Ressurreição de Lázaro: Jo 11, 1-44;
d) Última ceia: Mt 26, 17-29;
e) Narrativa da paixão: Jo 18 , 19, 1-37.

PRÓXIMA AULA

Logo mais você verá o quanto a poesia funciona como expressão da


subjetividade.

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da literatura. 8 ed. Coimbra:


Almedina, 1997.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa. 2 ed. Rio de Janeiro:
Aguilar, 1967.
ASSIS, Machado de. Obra completa. 2 ed. v. 1. Rio de Janeiro: Aguilar,
1962.
CARVALHO, Carlos. Calendário do medo. Porto Alegre: Ed. Movimento,
Instituto Estadual do Livro, 1975.
COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco,
1986.
LOBATO, Monteiro. Fábulas. São Paulo: Brasiliense, 1991.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975.
MOISÉS, Massaud. Acriação literária. Prosa I. 17. Ed, São Paulo: Cultrix,
2000.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel, 2001.
TAVARES, Hênio. Teoria literária. 11 ed. Belo Horizonte: Vila Rica Edi-
toras Reunidas, 1996.

109
Teoria da Literatura I

GLÓSSARIO

Personificação: Figura de linguagem que confere a seres animados ou


inanimados ações próprias de pessoas.

110
Aula 9

O GÊNERO DRAMÁTICO
META
Apresentar a noção substantiva e adjetiva do gênero dramático e algumas espécies mais
conhecidas.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
- Identificar o texto organizado na estrutura dramática;
- Estabelecer as características que definem este gênero;
- Distinguir entre a natureza do texto dramático e a natureza de sua representação no palco.

PRÉ-REQUISITOS
As ideias fundamentais sobre gênero literário já expostas nas aulas anteriores.

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

Depois de estudar o lírico e o épico, não poderíamos deixar de falar do


gênero dramático. Este gênero trata também de acontecimentos, mas de
uma forma diferente do épico. Enquanto as ações no romance se desen-
volvem livremente no tempo e no espaço – as personagens sendo remetidas
do passado ao futuro e de um lugar a outro sem problemas – no gênero
dramático, elas passam por uma limitação: tudo deve estar voltado para as
possibilidades do palco. O palco é o substituto do mundo, e a peça, ao ser
escrita, não pode desconhecer esse limite.
Enquanto a epopeia e o romance narram a ação, o dramático representa
a ação. No mundo, as coisas e os acontecimentos se apresentam; no texto
dramático elas se re(a)presentam, quer dizer, se apresentam sob nova roupa-
gem. Já não são as coisas enquanto tais, mas aquilo que delas se mostra.
Aqui é necessário tomar cuidado com uma distinção: o que se passa no
palco não é literatura; é a encenação do drama, portanto, não é arte literária
mas sim, arte cênica.
Nesta aula de hoje, trataremos do gênero dramático em sua dimen-
são literária, embora saibamos que em alguns aspectos seja preciso trazer
situações do palco.

Édipo e a Esfinge / Museu do Vaticano - Gregoriano (Fonte: http://www.fflch.usp.br).

112
O gênero dramático Aula 9
O DRAMA
Ao falar no gênero dramático não podemos perder de vista o palco, pois
para lá é que se destina o texto, entretanto, um e outro são fatos diferentes.
Para melhor compreensão das explicações que virão, colocamos abaixo um
trecho da peça Édipo Rei, de Sófocles, escrita em torno de 427 a.C.

Coro dos anciãos de Tebas

A ação passa-se em Tebas (Cadmeia), diante do palácio do rei Édipo.


Junto a cada porta há um altar, a que se sobe por três degraus. O
povo está ajoelhado em torno dos altares, trazendo ramos de louros
ou de oliveira. Entre os anciãos está um sacerdote de Júpiter. Abre-
se a porta central; Édipo aparece, contempla o povo, e fala em tom
paternal.

Édipo

Ó meus filhos, gente nova desta velha cidade de Cadmo, por que vos
prosternais assim, junto a estes altares, tendo nas mãos os ramos dos
suplicantes? Sente-se, por toda a cidade, o incenso dos sacrifícios;
ouvem-se gemidos e cânticos fúnebres. Não quis que outros me
informassem da causa de vosso desgosto; eu próprio aqui venho, eu,
o rei Édipo, a quem todos vós conheceis. Eia! Responde tu, ó velho;
por tua idade veneranda convém que fales em nome do povo. Dize-
me, pois, que motivo aqui vos trouxe? Que terror, ou que desejo vos
reuniu? Careceis de amparo? Quero prestar-vos todo o meu socorro,
pois eu seria insensível à dor, se não me condoesse de vossa angústia.

...........................................................................................

Creonte

Vou dizer, pois, o que ouvi da boca do deus. O rei Apolo ordena,
expressamente, que purifiquemos esta terra da mancha que ela
mantém; que não a deixemos agravar-se até tornar-se incurável.
Édipo

Mas, por que meios devemos realizar essa purificação? De que


mancha se trata?

Creonte

Urge expulsar o culpado, ou punir, com a morte, o assassino, pois o


sangue maculou a cidade.

113
Teoria da Literatura I

Édipo

De que homem se refere o oráculo à morte?

Creonte

Laio, o príncipe, reinou outrora neste país, antes que


te tornasses nosso rei.

Édipo

Sim; muito ouvi falar nele, mas nunca o vi.

Édipo, já cego. Autoria desconhecida (Fonte: http://


Creonte
www.pre-historico.blogspot.com).
Tendo sido morto o rei Laio, o deus agora exige que seja punido o
seu assassino, seja quem for.

Caro aluno, mantenha na lembrança esse fragmento e várias caracter-


ísticas do gênero dramático irão ficar mais claras, pois é delas que vamos
falar agora. Bem, dentre os elementos presentes neste gênero, estão:
1. A posição dramática. No gênero dramático, o narrador desaparece comple-
tamente atrás do mundo criado e esse elemento da estrutura – o desapa-
recimento do narrador – confere à personagem uma importância muito
grande, pois é ela que faz acontecerem as ações e dá a impressão de que as
ações existem por si mesmas tal como na vida real. Dentro desse gênero,
as espécies mais presentes atualmente são o drama, a tragédia, a comédia, a
ópera, o auto e a revista (teatro de revista), mas situando algumas criações
dramáticas no tempo, podemos chegar ao seguinte esquema:
a) criações clássicas: a tragédia e a comédia;
b) criações medievais: o auto, o mistério e a farsa;
c) criação renascentista: a tragicomédia;
d) criação romântica: o drama. Na verdade o romantismo lhe deu desen-
volvimento pois quem o criou realmente foi Shakespeare no século XVI;
e) criações populares: o teatro de revista (ou teatro de variedades) e a mágica;
f) criações musicais: a ópera e o vaudeville.
2. O trabalho das unidades. Esse trabalho diz respeito à forma coesa de or-
ganização em que a ação principal atrai para si as ações secundárias. É a
unidade de ação. Se o autor diversificar demasiadamente os episódios, dispersa
a ação e enfraquece um outro elemento dessa coesão: a concentração. A
unidade de ação acarreta uma consequência sobre o tempo e o espaço. Com
a ação condensada não há margem para uma movimentação grande no
tempo nem tão pouco no espaço. Aristóteles destaca apenas a unidade de
ação, mas a Idade Média não teve essa preocupação, enchendo suas peças
de muitas ações, o que levava a uma dispersão da condensação dramática.

114
O gênero dramático Aula 9
Chegado o Renascimento, seus estudiosos elaboraram o que ficou
conhecido depois como a teoria das três unidades: expressas como unidade de
ação, unidade de espaço e unidade de tempo. A unidade de espaço diz respeito ao
lugar onde as cenas se desenrolam. Pode ser um bosque, o palácio, a casa
ou mesmo uma sala.
Sobre a unidade de tempo, a ação deve durar no máximo vinte e quatro
horas. Apesar de esta regra tornar-se um ponto de referência para os
dramaturgos, tendo em Racine seu principal seguidor, nem sempre foi
cumprida. Shakespeare, com sua genialidade, não a seguiu e nem por isso
comprometeu a qualidade de sua peça Romeu e Julieta, onde se encontra uma
variedade grande nos dois aspectos de tempo e espaço. Como bem resume
Helena Parente Cunha (In: Portela, 1976, p. 119):

As cenas de Romeu e Julieta se desenrolam em praças públicas e ruas


de Verona, em vários aposentos e no jardim de Capuleto, na cela
de Frei Lourenço, no cemitério e no túmulo da família de Julieta.
O tempo se estende por alguns dias, entre o primeiro encontro de
Romeu e Julieta, o banimento de Romeu, a combinação do casamento
de Julieta com Páris, sua simulada morte na data da cerimônia e a
morte dos dois amantes.
Mas a unidade de ação se mantém densa na trama de todos os
acontecimentos em torno da desavença das famílias Capuleto e
Monteccio, que obstou a união dos jovens.

3. A concentração da ação. Emil Staiger define a essência dramática como a


tensão, que consiste em levar, sem perda de tempo, a ação para o seu final.
Esse ritmo contínuo e acelerado para a finalização obriga o texto a cortar
quaisquer acessórios que comprometam essa intensidade do ritmo. Como
diz Staiger (1975, p. 135):
Nenhum retardamento da ação é permitido. Episódios são considera-
dos prejudiciais. Todas essas são consequências práticas da ideia do estilo
problemático, em que o objetivo da história está no fim, e, assim sendo,
cada parte terá que ser examinada exclusivamente em função do todo que
no fim virá a se revelar.
4. O uso do diálogo. Esse expediente linguístico no teatro é um verdadeiro
fio articulador entre as personagens e a ação. É o diálogo que revela as
forças contrárias que antagonizam as personagens e geram os conflitos. As
oposições ocultas também se manifestam por ele, aliás, não só elas, mas
tudo se mostra a partir do diálogo. Cabe ressaltar aqui que o monólogo não
prejudica o andamento da peça nem quebra a situação do diálogo porque
nele a personagem exterioriza seu modo de pensar e de sentir, que está
integrado à trama.
5. O nó. É o conjunto de fatores que desequilibram o estado inicial das
coisas, a tranqüilidade da situação e dá início à ação. No caso de Romeu e

115
Teoria da Literatura I

Julieta, o nó está na atração amorosa que ocorreu entre eles, rompendo o


afastamento que marcava a inimizade entre suas famílias. O estado de rup-
tura entre essas famílias fica comprometido e começa a luta para retomá-lo,
o que dá a matéria para o conflito.
6. A peripécia. Esse termo vem da poética clássica e significa a mudança de
rumo das coisas, ou seja, a alteração do feliz destino das personagens. Se
considerarmos a tragédia, a peripécia vai mudar
o estado de paz da situação inicial em estado de
angústia. De acordo com Aristóteles, a peripécia
precisa ser motivada por um ato ilícito do herói
a fim de que, ao sofrer as consequências do seu
ato, sua infelicidade exerça um efeito catártico,
purificador, diante do público, ou seja, o crime
deve ser evitado. A peripécia produz uma virada
completa nas expectativas que se tem sobre a
ação até aquele momento. Em Romeu e Julieta,
ela está situada no homicídio de Romeu contra
Teobaldo na luta de rua que enfrentaram. Na
tragédia Édipo Rei, a peripécia está na informa-
ção a Édipo de que ele mesmo é a causa da epi-
demia que se abate sobre Tebas. Essa epidemia
é o castigo decorrente do fato de ele ter matado
o pai e casado com a mãe.
Cena de Romeu e Jilieta, de Zefirelli (Fonte: http://www. 7. O reconhecimento. É o conhecimento sobre
cora.blogspot.com).
alguma coisa que vai mudar o destino da per-
sonagem central (ou personagens centrais). Em
Romeu e Julieta é o momento em que Julieta toma consciência do crime co-
metido por Romeu, que o obriga a fugir. Em Édipo Rei há uma coincidência
entre a peripécia e o reconhecimento, porque o fato que muda o rumo das
coisas é o próprio reconhecimento do homicídio e do incesto praticados
por Édipo.
8. O clímax. É a parte principal do drama, depois da qual a história deve
encerrar-se. O clímax está sempre perto do desfecho, mas pode não se dar
tão imediatamente. Em Romeu e Julieta, ele está bem próximo porque depois
Ver glossário no que Romeu encontra Julieta na cripta e pensa que ela está morta, o desfecho
final da Aula se precipita imediatamente: ele se suicida, levando Julieta ao mesmo fim.
Em Édipo Rei o clímax está no momento em que Édipo reconhece seus
crimes. Portanto, nessa tragédia há um encontro de categorias: a peripécia,
o reconhecimento e o clímax se dão no mesmo momento.
Vamos agora comentar ligeiramente algumas espécies do gênero
dramático. Não começaremos pela tragédia porque já falamos dela ao tratar
do pensamento de Aristóteles na Aula 5.

116
O gênero dramático Aula 9
A COMÉDIA

A origem do termo é controversa. Talvez derive de “Kômos”, festa


popular, ou de “kómas”, aldeia, pois, de acordo com Aristóteles, os co-
mediantes eram assim chamados por viverem circulando pelas aldeias em
decorrência de não serem bem considerados nas cidades.
Da mesma forma que o termo, a origem da comédia também não é
certa. A partir de Aristóteles, diz-se que é o resultado dos cantos fálicos, em
homenagem a Dionísio (ou Baco) em festividades populares livres. Supõe-se
que, com o tempo, os cantos se tornaram irreverentes ou mesmo satíricos,
e foram causa de manifestações mais espontâneas do povo até que algum
poeta, talvez se orientando pela tragédia, reuniu essas manifestações num
único texto. Com o passar do tempo, esses textos se teriam transformado
na comédia e, nesse momento, já estávamos em torno de 486 a.C.
Para Aristóteles (1966, p. 73), a comédia é a “imitação de homens infe-
riores; não, todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela
parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza
anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica,
que, sendo feia e disforme, não tem expressão de dor”. Mas, nos estudos
atuais, a comédia não equivale ao ridículo, mesmo que este também faça
parte dela. Aliás, o cômico também está presente em situações que não são
nem ridículas nem engraçadas, mas apenas fora do que em geral se espera.
Na Idade Média, a comédia quase desapareceu e o termo passou a
designar toda narrativa ou poema de final feliz, a exemplo da Divina Comédia
(século XIV), de Dante. Depois do século XIII, representavam-se farsas
e outras manifestações teatrais que indicavam o ressurgimento da comédia Ver glossário no
tal como era entendida pelos gregos. final da Aula

Com o Renascimento, o termo comédia recuperou o sentido primitivo e


as peças adquiriram uma forma estável de organização, e alcançaram o nível
de qualidade que já haviam tido entre os gregos antigos. Primeiramente,
apareceu Gil Vicente (1465 – 1536) com o teatro popular. Desenvolve-se
também o teatro na Espanha com Lope de Vega (1562 – 1635) e Calderón
de la Barca (1600 – 1681), entre outros. Na Itália, tem-se a commedia dell’arte.
Na Inglaterra, encontramos Shakespeare e outros; na França surge Molière.
Então, no curso dos séculos a comédia passou por transformações até
chegar ao que conhecemos atualmente.
Por causa desses autores, o teatro cômico consegue nos séculos XVI
e XVII níveis poucas vezes igualados depois, apesar de comediógrafos
de qualidade superior como Pirandello, Bernard Shaw, Beckett, Brecht,
Ionesco, entre outros.
É costume caracterizar a comédia em oposição à tragédia. Isso é válido
somente se tomamos as duas de modo geral. Se tomamos os detalhes, torna-
se difícil a distinção nítida e categórica. Considerando o desenlace, o epílogo

117
Teoria da Literatura I

feliz não define a comédia, e o epílogo infeliz


não é exclusivo da tragédia. Mas é certo que a
comédia se interessa pelas situações que provo-
cam o riso. Por outro lado, o riso não constitui
o componente essencial da comédia. Ele pode
aparecer nas mais diversas situações desde as
realmente engraçadas até as lamentáveis como,
por exemplo, determinados atos de um louco,
ou um deficiente auditivo que responde algo
diferente do que foi perguntado. O riso aparece
sempre que surge algo inesperado, alterando as
regras estabelecidas, quebrando uma lógica já
Dante e seus poemas (1460), pintura de Domenico di Mi- esperada. A comédia trabalha ações humanas
chelino (Fonte: http://www.stelle.com.br).
em que a lógica, a ordem das coisas, é rompida:
“a desordem que leva ao riso fere a inteligência,
não a sensibilidade”, diz Massaud Moisés (1974, p. 92). A comédia
volta-se para o presente e rejeita o passado histórico, além disso,
se interessa pela vida tal como acontece na realidade e não
nos padrões ideais. Nessa realidade, ela dá preferência ao
que leva ao riso.
Pode-se pensar que, em princípio, a comédia não pre-
tende uma ação moral, que sua preocupação é entreter com
o imediato ou o inconsequente. Essa é uma impressão válida
apenas para comédias superficiais. A comédia “séria” pretende
contribuir para o aprimoramento da sociedade à medida que,
pelo riso, leva à consciência de suas falhas. A sátira é que, ao
tomar de propósito o ridículo, teria como objetivo corrigir
os costumes pelo riso.

TRAGICOMÉDIA
Pertence ao período dos séculos XVI a XVIII.
Nesse tempo se trabalha em função da pureza dos
Gil Vicente (Fonte: http://www.upload.wiki- gêneros. Essa palavra era usada indicando as peças que
media.org). misturavam elementos da tragédia como o assunto e as
personagens com elementos da comédia: os incidentes e o desfecho. Das
quarenta e quatro peças de Gil Vicente, no teatro português, dez são con-
sideradas tragicomédias. Nesse gênero literário, podem estar misturadas a
realidade com a imaginação. Como no épico, pode estar presente até mesmo
o elemento maravilhoso.
Com a chegada do Romantismo, no século XIX, e o anseio de liberdade
das formas, houve uma recusa às regras clássicas. As peças que misturavam
o riso cômico e a lágrima trágica e eram elaboradas ao gosto do escritor
foram chamadas de DRAMA.

118
O gênero dramático Aula 9
O DRAMA

Olhando a sua estrutura, que não tem a rigidez do classicismo, o drama


é a forma moderna da tragicomédia. Quem o criou foi Shakespeare, no
século XVI, mas só se desenvolveu mesmo e ganhou valor literário com
o Romantismo.

O AUTO

É qualquer peça breve, de tema religioso ou profano, durante a Idade


Média. A Espanha foi seu berço e dele se tem notícia desde o final do século
XII, quando se supõe ter sido escrito o texto mais antigo de que se tem
notícia: Auto de los Reyes Magos, de autoria desconhecida.
Desenvolvido por Juan Del Encina no século XV, o auto chegou a
Portugal em 1502, quando Gil Vicente representou o Monólogo do Vaqueiro
ou Auto da Visitação.
Ao longo do século XVI, o auto alcançou o seu auge. O próprio
Camões, apesar de sua visão clássica, escreveu duas peças: Auto de Filodemo
e El-Rei Seleuco. No século XVII, excetuando o Auto do Fidalgo Aprendiz
(1665), de D. Francisco Manuel de Melo, o auto foi aos poucos desapare-
cendo em Portugal. Na Espanha, porém, passou a ter uma feição de autos
sacramentais, por trabalharem alegoricamente os dogmas do Catolicismo. O
principal cultivador desse gênero foi Calderón de la Barca.
O auto de Gil Vicente já era conhecido no Brasil do século XVI, através
do Padre José de Anchieta, que se servia dele na catequização dos índios
e dos colonos. Ao longo do tempo foram-se misturando elementos cult-
urais indígenas e africanos e o auto tornou-se uma manifestação popular
e folclórica em que o enredo propriamente teatral, além de reduzido ao
elementar, era acompanhado de danças e cantos.
No Brasil de nosso tempo, muito conhecido é o Auto da Compadecida
(1959), de Ariano Suassuna.

O MISTÉRIO

É a peça cuja ação se dá em torno da vida de Cristo.

FARSA

Surgiu no fim da Idade Média francesa. Inicialmente, era uma breve


peça cômica posta – a modo de intervalo – no meio de mistérios. Depois
se desenvolveu com existência autônoma. Na verdade, é difícil distinguir
com precisão a farsa da comédia. De modo geral, é possível dizer que a
diferença entre ambas é de grau. A farsa estaria no exagero do cômico em

119
Teoria da Literatura I

decorrência de processos grosseiros como o absurdo, as incoerências, os


equívocos, os enganos, a caricatura, o humor primário, as situações ridículas.
Em resumo, pode-se dizer que a farsa é uma modalidade do auto.
Massaud Moisés diz que “a farsa dependeria mais da ação que do
diálogo, mais dos aspectos externos (cenário, roupagem, gestos etc.) que
do conflito dramático.

A MÁGICA

É a encenação de contos infantis na qual aparecem fadas, bruxas,


monstros tudo se movendo em um cenário encantador e um figurino
abundante e colorido.

O VAUDEVILLE

É uma comédia musicada. Baseia-se sempre em situações que trazem


equívocos cujo efeito é o riso. Os espanhóis o chamam de “zarzuela”.

CONCLUSÃO

O gênero dramático ou, dito de outra forma, o texto dramático, não


deve ser confundido com o teatro. Ambos possuem caracteres comuns,
mas a literatura é uma arte baseada na palavra e o teatro se fundamenta na
cena. A questão da literatura dramática está em como dizer, como traduzir o
que se passa nos acontecimentos e no pensamento das personagens de modo a expor
os conflitos como se tanto eles (os acontecimentos) quanto as personagens
que os vivem existissem por si mesmos.
O teatro, entendido como forma de representação, se preocupa em
como representar cenicamente o que o texto já contém. Em um, está
presente a estética literária; em outro, está presente a estética cênica. Neste
último, se incluem: entonação de voz, gesto, expressão fisionômica, fig-
urino, movimentação de palco, jogo de luz, cenário e vários outros fatores
ausentes do texto literário.
Se olharmos a maneira como o texto dramático se organiza estrutur-
almente, veremos que ele tem dois elementos constitutivos: o discurso das
personagens, que é a parte mais importante do texto, e o discurso das in-
struções, que são as falas do autor orientando as cenas, isto é, a didascália.
Ver glossário no No discurso das personagens desenvolvem-se todos os acontecimentos da
final da Aula fábula (história) e dele depende o sucesso ou o fracasso do texto. Esses
dois tipos de discurso organizam toda a matéria do dramático e, ao mesmo
tempo, denunciam que a finalidade dela é a encenação, ou seja, sua repre-
sentação no palco.

120
O gênero dramático Aula 9

Cena do filme O auto da compadecida, dirigido por Guel Arraes (2000) (Fonte: http://
www.cameraescura.com.br).

RESUMO

• O texto dramático se destina à encenação.


• As espécies dramáticas foram surgindo ao longo da história; cada momento
trazendo uma forma diferente. Assim é que a Antiguidade Clássica legou
a tragédia e a comédia; a Idade Média trouxe o auto, o mistério, a farsa; o
Romantismo desenvolveu o drama, criado por Shakespeare etc.
• O Renascimento trouxe a teoria das três unidades: unidade de ação, de
tempo e de lugar.
• O texto dramático é feito a partir de dois tipos de discurso: o discurso
das personagens e a didascália, discurso que orienta os atores.
• Ao longo da fábula estão presentes alguns elementos que a organizam
dramaticamente: a posição dramática pela qual o narrador desaparece do
texto principal; o discurso das personagens; as unidades de ação, tempo e
espaço; a concentração da ação; o diálogo; o nó; a peripécia; o reconheci-
mento e o clímax.

ATIVIDADES

Leia o texto completo da peça Édipo Rei e a divida em três partes.


Depois faça o seguinte:
1. Procure localizar as características do texto dramático;
2. Escreva cada característica e, ao lado, copie a parte do texto que cor-
responde a ela.

121
Teoria da Literatura I

PRÓXIMA AULA

Mais adiante você conhecerá os elementos formais do poema.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966.


AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da literatura. 8 ed. Coimbra:
Almedina, 1997.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
PORTELA, Eduardo et alii. Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro. Coleção Biblioteca Tempo Universitário, v. 42, 1976.
SÓFOCLES. Rei Édipo; Antígona. Rio de Janeiro: Edições de Ouro.
Coleção Universidade, s.d.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel, 2001.
TAVARES, Hênio. Teoria literária. 11 ed. Belo Horizonte: Vila Rica Edi-
toras Reunidas, 1996.

GLÓSSARIO

Cripta: Gruta, galeria subterrânea. Lugar onde, em algumas igrejas, se


sepultavam mártires ou se guardavam relíquias.

Dante Alighieri: (1265 – 1321) Começou a escrever


a Divina Comédia em torno de 1308 e só terminou
perto de sua morte. A Divina Comédia é um poema
alegórico que narra o encontro de Dante – perdido
em uma selva escura – com a alma de Virgílio, que se
oferece para ajudá-lo. Nesse caminho de volta, Dante
passa pelo Inferno e pelo Purgatório até que, guiado por Beatriz – sua
musa inspiradora e sua paixão platônica desde a infância, morta em
1290 – chega ao Paraíso.

Zarzuela: Palavra da língua espanhola e se pronuncia “sarsuêla”.

Didascália: No teatro grego, conjunto de regras e de instruções, em


geral dado pelo próprio autor aos atores, para a representação dramática
das cenas.

122
Aula10
O POEMA E SEUS
CONSTITUINTES ( 1ª PARTE)

META
Apresentar os elementos formais do poema referentes à métrica e à estrofação.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
classificar os versos e as estrofes de um poema tradicional ou moderno;
identificar os procedimentos técnicos usados pelo poeta para trabalhar a medida do verso e
a composição da estrofe;
reconhecer o valor funcional da métrica para os efeitos poéticos do poema;
listar as licenças poéticas utilizadas nas composições feitas sob medida.

PRÉ-REQUISITOS
A aula 6, que contém os fundamentos essenciais do lírico.

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

Vamos, nesta aula e também na próxima, tratar do poema. Ao estudar


o lírico, nos voltamos para uma dimensão da linguagem que pode estar pre-
sente tanto no verso como na prosa. O lírico ou, se você preferir, a poesia,
não é exclusividade do verso, mas o poema, na verdade, é o seu lugar mais
propício. Entretanto, ao tomarmos agora o poema, nossa preocupação é
com a organização formal. São questões técnicas que nos ocuparão a partir
deste momento.
Para o estudo do verso, vários são os aspectos tomados, e cada um deles
se subdivide em vários outros. À primeira vista, você poderá pensar logo:
“Eu preciso decorar tudo isso?” Não! Calma! Você não precisa decorar
cada conceito, mas apenas compreendê-los bem. Não se trata de manter
tudo memorizado, mas primeiramente trata-se de tomar conhecimento
de todos esses aspectos técnicos. Em caso de uma necessidade maior em
suas pesquisas, ou na sala de aula com seus alunos, no futuro, você irá aos
manuais que tratam detalhadamente de cada caso. Mas, cuidado! Não estou
dizendo para estudar menos; estou lhe dando consciência do que é realmente
importante para cada momento. Como futuro profissional dos estudos
literários, você precisa se qualificar da melhor maneira possível, desde já.

122
O poema e seus constituintes (1ª parte) Aula 10
METRIFICAÇÃO

Começaremos nosso estudo dizendo que o verso é formado por quatro


elementos: o metro, a estrofe, o ritmo e a rima. Para a aula de hoje, selec-
ionamos alguns comentários sobre a metrificação e a estrofação.

ESTUDO DO METRO
A palavra métrica (ou metro) vem do grego métron e significa medida.
Por isso, podemos dizer que o metro é a medida do verso, e seu estudo
chama-se métrica ou metrificação.
Em relação à métrica, os versos podem ser:
a) Isométricos ou isossilábicos – quando têm o mesmo número de sílabas.
b) Heterométricos ou heterossilábicos – quando têm número diferente de
sílabas.
Se considerarmos a quantidade de sílabas métricas, encontraremos os
seguintes tipos:
a) monossílabos – versos de uma sílaba;
b) dissílabos – versos de duas sílabas;
c) trissílabos – versos de três sílabas;
d) tetrassílabos – versos de quatro sílabas;
e) pentassílabos (ou redondilha menor) – versos de cinco sílabas;
f) hexassílabos – versos de seis sílabas;
g) heptassílabos (ou redondilha maior) – versos de sete sílabas;
h) octossílabos – versos de oito sílabas;
i) eneassílabos – versos de nove sílabas;
j) decassílabos – versos de dez sílabas;
k) hendecassílabos (ou arte maior) – versos de onze sílabas;
l) dodecassílabos (ou alexandrinos) – versos de doze sílabas;
m) bárbaros – versos de mais de doze sílabas.

Existe ainda o verso livre que é aquele que além de não ter um número
regular de sílabas também não se preocupa com a métrica. Por isso, se diz
que nele não há metro; há apenas o ritmo psicológico. Esse tipo de verso
é muito comum no Modernismo, mas está longe de ser uma característica
dele, pois é a forma mais antiga de se fazer o verso. A Bíblia está cheia dele.
Para conhecer a métrica do verso, precisamos contar suas sílabas ou
seus sons. A este procedimento se dá o nome de escansão. Escandir um
verso é ver quantas sílabas métricas ele tem. Mas veja: a sílaba métrica não
é a mesma coisa que a sílaba gramatical; ela só é contada até a última tônica
da palavra. Observe os versos seguintes de Castro Alves:

123
Teoria da Literatura I

A/ pom/ba/ d’a/li/an/ça o/ vô/o es/prai/a (10versos)


Na/ su/per/fí/cie a/zul/ do/ mar/ i/men/so (10 versos)

Esses versos terminam em palavras paroxítonas, então no final sobra


uma sílaba gramatical. Se as palavras fossem proparoxítonas sobrariam duas
sílabas gramaticais. Mas a métrica não considera apenas a última tônica;
há outros dados também em jogo, e alguns deles são chamados figuras de
dicção, outros se chamam figuras de morfologia. Todos eles influenciam
na métrica e, através deles, o poeta procura obter a isometria da estrofe
ou mesmo do poema inteiro. De nossa parte, tendo conhecimento deles,
podemos saber o procedimento que o poeta utilizou. Comecemos a vê-los.

FIGURAS DE DICÇÃO
Essas figuras são fenômenos fonéticos que acontecem em nossa fala
no dia-a-dia. Por exemplo: se digo normalmente na minha conversa: “A
gata arranha a menina” o que, na verdade, chega ao ouvido do meu inter-
locutor é: /a gatarranha menina/. Meu ouvinte compreenderá bem o que
digo porque já tem o domínio dessa forma de falar, já tem o domínio das
várias possibilidades de os sons se combinarem. Por isso, se ele for escrever
a frase, colocará todos os elementos, embora aos seus ouvidos não tenham
chegado discriminados todos os fonemas que a escrita mostra. O poeta lança
mão desses fenômenos fonéticos, por isso no poema eles são chamados de
“figuras de dicção”, ou seja, fenômenos da fala. Veja alguns casos:
Elisão – é a supressão fônica de vogal entre palavras contíguas, por
isso este é um fenômeno intervocálico, um fenômeno que acontece entre
palavras. Para compreender melhor a elisão leia, em voz alta e espontanea-
mente, como se estivesse batendo um papo com alguém:

Eu sou aquele que os passados anos


Cantei na minha lira maldizente.
(Gregório de Matos)

Percebeu que, ao pronunciar as palavras que e os, elas soam como se


fossem uma só? Isso é porque houve uma supressão ou quase supressão
de um som, de um fonema. Sempre que houver essa situação, é possível
contar uma sílaba apenas, e este fato é uma elisão. Lembre-se que o “h”
inicial não é um fonema, mas simplesmente uma letra – visto que não
produz som nenhum – o que resulta em você considerar a elisão diante de
uma palavra iniciada com ele.
Hiato – é o contrário da elisão. Ele se dá também entre palavras e não
dentro da palavra, e consiste em manter separadas duas sílabas que pode-
riam estar juntas, mas por questões de isometria se considera a separação.

124
O poema e seus constituintes (1ª parte) Aula 10
Minha campa será entre as mangueiras, (10 sílabas)
Banhada do luar,
E eu contente dormirei tranqüilo (10 sílabas)
À sombra do meu lar!
(Casimiro de Abreu)

Sinérese – é a união de dois sons dentro da palavra, por isso é um


fenômeno intravocálico.

Era outra luz, era outra suavidade (10 sílabas)

(Antero de Quental)

Na palavra “suavidade” teríamos quatro sílabas métricas, mas se fizés-


semos essa contagem, o verso ficaria com onze sílabas e não com dez, que
é o seu padrão métrico. Então, consideramos uma sinérese entre as sílabas
“su” e “a” e, com isso, retiramos uma sílaba e ficamos com apenas dez,
obtendo a isometria.
Diérese – é o oposto da sinérese. Em vez de juntarmos o que ficaria
separado, separamos o que deveria estar junto e, aí, ganhamos uma sílaba.

E mais que pi/edade de tristeza (10 sílabas)

(Antero de Quental)

Em “piedade”, as duas vogais átonas que, em princípio, ficariam juntas,


foram separadas.
Ectilipse ou ectlipse – é a elisão ou retirada do som nasal.

Quando passarmos juntos pela rua


nos mostrarão co dedo os mais pastores,

(Tomás Antônio Gonzaga)

(Fonte: http://emerson.bahia.zip.net).

125
Teoria da Literatura I

“Co” é a junção de com + o. Aqui houve a supressão do fonema nasal


na escrita, mas esse registro gráfico eliminando o “m” não é necessário. O
“m” pode estar presente e, na escansão, ser considerada a ectilipse.
Sinafia – é a contagem de uma sílaba átona de um verso como se fosse
do verso seguinte para obtenção da isometria.

Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
.................
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
(Casimiro de Abreu)

A última sílaba do primeiro verso “Qual pálida” foi contada como se


pertencesse ao verso seguinte. O resultado foi a obtenção de duas sílabas
para o verso “Rosa”.
Anacrusa – é o procedimento que consiste em simplesmente não con-
siderar uma sílaba do verso, para manter o mesmo esquema métrico. Isso é
comum em versos curtos, mas pode ocorrer em versos maiores.

Alva,
Nua,
A lua
Cai
(Fagundes Varela)

Esses versos têm uma sílaba, exceto o terceiro que teria duas se não
excluíssemos a palavra “a”.
Hiperbibasmo – é o deslocamento para frente ou para trás da sílaba
tônica. São dois os casos:
- Sístole – é o recuo do acento para a sílaba anterior.

Da caravana guarda a areia a pégada

(Castro Alves)

A palavra “pegada” é paroxítona, mas foi considerada como se fosse


proparoxítona a fim de manter 10 sílabas métricas.

126
O poema e seus constituintes (1ª parte) Aula 10
- Diástole – é o avanço para a sílaba seguinte.

Outro Aretino fui... a santidade


Manchei!... Oh! Se me creste, gente impia
Rasga meus versos, crê na eternidade!

(Bocage)

A tônica da palavra “ímpia” foi deslocada da primeira para a segunda


sílaba.
Como as figuras não se dão apenas nos sons, passamos agora a ver
aquelas que se dão na forma da palavra e, por isso, se chamam figuras de
morfologia.

(Fonte: http://img.olhares.com).

FIGURAS DE MORFOLOGIA
Essas figuras se dão por aumento ou diminuição da palavra a partir
do ganho ou da perda da sílaba. Colocamos a seguir os casos de ganho de
sílabas.
Prótese – é o acréscimo de fonema no início da palavra.

Todo difícil é fácil,


Abasta a gente saber
(Mário de Andrade)

127
Teoria da Literatura I

Esse acréscimo pode não implicar no aumento de sílabas métricas, caso


se dê com uma vogal átona diante de outra.

Vinha arraiando a aurora

(Antônio Nobre)

Na língua coloquial, a prótese ocorre em palavras como: arrodear em


vez de rodear. Entre algumas pessoas incultas e na composição poética,
encontra-se alevantar por levantar. Exemplo: “O sol se alevanta cedinho”.
Epêntese – é o acréscimo dentro da palavra.

Mas há pouco, há poucochinho,


Nem uma agulha bulia
(Augusto Gil)

Na fala espontânea, ocorre sempre epêntese do /i/ separando os encon-


tros consonantais /gn/: digno soando /díguinu/; /bs/: absoluto soando /
abisolutu/;/pn/: pneu soando /peneu/ ou /pineu/ Ou ainda: cruz soando
/cruis/; mês soando /meis/; vocês soando /voceis/ entre outros casos.
Paragoge – é o acréscimo no final da palavra.
As delícias de um céu fugace

(Cruz e Souza)

Como um caso de paragoge na linguagem inculta, pode-se considerar,


sincronicamente, a palavra seio no lugar de sei. Por exemplo, no diálogo:

– Você sabe disso?


– Seio.

Ou ainda no caso de estrangeirismos aportuguesa-


dos. O termo “club” é pronunciado “clube”; Com as
palavras “stand” que se pronuncia /istandi/, e “stop”
que se pronuncia /istopi/ temos dois fenômenos:
prótese e paragoge.
Rípio ou cavilha – este não é um caso de aumento
de fonema na palavra, mas o acréscimo de palavra no
verso a fim de alcançar o número de sílabas necessárias.
Essa palavra não altera o sentido do verso. Funciona
como uma partícula expletiva.

Purgatório, Paul Gustave Doré (1832-1883)


(Fonte: http://images.google.com.br).

128
O poema e seus constituintes (1ª parte) Aula 10
Criaturas de Deus se peregrinam
Invisíveis na terra, consolando
As almas que padecem, certamente

(Álvares de Azevedo)

Passemos agora para as figuras de morfologia que consistem na perda


de sons.
Aférese – perda de som no início da palavra.

Vejo-as inda passar, pálidas e belas;

(Raimundo Correia)

Coloquialmente, encontramos com freqüência a queda da sílaba inicial


do verbo estar flexionado: tou, tá, tive em lugar de estou, está, estive. Ou
no termo “peraí” traduzindo a expressão “Espere aí”.
Síncope – perda de fonemas dentro da palavra.

Filho do sec’lo das luzes!


(Castro Alves)

E cresce, e treme, e brilha, e afia o ouvido, e escuta


A voz que na soidão só ele escuta, - só:

(Olavo Bilac)

Na língua coloquial, encontramos xicra por xícara; abobra por abóbora.


Se a perda ocorrer com uma sílaba igual ou semelhante, essa síncope
se chama haplologia.

Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga


Os prantos de meu pai nos teus cabelos

(Álvares de Azevedo)

Na fala diária, temos “paralepípedo” por paralelepípedo.


Apócope – é a perda de fonema no final da palavra.

Emergia da imácula brancura

(Olegário Mariano)

129
Teoria da Literatura I

Na língua coloquial, os infinitivos perdem o /r/ final. Exemplo: Olhar


torna-se olhá; fazer torna-se fazê.

ESTUDO DA ESTROFE
Estrofe é um verso ou um conjunto de versos.
As estrofes recebem algumas classificações de acordo com:
a) o tipo de composição;
b) a disposição no poema;
c) a métrica;
d) o ritmo.

Vamos ver essas classificações.


a) Quanto à composição, ou seja, ao número de versos que possui, a estrofe
pode ser:
- Monóstico – estrofe de um só verso. Raramente é usada na versificação
tradicional.
- Dístico ou parelha – estrofe de dois versos.
- Terceto ou trístico – estrofe de três versos.
- Quarteto ou quadra – estrofe de quatro versos.
- Quintilha – estrofe de cinco versos.
- Sextilha – estrofe de seis versos.
- Sétima, setilha ou hepteto – estrofe de sete versos.
- Oitava – estrofe de oito versos.
- Nona – estrofe de nove versos.
- Décima – estrofe de dez versos.
- Irregulares – estrofes com mais de dez versos.

b) Quanto à disposição no poema as estrofes podem ser:


- Uniformes – quando têm o mesmo número de versos em todo o poema.
- Combinadas – quando apresentam número variado de versos. Os poemas
de forma fixa sempre trazem esse tipo de estrofe. Por exemplo, o soneto é
composto de dois quartetos e dois tercetos.
- Estíquicas ou livres – quando se compõem com um número de versos
completamente livre. Por exemplo, um poema com uma estrofe de oito
versos, outra com 2 versos e outra ainda com 5 versos.
c) Quanto à métrica, as estrofes podem ser:
- Isométricas – quando os versos têm a mesma medida, ou seja, o mesmo
número de sílabas.

Cabe pois num vagão


toda a nossa viagem.

130
O poema e seus constituintes (1ª parte) Aula 10
Mas é cinza e carvão
amor, e sua imagem.
(Drummond)

- Heterométricas – quando os versos têm medida diferente.

A bomba planejada?

Ou a bomba pronta
excitando a hora
do prazer do dedo
no botão maligno?

metástese do ódio
deflagrada no corpo
do mundo

que parece são Bomba atômica (Fonte: http://blogverde.com).

(Carmelita Fontes)

d) Quanto ao ritmo, elas são:


- Isorrítmicas – quando os versos têm o mesmo esquema rítmico.

Meu pai a meu lado


Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d’espinhos
Chegamos aqui!
(Gonçalves Dias)

O esquema rítmico se baseia em ictos na segunda e na quinta sílabas.


- Heterorrítmicas – quando os versos têm esquema rítmico variado.

Conheço os sinais; e logo, 2 5 7


animado da esperança, 3 7
busco dar um desafogo 1 3 7
ao cansado coração. 3 7

131
Teoria da Literatura I

Pela indicação ao lado das sílabas onde ocorrem os ictos, você se dá


conta de que existe uma variação rítmica da estrofe.

(Fonte: http://www.weno.com.br).

CONCLUSÃO

Depois dessa exposição sobre o METRO e sobre a ES-TROFE, vamos


continuar com esse mesmo tipo de es-tudo classificatório na próxima aula,
mas já tratando de outros elementos do verso.

RESUMO
Nesta aula lhe foram apresentadas as características da metrificação
e da estrofação. Na primeira, que é a métrica, os versos são divididos em
isométricos e heterométricos. Além disso, existem os versos livres, encon-
trados principalmente no Modernismo, que não possuem uma regularidade
no número de sílabas e também não têm preocupação com a métrica. Já
a estrofe compreende um verso ou um conjunto de versos e é classificada
quanto ao tipo de composição, disposição no poema, métrica e ritmo.

132
O poema e seus constituintes (1ª parte) Aula 10

ATIVIDADES
A fim de melhorar a fixação de seu aprendizado, depois de estudar esta lição,
responda ao que se pede nos itens abaixo. Caso seja necessário consultar
a aula por causa de uma dúvida, não tem problema. Mas só recorra a esse
expediente se não conseguir mesmo. Por isso, estude bem o texto antes de
fazer essa tarefa.

1. Complete as frases:
a) Os quatro elementos estudados na composição em verso são:
a estrofação, __________________, ___________________ e
_____________________.
b) A uma composição de dois quartetos e dois tercetos dá-se o nome de
____________
2. Responda com suas palavras:
Como se classifica a estrofe:
a) em relação à composição______________________________
b) em relação ao poema__________________________________
c) em relação à estrutura__________________________________
3. Que são estrofes irregulares______________________________
4. Conceitue o verso_____________________________________
5. Enumere os itens da coluna da direita de acordo com o seu correspon-
dente na coluna da esquerda:
(1) Prótese ( ) perda da sílaba inicial da palavra
(2) Hiato ( ) fusão de dois sons em um só dentro da
mesma palavra
(3) Aférese ( ) elisão do fonema nasal
(4) Sinérese ( ) aumento de fonema no início da palavra
(5) Ectilipse ( ) separação de dois sons intervocálicos
6. Complete as frases:
a) Monóstico é ________________________________________
b) Sextilha é ___________________________________________
c) Em relação à métrica, as estrofes podem ser: _______________
d) Um verso de 6 sílabas é chamado ________________________
e) Um verso de 9 sílabas é chamado _________________________
f) Um verso de 11 sílabas é chamado ________________________

133
Teoria da Literatura I

PRÓXIMA AULA

Logo mais você verá a segunda parte do assunto que compreende os


elementos formais do poema.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar,
1967.
CANDIDO, Antonio e CASTELO, Aderaldo. Presença da literatura
brasileira I. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
TAVARES, Hênio. Teoria literária. Belo Horizonte: Villa Rica Editora,
1996.

134
Aula 10

O POEMA E SEUS
CONSTITUINTES ( 2ª PARTE)
META
Apresentar os elementos formais do poema referentes ao ritmo e à rima.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
- Identificar as diferenças entre o ritmo melódico, o ritmo lógico e o ritmo psicológico;
- Comparar as características do ritmo na prosa e na poesia;
- Reconhecer as diferenças entre os vários tipos de rima;
- Avaliar a importância maior ou menor da rima na elaboração do poema.

PRÉ-REQUISITOS
A aula 9, que contém a primeira parte do assunto que descreve o poema e seus
constituintes

Antonio Cardoso Filho


Teoria da Literatura I

INTRODUÇÃO

O que dissemos na Introdução da aula anterior serve de igual modo para


esta aula. Você pode se perguntar: “Se é assim, porque o conteúdo desta aula
já não faz parte da aula passada?” Bem, é porque cada aula deve ser escrita
em função do tempo normal de uma aula presencial e, sendo assim, não é
possível estudar tudo em tão pouco tempo. Aliás, neste momento, você já
percebeu que o conteúdo da 1ª parte da Aula 10 é demasiado para se estu-
dar em duas horas. Se essa demasia não foi evitada é devido à importância
de você ter uma visão geral desses aspectos técnicos do poema. Mesmo
assim, o que está posto lá e o que você vai ver aqui ainda não é suficiente
para um estudo aprofundado do assunto.
Vamos, então, começar essa nova etapa, que trata do RITMO e da
RIMA.

138
O poema e seus constituintes (2ª parte) Aula 10
SOBRE O RITMO

O ritmo é a sucessão de sons fortes (tônicos) e fracos (átonos) que se


alternam no verso. Essas alternâncias produzem elevações e baixas de voz
que, associadas a pausas menores e maiores dão a sensação agradável que
experimentamos na leitura do poema em voz alta. Quando os versos têm
a mesma regularidade no ritmo são chamados de isorrítmicos, e quando não
apresentam regularidade são chamados de heterorrítmicos.
Quanto aos tipos de ritmo, podemos encontrar:
a) ritmo lógico – é o ritmo que prevalece na prosa. Na escrita, ele é percebido
através dos sinais de pontuação: vírgula, ponto, reticências, interrogação,
exclamação etc., tudo compondo um cenário cadenciado que imprime ao
texto o ritmo do seu andamento e o clima psicológico de seu tema.
b) ritmo melódico (ou mecânico) – é característico do verso, de modo especial,
do verso feito sob medida. Dentro deste tipo de ritmo, encontramos ictos
e pausas.
Chama-se icto a sílaba tônica, ou sílabas tônicas, mais fortes do verso.
Note que na estrofe abaixo os ictos recaem na segunda e na quinta sílabas
dos versos:

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros nasci:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
(Gonçalves Dias)

Com relação às pausas, elas têm duração variável.


- A pausa de duração mínima – dá-se no interior do verso e se chama cesura;
- A pausa de duração média – dá-se no final do verso;
- A pausa de duração máxima – dá-se no final da estrofe.
Ao ler a estrofe abaixo, sentimos algumas pausas leves, mínimas, nos
pontos que demarcamos com uma barra. São as cesuras.

Hão de chorar por ela / os cinamomos


Murchando as flores / ao tambor do dia. Ver glossário no
final da Aula
Dos laranjais / hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela / que os colhia.

(Alphonsus de Guimaraens)

139
Teoria da Literatura I

Mas, cuidado! Nem sempre ocorre uma pausa no final do verso. Não
raramente, o sentido de um verso continua no verso seguinte. Daí não se
poder fazer uma pausa no final. A esse fenômeno se dá o nome de encadea-
mento ou enjambment.

Eu sei que vou te amar


Por toda a minha vida eu vou te amar
A cada despedida eu vou te amar
desesperadamente, eu sei que vou te amar.

(Vinícius de Moraes e Tom Jobim)

Outro fenômeno do verso é o corte. Isso ocorre quando há uma pausa


máxima no interior do verso, forçada pela presença de uma pontuação
forte. É o que vai acontecer no meio do terceiro verso com o ponto na
palavra “espanholas”.

Sopra o vento, desdobra-o, resplandecem


De um lado a imagem do Cordeiro, e do outro
As armas espanholas. Como assenso
Ver glossário no Da divina mansão, esparge a brisa
final da Aula Um chuveiro de flores sobre a imagem,

(Araújo Porto Alegre)

Dentro do ritmo melódico há que se considerar ainda o segmento melódico


que é a parte do verso que constitui a unidade do ritmo. Um verso pode ter
um ou mais segmentos melódicos.

Oh! que saudades / que tenho


Da aurora / da minha vida
Da minha / infância querida
Que os anos/ não trazem mais!

(Casimiro de Abreu)

Para detectar o segmento melódico é necessário verificar onde estão a


cesura e a pausa final do verso. Se o verso tiver apenas um segmento, será
considerado simples (versos com até quatro sílabas métricas); se tiver mais
de um segmento melódico, será considerado composto (versos com mais de
quatro sílabas métricas).

140
O poema e seus constituintes (2ª parte) Aula 10
c) ritmo psicológico (ou interior) – característico do verso livre, que não se
preocupa com a forma de musicalidade do verso medido e deixa a cargo
do leitor a percepção do clima poético.

Não faças versos sobre acontecimentos.


Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Ver glossário no
(Drummond) final da Aula

(Fonte: http://brunogodinho.zip.net/).

Comparando a forma de organização do ritmo e do metro, podemos


dizer que este último é um fator formal e exterior do poema enquanto o
ritmo é algo subjetivo e está relacionado com a produção de uma certa
emoção, por isso tem a ver com o interior do sujeito poético.
Os apoios rítmicos do verso, ou seja, os lugares onde estão os ictos
podem-se dar em qualquer sílaba a depender da preferência do poeta. En-
tretanto, existem algumas convenções. Por exemplo, o verso decassílabo
quando apresenta o esquema rítmico na 6ª e na 10ª sílabas chama-se heroico;
quando este esquema está na 4ª, 7ª e 10ª sílabas, chama-se provençal; e quando
ocorre na 4ª, 8ª e 10ª sílabas, chama-se sáfico.

SOBRE A RIMA

A rima é a semelhança ou igualdade de som. Ela pode ocorrer no final


de versos diferentes, no interior do mesmo verso ou ainda no final de um
verso com o interior de outro. Mas a rima não é um dado intrínseco ao po-
ema e nem sempre existiu. Entre os gregos e os romanos ela não aparecia.
Mas aqui nós vamos estudá-la. Então, comecemos.

141
Teoria da Literatura I

Em relação ao modo como a rima está organizada, os versos podem ser:


a) monorrimos – se há apenas um tipo de rima. Seu esquema pode ser in-
dicado como a a a a.

Todo o Oriente corre a recebê-la:


O nardo, a mirra, o aloés, a canela,
O sândalo e a baunilha estão por ela
Asas de aroma a levantar, por vê-la.

(Luís Delfino)

b) polirrimos – quando há mais de um tipo de rima.

Tuas palavras antigas


deixei-as todas, deixei-as,
junto com as minhas cantigas,
desenhadas nas areias.

(Cecília Meireles)

c) brancos ou soltos – quando não há rima.

Aquele rio*
Ver glossário no era como um cão sem plumas.
final da Aula Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

(João Cabral de Melo Neto)

(Fonte: http://tarjaverde.files.wordpress.com).

142
O poema e seus constituintes (2ª parte) Aula 10
A rima é classificada em relação a cinco aspectos: disposição, qualidade,
som, intensidade e gênero.
1. Quanto à disposição, ela pode ser final e interna.
Final – quando acontecem no fim do verso. As rimas finais podem ser:
- paralelas – um verso rima com o seguinte. Seu esquema é a a b b.

Filho meu, tesouro mago


de todo esse afeto vago...
Filho meu, torre mais alta
de onde o meu amor se exalta.

(Cruz e Sousa)

- Opostas – o esquema é a - - a. Entre os versos rimados existem dois outros


que podem conter rima ou não.

Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso,


Que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada...
Sobre as névoas te libras vaporoso...
Ver glossário no
(Castro Alves) final da Aula

- Alternadas – seu esquema é a b a b.

Minh’alma é triste como a flor que morre


Pendida à beira do riacho ingrato.
Nem beijos dá-lhes a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!

(Casimiro de Abreu)

- Misturadas – como o próprio nome está dizendo, não têm esquema pa-
dronizado.

Acorda! à ave na selva,


Às flores no agasalho
Da relva;

À aranha em cuja corda


Treme a gota de orvalho:
Acorda!

143
Teoria da Literatura I

Do caniçal às flechas,
do matagal às ramas;
implexas;
(Alberto de Oliveira)

- Continuadas – é a repetição do mesmo som na estrofe ou até mesmo no


poema completo.
Ó tristeza sem fim deste dia de agosto!
É como um dia que nascesse de um sol-posto:
um dia já vivido, um dia já transposto
há muito, muito tempo... um dia decomposto
– cadáver de outro dia – a apodrecer exposto
ao sol profanador de outro dia disposto
a ser útil e belo; um dia recomposto,
feito do que ficou de dias de desgosto.

(Guilherme de Almeida)

INTERNA – é aquela que se dá dentro do verso. As rimas internas se


subdividem em:
- Aliterantes – quando sons consonantais iguais ou semelhantes se repetem.

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem...


que já vem, que já vem, que já vem...

(Chico Buarque de Holanda)

- Encadeadas – acontecem com palavras do final de um verso com palavra


do interior do verso seguinte.

Carinhosa e doce, ó Glaura,


Vem esta aura lisonjeira,

(Silva Alvarenga)

(Fonte: http://img.olhares.com).

144
O poema e seus constituintes (2ª parte) Aula 10
- Coroadas – ocorrem no interior do verso.

Na messe, que enlourece, estremece a quermesse

(Eugênio de Castro)

Esse tipo de rima é também uma figura de harmonia chamada eco.

2. Quanto à qualidade.
A qualidade é uma característica que tem a ver com a classe gramatical
das palavras que rimam. Então, considerando a qualidade, a rima pode ser:
Pobre – se as palavras pertencem à mesma classe gramatical.

Não acabava, quando uma figura


Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida.

(Camões)
Rica – quando as palavras pertencem a classes gramaticais diferentes.

Aqui outrora retumbaram hinos;


Muito coche real nestas calçadas
E nestas praças, hoje abandonadas,
Rodou por entre os ouropéis mais finos...

(Raimundo Correia)

(Fonte: http://www.novcar.com).

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Teoria da Literatura I

Raras – quando a rima se dá com palavras pouco utilizadas para a rima.

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque –
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,

Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

(Fernando Pessoa)

3. Quanto ao som.
Quando falamos em som, estamos aqui nos referindo à extensão dos
fonemas que rimam. Nesse aspecto, a rima pode ser consoante, toante (ou
assoante) e impura.
Rima consoante – é aquela que se dá a partir da última vogal tônica do verso.

Destes penhascos fez na natureza


O berço em que nasci: Oh! quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

(Cláudio Manuel da Costa)

Essa rima se subdivide em: suficiente e opulenta.


- Suficiente – quando a identidade do som ocorre apenas a partir do último
icto, da última vogal tônica do verso, como se deu no exemplo anterior.
- Opulenta – quando a identidade do som ocorre também com os fonemas
anteriores ao icto.

Pintei-lhe outra vez o estado,


em que estava esta alma posta;
não me deu também resposta,
constrangeu-se e suspirou.
(Tomás Antônio Gonzaga)

Rima toante – é aquela que se dá apenas na vogal tônica final do verso.

O cristal do Tejo Anarda


Em ditosa barca sulca;
Qual perla, Anarda se alinda,
Qual concha, a barca se encurva.

(Botelho de Oliveira)

146
O poema e seus constituintes (2ª parte) Aula 10
Rima impura – é aquela em que o timbre da vogal tônica é diferente.

O coração é o colibri dourado


Das veigas puras do jardim do céu.
Um – tem o mel da granadilha agreste, Ver glossário no
Bebe os perfumes, que a bonina deu. final da Aula

4. Quanto à intensidade.
A intensidade do som é vista em relação à força com que a palavra é
pronunciada. As palavras oxítonas levam a força até o final, as paroxítonas
diminuem o impacto final e as proparoxítonas puxam o som para trás. De
modo que, em relação à intensidade, a rima pode ser aguda, grave e esdrúxula.

- Agudas – quando é feita com palavras oxítonas. Observa acima que se da


entre os versos 3 e 6.

Um sussurro também, em sons dispersos,


Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns, talvez, ainda, os ecos falarão.
E em seu surto, a buscar eternamente o belo,
misturado à voz das monjas do Carmelo,
subirão até Deus nas asas da oração.

(Alberto de Oliveira)

- Graves – quando se dão em palavras paroxítonas.


Nas estrofes acima, temos rima grave acontecendo entre os versos 1
e 2; e 4 e 5.
- Esdrúxulas – quando ocorrer em palavras proparoxítonas.

Ah! quanto custa, ó Deus, ver as crianças pálidas!


Pobres botões em flor! pobres gentis crisálidas!

(Guerra Junqueiro)

5. Quanto ao gênero.
Nessa categoria, a rima pode ser: masculina e feminina.
- Masculina – se é feita com palavras oxítonas.
- Feminina – se é feita com palavras paroxítonas.

Logo, toda rima masculina é aguda, e toda rima feminina é grave.

147
Teoria da Literatura I

CONCLUSÃO
Terminamos agora os aspectos técnicos da composição poé-tica. Evi-
dentemente, ainda haveria muito a dizer, mas com o que está demonstrado,
você foi despertado para a existência da riqueza de procedimentos encon-
trados no poema. Então, fazer um poema obedecendo a esses critérios não
é uma tarefa simples. Exige estudo e dedicação dos que querem chegar lá.
Mas, com a poética moderna, essas muitas formas técnicas já não são
tão exigidas, o que não significa que não sejam encontradas. Assim, deixamos
a você a tarefa de uma pesquisa maior a partir do seu interesse e do apoio
do professor-tutor. Nunca pense que a poesia está fora de moda. Nunca
esteve nem vai estar. Porque ela é um lugar privilegiado para a expressão
da alma humana desde os sentimentos mais simples e corriqueiros até os
mais profundos. Fazer poesia é ver o mundo pelo lado de dentro e todo o
arsenal técnico – sejam os tradicionais ou os modernos – tem por finalidade
ajudar o poeta a atingir as múltiplos dimensões do sentido e juntamente
com ele alcançar o gozo da linguagem.

RESUMO

Durante a aula, caro aluno, você conheceu os outros constituintes do


poema, como o ritmo e a rima. Sobre o ritmo, foi exposto que ele é car-
acterizado pela sucessão de sons fortes e fracos alternados no verso. Os
tipos de ritmo são: lógico, melódico e psicológico. Já a rima é a igualdade
ou semelhança de som, tendo sua classificação dividida em cinco aspectos:
disposição, qualidade, som, intensidade e gênero. Os versos podem ser or-
ganizados de modos diferentes, de acordo com a rima, então eles podem
ser: monorrimos, polirrimos e brancos.

ATIVIDADES

Da mesma forma que você fez na aula anterior, continue com esta aula,
respondendo aos itens abaixo:
1. Como se divide o ritmo? _______________________________
2. Como se classifica o verso quanto ao ritmo? _______________
3. Como se classifica a rima quanto
a) à disposição_________________________________________
b) à qualidade _________________________________________

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O poema e seus constituintes (2ª parte) Aula 10
4. Classifique as rimas finais dos versos seguintes quanto à disposição:
a) Eu sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores Ver glossário no
final da Aula
(Gonçalves Dias)

b) Em mim também que descuidado vistes,


Encantado e aumentando o próprio encanto,
Tereis notado que outras cousas canto
Muito diversas do que outrora ouvistes”

(Olavo Bilac)

5. Nas afirmações abaixo, escreva dentro dos parênteses a letra “S” se a


afirmação for completamente correta e a letra “N” se for falsa ou contiver
algum dado incorreto.

a) ( ) Cesura é o nome que se dá à pausa no fim da estrofe.


b) ( ) O ritmo melódico é o organizado pela alternância de vozes tônicas
culminantes e pausas alternadas.
c) ( ) O segmento melódico é a unidade do ritmo mecânico.
d) ( ) Rimas encadeadas são aquelas que se verificam no final de um verso
com o final do verso seguinte.
e) ( ) Rima aguda é aquela que se dá entre palavras paroxítonas.
f) ( ) A rima rara ocorre com palavras cuja terminação não é comum.
g) ( ) O ritmo lógico é característico do verso livre.
h) ( ) Icto são as sílabas tônicas principais do verso.
i) ( ) Quanto à qualidade, a rima pode ser pobre, rica e rara.
j) ( ) Corte é a pausa forte no interior do verso.

REFERÊNCIAS

ALVES, Castro. Espumas flutuantes e outros poemas. São Paulo: Ática,


1998.
ANDRADE, Carlos Drummond. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar,
1967.
CANDIDO, Antonio e CASTELO, Aderaldo. Presença da literatura
brasileira I. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
TAVARES, Hênio. Teoria literária. Belo Horizonte: Villa Rica Editora,
1996.

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