Apostila Completa Teoria Da Literatura

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CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI

TEORIA DA LITERATURA

GUARULHOS - SP
SUMÁRIO

2 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 4

3 O QUE É LITERATURA? ......................................................................................... 5

3.1 Teoria literária: o que é, e como surgiu? ............................................................... 9

3.2 Teoria literária: uma visão geral .......................................................................... 10

3.3 Alguns pontos importantes da teoria literária ....................................................... 13

3.4 A estética da recepção e o fenômeno literário..................................................... 17

3.5 Novos rumos da teoria da Literatura.................................................................... 21

4 TEORIA DA LÍRICA ................................................................................................ 23

4.1 Gênero Lírico ....................................................................................................... 23

4.2 O que é poesia lírica? .......................................................................................... 24

4.3 Subjetividade ....................................................................................................... 27

4.4 Lírica Moderna ..................................................................................................... 28

4.5 Mudanças no conceito de lírica ........................................................................... 31

4.6 Características da lírica moderna ........................................................................ 33

5 TEORIA DA NARRATIVA ....................................................................................... 36

5.1 Gênero Narrativo ................................................................................................. 36

5.2 Caracterização do gênero narrativo..................................................................... 37

5.3 Tipos de narrativa ................................................................................................ 39

5.4 Foco narrativo ...................................................................................................... 40

5.5 A narratologia e seus pressupostos fundamentais .............................................. 43

5.6Pressupostos fundamentais — as narrativas e a narratividade............................ 46

6 TEORIA DO DRAMA .............................................................................................. 50

6.1 Gênero Dramático ............................................................................................... 50

6.2 Estrutura do texto dramático e linguagem ........................................................... 54

6.3 Literatura dramática em diálogo com outras expressões literárias ...................... 59

2
7 BIBLIOGRAFIA BÁSICA......................................................................................... 65

7.1 Referências bibliográficas.................................................................................... 65

3
1 INTRODUÇÃO

Prezado aluno!

O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante


ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um
aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma
pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é
que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a
resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas
poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em
tempo hábil.
Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa
disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das
avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora
que lhe convier para isso.
A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser
seguida e prazos definidos para as atividades.

Bons estudos!

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2 O QUE É LITERATURA?

A palavra literatura, em sentido amplo, aplica-se a todas as produções literárias


de um país ou de uma época, sendo, portanto, um dos ramos essenciais do
conhecimento humano. Literatura abrange os textos, orais ou escritos, sejam eles
poesia, história, textos de gramática, eloquência, textos filosóficos ou teológicos,
textos das ciências, dramas, etc., entretanto, a literatura não pode ser reduzida à sua
etimologia — litterae, litteratura —, que se refere à “coisa escrita”. (GERCKE, 2016)
A literatura é um fenômeno extremamente complexo. É um tipo de arte que se
utiliza da linguagem verbal (mas não necessariamente só dela) e, sendo assim, é um
aspecto da cultura dos diferentes povos e nações. Se as culturas vão se modificando
ao longo dos tempos com as novas realidades e necessidades, a literatura também
vai ganhando novas roupagens e elementos. O que é considerado como literatura
também se modifica de acordo com quem está pensando sobre isso. (MINUZZI, 2019)

Fonte:www.brasilescola.uol.com.br

A literatura pode parecer algo muito simples de ser definido e conceituado.


Contudo, tente pensar a fundo sobre o que é literatura e por que alguns textos são
considerados como literários e outros não. Afinal, as mesmas palavras que usamos
no nosso dia a dia são aquelas que estão presentes em um romance ou em uma

5
poesia, por exemplo. E por que a poesia e o romance são considerados como
literatura e nossas conversas com amigos não? O que diferencia um texto literário de
um texto não literário? Essa não é uma questão simples, e muitos teóricos já se
debruçaram sobre o problema, a fim de tentar resolvê-lo. (MINUZZI, 2019)
Eagleton (2006), em sua obra Teoria da literatura: uma introdução, levanta
inúmeras definições já dadas à literatura ao longo dos tempos, sempre mostrando
como elas não funcionam — ou como não funcionam em todos os casos e para todos
os tipos de textos. Você também pode tentar fazer esse exercício com seus alunos:
como eles conceituariam literatura? Pode ser que surjam respostas como: “É um texto
que conta uma história” ou “É uma história que está em um livro”. Todas elas, na
verdade, são simplistas demais e estão longe de dar conta da complexidade do
fenômeno literário. Notícias e matérias de jornal, por exemplo, não são textos que
contam histórias? O que, portanto, distingue a literatura de uma reportagem?
Podemos falar antecipadamente que a literatura é uma forma de arte, assim como a
pintura, a escultura, a música ou a arquitetura — a arte literária seria uma forma de
arte com palavras. A seguir, analisaremos alguns conceitos e explicações de teóricos
e pesquisadores para literatura. De acordo com Eagleton (2006, p. 24):

Se não é possível ver a literatura como uma categoria “objetiva”, descritiva,


também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que,
caprichosamente, queremos chamar de literatura. [...]. Portanto, o que
descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma
maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são
historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma
estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em última análise,
não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos
grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros.

A explicação de Eagleton (2006) é bastante interessante na medida em que toca


no assunto da complexidade do fenômeno literário. Essa complexidade resulta em
uma dificuldade em conceituá-lo. A literatura não é uma categoria objetiva como a de
insetos: os insetos formam um grupo com características predominantes e, assim, não
interessa o tempo no qual eu vivo ou o espaço que habito, insetos sempre serão
insetos. A literatura, ao contrário, é algo muito mais subjetiva: uma sociedade
machista, por exemplo, pode apresentar a tendência de considerar textos escritos por
homens muito mais frequentemente como textos literários do que aqueles produzidos
6
por mulheres; em uma sociedade racista, o mesmo ocorreria em relação a produções
de brancos e de negros, por exemplo. Assim, o grupo que está no poder pode decidir
o que será considerado ou não como literatura, uma vez que a definição do que é
literário passa por juízos de valores, opiniões e gostos.
Às vezes, um texto pode ser escrito ou publicado inicialmente como não literário
e acabar se tornando literário. Um exemplo é a carta de Pero Vaz de Caminha, que
conta sobre o que ele e sua frota haviam encontrado ao chegar às terras brasileiras:
Pero Vaz de Caminha tinha como objetivo, no momento da escrita, simplesmente o
de avisar o rei de Portugal sobre o povo e as riquezas achadas; hoje em dia, porém,
consideramos esse como o primeiro documento literário brasileiro, devido à sua
importância histórica e cultural. Outro exemplo é o livro chamado Carta ao pai, de
Franz Kafka. Kafka e seu pai viviam em conflito. Tentando resolver os problemas entre
os dois, o autor escreve uma carta ao progenitor — mas acaba nunca a mandando.
Depois de sua morte, a carta é publicada como literatura — e literatura de alta
qualidade, diga-se de passagem. Apesar de todas as dificuldades de se definir
literatura, podemos pensar em algumas possibilidades, como o conceito de Coutinho
(1978, p. 9), no qual ele sublinha a literatura como uma forma de arte:

A literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade


recriada, através do espírito do artista e retransmitida através da língua para
as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova
realidade. Passa, então, a viver outra vida, autônoma, independente do autor
e da experiência de realidade de onde proveio. [...] O artista literário cria ou
recria um mundo de verdades que não são mais medidas pelos mesmos
padrões das verdades ocorridas. Os fatos que manipula não têm comparação
com os da realidade concreta. São as verdades humanas gerais, que
traduzem antes um sentimento de experiência, uma compreensão e um
julgamento das coisas humanas, um sentido de vida, e que fornecem um
retrato vivo e insinuante da vida. A Literatura é, assim, vida, parte da vida,
não se admitindo possa haver conflito entre uma e outra. Através das obras
literárias, tomamos contato com a vida, nas suas verdades eternas, comuns
a todos os homens e lugares, porque são as verdades da mesma condição
humana.

Coutinho (1978) traz uma importante ideia: a literatura não é simplesmente uma
cópia do real para dentro do texto, mas uma transfiguração do real. Existe uma
anedota sobre uma conversa entre o poeta simbolista francês Stéphane Mallarmé e o
pintor Edgar Degas. O pintor teria dito para o poeta que, apesar de estar com a cabeça
cheia de ideias para um poema, ele sentava e não conseguia escrever absolutamente
nada. Como resposta, Mallarmé diz que não se fazem poemas com ideias, mas com
palavras. Em outras palavras: podemos até nos inspirar no real e em experiências do
7
mundo físico para produzir um texto literário, mas a literatura é muito mais do que isso
(COUTINHO, 1978).
A literatura não apenas conta histórias — o como se conta a história é igualmente
relevante, visto que os recursos estéticos são essenciais no texto literário. A forma é
uma preocupação do escritor de literatura, pois o texto literário trabalha com a
linguagem estilizada, artística, utilizada de um modo diferente de como é empregada
no dia a dia.
Além disso, a literatura não tem compromisso com o real: bruxas, vampiros,
pessoas que voam, etc., são personagens completamente possíveis no texto literário.
Apesar disso, cada texto deve ser verossimilhante (i.e., os seus elementos devem
fazer sentido dentro do universo ficcional criado, mesmo que esse não seja condizente
com o mundo real). Por último, devemos ressaltar, ainda, a literatura como contendo
verdades humanas eternas. Você já parou para pensar no motivo de, por exemplo,
continuarmos lendo as peças de William Shakespeare, que foram produzidas lá no
século XVI? Elas continuam fazendo sentido para nós, pois abordam temáticas
humanas universais, como a traição, a loucura ou o amor impossível. Mesmo que as
histórias se passem em lugares e em tempos específicos, essas narrativas poderiam
se passar em inúmeros outros contextos. A literatura, enquanto arte, não precisa servir
para nada a não se causar um prazer estético. Contudo, apesar disso, em muitas
ocasiões, a literatura cumpre papéis sociais determinantes. Para você pensar sobre
essa questão, leia o excerto a seguir, fragmento de um romance do escritor angolano
Agualusa (2012, p. 49):

Tiravam-nos tudo, a dignidade, as terras, os homens. E no fim o próprio rosto


[...]. Tiravam-nos todo o passado e nós olhávamos em volta e não éramos
capazes de compreender o mundo. Então começamos a escrever poesia. A
poesia era um destino irreparável, naquela época, para um estudante
angolano.

Estação das chuvas é um livro sobre a Guerra de Libertação em Angola. O país


africano, até 1975, era colônia de Portugal. Alguns grupos, entretanto, desejavam a
liberdade, e, em 1961, eclode a luta dos angolanos para ganhar a sua liberdade. Veja
que a poesia, para esses homens, servia como uma forma de retomar a identidade
arrancada deles pelos portugueses (o rosto arrancado pelos portugueses a que se
refere o trecho). Ao longo de séculos, os europeus colocaram a cultura e os costumes
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africanos como perigosos, selvagens e inferiores. Além disso, para ascender
socialmente, os angolanos eram obrigados a assumir a cultura portuguesa. Na
segunda metade do século XX, ao contrário, eles procuram resgatar esses elementos
perdidos, e uma das formas é a produção literária. Portanto, literatura pode ser
pensada como uma forma de arte que transfigura a realidade, que trata de verdades
humanas e que faz parte da identidade de um indivíduo, de um grupo, de uma nação.
A literatura ainda é uma categoria subjetiva.

2.1 Teoria literária: o que é, e como surgiu?

A literatura pode enriquecer a sua vida, seja como simples entretenimento, seja
como fonte de conhecimento e reflexão sobre valores e ideias. Porém, são
necessários certos conceitos ou ferramentas teóricas para que o leitor possa entender
a linguagem literária de maneira ampla. A teoria literária traz à tona esses conceitos e
ferramentas para estudar a obra, o autor, o leitor e todo o processo que envolve as
produções literárias e seus conteúdos. É com base na teoria da literatura que são
feitas as resenhas, as análises e as críticas literárias. A teoria da literatura possui uma
base de dados. Essa base permite elaborar um método de reflexão e análise dos
textos literários. No cruzamento desses dados, pertinentes à trajetória da produção
literária de um determinado período, você consegue identificar as mudanças ocorridas
no processo histórico com relação ao homem e tudo que o envolve. (LIMA, 2018)

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Fonte : www.recortelirico.com.br

Segundo Lima, 2018 os primeiros estudos que utilizaram a expressão “teoria da


literatura” datam do século XIX e apareceram na Alemanha. Os alemães empregaram
igualmente a expressão “ciência da literatura” para garantir o conjunto de regras
científicas, e não artísticas, de seu trabalho. No século XIX, a teoria da literatura se
voltou sobretudo para questões de ordem histórica, sendo investigadas as obras do
passado de um país, para que fosse escrita a história da literatura daquela nação. As
primeiras histórias da literatura nasceram entre o final do século XVIII e o início do
século XIX, na Inglaterra e na Alemanha principalmente. Ao lado da história da
literatura, se desenvolveu igualmente a literatura comparada, sobretudo na França da
segunda metade do século XIX, voltada para o estabelecimento das semelhanças e
diferenças entre as produções literárias de diferentes países. Se a história da literatura
separava as obras conforme a nacionalidade dos autores, a literatura comparada
procurava aproximá-las. Para isso, examinava as ascendências de uns escritores
sobre os outros a fim de constituir uma rede de interlocução entre eles.

2.2 Teoria literária: uma visão geral

Como objeto de estudo, a literatura é analisada com vistas a delimitar elementos


que a particularizam enquanto manifestação da linguagem e representação universal.
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Nessa perspectiva, é necessária a identificação do que é ou não considerado literatura
com base em investigações acerca de características comuns, distintas, traços que
estabelecem relações com gêneros literários, etc. Como manifestação artística, a obra
deve possuir um valor que possa ser identificado em todas as obras literárias ou em
alguns grupos específicos pertencentes aos gêneros literários, sendo uma das
funções da teoria da literatura justamente definir quais são esses elementos conforme
os seus modos de manifestação. (LIMA, 2018)
As contribuições para esse campo do saber por meio das concepções gregas
apontam como objetos de estudos literários a preocupação em diferenciar o que é ou
não considerado literatura. Secundariamente, voltaram o seu olhar para a formulação
de um conjunto de preceitos que deveriam ser seguidos pelos escritores para que as
suas construções literárias atingissem a perfeição no que tange aos recursos
expressivos quanto às regras estabelecidas para cada gênero literário compreendido
como tendência na época (AMORA, 2004).
Na Renascença, entre os séculos XVI e XVIII, a teoria da literatura se
desenvolveu como um esforço para dedicar-se ao estudo formal da literatura greco-
latina, adotando princípios advindos das tendências presentes no período clássico.
Mais tarde, já no século XIX, marcada pelo Romantismo e pela sua crítica ao
Classicismo, a teoria literária “deixou de ter finalidade preceptística e didática e passou
a visar os conhecimentos dos fatos literários” (AMORA, 2004, p. 25).
No fim do século XIX, a teoria é influenciada pelo cientificismo, que favoreceu a
ampliação do campo de investigação em uma ciência com foco no saber positivo
(positivismo científico) dos fenômenos literários. No decorrer dos séculos
subsequentes, realizando um panorama das histórias das teorias da literatura,
podemos refletir sobre três questões, nas palavras de Amora (2004, p. 27):

 O estudo dos aspectos e problemas gerais da literatura se fez, durante


vários séculos, em mais de uma disciplina — na Poética, na Retórica, na
Estética e na História Literária — e dado este fato, difícil se torna, aos
principiantes, acompanhar a evolução desse estudo.
 Se quisermos reduzir essa evolução a ideias essenciais podemos dizer
que os teóricos da literatura visaram, nos séculos clássicos (antigos e
modernos), sobretudo a indicar, aos escritores, um caminho para atingir o

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que não se idealizava como perfeição literária; e que no século XIX visaram
a demonstrar que cada civilização produz um tipo de literatura e que as
literaturas, em suas formas, nos seus gêneros, evoluem através do tempo,
e daí não se poderem tomar as teorias clássicas como absolutas e
universais.
 No fim do século XIX começou a revisão das ideias de seus teóricos e
com essa revisão teve início uma nova época da Teoria da Literatura.

Fonte: www.letrando.webnode.com

Segundo Amora (2004), posto esse panorama das principais tendências da


história da teoria da literatura, a seguir verificaremos em que estado se encontra esse
campo do Estado atual da teoria literária “saber humano” atualmente. Antes de
avançarmos, devemos assumir como premissa que o fato de nos aprofundarmos
sobre o estado atual da teoria da literatura não significa que chegamos ao ápice da
sua trajetória, pois o conhecimento está em constante desenvolvimento, sendo
passível de reformulações no que tange aos seus princípios, às suas metodologias e
aos seus objetos de investigação. Partindo desse pressuposto, relembramos que, no
século passado, a teoria literária se dividiu em correntes de caráter filosófico e
científico: a primeira considerou o fenômeno literário como possuidor de uma essência
abstrata analisada no campo das ideias, já a corrente científica considerava que não
havia outros fenômenos literários que não pudessem ser analisados senão pelo seu
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caráter objetivo e científico inerente à realidade concreta. Após a primeira metade do
século XX, essas duas correntes enfim se conciliaram, motivando especialistas a
concluir que, para refletirmos sobre questões tais como o que é a literatura e quais as
razões para existirem distintos gêneros literários, era essencial a investigação de
dados concretos com base em metodologias científicas que partissem de hipóteses e
especulações determinadas. Assim, houve a junção de elementos filosóficos e
científicos que formularam a disciplina a que denominamos teoria da literatura. Outra
notória evolução foi a individualização no que tange às demais áreas de estudos
literários, como a análise, a crítica e a historiografia literárias. Esse processo de
desvinculação, no entanto, não atrasou o seu processo evolutivo, pois novas
investigações, problematizações, pesquisas e reflexões trouxeram-nos novas
contribuições.
Assim, no estado atual, os críticos modernos defendem o entendimento de que
a obra literária é simultaneamente geral e particular, distinguindo “individualidade” de
“particularidade e unidade”. (LIMA, 2018)
De acordo com Wellek e Warren (2003, p. 9) “cada obra de Literatura tem as
suas características individuais, mas também compartilha propriedades com outras
obras de arte”.

2.3 Alguns pontos importantes da teoria literária

O processo de leitura de uma obra por um especialista é cheio de informações


diferenciadas e simultâneas. É como se o estudioso usasse óculos multifocais para
não perder de vista as relações do tempo presente com o presente, do presente com
o passado e do passado com sua própria época. Uma obra literária não se limita a
exprimir um aspecto da vida social, nem se restringe a características formais. É

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fundamental que a estrutura da obra seja consequência da transformação dos
aspectos externos (como a sociedade) em elementos internos da estrutura textual. As
normas estéticas consideradas em uma obra literária correspondem aos critérios
estabelecidos pela sociedade para determinar o que é e o que não é considerado arte
literária. Trata-se de um código preexistente a partir do qual as obras individuais se
enquadram ou não no universo da literatura. (GERCKE, 2016)

Fonte: www.socialbauru.com.br

A obra literária, por meio de seus padrões estéticos, produz o efeito de estudo
da história, da crítica e da teoria literária, estranhamento ao se apresentar como objeto
desconhecido e inovador que leva o leitor a ver o mundo de modo diferente. É o leitor
que assegura o que é ou não considerado um clássico da literatura, por demonstrar
(por meio dos seus hábitos e preferências literárias) que as obras do passado
continuam a ser lidas no presente (historicidade).
Conheça alguns princípios que segundo GERCKE (2016), a teoria literária utiliza
para analisar uma obra:
 O estudo de uma obra literária, o ato criador do artista, ou as reações do leitor
diante de uma obra, não podem se confundir com crítica literária, ou com o
estudo apenas dentro do contexto histórico.
 O estudo teórico de uma obra literária pode ser feito em um nível científico e
filosófico. No científico, a produção literária é considerada apenas nos seus
critérios mais objetivos: a forma ou estrutura da obra literária, o comportamento
do leitor ou de um público específico influenciado pela obra. No nível filosófico,
a obra literária pode ser avaliada segundo aspectos não tão objetivos,

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aspectos que devem ser admitidos como “reais”; por exemplo: a vocação
literária, o ideal literário, o estado emocional provocado por uma obra. No nível
filosófico, as conclusões teóricas podem ser um pouco especulativas e ir muito
além.
 Nos níveis científico e filosófico, é indispensável partir da análise dos aspectos
objetivos do mesmo fato. Até mesmo as especulações filosóficas sobre as
realidades abstratas da obra literária têm que estar fundamentadas em
conhecimentos científicos. Um exemplo: para refletir sobre a vocação literária
de um autor, que é um dom inexplicável, é necessária uma rigorosa análise da
psicologia artística; já para analisar o belo literário, a “obra-prima”, você deve
recorrer aos termos da filosofia, da estética, que analisa as qualidades das
obras consideradas belas.
 Para a análise objetiva de uma obra literária, você sempre tem que se orientar
por métodos de trabalho. Esses métodos variam de acordo com a obra a ser
analisada (os fatores psicológicos que deram origem à obra, as tendências
literárias do momento, entre outros fatores, podem dar a direção aos estudos).
Os métodos também variam na medida em que você aprofunda seu
conhecimento sobre a obra. Esses métodos compõem o que se conhece como
análise literária.
 A teoria da literatura é uma área de estudo em permanente evolução. Você
deve considerar e tentar compreender essa evolução, seu estado atual e, na
medida do possível, suas perspectivas.

Segundo GERCKE (2016), a teoria literária não é um método teórico limitado e


rígido. Há a estrutura básica, mas existem várias linhas de estudo dentro da teoria da
literatura. As indispensáveis são as seguintes:

 Teorias interpretativas: a teoria da literatura exige um modelo básico para a


interpretação de cada um dos textos literários;
 Construção de modelos: cada teoria oferece um método mais ou menos
padronizado a partir do qual é possível interpretar textos ainda desconhecidos;
 Terminologia: os resultados obtidos a partir do método padronizado devem ser
analisados segundo uma lista de outros conceitos gerais. A teoria literária está
o tempo todo buscando conceitos que sejam válidos para todos os textos.
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Como está configurada neste momento, ela só é válida até que apareça um
texto literário que já não se enquadre nos seus modelos, métodos e conceitos
gerais. Ao surgirem textos que fogem ao que já é conhecido e consagrado, a
teoria tem de ser adaptada. O objetivo fundamental da teoria da literatura é
fazer com que uma obra literária deixe de ser apenas um texto encantador e
comovente. A obra deve passar a ser considerada uma produção cultural
embasada na realidade, na vida, revelando aspectos que, em um primeiro
momento, fogem à compreensão.

Por meio da teoria literária, você pode apurar seu senso crítico. Além disso, ela
objetiva um estudo sistemático e metódico de cada obra. Veja alguns objetivos que se
destacam:

 Estabelecer um sistema de fundamentos, conceitos e métodos comuns aos


estudiosos da literatura;
 Articular e relacionar os conhecimentos literários em um conjunto mais
abrangente, conforme questionamentos políticos, sociais e culturais;
 Ir além dos conhecimentos obtidos em uma primeira leitura das obras literárias;
 Diferenciar os elementos de generalidade e particularidade da obra para que
não sejam confundidos com individualidade (aspectos subjetivos) e
singularidade absoluta;
 Investigar os princípios gerais da literatura;
 Definir conceitos para que os estudos literários não sejam apenas atos
individuais de leitura. O processo de análise tem como objetivo a leitura crítica
dentro de um panorama em constante transformação e expansão;
 Estudar a literatura como um todo; com uma análise linguística, semântica,
temática, histórica, dentro de um âmbito internacional. A literatura ultrapassa
barreiras linguísticas e deve ser pensada também nos termos da literatura
universal;
 Dentro da universalidade, buscar o que é específico em cada obra, único.
Buscar o que pode determinar a condição artística do texto.

A ciência da literatura e a filosofia da literatura são, portanto, dois níveis de


trabalho que se completam e formam uma só disciplina, que é a sua conhecida e atual

16
teoria da literatura. Não só essa conciliação da ciência da literatura com a filosofia da
literatura foi importante, mas também a individualização da teoria literária em relação
aos demais campos de estudos literários, a análise, a crítica e a historiografia literária.
(WELLEK, 2003)

2.4 A estética da recepção e o fenômeno literário

Segundo Eagleton (2006), é possível pensar na história da moderna teoria


literária como apresentando três períodos: um primeiro que se preocupa com o autor,
durante o Romantismo e o século XIX; o segundo, que olha exclusivamente para o
texto literário, na Nova Crítica; e, por último, uma grande atenção ao leitor, no final do
século XX.

Fonte: www.portaldoenvelhecimento.com.br

A estética da recepção ou teoria da recepção encontra-se neste último período,


que coloca o leitor como centro privilegiado. Sempre o menos privilegiado dos três
aspectos, sem o leitor, não existiria literatura, pois é o receptor do texto que transforma
as letras, palavras em frases dentro de um livro em um texto com um significado.
Assim, para a literatura existir, o leitor é tão fundamental quanto o autor. Dentre os
principais nomes dessa teoria, pode-se citar os alemães Wolfgang Iser e Hans Robert
Jauss e o americano Stanley Fish. Para eles, é a dinâmica da leitura o que importa: a
relação entre autor, obra e leitor. Produção, recepção e comunicação são três palavras
fundamentais, e a literatura só existe quando existem todos esses elementos — nesse
sentido, o texto de um autor que fica guardado na gaveta e nunca é publicado não
17
pode ser considerado como literatura propriamente dita, mas ele pode se tornar
literatura no momento em que for descoberto e começar a ser lido.
Eagleton (2006, p. 116) diz que, durante a leitura:

[...] o leitor estabelece conexões implícitas, preenche lacunas, faz deduções


e comprova suposições – e tudo isso significa o uso de um conhecimento
tácito do mundo em geral e das convenções literárias em particular. O texto,
em si, realmente não passa de uma série de ‘dicas’ para o leitor, convites
para que ele dê sentido a um trecho de linguagem. Na terminologia da teoria
da recepção, o leitor ‘concretiza’ a obra literária, que em si mesma não passa
de uma cadeia de marcas negras organizadas numa página. Sem essa
constante participação do leitor, não haveria obra literária.

A fim de elucidar essa explicação, analisaremos um pequeno conto do escritor


gaúcho Noll (1999, documento on-line), chamado Grêmio:

Quando minha mãe morreu, eu acordava em Florianópolis. Na rodoviária de


Porto Alegre pedi ao taxista que me levasse depressa. A viagem atrasara.
Ele disse que, como o cemitério ficava perto do campo do Grêmio e tinha jogo
naquela noite, o trânsito não estaria fácil. Passamos pelo clarão do estádio.
O motorista ostentava quase um desconsolo, embora eu não tivesse
confessado a qualidade íntima do velório. O padre soube observar meu suor.
Horas depois forcei a chave para entrar no apartamento dela. Por que não
tentar desde logo o que eu não ousara formular até ali? Virei-me. O cão
rosnava. Preparava sua fúria para me atacar.

Alguns elementos do texto podem parecer segundo Sadanha (2019), em um


primeiro momento, um pouco misteriosos, e cabe ao leitor preencher as lacunas e dar
sentido a essas frases. Em primeiro lugar, o narrador diz: “eu acordava em
Florianópolis”. Aqui, o leitor deve acionar os conhecimentos sobre os sentidos dos
tempos verbais: o pretérito imperfeito indica uma ação que se repetiu no passado.
Assim, concluímos que ele vivia em Santa Catarina e precisou realizar uma viagem, a
fim de ir ao velório da mãe, em Porto Alegre, pois, na frase seguinte, ele já indica a
rodoviária da capital do Rio Grande do Sul. Outro elemento interessante são as elipses
temporais: como a narrativa é extremamente curta, o narrador deixa de contar
inúmeros fatos e de indicar o tempo que passou. Na primeira frase, por exemplo, ele
diz que vivia em Florianópolis. Na segunda, ele já está na rodoviária de Porto Alegre.
Entre um e outro momento, ele pegou um ônibus e passou algumas horas viajando
até chegar. Ele fala que estava no táxi e, a seguir, já afirma que “o padre soube
observar meu suor”. Ele não explica que o táxi chegou ao cemitério, que ele
desembarcou e que se dirigiu ao local do velório. Todas essas informações devem ser

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preenchidas pelo leitor, que desempenha uma função ativa na hora da leitura. As
últimas frases também são bastante enigmáticas: “Horas depois forcei a chave para
entrar no apartamento dela. Por que não tentar desde logo o que eu não ousara
formular até ali? Virei-me. O cão rosnava. Preparava sua fúria para me atacar”. Por
que o cão rosnou para ele? Talvez porque ele não visitasse regularmente a sua mãe,
e, portanto, o cachorro não estava familiarizado à sua presença. E o que ele não
ousara formular até então? A ausência da mãe denunciada por todos os seus
pertences sem ela por perto? Ou será que o cão é, na verdade, um animal metafórico
que representa a dor da perda? Cabe ao leitor formular hipóteses e deduções e definir
as suas preferidas. Quando terminamos o conto, podemos voltar ao seu início e ler de
forma diferente as primeiras frases, já que a leitura e a interpretação não são atos
cumulativos, e o que vem depois pode alterar nossa percepção do que veio antes:
“lemos simultaneamente para trás e para frente, prevendo e recordando, talvez
conscientes de outras concretizações possíveis do texto que a nossa leitura negou.
Além do mais, toda essa complicada atividade é realizada em muitos níveis ao
mesmo tempo, pois o texto tem ‘[...] segundos e primeiro planos’, diferentes pontos de
vista narrativos, camadas alternativas de significado, entre as quais nos movemos
constantemente [...]” (EAGLETON, 2006, p. 118).
Em sua obra O ato de leitura, de 1978, Wolfgang Iser explana sobre a
necessidade de o leitor dominar certas técnicas e convenções literárias para o
entendimento de cada obra. Cada gênero possui suas marcas e precisamos estar
mais ou menos familiarizados com elas, a fim de compreender um texto. No entanto,
nunca deve haver, na literatura, uma adequação total entre os códigos das obras
literárias e os conhecimentos e códigos do leitor, pois uma das funções do texto
literário é o de constantemente desacomodar o leitor e suas crenças. “Para Iser, a
obra literária mais eficiente é aquela que força o leitor a uma nova consciência crítica
de seus códigos e expectativas habituais [...]” (EAGLETON, 2006, p. 119).
Quando a obra literária tem valor, ela deve violentar e transgredir o leitor e suas
crenças. Assim, Iser afirma que, durante a leitura, o leitor deve ser flexível e manter a
mente aberta, caso contrário, a literatura não poderá cumprir seu maior objetivo, que
é modificar as crenças. Portanto, um leitor com fortes e rígidas convicções será um
leitor inadequado.

19
Já para Hans Robert Jauss, o panorama histórico é muito importante para
entendermos um texto literário e deve ser levado sempre em consideração: tanto o
período histórico em que uma obra foi escrita quanto aquele em que é lido por cada
leitor (EAGLETON, 2006).
Isso porque o leitor é aquele que finalizará a escrita de um texto, pois é apenas
após a sua interpretação que o texto fica completo, e, sendo assim, as especificidades
do leitor e do período em que ele vive modificarão a leitura. A forma como uma obra
é recebida em diferentes épocas é chamada de recepção histórica. Eagleton (2006,
p, 126) explica: “[...] as obras literárias, em si mesmas, não permanecem constantes,
enquanto as suas interpretações se modificam; os próprios textos e tradições literárias
sofrem modificações ativas, de acordo com os vários horizontes históricos nos quais
elas são recebidas [...]”. Por fim, o crítico americano Stanley Fish afirma que não
existem textos literários de forma objetiva, já que é apenas quando leitor lê o texto que
ele é completado. Nesse sentido, para Fish, o leitor é o verdadeiro autor, pois não há
nada “dentro” da obra literária, e é o leitor que dá vida a ela, ou seja, é ele que atribui
sentidos a ela. Entretanto, é importante frisar que nem todas as interpretações de um
leitor em relação ao texto literário são válidas, na medida em que o autor cita algumas
“estratégias de interpretação” que os leitores possuem em comum e que determinarão
as suas leituras. Por isso, nossas interpretações não são completamente livres,
apesar de conterem uma grande liberdade. A interpretação da literatura é muito mais
livre do que a interpretação de textos não literários, que são textos com a tendência
de serem objetivos ou, pelo menos, mais objetivos do que os literários (EAGLETON,
2006, p. 121).

20
Fonte: www.super.abril.com.br

O que devemos reter dessas teorias é a importância conferida por elas ao leitor,
elemento que comumente ficava de fora dos estudos da literatura, mas que é
fundamental para compreendermos a literatura enquanto fenômeno social.

2.5 Novos rumos da teoria da Literatura

Como você viu, na primeira metade do século XX, a teoria literária acabou
ficando dividida entre duas linhas de trabalho: uma de caráter científico e a outra de
caráter filosófico. A corrente filosófica partiu do princípio de que o fenômeno literário
deveria ser pensado apenas no plano das ideias, pois uma obra, sendo uma realidade
(um livro impresso, algo material), tem, no entanto, uma essência abstrata (o seu
conteúdo). Essa essência, sendo abstrata, não poderia ser analisada objetivamente.
Ao se considerar o conteúdo de uma obra, bem como seus valores artísticos, como
abstratos, a essência do ato de criação dessa obra também é abstrata. O escritor é
uma pessoa real, com sua biografia, com suas escolhas. Mas o processo criativo que
produziu sua obra estava no seu interior, foi algo subjetivo com uma imensa
complexidade psicológica e com infinitas incógnitas de toda espécie, sobre as quais
só se pode pensar em termos filosóficos. Ao se definir, segundo a corrente filosófica,
que a essência da obra e do autor são abstratas e, portanto, passíveis apenas de
especulações, também se pode dizer isso de outros fatos literários. (WELLEK, 2003)

21
Por exemplo:

 O leitor (dentro do qual se processa o ato recreativo e também subjetivo


da obra),
 O ambiente cultural de uma obra (constituído de sentimentos e de ideias);
 E, por fim, a história literária (que é uma evolução desses sentimentos e
ideias). Partindo de todos esses princípios, se definiu e se impôs a
corrente da teoria literária chamada de filosofia da literatura. Em
contrapartida a essa corrente filosófica surgiu, na mesma época, a
corrente de estudos conhecida como ciência da literatura. Ela nasceu com
o seguinte princípio: não há nada nos fatos literários que possa escapar
a uma análise objetiva e científica.

Partindo de todos esses princípios, se definiu e se impôs a corrente da teoria


literária chamada de filosofia da literatura. Em contrapartida a essa corrente filosófica
surgiu, na mesma época, a corrente de estudos conhecida como ciência da literatura.
Ela nasceu com o seguinte princípio: não há nada nos fatos literários que possa
escapar a uma análise objetiva e científica. (GERCKE, 2016).

Fonte: www.avozdaserra.com.br

22
3 TEORIA DA LÍRICA

3.1 Gênero Lírico

O adjetivo “lírico” vem do nome da lira, instrumento musical utilizado pelos


gregos para acompanhar seus cantos. Daí surgem também as expressões “poema
lírico”, “poesia lírica”. Até o final da Idade Média, os poemas eram cantados, mas
pouco a pouco foram afastando-se do acompanhamento musical, e o texto passou a
ser mais trabalhado formalmente através da divisão estrófica, da medida dos versos
e do esquema rímico. A rima vai surgir na literatura cristã e, segundo Emil Staiger
(1974, p. 38), com o objetivo de substituir “a variedade métrica da lírica antiga, que vai
aos poucos desaparecendo”.

Fonte : www.provasdiscursivas.com.br

Em relação ao conteúdo, a poesia lírica traz sempre um eu confessando suas


emoções, seu estado de espírito. O lírico está associado ao emotivo, ao subjetivo.
Hegel em sua Estética diz que o que se faz presente na poesia lírica é o sujeito a partir
de suas experiências individuais. Dessa forma – continua pensando ele – o conteúdo
da poesia lírica vem dos juízos subjetivos, das emoções, das alegrias, das dores, das
angústias que, em determinado momento, ocupam lugar na consciência do poeta e
em outro momento ocupam lugar na poesia que ele compõe.
23
O gênero lírico, diferentemente do narrativo, convida imediatamente o leitor a
participar e mesmo a assumir o ato enunciativo, pois o uso da primeira pessoa do
discurso é típico de grande parte das criações poéticas. Essa forma discursiva é
responsável, muitas vezes, pela indistinção entre autor e sujeito lírico. (MELLO, 2001)
Quando a voz lírica produz um enunciado de tendência descritiva ou narrativa
em relação a algo que interessa ou diz respeito ao universo infantil, sem se assumir
como criança ou seu porta-voz, fica mais difícil distinguir o destinatário do poema,
podendo-se inferi-lo pelo tipo de percepção ou de avaliação que destila do discurso
poético. (MEIRELLES, 1994, p. 723)
O tempo do lírico é o da recordação, conforme Staiger, do sentir de novo uma
emoção passada ou mesmo de sentir antecipadamente, no presente, algo que está
para ocorrer. Recordar, como a própria etimologia da palavra indica - cor, cordis -
alude ao reviver algo, no presente, com o sentimento do já vivido ou do por viver
(STAIGER, 1970).

3.2 O que é poesia lírica?

Em diferentes contextos e situações, todo e qualquer indivíduo, letrado ou não


letrado, produz e lê textos. Os textos são produzidos com diferentes intencionalidades
e circulam entre interlocutores distintos. Eles assumem uma forma, uma finalidade e
uma intencionalidade para compor o processo de comunicação. Ou seja, quando
estão em jogo manifestações da linguagem e quando se concretiza uma mensagem,
o que representa tal mensagem concretizada é o texto. O texto pode ser oral ou
escrito. Também pode ser verbal, não verbal ou misto. Um texto não verbal, por
exemplo, corresponde a uma pintura, a uma fotografia ou, até mesmo, ao tom de voz
e aos gestos. (SPESSATO, 2019)

24
Fonte: www.mosqueteirasliterarias.comunidades.net

Um texto misto é a fala humana. Nela, juntamente com a mensagem, há gestos


e tom de voz. Outro exemplo é uma charge, em que figuras se conjugam com a escrita.
Dentro das inúmeras possibilidades textuais, é interessante subdividir os textos em
literários e não literários (ou informativos). Os textos literários correspondem à
literatura, a obras ficcionais e ao uso de uma linguagem poética. Já os não literários
têm uma finalidade bem específica: informar. Gonzaga (2007) simplifica essa
dicotomia entre os dois tipos de texto com um exemplo bastante simples, porém
esclarecedor: quando se resume o texto literário, perde-se o essencial; em
contraponto, quando se resume o texto não literário, sobra o essencial.
As obras literárias, assim como as não literárias, são classificadas em diferentes
grupos, os quais correspondem à sua forma e à sua finalidade. Todo texto literário se
encaixa em um grupo específico, em um gênero textual. A abordagem sobre gênero
corresponde à finalidade e à forma de determinado texto. Convencionalmente, na
literatura, há três grupos ou gêneros: o gênero épico, o gênero lírico e o gênero
dramático. Segundo Reis (2014), essa é a tripartição tradicional dos gêneros desde a
Antiguidade, mas recentemente (na Modernidade), fala-se também em modos do
discurso, que são o modo narrativo, o modo lírico e o modo dramático. Assim, o modo
narrativo pode incluir o gênero épico (as epopeias) e outros gêneros que envolvem
tipos textuais narrativos, como romance, conto, etc. Já o modo lírico pode incluir
25
poemas, como sonetos, e o modo dramático pode incluir dramas, comédias, etc., ou
seja, está relacionado ao teatro.
O modo narrativo engloba as obras literárias que apresentam uma narrativa com
narrador, enredo, personagens, tempo e espaço. Elas podem se apresentar em forma
de poema, ou seja, ser escritas em verso, como Ilíada e Odisseia, ou em forma de
prosa, como em contos ou romances. Já o modo dramático é aquele que imita a
realidade ou que cria mundos possíveis a partir do real por meio de personagens em
ação, ou seja, trata-se de peças de teatro, por exemplo. A representação desse
gênero se manifesta tanto em tragédias quanto em comédias e, mais moderadamente,
em dramas. As peças de William Shakespeare são exemplos. No modo lírico, o eu
lírico registra, principalmente, a sua subjetividade, seus pensamentos e as suas
emoções. A poesia lírica ou poema lírico é a forma como a obra se apresenta. Na
concepção clássica, enquanto textos em prosa ou em verso possuem estruturas
textuais distintas ligadas à literatura, a poesia pode se apresentar em outros tipos de
manifestações artísticas (como poemas, pinturas, fotografias, etc.), chamadas, então,
de poéticas. A concepção de poesia se resume à representação do sentido, e a do
poema, à representação da forma. A poesia representa a esfera abstrata da arte,
enquanto o poema é apenas uma de suas manifestações. Assim como uma pintura
ou uma fotografia são manifestações poéticas, o poema também o é. Atualmente, na
esfera literária, é possível fazer referência a poema lírico e poesia lírica como
sinônimos. (SPESSATO, 2019)
A poesia lírica é organizada em versos e estrofes. O seu conteúdo carrega um
caráter subjetivo bastante marcante. Esse tipo de gênero, portanto, apresenta obras
com marcas salientes de subjetividade, com uma intensidade emotiva bastante
significativa. Os versos se caracterizam, normalmente, por efeitos rítmicos e sonoros,
e a linguagem é original e sugestiva. Todas essas características possuem como
principal objetivo despertar a emoção no receptor. Na poesia infantil, o receptor deve
ser visto como o principal motivador da forma e do sentido de um poema. Ou seja,
uma boa poesia infantil deve fazer sentido, ter um significado para os seus leitores.
No Quadro 1, veja a divisão clássica dos gêneros literários a partir da Antiguidade.
Atualmente, em geral, não se vê mais o romance ou o conto como subgêneros, por
exemplo, mas como gêneros.

26
3.3 Subjetividade

Como você viu, uma das definições mais pontuais da poesia lírica — que não
abrange tanto a forma, e sim o conteúdo — é a subjetividade. A subjetividade é algo
que depende da visão de cada pessoa, é a interpretação que cada indivíduo tem sobre
determinado aspecto. Ou seja, é inquestionável que o poeta lírico expressa o seu
mundo subjetivo. O poema lírico, para Gonzaga (2007), se constitui pelo
extravasamento da alma. Portanto, o que acentua a diferença entre ele e as outras
manifestações é o seu objetivo e a sua emoção: a poesia lírica centra-se no registro
das emoções.

27
Fonte: www.revistacult.uol.com.br

No entanto, é importante ressaltar que a subjetividade em si não é suficiente


para caracterizar uma poesia lírica. Por mais que se saiba da importância da marca
do “eu”, ela sozinha não caracteriza um gênero. Caso caracterizasse, todos os dias,
quando alguém expressasse os seus sentimentos, estaria fazendo um poema. Dessa
forma, ao caracterizar uma poesia lírica, você deve atentar não somente ao sentido
do poema, mas também à sua forma e à sua linguagem. Ou seja, a expressão poética
perpassa o sentido literário, pois carrega consigo a beleza e a criatividade formal.
(SPESSATO, 2019)

3.4 Lírica Moderna

Há diferenças pelo que se entende por poesia, se considerada a partir de escolas


tradicionais ou mais recentes. Há também uma divisão que ocorre entre a poesia
chamada “moderna” e a contemporânea. (FERREIRA, 2017)
Segundo Ferreira (2017), a poesia é um gênero textual rico na produção de
sentidos. Atualmente, não é necessário o uso de rimas, de métrica, de linguagem
rebuscada na sua construção. Essas características começaram a ser modificadas no
Romantismo e passaram quase a ser mais visíveis no século XX.

28
Com o romantismo, os temas do EU, da consciência, do sonho, e do símbolo
passam a ser objetos da escrita literária. A obra de arte romântica mantém o foco em
uma parte secreta do EU, é voltada para o íntimo. Entre o Romantismo e a poesia da
primeira metade do século XX, mais do que a retomada de temas e ideias, existe uma
abordagem espiritual. A lírica moderna tem suas raízes no Romantismo, momento em
que os poetas tomam consciência de que a vida não poderia ser explicada por meio
de mecanismos racionais, pois o universo é algo muito mais misterioso e imprevisível,
mas encontrou sua plenitude com o Simbolismo. (FERREIRA, 2017)
Um dos principais nomes do Simbolismo foi o de Charles Baudelaire (1985), que
escreveu obras como As Flores do Mal em 1857. Esta trata de temas avessos ao
clássico belo, buscado pelos poetas parnasianos, e se debruça sobre a melancolia, o
feio, a hipocrisia, entre outros. Os poetas simbolistas consideram o símbolo como
recurso para expressar o vago e multiforme mundo interno do ser humano, e suas
indagações sobre os mistérios cósmicos. A linguagem simbólica na lírica moderna é
o recurso que estabelece, ao mesmo tempo, como presença e ausência, algo que não
é possível captar, o mistério, cuja realidade só pode ser pressentida. Para os
românticos e para os simbolistas, o símbolo está conectado ao mistério. (REIS, 1999)

29
Fonte: www.atoresnomercado.com.br

Uma das possibilidades do símbolo, nesse movimento, é que pode conectar, por
meio da palavra, a realidade concreta com um sentido mais abstrato. Assim, é possível
dizer muito, ou deixar muito implícito, a partir de poucas palavras. Essa prática pode
ser vista na obra do poeta Stéphane Mallarmé, conhecido por textos como Lance de
dados, de 1897. Em sua obra mais tardia, também explora a relação entre forma e
conteúdo, liberando o poema de sua disposição tradicional (vertical, em versos) e
distribuindo-o diferentemente no espaço da página. (FERREIRA, 2017)
A partir dessas características, é possível identificar uma espécie de meditação
nas duas principais correntes da poesia moderna da primeira metade do século XX:

 Uma poesia de introspecção que privilegia o fechamento do texto,


convivendo e problematizando com a ideia de uma dimensão
transcendente, inacessível pelas vias racionais;
 E uma poesia mais voltada para a realidade exterior, itinerário de
interpretação do eu e do mundo, marcada pela abertura do texto.

As bases da Modernidade encontram-se no movimento romântico que, na sua


reação ao Classicismo, opõem à rigidez da delimitação dos gêneros literários. A maior
liberdade no tratamento dos gêneros leva a uma profunda mudança no conceito de
lírica. (FERREIRA, 2017)

30
3.5 Mudanças no conceito de lírica

Há muito que a lira, instrumento musical de cordas, deixou de acompanhar as


composições poéticas, mas o gênero lírico, dentro das configurações clássicas,
perdura. Pode-se dizer que os ensinamentos aristotélicos preconizados pela célebre
e milenar Poética só sofreram uma ruptura realmente significativa no século XX,
quando se estabeleceu o que se convencionou classificar como lirismo moderno com
o seu distanciamento da subjetividade. (FERREIRA, 2017)
A despersonalização é um dado fundamental a compreensão da nova lírica: a
linguagem poética assume um caráter experimental, pois o “eu-lírico”, representante
maior dos sentimentos, entra em conflito com um outro “eu” que se mostra mais
racional, mesmo frente à poesia. (CAMPOS, 1977)
Segundo FERREIRA (2017), o poema passa a ser visto não mais como fruto de
uma inspiração, mas como resultado de uma atitude consciente aliada a sensibilidade
do poeta. Essas mudanças geram reflexões sobre o próprio fazer poético e refletem-
se no caráter metalinguístico da poesia moderna.
Haroldo de Campos (1977) diz que essa metalinguagem pode manifestar-se de
dois modos:
 O “sério-estético”, como em Mallarmé;
 E o paródico, humorístico e irônico.

Nos dois modos a estrutura da obra é revelada, desautomatizando a percepção


do leitor, que passa a recorrer a uma leitura ativa. Outro aspecto da lírica moderna é
a dissonância, percebida por traços de tensões formais que querem ser entendidos
como tais. Essa tensão dissonante pode levar a uma multiplicidade de significações
no poema, o que, novamente, cobra do leitor uma postura ativa. Também é uma das
responsáveis pela constante presença do insólito na licenciatura moderna. (CAMPOS,
1977)
Outra manifestação da dissonância está no fato das grandes metrópoles
representarem para o poeta a decadência do homem e também uma beleza
fascinante e misteriosa. Na lírica moderna a transcendência da realidade é indefinida,
uma espécie de fantasia vazia. (FERREIRA, 2017)

31
A rejeição do tradicional leva o poeta moderno a procurar a beleza na surpresa,
no inesperado, no feio. A modernidade em si é paradoxal: em alguns casos manifesta-
se em uma poesia hermética, beirando o incompreensível, e em outros apresenta-se
com despojamento e simplicidade, trazendo, com frequência, elementos da linguagem
prosaica. (FERREIRA, 2017)

Fonte: www.estadodaarte.estadao.com.br

Hugo Friedrich (1978), em seu livro Estrutura da lírica moderna, tece


interpretações sobre a obra dos poetas que, para ele, constituem a base da lírica
moderna (Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé). A partir deles, enumera-se as principais
características de um novo lirismo que, de fato, afasta-se das qualidades clássicas da
lírica, entre as quais estão a despersonalização, a desumanização e a obscuridade.
Essas qualidades distanciam o conceito moderno do conceito clássico por desprende-
lo da subjetividade e expressividade.

32
3.6 Características da lírica moderna

Ainda na segunda metade do século XIX, com os poetas simbolistas Baudelaire,


Rimbaud e Mallarmé, a poesia moderna passa por uma transformação, em que
algumas regras de convenção são rompidas. (FERREIRA, 2017)
A poesia acontece pela recriação contínua da linguagem, o que equivale a um
rompimento da composição tradicional, das regras gramaticais e da ordem do
discurso. Ocorre uma renovação, uma ruptura com o antigo. Quanto ao ritmo na
poesia, este passou a ser libertado com a instituição dos versos livres com a revolução
na linguagem poética. O ritmo passou a ser mais adequado a fluidez dos sentidos
representados, fugindo não apenas dos métodos convencionais de metrificação, mas
também aderindo ao propósito de motivar o discurso poético de forma imprevisível e
inteiramente livre. (REIS, 1999, p.331)
Segundo FERREIRA (2017), a lírica moderna contrasta a simplicidade da
exposição daquilo que é exposto, trazendo uma incompreensibilidade que causará
tensão naquele que a lê, pois, à medida que sua obscuridade fascina o leitor, o fato
de não compreender o desconcerta. Por isso a dissonância, como você viu, é uma
das características da lírica moderna.
Na poesia moderna, a realidade é transformada e, como a realidade do mundo
é constituída pela linguagem, é esta que sofre transformações. Das três maneiras
possíveis de comportamento da composição lírica – sentir, observar, transformar – é
esta última que domina na poesia moderna, tanto no que diz respeito ao mundo como
a língua. (FRIEDRICH, 1978, P. 17)
Assim, podemos citar três tendências da lírica moderna:

 A poetização do não – poético;


 O processo de despersonalização;
 E o hibridismo dos gêneros literários.

Baudelaire é considerado um dos precursores da modernidade, pois foi o


primeiro a cantar a paisagem moderna do século XX, as cidades na fase inicial da
modernização, a multidão, os pobres, os excluídos e as prostitutas, o tédio da chuva
e os becos ao amanhecer, e decadência e a corrupção que assolam o homem

33
moderno. A poetização do apoético, de temas cotidianos, provoca um efeito de
choque no leitor acostumado a uma poesia de moldes românticos e parnasianos.
(FERREIRA, 2017)
O leitor da poesia moderna não está acostumado com as inovações temáticas e
expressivas que caracterizam a lírica do século XX, produzida um uma sociedade pós-
segunda guerra mundial. (FRIEDRICH, 1978, P. 17)
A lírica moderna se faz no que a sociedade despreza. Como o heroísmo épico
não encontra lugar na sociedade moderna, o poeta busca seu heroísmo no obscuro
das metrópoles, poetizando aquilo que até então não foi poetizado, isto é, o material
apoético. (FERREIRA, 2017)

Fonte: www.revistacult.uol.com.br

O poeta moderno exalta o que é feio, troca o que é belo pelo que causa
estranhamento. O feio que se encontra nos becos, na periferia da metrópole é a
matéria prima da lírica moderna. O poeta traz para o âmbito da poesia o grotesco ao
invés do que é considerado belo pela sociedade. A nova “beleza”, que pode ser
coincidir com o feio, inquieta porque “[...] absorve o banal e deforma em bizarro [...]”,
o espantoso com o doido [...]” (FRIEDRICH, 1978, P. 17).
É necessário ressaltar que uma das características da lírica moderna é a
miscigenação dos gêneros, havendo a predominância de traços estilísticos de um
determinado gênero sobre outro. Para classificar uma obra segundos suas
34
características formais, utilizam-se termos como “Épica”, “Lírica” e “Drama”. Já os
adjetivos “líricos”, “épico” e “dramático” são termos que designam as qualidades das
quais uma obra pode ou não se apropriar. Designa, desse modo, a essência, os
fenômenos estilísticos do lírico, do épico e do dramático. (REIS, 1999, p.331)
A partir desse movimento, na literatura, ocorre uma intercomunicação dos
gêneros. Como isso, a teoria clássica dos gêneros literários passa a ser contestada.
Segundo alguns estudiosos, não há nenhum gênero “puro” (puramente lírico, por
exemplo), mas uma interação, uma inter-relação entre os gêneros literários. Assim, as
obras poéticas podem apresentar características de todos os gêneros. A partir, da
predominância de um sobre os outros é que será compreendida como lírica, épica ou
dramática. (FERREIRA, 2017)

35
4 TEORIA DA NARRATIVA

4.1 Gênero Narrativo

Desde o surgimento da humanidade, as histórias são contadas sob a forma de


narrativas, que são práticas linguísticas e culturais presentes no cotidiano de todas as
populações. É por meio das histórias que o ser humano se representa e constrói sua
memória. Nos dias atuais, o processo de contação de histórias é midiatizado, ou seja,
é transmitido, distribuído ou recebido pelos meios de comunicação. Com o surgimento
da escrita, o que antes era função exclusiva da oralidade, passou a ser eternizado e
construído para ser consumido por muitos. (JUSKI, 2020)

O processo narrativo não é algo exclusivo da literatura; áreas como o jornalismo


e a publicidade se apropriam das estruturas narrativas para desenvolver suas
atividades e se aproximar do público, seja leitor ou consumidor. (JUSKI, 2020)
Segundo Reis e Lopes (1988), não existe um consenso sobre a definição de
narrativa; ela pode ser compreendida como um enunciado, como um conjunto de
conteúdos representados por esses enunciados ou como o ato de relatar e contar
histórias. Segundo o Dicionário Aurélio, referindo-se ao gênero narrativo, em especial
na literatura, que compreende as modalidades lírico, narrativo e dramático, a narrativa
é definida como a “exposição de um acontecimento ou de uma série de
acontecimentos mais ou menos encadeados, reais ou imaginários, por meio de
palavras ou de imagens”.
Para que se estude mais a fundo o conceito de narrativa e os elementos que a
compõem, cabe mais uma vez retornar à Arte Poética de Aristóteles (1995). Lá, o
filósofo afirma que a “arte poética” (as artes em geral) é realizada por meio da

36
disposição do ritmo, da linguagem e da harmonia. Ele distingue diferentes gêneros
que exploravam, cada um a seu modo, certos elementos. Alguns gêneros abordados
por Aristóteles não são mais praticados, como o ditirambo (um canto coral entusiástico
e exuberante dirigido aos deuses), mas outros gêneros, como a epopeia e o teatro,
ainda hoje podem ser estudados segundo os critérios aristotélicos. Assim, é possível
afirmar que o filósofo deu muitas contribuições para as teorias das artes que você
estuda atualmente. É dele, por exemplo, o conceito de catarse e a divisão dos gêneros
miméticos em função dos meios narrativo e dramático.

A narração é um tipo textual que se constitui a partir de uma história. Nela,


alguém conta um fato, fictício ou não, que ocorreu em determinado tempo e lugar e
envolveu dadas personagens (MARCUSCHI, 2003).
Na concepção de Travaglia (2002), o tipo narrativo objetiva contar, dizer os fatos,
os acontecimentos, entendidos como os episódios, a ação em sua ocorrência. Uma
de suas marcas linguísticas de destaque é, de acordo com o estudioso, ter o
interlocutor como o assistente, o espectador não participante, que apenas toma
conhecimento, se inteira do(s) episódio(s) ocorrido(s). Pode haver ou não coincidência
entre o tempo da enunciação e o referencial, podendo o da enunciação ser posterior,
simultâneo ou anterior.

4.2 Caracterização do gênero narrativo

O hábito de contar histórias acompanha o ser humano há muitos séculos. Nesse


contexto, se pode afirmar que a narrativa surgiu da necessidade de criar uma certa

37
unidade para essas histórias. Assim, as narrativas desempenham a função de
oferecer um certo ordenamento, uma forma no tumulto da experiência humana.
(HOFF, 2017)
A narrativa literária, por sua vez, é caracterizada pela dinamicidade, pela
objetividade e por vezes pela subjetividade, mescladas às ações que se apresentam.
O texto narrativo é um sistema complexo e imprevisível de possibilidades
interpretativas, que trabalha continuamente com o real e o imaginário. A partir das
situações vividas pelas personagens, a narrativa aproxima realidade e representação
de fatos, lidando continuamente com o possível e o impossível. Assim, a narrativa tem
por objetivos, além de relatar, produzir informação, aprendizado e/ou entretenimento.
Nesse sentido, o leitor pode se apropriar dos sentidos que ecoam da narrativa até se
identificar com o que está lendo. (HOFF, 2017)
Segundo HOFF (2017), A narrativa se estrutura conforme uma rede de relações
entre os seguintes elementos essenciais:

 Enredo: aqui se fundamentam e se desenvolvem as ações da estrutura da


narrativa.
 Personagens: executam as ações. Dividem-se em protagonista (personagem
principal), coadjuvantes (personagens secundárias) e antagonista
(personagem que se opõe à personagem principal).
 Narrador: relata os fatos. Existem vários tipos de narradores: narrador- -
personagem, narrador-observador, narrador onisciente, entre outros. A
identificação do narrador depende da perspectiva adotada perante os fatos
narrados: basicamente, ou o narrador participa da história ou é somente um
espectador.
 Tempo: momento ou época em que acontecem os fatos. O tempo poderá ser
cronológico (linear) ou psicológico (não linear).
 Espaço: local ou cenário onde se desenrolam os fatos narrados.

38
4.3 Tipos de narrativa

Você já viu que o gênero narrativo serve para contar histórias e é estruturado conforme
alguns elementos. Segundo HOFF (2017), as definições de alguns dos principais tipos
de narrativa.
 Epopeia: longo poema narrativo, de tom solene e elevado. O tema da epopeia,
ao contrário daqueles dos demais tipos de narrativa, é limitado, tratando
sempre de um assunto heroico e nacional. Constitui a primeira modalidade
narrativa criada e é escrita em verso. Seus exemplos máximos são Ilíada e
Odisseia, de Homero.
 Romance: narrativa longa que envolve um número considerável de
personagens (em relação à novela e ao conto), bem como um maior número
de conflitos e tempo e espaço mais dilatados. Embora haja romances que
datem do século XVI (D. Quixote de La Mancha, de Cervantes, por exemplo),
esse tipo de narrativa se consagrou sobretudo no século 19, assumindo o papel
de refletir a sociedade burguesa, e vem se renovando desde então.
 Novela: tipo mais curto de romance, ou seja, tem um número menor de
personagens, conflitos e espaços, ou os tem em igual número ao romance, com
a diferença de que na novela a ação no tempo é mais veloz. Um exemplo de
novela seria Max e os felinos, de Moacyr Scliar, na qual o personagem central,
Max, vive muitas aventuras.
 Conto: narrativa mais curta que tem como característica central condensar
conflito, tempo e espaço, bem como reduzir o número de personagens. O conto
é um tipo de narrativa tradicional, isto é, já adotada por muitos autores nos
séculos XVI e XVII, como Cervantes e Voltaire. Atualmente tem adquirido
atributos diferentes, como deixar de lado a intenção moralizante e adotar o
fantástico ou o psicológico para elaborar o enredo.
 Crônica: texto curto, leve, que geralmente aborda temas do cotidiano. É um
texto híbrido, que pode ter diferentes funções além de narrar, como contar,
comentar, descrever e analisar.

39
4.4 Foco narrativo

Analisar os tipos de narrador, embora essencial para os estudos literários, não


se trata de uma tarefa simples. O estudo do foco narrativo pode ser definido como um
problema técnico da ficção que supõe fazer algumas perguntas fundamentais,
sintetizadas por Lígia Chiappini em O foco narrativo (LEITE, 1985):

1. Quem conta a história? Trata-se de um narrador em primeira ou em terceira


pessoa; de uma personagem em primeira pessoa; ou não há ninguém
narrando?
2. De que posição ou ângulo em relação à história o narrador conta (por cima, na
periferia, no centro, de frente, ou mudando)?
3. Que canais de informação o narrador usa para comunicar a história ao leitor?
(Palavras? Pensamentos? Percepções? Sentimentos? Do autor? Da
personagem? Ações? Falas do autor? Da personagem? Ou uma combinação
disso tudo?)
4. A que distância ele coloca o leitor da história? (Próximo? Distante? Mudando?)
Após coletar tais propriedades da narração, você pode adotar uma tipologia
básica de narradores para caracterizar o foco narrativo empregado. Uma
tipologia interessante é a de Norman Friedman (2002), apresentada no famoso
ensaio O ponto de vista na ficção.

Friedman (2002) vai elencar as seguintes classificações:

Autor onisciente intruso: esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar à


vontade, de se colocar acima ou atrás, adotando um ponto de vista divino para
além dos limites de tempo e espaço. Pode também narrar da periferia dos
acontecimentos, ou do centro deles, ou ainda se limitar a narrar como se
estivesse de fora, ou de frente, podendo, inclusive, mudar e adotar
sucessivamente várias posições. Como canais de informação, predominam
suas próprias palavras e seus pensamentos e percepções. Seu traço
característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os
costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a
história narrada.
40
Narrador onisciente neutro: narrador em terceira pessoa que, embora
semelhante no modo de narrar (ângulo, distância, canais) ao autor onisciente
intruso, se distingue pela ausência de instruções e comentários sobre temas
gerais ou mesmo sobre o comportamento das personagens. Apesar disso, sua
presença, se interpondo entre o leitor e a história, é sempre muito clara.

“Eu” como testemunha: narra em primeira pessoa, mas é um “eu” já interno


à narrativa. Ele vive os acontecimentos aí descritos como personagem
secundária que pode observar, desde dentro, os acontecimentos. Portanto, os
oferece ao leitor de modo mais direto, mais verossímil. No caso do “eu” como
testemunha, o ângulo de visão é, necessariamente, mais limitado. Como
personagem secundária, ele narra da periferia dos acontecimentos, sem
conseguir saber o que se passa na cabeça dos outros; ele pode apenas inferir,
lançar hipóteses, se servindo também de informações, de coisas que viu ou
ouviu e, até mesmo, de cartas ou outros documentos secretos que tenham
caído em suas mãos. Quanto à distância em que o leitor é colocado, pode ser
próxima ou remota, ou ambas, porque esse narrador tanto sintetiza a narrativa
quanto a apresenta em cenas. Nesse caso, sempre narra as cenas como as
vê.

Narrador-protagonista: O narrador, personagem central, não tem acesso ao


estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado
quase que exclusivamente às suas percepções e aos seus pensamentos e
sentimentos.

Onisciência seletiva múltipla: não há propriamente narrador. A história vem


diretamente da mente das personagens, das impressões que fatos e pessoas
deixam nelas. Difere da onisciência neutra porque agora o autor traduz
detalhadamente os pensamentos, percepções e sentimentos, filtrados pela
mente das personagens – enquanto o narrador onisciente os resume depois de
terem ocorrido. O que predomina no caso da onisciência múltipla, como no caso
da onisciência seletiva que vem logo a seguir, é o estilo indireto livre, ao passo
que na onisciência neutra o predomínio é do estilo indireto. Os canais de
informação e os ângulos de visão podem ser vários, nesse caso.
41
Onisciência seletiva: Essa é uma categoria semelhante à anterior, mas que
recai sobre uma só personagem, e não muitas. É, como no caso do narrador-
protagonista, a limitação a um centro fixo. O ângulo é central, e os canais são
limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções da personagem central,
sendo mostrados diretamente. Além desses, Friedman aponta para tipos de
narração que acontecem com a exclusão tanto do autor quanto do narrador.
Isso ocorre quando se eliminam os estados mentais e se limita a informação ao
que as personagens falam ou fazem – como no teatro –, com breves notações
de cena amarrando os diálogos. Assim, surgem os tipos modo dramático e
câmera.

Modo dramático: Em virtude da eliminação da figura presente do narrador ou


da voz narrativa, nesse tipo narrativo cabe ao leitor deduzir as significações a
partir dos movimentos e das palavras das personagens. O ângulo é frontal e
fixo, e a distância entre a história e o leitor, pequena, já que o texto se faz por
uma sucessão de cenas. Trata-se de uma técnica dificilmente sustentável em
textos longos.

Câmera: Significa o máximo em matéria de “exclusão do autor”. Essa categoria


serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se
fossem apanhados por uma câmera, de modo arbitrário e mecânico.

42
4.5 A narratologia e seus pressupostos fundamentais

A narratologia, tal como definida por Mieke Bal (1977, p. 4), teórica cultural
holandesa, é “[...] a ciência que procura formular a teoria dos textos narrativos na sua
narratividade”. Assim, a narratologia, ou teoria da narrativa, é a área de estudo que
busca explicar o funcionamento dos textos narrativos. Mas o que são textos
narrativos? Para chegarmos a essa resposta, podemos primeiro pensar nas narrativas
existentes no mundo, que são inúmeras. O mito, a lenda, a fábula, o romance, o conto,
a novela, as histórias em quadrinhos, os filmes cinematográficos são todos exemplos
de textos narrativos.
O conceito de texto aqui é entendido como discurso, um exemplo
empiricamente atestado de linguagem, conforme a definição do linguista Émile
Benveniste (1995): o discurso é expressão da língua como instrumento de

43
comunicação. Então, o que todos esses textos têm em comum que os torna textos
narrativos? A sua narratividade e a sua forma de veiculação da informação, da história,
entre quem conta a história e quem a lê, ouve ou vê. Todos esses textos narrativos
citados fazem parte da tipologia textual narrativa, que tem características discursivas
bem marcantes. Nas narrativas, necessariamente transmite-se uma mensagem, que
está inserida em um tempo específico, elaborada de modo que o receptor consiga
entendê-la. Essa mensagem possui um estado inicial e progride até o desfecho, ainda
que nem todas as narrativas comecem de forma cronológica pelo primeiro
acontecimento. Algumas narrativas são feitas “in medias res”, isto é, começam pelo
meio da história, por um acontecimento importante, como a morte de alguém, e o
narrador volta ao início de tudo, quando o personagem ainda não havia morrido, para
contar como a história se desenrolou.

Fonte: www.aberje.com.br

A mensagem do texto narrativo é emitida pelo narrador, que conta a história, e


captada pelo receptor do texto, o narratário, mas só é compreendida e interpretada
pelo leitor real, a pessoa que faz a interpretação dessa mensagem olhando o todo: o
que foi enunciado e como foi enunciado. A narratologia, então, é a teoria que busca
sistematizar as técnicas, os métodos e os modos de transmissão e recepção dos

44
textos narrativos, e busca explicar teoricamente as maneiras como nós, receptores,
entendemos narrativas literárias e não literárias. Segundo Reis e Lopes (1988), a
narratologia não se limita à análise de textos narrativos literários, pois estuda a
narrativa de um modo geral, englobando a análise de textos narrativos não literários,
ainda que os textos literários tenham sido privilegiados ao longo da construção da
teoria da narrativa.
Além da ficcionalidade, outra característica primordial da linguagem literária é
estética, preocupada com efeitos de sentido. Ela é selecionada pelo autor, que pode
utilizar metáforas e outras figuras de linguagem, e pode ter como um de seus objetivos
a fruição do texto pelo leitor. Apesar de poderem ser de ficção e sobre mundos
alternativos, inventados, as obras literárias precisam ter verossimilhança. Não
necessariamente o que está sendo contado, declamado ou lido necessita existir no
mundo real, mas a história inventada requer verossimilhança, isto é, lógica interna: o
que ocorre no interior da história deve fazer sentido naquele mundo interno ao texto.
Em resumo, a narrativa literária é um tipo de texto específico que faz parte do conjunto
de textos literários. Aqui, o termo texto é entendido como discurso, segundo Bakhtin
(1992, p. 279): “[...] tipos relativamente estáveis de enunciados produzidos nas
diferentes esferas da atividade humana”. Assim, um texto, seja literário ou não, é
entendido como uma maneira pela qual a linguagem pode ser posta em prática nas
relações humanas. Ambos tipos de textos, literários e não literários, podem ser
escritos ou não. Um poema declamado, por exemplo, é um texto literário oral. Apesar
do termo literalidade ser uma hipótese válida para distinguir a literatura de outras
formas de discurso, é possível argumentar que ela varia de época para época e de
leitor para leitor. Assim, o que é considerado linguagem literária varia e, por isso,
surgem disputas relativas à classificação de certos textos como literatura. Não há uma
regra única que determine se um texto é ou não literário, porque essa decisão
depende da sua recepção (pelo público, pela crítica, em manuais, etc.). Seja como
for, o Quadro 1 nos ajuda a visualizar e a entender possíveis diferenças entre textos
literários e textos não literários.

45
4.6 Pressupostos fundamentais — as narrativas e a narratividade

A narratologia nasceu da relação com duas outras abordagens teóricas e


metodológicas: o estruturalismo e a semiótica. Embora seja uma área de estudo da
literatura, teve seu ponto de início gerado devido à necessidade de contraponto à
linguística estruturalista. (TEIXEIRA, 2011)
Roland Barthes, em 1966, em seu artigo publicado no número 8 da revista
Communications, número que inaugurou as discussões sobre a teoria da narrativa,
aponta a necessidade de reconhecimento de níveis de análise da linguagem acima
da frase, o nível do discurso, como uma unidade que demanda estudo sistemático.
Segundo a crítica de Barthes, a linguística estruturalista se concentrava na explicação
de objetos linguísticos menores, como fonemas e morfemas, e não avançava do nível
da frase. Assim, desse confronto e desejo de expansão surgiu a análise da narrativa,
da narrativa como discurso, texto complexo, com características particulares.
Em 1969, Tzvetan Todorov, ao publicar seu livro Grammaire du Décameron,
utiliza pela primeira vez o termo “narratologia” quando afirma que sua obra literária é
uma narrativa e sua análise faz parte de uma ciência chamada narratologia. Vinda,

46
portanto, da linguística estruturalista, corrente teórica vigente na época, a narratologia
analisa a estrutura subjacente aos textos narrativos e traz conceitos comuns a todas
as narrativas, conforme veremos mais adiante neste capítulo. Antes disso,
examinemos os pressupostos fundamentais de um texto narrativo segundo a
narratologia. O termo narrativa tem concepções diversas, mas duas em especial são
sempre confrontadas na teoria da narrativa.

Fonte: www.conceptodefinicion.de.com.br

A primeira concepção é da narrativa como um processo de enunciação, como


o ato de relatar algo, e a segunda concepção é da narrativa como resultado dessa
enunciação, como produto do que foi narrado (REIS; LOPES, 1988). A primeira
concepção é mais utilizada pela narratologia e tem consequências para a análise dos
diferentes tipos de estrutura e operações que podem emergir nas narrativas.
Assim, a narrativa é entendida como algo que não é estático, como uma “[...]
prática interativa (relação narrador/narratário), uma comunicação narrativa” (REIS;
LOPES, 1988, p. 66). Essa primeira concepção abre espaço para a consideração de
Reis e Lopes (1988) sobre a narrativa não ser imune a atitudes de valoração, como
ideologias e comportamentos éticos, que surgem principalmente da subjetividade do
47
narrador, evidenciado, segundo os autores, “[...] o caráter pluridiscursivo da
enunciação narrativa” (REIS; LOPES, 1988, p. 60).
Por outro lado, a segunda definição também é utilizada para se analisar os
textos narrativos, que são histórias com tempo e espaço definidos, nas quais eventos
e ações de personagens acontecem. Essa história, então, chega ao leitor por meio de
um código, uma linguagem específica. Desse modo, tanto a relação comunicativa
entre quem conta a história e quem a lê/ouve/vê (conforme a primeira definição)
quanto o próprio produto dessa comunicação, o texto em si (conforme a segunda
definição), são objetos de análise da narratologia. Antes de descrevermos as
estruturas e operações formuladas pela narratologia para analisar os diferentes tipos
de narrativas existentes, vamos contrapor o significado de texto narrativo a seus
pares, para entendê-lo melhor. A narração, a descrição e a dissertação são três tipos
de textos diferentes. A narração, que estudamos aqui, é o ato de contar uma história
para alguém; a descrição é o ato de caracterizar/descrever um ambiente ou um
personagem; já a dissertação é o ato de argumentar. (TEIXEIRA, 2011)
Na dissertação predomina o argumento do escritor, a fim de provocar o leitor e
o seu posicionamento. Se levamos em conta o texto narrativo literário, em particular,
podemos contrapô-lo ao texto lírico e ao texto dramático. O exemplo clássico de texto
lírico é o poema, texto essencialmente subjetivo, que traz marcas do sentimento e do
lirismo do sujeito. O exemplo clássico do texto dramático é o teatro, o drama, que é
escrito para ser representado e encenado, e pressupõe o uso de outras linguagens,
como a linguagem gestual. (TEIXEIRA, 2011)
Por sua vez, um exemplo clássico de texto narrativo literário é o romance, um
texto escrito que conta uma história mediante uma sequência de acontecimentos e
ações dos personagens, podendo essa história ser baseada na realidade
(extratextual) ou ficcional. Ao contrário do que acontece com o texto lírico e com o
texto dramático, a narrativa não se concretiza apenas no plano dos textos literários. A
narrativa se encontra em diversas situações funcionais e contextos comunicativos —
como em relatórios, em piadas e anedotas contadas —, na historiografia, na história
contada da humanidade e também, muitas vezes, aparece na mídia. Da mesma
maneira que os contextos comunicacionais das narrativas são diversos, ultrapassando
o texto narrativo literário, os suportes também são variados. As narrativas acontecem
também em suportes multimodais, como histórias em quadrinhos, por exemplo, que

48
misturam imagem e linguagem verbal, e o cinema, que também é uma modalidade
mista verbo-icônica (linguagem verbal, imagem, sequência de cenas, vídeo e áudio).
(REIS; LOPES, 1988).
As narrativas apresentam contextos interativos e sociais diversos — imprensa,
literatura, relatório —, e também acontecem em suportes diferentes — verbal,
imagético, sequência de cenas (filme) —, como vimos. Mas o que todas essas
narrativas têm em comum, então, que as torna narrativas? A narratividade, ou seja, a
qualidade nuclear do texto narrativo. É por meio dela que nós, leitores/receptores,
entendemos a história que nos é contada. A narratividade é definida teoricamente
como “[...] o fenômeno de sucessão de estados e de transformações, inscrito no
discurso, que é responsável pela produção de sentido” (GROUPE D'ENTREVERNES,
1979, p. 14).
Isto é, a narratividade é a qualidade do texto narrativo de contar uma sequência
de eventos, de fatos, narrados na construção de uma história. Assim, a narratividade
é o que possibilita a decodificação da narrativa pelo receptor, aquele que ouve, lê ou
vê a narrativa. Na teoria semiótica, o conceito de narratividade foi ampliado e dá papel
central ao receptor da história, que, no processo de leitura, atualiza e identifica os
acontecimentos, o desenrolar da narrativa (REIS; LOPES, 1988).
Uma vez que a narrativa representa uma reconstrução do universo, de histórias
reais e ficcionais possíveis, a narratividade deve ser entendida como uma
característica própria do discurso narrativo, que é o reconstrutor desse universo
contado, e deve ser atualizado no processo de leitura pelo leitor/receptor da narrativa.
Desse modo, a narratividade existe para possibilitar ao receptor o acesso às ações de
dimensão temporal e sequencial dos textos narrativos. Além de ter acesso à narrativa
pela narratividade, outras características constituem um texto como narrativa. As
diferentes estruturas dos textos narrativos e operações utilizadas na criação das
narrativas levam a textos narrativos diferentes entre si, como o romance e o cinema,
por exemplo. (TEIXEIRA, 2011)

49
Fonte: www.espaciolibros.com

5 TEORIA DO DRAMA

5.1 Gênero Dramático

Para tratar do texto dramático, é imprescindível que façamos referência à sua


origem, o que ajuda a explicar traços característicos que se mantêm até hoje. Segundo
Berthold (2001, p. 1), “[...] o teatro é tão velho quanto a humanidade [...]” e, portanto,
universal. Claro que formas primitivas de apresentação pública podem ser
relacionadas ao drama. No entanto, interessa-nos aqui a elaboração artística dessa
forma de expressão. É por meio dos gregos que temos notícias das primeiras
manifestações dramáticas na Europa e também das primeiras noções teóricas sobre
o gênero. Sua gênese está nos rituais e nas festas em homenagem a Dionísio, Deus
do vinho e da agricultura. Os ditirambos são o embrião do teatro grego. Nada mais
são do que versos líricos destinados ao canto, por parte de um coro. Por meio deles,
exaltava-se o Deus Dionísio, relembravam-se seus feitos e comemorava-se a colheita.
50
Essa prática envolvia a comunidade, o canto, a dança, a festa. As várias intervenções
dos componentes do coro é que deram origem ao diálogo, essência do texto
dramático.

Aristóteles (384-322 a.C.), em sua Poética, ao se referir aos tipos de imitação (a


elaboração artística da realidade), trata do gênero dramático como a arte que imita
por meio da ação. Em outras palavras, é a arte que se constitui pela ação das
personagens, de forma autônoma, sem a intermediação de um narrador. Daí o nome
do gênero — drama —, que, em grego, significa ação. Assim, o texto dramático se
constitui a partir de uma sucessão de acontecimentos representados pelos
personagens no aqui e agora da cena. No entanto, é bom lembrar que ação não quer
dizer, necessariamente, movimento. Os silêncios, as hesitações, as estagnações das
personagens também fazem parte da ação, pois direcionam o enredo a algum lugar
(reação de uma personagem, mudança de estado, e assim por diante).

Ao nos atermos ao texto dramático propriamente, podemos perceber algumas


estruturas específicas desse gênero. Rosenfeld (2008) chama a atenção para um
“paradoxo” da literatura dramática — o de ser “incompleta”, na medida em que só se
consolida no ato da encenação. Diante dessa particularidade, é preciso entender o
texto dramático a partir de suas peculiaridades e daquilo que o constitui como forma
artística híbrida. Tal hibridismo refere-se ao fato de que a literatura dramática requer,
para sua existência plena, uma complementação, que, para além da palavra, do seu
autor e do público, envolve também direção, atores, cenário e toda uma gama de
recursos extratextuais. Como esses elementos extratextuais implicam interpretação,
criatividade e adaptação, também é possível reconhecer as inúmeras formas de a
obra ser completada. Consideremos, por exemplo, Hamlet, famoso texto de
Shakespeare, escrito no século XVII. De lá para cá, inúmeras encenações foram
feitas, por inúmeros diretores, com o protagonista sendo representado por diversos
atores, com recursos de cenários os mais diversos, para públicos de muitas nações e
épocas. Cada uma dessas encenações dá novos sentidos ao texto e constitui uma
novidade em termos de complementação do texto original de Shakespeare; a obra se
completa em cada encenação. Um ponto inicial a se considerar é anterior ao próprio
texto; diz respeito aos propósitos do texto. (FLACH, 2019)

51
Um texto dramático é pensado com um fim diferente de um romance. No primeiro
caso, o autor tem em mente a situação teatral, a representação, o espetáculo. A obra
se realiza na encenação. No segundo caso, o autor tem em mente a leitura individual.
A obra se realiza no momento da leitura. Claro é que nem toda obra dramática pode
chegar a ser encenada e, também, aquele texto inicialmente criado para ser lido pode
ser adaptado para o teatro ou o cinema. No entanto, isso não está, necessariamente,
no propósito inicial de quem escreve drama e romance, respectivamente. A partir da
finalidade pretendida, são feitas as organizações textuais próprias a cada composição
literária. O texto dramático, como referido, está organizado em torno da ação e,
portanto, são as personagens as responsáveis por realizar o texto, apresentar o
argumento narrativo. Não há narrador que explique, contextualize ou comente o que
se passa. Ao nos depararmos com esse tipo de produção literária, facilmente podemos
identificar seu caráter dialógico. Os eventos são apresentados pela interação das
personagens, por meio dos diálogos. Esses diálogos devem conseguir evidenciar o
que pensam, o que fazem, como são. (FLACH, 2019)

Fonte:www. pixabay.com.br

Segundo FLACH (2019), na sequência, são referidos os elementos essenciais


do texto dramático, bem como o modo como se apresentam.

 Enredo: assim como em qualquer narrativa, apresenta uma situação


inicial, um conflito, um clímax (momento de maior tensão) e um desfecho.
Dependendo do texto, as cenas podem ser divididas em atos. O mais
52
importante, porém, é a unidade de ação. Daí que as histórias, em geral,
desenvolvem-se em torno de um episódio único, um núcleo, havendo uma
concentração da tensão narrativa.
 Tempo/espaço: assim como o enredo, também deve haver uma unidade
de tempo e espaço, que se expressam por meio da organização do
ambiente e da atmosfera, ou seja, todos os recursos externos às
personagens devem estar em consonância com a ação da personagem.
Há a possibilidade de serem representados espaços e tempos diversos,
desde que haja entre eles certa harmonia, no sentido de não serem
meramente figurativos, mas que desempenhem uma função — compor a
unidade de ação. No caso da encenação, também é significativo o tempo
da apresentação, em que os fatos se colocam à vista do espectador.
 Personagens: são a essência do teatro. Obviamente, variam conforme o
estilo e a época do autor. Por exemplo, no caso das tragédias gregas,
tem-se deuses e reis em conflito consigo mesmos e com seus próximos.
No caso do teatro de costumes, as personagens-tipo (o padre, o ladrão,
o burguês, a moça). Se, como referido acerca do enredo, deve haver um
conflito que desencadeia uma ação, uma mudança de estados, esse
conflito está associado à relação entre as personagens — a clássica
tensão entre protagonista e antagonista, em torno dos quais a história se
desenvolve. Por meio de seus atos, a história é mostrada (e não contada).

Segundo Teixeira (2011), além destes, há que se considerar o público a quem


se destina a história. Sobre isso, o autor propriamente tem pouco domínio. É claro que
pode prever quem serão os prováveis destinatários do seu texto. Contudo,
considerando- -se a atemporalidade e a universalidade da literatura, somente o diretor
é que poderá definir o público de modo mais concreto e a partir daí organizar o
espetáculo. A função do diretor é praticamente de coautor, na medida em que o texto
dramático costuma ser escasso no que se refere à orientação de cena. Cabe ao diretor
vislumbrar o texto em cena, considerar o público a que se destina, o espaço onde
ocorrerá a encenação, os recursos disponíveis e, inclusive, se pretende ser fiel às
palavras do texto e à sua organização ou se deseja fazer adaptações. Nesse mesmo
viés, podemos considerar outros elementos para além do texto — a cenografia, o
53
figurino, a maquiagem, a luz, os efeitos visuais, a sonoplastia e todos os recursos que
compõem o cenário e contribuem para o efeito pretendido.

Tanto quanto a intervenção do diretor, as escolhas relacionadas à estrutura da


encenação interferem nos efeitos de sentido associados ao texto dramático. Interessa-
nos, porém, no âmbito da teoria literária, analisar os aspectos intrínsecos ao texto
dramático. Na seção seguinte, aprofundaremos o estudo desses elementos.
(TEIXEIRA, 2011)

O drama moderno é um texto literário composto principalmente por diálogos, que


propõe uma sequência de ações e que é produzido especialmente para a elocução,
respeitando uma lógica de mundo interno absoluta. O drama, na concepção
contemporânea, relaciona-se exclusivamente com a intenção da expectação.
(WOLFF, 2008)

O que diferencia um texto dramático de qualquer outro texto literário é a


expectativa de encenação (de que o texto seja encenado) e, logo, a expectativa de
possíveis novas camadas de recepção. Dessa forma, o drama e suas derivações
nominais (dramaturgia, texto dramático) referem-se ao texto escrito que pretende ser
mais do que apenas lido, ao passo que o teatro é o nome que se dá a esta arte que
não funciona sem a interlocução com o público. (WOLFF, 2008)

5.2 Estrutura do texto dramático e linguagem

Acerca do texto dramático, duas categorias destacam-se no centro de sua


constituição: ação e personagens. Isso implica considerar que esse gênero literário
deverá valer-se de estratégias próprias, para, em certo sentido, substituir a função do
narrador, inexistente no drama. Vejamos como isso se dá. Para tanto, partiremos do

54
trecho a seguir, a primeira cena da peça Gota d´água, de Paulo Pontes e Chico
Buarque.

PRIMEIRO ATO
(O palco vazio com seus vários sets à vista do público; música de orquestra, no
set das vizinhas, quatro mulheres começam a estender peças de roupa lavada,
lençóis, camisas, camisolas, etc.; tempo; Corina chega apressada, sendo
recebida com ansiedade pelas vizinhas.)
CORINA: Não é certo...
ZAÍRA: Como é que foi?...
ESTELA: Foi lá?
CORINA: Não é certo...
MARIA: Ela não melhorou, não?
CORINA: É de cortar coração...
NENÊ: Mas é então?
CORINA: Não sei, não dá, certo é que não está E olhe bem que aquilo é muito
mulher
ZAÍRA: Ela é bem mais mulher que muito macho
ESTELA: Joana é fogo [...] (PONTES; BUARQUE, 1976, p. 3).

Visualmente, é possível perceber a estrutura do texto dramático: organizado por


meio de diálogos, reforçando a autonomia e a importância das personagens para a
condução da história. Há a indicação do nome da personagem, seguida de sua fala.
Observe que, no caso dessa peça em particular, o texto é organizado em verso, tendo
em vista que se trata de um musical. Em outras peças, o texto pode ser escrito em
prosa. A opção por uma ou outra forma leva a uma sonoridade e a um ritmo
específicos, conforme os efeitos pretendidos. (FLACH, 2019)
Também é possível perceber uma orientação de cena no topo da página,
necessária para o diretor compor o set (neste caso, há mais de um) e o que acontece
aí (“quatro mulheres começam a estender peças de roupa lavadas, lençóis, camisas,
camisolas, etc.”). Essa indicação é importante não apenas para mostrar o que as
mulheres estão fazendo, mas também indica traços sobre condição social e
ocupações. Na sequência, é referida a entrada de outra personagem — “Corina chega

55
apressada” — e o modo como é recebida pelas vizinhas — “com ansiedade”. A partir
dessa indicação de cena (denominada rubrica), que, em certa medida, substitui a
intervenção do narrador, inicia-se a interação. (FLACH, 2019)

Fonte: www.brasilescola.uol.com.br

Os diálogos evidenciam justamente a ansiedade das vizinhas (todas falam quase


ao mesmo tempo, têm muitas perguntas) e a apreensão de Corina. O tema da
conversa e o motivo da apreensão é Joana, a personagem de quem se fala. Assim,
mesmo antes de esta entrar em cena, já sabemos que algo de preocupante aconteceu
com ela. A estrutura do texto é, desse modo, composta pelos diálogos das
personagens e pela indicação das circunstâncias em que se dá a ação. Já que não
há narrador para explicar o que acontece, isso é tarefa das próprias personagens, que
se dão a conhecer ou pelo que dizem a seu respeito (como vimos aqui), ou pelo que
fazem ou pelo que elas mesmas revelam sobre si mesmas. Não raro, as ações das
personagens (gestos, movimentos, atitudes) são referidas por elas mesmas, já que a
rubrica é minimamente empregada. Não esqueçamos que o texto dramático se dá
pela ação das personagens. Qualquer outra intervenção nesse sentido deve ser
evitada ao máximo, sob pena de afetar a dinâmica da cena. Isso fica claro no seguinte
exemplo, retirado de O Judas em Sábado de Aleluia, de Martins Pena:

56
MARICOTA: Recebeu minha resposta?
CAPITÃO: Recebi, e a tenho aqui comigo. Mandaste-me dizer que estavas pronta a
fugir para minha casa; mas que esperavas primeiro poder arranjar parte do dinheiro
que teu pai está ajuntando, para te safares com ele. Isto não me convém. Não está
nos meus princípios. Um moço pode roubar uma moça — é uma rapaziada; mas
dinheiro é uma ação infame!
MARICOTA: à parte — Tolo!
CAPITÃO: Espero que não penses mais nisso, e que farás somente o que te eu peço.
Sim?
MARICOTA: à parte — Pateta, que não percebe que era um pretexto para lhe não
dizer que não, e tê-lo sempre preso.
CAPITÃO: Não respondes?
MARICOTA: Pois sim. (À parte:) Era preciso que eu fosse tola. Se eu fugir, ele não se
casa (PENA, 1987, p. 162).

No diálogo entre Maricota e o Capitão, seu pretendente, é referida uma carta


enviada por ela. Naturalmente, se ele afirma que a recebeu, ambos sabem o conteúdo
da carta, a resposta de Carlota, porém o leitor/espectador, não. A solução dramática
é, nesse caso, o Capitão relembrar o conteúdo da carta (“Mandaste-me dizer que...”),
e não apenas comentar a resposta dela. Se fosse um romance, isso não seria
necessário, tendo em vista que o próprio narrador, ou mesmo a personagem Carlota
em momento anterior, teria revelado o teor da carta. É comum as personagens
verbalizarem seus atos, suas ações, para que se entenda o que está acontecendo.
Um dos elementos mais complexos a serem reproduzidos no texto dramático é o
universo interior das personagens, o que pensam, o que sentem. Uma forma de isso
aparecer é por meio dos “apartes”, um comentário feito pela personagem a si mesma
ou ao público. O efeito é interessante porque é como se a personagem com quem
interage, frente a frente, não ouvisse. Isso pode ser percebido no trecho em questão.
Pelas manifestações de Carlota, percebemos que ela não é sincera ao responder ao
Capitão, iludindo-o, pois fala dele como se ele não estivesse ali (“Tolo”; “Pateta”; “Se
eu fugir, ele não se casa”). Do mesmo modo, a alma da personagem pode ser revelada
por meio de um desabafo a um confidente ou por meio dos monólogos, em que as

57
personagens fazem longas divagações, como se estivessem “pensando alto”, mas
cujo propósito, novamente, é revelar-se para a plateia. (FLACH, 2019)
O mais famoso exemplo é, sem dúvida, o monólogo de Hamlet, tentando
encontrar respostas para suas angústias:

HAMLET
— Ser ou não ser
— Eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma Pedradas e flechadas do destino
feroz. Ou pegar em armas contra o mar de angústias (SHAKESPEARE, 1999, p. 63).

Nas tragédias clássicas, certas atitudes e acontecimentos eram explicados e


analisados pelo coro. Ao final de cada ato, eles cantavam uma espécie de “resumo”
do que havia ocorrido e apontavam algumas possibilidades de desenvolvimento do
enredo. O jogo de vozes coletivas contrastava com a voz do corifeu (o líder do coro),
em uma harmonia musical que contribuía para o interesse no espetáculo e, ao mesmo
tempo, ajudava a apresentar a história, como em Édipo Rei, de Sófocles:

CORO — [...]. Sobre ele já se lançou o filho de Zeus, armado de chamas e


relâmpagos, e em suas pegadas correm as deusas da morte, as terríveis deusas que
jamais deixaram de alcançar sua presa (SÓFOCLES, 1999, p. 33-34).

Esse tipo de intervenção do coro, claramente substituindo a função do narrador,


é rara nos textos dramáticos mais recentes, os quais têm primado pela economia de
recursos para além dos próprios atores. O que se observa, no entanto, nessas obras
mais modernas, é o que se chama de “rompimento da quarta parede”, em que as
personagens fazem questão de mostrar o processo ficcional e de encenação,
revelando a presença do público e com ele interagindo, muitas vezes “saindo da
personagem” para dialogar com o público. Rompem, assim, a parede imaginária que
separa a plateia do palco, desvelando a ilusão de real. Mais uma vez, O Judas em
Sábado de Aleluia:

FAUSTINO — [...]. Sua benção, querido pai Pimenta, e seu consentimento!


PIMENTA — O que lhe hei de eu fazer, senão consentir!
58
FAUSTINO — Ótimo! (Abraça a pimenta e dá-lhe um beijo. Volta-se para
Chiquinha). Se não houvesse tanta gente a olhar para nós, fazia-te o mesmo [...]
(Dirigindo-se ao público). Mas não o perde, que fica guardado para melhor
ocasião (PENA, 1987, p. 175).

A linguagem, como se percebe nos exemplos aqui citados, tende a uma


grandiloquência, frases curtas, retóricas, diretas, o que favorece o entendimento de
parte do público (lembremos sempre que o texto dramático é escrito para ser
interpretado, para a voz projetada). Mais do que o gestual, a força da palavra em cena
é que conduz à ação, encadeando os fatos.

Fonte: www.brasilescola.uol.com.br

5.3 Literatura dramática em diálogo com outras expressões literárias

Como vimos, o texto dramático apresenta algumas especificidades formais e


de linguagem que o caracterizam como tal. No entanto, sua essência literária permite-
nos estabelecer relações com outros gêneros literários, dos quais se aproxima e se
distancia em alguma medida. Podemos considerar, então, uma relação de
convergência e divergência no que se refere ao gênero dramático em relação aos
demais. Emil Steiger (1972) é quem nos apresenta uma das mais importantes

59
teorizações sobre os gêneros literários. Estes se desenvolvem a partir de três estilos
literários – o lírico, o épico e o dramático, conforme esquematizado na Figura 1.

O estilo lírico pressupõe uma fusão entre o eu lírico e o objeto referido, com uma
visão de mundo altamente subjetivada, daí a recordação (literalmente, trazer de volta
ao coração). O estilo épico (do qual derivam as narrativas em prosa) pressupõe um
distanciamento entre o sujeito (narrador) e o objeto (mundo narrado). O narrador tem
domínio sobre o narrado, controla-o, organiza a ordem em que se apresentam os
fatos. O estilo dramático, por sua vez, elimina o sujeito (épico ou lírico), e o mundo é
representado de forma autônoma, não relativizado. (FLACH, 2019)
A ação se realiza diante de nós, os fatos se apresentam por si só. Como há uma
expectativa em relação ao desfecho da história, à condensação de tempo e espaço e
a uma duração mais curta, o dramático promove uma tensão. Obviamente, cada obra
literária pode apresentar, em maior ou menor grau, elementos desses três estilos. Tal
apresentação esquemática ajuda a pensar didaticamente a organização dos gêneros,
porém sabemos que eles se relacionam. Assim como há tensão em um conto, há
lirismo em uma peça teatral, por exemplo. O esquema aqui referido deve ser entendido
como uma constatação do que está na base formativa dos textos literários, não como
uma normatização. Sabemos que, cada vez mais, os limites entre os gêneros são
atenuados. Lembremos que o ditirambo, canto religioso que dá origem ao drama, era
uma composição que misturava a narrativa (épico) e os sentimentos de louvor ao deus
(lírica).
D´Onofrio (2001, p. 126) defende que o drama “[...] reúne a objetividade da
epopeia com o princípio subjetivo da lírica, ocupando o justo meio entre a extensão
60
da épica e a concentração da poesia lírica [...]”. Todavia, não podemos perder de vista
o ineditismo do gênero dramático, na medida em que a atuação das personagens em
cena, diante do espectador (a encenação é o fim próprio do drama), é exclusiva desse
gênero. A própria gênese do texto literário, seu processo de composição, mira à
situação de encenação e se compõe com vistas ao efeito cênico. Desse modo, a
simples organização em diálogo não constitui o texto dramático. Consideremos o
trecho do conto Papos, de Luís Fernando Verissimo:

— Me disseram...
— Disseram-me.
— Hein?
— O correto é “disseram-me”. Não “me disseram”.
— Eu falo como quero. E te digo mais... Ou é “digo-te”?
— O quê?
— Digo-te que você...
— O “t” e o “você” não combinam.
— Lhe digo?
— Também não. O que você ia me dizer?
— Que você está sendo grosseiro, pedante e chato. E que eu vou te partir a cara.
Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?
— Partir-te a cara.
— Pois é. Parti-la hei de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me
(VERISSIMO, 2001, p. 65).

O diálogo evidencia muito mais a situação peculiar do uso das línguas do que
propriamente as personagens e suas ações. Nem mesmo a tensão que leva ao
desfecho é construída. Claro, se submetido a uma adaptação, incluídos os elementos
dramáticos, é possível que o texto possa ser encenado. Contudo, a priori, foi escrito
para ser lido, mesmo tendo a forma de diálogo.
Segundo FLACH (2019), o texto dramático também tem forte proximidade com
o roteiro de cinema. A despeito das peculiaridades de cada um (câmera, palco, luz,
cenografia), a organização textual é bastante semelhante, envolvendo o
direcionamento da cena (rubrica) e a organização em diálogos. Para finalizar,

61
comparemos os meios de adaptação de um romance para um texto dramático. O
exemplo em questão é a obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. Narrado em
primeira pessoa, pelo próprio Bentinho, este expõe, no trecho a seguir, como José
Dias, o agregado da família, denuncia o namoro dele com Capitu, o que interfere nos
planos de mandá-lo para o seminário:

Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi- -me atrás
da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que é um
tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às
pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.
— D. Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminário? É
mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.
— Que dificuldade?
— Uma grande dificuldade. Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de
alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por
mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente
do Pádua.
— A gente do Pádua?
— Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece
bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta
é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para
separá-los.
— Não acho. Metidos nos cantos? (ASSIS, 2008, p. 96-97).

Observe que o narrador inicia referindo que estava ouvindo a conversa entre
José Dias e D. Glória, sua mãe. Já na adaptação teatral (em que as personagens
ganham autonomia), primeiro é apresentada uma cena que contextualiza o namoro
dos dois e, somente em seguida, a preocupação de José Dias:

ATO ÚNICO
CASA DE BENTINHO
(Capitu e Bentinho estão em cena, ambos sentados escorados nas costas um do
outro)

62
CAPITU — Bentinho, você me acha bonita?
BENTINHO — Ora Capitu, por que essa pergunta?
CAPITU — Então você me acha tão feia assim?
BENTINHO — (Vira-se e a encara) Feia? Você é a menina mais linda que eu já
conheci em toda a minha vida.
CAPITU — (Beija-o no rosto) Obrigada! Ontem eu tive um sonho lindo... E você,
sonhou com quem ontem?
BENTINHO — Sonhei que tínhamos que nos separar, e que nunca mais iríamos
brincar juntos.
CAPITU — Então não foi sonho, foi pesadelo e eu morreria se perdesse a sua
amizade. (Abraça-o e levanta-se) Eu sonhei que nós andávamos no céu, em meios
às nuvens...
BENTINHO — (Levantando-se) E lá, Capitu, era bonito?
CAPITU — Muito, muito lindo, nós conversávamos (pega na mão dele), eu pegava na
sua mão, ela estava quente. Aí começava a música, aí nós dançávamos,
dançávamos... (Eles dançam, José Dias entra sem que eles vejam e observa)
VOZ DONA FORTUNATA — Capitu, menina, venha já pra casa!
CAPITU — Tenho que ir.
BENTINHO — Vamos, eu vou lhe deixar!
CAPITU — Quem chegar por último é a mulher do padre.
BENTINHO — Então vai, no já: 1, 2, 3 já. (Saem correndo)
JOSÉ DIAS — Essas crianças!
DONA GLÓRIA — (Entrando) José Dias, você viu o Bentinho?
JOSÉ DIAS — Bentinho foi deixar a Capitu em casa. Dona Glória, se a senhora quer
mesmo meter Bentinho no seminário, deve se apressar antes que seja tarde.
DONA GLÓRIA — Tarde?
JOSÉ DIAS — Não me parece bonito (Bentinho os observa) que o Bentinho ande
metido nos cantos com a filha do Pádua. (DENILSON, 2010, documento on-line)

Enquanto, no romance, o narrador antecipa-se em demonstrar sua preocupação


e interesse na conversa, na peça isso aparece como rubrica, bem ao final (“Bentinho
os observa”). O plano principal visa a construir as personagens diante do espectador.

63
No romance, as intenções de José Dias são o destaque, mesmo antes de o leitor
saber quem é Capitu e que tipo de relação tem com Bentinho. (FLACH, 2019)
Considerando as especificidades de linguagem e estrutura, o dramático
apresenta-se como um gênero aberto, não só porque se renova a cada encenação,
ganhando vida na voz dos atores, mas também porque oferece ao leitor muitos
caminhos de leitura e interpretação.

64
6 BIBLIOGRAFIA BÁSICA

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