Teoria Da Literatura II - CESAD

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Teoria da Literatura II

Luiz Eduardo Oliveira

São Cristóvão/SE
2009
Teoria da Literatura II
Elaboração de Conteúdo
Luiz Eduardo Oliveira

Projeto Gráfico e Capa


Hermeson Alves de Menezes

Diagramação
Nycolas menezes Melo

Ilustração
Gerri Sherlock Araújo
Luzileide Silva Santos

Copyright © 2009, Universidade Federal de Sergipe / CESAD.


Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada
por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia
autorização por escrito da UFS.

FICHA CATALOGRÁFICA PRODUZIDA PELA BIBLIOTECA CENTRAL


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

O48t Oliveira, Luiz Eduardo Meneses de.


Teoria da Literatura II / Luiz Eduardo Meneses de Oliveira -- São
Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, CESAD, 2009.

1. Literatura - Teoria. 2. Português. 3. Língua portuguesa I. Título.

CDU 82
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Sumário
AULA 1
A Teoria da Literatura no Currículo de Letras .................................... 07

AULA 2
História Literária e Teoria da Literatura ............................................. 23

AULA 3
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais ................................... 37

AULA 4
Da retórica à História Literaria: uma história do ensino de Literatura no
Brasil.....................................................................................................55

AULA 5
Os gêneros literários ......................................................................... 69

AULA 6
Os gêneros do discurso..................................................................... 85

AULA 7
A narrativa oral: algumas considerações........................................... 97

AULA 8
A tradição da narrativa e o romance moderno ................................ 109

AULA 9
A questão do foco narrativo ............................................................. 123

AULA 10
O conto literário ............................................................................... 135

AULA 11
Literatura e História: representações da escola na literatura brasileira
do século xix .................................................................................... 149

AULA 12
Machado de Assis e os ingleses: um caso de literatura comparada......165
Aula 1

A TEORIA DA LITERATURA NO
CURRÍCULO DE LETRAS
META
Apresentar, do ponto de vista histórico, o processo de institucionalização da Teoria da
Literatura como campo de estudos e disciplina acadêmica; e discutir seus
principais pressupostos e características, bem como suas finalidades, no
currículo dos cursos de Letras.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
idefinir o processo de formação e institucionalização da Teoria da Literatura
como disciplina acadêmica e
reconhecer e identificar seus principais pressupostos e características, bem
como suas finalidades, no currículo dos cursos de Letras.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá ter familiaridade com a problemática do conceito de Literatura e
conceitos-chave da poética clássica, adquiridos em Teoria da Literatura I.

Luiz Eduardo Oliveira


Teoria da Literatura II

INTRODUÇÃO
Olá, caro aluno! Seja bem-vindo ao nosso primeiro encontro. A Teoria
da Literatura, de presença tão notável nos currículos dos Cursos de Letras,
geralmente é entendida como uma espécie de disciplina-base dos estudos
literários. De acordo com esse entendimento, ela seria um saber geral que
abrange diversos compartimentos, ou subdisciplinas – poética, história da
literatura, crítica literária etc. –, servindo de parte introdutória para um
estudo “prático” do fato literário, representado pelas várias literaturas na-
cionais – literatura portuguesa, brasileira, francesa, inglesa etc.
Contudo, tal senso comum a respeito da Teoria da Literatura, além
de generalizar um saber que se constituiu historicamente, a muito longo
prazo, e com características marcantes em cada época, impede a sua com-
preensão como disciplina específica, diferenciada das demais (Retórica,
Poética, História da Literatura, Crítica Literária etc) não só do ponto de
vista terminológico, mas também metodológico e epistemológico, uma vez
Ver glossário no que (re)elabora uma rede de conceitos e apresenta novas filiações teóricas
final da Aula e concepções outras a respeito do fato literário.
Nesta primeira aula, veremos como tal entendimento da Teoria da
Literatura pode estar equivocado, pela investigação de seus antecedentes
históricos e de sua própria constituição como disciplina acadêmica nos
cursos de Letras. Assim, poderemos compreender o modo como a Teoria
da Literatura define seus métodos, a partir de filiações teóricas correntes
no início do século XX, e (re)define o seu objeto de estudo.
Antes, porém, faremos uma breve explanação do conceito de Literatura,
isto é, o modo como o termo assume sentidos diversos até adquirir suas
acepções atuais. Em seguida, veremos também que a Literatura, como a
entendemos hoje, se constitui um objeto de estudo desde a Antiguidade
clássica, adquirindo, com o passar do tempo, conformações disciplinares
diversas, tais como Retórica, Poética, História da Literatura, Ciência da
Literatura e Crítica Literária.

CONCEITO DA LITERATURA
A historicidade do conceito de Literatura: “Literatura” é um conceito
moderno e relativamente recente, pois se desenvolve a partir do século
XVIII e se consolida no século XIX, quando se constitui como disciplina
escolar e depois acadêmica, pelo menos no mundo ocidental. Se hoje usa-
mos a palavra “literatura” para referirmo-nos a escritores da Antiguidade
clássica, e se tomamos Aristóteles como seu principal teórico sem nenhum
medo de sermos taxados de anacrônicos, isso se deve à naturalização de
tal conceito, que se tornou forte o suficiente para entrar no vocabulário da
escola, da academia e da sociedade.

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A Teoria da Literatura no currículo de Letras Aula 1
Contudo, diante da multiplicidade de respostas que podem ser dadas à
pergunta “o que é literatura?”, as coisas não se mostram tão simples assim.
Para respondê-la, é preciso levar em conta as condições sócio-políticas, cul-
turais e ideológicas que fazem com que obras e autores de um dado período
histórico tornem-se literários, para além de sua literariedade – isto é, dos
elementos internos que desautomatizam os usos comuns da linguagem –,
pois esta, do mesmo modo, é uma categoria historicamente construída,
podendo ser identificada também em textos não literários. Como afirma
Eagleton (1983, p. 9),

Se é certo que muitas das obras estudadas como literatura nas


instituições acadêmicas foram “construídas” para serem lidas como
literatura, também é certo que muitas não o foram. Um segmento de
texto pode começar sua existência como história ou filosofia, e depois
passar a ser classificado como literatura; ou pode começar como
literatura e passar a ser valorizado por seu significado arqueológico.
Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de
literários, e a outros tal condição é imposta.

Segundo Souza (2007, p. 45), a palavra “literatura”, no decorrer da


história, teve dois significados básicos:
1. Até o século XVIII, a palavra manteve seu sentido primitivo de sua origem
latina (o termo provém do latim litteratura, “arte de escrever, literatura”, a
partir da palavra latina littera, “letra”), significando conhecimento relativo
às técnicas de escrever e ler; cultura do homem letrado e instrução.
2. Da segunda metade do século XVIII em diante, o vocábulo passa a
significar o produto da atividade do homem de letras; conjunto de obras
escritas; estabelecendo-se as bases de suas acepções modernas.
Chervel e Compère (1999, p. 157), por sua vez, afirmam que, na França
do século XVIII, uma verdadeira reviravolta de significados intervém nesse
campo lexical. As “letras”, que designavam o conjunto do saber, incluindo
as ciências, têm de limitar seu sentido, por volta de 1720, às obras literárias.
As “belas-letras”, por sua vez, que englobavam anteriormente até a filosofia,
evoluem em uma direção análoga a partir de 1750. Quanto à “literatura”, que
para Fontenelle, no prefácio da História da Academia das Ciências (1699),
ainda compreendia todas as produções do espírito, inclusive as matemáticas,
se fixa no uso moderno somente no decorrer da segunda metade daquele
mesmo século. Quanto às acepções modernas do termo “literatura”, Souza
(2007, p. 45) elenca as seguintes:
1. conjunto da produção escrita de uma época ou país (literatura clássica,
brasileira, etc.);
2. conjunto de obras distinto pela temática, origem ou público visado (lit-
eratura infantil, feminina, etc.);
3. bibliografia sobre determinado assunto (literatura médica, jurídica, etc.);

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Teoria da Literatura II

4. ficção ou irrealidade;
5. disciplina dedicada ao estudo da produção literária.
Desse modo, mesmo que possamos fazer referência a autores e obras
relacionados às acepções atuais de literatura em momentos anteriores ao
século XVIII, é preciso ter em mente que, a rigor, estamos sendo ana-
crônicos, pois não podemos atribuir uma compartimentação específica do
saber humanístico ocidental a épocas em que os saberes ainda não estavam
compartimentados, ou setorizados, pelo menos do modo como se tornaram,
especialmente a partir do século XVIII.
Feitas essas considerações iniciais, passaremos agora a ver quais são os
antecedentes históricos da literatura como objeto de estudo.

A LITERATURA COMO OBJETO DE ESTUDO:


ANTECEDENTES HISTÓRICOS

As primeiras discussões a respeito do que atualmente chamamos


de Literatura apresentam-se nos próprios textos que hoje consideramos
literários. Assim, em obras como a Ilíada e a Odisséia, de Homero, há
passagens em que aparecem considerações a respeito da natureza e função
da poesia e do poder do discurso. Souza (2007, p. 11) exemplifica uma de
tais passagens com a Odisséia:

Depois de terem comido e bebido à vontade, Ulisses exclamou:


“Demódocos, coloco-te acima de todos os homens mortais! Deveis
ter aprendido com a Musa, filha de Zeus, ou com Apolo, seu filho,
pois contas muito bem o destino dos aqueus, tudo o que eles fizeram
e sofreram e as dificuldades que enfrentaram, como se ali tivesses
estado, ou ouvido de alguém que esteve. Agora, muda de tom e
conta o ardil do cavalo de madeira, como Epeios o fez com a ajuda
de Atenéia, e Ulisses o introduziu dentro da cidadela, por meio de
um estratagema, cheio dos homens que tomaram Ílion. Depois, se
contares bem a história, declararei sem demora a todo mundo que
Zeus foi generoso contigo e inspirou teu canto.

De acordo com a citação acima, podemos perceber uma explicação


acerca da origem, natureza e função da poesia, ou da literatura, em sentido
geral. Conforme o poeta grego, a origem da literatura é o ensinamento
dos deuses, pois o bom poeta é aquele bem aquinhoado pelas musas. Sua
natureza consiste em ser uma narrativa dotada de poder de encantamento,
algo observável pelo seu talento em narrar episódios passados como se lá
estivesse. Sua função, finalmente, é reconstituir as ações dos grandes heróis
lendários e históricos.
A primeira obra dedicada especialmente à Literatura como objeto de
teorização é Defesa de Helena, de Górgias. Mas é com Platão e Aristóteles

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A Teoria da Literatura no currículo de Letras Aula 1
que o que hoje consideramos estudos literários assumem contornos melhor
definidos. Platão se ocupa da questão em Íon, A República, Fedro e As
Leis, e Aristóteles na Poética, na Política e na Retórica.
Em ambos os autores, podemos distinguir dois aspectos básicos das pri-
meiras teorizações sobre Literatura, em sentido lato: uma natureza normativa e
uma natureza descritiva. Seu aspecto normativo caracteriza-se pela absolutização
de certos valores ou dogmas orientadores de toda produção poética ou literária.
Seu caráter descritivo, por outro lado, consiste na especulação aberta sobre o
fato literário, associando-se à discussão de hipóteses explicativas diversas.

A LITERATURA E SUAS DISCIPLINAS


TRADICIONAIS

A primeira disciplina a tratar do que hoje chamamos Literatura foi a


Retórica, surgida no século V a.C., com o objetivo de sistematizar os recursos
que poderiam dotar a palavra do poder de persuasão, englobando a literatura
como modalidade específica de arte. No princípio, ela abrangia cinco partes,
correspondentes às etapas da elaboração e execução do discurso: inventio
(achar o que dizer); dispositio (pôr em certa ordem o que se tem a dizer);
elocutio (colocar os ornamentos do discurso); pronunciatio (dicção e ges-
ticulação adequadas ao discurso) e memoria (confiar o discurso à memória).
Com o passar do tempo, essas etapas reduzem-se a somente uma de suas
partes: a elocutio, uma vez que a inventio e a dispositio são remanejadas para
a Dialética e, dada a progressiva ênfase nas composições escritas, eliminam-se
também a pronuntiatio e a memoria. Tal redução, causada por fatores diversos,
entre os quais o apagamento de sua função utilitária e a especialização dos
saberes, a partir do século XVIII, fez com que os recursos discursivos classi-
ficados pela Retórica clássica passassem a fazer parte dos manuais de Gramática
com o nome geral de “tropos e figuras” ou “figuras de estilo”. Posteriormente,
tais figuras foram, por sua vez, reduzidas ao par metáfora/metonímia, com o
formalismo russo do início do século XX (SOUZA, 1999, p. 11-12).
A Poética, que, como a Retórica e a Gramática, constitui uma das
disciplinas clássicas dos discursos, surgiu também na Grécia do período
clássico e tem na obra de Aristóteles o seu primeiro tratado sistemático.
Até o século I, a Poética se manteve dissociada da Retórica, pois, enquanto
esta tratava da oratória e do raciocínio, aquela tinha como objeto o estudo
dos gêneros hoje considerados literários. Conforme os ensinamentos de
Aristóteles, são quatro os conceitos-chave da arte poética:
1. Mímese: concepção da literatura e da arte em geral como imitação, as-
sumindo este termo, com o passar dos tempos, variadas interpretações;
2. Verossimilhança: propriedade que tem toda obra literária de engendrar
situações coerentes e necessárias segundo a sua lógica interna, bem como
a sua semelhança com o verdadeiro, ou com a verdade;

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Teoria da Literatura II

3. Catarse: propriedade que tem toda obra literária de promover uma puri-
ficação ou clarificação racional das paixões, mediante a criação de situações
comoventes;
4. Gêneros Literários: distinção entre tragédia, comédia, epopéia, etc.
A partir do século I, a Retórica e a Poética passam a se confundir,
permanecendo quase indissolúveis até o século XIX, quando, com a re-
descoberta da obra de Aristóteles, a Poética se transforma em uma disci-
plina de caráter filosófico-técnico-formal própria para escritores e críticos
literários, e a Retórica passa a ser uma disciplina técnico-formal circunscrita
aos professores e ao ensino, especialmente pelos jesuítas (BARTHES, apud
Souza, 1999, p. 14).
Tal indissolubilidade é visível nos programas de ensino do Imperial
Colégio de Pedro II durante quase todo o Brasil oitocentista, nos quais a
cadeira de Retórica e Poética, ensinada no sétimo e último ano do curso
secundário, como o próprio nome da disciplina sugere, englobava ambas
as matérias, além de incluir, a partir da década de 1860, aspectos históricos
da literatura nacional, isto é, portuguesa e brasileira, e geral – literaturas
clássicas e modernas de outros países (SOUZA, 1999).
Vale ressaltar que a palavra “poesia”, da qual deriva o termo “poé-
tica”, nos dá a impressão de que esta disciplina trata exclusivamente de
composições em verso. Assim como a palavra “literatura”, os sentidos do
vocábulo poesia variam consideravelmente no decorrer da história. Souza
(2007) nos fornece uma síntese deles:
1. Gênero literário caracterizado pelo uso do verso, em oposição à prosa, sig-
nificado que prevaleceu na Antiguidade clássica e no classicismo moderno,
apesar da ressalva de Aristóteles de que o objeto da Poética constituía-se
em uma série de propriedades, tais como a mímese, a verossimilhança e a
catarse, e não em um conjunto de composições em verso, o que incluiria
certos tratados de medicina;
2. A literatura em geral, abrangendo composições metrificadas e não
metrificadas, desde que dotadas de propriedades artísticas ou ficcionais,
concepção que se consolida no século XIX, com o Romantismo;
Circunstância, paisagem, manifestação artística, situação existencial, etc.,
capazes de gerar ressonâncias especiais no espectador, tais como emoção e
beleza, esta um objeto de uma disciplina criada no século XVIII, a Estética,
de muita influência na origem das concepções românticas.
Com a decadência da Retórica e da Poética, causada por uma série de
fatores, dentre os quais a sua pouca ligação com o projeto nacionalista em
curso em vários países, principalmente no Brasil, que acabava de alcançar a
sua independência política, e a estética romântica, que valorizava as criações
individuais de escritores que fugiam às prescrições clássicas, surge uma nova
disciplina dedicada aos estudos literários, a História da Literatura.
Ocupando espaço inicialmente nos domínios da Retórica e Poética, a
História da Literatura vai assumir hegemonia tanto na crítica quanto no

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A Teoria da Literatura no currículo de Letras Aula 1
sistema de ensino, algo representado, no Brasil, pelo grande número de
compêndios de História da Literatura Brasileira publicados no período,
bem como pela notoriedade de seus autores: Cônego Fernandes Pinheiro,
Sílvio Romero, etc. (OLIVEIRA, 1999).
A História da Literatura, além de se conformar ao projeto romântico
de invenção e consolidação de um espírito de nacionalidade, historiando
cronologicamente os autores e obras mais representativos de cada país,
adaptava-se ao ideal cientificista do final do século, pois buscava causas bi-
ológicas e sociológicas para o fato literário. Desse modo, ela se desenvolveu
sobre dois modelos: um de natureza “biográfico-psicológica”, enfatizando a
vida do autor, a despeito do texto literário, outro de natureza “sociológica”,
que se concentrava nos fatores políticos, econômicos, sociais e ideológi-
cos da produção literária. Além dessas duas vertentes, Souza (2007, p. 31)
aponta um terceiro modelo, denominado “filológico”, o qual, obedecendo
também aos princípios historicistas e cientificistas do período, tinha os
seguintes objetivos:
1. Reconstruir textos antigos, truncados ou de algum modo alterados pelas
sucessivas impressões e edições;
2. Explicar textos antigos, por meio de notas relativas à história, geografia,
mitologia ou aos aspectos fonéticos, morfossintáticos e lexicais das línguas
em que são escritos;
3. Inventariar as fontes e influências das obras.
Outra expressão que concorreu com História da Literatura, em mea-
dos do século XIX, foi Ciência da Literatura, disciplina também de cunho
historicista e cientificista, mas cujo uso se consolidou somente em língua
alemã (Literaturwissenschaft), na qual ainda é usada, no século XX, com o
sentido corrente – e equivocado – de Teoria da Literatura. Ainda no século
XIX, passou a circular de maneira mais ampla a expressão Crítica Literária
para designar o saber sobre Literatura. Segundo Souza (2007, p. 32), na
Antiguidade, os gregos usavam como equivalentes as palavras kritikós e
grammatikós, caindo em desuso o primeiro termo. Como entre os romanos
o vocábulo criticus era raramente usado, preferindo-se usar grammaticus,
a palavra “crítica” só foi reabilitada no Renascimento, década de 1860,
aspectos históricos da literatura nacional, isto é, portuguesa e brasileira, e
geral – literaturas clássicas e modernas de outros países (SOUZA, 1999).
Vale ressaltar que a palavra “poesia”, da qual deriva o termo “poé-
tica”, nos dá a impressão de que esta disciplina trata exclusivamente de
composições em verso. Assim como a palavra “literatura”, os sentidos do
vocábulo poesia variam consideravelmente no decorrer da história. Souza
(2007) nos fornece uma síntese deles:
1. Gênero literário caracterizado pelo uso do verso, em oposição à prosa, sig-
nificado que prevaleceu na Antiguidade clássica e no classicismo moderno,
apesar da ressalva de Aristóteles de que o objeto da Poética constituía-se
em uma série de propriedades, tais como a mímese, a verossimilhança e a

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Teoria da Literatura II

catarse, e não em um conjunto de composições em verso, o que incluiria


certos tratados de medicina;
2. A literatura em geral, abrangendo composições metrificadas e não
metrificadas, desde que dotadas de propriedades artísticas ou ficcionais,
concepção que se consolida no século XIX, com o Romantismo;
Circunstância, paisagem, manifestação artística, situação existencial, etc.,
capazes de gerar ressonâncias especiais no espectador, tais como emoção e
beleza, esta um objeto de uma disciplina criada no século XVIII, a Estética,
de muita influência na origem das concepções românticas.
Com a decadência da Retórica e da Poética, causada por uma série de
fatores, dentre os quais a sua pouca ligação com o projeto nacionalista em
curso em vários países, principalmente no Brasil, que acabava de alcançar a
sua independência política, e a estética romântica, que valorizava as criações
individuais de escritores que fugiam às prescrições clássicas, surge uma nova
disciplina dedicada aos estudos literários, a História da Literatura.
Ocupando espaço inicialmente nos domínios da Retórica e Poética, a
História da Literatura vai assumir hegemonia tanto na crítica quanto no
sistema de ensino, algo representado, no Brasil, pelo grande número de
compêndios de História da Literatura Brasileira publicados no período,
bem como pela notoriedade de seus autores: Cônego Fernandes Pinheiro,
Sílvio Romero, etc. (OLIVEIRA, 1999).
A História da Literatura, além de se conformar ao projeto romântico
de invenção e consolidação de um espírito de nacionalidade, historiando
cronologicamente os autores e obras mais representativos de cada país,
adaptava-se ao ideal cientificista do final do século, pois buscava causas bi-
ológicas e sociológicas para o fato literário. Desse modo, ela se desenvolveu
sobre dois modelos: um de natureza “biográfico-psicológica”, enfatizando a
vida do autor, a despeito do texto literário, outro de natureza “sociológica”,
que se concentrava nos fatores políticos, econômicos, sociais e ideológi-
cos da produção literária. Além dessas duas vertentes, Souza (2007, p. 31)
aponta um terceiro modelo, denominado “filológico”, o qual, obedecendo
também aos princípios historicistas e cientificistas do período, tinha os
seguintes objetivos:
1. Reconstruir textos antigos, truncados ou de algum modo alterados pelas
sucessivas impressões e edições;
2. Explicar textos antigos, por meio de notas relativas à história, geografia,
mitologia ou aos aspectos fonéticos, morfossintáticos e lexicais das línguas
em que são escritos;
3. Inventariar as fontes e influências das obras.
Outra expressão que concorreu com História da Literatura, em mea-
dos do século XIX, foi Ciência da Literatura, disciplina também de cunho
historicista e cientificista, mas cujo uso se consolidou somente em língua
alemã (Literaturwissenschaft), na qual ainda é usada, no século XX, com o
sentido corrente – e equivocado – de Teoria da Literatura. Ainda no século

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A Teoria da Literatura no currículo de Letras Aula 1
XIX, passou a circular de maneira mais ampla a expressão Crítica Literária
para designar o saber sobre Literatura. Segundo Souza (2007, p. 32), na
Antiguidade, os gregos usavam como equivalentes as palavras kritikós e
grammatikós, caindo em desuso o primeiro termo. Como entre os romanos
o vocábulo criticus era raramente usado, preferindo-se usar grammaticus, a
palavra “crítica” só foi reabilitada no Renascimento, passando a significar a
restauração de textos antigos – tal como comprova a expressão ainda cor-
rente “crítica textual” –, além da atividade de comparar, classificar e julgar
a produção literária. A partir do final do século XVII, a expressão “crítica
literária” designa o saber geral sobre Literatura, concorrendo, no século
XIX com as expressões História da Literatura e Ciência da Literatura. No
século XX, os termos “crítica literária”, “poética”, “ciência da literatura” e
“teoria da literatura” são usados como sinônimos.

A CONSTITUIÇÃO DA TEORIA DA LITERATURA


COMO DISCIPLINA ACADÊMICA

Na virada do século XIX para o XX, vários fatores concorrem para


a crise das duas linhas mestras do pensamento filosófico e científico oi-
tocentista: o historicismo, que concebe a história como uma evolução
contínua e linear, além de teleológica, e o positivismo, que faz apologia à
ciência, concebida como um conhecimento neutro e objetivo baseado em
fatos observáveis. Entre os fatores, podemos enumerar o desenvolvimento
do método fenomenológico na filosofia, que influencia decisivamente
as ciências humanas; o aparecimento do gestaltismo; a configuração da
Lingüística Estrutural na obra de Ferdinand Saussure e a eclosão das
vanguardas artísticas, que concebiam a arte, e especialmente a Literatura,
mais como uma pesquisa de linguagem do que como representação de
fatos. No campo propriamente literário, tais orientações fizeram com que
aparecem, em diferentes centros culturais e universitários, várias correntes
de estudos que passaram a investigar o texto em si, em detrimento de seus
condicionantes externos, sejam eles biográficos, sociológicos ou biológicos.
Essa concentração na imanência dos textos buscava entender o fato literário
como resultante de um arranjo especial da linguagem, numa relação coerente
entre seus elementos internos, daí a ênfase na estrutura da obra literária, e
sua íntima relação com um saber que passava a constituir-se como disciplina-
mãe das ciências humanas, a Lingüística, influenciando decisivamente várias
áreas, como a antropologia e a psicanálise, que passaram a adotar posturas
estruturalistas. Desse modo, a Lingüística converteu-se em método dos
estudos literários, fato que fez com que Jakobson (1970, p. 119) chegasse a
afirmar que a Poética era uma parte integrante da Lingüística, uma vez que
esta era a ciência matriz da estrutura verbal. Como método, ela fez com que
os estudos literários adotassem como princípios: a imanência textual, isto é,

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Teoria da Literatura II

o funcionamento interno da estrutura da obra; o estabelecimento de níveis


de análise, ou de instâncias de organização textual – nível fonológico, nível
morfossintático, nível semântico –; e a integração das unidades de todo o
sistema lingüístico-literário. Além de um método, a Lingüística forneceu aos
estudos literários os elementos necessários para a delimitação e sistematiza-
ção científica do seu objeto: a literariedade, isto é, os recursos discursivos,
ou “mecanismos estruturais” que fazem com que algumas composições
verbais produzam um efeito de “desvio organizado” dos padrões do que
os formalistas russos consideravam a “linguagem comum”.
É nesse contexto de renovação teórico-metodológica e de redimension-
amento de seu objeto que os estudos literários ganham uma nova disciplina: a
Teoria da Literatura, que vai englobar as contribuições de várias das correntes
ou escolas que se desenvolveram a partir das primeiras décadas do século
XX – tais como a estilística, o formalismo russo e o new criticism anglo-
americano –, alcançando o status científico que lhe faltava para se adaptar
à nova configuração das ciências humanas, bem como para constituir-se
como disciplina acadêmica, algo que se consolida com o prestígio de Teoria
da Literatura (1949), obra do austríaco René Wellek e do norte-americano
Austin Warren, que fez com que a expressão se difundisse nos vários países
em que o livro foi traduzido e se transformasse no rótulo da nova disciplina,
que passou a ser alocada nos cursos superiores de Letras. Na medida em que
seu emprego se generalizava, foram perdendo terreno expressões concor-
rentes – Poética, História da Literatura, Crítica Literária, Retórica e Poética,
etc. –, a tal ponto de a nova disciplina se colocar como sinônima de estudos
literários, isto é, como uma disciplina-base que tem como objeto a Literatura
e da qual as outras são apenas sub-ramos (SOUZA, 2007, p. 21).
Esse momento de consolidação da Teoria da Literatura como disciplina
acadêmica coincide com a criação dos primeiros cursos de Letras no Brasil,
especialmente depois do Decreto 19.851, de 11 de abril de 1931, conhe-
cido como Estatuto das Universidades Brasileiras. O inciso I do artigo 5.º
do referido decreto tornou obrigatório o oferecimento das Faculdades de
Educação, Ciências e Letras, além dos cursos de Medicina, Engenharia e
Direito, para a constituição de uma universidade. Antes, o estudo das Letras
se dava em nível secundário, principalmente no Colégio de Pedro II, ao
fim do qual o estudante obtinha o grau de Bacharel em Letras. Contudo, o
caráter enciclopédico e humanístico de tal curso, dirigido primordialmente
à elite estudantil da época, acabava dotando a instrução secundária de um
perfil universitário, como veremos em aula posterior sobre o ensino de
Literatura no país do ponto de vista histórico.

16
A Teoria da Literatura no currículo de Letras Aula 1
CONCLUSÃO
Caro aluno, como vimos, ao contrário do que geralmente se pensa, a
Teoria da Literatura não pode ser entendida como um saber geral sobre
Literatura que abrange diversos compartimentos, ou subdisciplinas, servindo
de parte introdutória para um estudo “prático” do fato literário, mas como
uma disciplina específica que se constitui a partir das primeiras décadas
do século XX e se consolida com a publicação, em 1949, do livro Teoria
da Literatura, de René Wellek e Austin Warren. Alcançando hegemonia
entre as disciplinas dedicadas aos estudos literários, ela logo se consagrou
como uma espécie de campo privilegiado para o estudo e a pesquisa do
fato literário tornando subsidiárias as disciplinas tradicionais que tratavam
da matéria, que, por sua vez, também se constituíram historicamente, em
seus respectivos contextos institucionais, políticos, culturais e pedagógicos.
Desse modo, convém ressaltar que a Teoria da Literatura surgiu den-
tro de um panorama de reconfiguração das ciências humanas, causada em
grande parte pelo aparecimento da Lingüística Estrutural e do lugar de
destaque que os estudos da linguagem passaram a ter. Alcançando o estatuto
científico-acadêmico que lhe faltavam, diante das novas exigências intelec-
tuais, os estudos literários, já desgastados pelo prescritivismo da Retórica e
Poética e pelo historicismo e cientificismo da História e da Crítica Literária,
foram abarcados pela Teoria da Literatura.
Hoje em dia, a Teoria da Literatura atravessa um momento de crise, depois
de ter alcançado seus momentos de glória nas décadas de 1960 e 1970 (COM-
PAGNON, 2006). Tal crise fora motivada pelo crescente questionamento de
seus métodos e conceitos, bem como pelo universalismo de suas proposições.
Uma primeira indagação sobre o imanentismo da Teoria da Literatura ocorreu
ainda na década de 1960, quando a atenção dos estudiosos, seja da chamada
estética da recepção, de feição alemã, seja das mais recentes teorias do reader’s
response norte-americanas, concentrou-se no lei tor ou receptor da obra. A
publicação de A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária
(1967), de Hans Robert Jauss, ao trazer o tema da historiografia de volta ao
debate, estabeleceu os pressupostos para a reescrita da História da Literatura
sob a perspectiva da estética da recepção (Jauss, 1994). Já na década de 1990, o
“boom” dos Estudos Culturais fez com que vários pressupostos da Teoria
da Literatura fossem postos em cheque, tais como a literariedade – conceito
já criticado por Terry Eagleton, em seu manual Teoria da Literatura: uma
introdução, de 1983 –, “valor estético” e “cânones literários”.
Contudo, a Teoria da Literatura continua hegemônica nos cursos de
graduação em Letras, e não podemos deixar de reconhecer o seu valor e sua
contribuição para uma análise sistemática dos textos literários, principalmente
pelo seu instrumental teórico-metodológico, que dotou os estudos literários
de uma especificidade que até as primeiras décadas do século XX inexistia.

17
Teoria da Literatura II

RESUMO
Nessa primeira aula, aprendemos que o conceito de Literatura não
é algo dado e naturalizado, pois se constituiu historicamente, a partir da
segunda metade do século XVIII, quando o termo passou a significar um
grupo específico de textos dotados de propriedades artísticas ou estéticas,
e não todo o conjunto da produção escrita de uma determinada época ou
determinado país. Vimos também que a Literatura, tal como a entendemos
hoje, apesar de não se apresentar com esse nome, é um objeto de estudo
desde a Antiguidade clássica, e que seu primeiro teórico, por assim dizer,
foi Aristóteles, em sua Poética. Com as releituras e re-apropriações dessa
obra, na Idade Média e no Renascimento, esse objeto foi ganhando discip-
linas que se tornaram tradicionais, como a Retórica e a Poética, que depois
fundiram-se numa só matéria, a História da Literatura, hegemônica durante
os séculos XVIII e XIX, a Ciência da Literatura – disciplina que só se con-
solida em língua alemã – e a Crítica Literária. Por fim, aprendemos que o
termo “Teoria da Literatura” é de uso recente, tornando-se amplamente
empregado depois da publicação do livro de René Wellek e Austin War-
ren – Teoria da Literatura –, em 1949, quando tal rótulo passou a designar
a disciplina nos cursos universitários de Letras. Vale ressaltar que não se
trata de uma simples mudança terminológica, mas de uma mudança de
orientação teórica e metodológica, influenciada pelo destaque dos estudos
lingüísticos, principalmente depois da teorização dos formalistas russos.

ATIVIDADES
Responda às seguintes questões:
1. Por que não podemos usar o termo “literatura” para nos referir a obras
da Antiguidade clássica sem sermos anacrônicos?
2. De acordo com Souza (2007), quais são as acepções modernas do termo
“literatura”? Comente sobre cada uma delas.
3. Quais seriam os precursores dos estudos literários na Antiguidade clás-
sica? Cite resumidamente suas principais contribuições.
4. O que você entende por atitude prescritiva e descritiva dos estudos
literários? Qual dessas atitudes se encaixa melhor na Teoria da Literatura?
Justifique sua resposta.

18
A Teoria da Literatura no currículo de Letras Aula 1
5. Quais são as disciplinas tradicionais que tratam da Literatura? Descreva
resumidamente suas principais características.
6. Quais são, em sua opinião, os principais fatores que concorrem para a
configuração da Teoria da Literatura como disciplina acadêmica? Justifique
sua resposta.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Essa atividade tem por finalidade principal fazer com que você construa
uma síntese dos principais conteúdos dessa primeira aula, de modo
a compreender criticamente o processo de constituição da Teoria da
Literatura como uma disciplina específica, evitando o mal-entendido
segundo o qual tal disciplina designa um saber abrangente e geral sobre
Literatura, sendo as demais apenas ramificações suas.

REFERÊNCIAS

CHERVEL, André; COMPÈRE, Marie-Madeleine. As humanidades no


ensino. Tradução: Circe Maria Fernandes Bittencourt. Educação e Pes-
quisa. São Paulo, v. 25, n. 2, p. 149-170, 1999.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso co-
mum. Tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora
da UFMG, 2006.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução de
Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Tradução: I. Blikstein
e J. P. Paes. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1970.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria
literária. Tradução: Sérgio Tellarolli. São Paulo: Ática, 1994.
OLIVEIRA, Luiz Eduardo. A historiografia brasileira da literatura
inglesa: uma história do ensino de inglês no Brasil (1809-1951). Disser-
tação de Mestrado, Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas. 1999. Disponível em: <http://www.unicamp.br/
iel/memoria/Teses/index.htm>
SOUZA, Roberto Acízelo de. 1999. O império da eloqüência: Retórica
e Poética no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: EDUERJ / EDUFF, 1999.
__________ Teoria da literatura. 10 ed. São Paulo: Ática, 2007.

19
Teoria da Literatura II

GLÓSSARIO
Epistemológico: De Epistemologia ou teoria do conhecimento. É
um ramo da filosofia que trata dos problemas filosóficos relacionados
à crença e ao conhecimento. A epistemologia estuda a origem, a
estrutura, os métodos e a validade do conhecimento (daí também se
designar por filosofia do conhecimento). Ela relaciona-se ainda com
a metafísica, a lógica e o empirismo, uma vez que avalia a consistência
lógica da teoria e sua coesão fatual, sendo assim a principal dentre
as vertentes da filosofia (é considerada a “corregedoria” da ciência).
(fonte: http://pt.wikipedia.org).

Aristóteles: Filósofo grego (384-322 a.C), nascido


em Estagira. Um dos maiores pensadores de todos os
tempos, considerado o criador do pensamento lógico.

Anacrônicos: De anacronismo, isto é, falta contra a


cronologia. É um erro na data dos acontecimentos,
consiste em atribuir a uma época, a um personagem da história,
sentimentos, costumes que são de outra época. Falta de alinhamento,
consonância com um determinado período de tempo, com uma época.

Bernardle Bovier: Escritor francês (1657 -1757).


Também referenciado como Bernard le Bouyer de
Fontenelle.

Homero: Primeiro grande poeta grego cuja obra


chegou até nós. Teria vivido no século VIII a.C., período
coincidente com o ressurgimento da escrita na Grécia.
Consagrou o gênero épico com as obras Ilíada e Odisséia.
Além destas, são a ele atribuídas as obras Margites,
Batracomiomaquia e os Hinos homéricos.

Platão: Filósofo grego (428/27 a.C-347 a.C). Discípulo


de Sócrates, fundador da Academia e mestre de
Aristóteles. Acredita-se que seu nome verdadeiro era
Aristócles; Platão foi um apelido que, provavelmente,
fazia referência à sua compleição física ou à sua ampla
capacidade intelectual. Plátos, em grego, significa

20
A Teoria da Literatura no currículo de Letras Aula 1
amplitude, dimensão, largura. Platão ocupou-se com vários temas:
ética, política, metafísica e teoria do conhecimento.

Formalismo rurro: Influente escola de crítica literária da Rússia de


1910 até 1930. O Formalismo Russo exerceu maior influência em
pensadores como Mikhail Bakhtin e Yuri Lotman, e no estruturalismo
por inteiro. Os membros do movimento são amplamente considerados
os fundadores da crítica literária moderna.

Sílvio Romero: Crítico literário, ensaísta, poeta, filósofo


brasileiro (1851-1914). Nascido em Lagarto/SE, também
destacou-se na atividade política.

Teleológica: Uma doutrina que estuda os fins últimos da sociedade,


humanidade e natureza. Suas origens remontam a Aristóteles com a
sua noção de que as coisas servem a um propósito.

Fenomenológico: Método filosófico nascido na segunda metade


do século XIX, a partir das análises de Franz Brentano sobre a
intencionalidade da consciência humana, que trata de descrever,
compreender e interpretar os fenômenos que se apresentam à
percepção. Propõe a extinção da separação entre “sujeito” e “objeto”,
opondo-se ao pensamento positivista do século XIX.

Gestaltismo: Ou psicologia da gestalt, é um dos muito ramos da


Psicologia. Desenvolveu-se a partir de 1912, pela necessidade da
existência de uma teoria que salientasse sobretudo o aspecto global
da realidade psicológica, não esquecendo o valor e a necessidade da
experimentação científica.

Ferdinand Saussure: Lingüista suíço (1857-1913). Suas


elaborações teóricas propiciaram o desenvolvimento da
lingüística como ciência e desencadearam o surgimento
do estruturalismo. Além disso, o pensamento de Saussure
estimulou muitos dos questionamentos que comparecem
na lingüística do século XX.

Estruturalista: Corrente de pensamento nas ciências humanas que


se inspirou do modelo da linguística e que apreende a realidade social
como um conjunto formal de relações.

21
Teoria da Literatura II

Jakobson: Pensador russo (1896-1982). Tornou-se um dos maiores


lingüistas do século XX e pioneiro da análise estrutural da linguagem,
poesia e arte.

Estilística: Do alemão Stylistik, pelo francês stylistique, é o ramo


da Lingüística que estuda o poder de expressão de uma língua, sua
capacidade de provocar sugestões e emoções usando certas fórmulas e
efeitos de estilo. Para alguns autores, entretanto, a estilística não passa
de um ramo da gramática.

New Cristicism: Movimento inicial da Teoria Literária surgido nos


anos 20 nos Estados Unidos. Ele propõe a separação do texto e do
autor a fim de que o texto que seja objeto em si mesmo. Rompe com
biografismo da crítica de então, mas rejeita também a análise literária a
partir de contextos sociais ou culturais. Por isso dizemos que se enquadra
na Corrente Textualista dos estudos literários. Um dos conceitos mais
conhecidos destes teóricos é o Leitura Atentiva (close reading), leitura
analítica e minuciosa do texto preconizada por T.S. Eliot.

22
Aula 2
HISTÓRIA LITERÁRIA E TEORIA DA
LITERATURA
META
Evidenciar a carência de estudos teóricos que respondem pela relação entre História
Literária e ensino da Literatura;
introduzir a concepção e formalização das histórias literárias e os projetos de
afirmação das identidades nacionais e com os conceitos de
literatura que lhes dão suporte; e
apresentar como a Teoria da Literatura e as disciplinas mais recentes no
campo dos estudos literários influenciaram a História da Literatura.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
estabelecer relações entre História Literária e ensino da Literatura, observando a
carência bibliográfica a respeito do tema;
relacionar as periodizações e classificações das histórias literárias aos processos
sócio-históricos de constituição da identidade nacional; e
identificar os pressupostos teóricos dos métodos e abordagens da História Literária,
relacionando-os aos seus respectivos contextos.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá ter noções sobre a historicidade do conceito de literatura; e do processo
de formação e institucionalização da História Literária e da Teoria da Literatura como
disciplinas que têm na Literatura seu objeto de estudo.

Luiz Eduardo Oliveira


Teoria da Literatura II

INTRODUÇÃO
Nesta segunda aula de Teoria da Literatura II, teremos uma noção
mais ampla sobre o que seja História Literária, ou História da Literatura,
observando o seu processo de constituição como disciplina no campo dos
estudos literários e seus diálogos com a Teoria da Literatura, assim como
com outras disciplinas mais recentes que têm a Literatura como objeto, na
área de Letras e mesmo fora dela.
Antes, porém, iniciaremos nossa aula tentando suprir uma lacuna no
campo dos estudos literários e educacionais, através de uma descrição
crítica do percurso histórico das relações entre História Literária e ensino
da Literatura, com o objetivo de tornar evidente a necessidade de tal relação
e a ausência de estudos teóricos que tratem do tema.
Nesse percurso histórico, serão enfatizados os fatores sócio-políticos que
mais preponderam na formalização das histórias literárias, em sua articulação
com projetos de afirmação das identidades nacionais, muito freqüentes no
Romantismo, e de configuração dos sistemas nacionais de educação.
Em seguida, finalmente, faremos uma apreciação crítica dos principais
métodos e abordagens da História Literária, apontando seus diálogos com
a Teoria da Literatura e com outras disciplinas mais recentes, buscando
mostrar os pressupostos teóricos e concepções de Literatura que sustentam
cada método ou abordagem.

Batalha do Avahy. Pedro Américo. Óleo sobre tela (1872-77). Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas
Artes. Sob a influência do Romantismo, pintores brasileiros buscavam valorizar o nacionalismo,
retratando fatos históricos importantes. Suas obras contribuíam para a formação de uma identidade
nacional (Fonte: http://www.dezenovevinte.net).

24
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 2
HISTÓRIA LITERÁRIA
A história literária sempre esteve relacionada ao ensino da literatura.
Desde as rudimentares bibliografias comentadas às mais recentes produções
desse gênero, que é bastante conhecido, tais empreendimentos têm como
motivação e público-alvo a classe estudantil. Para Carpeaux, na Introdução
à sua História da Literatura Ocidental, o interesse em organizar os fatos Ver glossário no
literários do passado em função do ensino teria começado em nossa era, final da Aula
com Marcus Fabius Quintilianus (c.35-95), num momento em que a cul-
tura greco-latina, representada pelos antigos manuscritos, se via ameaçada
pela destruição dos “bárbaros”. Professor de Retórica, Quintiliano havia
inserido no Décimo Livro de sua Institutio Oratoria uma apreciação sumária
dos autores gregos e latinos, menos como resumo bibliográfico do que
como esboço de uma “bibliografia mínima” do aluno de retórica, iniciativa
que acabou por fixar para a posteridade o cânone da literatura clássica:

Até hoje, os programas de letras clássicas para as nossas escolas


secundárias organizam-se conforme os conselhos daquele professor
romano; e nós outros, falando da trindade “Ésquilo, Sófocles e
Eurípedes”, ou do binômio “Virgílio e Horácio”, mal nos lembramos
que a bibliografia de Quintiliano nos rege como um código milenar
e imutável (CARPEAUX, 1959, p. 16).

Da mesma forma, quando pensamos nas primeiras histórias da litera-


tura organizadas conforme o critério cronológico, resultantes dos vários
projetos de afirmação das identidades nacionais do século XIX, podemos
associá-las ao processo de autonomia do ensino da literatura em relação
ao de retórica, bem como à institucionalização do ensino das literaturas
nacionais. No Brasil, é ao longo da década de 1830 que as atividades cult-
urais e as instituições que lhes dão suporte vão criar a base de sustentação
intelectual e ideológica necessária ao projeto nacional em curso:

Dentro deste projeto, no que o expressam instituições e revistas,


a história da literatura ocupa um grande espaço. À semelhança do
papel cumprido pela história literária numa Europa a braços com a
legitimação da cultura burguesa, também por aqui a literatura e sua
história faziam parte do cardápio a ser providenciado (LAJOLO,
1994, p. 252-253).

Em 1836, um ano antes da fundação do Imperial Colégio de Pedro II,


Gonçalves de Magalhães, poeta e futuro membro da Comissão de In-
strução Pública que iria formalizar, na década seguinte, o projeto do Liceu
Nacional, afirmava no primeiro número da revista Niterói, publicada em
Paris e dirigida por ele, Torres Homem, Manuel de Araújo Porto Alegre e

25
Teoria da Literatura II

Pereira da Silva, que a literatura era a expressão de um povo no que este


tem de mais característico, pois “cada povo tem sua literatura própria como
cada homem seu caráter particular, cada árvore seu fruto específico” (apud
CANDIDO, 2000, p. 295). Pereira da Silva, no segundo número da mesma
revista, ia mais longe, argumentando que, se a literatura era a expressão da
sociedade, influindo em sua vida espiritual, o Brasil, como país novo, deveria
manifestar uma literatura própria, nacional. A poesia, nesse contexto, tinha
um papel fundamental:

A poesia é considerada no nosso século como representante dos


povos, como uma arte moral, que muito influiu sobre a civilização,
a sociabilidade, os costumes; sua importância na prática das virtudes,
seus esforços a favor da liberdade e da glória lhe marcam um lugar
elevado entre as artes que honram uma nação (apud CANDIDO,
2000, p. 296).

Como se vê, Literatura era sinônimo de civilização, e sua difusão fazia-se


necessária num país que havia negociado sua independência recentemente.
Quase duas décadas mais tarde, quando aqueles mesmos intelectuais que
haviam fundado a revista Niterói passaram a ocupar lugares na Câmara dos
Deputados, seus discursos atribuíam à Instrução Pública tal função, uma
vez que seu papel era colocar o Império ao lado das “nações civilizadas”,
superando a barbárie dos sertões e a desordem das ruas. A noção de In-
strução Pública, aqui, confunde-se com a de Educação Nacional, pois o seu
objetivo é incutir nos estudantes os princípios éticos e morais necessários
à convivência social, no intuito de fazer com que se reconhecessem como
membros de uma Sociedade Civil e de uma Nação. Não foi por acaso,
portanto, que se decidiu incluir, no Plano de Estudos do Colégio de Pedro
II, a “Literatura Nacional” na cadeira de retórica, com um regulamento de
17 de fevereiro de 1855, assinado pelo Ministro do Império Luís Pedreira
do Couto Ferraz (OLIVEIRA, 1999, p. 13).
Apesar de tal medida ter exigido a produção de um manual de história
da literatura nacional – algo, aliás, previsto pela Portaria de 24 de janeiro
de 1856, que, regulamentando o conteúdo e a bibliografia das matérias
estudadas no Colégio de Pedro II, indicava, para o estudo de retórica, os
Quadros da Litteratura Nacional, apostila do professor Francisco de Paula
Menezes –, a obra tida como pioneira sobre o conjunto de nossa história
literária é o Curso de Literatura Nacional (1862), do Cônego Fernandes Pin-
heiro, composto, como o próprio título sugere, para ser adotado no curso
de literatura da mesma instituição, onde o autor era professor de retórica
e poética desde 1857.
Outro exemplo notório da relação entre história literária e ensino da
literatura, no século XIX, é o fato de a História da Literatura Brasileira (1888),
de Sílvio Romero (1851-1914), obra tida como divisor de águas de nossa

26
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 2
historiografia literária, por estabelecer a primeira periodização da literatura
brasileira, ter sido indicada, em 1892, para o sexto ano do Ginásio Nacional,
sendo adaptada ao Curso Secundário em 1906, com o título de Compêndio de
História da Literatura Brasileira, escrito em parceria com João Ribeiro (1860-
1934), um verdadeiro especialista em compêndios de história da época,
como mostra Gasparello (2004).
Até a década de 1940, quando ocorre o movimento de expansão do
regime universitário (4), com o aparecimento das Faculdades de Filosofia
e Letras, grande foi o número de manuais de história da literatura brasileira
produzidos para o Ensino Secundário: Pequena História da Literatura
Brasileira (1919), de Ronald de Carvalho; Lições de Literatura Brasileira
(1919), de José Ventura Boscoli; História da Literatura Nacional (1930), de
Jorge Abreu; Noções de História da Literatura Brasileira (1931), de Afrânio
Peixoto; História da Literatura Brasileira para o curso complementar (1939),
de Bezerra de Freitas, entre outros.
A partir de então, as histórias literárias tornaram-se mais especializa-
das, seja em projetos coletivos nos quais cada autor cobre determinado
gênero – como o da editora José Olympio, sob a direção de Álvaro Lins,
do qual um dos volumes era a História da Literatura Brasileira: prosa de
ficção (1890-1920), de Lúcia Miguel Pereira, publicado pela primeira vez
em 1950 – ou período – como o da editora Cultrix, que publicou, entre
outros, O Realismo (1870-1900), de João Pacheco, em 1963 –, seja em in-
terpretações críticas de sua formação e cânone, num período cronológico
previamente estabelecido – como em Formação da Literatura Brasileira:
momentos decisivos (1959), de Antonio Candido –, o que sugere que tais
obras passaram a ser produzidas para um público mais seleto: os estudantes
universitários de Letras.
Hoje em dia, a relação entre história literária e ensino da literatura pode
ser exemplificada pela História Concisa da Literatura Brasileira (1970), de
Alfredo Bosi, obra que talvez deva suas constantes reedições – atualmente
está em sua 40ª, em grande parte, à demanda acadêmica, uma vez que tem
presença constante na maioria das bibliografias dos programas de literatura
brasileira dos cursos de Letras.
No caso do Ensino Médio, manuais como os de Faraco & Moura, dos
mais reeditados entre os do mesmo gênero, mantêm sua estrutura condi-
cionada pelos padrões dos livros de história da literatura indicados, isto é,
pautados pela periodização, cronologia e biobibliografia (5) dos autores
selecionados, reproduzindo e reforçando assim o cânone da literatura
nacional, a despeito do desenvolvimento dos estudos literários, seja sob a
influência estruturalista da Teoria da Literatura, que, como vimos na Aula
1, concentra-se na imanência textual, desconsiderando o contexto sócio-
histórico da obra, seja sob o atual influxo dos estudos culturais, que, como
veremos na próxima aula, apontam para o questionamento dos pressupostos
político-ideológicos do cânone.

27
Teoria da Literatura II

A HISTÓRIA LITERÁRIA E SEUS MÉTODOS


Como você deve estar lembrado, de acordo com o que aprendeu na aula
passada, a História Literária, ou História da Literatura, desde seu aparecimento,
no século XIX, se desenvolveu basicamente sobre dois modelos: um de na-
tureza “biográfico-psicológica”, enfatizando a vida do autor, a despeito do
texto literário, outro de natureza “sociológica”, que se concentrava nos fatores
políticos, econômicos, sociais e ideológicos da produção literária. Contudo,
tais características, com as novas configurações que a História da Literatura foi
assumindo, e com os novos métodos e abordagens que foi adotando, foram per-
dendo sua importância, em função do desenvolvimento dos estudos literários,
que, periodicamente, mudaram seu modo de conceber o fato literário.
Como as primeiras histórias da literatura aparecem durante o Roman-
tismo (6), o primeiro método historiográfico de estudo da Literatura foi o
método da historiografia romântica. Suas contribuições foram várias, dentre
as quais podemos destacar:
1. aumentou o cânone do que se considerava à época “literatura universal”,
que compreendia apenas os antigos e os clássicos franceses, uma vez que
assegurou a construção e consolidação das literaturas nacionais, que pas-
saram a contar a sua história;
2. despertou o interesse dos estudiosos por períodos obscuros, como a
Idade Média, e desprezados, como o Barroco, criando escolas literárias e
construindo o cânone desses períodos; e, o mais importante
3. estabeleceu o princípio da cronologia, que passou a ser padrão de todas
as histórias da literatura.
Por outro lado, o propósito de retratar a indi-
vidualidade ou “caráter” nacional mediante a seleção
dos autores mais representativos de cada época fez
com que seus critérios se baseassem em conceitos
idealistas e subjetivos, tais como “genialidade” ou
“espiritualidade”. Com efeito, Henry Morley (1822-
1894), no prefácio de English Writers (1864), en-
tendia a literatura como a “biografia nacional”, ou a
“história do espírito inglês” (WELLEK & WARREN,
1962, p. 315-316).
Aos poucos, o idealismo das primeiras histórias
literárias foi dando lugar à progressiva adoção dos
métodos objetivistas das ciências naturais, o que se
traduzia no processo de consolidação do Naturalismo
na literatura. Os “condicionamentos” ou “fatores”
extrínsecos à obra passaram a ter prioridade nos es-
tudos literários. O modelo clássico da historiografia
Hippolyte Taine, autor de História da Literatura in-
glesa (1877). (Fonte: http://jameslogancourier.org). naturalista é a Histoire de la Littérature Anglaise
(História da Literatura Inglesa), de1877, escrita por

28
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 2
Hippolyte Taine (1828-1893).
Aqui, a cronologia é um mero instrumento didático, útil apenas para
a sistematização dos fatos literários, pois mais importantes são as determi-
nações da “raça”, do “meio” e do “momento histórico”. Para se ter uma
idéia da repercussão da obra de Taine, basta a menção das obras de seus
mais célebres discípulos, os quais introduziram seu método nos respec-
tivos países de origem: As Correntes Principais da Literatura do Século
XIX (1872-1890), de Georg Brandes (1842-1927); a História da Literatura
Alemã (1883), de Wilhelm Scherer (1841-1886); e a História da Literatura
Brasileira, de Sílvio Romero (1851-1914).
Em contraposição aos métodos da historiografia romântica e naturalista,
insurgem-se a estética marxista e o método imanentista proposto por Tynianov
em ensaio intitulado “Da evolução literária” (1927). A historiografia marxista,
ou sociológica, é ainda fortemente marcada por Taine. O “meio”, transfor-
mado em “contexto sócio-político”, é o fator externo que determina o caráter
e até o estilo da obra literária. Carpeaux (1959, p. 39) comenta ironicamente os
exageros de tal método: “Sakulin, na sua história da literatura russa, classificou
os escritores conforme a proveniência social: literatura dos latifundiários, dos
burocratas, dos pequenos burgueses, dos proletários”.
Na historiografia marxista, a literatura está sempre a serviço do
“contexto”, sendo apenas uma ilustração de uma outra história: política,
econômica ou social. Wellek e Warren (1962, p. 330-331), quando tratam
do problema da periodização, também censuram o método sociológico:
“A literatura não deve ser concebida meramente como um passivo reflexo
ou cópia do desenvolvimento político, social ou mesmo intelectual da
humanidade. Conseqüentemente, é por critérios puramente literários que
deve fixar-se o período literário”.
Assim pensava o formalista russo Yury Tynianov (1894-1943), já em
1927, no referido ensaio – Da evolução literária (1927). Questionando o
estatuto científico da história da literatura e contrapondo à velha noção ab-
strata de “tradição” seu conceito de “evolução literária”, Tynianov propôs
um complexo modelo serial no qual a historicidade de uma determinada obra
é medida pelo seu grau de ruptura em relação a uma forma ou gênero “au-
tomatizado”. A canonização de uma forma literária, assim, é vista como um
processo de “automatização” de um sistema de normas ou convenções que
provoca, dialeticamente, o aparecimento de novas formas e outros sistemas:
“Se admitirmos que a evolução é uma mudança da relação entre os termos
do sistema, quer dizer, uma transformação das funções e elementos formais,
a evolução parece ser a substituição de sistemas” (TYNIANOV, 1978, p. 117).
Em outras palavras, a evolução literária deveria basear-se na literariedade das
obras, de acordo com seus respectivos contextos sócio-lingüísticos.
A importância da historiografia estruturalista, tal como foi esboçada
pelo ensaio de Tynianov, pode ser avaliada pela surpreendente variedade de
categorias nele esboçadas, que continuam sendo desenvolvidas em estudos

29
Teoria da Literatura II

1 recentes sobre história literária (OLINTO, 1996). No entanto,


a partir da década de sessenta do século passado, a atenção
dos teóricos, seja da chamada estética da recepção, de feição
alemã, seja das mais recentes teorias do reader’s response
(resposta do leitor) norte-americanas, concentrou-se no leitor
ou receptor da obra. A publicação de A História da Literatura
como Provocação à Teoria Literária (1967), de Hans Robert
Jauss (1921-1997), ao trazer o tema da historiografia de volta
ao debate literário, estabeleceu os pressupostos para a reescrita
da história literária sob a perspectiva da estética da recepção.
A historicidade do texto literário, para o teórico alemão, só
poderia ser detectada levando-se em conta o “horizonte de
expectativa” do leitor, que significa o conhecimento prévio
em relação a gênero, forma ou temática de obras já conheci-
das. Seu valor estético, dessa forma, dependeria da distância
entre a experiência já vivenciada da leitura e a “mudança de
2 horizonte” representada pela obra (JAUSS, 1994). As teses
do seu pequeno livro se tornaram emblemáticas da crise dos
estudos literários no final dos anos sessenta, ainda envolvi-
dos com uma tradição imanentista, ou estruturalista, que
desprezava eloqüentemente todas as questões relativas ao
contexto da obra.
Para Chartier, há dois problemas com a estética da
recepção. O primeiro, fundamental, é que ela ignora os dis-
positivos tipográficos, que também concorrem para a con-
strução da significação na recepção dos textos, pois são eles
que possibilitam uma melhor compreensão do “comércio
perpétuo” entre os textos clássicos, ou “imóveis”, e os leitores
em mutação. Assim, tais dispositivos traduzem, no impresso,
as mudanças do horizonte de expectativa do público, uma
Capa de edição brasileira de A História da vez que podem propor significações outras além daquelas
Literatura (acima) e seu autor, Robert Jauss
(Fonte: 1 - http://i.s8.com.br; 2 - http://
pretendidas pelo autor:
www.estacio.br).
Há aí uma grave lacuna para as épocas antigas, entre os séculos
XVI e XVIII, uma vez que a maioria dos textos impressos, literários
ou não, não são novidades, mas reedições propostas para horizontes
de expectativa de leitores muito distantes cronologicamente e, no
caso das impressões de larga difusão, socialmente, das sinalizações e
referências inscritas pelo autor em seu texto (Chartier, 2001, p. 99).

O outro problema, segundo o mesmo autor, é o fato de a estética da


recepção hesitar entre duas perspectivas: uma que considera que os elementos
textuais impõem ao leitor uma posição relativa à obra, “uma maneira de ler
e compreender”, e outra que reconhece a pluralidade de leituras possíveis de

30
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 2
um mesmo texto, em função das características particulares de cada leitor.
Na primeira perspectiva, o horizonte de expectativa é pensado como sendo
unitário, uma “experiência partilhada”, e na segunda, as diferentes condições
de apropriação do texto, que são sociais, repercutem fora do alcance de um
enfoque concentrado sobre o leitor na obra. Tal ambigüidade poderia ser
reduzida recorrendo-se a uma melhor análise dos dispositivos tipográficos,
pois eles tornam possível um maior controle sobre as hipóteses construídas
a partir da análise das formas pelas quais os leitores populares contam sua
maneira de ler (CHARTIER, 2001, p. 100).
Ao traduzir, prefaciar e coligir uma série de artigos escritos por teóricos
alemães ao longo da década de oitenta sobre história literária, Olinto (1996)
ressalta a variedade dos modelos historiográficos propostos, todos elaborados
sob a “perspectiva dos novos padrões epistemológicos, metateóricos, esté-
ticos e sociais que orientam a percepção atual dos problemas envolvidos na
escrita de histórias de literatura”. Concepções epistemológicas construtivistas,
história das mentalidades, teoria da história, teoria da comunicação, parece
ter espaço para tudo no grande caleidoscópio multidisciplinar que constitui o
discurso dos artigos. Mesmo assim, sua variedade de propósitos aponta para a
busca de uma teorização mais adequada às novas exigências historiográficas,
bem como para um deslocamento de interesses, nos estudos literários, do
texto para o sistema literatura, entendido este como uma “rede de múltiplos
processos interativos e instáveis”.

1 2

Caleidoscópio solar (abaixo) e imagem vista através de um caleidoscópio (acima)


(Fontes: 1 - http://www.siscompar.com; 2 - http://www.brasilcolor.eu).

31
Teoria da Literatura II

CONCLUSÃO
A relação entre história literária e ensino da literatura é quase negligenciada
pelos historiadores e teóricos da literatura, embora seja sugerida em textos
como os de Carpeaux (1959), Eagleton (1983) e Culler (1999). Se a princi-
pal questão da teoria literária, mais antiga até do que a disciplina ou campo
acadêmico que assim se denomina, é a resposta, ou antes a multiplicidade de
respostas que podem ser dadas à pergunta “o que é literatura?”, para respondê-
la é preciso levar em conta as condições, instâncias e instituições que fazem
com que determinada obra, ou grupo de obras, ou de um autor, ou grupo
de autores de um período histórico, ou país, ou região, torne-se literário (a),
para além de seus elementos intrínsecos, isto é, de sua “literariedade”, uma
vez que esta, da mesma forma, é uma categoria historicamente construída,
podendo ser identificada também em textos não literários.
Ao conceituar a literatura, Culler leva em conta as condições sociais
e o contexto institucional que identificam um determinado texto como
sendo literário, para além de sua literariedade, bem como do horizonte de
expectativa do leitor:

A literatura, poderíamos concluir, é um ato de fala ou evento textual


que suscita certos tipos de atenção. Contrasta com outros tipos de
atos de fala, tais como dar informação, fazer perguntas ou fazer
promessas. Na maior parte do tempo, o que leva os leitores a tratar
algo como literatura é que eles a encontram num contexto que a
identifica como literatura: num livro de poemas ou numa seção de
uma revista, biblioteca ou livraria (CULLER, 1999, p. 34).

Sua definição, no entanto, deixa de contemplar o fato de que, entre


os contextos que levam os leitores a tratar determinados atos de fala ou
eventos textuais como Literatura, a escola é uma instância privilegiada, uma
vez que institucionaliza o seu ensino, legitimando não somente o estudo de
certos textos e autores, mas também alguns modos de interpretá-los, bem
como determinadas práticas de leitura a eles relacionadas.

RESUMO
Como vimos nesta aula, a história literária, desde suas origens, mantém
uma relação íntima e indissociável com o ensino da literatura, uma vez que
as primeiras tentativas de organização – cronológica ou segundo gêneros
literários – de autores e obras do passado correspondem ao processo de con-
figuração da literatura como disciplina independente da cadeira de Retórica

32
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 2
e Poética ou das línguas antigas e modernas, nas quais o uso de textos hoje
tidos como literários estava subordinado à sua instrumentalidade com rela-
ção ao ensino das figuras de linguagem e de modelos retóricos, bem como
de suas estruturas gramaticais. No caso das línguas, a perda desse caráter
“literário” relaciona-se com uma mudança de foco dos estudos literários,
representados pelo programa de Retórica e Poética, que, além das regras
de estilo e composição e da “apreciação litteraria dos melhores classicos da
lingua portugueza”, passou a abranger a “Historia da litteratura em geral,
e especialmente da portugueza e nacional” (OLIVEIRA, 1999). Dessa
forma, se antes o estudo da literatura, anexado ao das línguas, baseava-se
numa série de exercícios – leitura, cópia, ditado, versão, tradução, temas e
composição – que tinham como objeto fragmentos de textos considerados
literários, agora teria que justificar-se pela história literária, isto é, pelo estudo
das “producções litterarias” das nações estrangeiras, as quais despertavam
o sentimento de orgulho e respeito em seus povos. No caso brasileiro,
o Estado Imperial, representado pelo Partido Conservador, tinha muito
interesse em tal estudo, não só por satisfazer ao seu projeto civilizatório,
pelo contato que os alunos brasileiros teriam com a produção literária das
“nações civilisadas”, mas também pelo papel que poderia desempenhar na
formação e desenvolvimento de um espírito de nacionalidade, principal-
mente depois da oficialização do ensino da Literatura Nacional, em 1855,
período de absoluta supremacia do Partido Conservador.
Se os teóricos e historiadores da literatura não têm atentado devidam-
ente para este fato, isso se deve ao grau de compartimentação e incomu-
nicabilidade das áreas e campos acadêmicos, que impedem uma possível
relação recíproca de trocas e empréstimos, para romper certas limitações e
fomentar perspectivas inusitadas de velhos objetos.

ATIVIDADES
Responda às seguintes questões:
1. Qual a relação que pode ser feita entre o Romantismo e a formalização
das histórias literárias?
2. Quais são as evidências, no caso brasileiro, da íntima relação entre História
Literária e ensino da Literatura?
3. Como você explica o fato de que as histórias literárias têm servido a
projetos de construção e afirmação de identidades nacionais?
4. Em sua opinião, quais são as contribuições e limitações da historiografia
estruturalista e da estética da recepção?

33
Teoria da Literatura II

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Essa atividade tem por finalidade principal fazer com que você construa
uma síntese dos principais conteúdos dessa segunda aula, de modo
a compreender criticamente o processo de constituição da História
Literária como uma disciplina específica, observando sua íntima
relação com o ensino da Literatura e com os projetos de afirmação
de identidades nacionais, assim como seus diálogos com a Teoria da
Literatura e com outras disciplinas mais recentes que têm a Literatura
como objeto. Da mesma forma, o questionário busca explorar as
características mais marcantes dos principais métodos e abordagens
da História Literária.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 6 ed. Belo


Horizonte: Itatiaia, 2000.
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro:
O Cruzeiro, v. 1, 1959.
CHARTIER, Roger. Do Livro à Leitura. In CHARTIER, Roger (org.).
Práticas, 2001.
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Tradução de Sandra
Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução de
Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
GASPARELLO, Arlette Medeiros. Construtores de identidades: a
pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira.
São Paulo: Iglu, 2004.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria
literária. Tradução: Sérgio Tellarolli. São Paulo: Ática, 1994.
LAJOLO, Marisa. Literatura e história da literatura: senhoras muito in-
trigantes. In: MALLARD, Letícia et al. História da literatura: ensaios.
Campinas: Editora da UNICAMP.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. 1996. A formação da leitura
no Brasil. São Paulo: Ática, 1994.
OLINTO, Heidrun Krieger. Histórias de literatura: as novas teorias
alemãs. São Paulo: Ática, 1996.
OLIVEIRA, Luiz Eduardo. A historiografia brasileira da literatura
inglesa: uma história do ensino de inglês no Brasil (1809-1951). Disser-
tação de Mestrado, Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade

34
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 2
Estadual de Campinas, 1999. Disponível em: <http://www.unicamp.br/
iel/memoria/Teses/index.htm>
TYNIANOV, J. Da evolução literária. In: EIKHENBAUM, B. [et al.].
Teoria da literatura: os formalistas russos. 4 ed. Tradução de Ana Maria
Filipovsky, Maria Aparecida Pereira, Regina Zilberman e Antonio Carlos
Hohlfeldt. Porto Alegre: Globo, 1978.
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. Tradução de
José Palla e Carmo. Lisboa: Europa-América, 1962

GLÓSSARIO
Otto Maria Carpeaux: Crítico e historiador da arte
austríaco (1900-1978). Produziu sua obra crítica no
Brasil.

Fabius Quintilianus: Professor de Retórica na


Roma Antiga. Nasceu em Caagurris (Calahorra, atual
Espanha) e viveu de 30 a 95 dC. Ficou famoso pelo
Institutio Oratoria (c. 95 d.C.), grande obra redigida em
12 volumes que se constitui em um verdadeiro tratado
sobre a educação romana do seu tempo. Um de seus
alunos foi o orador romano Plínio, o jovem.

Cânone: Ou cânon normalmente se caracteriza como um conjunto


de regras (ou, frequentemente, como um conjunto de modelos)
sobre um determinado assunto, em geral ligado ao mundo das artes
e da arquitetura. A canonização é a sistematização deste conjunto de
modelos. A materialização do cânone, no campo da Literatura, um
Cânone é uma obra ou autor já institucionalizados pela tradição crítica
ou consolidados pela História Literária.

Gonçalves de Magalhães: Poeta, diplomata e político


brasileiro (1811-1882). Tornou-se barão e, depois,
visconde do Araguaia. Considerado, pela historiografia
da literatura brasileira, como responsável pela introdução
do Romantismo no país, com a publicação de Suspiros
Poéticos e Saudades (1836).

35
Teoria da Literatura II

Regime: Tal regime foi instituído pelo Decreto n. 19.851, de 11 de


abril de 1931, assinado por Getúlio Vargas e referendado pelo Ministro
da Educação Francisco Campos.

Romantismo: Movimento artístico e filosófico surgido nas últimas


décadas do século XVIII na Europa que perdurou por grande parte
do século XIX. Caracterizou-se como uma visão de mundo contrária
ao racionalismo que marcou o período neoclássico e buscou um
nacionalismo que viria a consolidar os estados nacionais na Europa.

Roger Chartier: Historiador francês (1945-). Depois de


envolver-se com a História da Educação, nas décadas
de 1970 e 1980, dedica-se atualmente à história do livro,
das edições e das práticas de leitura.

36
Aula 3

A TEORIA DA LITERATURA E
OS ESTUDOS CULTURAIS
META
Apresentar o processo de institucionalização dos Estudos Culturais como campo acadêmico
e suas implicações nos estudos literários.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
reconhecer as principais tendências dos Estudos Culturais e relacioná-las com os
estudos literários, especialmente com a Teoria da Literatura.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá ter noções sobre a historicidade do conceito de literatura; do processo de
formação e institucionalização da História Literária e da Teoria da Literatura como
disciplinas que têm na Literatura seu objeto de estudo; e da relação entre História
Literária e ensino da Literatura.

Luiz Eduardo Oliveira


Teoria da Literatura II

INTRODUÇÃO
Caro aluno, a relação entre Teoria da Literatura e Estudos Culturais é
muito mais íntima do que se imagina. O sucesso acadêmico e comercial
dos Estudos Culturais, em termos editoriais, cinematográficos e de eventos
científicos e culturais variados, fez com que esse recente campo de estudos
alcançasse um espaço relevante na mídia, dado o caráter interventor dos
próprios projetos acadêmicos de seus principais mentores, ou “pais fun-
dadores”, pelo menos em sua primeira fase.
Por outro lado, o fato de que os professores de literatura, durante a década
de 1990, tenham se voltado para objetos de estudo que nem sempre contem-
plam a Literatura em seu sentido estrito, isto é, já consolidado pelo campo dos
estudos literários, como, por exemplo, anúncios publicitários, manifestações
da “cultura popular” ou da “cultura de massa”, tratando o texto literário como
uma prática cultural dentre tantas outras, soou aos ouvidos mais tradicionais
ou conservadores como uma notícia bombástica, uma espécie de ameaça à
integridade e autonomia dos estudos literários, de modo geral, e da Teoria
da Literatura, em particular, como disciplina acadêmica.
Voltando à afirmação inicial do primeiro parágrafo desta Introdução,
a relação entre Teoria da Literatura e Estudos Culturais pode ser verificada
através de dois fatos bastante significativos: 1) a filiação acadêmica de duas
das figuras centrais a partir de cujos trabalhos se configurou a nova disciplina,
Raymond Williams (1921-1988) e Richard Hoggart (1918-), tem origem nos
estudos literários; 2) a motivação principal dos Estudos Culturais, na Inglaterra,
foi uma crítica ao Inglês, isto é, ao ensino da Literatura Inglesa, tal como se
consolidou nos currículos das universidades no período entreguerras, sob a
liderança do crítico e professor Frank Raymond Leavis (1895-1978), um dos
mais empenhados defensores do “new criticism” e do conceito de “close
reading”, uma leitura analítica e estruturalista do texto literário.
Contudo, não se pode dizer que os Estudos Culturais sejam a disci-
plina acadêmica que veio substituir a Teoria da Literatura no campo dos
estudos literários, como faz supor o fato de que muitos dos programas de
pós-graduação inicialmente voltados para a Literatura, inclusive no Brasil,
tenham adotado, às vezes por uma mudança de perspectiva teórica, às vezes
por simples moda acadêmica, os Estudos Culturais como objeto de pes-
quisa. Ademais, não se pode restringir o diálogo interdisciplinar dos Estudos
Culturais ao âmbito da Teoria da Literatura, uma vez que seus limites como
disciplina acadêmica ainda em processo de configuração são muito difíceis
de ser delineados, inclusive pelos seus “pais fundadores”.
Stuart Hall (1932-), por exemplo, afirma que os Estudos Culturais podem
ser considerados como um espaço intelectual de convergências entre tradições
acadêmicas deslocadas, como a Sociologia, a Antropologia e a Crítica Literária
(HALL, 2004, p. 21). Cevasco (2003, p. 73), por sua vez, afirma que os Es-
tudos Culturais, como projeto interdisciplinar, situam-se em um amálgama

38
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 3
de quatro discilpinas: Comunicação, História, Sociologia e, principalmente,
English, isto é, Literatura Inglesa.
Do Inglês, segundo a mesma autora, a nova disciplina reteve o interesse
no texto e na textualidade, incluindo as formas populares de cultura e ultra-
passando o paradigma de estudos de língua/literatura que caracterizava a
disciplina. Com essa nova abordagem, o conceito de Literatura foi repensado,
ampliando a lista do cânone, que passou a abranger mulheres, negros e homos-
sexuais. Da História, a ênfase recaiu sobre a escola de Edward P. Thompson
(1924-1993), isto é, a história “dos de baixo”, baseada na história oral e na
memória popular. Das mídias surgiu o interesse pelo estudo das relações entre
os meios de comunicação e a sociedade, e da Sociologia, finalmente, adveio
a inspiração para estudar a etnografia e as “subculturas”.
Vale a pena ainda observar que os débitos teóricos dos Estudos Culturais
não se limitam aos “pais fundadores” ou às disciplinas aci ma mencionadas,
pois abrangem intelectuais como Antonio Gramsci (1891-1937), Louis Al-
thusser (1918-1990) e Michel Foucault (1926-1984), dentre outros, para não
falar de certas disputas de território institucionais e de objetos de estudos, as
quais se apresentam muito mais como um embate político do que como um
debate epistemológico. Vejamos como tudo começou.

1 2

Antonio Gramsci (acima à esq), Michel Foucault (acima à dir) e Louis Althusser (abaixo) (Fontes: 1 -
http://brasil.indymedia.org; 2 - http://www.foucault.qut.edu.au; 3 - http://www.imec-archives.com).

39
Teoria da Literatura II

LITERATURA INGLESA
O processo de institucionalização da Literatura Inglesa como disciplina
acadêmica, na Inglaterra, é muito esclarecedor a respeito da constituição da
Teoria da Literatura como disciplina hegemônica no campo dos estudos
literários, assim como do caráter ideológico que a Literatura assume em
determinados momentos históricos. Segundo Eagleton (1983), a Literatura
Inglesa, como atividade liberal e humanizadora, poderia servir, no final do
século XIX, como antídoto poderoso contra o excesso religioso e o extrem-
ismo ideológico, uma vez que, tratando de “valores humanos universais”, e
não de “trivialidades históricas”, como guerras civis, a opressão das mulheres
e a exploração das classes trabalhadoras, poderia fazer com que tais questões
fossem esquecidas e substituídas pela contemplação elevada das verdades e
belezas eternas. Nesse sentido, poderia ser comparada como um novo tipo
de religião, pois alcançaria o povo sem o trabalho de ensinar-lhe os Clás-
sicos, uma vez que a Literatura Inglesa era escrita em sua própria língua:

Como a religião, a literatura atua principalmente por meio da emoção e


da experiência, razão pela qual se adequam admiravelmente à realização
da tarefa ideológica que a religião havia abandonado. Em nossa época,
a literatura tornou-se realmente o oposto do pensamento analítico e
da investigação conceitual: enquanto cientistas, filósofos e teóricos
políticos se oneram com essas empresas enfadonhamente discursivas;
os estudiosos da literatura ocupam o território mais valorizado do
sentimento e da experiência (EAGLETON, 1983, p. 28-29).

Não foi por acaso, portanto, que o Inglês como disciplina acadêmica
se institucionalizou primeiro fora das universidades, em institutos e cursos
profissionalizantes e de extensão direcionados para as classes populares,
sendo sua ascensão processada paralelamente à lenta admissão das mulheres
nas instituições de Educação Superior, bem como ao acesso paulatino do
público masculino oriundo das classes trabalhadoras ao que ficou concebido
como “o clássico dos pobres”.
No início do século XX, a nova disciplina assumiu uma função clara-
mente política, uma vez que, com o advento da Primeira Guerra Mundial,
quando a hegemonia do capitalismo britânico foi ameaçada pelos Estados
Unidos e pela Alemanha, ela passou a servir a um projeto de reconstrução da
identidade nacional, tendo como principais representantes de uma utópica
tradição orgânica e igualitária da sociedade inglesa autores como William
Shakespeare (1564-1616) e John Milton (1608-1674).

40
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 3
1 2

Frank Raymond Leavis (esq.) e Ivor Armstrong Richards (dir) (Fonte: 1 - http://media-2.web.
britannica.com; 2 - http://upload.wikimedia.org).

Por outro lado, essa função política do Inglês funcionou como justifica-
tiva para sua entrada nas duas principais instituições de Educação Superior
da Inglaterra: Oxford e Cambridge.
Os principais arquitetos da disciplina, como o já mencionado F. R.
Leavis e I. A. Richards (1893-1979), eram descendentes da pequena bur-
guesia provinciana que trabalharam, em seus estudos e artigos publicados Ver glossário no
na revista Scrutiny, para fazer do Inglês uma disciplina séria, buscando final da Aula
apagar sua condição de “clássico dos pobres”, isto é, de matéria adequada
somente para mulheres e estudantes das classes trabalhadoras e de países
do “terceiro mundo”.
As estratégias utilizadas pela Scrutiny foram a “crítica prática” e a
“leitura analítica” (close reading). A “crítica prática” rejeitava todos os fatores
externos do texto literário, uma vez que o leitor, pela própria estrutura da
obra, poderia julgar a sua grandeza sem precisar levar em conta suas idéias
ou seu contexto histórico. A “leitura analítica”, por sua vez, insistia na at-
enção à estrutura interna da obra, isto é, nas “palavras contidas na página”,
sem levar em conta os contextos que as produziram. Nesse sentido, ela
estimulava a ilusão de que qualquer trecho de linguagem literária poderia
ser entendido isoladamente. Tratava-se, como afirma Eagleton (1983), de
uma reificação da obra literária, estudada como um objeto em si mesmo,
algo que triunfaria com a Nova Crítica (New Criticism):

Em outras palavras, como a Scrutiny, a Nova Crítica era a ideologia


de uma intelectualidade sem raízes, defensiva, que reinventou na
literatura aquilo que não podia localizar na realidade. A poesia era a
nova religião, um abrigo nostálgico para as alienações do capitalismo

41
Teoria da Literatura II

industrial. O poema era opaco à investigação racional, tal como o


Todo-Poderoso: existia como um objeto encerrado em si mesmo,
misteriosamente intacto em seu ser excepcional (EAGLETON,
1983, p. 51).

Os “novos críticos”, ao romperem com uma noção de Literatura baseada


nos grandes homens, típica de uma tradição biográfica da História Literária,
como vimos na Aula 2, insistiam em que as intenções do autor não tinham
relevância para a interpretação de seus textos, e que as reações emocionais
dos leitores não poderiam ser confundidas com o significado do poema,
pois este era público e objetivo, inscrito que estava na própria linguagem
do texto literário. Assim, a Nova Crítica, de acordo com seus pressupostos
básicos, defendidos tanto pelos ingleses da Scrutiny quanto pelos teóricos
norte-americanos, era uma crítica de fundo irracionalista, associada, por um
lado, a uma espécie de dogma religioso, e, por outro, a uma política de direita,
pois a irrelevância atribuída às condições históricas da obra literária fazia com
que vários dos problemas sociais urgentes no período, com a exploração dos
trabalhadores e a opressão das mulheres, para não falar da situação dos imi-
grantes negros de países colonizados pela Grã-Bretanha, fossem consciente
ou inconscientemente ignorados pelos estudiosos de Literatura.
Como podemos perceber, a constituição da Literatura Inglesa como
disciplina acadêmica, ao mesmo tempo em que serviu de arma ideológica,
ascendendo ao poder às costas de um nacionalismo de guerra, sob o pa-
trocínio de uma classe governante inglesa cujo senso de identidade havia
sido abalado, representa também a consagração do caráter “científico” de
um saber antes considerado menor, uma vez que era atributo de classes
inferiorizadas, pela sua condição econômica, étnica ou de gênero, e que era
agora alçado ao estatuto de conhecimento acadêmico digno de ser estudado,
graças ao desenvolvimento da Teoria da Literatura, que lhe forneceu as
bases teóricas necessárias para que ela pudesse entrar nos currículos das
universidades de Cambridge e Oxford.

OS “PAIS FUNDADORES” DOS ESTUDOS


CULTURAIS

Como ocorre com o processo de constituição de qualquer disciplina


acadêmica, há sempre muita controvérsia a respeito de quais foram as
personagens e circunstâncias a partir das quais a disciplina se constituiu,
concorrendo para sua institucionalização nos currículos das universidades.
Não é diferente o caso dos Estudos Culturais. Segundo Culler (1999), a
emergência dos Estudos Culturais relaciona-se com uma dupla origem:
uma francesa e outra inglesa.
A fonte francesa seria o estruturalismo da década de 1960, que tratava
a cultura como uma série de práticas cujas regras ou convenções deveriam

42
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 3
ser descritas. Um trabalho pioneiro, nesse sentido, teria sido Mitologias
(1957), de Roland Barthes (1915-1980), no qual o autor empreende uma
breve leitura de várias atividades culturais, da luta livre aos anúncios de
automóveis e detergentes. Para Barthes, era preciso desmistificar a idéia de
que a cultura é algo natural e insistir no fato de que toda e qualquer prática
cultural é historicamente constituída.
A fonte inglesa, a seu ver, estaria relacionada com a Teoria Literária
marxista de origem britânica, representada pelos trabalhos de Raymond Wil-
liams, especialmente em sua obra Culture and Society (Cultura e Sociedade), de 1957,
e de Richard Hoggart (1918-), o qual procurou resgatar e explorar a cultura
popular da classe trabalhadora em The Uses of Litteracy (Os Usos do Letramento).
Stuart Hall, por seu turno, apesar de reconhecer certos débitos teóricos
para com alguns intelectuais franceses, afirma que as origens dos Estudos
Culturais encontram-se em três livros: The Making of the English Working Class
(A Formação da Classe Trabalhadora Inglesa), de E. P. Thompson, e os dois
trabalhos já mencionados de Williams e Hoggart. Independente da pos-
sível briga de campo acadêmico que permeia tal discussão, mesmo porque
a constituição de uma disciplina acadêmica se processa de maneira muito
mais complexa do que a partir de obras ou autores que, de algum modo,
forneceram os elementos básicos para a nova disciplina, a constituição
dos Estudos Culturais envolveu vários agentes e instituições sociais nem
sempre visíveis em panoramas históricos ou nas memórias escritas pelos
seus próprios “pais fundadores”. Façamos, neste capítulo, um breve perfil
dos principais nomes que se relacionam com a formação dos Estudos
Culturais, especialmente aqueles que, estando na Inglaterra no momento
de sua constituição, tiveram participação mais evidente em tal processo.

Capas dos 3 volumes de edição brasileira da obra A formação da classe operária inglesa, de E. P. Thompson.

43
Teoria da Literatura II

Richard Hoggart (1918-) iniciou sua carreira acadêmica em um


departamento extra-muros da Universidade de Hull, trabalhando durante
cinco anos, juntamente com Williams e Thompson, para uma organização
de esquerda dedicada à educação dos trabalhadores, a Worker’s Educational
Association – WEA – (Associação Educacional dos Trabalhadores). Segundo
Cevasco (2003, p. 62), as escolas noturnas para trabalhadores eram uma
tradição já estabelecida na Inglaterra antes mesmo da Segunda Guerra
Mundial, alcançando um momento de expansão na década de 1950, quando
a WEA tinha noventa mil alunos matriculados. É muito provável que sua
experiência como professor, aliada à sua militância política – que pode ser
vista em sua participação na campanha da Itália – tenha servido de base
para a produção de sua mais importante obra, The Uses of
Litteracy (1957), com a qual se tornou um dos founding founders
(pais fundadores) dos Estudos Culturais, apesar de seus vários
artigos sobre cultura popular e educação na Grã-Bretanha.
Inicialmente influenciado, como Williams, por Leavis e
pela Scrutiny, Hoggart, entre os “pais fundadores”, foi o único
a não ter mantido um diálogo teórico privilegiado com o
marxismo, sendo seus compromissos políticos considerados
por Mattelart e Neveu (2004) como “liberais”. Desse modo,
ele reivindica uma filiação humanista, inscrita nos estudos
de Literatura e Civilização, embora tenha contribuído para
sua redefinição, rejeitando sua tradição elitista. Nas análises
de The Uses of Litteracy, suas desconfianças com a indus-
trialização da cultura fazem com que sua abordagem das
práticas culturais populares ancore-se nessa crença, motivo
pelo qual, em sua obra, apareça a distinção problemática
entre “cultura de massa” – imposta ao povo – e “cultura
popular” – expressão cultural do povo.
Em The Uses of Litteracy, o objeto central é o impacto da cultura de mas-
sas sobre as tradições culturais da classe trabalhadora, que estariam sendo
destruídas pela má qualidade das novas manifestações. Para Cevasco (2003,
p. 21), “sua atenção detida aos procedimentos da imprensa popular, do
cinema e dos costumes da vida cotidiana faz do seu livro um dos primeiros
exemplos do tipo de investigação que marcaria os estudos culturais”.
Em 1964, Hoggart fundou, a partir do Departamento de Inglês da Uni-
versidade de Birmingham, o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea,
o qual dirigiu até 1968. O CCCS (Centre for Contemporary Cultural Studies)
foi o primeiro espaço institucional dos Estudos Culturais como disciplina
acadêmica. De Birmingham saíram os primeiros professores e alunos da
nova disciplina, que aos poucos foi sendo instituída nas universidades de
vários países, inclusive no Brasil.
Para muitos a figura central dos Estudos Culturais, Raymond Williams
é o autor de Culture and Society (Cultura e Sociedade), de 1958, uma espécie

44
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 3
de genealogia do conceito de cultura na sociedade industrial, desde os
românticos até George Orwell (1903-1950), incluindo ainda autores como
Leavis e T. S. Eliot (1888-1965). Segundo Mattelart e Neveu (2004, p. 46-47),
seu conceito de structures of feeling (estruturas de sentimento), que estabelece a
relação entre as noções, práticas e formas culturais e os sistemas de percepção
e sensibilidade que exprimem e cristalizam, foi elaborado em diálogo com os
trabalhos do sociólogo da Literatura francês Lucien Goldmann (1913-1970).
A problemática esboçada em Culture and Society desdobra-se em The Long Revo-
lution (A Longa Revolução), de1961, obra que ressalta o papel dos sistemas de
educação e comunicação na dinâmica de mudança social, contribuindo para a
construção de um programa democrático de reforma das instituições culturais.
Williams, filho de um trabalhador ferroviário de uma vila galesa (Llanfi-
hangel Crucorney), estudou no tradicional Trinity College, Cambridge, período
em que se afiliou ao partido Comunista Britânico, conseguindo seu título
de mestre em 1946. Após ensinar pelo já referido programa de educação
para adultos (WEA), tornou-se professor de dramaturgia na Universidade
de Cambridge, onde havia sido aluno e discípulo de Leavis. Aposentando-se
somente em 1983, teve uma carreira acadêmica longeva, escrevendo vários
artigos, livros teóricos e um romance.
Para Cevasco (2003, p. 109), em meio à efervescência de importação de
idéias francesas, italianas e alemãs, principalmente através dos intelectuais da
Escola de Frankfurt, a única posição teórica original britânica tomou corpo
no trabalho de Raymond Williams. Desenhando uma tradição britânica de
se pensar a qualidade de vida da sociedade mediante uma discussão sobre
cultura, Williams, em sua primeira grande obra, Culture and Society, critica
essa visão abstrata e absoluta de cultura, desconectada do contexto social
que a produz, estabelecendo assim os instrumentos teóricos do que se
convencionou chamar de “materialismo cultural”, que pode ser descrito
como uma tentativa de levar às últimas conseqüências o legado de Karl Marx
(1818-1883) de pensar a cultura como uma atividade material da sociedade.
Além de um teórico de grande importância, Williams foi um incan-
sável militante político, envolvendo-se nas discussões sobre o controle
democrático da mídia em um programa socialista. Sempre se manteve
atento e crítico ao processo de consolidação e desenvolvimento dos Es-
tudos Culturais, afirmando, em uma conferência ministrada em 1986 na
NorthEast London Polytechnic, que os Estudos Culturais, isto é, a mudança de
perspectiva no ensino das Artes e da Literatura e sua relação com a História
e a Sociedade Contemporânea, não surgiram a partir do seu livro de 1958,
mas da Educação para Adultos – WEA – (apud CEVASCO, 2003, p. 61).
Edward Palmer Thompson, durante a Segunda Guerra Mundial,
também se empenhou na luta contra o governo fascista de Benito Mussolini
(1883-1945), estudou em Cambridge, no Corpus Christi College, e aderiu ao
Partido Comunista Britânico, formando em 1946 um grupo de estudos
históricos marxistas com intelectuais como Eric Hobsbawn (1917-), dentre

45
Teoria da Literatura II

outros. Lecionou na Universidade de Leeds pela WEA e foi professor da


Universidade de Warwich de 1965 a 1971, dando cursos esporádicos em
universidades norte-americanas. Atuou como pacifista anti-nuclear nos anos
de 1980 e, de 1988 até o final de sua vida, foi professor na Universidade
de Manchester, Inglaterra, na Universidade de Kingston, Canadá, e na
Universidade de Rutgers, Estados Unidos.
Como Williams e Hall, Thompson foi membro da New Left Review
(Revista da Nova Esquerda), fundada em 1960 em resposta à crise de 1956,
marcada pela “quebra de fé na União Soviética” – as revelações que o
ministro soviético Nikita Kruchev (1894-1971) fez, no XX Congresso do
Partido Comunista da União Soviética, sobre as atrocidades stalinistas e a
invasão da Hungria – e pela desintegração do Partido Comunista Britânico
(CEVASCO, 2003, p. 82-83).
Conforme suas próprias palavras, sua principal preocupação, ao longo
de sua carreira, foi abordar o que considerava em Marx um silêncio: “um
silêncio no domínio do que os antropólogos chama ‘ o sistema de valores’
[...]. Um silêncio com relação às mediações de tipo cultural e moral” (apud
MTTELART e NEVEU, 2004, p. 46).
Conforme os autores acima citados, o trabalho de Thompson pode ser
descrito como a opção por uma história centrada na vida e nas práticas de
resistência das classes populares. Sua obra mais conhecida, The Making of
the English Working Class (A Formação da Classe Trabalhadora Inglesa), de 1963,
hoje é um clássico da historiografia marxista.
Apesar de somente oito anos mais novo que Thompson, o intelectual
jamaicano Stuart Hall pertence a uma geração que não participou da Se-
gunda Guerra Mundial. Apesar de sua destacada militância política – foi ele
o primeiro editor da New Left Review –, sua produção acadêmica só veio
alcançar prestígio na década de 1970, quando passou a dirigir o CCCS, na
Universidade de Birminham.
Ele deixou a Jamaica em 1951 e estudou Letras (Inglês) na Universidade de
Oxford, onde se vinculou aos militantes nacionalistas de nações colonizadas e
aos meios da esquerda marxista, sem se filiar ao Partido Comunista. Em 1957,
assumiu o posto de professor em uma escola secundária de Brixton, bairro popu-
lar londrino, e em 1961 deu um curso sobre mídia e cinema na Universidade de
Londres. Conforme Mattelart e Neveu (2004, p. 59), Hall não é autor de livros
de referência, ao contrário dos outros “pais fundadores”, mas de uma grande
quantidade de artigos, desempenhando um papel de empreendedor científico
em Birminham. Estudioso de várias manifestações da cultura popular, das
fofocas da imprensa ao movimento rastafári e punk (5), Hall preocupa-se com
a sistematização da teoria no seio dos Estudos Culturais, envolvendo um leque
que vai das heranças do marxismo aos empréstimos teóricos tomados do pós-
modernismo ou da desconstrução. Em 1979, Hall integrou-se à Open University
(Universidade Aberta, ou a distância), e atualmente é um dos intelectuais mais
solicitados para conferências ou colóquios importantes sobre Estudos Culturais.

46
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 3
EXPANSÃO E CRISE DOS ESTUDOS CULTURAIS
Cinqüenta anos depois da publicação do livro de Hoggart, o sucesso
editorial e acadêmico dos Estudos Culturais é espantoso. Em 2002, por ex-
emplo, um mecanismo de busca da Internet registrava mais de dois milhões e
quinhentas mil referências distintas a partir de tal expressão (MATTELART
e NEVEU, 2004, p. 127). Sua visibilidade científica, entretanto, tanto no
mundo anglófono quanto em outros países, coincide com a circulação, a
partir de 1972, dos working papers (artigos mimeografados, formando uma
espécie de revista artesanal), textos que foram depois compilados em livros
e compõem o melhor da produção da equipe do CCCS. Grande parte da
produção dessa época trata das “subculturas” jovens: rastas, mods, skinheads,
rockers, etc. A ênfase é posta sobre o modo como, sob pressão estrutural, os
jovens desenvolvem táticas de seleção em seu potencial identitário.
Ainda no final da década de 1970, foi lançada a coletânea Women take is-
sue (As mulheres discordam), de 1978, pelo grupo de estudos sobre a mulher do
CCCS. Segundo Mattelart e Neveu (2004, p. 69), a valorização dos estudos de
gênero é tributária do trabalho empírico que manifesta as diferenças de con-
sumo e apreciação entre homens e mulheres em matéria de televisão ou de
bens culturais. Com a coletânea The empire strikes back (O império contra ataca), de
1982, a atenção se voltou para as questões de racismo suscitadas pela situação
das comunidades imigrantes nas grandes cidades. A questão da recepção na
mídia, o problema da desintegração e da pluralização das identidades, a herança
e a crise do marxismo teórico nos estudos do CCCS, enfim, toda a trajetória
dos Estudos Culturais aponta para dois caminhos. Se, por um lado, o ritmo
acelerado das publicações e o aparecimento de novos departamentos, nos dois
lados do Atlântico, indicam a internacionalização da disciplina, por outro, a
facilidade com que tais novidades são adotadas pode ser interpretada como a
perda de identidade contestatória da disciplina, bem como de seu rigor teórico
e acadêmico. Comentando essa situação, escreve Cevasco (2003, p. 155-156):

Com essa expansão vêm os benefícios de uma produção mais


numerosa, que assegura a continuidade da conversação dos
estudos culturais. Mas essa conversação, como ensinou Williams,
traz as marcas de seu tempo. Trata-se de um momento em que
a mercantilização assombra todos os esforços, mesmo os que se
querem oposicionistas, como os estudos culturais.

As marcas do tempo, no caso dos Estudos Culturais, é a perda do


vínculo entre trabalho teórico e trabalho político, ou seja, o afastamento
da disciplina de sua fundamentação marxista, do materialismo cultural, tal
como teorizou Williams, um de seus “pais fundadores”. Segundo a autora
acima citada, no Brasil, a data oficial do reconhecimento institucional dos
Estudos Culturais é 1998, ano em que a Associação Brasileira de Literatura

47
Teoria da Literatura II

Comparada, a ABRALIC, escolheu para seu congresso bienal o tema “Literatura


Comparada = Estudos Culturais?”. Contudo, já em 1997 a ABRAPUI (Associa-
ção Brasileira dos Professores Universitários de Inglês), em um SENAPULLI
(Seminário Nacional de Professores Universitários de Literatura de Língua Inglesa)
realizado em Atibaia, São Paulo, teve como tema a relação entre “Literatura e
Estudos Culturais”. Sua popularização nos meios acadêmicos brasileiros pode
ser constatada pelo número de programas de pós-graduação que, antes voltados
para os estudos literários, hoje dedicam-se aos Estudos Culturais.
Por outro lado, no momento em que o grau de mercantilização da
vida faz com que a “diversidade cultural” signifique apenas a pluralidade
da oferta de produtos e de serviços em um mercado globalizado, o fra-
casso das mobilizações políticas contra a globalização acabou afetando o
trabalho dos pesquisadores, apresentando-lhes novos caminhos e novas
possibilidades de articulação entre o trabalho teórico e um compromisso
social. Mattelart e Neveu (2004, p. 198) apresentam três sugestões para que
os Estudos Culturais possam ser renovados: 1. reatar com o “materialismo
cultural” explorado por Thompson e Williams; 2. romper com todos os
pós-academicismos, aceitando os desafios da ruptura com modelos teóricos
e objetos rotinizados; 3. abrir-se a novas linhas e fronteiras disciplinares
que a evolução do mundo e dos territórios acadêmicos proporciona. Resta
saber como essa crise dos Estudos Culturais afeta os estudos literários.

CONCLUSÃO

Como vimos, caro aluno, o projeto dos Estudos Culturais é entender o


funcionamento da cultura, principalmente no mundo moderno, isto é, como as
práticas e manifestações culturais são produzidas e como as identidades culturais
são construídas e organizadas, para os indivíduos e grupos, em um mundo de
comunidades heterogêneas, poder estatal, indústria da mídia e corporações
multinacionais. Desse modo, os Estudos Culturais incluem e abrangem os
estudos literários, pois analisam a Literatura como uma prática cultural dentre
outras. Dessa afirmação surge um problema fundamental: até que ponto os
estudos literários ganham ou perdem com a chegada dos Estudos Culturais?
Em certa medida, os Estudos Culturais apareceram como uma aplicação
das técnicas de análise literária oriundas da Teoria da Literatura para outros
materiais culturais, tratando as mais variadas manifestações culturais como
“textos” a serem lidos e interpretados. Nessa perspectiva, os estudos literários
saem ganhando, uma vez que, estudando a Literatura como uma prática signifi-
cante entre outras, e examinando os papéis culturais com os quais a Literatura
tem sido investida no decorrer da história, a nova disciplina pode intensificar o
estudo de obras literárias como um fenômeno intertextual e complexo.
Segundo Culler (1999), as relações entre estudos literários e Estudos
Culturais podem ser agrupadas em dois tópicos: 1. a questão dos cânones

48
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 3
literários; 2. os métodos apropriados para a análise de objetos culturais.
Quanto à primeira questão, se, por um lado, os Estudos Culturais podem
ampliar o cânone ocidental, que é acentuadamente europeu, branco e ma-
chista, incluindo autores e autoras de países pós-coloniais, por outro pode
vulgarizar as análises e encorajar o estudo de filmes, novelas de tevê e outros
produtos da “cultura de massa”, em detrimento de obras literárias. Antes
de criticar ou desconstruir o cânone, é preciso conhecê-lo.
Quanto à segunda questão, há sempre um grande risco em se descartar
alguns métodos que, embora em alguns aspectos ultrapassados, representam
um rigor acadêmico característico da Teoria da Literatura, especialmente em
sua versão formalista, em nome de uma liberdade de abordagem que, mui-
tas vezes, são apenas conteudistas, no pior sentido do termo. Não são raras,
por exemplo, as ocasiões em que são apresentados trabalhos em congressos
científicos que, analisando textos literários com o suposto paradigma dos
Estudos Culturais, que, a essa altura, abrange quase tudo que se encontra entre
o céu e a terra, os apresentam apenas como sintomas sociais de questões de
gênero, etnia ou identidade, sem qualquer trabalho de análise do modo como
tais representações são construídas, ou como tais efeitos são produzidos.
Não devemos nos fechar para as novidades que se apresentam a cada
dia no mundo acadêmico, mas também não devemos recebê-las de forma
passiva, ou acrítica. São muitas as contribuições dos Estudos Culturais para
os estudos literários, assim como muito consistentes são os instrumentais
teóricos fornecidos pela Teoria da Literatura para a crítica cultural. Se os
estudos literários não devem se fechar em uma disciplina que já deu mostras
de sua defasagem com relação às manifestações culturais contemporâneas, os
Estudos Culturais não podem ignorar seus pressupostos teóricos, sob pena de
cair no descrédito acadêmico pela irrelevância dos resultados de suas pesquisas.

Jonathan Culler (Fonte: http://www.news.cornell.edu).

49
Teoria da Literatura II

RESUMO
Na aula de hoje, você aprendeu um pouco acerca do debate contem-
porâneo dos estudos literários. A Teoria da Literatura, que alcançou seu auge
acadêmico a partir da década de 1940, com o sucesso editorial do manual de
Wellek e Warren, como vimos na Aula 1, se manteve hegemônica como dis-
ciplina dos estudos literários até o final dos anos de 1980, quando começou
a ser questionada a partir de novas perspectivas teóricas e, especialmente,
pelo “boom” dos Estudos Culturais na década de 1990.
Você teve também a oportunidade de observar como a constituição
dos Estudos Culturais como disciplina acadêmica se encontra intimamente
relacionada com a Teoria da Literatura. No caso das universidades inglesas,
onde primeiro se institucionalizara, a nova disciplina surgiu de um quest-
ionamento do “Inglês”, isto é, da Literatura Inglesa, que tinha alcançado
prestígio acadêmico concomitantemente à Teoria da Literatura, no resto
da Europa e nos Estados Unidos, entre as décadas de 1930 e 1940. Tal
questionamento começou a aparecer ainda no final da década de 1950,
com os livros de Williams e Hoggart, ex-alunos de Inglês de Cambridge.
O primeiro espaço institucional da nova disciplina foi a Universidade de
Birmingham, onde Hoggart fundou, em 1964, o Centro de Estudos de Cultura
Contemporânea (CCCS em inglês). Sob a direção de Hall, a partir da década de
1970, o CCCS formou grande parte dos professores e defensores dos Estudos
Culturais, no resto da Europa e nos Estados Unidos, alcançando um grau de
popularidade e sucesso acadêmico, na década de 1990, que pôs em cheque
muitos dos departamentos de pós-graduação em estudos literários, que viram
seu objeto de estudo principal ser invadido pelas novas abordagens culturais.
As principais tendências dos Estudos Culturais são: o estudo das cul-
turas populares e da indústria cultural, envolvendo os meios de comunica-
ção; das “subculturas” jovens das grandes cidades; das questões de gênero
e etnia; da fragmentação das identidades e da produção e recepção cultural
em um mundo ideologicamente “globalizado”. Tais tendências afetaram os
estudos literários, e especialmente a Teoria da Literatura, em dois aspectos
principais: a construção e redefinição do cânone literário e o método e
fundamentação teórica apropriados para a análise de objetos culturais.
Daí surgiram dois impasses para os estudiosos de literatura: 1. se, por um
lado, é importante que se amplie um cânone tradicional e ideologicamente
fechado, que inclui, em sua maior parte, autores homens, brancos e europeus,
por outro, não se pode questionar ou desconstruir esse mesmo cânone, em
favor de outras práticas e manifestações culturais, sem conhecê-lo, isto é, sem
estudá-lo. 2. Se são de extrema relevância as análises de aspectos relacionados

50
A Teoria da Literatura e os Estudos Culturais Aula 3
às questões das culturas populares ou de massa; de etnia, de gênero e demais
problemas sociais em obras literárias, é preciso não reduzir o texto literário
a um documento sintomático de tais questões, utilizando-se melhor do in-
strumental teórico fornecido pela Teoria da Literatura em tais abordagens,
mesmo porque há documentos de outras espécie, e práticas e manifestações
culturais outras, em que essas questões podem ser melhor exploradas.
Hoje, os estudos literários passam por um momento de redefinição, tanto
de seus pressupostos teóricos quanto de seu objeto de estudo, e é preciso que
os estudiosos da Literatura se apropriem criticamente dos empréstimos de out-
ras disciplinas, novas ou tradicionais, para que se possam lançar novos olhares
sobre velhos e canonizados objetos, fazendo com que o estudo da Literatura
contribua, de algum modo, para pensar melhor os problemas do mundo.

1 2

Manifestações culturais no Brasil contemporâneo. À esquerda, show de axé music. À direita, lambe-sujo (Fontes: 1 - http://
www.metropolionline.com.br; 2 - http://www.overmundo.com.br).

ATIVIDADES
Redija um texto de no máximo duas páginas, utilizando fonte 12, Times
New Roman, e espaço 1,5, com o seguinte título:
“Estudos Literários e Estudos Culturais: diálogos, confrontos e per-
spectivas”

51
Teoria da Literatura II

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Essa atividade tem por finalidade principal fazer com que você construa
um texto-síntese dos principais pontos abordados nesta terceira
aula, de modo a explicar o processo de constituição dos Estudos
Culturais como disciplina acadêmica, suas principais tendências e seus
diálogos e conflitos com os estudos literários. Procure explicitar, em
sua argumentação, a constituição da Literatura Inglesa como saber
acadêmico, a contribuição dos “pais fundadores” para os Estudos
Culturais e o processo de expansão e crise da nova disciplina.

REFERÊNCIAS
CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo:
Boitempo Editorial 2003.
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Tradução de Sandra
Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução de
Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
HALL, Stuart et all. Culture, media, language. London: Routledge; Bir-
mingham: Centre for Contemporary Cultural Studies, 2004.
MATTELART, Armand; NEVEU, Érik. Introdução aos estudos cult-
urais. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

GLÓSSARIO
F. R. Leavis: Crítico e professor inglês de muito prestígio, foi o
fundador, com sua esposa, Q. D. Leavis, da revista Scrutiny (Escrutínio),
e o principal responsável pela consolidação da Literatura Inglesa como
disciplina acadêmica na Universidade de Cambridge.

Richard Hoggart: Tido como um dos “pais


fundadores” dos Estudos Culturais. Publicou The
uses of litteracy (Os usos do letramento), seu livro
mais conhecido, em 1957, e foi professor de Literatura
Inglesa Moderna na Universidade de Birmingham, na
Inglaterra, onde fundou, em 1964, o Centro de Estudos
Culturais Contemporâneos, do qual foi diretor até 1968.

52
DA RETÓRICA À HISTÓRIA
LITERÁRIA: 4
UMA HISTÓRIA DO ENSINO DE LITERATURA NO BRASIL aula
MET
METAA
Apresentar, do ponto de vista
histórico, e de acordo com a
legislação atual, o processo de
constituição da Literatura como
disciplina escolar no Brasil; e
enfatizar suas finalidades e seu
papel formativo no currículo
escolar.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá
definir as finalidades e o papel
formativo da Literatura no currículo
escolar, do ponto de vista histórico
e de acordo com a legislação atual.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá ter noções sobre a
historicidade do conceito de
literatura; da relação entre
História Literária e ensino da
Literatura; e sobre a relação entre
Estudos Literários e Estudos
Culturais. (Fonte: http://www.oyez.org).
Teoria da Literatura II

C aro aluno, na Aula 2, pudemos perceber a carência de


estudos teóricos que respondem pela relação entre
História Literária e ensino da Literatura. No entanto, quando ob-
servamos o desenvolvimento histórico do ensino de Literatura, te-
mos a oportunidade de observar como esse re-
INTRODUÇÃO lacionamento se processa. A institucionalização
do ensino de Literatura, assim como da Histó-
ria Literária, está ligada a projetos de construção das identidades na-
cionais em vários países, constituindo-se uma instância privilegiada
na política de afirmação e consolidação de seus respectivos Estados.
Assim, a configuração da Literatura como disciplina confunde-se com
a delimitação e ressignificação do termo “Literatura”, que assumiu
várias acepções no decorrer da História, como vimos na Aula 1, e
assim com a elaboração do seu próprio conceito. Vejamos como tal
processo ocorre no Brasil do século XIX, tentando rastrear seus des-
dobramentos no ensino de Literatura hoje.

Casarão da Rua Larga de São Joaquim, Rio de Janeiro/RJ, depois Externato do Imperial
Colégio Pedro II, estabelecimento educacional em que foi introduzido o estudo da Lite-
ratura no Brasil (Fonte: http://www.cp2centro.net).

62
Da Retórica à História Literaria

O estudo da “Literatura Nacional” foi introduzido no


currículo dos estudos secundários pela primeira vez
em 1855, com um regulamento baixado em 17 de fevereiro, que
4
aula
reformulou pela segunda vez os estatutos do Imperial Colégio de
Pedro II, instituição que servia de modelo a
todos os estabelecimentos congêneres, na corte
LITERATURA
e nas províncias. O novo regulamento dividia NACIONAL
os estudos em duas “classes”, sendo o título de “Bacharel em Le-
tras” obtido pelo estudante que completasse os dois estágios. Na
segunda classe, de três anos, uma novidade: em Retórica, além das
regras de eloqüência e de composição, dadas no sexto ano, o pro-
grama previa, no estágio seguinte, ao lado da “composição de dis-
cursos e narrações em português”, o “quadro da literatura nacio-
nal” (OLIVEIRA, 1999).
Com o plano de estudos baixado pelo Decreto n. 4.468, de 1.º
de fevereiro de 1870, a cadeira de Retórica, dedicada à “leitura,
apreciação literária dos clássicos e exercícios de estilo” no sexto
ano, passou a chamar-se, no sétimo, “história da literatura geral es-
pecialmente portuguesa e nacional”, matéria que também abrangia,
tal como a Retórica, “composição de discursos, narrações e decla-
mações”. Com essa alteração do programa de Retórica, instituiu-
se, pela primeira vez no Brasil, o ensino das literaturas estrangeiras,
que se consolidou com a publicação – dois anos depois da promul-
gação do decreto, pelo editor francês Louis Baptiste Garnier – do
Resumo de Historia Litteraria, primeiro compêndio brasileiro de “lite-
ratura universal”, de autoria do cônego Joaquim Caetano Fernandes
Pinheiro (1825-1876).
Espécie de refundição do seu compêndio anterior, Curso de
litteratura nacional (1862), o Resumo de historia litteraria (1872) divide-
se em dois volumes, servindo o primeiro, dedicado às literaturas
estrangeiras, de preâmbulo ao segundo, que trata das literaturas
portuguesa e “luso-brasileira”. Nos Prolegomenos, a Literatura é defi-
nida como “o conjunto das producções escriptas de um paiz e du-
rante uma epocha, ou de todos os paizes e em todas as epochas”, e

63
Teoria da Literatura II

a história literária como “a enumeração e rapida analyse das


producções litterarias”, acrescentando o professor: “ao principio, a
palavra litteratura applicava-se também ás sciencias e artes, mais
tarde porém reconhece-se a necessidade de restringir-lhe a signifi-
cação, limitando-se aos assumptos em que o util pudesse se aliar ao
agradavel” (PINHEIRO, 1872, p. 9).
E qual seria a finalidade da Literatura? Ou, mais precisamente,
do ensino da Literatura? Para o cônego Fernandes Pinheiro, a impor-
tância maior da Literatura estava em registrar os grandes feitos de
uma nação, despertando o sentimento de orgulho e respeito em seus
povos – em outras palavras, na afirmação da nacionalidade –, o que
contribuiria para a formação moral e patriótica do aluno:

Feitos memoraveis, pasmosos acontecimentos, grandiosos


destinos, não bastarão para prender a attenção e determinar
o juizo da posteridade; preciso é que suas victorias e façanhas
sejam enobrecidas pelo imaginoso estylo de um Tito Lívio,
suas desgraças e decadencias commemoradas por um Tacito,
pois só assim occupará em nosso animo mais elevada plana
do que essa multidão de povos que, indifferentes vemos
desfilar no scenario da historia; alternativamente vencedores
e vencidos (PINHEIRO, 1872, p. 10-11).

O conselheiro José Bento da Cunha e Figueiredo, sucessor


do ministro João Alfredo, baseado nos projetos do seu antecessor
e nas reclamações repetidas dos reitores, reformulou mais uma
vez o plano de estudos do Imperial Colégio, instituindo um novo
currículo com o Decreto n. 613, de 1.º de maio de 1876. A ca-
deira de Retórica continuava abraçando, no sétimo ano, os prin-
cípios do decreto anterior – “noções sobre as literaturas estran-
geiras que mais influíram para a formação e aperfeiçoamento da
portuguesa, estudo detido das diferentes fases desta e da ‘luso-
brasileira’, juízos críticos e paralelos dos principais prosadores e
poetas, por escrito” –, embora tivesse passado a se chamar “Li-
teratura Nacional”.

64
Da Retórica à História Literaria

As reformas da Primeira República não conseguiram alterar o


quadro do ensino de Literatura já desenhado nos tempos do Impé-
rio. A “literatura universal” – termo que, em concorrência com “li-
4
aula
teratura geral”, buscava abranger o estudo dos clássicos greco-lati-
nos, das literaturas orientais e dos principais países da Europa, cons-
tituindo, segundo Carpeaux (1959: p. 22), uma genuína criação do
Romantismo –, desapareceu aos poucos do currículo destinado aos
estudos secundários, ressurgindo apenas no final do período, quan-
do da expedição do Decreto n. 18.564, de 15 de janeiro de 1929,
proposto pela congregação do Colégio Pedro
II e homologado pelo Conselho Nacional do
Ensino (OLIVEIRA, 1999).
Os vários movimentos armados que
ocorreram no país durante a década de vin-
te acabaram por ocasionar a “Revolução” de
outubro de 1930, causando a derrubada do
presidente Washington Luiz e a implantação
do Governo Provisório de Getúlio Vargas.
Logo após a tomada do poder, o novo go-
verno criou o Ministério da Educação e Saú-
de Pública, pasta assumida por Francisco
Campos, que buscou reformar, mediante
uma série de decretos, portarias, instruções
e circulares, todo o sistema de ensino brasi-
leiro, instituindo o Conselho Nacional de
Francisco Campos, nomeado titular da pasta da Educação
Educação e estabelecendo o regime univer- e Saúde Pública após a Revolução de 30 (Fonte: http://
www.projetomemoria.art.br)
sitário, dentre outras medidas.
O ensino secundário, reformado pelo Decreto n. 19.890, de
18 de abril de 1931, passou a ter como finalidade “a formação
do homem para todos os grandes setores da atividade nacional”,
compreendendo dois cursos seriados: um fundamental e outro
complementar. O primeiro, obrigatório para o ingresso em qual-
quer escola superior, tinha duração de cinco anos, e o segundo,
de dois anos, era subdividido em pré-jurídico, pré-médico e pré-

65
Teoria da Literatura II

politécnico, obedecendo ao grau de especialização do aluno que


quisesse seguir uma das três carreiras nas faculdades do país (OLI-
VEIRA, 1999).
Os programas do curso complementar só foram expedidos
em 1936, com a Portaria de 17 de março, assinada pelo sucessor
de Francisco Campos, Gustavo Capanema, o ministro do Esta-
do Novo. A Literatura, ensinada apenas no curso pré-jurídico,
pela primeira vez teve objetivos, metodologia e conteúdo bem
definidos e sistematizados, ocupando um lugar de primazia em
relação às demais disciplinas, dada a grandeza do seu papel na
“educação espiritual” do aluno, estimulando-lhe “os pendores
aproveitáveis”:

O ensino de literatura no curso complementar deve ter, como


principais objetivos, os seguintes:
1. dar conhecimento aos alunos do que há sido a atividade
humana no imenso campo do pensamento, manifestada pelas
obras literárias de toda natureza;
2. preparar e educar o espírito dos alunos para a apreciação
inteligente e crítica dos fatos literários;
3. elevar o nível de cultura literária que o aluno deve trazer
do curso fundamental, despertando-lhe o gosto pela boa
leitura e estimulando os pendores aproveitáveis que nele
porventura se revelem;
4. auxiliar, na medida que as circunstâncias
permitirem, o ensino das outras matérias,
especialmente no tocante às línguas e às ciências
sociais (apud OLIVEIRA, 1999).

Tais objetivos não excluíam outros que


pudessem adaptar-se ao “espírito geral da
cadeira”, desde que seu estudo não se trans-
formasse em “mera decoração de nomes,
datas ou seqüência de escolas literárias”.
O presidente Getúlio Vargas, o ministro Gustavo Capanema
e outros por ocasião da solenidade de inauguração do pré- Dessa forma, na primeira série eram ensi-
dio do Ministério da Educação e Saúde, 1945. Rio de Janei-
ro (RJ) (Fonte: http://www.cpdoc.fgv.br). nadas as “noções preliminares” – “concei-

66
Da Retórica à História Literaria

to e significação da Literatura e do fato literário”, “suas condi-


ções”, “distinção dos gêneros literários” – e “literatura geral”,
enquanto na segunda estudavam-se as literaturas portuguesa, bra-
4
aula
sileira, americanas e européias contemporâneas.
Quanto ao método de ensino, a nova lei previa que os profes-
sores não deveriam limitar-se às “preleções de caráter expositi-
vo”, podendo ilustrar as aulas com leituras “cuidadosamente es-
colhidas”, “trabalhos orais ou escritos dos alunos” e até com
“projeções luminosas de vultos”, “cenas da literatura”,
“dramatizações” e outros meios que a “moderna aparelhagem
do ensino” tornava possíveis.
No desenvolvimento do conteúdo da matéria, a parte biográfi-
ca e histórica, “embora imprescindível”, haveria de ser reduzida,
cedendo espaço à “crítica e ao estudo das obras, escolas e gêne-
ros”, com exceção das “grandes figuras”, que mereceriam especial
tratamento, e do “período contemporâneo”, onde haveria “certa
abundância de citações”. O legislador ainda preocupou-se com a
organização de pequenas bibliotecas em cada estabelecimento es-
colar, com seções dedicadas à cadeira de Literatura, indicando a
“bibliografia mínima” que nelas deveria figurar:

Na escolha das obras indicadas, sobretudo em se tratando


de traduções, deve haver o maior cuidado na escolha das
edições. Edições truncadas ou viciadas, não devem fazer parte
da biblioteca. Sempre que for possível, tratando de obras de
leitura fora da classe, a biblioteca deve possuir mais de um
exemplar. As obras inglesas, francesas e espanholas devem
ser lidas no original. A fim, porém, de evitar alguma
dificuldade em classe poderá existir antologia francesa de
autores ingleses (apud OLIVEIRA, 1999).

Com a primeira versão da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-


cação Nacional, de 1961, e a Lei n. 5.692, de 1971, a progressi-
va incorporação, pelo ensino de segundo grau, da formação pro-
fissional, em detrimento da tradicional formação literária, ou

67
Teoria da Literatura II

humanística, tornaram a tentativa de Capanema de transformar


a Literatura em disciplina-tronco do currículo dos estudos se-
cundários incompatível com as novas diretrizes. Desse modo,
a Literatura, depois de desvincular-se da Retórica e alcançar
um breve período de hegemonia no currículo, tornou-se mais
ou menos subsidiária da Língua Portuguesa, mantendo-se o
seu ensino pautado pela periodização e pela cronologia, a
despeito das novas correntes teóricas e metodológicas. Contu-
do, ela tem desempenhado, como disciplina escolar, um papel
de fundamental importância na consolidação e manutenção dos
cânones literários brasileiros, bem como na construção da iden-
tidade nacional.

O ENSINO DE LITERATURA NO BRASIL HOJE

Os Parâmetros Curriculares Nacionais referentes à área de Lin-


guagens, Códigos e suas Tecnologias colocaram um problema cujas
implicações, do ponto de vista da história das disciplinas, são de
suma importância para o atual debate no campo: o da
“desdisciplinarização” da literatura, que passa a ser vista como um
dos gêneros textuais, ou discursivos, com os quais o professor de
Língua Portuguesa tem que tra-
balhar, uma vez que o texto é
tido como “unidade básica de
ensino” (BRASIL, 1998b).
Isso se deve, em grande
parte, à posição hegemônica
assumida pela Língua Portugue-
sa nos currículos da Educação
Básica, algo já anunciado no
artigo 36 da Lei n. 9.394, de
20 de dezembro de 1996, em
que as linguagens são vistas
não somente como instrumen-

68
Da Retórica à História Literaria

to de comunicação e expressão, mas também como forma de aces-


so ao conhecimento e exercício da cidadania (BRASIL, 1996). As-
sim, a Língua Portuguesa se coloca como disciplina interdisciplinar
4
aula
por excelência, uma vez que vai servir como suporte de todos os
outros componentes curriculares, inclusive dos temas transversais,
concorrendo de forma privilegiada para a constituição de identida-
des afirmativas nos alunos.
O ensino de Língua Portuguesa na escola, nessa perspecti-
va, constitui-se como o centro da discussão acerca dos proble-
mas da educação no país, ou da “Educação Nacional”, pois o
fracasso escolar é medido, pelos órgãos nacionais e internacio-
nais, pela falta de competência dos alunos com relação à leitura
e à escrita. É o que sugerem os PCN para o primeiro e segundo
ciclos do Ensino Fundamental, com sua ênfase no rito de passa-
gem que vai da alfabetização ao letramento. Mesmo nesse pri-
meiro estágio de escolarização, já se coloca o problema da
especificidade do texto literário, e da Literatura como forma de
conhecimento, substituindo a “receita desgastada” da noção de
“prazer do texto”, ou “fruição estética”, pelo ensino da leitura
literária (BRASIL, 1998a).
De modo semelhante, os PCN para o terceiro e quarto ciclos
do Ensino Fundamental concebem o texto literário como uma for-
ma peculiar de representação e estilo na qual predominam a força
criativa da imaginação e a intenção estética. Assim, a Literatura
seria uma maneira particular de dar forma às experiências huma-
nas, ultrapassando e transgredindo os critérios de observação fatual
– característicos das ciências –, para constituir outra mediação de sen-
tidos entre o sujeito e o mundo, mediação essa que autoriza a ficção e
a reinterpretação não somente do mundo atual, mas dos mundos pos-
síveis (BRASIL, 1998b).
Mas foram os PCN para o Ensino Médio que
problematizaram a questão do ensino de Literatura. Segundo o
documento, a disciplina Língua Portuguesa, na LDB n. 5.692/
71, vinha dicotomizada em Língua e Literatura, com ênfase na

69
Teoria da Literatura II

Literatura Brasileira. Tal divisão teria repercutido na organiza-


ção curricular com a separação entre gramática, estudos literári-
os e redação, fazendo com que os livros didáticos e os vestibula-
res reproduzissem o modelo de divisão:

Os estudos literários seguem o mesmo caminho. A história


da literatura costuma ser o foco da compreensão do texto;
Machado de Assis
uma história que nem sempre corresponde ao texto que
Escritor brasileiro lhe serve de exemplo. O conceito de texto literário é
(1839-1908). Considera- discutível. Machado de Assis é literatura, Paulo Coelho
do um dos mais impor-
não. Por quê? As explicações não fazem sentido para o
tantes nomes da litera-
tura nacional e identifi- aluno (BRASIL, 2002).
cado, pelo crítico Ha-
rold Bloom, como o
maior escritor negro de Sendo o texto a unidade básica de ensino, o aluno deve ser
todos os tempos. considerado como produtor de textos, aquele que pode ser en-
tendido pelos textos que produz e que o constituem como ser
humano. Essa visão ressalta a natureza social e interativa da
linguagem, em contraposição às concepções tradicionais,
deslocadas do uso social. O trabalho do professor, tal como pro-
põe o documento, centrar-se-á no desenvolvimento e sistemati-
zação da linguagem interiorizada pelo aluno, incentivando sua
verbalização. Desse modo, os conteúdos tradicionais de ensi-
no de língua – nomenclatura gramatical e história da literatura
– são deslocados para um segundo plano: “o estudo da gramá-
tica passa a ser uma estratégia para compreensão/interpreta-
Paulo Coelho ção/produção de textos e a literatura integra-se à área de leitu-
Escritor, compositor e ra” (BRASIL, 2002).
ator brasileiro (1947-), A posição dos PCN gerou polêmica, pois desautonomiza o
nascido no Rio de Ja-
neiro. ensino da Literatura, subordinando-o definitivamente ao da Lín-
gua Portuguesa. De disciplina, a Literatura passa a ser gênero
discursivo, ou textual, uma vez que, pela própria natureza
transdisciplinar da linguagem, os textos, de preferência os “textos
reais”, verbais e não-verbais, disponíveis na sociedade, precisam
ser contextualizados e classificados por gêneros. Tal polêmica está
inscrita nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio referentes

70
Da Retórica à História Literaria

aos “conhecimentos de literatura”, documento publicado em 2006.


Reivindicando a posição da Literatura como disciplina escolar no
currículo do ensino médio, os autores a definem como arte, em
4
aula
“stricto sensu”, isto é, como “arte que se constrói com palavras”
(BRASIL, 2006, p. 52). Com tal argumento, fazem alusão ao arti-
go 35 da LDB/96, que define os objetivos gerais do Ensino Mé-
dio – progressão nos estudos (I), preparação para o trabalho (II) e
aprimoramento como pessoa humana (III) –, para nele justificar o
lugar do ensino de Literatura (BRASIL, 2006).
Desse modo, se um dos objetivos fundamentais do Ensino
Médio é o “aprimoramento do educando como pessoa humana,
incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia
intelectual e do pensamento crítico” (BRASIL, 1996), o menci-
onado inciso (III) dá margem a uma revitalização de um concei-
to considerado “desgastado” pelos PCN de 1998: o de “fruição
estética”, tido pelo novo documento como único meio de aces-
so a um tipo de conhecimento que não se pode mensurar: o
que proporciona a “humanização do homem coisificado”, pa-
pel reservado sobretudo às artes. Para a revitalização de tal
conceito, os autores se valem de alguns argumentos de autori-
dade – como os de Antonio Candido –, para depois chegarem à
questão do “letramento literário”: “estado ou condição de quem
não apenas é capaz de ler poesia ou drama, mas dele se apropri-
ar efetivamente por meio da experiência estética, fruindo-o”
(BRASIL, 2006, p. 55).
A literatura, conforme o documento, não tem alcançado tal
objetivo por uma série de problemas da escola: a ênfase sobre a
História Literária, em detrimento do texto literário, a distinção
que precisa ser feita entre as obras de qualidade ou “valor esté-
tico” e a Literatura ou cultura “de massa” – entre Machado de
Assis e Paulo Coelho, por exemplo –, o pouco tempo dedicado à
leitura individual e silenciosa, dentre outros. Para reverter a si-
tuação, seria preciso colocar a Literatura como direito de todos,
e não como dever, como obrigação escolar. O documento chega

71
Teoria da Literatura II

mesmo a encontrar uma contradição nos PCN, os quais, ao mes-


mo tempo em que incitam o uso de textos não canônicos e de
outros tipos de produção cultural, como o “rap” e o cordel, as-
seguram a manutenção da História Literária quando tratam das
habilidades e competências requeridas do aluno de Língua Por-
tuguesa: “recuperar, pelo estudo, as formas instituídas de cons-
Antonio Candido trução do imaginário coletivo, o patrimônio representativo da
cultura e as classificações preservadas e divulgadas, no eixo tem-
Poeta, ensaísta, pro-
fessor universitário e poral e espacial” (BRASIL, 2002).
um dos principais crí- Dado o diagnóstico, o prognóstico do documento é con-
ticos literários brasilei-
ros (1918-). centrar o ensino da Literatura na formação do leitor, desde o
Ensino Fundamental, tornando a escola o lugar da democrati-
zação da cultura literária. Para tanto, deveriam ser evitados os
resumos, as edições facilitadas e a própria literatura infanto-
juvenil, envolvida como se encontra nas estratégias do merca-
do editorial. O professor, sendo também um leitor, tornar-se-
ia o responsável pelas filtragens do material a ser lido pelos
alunos, colocando-se como mediador na escolha – baseada em
sua própria experiência – dos cânones, nacionais ou estrangei-
ros, a serem lidos ou trabalhados em sala de aula. Dessa for-
ma, enfatiza-se a necessidade de mudar o currículo, propondo-
se uma política de formação de leitores como uma atividade
“supradisciplinar”.

72
Da Retórica à História Literaria

C omo você pôde perceber, depois de constituir-se como


disciplina escolar, através de um processo que se con-
funde com a instituição do ensino secundário no Brasil e com pro-
4
aula
jetos políticos de (re)construção do Estado nacional, em meados
do século XIX e durante o Estado Novo, a
Literatura passa atualmente por um período
CONCLUSÃO
de redefinição de seu papel curricular, algo
que vem ocorrendo desde a primeira versão
da LDB, de 1961, e que se consolidou com a publicação dos PCN
para o ensino médio, em 1998, que a coloca como um gênero textu-
al dentre outros que devem ser trabalhados pelo professor de Lín-
gua Portuguesa.
Tal colocação causou um certo alvoroço entre os profissio-
nais da área, especialmente certa parcela dos professores univer-
sitários, cujas reivindicações estão expressas nas Orientações
Curriculares do Ensino Médio, documento publicado em 2006 com
intenções explícitas de confronto em relação aos PCN. As OCEM
defendem a especificidade da Literatura, ratificando a sua presen-
ça no currículo do ensino médio, isto é, de uma reivindicação da
Literatura como disciplina, algo inquestionável “até há pouco tem-
po”, segundo seus autores. Um tempo – como aquele da reforma
de Capanema, de 1936 –, em que a disciplina gozava de um status
privilegiado ante as demais. Em que a Literatura era, sobretudo,
um “sinal distintivo de cultura” (BRASIL, 2006, p. 51).
O que as Orientações Curriculares para o Ensino Médio parecem
não levar em consideração, em sua ênfase sobre a especificidade da
Literatura, é o questionamento que vem sendo feito – principal-
mente depois do “boom” dos Estudos Culturais, na década de 1990,
como vimos na Aula 3 – de muitas noções quase naturalizadas que
dão suporte à definição e categorização do discurso literário – tais
como “literariedade”, mesmo quando deslocada do texto para o
leitor e para a intertextualidade, “fruição estética” ou “valor estéti-
co” –, as quais se constituíram historicamente, sendo, portanto, in-
formadas pelos critérios, valores e preconceitos de suas épocas.

73
Teoria da Literatura II

Se os produtos da cultura de massa estão tomando – ou pre-


tendem tomar – perigosamente o lugar dos cânones literários na
escola, e muitas vezes sem a necessária “qualidade estética”,
isso se deve não somente à inabilidade dos professores e à pres-
são dos reclames da indústria cultural, mas também aos impac-
tos que os Estudos Culturais causaram sobre os estudos literári-
os, que exigiram, dentre outros questionamentos – inclusive o
da própria noção de “cânone” –, uma “discussão sobre o que
conta como literatura digna de ser estudada e sobre como as
idéias de excelência funcionam nas instituições” (CULLER,
1999, p. 55).
Não que, em nome de uma moda acadêmica, tal perspectiva
se reduza à desconstrução ou simples desprezo da Literatura
canônica, a despeito de seu “valor estético”, mesmo porque o
questionamento do cânone acompanha-se de sua expansão, au-
mentando, por exemplo, o leque de autoras do século XIX, um
período tradicionalmente masculino em termos de História Lite-
rária. É preciso, de fato, que os estudantes, na Educação Básica,
tenham direito à Literatura, mas o problema é como fazer com
que tal direito não se transforme em dever, ou, pior ainda, em
dever de casa, uma vez que o estabelecimento de determinadas
obras a serem lidas é uma imposição.
Por outro lado, os PCN, ao mesmo tempo em que colocam
em questão o próprio lugar da Literatura no Ensino Médio, ou-
sando comparações entre Machado de Assis e Paulo Coelho, ou
entre Zé Ramalho e Drummond, não conseguem desvencilhar-
se da História Literária, ou seja, do método mais tradicional de
ensino de Literatura, uma vez que buscam recuperar “as formas
instituídas de construção do imaginário coletivo”, bem como “o
patrimônio representativo da cultura e as classificações preser-
vadas e divulgadas, no eixo temporal e espacial”, o que, em ou-
tras palavras, significa a manutenção não só do cânone repre-
sentativo da cultura oficial, uma vez que autorizada pelo imagi-
nário coletivo e pela política cultural, mas também de sua

74
Da Retórica à História Literaria

periodização, tal como se encontra nas Histórias Literárias (BRA-


SIL, 2002).
As duas posições são polêmicas e problemáticas, discutindo,
4
aula
cada qual a seu modo, questões importantes a respeito do ensino de
Literatura. No entanto, ambas ignoram seu processo de escolarização
e disciplinarização, que é histórico e de longo prazo, deixando de
relacioná-lo, por exemplo, com a própria constituição do conceito
de Literatura. Talvez isso se explique pelo senso comum segundo o
qual a escola é um dispositivo que seleciona e transmite saberes
produzidos pelos intelectuais com o intuito de torná-los assimiláveis
pelos jovens estudantes.
Tal senso comum, que impede a compreensão do processo
histórico de formação das disciplinas escolares, e do modo como
se constituem como entidades culturais específicas, não permi-
te que a escola seja definida como instância a partir da qual os
saberes – inclusive os literários – são elaborados, ensinados e
aprendidos, como foi o caso da “literatura nacional”, no sistema
de ensino brasileiro do século XIX. Assim, acaba reforçando dois
outros sensos comuns: o de que a instituição escolar, sendo um
aparelho ideológico do Estado, apenas reproduz, e o de que os
saberes científicos, ou acadêmicos, são superiores aos escolares.

Zé Ramalho (Fonte: http://


101fm.podomatic.com).

Carlos Drummond de Andrade (Fonte:


http://cienciahoje.uol.com.br).

75
Teoria da Literatura II

RESUMO

Caro aluno, na aula de hoje, vimos um pouco do processo de


institucionalização do ensino de Literatura no Brasil, isto é,
como a Literatura se configurou como disciplina escolar, no
sistema educacional brasileiro. Começamos com sua progressiva au-
tonomia em relação à Retórica, no currículo do Imperial Colégio de
Pedro II, e suas constantes mudanças de rótulo – Literatura Nacio-
nal, Literatura Geral, etc. –, analisando um famoso compêndio de
Literatura da época. Aprendemos que a situação não se modificou
muito durante a Primeira República, e que somente no Estado Novo
(1937-1945) a Literatura teve seu ensino sistematizado, tornando-
se a disciplina-tronco do currículo dos estudos secundários. Com as
primeiras versões da LDB, de 1961 e 1971, a Literatura como disci-
plina perdeu seu prestígio, uma vez que seu caráter elitista já não se
ajustava a um projeto de democratização do ensino secundário, o
qual começava a aumentar sua demanda, em função da expansão
do ensino primário. Na segunda parte da aula, analisamos dois do-
cumentos oficiais recentes sobre o ensino de Literatura no Brasil,
os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Orientações Curriculares do En-
sino Médio. Comp aramos suas posições teóricas e ideológicas, apon-
tando os pontos positivos e duvidosos de cada uma, expondo nos-
so ponto de vista no final. Com os PCN, temos a desdisciplinarização
da Literatura, que passa a ser um gênero discursivo dentre outros
para o professor de Língua Portuguesa. Se, por um lado, isso reflete
um pouco o impacto dos Estudos Culturais, que concebem a Lite-
ratura como uma prática cultural dentre outras, sobre os estudos
literários, por outro dá margem a uma facilitação do ensino da Lite-
ratura, que é posta lado a lado com receitas de bolo e anúncios de
sabonete, dentre outros gêneros textuais. Com as OCEM, temos a
reivindicação da Literatura como disciplina escolar tradicional e
específica. Aqui também há duas possibilidades: de uma positiva
democratização dos estudos literários e, ao contrário, de uma
elitização ainda maior da “arte literária”.

76
Da Retórica à História Literaria

A nossa posição é de que o profissional das Letras, mais do


que nunca, hoje é um especialista em textos e em linguagem, de-
vendo ter formação teórica sólida tanto no campo da Lingüística
4
aula
quanto no da Teoria da Literatura. Sua denominação como pro-
fessor de Língua Portuguesa, ou Inglesa, ou Francesa, ou Espa-
nhola, não o exime de ter o texto literário como objeto de suas
aulas, muito menos das contribuições teórico-metodológicas da
História Literária e da Teoria da Literatura.

ATIVIDADES

Responda às seguintes questões:


1. Por que podemos afirmar que o ensino de Literatura surgiu, no
Brasil, como um desdobramento do ensino de Retórica?
2. Tente diferenciar, em linhas gerais as posições dos PCN e das
Orientações Curriculares do Ensino Médio referentes ao ensino de
Literatura.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Essa atividade tem por finalidade fazer com que você construa
alguns argumentos baseados nos principais conteúdos desta
quarta aula, de modo a compreender historicamente o processo
de institucionalização do ensino de Literatura no Brasil,
relacionando-o com a situação atual. Para tanto, é importante
a leitura não só desta Aula, mas também dos Parâmetros
Curriculares Nacionais e das Orientações Curriculares do Ensino
Médio referentes ao ensino de Literatura, cujos textos
encontram-se disponíveis no portal do MEC, no link referente
à Educação Básica (http://portal.mec.gov.br/seb/).

77
Teoria da Literatura II

REFERÊNCIAS

BRASIL. Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.


Brasília: MEC, 1996.
_______. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Funda-
mental (1.º e 2.º ciclos). Brasília: MEC/Semtec, 1998a.
_______. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Funda-
mental (3.º e 4.º ciclos). Brasília: MEC/Semtec, 1998b.
_______. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio.
Brasília: MEC/Semtec, 2002.
_______.Orientações Curriculares para o Ensino Médio.
Brasília: MEC/Semtec, 2006.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 6 ed.
Belo Horizonte: Itatiaia, 2000a.
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. v. 1.
Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1959.
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e historia. 2 ed.
México: Fondo de Cultura Economica, 2000.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre
um campo de pesquisa. Tradução: Guacira Lopes Louro. Teoria &
Educação. Porto Alegre, n. 2, p. 177-229, 1990.
CHERVEL, André, COMPÈRE, Marie-Madeleine. As humani-
dades no ensino. Tradução: Circe Maria Fernandes Bittencourt.
Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 25, n. 2, p. 149-170, 1999.
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Tradução
de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tra-
dução de Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
OLIVEIRA, Luiz Eduardo Meneses de. A historiografia brasilei-
ra da literatura inglesa: uma história do ensino de inglês no Brasil
(1809-1951). Dissertação de Mestrado, Instituto de Estudos da Lin-
guagem da Universidade Estadual de Campinas, 1999. Disponível
em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/>

78
Da Retórica à História Literaria

_______. A instituição do ensino das Línguas Vivas no Brasil:


o caso da Língua Inglesa (1809-1890). Tese de Doutorado, Progra-
ma de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política,
4
aula
Sociedade, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.
Disponível em: <http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/
arquivo.php?codArquivo=2255>
PINHEIRO, Doutor Joaquim Caetano Fernandes. Resumo de
historia litteraria. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1872.

79
OS GÊNEROS LITERÁRIOS 5
aula
MET
METAA
Apresentar “gêneros literários”; e
salientar a heterogeneidade e o
caráter descritivo, e não 1
prescritivo, dos gêneros literários.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno
deverá:
reconhecer a historicidade e
transitoriedade dos gêneros
literários, bem como a
possibilidade de sua mistura
ou miscigenação e
identificar e classificar os gêneros
literários, segundo suas estruturas
formais e condições de produção.

2
PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá ter noções sobre a
historicidade do conceito de
literatura; da relação entre
História Literária e ensino da
Literatura; e sobre as finalidades
e o papel formativo da Literatura
no currículo escolar, do ponto de
vista histórico.

O ditirambo era um canto coral que homenageava ritualmente


o deus Dionísio. Originalmente improvisado, depois assu-
miu forma escrita. O ditirambo precede as comédias e as
tragédias gregas. Acima, mosaico grego representando
Dionísio entre sátiros; abaixo, fotografia do teatro de
Dionísio, o mais antigo local de espetáculos da Acrópole de
Atenas, onde, durante muito tempo, se dançava e cantava os
ditirambos. (Fonte: 1- http://upload.wikimedia.org; 2 -
http://www.caleidoscopio.art.br).
Teoria da Literatura II

O lá, caro aluno! Na aula de hoje, você aprenderá que


os gêneros literários, tal como a Teoria da Literatura
os concebe, foram definidos e classificados por Aristóteles, em
sua Poética, e que sua classificação, embora tivesse como referên-
cia as obras de seu tempo, que atendiam a
condições de produção bem diversas dos dias
INTRODUÇÃO
de hoje, ainda permanece atual, no estudo de
obras literárias modernas e contemporâneas.
Veremos como Aristóteles concebia o que hoje chamamos
Literatura, como ele classificava o que chama de “espécies de
poesia” e o modo como seus conceitos foram (re)apropriados
pela Teoria da Literatura, dando-lhe uma caráter mais descriti-
vo do que normativo. Finalmente, veremos como podemos nos
utilizar da classificação aristotélica para tratar de obras mo-
dernas e contemporâneas, enfatizando sua importância nos es-
tudos literários.

Capa da obra Poética, de Aristóteles

82
Os gêneros literários

O s gêneros literários, tal como hoje os concebemos,


5
no campo dos estudos literários, foram definidos por
aula
Aristóteles (384–322 a.C.), em sua Poética, que classificou a poesia
em espécies que se diferenciavam de acordo com o meio, o objeto e
o modo de imitação, uma vez que, para o pen-
sador estagirita, a poesia era, como todas as ou-
ARISTÓTELES
tras artes, um tipo de imitação.
“Imitação” foi a palavra usada por Eudoro
de Sousa e Jaime Bruna, tradutores da Poética de Aristóteles para o
português, para traduzir o vocábulo grego mimesis, que na tradução
para o francês de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot foi traduzido
por “representação”, por guardar um sentido teatral e conter a sua
polivalência semântica (COSTA, 1992).
Platão (427-347? a.C.), por exemplo, compreendia a arte como
um tipo de produção que não criava objetos originais, mas apenas
cópias do que seria a realidade. Desse modo, a mimesis não atingia a
essência das coisas, sendo falsa e ilusória, daí a sua fragilidade e
inaplicabilidade ao discurso filosófico. Para Platão, sendo as idéias
apenas imitações da “realidade original”, a arte seria apenas a imi-
tação de uma imitação.
Mesmo sendo discípulo de Platão, Aristóteles reformulou o con-
ceito de mimesis, pois valorizava na arte a sua relativa autonomia
com relação à realidade pré-existente, dada a sua capacidade de
criar ações, pensamentos e palavras semelhantes à realidade, ou
possíveis de realizar-se, daí a sua importância na interpretação do
“mundo exterior”, da realidade, através da verossimilhança.
Conforme Aristóteles, o poeta pode imitar as coisas de três
modos: representando como elas eram ou são; como os outros di-
zem que elas são e parecem ser; ou como elas deveriam ser. Assim,
embora a verossimilhança, na Poética, vincule-se a um referencial ex-
terno ou exterior, este não apresenta limites fixos, pois abrange o
campo do possível, que é constituído por referências do passado
(como as coisas eram), do presente (como as coisas são) e do futuro
(como as coisas deveriam ser).

83
Teoria da Literatura II

O próprio Aristóteles buscou responder às críticas quanto à


Fantástica presença do impossível na poesia, ou na arte literária, como cha-
O termo “fantástico”, maríamos hoje, afirmando ser desculpável o erro do poeta se ele
presente no título des- atingiu, mesmo com a representação de algo impossível, as finali-
te verbete, é oriundo
do latim phantasticus dades de sua arte (COSTA, 1992, p. 42). Desse modo, o conceito
(-a,-um), que, por sua de verossimilhança não se vincula estritamente ao “mundo exteri-
vez, provém do grego
phantastikós - ambas or”, podendo ser usado inclusive para obras modernas ou con-
as palavras provenien- temporâneas de ficção científica ou de literatura fantástica, des-
tes de “fantasia”. Re-
fere-se ao que é criado de que haja “verossimilhança interna”, isto é, desde que obedeça
pela imaginação, o que a uma coerência de seus elementos internos, sendo possível com
não existe na realida-
de. É aplicável a um relação ao universo ficcional da obra.
objeto como a literatu- Nesse sentido, convém lembrar a célebre distinção feita pelo
ra, pois o universo da
literatura, por mais que pensador estagirita entre poesia e história:
se tente aproximá-la do
real, está limitado ao
fantasioso e ao ficcio- Pelas precedentes considerações se manifesta que não é
nal. Todo texto fantás- ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de
tico tem elementos in-
verossímeis, imaginá- representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é
rios, distantes da rea- possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com
lidade dos homens. efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem
verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em
verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de
ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) –
diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e
outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de
mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere
aquela principalmente o universal, e esta, o particular. Por
“referir-se ao universal” entendo eu atribuir a um indivíduo
de determinada natureza pensamentos e ações que, por
liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal
natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda
que dê nomes aos seus personagens; particular, pelo
contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu
(ARISTÓTELES, 2003, p. 115-116).

Da mesma forma que a noção de verossimilhança pode ser usada


para analisar textos literários modernos ou contemporâneos, o con-

84
Os gêneros literários

ceito de mimesis foi fundamental para o desenvolvimento da Teoria da


Literatura, ocupando, segundo Luiz Costa Lima, em Mímesis e
Modernidade (1980), uma centralidade indiscutível no pensamento oci-
5
aula
dental. Com efeito, é possível reconhecer sua influência em todas as
correntes modernas da crítica literária, na lingüística estrutural e na
hermenêutica (COSTA, 1992, p. 55-69).
Mito
AS ESPÉCIES DE POESIA
Um mito (do grego an-
tigo mithós) é uma nar-
Como afirmamos no início do tópico anterior, Aristóteles, rativa tradicional com
caráter explicativo e/ou
no primeiro capítulo de sua Poética, classificou a poesia em espé- simbólico, profunda-
cies que se diferenciavam de acordo com o meio, o objeto e o mente relacionado com
uma dada cultura e/ou
modo de imitação, visando estabelecer os elementos necessári- religião. O mito procu-
os para se alcançar a perfeição de cada uma delas, especialmen- ra explicar os princi-
pais acontecimentos
te com relação à sua efetividade e a composição que se devia da vida, os fenômenos
dar aos mitos. naturais, as origens do
Mundo e do Homem
As espécies arroladas por Aristóteles são as seguintes: por meio de deuses,
1. Epopéia: poema heróico, narrativo e extenso, que relata uma semi-deuses e heróis
(todas elas são criatu-
colecção de feitos, fatos históricos e míticos de um ou vários indi- ras sobrenaturais).
víduos, reais, lendários ou mitológicos. Os exemplos clássicos são Pode-se dizer que o
mito é uma primeira
a Ilíada e a Odisséia, de Homero. tentativa de explicar a
2. Tragédia: forma de drama que se caracteriza por sua seriedade e realidade.
dignidade, envolvendo freqüentemente um conflito entre um per-
sonagem e algum poder de instância maior, como a lei, os deuses,
o destino ou a sociedade. Um exemplo clássico é Rei Édipo, de
Sófocles (496-406 a.C.).
3. Ditirambo: canto coral de caráter apaixonado (alegre e sombrio),
constituído de uma parte narrativa, recitada pelo cantor princi-
pal, ou corifeu, e de outra propriamente coral, executada por
personagens vestidos de faunos e sátiros, considerados compa-
nheiros do deus Dionísio, em honra do qual se prestava essa ho-
menagem ritualística.
4. Poesia Aulética: composição poética acompanhada do som
(Fonte: http://
da flauta. www.sebodomessias.com.br).

85
Teoria da Literatura II

5. Poesia Citarística: composição poética acompanhada por instru-


Elegia
mentos de corda.
Modernamente, elegia Todas essas espécies, segundo Aristóteles, eram tipos de imitação.
é um poema de tom ter-
no e triste. Geralmente
Se outros artistas imitavam as coisas exprimindo-se através de cores e
é uma lamentação pelo figuras, os poetas imitavam com o ritmo, a linguagem e a harmonia,
falecimento de um per-
sonagem público ou
usando tais elementos separada ou conjuntamente. A poesia aulética
um ser querido. Vale e a citarística, por exemplo, bem como outras artes congêneres, usa-
ressaltar que na elegia
também há digressões
vam somente ritmo e harmonia. Com o ritmo e sem a harmonia, tais
moralizantes destina- espécies imitariam a arte dos dançarinos, pois estes, mediante gestos
das a ajudar ouvintes
ou leitores a suportar
articulados, também imitavam caracteres, afetos e ações.
momentos difíceis. Por A arte que recorria somente ao simples verbo, metrificado ou não,
extensão, designa toda
reflexão poética sobre
misturando metros diversos ou servindo-se de apenas uma espécie
a morte: a elegia, assim métrica, ainda permanecia, em seu tempo, inominada, não havendo
como a Ode, tem exten-
sões variadas. O que
uma palavra genérica – como “literatura”, em seu sentido moderno –
as difere é que a elegia que pudesse denominar as composições imitativas que eram executa-
trata de acontecimen-
tos infelizes do próprio
das mediante versos. A palavra “poeta” era associada, geralmente, a
autor ou da sociedade. uma só espécie de métrica, como poeta elegíaco ou “poeta épico”,
Já na antigüidade, a
elegia era uma compo-
adjetivos empregados não pela imitação praticada, mas pelo tipo de
sição da poesia lírica metro usado. Quanto a essa questão, afirma Aristóteles:
monódica (ou seja, de-
clamada pelo próprio
poeta, geralmente, e Desta maneira, se alguém compuser em verso um tratado de
acompanhada por um Medicina ou de Física, esse será vulgarmente chamado “poeta”;
só intrumento musical
- como a lira; ao con- na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e
trário da lírica coral, Empédocles, a não ser a metrificação: aquele merece o nome
apresentada por um de “poeta”, e este, o de “fisiólogo”, mais que o de poeta. Pelo
coro, como ou sem
acompanhamento mesmo motivo, se alguém fizer obra de imitação, ainda que
musical), aparentada misture versos de todas as espécies, como o fez Querémon no
à épica pela sua for- Centauro, que é uma rapsódia (6) tecida de toda a casta de metros,
ma. No entanto, o me-
tro utilizado era o dís- nem por isso se lhe deve recusar o nome de “poeta”
tico elegíaco. Havia (ARISTÓTELES, 2003, p. 104).
vários tipos de elegia,
conforme seu conteú-
do: elegia marcial ou
guerreira, elegia amo-
rosa e hedonista, ele- Estrutura geral do dístico elegíaco. O dístico elegíaco era o metro geralmente utilizado
gia moral e filosófica, na composição de elegias na antigüidade greco-romana. Trata-se de uma estrofe de dois
elegia gnômica... versos dactílicos, sendo o primeiro um hexâmetro e o segundo um pentâmetro (Fonte:
http://pt.wikipedia.org).

86
Os gêneros literários

Assim, um primeiro critério para classificar as espécies de po-


esia, ou os gêneros literários, como diríamos hoje, seria o dos meios
de imitação. Se os ditirambos e os nomos usavam conjuntamente
5
aula
de meios como o ritmo, o canto e o metro, a tragédia e a comédia
usavam tais meios alternadamente, “um por sua vez”, na tradu-
ção de Eudoro de Sousa do texto aristotélico (ARISTÓTELES,
2003, p. 104). Paródias
Quanto ao objeto de imitação, os poetas podiam representar
Imitação, na maioria
indivíduos de elevada ou de baixa índole, pois os homens se distin- das vezes cômica, de
uma composição lite-
guiam, quanto ao caráter, pela virtude ou pelo vício. Assim, podi-
rária, em outras pala-
am imitar homens melhores, piores ou iguais a nós, como os pinto- vras é uma imitação
burlesca. A paródia
res. Homero, em sua opinião, imitou homens superiores, enquanto
surge a partir de uma
Hegémon de Tarso, autor de paródias, e Nicócares, poeta cômi- nova interpretação, da
recriação de uma obra
co e autor de Delíada, imitaram homens inferiores. A mesma dis-
já existente e, em ge-
tinção poderia ser encontrada nos ditirambos e nos nomos, como ral, consagrada. Seu
objetivo é adaptar a
mostravam as imitações de Timóteo de Mileto (446-356 a.C.) e
obra original a um
Filóxeno, nos Ciclopes. Essa mesma diferença separava a tragédia, novo contexto, pas-
sando diferentes ver-
que imitava indivíduos elevados, da comédia, que imitava homens
sões para um lado mais
comuns. despojado, e aprovei-
tando o sucesso da
Com relação ao modo como se efetuava a imitação, os poetas
obra original para pas-
podiam imitar os mesmos objetos na forma narrativa – “assumindo sar um pouco de ale-
gria.
a personalidade dos outros como Homero, ou na própria pessoa,
sem mudar nunca” (ARISTÓTELES, 2003, p. 106) – ou através
das pessoas imitadas em ação, como no drama. Nesse sentido, o
objeto de imitação de Sófocles seria o mesmo de Homero, pois
ambos imitavam pessoas de caráter elevado, mas diferiam quanto
ao modo de imitação. O primeiro deixava que a história fosse con-
tada pelas personagens, mediante diálogos, enquanto o segundo
narrava a história.
Convém observar que, das espécies arroladas por Aristóte-
les, foi excluído o lirismo, pois este estaria no campo da arte
musical. Ademais, conforme Eudoro de Sousa, em nota de sua
tradução da Poética, o ditirambo, assim como o nomo, espécie in-
cluída no final do capítulo, embora se fizesse acompanhar de

87
Teoria da Literatura II

instrumentos musicais, no século IV a.C. havia assumido um


Lírica caráter dramático, como a tragédia e a comédia, ficando à parte
Forma de poesia que as espécies líricas, puramente musicais, ou as que o teriam sido,
surgiu na Grécia Anti- antes de assumirem as características dramáticas de que se revesti-
ga, e originalmente, era
feita para ser cantada ram por influência da tragédia (ARISTÓTELES, 2003, p. 150).
ou acompanhada de Contudo, Wellek e Warren (1962, p. 283; 291) afirmam que
flauta e lira (daí o líri-
ca). Diferentemente da Aristóteles, em sua Poética, designou, embora de modo aproximado,
poesia épica (onde um a poesia épica, dramática e lírica (“mélica”) como as três espécies
narrador conta uma
história) e da poesia básicas de poesia, razão por que a moderna Teoria da Literatura
dramática (gênero que dividiu a “literatura imaginativa” em ficção (romance, conto, épi-
inclui todas as peças
teatrais em versos e ca), drama (quer em prosa, quer em verso) e poesia (centrada no
onde são os persona- que corresponde à antiga poesia lírica).
gens que falam, e não
o poeta), na poesia lí- Não se pode esquecer, porém, que, na época de Aristóteles, o
rica o poeta fala dire- drama não se encontrava em uma posição tão diferente da épica e
tamente ao leitor, re-
presentando os senti- da lírica, como em nosso tempo. Se, hoje em dia, os poemas e
mentos, estado de es- romances são lidos silenciosamente, enquanto o drama continua
pírito e percepções dele
ou dela. a ser uma espécie de arte mista, isto é, literária ou verbal, mas
também um espetáculo, fazendo uso de atores, diretores, eletri-
cistas, músicos, etc., no tempo de Aristóteles, a poesia de Homero
era recitada por um rapsodo, e a poesia elegíaca era acompanhada
pelo som da lira (WELLEK & WARREN, 1962, p. 284).
Outra dificuldade para a aplicação desses três gêneros básicos
a textos literários modernos ou contemporâneos surge não só com
o aparecimento, no decorrer do tempo, de formas ou tipos novos,
mas também com a existência de formas compostas, nas quais os
meios, o objeto e os modos de imitação, para falar como Aristóteles,
se confundem.

A MODERNA TEORIA DOS GÊNEROS


LITERÁRIOS

A teoria clássica dos gêneros literários, tal como propôs


Aristóteles, era mais prescritiva do que descritiva. Os gêneros, ou
as espécies de poesia, não deviam se misturar, mantendo-se inde-

88
Os gêneros literários

pendentes e separados, se os poetas quisessem atingir um grau de


perfeição. Foi tal princípio que deu origem à doutrina da “pureza
dos gêneros”, cujas implicações sociais de sua hierarquia foram
5
aula
desenvolvidas no Renascimento, e que não está muito distante
das idéias acerca da “pureza de raça”, formuladas a partir do século
XVIII, nem da noção de “pureza das línguas”, tão criticada pelos Renascimento
lingüistas contemporâneos (RAJAGOPALAN, 2003).
Período na história do
Os gêneros eram então separados pela sua natureza estrutural mundo ocidental com
e pelo seu prestígio social, mas principalmente pelas suas finalida- um movimento cultural
marcante na Europa,
des estéticas, sua capacidade de concentrar harmonicamente uma considerado como um
unidade de tom, de enredo ou de tema. A épica e a tragédia, por marco do final da Ida-
de Média e o início da
exemplo, tratavam de reis e nobres, isto é, de “indivíduos superio- Idade Moderna. Come-
res”, enquanto a comédia ocupava-se da classe média e a sátira e a çou no século XIII na
Itália e difundiu-se pela
farsa, do povo. A esses objetos de imitação deveriam adequar-se mei- Europa no decorrer
os e modos próprios de linguagem, estilos de dicção elevado, médio ou dos séculos XV e XVI.
baixo (WELLEK & WARREN, 1962, p. 292).
No entanto, já no século XIV, o inglês Geoffrey Chaucer (1343- Farsa
1400) experimentou a mistura de estilos e dicção. O plano geral Modalidade burlesca
dos Contos da Cantuária, sua obra mais importante, pode ser resumi- de peça teatral, carac-
terizada por persona-
do da seguinte maneira: Alguns peregrinos prestes a visitar o túmulo gens e situações cari-
de Tomás Becket, em Cantuária, reúnem-se por acaso em uma catas. Difere da comé-
dia e da sátira por não
taverna no Tabardo, ao Sul de Londres, e, por segurança, decidem preocupar-se com a ve-
cavalgar juntos, no outro dia. O taverneiro propõe que cada um rossimilhança nem pre-
tender o questiona-
2
mento de valores.
1

1 - Capa de edição brasileira de Os Contos da


Cantuária; 2 - Representação dos peregrinos em
seu caminho para a Cantuária (Fontes: 1 -
http://educaterra.terra.com.br; 2 - http://
www.csupomona.edu).

89
Teoria da Literatura II

conte duas histórias na ida e duas na volta, para que a viagem


transcorra agradavelmente, prometendo um jantar gratuito ao que
contar a melhor história. Como os peregrinos, contando com o
próprio narrador – que nesse caso se confunde com o autor,
Geoffrey Chaucer Chaucer –, eram trinta, o livro deveria ter cento e vinte histórias,
mas o poeta não chegou a escrever três dezenas, morrendo antes
Escritor inglês (1343-
1400). Consagrou-se de concluir sua obra.
como um renomado Já no “prólogo” que precede os contos, o narrador traça um
tradutor do francês e
do latim. Daí ele incor- panorama da sociedade ingle-
porar nos seus Con- sa da época, pois as pessoas de
tos da Cantuária, ini-
ciados em 1386, pas- todas as classes sociais costu-
sagens inteiras de mavam partir, no início da pri-
obras como Roman de
la Rose de Guillaume mavera de cada ano, em pere-
de Lorris e da Conso- grinação ao túmulo do santo
latione philosophiae
do filósofo Boécio. mártir Tomás Becket, que ha-
Foi o primeiro homem via sido assassinado pelo rei
de letras a ser enterra-
do em Westminster, a Henrique II em 1170 na cate-
abadia que abrigava dral da Cantuária, na esperan-
as sepulturas reais da
Inglaterra. ça de pagar suas promessas, tal
como ocorre, ainda nos dias de
hoje, no Brasil, em Aparecida
do Norte ou em Juazeiro do P á g i n a m a n u s c r i t a d e O s C o n t o s d a
Cantuária de Chaucer (Fonte: http://
Padre Cícero. abarrigadeumarquitecto.blogspot.com).
Na galeria de Chaucer, há
membros da baixa aristocracia (o Cavaleiro), do clero (a freira, o
pároco pobre, o estudante de Oxford), da burguesia então ascen-
dente (o mercador, o médico, o advogado) e das classes inferiores
(o moleiro, o carpinteiro, o camponês, etc.). Ao descrever cada tipo,
o narrador expõe também seu ponto de vista, simpatizando-se com
algumas personagens, como o cavaleiro e o pároco pobre, e
antipatizando-se com outras, como demonstram suas observações
irônicas a respeito da freira ou do advogado.
A grandeza do autor está em narrar cada história de acordo
com o estilo, cultura e temperamento de cada personagem,

90
Os gêneros literários

travestindo-se e investindo-se em suas vozes, como se fosse um


dramaturgo, para construir de modo criativo um panorama dos gê-
neros literários da época (VIZIOLI, 1992, p. 94). Assim, o “conto
5
aula
do cavaleiro” segue o estilo do romance de cavalaria, o “conto do
moleiro” é uma espécie de fabliaux obsceno, o “conto do pároco” é
um longo sermão sobre os sete pecados capitais, e assim por dian-
te, cada conto com seu próprio gênero literário, ou espécie de poe-
sia, uma vez que os contos são escritos em versos da mais variada
espécie.
Nos séculos XVII e XVIII, período considerado neoclássico e
que teve como característica uma mistura de autoritarismo e
racionalismo, a teoria dos gêneros, embora não explanada, assumiu
William Shakespeare
um caráter mais prescritivo do em Aristóteles. Intolerantes face a
outros sistemas, espécies e formas estéticas que não fossem consi- Dramaturgo e poeta
derados clássicos, os neoclássicos desprezavam todas as obras em inglês (1564-1616).
Considerado o maior
que houvesse miscigenação ou mistura de gêneros, como as de dramaturgo da Língua
Chaucer e as de William Shakespeare (1564-1616), cujas tragédi- inglesa e um dos mais
influentes no mundo
as e comédias rompiam com a teoria clássica das unidades – de ocidental. Suas obras
ação, de tempo e de espaço. que permaneceram ao
longo dos tempos
A moderna teoria dos gêneros literários, por sua vez, é apenas consistem de 38 pe-
descritiva, pois não prescreve normas de composição para as várias ças, 154 sonetos, dois
poemas de narrativa
espécies de poesia. Admite a mistura de gêneros, como a tragico- longa, e várias outras
média, e enfatiza o caráter único ou original de cada obra. Ela teve poesias.

início no século XIX, em pleno Romantismo, com o conseqüente


alargamento do público leitor, proporcionado pelo barateamento
dos custos de impressão dos livros, e com a maior profusão e vari-
edade com que novos gêneros, mistos ou não, foram aparecendo.
Desse modo, o prazer que uma obra literária pode causar ao
homem passou a ser concebido como uma composição entre a sen-
sação de novidade com relação ao tema, estilo ou composição e o
reconhecimento de formas já conhecidas, uma vez que um gênero
totalmente novo é inconcebível se ele não dialoga com a tradição,
seja para modificá-la, seja para rejeitá-la. Como escrevem Wellek e
Warren (1962, p. 294):

91
Teoria da Literatura II

O gênero representa, por assim dizer, uma soma de processos


técnicos existentes, de que o escritor pode lançar mão e dispor
e que o leitor já compreende. Em parte, o grande escritor
observa o gênero tal como este existe e, em parte, estende-
o, dilata-o. De uma maneira muito geral, os grandes
escritores raramente foram inventores de gêneros [...].
Sejam quais forem as relações entre a literatura e os outros
reinos valorativos, os livros são influenciados por outros
livros; os livros imitam, caricaturam, transformam outros
livros – e não apenas aqueles que lhe sucedem em estrita
ordem cronológica.

Com efeito, os gêneros existem porque ninguém cria qualquer


obra de arte a partir de um marco zero, mas sempre em função do
que já foi produzido no decorrer da história. Há obras que, embo-
ra não alcancem reconhecimento na época de sua publicação, seja
por sua inovação formal ou temática, seja pelo seu caráter
transgressor e contrário às regras vigentes de boa conduta, aca-
bam exercendo influência séculos depois, quando os escritores
delas se apropriam. O caso de Shakespeare é bastante emblemático
nesse sentido. Autor de muito sucesso na época da rainha Elizabete
I (1533-1603) e do seu sucesso no trono inglês, Jaime I (1566-
1625), foi considerado de mau gosto até o final do século XVIII,
quando vigoraram os princípios da arte neoclássica, sendo
redescoberto como maior autor inglês de todos os tempos duran-
te o Romantismo, já no século XIX.
Como afirma Jauss (1994), em seu livro A História da Literatu-
ra como Provocação à Teoria Literária (1967), a historicidade do texto
literário só pode ser detectada levando-se em conta o “horizonte
de expectativa” do leitor, que significa o conhecimento prévio em
relação a gênero, forma ou temática de obras já conhecidas. Seu
valor estético, dessa forma, depende da distância entre a experi-
ência já vivenciada da leitura e a “mudança de horizonte” repre-
sentada pela obra.

92
Os gêneros literários

O problema dos gêneros literários levanta questões


cruciais para a história literária. Como vimos na Aula
2, aos poucos, o idealismo das primeiras histórias literárias deu lu-
5
aula
gar à progressiva adoção dos métodos objetivistas das ciências na-
turais, o que se traduzia no processo de con-
solidação do Naturalismo na literatura. Os CONCLUSÃO
“condicionamentos” ou “fatores” extrínsecos
à obra passaram a ter prioridade nos estudos literários. O modelo
clássico da historiografia naturalista é a História da Literatura Inglesa
(1877), de Hippolyte Taine. Aqui, a cronologia é um mero instru-
mento didático, útil apenas para a sistematização dos fatos literári-
os, pois mais importantes são as determinações da “raça”, do “meio”
e do “momento histórico”. Os historiadores que demonstraram
interesse pela autonomia do texto literário propuseram uma teo-
ria evolutiva na qual o desenvolvimento de uma forma específica
de arte era concebido como um ciclo vital, com nascimento, ma-
turidade, declínio e morte, fixando o modelo da história evolutiva
dos gêneros literários, percebidos estes sob a perspectiva da bio-
logia (OLIVEIRA, 2008).
Esse modo de conceber a literatura e os gêneros literários
pode nos levar a equívocos. Primeiro porque o aparecimento de
novos gêneros ou subgêneros não segue um fluxo linear e evolu-
tivo, pois apresenta relações mais complexas de continuidade e
ruptura, e não só com obras imediatamente anteriores ou poste-
riores. Segundo porque a classificação da literatura em gêneros
ou espécies tem apenas valor didático, sendo importante para
que o profissional de letras, ao analisar o texto literário, tenha
noção dos elementos estruturais ou composicionais caracterís-
ticos de cada gênero, percebendo na obra analisada seus diálo-
gos intertextuais com a tradição.
Uma maneira bastante funcional da divisão dos gêneros literá-
rios, que resgata a teoria aristotélica sem concebê-la de modo
prescritivo, é proposta por Scholes e Kellog (1977, p. 1-2), quando
definem o gênero narrativo, ou épico:

93
Teoria da Literatura II

Entendemos por narrativa todas as obras literárias marcadas


por duas características: a presença de uma estória e de um
contador de estórias. Drama é uma estória sem contador;
nele, os personagens interpretam diretamente aquilo a que
Aristóteles chamou uma “imitação” do tipo de ação que
encontramos na vida. Um lírico, à semelhança do drama, é
uma apresentação direta em que um único ator, o poeta ou
seu substituto, canta ou medita ou fala para nós ouvirmos
ou super-ouvirmos.

Haikai
Desse modo, o gênero épico, representado tradicionalmente pela
Forma poética de ori- epopéia, pelo romance de cavalaria, pelos relatos de viagem, pelo
gem japonesa, que va-
loriza a concisão e a conto e pelo romance moderno, caracteriza-se, do ponto de vista es-
objetividade. O princi- trutural, ou de acordo com seu modo de imitação, como queria
pal haicaísta foi Mat-
suô Bashô (1644- Aristóteles, pela presença de um narrador e de uma história a ser
1694), que se dedicou contada, independente de seu meio de imitação, em prosa ou em
a fazer desse tipo de
poesia uma prática es- verso. Caso essa história seja contada não por um narrador, mas
piritual. O primeiro au- pelas próprias personagens, através de diálogos, os quais também
tor a popularizar o hai-
cai no Brasil foi Gui- podem ser versificados, à maneira de Shakespeare, ou em prosa,
lherme de Almeida como a maioria das peças modernas, o gênero passa a ser dramáti-
(1890-1969), que não
só o dotou de estrutu- co, assumindo as formas tradicionais da tragédia, da comédia, das
ra métrica rígida, mas moralidades, dos autos, ou formas mistas e às vezes inclassificáveis,
ainda de rimas e título.
No esquema proposto como ocorre em algumas peças contemporâneas. No gênero lírico
por Almeida, o primei- não há narrador nem história a ser contada, mas um poeta, um “eu
ro verso rima com o ter-
ceiro e o segundo ver- lírico” que expressa diretamente, como se fosse para si mesmo, e
so possui uma uma não necessariamente em forma de versos, como mostram alguns
rima interna (a 2ª síla-
ba rima com a 7ª síla- poemas de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), suas refle-
ba). A forma do haicai xões, sentimentos e divagações a respeito da vida e do mundo, po-
de Guilherme de Almei-
da ainda tem muitos dendo usar formas fixas – ditirambo, rondó, soneto, haikai (12), etc.
praticantes no Brasil. – ou diversificadas.
Nesse sentido, podemos aproveitar a divisão aristotélica para
referirmos a obras literárias modernas ou contemporâneas, desde que
a entendamos apenas como uma sistematização descritiva e
classificatória das obras literárias, sem qualquer preocupação com
regras para se produzir literatura.

94
Os gêneros literários

RESUMO

Nesta aula, caro aluno, vimos que os gêneros literários, tal


5
aula
como a Teoria da Literatura os concebe, foram primeira-
mente definidos e classificados por Aristóteles, em sua
Poética. O pensador estagirita classificou a poesia em espécies
que se diferenciavam de acordo com o meio, o objeto e o modo
de imitação, uma vez que, para ele, a poesia era, como todas as
outras artes, um tipo de imitação. Os gêneros arrolados por
Aristóteles foram a epopéia, a tragédia, o ditirambo, a poesia
aulética e a poesia citarística, sendo acrescentados depois os
nomos e a comédia. Apesar de tal classificação ter sido usada em
uma época muito diferente da nossa, em que a função da arte, de
um modo geral, e da poesia, em particular, respondiam a situa-
ções e contextos sociais, políticos e culturais bem diversos da
época medieval, moderna e ainda mais da contemporânea, sua
divisão exerceu grande influência no desenvolvimento da Teoria
da Literatura, sendo ainda muito atuais alguns de seus conceitos.
Aprendemos que a teoria clássica dos gêneros literários, tal como
proposta por Aristóteles, é muito mais prescritiva do que descriti-
va, e que os neoclássicos a tornaram ainda mais normativa do que
era, fiando-se no mito da pureza dos gêneros, algo que já havia
sido posto em cheque por escritores como Chaucer, no século
XIV, e Shakespeare, na virada do século XVI para o XVII. A mo-
derna teoria dos gêneros literários, por sua vez, é somente descri-
tiva, pois concebe os gêneros como uma soma de processos técni-
cos existentes, de que o escritor pode lançar mão e dispor e que o
leitor já compreende. Vimos que não há possibilidade do
surgimento de um gênero totalmente novo, uma vez que a
historicidade do texto literário, bem como seu valor estético, só
pode ser detectada levando-se em conta o “horizonte de expecta-
tiva” do leitor, que significa o conhecimento prévio em relação a
gênero, forma ou temática de obras já conhecidas. Finalmente,
deixamos bem claro que o estudo dos gêneros literários não tem

95
Teoria da Literatura II

como objetivo a prescrição de normas para a produção de textos


literários, mas simplesmente um instrumental analítico e didático
para se compreender as obras literárias e seus diálogos intertextuais
com a tradição e com as outras obras, sejam elas literárias ou não.

ATIVIDADES

Responda às seguintes questões:


1. Quais são, de acordo com a teoria clássica dos gêneros literários,
os três gêneros básicos de literatura, definindo, com suas próprias
palavras, cada um deles. Indique o modo como tal classificação
pode ser usada no estudo de obras modernas ou contemporâneas,
levando em conta o surgimento de formas novas, mistas ou
miscigenadas, no decorrer da história.
2. Do ponto de vista dos gêneros literários, como você classifi-
caria o seguinte texto, do escritor norte-americano Lawrence
Ferlinghetti (1919-), traduzido por Paulo Leminski (1944-1989)?
Justifique sua resposta.

VEJA ERA ASSIM QUANDO...

Veja
era assim quando
a gente valsamos neste lugar
um par de bambas
está dançando em azteca
E eu digo
corta essa Papai
mas essa dona
vem por trás de mim vê
e diz
Você e eu a gente podia existir de verdade

96
Os gêneros literários

Uau eu digo
Só no dia seguinte
ela está com os dentes em mau estado
5
aula
e realmente odeia
poesia

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

A primeira questão desta atividade tem por finalidade fazer


com que você construa alguns argumentos baseados nos
principais conteúdos desta quinta aula, de modo a compreender
o modo como a Literatura pode ser dividida em gêneros,
levando em conta a teoria clássica, tal como proposta por
Aristóteles, e o modo como a moderna Teoria da Literatura
concebe a questão. A segunda questão, por sua vez, busca fazer
com que você aplique a um texto literário contemporâneo
alguns pressupostos a respeito dos gêneros literários,
reconhecendo a possibilidade de não haver, em algumas obras
literárias, um gênero puro, ou a existência de um único gênero.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. 7 ed.


Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 2003.
COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles: mimese e ve-
rossimilhança. São Paulo: Ática, 1992.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação
à teoria literária. Tradução: Sérgio Tellarolli. São Paulo: Ática, 1994.
OLIVEIRA, Luiz Eduardo. História literária e ensino da litera-
tura: notas sobre uma questão teórica e multidisciplinar. In:
PEDROSA, Cleide Emília Faye; BEZERRA, Antonio Ponciano
(Org.). Língua, ensino e cultura: multidisciplinaridade em le-

97
Teoria da Literatura II

tras. São Cristóvão: Editora UFS / Aracaju: Fundação Oviêdo


Teixeira, 2008.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma lingüística crítica: lin-
guagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola Edi-
torial, 2003.
SCHOLES, Robert; KELLOG, Robert. A natureza da narra-
tiva. Tradução de Gert Meyer. São Paulo: McGraw-Hill do Bra-
sil, 1977.
VIZIOLI, Paulo. A literatura inglesa medieval. São Paulo: Nova
Alexandria, 1992.
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. Tradu-
ção de José Palla e Carmo. Lisboa: Europa-América, 1962.

98
OS GÊNEROS DO DISCURSO 6
aula
MET
METAA
Evidenciar a relação entre gêneros
do discurso e gêneros literários;
salientar a historicidade e
heterogeneidade dos gêneros
discursivos (orais e escritos),
incluindo as manifestações do
discurso científico e os gêneros
literários; e enfatizar a importância
do estudo dos gêneros do discurso
no ensino de línguas (nacional e
(Fonte: http://www.cisi.com.br)
estrangeiras).

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
definir os gêneros literários como
gêneros discursivos;
estabelecer as relações e diferenças
entre o enunciado como unidade da
comunicação discursiva e as
unidades da língua (palavras e
(Fonte: http://www.metaexecutiva.com).
orações); e
reconhecer a historicidade e
heterogeneidade dos gêneros
discursivos e literários.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá ter noções sobre a
historicidade do conceito de
literatura; da relação entre História
Literária e ensino da Literatura; e
sobre conceito e classificação dos
gêneros literários, segundo suas
estruturas formais e condições de
produção. (Fonte: http://professor-abrahao.blogspot.com).
Teoria da Literatura II

N esta aula, caro aluno, você aprenderá que os gêneros


literários podem ser concebidos como gêneros
discursivos, uma vez que são compostos por enunciados que funci-
onam como elos de uma complexa e multiforme cadeia de discur-
sos, os quais são materializados em formas –
estruturais, composicionais, temáticas e
INTRODUÇÃO estilísticas – mais ou menos estáveis, isto é,
em gêneros, e se efetivam em uma situação de
comunicação discursiva.
Assim, primeiro você verá a classificação, proposta por
Bakhtin, entre gêneros primários e gêneros secundários, obser-
vando a relação dialógica que eles mantêm tanto em seu proces-
so de construção quanto em suas formas. Para tanto, será neces-
sária uma explicação acerca do conceito bakhtiniano de “enun-
Bakhtin
ciado”, de suas principais características e de seus elementos
Lingüista e crítico lite- constitutivos, apresentando-o como uma unidade da comunica-
rário russo (1895-1975). ção discursiva, e não como uma unidade da língua.
Estudou Filosofia e Le-
tras na Universidade de Em seguida, você verá que os enunciados só podem ser en-
São Petersburgo. Viveu tendidos em sua inter-relação com enunciados anteriores e com
em Leningrado após a
vitória da Revolução de as respostas, ou compreensões responsivas, que eles suscitam
1917. Entre os anos 24 e ou podem suscitar. Desse modo, verá que a figura do destinatá-
29, conheceu os princi-
pais expoentes do For- rio é de fundamental importância nos processos de construção e
malismo Russo e publi- funcionamento dos enunciados, principalmente nos gêneros li-
cou Freudismo (1927),
O método formal nos terários. Espera-se, ao final da leitura desta aula, que você seja
estudos literários capaz de perceber a importância do estudo dos gêneros do dis-
(1928) e Marxismo e Fi-
losofia da Linguagem curso no ensino de línguas, nacional ou estrangeiras.
(1929), sendo esta últi-
ma sua obra mais céle-
bre. Assinada com o
nome de seu amigo e dis-
cípulo Volochínov, só a
partir dos anos 70 teve
difusão e reconheci-
mento importantes, e
apenas recentemente
veio a ser confirmada a
sua autoria.

100
Os gêneros do discurso

D e acordo com as Diretrizes Curriculares dos Cursos


de Letras, publicadas pelo Parecer CNE/CES 492/
2001, o objetivo de tais cursos é o de formar profissionais
6
aula
“interculturalmente competentes” e conscientes de sua inserção na
sociedade, capazes de lidar de modo crítico
com as linguagens, especialmente a verbal, nos GÊNEROS
contextos oral e escrito. Independente da ha- LITERÁRIOS
bilitação escolhida, o profissional de Letras
precisa ter o domínio do uso da língua – ou línguas – que seja(m)
objeto de estudo, levando em conta suas variedades lingüísticas e
culturais, bem como ser capaz de refletir teoricamente sobre a lin-
guagem e fazer uso de novas tecnologias, concebendo sua forma-
ção como um processo contínuo e autônomo. Além disso, deve es-
tar capacitado a refletir criticamente sobre temas e questões rele-
vantes aos conhecimentos lingüísticos e literários (OLIVEIRA e
CORRÊA, 2008, p. 45).
Contudo, não devemos dissociar tanto os estudos lingüísticos
dos literários, uma vez que ambos os tipos de conhecimento se
relacionam intimamente, como vimos na Aula 1, ao tratarmos da
importância da lingüística estrutural no processo de constituição
da Teoria da Literatura como disciplina acadêmica. Ademais, um
curso de Letras tem que proporcionar uma sólida formação básica
ao aluno, possibilitando-lhe o desempenho profissional em várias
funções, tais como professor, pesquisador, crítico literário, tradu-
tor, revisor de textos, roteirista, secretário ou assessor cultural, etc.
Assim, depois de estudarmos os gêneros literários, na aula an-
terior, é preciso que saibamos que há gêneros para todo tipo de
manifestação verbal, oral ou escrita, e não somente para obras de
arte ou textos literários, uma vez que todos os diversos campos da
atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Para Bakhtin
(2003, p. 261-262), se o emprego da língua efetua-se em forma de
enunciados, os quais são proferidos pelos integrantes dos vários
campos de atividade humana, tais enunciados refletem as condi-
ções e finalidades de cada campo em seu conteúdo temático, no

101
Teoria da Literatura II

estilo da linguagem e em sua “construção composicional”, razão


por que, embora cada enunciado particular seja individual, cada
campo de utilização da língua elabora seus respectivos “gêneros
do discurso”.
O motivo pelo qual os gêneros do discurso não haviam sido
objeto de preocupação dos teóricos da linguagem nem dos críti-
cos literários, segundo o autor, devia-se ao fato de que a diversi-
dade dos gêneros discursivos (orais e escritos) é multiforme e ines-
gotável, assim como são variadas e heterogêneas as atividades
humanas: as breves réplicas do diálogo cotidiano; o relato do dia-
a-dia; a carta; o comando militar padronizado; os documentos
oficiais; as manifestações publicísticas (jornalismo, publicidade,
propaganda, etc.); as manifestações científicas e os gêneros lite-
rários, entre outros.
Os únicos gêneros estudados, desde a Antiguidade, fo-
ram os gêneros literários, mas apenas do ponto de vista artís-
tico-literário, e não como tipos de enunciados, diferente dos
outros, mas dividindo com eles uma especificidade: sua na-
tureza verbal:

Quase não se levava em conta a questão lingüística geral do


enunciado e dos seus tipos. Começando pela Antiguidade,
estudavam-se os gêneros retóricos (demais, as épocas
subseqüentes pouco acrescentaram à teoria antiga); [...]
Estudavam-se, por último, também os gêneros discursivos
do cotidiano (predominantemente as réplicas do diálogo
cotidiano) e, ademais, precisamente do ponto de vista da
lingüística geral (na escola de Saussure, em seus adeptos
modernos – os estruturalistas, nos behavioristas americanos
e, em bases lingüísticas totalmente distintas, nos seguidores
de Vossler) (BAKHTIN, 2003, p. 263).

Bakhtin classificou os gêneros do discurso em gêneros primários e gêneros


secundários. Os primeiros correspondem aos gêneros mais simples, tais como
as réplicas dos diálogos do cotidiano e o relato do dia-a-dia, e os segundo

102
Os gêneros do discurso

referem-se a gêneros mais complexos, como os romances, os dramas,


as pesquisas científicas e os gêneros publicísticos, os quais emergem
nas condições de um convívio social mais desenvolvido e organizado.
6
aula
Tal diferença, para o autor, tem importância fundamental, pois
a natureza do enunciado deve ser analisada em ambas as modali-
dades. Assim, a orientação unilateral centrada nos gêneros primá-
rios, do ponto de vista da lingüística geral, por exemplo, corre o
risco de vulgarizar demasiadamente o problema, enquanto a ênfa-
se exclusiva nos gêneros secundários pode deixar de levar em conta
a incorporação e re-elaboração, em seu processo de formação, de
diversos gêneros pri-
mários, os quais in-
tegram a realidade
concreta, em um
texto literário, por
exemplo, somente
no conjunto da
obra, isto é, como
um acontecimento
artístico-literário, e
não como um even-
to da vida cotidiana.
Em outras palavras,
um diálogo cotidia- Cena do filme A vida é bela, de Roberto Benigni (1997), destacando um diálogo entre pai e
filho (Fonte: http://dvdteca.folha.com.br).
no, quando inserido
em um romance ou em uma peça de teatro, não é um diálogo real,
mas verossímil.

O ENUNCIADO E A COMUNICAÇÃO
DISCURSIVA

Um elemento de suma importância para se pensar os gêne-


ros do discurso é o enunciado, pois os gêneros discursivos nada
mais são do que tipos de enunciado. Para Bakhtin (2003, p. 265),

103
Teoria da Literatura II

a língua só se faz parte integrante da vida quando formalizada


em enunciados concretos, pois é através deles que a própria vida
entra na língua. Ao tratar da questão do estilo, o autor afirma
que nem todos os gêneros são propícios para um reflexo da indi-
vidualidade do falante ou de quem escreve. Algumas réplicas do
diálogo do cotidiano, por exemplo, ou as ordens militares, não
se mostram tão adequadas para a expressão individual de quem
as profere. Caso diferente é o dos gêneros literários, em que o
estilo individual, como no gênero lírico, é parte constitutiva do
próprio enunciado.
Desse modo, o estilo é um elemento indissolúvel dos gêne-
ros do discurso, pois, se em cada campo de atividade humana
são empregados gêneros correspondentes às suas condições de
produção específicas, a cada gênero corresponde um determina-
do estilo. Da mesma forma, as mudanças históricas dos estilos
de linguagem estão relacionadas às mudanças dos gêneros
discursivos.
Tal fenômeno pode ser exemplificado com a História Literária.
Em cada época de desen-
volvimento do que se
convencionou chamar de
“linguagem literária”, as
inovações não provêm
unicamente dos gêneros
secundários, mas também
dos primários, pois “toda
ampliação da linguagem
literária à custa das diver-
sas camadas extra-literári-
as da língua nacional está
intimamente ligada à pe-
netração da linguagem li-
terária em todos os gêne-
(Fonte: http://www.educativa.org.br). ros” (BAKHTIN, 2003, p.

104
Os gêneros do discurso

268), causando assim a reconstrução e a renovação de todos os


gêneros do discurso.
Outro aspecto de relevância no estudo dos gêneros discursivos
6
aula
diz respeito ao processo de comunicação discursiva, no qual todos
os partícipes têm uma função amplamente ativa. A idéia de que, no
processo de comunicação, existe um falante, ou emissor, e um ou-
vinte, ou receptor do discurso, que decodifica a mensagem e com-
preende passivamente o falante, é, para o autor, pura ficção, uma
vez que o ouvinte, ao compreender o significado lingüístico do dis-
curso, ocupa em relação a ele uma ativa posição responsiva, seja
concordando ou discordando dele, seja completando-o ou aplican-
do-o. Assim, toda compreensão do enunciado vivo é prenhe de res-
posta, e esta se realiza até mesmo quando o ouvinte permanece em
silêncio, a depender das circunstâncias da comunicação discursiva,
e se torna falante (BAKHTIN, 2003, p. 271).
No caso das formas do gênero lírico, que foram concebidas
para uma compreensão responsiva silenciosa, trata-se, segundo o
autor, de uma compreensão responsiva de efeito retardado, pois o
que foi ouvido, ou lido, manifesta sua resposta nos discursos subse-
qüentes ou no comportamento do ouvinte ou leitor. Nessa perspec-
tiva, todos os “gêneros da comunicação cultural” (os discursos ci-
entífico e literário, por exemplo) foram concebidos para esse tipo
de compreensão ativamente responsiva de efeito retardado.
Da mesma forma, o próprio falante, ou escritor, mesmo in-
conscientemente, não espera uma compreensão passiva, mas uma
resposta, venha ela de forma silenciosa ou em longo prazo, mes-
mo porque seu próprio projeto de discurso é uma espécie de res-
posta a enunciados anteriores, num processo de (re)apropriação
de enunciados seus e alheios que é idêntico à relação dialógica e
histórica dos gêneros literários:

[...] todo falante é por si mesmo um respondente em maior


ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o
primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e

105
Teoria da Literatura II

pressupõe não só a existência do sistema da língua que


usa, mas também de alguns enunciados antecedentes –
dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra
nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza
com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do
ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente
complexamente organizada de outros enunciados
(BAKHTIN, 2003, p. 272).

Sendo os gêneros do discurso tipos de enunciados, o enuncia-


do é a “real unidade” da comunicação discursiva. Assim, indepen-
dente de sua grande variedade de características e estruturas
composicionais, todo enunciado possui limites bem precisos, os
quais são definidos pela alternância dos sujeitos do discurso. Ele
parte, em princípio, do enunciado dos outros e, em seguida, passa a
palavra, por assim dizer, ao outro, ou aos outros, isto é, dá lugar à
sua compreensão responsiva.
O gênero no qual essa alternância de sujeitos do discurso ocor-
re de modo mais evidente é o das réplicas do diálogo cotidiano, no
qual as enunciações dos interlocutores, por mais breves, fragmen-
tárias e silenciosas que sejam, possuem uma espécie de
“conclusibilidade específica” (BAKHTIN, 2003, p. 275), pois ex-
primem certas posições do falante que suscitam respostas, ou
posições responsivas, do ouvinte. Mas tal alternância pode ser
observada também nos gêneros secundários (artísticos e cientí-
ficos), especialmente nos gêneros literários, nos quais o enunci-
ado, mesmo quando composto por gêneros primários como as
réplicas do diálogo cotidiano, em um romance ou eu uma peça
de teatro, apresentam de modo explícito uma conclusibilidade, res-
pondendo a enunciados (obras literárias) anteriores e prevendo com-
preensões responsivas de seus leitores, as quais, como já foram di-
tas, são de efeito retardado:

A obra [literária], como a réplica do diálogo está disposta


para a resposta do outro (dos outros), para a sua ativa

106
Os gêneros do discurso

compreensão responsiva, que pode assumir diferentes


formas: influência educativa sobre os leitores, sobre suas
convicções, respostas críticas, influência sobre seguidores
6
aula
e continuadores; ela determina as posições responsivas
dos outros nas complexas
condições de comunicação
discursiva de um dado
campo da cultura. A obra
é um elo na cadeia da
comunicação discursiva;
com a réplica do diálogo,
está vinculada a outras
obras – enunciados: com
aquelas às quais ela
responde, e com aquelas
que lhe respondem; ao
mesmo tempo, à
semelhança da réplica do
diálogo, ela está separada
daquelas pelos limites
absolutos da alternância
dos sujeitos do discurso
(BAKHTIN, 2003, p. 279).
Retrato de Samuel Johnson, tela de Joshua Reynolds (Fonte:
http://upload.wikimedia.org).

Desse modo, a conclusibilidade é um dos traços fundamentais


do enunciado, uma vez que pressupõe uma relação dialógica e
interativa com os enunciados antecedentes e com a(s) resposta(s)
dele decorrente(s). Esse traço não pode ser percebido em unidades
da língua, como a palavra e a oração, mas apenas nas unidades da
comunicação discursiva. Nesse sentido, uma oração ou uma pala-
vra só adquirem o estatuto de um enunciado pleno quando emol-
duradas pelos limites marcados pela alternância dos sujeitos do dis-
curso. Dito de outro modo, o enunciado pode ser composto de uma
ou mais palavras ou orações, que são seus elementos constitutivos,
mas tais unidades da língua só adquirem sentido pleno quando
empregadas em forma de enunciados, pois, em si mesmas, elas

107
Teoria da Literatura II

não se relacionam com o contexto extra-verbal da realidade nem


com a enunciação de outros falantes.
Assim, quando escolhemos uma oração – tal como “o sol
saiu”, ou “a grama é verde” – não o fazemos por sua
expressividade própria, por assim dizer, mas somente do ponto
de vista do enunciado inteiro, que determina nossa escolha, pois
uma oração, enquanto unidade da língua, não tem a capacidade
de suscitar a posição responsiva do falante. Contudo, quando
ela é usada de forma contextualizada, isto é, como enunciado
pleno, adquire tal capacidade, na medida em que é completada
por uma série de elementos de ordem não gramatical que lhe
modificam a natureza.
Da mesma forma, quando nos deparamos com uma palavra
pronunciada com entonação expressiva, em determinado contex-
to de comunicação discursiva – tais como “Ótimo!”, “Maravi-
lha!”, etc. –, não estamos diante de uma palavra isolada como
unidade da língua nem do seu significado lingüístico, mas de um
enunciado acabado e com um sentido concreto. Assim, apesar
da convicção, principalmente entre os estudiosos de Literatura,
de que cada palavra tem ou pode ter uma carga emocional, uma
“auréola estilística” ou um lastro sócio-histórico determinado,
selecionamos palavras, em uma comunicação discursiva, não
pelas suas potencialidades intrínsecas, mas em função de nosso
projeto de discurso, isto é, pelo tom que elas podem dar à expres-
são de nosso enunciado. É isso que ocorre com o processo de
criação do enunciado:

Quando escolhemos as palavras no processo de construção


de um enunciado, nem de longe as tomamos sempre do
sistema da língua em sua forma neutra, lexicográfica.
Costumamos tirá-las de outros enunciados e antes de tudo de
enunciados congêneres com o nosso, isto é, pelo tema, pela
composição, pelo estilo; conseqüentemente, selecionamos
as palavras segundo a sua especificação de gênero
(BAKHTIN, 2003, p. 292-293).

108
Os gêneros do discurso

O que assegura a inteireza do enunciado e sua possibilidade


de resposta são, para Bakhtin, três fatores indissoluvelmente rela-
cionados:
6
aula
1. a exauribilidade do objeto e do sentido, que pode ser plena em
alguns campos da atividade humana, como o das ordens milita-
res, nas quais o enunciado é padronizado e o elemento criativo do
sujeito do discurso está quase ausente, e relativa nos gêneros se-
cundários, quando o tema do enunciado é inexaurível e ganha uma
conclusibilidade apenas relativa a certa situação do problema;
2. o projeto de discurso ou vontade de discurso do falante, que
determina o todo do enunciado, seu volume e suas fronteiras, pois
é a partir do que imaginamos o que o falante quer dizer que medi-
mos a conclusibilidade do enunciado;
3. as formas típicas composicionais e de gênero do acabamento,
que se faz ver pelo gênero discursivo escolhido pelo falante, de-
terminado tanto pela sua posição institucional ou sócio-histórica
quanto pela seleção lexical, estrutura gramatical, composicional
ou estilística.

O ENUNCIADO E SEU DESTINATÁRIO

Como você já deve ter percebido, um elemento essencial do


enunciado é o seu direcionamento a alguém, seu endereçamento.
Ao contrário das unidades significativas da língua, que não tem
autoria nem se destinam a ninguém, o enunciado tem autor e desti-
natário. Tal destinatário pode assumir várias formas: pode ser o
interlocutor de um diálogo cotidiano; um grupo de especialistas em
determinado campo da comunicação cultural; um povo; os con-
temporâneos; os correligionários; os adversários; uma pessoa ínti-
ma; um estranho; etc., a depender do campo de atividade humana e
das especificidades do gênero discursivo. Desse modo, ao construir
nossos enunciados, antecipamos, de maneira sistemática ou incons-
ciente, a(s) resposta(s) que eles podem suscitar, levando em conta

109
Teoria da Literatura II

o lugar institucional ou sócio-histórico do(s) destinatários(s) e sua


capacidade de compreensão responsiva. Tal consideração, por sua
vez, acaba determinando a escolha do gênero, a seleção lexical, os
procedimentos composicionais, os meios lingüísticos e o estilo do
enunciado.
Como o próprio Bakhtin (2003, p. 305) admite, o problema
da concepção do destinatário do discurso é de importância crucial
para a história literária, pois cada época, para cada corrente literá-
ria e estilo artístico-literário, cada gênero literário no âmbito de
uma época e cada corrente têm como características suas concep-
ções específicas de destinatário da obra literária, a sensação espe-
cial e a compreensão do seu leitor, ouvinte, público, povo. O es-
tudo histórico das mudanças dessas concepções é uma tarefa in-
teressante e importante.
É já conhecida, no caso da Literatura Brasileira, a relação que
Machado de Assis (1838-1908) mantinha com seus leitores. Se-
gundo Guimarães (2004), o leitor é figurado, em seus primeiros
romances, como um romântico a ser dissuadido do Romantismo,
sendo utilizado o modo convencional que os românticos tinham
de reivindicar veracidade para suas narrativas. Com o tempo, po-
rém, essa entidade ficcional ganhou novas funções, sofrendo um
processo de fragmentação e, às vezes, de dissolução no desenro-
lar da obra:

Do alvo de conversão dos primeiros romances, o leitor


aparecerá como preenchedor de lacunas de Dom Casmurro,
idéia que remete à concepção do texto como tecido
composto de hiatos a serem preenchidos pelo leitor formulada
pela chamada estética da recepção, e, em Esaú e Jacó, como
peça de um jogo de xadrez, metáfora muito semelhante às
empregadas por Roland Barthes e Umberto Eco que
comparam o texto literário ao lugar de um embate xadrezístico
entre escritor e leitor (GUIMARÃES, 2004, p. 27).

110
Os gêneros do discurso

Conforme o autor acima citado, as mudanças da percepção de


Machado com relação ao seu público leitor tiveram implicações no
modo como os narradores de seus romances se dirigiam a seus in-
6
aula
terlocutores. Desse modo, as representações do leitor ficcionalizado,
como nos momentos em que o narrador de Brás Cubas dirige-se à
sua “pálida leitora”, teriam relação direta com as projeções do es-
critor a respeito de seu interlocutor real ou imaginário. Dito em
termos bakhtinianos, o estilo do enunciado do sujeito do discurso
Machado de Assis é determinado, no processo de criação da obra
literária, pelo modo como ele imaginava ser a compreensão
responsiva de seu destinatário, buscando convertê-la ou subvertê-
la através de recursos narrativos característicos do romance moder-
no, com os quais ele se traveste de narrador e os leitores reais tor-
nam-se entidades ficcionais.

Cena do filme Memórias Póstumas, de André Klotzel (Fonte: http://www.dsc.ufcg.edu.br).

111
Teoria da Literatura II

D e acordo com o que foi exposto acima, podemos che-


gar ao seguinte raciocínio: se não aprendemos a com-
posição vocabular e a estrutura gramatical de nossa língua materna
a partir de dicionários e gramáticas, mas atra-
vés de enunciações concretas que ouvimos e
CONCLUSÃO
reproduzimos em contextos reais de comuni-
cação discursiva, e se aprender a falar signifi-
ca aprender a construir enunciados, e não construir palavras ou
orações, como afirma Bakhtin (2003, p. 283), só falamos mediante
determinados gêneros do discurso, de modo que todos os nossos
enunciados possuem “formas relativamente estáveis e típicas de
construção do todo”.
Tais gêneros variam de acordo com a situação, a posição social e
as relações pessoais de reciprocidade entre os participantes da comu-
nicação discursiva, podendo ser padronizados ou formais, íntimos
ou familiares. Eles podem também misturar-se, ou miscigenar-se,
podendo ser objetos de reformulações livres e criadoras, como ocor-
re com os gêneros literários (ver Aula 5), mas a sua reformulação não
implica a criação de um gênero totalmente novo, algo impossível,
pois “é preciso dominar bem os gêneros para empregá-los livremen-
te” (BAKHTIN, 2003, p. 284).
Portanto, no ensino da língua nacional ou das línguas estrangei-
ras, é preciso que o aluno não fique restrito às formas da língua –
sua composição vocabular e a estrutura gramatical –, mas seja apre-
sentado, de maneira sistemática e não prescritiva, às formas do enun-
ciado, em seus variados gêneros, pois eles são tão indispensáveis
quanto às formas da língua. Isso porque nenhum enunciado, a des-
peito de sua individualidade e do seu caráter eventualmente criati-
vo, pode ser considerado uma livre combinação de unidades da lín-
gua, como pensava Saussure (1857-1913), mas apenas como repre-
sentante típico de determinado gênero discursivo.

112
Os gêneros do discurso

RESUMO

Na aula de hoje, caro aluno, vimos que há gêneros para todo


6
aula
tipo de manifestação verbal, oral ou escrita, e não somente
para obras de arte ou textos literários, uma vez que todos os
diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da lin-
guagem. Julgamos importante tal compreensão porque o profissio-
nal de Letras não pode se especializar em apenas um campo disci-
plinar da área, mas ter uma formação básica em todas as disciplinas
do currículo, percebendo suas relações inter e transdisciplinares. Se
a grande área ainda permanece fragmentada – Letras, Lingüística e
Artes –, e se mesmo as Diretrizes Curriculares dos Cursos de Letras
ainda bifurcam os conhecimentos do curso em lingüísticos e literá-
rios, cabe aos professores e tutores de todas as disciplinas dos cur-
sos de Letras fazerem a ponte necessária, enfatizando a necessida-
de de estudar a linguagem em todos os seus aspectos. Como você
deve estar lembrado, na primeira aula desta disciplina, aprendemos
que a constituição acadêmica da Lingüística, bem como a expansão
do Estruturalismo, nas primeiras décadas do século XX, teve papel
fundamental na ascensão da Teoria da Literatura como campo de
conhecimento. O próprio Bakhtin, assim como os Formalistas Rus-
sos, é exemplo vivo desse intercâmbio entre conhecimentos
lingüísticos e literários. Ele prova, em seus estudos, que, sem uma
compreensão dos gêneros discursivos, torna-se insuficiente um es-
tudo dos gêneros literários. Da mesma forma, ele mostra que estu-
dar os gêneros discursivos primários sem ter noção dos gêneros li-
terários é algo muito limitado. Principalmente para o profissional
de Letras, ou seja, os professores de Língua e Literatura. Assim,
nesta sexta aula, esperamos que você tenha aprendido a reconhecer
as necessárias relações entre gêneros do discurso e gêneros literári-
os. Estes podem ser concebidos como enunciados, pois os gêneros
discursivos, e o literário é um deles, são tipos de enunciados, que
por sua vez são formas mais ou menos estáveis de construção do
discurso. Esperamos também que você tenha entendido que o enun-

113
Teoria da Literatura II

ciado só é possível em uma situação de comunicação discursiva,


que é caracterizada pela alternância dos sujeitos do discurso. Essa
alternância determina os limites do enunciado, tanto em relação
aos enunciados anteriores, dos quais é uma espécie de resposta, quan-
to às compreensões responsiva que suscita. Desse modo, o falante,
ou o escritor, no caso dos gêneros literários, em seu projeto de dis-
curso, ou no processo de construção de seu enunciado, dialoga tanto
com os enunciados antecedentes quanto com o seu destinatário, cuja
compreensão responsiva é antecipada, representada ou imaginada,
inscrevendo-se, de várias maneiras, a depender do gênero discursivo,
no próprio enunciado. Finalmente, você deve ter percebido que o
enunciado não é uma unidade da língua, mas da comunicação
discursiva. Palavras ou orações isoladas, desse modo, só “fazem sen-
tido”, isto é, só se tornam enunciados plenos e concretos quando são
partes constitutivas de um contexto de comunicação discursiva, cujas
fronteiras são marcadas pela alternância, sempre responsiva e dialógica,
dos sujeitos do discurso. Dessa forma, esperamos ter-lhe mostrado a
importância do estudo dos gêneros do discurso, incluindo os literári-
os, no ensino de línguas, nacional e estrangeiras.

ATIVIDADES

Responda às seguintes questões referentes ao texto desta aula:


1. Por que podemos conceber os gêneros literários como gêneros
discursivos?
2. Como se dá a relação entre gêneros primários e gêneros secundários?
3. Podemos afirmar que os enunciados são sempre responsivos?
Justifique a sua resposta.
4. Qual é a importância do destinatário para os gêneros discursivos,
especialmente para os gêneros literários?
5. Escreva um pequeno relatório baseado nas discussões dos chats ou
do fórum, a ser elaborado pelo tutor, sobre a importância do estudo
dos gêneros do discurso no ensino de línguas, nacional ou estrangeiras.

114
Os gêneros do discurso

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Essa atividade tem por finalidade principal fazer com que você
6
aula
construa uma síntese dos principais conteúdos dessa sexta aula,
de modo a compreender criticamente o conceito de gêneros
do discurso, bem como suas implicações no estudo dos gêneros
literários, buscando compreender seus principais elementos
constitutivos. Assim, as perguntas buscam explorar alguns
conceitos bakhtinianos, tais como o de enunciado, comunicação
discursiva e destinatário.
Na questão de número cinco, o tutor deve promover uma
discussão, através de chats ou do fórum de discussão da
plataforma moodle, acerca da importância do estudo dos gêneros
do discurso no ensino de línguas, nacional ou estrangeiras,
visando a produção de um relatório de, no máximo, uma página
sobre o tema.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo


Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de
Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século
19. São Paulo: Nankin Editorial / Editora da Universidade de
São Paulo, 2004.
OLIVEIRA, Luiz Eduardo; CORRÊA, Leda Pires. Notas sobre as
Diretrizes Curriculares dos Cursos de Letras. In: ARAUJO, Maria Inêz
Oliveira; OLIVEIRA, Luiz Eduardo. Desafios da formação de pro-
fessores para o século XXI: o que deve ser ensinado? O que é
aprendido? São Cristóvão: Editora UFS, 2008.

115
Aula 7

A NARRATIVA ORAL:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

META
Apresentar critérios formais de distinção entre narrativa oral e narrativa escrita;
discutir o conceito de autoria;
caracterizar estratégias narrativas tipicamente orais, indicando seu legado em
narrativas escritas.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
cdefinir a distinção entre narrativa oral e narrativa escrita em termos formais;
reconhecer e identificar as estratégias narrativas tipicamente orais em narrativas escritas.

PRÉ-REQUISITO
O aluno deverá ter noções sobre a historicidade do conceito de literatura;
conceito e classificação dos gêneros discursivos e de suas relações
com os gêneros literários.

Luiz Eduardo Oliveira


Teoria da Literatura II

INTRODUÇÃO
Olá, caro aluno! Na aula de hoje, você aprenderá a distinguir as narrati-
vas orais das narrativas escritas em termos formais, uma vez que, do ponto
de vista cultural, sempre que apreciamos uma composição literária oral,
tendemos a considerá-la inferior a uma composição escrita, relacionando-a
a estágios primitivos da civilização ocidental.
Você verá que isso decorre da noção moderna de alfabetização ou
letramento, e do preconceito geralmente relacionado a sociedades que não
fazem uso da cultura escrita. Com alguns exemplos da literatura clássica
grega e da poesia épica anglo-saxônica, baseados nas pesquisas desenvolvidas
por Milman Parry, tentaremos mostrar como a produção de narrativas orais
pode conviver com os usos da escrita, e como algumas obras – especialmente
os poemas épicos antigos – compostas oralmente são anacronicamente
concebidas, como se fossem dotadas de um texto fixo e produzidas por
autores individuais.
Assim, serão definidos alguns elementos característicos das com-
posições narrativas orais, visando a sua identificação em suas versões escritas.
Em seguida, veremos o papel desempenhado pela tradição e o modo como
a noção moderna de autoria pode impedir a compreensão não apenas de
poemas épicos antigos compostos oralmente, mas também dos cantadores
e repentistas que fazem uso de tal habilidade ainda nos dias de hoje.

Repentista em Cajazeiras, Paraíba, 1938 (Fonte: http://www.centrocultural.


sp.gov.br).

98
A narrativa oral: algumas considerações Aula 7
O PRECONCEITO COM RELAÇÃO ÀS FORMAS
NARRATIVAS ORAIS

É provável que o começo da arte narrativa no Oci-dente esteja relacio-


nado com o momento em que, pela primeira vez, o homem repetiu uma
expressão vocal que lhe deu prazer, antes mesmo de pensar em registrá-
la ou (re)atualizá-la em circunstâncias especiais. No mundo moderno, a
dificuldade de relacionar a Literatura, que é, por definição etimológica, a
arte das letras, da escrita, com formas narrativas orais decorre de muitos
mal-entendidos, os quais só agora começam a ser devidamente esclarecidos
pela crítica e historiografia literária.
O principal deles diz respeito a um preconceito, nutrido por uma visão
etnocêntrica, segundo o qual a arte verbal falada é o produto cultural de
povos primitivos ou bárbaros, enquanto a arte verbal escrita é a expressão
de uma sociedade civilizada. Para Scholes e Kellogg (1977, p. 11), a nar-
rativa oral se distingue profundamente da narrativa escrita, mas apenas em
termos formais e composicionais, e não culturais, como tal senso comum
faz crer. Citando Milman Parry, especialista em poesia heróica oralmente
composta, escrevem os referidos autores: “a literatura subdivide-se em duas Ver glossário no
grandes partes, não tanto por haver duas espécies de cultura, mas por haver final da Aula

duas espécies de forma: uma parte da literatura é oral, a outra é escrita”.


Com efeito, nada mais errôneo e preconceituoso do que imaginar que
as sociedades que não são dotadas da capacidade de ler e escrever são cul-
turalmente inferiores. Tal preconceito prende-se à noção moderna de que
os analfabetos ou iletrados são caracterizados por um estado de ignorância
e pobreza cultural, o que nos leva a erigir a cultura letrada, principalmente
a européia, a modelo de “alta cultura”.
Contudo, nem sempre foi assim. Em Fedro, por exemplo, Platão
reconta, através de Sócrates, o mito de Tote, deus egípcio que inventou a
escrita. Ao mostrar a sua invenção ao deus Tamus, que reinava no Egito,
com a intenção de mostrar que as letras aumenta riam tanto a memória
quanto a sabedoria dos egípcios, Tote teria ouvido a seguinte resposta:

Ó mui talentoso Tote, enquanto um homem tem a capacidade de


criar uma nova habilidade, outro a tem para julgar se ela será benção
ou maldição para seus usuários. Agora você, o pai das letras, com sua
afeição, vê nelas o oposto do seu verdadeiro poder. Pois esta invenção
fará com que aqueles que a usam percam o saber em suas mentes,
negligenciando suas memórias; visto que, através desta confiança nas
letras que são externas e alheias à mente, eles perderão sua capacidade
de recordar coisas dentro de si mesmos. Você não inventou um
medicamento para fortalecer a memória, mas um substituto inferior
para ela. Você está proporcionando aos seus alunos uma maneira
de parecerem sábios sem verdadeira sabedoria; pois que parecerão

99
Teoria da Literatura II

ter aprendido sem instrução; parecerão saber muito quando, na


verdade, ignoram muitas coisas; e tornar-se-ão transtornos públicos,
esses homens que parecem sábios, mas a quem falta o saber (apud
SCHOLES e KELLOGG, p. 12).

Como se vê, para o rei Tamus, a escrita não representava um avanço


para a sabedoria e para a cultura, mas um atraso, uma vez que os homens
deixariam de fazer uso da memória para confiar em algo que era alheio à
sua mente. Mais do que um atraso, a invenção de Tote, para Tamus, era uma
ameaça para a vida pública, pois daria autoridade a homens que pareceriam
sábios sem o ser, algo que não está muito distante de nossa própria realidade
contemporânea, em que políticos e profissionais do Direito que se arvoram
em uma aparência de saber, muitas vezes mascarada por gestos pomposos
e trajes formais, causam verdadeiros “transtornos públicos”.
No entanto, a palavra escrita, em nossa sociedade, alcançou tamanha
primazia que chega a tornar-se mais verdadeira do que os sons que saem
dos lábios dos homens vivos. Desse modo, qualquer mentira ou ultraje
que alcança a impressão torna-se muito mais ameaçadores do que qualquer
“verdade”. Nossa sociedade contemporânea está cheia de exemplos de falsas
denúncias, veiculadas pelos modernos meios de comunicação, que alcançam
o estatuto de verdades, mesmo que depois sejam desmentidas por suas víti-
mas. Hoje, podemos dizer que a palavra escrita, de certa forma, dita o real.
Levando tal fato em consideração, fica difícil imaginar que, entre os
antigos gregos, o sistema de escrita conhecido como “B minoano” fosse
monopólio dos criados e contadores, sendo escarnecido pelos poetas e
professores. Com efeito, as pesquisas de Milman Parry indicam que a com-
posição das epopéias homéricas ocorreu muito antes da difusão do uso do
alfabeto fenício, por volta do século VIII a.C., na Grécia antiga.

1 2

Representações de Tot (Tote ou Toth), deus egípcio da sabedoria. Tot é o senhor das palavras,
criador da fala e da escrita, deus do tempo e das medidas, senhor do ensino e de toda a sabedoria. É
representado como um homem com cabeça de Íbis, a ave sagrada (Fonte: 1 - http://www.geocities.
com; 2 - http://premium.klickeducacao.com.br).

100
A narrativa oral: algumas considerações Aula 7
OS ELEMENTOS COMPOSICIONAIS
DE ORALIDADE
Baseados nas pesquisas de Parry, Scholes e Kellogg (1977, p. 13)
demonstram como alguns elementos composicionais de oralidade que es-
tão presentes na Ilíada e da Odisséia podem ser identificados. Os epítetos
e locuções, por exemplo, tidos como característicos do estilo épico, são
usados por Homero nas mesmas situações métricas e semânticas, funcio-
nando como fórmulas, as quais são definidas como “um grupo de palavras
regularmente empregado sob as mesmas condições métricas para expressar
uma determinada idéia essencial”.
Assim, epítetos fixos como “filho de Atreus” e “rei dos homens” para
Agamêmnon, ou “elmo reluzente” para Heitor, ou “ressoante” e “ecoante”
para o mar, considerados característicos do estilo de Homero, foram imita-
dos por todos os escritores de epopéias literárias. Tal característica também
está presente em Beowulf, primeiro poema épico da literatura inglesa, o qual
faz uso de vários epítetos e locuções para referir-se ao guerreiro Beowulf,
herói do poema, ao castelo do rei Hrothgar ou para o monstro Grendel.
Foi só depois de Parry descobrir que todo o corpus homérico, de cerca de
27.000 versos hexâmetros, era formado de fórmulas que os críticos com-
preenderam que o que parecia uma característica do estilo de Homero era
na verdade uma prova concreta de que a Ilíada e a Odisséia haviam sido
compostas oralmente.
Com isso, o referido pesquisador queria provar que os poetas orais, ao
contrário dos “poetas literários”, por assim dizer, im-
provisavam usando fórmulas convencionais de sua
tradição para formar versos métrica e sintaticamente
adequados. Esse é mais ou menos o mesmo processo
utilizado pelos nossos repentistas nordestinos que,
ao terem um mote, ou um tema para desenvolver
seus versos, empregam uma série de fórmulas, com
repetição de refrão ou estribilho, de modo que cada
estrofe seja rítmica e semanticamente coerente, ao
contrário de um tipo de composição – a “literária”
propriamente dita – que procura evitar repetições,
fazendo o possível para que cada verso pareça origi-
nal, uma vez que as repetições servem apenas como
efeitos retóricos especiais. Desse modo, o que ocorre
com os cantadores não é uma repetição, de memória,
de um texto oral fixo, mas o uso de fórmulas, isto
é, de epítetos e locuções, em situações métrica e
semanticamente semelhantes. Primeira página do Beowulf (Fonte: http://
upload.wikimedia.org).

101
Teoria da Literatura II

Ao contrário de um poeta, o cantador não compõe nem decora um texto


fixo, pois ele depende totalmente da tradição. Os enredos, os episódios e as
frases com os quais elabora seus versos são, por assim dizer, “formulares”.
Seu canto só existe no momento de sua atualização, de sua “performance”,
deixando de existir quando chega ao fim. Da mesma forma, antes de ser
cantado, o poema só tem existência potencial, ou virtual, assumindo algum
aspecto de permanência apenas quando o cantador ou o seu público aprende
alguma coisa de novo no decurso de sua representação.

TRADIÇÃO E AUTORIA
Por serem manifestações de uma tradição, e não produto da criativi-
dade individual, a maioria dos poemas narrativos compostos oralmente não
é associada a nomes de poetas individuais, como é o caso do Beowulf.
Segundo Chartier (2002, p. 20-21), o processo de atribuição de autoria a
certas composições originalmente orais relaciona-se com a transformação
da palavra inspirada, que era, a um só tempo, poética, ritual e singular,
como as odes – discursos espirituais executados durante os banquetes de
embriaguez dionisíaca, em “literatura”, ou em “gênero literário”, durante
os festivais e competições associados aos cultos das cidades-estados ou dos
santuários pan-helênicos.

Banquete dos Deuses, Frans Floris, 1550 (Fonte: http://www.fflch.usp.br).

102
A narrativa oral: algumas considerações Aula 7
Com o advento de tais festivais, a referida transformação teve três im-
plicações importantes. A primeira foi a clivagem entre as circunstâncias da
enunciação concreta da obra – a competição poética – e a cena ficcional da
enunciação, subentendida no próprio poema e que aludia à sua função ritual.
A segunda foi a necessidade de atribuí-la a um autor mítico, considerado
seu fundador ou o in ventor do gênero – Homero para a epopéia, Anacre-
onte para a poesia lírica, etc. A terceira, finalmente, foi a necessidade da
elaboração de uma “arte poética” que estabelecesse regras de composição,
como a Poética de Aristóteles.
Nesse sentido, devemos ser cuidadosos com o conceito de autoria, que
é relativamente recente e não pode ser usado, em sua concepção romântica
– de gênio individual ou criador – para narrativas compostas oralmente.
Da mesma forma, a idéia de que uma narrativa poética pode ter sido cor-
rompida no processo de sua transmissão oral é errônea, pois pressupõe a
existência de um “texto fixo”:

Neste caso, deveríamos dizer que um poema foi “aperfeiçoado” no


processo da transmissão oral, se semelhante afirmação não fosse
tão errônea quanto a idéia da corrupção textual. Implicaria que
uma entidade, um canto, foi transmitida e esse não é o caso numa
tradição oral. Podemos falar dos elementos do canto – o enredo,
os episódios, a concepção dos personagens, o conhecimento dos
acontecimentos históricos, os motivos tradicionais, a dicção – como
sendo transmitidos, mas não podemos falar da transmissão oral do
canto em si (SCHOLES e KELLOGG, 1977, p. 15).

Assim, quando falamos de Homero, não nos referimos ao seu talento


individual, mas à grandeza de sua tradição. Essa tradição, por seu turno,
pode mudar, adaptando-se às mudanças físicas, culturais e lingüísticas do
mundo que representa. A “fórmula-padrão”, ou o “sistema formular”, para
falar como Parry, assemelha-se a uma gramática – mais do que a um grupo
de elementos fixos – à qual o cantador se submete, podendo até mesmo
“inventar” a sua história, desde que obedeça a certas fórmulas, tanto do
ponto de vista métrico, ou estrutural, quanto temático.
Scholes e Kellogg (1977, p. 15-16) propõem uma classificação do uso
dos temas e imagens na composição de narrativas orais. Para os referidos
autores, o elemento fundamental em uma narrativa oral é o topos, que
pode ser definido como uma imagem tradicional, podendo ser identificado
a partir das imagens às quais as palavras se referem. Desse modo, quando
o topos se refere ao mundo externo, ele significa um “motivo”, como a
descida do herói ao inferno. Por outro lado, quando ele se refere ao mundo
das idéias ou dos conceitos, pode ser definido como “tema”, como a busca
da sabedoria ou as penas do inferno. O “mito”, por sua vez, seria uma se-
qüência articulada desses topoi, os quais resultariam no enredo.

103
Teoria da Literatura II

CONCLUSÃO
Uma questão obscura até hoje é a da hipótese da transcrição dos textos
homéricos. É sabido que documentos escritos, mesmo telegramas, podem
conviver com uma tradição literária oral, isso porque a introdução da es-
crita não resulta, obrigatoriamente, na alfabetização, da maneira como a
concebemos hoje, idéia relativamente recente, uma vez que data do século
XVI (OLIVEIRA, 2003). Conforme as hipóteses de Parry (apud SCHO-
LES e KELLOGG, p. 20), por mais que o escriba esteja familiarizado
com a tradição, e mesmo que o cantador dite o seu poema mais devagar
do que o faria normalmente, o ritmo do seu pensamento será diferente e o
resultado do texto escrito nunca se iguala à composição oral em sua atual-
ização. No caso do texto homérico, a hipótese mais provável é a de que a
representação oral aliou-se à recitação oral dos textos escritos resultantes,
transformando-se em uma tradição “quase-literária”, graças ao trabalho
arqueológico dos filólogos.

Há casos em que a composição oral advém de textos escritos. Isso


parece ter ocorrido com o mito do poeta Caedmon, narrado por
Beda, em sua História eclesiástica do povo inglês. Iletrado e incapaz
de compor ou cantar nas ocasiões festivas, o poeta Caedmon,
simples zelador da abadia de Whitby, após um sonho em que um
anjo haveria lhe dado o dom do canto narrativo, compôs um poema
sobre a criação do mundo, em uma referência explícita ao episódio
bíblico do Gênese. O milagre do sonho seria uma maneira de explicar
a habilidade de um homem simples que, nas ocasiões festivas,
quando a harpa passava de mão em mão, recolhia-se para o estábulo
onde dormia, em usar as fórmulas orais em cantos devotados ao
ensinamento cristão (CARTER & McRAE, 1998, p. 7).

Chartier (2002, p. 24-25) afirma que é possível identificar índices e rep-


resentações de oralidade em textos escritos, especialmente do século XVI
ao XVIII. Tais elementos, que se apresentam de maneira explícita em certos
episódios de obras narrativas, como em Dom Quixote (3), no momento em
que Sancho Pança conta sua história para o “cavaleiro andante”, em uma
narrativa cheia de repetições e digressões, podem revelar-se nos indícios de
oralidade dispostos pelo editor na publicação de certas peças teatrais, bem
como nas observações que os poetas fazem a seus leitores, indicando-lhe os
modos como os poemas devem ser declamados. Apesar de este ser um tipo
de pesquisa de grande relevância, não há como resgatarmos, através de textos
modernos, as maneiras de compor e de ouvir obras compostas oralmente.
Contudo, é preciso que saibamos distinguir as narrativas orais das
narrativas escritas em termos formais, do ponto de vista de suas estraté-
gias composicionais, para não repetirmos e consolidarmos preconceitos

104
A narrativa oral: algumas considerações Aula 7
etnocêntricos e baseados na noção moderna de alfabetização, segundo os
quais as sociedades não letradas produzem um tipo inferior de cultura, como
se todo tipo de composição literária oral fosse apenas um estágio primitivo
de desenvolvimento da “Literatura”, tal como a concebemos hoje.

RESUMO
Nesta aula, vimos que grande parte da dificuldade que temos em com-
preender teoricamente as formas narrativas orais decorre de um preconceito
com relação a sociedades que não fazem uso da cultura escrita. Tal precon-
ceito prende-se a uma visão evolucionista e etnocêntrica – para não dizer
eurocêntrica – ligada à idéia de alfabetização e letramento, segundo a qual
a produção de narrativas orais é resultante de culturas primitivas, que ainda
não alcançaram o estágio das chamadas “nações civilizadas”. Assim, vimos
que muitos dos poemas épicos antigos, tanto da tradição grego-romana
quanto anglo-saxônica, foram compostos oralmente, e que só depois, com o
trabalho dos escribas, filólogos, historiadores e críticos literários, obtiveram
o estatuto de “Literatura”, com todas as suas implicações: a idéia de um
texto fixo de um autor individual que o produziu, dentre outras. Tal hipótese
pôde ser comprovada com os estudos de Milman Parry, que identificou es-
truturas formais características de composições orais nos textos homéricos,
ou da grande tradição homérica, definidas como “fórmulas”, que podem
ser exemplificados com epítetos e locuções repetidas nas mesmas situações
métricas e semânticas. Em seguida, vimos que o processo de atribuição de
autoria de textos advindos da tradição oral ocorreu em um momento no
qual as circunstâncias ritualísticas de atualização e “performance” de sua
produção deixaram de existir, fazendo com que houvesse uma clivagem do
contexto original de sua enunciação com relação à sua representação, nos
concursos e festivais realizados na Grécia antiga, o que implicou também a
elaboração de regras de composição, em “artes poéticas” como a de Aris-
tóteles. Desse modo, aprendemos que não devemos confundir o papel do
cantador com o do poeta, ou o do poeta oral com o poeta literário, pois
eles utilizam estratégias distintas de composição. O primeiro representa a
tradição e faz uso de um sistema formular no desenvolvimento de seus ver-
sos, visando um efeito que só tem duração no momento de sua realização, ou
atualização. O segundo, por sua vez, evita repetições e busca ser “original”,
mostrando sua criatividade na ruptura de convenções tradicionais. Com tais
considerações, esperamos contribuir para evitar a permanência de tais sensos
comuns, pois muitas vezes eles consolidam preconceitos oriundos de uma
sociedade que é injusta e desigual, e repeti-los constitui um reforço dessa

105
Teoria da Literatura II

injustiça e dessa desigualdade, uma vez que eles pressupõem a existência de


sociedades “civilizadas” e superiores, geralmente situadas na Europa, que
determinam e classificam as culturas localizadas nas margens como sendo
primitivas e desprovidas de valor.

ATIVIDADES

Responda às seguintes questões referentes ao texto desta aula:


1. Quais seriam as diferenças fundamentais entre a narrativa escrita e a oral?
2. E entre o cantador e o poeta?
3. Quais seriam os falsos juízos acerca da maioria dos poemas épicos antigos,
tais como a Ilíada e a Odisséia?
4. Identifique, escrevendo algo a respeito, os momentos do Canto IX da
Odisséia nos quais é possível notar procedimentos típicos da narrativa oral.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Embora o conteúdo dessa sétima aula seja pequeno, ele demanda a
compreensão de conceitos e pressupostos teóricos que são complexos
para a compreensão do aluno. Assim, sempre que possível, o tutor
deverá exemplificar as afirmações da aula com clássicos antigos, mesmo
que eles não tenham sido aqui mencionados, e suscitar discussões a
respeito do tema, em fóruns ou “chats”, referindo-se a cantadores
e repentistas nordestinos, por exemplo, uma vez que os estudantes
sergipanos estão familiarizados com esse tipo de manifestação cultural.
É importante que as explicações partam das colocações dos próprios
alunos, para que eles possam refletir acerca de sua própria experiência
como leitores ou ouvintes. Pode ser usada qualquer edição da Odisséia
de Homero para a resolução da quarta questão, mesmo em prosa, pois
os epítetos e locuções se fazem presentes em todas elas.

REFERÊNCIAS

CARTER, Ronald and; McRAE, John. History of Literature in English.


London and New York: Routledge, 1998.
CHARTIER, Roger. Do palco á página: publicar teatro e ler romances
na época moderna (séculos XVI-XVIII). Tradução: Bruno Feitler. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

106
A narrativa oral: algumas considerações Aula 7
OLIVEIRA, Luiz Eduardo. “Considerações sobre as figuras dos professo-
res régios de línguas clássicas e modernas: notas para o estudo das origens
da profissão docente no Brasil (1759-1809)”. Revista do Mestrado em
Educação. São Cristóvão: UFS/NPGED, v. 5, p. 103-124, 2003.
SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa.
Tradução: Gert Meyer. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1977.

GLÓSSARIO
Milman Parry: Estudioso de poesia épica (1902-1935). Estudou
na Universidade de Berkley, na Califórnia, e na Sorbonne, em Paris.
Atualmente é considerado o fundador da disciplina “tradição oral”

Anacreonte: Poeta lírico grego (563 a.C.-478 a.C.). Foi conselheiro de


Polícrates, tirano de Samos. A poesia de Anacreonte chegou até nós
sob a forma de fragmentos. Cantava as musas, Dionísio e o amor. Foi
muito apreciado pelos gregos e um dos poetas mais imitados.

Filologia: Disciplina que estuda uma língua, literatura, cultura ou


civilização sob uma visão histórica, a partir de documentos escritos.
Contudo, a abordagem científica do desenvolvimento de uma língua
ou de famílias de línguas, especialmente a pesquisa da história de sua
morfologia e e fonologia, tradicionalmente chamada filologia, foi
englobada pelo que hoje se chama Linguística Histórica. Embora
ainda haja filólogos dos mais variados matizes, a filologia hoje é
principalmente associada ao estudo material e crítico dos textos,
visando o seu estabelecimento, datação e atribuição de autoria. Vide
as disciplinas da Ecdótica, Crítica Textual, Paleografia e Epigrafia.

Venerável Beda: Beda (inglês antigo Bæda, inglês Bede), São Beda ou
ainda Beda Venerável ou O Venerável Beda (do inglês The Venerable
Bede), nascido cerca de 672 e falecido a 27 de Maio de 735, foi um
monge anglo-saxão do mosteiro de Jarrow, na Nortúmbria. Tornou-
se famoso pela sua História Eclesiástica do Povo Inglês (Historia
Ecclesiastica Gentis Anglorum), donde derivou o título de «Pai da
História Inglesa», embora tenha escrito sobre muitos outros temas.
(Fonte www.wikipedia.org)

107
Aula 8

A TRADIÇÃO DA NARRATIVA E O
ROMANCE MODERNO
META
Apresentar e caracterizar o gênero narrativo; e situar o romance na tradição narrativa do
Ocidente, enfatizando suas relações com as formas narrativas tradicionais, c
omo a epopéia, e contemporâneas, como o cinema, bem como com outras
formas artísticas, como a pintura.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
definir o romance como apenas uma de uma série de possibilidades de narrativa
na tradição literária ocidental; e
reconhecer suas relações com formas narrativas tradicionais, como a epopéia, e
contemporâneas, como o cinema, bem como com outras
formas artísticas, como a pintura.

PRÉ-REQUISITO
O aluno deverá ter noções sobre a historicidade do conceito de literatura; do conceito
e classificação dos gêneros discursivos e de suas relações com os gêneros literários; e
relacionar as diferenças entre narrativas orais e escritas.

Luiz Eduardo Oliveira


Teoria da Literatura II

INTRODUÇÃO
Na aula de hoje, caro aluno, você aprenderá que o romance, a forma
mais popular e hegemônica de narrativa, pelo menos no mundo ocidental,
não pode ser tido como ápice do desenvolvimento de formas anteriores,
pois cada época específica possui suas formas narrativas próprias. Assim,
veremos quais são os elementos básicos que caracterizam o gênero narrativo
e como podem ser feitas as relações entre o romance e as formas narrativas
anteriores sem uma perspectiva evolucionista.
Em seguida, faremos uma breve explanação acerca da desintegração
da síntese épica da epopéia e de como, a partir de tal desintegração, outras
formas narrativas foram surgindo, resultando no desdobramento do mito
em história e ficção. Nesse momento da aula, tentaremos entender que o
romance, sendo uma forma narrativa de nosso tempo, poderá também
desintegrar-se, dando origem a novas formas, mais adequadas às mudanças
sócio-históricas de nossa sociedade.
Na parte final da aula, através de exemplos do romance moderno, da
pintura e do cinema, tentaremos mostrar como algumas inovações, tais
como a subversão da cronologia, do tempo e do espaço, relacionam-se
com mudanças culturais e sociais advindas de um mundo em constante
transformação, bem como do desenvolvimento das ciências e de novas
concepções acerca do indivíduo e da sociedade, fatores que influenciam
os modos de narrar e ler – ou ouvir – histórias.
Na conclusão, faremos um rápido histórico do desenvolvimento do
romance, desde o século XVIII, buscando relacionar suas mudanças es-
truturais e suas variações de finalidades e funções sociais com as alterações
conjunturais da sociedade, no decorrer da História, na tentativa de mostrar
como uma forma narrativa específica, apesar de não ser autônoma – pois
depende, de maneira dialética e dialógica, de formas semelhantes e de
outros gêneros discursivos –, deve ser vista e interpretada, de modo a não
comprometer o desenvolvimento – ou o declínio – de formas análogas e
anteriores, como se estas fossem representativas de um estágio de prepa-
ração para um aperfeiçoamento posterior.

110
A tradição da narrativa e o romance moderno Aula 8
TRADIÇÃO E NARRATIVA
Como o romance tornou-se a forma narrativa hegemônica no Ocidente,
a grande maioria dos teóricos da Literatura, ao fazerem um histórico desse
gênero literário específico, acabam traçando uma espécie de genealogia do
romance, como se todas as outras formas narrativas fossem uma espécie
de preparação, em uma linha evolutiva cronológica e linear, dessa forma
tão popular que hoje conhecemos como romance.
No entanto, cada época, isto é, cada contexto sócio-histórico espe-
cífico, teve sua(s) forma(s) narrativa(s) próprias(s) – os mitos sacros, os
contos folclóricos, as lendas, as alegorias, as confissões, a sátira, etc. –, e se
quisermos entendê-las em sua historicidade e especificidade, precisamos
levar em conta, mais do que suas semelhanças e diferenças com relação
ao romance, seus elementos e finalidades, bem como as condições de sua
produção, circulação e recepção.
Como vimos na Aula 5, referente aos gêneros literários, todas as obras
literárias narrativas caracterizam-se por dois elementos básicos, a presença
de uma história e de um contador de histórias, independentemente da forma
como se apresentam, em prosa ou em verso, oralmente ou por escrito.
Assim, embora no drama haja uma história, esta não é contada por um
contador, ou por um narrador, mas pelas próprias personagens, através de
diálogos. No gênero lírico, um único ator, o poeta ou seu substituto, canta,
medita ou fala para ouvirmos e refletirmos. E o que ele canta ou fala não é
uma história, mas suas impressões, reflexões, sensações ou sentimentos, em
uma linguagem que pode ser formalizada em rimas, métricas ou estruturas
específicas, ou mesmo através do que os poetas modernos chamaram de
verso livre. Se a esse locutor for acrescentado um ouvinte, ou interlocutor,
estaremos diante do drama, ou de uma forma dramática, e se o locutor
começar a contar uma história, o gênero passa a ser narrativo.
É claro que, apesar da variedade estrutural, temporal e temática das
formas narrativas, elas não existem de maneira
autônoma, isto é, independente de outras for-
mas e de outros gêneros, mas em uma relação
de intertextualidade que é característica da
própria tradição literária, bem como de todos
os gêneros discursivos, como vimos na Aula
6. Assim, todos os artistas, de modo geral, e
todos os escritores, de modo particular, apre-
ndem sua profissão com seus precursores, e
as possibilidades de inovação ou continuidade
de determinadas tradições literárias são esta-
belecidas pelo que já existe, ou pelo repertório Fotografia do acervo particular do autor
ou referencial literário que o escritor já possui,
bem como pelo horizonte de expectativa dos ouvintes ou leitores de sua época.

111
Teoria da Literatura II

Conforme Scholes e Kellogg (1977, p. 3-4), Clara Reeve, no primeiro


livro em inglês dedicado inteiramente ao estudo da tradição narrativa, The
progress of romance through times, countries and manners (A evolução
do romance através dos tempos, países e costumes), publicado em 1785,
empenhou-se em distinguir o que os antigos chamavam de “romance tradi-
cional” (em inglês, romance) do “romance moderno” (em inglês, novel),
com o cuidado de não tratar a forma anterior com qualquer tipo de pre-
conceito, ou como se ele fosse uma forma “primitiva” ou rudimentar do
romance moderno. Para a referida autora, o romance tradicional seria uma
fábula heróica que trata de pessoas ou coisas fabulosas ou sobrenaturais,
enquanto o romance moderno seria um retrato das vidas e costumes reais
do tempo em que é escrito. O romance tradicional descreveria, em lingua-
gem imponente e elevada, aquilo que nunca aconteceu e que é provável que
nunca aconteça, e o romance moderno descreveria situações familiares das
coisas tal como elas acontecem todos os dias perante nossos olhos, com a
possibilidade de poderem acontecer a nós mesmos ou a nossos semelhantes.

HISTÓRIA E FICÇÃO
Apesar de tal distinção ser válida
ainda hoje, e de ser um bom antídoto
contra uma visão da narrativa centralizada
no romance, os conceitos de valor rela-
cionados a este gênero fizeram com que
nossas avaliações de formas narrativas
anteriores fossem contaminadas por um
anacronismo que só enxerga as qualidades
de obras narrativas antigas quando elas se
aproximam do romance. Para Scholes e
Kellogg (1977, p. 5), o conceito de litera-
tura narrativa centralizado no romance é
incorreto por duas razões: 1. nos aparta da
literatura e da cultura do passado; 2. nos
separa da literatura da contemporaneidade
e do futuro. É preciso, pois, colocar o
romance em seu devido lugar.

Capa de edição brasileira de A Ilíada, clássica epopéia de Homero


(Fonte: http://www.senado.gov.br).

112
A tradição da narrativa e o romance moderno Aula 8
A principal característica da forma mais tradicional de narrativa, a epo-
péia, que por sua vez é um amálgama de mito, história e ficção, é o fato de
ela ter sido produzida não pela criatividade de um autor, mas pela própria
tradição, como vimos na aula anterior. Isso significa dizer que o contador
épico de histórias sempre conta uma história tradicional, ou, dito de outro
modo, que o seu impulso inicial não é histórico nem criativo, mas “recria-
tivo”, uma vez que ele reconta uma história tradicional e, assim fazendo,
não está sendo fiel ao fato ou ao entretenimento, mas ao próprio mito: a
história tal como foi preservada pela tradição.
Na transmissão dessa tradição, um elemento de suma importância é
o enredo, que é a articulação do esqueleto da narrativa. Nesse sentido, o
enredo, em narrativas tradicionais, é um mito que pode ser (re)transmitido.
Um dos principais avanços na história da narrativa escrita foi o progressivo
afastamento do mito como enredo tradicional. Tal desenvolvimento pode
ser explicado pelo desdobramento de dois tipos narrativos que emergiram
da síntese épica: os tipos empíricos e os tradicionais.
O tipo empírico substituiu a fidelidade ao mito pela fidelidade ao
real, subdividindo-se em histórico e mimético. O componente histórico
prende-se à verdade do fato, isto é, ao “verdadeiro passado”, e não a uma
versão tradicional do passado, tal como foi percebido por Heródoto e
Tucídides, na antiguidade clássica. O componente mimético, por sua vez, Ver glossário no
final da Aula
prende-se não à verdade do fato, mas da sensação e do meio ambiente. No
mundo antigo, o componente mimético se apresenta de forma mais clara
nos Caracteres, de Teofrasto, o que nos leva a perceber que as narrativas
miméticas, substituindo o passado pelo presente, podem ser exemplificadas
pelas biografias e autobiografias.
O tipo ficcional substituiu a fidelidade ao mito pela fidelidade ao ideal,
subdividindo-se em romântico e didático. Neste caso, liberto da tradição e
do empirismo, o narrador ficcional preocupa-se com a platéia ou com seus
leitores, no intuito de agradar ou de instruir, pela beleza ou pela bondade.
O componente romântico apresenta o pensamento em forma de retórica,
e pode ser contraposto ao componente mimético, em termos modernos,
como uma oposição do artístico em relação ao científico. É o que acon-
tece com a Chanson de Roland (Canção de Rolando) (1), por exemplo. O
componente didático, por sua vez, apresenta-se em forma de fábula, pois
é regido por uma moral a ser ensinada, como ocorre em Esopo. Segundo
Scholes e Kellogg (1977, p. 9), as narrativas didática e romântica buscaram
apoio mútuo para justificar-se perante os ataques de Platão, na República,
razão por que, em algumas definições de Literatura nos manuais didáticos
do século XIX, ela é tida como um tipo de obra de arte que, ao mesmo
tempo em que deleita, ensina (OLIVEIRA, 1999).

113
Teoria da Literatura II

A partir dessas divisões, ocorreram novas sínteses, as


quais tiveram início na literatura narrativa pós-renascen-
tista, como podemos observar em Cervantes, cuja grande
obra prima, Dom Quixote, pode ser entendida como uma
tentativa de reconciliar os impulsos empíricos e ficcionais.
Desse modo, o romance pode ser definido como um
produto da reunião dos elementos empíricos e ficcionais
na literatura narrativa:
A mimese (inclinada a formas breves como os
“caracteres” e a “fatia de vida”) e a história (que pode
tornar-se demasiado científica, deixando de ser literatura)
combinam-se no romance moderno com o “romance”
[tradicional] e a fábula, assim como a lenda primitiva, o
folclore e o mito sacro se combinavam originalmente na
epopéia, para produzir uma grande e sintética obra literária
Dom Quixote de Salvador Dali. (Fonte: (SCHOLES e KELLOGG, 1977, p. 10).
http://www.armenguepress.blogger.com.br). É possível que, depois de ter alcançado uma posição
hegemônica no século XX, o romance, no século XXI,
seja substituído por outras formas, pois nenhuma forma é eterna, sujeita
que está a processos de desintegração e síntese que são característicos de
contextos sócio-históricos específicos. Mesmo no início do século XX,
com obras como as de Joyce, Proust e Virginia Woolf, o romance moderno
é questionado em suas estruturas e finalidades, pelo menos como foram
concebidas pelos principais romancistas dos séculos XVIII e XIX.

O ROMANCE MODERNO
O romance moderno, de maneira geral, e a literatura narrativa do século
XX, de modo particular, caracteriza-se por afastar-se progressivamente
das atitudes e técnicas do que se convencionou chamar de realismo. Tal
movimento é visível também nas outras artes, principalmente nas artes
plásticas, as quais passaram por um processo de “desrealização” desde a
segunda metade do século XIX, quando começou a recusar a sua função
tradicional de reproduzir ou copiar a realidade empírica e sensível. Foi o que
ocorreu com a pintura abstrata e com as vanguardas européias: o cubismo,
o expressionismo e o surrealismo. Convém ainda observar que, depois da
invenção da máquina fotográfica, essa função tradicional da pintura, embora
permanecesse – e ainda permaneça, nos dias de hoje –, perdeu muito de sua
relevância, tendo sido obrigada a reinventar-se, pelas próprias condições
sócio-históricas impostas pelas revoluções tecnológicas do século XX.
No romance, essa reinvenção, que na pintura era representada pela
eliminação do espaço, ou da “ilusão do espaço”, ocorreu em termos da
supressão da cronologia e da linearidade temporal, fato que também reflete

114
A tradição da narrativa e o romance moderno Aula 8
as inovações tecnológicas do cinema, que tornaram a narrativa descritiva e
linear da literatura inexpressiva para os leitores modernos. Nesse sentido,
o romance moderno nasceu no momento que escritores como Proust e
Joyce, por exemplo, começaram a desfazer a ordem cronológica, fundindo
passado, presente e futuro:

A dificuldade que boa parte do público encontra em adaptar-se


a este tipo de pintura ou romance decorre da circunstância de a
arte moderna negar o compromisso com este mundo empírico
das “aparências”, isto é, com o mundo temporal e espacial posto
como real e absoluto pelo realismo tradicional e pelo senso comum.
Revelando espaço e tempo – e com isso o mundo empírico dos
sentidos – como relativos ou mesmo como aparentes, a arte moderna
nada fez senão reconhecer o que é corriqueiro na ciência e filosofia
(ROSENFELD, 1973, p. 81)

É preciso ressaltar que os romances, ao assinalarem a discrepância entre


o tempo dos relógios e o tempo da mente, procuram fazê-lo na sua própria
estrutura narrativa, e não apenas de forma temática. É o caso de Angústia
(1936), de Graciliano Ramos (1892-1953), no qual passado e futuro se mis-
turam na mente do narrador-protagonista Luís da Silva, materializando-se
em seu monólogo interior. Tal processo, que pode também ser visto em
muitos filmes, modifica a estrutura das frases, que se estendem e complexi-
ficam no fluxo da consciência das personagens, inserindo fragmentos do
seu passado, do seu presente e de algumas predições ou antecipações de
momentos futuros.
O narrador, ao representar tal fluxo de consciência, desaparece, ou nos
dá a ilusão de sua desaparição, apresentando as personagens de modo direto,
sem a sua tradicional intermediação, marcada pelo uso do pronome pessoal
em terceira pessoa ou pelo emprego do tempo verbal no passado, que se torna
presente, ou presentificado. Com isso, como notou Rosenfeld (1973, p. 84),
esgarça-se, além das formas do tempo e do espaço, uma categoria da realidade
empírica e do senso comum: a lei da causalidade, que encadeava logicamente
as causas e seus efeitos, os motivos e as situações, com início, meio e fim. O
leitor, nesse caso, tem que estar mais atento à coerência interna da narrativa,
relacionando seus elementos, os quais, por sua vez, estão fragmentariamente
espalhados no corpo do texto. A intenção, aqui, é reproduzir, com a máxima
fidelidade, os movimentos da experiência psíquica, de maneira semelhante à
visão de um inseto sob a lente de um microscópio.
As implicações dessa inovação apresentam-se de vários modos. Uma
delas é a fragmentação da personalidade, ou da identidade, das personagens,
que não pode mais ser vista em sua inteireza, senão através de nuances ou
perspectivas limitadas, mais de acordo com uma visão complexa de um
mundo caótico, em rápida transformação, abalado por guerras, movimen-

115
Teoria da Literatura II

tos sociais e revoluções tecnológicas. Em suas formas mais radicais, como


nos romances de Beckett, a personagem se torna um portador abstrato da
palavra, como se fosse um suporte precário e mutilado da língua, algo que
também ocorre na pintura, que passa a deformar, fragmentar e decompor
a representação do ser humano.
Para Rosenfeld (1973, p. 90), a ruptura com o tempo cronológico,
no romance moderno, aponta para um retorno ao que denomina “tempo
mítico”, que, ao invés de linear e progressivo, como o tempo judaico-cristão,
é circular, voltado para si mesmo e para as mesmas estruturas e situações
coletivas, como em Ulysses, de Joyce, em que, através das máscaras das
personagens Bloom, Dedalus e Molly, transparecem as figuras míticas de
Ulisses, Telêmaco e Penélope, da Odisséia de Homero:

Na dimensão mítica, passado, presente e futuro se identificam: as


personagens são, por assim dizer, abertas para o passado que é
presente que é futuro que é presente que é passado – abertas não
só para o passado individual e sim o da humanidade; confundem-se
com seus predecessores remotos, são apenas manifestações fugazes,
máscaras momentâneas de um processo eterno que transcende não
só o indivíduo e sim a própria humanidade [...]

Com efeito, muitos exemplos desse eterno retorno mítico podem ser
encontrados na Literatura Brasileira moderna, como em Macunaíma (1928),
de Mário de Andrade (1893-1945), em que a inconstância do “herói sem
nenhum caráter” faz lembrar os versos do autor, em Remate de Males (1930),
quando diz “eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta”; ou em Grande
Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa (1908-1967), que revive o drama
de Fausto no sertão brasileiro.
Além dessa enfocação microscópica, o romance moderno também se
caracteriza por uma perspectiva telescópica, quando o narrador se omite de
vasculhar os processos mentais das personagens, descrevendo apenas seu
comportamento exterior e reproduzindo seus diálogos. O exemplo clás-
sico desse tipo de narrativa é o romance O Estrangeiro (1942), de Camus.
Aqui, o “eu” que narra a história não tem dimensão interior, chegando
até a cometer um assassinato sem qualquer motivação de ódio ou rancor,
mas como reflexo do sol em uma praia deserta. O tribunal que o julga, ao
atribuir-lhe motivos que não tivera, o torna um personagem de romance
tradicional para poder condená-lo.

116
A tradição da narrativa e o romance moderno Aula 8

Fotografia de cortiço no centro do Rio de Janeiro, em 1906 (Fonte: http://www.educacaopublica.


rj.gov.br).

Essa omissão do narrador ocorre, de forma semelhante, nos romances


em que o tema central não é o mundo psicológico das personagens, mas
a vida coletiva de uma casa, cidade ou vila, como em O Cortiço (1890), de
Aluísio de Azevedo (1857-1913), sob alguns aspectos, pois o que emerge
como elemento central da narrativa não são as peripécias de determinadas
personagens, mas o próprio espaço social do cortiço como protagonista
principal da história.

CONCLUSÃO

O romance como gênero literário teve suas primeiras manifestações no


século XVIII, especialmente na Inglaterra, quando autores como Jonathan
Swift (1667-1745) e Daniel Defoe (1660-1731) elaboraram longas narrativas
fictícias com a ilusão de realidade. Os narradores, adotando variados truques,
buscavam convencer seus leitores de que suas histórias, por mais inveros-
símeis que pudessem parecer, como as aventuras de Robinson Crusoé (1719)
ou As Viagens de Gulliver (1726), eram verídicas, pois elas não seriam fruto
de sua criatividade ou imaginação, mas de manuscritos achados e divulgados
para o público. Nesse sentido, era um gênero que se assemelhava a uma
espécie de jornalismo imaginativo, algo bastante convincente em uma época
em que o jornalismo como gênero discursivo começava a consolidar-se na
Europa. Algumas vezes o truque revestia-se de uma forma diferente, a da
correspondência epistolar, como em Pamela (1740), de Samuel Richardson
(1689-1761), uma história narrada através de cartas que fazia com que a

117
Teoria da Literatura II

heroína que dá nome ao romance fosse recompensada pela sua virtude, isto
é, por resistir às tentativas de sedução de seu jovem patrão. Como prêmio,
ela ganha o casamento.
Do ponto de vista de sua representação social, dada a sua populari-
dade, uma vez que seus capítulos eram publicados em jornais em forma
de folhetins, o romance funcionou de maneira contraditória e paradoxal.
Se, por um lado, servia como reforço de padrões e preconceitos sociais
ou comportamentais, por outro servia como contestação a costumes e
concepções estabelecidos na sociedade, sendo muitas vezes polêmicos e
tornando-se objeto de leitura proibida para mulheres, como nos casos de
Madame Bovary (1856), de Gustave Flaubert (1821-1880), ou O Primo Basílio
(1878), de Eça de Queiroz (1845-1900), que tratam do adultério.
No Romantismo, o romance, auxiliado pela historiografia e pelas desco-
bertas da arqueologia e da filologia, tornou-se um instrumento fundamental
para o projeto de afirmação dos Estados nacionais, servindo muitas vezes
como veículo de transmissão de mitos fundacionais de jovens nações, como
é o caso de Iracema (1865), de José de Alencar (1829-1877), ou de nações
da velha Europa, como Ivanhoé (1819), de Walter Scott (1771-1832). No
Realismo-Naturalismo, por sua vez, o romance alcançou ares sociológicos
e científicos, funcionando ao mesmo tempo como denúncia e diagnóstico
de problemas sociais e até biológicos, uma vez que, no final do século XIX,
como você já deve saber, a literatura era concebida como sendo resultado
da raça, do meio e do momento histórico.
Os narradores, geralmente oniscientes e posicionados fora da história,
sabiam tudo acerca de suas personagens, conhecendo-lhes o passado, o
futuro e o presente, algo linearmente desvendado através de um tempo
cronológico, impulsionado pela lei da causalidade. Somente no século XX,
em decorrência do caos fomentado pelas guerras e movimentos sociais e
pelo progresso técnico e tecnológico, sua linguagem foi reformulada, em
ressonância a desenvolvimentos semelhantes em outras artes e na ciência,
especialmente nas ciências humanas, depois do advento da psicanálise.
A ruptura com as formas e concepções intrínsecas ao romance tradicio-
nal, bem como seu novo papel na sociedade de consumo, tornaram-no um
gênero literário hegemônico, interferindo até na maneira como passamos
a compreender as formas narrativas que lhe foram anteriores. Cada época,
como vimos, tem suas formas narrativas próprias. Se o romance pode ser
considerado a epopéia dos tempos modernos, temos de ser cautelosos para
não confundirmos as funções e as qualidades estéticas de dois tipos nar-
rativos que só podem ser compreendidos em seus respectivos contextos
sócio-históricos. Esperemos que, no futuro, quando outras formas narrativas
suplantarem o romance, não incorramos no mesmo erro.

118
A tradição da narrativa e o romance moderno Aula 8

RESUMO
Nesta aula, caro aluno, vimos que cada contexto sócio-histórico espe-
cífico tem suas formas narrativas próprias e que, se quisermos entendê-las
em sua historicidade, precisamos levar em conta seus elementos e finali-
dades, bem como as condições de sua produção, circulação e recepção.
Desse modo, não podemos centralizar nossa visão do desenvolvimento do
gênero narrativo no romance, pois assim tenderemos a acreditar, como o
fizeram muitos historiadores e críticos literários, que as formas narrativas
anteriores foram apenas representativas de um estágio menos desenvolvido
dessa que se tornou a forma narrativa hegemônica em nosso tempo, o que
se revela como uma espécie de preconceito e incompreensão do passado,
da contemporaneidade e mesmo do futuro. Vimos também que a forma
mais tradicional de narrativa, a epopéia, é um amálgama de mito, história
e ficção, e que tal síntese, com o passar do tempo, desintegrou-se, dando
origem a novas formas narrativas, tais como a ficção e a história, algo que
pode ocorrer com o romance, no momento de sua desintegração, seja em
contos, novelas ou formas inusitadas, mais apropriadas a um mundo em
constante processo de transformação. Finalmente, vimos que o romance
moderno, como forma narrativa específica, passou por várias transforma-
ções em sua História, desde o século XVIII, mudando suas finalidades e
funções sociais, bem como seus estruturas narrativas, de acordo com as
alterações sofridas em outros gêneros e em outras artes, tais como a pintura
e o cinema, repercutindo novas idéias e concepções que também se relac-
ionam com os desdobramentos das pesquisas científicas. Assim, pudemos
notar que as inovações formais do romance moderno, especialmente o
produzido no século XX, que rompeu definitivamente com a cronologia,
o tempo e o espaço narrativos, implicando novas maneiras de narrar e de
ler, não podem ser entendidas fora do contexto mais geral de mudanças
sociais e revoluções tecnológicas pelas quais o mundo tem passado, muito
menos sem fazer relações com a tradição narrativa que as tornou possíveis.
Contudo, isso não significa dizer que maneiras mais tradicionais de narrar
tenham deixado de existir, haja vista o grande número de romances best-
seller que continuam sendo escritos e lidos, apesar de empregarem estruturas
narrativas já ultrapassadas, mas que, no século XX, o romance alcançou
um grau de sofisticação que nos faz pensar em sua provável desintegração,
abrindo espaços para formas novas.

119
Teoria da Literatura II

ATIVIDADES

Responda às seguintes questões referentes ao texto desta aula:


1. Por que não se pode fazer um histórico da narrativa centralizado no
romance?
2. Como você explica a desintegração da síntese épica representada pela
epopéia?
3. Baseado(a) no texto desta aula, escreva um pequeno texto (de mais ou
menos uma página, papel A4, espaço 1,5, fonte 12) sobre o desenvolvimento
do romance como forma narrativa, destacando suas principais característica
no século XX.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Antes de fazer esta atividade, o tutor deverá aproveitar-se da experiência


de leitura dos alunos, através de fóruns ou de chats, buscando ver
que tipo de narrativa eles mais lêem, com o intuito de, a partir de
tais informações, discutir as questões levantadas pelo texto com base
nas narrativas por eles lidas (ou ouvidas, se for o caso). Os exemplos
citados no texto não precisam ser seguidos, podendo ser substituídos
por outros do repertório de leitura do próprio tutor, ou mesmo dos
alunos, desde que as questões aqui desenvolvidas sejam tratadas.

REFERÊNCIAS

OLIVEIRA, Luiz Eduardo. A historiografia brasileira da literatura


inglesa: uma história do ensino de inglês no Brasil (1809 – 1951). Dis-
sertação (Mestrado) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
Estadual de Campinas, 1999. Disponível em: <http://www.unicamp.br/
iel/memória/Teses/index.htm>
ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1973.
SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa.
Tradução: Gert Meyer. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1977.

120
A tradição da narrativa e o romance moderno Aula 8
GLÓSSARIO
Heródoto: Historiador grego (485?-420 a.C.). Nascido
em Halicarnasso (hoje Bodrum, Turquia), escreveu
uma história da invasão persa da Grécia nos princípios
do século V a.C., As histórias de Heródoto, obra
reconhecida como um novo “gênero literário” pouco
depois de ser publicada.

Tucídides: Historiador grego. Escreveu a História


da guerra do Peloponeso, em que conta a guerra do
Peloponeso, entre Esparta e Atenas, ocorrida no século
V a.C., relatando os fatos com concisão e buscando
explicar-lhes as causas. Esta obra é vista no mundo
inteiro como um clássico, e representa a primeira de
seu estilo.

Teofrasto: Orador grego (372 -287 a.C.). Sucedeu


Aristóteles na escola peripatética. Seu nome original
era Tirtamo, mas ficou conhecido pela alcunha de
‘Teofrasto’, que lhe foi posta por Aristóteles, para indicar
as suas qualidades de orador. Seus Caracteres consistem
em um panorama breve, vigoroso e mordaz dos tipos
morais que contêm uma valiosa descrição da vida do seu tempo.

Esopo: Aisôpos foi um lendário escritor grego, que teria


vivido na Antigüidade, ao qual se atribui a paternidade
da fábula como gênero literário. Suas fábulas serviram
como base para recriações de outros escritores ao longo
dos séculos, como Fedro e La Fontaine.

Marcel Proust: Escritor e crítico literário francês


(1871-1922). De família rica, teve uma vida tranqüila e
conviveu com a alta sociedade da época. Sua principal
obra, Em Busca do Tempo Perdido (À la Recherche
du Temps Perdu), foi publicada entre 1913 e 1927.
A homossexualidade é tema recorrente em sua obra,
principalmente em Sodoma e Gomorra.

James Joyce: Escritor irlandês expatriado (1882-1941). Considerado


um dos autores de maior relevância do século XX. Suas obras mais

121
Teoria da Literatura II

conhecidas são o volume de contos Dublinenses (1914) e os romances


Retrato do Artista Quando Jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans
Wake (1939) - o que se poderia considerar um “cânone joyceano”.

Albert Camus: Escritor e filósofo argeliano (1913-


1960). Na sua terra natal viveu sob o signo da guerra,
fome e miséria, elementos que, aliados ao sol, formam
alguns dos pilares que orientaram o desenvolvimento
do pensamento do escritor.

122
A QUESTÃO DO FOCO NARRATIVO 9
aula
MET
METAA
Apresentar, classificando
tipologicamente, as diferentes
perspectivas narrativas, ou tipos
de narrador.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno
deverá: identificar tipologicamente
diferentes perspectivas narrativas,
ou tipos de narrador.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá revisar o conceito
e classificação dos gêneros
discursivos e de suas relações com
os gêneros literários; e ter noções
sobre a tradição da narrativa, da
epopéia ao romance moderno.

(Fonte: http://www.teclasap.com.br).
Teoria da Literatura II

N esta aula, você aprenderá algumas noções sobre foco


narrativo, algo muito útil para a formação de um ins-
trumental teórico que possibilite a análise estrutural de narrativas
não só literárias, mas também cinematográficas ou televisivas. As-
sim, na primeira parte, faremos uma breve explanação a respeito
das relações entre narrativa e ficção, mostran-
INTRODUÇÃO do algumas das mais conhecidas posições te-
óricas a respeito da questão, desde Platão até
alguns teóricos estruturalistas do século XX.
Em seguida, faremos uma sucinta definição da tipologia pro-
posta por Norman Friedman, bem como de seus oito tipos de
narrador, observando que essa tipologia, como qualquer outra, não
pode ter caráter prescritivo, mas apenas didático, uma vez que mui-
tos tipos podem mesclar-se em algumas obras. Procuraremos, na
medida do possível, exemplificar os tipos de narrador com obras da
literatura brasileira ou estrangeira.
Na conclusão, finalmente, faremos algumas considerações a res-
peito de duas estra-
tégias narrativas de
suma importância na
literatura moderna e
contemporânea: a
análise mental e o
monólogo interior,
ou fluxo da consciên-
cia, tentando mostrar
que nenhuma análise
estrutural da narrati-
va pode prescindir
do estudo das condi-
ções sócio-históricas
de produção, circula-
ção e recepção das
Retrato de Ambroise Vollard, Paul Cézanne, 1899 (Fonte:
http://lh6.ggpht.com). obras literárias.

148
A questão do foco narrativo

P oderíamos dizer, em princípio, que toda narrativa é de


ficção, uma vez que, pela própria natureza da linguagem,
que nunca é transparente ao ponto de significar objetivamente o
9
aula
que representa, sempre que usamos palavras para narrar ou descre-
ver algo, de certa forma recriamos e reinventamos o real, que, por
sua vez, é sempre inalcançável e suplemen-
tar, pois, como observa Derrida, a experiên- NARRATIVA E
cia é sempre mediada por signos e símbolos e FICÇÃO
o referencial é Desse modo, a “narrativa ob-
jetiva”, com uma espécie de isenção ou neutralidade do narrador, é
um mito, pois, mesmo quando o contador da história se interpõe
entre seus ouvintes ou leitores e os seres ficcionais, eles são feitos
de palavras, “escolhidas e arranjadas num conjunto estruturado por
alguém – um autor implícito (...), oculto e revelado pelo e no que
narra” (LEITE, 1997).
Platão, em sua República, distinguiu imitação de narração. Para o Jacques Derrida
filósofo grego, como vimos na Aula 5, o mundo sensível, no qual
Filósofo francês (1930-
vivemos, é apenas uma imitação do mundo das idéias. Assim, a 2004). Criador do mé-
poesia, incluindo todos os seus gêneros, seria um simulacro em todo filosófico chama-
do desconstrução.
segundo grau. Logo, seria mais adequado para o homem honesto
e ponderado narrar do que imitar, pois, narrando as ações de um
homem bom, procuraria exprimir-se como se fosse esse homem,
não se envergonhando de tal imitação. Quando, ao contrário, fos-
se narrar ações de um homem indigno, não se permitiria imitá-lo a
sério. Aristóteles, por seu turno, ao inverter o juízo platônico (ver
Aula 5), preferia, para a épica, a imitação direta à narração das
ações. Para ele, o poeta deveria falar o menos possível por conta
própria, imitando pouco ou raramente, como Homero, que, após
um curto preâmbulo, introduzia personagens para que estes falas-
sem por si mesmas (apud LEITE, 1997).
Diferentemente da epopéia, em que o narrador, juntamen-
te com seu público, se colocava à distância do mundo narrado,
em tom solene, como uma espécie de mediador entre as musas
e seus ouvintes, no romance o narrador torna-se íntimo dos

149
Teoria da Literatura II

leitores, aproximando-os, em sua narrativa prosificada, das per-


sonagens e dos fatos narrados. Tal proximidade, que se confi-
gura através de variadas técnicas e da caracterização do tem-
po, do espaço e da linguagem, nos dá a ilusão de que estamos
diante de uma pessoa que expõe diretamente seus pensamen-
tos, quando na verdade tanto o narrador quanto o leitor são
Henry James seres ficcionais. A ilusão de verdade, também chamada verossi-
Escritor norte-americano
milhança, é o que vai dar coerência à narrativa, convencendo o
(1843-1916).Autor de al- leitor, através das convenções necessárias ao universo ficcional
guns dos romances, con-
tos e críticas literárias
da obra, de que tudo que o narrador conta é verossímil, isto é,
mais importantes da lite- semelhante à verdade.
ratura de língua inglesa.
Naturalizou-se britânico
Foi com base na verossimilhança que a primeira teoria do foco
ao fim de sua vida. narrativo foi elaborada, no final do século XIX, por Henry James,
nos prefácios de seus romances. Para o autor norte-americano, toda
narrativa deveria ter um ponto de vista único, devendo o narrador
aparecer o mínimo possível, para evitar comentários e digressões
que desviam a atenção do leitor e dar a impressão de que a história
se conta a si própria, através de uma personagem que seria uma
espécie de alter ego do narrador. Percy Lubbock (1879-1965), da
mesma forma, ao utilizar-se da distinção entre narrar e mostrar, bem
como entre sumário e cena, representando ambas as distinções, res-
pectivamente, a mediação ou não do narrador com relação ao que é
narrado, ou apenas mostrado, defende a discrição do narrador,
radicalizando ainda mais a posição de Henry James, na medida em
que, prescritivamente, considera arte da ficção apenas as narrativas
em que o narrador em terceira pessoa aparece rara e discretamente
(apud LEITE, 1997, p. 13-15).
O caráter normativo da teoria do ponto de vista proposta por
James e Lubbock foi logo criticado. E. M. Forster (1879-1970),
por exemplo, chegou a afirmar que a mudança de ponto de vista,
ou a existência de mais de um ponto de vista em determinada
narrativa, era plenamente legítima, desde que o romancista atin-
gisse o resultado que quisesse obter. Wayne Booth (1921-2005),
por sua vez, vai admitir que há várias maneiras de se contar uma

150
A questão do foco narrativo

história, dependendo a sua escolha, pelo narrador, dos valores a


serem transmitidos e das finalidades a serem alcançadas (apud DAL
FARRA, 1978).
9
aula
Booth também criou a categoria do “autor implícito”, que seria
uma imagem do autor real criada pela escrita, uma vez que ele se
trai, como afirma Dal Farra (1978, p. 20), na própria escolha do
título, bem como na eleição dos signos e na preferência em deter-
minado tipo de narrador, distribuição dos capítulos, etc. Assim, não
basta, na interpretação de qualquer peça narrativa, considerar ape-
nas os tipos de foco narrativo, pois somente a sua articulação com
o autor implícito poderia levar-nos à visão de mundo da obra.
Jean Pouillon (1916-2002) foi outro teórico que, baseado em
Jean-Paul Sartre
uma visão fenomenológica do mundo inspirada em Sartre, pro-
pôs uma teoria das visões da narrativa articulada à questão do Filósofo existencialista
francês (1905-1980). Di-
tempo. Para o autor, haveria três possibilidades narrativas: “a vi-
zia vir a existência an-
são por trás”; “a visão com” e “a visão de fora”. Na primeira, o tes da essência. Assim,
no existencialismo (que
narrador, onisciente, sabe tudo sobre a vida das personagens e
começa com Kierkega-
seu destino, como uma espécie de Deus. É o que ocorre em ro- ard, 1813-1855 - ou até
mesmo antes com Blai-
mances tradicionais do século XIX, como Guerra e Paz, de Tolstói.
se Pascal, 1623-1662 ou
Na “visão com”, o narrador, Santo Agostinho 354-
430), o papel da filoso-
geralmente em primeira pessoa,
fia é invertido.
limita-se ao conhecimento que
tem sobre si mesmo e sobre os
acontecimentos, ao invés de ter
uma visão de conjunto e um
controle absoluto sobre tudo
que acontece no universo
ficcional da obra. É o caso clás-
sico de Machado de Assis Tolstói
(1839-1908), em Dom Casmur-
Escritor e ensaísta rus-
ro, em que o narrador não tem so (1828-1910). Muito
certeza do adultério de sua es- influente na literatura
e política de seu país.
posa Capitu, bem como dos ro-
Cartaz do filme Guerra e Paz, de King Vidor
(1956) (Fonte: http://bp2.blogger.com). mances epistolares do século

151
Teoria da Literatura II

XVIII e de algumas narrativas do século XX que usam o monólo-


go interior e o fluxo da consciência como técnica narrativa. Na
“visão de fora”, finalmente, o narrador não tem qualquer conhe-
cimento sobre o interior das personagens, recusando-se a pene-
trar em seus pensamentos, pois fala como se fosse uma testemu-
nha ocular posicionada fora da história. É o que ocorre em alguns
Dashiell Hammet romances policiais, como os de Dashiel Hammet, e no nouveau
roman (1) francês (POUILLON, 1974).
Escritor norte-america-
no (1894-1961). Escre- Convém mencionar também a análise estrutural da narrati-
veu romances e con- va, tal como propunham Roland Barthes (1915-1980) e
tos policiais.
Todorov (1939-). O primeiro, em sua Introdução à análise estrutu-
Roland Barthes ral da narrativa, distingue a estrutura das histórias em três ní-
Escritor, sociólogo, veis: o nível das funções, em que se encontra o enredo ou fábu-
crítico literário, semió- la, bem como os elementos de caracterização das personagens,
logo e filósofo francês
(1915-1980). Fez parte do tempo e do espaço narrativos; o nível das ações, no qual se
da escola estruturalis- encontram as personagens enquanto agentes, isto é, fios con-
ta. Destacou-se por
analisar oconteúdo se- dutores de certos núcleos de funções; e o nível da narração,
miótico e político em que integra os dois anteriores, podendo uma narrativa em ter-
revistas e propagan-
das através do proces- ceira pessoa, como nota Leite (1997, p. 23), servir de mero dis-
so de significação (co- farce para a primeira.
notação e denotação).,
tratando da percepção Todorov, por sua vez, baseia-se no lingüista Émile Benveniste
simples e da mitológia para fazer uma distinção entre discurso, que seria pessoal, uma vez
envolvida no proces-
so de comunicação. que inscrito no domínio do “eu-tu”, e história, que seria impessoal,
inscrita no domínio do “ele”. Assim, ele faz uma relação dos signos
Todorov
que designam diretamente o processo de enunciação – pronomes,
Filósofo e lingüista advérbio, tempo verbal, etc. –, para em seguida analisar o “discurso
búlgaro (1939). Radi- avaliatório” através do qual o processo de enunciação invade o
cado em Paris, seus
estudos de base estru- enunciado inteiro.
turalista se voltam Cabe-nos agora conhecer os tipos de narrador mais usuais na
para a linguística e
para a teoria da litera- tradição narrativa ocidental, principalmente os que se fixaram de-
tura. É o principal re- pois da ascensão do romance, verificando os procedimentos téc-
presentante da “nova
crítica francesa”. nico-formais utilizados para tal fim, para que possamos ter um
instrumental teórico capaz de fornecer subsídios para a análise
e interpretação dos elementos constitutivos de narrativas mo-

152
A questão do foco narrativo

dernas e contemporâneas. Tal instrumental pode ser mobilizado


não somente para a análise de obras literárias, mas também de
outros meios narrativos, como o cinema, a telenovela, etc. Con-
9
aula
tudo, vale dizer que qualquer espécie de tipificação é relevante na
medida em que é didática, pois só é possível classificar, em muitos
casos, os elementos predominantes. Há obras que apresentam uma
variedade de tipos, ou que os subvertem, ou transformam, mes-
clando-se ou depurando-se.

TIPOS DE NARRADOR

A tipologia proposta por Norman Friedman (apud LEITE,


1997) mostra-se muito funcional para análise e interpretação de
narrativas. Segundo o referido autor, há basicamente oito tipos Balzac
de narrador:
Romancista francês
1. Onisciente intruso: este é o tipo mais tradicional de narrador, (1799 - 1850). Tornou-
desde o surgimento do romance, ainda no século XVIII. Geralmen- se um dos maiores no-
mes do realismo na li-
te em terceira pessoa, ele tem controle total sobre a história e sobre teratura. Sua obra, A
o passado e futuro das personagens, reservando-se o direito de co- Comédia Humana , que
reúne oitenta e oito
mentar e julgar seus pensamentos e atitudes, às vezes como verda- obras, procura retratar
deiros ensaios anexados ao enredo. É o que ocorre em Memória de a realidade da vida bur-
guesa da França na
um sargento de milícias (1852-53), de Manuel Antonio de Almeida sua época.
(1831-1861), bem como nos romances de Balzac (1799-1850).
2. Onisciente neutro: a partir da segunda metade do século XIX,
com a voga do Realismo-Naturalismo, associada à ascensão e conso-
lidação do positivismo na ciência, fez surgir um tipo de narrador que
se recusava a penetrar livremente no pensamento das personagens,
aparecendo o mínimo possível, como se fosse um cientista que bus-
casse explicações biológicas ou sociais dos verdadeiros estudos de
caso que suas histórias pretendiam ser. Assim, supunha-se objetivo e
neutro, escondendo-se atrás das personagens que refletiam seus pon-
tos de vista. Um bom exemplo é O cortiço (1890), de Aluísio de Aze-
vedo (1857-1913). Vale ressaltar que, mesmo em pleno Realismo-
Naturalismo, escritores como Machado de Assis não abriram mão da

153
Teoria da Literatura II

onisciência intrusa, utilizando-se dessa técnica para questionar não


Arthur Conan Doyle
somente o comportamento das personagens, mas também a própria
Escritor britânico (1859- estrutura narrativa e a noção de verossimilhança.
1930). Famoso por suas
60 histórias sobre o de- 3. O “eu” como testemunha: aqui, o narrador tem seu ponto de vista
tetive Sherlock Holmes, limitado à sua própria pessoa, isto é, às circunstâncias de sua posição
consideradas uma gran-
de inovação no campo na história, uma vez que baseia seus comentários no que viu ou ouviu.
da literatura criminal. Não sendo protagonista, esse narrador divide com o leitor suas dúvi-
Espiríta, confronta-se
com a sociedade ingle- das e suposições com relação às intrigas do enredo. O exemplo clássico
sa por suas crenças. Em é As aventuras de Sherlock Homes (1892), de Arthur Conan Doyle (1859-
sua obra destaca-se A
História do Espiritismo. 1930), cuja história é contada por Watson, assistente do lendário dete-
tive. Provavelmente Doyle inspirou-se no conto A carta roubada, de
Edgar Allan Poe (1809-1849) – para muitos o inventor do gênero
policial –, narrado pelo amigo do detetive Auguste Dupin, que, junta-
mente com o leitor, tenta deduzir o raciocínio do seu amigo detetive.
4. Narrador-protagonista: como a própria terminologia deste tipo
sugere, trata-se de um narrador que conta sua própria história,
limitando assim o foco narrativo ao seu ponto de vista. O leitor,
Edgar Allan Poe dessa forma, pode duvidar de certas posições ambíguas do
narrador, uma vez que está livre para interpretá-las segundo os
Escritor, poeta, roman-
cista, crítico literário e dados de que dispõe – os elementos internos da obra. É o que
editor estado-uniden- ocorre em Dom Casmurro, de Machado de Assis, e em Grande Ser-
se (1809-1849). Consi-
derado, junto com Ju- tão: veredas (1956), de Guimarães Rosa (1908-1967).
les Verne, um dos pre- 5. Onisciência seletiva múltipla: a impressão que se tem, neste tipo
cursores da literatura
de ficção científica e de narrativa, é de que não há narrador, pois a história flui diretamen-
fantástica modernas. te das personagens, seja através de diálogos, seja através do discurso
Algumas das suas no-
velas, como Os Crimes indireto livre (ver Aula 8). Ele se difere tanto da onisciência neutra,
da Rua Morgue, A uma vez que traduz as percepções e sentimentos das personagens,
Carta Roubada e O
Mistério de Maria Ro- quanto da onisciência intrusa, que comenta e julga tais percepções e
get, figuram entre as sentimentos. Um exemplo desse tipo de narrativa é Vidas secas (1938),
primeiras obras reco-
nhecidas como polici- de Graciliano Ramos (1892-1953), romance no qual os sonhos e frus-
ais, e, de acordo com trações das personagens, inclusive da cachorra Baleia, aparecem de
muitos, as suas obras
marcam o início da ver- forma fragmentária, pelo discurso indireto livre.
dadeira literatura nor- 6. Onisciência seletiva: este é um tipo semelhante ao anterior, mas
te-americana.
reduzido a uma só personagem, que se torna o ângulo central através

154
A questão do foco narrativo

do qual os pensamentos e percepções vão sendo mostrados ao leitor,


pelo discurso indireto livre. Podem exemplificar esse tipo alguns ro-
mances de Virginia Woolf (1882-1941) e Clarice Lispector (1929-1977).
9
aula
7. Modo dramático: mais comum no conto do que no romance, este
tipo narrativo faz submergir o narrador, que às vezes apenas pontua
os diálogos das personagens. Essa técnica foi muito usada pelos con-
tistas norte-americanos da primeira metade do século
XX, muitos deles roteiristas de cinema, e pode ser en-
contrada em muitos contos de Dorothy Parker (1893-
1967) e Ernest Hemingway (1899-1961).
8. Câmera: este tipo serve para enquadrar certas nar-
rativas que constroem suas histórias através de fla-
shes fragmentários e não lineares de algumas cenas.
Aqui, é inegável a influência do cinema, e não só do
ponto de vista narrativo, mas também vocabular,
pois alguns narradores, como o de Projeto para uma
revolução em Nova Iorque (1970), de Robbe-Grillet
(1922-2008), escrevem como se estivessem esbo-
çando cenas a serem filmadas.

Capa (acima) e cena (abaixo) do filme Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, 1963 (Fonte: http://
www.adorocinemabrasileiro.com.br).

155
Teoria da Literatura II

O s diferentes modos de narrar uma história, de uma


forma ou de outra, estão sempre relacionados a vi-
sões de mundo, que, por sua vez, compartilham os valores e
(pré)conceitos dos contextos sócio-históricos nos quais se consti-
tuem. Como vimos na aula anterior, os avanços
CONCLUSÃO científicos e tecnológicos do mundo moderno
modificaram velhas concepções sobre o espaço
e o tempo, bem como as noções tradicionais sobre realidade e ficção,
interferindo nos modos de representação romanesca do mundo. Dessa
forma, recursos narrativos como a análise mental, o monólogo interior
ou o fluxo da consciência, além do já referido discurso indireto livre,
não podem ser concebidos como meros artifícios técnicos, mas como
inscrições literárias de mudanças nas estruturas sociais.
A análise mental representa o aprofundamento nos processos
psíquicos das personagens, mas de forma indireta, mediante um
narrador onisciente, em terceira pessoa, que, depois de
expor, ou descrever, uma determinada cena, a comenta e
analisa, julgando-a. Tal atitude narrativa faz parte de um
mundo no qual ainda se acredita no poder representativo
das palavras, como se fosse possível dizer objetivamente
o que as personagens pensam.
O monólogo interior, que muitas vezes se confunde
com o fluxo da consciência, é um aprofundamento maior
desses processos psíquicos ou mentais, procedimento típi-
co de um narrador que tem consciência da complexidade
de tais processos, dificilmente traduzíveis em termos obje-
tivos. Sua radicalização, acarretando a expressão direta dos
estados mentais e mesmo do inconsciente das personagens,
Capa de edição da obra Ulisses, de Joyce transforma-se em fluxo da consciência, em prejuízo da ló-
(Fonte: http://www.uoc.edu).
gica sintática e da pontuação, tal como aparece em Ulisses
(1922), de James Joyce (1882-1941). Contudo, essa distinção é muito
frágil, pois ambas as modalidades podem aparecer em uma mesma obra.
O especialista em Letras tem obrigação de conhecer um instru-
mental teórico apto para analisar obras literárias do ponto de vista

156
A questão do foco narrativo

estrutural. Contudo, para interpretá-las, ele necessita articular esse


conhecimento técnico com as questões temáticas impostas pelos
seus enredos, bem como com as condições de produção, circulação
9
aula
e apropriação de seus textos e suportes. Só assim é possível analisar
uma narrativa, do ponto de vista formal, dando conta, ao mesmo
tempo, de seus aspectos sócio-políticos, ou ideológicos.
Se nos prendermos aos aspectos estruturais das narrativas, pou-
co se importando com os contextos de sua produção e recepção,
incorreremos no mesmo erro dos formalistas, que buscaram dar
autonomia às obras com relação aos seus respectivos contextos. Se,
ao contrário, nos detivermos nos elementos sócio-históricos das
narrativas, desprezando seus aspectos formais, tornando a literatu-
ra mero reflexo de seus condicionantes ideológicos, repetiremos os
equívocos de certa crítica marxista.
Uma boa maneira de equilibrar ambas as visões seria buscar
nas obras literárias as inscrições formais das mudanças sociais,
isto é, o conteúdo da forma, relacionando as inovações estrutu-
rais de certas narrativas com as grandes questões sociais de que
são parte, e não reflexo. Foi com esse intuito que esta aula foi
preparada: ao mesmo tempo em que buscamos fornecer um ins-
trumental teórico para a análise formal de narrativas, observa-
mos que se torna essencial a sua relação com as condições sócio-
históricas de sua produção e recepção.

(Fonte: http://riosocial.com).

157
Teoria da Literatura II

RESUMO

Nesta aula, vimos que a relação entre narrativa e ficção é


muito íntima e quase indissociável, uma vez que, pela pró-
pria natureza da linguagem, sempre que narramos ou mesmo
descrevemos algo, de certa forma recriamos ou reinventamos a re-
alidade, que por seu turno é sempre inalcançável e suplementar.
Assim, aprendemos que a objetividade narrativa não passa de um
mito. Em seguida, vimos algumas das posições teóricas mais co-
nhecidas a respeito das questões relacionadas ao foco narrativo,
desde Platão e Aristóteles até alguns teóricos estruturalistas do sé-
culo XX, como Todorov e Roland Barthes, bem como a importân-
cia de algumas noções, tal como a de “autor implícito”, para a in-
terpretação dos aspectos sócio-históricos ou ideológicos das narra-
tivas. Finalmente, vimos brevemente as características principais
da tipologia proposta por Norman Friedman, buscando com isso
fornecer um instrumental teórico propício para a identificação dos
tipos mais comuns de narrador da literatura ocidental. Buscamos
mostrar, contudo, que nenhuma tipologia pode ter caráter prescritivo,
dada a liberdade que têm os autores para inovar, subverter ou sim-
plesmente mesclar os tipos existentes.

ATIVIDADES

Responda às seguintes questões referentes ao texto desta aula:


1. Como você pode justificar a relação quase indissociável entre
narrativa e ficção?
2. Leia o conto Olhos de fogo, do escritor sergipano Antonio Carlos
Viana, e procure identificar o tipo de narrador usado pelo autor,
bem como as estratégias narrativas utilizadas para expor ao leitor
os pensamentos e percepções das personagens.

158
A questão do foco narrativo

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Antes de fazer esta atividade, o tutor deverá aproveitar-se da


9
aula
experiência de leitura dos alunos e da sua própria, através de
fóruns ou de chats, buscando ilustrar as explicações desta aula
com exemplos que eles mesmos conheçam. Como os tipos de
narrador podem ser observados também no cinema e na
telenovela, convém mencionar, na medida do possível, alguns
filmes ou telenovelas que possam servir de exemplo dos tipos
narrativos abordados. Quanto ao conto do escritor sergipano
Antonio Carlos Viana, de fácil acesso, como ele é curto, pode
ser lido rapidamente, com a vantagem de o conto oferecer a
possibilidade de analisar estratégias narrativas como o monólogo
interior ou o fluxo da consciência.

REFERÊNCIAS

CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Tradução


de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Becca, 1999.
DAL FARRA, Maria Lúcia. O narrador ensimesmado: o foco
narrativo em Vergílio Ferreira, 1978.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 8 ed. São
Paulo: Ática, 1997.
POUILLON, Jean. O tempo no romance. São Paulo: Cultrix /
EDUSP, 1974.

159
O CONTO LITERÁRIO 10
aula
MET
METAA
Apresentar o conto como gênero
literário.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá
identificar os elementos
diferenciadores do conto literário
em relação ao conto popular; e
reconhecer as características
principais do conto literário,
entendendo-as em seu caráter
histórico e não prescritivo.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá revisar o conceito
e classificação dos gêneros
discursivos e de suas relações com
os gêneros literários; ter noções
sobre a tradição da narrativa, da
epopéia ao romance; e noções
sobre foco narrativo.
Teoria da Literatura II

O lá, caro aluno. Na aula de hoje, você aprenderá que o


contar histórias deve ser entendido como uma práti-
ca sócio-cultural das mais antigas, uma vez que está presente em
todas as civilizações conhecidas. Em seguida, verá como tal prática
se desenvolveu no Ocidente, assumindo, depois do advento da cul-
tura escrita, aspectos artístico-literários.
INTRODUÇÃO Na segunda parte da aula, aprenderemos
como identificar alguns traços distintivos en-
tre o conto popular e o conto literário, acompanhando brevemente
o modo como os principais teóricos desse gênero literário – Poe,
Jolles, Propp – entendem a questão. Buscaremos, a todo momento,
ilustrar as explicações com exemplos da literatura brasileira ou es-
trangeira. Na terceira parte, traçaremos um breve panorama do conto
literário no Brasil, buscando apontar as características mais
marcantes dos principais contistas brasileiros, desde Álvares de
Azevedo até os sergipanos Antonio Carlos Viana e Jeová Santana.
Na conclusão, tentaremos definir os
elementos básicos do conto como gêne-
ro literário, com todo o cuidado para não
dar a impressão de se tratar de regras,
ou prescrições, da escrita do conto, pois
o intuito é mostrar que cada conto é
um caso, isto é, cada qual, na medida
em que se prende às condições sócio-
históricas de sua produção, circulação
e recepção, representa uma determina-
da visão de mundo, a qual se inscreve
no próprio modo de narrar, em sua es-
(Fonte: http://osforadakazinha.blogspot.com).
trutura narrativa.

162
O conto literário

C omo vimos na Aula 7, é provável que o começo da


10
arte narrativa no Ocidente esteja relacionado com o
aula
momento em que, pela primeira vez, o homem repetiu uma expres-
são vocal que lhe deu prazer, antes mesmo de pensar em registrá-la
ou (re)atualizá-la em circunstâncias especiais.
Assim, podemos pensar o contar histórias
como uma prática sócio-cultural das mais an- CONTARHISTÓRIAS
tigas, presente que está em todas as civiliza-
ções conhecidas, seja oralmente, seja por escrito, seja através de
dispositivos verbais, seja mediante outras linguagens, tais como as
pinturas rupestres da chamada pré-história.
Segundo Gotlib (1999, p. 6), para alguns, os “contos mágicos”
dos egípcios teriam sido os mais antigos, uma vez que devem ter
aparecido há cerca de quatro mil anos antes do nascimento de Cris-
to. Há que se mencionar também as histórias bíblicas, como a de
Caim e Abel, por exemplo, ou as pequenas narrativas que com-
põem a Ilíada e a Odisséia, as quais, antes de ganharem forma escri-
ta, provavelmente circularam durante muito tempo oralmente, per-
manecendo alguns de seus indícios de oralidade nos textos escritos
que as representam, conforme vimos na já mencionada Aula 7, que
tratou da questão da narrativa oral.
Um exemplo freqüentemente citado em obras que tratam
do conto como gênero literário é o das Mil e uma noites, que
circularam na Pérsia no século X, no Egito no século XII e em
toda a Europa a partir do século XVIII. Decepcionado com a
traição da esposa, o rei Shariar decidiu desposar uma virgem
por noite, matando cada uma na manhã seguinte, para que ne-
nhuma outra mulher pudesse traí-lo novamente. Mas ao des-
posar Sherazade, esta arquitetou um plano que a salvou da
morte prematura, pois lhe contou histórias que despertavam
de tal modo a curiosidade do rei que ele, ao invés de matá-la
no outro dia, ia-lhe pedindo que continuasse as histórias na
noite seguinte, até que o rei, percebendo-se apaixonado por
Sherazade, desiste de seu plano.

163
Teoria da Literatura II

Acredita-se que as Mil e uma noites, como tantos outros con-


tos, tiveram origem oral, sendo contadas e recontadas em noi-
tes enluaradas ou à volta de uma fogueira, onde as pessoas se
reuniam para matar o tempo. Tal representação está presente
não apenas em certos quadros ou gravuras de épocas passadas,
nas quais se vê essa cena idealizada, mas também em narrati-
Monteiro Lobato vas literárias que retomam esse artifício para recontar velhas
Foi o precursor da lite- histórias ou contar histórias novas como se fossem tradicio-
ratura infantil brasileira nais. É o que ocorre com Dona Benta ou Sinhá Nastácia, per-
(1882-1948). Ficou po-
pularmente conhecido sonagens hoje quase lendárias da obra de Monteiro Lobato
pelo conjunto educati- (1882-1948).
vo, bem como divertido,
de sua obra de livros Na literatura inglesa, sabe-se que a figura dos menestréis de-
infantis, o que seria sempenhava tal função, entretendo e informando os nobres ou o
aproximadamente meta-
de da sua produção li- povo com suas histórias, tal como se acham representados em
terária. A outra metade, Beowulf ou no mito de Caedmon (ver Aula 7), sem contar os
consistindo de inúme-
ros e deliciosos contos. romances de cavalaria ingleses e franceses do século XII em di-
ante, geralmente metrificados, que tratavam dos feitos de Júlio
César (100-44 a.C.), de Carlos Magno (747-814), do rei Artur ou
de Robin Hood.
Uma célebre representação literária de contadores de história
ocorre em Decameron (1350), de Boccaccio. Aqui, na Florença no
século XIV, um grupo formado por sete mulheres e três homens,
todos jovens, ao fugir de um cortejo fúnebre, evento social de suma
Giovanni Boccaccio
importância à época, refugia-se em uma propriedade, decidindo
passar as tardes contando histórias uns aos outros. Assim, as dez
Poeta italiano (1313-
personagens, durante dez dias, compõem as cem narrativas da obra,
1375). Filho de um mer-
cador, Boccaccio não as quais, além do elemento tradicional e popular, trazem aspectos
se dedicou ao comér-
bem modernos, como a maliciosa ironia do autor. Conforme Reis
cio como era o desejo
de seu pai, preferindo (1984, p. 9-10), vemos na obra de Boccaccio duas faces do conto:
cultivar o talento lite-
a sua forma simples, como expressão do maravilhoso, transmitida
rário que se manifes-
tou deste muito cedo. oralmente de geração a geração, e o conto literário, que se desloca
do universo da tradição para o universo individual do escritor.
Caso muito semelhante acontece em Contos da Cantuária, de
Chaucer, no qual alguns peregrinos prestes a visitar o túmulo de

164
O conto literário

Tomás Becket, em Cantuária, reúnem-se em uma taverna no


Tabardo, ao Sul de Londres, e, por segurança, decidem cavalgar
juntos, no outro dia. O taverneiro propõe que cada um conte duas
10
aula
histórias na ida e duas na volta, para que a viagem transcorra agra-
davelmente, prometendo um jantar gratuito ao que contar a melhor
história. A grandeza de Chaucer, assim como a de Boccaccio, em
quem o autor inglês se inspirou para escrever seu livro, está em
narrar cada história de acordo com o estilo, cultura e temperamento
de cada personagem, investindo-se em suas vozes, como se fosse
um dramaturgo, para construir de modo criativo um panorama dos
gêneros literários da época (ver Aula 5).
Com efeito, a palavra “conto”, na língua portuguesa, serve
tanto para designar a sua forma popular ou folclórica, resultado
de uma criação coletiva e cultural da linguagem, quanto a sua
forma artística, criação de um estilo peculiar e individual. Tal
duplicidade de significado não acontece em língua inglesa,
na qual a palavra tale significa o conto popular – embora Poe
use-a para falar do conto literário, em sua teoria do conto,
como veremos –, e short-story é usada para designar narrati-
vas com características literárias. Em alemão, temos erzählung
ou novelle para contos literários e märchen para contos popu-
lares. O mesmo ocorre em italiano, no qual novelle significa
conto literário e racconto conto popular, em espanhol – novela e
cuento e em francês – nouvelle e conte.
Para Gotlib (1999, p. 11), há três acepções da palavra “conto”:
1) relato de um acontecimento; 2) narração oral ou escrita de um
acontecimento falso; 3) fábula que se conta às crianças para di-
verti-las. As três acepções, embora apontem para caracterizações
diversas e para distinções importantes, tais como fato e ficção e
artístico e popular, apresentam um ponto em comum: são modos
de se contar alguma coisa, sendo, portanto, tipos narrativos.
Concentremo-nos, por enquanto, na distinção entre conto popu-
lar e conto literário.

165
Teoria da Literatura II

O CONTO POPULAR E
Charles Perrault O CONTO LITERÁRIO
Escritor e poeta francês
(1628-1703). Estabele-
ceu bases para um A partir da segunda metade do século XVIII, o conto popular
novo gênero literário, o
conto de fadas, o que
foi objeto de atenção dos estudiosos de muitos países que, buscan-
lhe conferiu o título de do lastros para a afirmação da identidade nacional de seus respecti-
Pai da Literatura Infan-
til.Autor de obras como vos estados, viam as manifestações folclóricas como genuínos
Chapeuzinho Vermelho, repositórios do imaginário dos povos, e conseqüentemente, do “es-
A Bela adormecida, Cin-
derela, Barba Azul, etc. pírito” de suas nações. Assim, seja aproveitando compilações já
Jacob Grimm prontas, como a de Charles Perrault (1628-1703), Contos da mãe
gansa, de 1697, ou a de Jacob Grimm (1785-1863), Contos para
Erudito alemão, estudi-
oso de literatura e crianças e famílias, de 1812, seja pesquisando e publicando novas
filologia (1786-1859). Fi-
cou conhecido, junta- coletâneas, tais estudiosos teorizaram e classificaram os contos
mente com seu irmão, populares como representantes de suas formas mais simples.
Wilhelm, por compilarem
contos como A Bela Com efeito, foi como “forma simples” que André Jolles (1874-
Adormecida, A Branca
de Neve, O Chapeuzinho
1946) classificou o conto maravilhoso – aquele que narra como
Vermelho, Cinderela, as coisas deveriam acontecer, ao invés de narrá-las como de fato
João e Maria, O Peque-
no Polegar e Rapunzel. são –, ao lado da legenda, da saga, do mito, do advinha, do caso memo-
rável e do chiste. Tais formas simples,
para o autor, diferenciavam-se de “for-
mas artísticas”, elaboradas pelo talento
e criatividade individual de determina-
dos autores, por permanecerem basica-
mente as mesmas, a despeito dos varia-
dos modos de contá-las, através dos tem-
pos. Suas características principais seri-
am as seguintes: indeterminação histó-
rica de personagens, lugares e tempos,
algo exemplificado pelo “era uma vez...”
que geralmente inicia tais histórias; a
presença de uma “moral ingênua”, que
se oporia ao “trágico real”; e a ausência
Jacob Grimm (1785-1863), à esquerda, e seu irmão, Wilhelm de uma “ética da ação”, uma vez que as
Grimm (1786-1859), à direita (Fonte: Fonte: http://
www.diebruedergrimm.de). personagens não fazem o que deveriam

166
O conto literário

fazer, dependendo tudo dos próprios acontecimentos. Desse


modo, toda forma simples teria mobilidade, dado o seu caráter
fluido e móvel; generalidade, por seu fácil entendimento por
10
aula
todos; e pluralidade, pelos diferentes modos pelos quais pode
ser contada (JOLLES, 1976).
Vladimir Propp (1895-1970), por sua vez, ao estudar a “mor-
fologia do conto”, descobriu que as personagens do conto maravi-
lhoso, independentemente da idade, sexo ou de suas características
gerais, realizavam, em histórias diferentes, as mesmas ações, que
ele chamava “funções”. Estudando os contos russos, ele classifi-
cou trinta e uma funções e sete personagens, cada qual com a sua
esfera de ação: o antagonista; o doador; o auxiliar; a princesa e seu Vladimir Propp
pai; o mandatário; o herói e o falso herói (PROPP, 1978). Quanto Foi um académico es-
às funções, podemos exemplificar uma delas com qualquer conto truturalista russo
(1895-1970). Analisou
de fadas. Em todos eles, existe a presença de um herói e uma inter- os componentes bási-
dição que não pode ser infringida: cos do enredo dos
contos populares rus-
sos visando identificar
Chapeuzinho não devia passar pelo bosque ao ir à casa da vovó. os seus elementos nar-
Os cabritinhos não podiam abrir a porta, também por causa rativos mais simples e
do lobo que rondava as redondezas. E quantas outras... e indivisíveis.

quantas diversas interdições: não olhar para trás, não falar com
ninguém, não provar do fruto de tal ou qual árvore, etc...,
etc..., etc..., vestimentas diferentes para uma mesma “função”,
conforme a terminologia proppiana (REIS, 1984, p. 16).

Essa função, para falar como Propp, pode ser vista também em
muitos filmes e telenovelas, cujas histórias geralmente se iniciam
com a interdição de um par amoroso, o qual enfrenta vários obstá-
culos até o desenlace do final feliz.
Propp também tratou das origens do conto, reconhecendo duas
fases em sua evolução: uma primeira, em que o conto se confunde
com o relato sagrado, pois aqui o relato faz parte do ritual religioso,
transformando-se em uma espécie de “amuleto verbal” através do
qual pode “operar magicamente o mundo”; e uma segunda, na qual o
relato sagrado torna-se profano. Nesta segunda fase, os narradores,

167
Teoria da Literatura II

antes sacerdotes ou pessoas mais velhas, passam a ser pessoas co-


muns que, livres do convencionalismo religioso, recebem seu impul-
so de fatores sociais.
Segundo Gotlib (1999, p. 25), Propp seguiu a linha do materi-
alismo marxista ao estudar a origem religiosa dos contos, uma vez
que o rito desaparece quando desaparece a caça como único re-
curso de subsistência. Desse modo, o conto maravilhoso pertence
a um mundo no qual os fenômenos e representações da sociedade
são anteriores às castas. Quando passa a ser patrimônio das clas-
ses dominantes, na Idade Média, é manipulado de cima para bai-
xo. Assim, o teórico reconhece dois tempos nos contos folclóri-
cos russos: antes e depois da Revolução de 1917. Antes era cria-
ção de classes oprimidas, depois passa a ser criação verdadeira-
mente popular.
Quanto ao conto literário, Poe foi o seu primeiro teórico, no
prefácio à reedição da obra Twice-told tales, de Nathaniel
Hawthorne (1804-1864), de 1842, em que desenvolve uma teo-
ria baseada no princípio da “unidade de efeito”, que seria um
estado de excitação ou exaltação da alma. Para o célebre contis-
ta, é preciso dosar a obra para que tal excitação dure um deter-
minado tempo, sendo ela mais diluída ou mais densa dependen-
do de sua extensão, longa ou curta, respectivamente. Assim, para
se conseguir a unidade de efeito, seria necessário que a obra fos-
se lida “de uma assentada”, algo impossível de ocorrer em um
romance longo, por exemplo, ao contrário do conto: “No conto
breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção,
seja ela qual for. Durante a hora da leitura atenta, a alma do
leitor está sob o controle do escritor. Não há nenhuma influên-
cia externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrup-
ção” (apud GOTLIB, p. 34).
Segundo Poe, a principal preocupação de um escritor, ao escre-
ver um conto, é o efeito que pretende causar no leitor, tendo, para
tanto, que calcular detalhadamente todos os elementos narrativos,
dosando-os adequadamente, de modo a atingir o seu objetivo. Mes-

168
O conto literário

mo sendo suas considerações a respeito do conto de ordem geral,


podendo ser aplicadas em qualquer tipo de conto, sua teoria se mos-
tra mais adequada a contos policiais ou de terror, suas duas princi-
10
aula
pais especialidades, pois o efeito singular (single effect), ou unidade de
efeito, é aí mais explícito, uma vez que depende da expectativa do
leitor com relação ao mistério ou suspense que é desvendado, ou
ainda mais reforçado, no final.

O CONTO NO BRASIL

No Brasil, foi nas primeiras décadas do século XIX que apare-


ceram na imprensa os primeiros contos, tendo tal gênero se conso-
lidado com a publicação de Noites na taverna (1855), de Álvares de
Azevedo (1831-1852). Aqui, um grupo de pessoas reunidas em Álvares de Azevedo
uma taverna narram histórias misteriosas e às vezes macabras, em
Escritor brasileiro da
uma atmosfera romântica na qual todos os elementos do chamado segunda geração ro-
“mal do século” se fazem presentes. mântica (1831-1852).
Destaca-se pela facili-
Outro grande contista, talvez o maior de todos, foi Machado dade de aprender lín-
de Assis (1839-1908), que escreveu vários livros de contos, além guas e pelo espírito
jovial e sentimental. A
de romances, poesia, teatro, crônica e crítica literária. O que mais sua obra compreende:
chama a atenção, na contística machadiana, é a sua modernidade, Poesias diversas, Po-
ema do Frade, o drama
isto é, o tratamento metalingüístico que dá a seus contos, uma vez Macári, Noite na Ta-
que está sempre lembrando ao leitor, com quem dialoga diretamen- verna, Cartas, vários
Ensaios, etc.
te, de que tudo não passa de ficção, estratégia que lhe permite des-
vendar e mesmo ironizar os truques narrativos de que se utiliza
para causar certos efeitos. É o que ocorre em contos como Miss
Dollar, no qual discute com o leitor sobre o próprio processo de
construção textual:

Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito


tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro
lado, sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor
obrigado a longas digressões, que encheriam o papel sem
adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentar-
lhes Miss Dollar (ASSIS, 1999, p. 11).

169
Teoria da Literatura II

Já no início do século XX, Lima Barreto (1881-1922) come-


çou a publicar seus contos, os quais foram reunidos na coletânea
Histórias e sonhos (1920). Suas histórias tratam da vida dos bairros
pobres do Rio de Janeiro, denunciando nossa omissão dos proble-
mas sociais e nossa mania de macaquear os costumes estrangei-
ros, como mostrou em seu romance Triste fim de Policarpo Quares-
Lima Barreto ma (1915). Seu estilo simples e direto, sem floreios ou falsos
ornamentos, aliado à sua aguçada visão crítica dos problemas
Escritor carioca (1881-
1922), considerado à sua sociais brasileiros, o colocam não somente como um dos mais
época como o sucessor consistentes escritores de nossa literatura, mas também como
de Machado de Assis,
mas que teve a candida- uma espécie de precursor da rebeldia modernista dos anos de
tura recusada pela Aca-
demia Brasileira de Le- 1920 e 1930. Um bom exemplo de sua contística é O homem que
tras. Escreveu O homem sabia javanês, no qual satiriza, caricaturizando, a pose e o status
que sabia javanês e Tris-
te fim de Policarpo Qua- do homem de letras brasileiro, ilustrado por um malandro que fin-
resma (1916).
ge saber o javanês para conseguir um emprego e ficar famoso,
uma vez que era um dos únicos tradutores de javanês da cidade.
Entre os modernistas, dois contistas de São Paulo se sobressa-
em: Mário de Andrade (1893-1945) e Alcântara Machado (1901-
1935). Os contos do primeiro caracterizam-se por uma linguagem
que obedecia ao projeto estético modernista, exposto em seus ma-
nifestos e nos prefácios de suas obras: o uso de coloquialismos e
demais elementos da linguagem oral na língua escrita. Sua primeira
coletânea de contos foi Primeiro andar (1926), mas sua maturidade
como contista foi alcançada com Belazarte (1934) e Contos novos
(1947). O segundo ficou conhecido por transformar em persona-
gem típica o carcamano, isto é, o ítalo-brasileiro tão comum nos
Mário de Andrade subúrbios paulistanos da época. Seu primeiro livro, Brás, Bexiga e
Poeta, romancista, críti- Barra Funda (1927), já apresenta as principais características de sua
co de arte, folclorista,
musicólogo e ensaísta contística: uma linguagem sintética, quase telegráfica, e uma narra-
brasileiro (1893-1945). tiva rápida e cheia de imagens de uma São Paulo urbanizada e in-
Foi uma das figuras
mais proeminentes da dustrializada, povoada de operários e de buzinas de automóvel, bem
Semana de Arte Moder-
na (1922). Publicou Pau- ao gosto modernista.
licéia desvairada (1922) Na década de 1940, dois escritores renovam a linguagem do
e Macunaíma (1928).
conto, bem como do romance: Guimarães Rosa (1908-1967) e

170
O conto literário

Clarice Lispector (1920-1977). Com Sagarana (1946), seu primeiro


livro de contos, Guimarães Rosa faz experimentos de linguagem,
reinventando os falares locais do interior de Minas Gerais e fazen-
10
aula
do experimentalismos sintáticos que fazem com que sua
narrativa pareça um poema em prosa, tamanho o
estranhamento com o qual a linguagem é tratada. Clarice,
por sua vez, estreou no romance, Perto do coração selvagem
(1944), mas escreveu também vários contos, tais como
Laços de família e A imitação da rosa. Neles, encontramos a
recriação do mundo na própria estrutura discursiva do
texto, bem como o devassar da consciência do narrador e
das personagens, em uma espécie de epifania (1). Em Amor,
por exemplo, a dona-de-casa Ana, ao voltar das compras,
em um bonde, vislumbra um cego mascando chiclete, vi-
são que provoca uma mudança súbita em seu comporta- Capa de edição da obra Sagarana,
mento, desligando-a da realidade. Assim, ao chegar ao Jar- de Guimarães Rosa (Fonte: http:/
/www.pco.org.br)
dim Botânico, ela como que renasce, percebendo as plan-
tas e animais de modo diferenciado, como se estivesse em
outro mundo. Nesse conto, de acordo com Gotlib (1999, p. 53), “a
vida lhe vem como a morte, a dor como amor, o sofrimento, como
felicidade, o Inferno, como o Paraíso”.
Seria infindável o número de contistas que teríamos que men-
cionar se quiséssemos dar um panorama completo do conto brasi-
leiro. Não sendo essa nossa intenção, mas simplesmente apresen- Guimarães Rosa
tar os aspectos mais relevantes dos principais contistas de nossa Além de escritor foi tam-
literatura, cabe-nos agora mencionar alguns contistas contempo- bém médico e diploma-
ta (1908-1967). Seus
râneos que mantêm o gênero ativo, apesar do pouco prestígio de contos e romances am-
bientam-se quase todos
que goza atualmente nas listas de best seller e no gosto dos leitores. no chamado sertão bra-
Assim, temos a crueza da narrativa das violências sociais de Ru- sileiro. A sua obra des-
taca-se, sobretudo, pe-
bem Fonseca (1925-); o realismo às vezes fantástico de Ignácio las inovações de lin-
de Loyola Brandão (1936-); o experimentalismo lingüístico de guagem, sendo marca-
da pela influência de fa-
Nélida Piñon (1937-); as sutilezas psicológicas e a crítica social lares populares e regio-
nais tais como Grande
de Caio Fernando Abreu (1948-1996) e de João Gilberto Noll Sertão:Veredas (1956) e
(1946); e finalmente o estilo envolvente e os experimentalismos Sagarana (1946).

171
Teoria da Literatura II

sintáticos e narrativos de dois contistas sergipanos: Antonio


Carlos Viana, que tem um conto seu entre os Cem melhores contos
do século XX, antologia organizada por Ítalo Moricone e publicada
pela editora Objetiva, juntamente com Machado de Assis, e a
contística de Jeová Santana.

Antônio Carlos Viana, contista sergipanao (Fonte: http://www.jornaldacidade.net).

172
O conto literário

P oderíamos dizer, em princípio, que o conto enquanto


10
gênero literário se caracteriza por ser uma peça narrativa
aula
curta – “longo o romance, curto o conto e a novela um meio termo
entre os dois”, escreveu Bandeira (1940), em suas Noções de história
das literaturas –, apresentando como seus prin-
cipais elementos, além daqueles típicos de
CONCLUSÃO
uma obra narrativa – o narrador e uma histó-
ria a ser contada –, a concisão e a brevidade.
Nesse sentido, todo escritor, ao escrever um conto, pensa na ex-
tensão de sua narrativa, uma vez que não pode demorar-se em di-
gressões ou descrições características do romance. Assim, busca con-
duzir a sua história de modo que o princípio da economia se torne
preponderante, ao mesmo tempo em que procura dotar de profundi-
dade ao pouco que narra. Tudo para causar no leitor um efeito único,
ou uma unidade de efeito, para falar como Poe.
Apesar de muitas tentativas de alguns teóricos no sentido de
prescrever as regras do bom conto, não há qualquer receita ou mo-
delo ideal para se escrever um conto. As mais variadas formas já
foram experimentadas, desde as mais tradicionais, com início, meio
e fim, e com unidade de ação, tempo e espaço, como queria Aristóte-
les com relação à tragédia, até as mais contemporâneas, que se mis-
turam com gêneros outros, como o drama ou anúncios de jornal –
caso do carioca Artur Oscar Lopes, em seu livro Notícias (1969) –, ou
se reduzem, às vezes, à extensão de um pequeno parágrafo, como
alguns contos do sergipano Jeová Santana. Os focos narrativos são
vários, bem como o estilo ou a linguagem utilizada. A subversão da
cronologia e das noções tradicionais de espaço e tempo, como vi-
mos na Aula 8, fizeram com que as histórias fossem contadas das
maneiras mais inusitadas.
Desse modo, para usar de uma expressão de Gotlib (1999, p.
82), cada conto é um caso, pois cada qual representa um modo
peculiar de narrar, que, por sua vez, é característico de seu respec-
tivo contexto sócio-histórico, isto é, de suas condições materiais de
produção, circulação e recepção.

173
Teoria da Literatura II

Muito embora encontremos, ainda hoje, contos que seguem o


modelo narrativo tradicional, com começo, meio e fim, a tendên-
cia, por assim dizer, mais ostensiva, do século XX em diante – e
com algumas exceções do século XIX, como Machado –, é a ambi-
güidade, a pluralidade de significados possíveis que a narrativa su-
gere, daí o lugar preponderante que a figura do leitor tem desempe-
nhado, nas últimas décadas, na Teoria Literária, assim como as prá-
ticas materiais de leitura, que muitas vezes interferem no próprio
processo de construção do sentido dos textos.
Esperamos que você, depois desta aula, fique curioso para se
aventurar na leitura de nossos contistas, bem como de contistas es-
trangeiros, experimentando o prazer da leitura de “uma assentada”,
prazer este que não se reduz ao mero entretenimento, mas também
se refere aos percursos tortuosos
que nosso entendimento tem que
passar para chegarmos a interpre-
tações possíveis do material lido.
A literatura, diferente de outros
meios, proporciona um prazer
mais difícil, pela própria nature-
za da linguagem, matéria-prima
de que é feita, que nos obriga a
decifrá-la e internalizá-la, em um
processo reflexivo que nos faz
objeto da própria leitura. Não é
à toa que dizem que, quando le-
mos, também somos lidos.

A leitura, pastel sobre papel de Pierre-Auguste Renoir, 1889 (Fonte:


http://upload.wikimedia.org).

174
O conto literário

RESUMO

Nesta aula, vimos que a prática sócio-cultural do contar


10
aula
histórias é tão antiga quanto a própria civilização, e que
cada sociedade, assim como cada época específica, tem sua
própria maneira de contar histórias, isto é, sua própria estrutura
narrativa. Desse modo, aprendemos que, com o advento da cultu-
ra escrita, os contos, antes uma criação coletiva da linguagem –
no mais das vezes, oral –, assumiram um caráter artístico-literá-
rio. Em seguida, baseados nas posições dos principais teóricos
como gênero literário, tivemos a oportunidade de notar que há
elementos através dos quais podemos identificar a distinção entre
o conto popular e o conto literário, observando as mais relevantes
características deste. Para tanto, foram de suma importância al-
guns conceitos de Jolles, Propp e Poe. Na última parte da aula,
conhecemos os aspectos mais marcantes da contística de alguns
autores brasileiros, do século XIX aos dias atuais, buscando ilus-
trar, em alguns casos, como os autores lidam com a estrutura nar-
rativa do conto. Coube especial destaque a Machado de Assis,
que, mesmo sendo um autor do século XIX, pôde ironizar e ques-
tionar as estratégias narrativas tradicionais, através da
metalinguagem. Com esta aula, esperamos que você tenha enten-
dido que não existe uma receita certa para se escrever um conto, e
que não há regras a serem obedecidas em sua composição, uma
vez que cada conto responde pelas condições materiais em que
foi produzido e lido, as quais inscrevem-se em sua própria forma,
ou seja, na maneira mesma como a história é contada.

175
Teoria da Literatura II

ATIVIDADES

Responda às seguintes questões referentes ao texto desta aula:


1. Como podemos diferenciar um conto popular de um conto literário?
2. Quais seriam as principais características do conto literário?
3. Leia o conto O gato preto, de Edgar Allan Poe, e procure identifi-
car as estratégias utilizadas pelo autor para causar um “efeito úni-
co” no leitor.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Antes de fazer esta atividade, o tutor deverá aproveitar-se da
experiência de leitura dos alunos, através de fóruns ou de chats,
buscando ver que tipo de contos, populares ou literários, eles já
leram. É bom que os exemplos possam ser substituídos por outros
mais próximos do alunado, podendo ser utilizados filmes que fazem
adaptação de contos. Na leitura do conto de Edgar Allan Poe, de
muito fácil acesso, inclusive na Internet, o tutor deverá atentar
para as sutilezas narrativas características do autor, bem como
para as estratégias discursivas que causam espanto ou suspense,
contribuindo assim para a conformação do seu “efeito único”.

REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Contos fluminenses. 2 ed. São Paulo: Ática, 1999.
BANDEIRA, Manuel. Noções de História das Literaturas. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940.
GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do conto. 9 ed. São Paulo: Ática, 1999.
JOLLES, André. Formas simples. Tradução: Álvaro Cabral. São
Paulo: Cultrix, 1976.
PROPP, V. Morfologia do conto. Tradução: Jaime Ferreira e Vítor
Oliveira. Lisboa: Editorial Veja, 1978.
REIS, Luzia de Maria R. O que é conto. São Paulo: Brasiliense, 1984.

176
LITERATURA E HISTÓRIA:
REPRESENTAÇÕES DA ESCOLA NA LITERATURA
BRASILEIRA DO SÉCULO XIX
11
aula
MET
METAA
Apresentar, com o exemplo das
representações da escola na
literatura brasileira do século XIX, as
relações entre Literatura e História.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno
deverá: identificar o modo como o
discurso literário se faz atravessar
pelo discurso histórico; e
apreender a maneira pela qual
algumas narrativas literárias do
século XIX dão conta do processo
de institucionalização do ensino de
Primeiras Letras no Brasil.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá ter noções sobre a
problemática do conceito de
Literatura; sobre a tradição da
narrativa, da epopéia ao romance;
e noções sobre foco narrativo.

Capa de O Atheneu, de Raul Pompéia (Fonte:


http://www.bigpen.com.br).
Teoria da Literatura II

O lá, caro aluno. Na aula de hoje, veremos que dentre


as representações da escola na literatura brasileira do
século XIX, três são bastante significativas, embora não possam
ser consideradas, a rigor, e a despeito do seu estatuto literário, “tes-
temunhos” ou “documentos” de época, pois em si mesmas consti-
tuem interpretações históricas de seus auto-
INTRODUÇÃO res, que ambientaram seus relatos algumas dé-
cadas antes do momento de sua produção e
publicação. Tais representações, em seus diferentes universos
ficcionais, sugerem aspectos muito peculiares do processo de
institucionalização do ensino de Primeiras Letras no Brasil, for-
necendo-nos também elementos suficientes para repensarmos
certos consensos e lugares-comuns acerca da escola no Brasil
oitocentista.
A primeira dessas representações encontra-se nas Memórias de
um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida (1831-
1861), obra publicada inicialmente no rodapé do Correio Mercantil
entre junho de 1852 e julho de 1853, e depois em dois volumes,
um saído em 1854 e outro em 1855. A segunda é o Conto de Escola,
de Machado de Assis (1839-1908), publicado em 1896 na coletâ-
nea Várias Histórias; e a terceira, apesar de não tratar especifica-
mente do ensino de Primeiras Letras, mas da Instrução Secundá-
ria, faz algumas referências àquele tipo de ensino: O Atheneu (1888),
de Raul Pompéia (1863-1895).
Nesta aula, teremos oportunidade de observar a íntima relação
entre Literatura e História, verificando como esta, inscrevendo-se
naquela, se faz representar nas obras referidas.

178
Literatura e História

N um romantismo que, quando não fantasiava o ambi- 11


o contexto literário de sua época, caracterizado por

aula
ente aristocrático dos saraus e bailes da “boa” sociedade fluminense,
buscava inventar uma tradição nacional baseada na omissão estra-
tégica da escravidão – o indianismo –, o romance de Manuel Antô-
nio de Almeida foge um pouco à regra, pois
elege como protagonista um simples sargento
SARGENTO DE
MILÍCIAS
de milícias do “tempo do rei”, isto é, do perío-
do em que o Brasil era governado por D. João VI (1808-1821).
A história de Leonardo, herói um tanto picaresco que teve
a infância marcada pelo abandono, aos pontapés, do pai de mes-
mo nome – um sargento de milícias traído pela esposa –, e a
adolescência sustentada pelo paciente padrinho – um barbeiro
que sonha para o afilhado um futuro em Coimbra, mas que só
consegue, com o auxílio da “comadre” e do Major Vidigal, esta
uma personagem ao mesmo tempo histórica e ficcional, fazê-
lo sargento de milícias, como o pai –, é povoada de cenas de
costumes de uma classe intermediária entre os pólos extremos
dos senhores das casas grandes e sobrados e os escravos e ne-
gros forros das senzalas e mocambos: a dos mestiços e brancos
remediados, uns pequenos comerciantes, outros artífices ou
baixos funcionários públicos, típicos representantes dos iníci-
os da vida urbana brasileira (FREYRE, 1951).
O capítulo que nos aqui interessa é o XII, intitulado Entrada
para a Escola, no qual o narrador, pedindo licença ao seu
interlocutor, num procedimento que iria ser desenvolvido e
radicalizado por Machado de Assis algumas décadas mais tarde,
passa silenciosamente sobre alguns anos da vida do “nosso me-
morando, para não cansar o leitor repetindo a história de mil
travessuras de menino no gênero das que já se conhecem”
(ALMEIDA, 1993, p. 38), e refere-se aos primeiros progressos
de Leonardo no “A B C”.
Tendo o protagonista conseguido soletrar alguma coisa na mis-
sa, o padrinho, que o havia ensinado pacientemente, vislumbra um

179
Teoria da Literatura II

futuro eclesiástico para o afilhado, como que cego às suas diabru-


ras e às reclamações da vizinha e da comadre. Assim, vai falar ao
mestre, que morava em uma casa da Rua da Vala, “pequena e escu-
ra”. A descrição da sala onde o mestre dava suas lições enumera os
parcos itens do mobiliário escolar da época, carregando um pouco
as tintas no seu caráter decadente:

Foi o barbeiro recebido na sala, que era mobiliada por quatro


ou cinco longos bancos de pinho sujos já pelo uso, uma
mesa pequena que pertencia ao mestre, e outra maior onde
escreviam os discípulos, toda cheia de pequenos buracos
para os tinteiros; nas paredes e no teto havia penduradas
uma porção enorme de gaiolas de todos os tamanhos e
feitios, dentro das quais pulavam e cantavam passarinhos
de diversas qualidades: era a paixão predileta do pedagogo
(ALMEIDA, 1993, p. 39).

Já no trecho acima podemos notar a figuração satíri-


ca que o narrador esboça do mestre, chamado-o ironica-
mente de “pedagogo” no momento em que comenta seu
gosto pelos passarinhos. No debate que antecedeu a pu-
blicação da lei de 15 de outubro de 1827, a redação ori-
Ilustração representando Sérgio, no
Atheneu, com mobiliário da época.(Fonte:
ginal do artigo primeiro – “Haverão escolas de primeiras
POMPÉIA, Raul. O Atheneu. São Paulo: letras, que se chamarão pedagogias em todas as cidades,
àtica, 1994, p. 146).
vilas e lugares mais populosos do Império” – foi motivo
de uma longa discussão. Na sessão de 10 de julho, o médico baiano
Antonio Ferreira França (1775-1848) afirmava que “Pedagogia é
nome grego, e quer dizer guia de meninos, a maior parte da popula-
ção não entende o que ele quer dizer, e talvez por esta razão mere-
ça ser rejeitado”. Pedia, assim, a mudança do nome de pedagogia
para “primeiras letras” (BRASIL, 1982).
Desse modo, mesmo entre os intelectuais dos primeiros tem-
pos do Império brasileiro, o termo “pedagogo” não era de uso co-
mum, não constando inclusive dos dicionários da Língua Portugue-
sa. Assim, quando o narrador, contando uma história que se passa

180
Literatura e História

“no tempo do rei”, qualifica o mestre-escola como “pedagogo”,


mesmo quando se leva em conta a época da primeira publicação
das Memórias de um Sargento de Milícias – meados do século XIX –, há
11
aula
uma intensa carga de ironia, dadas as circunstâncias em que a per-
sonagem é apresentada.
No parágrafo seguinte, a figura do mestre-escola assume tra-
ços caricaturais, tanto em seu aspecto físico quanto profissional,
pois é descrita como “um homem todo em proporções
infinitesimais, baixinho, magrinho, de carinha estreita e chupada,
excessivamente calvo”. Como se não bastasse, “usava de óculos”
e “tinha pretensões de latinista” (ALMEIDA, 1993, p. 39). Mes-
mo assim, o mestre era dos mais acreditados da cidade, não tanto
pelo seu pretenso latinismo, mas pela generosa quantidade de bolos
que distribuía entre seus discípulos.
Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), deputado pela
província de Minas Gerais à época da discussão da Lei de 15 de
outubro de 1827, propôs um artigo aditivo pelo qual os mestres
ficassem proibidos a exercer “todo o castigo corporal”. O brigadei-
ro Raimundo José da Cunha Matos, representante de Goiás, em
conformidade com a proposta do colega, argumentava na ocasião:
“à mocidade ensina-se por boas maneiras; é pelos estímulos de brio
e honra que eles se adiantam; é pelo methodo de Lancaster, pelo
methodo chinês, brâmane e árabe que se educam, e não à força de
pancada que os torna sem vergonha, malhadiços e incorrigíveis”.
Para ilustrar seu discurso, contou uma anedota sobre um excêntrico
inglês que tentava ensinar a perus e porcos a contradança, com isso
torturando-os. Sendo um “benevolo xerife” informado de tais vio-
lências, o excêntrico foi multado. No final de sua história, o depu-
tado teve apoio geral (BRASIL, 1982).
O contrário pensava Antonio Francisco de Paula de Holanda
Cavalcanti de Albuquerque (1797-1863), deputado pela província
de Pernambuco, que defendia a palmatória, afirmando: “quem qui-
ser ensinar com ela, que ensine”, no que José Bernardino Batista
Pereira (1783-1861), deputado pelo Espírito Santo, fez um longo

181
Teoria da Literatura II

discurso citando Montaigne, Teodorico e Lancaster,


sendo apoiado geralmente. Ao declarar que “nós
estamos em um século de luzes, caridade e filantropia”,
Cunha Mattos citava o caso dos franceses, cujas tro-
pas “não conhecem castigo de pau”, e dos ingleses,
que “estão agora discutindo no parlamento a lei para
se acabarem os açoites nos soldados”, finalizando as-
sim a discussão (BRASIL, 1982). Os castigos escola-
res, embora fossem censurados pela maioria dos polí-
ticos e pedagogistas da época, se mantiveram durante
todo o período imperial e parte do século seguinte, sub-
sistindo até recentemente em zonas rurais, principal-
mente entre os professores de Primeiras Letras.
O barbeiro e seu afilhado tinham ido à escola na
hora da tabuada cantada, “uma espécie de ladainha
de números que se usava então nos colégios”, a qual
se praticava todos os sábados. Apesar de o narrador
considerar aquilo “uma espécie de cantochão monó-
tono e insuportável”, os meninos gostavam muito.
Assim, vestidos – “quase todos” – de “jaqueta ou
robissões de lila, calças de brim escuro e munidos de
Palmatória de 5 olhos, antigamente utilizada
para disciplinar os alunos (Fonte: http:// uma pasta de couro ou de papelão pendurada a tira-
pasteldevouzela.blogspot.com).
colo”, suas vozes misturavam-se ao canto dos passa-
rinhos na maior algazarra, enquanto o mestre, com uma enorme
palmatória à mão, escutava tudo impassível, atento ao menor erro,
que se fosse cometido era por ele emendado e corrigido com uma
puxada de pelo menos seis bolos. A cena assume contornos ainda
mais cômicos quando o narrador o compara a um regente de or-
questra (ALMEIDA, 1993, p. 39).
Ao apresentar seu afilhado ao mestre, o padrinho diz que ele
tem boa memória e que já soletra alguma coisa, acrescentando
que não haveria de lhe dar trabalho, no que o mestre responde,
brandindo a palmatória, que qualquer trabalho que ele desse, ali
estava a “santa férula” como remédio. O menino, mesmo assusta-

182
Literatura e História

do com a situação, e já prestes a sair pela porta da rua, é chamado


para tomar a benção do mestre.
Na segunda-feira, Leonardo vai à escola acompanhado do
11
aula
padrinho, que o leva até a porta com todo seu “material esco-
lar”: pasta a tiracolo, lousa de escrever e tinteiro de chifre.
Todavia, seu comportamento inquieto o faz apanhar
logo no primeiro dia de aula, levando-o a pedir ao
padrinho, ao meio-dia, que não voltasse lá à tarde.
Com muita insistência, e à custa de muita promessa,
o padrinho consegue que o menino freqüente a es-
cola durante dois anos, resistindo a todos os casti-
gos a que era submetido, como ficar de joelhos a
poucos passos do mestre.
Leonardo larga os estudos lendo muito mal e escre-
vendo ainda pior. Quando passa a ir sozinho à escola,
torna-se rebelde em relação ao mestre, chegando a rir quan-
do este ralhava e a vender tudo aos colegas, mesmo “um
lápis, uma pena, um registo”. Ao cabo de alguns meses,
ganha o apelido de “gazeta-mor da escola”, o que, segun-
do o narrador, também queria dizer “apanha-bolos-mor”
(ALMEIDA, 1993, p. 41).
Ilustração representando a chegada de Sér-
CONTO DE ESCOLA gio ao Atheneu (Fonte: POMPÉIA, Raul.
O Atheneu. São Paulo: àtica, 1994, p. 13).

Já no conto de Machado de Assis, a escola era “um sobradinho


de grade de pau”, e “o ano era de 1840”, no fim da Regência,
período de “grande agitação pública”. Aqui, o narrador – que nes-
se conto não dialoga abertamente com o leitor – conta a história
em primeira pessoa, como se rememorasse o tempo de menino,
aos dez anos de idade. Seu pai, um “ríspido e intolerante” empre-
gado do Arsenal de Guerra cujas sovas doíam por muito tempo,
sonhava para o filho uma carreira comercial, que teria início com
uma posição de caixeiro, tão logo o pequeno aprendesse “os ele-
mentos mercantis, ler, escrever e contar” (ASSIS, 2000, p. 31).

183
Teoria da Literatura II

Hesitando entre brincar no morro de S.


Diogo ou no campo de Sant’Ana, Pilar, o
narrador, que “não era um menino de virtudes”,
decide ir à escola, para que não se repetisse a
surra da semana anterior, quando o pai desco-
briu que ele “tinha feito dois suetos”. Apres-
sando-se, consegue subir a escada com caute-
la e chegar à sala alguns minutos antes do
mestre, Policarpo, que “tinha perto de cinqüen-
ta anos ou mais” e se apresenta “com o andar
manso do costume, em chinelas de cordovão,
com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça
branca e tesa e grande colarinho caído” (AS-
SIS, 2000, p. 31).
Caricatura de um mestre-escola
(Fonte: http://img20.exs.cx). Nota-se, aqui, a caracterização de um
mestre-escola de meia-idade, já experiente,
cuja condição sócio-econômica se deixa mostrar pelo aspecto
modesto e quase humilde de sua indumentária, que se harmoni-
za com seu próprio “andar manso”. Conforme o artigo terceiro
da Lei de 15 de outubro de 1827, os presidentes das províncias,
em Conselho, taxariam interinamente os ordenados dos profes-
sores, regulando-os de duzentos a quinhentos mil réis anuais,
dependendo das circunstâncias locais, e os submeteriam à As-
sembléia Geral para aprovação final (BRASIL, 1878).
No conto de Machado, a atmosfera da lição de “escrita” é atra-
vessada pela tensão de três personagens: Raimundo, o narrador e
Curvelo. O primeiro pede insistentemente ao “Seu Pilar” que lhe
explique um ponto de sintaxe em troca de uma reluzente moedinha
de prata “do tempo do Rei”, algo arriscado para ser negociado sob
as vistas do mestre – que era mais cruel com Raimundo por ser pai
dele –, mas que parecia possível enquanto Policarpo lia com inte-
resse as folhas do dia: “pode ser que alguma vez as paixões políti-
cas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra corre-
ção”. Contudo, não contavam os dois meninos com a astúcia de

184
Literatura e História

Curvelo, que os observa e denuncia ao mestre, fazendo com que


sua aventura termine com uma solene sessão de bolos: 11
aula
Estendi-lhe a mão direita, e fui recebendo os bolos uns por
cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as
palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a
mesma cousa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze
bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-
vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o
negócio, apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar
para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! Tratantes!
Faltos de brio! (ASSIS, 2000, p. 36).

Ao contrário de Raimundo, que mesmo sendo filho do mestre “gas-


tava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou
cinqüenta minutos”, Pilar é “dos mais adiantados da escola”, e tam-
bém dos mais inteligentes, sempre acabando a lição de escrita antes de
todo mundo para passar o resto do tempo recortando narizes “no papel
ou na tábua”, inclusive o do mestre, numa “ocupação sem nobreza
nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua” (ASSIS, 2000, p. 32).
A lição de escrita parece demandar a ocupação apenas dos
discípulos, pois enquanto estes estão trabalhando, “no papel ou
na tábua”, o mestre cheira seu rapé, assoa o nariz e continua sua
leitura entusiástica das folhas do dia. O tédio quebra-se apenas
com a sessão de bolos. Ao terminar sua atividade, Pilar sente-se
arrependido de ter ido à escola, principalmente ao olhar pela ja-
nela – sobre cujo portal a palmatória estava pendurada “com seus
cinco olhos do diabo”, pela qual podia ver no céu azul, por cima do
morro, um papagaio de papel:

Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava


o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios,
o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina
flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de
desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul
do céu, por cima do Morro do Livramento, um papagaio

185
Teoria da Literatura II

de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que


bojava no ar, uma cousa soberba. Eu na escola, sentado,
pernas unidas, com o livro de leitura e gramática nos joelhos
(ASSIS, 2000, p. 32).

Depois da sessão de bolos, Curvelo parece arrependido de sua


atitude, lendo pálida e nervosamente. O narrador, por sua vez, jura
que vai “quebrar-lhe a cara” na hora da saída, algo que não ocorre
porque o delator escapa, escondendo-se e faltando à escola de tar-
de. Em casa, depois de mentir à mãe, dizendo que as mãos esta-
vam inchadas por não ter sabido a lição, dorme e sonha com a
moeda, à procura da qual sai no outro dia de manhã, de calças
novas, a caminho da escola. Não achando a moeda, Pilar toma
direção oposta ao sobradinho de grade de pau, acompanhando
uma companhia do batalhão de fuzileiros, e termina a manhã na
Praia da Gamboa, de onde volta para casa com as calças novas
enxovalhadas, “sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma”.
Da escola, só mesmo a lembrança de dois conhecimentos, adquiri-
dos não com o mestre, mas com Raimundo e Curvelo: a corrupção
Raul Pompéia e a delação (ASSIS, 2000, p. 37).

Escritor brasileiro (1863-


1895).Ainda jovem, no O ATHENEU
colégio, distinguiu-se
como aluno estudioso,
bom desenhista e cari- A história de O Atheneu também é narrada pelo protagonista,
caturista. Prosseguiu
Sérgio, que rememora sua experiência escolar aos “onze anos”. Tido
seus estudos no Colé-
gio Pedro II e publicou como roman à clef, no qual a semelhança com pessoas reais não é
em 1880 seu primeiro
mera coincidência, mas resultado da intenção do autor, o romance
romance, Uma tragédia
no Amazonas. Em 1881, de Raul Pompéia faz referências diretas e indiretas a muitos even-
matriculou-se na Facul-
tos e personalidades da época, não se restringindo à figura do céle-
dade de Direito de São
Paulo, participando bre pedagogo baiano Barão de Macaúbas (1), sugerida com traços
das correntes de van-
caricaturais na personagem do Dr. Aristarco Argolo de Ramos, di-
guarda, materialistas e
positivistas, fundal- retor do estabelecimento que dá nome ao livro, “da conhecida fa-
mentamente visavam a
mília do Visconde de Ramos, do Norte”, que “enchia o Império
abolição da escravatu-
ra e à República. com o seu renome de pedagogo” (POMPÉIA, 1991: 15).

186
Literatura e História

A parte do romance que


aqui interessa é o primeiro
capítulo, no qual o narrador
11
aula
escreve sobre a experiência
escolar anterior à sua vida
de interno naquele estabe-
lecimento onde iria “encon-
trar o mundo”, tal como ha-
via dito seu pai, à porta do
Atheneu. Sérgio nos infor-
ma que havia freqüentado
Fotografia do Barão de Macaúbas, médico e
educador brasileiro (Fonte: http:// como externo, durante al-
upload.wikimedia.org).
guns meses, “uma escola fa-
miliar do Caminho Novo, onde algumas senhoras inglesas, sob a
direção do pai, distribuíam educação à infância como melhor lhes
parecia” (POMPÉIA, 1991, p. 13).
O narrador, segundo nos conta, entrava às nove horas e boce-
java até as duas, “ignorando as lições com a maior regularidade”.
Os bancos, “lustrosos do contato da malandragem de não sei
quantas gerações de pequenos”, eram carcomidos, de pinho e
usados. Das lembranças dos meses de externato, além das figu-
ras de alguns companheiros e dos primeiros palavrões, a mais
marcante era a da merenda do meio-dia: “pão com manteiga”
(POMPÉIA, 1991, p. 13-14).
Depois do externato, teve “um professor em domicílio”, num
“ensaio da vida escolar” que em nada se assemelhava com o mo-
mento de “verdadeira provação” que estava por vir, no colégio,
onde seria o protagonista iniciado no “ensino superior de primeiras
letras”. O internato, com efeito, representa para o narrador o início
de uma nova fase de sua vida, na qual teria de entrar com prejuízo
de sua infância no seio da família. Como afirma Campos (2001), o
ambiente escolar do colégio, nesse contexto, representava uma pre-
paração para a vida em sociedade:

187
Teoria da Literatura II

Essa preparação consistia em expor os educandos a situações


equivalentes às que existiam no mundo adulto. Corrupção,
tirania, humilhação, intriga e seduções perversas deviam ser
arrostadas pelos meninos naquela miniatura do mundo
chamada internato, para que se preparassem devidamente
para a vida futura, quando partissem para o mundo real.
Assim eles haveriam de temperar seu caráter, longe do
carinho familiar o qual, este sim, era nefasto à educação
(CAMPOS, 2001, p. 50).

A família de Sérgio representa uma classe social bem mais ele-


vada que a dos protagonistas dos outros dois relatos aqui em tela, o
que se nota não só pela descrição de seus brinquedos ou pelas ati-
tudes e maneiras de seus pais, mas principalmente pela continuida-
de de seus estudos num respeitável estabelecimento de instrução
secundária, assegurando-lhe condições suficientes para seguir adi-
ante e alcançar os estudos superiores:

Destacada do conchego placentário da dieta caseira, vinha


próximo o momento de se definir a minha individualidade.
Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei
triste os meus brinquedos, antigos já! Os meus queridos
pelotões de chumbo! Espécie de museu militar de todas as
fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força
dos estados, em proporções de microscópio, que eu fazia
formar a combate como uma ameaça tenebrosa ao equilíbrio
do mundo; que eu fazia guerrear em desordenado aperto, –
massa tempestuosa das antipatias geográficas, encontro
definitivo e ebulição dos seculares ódios de fronteira e de
raça, que eu pacificava por fim, com uma facilidade de
Providência Divina, intervindo sabiamente, resolvendo as
Desenhos de Raul Pompéia, representan-
do o prédio interno do internato (acima), pendências pela concórdia promíscua das caixas de pau
Ema (centro), a esposa de Aristarco, e (POMPÉIA, 1991, p. 14).
Aristarco (abaixo) (Fonte: http://
www.colegiosaofrancisco.com.br).

Como se vê, o protagonista de O Atheneu é filho de um burguês


bem situado na sociedade brasileira de fins do século XIX, o que se

188
Literatura e História

nota pelo conforto da casa de sua infância, bem como pelos seus brin-
quedos de menino rico, ou pela escolinha doméstica que freqüentara,
“mais por diversão do que por obrigação” (CAMPOS, 2001, p. 71). À
11
aula
porta do colégio, Sérgio percebe que seus dias de paraíso familiar ti-
nham chegado ao fim, fato que justifica sua reação melancólica ante a
visão do prédio do estabelecimento, que fazia lembrar ao narrador “o
negro Caraça de Minas”, instituição que, tendo sido um mosteiro, na-
queles tempos era famosa por seus métodos educacionais (POMPÉIA,
1991, p. 13).
Sua expulsão do paraíso é marcada simbolicamente pelo corte de
seus “lindos cabelos” louros e cacheados, como se tal fato representas-
se sua entrada no ambiente monossexual do internato, onde seus hábi-
tos ou atitudes delicadas ou femininas teriam que ser podados. Com
efeito, os pais de Sérgio, ao interná-lo no Atheneu, seguiam uma tradi-
ção já consolidada de afastar as crianças do amolecimento do espírito a
que os lares as expunham. A vida em sociedade pedia homens fortes, e
as mães, irmãs ou amiguinhas não deixariam que os meninos pudes-
sem desenvolver esse componente de masculinidade, muito embora,
ao abandonar a família, tivessem que passar por várias experiências
homossexuais, como as experimentadas pelo protagonista do romance
agora em tela (CAMPOS, 2001).

189
Teoria da Literatura II

N ota-se uma característica comum aos três relatos: o


desgosto dos meninos, todos com mais ou menos dez
anos de idade, com relação à escola, lugar de perda de suas liberda-
des e brincadeiras, do que havia de mais precioso em suas existên-
cias. Assim, nas três representações, a es-
CONCLUSÃO cola aparece como uma prisão, um lugar de
coação e repressão pelo qual teriam de sa-
crificar suas vidas.
Mais ainda, os meninos são submetidos a um sacrifício que,
nos três relatos, de nada adiantou. Se, no caso de Leonardo, depois
de dois anos de freqüência, ele se encontrava quase do mesmo jeito
do dia em que entrou, e no de Sérgio as lições eram ignoradas “com
a maior regularidade”, Pilar, dos mais adiantados da sala, parece ter
trazido suas habilidades de casa, não as tendo aprendido na escola.
Dessa forma, de maneira geral, a escola de Primeiras Letras
é vista pelos narradores, ou pelos autores, como uma instituição
que não realiza os fins a que se propõe, algo que se evidencia
quando Leonardo sai da escola com os rudimentos aprendidos
com seu padrinho, em casa, ou quando Sérgio, antes de se iniciar
nos estudos secundários, tem que se submeter a um “ensino su-
perior de primeiras letras”, como se as noções elementares com
as quais deveria entrar no colégio ainda não fossem satisfatórias.
Um aspecto marcante da escola brasileira de Primeiras Letras,
no século XIX, é o seu caráter rudimentar, tanto dos mestres, mal
qualificados e mal remunerados – como sugerem ironicamente
Almeida e Machado em suas narrativas –, quanto do próprio espa-
ço físico, que era geralmente a residência do professor, quando este
não dava aula a domicílio, mesmo quando essa residência, já no
final do século, se travestia de “uma escola familiar”, como no caso
do narrador Sérgio.
Com efeito, apesar de começar a ser configurado por volta da
década de cinqüenta do século XVI, no chamado “período herói-
co” da ação educativa dos jesuítas, com a política de aldeamentos
do Padre Manuel da Nóbrega, o processo de escolarização do ensi-

190
Literatura e História

no de Primeiras Letras, no Brasil, andou a passos muito lentos. A


ação jesuítica, nesse setor, proporcionou a configuração de alguns
componentes de tal processo, dada a sua preocupação com as cri-
11
aula
anças, ou curumins, e com o espaço, a “casa de meninos”. Mas a
partir do seu período de expansão, na década de sessenta, graças
ao financiamento possibilitado pela instituição da “redízima”,
os inacianos se concentraram na criação e manutenção dos co-
légios, nos quais se ensinavam as matérias preparatórias à car-
reira eclesiástica ou acadêmica, deixando as Primeiras Letras a car-
go dos mestres particulares.

Pátio do Colégio de São Paulo de Piratininga, fundado pelos jesuítas em 1554 (Fonte:
http://www.arscientia.com.br).

A lei de 1772 já previa vários elementos da escolarização,


pois, além de institucionalizar a figura do mestre régio, regulava a
idade escolar, os conteúdos ensinados e os compêndios a serem
usados. Embora o tempo fosse também previsto, o espaço ainda
era indefinido, sendo reunidas as classes nas próprias casas dos
professores. O mesmo ocorria, vale a pena ressaltar, com os jesu-
ítas, pois as “casas de meninos” serviam, ao mesmo tempo, de
escola, dormitório, refeitório e enfermaria.

191
Teoria da Literatura II

As Primeiras Letras voltariam a ser objeto de legislação somen-


te em 1827, quando saiu a Lei de 15 de outubro, única tentativa de
regulamentação da instrução elementar em nível nacional até 1946.
Tal lei, que foi precedida por um acalorado debate parlamentar no
qual são visíveis as concepções e preconceitos dos intelectuais bra-
sileiros do período sobre a instrução elementar, criou a figura do
Professor de Primeiras Letras, denominação que implicava – ape-
nas na teoria – uma distinção do estatuto social e econômico da
atividade docente, estabelecendo os principais elementos que pos-
sibilitaram o processo de escolarização no Brasil, tais como: sua
administração; financiamento; seleção e remuneração do profes-
sor; os estudos, ou conteúdos ensinados; o método de ensino – o de
Lancaster, ou de “ensino mútuo” (2) – e a instrução das meninas,
além da regulamentação da figura das mestras.
No decorrer do século XIX, principalmente depois do Ato Adi-
cional de 1834, o ensino de Primeiras Letras passou a ser de com-
petência provincial, devendo suas respectivas câmaras elaborar sua
legislação específica. O método de Ensino Mútuo, exigindo das
províncias despesas que ultrapassavam em muito seu limitado or-
çamento, tais como verbas para a construção de prédios adequados
e materiais didáticos, além da preparação de professores, logo foi
posto de lado, bem como outras exigências da lei, que em boa parte
ficou no papel.
Como não havia conexão entre os diferentes níveis ou graus de
ensino, e a idéia de “educação popular”, já defendida por alguns no
final do século, só vingou algumas décadas depois, as “escolas” de
Primeiras Letras – denominação legal que equivalia a “professores
de primeiras letras” – não foram objeto de atenção especial do go-
verno central ou das províncias – que se limitavam a “criar cadei-
ras” e nomear professores, estipulando-lhes seu parco salário –, sendo
marcadas até por sua desnecessidade, razão por que alguns dos es-
critores mais representativos do período tratam da questão, se não
com descaso, como Pompéia, ou em termos satíricos, como Almeida,
com sutil ironia, caso de Machado.

192
Literatura e História

Dessa forma, as representações que os escritores acima referi-


dos fizeram da escola de Primeiras Letras em seus relatos têm mui-
ta coisa em comum. Seu caráter precário, que se apresenta até mes-
11
aula
mo no caso de O Atheneu, no qual o protagonista tinha melhores
condições financeiras, aponta não só para a baixa valorização soci-
al dos professores ou mestres-escola, mas também para o caráter
rudimentar dos espaços escolares, que se confundiam com as resi-
dências daqueles que os dirigiam.
Ademais, se a figura dos professores carece de uma valorização
social, o saber por eles transmitido é sempre posto em dúvida, bem
como sua eficácia, pois os meninos parecem não adquirir os rudi-
mentos do ler, escrever e contar na escola, mas em contextos fami-
liares ou em ambientes outros, incluindo os estabelecimento inclu-
indo o estabelecimen do ler, escrever e contar na escola, mas em
contextos familiares u em lugares outross de Instrução Secundária,
como foi o caso de Sérgio em O Atheneu. Por outro lado, mesmo
sendo lugar de prisão, ou de perda do paraíso da inocência infantil,
as escolas de Primeiras Letras apresentam-se como instâncias a partir
das quais os alunos obtêm os conhecimentos mundanos necessári-
os para a vida em sociedade, com todos os seus fascínios e mazelas,
como Pilar, no conto machadiano, que na escola aprendeu a
corrupção e a delação.

193
Teoria da Literatura II

RESUMO

Nesta aula, vimos que, embora não possam ser consideradas


“testemunhos” ou “documentos” de época, pois em si mes-
mas constituem interpretações históricas de seus autores, que
ambientaram seus relatos algumas décadas antes do momento de
sua produção e publicação, as obras comentadas sugerem aspectos
muito peculiares do processo de institucionalização do ensino de
Primeiras Letras no Brasil. Assim, vimos que a relação entre Litera-
tura e História é muito íntima. Não porque a Literatura, de alguma
forma, “reflete” os eventos históricos que lhe são contemporâneos,
mas porque os contextos sócio-culturais nos quais as obras são pro-
duzidas e dadas a ler se inscrevem nas próprias estruturas narrati-
vas, no caso dos romances e do conto aqui analisados. Nesse senti-
do, apreciar narrativas do século XIX que tratam de um determina-
do tema – em nosso caso, a escola – torna-se um modo de ler e
considerar criticamente a própria História, pois os leitores são con-
frontados com ferramentas mentais ou intelectuais de uma deter-
minada época, representadas pelas expressões e concepções que
produzem a sua ideologia. O cuidado que devemos ter, nesse tipo
de atividade, é para que não transformemos a obra literária em mero
“documento de época”, pois, se assim fosse, poderíamos substituí-
la por qualquer outro tipo de fonte documental. Como profissio-
nais das letras e especialistas em Literatura, precisamos levar em
conta o modo como o discurso literário se faz atravessar pelo dis-
curso histórico, analisando sua relação com as informações – tam-
bém históricas – de que dispomos sobre o tema, de modo a ter uma
visão crítica a respeito de todo esse processo.

194
Literatura e História

ATIVIDADES

Responda às seguintes questões referentes ao texto desta aula:


11
aula
1. Por que a Literatura – no caso, a Literatura do século XIX – não
pode ser considerada como um mero documento de época?
2. Como a escola é representada pelos autores nas obras acima
comentadas?
3. Baseado nas informações obtidas nesta aula, escreva algo sobre
as relações entre Literatura e História.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Antes de fazer esta atividade, o tutor deverá aproveitar-se


da experiência de leitura dos alunos, através de fóruns ou
de chats, buscando ver que concepção os alunos têm a
respeito das relações entre Literatura e História. Em seguida,
deve certificar-se de que os alunos leram os textos aqui
analisados na íntegra, para que possam também trazer
contribuições para o debate. As obras indicadas na
bibliografia podem aprofundar mais as discussões,
melhorando assim o rendimento da aula.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de


milícias. 21 ed. São Paulo: Ática, 1993.
ASSIS, Machado de. Contos. 26 ed. São Paulo: Ática, 2000.
BRASIL. Coleção das Leis do Imperio do Brasil de 1827. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1878.
_______ Annaes do Parlamento Brazileiro. Câmara dos Srs.
Deputados. Segundo anno, 1982.

195
Teoria da Literatura II

CAMPOS, Kleber Garcia. O Atheneu de Charles Dickens: soci-


edade e educação em duas obras literárias do século XIX. Bragança
Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 2 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio. v. 3, 1951.
HAIDAR, Maria de Lourdes Mariotto. O ensino secundário no
império brasileiro. São Paulo: EDUSP / Grijalbo, 1972.
OLIVEIRA, Luiz Eduardo Meneses de. A instituição do ensino das
Línguas Vivas no Brasil: o caso da Língua Inglesa (1809-1890). Tese
de Doutorado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação:
História, Política, Sociedade, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 2006. Disponível: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/
arquivo.php?codArquivo=2255
POMPÉIA, Raul. O Atheneu. São Paulo: FTD, 1991.

196
MACHADO DE ASSIS
E OS INGLESES: 12
UM CASO DE LITERATURA COMPARADA
aula
MET
METAA
Apresentar o campo da literatura
comparada através do exemplo
das relações entre a obra de
Machado de Assis e a literatura
inglesa.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno
deverá: identificar o modo como os
textos literários dialogam entre si,
em uma relação de trocas e/ou
empréstimos; e reconhecer os
trabalhos críticos iniciais que
buscam dar conta de tal relação,
na obra de Machado de Assis.

Machado de Assis, escritor fluminense (1839-


1908), considerado o maior nome da literatura
PRÉ-REQUISITOS brasileira do século XIX. (Fonte: http://
O aluno deverá revisar o conceito www.meusestudos.com).
e classificação dos gêneros
discursivos e de suas relações com
os gêneros literários; ter noções
sobre a tradição da narrativa, da
epopéia ao romance; e noções
sobre as relações entre Literatura
e História.

Laurence Sterne, um dos expoentes do “humoris-


mo britânico” (Fonte: http://lbs.hh.schule.de).
Teoria da Literatura II

A chamada fase realista de Machado de Assis, inaugura


da com a publicação das Memórias Póstumas de Brás
Cubas, em 1881, sempre esteve associada ao influxo dos “humoristas
britânicos” que, juntamente com certos filósofos pessimistas, teri-
am exercido influências estéticas e espirituais no escritor brasileiro.
Com efeito, o narrador daquele romance, no
INTRODUÇÃO prólogo intitulado Ao Leitor, ao revelar a ado-
ção da “forma livre de um Sterne ou de um
Xavier de Maistre”, fala da possível introdução de “algumas
rabugens de pessimismo” na obra (ASSIS, 1992). A crítica, talvez
motivada por tais pistas, não hesitou em caracterizá-la com o humour
sterneano ou com os seus elementos pessimistas, construindo as-
sim, a despeito da escassa fundamentação analítica e da solene
discordância de Sílvio Romero, consensos que se reproduzem até
na historiografia recente da literatura brasileira, com em De Anchieta
Xavier de Maistre a Euclides, onde Brás Cubas é considerado um “romance sterniano”
(MERQUIOR, 1979, p. 166), ou na História Concisa da Literatura
Escritor e militar francês
(1763-1852). Tornou-se Brasileira, em que, a propósito de alguns poemas que teriam prece-
célebre após publicar
dido a segunda fase do autor, alude-se o “pessimismo cósmico de
Viagem em torno do
meu quarto, em 1794. Schopenhauer e Leopardi” (BOSI, 1994, p. 178).
Nesta aula, vamos tentar verificar o modo pelo qual a crítica
brasileira, nos raros momentos em que tratou mais detalhadamente
da questão, se manifestou a respeito das influências da literatura
inglesa sobre o grande mestre das letras nacionais. Para tanto, serão
examinados os dois únicos textos críticos que ultrapassam os limi-
tes do mero assentimento em relação ao referido consenso: Macha-
do de Assis, capítulo IV do tomo quinto da História da Literatura
Brasileira de Sílvio Romero – que é a condensação de um ensaio
originalmente publicado em 1897 – e Machado de Assis: influências
inglesas, refundição, feita em 1949, de um estudo de Eugênio Go-
mes publicado pela primeira vez dez anos antes.

198
Machado de Assis e os ingleses

M ovido por um indisfarçável desejo de desqualificar o


autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas, já consa-
grado na época, Sílvio Romero foi o primeiro – e talvez o único – a
12
aula
discordar do humorismo e do pessimismo de Machado de Assis,
sendo por isso o pioneiro no trato da questão das influências não só
dos humoristas britânicos, mas também dos
filósofos pessimistas. Para o ousado O “HUMOR”
evolucionista sergipano, o humour só podia ser
verdadeiro, ou genuíno, quando se confundia com a “índole” do
escritor, que por sua vez era produto da “psicologia”, da “raça” e
do “meio” do seu povo: “o temperamento, a psicologia do notá-
vel brasileiro não eram os mais próprios para produzir o ‘humour’,
essa particularíssima feição da índole de certos povos. Nossa
raça em geral é incapaz de o produzir espontaneamente”
(ROMERO, 1954, p. 1629). Laurence Sterne
O que havia no “notável brasileiro”, segundo o crítico, era o
Escritor irlandês (1713-
elemento cômico. Este, mais facilmente produzido por nossa raça, 1768). Ficou famoso
nunca poderia ser confundido com o humorístico, posto que “o pelo seu romance A Vida
e as Opiniões do Cava-
cômico ri pelo gosto de rir, porque em tudo sabe farejar o grotes- lheiro Tristram Shandy.
co, enquanto “o humorista ri com melancolia, quando devia cho- Controverso, o livro teve
reações dissonantes
rar; ou chora com chiste, quando devia apenas rir” (ROMERO, entre os escritores da
época, mas o humor
1954, p. 1629).
grosseiro foi bem acei-
Para assegurar os seus argumentos, Sílvio Romero contrapõe al- to pela sociedade lon-
guns dados biográficos de Laurence Sterne, “filho de militar in- drina. Hoje, o livro é
tido como precursor do
glês”, ao “sensato, manso, criterioso e tímido Machado”, asseveran- fluxo de consciência.
do a profunda diferença entre o autor de Brás Cubas e o de Tristram
Shandy. Quanto a uma possível relação entre as obras, não há qual-
quer referência, limitando-se o crítico à menção das cenas mais fa-
mosas criadas pelo romancista inglês, “no dizer dos mestres, verda-
deiras obras-primas”, e à afirmação da disparidade entre as persona-
gens de Sterne, “criações cheias de realidade”, e as do escritor brasi-
leiro, que “jamais ideou nada que lembre os dois irmãos Shandys”.
Sílvio Romero se utilizou dos mesmos pressupostos para descartar
o pessimismo de Machado de Assis. O nosso romancista, não descen-

199
Teoria da Literatura II

dendo das raças arianas, não poderia ser um desencantado à manei-


ra dos verdadeiros pessimistas:

Nós brasileiros somos faladores, desrespeitadores das


conveniências, assaz irrequietos, até onde nos deixa ir nossa
ingênita apatia de meridionais, não somos pessimistas, nem
nos agrada o terrível desencanto de tudo, sob as formas
Arthur Schopenhauer
desesperadoras dos nirvanistas à Buda ou à Schopenhauer
Filósofo alemão (1788- (ROMERO, 1954, p. 1631).
1860). Sua obra princi-
pal é O mundo como
vontade e representa- Não se trata, portanto, de uma crítica propriamente literária,
ção, embora o seu li- pois o que está em causa não é a obra do autor brasileiro em suas
vro Parerga e Parali-
ponema (1851) seja o relações com a do romancista inglês, mas simplesmente a sua su-
mais conhecido. Ficou posta personalidade, no que tem de inferior e incompatível com a
conhecido por seu pes-
simismo. Combateu de Laurence Sterne. Ao que tudo indica, Sílvio Romero nunca lera
fortemente a filosofia o autor de Tristram Shandy, sendo esse talvez o motivo pelo qual
hegeliana e influenciou
fortemente o pensa- não desenvolve suas afirmações, podendo-se supor que as sua opi-
mento de Nietzsche. niões a respeito de Sterne fossem adquiridas de segunda mão.
Hippolyte Adolphe Taine foi um crítico e historiador francês
(1828 – 1893), membro da Academia francesa (cadeira 25: 1878-
1893). O Método de Taine consistia em fazer história e compreender
o homem à luz de três factores: meio ambiente, raça e momento
histórico. Estas teorias foram aplicadas no movimento artístico re-
alista. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Hippolyte_Taine).
Em dissertação de mestrado defendida em 1995 no Departa-
Taine mento de Língua e Literaturas Inglesa e Norte-Americana da Fa-
Crítico e historiador culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
francês (1828-1893). de São Paulo, José Garcez Ghirardi, comentando um “levantamen-
Membro da Academia
francesa. O Método de to breve, mas atento” das referências à literatura inglesa por parte
Taine consistia em fa- dos nossos primeiros críticos (Sílvio Romero, José Veríssimo e
zer história e compreen-
der o homem à luz de três Araripe Jr.), mostra que as menções não decorriam de um exame
factores: meio ambiente, específico dos textos ingleses, pois serviam de simples ilustração
raça e momento históri-
co. Estas teorias foram de argumentos em que as obras e autores eram exemplares, unani-
aplicadas no movimen- memente aceitos, de “boa literatura européia”. Tais referências, via
to artístico realista.
de regra, eram emprestadas da Histoire de la Littérature Française, de

200
Machado de Assis e os ingleses

Hippolyte Taine: “Sua História da Literatura Inglesa, em francês,


tornou-se leitura obrigatória entre os eruditos do Brasil no final do
séc. XIX, uma vez que grande parte do nosso debate literário girava
12
aula
em torno do seu método crítico” (GHIRARDI, 1995, p. 16).
É também curioso notar que os autores ingleses estudados –
ou simplesmente mencionados – pela nossa primeira crítica sejam
os mesmos analisados por críticos franceses como Victor Hugo,
Renan, Saint Beuve, Baudelaire e o próprio Taine, numa coincidên-
cia tanto de córpus quanto de julgamento: “não se encontrará qual-
quer reflexão brasileira sobre qualquer autor inglês que já não se
achasse analisado, anteriormente, por algum crítico na França”
(GHIRARDI, 1995, p.20).
Em 1939, no entanto, muito antes do que o autor da referida
dissertação de mestrado chamou de “ascensão da crítica anglo-ame-
ricana no Brasil”, a propósito da adoção do “new criticism” norte-
americano por Afrânio Coutinho, em Correntes Cruzadas (1953), foi
publicado o estudo Influências Inglesas em Machado de Assis, de Eugê-
nio Gomes. Ampliado e acrescido de novos capítulos, o texto foi
compilado, dez anos depois, na coletânea Espelho Contra Espelho:
estudos e ensaios.
Logo na introdução do seu estudo, o crítico baiano entra em
confronto com os julgamentos de Sílvio Romero, alegando a medi-
ação francesa das opiniões do “valente polemista” sergipano a res-
peito da influência do humour britânico na “obra de maturidade” – e
mesmo no “espírito” – de Machado de Assis: “pelos modos, não
lera o malicioso criador de Tristram Shandy; conhecia-o simplesmente
através de comentários franceses” (GOMES, 1949, p. 11).
No final da mesma introdução, Eugênio Gomes faz alusão a
um caso até hoje mal resolvido pela crítica brasileira: Machado de
Assis teria assimilado as “impressões” e os “influxos” de “alguns
humoristas anglo-saxônios” direta ou indiretamente? O autor ex-
põe três opiniões: a sua própria, segundo a qual Machado teria
entrado em contato direto com o idioma inglês em 1878, ano de
publicação de Iaiá Garcia, no que argumenta: “não parece circuns-

201
Teoria da Literatura II

tância irrelevante a da heroína do romance sempre às voltas com


as suas lições de inglês... Quem sabe se não era o escritor que
estava a tomá-las?”; a de Luís Delfino, para quem Machado teria
travado “relações espirituais” com os “mestres do ‘humour’ britâ-
nico” só em 1882, época em que tomava aulas de inglês com o
mesmo professor de Capistrano de Abreu e Vale Cabral; e a de
Lúcia Miguel Pereira, que afirma que o escritor brasileiro teria “se
familiarizado com os ingleses dez anos antes de se tornar
humorista” (GOMES, 1949, p. 14).
Tal problema, apenas levantado, é logo descartado pelo au-
tor, que está mais preocupado em demonstrar os “traços
evidentíssimos” do humour britânico na obra de Machado de Assis,
não importando se as “fontes inglesas” lhe vieram direta ou in-
diretamente. Assim, o seu estudo analisa a influência
– literária ou “espiritual” – de sete autores ingleses,
os quais são examinados em capítulos às vezes lon-
gos e vigorosos, como os dedicados a Shakespeare e
a Sterne, ou curtos e rasteiros, como os que tratam de
Charles Lamb (1775-1834) e William Makepeace
Thackeray (1811-1863).
O primeiro influxo a ser demonstrado é o do bardo
inglês, fazendo o autor um minucioso levantamento das
citações e referências a Shakespeare na obra de Macha-
do de Assis. Como não poderia deixar de ser, a criação
daquele dramaturgo que mais se faz presente nos con-
tos, romances e crônicas do escritor brasileiro é a peça
Hamlet, cujo monólogo “to be, or not to be”, no dizer de
Eugênio Gomes, “estava sempre no seu pensamento”.
A começar por um conto intitulado To be, or not to
Capa de edição em formato “livro de bol-
so” da obra Iaiá Garcia, de Machado de Assis. be e por uma tradução em verso do mesmo monólogo
atribuída a Machado, além de várias citações da peça
em crônicas suas, o crítico mostra sinais da famosa tragédia em
várias partes da obra de ficção do autor de Quincas Borba (1891).
As referências, contudo, em sua maioria, são meros clichês

202
Machado de Assis e os ingleses

shakepeareanos, chamados por Eugênio Gomes de “condimentos


de erudição”, dentre os quais se sobressai o supracitado monólo-
go e a famosa fala de Hamlet a Horácio: “Há mais mistérios entre
12
aula
o céu e a terra do que sonha a vossa filosofia” – acrescida
(inexplicavelmente, segundo o crítico) do adjetivo “vã” antes de
“filosofia” –, que lhe serve, aliás, de epígrafe no conto A Carto-
mante. Outra cena da peça recorrente na sua obra é a do cemitério,
no enterro de Ofélia, que aparece em uma crônica de 1894, acer-
ca de um pesadelo resultante da leitura do ato final de Hamlet, e
em passagens de Esaú e Jacó e do Memorial de Aires.
Para o crítico, o “humour macabro de Hamlet”, traduzido por
suas concepções e imagens da morte, esteve presente em toda a
fase de maturidade de Machado de Assis, fato que seria comprova-
do por um suposto dado biográfico: “afirmou-se que Machado de
Assis levara consigo um exemplar de Hamlet, quando foi convales-
cer de grave enfermidade em Nova Friburgo, por volta de 1878”
(GOMES, 1949, p. 22).
Quanto às outras peças de Shakespeare, o mesmo tipo de
método é adotado, e assim são encontradas inúmeras menções,
nos romances da segunda fase de Machado, ao ciúme de Otelo, à
cena das bruxas de Macbeth e até a algumas personagens de A
Tempestade. Todavia, a mais curiosa referência se encontra no
conto Curta História, no qual a jovem Cecília, depois de assistir
a uma representação de Romeu e Julieta por uma companhia itali-
ana, tem a sua personalidade transformada. A curiosidade resi-
de no fato de podermos inferir, a partir de tal conto e de algu-
mas referências em suas crônicas ao ator Rossi, “a quem o pú-
blico da metrópole brasileira de então deveu as melhores inter-
pretações de Hamlet, Otelo e outras personagens do gênio inglês,
nesta banda do Atlântico” (GOMES, 1949, p.17), a fonte de
onde se abeberou o nosso romancista maior: as montagens tea-
trais de sua época.
Vale a pena, a esse respeito, lembrar de uma passagem do conto
Auroras sem Dia, citada por Eugênio Gomes, na qual o personagem

203
Teoria da Literatura II

Luís Tinoco é descrito como um sujeito que “respigava nas alheias


produções uma coleção de alusões e nomes literários, com que fazia as
despesas de sua erudição, e não lhe era preciso, por exemplo, ter lido
Shakespeare para falar do ‘to be or not to be’, do balcão de Julieta e das
torturas de Otelo” (GOMES, 1949, p.16).
A próxima influência a ser detectada é a de Jonathan Swift (1667-
1745), que, segundo o autor, teria se manifestado em dois contos
de Machado: O Imortal e O Alienista. O primeiro seria inspirado
pelo capítulo X das Gulliver’s Travels (As viagens de Gulliver), especi-
almente em relação à sua temática: o suplício da vida eterna, com a
diferença de que o escritor brasileiro “exprime uma visão da vida
mais desenganadora que o próprio Swift...” (GOMES, 1949, p.33).
O segundo, por sua vez, teria como modelo o ensaio A serious and
useful scheme to make an hospital for incurables (Um esquema sério e útil
para fazer um hospital para incuráveis), sendo prova de tal inspiração,
dentre outras, o fato de que:

A subvenção da comuna de Itaguaí para a Casa Verde, o


manicômio de Simão Bacamarte, consiste no produto de
uma taxa que, tal qual o imposto sugerido por Swift,
incidindo sobre o artigo mortuário, visa indiretamente à
vaidade humana (GOMES, 1949, p.35).

Eugênio Gomes não deixa de salientar que a sátira de O Alienista


vai mais longe que a de Swift, pois “mistura e confunde, fazendo-
os desaparecer, os limites da razão e da loucura” (GOMES, 1949,
p.37). Nada, porém, é comentado a respeito do acesso que Macha-
do teve à obra de Swift, cujas Viagens de Gulliver só tiveram tradu-
ção brasileira em 1888.
No capítulo dedicado a Henry Fielding (1707-1754), o au-
tor deixa de lado o humour e passa a indicar as influências for-
mais do romance Tom Jones, na concepção e estrutura das Memó-
rias Póstumas e de Quincas Borba. A essa altura, o crítico é muito
convincente ao relacionar o prólogo do narrador Brás Cubas com
o capítulo sobre prólogos que abre o livro XVI de Tom Jones, no

204
Machado de Assis e os ingleses

qual é ressaltado o mérito da brevidade dos prólogos e capítu-


los. Quando trata das inovações técnicas absorvidas por Ma-
chado, lembra o método de divisão de capítulos e livros exposto
12
aula
no capítulo inicial do livro II do romance inglês, que se vê refle-
tido no capítulo CXII de Quincas Borba, além das famo-
sas pausas do narrador e da extravagância dos títulos.
Ainda uma vez, a relação é traçada sem qualquer refe-
rência a dados concretos, ausência que é compensada
quando o crítico passa a falar da influência de Sterne.
Aqui, o autor se mostra preocupado com o modo pelo
qual se deu a assimilação das renovações técnicas
introduzidas pelo romancista inglês no célebre e
pouquíssimo lido Tristram Shandy, admitindo a hipótese
de que Machado tenha apreendido aquele tipo de nar-
rativa entrecortada de observações e digressões através
da leitura das Viagens na Minha Terra, do português
Almeida Garret (1799-1854), que, por sua vez, teria to-
mado conhecimento de Sterne lendo Voyage autour de ma
Chambre, do francês Xavier de Maistre. A sugestão é se- Capa de edição em formato “livro de
bolso” da obra Quincas Borba, de Macha-
guida à risca por José Guilherme Merquior: do de Assis.

Romance sterniano [Brás Cubas], redigido pela prosa errante


e caprichosa de um leitor que as Viagens na Minha Terra
(1846) de Almeida Garret levaram possivelmente ao Voyage
autour de ma Chambre (1795) de Xavier de Maistre, e este,
por sua vez, ao seu próprio modelo – Sterne (MERCHIOR,
1979, p. 166).

Os traços sterneanos encontrados por Eugênio Gomes em Brás


Cubas são vários: o truque dos pontinhos; o ato de advertir, burlar
ou menoscabar o leitor; a intercalação e o desmembramento de ca-
pítulos – técnica, aliás, não adotada por Garret – e até uma curi-
osa relação entre Brás Cubas e Tristram Shandy: o primeiro
narra sua história depois que morre, enquanto o segundo co-
meça a relatar suas memórias antes de nascer.

205
Teoria da Literatura II

Para o crítico, ao invés da sentimentalidade, absor-


vida por Garret, Machado optou por assimilar o seu
humour, o que pode ser indicado pelo número de referên-
cias e alusões que o escritor brasileiro faz à famosa cena
da mosca daquele romance que, a seu ver, aparece trans-
formada em borboleta no Brás Cubas. Outro aspecto do
humour sterneano seria representado pela sovinice ou pela
“generosidade intencional ou provocada à força de lison-
ja”, que também podem ser observadas em Brás Cubas e
em certas passagens de Esaú e Jacó. O modelo, nesse caso,
seria o romance Sentimental Journey (Viagem Sentimental),
apesar de o crítico reconhecer que o humour de Sterne
reside “mais no coração que no cérebro”, enquanto o de
Capa de edição em formato “livro de Machado “aparece eivado, na transplantação, pela taca-
bolso” da obra Memórias Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis. nhice do espírito de interesse e proveito imediato” (GO-
MES, 1949, p.57).
Perfeitamente dispensável é o capítulo dedicado a Charles
Lamb, que ocupa um espaço pouco maior que meia página.
Além da vaga influência do humour e do estilo “leve”, “límpido”
e “conciso”, que entendemos poder ser atribuída a qualquer
escritor, o crítico encontra apenas dois indícios do autor dos
Essays of Elia (Ensaios de Elia) na obra machadiana: a sua lem-
brança no conto O Lapso, “a propósito da sua teoria pela qual a
humanidade se divide em duas partes - a dos que emprestam e
a dos que pedem emprestado” (GOMES, 1949, p.58), e a su-
pressão do seu nome do prólogo das Memórias Póstumas de Brás
Cubas, presente na primeira edição ao lado dos de Sterne e
Xavier de Maistre.
Quando são examinados os influxos de William Makepeace
Thackeray, o autor surpreende ao ver numa obscura novela, Lovel
the Widower (Lovel, o viúvo), não só a sugestão da idéia da narração
póstuma adotada em Brás Cubas, mas também alguns procedimen-
tos formais utilizados pelo romancista brasileiro, como as interrup-
ções reticenciosas ou as freqüentes logomaquias, sintomas da “ti-

206
Machado de Assis e os ingleses

midez”, dos “titubeios” e da “pusilanimidade” do narrador Carlos


Batchelor, precursor inglês do famoso herói machadiano.
Bem mais convincente é o capítulo dedicado a Charles Dickens
12
aula
(1812-1870), último do estudo. O influxo do célebre romancista
vitoriano, segundo o crítico, se manifesta precisamente “na carac-
terização e no arranjo de certas situações” de Dom Casmurro. Para
Eugênio Gomes, a “caricatura moral” que se verifica em Brás Cubas
dá lugar, no Dom Casmurro, à caricatura física, à deformação inten-
cional e ao grotesco. A origem de tal mudança de atitude narrativa,
e de humour, estaria na leitura – ou na assimilação indireta? – do
romance David Copperfield, com o qual a história de Bentinho mos-
tra espantosas afinidades, a começar pela convergência entre os
dois narradores: ambos narram, em primeira pessoa, a história do
primeiro namoro, são órfãos de pai, advogados e traídos pelo me-
lhor amigo. Sem falar no “sortilégio marinho” que vincula Emília,
primeiro amor de David, a Capitu “olhos de ressaca”, ou na morte
dos traidores Steerforth e Escobar, que ocorre no mar.
O humour dickensiano, segundo Eugênio Gomes, estaria pre-
sente até mesmo no título do romance, denunciador do espírito
exagerado e deformatório que percorre todo o livro: “a humanida-
de que se move em Dom Casmurro é uma humanidade grotesca,
projetada através de alcunhas, sestros, cacoetes, delírios e manias”
(GOMES, 1949, p.77).

Capas de edições brasileiras da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis.

207
Teoria da Literatura II

C omo vimos na Aula 6, os gêneros do discurso são ti-


pos de enunciados e o enunciado é a “real unidade” da
comunicação discursiva. Desse modo, todo enunciado possui li-
mites bem precisos, os quais são definidos pela alternância dos
sujeitos do discurso. Ele parte do enuncia-
do dos outros e, em seguida, passa a pala-
CONCLUSÃO vra ao outro, dando lugar à sua compreen-
são responsiva. O gênero no qual essa
alternância de sujeitos do discurso ocorre de modo mais eviden-
te é o das réplicas do diálogo cotidiano, no qual as enunciações
dos interlocutores possuem uma espécie de “conclusibilidade
específica” (BAKHTIN, 2003, p. 275).
Vimos também que tal alternância pode ser observada nos
gêneros secundários (artísticos e científicos), especialmente nos
gêneros literários, nos quais o enunciado, mesmo quando com-
posto por gêneros primários como as réplicas do diálogo cotidia-
no, em um romance ou eu uma peça de teatro, apresentam de
modo explícito uma conclusibilidade, respondendo a enunciados
(obras literárias) anteriores e prevendo compreensões responsivas
de seus leitores.
Para Bakhtin (2003, p. 279), a obra literária, assim como a ré-
plica do diálogo, está disposta para a resposta do outro (dos ou-
tros), a qual pode assumir diferentes formas: influência educativa
sobre os leitores, sobre suas convicções, respostas críticas, influên-
cia sobre seguidores e continuadores. Assim, obra é um elo na ca-
deia da comunicação discursiva, vinculando-se a outras obras, às
quais ela responde.
Esse é o caso da obra de Machado de Assis com relação à
literatura inglesa. É bem possível que as “influências” ou “in-
fluxos” desta literatura não tenham se dado de maneira tão di-
reta e transparente, como parece sugerir Eugênio Gomes no
seu estudo, mesmo porque, como adverte Brás Cubas, em pas-
sagem citada pelo próprio crítico: “As próprias idéias nem sem-
pre conservam o nome do pai; muitas aparecem órfãs, nasci-

208
Machado de Assis e os ingleses

das de nada e de ninguém. Cada um pega delas, verte-as como


pode, e vai levá-las à feira, onde todos as têm por suas” (apud
GOMES, 1949, p.13).
12
aula
Contudo, a tentativa de encontrar “precursores” ou “mo-
delos” para o mais importante escritor brasileiro só tem a acres-
centar, pois que o insere dentro da tradição maior da literatura
ocidental e por isso possibilita uma avaliação mais sensata de
suas reais dimensões. Apesar da crítica ainda assentada sobre
pressupostos biográficos, do caráter idealista e abstrato das ca-
tegorias (humour, espírito, etc), da ausência de dados concretos
(traduções, edições
portuguesas, circula-
ção de originais) e da
problemática utiliza-
ção do enredo ou de
falas das personagens
para corroboração de
argumentos, o texto
de Eugênio Gomes é
muitas vezes perti-
nente e riquíssimo de
informações, além de
ser o pioneiro incon-
testável do estudo da
literatura comparada
no Brasil, uma vez A leitora, óleo de Jean-Honoré Fragonard, 1770–1772.
que este campo estu- (Fonte: http://www.saberweb.com.br).
da as relações entre
diferentes literaturas nacionais, autores e obras, comprovando
que a Literatura se produz em um constante diálogo de textos,
por retomadas, empréstimos e trocas. Assim, cada obra nova é
uma continuação, por consentimento ou contestação, das obras
anteriores, dos gêneros e temas já existentes.

209
Teoria da Literatura II

RESUMO

Nesta aula, vimos que a Literatura, como mostram os


ensinamentos de Bakhtin, nasce da própria literatura, sendo a
sua prática de produção – e também de recepção – marcada
pelo diálogo com textos anteriores e/ou contemporâneos, para além
das fronteiras de um país particular. Esse diálogo se faz representar
de várias maneiras, tanto de forma direta e consciente, através de
citações e referências explícitas, quanto indireta e inconscientemen-
te, por alguma afinidade temática ou estilística.
Assim, é sempre muito rico o tipo de análise que traça relações
entre diferentes autores de diversas nacionalidades, buscando
contextualizar determinadas obras dentro de um panorama maior,
no qual as trocas e empréstimos desempenham a função dialógica
que caracteriza todos os gêneros discursivos.
No caso de Machado de Assis, seus diálogos com a literatura inglesa
são às vezes explícitos, como comprovam algumas de suas epígrafes ou
citações, e às vezes indiretos e sutis, como na composição de algumas
personagens ou da própria estrutura da narrativa. Contudo, esse tipo de
estudo não pode se valer somente de inferências ou deduções, pois pre-
cisa ser fundamentado em elementos textuais ou extra-textuais, exigin-
do do estudioso um lastro de conhecimento literário que possibilite a
identificação de diálogos e/ou trocas, influências ou apropriações en-
tre a obra de nosso mais celebrado escritor e a literatura inglesa.
Vimos aqui algumas tentativas pioneiras de tal empreitada, as quais,
embora apresentem alguns problemas, constituem os marcos iniciais
do estudo de literatura comparada no Brasil. Hoje existem muitas dis-
sertações e teses a respeito do tema, bem como uma associação brasi-
leira de pesquisadores da área – a ABRALIC (Associação Brasileira de
Literatura Comparada – http://www.abralic.org/), e há quem diga que
a literatura comparada veio substituir a teoria literária, o que, pela po-
lêmica da afirmação, exigiria uma outra aula para dar conta do proble-
ma. Esperamos que esta aula tenha servido para despertar a curiosida-
de de vocês a respeito de tão fértil campo de pesquisa.

210
Machado de Assis e os ingleses

ATIVIDADES

Responda às seguintes questões referentes ao texto desta aula:


12
aula
1. Quais são os argumentos de que Sílvio Romero se utiliza para
descartar a influência dos humoristas ingleses e do pessimismo de
Schopenhauer na obra machadiana? Escreva algo a respeito.
2. De que tipo de procedimento o crítico Eugênio Gomes se utiliza
para detectar as influências da literatura inglesa na obra machadiana?
3. Como você definiria o campo da literatura comparada?

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Antes de fazer esta atividade, o tutor deverá aproveitar-se da


experiência de leitura dos alunos, através de fóruns ou de chats,
buscando ver que tipo de conhecimento eles têm da obra de
Machado de Assis e da literatura inglesa. Uma boa maneira de
fazê-los conhecer os autores e obras referidos no texto desta
aula é através de uma pesquisa na internet, na qual cada grupo
fique responsável pelo levantamento biobibliográfico de
determinado(s) autor(es). Podem também ser desenvolvidas
atividades de leitura e/ou interpretação de algum conto de
Machado de Assis, no qual referências à literatura(s)
estrangeira(s) são feitas.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 18 ed.


São Paulo: Ática, 1992.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo
Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 32
ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

211
Teoria da Literatura II

GHIRARDI, José Garcez. John Donne e a crítica brasileira: três


momentos, três olhares. Dissertação (Mestrado em Letras) – Fa-
culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, 1995.
GOMES, Eugênio. Espelho contra espelho. São Paulo: Instituto
Progresso Editorial, 1949.
MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. 2 ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. 5 ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, v. 5, 1954.

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