Marliene Maiara de Meneses - FINAL
Marliene Maiara de Meneses - FINAL
Marliene Maiara de Meneses - FINAL
NATAL
2021
MARLIENE MAIARA DE MENESES
NATAL
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Profa. Dra. Juliana Teixeira Souza. (Orientadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
_________________________________________________________
Prof. Dra. Melina Kleinert Perussatto
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
__________________________________________________________
Prof. Dr. Magno Francisco de Jesus Santos (Suplente)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
À minha mãe, Maria e aos meus
sobrinhos, Welton e Maria Celeste.
AGRADECIMENTOS
According to IBGE data, the persistence of racial inequalities in Brazil has consequences
for the population’s education. Statistics about school evasion, literacy and violence in
schools demonstrate inequality between people who are declared black or brown in
relation to people who declare themselves white. The lack of appreciation and
dissemination of references in relation to black personalities is pointed out by the National
Curriculum Guidelines for the Education of Ethnic-Racial Relations and for the Teaching
of Afro-Brazilian and African History and Culture as one of the obstacles to changing
this scenario. Therefore, I propose the use of biographies of black men and black women
who fought for the freedom and rights of black population in Brazil, aiming to build a
fairer and more egalitarian society. The biographies, in addition to providing students
with positive references for the construction of a black identity, will allow students to get
hold of a variety of concrete experiences, which sometimes escape from the hegemonic
ideas about the black population. For the product, I will present a scrapbook, a memory
book composed of clippings and images that refer to the ideas and experiences of these
black personalities, I will enable students to contact with various types of written and
image sources. With this, I aim to stimulate the construction of knowledge through the
methodology of historical research, so that the traces support the elaboration of
hypotheses and taking positions committed to the education’ goals for ethnic-racial
relations.
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11
INTRODUÇÃO
Em 2018, a Escola de Ensino Médio Professora Diva Cabral, localizada no bairro Jardim
Cearense, na periferia da cidade de Fortaleza, organizou sua primeira Exposição de Ciências e
Humanidades, que tinha os “Direitos Humanos” como tema central. Os alunos tiveram
liberdade para escolher os temas com os quais trabalhariam, havendo variedade de assuntos
abordados: direitos das mulheres, evasão escolar, consumo de drogas etc. Entre as várias
apresentações, uma chamou minha atenção pela maneira como os estudantes se apropriaram e
se identificaram com o assunto: os abusos cometidos por policiais nas periferias das grandes
cidades brasileiras.
Os alunos do segundo ano do Ensino Médio trouxeram dados e pesquisas sobre a
atuação violenta da polícia, mas o que se destacou foram os relatos pessoais dos estudantes, não
somente da equipe de apresentação, também dos ouvintes. No final, a comunicação oral se
tornou uma grande roda de conversa sobre o tema e os estudantes se sentiram à vontade para
descrever como já tinham sido abordados em diversos momentos pela polícia enquanto
conversavam nas calçadas ou passeavam pelo seu bairro de residência - alguns até no caminho
para a escola, devidamente fardados. Outros relataram que já terem até sido presos por desacato
à autoridade, após questionarem as abordagens dos policiais. Nas narrativas dos discentes, uma
fala foi comum a todos: a certeza de que tinham sido parados por causa da cor de sua pele e o
do seu local de moradia.
O motivo para tal é a persistência das desigualdades raciais em nosso país. O IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicou em 2019 um estudo sobre as
Desigualdades Sociais por Cor ou Raça levando em consideração, principalmente, os dados do
PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2018. Analisando os dados sobre o
mercado de trabalho, apesar de as pessoas que se declararam pretas ou pardas representaram
54,9% da força de trabalho com potencial no Brasil, também representam cerca de 64,2% das
pessoas que se declararam desocupadas e 66,1% da força de trabalho subutilizada. A pesquisa
aponta como motivos para esses números as “menores oportunidades educacionais e
recebimento de remuneração inferiores em ocupações semelhantes” (IBGE, 2019, p. 3)
independentemente do nível de escolaridade considerado.
A pesquisa também aponta que ocorreu melhorias nos indicadores educacionais do
Brasil; houve um aumento do acesso da população negra às instituições de ensino, no geral,
mas ainda se observa desigualdade racial no acesso às instituições, uma vez que somente 40,3%
da população matriculada em instituições de ensino se identificaram como pretos ou pardos,
12
O relatório do IBGE aponta uma melhoria nos índices, destacando que os estudantes
pretos ou pardos passaram a ser maioria nas instituições de ensino superior da rede pública,
representando 50,3% dos matriculados, mas ainda seguem sendo sub-representados, já que
constituem 55,8% da população. O progresso apresentado nos índices ligados à educação ainda
não se reflete no rendimento médio da população negra, uma vez que o salário de pessoas
brancas se mostra 73,9% maior do que de pessoas que se declararam pretas e pardas. Quando
observado a ocupação de cargos de gerencias, as pessoas declaradas brancas têm a significativa
maioria de 68,6% da ocupação, enquanto as pessoas pretas e pardas ocupam somente 29,9%
dos cargos mais altos das empresas.
Para que ocorra uma modificação significativa nos indicadores sociais é necessária uma
ampliação dos direitos da população negra, que perpassa o planejamento de políticas públicas
mais eficazes. Uma das barreiras encontradas no Brasil que impede a mudança é a falta de
representatividade dos negros em cargos políticos. Como em quase todas as áreas, ocorre uma
sub-representação da população negra nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de
Vereadores. Após as eleições de 2016 e 2018, os políticos declarados pretos ou pardos
representam 24,4% dos deputados federais eleitos, 28,9% dos deputados estaduais eleitos e
42,1% dos vereadores eleitos. A desigualdade econômica é um dos grandes motivos para essa
disparidade já que, com poucas exceções, existe em nosso país uma relação direta entre a
quantidade de dinheiro gasto durante a campanha e a conquista de uma vaga. “Com efeito,
enquanto 9,7% das candidaturas de pessoas brancas a deputado federal dispuseram de receita
igual ou superior a R$ 1 milhão, entre as candidaturas de pessoas pretas e pardas, apenas 2,7%
contaram com pelo menos esse valor” (IBGE, 2019, p. 11).
Os índices e números apresentados demonstram as desvantagens que a população negra
enfrenta para modificar sua realidade social, desde o acesso à educação até conquistar uma vaga
no mercado de trabalho, destacando a violência presente dentro e fora das escolas. Todas essas
dificuldades abalam a autoestima dos alunos pois, além de tais fatores, falta-lhes a oportunidade
de ter acesso à história de negros e negras que sirvam de referência positiva, exemplo de
afrodescendentes que conseguiram melhorar sua qualidade de vida por meio do estudo e que
alcançaram altos cargos em empresas e na política, ou que alcançaram outras formas de
conquista e realização pessoal. A mídia brasileira também poderia ter um papel fundamental
em expandir o horizonte de expectativas para a vida dos jovens negros se cumprisse a função
de despertar os projetos nos jovens, inserindo personagens negros em locais de poder nas
novelas, promovendo as realizações da população negra em seus jornais, sem o discurso da
“meritocracia”, mas da justiça social.
14
1
A reclamação foi feita pela aluna nos questionários sobre as relações étnico-raciais que foram aplicados em sala
de aula e serão analisados de forma mais detalhada no primeiro capítulo da dissertação.
2
No segundo capítulo será apresentada uma análise mais detida sobre os conteúdos dos livros didáticos de
história adotados pela escola em que trabalho.
15
empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem
reparar essa dignidade despedaçada” (ADICHIE, 2019, p. 32).
Para registrar a perspectiva dos meus alunos sobre o tema, pedi que respondessem um
questionário (ANEXO - A) de forma anônima. Analisando suas respostas, essa carência de
referências de negros e negras fica bem explicita. Dos 170 alunos que participaram da pesquisa,
71 alunos (41%) deixaram em branco ou responderam “não sei” à pergunta: “Cite o nome de
algumas personalidades negras que se destaquem nas artes, nas ciências, na política e na
sociedade”. Entre os quatro nomes mais citados, encontram-se três estrangeiros: Barack Obama
(24%), Nelson Mandela (14%) e Martin Luther King (12%), que conheceram como referências
positivas por meio do livro didático, inclusive. O brasileiro mais citado é o ex-jogador de
futebol Pelé (11%).
Percebendo essa ausência de referências, a falta de conhecimento sobre histórias de
negros e negras cujas trajetórias sejam consideradas como bem-sucedidas e possam ser tomadas
como referência na construção de projetos pessoais, indispensáveis para uma educação étnico-
racial e para que os alunos possam alcançar um futuro melhor, as historiadoras Martha Abreu
e Hebe Mattos (2008), destacam a importância de estudar biografias para que os estudantes
tenham conhecimento sobre esses sujeitos e os contextos em que viveram, descobrindo as
adversidades por eles encontradas e como foram contornadas:
Inspirada por essa proposta, proponho criar um material didático que possibilite estudar
a história da população negra brasileira por meio das trajetórias individuas, salientando as
biografias de negros e negras que se envolveram em disputas pela melhoria da qualidade de
vida da comunidade negra, engajando-se na defesa e na construção de um projeto de sociedade
pautados em valores que fizessem contraponto à discriminação e exclusão da população
afrodescendente. Nesse caso, é importante a escolha de biografias de homens e mulheres que
buscaram garantir o direito à liberdade, o acesso à educação, ao trabalho digno e a valorização
da cultura e da história da população negra para os africanos e os afrodescendentes no Brasil,
pensando na coletividade e visando combater as desigualdades raciais, colaborando para
enfrentar os problemas do pós-abolição, como o pleno acesso a cidadania. Ter acesso a essas
referências positivas é importante para todos os alunos, os negros e os brancos, por colaborar
16
para uma relação racial baseada no respeito à diversidade, especialmente para ajudar os alunos
negros com sua autoestima e abrir novas perspectivas para o planejamento do seu futuro.
Na abordagem desse tema, estabeleci os objetivos a partir das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana, publicadas em 2004. As diretrizes propõem princípios que devem
orientar os professores para a construção de uma educação que reconheça e valorize a história
e a cultura afro-brasileira e africana. Um dos princípios apontados pelas diretrizes é “Ações
educativas de combate ao racismo”, que tem como objetivo a mudança da mentalidade das
pessoas e instituições, assegurando o estudo e a divulgação da participação de negros em
diferentes áreas e nas lutas sociais.
Para pesquisar e trabalhar com a temática das desigualdades raciais no Brasil, considero
importante se apropriar do debate em torno da utilização do conceito de raça. O antropólogo
brasileiro-congolês Kabengele Munanga, em sua palestra intitulada “Uma abordagem
conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia”, apresenta relevantes apontamentos
para pensarmos sobre o conceito. O estudioso considera um problema grave a utilização do
mesmo sem definição, ressaltando que os conceitos têm história e que o termo “raça” já foi
manipulado ideologicamente.
O conceito de raça foi primeiro operado pelas ciências naturais nas áreas de botânica e
zoologia, mas passou a ser utilizado na classificação da variedade humana no século XVIII. O
autor ressalta que o conceito não foi utilizado somente para classificar, mas também para
hierarquizar as pessoas em uma escala que relacionava características físicas e atributos
culturais com as capacidades intelectual e moral, justificando, assim, a dominação europeia
sobre outros povos. O filósofo camaronês Achille Mbembe (2014) salienta como o uso do termo
raça propunha uma divisão entre os europeus e os não-europeus:
Durante vários séculos, o conceito de raça – que sabemos advir, a partida, da esfera
animal – foi útil para, antes de mais, nomear as humanidades não europeias. O que
nós chamamos de <<estado de raça>> corresponde, assim o cremos, a um estado de
degradação de natureza ontológico. A noção de raça permite que se representem as
humanidades não europeias como se fossem um ser menor, o reflexo pobre do homem
ideal de quem estavam separados por um intervalo de tempo intransponível, uma
diferença praticamente insuperável. (MBEMBE, 2014, p. 39)
A ideia de que os humanos podem ser divididos em raças só foi invalidada pelo campo
da biologia após a Segunda Guerra Mundial, depois de ser utilizada de forma sistemática e
genocida pelo regime nazista para dividir os próprios europeus. Entretanto, continua a ser usada
no Brasil, principalmente na área das ciências sociais, com um novo significado e com
17
diferentes objetivos, tendo como preocupação central evidenciar a persistência de uma realidade
marcada pela dominação e exclusão social da população negra.
Munanga prefere utilizar o conceito de população, isto é, pessoas que participam de
círculos de união ou casamento; assim, ele utiliza os conceitos “população negra” e “população
branca”. Para o autor, é fundamental não ocorrer generalizações, visto que não se pode acreditar
que, em um país com dimensões continentais como o Brasil, só exista uma cultura negra ou
uma cultura branca, perdendo a noção de diversidade.
Munanga conclui afirmando que apesar do conceito escolhido, o fundamental é usá-lo
com a consciência do conteúdo político que os termos carregam. É importante, quando se
emprega o conceito de raça, que não se pense na dimensão biológica e nem em uma cultura
única, mas sim no objetivo político de transformar a realidade dos negros, como a proposta dos
movimentos negros que “exigem o reconhecimento público de uma identidade para a
construção de uma nova imagem positiva que possa lhe devolver, entre outro, a sua autoestima
rasgada pela alienação racial” (MUNANGA, 2003, p. 11). Apoiada nas definições
apresentadas, utilizarei para este trabalho o termo raça para refletir sobre as complexas relações
sociais em que a sociedade brasileira está inserida, tanto na atualidade quanto nos diversos
recortes temporais em que viviam os biografados escolhidos para compor o produto didático.
A decisão é baseada, primeiramente, nos problemas de cunho racial apresentadas pelo discentes
da escola em que atuo, como injurias e preconceitos sofridos dentro e fora das salas de aula. A
escolha também está fundamentada nos projetos de sociedade propostos pelos biografados, que
possuem em comum a preocupação em diminuir a desigualdade racial na sociedade brasileira
e fomentar uma identidade negra positiva.
O termo raça será empregado em consonância com o entendimento do Movimento
Negro, não tomado como uma análise biológica, mas social, com o objetivo de construir uma
coletividade entre pessoas que sofrem com a desigualdade racial brasileira, buscando
estabelecer um sentimento de solidariedade, de valorização de suas culturas e de suas
características físicas e luta por igualdade de qualidade de vida. Outro motivo para utilizar o
termo “raça” é o entendimento de que só o fim da utilização do termo e a troca dele pelo
conceito “etnia” não resolverá o problema do racismo sofrido pela população negra brasileira.
Dessa maneira, o próprio Movimento Negro racializa a discussão para contribuir com o
combate ao racismo. A pedagoga Nilma Lino Gomes (2005) aponta que “a discriminação racial
e o racismo existentes na sociedade brasileira se dão não apenas devido aos aspectos culturais
dos representantes de diversos grupos étnico-raciais, mas também devido à relação que se faz
na nossa sociedade entre esses e os aspectos físicos observáveis na estética corporal dos
18
pertencentes as mesmas” (GOMES, 2005, p. 45), de modo que “raça” ainda constitui uma
categoria de análise pertinente ao contexto nacional.
Com a concepção de trabalhar junto aos alunos e as alunas a valorização da diversidade,
procurando desqualificar os preconceitos e os estereótipos, ainda tão presentes em nossa
sociedade, destacarei dois conceitos sobre o qual pretendo refletir para orientar e fundamentar
meu trabalho: memória e biografia. A relação entre memória e História já foi alvo de muitos
debates teóricos. É necessário que as diferenças fiquem evidentes para os estudantes, bem como
a definição de memória e de História. Para o sociólogo Michael Pollak:
Sendo assim, a memória é alvo de disputas entre grupos distintos da sociedade, que
buscam o controle da mesma não somente pela preservação de uma determinada narrativa sobre
o que aconteceu, mas por lutas e objetivos do presente, utilizando-a para justificar questões
sociais e políticas. Para o sociólogo Maurice Halbwachs, a memória tem o importante papel de
coesão social, fundamental para conciliar visões divergentes, mas essa memória coesa é imposta
e privilegia a visão do grupo dominante e marginaliza as visões dos grupos subalternos. Para
esses grupos excluídos, guardar a memória passa a ser sinônimo de resistência. Essa memória
que é silenciada ou lembrada dependendo de interesses pessoais é fonte para a História, pois
possibilita novos pontos de vistas, mas deve ser compreendida como ativa, pois “o presente não
é apenas o tempo da lembrança, dotando-a de um sentido, é também o tempo a ser alterado. O
ato de lembrar é um processo de fazer-se aparecer em cena, ou mesmo, fazer-se agir em cena”
(SANTOS, 2007, p. 86).
Refletindo sobre as experiências da população negra durante o período escravagista e as
consequências deste, a escritora Conceição Evaristo (2012) destaca que “Recordar é preciso”,
pois se deve conhecer os eventos históricos e não permitir o esquecimento dos mesmos,
ressaltando - dentro da história dos negros em nosso país - o espaço do terreiro como local onde
uma memória mítica sobre a África foi constituída no Brasil, principalmente pela oralidade, e
que essa memória pode ser um “contradiscurso” à história hegemônica.
Segundo Rodrigo Ferreira dos Reis (2020), para a historiadora Beatriz do Nascimento,
a relação entre os europeus brancos e os africanos negros desde o início foi baseado no
19
preconceito por parte dos europeus, que consideravam os africanos pouco civilizados; assim, a
memória oficial constituída buscou apagar a contribuição dos negros para a construção da
América. Nesta perspectiva, não encontrando espaço para a memória no Brasil, país em que são
mortos e descriminalizados, e nem na África, já que arrancados do seu território, os negros e as
negras já não se sentem pertencentes àquele continente; para Beatriz, o espaço para a memória
deve ser o corpo negro, visto que esse deve ser um lugar de resistência e liberdade, sendo
valorizado a ponto de suas narrativas constituírem uma memória coletiva sobre a população
negra.
Essa discussão sobre as características da memória e a relação dela com a História deve
ser debatida em sala de aula. A historiadora Carmem Zeli de Vargas Gil, em seu texto sobre
memória para o Dicionário de Ensino de História, evidencia a necessidade de se pensar a
memória em relação com o esquecimento, demonstrando para os discentes como, no processo
da constituição de uma memória oficial, por muito tempo composta pelos “grandes feitos” da
elite, acontece a exclusão de sujeitos e acontecimentos que não foram considerados importantes
por uma determinada parcela da sociedade.
O ensino de História, para a autora, deve ter como objetivo debater o que a memória
oficial constituiu e continua constituindo em contraposição aos fatos por ela silenciados. É
importante que os alunos percebam que a memória está inserida em uma disputa constante entre
vários atores e fatores envolvidos no presente. Assim:
de aula; e os discentes, que já chegam na aula tendo suas próprias memórias formadas a partir
de suas experiências e das referências familiares e dos grupos do qual fazem parte.
Ter o conhecimento dos saberes prévios dos alunos é fundamental para os professores
elaborarem um debate sobre memória. Exemplo disso, a partir de questionários aplicados em
minhas turmas percebi que há mais referências de personalidades negras estrangeiras do que
nacionais. Seguindo essa abordagem, pretendo demonstrar esse processo de construção e
reconstrução da memória, com o objetivo de desnaturalizar o papel imposto aos negros como
submissos na constituição da história do Brasil. A historiadora Ana Maria Monteiro, evidencia
a necessidade de modificar esses parâmetros, pois
Já para pensarmos os usos das biografias, precisamos entender que ela é um gênero
narrativo envolto em polêmicas no campo historiográfico. No século XIX, as biografias dos
“grandes nomes”, como reis, generais e filósofos, eram um recurso comum na corrente do
historicismo. Com as modificações propostas pela Escola dos Annales, a biografia perdeu
espaço para a análise das estruturas sociais. O retorno da biografia é marcado, principalmente,
pelo protagonismo concedido aos sujeitos antes considerados subalternos. O historiador
Giovanni Levi evidencia as ambiguidades e distorções cometidas por historiadores biógrafos,
enfatizando a importância da reconstrução do contexto histórico em que o sujeito viveu e de
entender que não existe um modelo padrão de racionalidade da época em questão que os atores
históricos obedecem. O antropólogo Gilberto Velho corrobora com esse pensamento,
salientando que os sujeitos não são “passivos”, entendendo que o indivíduo e a sociedade não
podem ser estudando de forma isolada. Destaca ainda a relevância das biografias, pois:
experiências vividas no passado, bem como colocar em xeque visões generalizadas a respeito
de trajetórias e modos de vida que desconhecemos” (ALBERTI, 2012, p. 73). Os estudantes
terão acesso aos projetos de negros e negra que buscaram e, em muitos casos, conseguiram
modificar o seu presente e, assim, perceber como também podem projetar modificações para a
sua realidade, tendo como referência brasileiros negros. Esse conhecimento adquirido sobre o
passado, por meio das biografias de personalidades negras que procuraram pelo
reconhecimento e pelos direitos dos afrodescendentes, é relevante para que os discentes
compreendam o presente em que estão inseridos e consigam se reconhecerem como sujeitos
capazes de projetos e agências pois, como o historiador Antoine Prost expressou, “uma
sociedade sem história é incapaz de projeto” (2008, p. 272).
Como metodologia da aula, propomos que os docentes sejam mediadores do processo
de ensino, procurando orientar os discentes, ultrapassando o modelo de ensino tradicional,
baseado na fala dos professores. Os historiadores Itamar Freitas e Margarida Dias de Oliveira
ressaltam que “a função social da história na escolarização básica passa a ser anunciada como
capacitar o aluno a ‘pensar historicamente’” (FREITAS; OLIVEIRA, 2015, p. 5). Por isso,
viabilizarei o contato dos estudantes com as fontes, para que eles possam problematizar os
vestígios, elaborar hipóteses e tomar posições, para assim perceberem que o conhecimento
sobre o passado é construído por meio das fontes.
Como os números e as pesquisas demonstram, a desigualdade racial é um problema
enfrentado pelos estudantes pretos e pardos dentro e fora das escolas, em todo território
brasileiro. Isso é evidente pela quantidade de professores que se propõem a estudar esse assunto,
pois reconhecem que influencia negativamente a vida dos jovens e o ambiente escolar.
Pelas dificuldades encontradas em trabalhar o assunto em sala de aula, muitos
professores buscam uma formação complementar que possibilite adquirir novos conhecimentos
sobre o assunto e produzir novos materiais. Observei isso por meio da consulta ao caderno com
a programação do I Congresso Nacional do ProfHistória, realizado em 2019, na cidade de
Salvador. Dentre os 312 trabalhos inscritos nos sete Grupos de Reflexão Docente, com
temáticas variadas disponíveis para a apresentação de comunicações, o grupo com mais
trabalhos inscritos foi o reservado para a discussão sobre o Ensino de História e as relações
étnico-raciais. No total, foram aceitos para apresentação 71 pesquisas sobre esse tema,
desenvolvidas no programa de mestrado profissional em História, dividido em sete sessões de
apresentações. Analisando as pesquisas, observamos estudos sobre as relações étnico-raciais
em diversos estados, como Pará, São Paulo, Distrito Federal, Ceará, Rio de Janeiro, entre
outros, demonstrando, assim, que a desigualdade racial é um problema enfrentado em todo
22
território nacional, o que explica a educação para as relações raciais é um dos temas mais
abordados nas dissertações defendidas pelo ProfHistória.
Procurando conhecer melhor esse campo de estudo, percebi que cada pesquisa é única
e oferece uma contribuição diferente para pensarmos o problema, por isso é importante dialogar
com o que outros pesquisadores refletiram sobre a questão, especialmente no âmbito do
ProfHistória. Em uma busca no banco de dissertações defendidas pelo Mestrado Profissional
em Ensino de História, que conta com 213 pesquisas registradas3, encontrei 28 trabalhos que
procuraram estudar, problematizar e propor uma educação para as relações étnico-raciais em
diversas escolas brasileiras. Os mais variados temas e abordagens são encontrados, como: a
valorização da música africana nas escolas (GUIMARÃES, 2018); levantamentos de como o
tema está sendo abordado em livros didáticos de História (NAZARIO, 2016; SANTOS, 2018);
reconhecimento de pintores e escritores negros para contribuir na formação da identidade dos
alunos (SILVA, 2016); experiência dos professores (SOUZA, 2018; BATISTA, 2018);
participação das mulheres negras (SANTOS, 2018). Nesse conjunto de dissertações
disponibilizadas no citado banco, percebo que as relações étnico-raciais são um dos temas mais
explorados pelo ProfHistória; isso se relaciona com o fato de, infelizmente, como já vimos, o
racismo ser um problema recorrente na sociedade e se refletir nos ambientes escolares.
Aproveitando os caminhos já trilhados sobre a utilização de biografias no ensino de
História, pretendo contribuir para o avanço dessa proposta utilizando uma abordagem diferente.
Com o objetivo de modificar a memória cristalizada dos negros e das negras como coadjuvantes
da história do Brasil, quase sempre lembrados de forma associada à violência da escravidão ou
desempenhando papeis subalternos no pós-abolição, o produto constituirá de um Scrapbook
(Livro de Memórias) do Movimento Negro4, formado por fontes produzidas por intelectuais,
artistas e cientistas reconhecidos por suas contribuições para transformar a realidade da
população negra, e da sociedade brasileira como um todo.
O objetivo não é focar na vida e na obra, mas nas ideias e nos projetos que esses negros
e negras propuseram para modificar o futuro do Brasil e o lugar ocupado pela população negra
na sociedade brasileira, como os enfretamentos de Luiz Gama na Justiça brasileira para garantir
o cumprimento das leis abolicionistas; as contribuições da escritora Maria Firmina dos Reis
para a divulgação das condições de vida dos escravizados; a liderança exercida por Francisco
do Nascimento na abolição da escravidão na província cearense; o esforço do marinheiro João
3
Pesquisa realizada no site: https://profhistoria.ufrj.br/banco_tese. Disponível em: 15 de fevereiro de 2020.
4
O vídeo do Scrapbook do Movimento Negro está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=4vDCAjMEPis. Acessado em: 05 de novembro de 2021.
23
Cândido para garantir condições de trabalho dignas para os seus companheiros; o esforço de
Monteiro Lopes para conseguir representar os afrodescendentes no parlamento brasileiro; a
busca de engajamento da população negra nas questões sociais e políticas do país empreendida
pelo jornalista José Correia Leite; a luta de Laudelina Campos de Mello pelo reconhecimento
dos direitos das empregadas domesticas; o Teatro Experimental do Negro criado pelo escritor
Abdias do Nascimento, com o objetivo de fomentar o protagonismo e a estética negra na
cultura; as pinturas de Heitor dos Prazeres, que buscava representar de forma positiva o
cotidiano da população negra; o material didático produzido por Mundinha de Araújo,
procurando incentivar o protagonismo negro nas escolas; a luta de Aída dos Santos para garantir
reconhecimento e mais espaço para os negros nos esportes; a dedicação de Lélia Gonzalez ao
estudo sobre a mulheres negras e a busca de implementação de políticas públicas que
diminuíssem a desigualdade racial. Esses e outros exemplos podem se tornar referências e
incentivar as alunas e os alunos a investirem em seus estudos para modificar o seu presente e
utilizar o conhecimento histórico para formular projetos de um futuro diferente.
O Scrapbook será formado por diversos recortes de materiais produzidos pelas
personalidades negras ou produzidos sobre elas, buscando trabalhar com fontes de tipologias
diferentes, como textos jornalísticos, imagens, textos ficcionais, entre outros. O conteúdo do
livro de memória será fonte para que os estudantes construam conhecimento sobre a vida dessas
personalidades e sobre o movimento negro brasileiro. As fontes acompanharão recortes
temporais importantes para a luta dos negros e das negras, tais quais a luta abolicionista e a
situação pós-abolição, em que os negros continuaram impedidos de exercer sua cidadania pelo
preconceito racial da sociedade brasileira, assim demonstrando as modificações das demandas
do movimento negro no tempo, por meio de suas derrotas e suas conquistas.
Para realizar essa proposta, a dissertação é composta por duas partes divididas em seis
capítulos. A primeira parte é destinada à apresentação da Escola Estadual Professora Diva
Cabral e dos conceitos fundamentais para a elaboração da proposta didática. O início do
primeiro capítulo é dedicado à apresentação do ambiente escolar, dos desafios e das propostas
para manter uma escola pública funcionando na periferia de uma capital, ressaltando o contexto
socioeconômico e racial dos discentes e algumas especificidades do processo de ensino naquela
escola. O segundo momento é voltado para a análise dos diagnósticos étnico-raciais aplicados
em salas de aula em 2019, destacando os problemas e os interesses dos alunos e das alunas
sobre a problemática em estudo. O segundo capítulo é destinado para a reflexão sobre como a
utilização de biografias e a análise da constituição de memórias podem ser fundamentais para
os estudantes construírem seu conhecimento histórico e os seus projetos de vida.
24
PARTE 1
EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL:
OS DESAFIOS QUE EMERGEM NA PRÁTICA DOCENTE
26
A Escola de Ensino Médio e Fundamental Professora Diva Cabral faz parte da rede
pública de ensino do Estado do Ceará, localizada no bairro Jardim Cearense, na cidade de
Fortaleza. Inaugurada em 14 de dezembro de 1983, no governo de Luiz de Gonzaga Fonseca
Mota, a escola completou 37 anos de fundação em dezembro de 2020. É uma escola com
sistema de ensino regular, funcionando em três turnos, sendo o turno noturno exclusivamente
voltado para o Ensino de Jovens e Adultos (EJA). A instituição se encontra em uma região
periférica, o bairro sofre com problemas comuns das áreas mais pobres das grandes metrópoles:
violência, falta de infraestrutura e saneamento básico. Mesmo com shopping e condomínios
fechados, o bairro possui o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,31 pontos, segundo
o estudo de “Desenvolvimento Humano, por bairro, em Fortaleza”, baseado no Censo
Demográfico do ano de 2010 (esse indicador varia de 0 a 1, sendo que quanto mais próximo de
1, melhor o grau de desenvolvimento humano, e quanto mais próximo de 0, pior o grau de
desenvolvimento). Dessa maneira, levando-se em consideração a renda familiar, as taxas
educacionais e a expectativa de vida dos moradores, vemos que a escola se situa em um bairro
com baixo desenvolvimento humano.
O Indicador de Nível Socioeconômico (Inse) da escola ficou com a média de 45,58
pontos. O índice utiliza questionários contextuais sobre a renda familiar e sobre a escolaridade
dos pais dos alunos, preenchidos pelos estudantes no momento da aplicação do Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem) e do Sistema Nacional de Avaliação Básica (Saeb). Foi criado pelo
Ministério da Educação com o objetivo de contextualizar os resultados obtidos nas avaliações
nacionais, passando a levar em consideração que o desempenho escolar está relacionado com o
nível socioeconômico dos estudantes. No Inse, as escolas são distribuídas em 6 grupos baseados
nas médias alcançadas, de modo que a Escola Professora Diva Cabral foi incluída no grupo 3,
a situação socioeconômica, sendo descrita do seguinte modo:
os alunos, de modo geral, indicaram que há em sua casa bens elementares, como
banheiro e até dois quartos para dormir, possuem televisão, geladeira, dois ou três
telefones celulares; bens complementares como máquina de lavar roupas e
computador (com ou sem internet); a renda familiar mensal é entre 1 e 1,5 salários
mínimos; e seus responsáveis completaram o ensino fundamental ou o ensino médio.
(BRASIL, 2015, p. 9)
27
quadro de professores já foram bastante modificados, e muitos avaliam que alguns problemas
já foram solucionados e novos surgiram nesse período.
Atualmente, a escola é conduzida por uma gestão e um grupo de professores e de
funcionários comprometidos com a melhoria da qualidade do ensino e em proporcionar, para
os discentes, a oportunidade de modificar sua realidade. O núcleo gestor foi eleito de forma
democrática pois, em 2018, a atual diretora foi escolhida para um mandato de quatro anos
através de uma eleição com a participação de professores, funcionários, alunos e pais. As
decisões pedagógicas e financeiras são tomadas coletivamente pelos professores, normalmente
após um longo debate e, mesmo com todas as divergências, existe o objetivo em comum de
tornar o ambiente escolar o mais propício possível para a construção do conhecimento. Os
professores têm total liberdade para conduzir suas aulas da forma que acharem mais proveitosa
para sua disciplina, seguindo a proposta da Congregação dos professores, decidida em conjunto
pelo grupo e que procura se adequar aos objetivos da Secretaria de Educação do Estado.
Apesar desses esforços, experiências anteriores mostram que o planejamento e a
organização de eventos e projetos precisam se tornar mais eficientes para que o objetivo
proposto no PPP de valorização da diversidade seja colocado em prática, para além de algumas
ações pontuais em sala de aula. A relação entre o núcleo gestor e os professores com os pais e
os estudantes precisa ser ampliada, pois a escola conta com um grêmio, escolhido pelos alunos
em eleição, mas falta um projeto por parte da escola e dos próprios alunos para que a
participação deles seja mais efetiva nas decisões sobre a vida escolar. Os pais e os responsáveis
pelos discentes, em sua maioria, são pouco participativos no dia a dia da instituição. O
comparecimento em reuniões no decorrer do ano letivo é baixo e quanto mais o aluno avança
nas séries, menos presentes os responsáveis se tornam na escola, só atendendo à solicitação de
comparecimento no final do ano.
A procura por vagas na escola aumentou nos últimos anos, por conta de melhorias na
estrutura física e na organização institucional. Todos os ambientes passaram a ser climatizados
e foi colocada em pratica uma política de tolerância zero com qualquer tipo de agressão física.
A maioria dos novatos são transferidos das escolas públicas municipais localizadas próximas à
Escola Professora Diva Cabral, e esses alunos entram no Ensino Médio com sérios problemas
de aprendizagem. No início do ano é realizado pela escola uma prova diagnóstica das
disciplinas de português e de matemática com os alunos recém-chegados. A avaliação é
composta por questões básicas, procurando avaliar os domínios dos estudantes sobre as quatros
operações básicas e a interpretação textual. Os resultados demonstram que a maioria dos
estudantes chega à escola sem base e com um déficit de aprendizagem, pois 85% dos alunos
29
não consegue obter a média da escola na disciplina de matemática e 36% também não atende
os requisitos em português.
Essa deficiência na aprendizagem dos estudantes, se não acompanhada, só piora no
Ensino Médio, pois ocorre um aumento na carga horária e no número de disciplinas. Essas
dificuldades têm ressonâncias nos resultados de avaliações internas e externas da escola. Em
2018, o índice de reprovação atingiu 14,5%. No SPAECE (Sistema Permanente de Avaliação
da Educação Básica) de 2018, prova de português e matemática organizada e aplicada pela
Secretaria de Educação do Estado do Ceará, o desempenho da escola foi considerado crítico
nas duas disciplinas. Em 2019, foi possível observar melhorias nos dois índices, a reprovação
interna caiu para 7,9% e, no SPAECE, a escola conseguiu avançar para o nível intermediário
em língua portuguesa. Aumentar a aprovação de alunos em universidades públicas é uma meta
que a escola continua tendo muita dificuldade para alcançar. No SISU (Sistema de Seleção
Unificada) de 2019, na primeira chamada, somente três estudantes conseguiram aprovação para
instituições federais; já no SISU 2020, a aprovação na primeira chamada caiu para dois
estudantes.
Fatores sociais e econômicos possuem forte influência sobre a taxa de evasão dos
alunos. Em 2018, a taxa foi de 3,4% e subiu para 6,3% em 2019, de modo que 42 discentes
abandonaram o estudo. Pelas condições socioeconômicas da maioria do alunado, alguns são
responsáveis pelo sustento da família, precisam trabalhar no contraturno, sendo comum o atraso
para a primeira aula do turno ou a saída antes do último tempo. Infelizmente, outro problema
muito comum é o abandono das meninas por causa de uma gravidez precoce visto que, só no
ano de 2019, dez adolescentes ficaram gravidas na escola. Mesmo com elas possuindo o direito
à licença maternidade e a escola assegurando atividades para a reposição de notas, o retorno à
sala de aula é muito complicado para as alunas que se tornaram mães, pois a maioria não tem
com quem deixar os filhos e acabam levando-os para a aula, um ambiente que não é adaptado
para um bebê.
Juntamente com a necessidade de trabalhar e a gravidez na adolescência, outro fator que
provoca o afastamento é o distanciamento do conteúdo visto em sala de aula com a realidade
dos alunos, já que muitos relatam que desistiram por não conseguir entender qual a importância
dos assuntos estudados, nem acompanhar a cobrança por notas e resultados. Nesse último caso,
uma mudança na abordagem de determinados assuntos ajudaria na permanência dos estudantes
na escola - por exemplo, alguns alunos do segundo ano comentaram na aula de História o
desinteresse pela leitura da obra do escritor Machado de Assis na aula de literatura; depois de
destacar para eles o fato de ser um autor negro e as disputas de memória ocorridas em torno da
30
sua cor, foi perceptivo como autor se tornou mais relevante para alunos. O mesmo acontece
quando eles descobrem que Dragão do Mar, nome que eles estão acostumados a ver em placas
de comércios e lugares públicos, foi um abolicionista cearense reconhecido nacionalmente.
Essas experiências nos dão pistas sobre a importância dos alunos se identificarem em alguma
medida com os sujeitos históricos que lhes são apresentados como objeto de estudo, sendo
atribuído um novo significado ao conhecimento construído a partir do relato das trajetórias
desses sujeitos, especialmente quando identificados como afrodescendentes, o que evidencia a
importância dessa temática. E pareceu-me que as causas disso precisavam ser melhor
investigadas.
Para entender melhor as relações raciais estabelecidas pelos alunos dentro e fora do
ambiente escolar, apliquei um questionário-diagnóstico com dez questões sobre o assunto nas
turmas que ministrei aulas em 2019 na Escola Professora Diva Cabral. Por meio do instrumento,
foi relatado pelos estudantes casos de racismo dentro do colégio, a falta de referências às
personalidades negras e a falta de valorização e divulgação da cultura e da história afro-
brasileira e africana. Analisando os questionários, deparamo-nos com relatos como o seguinte,
de uma aluna do terceiro ano: “Nas aulas de religião nunca ensinam sobre outras religiões além
das cristãs e sempre que falam de negros só se referem a (sic) escravidão, esquecendo que eles
também tem (sic) seus Deuses e culturas”. Essa e outras respostas deixam evidente que o
trabalho realizado na escola não está sendo suficiente para que se atinjam todos os objetivos
estabelecidos pela legislação que trata de educação das relações étnico-raciais.
Também fica nítido, com o exemplo do relato dessa discente, que os estudantes têm
muito a colaborar e a acrescentar nas discussões, demonstrando capacidade de serem sujeitos
ativos e autônomos no processo de ensino. A atual geração de estudantes está crescendo cercada
de informações e de interações rápidas, e isso não pode ser simplesmente descartado. É
necessário que os docentes modifiquem a sua estrutura de ensino, desde os planejamentos das
aulas, passando pela aplicação de novas metodologias em sala de aula, até a avaliação da
aprendizagem, possibilitando a participação dos alunos na construção do conhecimento. A
historiadora Helenice Rocha, em seu texto “Aula de história: que bagagem levar?”, procura
refletir sobre a necessidade de se ter cuidado em saber mais sobre o aluno e sobre o
conhecimento prévio que ele já possui, uma vez que esse não pode ser preterido: “Assim,
quando o professor apresenta o conteúdo programático da história para seus alunos, de uma
forma ou de outra conta com uma ‘biblioteca’ de leituras e vivências, sua e dos alunos, que
poderá contribuir na atribuição de diferentes sentidos ao conteúdo e à própria disciplina”
(ROCHA, 2009, p. 82).
31
que tem como objetivo a inscrição de 100% dos alunos no Enem, promover palestras
motivacionais nas escolas e também garantir a passagem de ônibus e um kit (canetas e lanche)
para o dia do Enem. Outro programa é o “Enem Não Tira Férias”, que ocorre durante o mês de
julho, quando acontecem diversos “aulões”, práticas de redação e atividades de lazer em
escolas-polos. O governo também concede notebooks e carteiras de motoristas para os discentes
com os melhores desempenhos acadêmicos; e há o programa de incentivo denominado
“#PartiuEnsinoSuperior”, que produz e divulga relatos dos alunos que ingressaram nas
universidades públicas.
Os frutos desses projetos já estão sendo colhidos, pois 20.207 alunos da rede pública
estadual foram aprovados em universidades públicas e privadas no ano de 2018, ocorrendo um
crescimento de 19,6% em relação ao ano de 2017; o IDEB do Ensino Médio na rede pública de
ensino em 2017 foi 3,8 pontos, ocorrendo um crescimento em relação ao IDEB de 2015, que
foi 3,4 pontos. Resultado disso, o estudo “Excelência com Equidade no Ensino Médio”, sobre
a qualidade do Ensino Médio em escolas que atendem alunos em situação e vulnerabilidade
socioeconômica, realizado pela instituição Interdisciplinaridade e Evidências no Debate
Educacional (Iede), incluiu 55 escolas do Ceará entre as 100 melhores do Brasil. A escola
Professora Diva Cabral, por ser uma escola regular, não está no foco das atenções do governo,
mas acompanhou algumas melhorias da rede estadual na última década: a evasão escolar
diminuiu, passando de 19%, em 2009, para 6,3% em 2019.
O Governo do Estado do Ceará já identificou as questões sociais e emocionais como um
obstáculo para que os discentes consigam planejar um futuro diferente da realidade por eles
vividas. Com o objetivo de oferecer suporte socioemocional para os estudantes, buscou-se
parceiros e projetos que não focassem somente em conteúdo e avaliações, mas buscassem
favorecer a escola como um ambiente saudável para os alunos se conhecerem e poderem refletir
sobre a realidade da sua família e da sua comunidade. Dois desses projetos estão sendo
realizados na Escola Professora Diva Cabral: o Projeto Professor Diretor de Turma (PPDT) e o
Núcleo de Trabalho, Pesquisas e Práticas Sociais (NTPPs).
O PPDT tem origem em Portugal e foi introduzido na rede pública estadual em 2008,
primeiro nas escolas profissionalizantes e depois foi ampliado de forma gradativa para as
escolas regulares. O projeto tem como principal objetivo a “desmassificação” do ensino. Cada
turma da escola fica sobre a responsabilidade de um diretor de turma; esse professor tem a
atribuição de lecionar a disciplina de formação cidadã e acompanhar os alunos de forma
individual, proporcionando um ambiente facilitador para a relação da escola com os
pais/responsáveis e os estudantes. Desde 2018 foi acrescentado ao projeto a proposta dos
33
Diálogos Socioemocionais, que tem como intuito desenvolver, com os estudantes, um projeto
de vida visando três dimensões: pessoal, cidadã e profissional. Sou diretora de turma desde que
entrei na rede pública em 2014 e, mesmo depois da introdução das competências
socioemocionais, as questões raciais não são trabalhadas diretamente pela proposta, mas
encontram espaço nos momentos reservados para a elaboração do projeto de vida dos alunos.
Costumo, no início do ano, perguntar para os alunos quais os assuntos que eles desejam debater
nas aulas de formação cidadã e o racismo é sempre um dos primeiros a ser mencionado,
evidência de que existe por parte deles o desejo de discutir esse assunto, tão ligado à sua
realidade.
O NTPPs é uma disciplina dedicada às questões socioemocionais dos estudantes. O
objetivo é que, por meio de pesquisas cientificas e atividades baseadas no protagonismo dos
alunos, eles passem a se conhecer melhor. No primeiro ano do Ensino Médio, o foco é o
“conhecimento de si”, no segundo ano é pesquisar a “comunidade” da qual faz parte e, no
terceiro ano, o centro da discussão é o “mundo do trabalho”. A construção de um Projeto de
Vida pelos discentes é incentivado durante todo o Ensino Médio. Para muitas famílias, o
término do Ensino Médio já é considerado o suficiente, o encerramento da educação formal de
seus filhos, de modo que se faz necessário que a escola estimule os estudantes a construírem
projetos de vida, demonstrando todas as oportunidades disponíveis, incluindo a continuidade
dos estudos no Ensino Superior.
Percebemos que, no meio dos problemas da Escola Professora Diva Cabral, se
encontram espaços para a modificação dessa realidade. Os discentes aspiram por conhecer mais
sua história e por terem oportunidades de construir um futuro diferente da realidade por eles
conhecida, superando os desafios que enfrentam em seu cotidiano. O estudo de biografias pode
ser utilizado para demonstrar como, por meio de ideias e ações, existe a possibilidade de
mudança para os negros e negras, para homens e mulheres das classes trabalhadoras
historicamente excluídos e marginalizados.
Nos anos de 2017 e 2018, nos meus primeiros anos letivos como professora da Escola
Professora Diva Cabral, presenciei alguns comentários e atitudes racistas por parte de alguns
discentes. Quando questionados por seus atos, o assunto era relativizado pelos estudantes
envolvidos, sendo tratados como brincadeiras. Ao mesmo tempo, era perceptivo como alguns
alunos negros procuravam abordar o tema, mas não encontravam ressonância entre os colegas
34
e o corpo docente, com algumas exceções. No transcorrer das aulas de História, as temáticas
das desigualdades raciais aparecem com destaque em determinados conteúdos, como
escravidão no Brasil e o sistema de apartheid na África do Sul, sendo questionado, por alguns
alunos, o porquê do pouco espaço dedicado à história dos africanos e dos afro-brasileiros nos
livros didáticos. Esses assuntos conquistam a atenção dos alunos quando são apresentados, para
eles, por meio de fontes, como imagens e relatos da época, de modo que entender as estruturas
do movimento fica em segundo plano, uma vez que os estudantes desejam saber mais sobre os
sujeitos envolvidos, como era a realidade dessas pessoas e, quando incentivados a fazer
paralelos com a sociedade em que vivem, demonstram bastante interesse em discutir sobre o
racismo presente no Brasil.
Em projetos e pesquisas que os estudantes têm espaço para escolher os temas que eles
desejam abordar em seus trabalhos, as relações raciais costumam aparecer com frequência. Em
2019, no projeto interdisciplinar desenvolvido com todas as turmas, intitulado “EDUCACINE”,
para os alunos da turma “D” do terceiro ano foi indicado trabalhar com a série documental
“Guerras do Brasil.doc”; os cinco episódios da série apresentam diversos conflitos armados
considerados importantes para a formação do Brasil. Os estudantes tomaram a decisão de fazer
um recorte e focar sua atenção na “Guerra dos Palmares”; na sala temática, destacaram a
importância de “Zumbi” e da resistência negra contra a escravidão, na apresentação artística
eles buscaram fazer um paralelo com os dias atuais e representaram a resistência negra por meio
de músicas e de danças que fazem parte do seu cotidiano. Foi notório para os professores que,
quando os discentes possuem a oportunidade de trabalhar temas ligados à sua realidade, a
dedicação é excepcional e a aprendizagem se torna mais qualificada e significativa.
Percebendo que as relações raciais não estão sendo trabalhadas de forma satisfatória na
Escola Professora Diva Cabral, que a Lei n° 10.639/2003 e as Diretrizes para a Educação das
relações Étnicos-Raciais não estão sendo completamente cumpridas e o interesse demonstrado
pelo alunos em saber mais sobre a memória da resistência negra, decidi que, entre os problemas
observados na escola Professora Diva Cabral, meu foco seria pesquisar as desigualdades raciais
presentes na escola e na sociedade brasileira. Para identificar o problema que necessitava de
mais atenção e, assim, estabelecer recortes e objetivos para a pesquisa e para o produto, elaborei
um questionário diagnostico com dez perguntas sobre as relações étnico-raciais na escola e na
sociedade brasileira.
O questionário diagnóstico foi aplicado no ano de 2019, quando eu era responsável por
ministrar a disciplina de História em todas as turmas de segundo e de terceiro ano do Ensino
Médio, sendo cinco turmas de segundo ano e quatro turmas de terceiro. Nessas turmas, apliquei
35
um questionário diagnóstico com dez perguntas e com espaço para se identificarem por sexo e
cor, sendo cinco perguntas de múltipla escolha e cinco perguntas com espaço para dissertarem
sobre o assunto. As perguntas buscaram proporcionar uma oportunidade para os estudantes
opinarem sobre vários assuntos ligados à desigualdade racial na sociedade brasileira e na escola.
O questionário foi aplicado nas salas de aulas no horário da disciplina de História; antes da
distribuição foi explicado para os estudantes que se tratava de uma pesquisa acadêmica e que
se desejava conhecer a posição deles sobre o assunto. O questionário era anônimo e por adesão,
pois considerei importante que os alunos se sentissem à vontade para emitir suas opiniões sem
a preocupação de serem julgados por mim, e os alunos estavam cientes de que não era uma
atividade escolar e, por isso, não era obrigatório.
Entre os 838 alunos matriculados no ano letivo de 2019, o questionário foi respondido
por 170 alunos, representando 20% do total dos matriculados. O questionário iniciava com
perguntas para que os discentes apontassem como se identificavam por sexo e cor. Na pergunta
sobre com qual sexo identificavam-se, os discentes tinham como escolha “mulher”, “homem”
e “outra opção”, contando com espaço para eles indicarem a outra opção. A maioria dos
estudantes se identificou como mulher, 53% do total, 45% como homem, 1% marcou que se
identificava com outra opção, mas deixou o espaço para identificação em branco, e 1% não
respondeu à pergunta.
A pergunta em que os discentes tinham que identificar sua cor contava com as seguintes
opções: “branco”, “preto”, “pardo” e “outra opção”, com espaço para a identificação da “outra
opção”. Dos 170 alunos que responderam ao questionário, 23% se identificaram como brancos,
14% como pretos, 57% como pardos, 2% marcaram “outra opção” e 4% não responderam à
pergunta. Dos quatro alunos que marcaram “outra opção”, somente uma aluna se identificou
como “negra”. O IBGE considera como negros a soma das pessoas que se identificaram como
pretas e pardas; seguindo esse parâmetro, 80% dos discentes que responderam ao questionário
são negros. Não há dados gerais da escola, porque não encontrei nenhum registro por parte do
colégio ou da Seduc/CE sobre a cor dos alunos; a pergunta seria respondida com o
acompanhamento dos PDTs (Professores Diretores de Turma) na ficha biográfica respondida
pelos alunos no SIGE (Sistema Integrado de Gestão Escolar), mas a área destinada para o
questionário se encontra fechada para uma restruturação nos últimos anos.
O momento de preenchimento do questionário gerou uma série de dificuldades e debates
entre os discentes. Em várias ocasiões, os estudantes pediram por ajuda, demonstrando
dificuldade em emitir seu ponto de vista. Procurei não interferir nas respostas e elucidei a
importância para a pesquisa de saber a posição deles sobre o assunto em destaque. A pergunta
36
sobre a cor da pele foi uma das que observei maior dificuldade por parte de vários alunos em
responder ao questionamento, gerando, em algumas turmas, discursões entre os alunos e
comentários racistas por parte de outros. Foi o caso do 3°B, onde considero que alguns alunos
se sentiram constrangidos em responder à pergunta: mesmo ela sendo anônima, nessa turma,
nenhum aluno se identificou como “preto”; notadamente, existia aí um considerável número de
alunos que, pelo fenótipo, poderiam se identificar como pretos.
A pedagoga Glória Moura (2005), relatou sua experiência em aulas e oficinas em escolas
nas regiões quilombolas e descreveu uma situação parecida com a que observei no 3°B: em
uma escola pública na cidade de Itabuna/BA, uma turma foi perguntada sobre quem era negro
e nenhum aluno levantou a mão, mesmo todos sendo negros. Para ela, evidenciou-se “o
afastamento existente entre o que cada um é aos olhos dos outros e as representações que cada
um tem sobre si mesmo. Isto mostra também como esta forma de identificação – ser negro -
não é afirmada positivamente” (MOURA, 2005, p. 78). Na escola Professora Diva Cabral,
observo que existem alunos que negam ou desconhecem a identidade negra, enquanto alguns
alunos buscam essa identificação, mas não encontram muito espaço no ambiente escolar para
reafirmar isso numa perspectiva positivada. Depois da aplicação do questionário, alguns alunos
chegaram a me abordar agradecendo o interesse pela opinião deles e por tratar da temática.
Percebi, pela dificuldade dos alunos em responder a essa pergunta, quão é necessário para a
escola elaborar um trabalho voltado para a construção, com os estudantes, de uma memória
positiva do povo negro, desconstruindo os estereótipos que pesam sobre aa identidade negra.
Na primeira das dez questões, busquei entender como os alunos compreendem a
formação da sociedade brasileira: 54% dos discentes marcaram a opção em que se afirmava que
a sociedade brasileira é formada por pessoas que pertencem a grupos étnico-raciais distintos;
enquanto 42% consideram acertada a opção em que se afirmava que a sociedade brasileira é
formada por pessoas que pertencem a um só povo, pois todo brasileiro é mestiço; os outros 4%
preferiram não responder à pergunta. Mesmo que a maior parte dos alunos tenha a concepção
de uma sociedade marcada pela diversidade de grupos étnico-raciais, um número considerável
de estudantes marcou a opção que fundamenta a negação de identidades étnicas diferenciadas,
prevalecendo a ideia de haver harmonia na sociedade brasileira, assim como a visão de que
todos os brasileiros são iguais. Desse modo, percebi a persistência no senso comum de uma
interpretação da historiografia assente nas contribuições de Gilberto Freyre. Na década de 1930,
o sociólogo concebeu uma interpretação para a formação da sociedade brasileira fundamentada
na conciliação de três grupos presentes no período colonial: o indígena, o negro e o branco.
Nessa visão, a junção deu origem ao brasileiro mestiço, concebido com as melhores
37
características de cada grupo. O problema dessa concepção historiográfica, que foi cunhada
pelos críticos de Gilberto Freyre como mito democracia racial, é que nesse projeto de um só
povo mestiço prevalece a ênfase na cultura branca oriunda dos colonizadores europeus, os
“vencedores” da História, negando, assim, a pluralidade da população brasileira, impedindo a
valorização da memória e da história dos outros grupos.
Essa perspectiva conseguiu grande reverberação no Brasil e no mundo, pois ela servia
aos interesses da elite nacional, que desejava construir uma imagem positiva para o Brasil
internacionalmente, além de fundamentar nosso mito de origem em uma versão pacífica dos
acontecimentos históricos formadores da nação. Essa compreensão foi reproduzida de forma
hegemônica por décadas nos livros didáticos e na mídia. A representação dos negros foi quase
sempre ligada ao período escravocrata, constituindo uma memória para os negros ora baseada
na violência dos cativeiros, ora focada na submissão desse grupo nas relações sociais,
desqualificando-os com palavras e atitudes preconceituosas. Segundo o pedagogo Jurjo Torres
Santomé (1995), a criação desses estereótipos para os grupos minoritários é uma estratégia das
classes dominantes – “vencedores” da história – para impedir qualquer chance de reação social
por esses grupos. O autor, refletindo sobre a participação dos estudantes nas aulas de História,
argumenta que provavelmente se sintam excluídos da história, porque, normalmente, o
conteúdo é baseado em uma perspectiva eurocêntrica, de modo que eles não reconhecem suas
experiências fora da escola na forma como a temática é abordada.
Esse discurso negativo sobre a população negra dificulta que os jovens negros se
identifiquem com o passado de seus ancestrais e que reconheçam, no seu presente,
possibilidades de conseguir um futuro diferente da realidade com a qual estão acostumados,
pautada pela desigualdade racial e social. A assistente social Inaldete Pinheiro de Andrade criou
oficinas com o objetivo de ajudar na construção da autoestima de crianças e adolescentes
negras, e ela destaca como a memória da escravidão tem um impacto negativo na formação dos
mais jovens:
Isso demonstra como é fundamental que a escola tenha um projeto voltado para a
educação positiva das relações étnico-sociais, reconhecendo e valorizando a diversidade. Para
isso, é imprescindível seguir as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
38
acarreta uma série de problemas para as minorias e impedem a diminuição das desigualdades
raciais e sociais.
Ainda são necessários muitos avanços na Escola Professora Diva Cabral. É sintomático
que 34% dos discentes consideram que no Brasil só exista uma única cultura que representa
toda a população, sem conseguir notar a complexidade da sociedade brasileira. A aprendizagem
histórica torna-se fundamental, pois sem o conhecimento dessas diferenças fica muito mais
complicado respeitá-las e valorizá-las. É essencial que os jovens tenham acesso a um currículo
que preza pela valorização e o respeito do diferente. A pedagoga Glória Moura ressalta que “a
educação deve proporcionar a formação de cidadãos que respeitem a diferença e que, sem
perder de vista o caráter universal do saber e a dimensão nacional de sua identidade, tenham
garantido o direito à memória e ao conhecimento de sua história” (MOURA, 2005, p. 76).
Já sobre os 12% dos estudantes que marcaram a opção que afirmava “Possuem cultura
e história próprias, sendo mais importante a herança dos portugueses colonizadores”, eles
entendem a sociedade brasileira sendo formada por uma diversidade de grupos, com suas
distintas culturas e histórias, mas valorizam um grupo em detrimento dos outros. Podemos
inferir que eles reproduzem a visão de que, na “mistura” dos negros com os índios e com os
portugueses, os europeus tiveram mais importância por serem mais “civilizados”. Essa visão
valoriza os brancos e, provavelmente, foi assimilada pelos alunos por meio de suas experiências
com as mídias de comunicação, no seu contexto familiar e nas aulas de História.
O currículo da disciplina de História ainda é extremamente eurocêntrico, qualquer
mudança nele esbarra no desejo do grupo hegemônico em manter seus privilégios. E o fato dos
livros didáticos de história e cursos de graduação em história continuarem sendo eurocêntricos
mostra o comprometimento tácito – ou explícito – de grande parte dos profissionais de história
com essa perspectiva eurocêntrica. Assim, a disciplina acaba contribuindo, em muitos
momentos, para reforçar uma visão preconceituosa sobre os africanos e os afro-brasileiros,
colocando-os em um lugar que oscila entre a invisibilidade, a passividade ou violência. A
pedagoga Glória Moura ressalta a necessidade de se modificar essa realidade:
É basilar que ocorra na Escola Professora Diva Cabral uma restruturação do ensino,
incentivando a valorização da diversidade da população brasileira. A disciplina de História pode
proporcionar discussões sobre a constituição da memória acerca dos africanos e dos
afrodescendentes por meio do estudo de biografias de personalidades negras que possuíam
projetos de sociedade visando modificar, a sua maneira, a desigualdade racial presente no
Brasil. Ter acesso às referências positivas, demonstrar que os negros são sujeitos da sua própria
história, permitirá que os alunos negros se sintam pertencentes àquela cultura e, aos demais
alunos, mostrará que a população negra e todas as outras devem ser respeitadas.
A terceira questão buscou entender como os alunos analisam os motivos das
desigualdades étnico-raciais no Brasil perguntando: “Muitos estudiosos afirmam que a
sociedade brasileira é marcada pela desigualdade social e econômica, havendo predomínio de
pessoas brancas entre os grupos privilegiados. Na sua visão, qual o motivo do insucesso de
tantos negros? ”. O item “a” foi marcado por 82% dos alunos, que consideram como resposta
correta: “Os preconceitos enfrentados pelos negros desde o tempo da escravidão”. O item “b”
só foi marcado por 1% dos alunos, que julgam como motivo a “Falta de competência e de
interesse dos negros”. Já 13% marcaram o item “c”, supondo que “Não existe nenhuma relação
entre a desigualdade econômica e a origem étnico-racial da pessoa, já que todos temos as
mesmas oportunidades e chances de alcançar o sucesso”. Os outros 4% não responderam à
pergunta.
A maioria absoluta dos alunos percebe a relação entre o preconceito sofrido pela
população negra desde o período escravocrata até a atualidade como o motivo deles
normalmente ocuparem as camadas mais vulneráveis da sociedade brasileira. Os alunos moram
na periferia de uma grande cidade, por isso já faz parte do cotidiano deles observar os familiares
e vizinhos buscando melhoria na qualidade de vida e tendo dificuldades. Eles próprios já estão
se inserindo no mercado de trabalho e já sofrem com essa discriminação, já que um número
considerável de alunos são estagiários de um programa do governo Estadual e trabalham nas
áreas nobres da cidade. É comum nos debates em sala de aula eles apontarem os privilégios da
população rica e branca, e expressarem a opinião de como dificilmente eles vão conseguir fazer
parte dessa classe econômica. A filósofa Djamila Ribeiro (2019), chama atenção para os
privilégios brancos e como o mercado de trabalho valoriza pessoas que estudaram em
universidades de elite, que possuem fluência em outro idioma e que participaram de um
programa de intercâmbio, oportunidades que os adolescentes negros das periferias não têm
acesso, criando um ciclo de privilégios para um determinado grupo racial. Como apontado pela
pesquisa citada pela autora:
41
É animador saber que 82% dos alunos conseguem entender a relação entre o preconceito
racial e a desigualdade social; é importante que eles tenham acesso à exemplos de pessoas que
conseguiram estudar e lutar para quebrar esse ciclo e que sirvam de referência para eles. O item
“b” só foi marcado por 1% dos alunos, pouquíssimos discentes, dois, para ser mais exata,
consideram que os negros não têm “competência” para atingir o sucesso, de modo que, mesmo
sendo uma minoria, é preocupante que essa ideia racista ainda tenha espaço entre os mais
jovens. Acredito que, para esses alunos, estudar mais sobre a memória do movimento negro,
conhecendo melhor a realidade da população negra, suas conquistas e suas derrotas, será
imprescindível para suas formações como cidadãos.
Os 13% que marcaram o item “c” acreditam e reproduzem a ideia de meritocracia, muito
disseminada entre a elite brasileira, ou seja, acreditam que todas as pessoas que se esforçam e
se dedicam vão conseguir atingir suas metas. Essa parcela dos alunos e da população
desconsidera a desigualdade de oportunidades e a discriminação sofrida pelos negros nas várias
esferas da sociedade. Não percebem, ou não querem perceber, os privilégios de quem estuda
em escolas particulares e que não precisam trabalhar até concluírem sua formação acadêmica,
além de não serem prejulgados pela sua cor de pele. Esses alunos acabam reproduzindo “a
crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de
competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social
hierárquica cria com prejuízos para os negros” (BRASIL, 2004, p. 499). E é função da escola,
segundo as diretrizes para as relações étnico-raciais, modificar essa concepção que desqualifica
a população negra.
A pergunta de número cinco trazia uma sentença que precisava ser completada, e
questionava os alunos sobre o sistema de cotas: “Você considera que a política de distribuição
de cotas raciais para ingressar nas universidades e concursos públicos”. A questão contava com
quatro opções de resposta: a) Injusta, pois dar privilégio aos negros prejudica os brancos; b)
Injusta, pois quem tem interesse e capacidade não precisa de ajuda; c) Justa, pois é uma forma
de reparar as injustiças sofridas pelos negros no passado; d) Justa, pois compensa os negros
42
pelo preconceito e desigualdades nos dias atuais. O item mais marcado foi o “d”, escolhido por
41% dos estudantes; seguido pelo item “c”, marcado por 29% dos discentes; o terceiro item
mais assinalado foi o item “b”, apontado por 24% dos alunos; o “a” foi escolhido somente por
2% dos estudantes; e 4% preferiram não opinar.
O sistema de cotas nas instituições de ensino é uma reivindicação antiga do movimento
negro, desejando reparar pelos séculos de desqualificação de sua imagem, sofrida durante e
após o sistema escravocrata, buscando proporcionar à população negra a oportunidade de
modificar sua realidade e o papel social imposto a ela pela elite econômica por meio de garantia
de acesso à educação formal. O sociólogo Rodrigo Ednilson de Jesus, destaca outro importante
objetivo do movimento negro com o sistema de cotas:
Já para os estudantes que consideram justo o sistema de cotas, 70%, demonstram entender que
existe uma desigualdade racial e que é justo reivindicar uma reparação favorável à população
negra. É fundamental que os estudantes entendam também que o sistema de cotas contribui
para modificar essa representação negativa dos negros e das negras, uma vez que, a cada ano,
aumenta a chance de os adolescentes terem aulas com professores negros, consultas com
médicos negros, assistirem jornalistas negros na televisão, além de poderem tomar essas
pessoas como referência positiva para a construção do seu próprio projeto de vida.
A quarta pergunta do questionário diagnóstico interroga o seguinte para os discentes:
“Em 2003 foi promulgada a Lei 10.639, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. Em sua opinião, você considera que
essa lei é necessária?”. A questão possuía duas opções, os alunos podiam marcar “Sim” ou
“Não”, além de espaço para eles justificarem a sua resposta, permitindo, assim, que tenhamos
acesso aos motivos que eles levaram em consideração para escolher a opção marcada. A opção
“Sim” foi marcada por 88% dos alunos, a opção “Não” foi marcada por 5% e 7% preferiram
não responder à pergunta.
A lei 10.639 foi promulgada em 9 de janeiro de 2003, alterando a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Brasileira, de 20 de dezembro de 1996, decretando a obrigatoriedade da
temática "História e Cultura Afro-Brasileira” nas escolas de ensino fundamental e médio, em
instituições públicas e privadas. A lei foi uma conquista democrática do movimento negro, fruto
da luta por efetivação de políticas de ações afirmativas no Brasil. O historiador Jorge Luís
Felizardo dos Santos, em sua dissertação “Temática étnico-racial: uma avaliação dos 15 anos
da alteração da LDBEN pela lei 10.639/2003”, ressalta que já existiam dispositivos legais que
garantiam a igualdade, inclusive a Constituição Federal de 1988, que prevê espaço na sociedade
para as minorias, mas que a Lei 10.639 é um marco histórico por ser a concretização de uma
política pública na educação voltada para a superação do racismo na sociedade brasileira. O
estudo da história e da cultura da África e dos afro-brasileiros é fundamental para impedir que
ocorra o silenciamento da população negra nas escolas. Como o pedagogo Jurjo Torres Santomé
destaca:
Uma educação libertadora exige que se leve a sério os pontos fortes, experiências,
estratégias e valores dos membros dos grupos oprimidos. Implica também ajudá-los a
analisar e compreender as estruturas sociais que os oprimem para elaborar estratégias
e linhas de atuação com probabilidades de êxito. (SANTOMÉ, 1995, p. 169)
44
A minha percepção é mais próxima dos alunos que marcaram “Não”. Posso afirmar,
pela minha experiência, que a escola Professora Diva Cabral, nos últimos anos, não possuiu um
projeto para a valorização da história e da cultura africana e afro-brasileira. O fato de as questões
raciais não receberem o devido espaço me inquietou e contribuiu para escolher esse assunto
como tema da minha pesquisa de mestrado, como professora de história e uma das profissionais
responsáveis por efetivar a aplicação da lei 10.639/03 na escola.
A assinatura da Lei tornando o ensino de História da África e dos afro-brasileiros
obrigatório é marco na luta pela construção de uma educação positiva das relações étnico-
raciais, mas é incontestável, pelos relatos dos alunos e pela bibliografia sobre a temática, que
somente a sua promulgação não é suficiente para que ela seja cumprida plenamente no cotidiano
escolar. As redes de ensino não podem resumir a aplicação da lei à inclusão de conteúdos no
currículo e nos livros didáticos. É fundamental que a comunidade escolar reflita sobre a
realidade das desigualdades étnico-raciais brasileira e proponha mudanças efetivas, baseadas
na valorização da diversidade da história e da cultura africana e afro-brasileira na rotina
institucional, e não somente em datas comemorativas, com atividades pontuais conduzidas por
pessoas externas e descontextualizadas dos assuntos discutidos em sala de aula.
Um dos principais problemas apontados para a dificuldade de se concretizar mudanças
no ambiente escolar é a formação dos professores; a falta de conhecimento sobre o tema é
apontada como empecilho pelos docentes. Os historiadores Benjamin Xavier de Paula e Selva
Guimarães (2014), chamam atenção para o fato de que a maioria dos professores teve uma
formação eurocêntrica e não usufruiu do acesso às metodologias de ensino voltadas para uma
educação positiva e habilitada para o tratamento das questões étnico-raciais em sala de aula. O
próprio Governo Federal já ressaltava, no “Plano Nacional de implementação das diretrizes
curriculares nacionais para educação das relações étnico-raciais e para o Ensino de História e
Cultura afro-brasileira e africana de 2009”, a necessidade da articulação entre a formação de
professores e a produção de material didático. Nesse contexto, a formação continuada para os
professores
até então era considerada uma panaceia para resolver os problemas do ensino de e da
aprendizagem na educação escolar básica de um modo geral, torna-se basilar para
implementação da obrigatoriedade do estudo da História e da Cultura Africana e Afro-
brasileira, tendo em vista a formação inicial considerada lacunar ou mesmo
insatisfatória neste campo. (GUIMARÃES; PAULA; 2014, p. 437)
5
Disponível em: https://www.ced.seduc.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/82/2019/09/Edital-n%C2%BA-26-
2019-revisado.pdf . Acessado em: 09 de outubro de 2021.
48
Alguns alunos relataram casos em que eles ou outras pessoas negras foram consideradas
perigosas ou suspeitas de crimes por causa da sua cor: “Meu amigo foi detido pela [sic] por
conta da cor”; “No supermercado, quando o negro foi chamado pelo segurança fora ser
revistado, o segurança só chamou ele”; e “Várias vezes. Umas delas foi eu chegando na parada
de ônibus, quando cheguei no local de destino um outro negro que estava na parada antes que
eu, falou que algumas pessoas que estavam lá queria sair quando eu me aproximava”. Nesse
mesmo item, relataram momentos em que foram desqualificados por conta de suas
características físicas: “Sempre elogiaram a minha irmã por ela ser branca sempre riram de mim
pelo meu cabelo cacheado e volumoso ou riram do meu nariz”; “Quando eu trabalhava em uma
loja, uma senhora reclamou do meu cabelo solto só porque era cacheado e eu sou negra”;
“Minha prima de 5 anos (na época) foi chamada de preta feia e cabelo ruim (cabelo dela é
cacheado) por um colega de creche”. Também narraram as ocasiões em que se sentiram
descriminados e que tiveram seus direitos desrespeitados: “Olhar torto para um negro ao atende-
lo numa loja”; “Sim, quando fui com meu bisavó [sic] reclamar de uma conta indevida na conta
da internet, um atendente falou que ele não teria o direito de reclamar da conta, e chamar ele de
negro” e “As pessoas em lugares mais ricos olham para você de maneira estranha”.
Todas essas experiências provocaram consequências na vida desses adolescentes; tais
casos podem causar uma baixa autoestima, provocar um sentimento de inferioridade e se
considerarem desvalorizados. Esse racismo, em muitos casos velados, escondido atrás de um
discurso de negação do preconceito, baseado em uma falsa convivência harmoniosa de todos
os grupos raciais, e as supostas “brincadeiras”, contribui para que os casos de discriminação
sigam sendo silenciados e naturalizados. A escola deve ter como objetivo contribuir para
modificar esse quadro. A Unicef Brasil, em 2010, publicou um folheto sobre “O impacto do
racismo na infância”, em que destaca que palavras e olhares preconceituosos podem levar as
crianças a negarem e desvalorizarem sua identidade. Ao apontar dez maneiras de contribuir
para uma infância sem racismo, eles chamam atenção para o papel das escolas: “As escolas são
grandes espaços de aprendizagem. Em muitas, as crianças e os adolescentes estão apreendendo
sobre a história e a cultura dos povos indígenas e da população negra, e como enfrentar o
racismo. Ajude a escola de seus filhos a também adotar essa postura” (Unicef, 2010, p. 14).
Entendendo a escola como esse espaço que pode ser de resistência, mas, em alguns
casos, reprodutor das formas de dominação estruturadas a partir do ambiente externo aos seus
muros, a oitava pergunta busca compreender melhor as relações étnico-raciais considerando as
experiências escolares dos alunos. A pergunta indagava: “Você já sofreu/presenciou casos de
racismo no ambiente escolar (atitudes e/ou palavras)?”. As respostas, como na pergunta
49
anterior, foram bem equilibradas: 47% dos estudantes marcaram que “Sim”, já sofreram ou
presenciaram caso de racismo nas escolas que frequentaram; enquanto 49% dos alunos
marcaram que “Não”; e os outros 4% não responderam à questão. No espaço disponibilizado
para que os alunos que marcaram “Sim” e descrevessem as situações racistas, novamente os
relatos demonstraram como os adolescentes estão expostos às atitudes e palavras
discriminatórias pelos colegas de classe.
Nota-se que os insultos com objetivo de constranger e inferiorizar os alunos negros, em
muitos momentos, são disfarçado como “brincadeira”, na intenção de silenciar o sofrimento
dos colegas e argumentar que a reação foi exagerada: “Os colegas de classe sempre brincavam
mim [sic] chamado de: chocolate”; “Mesmo na brincadeira, podemos ver que alguns acabam
chamando uns amigos de ‘neguim’, ‘macaco’, etc.”; “Muitas vezes os alunos com brincadeiras
acabam ofendendo os outros colegas”; “Amigos ‘brincando de chamar o outro de ‘macaco’”.
Percebi, através dos relatos, que as palavras negativas deixam marcas que não são esquecidas,
principalmente quando os alunos relembram casos que aconteceram em sua infância e que
carregaram pelo decorrer da vida: “Sim, quando era criança me chamavam de neguim e outros
nomes incomuns” e “Quando eu era pequena, os meninos falavam que meu cabelo era feio, só
por que era cacheado e falavam que eu nunca ia conseguir nada por causa da minha cor”.
Infelizmente, metade dos alunos que responderam ao questionário sofreram ou
presenciaram racismo no local onde deveriam se sentir protegidos e aceitos. Visivelmente, o
ambiente escolar não está numa redoma, ele está inserido em um contexto social e retrata as
desigualdades raciais brasileiras. O preconceito e a discriminação impostos às crianças e aos
adolescentes negros são prejudiciais em sua formação. O “Plano Nacional de Implementação
das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana” evidencia os prejuízos e as
consequências notadas na experiência escolar dos jovens negros no Brasil:
É comum encontrar biografias nas listas de livros mais vendidos. O gênero é um sucesso
de público; tais livros entram em número cada vez maior nos catálogos das grandes editoras. O
historiador François Dosse (2015) justifica o sucesso de vendas das biografias através da
percepção de que o grande público tem do gênero: permitir o acesso direto ao passado por meio
da história de vida dos protagonistas dos livros; permitir o exercício de comparação entre a vida
relatada e a e a vida do leitor, facilitando a identificação com a obra. Para o autor, os biógrafos
têm que constantemente fazer o difícil exercício de manter o distanciamento do seu objeto,
dificultado pelos anos dedicados a conhecer uma pessoa e pela provável identificação entre o
biografado e o biógrafo, de modo que o último não pode esquecer que é impossível saber tudo
que ocorreu na vida de uma pessoa. O historiador francês assim conceitua tais textos:
6
Como escreveu Lucien Febvre, o intuito de sua biografia de Lutero era: “Traçar a curva de um destino que foi
simples, mas trágico; situar com precisão os poucos pontos realmente importantes por onde passou essa curva;
mostrar de que maneira, sob a pressão de que circunstâncias, seu impulso inicial teve de esmorecer, e seu traçado
original, inflectir-se; colocar assim, acerca de um homem de singular vitalidade, esse problema das relações entre
o indivíduo e a coletividade, entre a iniciativa pessoal e a necessidade social, que é, talvez, o problema essencial
da história: tal foi nosso intuito” (FEBVRE, 2012, p.11).
52
dentro de novas abordagens, quer dizer, situar os indivíduos em estudo em sua dimensão
cultural própria. A condenação da biografia como uma “historieta”, ou seja, como alguns
integrantes dos Annales conceituavam as biografias novecentistas dos “grandes homens”,
homenagens ao Estado-nação – amplia-se na segunda geração dos Annales, na qual a proposta
de estudar a História Econômica se torna mais importante que escrever a História factual, além
de ocorrer uma valorização das infraestruturas em detrimento dos papeis dos sujeitos históricos.
Para o historiador Philippe Levillain, essa mudança de perspectiva da historiografia é
reflexo da busca por uma sociedade mais igualitária no momento pós-Primeira Guerra Mundial,
já que, depois das atrocidades sofridas e relatas por muitos militares e cíveis, não existia muito
espaço nas academias para uma história que exaltava e destacava como protagonistas somente
os líderes; as biografias dos “grandes homens” serviram na construção dos Estado-nação e na
formação das identidades nacionais, de modo que fomentar tais sentimentos patrioteiros não
convinha em um momento de reestruturação socioeconômica como o vivenciado no entre
guerras e, sobretudo, após-1945. Nesta perspectiva, destaca-se a tese de F. Braudel – O
Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II -, de 1949, na qual a história
política acaba por ser abordada a partir do mar Mediterrâneo, em uma interpretação que
incorpora os eventos de curta duração e os de longa duração – os acontecimentos a ocorrer
sobre uma estrutura socioeconômica e geográfica que os ultrapassa. Assim, as biografias
perderam espaço nas academias e os biógrafos foram acusados por muitos historiadores de se
preocuparem em ganhar dinheiro com a venda de seus livros para o grande público, sem o rigor
científico necessário. Como Peter Burke destacou em seus estudos sobre a Escola dos Annales,
Braudel encabeçou o movimento após a morte de Lucien Febvre, em 1956; a “história
quantitativa”, a “história demográfica”, a “história serial”, entre outras abordagens a centrar-se
sobre grandes séries, a situar as vidas individuais em conjuntos maiores, numeráveis, ou
estruturas invisíveis, mas condicionantes da relações sociais, tomaram a dianteira nos estudos
históricos na França, visto os incentivos de Braudel para tais metodologias e abordagens – bem
como sua posição de professor do Còllege de France e a de Diretor do Centre Recherches
Historiques, na École de Hautes Études. Consoante, Peter Burke, durante “quase trinta anos [...]
Braudel não apenas foi o mais importante historiador francês, mas também o mais poderoso”
(BURKE, 1991, p. 39), a determinar programas de pesquisas e a distribuição de bolsas de
estudo.
Nos anos 1980, as biografias voltam a despertar o interesse dos historiadores com o
retorno da História Política e o processo de retração nos estudos baseados no método
quantitativo e seriado. A mudança de perspectiva está ligada à valorização do individualismo,
53
pois os sujeitos históricos retornam ao centro das discussões, mas não nos mesmo moldes do
século XIX, pois as biografias históricas, como todos as outras pesquisas da área, devem partir
de uma problemática e das fontes de pesquisa com o objetivo de explicar o coletivo. Nesse
sentido, o interesse pelas atitudes individuais se justifica como meio de permitir o vislumbre da
realidade de forma mais concreta. O historiador François Dosse organizou a abordagem da
biografia em três modalidades:
A biografia heroica surgiu na Antiguidade, mas ainda pode ser encontrada em livros até
hoje. Esse modelo tem como objetivo, a partir da história de vida de personalidades
consideradas exemplares, educar os leitores para seguirem a moral e os valores do grupo
hegemônico do período. A biografia modal é aquela em que a história de um indivíduo
específico e idealizado é utilizada para representar o coletivo, assim o singular não é valorizado
e a biografia é uma estratégia para ilustrar categorias sociais e uma maneira de procurar entender
as estruturas da sociedade. A biografia hermenêutica marca o retorno da valorização do
singular, mas com espaço para novos sujeitos históricos, privilegiando a diversidade da
sociedade e a multiplicidade dos indivíduos, com o objetivo de não cometer o erro descrito pelo
sociólogo Pierre Bourdieu (2002) de procurar uma coerência no transcorrer da vida de uma
pessoa. Essa modalidade busca ser mais reflexiva e entender a relação dos indivíduos com o
contexto histórico, como uma via de mão dupla, empregando os métodos da História, partindo
de um problema e articulando os conceitos com as fontes, sem o intuito de englobar a totalidade
da vida do sujeito.
As disputas e modificações em torno das biografias não ficam somente nas academias.
A utilização de biografias de forma pedagógica remota ao Mundo Antigo, onde a concepção de
História Magistra Vitae tornava os biografados modelos de conduta para a geração em
formação. As obras do filósofo grego Plutarco são exemplos dessa prática; seu livro Vidas
Paralelas, que se trata de um copilado de 23 pares de biografias, comparando um sujeito
romano e um sujeito grego, era usado como metodologia para ensinar os jovens romanos de
famílias abastardas, um modelo de governante ideal, por meio de exemplos, como os próprios
Imperadores romanos. O emprego de biografias na formação dos jovens se modifica no século
54
XIX, de modo que passa a ser fundamental a escolha de personagens que se encaixassem não
somente como heróis, mas como patriotas, que os estudos de sua vida colaborassem para a
construção do sentimento de pertencimentos dos jovens às novas nações ou novos regimes
políticos.
No Brasil foi criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, com
o objetivo de consolidar a monarquia brasileira. O IHGB empregou como uma de suas
estratégias a veiculação de biografias em sua revista, possuindo uma seção especial para esse
estilo literário. Os escolhidos para constituir o panteão de heróis nacionais eram letrados, que
utilizaram seus conhecimentos para servir ao Estado (OLIVEIRA, 2010). Tais pesquisas
encontravam ressonância no Colégio Dom Pedro II, criado em 1837, que fazia parte do mesmo
projeto civilizatório do IHGB, fundado com o objetivo de formar uma elite local.
No início da República brasileira, o Colégio Dom Pedro II continua a ser referência para
a formação dos jovens brasileiros de elite. Em um período marcado por instabilidades políticas,
era necessário a criação de símbolos que colaborassem para a constituição da História do país
em concordância com o novo regime político. Tal busca é exemplificada pelo livro A História
do Brasil ensinada pela biographia de seus heroes, do jornalista e crítico literário Silvio
Romero, professor de Filosofia do Colégio Dom Pedro II. O livro relaciona os eventos
históricos com “os grandes homens” do passado brasileiro, tais como Pedro Álvares Cabral,
Tiradentes, José Bonifácio, entre outros. No prefácio, o jornalista João Ribeiro elucida a
proposta de ensino cívico de Silvio Romero, que espera, por meio dos exemplos dos biografados
apresentados pelo livro, que os estudantes aprendam as noções de cidadania e patriotismo e que
estimule o desejo deles por participação política (VIEIRA, 2002).
O emprego de biografias no ensino de História não foi uma exclusividade desses
períodos históricos. O historiador Jerônimo Adelino Pereira Cisneiro Galvão (2019) destaca
que o uso de biografias heroicas foi uma prática comum durante o regime civil-militar
brasileiro, sobretudo nas disciplinas de Educação Moral e Cívica e Organização Social e
Política do Brasil, que substituíram a disciplina de História em algumas etapas de ensino. Nesse
caso, o emprego de biografias de modo factual tinha como objetivo transmitir aos estudantes
modelos de comportamento e valores dos grupos hegemônicos.
Para o autor, os atuais professores de História, formados no antigo regime político, não
desejam repetir sua experiência com seus discentes e optam por descartar as biografias – no
entanto, apesar de tais intuitos, os materiais didáticos, em determinados conteúdos concedem
bastante espaço para os ditos “grandes homens”. A ênfase nas estruturas econômicas, nos
acontecimentos políticos e nos atos dos homens que ocupam lugar de destaque nos governos
55
acabam se tornando o discurso hegemônico nas salas de aula e os sujeitos históricos comuns
acabam não possuindo centralidade na maioria dos debates escolares ou tem suas histórias
relegadas a boxes de curiosidades. A despeito disso, Jeronimo Galvão destaca a importância
das biografias:
O autor ressalta diversos motivos para se trabalhar com biografias em sala de aula.
Primeiro, os discentes identificarem sujeitos históricos e compreenderem as estratégias
utilizadas por eles naquele contexto histórico, percebendo como as pessoas podem ser
protagonistas de suas histórias e lutarem para modificar as circunstâncias, percebendo assim
que os indivíduos também são responsáveis pelas suas trajetórias de vida, que não são só
consequências de forças estruturais.
Considerando a pertinência desses argumentos, é possível considerar o estudo das
biografias como estratégia para que os estudantes se reconheçam como sujeitos da sua própria
história e enxerguem possibilidades de mudanças em seus próprios trajetos de vida. Essa
proposta está em consonância com as Diretrizes curriculares nacionais para a educação das
relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, que
propõem o uso das biografias em uma perspectiva que permita aos jovens negros se
identificarem como agentes históricos capazes de transformarem suas realidades, como seus
ancestrais o fizeram. Dessa maneira, as diretrizes indicam projetos que visem a
os discentes estudarem diferentes discursos produzidos por variados grupos sociais; isso
colabora para que os estudantes transformem visões preconcebidas e estimule o sentimento de
empatia, colocando-se no lugar dos outros. Por isso, as biografias são importantes não só por
causa da aprendizagem histórica, mas também ajuda na formação atitudinal, cooperando para
que os adolescentes tenham uma leitura de mundo mais crítica, a destacar a agência dos sujeitos
historicamente situados.
Em sua tese, “Interrogando discursos raciais em livros didáticos de História: entre Brasil
e Moçambique – 1950-1995”, a historiadora Maria Telvira da Conceição levanta questões sobre
a importância do livro didático na sociedade brasileira, pois, para uma parcela significativa da
população, especialmente entre aqueles que têm baixa renda, o livro didático é a única
referência de literatura escrita, de modo que acaba possuindo a capacidade de produzir e
propagar memórias. Por isso, é fundamental entender o contexto social, político e
mercadológico em que o livro didático está inserido. Mesmo com o recorte temporal distante
da nossa realidade, percebemos continuidades na forma como as questões étnico-raciais são
abordadas pelos livros didáticos. Os negros aparecem pouco e quase sempre associados ao
sistema escravocrata, destacando em suas imagens os castigos físicos, representados pela visão
de viajantes europeus.
Mesmo com as mudanças impostas pela legislação, esses problemas ainda se
apresentam nos atuais livros didáticos, visto que prevalece a narrativa em que o protagonismo
da história é atribuído à elite branca, com o predomínio de uma visão desatualizada e
reducionista da participação dos escravizados e libertos no processo de abolição da escravidão,
por exemplo. Analisando os volumes 2 e 3 do livro didático de História adotado pela Escola
Diva Cabral, História: Ensino Médio, dos autores Ronaldo Vainfas, Sheila de Castro Farias,
Jorge Ferreira e Georgina dos Santos, percebi que o volume 2 só trata sobre a população negra
relacionando-a com a escravidão, como evidenciado nos títulos dos capítulos: Capítulo 5 –
Brasil: independência de um império escravista; Capítulo 11 – Império escravista, Brasil
africano; e Capítulo 12 – Apogeu e crise da economia escravista.
No Capítulo 3 (VAINFAS et al, 2017), dedicado às revoluções na América, a
independência do Haiti possui bem menos espaço que o processo de independência das Treze
Colônias, o Haiti sendo abordado em duas páginas, enquanto os as Trezes Colônias no dobro
de páginas. O capítulo conta com um box intitulado O rei do Haiti (VAINFAS et al, 2017, p.
57
50), que apresenta o liberto Henri Cristophe e sua trajetória de implementar um regime
monárquico no Haiti aos moldes da França, passando a ideia de que ele desejava subjugar os
moradores da ilha. O Capítulo 4, dedicado à mineração do ouro no Brasil, possui um box
(VAINFAS et al, 2017, p. 61) dedicado à Chica da Silva, em que se destaca a sua relação com
o contratador português João Fernandes. O texto ressalta como o português legitimou e apoiou
os filhos, frutos da sua relação com Chica da Silva, enquanto, sobre a personagem principal do
box, evidencia-se o fato de ela adotar uma postura de membro da elite e possuir escravos,
encerrando com uma análise pertinente sobre a representação sensualizada da mulher negra.
Mas a questão central do texto foca justamente nas relações sexuais dos portugueses com
mulheres negras e indígenas, pois pergunta: “A relação entre homens portugueses e negras e
índias foi muito comum. Em termos demográficos, o que isso representa para a composição da
população brasileira no período colonial essas relações? ”. Dessa maneira, não leva os
estudantes a refletir sobre as formas de opressão em que se baseava essa relação, fazendo-os
acreditar que as relações entre homens brancos e mulheres negras seguiam o padrão do
relacionamento do contratador João Fernandes e de Chica da Silva, sendo que na maioria dos
casos era baseada no domínio e na violência dos homens brancos. Outro box (VAINFAS et al,
2017, p. 71) no capítulo apresenta os artistas Aleijadinho e Mestre Valetim como mestiços,
denominação já bastante criticada por transmitir a concepção de que todos os brasileiros são
frutos de miscigenação, apagando a diversidade étnico-racial.
No Capítulo 9, acerca do período regencial, encontramos um box (VAINFAS et al,
2017, p. 164) dedicado às revoltas escravas, que relata como os escravos desejavam melhores
condições de vida, mas sem questionarem a escravidão, pois já era uma situação costumeira nas
suas regiões de origens. A pergunta ligada ao texto é sobre os motivos dos ex-escravizados
desejarem comprar escravos, de modo que o texto, junto com a pergunta, no lugar de valorizar
a luta e a resistência da população negra contra o cativeiro, opta por enfatizar a ideia de que os
escravizados operavam em favor da manutenção do sistema. O Capítulo 10 dedica bastante
espaço para a Guerra de Secessão norte-americana, que tem como um dos principais motivos a
abolição da escravidão nos EUA, mas não existe reflexão sobre a participação da população
negra no conflito. O livro apresenta duas imagens: a foto de um batalhão de negros (VAINFAS
et al, 2017, p.185), que não é acompanhada de um texto, e outra de uma família negra no chão
(VAINFAS et al, 2017, p. 188), sendo ameaçada por um membro da Klu Klux Klan. Novamente
prevalece a imagem da população negra sendo subjugada, mesmo após a abolição, já que
acompanhada de uma legenda reforçando que a situação dos negros após a guerra civil – e a
58
abolição – ficou pior do que na época da escravidão. Induz-se, assim, os alunos a suporem que
a situação dos afro-americanos era melhor na época da escravidão.
O Capítulo 11, intitulado “Império escravista, Brasil Africano”, dedica um espaço para
a discussão sobre a diversidade étnica no continente africano e como essas diferenças impactam
na construção das identidades étnicas das populações africanas e afrodescendentes no Brasil. A
ênfase, no entanto, recai sobre as rivalidades, como observei nessa passagem: “Essas diferenças
e rivalidades entre os nascidos na África ficavam evidentes até mesmo em termos geográficos,
como nos espaços urbanos das grandes cidades (...) Outros se organizavam em irmandades
religiosas, formando grupos que, muitas vezes, rivalizavam entre si. ” (VAINFAS et al, 2017,
p. 195) mesmo quando se refere às irmandades, que a historiografia tem consensuado como um
dos principais espaços de sociabilidade e resistência cultural da população negra
(REGINALDO, 2018), e a formação de cantos de trabalho na cidade de Salvador, em que
atuavam os trabalhadores negros que protagonizaram uma das primeiras greves que se tem
notícia no país (REIS, 1993).
No fim das contas, esse capítulo 11 dedica muito mais espaço da narrativa para explicar
a organização do sistema escravista e o tráfico atlântico, destacando o papel da Inglaterra no
fim do tráfico. Dois negros possuem destaque no box “Personagem”, o ex-escravo, Francisco
Félix de Souza (VAINFAS et al, 2017, p. 194), que se tornou traficante na África. A atividade
proposta para esse texto é “Estabeleça alguns pontos que podem explicar os motivos de um ex-
escravo se tornar um traficante de escravos, seja após retornar à África ou como liberto no
Brasil”, novamente para evidenciar o papel dos ex-escravos na manutenção do sistema. O
segundo personagem é Mohommad Baquaqua (VAINFAS et al, 2017, p. 200), que escreveu
uma autobiografia, tornando-se uma das poucas fontes produzidas por pessoas que foram
escravizadas a ter sua vida escrita de próprio punho. Porém trechos da autobiografia não são
apresentados aos alunos e nenhuma reflexão sobre o material é proposta, além de que a questão
que acompanha o box é sobre a legalidade da venda dele como escravo. Não se discute, por
exemplo, a importância desse documento na luta antiescravagista.
No Capítulo 12, os autores se dedicam a discutir a crise do sistema escravista e as
possibilidades de transição para o trabalho livre no box sobre a Lei de Terras de 1850
(VAINFAS et al, 2017, p. 209) e no tópico “O problema da mão de obra: imigrantismo”
(VAINFAS et al, 2017, p. 210). Nesses dois espaços, os imigrantes recebem destaques e os ex-
escravos são “esquecidos”, uma vez que não é levantada a possibilidade de que os futuros
libertos se tornassem trabalhadores livres ou pudessem ter o desejo de possuir terras, marcando
o início do processo de “desaparecimento” dos negros no livro didático.
59
figurante, como percebemos com a utilização de boxes, que colocam os sujeitos negros como
um apêndice do conteúdo principal. Assim, os professores devem buscar outras fontes de
informações, já que também existe um déficit na formação dos profissionais, pois disciplinas
sobre História da África e dos afrodescendentes ainda são recentes nos cursos de graduação no
Brasil.
Infelizmente, como percebemos pela análise do conteúdo do livro, a narrativa, as
imagens e as atividades propostas pelo livro didático nos ajudam a perceber a memória que foi
construída pelos grupos hegemônicos sobre a abolição da escravidão: um acontecimento
protagonizado pela elite branca, e os negros sendo relegados ao papel de coadjuvantes, imagem
essa ainda bastante difundida pelos livros didáticos. Essas características não foram observadas
por mim e meus colegas de trabalho em 2017, no momento da escolha do livro: a seleção foi
democrática, mas realizada de forma apressada pelo pouco tempo disponível para a análise dos
livros e a grande quantidade de coleções disponibilizadas pelas editoras. Pesou na decisão final
os nomes dos autores dos livros, Ronaldo Vainfas e Jorge Ferreira, que são historiadores
renomadas e conhecidos por termos lido seus textos nos cursos de graduação. Outro suporte
utilizado para a escolha do livro didático foi o Guia do PNLD de 2018, que aponta que a coleção
cumpre os critérios do PNLD e a Lei 10.639/03, informando:
Assim, percebi que não basta analisar se as coleções cumprem os critérios, mas também
a forma utilizada, pois o livro introduziu várias biografias de personagens negros, mas não os
ressaltando de forma positiva, pois não são tratados como sujeitos históricos capazes de
modificarem sua realidade. Como mostrado, a narrativa é centralizada nas experiências
europeias, e as experiências dos negros são reduzidas aos boxes, longe dos textos principais. Os
livros reproduzem uma memória dos vencedores por meio de uma narrativa elitista da história,
com aval de historiadores reconhecidos e que ajudam a moldar essa ideia nos cursos de
graduação e na educação básica.
A filósofa Marilena Chaui problematiza o fato de os intelectuais reproduzirem a
ideologia burguesa, intencionalmente ou não. A ideologia tem como objetivo “produzir uma
universalidade imaginária, pois, na realidade, apenas generaliza para toda a sociedade os
62
interesses e o ponto de vista particulares de uma classe: aquela que domina as relações sociais”
(CHAUI, 2016, p. 247). Para a autora, o objetivo é cumprido quando a ideologia consegue
manter as lutas de classes invisíveis, ela sobrevive por meio das lacunas criadas por ela mesma.
Os discentes das escolas públicas e moradores das periferias não se reconhecem nessa narrativa
elitista e não vislumbram nela a possibilidade de ruptura dessa sociedade desigual em que estão
inseridos; assim a escola não cumpre sua função de transformar vidas e acaba colaborando para
o predomínio do ponto de vista de um grupo social.
É função do ensino de História analisar de forma crítica essa memória hegemônica,
problematizando a sua constituição. Os discentes têm que entender que a memória e a História
são diferentes, mas relacionam-se, dado que as duas são alvos de disputas entre grupos sociais
no presente. As memórias não devem ser ignoradas, mas sim ser fonte para a História, por isso
elas precisam ser analisadas, investigadas, confrontadas com outras fontes, para assim
construirmos uma outra narrativa sobre o tema estudado.
Podemos observar como essa estratégia funciona analisando as imagens do livro
didático e percebendo como determinado grupo social, detentor dos meios de comunicação da
época, produziram uma memória em que a princesa Isabel é apontada como a principal
responsável pela abolição da escravidão no Brasil, enquanto os negros livres e libertos são
representados como coadjuvantes no processo. Essa memória continua sendo repetida pela elite
atual, mas já foi descontruída por diversos historiadores, demonstrando as mais variadas formas
de lutas empregadas pelos negros no período da escravidão. Como a historiadora Wlamyra
Albuquerque ressalta em seu artigo “Movimentos sociais abolicionistas”, no Dicionário da
Escravidão e liberdade:
A resistência dos escravizados e a luta dos negros livres não têm o mesmo espaço nos
livros didáticos. Modificar essa memória passou a ser uma das bandeiras do Movimento Negro,
não somente com relação ao período escravista, mas também no que se refere à imagem da
população negra no pós-abolição, haja vista a preocupação em romper com o estereótipo que
associa os negros e as negras ora à marginalização, ora à passividade. A pedagoga Nilma Lino
Gomes destaca, em seu livro O Movimento Negro educador, o papel educativo dos movimentos
63
vozes e corpos negros anônimos que atuaram e ainda atuam na superação do racismo
e na afirmação da identidade, dos valores, do trabalho, da cultura e da vida da
população negra, presentes no cotidiano da sociedade brasileira. São as negras e os
negros em movimento: artistas, intelectuais, operários e operarias, educadoras e
educadores, dentre outros, ou seja, cidadãs que possuem uma consciência racial
afirmativa e lutam contra o racismo e pela democracia, mas não atuam
necessariamente em uma entidade ou organização específica. Todos são, de alguma
forma, herdeiros dos ensinamentos do Movimento Negro, o qual, por conseguinte, é
herdeiro de uma sabedoria ancestral. (GOMES, 2017, p. 18)
Como pretendo investigar projetos de sociedade para o Brasil por meio das biografias
de intelectuais e artistas negros que procuraram conquistar a emancipação dos escravizados e a
buscaram por espaços para os afrodescendentes no Brasil, assim promovendo a resistência
negra em diversas perspectivas, vi-me compelida a dialogar com os caminhos já percorridos
por outros professores, no intuito de entender diferentes práticas de ensino acerca da temática
geral das relações étnico-raciais. Depois do levantamento do assunto nas dissertações da rede
ProfHistória, selecionei três trabalhos que considero importantes contribuições para a minha
pesquisa, pois versam sobre temas, recortes e problemáticas que se aproximam do meu objetivo
de pesquisa, tendo biografias como fontes de pesquisa para os discentes produzirem
conhecimento histórico.
Na dissertação “As muitas vidas e identidades de Carolina Maria de Jesus: o uso do
biográfico e do autobiográfico no ensino das relações étnico-raciais” do historiador Edson
Guimarães de Azeredo, defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro em 2018, o autor
64
tem como objetivo colocar em prática a lei 10.639/2003, referente ao ensino obrigatório sobre
História e Cultura Afro-brasileira, na escola em que atua há 17 anos, CIEP 365 Asa Branca,
localizada em Nova Iguaçu. Ele considera que as discussões em torno das relações étnico-
raciais possibilitaram para os seus alunos ampliar o debate sobre o racismo na instituição de
ensino e na sociedade brasileira.
Com esse objetivo, ele escolheu trabalhar com os alunos do Ensino de Jovens e Adultos
(EJA), do curso noturno, biografias de sujeitos “inviabilizados” pela História brasileira. Nesse
recorte, o historiador decidiu trabalhar com a biografia de uma autora específica: a escritora
Carolina Maria de Jesus. O autor opta pela escritora por considerar que ela possui diversas
características que se aproximam da experiência de vida dos seus alunos: negra, mulher e da
favela. São selecionados quatro livros: “Muito bem, Carolina!” das autoras Eliana de Moura
Castro e Marilia Novais de Mata Machado; “Carolina Maria de Jesus: uma escritora
improvável”, do escritor Joel Rufino dos Santos; “Cinderela negra: a saga de Carolina Maria
de Jesus”, do autor José Carlos Meihy, além da autobiografia da autora intitulada o “Quarto de
Despejo”. Como recorte, ele define que pretende, através dos relatos das biografias e da
autobiografia de Carolina Maria, refletir sobre as relações étnico-raciais no Brasil dos anos
1940 e 1960 comparando aos tempos atuais, permitindo assim que as discussões étnico-raciais
deixem de estar somente no campo dos movimentos políticos e sociais e passem a ser
articulados a temas mais próximos da realidade cotidiana dos alunos. Para isso, Edson
Guimarães produziu um caderno de atividades, com seis oficinas que levam a refletir sobre a
trajetória da escritora negra Carolina Maria de Jesus, com o objetivo de ser um instrumento
didático que possibilite a troca de informações e viabilize a reflexão sobre as relações étnico-
raciais em nossa sociedade.
Dentro de nossa proposta, a dissertação de Edson Guimarães de Azeredo auxilia a pensar
a utilização de biografias em sala de aula, como fonte para analisar determinados momentos
históricos, destacando a agência de sujeitos historicamente situados, direcionando as discussões
para casos concretos, indo além de análises conjunturais ou estruturais que apagam os
indivíduos ou os incluem unicamente em estatísticas generalizadoras.
De maneira geral, nas aulas de história, tratamos a sociedade escravocrata ou a sociedade pós-
abolição como sistemas nos quais a atuação de homens e mulheres negras está fadada ao
fracasso ou tem pouca repercussão, o que contribui para uma visão negativa acerca da
capacidade de ação dos afro-brasileiros.
Por isso, investigar as táticas da escritora Carolina Maria de Jesus, no intuito de ser
escutada, de resistir a processos de exclusão, de denunciar as desigualdades sociais, mostra aos
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alunos e alunas que o presente pode ser modificado por aqueles que lutam por uma sociedade
democrática e pela justiça social. Em consonância com as diretrizes para a Educação das
Relações Étnico-Raciais, pretendo aproveitar os debates levantados pelo autor, mas propondo
recortes e abordagens diferentes dentro do tema das desigualdades sociais e raciais, dando
enfoque nos projetos de sociedade idealizados por negros, com o objetivo de modificar a
realidade brasileira, possibilitando para os meus alunos e alunas reconhecer e valorizar os
processos de resistência negra.
Quanto ao produto, me afasto da perspectiva do autor, pois considero que o trabalho
direto com fontes primarias é fundamental para que os alunos percebam as disputas de
memórias entre os diversos sujeitos participantes dos processos históricos. Então, no lugar de
biografias produzida por terceiros, proponho o acesso direto dos alunos as fontes produzidas
pelos sujeitos pesquisados ou sobre eles. A metodologia utilizada também será diferente, como
ressaltado pela historiadora Margarida Dias (2010, p. 11), já que o objetivo do ensino de
História é construir coletivamente conhecimento histórico com os discentes, apresentando para
eles o método de pesquisa dos historiadores, baseado na interrogação das fontes a partir de um
problema levantado pelo pesquisador. Para isso, as propostas de desdobramento para a análise
das fontes contidas no scrapbook incentivarão os estudantes a entender a produção de narrativas
históricas a partir das fontes, sendo disponibilizado para eles informações para contextualizar
as fontes, a partir das quais vão construir conhecimento sobre o passado e sobre o presente.
Na dissertação “Tecendo caminhos para a aplicação da lei 10.639/03: um relato de
experiência em turmas de 3° ano da rede pública” da historiadora Cristiane Alves de Lemos,
defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2016, a autora destaca que a ideia para
o tema nasceu da sua experiência pedagógica, observando a prática docente no Colégio Estadual
Paulo de Assis Ribeiro, localizado na cidade de Niterói – RJ. A autora avaliou que os
silenciamentos em torno das relações étnico-raciais na escola proporcionam um ambiente
permissível para práticas racistas entre os colegas, afirmando que não existe nenhum trabalho
voltado para a formação de uma consciência crítica dos estudantes em relação ao tema.
Ela salienta as dificuldades na implementação da lei 10.639/03, não somente na escola
em que atua, mas no Brasil, graças a uma estrutura curricular que privilegia conteúdos
eurocêntricos, dificultando abordagens que valorizem africanos e afro-brasileiros como
protagonistas de sua própria história. Com o objetivo de desenvolver um trabalho voltado para
as relações étnico-raciais, ela iniciou debates com os alunos em torno do sistema de cotas
utilizados pelas universidades públicas brasileiras, percebendo que seus alunos estavam
desinformados sobre a problemática, tema a partir do qual ela começou a questioná-los sobre o
66
próprio racismo existente no Brasil. Despois do diagnóstico sobre o conhecimento dos discentes
em relação ao tema, a autora estabeleceu trabalhar em sala de aula a construção histórica do
racismo e do pensamento racial no Brasil, contrapondo esse processo às lutas empreendidas
pelo movimento negro em nosso país.
Como produto, a pesquisadora propõe uma série de oficinas, proporcionando que os
alunos reflitam sobre o racismo na sociedade brasileira e analisem a construção desse conceito
e as formas de luta contra ele. As primeiras oficinas têm como objetivo iniciar o debate e
levantar questionamentos utilizando recursos como vídeos e charges para chamar atenção dos
alunos; nas oficinas seguintes, os alunos foram apresentados aos textos de intelectuais
brasileiros que discutiram sobre a questão racial: Nina Rodrigues, Manoel Bonfim, Gilberto
Freyre e Florestan Fernandes. Em contraponto, também foram disponibilizados textos dos
jornais do movimento negro, tais quais A voz da Raça, A liberdade, o Clarim da Alvorada e o
Alfinete. No final das oficinas, os estudantes tiveram que produzir cartazes com a temática O
racismo tem História.
A experiência de Cristiane Alves Lemos é importante para pensar em aulas nas quais os
alunos e as alunas tenham contato direto com fontes primarias, sendo um bom exemplo para
nortear a produção e materiais didáticos para o ensino de História, pois demonstra que as alunas
e os alunos são capazes de debater assuntos relacionados à desigualdade racial lendo
documentos e construindo conhecimento com a orientação de um professor mediador. Nossos
objetivos se aproximam por pensarmos a construção da memória sobre o racismo e as
consequências disso para a população negra, por meio da análise das ideias de intelectuais. Mas
enquanto a autora propõe, em seu produto, a análise de discurso constituído por intelectuais
brancos para tratar de desigualdade étnico-racial, contrapondo-os aos jornais do movimento
negro, meu enfoque será a exclusivamente voltado para a produção e os discursos da população
negra, privilegiando a reflexão sobre esse tema na perspectiva dos sujeitos que enfrentavam o
preconceito racial.
A dissertação “O pós-abolição nas aulas de História: uma análise do papel social
atribuído aos negros na História ensinada”, da historiadora Carolina Viana Machado, foi
defendida em 2016 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e ressalta as mudanças propostas
para o ensino de História relacionado às relações étnico-raciais nas últimas décadas, destacando
o importante papel do estudo do multiculturalismo proposto pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais (1996), a obrigação do Ensino de História da África e dos Afro-brasileiros decretado
pela Lei 10.639 em 2003 e o incentivo à valorização da cultura e história africana e afro-
brasileira nas Diretrizes Curriculares Nacionais das Relações Étnico-Raciais de 2004. Porém,
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segundo a autora, mesmo com uma legislação referente ao assunto, ele continua sendo pouco
abordado nas escolas.
Com esse problema identificado, a autora define como seu objetivo de pesquisa a análise
da forma como a participação dos afrodescendentes na História do Brasil é tratada nas aulas de
História, tanto no conteúdo dos livros didáticos, quanto na prática dos professores,
estabelecendo como recorte a participação dos afrodescendentes na História do Brasil ao longo
do século XX. Com tal objetivo, ela seleciona duas fontes prioritárias: livros didáticos e
entrevistas com professores de História. Quanto aos livros didáticos, ela tem acesso a quatro
coleções, mas decide analisar somente uma: De História III O mundo por um fio: do século XX
ao século XXI, destinada ao terceiro ano do Ensino Médio, dos autores Ronaldo Vainfas, Sheila
de Castro Gomes, Jorge Ferreira e Georgina dos Santos. Esse recorte é feito por ser o livro
utilizado pela historiadora na escola estadual em que lecionava e, segundo sua análise, ser o
único que cita negros no pós-abolição. Já para a entrevista com professores, são selecionados
quatro docentes do Ensino Médio da rede pública, com o objetivo de fazer comparações entre
as impressões e experiências dos professores entrevistados com as dela enquanto profissional.
Como produto, a autora faz sugestões de atividades com a temática das relações étnico-raciais,
propondo um trabalho com biografias de membros atuantes no movimento negro brasileiro,
fontes para serem pesquisadas, analisadas e apresentadas pelos alunos da turma de terceiro ano,
com o objetivo final da produção de textos por parte dos discentes.
O trabalho contribui por propor ao aluno atividade de produção textual, permitindo que
eles se apropriem dos debates realizados pelas oficinas, utilizando como base as biografias
pesquisadas por eles. Considero pertinente a participação ativa do aluno nas situações de
aprendizagem, e penso ser importante que o professor-mediador, como enfatizou o pesquisador
Andreas Schleicher (2018), proporcione uma aula baseada em problematizações, no caso do
ensino de História, apresentando fontes para nortear os passos dos alunos no trabalho de
investigação.
Como esses trabalhos no âmbito do ProfHistória têm mostrado, muitos são os exemplos
de negros e de negras que buscaram transformar seu contexto e dos seus pares, intencionalmente
ou não. É necessário disponibilizar alternativas aos livros didáticos que não reneguem a
população negra aos boxes para os professores, utilizando desse artificio para cumprir a Lei
10.639/03. Pois Chica da Silva, Mohammah G. Baquaqua, José do Patrocínio e tanto outros
merecem a posição de protagonistas nos livros didáticos disponibilizados para os estudantes,
pois, em muitos lares brasileiros, esses são as únicas fontes de conhecimento histórico que as
famílias têm acesso.
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Para além do livro didático, a imagem dos negros é forjada, sobretudo, pelos meios de
comunicação, que costumam ser outro espaço responsável por colaborar com a formação das
opiniões das crianças e dos adolescentes. Para compreender como essas informações estão
sendo assimiladas pelos jovens, no questionário aplicado aos estudantes – já comentado no
capítulo anterior – a nona pergunta era o seguinte: “Na sua opinião, os meios de comunicação
brasileiros têm promovido de maneira positiva a identidade e a cultura afro-brasileira?”. O item
“a” foi marcado por 42% dos discente, que consideram que: “Sim, em novelas e séries
brasileiras, os negros sempre aparecem desempenhando vários papeis (rico, pobre, patrão,
empregado, etc.), e na TV e internet há muitas matérias destacando a atuação de negros em
diferentes áreas do conhecimento e mercado de trabalho”. Já 53% dos estudantes consideram
que: “Não, em novelas e séries brasileiras, os negros quase sempre aparecem como pobres,
empregados e escravos, e na TV e internet é frequente os negros aparecerem de forma negativa”.
De resto, 5% dos alunos preferiram não opinar sobre a questão.
O resultado das pesquisas que investigaram diferentes meios de comunicações com o
objetivo de analisar como a população negra é representada pela mídia brasileira corroboram
com o item marcado pela maioria dos estudantes. O artigo “A cara do Cinema Nacional”, fruto
das pesquisas do grupo GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa),
analisou os filmes nacionais com maior bilheteria entre os anos de 1995 e 2014. A pesquisa
mapeou os personagens pela cor e pelo gênero, observando como eram representados pelos
seguintes critérios: quantidade de personagens, nomeação dos personagens, participação em
diálogos centrais, posição de narrador, posição de protagonista, profissões ocupadas e local de
moradia. Os dados levantados constataram uma sobrerrepresentação dos homens brancos,
enquanto a mulher não-branca é a menos representada. A conclusão da pesquisa é que em
“nosso universo de blockbusters, pretos e pardos foram preponderantemente associados à
criminalidade, pobreza, ausência de protagonismo e a locais de moradia precários de modo tão
intenso que a representação cinematográfica produzida aprofunda mais do que apenas reflete
nossas desigualdades” (CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR; 2016, p. 18).
O Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (UNB) se dedicou a
identificar “Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro”, analisando os livros publicados
pelas editoras Record, Companhia das Letras e Rocco entre os anos 1965 a 2014. Os resultados
demonstraram que o escritor brasileiro é homem, branco e de classe média e inventa
personagens com características próximas a sua. Sobre a etnia dos autores, entre os anos de
1965 a 1979, 93% dos escritores eram brancos e 7% não-brancos; já entre os anos de 2005 a
2014, ocorreu um aumento no número de autores brancos, que passaram a 97,5%, enquanto os
69
não-brancos diminuíram para 2,5% do total de escritores. Quando observado a etnia dos
personagens percebemos a mesma sobrerrepresentação dos brancos: entre os anos de 1965 a
1979, somente 6,3% das personagens eram mulheres negras; a porcentagem se manteve entre
os anos 2005 e 2014, enquanto as personagens de mulheres brancas aumentaram de 77,9% para
79,8% do total. A coordenadora do grupo responsável pela pesquisa, Regina Dalcastagné, ao
ser interrogada sobre como modificar essa realidade, respondeu: “A verdade é que precisamos
da presença de negros nos diferentes espaços sociais, inclusive no mercado editorial brasileiro,
porque são essas pessoas que, de maneira geral, vão acabar chamando atenção para essas
questões” (DALCASTAGNÉ, 2018.).
A imprensa foi alvo de uma pesquisa da organização ANDI: comunicação e direito,
intitulada “Imprensa e Racismo: uma análise das tendências da cobertura jornalística”. Na
pesquisa, foram analisadas 1602 notícias de 45 jornais envolvendo a temática do racismo entre
os anos de 2007 a 2010. A conclusão da pesquisa é que o assunto só entra em pauta por motivos
políticos, como a implantação da política de cotas, ou em casos pontuais que ganham a atenção
da sociedade brasileira, mas contando com uma análise superficial que não estimula o debate
na sociedade. A conclusão da pesquisa foi que a imprensa brasileira é racista quando omite
opiniões e informações sobre a população negra.
Percebi que a mídia brasileira costuma reproduzir e amplificar as desigualdades étnico-
raciais da sociedade brasileira, promovendo a invisibilidade e a estigmatização da população
negra, colaborando para que as crianças e os adolescentes possuam uma visão negativa de sua
cor e identidade. Tanto o ambiente escolar como os meios de comunicação promovem uma
concepção negativa da população negra, estimulando a propagação de estereótipos, além de não
ceder espaço para a propagação de referências negras positivas, fundamentais para uma
educação afirmativa nas relações étnico-raciais e para a valorização das identidades diversas.
Sabendo da importância para as crianças e para os adolescentes de crescerem com
exemplos positivos que possam servir de modelos para a constituição dos seus projetos, a
décima pergunta do questionário pedia para os estudantes: Cite o nome de algumas
personalidades negras que se destaquem nas artes, nas ciências, na política e na sociedade. Cite
também o nome de alguma personalidade negra nascida em seu Estado. Essa foi a questão em
que os alunos mais demostraram dificuldade em responder, provocando muitos debates em sala
de aulas e mais interesse por parte dos alunos em saber a “resposta”. Dos 170 discentes que
responderam ao questionário, 71 discentes (41%) não responderam ou colocaram “não sei”
como resposta. É preocupante que tantos adolescentes não consigam citar um exemplo de
personalidade negra que se destaque em sua área de atuação. Esse dado confirma que tanto a
70
escola como os meios de comunicação não estão promovendo a visibilidade da população negra
de maneira adequada.
Ao contrário da minha hipótese, de que os nomes mais citados estariam ligados ao
esporte e à música, áreas que associei à cultura juvenil, os três nomes mais citados foram os do
ex-presidente dos EUA, Barack Obama, mencionado por 24% dos estudantes; o ex-presidente
da África do Sul, Nelson Mandela, lembrado por 14% dos alunos; e o pastor norte-americano,
Martin Luther King, que foi nomeado por 12% dos discentes. Todos os três tiveram importantes
papeis na luta pelos direitos da população negra em seus países. Os políticos brasileiros não
foram tão lembrados quando os internacionais: a vereadora Marielle Franco foi citada por dois
alunos (1%), a ex-ministra Marina Silva e o Pastor Simões, por um aluno (0,5%) cada.
O brasileiro mais citado foi o ex-jogador de futebol Pelé (Edson Arantes), lembrado por
11% dos estudantes. Outros jogadores de futebol foram lembrados, mas, baseada na
popularidade do esporte entre os discentes, esperava-se que os atuais jogadores estariam entre
os nomes mais citados; por exemplo, o jogador Neymar, maior nome do futebol brasileiro na
atualidade, só foi mencionado por 2 alunos (1%); o jogador Paul Pogba foi citado por 2%;
Edinho por 2%; Mpabbé por 1%; e Ronaldinho por 0,5%. Só três atletas de outras modalidades
foram citados, todos de outras nacionalidades: o velocista Usain Bolt (1%); o piloto Lewis
Hamilton (1%); e a tenista Serena Williams (1%). Citar personalidades negras cearenses se
mostrou um desafio ainda mais árduo para os estudantes, pois só foram citados três nomes: o
jangadeiro ícone da campanha abolicionista cearense, Dragão do Mar (Francisco do
Nascimento), que foi citado por 4% dos estudantes; o deputado e humorista Tiririca (Francisco
Everardo Oliveira da Silva), que foi lembrado por 3,5% dos alunos; e o seu filho, o humorista
Tirulipa (Everson Brito da Silva), citado por 1,5% dos estudantes. Observei que o conhecimento
dos estudantes de sujeitos negros cearenses ainda é menor do que quando se amplia para o
âmbito nacional e internacional.
A mulher negra mais citada foi a atriz e apresentadora Taís Araújo, lembrada por 17
alunos (10%), demonstrando como a televisão ainda é um local importante de difusão de
modelos para os jovens. A artista é uma das poucas atrizes negras que conquistaram local de
destaque nas novelas brasileiras, sendo considerada a primeira negra protagonista do horário
nobre da emissora Globo. A atriz costuma aproveitar seu espaço na mídia brasileira para
proporcionar visibilidade para as mulheres negras. As outras mulheres negras brasileiras citadas
têm destaque na música brasileiras e cantam letras que valorizam a cultura negra e evidenciam
a importância da representatividade para as novas gerações. Com esse perfil, as mais citadas
foram: Iza por 5% dos estudantes; Alcione por 4%; Negra Li por 3%; Elza Soares por 1%;
71
Karol Conka e Drik Barbosa por 0,5% dos discentes. Novamente, ao contrário da minha
hipótese, as artistas internacionais foram citadas por poucos discentes, pois a apresentadora
Oprah foi mencionada por 1,5% dos estudantes; as cantoras Aretha Franklin e Beyoncé foram
lembradas por 1%; e a cantora Rihanna, por 0,5% dos discentes.
O artista negro brasileiro mais citado foi o ator Lázaro Ramos, citado por 14 estudantes
(8%). Como sua esposa, Taís Araújo, ele já atuou como protagonista em novelas da rede Globo,
e está envolvido em diversos trabalhos que visam aumentar a representatividade e a visibilidade
da população negra brasileira, como dirigir o projeto “Falas Negras”, transmitido na televisão
no dia da Consciência Negra de 2020. Analisando os nomes mencionados por profissão, gênero
e nacionalidade, percebemos que os cantores negros brasileiros tiveram destaque na pesquisa:
quatorze cantores negros brasileiros foram citados em comparação com seis cantoras negras,
demonstrando que as mulheres negras têm menos espaço na sociedade brasileira. Mas apesar
de os cantores serem mais citados, cada um foi lembrado por poucos estudantes: Carlinhos
Brown foi citado por 3,5 %; Luiz Gonzaga por 3,5%; Gilberto Gil por 2%; Mano Brown por
2%; Djonga por 2%; Baco Exu do Blues por 1,5%; Djavan por 1%; Péricles por 1%; Thiaguinho
por 1%; Tim Maia por 1%; Rael da Rima por 0,5%; MV Bill por 0,5%; Nego do Borel por
0,5%; e Arlindo Cruz por 0,5%.
Entre os artistas internacionais, observamos o mesmo predomínio de nomes masculinos
em comparação com as mulheres. Foram citados seis cantores negros internacionais, enquanto
somente duas cantoras negras internacionais foram citadas, além de seis atores negros
internacionais serem lembrados, enquanto nenhuma atriz negra foi lembrada. Os cantores e
atores negros internacionais lembrados foram Will Smith por 6% dos estudantes; Chris Rock
por 4%; Bob Marley por 3%; Morgan Freeman por 2%; Michael B. Jordan por 1%; Michael
Jackson por 1%; Jay Z por 1%; Akon por 0,5%, Terry Crews por 0,5%; Kenye West por 0,5%;
e Travis Sctts por 0,5%. Essa disparidade de citação entre homens e mulheres é observada
independente de profissões: ao todo, dezenove mulheres foram lembradas em comparação com
quarenta e nove homens citados; baseada nesses dados buscamos encontrar um equilíbrio entre
as biografias de homens e mulheres a serem apresentadas no Scrapbook.
O escritor Machado de Assis, considerado por muitos como o maior escritor brasileiro
de todos os tempos, só foi citado por 3 alunos (1,5%), mesmo os alunos do segundo ano estando
de posse, no momento da pesquisa, do livro Dom Casmurro. Quando questionados despois da
pesquisa, responderam que não lembraram ou não sabiam que o autor era negro. Outros nomes
mencionados foram o ativista Malcom X (3%); o ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa (1,5%);
o escritor Patativa do Assaré (1,5%); as filósofas Djamila Ribeiro (1%) e Angela Davis (0,5%);
72
e as figuras históricas Dandara (1%) e Zumbi dos Palmares (0,5%). A quantidade de alunos
que não responderam à questão, 41% do total, demonstra a dificuldade em responder à pergunta,
e o fato de os três nomes mais citados serem estrangeiros, evidenciam que a maioria dos alunos
não tem acesso à referencias negras brasileiras com as quais possam se identificar.
Só ter acesso às informações que ligam as pessoas negras à violência e às posições
subalternas colaboram para uma baixa autoestima e o sentimento de inferioridade entre a
população negra. A pedagoga Jeruse Romão, no artigo “O educador, a educação e a construção
de uma autoestima positiva no educando negro”, ressalta como a baixa autoestima prejudica a
formação das crianças e dos adolescentes negras, pois o “sentimento de inferioridade
imediatamente sugere sentimento de limite, o de poder apenas uma parte e não o todo. A
impossibilidade de ser completo motiva o desprezo das necessidades de enfrentar desafios tão
necessários para apreender sobre si, o outro e o mundo” (ROMÃO, 2001, p. 163). A autora
também destaca como a autoestima é uma construção histórica e está diretamente ligada com
as experiências sócias, individuais ou coletivas, e por isso ela pode ser modificada. Essa é a
contribuição pretendida por esse trabalho.
73
PARTE 2
7
O vídeo do Scrapbook do Movimento Negro está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=4vDCAjMEPis. Acessado em: 05 de novembro de 2021.
8
No anexo B, encontra-se as fotografias dos biografados. Sugiro que elas componham o scrapbook.
9
No anexo C, encontra-se as fontes para impressão.
75
não reprodução destas. Também consideramos relevante para a formação dos estudantes, como
cidadãos, estimular a participação destes em debates públicos e na luta por modificações de
suas realidades e melhorias para o coletivo, além de incentivar que idealizem projetos para um
futuro diferente.
Indico a utilização do scrapbook em turmas do 9° ano do ensino fundamental, pois a
maioria dos temas é indicada para essa turma na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O
projeto deve ser colocado em prática durante todo o ano, vinculado com vários conteúdos
diferentes. O propósito é que as questões relacionadas à população negra não sejam estudadas
somente no período escravagista, que foi uma das reclamações dos estudantes nos questionários
diagnósticos; por isso, o período do pós-abolição também receberá destaque, ressaltando a luta
da população negra para conquistar a efetivação de sua liberdade, que é impedida pela
descriminação racial que permanece em nosso país. Assim, o recorte estabelecido para a escolha
dos biografados foi o final do período imperial até o período de redemocratização, após a
ditadura civil-militar. O contexto histórico de cada período vai ser apresentado, destacando as
demandas especificas da população negra naquele momento, com a finalidade de demonstrar
como os esforços para o fim da desigualdade racial não se configuraram da mesma forma ao
longo do tempo, transformaram-se a partir de questões historicamente situadas, mudanças de
regimes políticos, aparecimento de outras pautas, como a luta de classes e as questões de gênero.
As biografias estão organizadas em quatro períodos históricos. A escolha por essa
estruturação é adaptada da divisão das fases do Movimento Negro proposta pelo historiador
Petrônio Domingues (2007), que sugere quatro fases para o Movimento Negro organizado,
iniciando a primeira fase com a Proclamação da República até a quarta fase, os dias atuais, que
o historiador considera ainda em construção no momento em que escreveu. Para o projeto do
scrapbook, decidimos incluir o período abolicionista mesmo sendo um conteúdo que a BNCC
indica como do 8º ano do fundamental, por considerar relevante retornar ao tema para pensar o
protagonismo da população negra nos enfretamentos e nos esforços para a conquista da
emancipação dos escravizados. Já a última fase proposta pelo Petrônio Domingues, “Quarta
fase do Movimento Negro organizado na República (2000 - ?): uma hipótese interpretativa”,
sendo o período mais atual, que os estudantes estão vivenciando, decidimos que, no lugar de
definirmos os biografados, os próprios estudantes poderão tomar essa decisão em uma das
sugestões de atividades para os desdobramentos das fontes apresentadas.
A escolha de apresentar fontes históricas para os alunos é baseada na ideia de que
aprender história é “discutir evidências, levantar hipóteses, dialogar com os sujeitos, os tempos
e os espaços históricos. Olhar para o outro em tempo e espaços diversos” (CAINELLI, p. 27).
76
Com o acesso dos discentes às fontes e à problematização destas em sala de aula, eles terão
contato com o método de pesquisa histórica, compreendendo que é com analise das fontes que
o conhecimento histórico é construído, além de estar em concordância com uma das
competências especificas do ensino de História, segundo a BNCC: “Elaborar questionamentos,
hipóteses, argumentos e proposições em relação a documentos, interpretações e contextos
históricos específicos, recorrendo a diferentes linguagens e mídias, exercitando a empatia, o
diálogo, a resolução de conflitos, a cooperação e o respeito. (BRASIL, 2018, p. 402). As fontes
selecionadas para comporem o scrapbook são de categorias diferentes para, assim, apresentar
aos discentes a maior variedade possível de tipologias (cartas, pinturas, matérias de jornais etc.),
com o propósito de demonstrar a diversidade de vestígios produzidos pelos sujeitos em estudo
e as especificidades de cada fonte, acompanhadas por orientações e sugestões para os
professores trabalharem com as fontes disponibilizadas. Além disso, as propostas de
desdobramento seguem em progressão de complexidade e dialogam com o objetivo geral do
projeto, com os conteúdos específicos de cada etapa e com as habilidades sugeridas pela BNCC.
O primeiro período eleito para fazer parte do scrapbook é marcado pela luta
abolicionista. O objetivo é demonstrar aos estudantes as diversas estratégias de luta praticadas
pela população negra e o papel de protagonistas desempenhado pelos negros na abolição da
escravidão, desconstruindo a imagem de submissos constituída pela memória e reproduzida
pela maioria dos livros didáticos. Os sujeitos negros escolhidos para representar o período
foram a escritora Maria Firmina dos Reis, o advogado Luiz Gama e o jangadeiro Dragão do
Mar.
O segundo período é delimitado pela Proclamação da República até o golpe do Estado
Novo, ou seja, abarca os anos de 1889 a 1937. Mesmo com a abolição da escravidão e a
mudança de regime político, não foi assegurada à população negra nenhuma melhoria na sua
qualidade de vida, uma vez que dificilmente se tinha acesso à terra, à moradia, à saúde e à
educação de qualidade. Já que o antigo e o novo regime não se preocuparam com o destino da
população negra após a abolição, os próprios se mobilizaram para modificar suas realidades:
nesse período aconteceu o boom de fundações de grêmios e associações beneficentes com o
objetivo de proporcionar ajuda mútua entre os negros e negras; também foi nesse momento que
ocorreu o crescimento da imprensa negra com objetivo de dar voz aos redatores
afrodescendentes e informar à população negra de questões que lhes interessavam em
específico, que eram ignoradas pelos jornais dos grupos hegemônicos. Para representar esse
período, selecionei as biografias do marinheiro João Cândido, do político Monteiro Lopes e por
último do jornalista José Correia Leite.
77
O terceiro período se inicia com o fim do Estado Novo, em 1945 até o novo golpe em
1964. Mesmo com o retorno à democracia em 1945, o novo momento não propiciou ao
movimento negro as condições ter a mesma força de aglutinação do período anterior, ficando o
movimento negro isolado politicamente, sem apoio nem dos partidos de direita, nem dos de
esquerda, embora houvesse o crescimento dos jornais negros de protesto. Para esse momento
escolhi Abdias do Nascimento, que foi dramaturgo, ator, poeta, escritor, artista plástico,
professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos; a doméstica e liderança
da classe trabalhadora Dona Laudelina de Campos Mello e, na cultura, o pintor e compositor
Heitor dos Prazeres.
O último período inicia com a Ditadura Militar até o processo de redemocratização,
indo de 1964 até 2000. O início da ditadura civil-militar, em 1964, desorganizou as lutas da
população negra, levando seus líderes para a clandestinidade. O novo regime pregou contra a
existência de racismo no Brasil, considerando que as pessoas que levantavam as bandeiras
contra a desigualdade racial desejavam somente dividir a população brasileira. O contexto
desfavorável mostrou a necessidade de unidade, que incentivou a criação do Movimento Negro
Unificado (MNU) em 1978. Na pauta de reivindicação se destaca o fim do discurso que
valorizava uma pretensa democracia racial e a mestiçagem, o fim da violência policial contra
os negros, a necessidade de se acrescentar no currículo escolar a História da África e dos
afrodescendentes, entre outros. Nesse momento, destacam-se nomes como o da historiadora
Leila Gonzalez, a professora Mundinha de Araújo e no esporte, Aída dos Santos.
O ano de 2003 é um divisor de águas para a população negra por causa da promulgação
da Lei 10.639 de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura afro-brasileira nas
escolas de todo o país. A lei tem como objetivo a difusão e a valorização da história e da cultura
africana. Sobre esse último período, decidi não elencar nomes, mas disponibilizar espaço para
os próprios alunos incluírem fontes sobre os sujeitos que eles consideram referências negras
positivas para sua geração.
78
3 ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO
No Brasil, o último quartel do século XIX foi marcado pela perca da legitimidade do
sistema escravista, que continuava tendo base nas leis vigentes, mas não era mais bem aceito
pela maioria da população. Enquanto isso, novas associações abolicionistas eram criadas em
todas as províncias e conquistavam cada vez mais adeptos e apoio. A historiadora Ângela
Alonso, em seu livro Flores, votos e balas, aponta três motivos para o crescimento do
abolicionismo. O primeiro motivo é a abolição da escravidão nos Estados Unidos da América
e em Cuba, tornando o Brasil um dos últimos países ocidentais que ainda mantinha o sistema
escravista. O segundo ponto destacado foi a acelerada urbanização, que permitiu o surgimento
de novos espaços públicos, lugares esses utilizados pelos abolicionistas para propaganda do
movimento. Como último motivo, ela aponta a modernização realizada pelo partido
conservador na década de 1870 que “ampliou o acesso ao ensino superior, reduziu os custos da
imprensa e propôs uma Lei do Ventre Livre. Tais iniciativas produziram uma crise política
intraelite e o ingresso de novos atores no debate político” (ALONSO, 2015, p. 18).
A historiadora Wlamyra Albuquerque (2018), destaca a participação negra no processo
abolicionista, apontando as ações dos escravizados como o principal motivo para a
desestabilização do regime escravocrata; as fugas e as revoltas empreendidas nos cativeiros
provocavam medo e impulsionavam as discussões sobre o fim da escravidão. Nas áreas urbanas,
os negros reivindicavam sua liberdade na justiça, questionando a legalidade da escravidão, com
a ajuda de advogados abolicionistas. Contavam também com o apoio das associações de
trabalhadores, que consideravam que a luta abolicionista e o movimento operário estavam
diretamente ligados, colaborando com a criação de fundos de emancipação para a compra de
cartas de alforrias e buscando empregos para os libertos. Os textos jornalísticos e a literatura
produzida por negros, como José do Patrocínio e Machado de Assis, também foram
fundamentais para a conquista da abolição da escravidão ao conseguirem o apoio da opinião
pública.
Entre os sujeitos que viveram esse momento de efervescência pela luta da liberdade dos
escravizados, gostaria de destacar a escritora Maria Firmina dos Reis, o advogado Luiz Gama
e o jangadeiro Francisco do Nascimento. Cada um, a seu modo, contribuiu para a abolição da
escravidão no Brasil, utilizando de variadas estratégias, como a imprensa, a arte e a propaganda
para serem ouvidos. Mesmo sendo pessoas livres, almejaram e batalharam pela abolição da
escravidão e por espaço de autonomia para a população negra, população essa que já era maioria
entre a população livre, mas que, mesmo livre, continuava tendo seu cotidiano marcado por
79
restrições aos direitos de cidadania e sofria com as arbitrariedades de um governo que ainda
veria, por muito tempo, a população negra como uma ameaça à ordem social.
Maria Firmina dos Reis nasceu na cidade de São Luís, no Maranhão, no dia 11 de março
de 1822. Filha de uma escrava alforriada, Leonor Felippa dos Reis, não foi reconhecida pelo
pai, tornando-se órfã aos cinco anos com a morte da mãe, tendo que se mudar para cidade de
São José de Guimarães para viver com a tia materna, local onde passou a ter contato com a
literatura.
A biografada foi a primeira mulher afrodescendente a publicar um romance no Brasil.
Autodidata, a escritora se dedicou às letras em um período em que as mulheres não eram
incentivadas a possuir formação acadêmica, conseguindo, por meio da literatura, ter direito à
escuta de sua fala em uma sociedade patriarcal (ANDRETA; ALÓS, 2016, p.188). Através de
concurso público, em 1847, aos 25 anos, tornou-se professora das primeiras letras na cidade de
Guimarães, no Maranhão.
A autora se tornou figura conhecida no meio intelectual maranhense publicando
crônicas e poesias nos jornais literários locais, como A verdade, Marmota, Semanário
Maranhense, O domingo, O País, Pacotilha, O Federalista, entre outros. Publicou dois livros
em formato de folhetim, Úrsula (1859) e Gupeva (1861), o último sendo um romance
indianista. A escritora também publicou um livro de poesias, Cantos à beira-mar (1871),
prevalecendo, entre os temas, os dilemas das mulheres em uma sociedade patriarcal. Além de
escritora e professora, Maria Firmina dos Reis, foi folclorista, preocupada em preservar a
cultura maranhense, e musicista, sendo responsável pela composição do Hino pela Libertação
dos Escravos (1888).
Escreveu em um período que a literatura brasileira se dedicava a construir uma narrativa
histórica para a explicar a origem da nação, procurando formar uma identidade nacional vincada
pelo predomínio da herança europeia. As obras mais reconhecidas do romantismo brasileiro,
corrente literária que prevalecia na época, privilegiaram o papel dos portugueses e dos indígenas
na constituição do novo país, mas condenando estes últimos ao desaparecimento e relegando
os africanos e os seus descendentes ao papel secundário, como podemos perceber no livro O
Guarani, do escritor José de Alencar. Contudo, o historiador Sidney Chalhoub chama atenção
para o fato de que a escravidão foi um tema bastante abordado durante o Império:
80
A escritora Maria Firmina dos Reis é um exemplo de autora que concedeu espaço
privilegiado para a temática da escravidão em suas obras. O livro Úrsula, seu primeiro romance,
publicado em 1859, assinado pelo pseudônimo “A maranhense”, tem como trama principal o
romance de um casal branco, mas dedica muito tempo à descrição dos personagens negros,
chegando a permitir que tenham a posição de narradores da história, aspecto em que foi
pioneira. Pela primeira vez em um livro brasileiro, os personagens escravizados tiveram voz e
puderam narrar sua própria experiência, sendo assim reconhecidos como indivíduos ativos,
fugindo dos estereótipos de sujeitos submissos, que precisam ser tutelados (CORREIA, 2013,
p.111).
Após a aposentadoria, fundou a primeira escola mista e gratuita do Estado do Maranhão,
na cidade de Maçarico, funcionando somente por dois anos, pois não foi bem recebida pela
sociedade a ideia de mesclar meninos e meninas em uma mesma sala de aula. Faleceu em 1917,
pobre e no ostracismo. O silenciamento em relação a sua vida e obra só foi quebrado na década
de 1970 pelo escritor José Nascimento Morais Filho, que se tornaria seu biografo.
A escritora de Úrsula e A escrava foi pioneira em denunciar o sistema escravocrata
através da literatura, solidarizando-se com as condições de vida dos escravizados, e colaborou
para a abolição com a sua dedicação em criar, para os escravizados, uma história própria, com
personalidades bem descritas, permitindo que os leitores se identificassem com as histórias dos
escravizados, se sensibilizassem com seus sofrimentos e vissem os males provocados pela
manutenção do escravismo.
– Minha mãe era africana, meu pai de raça índia; mas eu de cor fusca. Era livre,
minha mãe era escrava.
Eram casados e desse matrimônio, nasci eu. Para minorar os castigos que este
homem cruel infligia diariamente à minha pobre mãe, meu pai quase consumia seus
dias ajudando-a nas suas desmedidas tarefas; mas ainda assim, redobrando o trabalho,
conseguiu um fundo de reserva em meu benefício.
Um dia apresentou a meu senhor a quantia realizada, dizendo que era para o meu
resgate. Meu senhor recebeu a moeda sorrindo-se – tinha eu cinco anos – e disse: A
primeira vez que for à cidade trago a carta dela. Vai descansado.
Custou a ir à cidade; quando foi demorou-se algumas semanas, e quando chegou
entregou a meu pai uma folha de papel escrita, dizendo-lhe:
81
– Toma, e guarda, com cuidado, é a carta de liberdade de Joana. Meu pai não
sabia ler; de agradecido beijou as mãos daquela fera. Abraçou-me, chorou de alegria,
e guardou a suposta carta de liberdade.
Então furtivamente eu comecei a aprender a ler, com um escravo mulato, e a
viver com alguma liberdade.
Isso durou dois anos. Meu pai morreu de repente, e no dia imediato meu senhor
disse a minha mãe:
– Joana que vá para o serviço, tem já sete anos, e eu não admito escrava vadia.
Minha mãe, surpresa, e confundida, cumpriu a ordem sem articular uma palavra.
Nunca a meu pai passou pela ideia, que aquela suposta carta de liberdade era
uma fraude; nunca deu a ler a ninguém; mas, minha mãe, à vista do rigor de
semelhante ordem, tomou o papel, e deu-o a ler, àquele que me dava as lições. Ah!
Eram umas quatro palavras sem nexo, sem assinatura, sem data! Eu também ali,
quando caiu das mãos do mulato. Minha pobre mãe deu um grito, e caiu
estrebuchando.
Sobreveio-lhe febre ardente, delírios, e três dias depois estava com Deus.
Fiquei só no mundo, entregue ao rigor do cativeiro.
Aqui ela interrompeu-se; agitou-lhe os membros um tremor convulso. A morte
fazia os seus progressos. De novo cheguei-lhe aos lábios a colher do calmante, que
lhe aplicava, e pedi-lhe, não revocasse lembranças dolorosas que a podiam matar.
– Ah! Minha senhora, começou de novo, mais reanimada – apadrinhe Gabriel,
meu filho, ou esconda-o no fundo da terra; – olhe se ele for preso, morrerá debaixo do
açoite, como tantos outros, que meu senhor tem feito expirar debaixo do azorrague!
Meu filho acabará assim.
– Não, não há de acabar assim, – descansa. Teu filho está sob minha proteção, e
qualquer que seja a atitude que possa assumir esse homem, que é teu senhor, Gabriel
não voltará mais ao seu poder.
Ela recolheu-se por algum tempo, depois tomando-me as mãos, beijou-as com
reconhecimento.
– Ah! Se pudesse, nesta hora extrema ver meus pobres filhos, Carlos e Urbano!...
Nunca mais os verei!
Tinham oito anos.
Um homem apeou-se à porta do Engenho, onde juntos trabalhavam meus pobres
filhos – era um traficante de carne humana. Ente abjeto, e sem coração! Homem a
quem as lágrimas de uma mãe não podem comover, nem comovem os soluços do
inocente.
Esse homem trocou ligeiras palavras com meu senhor, e saiu.
Eu tinha o coração opresso pressentia uma nova desgraça.
A hora permitida ao descanso, concheguei a mim meus pobres filhos, extenuados
de cansaço, que logo adormeceram. Ouvi ao longe rumor, como de homens que
conversavam. Alonguei os ouvidos; as vozes se aproximavam. Em breve reconheci a
voz do senhor. Senti palpitar desordenadamente meu coração; lembrei-me do
traficante... Corri para meus filhos, que dormiam, apertei-os ao coração. Então senti
um zumbido nos ouvidos, fugiu-me a luz dos olhos e creio que perdi os sentidos.
Não sei quanto tempo durou este estado de torpor; acordei aos gritos de meus
pobres filhos, que me arrastavam pela saia, chamando-me: mamãe! Mamãe!
Ah! minha senhora! abriu os olhos. Que espetáculo! Tinham metido adentro a
porta da minha pobre casinha, e nela penetrando meu senhor, o feitor, e o infame
traficante.
Ele, e o feitor arrastavam sem coração, os filhos que se abraçavam a sua mãe.
Gabriel entrava nesse momento. Basta, minha mãe, disse-lhe, vendo em seu
rosto debuxados todos os sintomas de uma morte próxima.
– Deixa concluir, meu filho, antes que a morte me cerre os lábios para sempre...
deixa-me morrer amaldiçoando os meus carrascos.
– Por Deus, por Deus, gritei eu, tornando a mim, por Deus, levem-me com meus
filhos!
82
O conto A escrava, da escritora Maria Firmina dos Reis, foi publicado em novembro de
1887, no terceiro número da Revista Maranhense, periódico criado com o objetivo de divulgar
a ciência e a literatura para a população maranhense. A autora tinha conhecimento de que
escrevia para a elite escravocrata local, normalmente os únicos que tinham acesso à escrita e à
leitura, mas, ao contrário do seu romance Úrsula (1859), o contexto era favorável para o caráter
de denúncia do conto, uma vez que, às vésperas da assinatura da Lei Áurea, a escravidão já era
questionada e condenada por boa parte da população, permitindo mais liberdade para a autora
criticar o sistema escravocrata.
A escritora Maria Firmina novamente permite que os cativos contem a sua história,
característica pela qual a autora foi pioneira e reconhecida. Na narrativa, a escravizada Joana
foge do cativeiro, sendo seguida pelo filho Gabriel, esse que narra a história de sofrimento da
mãe, que é considerada “louca”, após os dois filhos caçulas, Carlos e Urbano, serem vendidos
para o Sul do país. O trecho do conto destacado acima é o momento em que Joana narra sua
trajetória, desde o nascimento até os seus últimos momentos em vida. Mesmo diante de todos
os sofrimentos, a personagem criada por Maria Firmina não é passiva à escravidão, lutando
para manter os filhos protegidos e utilizando das fugas como instrumento de resistência às
punições.
A autora critica a elite escravocrata ao descrever no conto o calvário muito comum das
mães escravizadas que não tinham o direito de ficar próxima aos filhos, fato que se tornou mais
habitual após o fim do tráfico de escravos no Atlântico, em 1850, depois da assinatura da lei
Eusebio de Queiroz, pois, com a aumento dos preços dos escravizados, o tráfico interprovincial
de escravos do Norte para o Sul tornou-se rotineiro, o Maranhão sendo um dos maiores
exportadores de escravos para a capital imperial. Maria Firmina, assim, abre espaço para
denunciar as angústias das mulheres negras, que não tinham direito, em muitos casos, de cuidar
dos próprios filhos.
83
Orientações didáticas
Legislativo e Judiciário; além disso, a lei escolhida é comumente abordada em livros didáticos
de História, facilitando assim o trabalho de alunos e professores em sua análise inicial. Alguns
artigos da lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre,
merecem destaque:
Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei,
serão considerados de condição livre.
§ 4º Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores de oito anos, que
estejam em poder do senhor dela lhe serão entregues, exceto se preferir deixá-los, e
o senhor anuir a ficar com eles.
§ 5º No caso de alienação da mulher escrava, seus filhos livres, menores de 12 anos,
a acompanharão, ficando o novo senhor da mesma escrava sub-rogado nos direitos e
obrigações do antecessor.
§ 6º Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado
no § 1°, se, por sentença do juízo criminal, reconhecer-se que os senhores das mães
os maltratam, afligindo-lhes castigos excessivos.
§ 7º Em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos, é proibido, sob pena
de nulidade, separar os cônjuges, e os filhos menores de 12 anos, do pai ou da mãe.
Fonte 2: (BRASIL, 1871). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm>. Acessado em: 12 de
outubro de 2021.
Sugiro que, após a leitura dos artigos, os professores façam perguntas que colaborem
para que os estudantes percebam as conexões entre o texto legislativo e o texto ficcional,
compreendendo as leis como frutos das tensões sociais, em alguns casos atendendo demandas
vindas da população, muito embora sua aprovação não significa a resolução das mesmas. Para
esse segundo debate, aconselho que os professores questionem os estudantes com as seguintes
perguntas: a lei reconhece a existência de famílias escravas? Como? O que vocês consideram
que motivou a criação dessa lei? Baseado no conto da Maria Firmina dos Reis e no que vocês
já estudaram, a lei foi completamente respeitada? Levando em consideração o desrespeito à lei,
qual a saída encontrada pelo escravizados?
Após as duas leituras, recomendo que os alunos identifiquem no conto de Maria Firmina
dos Reis os momentos em que a lei do Ventre Livre foi descumprida, destacando para os colegas
de turma o trecho do conto e a regra desobedecida. Depois das análises dos documentos,
proponho que os estudantes reescrevam a história da escravizada Joana e de seus filhos, caso a
lei tivesse sido respeitada, utilizando de uma nova linguagem; os professores devem incentivar
que os estudantes diversifiquem na linguagem, por exemplo, escrevendo poemas, histórias em
quadrinhos, letras de música, etc.
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As produções dos discentes devem ser expostas em sala de aula para que as suas visões
dos casos estudados sejam expostas para os demais colegas. Com o estudo comparativo dos
dois textos e da produção de uma narrativa pelos discentes, será possível, aos estudantes,
identificar como as dificuldades enfrentadas pelos homens e pelas mulheres negras eram vividas
em seu dia a dia e as possibilidades de transformação possíveis e criadas neste contexto de
liberdade cerceada. Também espero que os estudantes percebam que as tensões sociais acerca
das condições de vida dos escravizados e das escravizadas, bem como as condições da abolição,
estavam sendo debatidas em vários meios, por diversos sujeitos, que muitos buscavam
contribuir com suas habilidades e condições para mudar a realidade da escravidão, além dos
próprios escravos.
O único registro sobre as primeiras décadas da vida de Luiz Gama é uma carta escrita
pelo mesmo, destinada a seu amigo Lúcio de Mendonça. Nenhum vestígio foi encontrado para
comprovar a narrativa de Luiz Gama sobre seu nascimento, sua filiação, sua experiência como
escravizado e o seu processo de libertação. Segundo Luiz Gama, ele nasceu livre em Salvador
no ano de 1830, filho de um fidalgo branco com a africana livre, Luiza Mahin. Aos dez anos
foi vendido de forma ilegal pelo pai, como pagamento de uma dívida. Vendido para um senhor
de escravos em São Paulo, tornou-se escravo doméstico na capital paulista; aos dezessete anos
aprendeu as primeiras letras com jovem hospedado na casa de seus senhores; um ano depois,
conseguiu reunir provas de que sua escravidão era ilegal e conquistou sua liberdade. Detalhes
sobre esse processo continuam nebulosos, dado os pouquíssimos vestígios acerca dessa
narrativa autobiográfica apresentada pelo advogado.
Gama percebeu que a escravidão ilegal não se tratava de um problema pessoal, mas sim
um problema social que afetava todo o país. Entre vários empregos, começou seus estudos sobre
as leis de forma autodidata, já que não conseguiu ter acesso à Faculdade de Direito. Em 1869,
conseguiu autorização para se tornar advogado, advogado prático em primeira instância, mesmo
sem o diploma. Não utilizou a nova profissão para crescimento pessoal, não buscou ser
reconhecido pela elite aristocrática, conquistar espaço nos salões de festas e ter a cor da sua
pele “camuflada” (ALONSO, 2015, p.88). Pelo contrário, identificou-se como negro e teve
como objetivo modificar a ordem social vigente, dedicando-se a libertar outros sujeitos de cor,
reescravizados ou escravizados ilegalmente.
86
As estratégias utilizadas por Luiz Gama para resistir ao sistema escravistas foram tão
eficazes que ganharam projeção em todo país, passando ele a ser mestre de outros advogados,
que seguiam seu estilo de militância (PINTO, 2018, p. 95). Luiz Gama fundou e participou de
diversas associações com cunho abolicionistas, promovendo reuniões e cerimônias com
objetivo de mobilizar a sociedade contra o sistema escravista e angariar fundos para as lutas
abolicionistas. Na imprensa, o advogado colaborou com vários periódicos abolicionistas, como
por exemplo: Diabo Coxo, Cabrião, Correio Paulistano, A Província de São Paulo, Radical
Paulistano, A Gazeta da Corte. Utilizando de ironia em seus textos para denunciar os abusos
cometidos pelos escravocratas e satirizar a desigualdade social no Brasil, além da sua famosa
prática de anunciar seus serviços de advogado para escravizados próximo aos avisos de fugas
dos escravos.
Definitivamente, suas maiores contribuições foram no campo jurídico: seu método de
utilizar as fragilidades do sistema jurídico para conseguir alforriar escravos ilegais foi
reconhecida em todo o país e fez escola. Luiz Gama utilizava lacunas da legislação brasileira,
como a Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831, conhecida como “Lei para inglês ver”, que
declarava em seu primeiro artigo: “Todos os escravos, que entrarem no território ou portos do
Brasil, vindos de fora, ficam livres”. No período de sua promulgação, a lei de 1831 teve pouca
eficácia em impedir o tráfico de escravos, sendo relegada ao esquecimento por muito tempo,
mas foi utilizada por Luiz Gama, a partir da década de 1870, para questionar a legalidade da
escravidão de africanos que entraram no país após a promulgação da lei. Outra lei muito
empregada por Gama em suas disputas jurídicas foi a lei Nº 2.040, de 28 de setembro de 1871,
conhecida como Lei do Ventre Livre, que em seu quarto artigo permitia que os escravizados
formassem um pecúlio e utilizassem o mesmo para comprar a sua alforria. O segundo inciso do
artigo declara que caso não houvesse um acordo sobre o valor da alforria, ela seria feita por
arbitramento na justiça. Era nessa condição que Luiz Gama colocava em prática suas táticas
para conseguir a liberdade dos escravizados, convocando para as sessões de arbitramento
testemunhas, médicos e avaliadores abolicionistas, com o objetivo de diminuir os preços das
indenizações a serem pagas aos senhores de escravos.
Luiz Gama conseguiu libertar mais de 500 escravos, lutou pelo fim da escravidão,
considerando todo o regime injusto e desumano. Ao contrário da maioria dos abolicionistas
vindos da elite, não considerava os escravizados “incapazes”, não os tratava como pessoas que
precisavam de tutela, e acreditava ser possível construir uma sociedade menos desigual.
Infelizmente, faleceu antes de presenciar o fim da escravidão no Brasil, em 1882. Mas se tornou
87
o herói do movimento, invocado com palavras e retratos nas comemorações pela abolição da
escravidão.
Fonte 3: GAMA, Luiz. Treze de maio. O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 mai. 1909, p. 3. Disponível em:
<https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19090513-11111-nac-0003-999-3-not >. Acessado em: 07 de outubro
de 2021.
O trecho acima faz parte da carta enviada por Luiz Gama ao amigo dr. Lúcio Mendonça.
A carta foi publicada no jornal O Estado de São Paulo em comemoração aos 21 anos da
abolição da escravidão, mas originalmente foi enviada a Lucio Mendonça em 25 de julho de
1880, só vindo à público após a sua morte. Nela, Gama narra sua vida, desde sua infância como
criança livre até a profissão que o levou a ser um dos protagonistas do processo abolicionista
brasileiro. A carta é a única autobiografia deixada pelo advogado, não foi escrita
espontaneamente, mas atendendo um pedido de Lúcio Mendonça para que servisse de fonte
para a biografia que pretendia escrever sobre o amigo famoso. A biografia de Luiz Gama escrita
88
por Lúcio Mendonça foi a única do advogado publicada com ele em vida (FERREIRA, 2008,
p. 10). A biografia compunha o Almanaque Literário de 1881, editado pelo jornalista José
Maria Lisboa, com o objetivo de proporcionar às famílias paulistas uma fonte de educação e
entretenimento por meio de biografias de personalidades paulistas, aproveitando da
popularidade do gênero na época.
É importante pensarmos os propósitos dos dois amigos. Lúcio Mendonça não desejava
somente fazer uma homenagem a Luiz Gama, mas utilizar sua imagem como exemplo de
republicano e abolicionista, que dedicou sua vida às causas que acreditava. Seu artigo, originado
da carta, é publicado em 1881, ano marcado pela efervescência política em torno do processo
abolicionista, período em que as fugas em massas dos escravizados atormentavam a polícia e
os escravistas, de modo que a narrativa da vida de Luiz Gama é um convite para as pessoas se
juntarem à causa abolicionista. No momento da escrita da carta, Gama se encontrava muito
doente, acometido pela diabetes, doença que causará sua morte dois anos depois. Para ele, a
escrita da carta foi o momento de deixar registrado como desejava que sua vida fosse lembrada
na posteridade. Percebe-se um foco maior em sua vida pública em detrimento da vida pessoal,
criando um mistério sobre seu pai e a conquista da sua liberdade.
Orientações didáticas
um propósito, que era colaborar com a abolição da escravidão; assim, os estudantes também
devem refletir sobre quais são os seus objetivos para o futuro e descrevê-los na carta. Considero
importante que os discentes se sintam livres para descrevem suas vidas, mas, visando facilitar
o processo de produção, os estudantes, se desejarem, podem seguir o roteiro a seguir:
impedir o embarque de escravizados que seriam enviados para o Rio de Janeiro. No dia 27 de
janeiro de 1881, os jangadeiros cruzaram os braços e não permitiram o transporte de
escravizados; segundo Girão gritaram: “no porto do Ceará não se embarca mais escravos”.
Outras tentativas de embarques foram feitas, os traficantes tentaram subornar os
jangadeiros, também foram utilizadas forças policiais na tentativa de fazer o embarque, mas
todas as tentativas falharam e a greve dos jangadeiros se tornou um marco fundamental no
processo abolicionista cearense. Francisco do Nascimento participou da greve, e durante o
processo, foi apresentado por José Napoleão, um dos líderes dos jangadeiros, ao abolicionista
Isaac Amaral, sendo considerado o jangadeiro mais apropriado para receber o título de líder do
movimento e representar os jangadeiros em outros momentos. Francisco do Nascimento entrou
para a Sociedade Libertadora Cearense, sendo descrito por seus colegas como discreto, modesto
e religioso. Sofreu consequências, como os outros membros da associação, por participar da
greve, perdendo o cargo de prático-mor do porto de Fortaleza.
Em 25 de março de 1884, o Ceará se tornou a primeira província do Brasil a abolir a
escravidão em seu território. Francisco do Nascimento foi convidado para uma viagem ao Rio
de Janeiro para participar das comemorações na capital em homenagem à conquista cearense.
Foi recebido com festa ao entrar na Bahia de Guanabara navegando a jangada “Liberdade”.
Durante dias, participou de cerimônias, desfiles e entrevistas. Apontado como o líder da greve
dos jangadeiros, passou na capital a ser conhecido como Dragão do Mar, exercendo com
empenho a função de divulgar a abolição da escravidão no Ceará. Francisco do Nascimento se
torna um símbolo da campanha abolicionista nacional, colaborando para o aumento a adesão
ao movimento que propiciou a Lei Áurea.
A imagem de Francisco do Nascimento esteve envolvida em diversas disputas de
memória, principalmente em período de comemoração da abolição da escravidão no Ceará. A
historiadora Patrícia Xavier (2010), evidencia que as disputas surgem de questões políticas do
presente, que utilizam da imagem do Dragão do Mar para provar o seu ponto na discussão.
Dragão do Mar se torna um símbolo da campanha abolicionista e do Estado do Ceará,
nomeando o maior Centro Cultural do Estado, mas o destaque à sua figura acaba por colaborar
com o processor de inviabilizar pessoas negras no Ceará, que não encontram espaço na
historiografia local como sujeitos ativos nas lutas contra o cativeiro.
92
Fonte 4: SOUSA, José Irineu de. Fortaleza Liberta, Acervo museu do Ceará, 1883. Apud: XAVIER, Patrícia
Pereira. O Dragão do Mar na Terra da Luz: a construção do herói jangadeiro (1934-1958). 2010. 142 f. Dissertação
(Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 99.
O quadro “Fortaleza Liberta” foi pintado pelo cearense José Irineu de Souza. Inaugurado
em dezembro de 1883, representa o momento da assinatura do decreto que libertou todos os
escravizados da cidade de Fortaleza, no dia 24 de maio de 1883, tornando-se a primeira capital
do Brasil a abolir a escravidão. O objetivo do pintor era retratar a ocasião o mais próximo da
realidade, registrando os rostos dos presentes na cerimônia. A obra se tornando um registro para
a posteridade (XAVIER, 2010, p.98).
A obra não foi feita por encomenda, sendo uma decisão do próprio pintor reproduzir o
momento no quadro. O Estado do Ceará decidiu comprar a pintura no governo de Sátiro Dias.
A pintura ficou exposta no Paço Municipal de Fortaleza, até que na década de 1930, quando o
historiador Eusébio de Souza requisita o quadro ao prefeito Raimundo Girão para fazer parte
do acervo do Museu do Ceará, inaugurado em 1932. Atualmente, o quadro de 12 palmos de
largura e 9,5 de altura se encontra no Museu do Ceará, na sala dedicada à escravidão e à abolição
no Ceará. Museu que hoje ocupa o mesmo prédio que é representado na imagem, que, em 1883,
era ocupado pela Assembleia Legislativa.
93
Orientações didáticas
Por muito tempo, as imagens no ensino de História foram utilizadas como mera
ilustração de um evento histórico, sem interpretações críticas a seu respeito, mas as imagens
possibilitam diversas reflexões sobre o momento representado e sobre o momento de sua
produção. Para além da subjetividade do pintor, o contexto em que ele está inserido interfere
em sua visão sobre o recorte que ele se propões a retratar (MOIMAZ; MOLINA, 2021, p. 144).
Como preparação para a análise da fonte em sala de aula, sugiro que os professores
peçam uma pesquisa preliminar aos alunos sobre as características de ordem mais geral do
quadro, que são importantes para embasar a análise que será feita em sala de aula, como: o autor
da obra, o ano de sua produção, as dimensões do quadro, local onde foi exposto originalmente
e o local de exposição atual.
Em um segundo momento, em sala de aula, várias reflexões sobre as intenções do pintor
e o discurso sobre a abolição predominante na época podem ser levantadas a partir do quadro
Fortaleza Liberta, como: qual momento histórico é representado no quadro? Quantos negros
são representados no quadro? Por que o Dragão do Mar foi pintado no quadro? Qual a função
do Dragão do Mar no movimento abolicionista cearense? Qual opinião sobre a abolição da
escravidão prevalecia na sociedade nesse momento histórico? Qual a importância de destacar
Fortaleza como a primeira capital a abolir a escravidão? Qual visão o pintor deseja passar sobre
a participação dos brancos na abolição? Qual visão o pintor deseja passar sobre a participação
dos negros na abolição?
Sugiro, para os professores da cidade de Fortaleza ou que tenham a possibilidade de
viajar com seus estudantes, uma visita guiada ao Museu do Ceará, oportunizando que os
discentes observem e analisem o quadro dentro do contexto de sua exposição. Para isso, é
importante que, antes da visita, além do debate sobre o quadro, seja feita uma reflexão sobre o
papel do Museu, entendendo que as exposições são feitas por meio de seleção, que o Museu do
94
Ceará é um órgão público e reflete o discurso do Estado. Também pode ser debatido com os
estudantes a historicidade das exposições do quadro Fortaleza Liberta (OLIVEIRA, 2010, p.
254), que, desde a década de 1930, quando passou a fazer parte do acervo, sempre ficou em
local de destaque, mesmo com mudança de direção ou de exposição, demonstrando que a
interpretação da abolição da escravidão do pintor José Irineu foi bem aceita e corrobora com a
memória oficial sobre a abolição da escravidão no Ceará.
O quadro Fortaleza Liberta, atualmente, faz parte da exposição fixa intitulada
Escravidão e abolicionismo. Os estudantes podem participar da apresentação dos mediadores
do Museu e comparar com as análises feitas em sala de aula, tendo acesso à diferentes leituras
da obra e da participação do Dragão do Mar. Também podem comparar o quadro com as outras
peças expostas e perceber se elas corroboram com a interpretação do quadro sobre a abolição
da escravidão, por exemplo, na mesma sala se encontra a carranca, figura de proa da barca
Laura II, resquício da embarcação onde ocorreu um levante de escravizados, que acabou com a
tripulação morta e os escravizados assassinados como punição. Com a análise do segundo
objeto, podemos questionar o discurso do quadro de que a abolição foi um movimento
majoritariamente de brancos, sem participação ativa dos cativos.
A decisão de encerrar os debates sobre o período abolicionista com a discussão sobre a
presença do Dragão do Mar no quadro Fortaleza Liberta e a visita ao Museu do Ceará é para
que os estudantes compreendam que ocorreu uma mobilização por parte da população negra
em diversos frentes de luta pela liberdade, como eles já observaram com as biografias da
escritora Maria Firmina e do advogado Luiz Gama, mas que também ocorreu um processo a
nível oficial de silenciamento do protagonismo negro e a construção de um narrativa histórica
destacando a participação da princesa Isabel e da elite branca no processo abolicionista,
destinando aos negros e às negras um papel coadjuvante na escrita da História hegemônica.
Esse apagamento da história é um dos responsáveis por atualmente os estudantes, e a população
brasileira em geral, terem tantas dificuldades em apontar referências negras positivas. O quadro
exemplifica esse processo, quando, no meio de uma multidão representada, só podemos
identificar um negro. Assim, conseguiremos, educadores e educandos, formular
“questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta
de fontes de diferentes naturezas”, tal qual indicado na BNCC (EF09HI19) (BRASIL, 2018,
p.427). A partir da visita ao Museu, é possível fazer uma nova leitura do quadro, de uma maneira
menos laudatória, já que a leitura crítica é proporcionada pela atual organização do Museu e
pelas discussões anteriormente feitas em sala de aula.
95
O golpe de 1930, protagonizado por Getúlio Vargas, foi um momento de mudanças para
o Brasil, significando, no campo político, o fim do predomínio das oligarquias paulista e
mineira, abrindo espaço no mundo do governo para as oligarquias dissidentes e para setores da
classe média. Na economia, o café continuou sendo o principal produto de exportação e os
cafeicultores ouvidos nas decisões do governo central (FAUSTO, 1970). Para as classes
operarias, foi um momento de desarticulação e repressão (DECCA, 1981). No campo das
questões raciais, o discurso do governo e da elite passou por modificações, e a ressignificação
das teorias raciais vindas da Europa foram aprofundadas com a chamada Democracia Racial,
conceito baseado nas ideias lançadas no livro Casa Grande & Senzala do sociólogo Gilberto
Freyre. Por essa nova fundamentação teórica, a miscigenação, antes condenada, passa a ser
valorizada e, na teoria, o Brasil se torna exemplo de uma sociedade harmoniosa e sem racismo.
Essas novas ideias só contribuem para camuflar a discriminação racial e manter os privilégios
das classes dominantes.
Após 40 anos da abolição da escravidão, o número de associações negras continua se
ampliando para compensar a falta de políticas públicas que promovam assistência básica para
a população negra. As agremiações proporcionavam espaço para socialização, mas também
tinham como objetivo mobilizar seus membros para lutar contra a discriminação racial. Além
do lazer, a necessidade de instrução recebia bastante destaque nas associações.
A educação básica não era obrigatória e era comum nesse período as crianças negras
serem excluídas do acesso ao ensino, colaborando com a manutenção da desigualdade racial.
Segundo o historiador Petrônio Domingues (2009), as agremiações negras não se restringiram
ao papel de denunciar a precariedade do acesso dos negros à escola, mas buscaram fundar suas
próprias instituições, principalmente no turno noturno, para atender às classes trabalhadoras,
com o objetivo de alfabetiza-las. Na Primeira Republica, aprender a ler e a escrever estava
ligado ao direito de exercer a cidadania; os analfabetos não tinham direito ao voto, também era
uma questão de elevar a autoestima da população negra, que, por meio do estudo, acreditava
que conseguiria uma ascensão social, ser valorizada pela sociedade e acabar com o preconceito.
Para exemplificar o objetivo dos negros com a educação, a historiadora Melina Perussatto
(2021), destacou o projeto de escola criado pelos colaboradores do Jornal O Exemplo; eles
acreditavam que as crianças eram o futuro da nação e que as crianças negras conseguiriam a
97
emancipação por meio de uma educação que buscasse o desenvolvimento intelectual e não
somente voltada para o trabalho.
A imprensa negra cresceu junto com as demandas da população negra, tornando-se local
para denunciar discriminações raciais e propor soluções concretas para a realidade da população
negra. Outro marco do período é a fundação da Frente Negra Brasileira (FNB) em 1931,
associação que impressionou pelo tamanho e pelo nível de organização, oferecendo a seus
associados esporte, saúde e educação. A FNB, ao negociar reivindicações da população negra
com o presidente Getúlio Vargas, demonstrou o poder político que a população negra possuía,
com capacidade de ação ampliada quando organizada. A FNB tornou-se partido político em
1936, mas foi fechada em 1937 pelo golpe do Estado Novo, regime marcado pelo autoritarismo
e pela perseguição aos movimentos sociais, dificultando a articulação das agremiações negras.
Para representar as insatisfações e mobilizações da população negra nesse período,
destacamos as trajetórias do marinheiro João Cândido, do político Monteiro Lopes e do
jornalista José Correa Leite. Cada um em sua área e com suas próprias estratégias buscaram
ocupar espaços sociais em que os negros não eram bem-vindos, também se mobilizando para
conquistar reconhecimento e direitos para a população negra.
ouvindo os rumores referentes à Revolta da Armada (1893- 94), as duas contra o novo regime.
Também conseguiu, por meio das viagens internacionais, ter conhecimento sobre a luta dos
marujos britânicos por direitos e dos marinheiros russos no encouraçado Potemkin (1904).
Tornou-se um marinheiro experiente, passando por várias funções a bordo, aprendendo sobre o
funcionamento dos navios, compreensão fundamental para controlar o maior navio de guerra
do Brasil. João Cândido tinha conhecimento e experiência suficiente para alcançar os cargos
mais altos da Marinha Brasileira, mas era preterido pela cor e origem social.
No dia 22 de novembro de 1910, os marujos, liderados por João Cândido, rebelaram-se
e tomaram o controle de quatro embarcações da Marinha brasileira, apontando os canhões dos
navios para a capital federal, iniciando a Revolta da Chibata. Os marinheiros desejavam
melhores condições de vida e trabalho, exigiam o fim dos castigos físicos, denunciavam os
salários baixos e o excesso de trabalho a que eram submetidos. O movimento escancarou a
desigualdade racial da Marinha brasileira, sendo “muito difícil dissociar essas punições físicas
em marinheiros negros daquelas praticadas legalmente em trabalhadores cativos do último país
das Américas a abolir juridicamente esse tipo de disciplinamento” (NASCIMENTO, 2016, p.
154). Os marujos eram em sua maioria negros e a primeira geração da família a nascerem livres;
consideravam-se mantidos como escravos devido à proximidade da sua realidade com a
situação descrita pelos familiares que viveram como escravizados nas fazendas brasileiras, por
isso gritavam “Viva a liberdade e abaixo a chibata”.
A revolta durou cinco dias, conseguindo a atenção da população e o apoio de muitos
jornalistas. O Governo do presidente Hermes da Fonseca, com receio pelas consequências da
revolta, concedeu anistia aos marujos e prometeu cumprir as exigências dos rebelados. Depois
de muitas críticas por ter concedido a anistia dos revoltosos, o governo voltou atrás em sua
decisão e dispensou diversos marujos do serviço. Com o descumprimento da promessa por parte
do governo, os marinheiros organizaram uma segunda revolta que não foi tão bem-sucedida
como a primeira, acabando presos, deportados e fuzilados. João Cândido foi preso e absolvido
somente dois anos depois.
A Revolta da Chibata chamou muita atenção do público. João Cândido, como líder do
movimento, virou alvo de interesses políticos, artigos jornalísticos e documentários sobre o
tema. Com o tempo, o interesse em sua história diminuiu e ele passou a levar uma vida simples
como vendedor de peixes, conquistando em 1959, uma pensão para ex-marujos. Faleceu em
1969 em decorrência de câncer.
99
A carta acima foi enviada pelos marujos revoltosos ao presidente Hermes da Fonseca
no dia 23 de novembro de 1910. A carta foi enviada por intermédio do parlamentar José Carlos
de Carvalho, que subiu a bordo do Encouraçado São Paulo com o objetivo de negociar com os
marinheiros. O parlamentar foi escolhido porque tinha sido oficial da Marinha e proposto um
projeto de lei que aumentava o salário dos marinheiros, assim sendo bem-visto pelos marujos.
A carta foi recebida, mas ocultada do público por estratégia do governo, provavelmente porque
os marinheiros já contavam com bastante apoio entre os jornalistas. A carta original se encontra
no serviço de documentação da Marinha no Rio de Janeiro.
Não existe consenso sobre a escrita da carta, já que alguns marujos são apontados como
autores por pertencerem ao seleto grupo que tinha domínio da escrita, como Francisco Dias
Martins e Ricardo Freitas. A carta demonstra organização e coesão entre os marinheiros em
tecer críticas à República, reivindicando mudanças políticas e o direito à cidadania, destacando
a crítica contra as punições características da escravidão serem mantidas na instituição militar.
As reivindicações evidenciam a preocupação do grupo com causas coletivas, sendo apontada a
necessidade de retirar oficiais incompetentes; a extinção da base legal que permitia os castigos
físicos; o aumento dos salários; o acesso à educação para os marujos; organização que evitasse
a sobrecarga de trabalho, cumprindo a tabela de serviço que foi enviada em anexo à carta.
102
Orientações didáticas
1. Quais paralelos podem ser apontados entre a situação dos marinheiros e dos
escravizados?
103
2. Quem era considerado cidadão brasileiro no período imperial e quem passou a ser
cidadão com a Proclamação da República?
3. Por que mesmo com a abolição da escravidão os marinheiros negros continuam não
tendo seus direitos respeitados?
4. Qual o papel da educação no exercício da cidadania no contexto da Revolta da
Chibata e em nosso contexto?
5. Apontem semelhanças e diferenças dos problemas apontados pelos marinheiros na
carta-manifesto e os problemas que vocês identificam na atual sociedade brasileira.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição;
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias;Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação,
o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.
Fonte 6: BRASIL, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em:
12 de outubro de 2021.
pessoas sendo tratadas como cidadãos de segunda categoria, como os marinheiros no início da
república, não tendo acesso pleno à cidadania.
No final, espero que os discentes consigam ampliar sua visão sobre a cidadania,
reconhecendo os problemas sociais, as formas de resistência e percebendo a importância de
lutar para terem seus direitos respeitados.
O jornalista e editor José Benedito Correia Leite nasceu na capital paulista em 1900.
Criado pela mãe, nunca conheceu o pai, passou fome na infância, já que o emprego da mãe
como doméstica não era suficiente para o sustento da família. Teve diversos empregos enquanto
crescia, com o objetivo de complementar a renda familiar: foi entregador, ajudante de
carpintaria, entregador, entre outros. Seu grande desejo era estudar, e chegou a prestar serviços
gratuitos em uma pequena escola particular em troca de poder acompanhar algumas aulas. Aos
22 anos, frequentava bailes organizados por agremiações negras, que visavam ser um espaço
de socialização. Em uma dessas festas, reencontrou o amigo de infância Jayme Aguiar, que se
disponibilizou a ensiná-lo a ler e escrever
Os dois jovens amigos decidiram, em 1924, fundar um jornal destinado à população
negra, Clarim d’Alvorada. O jornal integrou a chamada Imprensa Negra Paulista, que, nas
décadas de 1920 e 1930, foi fundamental em arregimentar a população negra contra a
discriminação racial, em consonância com outros periódicos da época, como O Getulino (1923–
1926) e A voz da raça (1919–1937). Em sua primeira fase, o foco do periódico foi divulgar
notícias literárias, comentários sobre bailes e comemoração de datas consideradas importantes
para a população negra. Correia Leite exerceu diversas funções nos primeiros anos do jornal,
desde repórter, redator-assistente, gráfico, até que, em 1928, tornou-se o redator-responsável, o
cargo mais alto do jornal, após a saída de Jayme Aguiar, dando início à segunda fase do jornal.
No novo papel de liderança, Correia Leite redirecionou o conceito do jornal, mudando o foco
para as questões mais políticas. A transformação passou pelo subtítulo do periódico, que deixou
de ser “Órgão literário, noticioso e humorístico” para ser “Pelo interesse dos homens pretos,
noticioso, literário e combate”. O acréscimo da palavra “combate” define bem a nova fase da
publicação, entre 1928 e 1932. Correia, como editor, destacou notícias e artigos de opinião
focados em denunciar as condições de vida da população negra brasileira que não tinham espaço
em jornais da grande impressa, que normalmente só relacionavam os negros às questões ligadas
à violência, buscando refletir sobre a realidade da sociedade e debater estratégias para mobilizar
105
os negros a lutar pelo direito à cidadania e a superar a exclusão social. O jornal informava sobre
a dificuldade dos negros em conseguir acesso à educação e a importância dessa para a ascensão
social da população negra; o impedimento dos negros de frequentarem certos hotéis e
restaurantes; além de divulgar perfis de abolicionistas, principalmente, Luiz Gama e José do
Patrocínio, com o objetivo de os tornar exemplos e símbolos de luta e da educação para a nova
geração.
Em 1929, organizou o Congresso da Mocidade Negra de São Paulo, com o objetivo de
promover a união da população negra e discutir a necessidade de se ampliar a instrução do
grupo. A proposta de se organizar reuniões e grupos negros para lutar contra a exclusão social
reflete o amadurecimento das ideias de José Correia Leite, que já apontava projetos para o
futuro da população negra.
Em 1931, José ajudou na fundação da Frente Negra Brasileira (FNB), sendo membro
do conselho da entidade, que se tonou a maior associação negra do período, tanto em tempo de
atividade, funcionando até o golpe do Estado Novo, em 1937, como também em participantes,
que chegou à casa dos milhares. Entre as várias causas que a FNB apoiava, a alfabetização da
população negra ganhou destaque em um país onde a educação básica não era obrigatória,
acreditando-se que saber ler e escrever era uma forma de possibilitar a mobilidade social e de
integrar o negro na sociedade. Correia sai da FNB em 1932 por discordar da centralização de
poder em torno do presidente da associação, Arlindo Veiga dos Santos, que elogiava o regime
fascista de Mussolini, apoiando as ideias integralistas e o regime monárquico.
Sua saída do FNB também significou o fim do jornal Clarim d’Alvorada. Ainda em
1932, fundou o Clube Negro de Cultura Social, que disponibilizava acesso à biblioteca para os
jovens e incentivava a prática de esportes. O Clube foi fechado com o golpe do Estado Novo
em 1937. Correia Leite colaborou com outros periódicos destinados à população negra, como
O Multirão (1977-1982), Senzala (1946), Revista Niger (1960), e participou de diversas
associações e grupos, sendo ativo no movimento negro e colaborando com pesquisas sobre o
assunto até o seu falecimento em 1989.
106
Fonte 7: LEITE, José Correia. “A mocidade negra”. Clarim da Alvorada. 13 de maio de 1929, ano IV, no. 5, p.
5 Disponível em :
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=844918&pasta=ano%20192&pesq=mocidade&pagfis=196
. Acessado em: Acessado em: 07 de outubro de 2021.
O artigo de opinião acima foi assinado por José Correia Leite, publicado no dia 13 de
maio de 1929 no jornal Clarim d’Alvora. No período em questão, os jornais eram o principal
meio de comunicação para população. O jornal Clarim d’Alvorada era publicado mensalmente,
mas teve problemas com regularidade por causa de crises financeiras. Costumava ser vendido
em bailes das agremiações negras para a pequena parcela da população negra que tinha acesso
à cultura letrada. Em 1928, com a saída de Jaime Aguiar, Correia Leite assumiu como redator
responsável e artigos de opiniões sobre a situação da população negra passam a predominar no
107
periódico. Os textos sobre a vida social da comunidade negra perderam espaço para os textos
com o intuito de combater a exclusão social dos negros.
Aproveitando o contexto de instabilidade política do final da década de 1920 e início da
década de 1930, com o surgimento de grupos de direita, as dificuldades na economia
agroexportadora das oligarquias e o descontentamento da população em geral, Correia Leite
tentou inserir as questões raciais nas pautas do momento e conseguir promover mudanças nas
perspectivas sobre o assunto.
No transcorrer da publicação do periódico, é notório uma mudança na opinião sobre a
culpa pela exclusão dos negros: inicialmente, o discurso culpava os próprios afrodescendentes
pela sua situação, posteriormente passando a entender que a responsabilidade era do governo,
dominado pela elite econômica, que não tinha um projeto objetivando a integração do negro na
sociedade. O artigo “Vivemos sem lar”, publicado no Clarim d’ Alvorada no dia 25 de janeiro
de 1925, assinado por José Correia Leite, é um exemplo de como, nos primeiros anos do
periódico, os negros eram apontados como culpados por seus vícios e por negligenciarem os
estudos e o trabalho. Aí, o jornalista declara: “É triste um homem por sua própria fraqueza viver
sem abrigo, andar errante, desmemoriado, enfim, torna-se um ente desprezível no seio da
sociedade” (CORREIA, 1925, p. 3).
Na fonte destacada, já notamos uma diferença na opinião de José Correia Leite. A luta
contra os vícios é citada, mas também é indicada a relação entre as dificuldades da população
negra no pós-abolição com a forma como ocorreu a abolição da escravidão: “Ficaram libertos,
porém, sem pão nem lar [...] Do negro ninguém cuidou”. O apoio aos imigrantes, em detrimento
aos negros, também é elencado como motivo para falta de ascensão social da população negra:
“tiveram também de enfrentar as correntes imigratórias que sempre foram bem remuneradas e
amparadas por todas as leis do nosso país” e tiveram sua contribuição para a “construção dos
alicerces do progresso” esquecida. Correia Leite também critica as associações negras que não
buscavam, segundo ele, modificar a realidade da população negra, apontando, em seu artigo, a
importância dos jovens na transformação da realidade dos negros, os convidando para participar
do I Congresso da Mocidade Negra do Brasil. A reunião não aconteceu, mas mostrou o interesse
de José Correia Leite em formar um coletivo para que os negros participassem ativamente das
questões políticas do período.
Orientações didáticas
108
A imprensa é uma fonte de pesquisa que permite aos estudantes ter uma visão sobre as
opiniões dos sujeitos estudados. No caso, a partir dos textos de José Correia Leite para o Jornal
Clarim da Alvorada, é possível sabermos as disputas e os posicionamentos do jornalista no
período. No atual cenário, em que a maioria estudantes têm acesso rápido a um grande volume
de informações e são expostos a fake news diariamente, o exame da fonte é uma oportunidade
de debater, com os discentes, a necessidade de se fazer uma análise crítica da imprensa
(SANTOS, 2018, p. 102). É imprescindível debater sobre o discurso de neutralidade difundido
por vários órgãos de imprensa, chamando atenção para a seleção que é feita na produção e
divulgação das notícias, processo esse que é permeado por uma intencionalidade em conquistar
apoio para o posicionamento político e ideológico do periódico (ZICMAN, 1985, p. 90).
Outro fator fundamental é entender como a imprensa não é um expectador-narrador da
sociedade, mas sim parte do processo histórico, interferindo e sendo influenciada pela opinião
pública sobre os eventos que cobre. Na análise da fonte, os estudantes devem perceber que José
Correia Leite tinha posições políticas definidas, escrevia para um público-alvo delimitado e
tinha objetivos definidos; o Clarim da Alvorada faz parte do que chamamos de Imprensa de
Opinião, pequenos jornais com pontos de vistas bem definidos. Para colaborar com a análise
dos discentes, propomos que os professores levantem uma série de questionamentos para
facilitar a reflexão sobre o documento:
Após a análise da fonte, o professor deve destacar, para os estudantes, como o jornalista
José Correia Leite preocupou-se em relatar os problemas enfrentados pela população negra em
decorrência do sistema escravista e da falta de políticas públicas para melhorar a qualidade de
vida dos negros após a abolição, apontando a necessidade de união da população negra e
destacando o papel da juventude na resolução de tais problemas.
Depois do debate sobre as ideias de José Correia Leite e as propostas dele para diminuir
a desigualdade racial, proponho que os professores dividam os discentes em grupos e que cada
grupo fique responsável por escrever um artigo de opinião sobre um tema polêmico que envolva
as relações raciais na sociedade brasileira, como: cotas para o ingresso em universidades
109
Fonte 8: A candidatura de Monteiro Lopes. Correio da Manhã. 16 de fevereiro de 1909. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_01&pasta=ano%20190&pesq=monteiro%20lopes
&pagfis=19006. Acessado em: 16 de outubro de 2021.
Orientações didáticas
Como a ata não é um documento que faz parte da rotina dos estudantes, sugiro que a
discussão em sala de aula tenha início pelas características próprias da fonte. Sendo o registro
oficial da reunião de uma instituição ou associação, por meio das atas podemos analisar as
prioridades e a decisões tomadas por um determinado grupo (ESQUINSANI, 2007, p. 104),
buscando entender o contexto que os levaram a definir tais deliberações. Assim, depois da
primeira leitura do documento junto aos estudantes, sugiro que o professor inicie
questionamentos que colaborem para a análise do documento pelos discentes, por exemplo:
11. Com base no que já foi discutido, todos tinham seus direitos políticos respeitados?
Com essas perguntas, desejo que os estudantes entendam que a ata não é um
documento neutro, já que ela atende à necessidade de registro e é fundamental para legitimar
as ações da Comissão, que, com a sua veiculação, procurava aumentar o apoio popular a sua
causa e, para isso, era necessário alcançar o maior número de pessoas possível e que os jornais
possuem opiniões e desejos políticos em concordância com o discurso de seus donos. Também
é fundamental que os estudantes compreendam o porquê da necessidade dessa mobilização para
garantir a posse de Monteiro Lopes, pois, teoricamente, com a Proclamação da República, a
permissão para exercer a cidadania não estava mais ligada à cor e às condições financeiras, as
possibilidades pareciam abertas para as classes até então excluídas das políticas imperiais, mas,
na prática, continuavam a existir barreiras “não ditas” nas leis, presentes no cotidiano. O debate
também deve permitir que os discentes consigam “Identificar os mecanismos de inserção dos
negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados” (EF09HI03) (BRASIL,
2018, p. 429), percebendo que as dificuldades de exercer a cidadania plenamente farão com que
os negros e os outros grupos excluídos procurem se organizar, já que as organizações políticas
tradicionais colocavam empecilhos que visavam manter a desigualdade e exclusão dos grupos
desfavorecidos, incluindo a população negra.
Após as discussões realizadas em sala de aula e a pesquisa sobre os direitos que não são
respeitados no Brasil, é fundamental que os estudantes comecem a pensar nos impactos que os
preconceitos têm na sociedade brasileira. Para facilitar a compreensão dos estudantes sobre as
dificuldades das minorias, sugiro que os professores diminuam o recorte espacial de análise
para os problemas do cotidiano escolar causados pelas desigualdades raciais e outras formas de
preconceitos apontados pelos estudantes.
Para que os discentes conheçam melhor a situação dos seus colegas de escola, indico
que eles realizem uma pesquisa de opinião com as outras turmas, com o objetivo de os
estudantes tomarem consciência da diversidade de dificuldades encontradas no seu contexto
escolar e incentivando a sua participação na dimensão pública da escola. O método que sugiro
para o professor é a aplicação de um questionário para os estudantes. A turma em conjunto deve
traçar quais os objetivos deles com o questionário e decidir o recorte de quais turmas e quantos
estudantes devem responder às questões. Após essa decisão, a turma deve ser dividida em
grupos, cada um ficando responsável por uma etapa. O primeiro grupo, com a ajuda do
professor, deve elaborar as perguntas que compuseram o questionário, optando
preferencialmente por perguntas objetivas; eles precisam levar em consideração o público-alvo,
114
provavelmente outros alunos do Ensino Fundamental II, para decidir o nível de complexidade
das questões. Na perspectiva das relações raciais, sugiro que algumas perguntas tenham como
objetivo identificar se os discentes já sofreram ou presenciaram casos de racismo na escola, a
da preocupação da escola com a valorização da cultura e a história afro-brasileira, o
conhecimento dos discentes sobre personalidades negras.
Outro grupo deve ficar incumbido de decidir e divulgar o dia da aplicação do
questionário com a gestão, os professores e os estudantes, visto que a realização do questionário
não deve atrapalhar a organização da escola e o planejamento das aulas. Sobre o grupo
encarregado em aplicar o questionário: o tamanho do grupo deve levar em consideração a
quantidade de alunos que a turma definiu como recorte. As respostas devem ser compiladas por
outro grupo e utilizadas para subsidiar uma discussão em sala de aula; os estudantes devem ser
questionados pelos professores sobre quais direitos dos estudantes não estão sendo respeitados
e quais deveres os mesmos não estão cumprindo. Daí é possível debater sobre como encontrar
soluções para os problemas identificados.
Depois do debate sobre os resultados da pesquisa, sugerimos que os alunos produzam
uma ata do debate. A ata deve ser construída por meio da interação de todos os discentes da
turma; após a escolha do redator e auxiliares, os estudantes devem identificar os principais
problemas apontados pelo corpo de alunos através da pesquisa realizada junto às outras turmas
da escola; os discentes devem lembrar em não focar nas questões individuais, mas priorizar o
coletivo; os estudantes devem assumir compromissos de cumprir seus deveres e reivindicar
mudanças, apontando soluções por eles pensadas. A ata deve refletir os desejos e as
insatisfações da turma e ser entregue à diretoria da escola pelos próprios estudantes.
115
O ano de 1945 foi marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, também
pelo desfecho do Estado Novo. O alinhamento do regime autoritário de Getúlio Vargas com as
potências democráticas durante a guerra serviu de argumento para a oposição questionar a
continuação do governo, apontando a contradição de o Exército brasileiro lutar com os Aliados
contra os regimes ditatoriais europeus (BORIS, 2013). As bases para a redemocratização estão
na Constituição de 1946, caracterizada como liberal-democrática, mas com heranças dos 15
anos do governo Vargas. Na economia, cada presidente do período colocou em práticas seus
próprios planos, desde o governo democrático de Getúlio Vargas (1951–1954), com a criação
de empresas públicas, como a Petrobrás (1953) e a Eletrobrás (1954), até Juscelino Kubitschek
(1956–1961), marcado pela entrada de capital estrangeiro para desenvolver as indústrias.
A política externa foi afetada pela Guerra Fria, marcada pela disputa entre os EUA e a
URSS por áreas de influência; implicando no aumento da polarização do mundo entre esquerda
e direita, que também vai dividir os governos e a sociedade brasileira. O Governo Dutra (1946–
1951) alinhou-se com os EUA, rompendo com URSS e colocando o PCB na ilegalidade. Jânio
Quadros (1961) propôs uma política mais independente, e por isso acabou desagradando os dois
lados. O confronto entre os movimentos sociais e as classes mais conservadoras da sociedade
brasileira acabou colocando um fim no governo de João Goulart, derrubado com o Golpe de
64.
A disputa direita versus esquerda também teve consequências para o Movimento Negro,
que, com o processo de redemocratização, buscou se reestruturar, mas acabou isolado
politicamente nas discussões anteriores à Constituinte de 1946, quando o movimento negro
tentou implementar uma lei antidiscriminatória e não recebeu apoio de nenhum grupo político.
A direita argumentou que seria antidemocrático, um tipo de “racismo às avessas”, e a esquerda
considerava que o movimento negro dividia a luta dos trabalhadores, que deveriam focar na
luta mais ampla dos trabalhadores contra o capitalismo. A primeira Lei Antidiscriminação foi
criada somente em 1951, após o escândalo envolvendo a bailarina norte-americana Katherine
Dunham, que foi barrada em um hotel em São Paulo.
Para o historiador Petrônio Domingues, o movimento negro, nessa fase, conseguiu
ampliar seu raio de ação, “entretanto, não teria o mesmo poder de aglutinação da anterior”
(DOMINGUES, 2007, p. 108). Depois da desarticulação provocada pelo autoritarismo do
Estado Novo, novos grupos e líderes conseguem espaço, com novos objetivos e caracterizados
pela “valorização da herança cultural africana e, ao mesmo tempo, a ideia de que a mestiçagem
116
era algo positivo foram marcas do movimento negro brasileiro dos anos 50”
(ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 274).
Entre as organizações que surgiram nesse período, a União dos Homens de Cor, criada
por João Cabral, em Porto Alegre, destaca-se pela sua expansão, já que conseguiu adeptos em
dez estados, atuou com o objetivo de integrar a população negra na vida social e econômica do
país, disponibilizou atendimento médico e jurídico, forneceu curso de alfabetização e promoveu
debates em jornais. Outro grupo importante para compreender a luta negra no período é o Teatro
Experimental Negro, criado por Abdias Nascimento. A companhia de teatro formada somente
por atores negros extrapolou a proposta inicial de apenas criar peças teatrais, oferecendo cursos
de alfabetização e profissionalização, fundando o Museu do Negro, organizando o I Congresso
do Negro e publicando o jornal Quilombo. O grupo foi pioneiro em valorizar a cultura africana,
exaltar a beleza negra, ao mesmo tempo que denunciava o racismo e lutava pelos direitos civis
dos negros.
Para aprofundar a discussão sobre esse período, ressaltaremos as biografias da
empregada doméstica Laudelina de Campos Mello, do dramaturgo Abdias Nascimento e do
pintor e compositor Heitor dos Prazeres.
passa a participar da Frente Negra Brasileira (FNB) e a ler, na imprensa negra paulista,
discussões que colaboraram para tornar sua militância mais reivindicatória. Durante essas
leituras, selecionava o que considerava de seu interesse, afastando-se de Arlindo Veiga,
presidente da FNB, por seu apoio aos regimes fascistas da Europa. A combinação de suas
experiências no Grupo Treze de Maio, no Movimento Negro e como empregada doméstica
motivaram Dona Laudelina a pensar em estratégias para modificar a realidade das mulheres
negras brasileiras.
Em 1936, Dona Laudelina funda, na cidade de Santos, a primeira Associação das
Empregas Domésticas do Brasil. Inicialmente, a associação tinha um cunho mais beneficente,
com objetivo de apoiar as empregadas domésticas que vivam na miséria por causa dos baixos
salários ou abandonadas pelos patrões por motivo de doença ou velhice. Com o tempo, a
associação passou a se dedicar não somente ao lazer e à prestação de serviços para a classe, mas
também à busca pela legalização da profissão, proporcionando um espaço para a educação
formal das empregas. A associação foi fechada pelo golpe do Estado Novo.
Na década de 50, morando na cidade de Campinas, Dona Laudelina fundou e presidiu
diversas agremiações voltadas para a população negra com o objetivo de diminuir o preconceito
racial muito presente na sociedade campineira, como o Clube Cultural Recreativo, responsável
por organizar bailes para debutantes negras e o concurso Pérola Negra; a Escola de bailados
Santa Efigênia, que disponibilizava aulas de dança e música e um espaço de lazer para os
negros; e a Cidade dos Menores, fundação para acolher menores abandonados, entre outros
(PINTO, 1993).
Em 1961, Dona Laudelina fundou a Associação das Empregadas Domésticas de
Campinas, intensificando sua luta política pelo direito à sindicalização da profissão. Em 1962,
encontrou-se com o presidente João Goulart com a finalidade de conquistar apoio para sua
causa. A associação foi fechada em 1964 em decorrência do Golpe Civil-Militar, mas Dona
Laudelina continuou com seus trabalhos participando de reuniões em Brasília com deputados
federais, demonstrando como seu empenho pela legalização do trabalho doméstico encontrou
ressonância e espaço nas disputas políticas, alcançando notoriedade no meio político brasileiro,
ocupando espaços que foram, por décadas, impensáveis para mulheres negras.
Em 1966, Laudelina foi recebida por Jarbas Passarinho, Ministro do trabalho do governo
militar, o político que a definiu como o “terror das patroas”. Do encontro, as empregadas
domésticas conquistaram o direito à previdência social e pensão, infelizmente, os dois ainda de
forma facultativa; o direito à sindicalização só seria conquistado em 1988, com a Constituição
cidadã. Dona Laudelina faleceu em 1991, depois de uma vida dedicada à luta pelos direitos das
118
empregadas domésticas. Sua casa foi doada por ela em vida e se tornou a sede do Sindicato das
Empregadas Domésticas de Campinas (CRESPO, 2016).
Fonte 9: Domésticas de Campinas travam luta por melhores condições de trabalho. Novos rumos. Rio de
Janeiro. 15 a 21 de dezembro de 1961, p. 7. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=122831&pasta=ano%20196&pesq=laudelina&pagfis=186
3. Acessado em: 16 de outubro de 2021.
119
Orientações Didáticas
Nascido em Franca, interior de São Paulo, em 1914, filho da doceira Georgina Ferreira
do Nascimento e do sapateiro José Ferreira do Nascimento, neto de escravas, Abdias do
Nascimento cresceu em uma família humilde. Aos 15 anos, Abdias se formou em contabilidade
e entrou para o Exército, sendo transferido para a capital paulista. Mesmo proibido de participar
ativamente da política, por ser membro do Exército, ingressa na Frente Negra Brasileira,
associação que desejava modificar o cenário de exclusão social da população negra. A
experiência o ajudou a formar sua identidade racial. Nascimento acaba expulso do Exército por
um ato violento em resposta a um tratamento preconceituoso recebido por ele em uma boate.
123
Fonte 11: NASCIMENTO, Abdias. Drama para negros e prólogos para brancos. Rio de Janeiro: Ed.
do Teatro Experimental do Negro, 1961, p. 178-179.
Disponível: https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/dramas_para_negros-parte_i
Orientações didáticas
estudo sobre o passado, já que a fotografia, como ressalta a historiadora Ana Heloisa Molina
(2008), é um fragmento da realidade, a interpretação de um fotógrafo, que está inserido em um
contexto social e tinha objetivos definidos no momento da produção. Acerca do trecho da peça
de teatro, é importante relembrar as discussões já feitas sobre as fontes literárias com os
estudantes, destacando as características especificas deste gênero textual, que é produzido para
ser encenado e, por isso, contém muitos diálogos e rubricas - normalmente em itálico – com
informações sobre a apresentação para os diretores e para os atores.
Sugiro que os professores iniciem a discussão com as primeiras impressões dos
discentes sobre a fotografia e o trecho da peça Sortilégio e faça perguntas que colaborem com
a análise dos estudantes, como, por exemplo: qual a cor da pele dos personagens principais?
Qual a importância de se ter personagens negros como protagonistas da peça na década de
1950? Vocês, alunos e alunas, costumam ler livros ou assistir novelas e filmes com
protagonistas negros? Por que o personagem Emanuel foi preso? O personagem teria sido preso
por esse motivo se fosse branco? Qual o tema principal da peça? Quais as intenções de Abdias
do Nascimento escolhendo esse tema? Em que local a história está se desenrolando, levando
em consideração as informações do texto e da fotografia? O personagem Emanuel diz ter
renegado a cultura do seu povo, por que vocês acham que ele fez isso? O texto e a fotografia
apresentam elementos do candomblé, o que vocês sabem sobre essa religião? A peça foi
censurada na década de 1950, por qual motivo vocês acreditam que ela foi impedida?
Após a análise das fontes junto aos estudantes, proponho a encenação da peça teatral em
formato de esquete para a comunidade escolar na culminância do projeto no dia da Consciência
Negra, com a finalidade valorizar elementos da cultura negra, tão estimados por Abdias
Nascimento, reconhecendo a arte produzida por um grupo negro, colaborando para a ampliação
dos horizontes culturais dos estudantes e a autonomia com o trabalho coletivo, além de o teatro
ser uma forma de sensibilizar os atores e o público, permitindo às pessoas se identificarem ou
se colocarem no lugar do outro.
O professor tem que se certificar de que os estudantes tenham acompanhamento no
processo de preparação da peça, levando em consideração a complexidade da produção de um
esquete, que exige comprometimento dos estudantes para sua organização, preparação e
ensaios. O planejamento conjunto com o professor de Artes é recomendado. No início da
preparação da peça, é fundamental que os estudantes entendam a situação que vão encenar;
então, é interessante que o professor retorne alguns temas debatidos em sala no momento da
análise das fontes e que eles pesquisem sobre a cultura e as religiões de matriz africana que eles
vão representar. Proponho que os estudantes se inspirarem no texto e na fotografia da peça
128
Sortilégio, mas que tenham liberdade para rescreverem o roteiro, adicionando suas experiências
pessoais e atualizando a linguagem, se acharem necessário, com o objetivo de atrair a atenção
dos mais jovens.
A turma deve se dividir em equipes, levando em consideração as habilidades
individuais; os responsáveis pelo roteiro devem levar em consideração a obra original, as
decisões da turma em modificá-la e utilizarem as rubricas para ajudarem as outras equipes a
manterem uma coerência na proposta. A escolha dos atores deve levar em consideração a
prática do Abdias do Nascimento de conceder espaço para os intérpretes negros. É importante
que um grupo de alunos fique responsável pela divulgação da peça, produzindo cartazes que
chamem a atenção e incentivem a presença da comunidade escolar no evento. Os encarregados
pelos cenários, pelos figurinos e pelas músicas, devem se inspirar nos elementos apresentados
pela peça original, mas trazer elementos da sua própria realidade, por exemplo, incluir o som
de tambores, que remetem às religiões de matrizes africanas, mas incluírem algum rap que
colabore com a narrativa.
A intenção é que os estudantes utilizem seus conhecimentos e sua criatividade para
denunciarem o preconceito racial, valorizando a cultura da população negra.
Heitor dos Prazeres nasceu dez anos após a abolição da escravidão, no dia 23 de
setembro de 1898, no Rio de Janeiro. Descendente de africanos escravizados, seu pai, Eduardo
Alexandre dos Prazeres, foi marceneiro e tocava clarinete na Banda da Guarda Nacional; sua
mãe, Celestina Gonçalves Martins, era costureira. Órfão de pai aos sete anos, contou com o
apoio do tio Hilário Jovino, compositor de sambas, que, para incentivar o talento musical que
enxergava no sobrinho, o presenteou com um cavaquinho ainda na infância. Foi matriculado
pela mãe em uma escola profissionalizante para fazer o primário e aprender o ofício de
marceneiro como o pai.
Morador do bairro Cidade Nova, nos arredores da Praça Onze, região conhecida por ser
um espaço de sociabilidade para a população negra, acredita-se que foi Heitor dos Prazeres que
denominou o local de Pequena África. O músico acompanhava o tio nas festas e cerimônias
religiosas na Casa de Tia Ciata, reconhecida como o berço do samba carioca, frequentado por
personalidades como Pixinguinha e Sinhô (BARBOSA, 2016). Heitor, em seu crescimento,
acompanhou o processo de mudança do status do samba, que era, em seu início, criminalizado
e perseguido, entendido como sinônimo de algazarra e desobediência aos padrões de civilidade
129
impostos pela elite, depois de um processo de mudança de letras e temáticas, passou a ser
reconhecido como símbolo de brasilidade, por meio do projeto nacionalista do governo Getúlio
Vargas, que desejava valorizar elementos da cultura dita popular e criar uma identidade
nacional (FERREIRA; GALDINO, 2007).
Com o reconhecimento adquirido pelo samba, seu talento como letrista e conhecimento
sobre os ritmos africanos, Heitor dos Prazeres alcançou o prestígio como músico. Compôs cerca
de 250 músicas, produzindo parcerias de sucesso com Noel Rosa e Cartola; participou de
programas da Rádio Nacional entre 1937 e 1946; apresentou seu próprio programa, A voz do
morro (1941), na Rádio Cruzeiro do Sul, com os sambistas Cartola e Paulo da Portela;
apresentava-se no renomado Cassino da Urca; e participou da fundação de várias escolas de
samba, como Mangueira, Portela e Deixar Falar (Estácio de Sá).
Em 1937, depois da morte da esposa, Heitor dos Prazeres decidiu dedicar-se às artes
plásticas; incentivado pelo amigo jornalista Carlos Cavalcanti, começou a expor suas pinturas.
Suas obras são baseadas em sua experiência, como o próprio Heitor comenta no documentário,
de 1965, sobre sua carreira, dirigido por Antônio Carlos da Fontoura: “Essas figuras têm coisas
que eu já vi e ainda existem. Não preciso de modelo, tenho tudo aquilo, do passado e do agora,
dentro da memória.” (HEITOR DOS PRAZERES, 1965). Existe um vínculo estreito entre suas
composições e suas pinturas; nas duas formas de arte, Heitor dos Prazeres prestigia a cultura
negra e a resistência da população negra. Suas imagens têm movimento, onde percebe-se o
ritmo do samba e o gingado da dança. Heitor criou um universo próprio para suas pinturas,
sendo possível perceber que os cenários, temas e personagens se repetem.
Heitor dos Prazeres possuía um ateliê na praça Tiradentes, contava com assistentes na
produção dos quadros, sendo as ideias de sua responsabilidade, assim como as partes que
considerava principal na obra, os rostos e os gestos de seus personagens. Utilizava-se de
materiais variados, como guache, aquarela, madeira e tecido. Sua clientela também era
diversificada, atendia galerias renomadas e até as pessoas simples do seu bairro. Seus
personagens, em sua maioria negros, normalmente são posicionados em primeiro plano,
recebendo o destaque necessário, com roupas elegantes e cores fortes, afastando-se dos
estereótipos utilizados para representar a população negra, com as pernas flexionadas e olhando
para cima, buscando um destino (GERALDO, 2021).
Heitor dos Prazeres passou a expor nacional e internacionalmente. Em 1951, ficou em
terceiro lugar na 1° Bienal Internacional de São Paulo, com o quadro Moenda. Em 1954, criou
os cenários e figurinos para o balé do IV Centenário da Cidade de São Paulo. Em 1959, teve a
1° exposição individual na Galeria Gea, no Rio de Janeiro. Sua pintura foi classificada de forma
130
Fonte 12: Heitor dos Prazeres. Favela com tintureiro. 1963. Disponível em:
https://www.emporiodasartesleiloes.com/peca.asp?ID=1360006. Acessado em: 16 de outubro de 2021.
131
As pinturas de Heitor dos Prazeres contrastam das imagens mais utilizadas para
representar a população negra nos livros didáticos; diferenciam-se da visão submissa ou exótica
de como os negros são comumente representados. Heitor pinta de forma diversificada, positiva
e alegre o cotidiano da população negra no Rio de Janeiro: a roda de samba, o carnaval, os
terreiros, os bairros populares e as favelas. Alguns críticos julgaram suas pinturas como
alienadas por não representar a discriminação racial (BARBOSA, 2016), mas as obras de Heitor
representam e incentivam a resistência negra a ocupar espaços, promovendo a visibilidade e o
protagonismo negro, desafiando o desejo da elite de esconder ou eliminar a população negra da
cidade, promovidas pelas reformas urbanas desde o início do século XX.
Por meio de suas obras, Heitor dos Prazeres ensina sobre a história e a cultura afro-
brasileira, expõe para o restante da população um novo ângulo sobre a realidade dos subúrbios
e das favelas, diferentes dos noticiários. Na Fonte 12, podemos observar o quadro Favela com
tintureiro (1963), e nele o pintor apresenta um Rio de Janeiro diferente dos cartões postais, uma
cidade onde a população negra teve que resistir ocupando espaços públicos, como ruas e praças
(BARBOSA, 2016). Heitor pinta a desigualdade, mas também demonstra como os ambientes e
as relações podem ser mais democráticas pois, como observamos na imagem, a rua é um local
de sociabilidades, onde convivem desde a criança brincando até o tintureiro trabalhando,
passando pela mulher passeando, todos pintados de formar digna e elegante.
Na fonte 13, vemos outro tema comum na obra de Heitor dos Prazeres, as religiões de
matriz africana, que resistiram às perseguições impostas pelas forças hegemônicas. Heitor
frequentou terreiros de Candomblé e Umbanda enquanto crescia, e neles aprendeu a tocar
instrumentos, participando ativamente das cerimônias (GERALDO, 2021). No quadro Terreiro
de Umbanda (1959), na imagem pintada pelo ângulo de cima, podemos perceber características
habituais nas pinturas de Heitor dos Prazeres, como o movimento proporcionado pelos vestidos
rodados, vestuário característico da umbanda. O ritmo também está presente nos atabaques,
instrumento de origem africana, tocados pelos dois homens representados. Para representar o
ritual da Umbanda, Heitor também colocou na pintura dois Ponto Riscado, duas flechas
entrecruzadas e uma estrela de cinco pontas, os desenhos de giz feito no chão simbolizam as
entidades.
Orientações didáticas
Nas duas pinturas, Heitor dos Prazeres buscou representar de forma positiva os locais
de moradia e o cotidiano da população negra, destacando a beleza desses momentos. Para
133
problematizar as imagens em sala de aula, é preciso que o professor relembre com os estudantes
algumas questões já debatidas sobre como as pinturas estarem inseridas em contexto histórico,
que influenciou nas decisões do pintor, mas que também “a arte não é apenas reflexo de uma
sociedade, de um período histórico, mas também uma das possibilidades de expressar valores
culturais, ideologias, sentimentos e pensamentos do artista” (MOIMAZ; MOLINA, 2021, p.
147). É fundamental o professor levantar questões com os alunos que os façam refletir sobre o
contexto em que vivia Heitor dos Prazeres e os propósitos dele com a pintura.
Após os alunos terem a chance de observar as imagens, o professor pode iniciar a
problematização da fonte com algumas perguntas que colaborem para fomentar o debate entre
os alunos e ajudá-los a pensar o contexto histórico de produção das fontes, mas também o
contexto em que vivem. Proponho o seguinte roteiro de análise:
Proponho que os estudantes façam um registro imagético da região onde moram e que
exponham suas produções na culminância do Dia da Consciência Negra, levando em
consideração que, entre os alunos e as alunas de escolas públicas, a grande maioria vive nas
regiões periféricas da cidade, sendo boa parte de seus moradores negros e, infelizmente,
marcados por uma série de problemas econômico-sociais e raciais. Além disso, normalmente,
quando retratadas pela mídia, o foco fica quase exclusivamente na violência de tais regiões,
passando somente uma visão pessimista do lugar. Por esses motivos, sugiro que os estudantes
sigam o exemplo do pintor Heitor dos Prazeres, que pintou os morros e as regiões periféricas,
mas ressaltando pontos positivos. Não desejo que os discentes ignorem os problemas, esses
devem ser reconhecidos, mas que eles enxerguem as potencialidades e a beleza da população
134
dos locais onde moram e busquem colaborar para a melhorias, com isso elevando sua
autoestima e estimulando o sentimento de pertença a esse local.
Os estudantes devem ter autonomia em realizar uma pintura ou uma fotografia, essa
última sendo a maneira como costumam se expressar. Os educadores devem incentivar que eles
representem suas experiências pessoais, procurando refletir o cotidiano, como as atividades
econômicas, as relações sociais, os encontros religiosos, entre outros. É importante que os
discentes saibam que imagem eles desejam passar sobre suas regiões e sensibilizar e promover
o respeito à diversidade das periferias.
Por fim, os estudantes compreenderão que toda imagem veiculada em mídias é um
recorte da realidade atrelado aos interesses daqueles que as produziram. As imagens que
associam pobreza, periferia e negritude podem ser combatidas, caso entendamos que outras
manifestações artísticas sobre isso são possíveis e válidas. Os alunos e as alunas promoverão
uma nova visualidade a suas regiões – e se verão comprometidos na quebra de estereótipos -,
bem como entenderão as artes plásticas como uma forma de intervenção nas tensões sociais
contemporâneas.
135
As forças armadas brasileiras, com o apoio de uma ampla parcela da classe média e dos
empresários, promoveram o Golpe Civil-Militar de 1964, derrubando o então presidente eleito,
João Goulart, e iniciando uma ditadura que duraria 21 anos. Durante esse período, o governo
extinguiu direitos políticos, cassou mandatos, suspendeu habeas corpus e implementou o
bipartidarismo. A oposição sofreu com a repressão, os meios de comunicação foram
censurados, e as torturas e assassinatos se tornaram uma prática comum do regime. A resistência
se deu em várias frentes, desde a luta armada até as músicas de protesto, que tentavam driblar
a censura. Como fizeram com outros movimentos sociais, como os organizados pelos
trabalhadores urbanos e pelos trabalhadores do campo, os golpistas se ocuparam de
desorganizar o movimento negro. Para o governo, não existia racismo no Brasil e a propaganda
oficial procurou passar a imagem do país como um paraíso racial. Qualquer pessoa (ou grupo)
que discutisse as questões raciais era observada e perseguida pelos departamentos de
informação e segurança, sendo taxada de subversiva.
Sob a justificativa de que pretendia industrializar o Brasil, o regime ditatorial buscou
desnacionalizar a economia e incentivou a entrada de capital estrangeiro, fortalecendo a
alianças com potências estrangeiras, notadamente os Estados Unidos, e favorecendo os
interesses de uma parcela da elite nacional. O crescimento econômico, contudo, não significou
aumento da renda ou melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores. Os sindicatos foram
perseguidos e as greves proibidas, impedindo os trabalhadores de reivindicarem o fim do
congelamento dos salários (SCHWARCZ; STARLING; 2015). O chamado “milagre
econômico”, crescimento acelerado da economia no final da década de 1960, não durou muito
e suas consequências foram a concentração de renda, o aumento da dívida externa e da inflação.
A crise econômica abriu espaço para críticas ao regime e o início do movimento de abertura
política. No final da década de 1970, iniciou-se uma mobilização coordenada por diversos
setores progressistas exigindo o retorno da democracia.
Em meados dos anos 1970, quando a ditadura começou a apresentar os primeiros sinais
de desgaste, surgiu o Movimento Negro Unificado (MNU), tendo como marco inaugural um
ato contra a discriminação racial ocorrido na escadaria do Teatro Municipal de São Paulo, em
1978. O novo grupo, contando com a participação e influência de personalidades do movimento
negro das gerações anteriores, preocuparam-se em promover uma organização em escala
nacional, unindo grupos dispersos pelo país. O movimento contestava o mito da democracia
racial, desejava a inclusão do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira nos
136
currículos escolares, denunciava o racismo e a violência policial contra os jovens negros das
periferias (PETRONIO, 2007). O MNU participava da circulação de referências do “Atlântico
negro” (PEREIRA, 2010), dialogando com o movimento de libertação dos países africanos e
com os protagonistas da luta por direitos civis nos EUA. Também aconteceu uma aproximação
com os partidos de esquerda, que não era um desejo unânime de nenhum dos lados, articulando
a luta de classe com as questões raciais. O MNU aprovou a proposta do Grupo Palmares10 de
transformar o 20 de novembro em Dia Nacional da Consciência Negra, elegendo Zumbi como
seu principal herói, símbolo da luta e resistência negra contra a opressão. Todo o discurso do
MNU buscava valorizar a beleza negra e a herança africana, começando pela utilização do
termo “negro”, despindo-o da sua conotação pejorativa.
Também na década de 1970, o Movimento Soul conquistou os jovens negros nas
periferias do Rio de Janeiro e São Paulo, embalados pelo funk de James Brown, Tony Tornado,
Tim Maia e pelas letras que exaltavam a negritude, aderindo-se à estética Black Power. Em
1974, surgiu, em Salvador, o primeiro bloco afro, Ilê Ayê, enaltecendo a África e com letras
que abertamente lutavam contra a discriminação.
Com o início do processo de redemocratização, o MNU organizou, em 1986, a I
Convenção Nacional do Negro pela Constituição, com o tema “O Negro e a Constituinte”, com
objetivo de debater os desejos da população negra para as novas leis do país e traçar estratégias
para conquistar uma participação efetiva no novo regime político. Durante a Constituinte, a
população negra foi representada por dois parlamentares negros, Benedita da Silva (PT) e
Carlos Alberto Caó (PDT). A Constituição de 1988 trouxe consideráveis avanços para os
direitos da população negra, o racismo foi considerado crime inafiançável e foi estabelecido o
direito à regulamentação das terras quilombolas, conquistas que não findaram com a luta, que
continuou pela efetivação dos direitos alcançados. Em 1988, também ocorreu as comemorações
do Centenário da Abolição, e o Movimento Negro buscou modificar a versão oficial sobre o
processo abolicionista e denunciar a persistência da discriminação racial no Brasil.
Na década seguinte, o Movimento Negro focou em ações, principalmente, na área
educacional, reivindicando mudanças nos livros didáticos e a capacitação dos professores, para
que a problematização sobre as questões raciais se tornasse fundantes do processo formativo.
Buscou-se a implementação de ações afirmativas, como o sistema de cotas nas universidades
públicas, conseguindo que, em 1996, fosse criado, pelo Governo Federal, o Grupo de Trabalho
10
O Grupo Palmares foi fundado em 20 de julho de 1971, em Porto Alegre. A associação tinha como objetivo
estudar a história e cultura da população negra.
137
Aída dos Santos nasceu em Niterói no dia 1 de março de 1937, em uma família humilde
moradores do Morro do Arroz, filha da lavadeira Adalgisa e do pedreiro Praxedes. Graças às
bolsas de estudos concedidas por seu bom desempenho nos esportes, Aída conseguiu estudar
em escolas particulares. Desejava fazer carreira como jogadora de voleibol, mas não encontrou
oportunidade nesse esporte, escutando do técnico do Botafogo que esse não era um esporte para
negras, sendo alvo de xingamentos racistas por parte das torcidas (nesse mesmo esporte, sua
filha Valeskinha foi campeã na Olímpica de Pequim em 2008). Aos 19 anos, ela teve seu
primeiro contato com o atletismo; incentivada por uma amiga, praticou o saltou em altura (em
sua primeira experiência com a modalidade saltou 1,40 metros, somente 5 centímetros abaixo
do recorde estadual). A partir desse momento, passou a competir em diversos campeonatos
municipais e estaduais, conquistando várias medalhas e recordes. Mesmo demonstrando ter um
futuro promissor no esporte, não contou com o apoio da família, do namorado e das amigas,
sendo alvo de atitudes violentas por parte do pai, que desejava que a filha trabalhasse mais para
ajudar no sustento da família (FARIAS, 2011).
Durante seus quatorze anos de carreira no atletismo, Aída dos Santos possuía uma rotina
ocupada, estudava pela manhã, trabalhava a tarde e treinava no turno noturno. Assim conseguiu
terminar três graduações: Educação Física, Pedagogia e Geografia. No esporte, foi alvo de
discriminação nos clubes e na seleção brasileira: Aída relata que um dirigente do clube
Botafogo disse para ela que: “se pudesse ‘tiraria os pretos do clube’. A respostas foi direta: -
Disse a ele para tirar os títulos que os negros conquistaram também” (MASSENA, 2018). Outro
dirigente declarou que, por ele, tiraria a cor preta do uniforme do Botafogo e deixaria somente
a branca (ALEIXO, 2015). Mesmo com a discriminação por ser mulher e pela sua cor, Aída fez
história no atletismo brasileiro, mas destaca que: “consegui muita coisa no esporte, mas tenho
certeza de que seria muito mais reconhecida se não fosse negra” (ALEIXO, 2015).
138
Aída dos Santos conquistou a quarta colocação no salto em altura, a melhor performance
individual do Brasil na Olimpíada de Tóquio, em 1964. Logo na sua chegada, recebeu atenção
da imprensa e resolveu apontar as dificuldades encontradas em Tóquio, destacando a falta de
apoio recebido pelo governo. A entrevista é publicada com a manchete de: “Aída diz que Brasil
deve apoiar os atletas” (Jornal dos Sports, 1964). O Brasil se encontrava em um regime
autoritário em decorrência do Golpe civil-militar de 1964, onde críticas ao governo não eram
bem recebidas. O ambiente político brasileiro não impediu de Aída contar sua experiência em
detalhes em uma entrevista para o Jornal dos Sports, e sua história ganhou destaque no jornal,
em uma matéria especial de página inteira com fotos e a manchete: “Aída é a quarta do mundo
e a Salvadora da Pátria”.
Aída dos Santos relatou que ficou sozinha durante a competição, sem técnico e
intérprete, que não recebeu o uniforme e o material adequado para a competição, e que o Comitê
Olímpico Brasileiro (COB) esqueceu de fazer sua inscrição para receber o sapato adequado
para a competição, destacando que só contou com o apoio da delegação cubana, que a ajudou
a conseguir um sapato, que não era o adequando, causando uma torção, que foi cuidada por um
médico cubano. Aída e seus companheiros de clube consideram que ela foi subestimada pela
COB.
Aída foi excluída por seu gênero e raça de forma velada. Antes mesmo da competição,
ela e outra atleta negra, Maria Cipriano, tiveram que passar por cinco eliminatórias, mesmo já
possuindo o índice olímpico; somente Aída atingiu o perfil exigido pela COB, sendo assim a
única mulher na delegação brasileira (BARBON, 2020). O regime militar não desejava chamar
atenção para as questões raciais, negava o racismo e acusava quem insistia em falar sobre o
assunto de querer causar divisões entre os brasileiros. O apoio dos cubanos também causava
mal-estar com o governo, já que o regime se opunha ao governo comunista, além de escancarar
a falta de companheirismo entre os brasileiros, indo de encontro ao discurso nacionalista do
governo. Aída foi convocada para as Olimpíadas de 1968, mas cortada da Olimpíada de 1972,
mesmo possuindo índice, e ela considera que isso foi uma punição pelas entrevistas em que
criticou a falta de apoio do governo. O recrudescimento do regime com o AI-5, no final de
1968, intensificou a perseguição e a censura aos opositores e críticos do governo – e
comprometeu a trajetória de Aída (FARIAS, 2011).
Orientações didáticas
140
A quarta e última etapa do projeto tem como objetivo finalizar as discussões levantadas
durante o ano e proporcionar, aos estudantes, o máximo de espaço para o seu protagonismo,
focando no estudo de mulheres negras e nas suas táticas para denunciar o preconceito e
transformar a vida dos negros e das negras no País. Os discentes produzirão narrativas,
selecionando os sujeitos e as histórias que desejam pesquisar, sendo incentivados a
compartilhar, com o maior número possível de pessoas, o seu conhecimento sobre a
desigualdade racial e a luta da população negra por mudanças.
Como preparação para iniciar os debates sobre a desigualdade racial no período da
ditadura civil-militar, proponho que o professor passe para os estudantes uma pesquisa sobre as
questões raciais desse período. Destaco que a investigação será sugerida após a aula sobre o
golpe civil-militar de 1964. Um de nossos objetivos será construir o entendimento de que o
governo autoritário irá desmantelando as instituições democráticas ao longo dos anos no poder,
de modo que resistências aos desmandos militares ainda eram observadas no início do regime,
como é o caso da atleta Aída dos Santos. As perguntas devem servir de base para “Discutir os
processos de resistência e as propostas de reorganização da sociedade brasileira durante a
ditadura civil-militar” (EF09HI20) (BRASIL, 2018, p. 431), como: qual a posição do regime
militar sobre a desigualdade racial da sociedade brasileira? Caracterize a democracia racial,
conceito aceito pelo governo. Qual o tratamento do governo ditatorial a grupos e militantes
ligados às questões raciais?
Na aula seguinte, os discentes devem ser incentivados a compartilharem suas respostas,
iniciando um debate. O professor deve anotar na lousa os principais pontos, formando um
quadro sintético das questões raciais no período em estudo. Após esse primeiro momento, os
alunos devem ter contato com a fonte e fazer uma leitura coletiva. O professor deve fazer
algumas perguntas para fomentar a análise da fonte a partir da discussão prévia sobre as
questões raciais. Quais as dificuldades encontradas por Aída dos Santos na Olimpíada de
Tóquio? Por que o governo brasileiro não apoiou a atleta em questão? Como você acha que o
governo reagiu à matéria? Você acha que depois da implementação do AI-5, em 1968 o jornal
publicaria a mesma matéria? Pensando o contexto das relações internacionais brasileiras, qual
o significado da ajuda cubana a uma atleta brasileira? Hoje em dia, ainda acontecem casos de
racismo no esporte brasileiro?
Aída dos Santos é um exemplo de uma atleta engajada na luta contra o preconceito no
esporte, ela aproveitou o espaço conquistado na mídia por suas conquistas individuais no
atletismo para denunciar os maus-tratos por causa do seu gênero e da sua cor. Como
desdobramentos das problematizações levantadas em sala de aula, recomendo que os estudantes
141
utilizem o espaço da escola para denunciar casos atuais de preconceito racial no esporte. Os
alunos, divididos em grupo, devem ter autonomia para pesquisar e decidir que episódio de
preconceito eles desejam evidenciar; os professores devem incentivar que os alunos busquem
casos que não receberam tanta atenção da mídia. Depois da pesquisa, os alunos devem
confeccionar cartazes descrevendo as situações e os seus desfechos.
Para dar visibilidade aos casos, os estudantes devem utilizar os espaços comunitários da
escola para construírem um mural no colégio que chame a atenção dos colegas para o
preconceito ainda predominante nos desportes brasileiros. Espero que os estudantes entendam
que eles devem utilizar seu conhecimento para exercer seu papel como cidadãos, denunciando
e reivindicando mudanças no País.
pelo dia da Consciência Negra, surgindo a ideia de criar um grupo de estudos sobre as questões
raciais no Maranhão.
Inspirados nas entidades negras criadas na Bahia, no Sul e Sudeste do país, no
movimento de libertação dos países africanos e na luta por direitos cíveis nos EUA, nasceu o
Centro de Cultural Negra do Maranhão (CCN). Junto com seus colegas, Mundinha iniciou um
trabalho de valorização da cultura negra na cultura e na política do estado. A entidade teve seus
encontros monitorados pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), demonstrando
que o regime autoritário não via com bons olhos os movimentos negros. Em 1985, o CCN
conseguiu uma sede própria no antigo mercado dos escravos. Mundinha participou de uma série
de encontros e congressos organizados pelo Movimento Negro, construindo uma rede de
sociabilidade. Como professora, o foco principal de Mundinha no Movimento Negro foi a
educação: ela se dedicou à pesquisa da história do negro no Maranhão no Arquivo Público do
Maranhão; com seu estudo, organizou, com a CCN, diversas palestras e oficinas em escolas;
publicou diversos livros, como Breve Memória das Comunidades de Alcântara (1990) e
Insurreição de Escravos em Viana (1994) e produziu material didático sobre a população negra.
A CCN também criou o projeto Vida de Negro, voltado para o mapeamento das
comunidades quilombolas do Maranhão. Como jornalista, Mundinha denunciou os conflitos
envolvendo as terras quilombolas. A CCN organizou os Encontros Estaduais das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas, importantes para a organização e a integração dos quilombos do
estado em sua luta pela regulamentação de suas terras. As questões agrarias do Maranhão foram
apresentadas em 1986 na I Convenção Nacional do Negro pela Constituição. Com toda a
mobilização, foi conquistada a titulação das terras para as Comunidades Negras Rurais. Em
1984, Mundinha criou o bloco afro Akomabu, com objetivo de valorizar a cultura negra e
ampliar o número de participantes da CCN. Em 2014, Mundinha de Araújo recebeu o título
Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual do Maranhão por sua militância no
Movimento Negro.
143
Fonte 15: Apresentação do volume 1 da Cartilha Esta História eu não conhecia. Arquivo pessoal da Prof.ª Maria
Raimunda Araújo (Mundinha). Apud: SOUZA, Geraldyne Mendonça de. Trajetórias de lutas negras pela
educação: Uma inspiração em Mundinha de Araújo. Dissertação (Mestrado Profissional) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2018.
144
FONTE 16: Primeira página do volume 1 da Cartilha Essa História eu não conhecia. Arquivo pessoal da Prof.ª
Maria Raimunda Araújo (Mundinha). Apud: COSTA, Antonio Henrique França. O CCN e o Ensino de História e
Cultura Afro- Brasileira e Africana. – Dissertação de mestrado- UEMA, 2016. p. 91
Para Mundinha, o objetivo principal do projeto era elevar a autoestima das crianças
negras, demonstrando a pluralidade da história, por isso a história destaca o protagonismo negro
na abolição da escravidão, focando na resistência e na luta dos africanos e afrodescendente, não
apontando somente episódios de violência e sofrimento. Na apresentação (FONTE 15), esses
objetivos já ficam evidentes, quando o texto é direcionado aos meninos negros e às meninas
negras, com o destaque dado a Palmares no topo da página e ao questionamento sobre as versões
que circulam nos livros de história. Na primeira página (FONTE 16), a história já inicia
denunciando o preconceito vivido por crianças negras na escola, a mãe diminuindo a
importância da Princesa Isabel no processo abolicionista e relatando a realidade do sistema
escravista para o filho.
Orientações Didáticas
1. Para quem o texto foi destinado? Quais elementos encontrados na leitura sustentam a sua
resposta?
2. Quais os objetivos da autora ao escrever esse texto?
3. Em que momento histórico esse texto foi escrito? De que maneiras as discussões
socioeconômicas e políticas do período atravessam o texto?
4. Quais as semelhanças e as diferenças entre esse texto e as narrativas didáticas tradicionais,
vistas em livros didáticos?
146
Lélia de Almeida nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerias, em 1935. Sendo a penúltima
dos dezoito filhos do casal Uranda Serafim, emprega doméstica de origens indígenas, e de
Acácio Almeida, operário negro. Aos sete anos se mudou para o subúrbio do Rio de Janeiro
147
com a família para acompanhar o irmão, Jaime, que se tornou jogador profissional de futebol.
Com o seu esforço e apoio da família, Lélia conseguiu concluir os estudos no renomado Colégio
Pedro II. Trabalhando como professora da educação básica, conseguiu pagar a faculdade,
formando-se em História, Geografia e Filosofia pela Universidade do Brasil, ambiente onde as
mulheres negras ainda sofriam discriminação. Na faculdade conheceu seu primeiro marido,
Luiz Carlos Gonzalez, assumindo seu sobrenome. Passou a ser professora universitária,
ingressando na classe média. Em entrevistas, Lélia destaca como, nesse período, passou por um
processo de branqueamento, alisando o cabelo e rejeitando sua condição como negra,
procurando ser aceita na família branca do esposo e na nova classe social que ocupava (RATTS,
2010).
Após seu segundo casamento, com Vicente Marota, homem negro, ela se aproxima do
candomblé e da cultura africana. Nos círculos universitários, ela passa a integrar grupos de
discussões feministas, marxistas e ligados ao movimento negro. Como vinha de família pobre
e ascendera à classe média, acabava possuindo a função de fazer a ponte entre os intelectuais
das academias e as classes populares (RIOS, 2014). Em 1976, Lélia funda o primeiro Curso de
Cultura Negra na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e ingressa no Instituto de Pesquisa
das Culturas Negras (IPCN/RJ). No dia 7 de junho de 1978, em São Paulo, funda, com seus
companheiros negros, o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial,
rebatizado posteriormente de Movimento Negro Unificado (MNU), entidade que é um marco
para a luta da população negra, atuando decisivamente na organização e a ampliação da luta
contra o racismo.
Na política, Lélia Gonzalez se filia ao Partido dos Trabalhadores, participando do
primeiro diretório nacional do PT. Em 1982, concorre à eleição para Deputada Federal,
tornando-se primeira suplente. Acaba rompendo com o PT em 1985, por considerar que o
partido não dedicava espaço suficiente para as temáticas raciais, muito menos para os problemas
específicos das mulheres negras, tema que lhe era muito essencial. Tal problema é apontado
por elas em diversos momentos da sua militância, pois a esquerda considerava que focar em
questões raciais ou gênero fragmentaria a luta da classe operaria. Em 1986, concorre novamente
à Deputada Federal, dessa vez pelo PDT.
Em 1988, Lélia Gonzalez participa do 1° Encontro Nacional de Mulheres Negras. Em
sua participação, reconhece as importantes conquistas do feminismo, mas critica o movimento
por não incluir pautas de interesse específicos das mulheres das classes populares,
especialmente as negras, afastando-as por não se sentirem representadas. Em sua exposição
apresenta o conceito de Amefricana, a ideia de que existe uma experiência em comum entre as
148
mulheres que participaram e são descendentes das diásporas africanas que vivem na América
Latina (CARDOSO, 2014). Por meio das trajetórias dessas mulheres, Lélia Gonzalez busca
compreender a constituição do racismo e as estratégias de resistência utilizadas pelas mulheres
negras, destacando-as como protagonistas da história do Brasil e da América Latina.
Lélia Gonzalez dedicou sua carreira à militância no Movimento Negro. Participou da
fundação do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (1975), escreveu diversos artigos sobre
a temática racial, publicados em jornais e revistas acadêmicas, e colaborou com a constituição
do grupo Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras, no Rio de Janeiro. Seu livro, Lugar do Negro
(1982), parceria com o sociólogo Carlos Hasenbalg, é uma referência acadêmica sobre o
assunto. A militante também se dedicou às conferências e viagens, principalmente para a África,
constituindo uma rede de parcerias com intelectuais do mundo inteiro. Lélia acabou falecendo
em 1994 em decorrência da diabete, mas deixou um legado de relevância inquestionável para
o Movimento Negro.
quando esta [Simone de Beauvoir] afirma que a gente não nasce mulher, mas que a
gente se torna (costumo retomar essa linha de pensamento no sentido da questão
racial: a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha, etc., mas tornar-se negra
é uma conquista). Se a gente não nasce mulher, é porque a gente nasce fêmea, de
acordo com a tradição ideológica supracitada: afinal, essa tradição tem muito a ver
com os valores ocidentais.
Orientações didática
A última fonte do projeto, para encerrar as discussões em sala de aula, possibilita que
os professores levantem problemáticas não somente sobre o racismo, mas também sobre o
movimento feminista, especificamente diálogos sobre o duplo preconceito que recaí sobre as
mulheres negras, permitindo “Discutir e analisar as causas da violência contra populações
marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com
vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às
pessoas” (EF09HI26) (BRASIL, 2018, p. 431). Lélia Gonzalez, como militante do Movimento
Negro, vai ter um papel fundamental nas discussões em torno da Constituição de 1988,
ressaltando a necessidade de políticas públicas direcionadas para os problemas das mulheres
periféricas, principalmente as negras.
Proponho que o professor inicie a aula com a leitura da fonte e incentive os estudantes
a compartilhar as suas interpretações sobre o trecho. O professor deve levantar uma série de
questões que ajudem a instigar a discussão dos discentes, dentre as quais, proponho: o que
significa dizer que não se nasce mulher, mas se tornar? O que você acha que a Lélia Gonzalez
quis dizer com “torna-se mulher negra é uma conquista”? O que é feminismo? Todas as
mulheres têm os mesmos problemas? Quais preconceitos costumam ser direcionados para as
mulheres negras? Como as mulheres negras costumam ser retratadas pela mídia? Como
podemos colaborar para a valorização das mulheres negras?
Com intuito dos estudantes colaborarem com a divulgação do protagonismo e da
resistência das mulheres negras brasileiras, sugiro que eles pesquisem biografias de mulheres
negras. Os próprios discentes devem escolher as mulheres que para eles representem melhor
sua geração e o período histórico que estão vivendo. Os alunos devem se dividir em grupos e,
depois, decidirem a mulher negra que desejam biografar. Com o apoio do professor, os grupos
devem pesquisar em jornais e livros para construir uma narrativa estruturada sobre a biografada,
150
com dados gerais sobre a sua vida, casos de preconceito, mudanças por elas desejadas para a
sociedade, os projetos que coordenam ou participam, etc. Os discentes podem produzir cartazes
que valorizem a história das mulheres e apresentar para a comunidade escolar no dia do evento
da Consciência Negra. É importante os estudantes também devem colocar a foto com a
biografia produzida por eles no espaço reservado do scrapbook, assim os discentes devem
colaborar com a construção do projeto, que sempre deve estar se modificando.
151
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ouvir os relatos de alunos que sofreram racismo fora da escola é enternecedor, mas,
como professora, presenciar esses casos dentro do ambiente escolar e não fazer nada é
inaceitável. Acredito na ideia de que a escola deve ser um local de transformação social, não de
reprodução dos erros da sociedade, como observamos acontecer cotidianamente, infelizmente;
entendo que a escola não está em uma redoma, mas sim inserida na sociedade, e que, nesse
contexto, tem como função proporcionar um espaço de formação cidadã para os jovens,
permitindo que eles desenvolvam habilidades e adquiram conhecimento para serem
interventores de sua realidade, incentivando que eles busquem construir uma sociedade mais
igualitária e solidaria.
Com o incômodo das minhas aulas de História não estarem contribuindo o suficiente
para melhorar as relações raciais em que meus alunos estavam envolvidos, decidi por me
dedicar a esse tema na pesquisa de mestrado. Para conhecer melhor os problemas enfrentados
pelos estudantes, apliquei um questionário baseado nas diretrizes para a educação étnico-racial.
As análises das respostas confirmaram algumas hipóteses, como o racismo sofrido em sala de
aula e a não efetivação da lei 10.639; também demonstrou outro problema, a dificuldade dos
alunos e das alunas em citarem sujeitos negros que se destacam em suas áreas de atuação,
demonstrando que uma boa parte dos estudantes só tem acesso ao discurso que criminaliza e
naturaliza a pobreza da população negra, sem serem apresentados aos negros e às negras que
sejam referências positivas para sua formação.
Com essas informações, decidi propor a utilização de biografias de sujeitos negros que
buscaram transformar a sociedade e modificar não só o seu futuro, mas o da população negra
no País como um todo, com o objetivo de os estudantes negros se verem representados nas aulas
de História, elevando suas autoestimas e incentivando todos os alunos e alunas a construírem
um projeto de vida que busque melhorias para sua realidade, ou seja, que interfiram na
sociedade procurando colaborar para a diminuição da desigualdade racial. Como metodologia,
propomos que os alunos tenham acesso às fontes produzidas pelos biografados ou sobre eles e
sejam incentivados a problematiza-las a partir de certos parâmetros historiográficos; assim, os
estudantes podem aprender sobre a construção do conhecimento histórico e entender a si
mesmos como sujeitos historicamente situados, agentes de mudança social.
Ao longo do processo de pesquisa, percebemos um esforço acadêmico de investigar e
de publicar biografias de negros e negras marcantes da história do Brasil, como a Enciclopédia
152
Negra (2021) escrita por Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz; o
livro À Procura Deles (2021), da historiadora Mary del Priore; e a iniciativa da Coleção
Personagens do pós-abolição (2020) da Universidade Federal Fluminense; entre outros. Todos
os textos, cada um com seu recorte, partem do mesmo pressuposto de que ocorreu um
silenciamento dos negros e das negras na escrita da história e têm como objetivo proporcionar
espaço para problematizar o protagonismo da população negra na história do Brasil. A proposta
do produto apresentado na segunda parte da dissertação permite levar essas discussões
acadêmicas para a sala de aula, amplificando o alcance das biografias e dos debates por elas
levantadas, em diálogo com a BNCC.
A proposta foi pensada antes do início da pandemia do Covid–19, cabe lembrar. O
contexto pandêmico dificultou a conclusão desta dissertação de várias formas. Ao contrário do
que foi dito por algumas Fake News, os professores nunca pararam seus trabalhos; na verdade,
a demanda dobrou ou até triplicou, visto que, desde o primeiro dia de quarentena, buscamos
pensar em maneiras de continuar o processo de ensino-aprendizagem, acompanhando os
estudantes à distância, não só no que condiz ao conteúdo escolar, mas também na
conscientização dos cuidados necessários para proteger a saúde deles e de seus familiares.
A necessidade de colocar em prática aulas em um ambiente virtual escancarou a
desigualdade de acesso dos alunos e das alunas de escolas públicas à tecnologia necessária para
estarem inseridos no universo on-line; professores e estudantes tiveram que se adaptar a uma
nova realidade para a qual ninguém estava preparado. Para além das questões tecnológicas,
professores, alunos e gestão escolar, infelizmente tiveram que lidar com as perdas de pessoas
importantes e com o medo constante de nos tornarmos vítimas dessa doença, preocupação que
só aumentou acompanhando a negligencia do Governo Federal com a população, sendo contra
as medidas de distanciamento, incentivando remédios ineficazes e propositalmente não
comprando as vacinas tão aguardadas pelos brasileiros e pelas brasileiras.
Pessoalmente, tive que parar a pesquisa em vários momentos para me dedicar
exclusivamente à escola, colaborando para ajudar meus colegas nas ferramentas tecnológicas,
acompanhar - mesmo que a distância - familiares doentes, dar assistência ao meu pai idoso, que
felizmente não contraiu a doença, cuidar da minha própria saúde, quando contraí Covid-19,
logo após as aberturas das escolas particulares, quando meu esposo, mesmo sem vacinação,
teve que retornar ao trabalho presencial. Todos esses momentos, além do cansaço físico e
emocional, contribuíram para que a pesquisa e a escrita da dissertação fossem estendidas.
Mesmo incorporando algumas tecnologias da informação e da comunicação nos
desdobramentos das discussões, ainda acreditamos que o ambiente da sala é o melhor local para
153
colocar em prática o projeto, pois incentivamos o contato com as fontes, os debates presenciais
e os trabalhos em grupos; felizmente, no Estado do Ceará ocorreu um avanço significativo no
processo de vacinação entre os adolescentes, uma queda substancial nas taxas de contágios e
de internamento, proporcionando a permissão para o retorno de 100% dos estudantes, de modo
que esperamos que em breve o projeto possa ser colocado em prática em sua completude.
154
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31 de outubro de 1964. Disponível em:
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Fonte 15: Apresentação do volume 1 da Cartilha Esta História eu não conhecia. Arquivo
pessoal da Prof.ª Maria Raimunda Araújo (Mundinha). Apud: SOUZA, Geraldyne Mendonça
de. Trajetórias de lutas negras pela educação: Uma inspiração em Mundinha de Araújo.
Dissertação (Mestrado Profissional) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.
Fonte 16: Primeira página do volume 1 da Cartilha Essa História eu não conhecia. Arquivo
pessoal da Prof.ª Maria Raimunda Araújo (Mundinha). Apud: COSTA, Antonio Henrique
França. O CNN e o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana. –
Dissertação de mestrado- UEMA, 2016. p. 91.
2 - Na sua opinião, pessoas que vivem no Brasil e se identificam como brancas descendentes
de europeus; como negras descendentes de africanos, ou como descendentes de indígenas...
a) Possuem uma mesma cultura e história, pois hoje somos todos brasileiros;
b) Possuem cultura e história próprias, igualmente valiosas;
c) Possuem cultura e história próprias, sendo mais importante a herança dos portugueses
colonizadores.
3 – Muitos estudiosos afirmam que a sociedade brasileira é marcada pela desigualdade social
e econômica, havendo predomínio de pessoas brancas entre os grupos privilegiados. Na sua
visão, qual o motivo do insucesso de tantos negros?
a) Os preconceitos enfrentados pelos negros desde o tempo da escravidão.
b) Falta de competência e de interesse dos negros.
c) Não existe nenhuma relação entre a desigualdade econômica e a origem étnico-racial da
pessoa, já que todos temos as mesmas oportunidades e chances de alcançar o sucesso.
5 – Você considera que a política de distribuição e cotas raciais para ingressar nas
universidades e concursos públicos
a) Injusta, pois dar privilégio aos negros prejudica os brancos.
b) Injusta, pois quem tem interesse e capacidade não precisa de ajuda.
c) Justa, pois é uma forma de reparar as injustiças sofridas pelos negros no passado.
d) Justa, pois compensa os negros pelo preconceito e desigualdades nos dias atuais.
6 - Você considera que as disciplinas e projetos desenvolvidos na escola procuram valorizar e
divulgar a Cultura e a História Afro-Brasileira e Africana?
( ) Sim ( ) Não
170
10 – Cite o nome de algumas personalidades negras que se destaquem nas artes, nas ciências,
na política e na sociedade. Cite também o nome de alguma personalidade negra nascida em
seu Estado.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
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171
– Minha mãe era africana, meu pai de raça índia; mas eu de cor fusca. Era livre, minha mãe era escrava.
Eram casados e desse matrimônio, nasci eu. Para minorar os castigos que este homem cruel infligia
diariamente à minha pobre mãe, meu pai quase consumia seus dias ajudando-a nas suas desmedi¬das
tarefas; mas ainda assim, redobrando o trabalho, conseguiu um fundo de reserva em meu benefício.
Um dia apresentou a meu senhor a quantia realizada, dizendo que era para o meu resgate. Meu senhor
recebeu a moeda sorrindo-se – tinha eu cinco anos – e disse: A primeira vez que for à cidade trago a carta
dela. Vai descansado.
Custou a ir à cidade; quando foi demorou-se algumas semanas, e quando chegou entregou a meu pai uma
folha de papel escrita, dizendo-lhe:
– Toma, e guarda, com cuidado, é a carta de liberdade de Joana. Meu pai não sabia ler; de agradecido
beijou as mãos daquela fera. Abraçou-¬me, chorou de alegria, e guardou a suposta carta de liberdade.
Então furtivamente eu comecei a aprender a ler, com um escravo mulato, e a viver com alguma liberdade.
Isso durou dois anos. Meu pai morreu de repente, e no dia imediato meu senhor disse a minha mãe:
– Joana que vá para o serviço, tem já sete anos, e eu não admito escrava vadia.
Minha mãe, surpresa, e confundida, cumpriu a ordem sem articular uma palavra.
Nunca a meu pai passou pela ideia, que aquela suposta carta de liberdade era uma fraude; nunca deu a ler
a ninguém; mas, minha mãe, à vista do rigor de semelhante ordem, tomou o papel, e deu-o a ler, àquele
que me dava as lições. Ah! Eram umas quatro palavras sem nexo, sem assinatura, sem data! Eu também
ali, quando caiu das mãos do mulato. Minha pobre mãe deu um grito, e caiu estrebuchando.
Sobreveio-lhe febre ardente, delírios, e três dias depois estava com Deus.
Fiquei só no mundo, entregue ao rigor do cativeiro.
Aqui ela interrompeu-se; agitou-lhe os membros um tremor convulso. A morte fazia os seus progressos.
De novo cheguei-lhe aos lábios a colher do calmante, que lhe aplicava, e pedi-lhe, não revocasse
lembranças dolorosas que a podiam matar.
– Ah! Minha senhora, começou de novo, mais reanimada – apadrinhe Gabriel, meu filho, ou esconda-o no
fundo da terra; – olhe se ele for preso, morrerá debaixo do açoite, como tantos outros, que meu senhor
tem feito expirar debaixo do azorrague! Meu filho acabará assim.
– Não, não há de acabar assim, – descansa. Teu filho está sob minha proteção, e qualquer que seja a
atitude que possa assumir esse homem, que é teu senhor, Gabriel não voltará mais ao seu poder.
Ela recolheu-se por algum tempo, depois tomando-me as mãos, beijou-as com reconhecimento.
– Ah! Se pudesse, nesta hora extrema ver meus pobres filhos, Carlos e Urbano!... Nunca mais os verei!
Tinham oito anos.
Um homem apeou-se à porta do Engenho, onde juntos trabalhavam meus pobres filhos – era um traficante
de carne humana. Ente abjeto, e sem coração! Homem a quem as lágrimas de uma mãe não podem
comover, nem comovem os soluços do inocente.
Esse homem trocou ligeiras palavras com meu senhor, e saiu.
Eu tinha o coração opresso pressentia uma nova desgraça.
A hora permitida ao descanso, concheguei a mim meus pobres filhos, extenuados de cansaço, que logo
adormeceram. Ouvi ao longe rumor, como de homens que conversavam. Alonguei os ouvi¬dos; as vozes
se aproximavam. Em breve reconheci a voz do senhor. Senti palpitar desordenadamente meu coração;
lembrei-me do traficante... Corri para meus filhos, que dormiam, apertei-os ao coração. Então senti um
zumbido nos ouvidos, fugiu-me a luz dos olhos e creio que perdi os sentidos.
Não sei quanto tempo durou este estado de torpor; acordei aos gritos de meus pobres filhos, que me
arrastavam pela saia, chamando-me: mamãe! Mamãe!
Ah! minha senhora! abriu os olhos. Que espetáculo! Tinham metido adentro a porta da minha pobre
casinha, e nela penetrando meu senhor, o feitor, e o infame traficante.
Ele, e o feitor arrastavam sem coração, os filhos que se abraçavam a sua mãe.
Gabriel entrava nesse momento. Basta, minha mãe, disse-lhe, vendo em seu rosto debuxados todos os
sintomas de uma morte próxima.
– Deixa concluir, meu filho, antes que a morte me cerre os lábios para sempre... deixa-me morrer
amaldiçoando os meus carrascos.
– Por Deus, por Deus, gritei eu, tornando a mim, por Deus, levem-me com meus filhos!
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GAMA, Luiz. Treze de maio. O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 mai. 1909, p. 3. Disponível em:
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pela educação: Uma inspiração em Mundinha de Araújo. Dissertação (Mestrado Profissional) –
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Primeira página do volume 1 da Cartilha Essa História eu não conhecia. Arquivo pessoal da Prof.ª Maria
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