Aula 11 - Ordem Pública À Luz Dos Direitos Humanos

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Revista Jurídica vol. 02, n°. 43, Curitiba, 2016. pp.

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UMA RELEITURA DA ORDEM PÚBLICA NO DIREITO


INTERNACIONAL PRIVADO À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS

A REREADING OF THE PUBLIC POLICY IN PRIVATE


INTERNATIONAL LAW IN THE LIGHT OF HUMAN RIGHTS

THIAGO ASSUNÇÃO
Doutorando em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito do
Largo São Francisco da Universidade de São Paulo – USP. Mestre em “Educação
para a Paz: Direitos Humanos, Cooperação Internacional e Políticas da União
Europeia” pela Universidade de Roma III. Bacharel em Direito pelo Unicuritiba.
Professor da graduação e pós-graduação dos cursos de Direito e Relações
Internacionais do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.

RESUMO
O reconhecimento dos direitos humanos a nível internacional, com a criação de
sistemas de proteção, trouxe uma centralidade para os direitos humanos, que
passaram a influenciar e a condicionar a aplicação do direito em todos os seus
âmbitos. O direito internacional privado, que tipicamente se caracterizava por
oferecer soluções normativas para conflitos de leis entre os Estados, vem s e
transformando e se adaptando a esta nova realidade. Um dos institutos mais
importantes da disciplina, o da ordem pública, poderia ganhar novos contornos à
luz dos direitos da pessoa humana, à medida que esses direitos ganham
importância e influenciam cada vez mais todos os ramos do direito internacional.
O presente artigo busca analisar, para além da função típica da aplicação da
exceção de ordem pública no conflito de leis, a sua função de promotora e
garantidora dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, na esteira
da teoria do Professor Jacob Dolinger. O foco do estudo é essencialmente a
busca de um conteúdo para o conceito de “ordem pública universal” trabalhada

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pelo jurista, a partir da reflexão sobre os valores essenciais da comunidade
internacional.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Internacional Privado; Direitos Humanos; Ordem


Pública.

ABSTRACT
The recognition of the human rights at international level, with the creation of
protection systems, brought a centrality to the doctrine of human rights, which
started to influence and impose conditions to the application of the law in all
spheres. The private international law, which is typically characterized by
offering regulatory solutions to conflicts of laws between states, has been
transforming and adapting to this new reality. One of the most important
institutes of discipline, public policy, could gain new dimensions in the light of the
rights of the human person, as these rights emerge in importance and are
increasingly influencing all branches of international law. This article seeks to
analyze, beyond the typical function of the public policy exception , used in the
conflict of laws, its possible role of promoter of internationally recognized human
rights, in the wake of the theory of Professor Jacob Dolinger. The focus of the
study is essentially a search for content to the concept of "unive rsal public order"
crafted by the jurist, departing from the reflection on the essential values of the
international community.

KEYWORDS: Private international law; Human Rights; Public Policy.

INTRODUÇÃO

Se Eric Hobsbawm chamou o século XX de a “era dos extremos”


(HOBSBAWM, 1995), e Bobbio tenha se referido à “era dos direitos” (BOBBIO,
2004), é possível que o século XXI seja um dia conhecido com a “era dos

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direitos humanos”. Já no início deste novo milênio, com os atentados às torres
gêmeas, ocorre uma amostra dos sérios desafios que devem ser enfrentados
nas décadas seguintes.
O retorno, nos dias atuais, do terrorismo fundamentalista em larga
escala; os renovados episódios de racismo e xenofobia explícitos; os confrontos
ideológicos gerados pela busca do reconhecimento de novos direitos; a luta pela
igualdade de gênero e o combate ao tratamento discriminatório contra pessoas
de diferentes orientações sexuais; os desafios ambientais cada vez mais
urgentes e de difícil solução; e ainda, o estremecimento das democracias
modernas através de questionamentos populares e protestos contra o mal uso
do poder; tudo isso faz com que seja imperioso o fortalecimento da proteção
internacional dos direitos humanos, que se não “pretende ser uma cosmovisão
ou abranger todas as facetas da vida social” (CARVALHO RAMOS, 2012,
p.156), por outro lado “la dottrina dei diritti umani ha contribuito, e ancora
contribuisce, nella comunità mondiale, a dare um impulso straordinario al
rispetto dela dignità di tutti gli essere umani” (CASSESE, 2008, p. 138).
A pós-modernidade trouxe novos elementos a mover o direito em
direção a uma interpretação mais fluida e mais atenta às diversidades. O papel
dos direitos humanos seria, assim, representar o amálgama que mantém unidos
os diversos ordenamentos jurídicos nacionais, por elementos comuns que
garantam um mínimo de coesão e de respeito a valores essenciais,
estabelecidos internacionalmente através de intenso e incessante diálogo.
Neste sentido, o direito internacional privado não fica imune à
centralidade dos direitos humanos. De fato, como assevera o Professor André
de Carvalho Ramos, seria “um truísmo a afirmação da necessidade do Direito
Internacional Privado respeitar os direitos humanos, pois todo o ordenamento
jurídico internacional – e nacional – deve respeito a essa nova centralidade”
(CARVALHO RAMOS, 2015).
Por outro lado, é preciso que haja muito cuidado na interpretação desses
direitos. Com efeito, é na interpretação dos direitos que se opera a aplicação das
normas garantidoras dos direitos humanos. Quanto ao Direito Internacional Privado,
afigura-se necessário aprofundar o estudo da existência de direitos reconhecidos a

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nível internacional e sua relação com a disciplina, que possui boa parte do seu
conteúdo normativo de caráter tipicamente nacional, mas que sofre cada vez mais
tentativas de uniformização.
É assim que este artigo busca tratar do conceito de ordem pública no direito
internacional privado, resgatando a teoria do Professor Jacob Dolinger que defende
uma “ordem pública verdadeiramente internacional”, analisando o que poderia ser o
conteúdo dessa “nova” ordem pública, a partir da construção e crescimento do
Direito Internacional dos Direitos Humanos.

2 ORDEM PÚBLICA INTERNA E ORDEM PÚBLICA NO DIREITO


INTERNACIONAL PRIVADO

O princípio da ordem pública é consagrado no direito e utilizado de


maneira ampla no mundo todo. Possui uma função primordial que pode ser
interpretada como “amortecedora”, fazendo a mediação quando o conflito de
leis, tanto no âmbito interno como no direito internacional, possa ferir valores
essenciais da sociedade em questão. Afasta, por conseguinte, a norma que não
se coaduna com esses valores.
No direito interno, a ordem pública é entendida como um princípio que
limita a autonomia privada das partes, que não podem contrariar regras de
direito público consideradas cogentes (BASSO, 2013, p.319). Para Valladão
(1971), quanto aos tipos de ordem pública,

Essa distinção entre ordem pública interna e externa ou internacio nal


foi levada ao último extremo por Bustamante, com suas três categorias
de lei, de ordem privada, dispositivas, dependentes da autonomia da
vontade, de ordem publica interna, extraterritorial, aplicáveis em razão
do domicílio ou da nacionalidade, e de ordem pública internacional,
territoriais, que sujeitam todos os habitantes do território.

Já no Direito Internacional Privado, a ordem pública atua de modo a


impedir “a aplicação de leis estrangeiras, o reconhecimento de atos realizados
no exterior e a execução de sentenças proferidas por tribunais de outros países,

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constituindo-se no mais importante dos princípios da disciplina” (DOLINGER,
2014, p.418).
A primeira noção de ordem pública teria surgido com Bártolo, quando fez
distinção entre os “estatutos odiosos” dos “estatutos favoráveis”, sendo que os
primeiros não poderiam ser aplicados fora de onde tivessem sido aprovados,
por indesejáveis (DOLINGER, 2014, p.421). Em um dos mais antigos
posicionamentos sobre o tema, o Professor de Harvard e Juiz da Suprema Corte
norte-americana Joseph Story (2014, p. 414), comenta:

Nación alguna puede ser justamente requerida a ceder sus


conveniencias políticas e instituciones fundamentales en favor de las
de otra nación. Mucho menos puede nación alguna ser requerida á
sacrificar sus intereses a favor de otra, ó á (sic) practicar doctrinas que,
en un concepto moral ó político sean incompatibles con su seguridad ó
felicidad, ó con su conciencia de la justicia y del deber.

Savigny, quando trata da sua famosa formulação da comunidade de


direitos dos povos, fala de “leis absolutas” ou “leis de natureza positiva
rigorosamente obrigatórias”, as quais não se enquadravam em sua teoria da
comunidade internacional. Para Dolinger, o mestre alemão já trazia assim a
noção do que mais tarde se chamou de ordem pública no direito internacional
(DOLINGER, 2014, p.418).
Assim, a ordem pública internacional possui um forte componente
nacionalista ou territorialista. Para Dolinger, “a característica essencial do
princípio da ordem pública no DIP é a sua natureza nacional, em defesa de
interesses internos contra leis estrangeiras inassimiláveis, o que tem
ocasionado em certo exagero na sua utilização” (DOLINGER, 1986, p. 208).
Quanto à dificuldade de definição do instituto, deve-se chamar atenção
para o fato de que o princípio da ordem pública possui natureza complexa, não
se limitando a um conteúdo estritamente jurídico, mas possui uma “natureza
filosófica, moral, relativa, alterável e, portanto, indefinível” (DOLINGER, 1986, p.
209). Para Maristela Basso,

[...] a ordem pública estabelece imediatamente um conjunto de regras


e princípios cuja obediência o Estado impõe para que haja harmonia

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entre ele mesmo e os indivíduos, em salvaguarda de interesses
substanciais da sociedade (BASSO, 2013, p.320).

Efetivamente, toda vez que se fala em ordem pública, se mencionam


elementos normalmente estranhos à dogmática jurídica, como por exemplo a
“moral” e os “bons costumes”. Para Dolinger, a ordem pública do Direito
Internacional Privado representa a “moral básica de uma nação” (BASSO, 2013,
p.321). Como lembra Bruno Miragem, a moral foi separada do direito pelo
positivismo de Hans Kelsen, mas não há como negar um componente moral no
direito internacional, já que “ao incidir sobre relações entre Estados e
indivíduos, diz respeito à relação das culturas e o modo de vislumbrar o mundo
desses mesmos indivíduos” (MIRAGEM, 2005, p.310). Tudo isso envolve o
estudo, por consequência, da cultura dos povos, seu conjunto de crenças e
valores, pois é o que caracteriza os elementos característicos de uma dada
comunidade nacional, o que influencia o que será considerado ou não “ordem
pública” para cada comunidade. Já Vasconcelos aduz que o surgimento do
conceito de ordem pública no âmbito do direito internacional privado se deve à
necessidade de se proteger uma “moralidade fundamental” dos ordenamentos
nacionais. Seria um “resguardo de um núcleo moral inegociável de determinado
ordenamento”, um modo de se garantir os “valores essenciais do foro”
(VASCONCELOS, 2014, p.223).
Uma das questões mais difíceis se dá na tentativa de se definir o
conteúdo dessa ordem pública, restando esta tarefa ao arbítrio do magistrado
na análise de cada caso. Eis uma importante característica da ordem pública,
que seria a “relatividade”. Vasconcelos critica o excesso de discricionariedade
que esta situação comporta, para em seguida defender como necessária e
inevitável uma flexibilidade espaço-temporal (VASCONCELOS, 2014, p.224).
Lembra, no entanto, que apenas o conteúdo da ordem pública é de certa forma
discricionário, já que a aplicação do instituto, quando devida, trata-se de um
dever e não de uma opção do julgador (VASCONCELOS, 2014, p.225).
Ademais, nota-se um forte componente social na determinação do
conteúdo da ordem pública, já que o aplicador do direito deve perscrutar a
“mentalidade e (...) sensibilidade médias de determinada sociedade em

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determinada época” (DOLINGER, 2014, p.412). Absolutamente móvel, fluido,
portanto, o conteúdo do princípio da ordem pública internacional, que depende
essencialmente de qual comunidade jurídica pretende aplica-lo ou não, e em
relação a qual norma estrangeira colidente. Portanto, a decisão de aplicação da
norma estrangeira deverá sempre passar pelo filtro que garante que esta norma
não fere valores sociais, econômicos, políticos e culturais do local do foro.
No direito brasileiro, é o art. 17 da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro que rege a ordem pública no direito internacional. O texto
menciona três hipóteses em que a lei estrangeira não terá eficácia no Brasil:

[...] as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer


declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando
ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes
(BRASIL, 1942). (grifos nossos).

Na prática, quando a lei estrangeira é considerada inadmissível por


contrariar a ordem pública interna, será aplicada a lex fori. O efeito da aplicação
da exceção de ordem pública será positivo ou negativo. Positivo se a lei
estrangeira for contra algo que não pode ser proibido segundo a lei local. Um
exemplo seria se a lei estrangeira proibisse o casamento inter-racial, o que por
óbvio contrariaria frontalmente a legislação brasileira, a qual, nesse caso se
imporia. Por outro lado, o efeito seria negativo, se a lex fori buscasse proibir o
que a lei estrangeira autoriza. Exemplo clássico seria o de poligamia, inadmitido
pelo ordenamento jurídico brasileiro (DOLINGER, 2014, p.415).
Dolinger critica a redação do art. 17, que já constava na antiga Lei de
Introdução ao Código Civil de 1917. Para ele, citando vários outros
doutrinadores, a menção à “soberania nacional” seria supérflua (AMILCAR DE
CASTRO, 1977 apud DOLINGER, 2014, p. 429). Já quanto aos “bons
costumes”, Clóvis Beviláqua considera que se referem a princípios jurídicos
inspirados pela moral, o que vai de encontro à tradição inglesa, que traz como
conteúdo da ordem pública “fundamental conceptions of English justice” ou
“conceptions of morality” (CLÓVIS BEVILÁQUA, 1897 apud DOLINGER, 2014,
p. 429).

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No nosso sistema, recai frequentemente sob o Judiciário o papel de
determinar qual a lei aplicável nos casos de conflitos de leis. Assim, é pelas
mãos dos magistrados que ganha conteúdo o princípio da ordem pública.
Denota-se tendência à utilização frequente do instituto no Brasil. Dolinger
aponta que isso se dá muitas vezes por um sentimento “chauvinista” do
aplicador do direito, ou mesmo para facilitar a apreciação da matéria em exame,
aplicando-se a mais conhecida lei local em detrimento do direito estrangeiro
(DOLINGER, 2014, p.412), o que demandaria um estudo mais refinado e
laborioso.
Importante ressaltar que muitos tratados de direito internacional privado
trazem em seu texto a exceção de ordem pública. É o caso do Tratado de Lima
de 1878; passando pela Convenção da Haia de 1955 para Regular os Conflitos
entre a Lei Nacional e a Lei do Domicílio; as Convenções aprovadas nas
Conferências Interamericanas de Direito Internacional Privado, entre 1975 e
1994; e ainda, a Convenção de Roma de 1980 sobre a Lei Aplicável às
Obrigações Contratuais no âmbito da Comunidade Europeia, entre outros.
Recorrente e consagrado, portanto, o uso do instituto.
Ao comentar alguns casos de aplicação da ordem pública internacional
na jurisprudência comparada, Dolinger cita o “repúdio” do marido contra a
mulher com ele casada, prática comum nos países muçulmanos do norte da
África e aceito pelos tribunais desses países. A jurisprudência francesa admitia
a aplicação desse instituto para imigrantes desses países, residentes na
França, afirmando que não violaria a ordem pública francesa. No entanto, nos
últimos anos houve uma guinada na interpretação dos tribunais franceses, que
passaram a inadmitir o reconhecimento das sentenças que homologam o
repúdio, oriundas de tribunais religiosos, com fundamento na ordem pública
francesa (nitidamente móvel, portanto), bem como na Convenção Europeia de
Direitos Humanos (DOLINGER, 2014, p.440).

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3 ORDEM PÚBLICA “VERDADEIRAMENTE INTERNACIONAL” OU “ORDEM
PÚBLICA UNIVERSAL”

Jabob Dolinger delineia pela primeira vez a sua teoria sobre a ordem
pública internacional em seu livro de 1979 intitulado “A Evolução da Ordem
Pública no Direito Internacional Privado” (DOLINGER, 1979). A obra faz extensa
e pormenorizada análise do instituto, mas apenas ao final, de forma incipiente,
esboça sua tese de que estaria se constituindo uma “ordem pública
verdadeiramente internacional” ou “ordem pública universal”.
Primeiramente, o autor pontua diversos posicionamentos doutrinários
estrangeiros que tratariam da ordem pública na sua esfera internacional, mas na
realidade estariam se referindo, tanto aos direitos internos de diferentes países,
que coincidem em proibir certas práticas; como ao campo do direito
internacional público que disciplinaria a conduta dos Estados. Exemplos antigos
seriam a proibição e combate à pirataria, tráfico de escravos e ao “mercado de
brancas” (DOLINGER, 1979, p.243), normas que ou foram sendo aprovadas de
forma isolada pelos Estados, ou acabaram se transformando em tratados com
intenção de uniformizar condutas.
É o que aconteceria com as normas de direito humanitário, limitadoras
das condutas nos conflitos armados, bem como normas de direito penal
internacional, que protegem interesses que os Estados tem em comum,
proibindo a prática de certos crimes internacionais, como o crime de guerra, os
crimes contra a humanidade, que configurando uma “ordem pública
internacional” (DOLINGER, 1979, p.243).
O Professor da UERJ ressalta que em algumas ocasiões se usou o
termo “ordem pública internacional” para designar situações onde teria havido
mera coincidência de ordens públicas de países de culturas e ordenamentos
jurídicos similares. Trata-se de fenômeno, segundo o autor, de “ordem pública
interna de efeitos internacionais, de caráter generalizado, coincidindo em alguns
ou muitos países que adotam a mesma filosofia e/ou se caracte rizam por
idêntica sensibilidade jurídica” (DOLINGER, 1979, p.246). No entanto, ele deixa
claro que nenhuma das hipóteses anteriores se trata da ordem internacional que

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está a vislumbrar. Os crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crime de
genocídio compõem, na sua opinião, uma ordem pública de fato internacional,
na medida em que violam “valores morais e princípios humanitários universais”
(DOLINGER, 1979, p.246). Mas a tutela contra os atos mais bárbaros cometidos
contra coletividades, bem como as violações da lei dos conflitos armados, não
encerram o conceito a que se pretende chegar, muito mais amplo e não limitado
à esfera penal.
Para esclarecer o que entende por esta ordem pública de alcance
mundial, Dolinger (1986, p.211) distingue em três graus o conceito de ordem
pública: o primeiro grau seria a ordem pública de direito interno, que como já
visto, estabelece que a autonomia das partes não é irrestrita, devendo se
coadunar com as normas cogentes de caráter público do ordenamento interno; o
segundo grau seria a ordem pública internacional, regra de direito internacional
privado que obsta a aplicação de leis, atos e decisões estrangeiras, por ferirem
valores nacionais, e o terceiro grau:

[...] é o que estabelece os princípios universais, nos vários setores do


direito internacional, bem como nas relações internacionais, servindo
aos mais altos interesses da comunidade mundial, às aspirações
comuns da humanidade (DOLINGER, 1986, p.212).

O ponto de distinção de uma ordem pública “verdadeiramente


internacional” se dá na medida em que ela atuaria no sentido oposto ao da
ordem pública, como entendida no direito internacional privado. A ideia é que
haveria não apenas interesses comuns entre os Estados, a ponto de criarem
circunstanciais tratados de direito internacional público, mas uma ordem pública:

Que comanda uma atitude uniforme de todos os membros


componentes da sociedade internacional (...) que está latente em
diversos tratados e organizações internacionais, especialmente aqueles
que objetivam disciplinar a macroeconomia internacional, que, se
entregue ao ‘laisser faire’ de cada um, levaria a humanidade a
situações incontroláveis, em que entendimentos políticos -militares
seriam impotentes para evitar a eclosão de conflitos armados
(DOLINGER, 1979, p.247).

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Nota-se nesta passagem as duas preocupação centrais do autor: tanto a
possibilidade de graves conflitos bélicos, originada da desordem político-militar
do sistema-mundo, quanto ao caos econômico, que poderia levar a
consequências de certa forma similares. Assim, a preocupação com a economia
política internacional ganha destaque, sendo considerada o ponto central de
equilíbrio ou caos nas relações internacionais. O almejado equilíbrio, portanto,
seria uma motivação para que haja uma regulação centrada em valores
essenciais comuns a todos os habitantes do planeta (DOLINGER, 1979, p.247).
É preciso contextualizar o momento que originou dita visão. Na década
de 1970 o mundo estava em plena Guerra Fria, com a polarização característica
entre Leste e Oeste, pregando cada qual seu modelo econômico-cultural, e
principalmente, em plena corrida armamentista entre as duas superpotências
(EUA e URSS). Se por um lado, o restante do mundo assistia atônito às duas
nações se digladiarem com ameaças veladas e a possibilidade de aniquilamento
total, de outro o ainda jovem sistema da Organização das Nações Unidas vivia
intensos debates e se buscava interpretar os diversos instrumentos de proteção
do ser humano que haviam sido criados, por aceitação expressa dos Estados,
mas em detrimento dos mesmos (PIOVESAN, 2000, p.196). Diante desse
quadro, Dolinger manifesta sua teoria de que:

[...] uma ordem pública de efeitos internacionais se curva diante de


uma ordem pública verdadeiramente internacional que exige dos
membros das Nações Unidas renunciar a determinadas regras e
tradições em pról (sic) do bem estar maior da comunidade internacional
(DOLINGER, 1979, p.248).

Assim, estaria se constituindo uma “nova” ordem pública, não mais


baseada na exclusão da aplicação da lei estrangeira, por um critério
territorialista apegado à soberania, mas uma ordem pública comum, global,
calcada em valores essenciais da comunidade internacional.

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4 CONTEÚDO DE UMA ORDEM PÚBLICA “UNIVERSAL” OU “VALORES
ESSENCIAIS DA COMUNIDADE INTERNACIONAL”

A ideia de que interesses maiores da comunidade internacional possam


ser levados em conta, a ponto de afastar a aplicação da lei nacional, apesar de
em um primeiro momento ser difícil de ser aceita, pode fazer algum sentido
quando se tem como base a construção histórico-cultural da proteção
internacional dos direitos humanos.
Mas antes, pretende-se identificar outras fontes de valores no direito
internacional que deveriam ser consideradas para a reflexão sobre uma ordem
pública “universal”. Argumenta-se no presente trabalho que quatro seriam as
esferas no direito internacional que contribuem com o conteúdo do que Dolinger
chamou de ordem pública “verdadeiramente internacional” ou “universal”, e que
poderíamos também chamar de “valores essenciais da comunidade
internacional”.
A primeira esfera seriam as normas do direito penal internacional que
proíbem os crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio,
consubstanciadas hoje no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal
Internacional. Essas normas constituiriam a “nova” ordem pública universal, na
medida em que tutelam interesses coletivos internacionais da mais alta
importância, sendo a resposta histórica a horrores cometidos e incapazes de
serem contidos pelo direito dos Estados 1. Atrocidades como estupros coletivos,
ataques deliberados à população civil, tortura, escravidão e extermínio de
grupos étnicos ou religiosos, os quais ferem gravemente a consciência jurídica
universal, tendo sido por este motivo criminalizados, na tentativa de que não
sejam repetidos.
O segundo manancial de valores que se destacariam do hodierno direito
internacional público, para abcdefgh compor um ethos universal, seriam
algumas disposições do direito internacional do meio ambiente , ramo do direito

1 Muitas vezes, são os próprios aparatos estatais que são utilizados para perpetrar as piores
barbaridades contra grupos de pessoas, minorias étnicas ou religiosas, em sangrentos conflitos e
guerras civis, onde governantes despóticos possuem interesses muito diversos dos almejados pela
população.

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internacional em franca expansão (SOARES, 2003, p.15). A partir da revolução
industrial e com o crescimento do comércio internacional, principalmente no
pós-segunda guerra, o planeta começou a sentir os efeitos da degradação
ambiental causada pelo homem, o que se intensificou a ponto de gerar sério
desequilíbrio dos ecossistemas, perda da biodiversidade terrestre e mais
recentemente, afetando de modo perigoso os sistemas climáticos do planeta,
com potencial futuro catastrófico. A imperatividade de uma resposta adequada
da comunidade internacional, diante dessas graves problemáticas, abre a
possibilidade para uma gradativa, cuidadosa e necessariamente bem regulado 2
afastamento pontual de certas normas nacionais, quando contrariarem
frontalmente o interesse maior da preservação das condições de habitabilidade
do planeta. Lembre-se, ademais, que o direito ao meio ambiente limpo e
saudável é por si só um direito humano reconhecido como tal por diversos
tratados, o que não afasta, no entanto, a especificidade e imprescindibilidade
desse direito que vem ganhando uma crescente proteção em âmbito
internacional. Importante exemplo seria a negociação em curso para se alcançar
um novo tratado pós Protocolo de Quioto, com o objetivo de combater o
aquecimento global decorrente da poluição atmosférica causada pelas
atividades humanas.
O terceiro componente encontraria suas fontes no direito comercial
internacional. Normas nacionais que ao serem aplicadas pudessem fazer
colapsar ou gerar sérios prejuízos à economia global, atingindo não apenas
corporações privadas, mas gerando encargos traumáticos a outros países e a
seus contribuintes, poderiam ser afastadas no momento da sua aplicação. Neste
ponto surge uma possível função da ordem pública universal: a que se refere
com a preocupação de uma nação não apenas com seus próprios interesses,
mas levando em consideração os interesses de toda a comunidade
internacional.

2 Fazem-se essas ressalvas para que não se pense que a quebra absoluta da soberania estatal
nesses casos possa ser feita de maneira absoluta ou desregrada. Fato é que o direito internacional
ambiental ainda deverá criar mecanismos para possibilitar que os interesses comuns da humanidade
sejam tutelados sem permitir o abuso de poder de algumas nações, nem o uso da justificativa
ambiental para mascarar interesses geopolíticos.

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Para Dolinger:

[...] a ordem pública interna de outros países deverá ser objeto da mais
cuidadosa atenção dos tribunais, e desde que não seja afetada a
ordem pública do foro, a ordem pública de outra comunidade será
tomada em devida consideração.

Neste sentido, cita-se interessante caso onde a Corte de Arbitragem da


Bulgária deixou de aplicar a lei nacional, pois ela colidiria com as regras
correntes do direito comercial internacional, em claro exemplo de inversão do
uso da ordem pública internacional como normalmente concebida:

Il s’agit em fait là de l’application inverse du concept d’ordre public tel


qu’il existe em droit internacional privé. Au lieu de refuser l’application
d’une règle etrangère jugée contravenir à l’ordre public du for, c’est la
regle de droit interne normalmente applicable qui cede le pas dans la
mesure où elle porte atteine aux normes fondamentales du monde
international des affaires (DOLINGER, 1979, p. 248).

Finalmente, o quarto e talvez mais importante componente gerador de


valores de uma ordem pública global seria o próprio Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Aqui, várias problemáticas se afiguram, a ponto de merecer
considerações mais detidas. Inicialmente, parte-se do pressuposto de que a
possibilidade de ser construída gradativamente, uma ordem internacional
baseada em valores aceitos de forma generalizada, fruto de interesses comuns
da humanidade, não se trata de mera utopia. É justamente o que vem
acontecendo há décadas com o surgimento e desenvolvimento do Direito
Internacional dos Direitos Humanos.
Uma primeira distinção a ser feita seria que a aplicação dos direitos
humanos internacionalmente reconhecidos, para eventualmente afastar a
aplicabilidade de uma lei nacional, com base no conceito de ordem pública, não
se confunde absolutamente com o já conhecido instituto do jus cogens. Este
busca alçar certos princípios gerais e direitos internacionalmente consagrados,
como a proibição à tortura e à escravidão, à uma categoria “superior” que não
admite derrogação, a não ser por outra norma da mesma natureza (FRIEDRICH,
2004 p.32). Nesse caso, a interpretação da norma que deve preponderar, por

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constituir jus cogens, é feita por tribunais internacionais com base no próprio
direito internacional, e não em normas nacionais, motivo pelo qual se trata de
típica matéria de direito internacional público, diferente por óbvio dos conflitos
de leis nacionais objeto deste estudo 3.
Outra observação importante diz respeito ao conceito de obrigações
erga omnes. Essas obrigações seriam deveres que os Estados possuem
perante a comunidade internacional de respeitar certos “valores essenciais”
(CARVALHO RAMOS, 2014, p.66). Trata-se de construção jurisprudencial da
Corte Internacional de Justiça, cujo precedente foi o caso Barcelona Traction
(CARVALHO RAMOS, 2014, p.66), no qual se decidiu que certas obrigações
que não sejam aquelas bilaterais e multilaterais clássicas, mas que os Estados
possuem perante todos os demais Estados, diante da importância de seu
conteúdo “essencial”. Inclui-se nessa ideia, segundo a Corte, “principles and
rules concerning basic rights of the human person” (CORTE INTERNACIONAL
DE JUSTIÇA, 1970), ou seja, os direitos humanos. Assim, o conceito de
obrigações erga omnes do direito internacional público seria paralelo
equivalente, mas não substituto ou coincidente, com o conceito de “ordem
pública universal” no direito internacional privado, já que se baseia igualmente
em “valores essenciais” da comunidade internacional. Mas são nitidamente
diferentes, pois de efeitos distintos, já que o primeiro visa pautar o
comportamento do Estado perante os demais Estados como um todo, enquanto
o segundo possui como objetivo, servir de parâmetro para dirimir os casos
particulares que ensejam conflitos de leis entre os Estados. Embora sejam
diferentes e possuam efeitos distintos, ambos os institutos podem ter como
fontes as normas internacionais de proteção dos direitos humanos, que seriam,
a bem dizer, a sua fonte principal, tanto no âmbito interno de cada jurisdição,
como no âmbito da comunidade das nações.
Certo é que a aplicação desses direitos, aceitos não raras vezes em
declaração solenes despidas de comprometimento efetivo, não se dá de forma
fácil ou uniforme. Mas a sua existência é, por definição, a expressão de um

3Para distinção pormenorizada entre os conceitos de Jus Cogens e Ordem Pública, vide
FRIEDRICH, 2004, p. 69.

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esforço da comunidade internacional de fazer valer certos padrões mínimos de
sobrevivência e convivência. Esses valores comuns de alcance global, além de
constituir um ramo próprio do direito internacional público, incidiriam sobre o
direito internacional privado, essencialmente nacional, apesar de sua tendência
à uniformização, através do instituto da ordem pública universal.
Seria inevitável considerar, por outro lado, que a ideia dos direitos
humanos serem reconhecidos como fonte da ordem pública universal, se
relaciona com a própria ideia de universalismo desses direitos, já que foram
eles considerados, já na Declaração Universal, como os direitos indispensáveis
para um convívio harmônico entre todos os povos e nações. Lembre-se que a
Declaração Universal dos Direitos Humanos foi construída a muitas mãos
através de um intenso debate, tendo em vista o multiculturalismo e as
diferenças (MIRAGEM, 2005, p.311). Ou seja, uma ordem pública “universal”
estaria necessariamente fundada no respeito a essas garantias mínimas
acordadas nas declarações e pactos internacionais que protegem valores
comuns.
Não há dúvidas, entretanto, que a caracterização pura e simples dos
direitos humanos como universais acarreta algumas controvérsias. Não são
poucos os que questionam esse caráter universal, revelando os opositores uma
preocupação com o respeito à diversidade cultural inerente às comunidades
humanas espalhadas pelo globo, com as mais variadas tradições e costumes.
Entretanto, tudo indica que o debate universalismo versus relativismo
está superado. Para o Prof. André de Carvalho Ramos, a saída seria um diálogo
cultural à luz dos direitos humanos. O necessário diálogo se daria tanto no âmbito
interno (no seio de cada cultura) quanto externo (entre as diferentes culturas), o que
geraria uma “revaloração dos próprios padrões de direitos humanos” (CARVALHO
RAMOS, 2012, p.161-162). Ademais, “nada impede que a maioria da população, ao
efetuar o diálogo interno e a interpretação iluminista, rejeite padrões universais de
direitos humanos” (CARVALHO RAMOS, 2012, p.162). No mesmo sentido,
complementa a Professora Flavia Piovesan:

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A abertura do diálogo entre as culturas, com respeito à diversidade e com
base no reconhecimento do outro, como ser pleno de dignidade e direitos, é
condição para a celebração de uma cultura dos direitos humanos, inspirada
pela observância do “mínimo ético irredutível”, alcançado por um
universalismo de confluência. Para tanto, essencial é o potencial
emancipatório e transformador do diálogo, em que o vértice não seja mais
marcado pela ideia do choque entre civilizações (“clash of civilizations”),
mas pela ideia do diálogo entre as civilizações (“dialogue among
civilizations”) (PIOVESAN, 2011).

Assim, a grande questão reside em se perguntar se é realmente


necessário negar a diversidade cultural inerente aos povos, para se afirmar a
existência de um mínimo essencial, necessário a uma vida decente para todo
ser humano do planeta.
No que diz respeito à terminologia, pode-se fazer uma crítica ao uso do
termo “ordem pública” no sentido aqui tratado, pois para haver “ordem” no
sentido de ordenamento jurídico, seria necessário o poder do Estado, cujo
monopólio do uso da força é legitimado pela necessidade da imposição das
regras a serem respeitadas indistintamente, na conhecida lição de Weber.
Sabe-se que uma das principais distinções entre o direito internacional e o
direito interno é a ausência de autoridade central do primeiro, capaz de fazer
valer coercitivamente suas normas. Entretanto, é preciso que se atente para a
construção gradativa, desde o pós-segunda guerra, de mecanismos e
instituições que constituem verdadeira ordem internacional ou, para usar um
termo mais atual, uma governança global. O que é relativamente novo, neste
sentido, é a afirmação cada vez mais recorrente de necessárias reformas e
fortalecimento dessa governança sistêmica mundial 4, a ponto de conseguir lidar
de forma mais adequada com problemas complexos e abrangentes, como por
exemplo, a questão das mudanças climáticas, cuja dificuldade de resposta
reside justamente no voluntarismo dos Estados. Assim, é possível que o estudo
de uma ordem pública “universal” ou “global” colabore ou mesmo se antecipe a

4Como o Relatório “In Larger Freedom: Towards Security, Development and Human Rights for All”,
publicado em 2005 pelo então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, onde propõe reformas no
Secretariado e no Conselho de Segurança da ONU; ou o Relatório final da Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (RIO+20) intitulado “O Futuro que Queremos”, onde se
defende reformas no sistema ONU para melhor atender os objetivos do desenvolvimento sustentável.

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essa tendência, contribuindo para inclusive moldar novos organismos e novas
autoridades decorrentes da necessária “nova governança global”.
Outra questão importante a ser considerada é a existência de blocos
regionais que produzem normas próprias, de caráter supranacional. É cada vez
mais claro que, pelo menos no âmbito da União Europeia, já se invocam regras
comunitárias que se sobrepõe aos ordenamentos jurídicos nacionais,
constituindo-se verdadeira ordem pública regional. Algumas das normas
comunitárias que fundamentam a autoridade das instituições europeias, como
os seus tratados constitutivos, bem como aquelas essenciais ao bom
funcionamento da união monetária, diante das mais de vinte economias
nacionais que a compõe, certamente se enquadrariam em uma noção de ordem
pública supranacional.
Ainda no caso do velho continente, e mais no que tange ao objeto deste
estudo, um importantíssimo instrumento de aglutinação do que poderia se
chamar de ordem pública regional seriam os direitos protegidos no âmbito da
Convenção Europeia de Direitos Humanos, que conteriam parte do que o
Conselho da Europa chama de “valores europeus”, juntamente com o estado de
direito e a democracia. Neste sentido, a jurisprudência da Corte Europeia de
Direitos Humanos cumpre a importantíssima tarefa de uniformizar e garantir
respeito a esses direitos no continente, atuando até mesmo, quando necessário,
de maneira contra-majoritária. No entanto, a ordem pública “universal” aqui
tratada seria mais do que um conjunto de valores comuns regionalizados, já que
a integração regional nasce através de interesses nacionais que coincidem para
certos fins, como o desenvolvimento econômico e a prevenção de conflitos,
enquanto a ordem pública global, como visto, se refere a “valores essenciais” de
toda a comunidade internacional. No caso da defesa dos direitos humanos pelos
sistemas regionais, ocorre que esses direitos coincidem, em sua quase
totalidade, aos já previstos no sistema global de proteção, havendo portanto,
justaposição protetiva, mas nada impede que futuros sistemas regionais se
baseiem em valores diferentes, não necessariamente os mesmos “valores
essenciais da comunidade internacional” de que se trata aqui.

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A necessidade de se pensar e construir uma ideia de valores essenciais
parece urgente, diante da ausência de referências que se vive com o advento
do que se chamou de pós-modernidade. Miragem reflete sobre este fenômeno,
que indica a “desconstrução de ideias modernas” em face da “sociedade da
informação”, onde “o sujeito pós-moderno busca alcançar a plena liberdade,
desregulamentada e nômade, através do reconhecimento da diferença”
(MIRAGEM, 2005, p. 313). O sentimento geral de incerteza desta condição nos
traz a uma “crise de legitimação”, gerando, através de um subjetivismo extremo,
o risco da “ausência de significação”. A pós-modernidade seria, portanto, “a
mistura de estilos, a descrença da razão e o desprestígio do Estado”
(MIRAGEM, 2005, p. 314).
Como resposta, os operadores do direito deverão estar sempre atentos
aos fundamentos axiológicos de aplicação das normas. A Constituição
desempenha um papel fundamental nos ordenamentos jurídicos internos, como
repositórios dos valores de cada povo, mas no âmbito internacional, apesar da
existência dos consagrados instrumentos de proteção dos direitos humanos,
ainda se está para construir mecanismos efetivos, inclusive de governança, para
que esses direitos sejam colocados em prática, mesmo quando os Estados
assim não o quiserem ou conseguirem.
A crise imigratória na Europa, e o número crescente de refugiados no
mundo, por exemplo, revela que não há mais como os Estados se
ensimesmarem em seus problemas domésticos, sem considerar as dificuldades
de outras nações. A resposta, no longo prazo, deverá ser um aumento
significativo da cooperação internacional, em todos os âmbitos, de modo que
um esforço coletivo seja feito para reduzir na raiz as causas dos conflitos, das
perseguições, da fome e da miséria, que geram os fluxos de grande contingente
de pessoas pelas fronteiras transnacionais.
A ordem pública se revestiria assim, para além da sua característica
exclusivista e negativa (na aplicação da lei estrangeira), de um caráter positivo
de promoção dos direitos humanos (MIRAGEM, 2005, p. 312.

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CONCLUSÃO

É possível que a ordem pública universal ou global, baseada em “valores


essenciais” da comunidade internacional, entre eles os direitos humanos, seja
cada vez mais aceita e utilizada pelo aplicador do direito no contexto da fluidez
transnacional do mundo atual.
O conteúdo dessa nova “ordem pública”, se é que assim se chamará no
futuro, do modo como trabalhado no presente estudo, de fato não é
absolutamente algo pronto e acabado, sendo ainda uma hipótese a ser mais
bem verificada e demonstrada, principalmente através da análise de casos
concretos e sua interpretação pelas cortes.
Para que se desenvolva efetivamente uma ordem pública que o
Professor Dolinger chama de “verdadeiramente internacional”, seria necessário
que os aplicadores do direito, em cada Estado, se abstenham de atentar apenas
e tão somente aos interesses nacionais do seu próprio país, mas quando
necessário, tenham a sensibilidade e coragem de considerar a proteção da
dignidade humana, e os efeitos das decisões para a comunidade internacional
como um todo. Quem sabe, como diz o jurista, “esta será uma nova comitas
gentium, em que os Estados considerarão os interesses dos outros Estados e
às vezes irão até ao ponto de sacrificar o cumprimento de suas próprias leis”
(DOLINGER, 1979, p.249).
Essa noção de alteridade, onde um Estado interpreta o direito de um
indivíduo não levando em consideração apenas o seu próprio interesse
nacional, mas “se colocando no lugar do outro”, possivelmente coloca em jogo a
ideia de nacionalidade tal como entendida hoje, na medida em que abre a
possibilidade para que passe a ser levado em consideração não sempre o
nacional em primeiro lugar, mas quiçá, cada vez mais, o ser humano e suas
necessidades, independentemente da origem nacional.
É possível, neste sentido, que a evolução da ordem pública como
estudada neste artigo represente uma mudança em gestação quanto ao próprio
papel do Estado no cenário internacional, cuja relativização da soberania vem
crescendo desde que a integração regional avançou de forma consistente nas

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últimas décadas, bem como encontra limites cada vez maiores com a assinatura
de acordos e tratados de proteção internacional dos direitos humanos, os quais
buscam garantir um ethos mínimo de convivência harmônica entre os povos.

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