Aula 11 - Ordem Pública À Luz Dos Direitos Humanos
Aula 11 - Ordem Pública À Luz Dos Direitos Humanos
Aula 11 - Ordem Pública À Luz Dos Direitos Humanos
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THIAGO ASSUNÇÃO
Doutorando em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito do
Largo São Francisco da Universidade de São Paulo – USP. Mestre em “Educação
para a Paz: Direitos Humanos, Cooperação Internacional e Políticas da União
Europeia” pela Universidade de Roma III. Bacharel em Direito pelo Unicuritiba.
Professor da graduação e pós-graduação dos cursos de Direito e Relações
Internacionais do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
RESUMO
O reconhecimento dos direitos humanos a nível internacional, com a criação de
sistemas de proteção, trouxe uma centralidade para os direitos humanos, que
passaram a influenciar e a condicionar a aplicação do direito em todos os seus
âmbitos. O direito internacional privado, que tipicamente se caracterizava por
oferecer soluções normativas para conflitos de leis entre os Estados, vem s e
transformando e se adaptando a esta nova realidade. Um dos institutos mais
importantes da disciplina, o da ordem pública, poderia ganhar novos contornos à
luz dos direitos da pessoa humana, à medida que esses direitos ganham
importância e influenciam cada vez mais todos os ramos do direito internacional.
O presente artigo busca analisar, para além da função típica da aplicação da
exceção de ordem pública no conflito de leis, a sua função de promotora e
garantidora dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, na esteira
da teoria do Professor Jacob Dolinger. O foco do estudo é essencialmente a
busca de um conteúdo para o conceito de “ordem pública universal” trabalhada
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pelo jurista, a partir da reflexão sobre os valores essenciais da comunidade
internacional.
ABSTRACT
The recognition of the human rights at international level, with the creation of
protection systems, brought a centrality to the doctrine of human rights, which
started to influence and impose conditions to the application of the law in all
spheres. The private international law, which is typically characterized by
offering regulatory solutions to conflicts of laws between states, has been
transforming and adapting to this new reality. One of the most important
institutes of discipline, public policy, could gain new dimensions in the light of the
rights of the human person, as these rights emerge in importance and are
increasingly influencing all branches of international law. This article seeks to
analyze, beyond the typical function of the public policy exception , used in the
conflict of laws, its possible role of promoter of internationally recognized human
rights, in the wake of the theory of Professor Jacob Dolinger. The focus of the
study is essentially a search for content to the concept of "unive rsal public order"
crafted by the jurist, departing from the reflection on the essential values of the
international community.
INTRODUÇÃO
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direitos humanos”. Já no início deste novo milênio, com os atentados às torres
gêmeas, ocorre uma amostra dos sérios desafios que devem ser enfrentados
nas décadas seguintes.
O retorno, nos dias atuais, do terrorismo fundamentalista em larga
escala; os renovados episódios de racismo e xenofobia explícitos; os confrontos
ideológicos gerados pela busca do reconhecimento de novos direitos; a luta pela
igualdade de gênero e o combate ao tratamento discriminatório contra pessoas
de diferentes orientações sexuais; os desafios ambientais cada vez mais
urgentes e de difícil solução; e ainda, o estremecimento das democracias
modernas através de questionamentos populares e protestos contra o mal uso
do poder; tudo isso faz com que seja imperioso o fortalecimento da proteção
internacional dos direitos humanos, que se não “pretende ser uma cosmovisão
ou abranger todas as facetas da vida social” (CARVALHO RAMOS, 2012,
p.156), por outro lado “la dottrina dei diritti umani ha contribuito, e ancora
contribuisce, nella comunità mondiale, a dare um impulso straordinario al
rispetto dela dignità di tutti gli essere umani” (CASSESE, 2008, p. 138).
A pós-modernidade trouxe novos elementos a mover o direito em
direção a uma interpretação mais fluida e mais atenta às diversidades. O papel
dos direitos humanos seria, assim, representar o amálgama que mantém unidos
os diversos ordenamentos jurídicos nacionais, por elementos comuns que
garantam um mínimo de coesão e de respeito a valores essenciais,
estabelecidos internacionalmente através de intenso e incessante diálogo.
Neste sentido, o direito internacional privado não fica imune à
centralidade dos direitos humanos. De fato, como assevera o Professor André
de Carvalho Ramos, seria “um truísmo a afirmação da necessidade do Direito
Internacional Privado respeitar os direitos humanos, pois todo o ordenamento
jurídico internacional – e nacional – deve respeito a essa nova centralidade”
(CARVALHO RAMOS, 2015).
Por outro lado, é preciso que haja muito cuidado na interpretação desses
direitos. Com efeito, é na interpretação dos direitos que se opera a aplicação das
normas garantidoras dos direitos humanos. Quanto ao Direito Internacional Privado,
afigura-se necessário aprofundar o estudo da existência de direitos reconhecidos a
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nível internacional e sua relação com a disciplina, que possui boa parte do seu
conteúdo normativo de caráter tipicamente nacional, mas que sofre cada vez mais
tentativas de uniformização.
É assim que este artigo busca tratar do conceito de ordem pública no direito
internacional privado, resgatando a teoria do Professor Jacob Dolinger que defende
uma “ordem pública verdadeiramente internacional”, analisando o que poderia ser o
conteúdo dessa “nova” ordem pública, a partir da construção e crescimento do
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
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constituindo-se no mais importante dos princípios da disciplina” (DOLINGER,
2014, p.418).
A primeira noção de ordem pública teria surgido com Bártolo, quando fez
distinção entre os “estatutos odiosos” dos “estatutos favoráveis”, sendo que os
primeiros não poderiam ser aplicados fora de onde tivessem sido aprovados,
por indesejáveis (DOLINGER, 2014, p.421). Em um dos mais antigos
posicionamentos sobre o tema, o Professor de Harvard e Juiz da Suprema Corte
norte-americana Joseph Story (2014, p. 414), comenta:
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entre ele mesmo e os indivíduos, em salvaguarda de interesses
substanciais da sociedade (BASSO, 2013, p.320).
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determinada época” (DOLINGER, 2014, p.412). Absolutamente móvel, fluido,
portanto, o conteúdo do princípio da ordem pública internacional, que depende
essencialmente de qual comunidade jurídica pretende aplica-lo ou não, e em
relação a qual norma estrangeira colidente. Portanto, a decisão de aplicação da
norma estrangeira deverá sempre passar pelo filtro que garante que esta norma
não fere valores sociais, econômicos, políticos e culturais do local do foro.
No direito brasileiro, é o art. 17 da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro que rege a ordem pública no direito internacional. O texto
menciona três hipóteses em que a lei estrangeira não terá eficácia no Brasil:
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No nosso sistema, recai frequentemente sob o Judiciário o papel de
determinar qual a lei aplicável nos casos de conflitos de leis. Assim, é pelas
mãos dos magistrados que ganha conteúdo o princípio da ordem pública.
Denota-se tendência à utilização frequente do instituto no Brasil. Dolinger
aponta que isso se dá muitas vezes por um sentimento “chauvinista” do
aplicador do direito, ou mesmo para facilitar a apreciação da matéria em exame,
aplicando-se a mais conhecida lei local em detrimento do direito estrangeiro
(DOLINGER, 2014, p.412), o que demandaria um estudo mais refinado e
laborioso.
Importante ressaltar que muitos tratados de direito internacional privado
trazem em seu texto a exceção de ordem pública. É o caso do Tratado de Lima
de 1878; passando pela Convenção da Haia de 1955 para Regular os Conflitos
entre a Lei Nacional e a Lei do Domicílio; as Convenções aprovadas nas
Conferências Interamericanas de Direito Internacional Privado, entre 1975 e
1994; e ainda, a Convenção de Roma de 1980 sobre a Lei Aplicável às
Obrigações Contratuais no âmbito da Comunidade Europeia, entre outros.
Recorrente e consagrado, portanto, o uso do instituto.
Ao comentar alguns casos de aplicação da ordem pública internacional
na jurisprudência comparada, Dolinger cita o “repúdio” do marido contra a
mulher com ele casada, prática comum nos países muçulmanos do norte da
África e aceito pelos tribunais desses países. A jurisprudência francesa admitia
a aplicação desse instituto para imigrantes desses países, residentes na
França, afirmando que não violaria a ordem pública francesa. No entanto, nos
últimos anos houve uma guinada na interpretação dos tribunais franceses, que
passaram a inadmitir o reconhecimento das sentenças que homologam o
repúdio, oriundas de tribunais religiosos, com fundamento na ordem pública
francesa (nitidamente móvel, portanto), bem como na Convenção Europeia de
Direitos Humanos (DOLINGER, 2014, p.440).
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3 ORDEM PÚBLICA “VERDADEIRAMENTE INTERNACIONAL” OU “ORDEM
PÚBLICA UNIVERSAL”
Jabob Dolinger delineia pela primeira vez a sua teoria sobre a ordem
pública internacional em seu livro de 1979 intitulado “A Evolução da Ordem
Pública no Direito Internacional Privado” (DOLINGER, 1979). A obra faz extensa
e pormenorizada análise do instituto, mas apenas ao final, de forma incipiente,
esboça sua tese de que estaria se constituindo uma “ordem pública
verdadeiramente internacional” ou “ordem pública universal”.
Primeiramente, o autor pontua diversos posicionamentos doutrinários
estrangeiros que tratariam da ordem pública na sua esfera internacional, mas na
realidade estariam se referindo, tanto aos direitos internos de diferentes países,
que coincidem em proibir certas práticas; como ao campo do direito
internacional público que disciplinaria a conduta dos Estados. Exemplos antigos
seriam a proibição e combate à pirataria, tráfico de escravos e ao “mercado de
brancas” (DOLINGER, 1979, p.243), normas que ou foram sendo aprovadas de
forma isolada pelos Estados, ou acabaram se transformando em tratados com
intenção de uniformizar condutas.
É o que aconteceria com as normas de direito humanitário, limitadoras
das condutas nos conflitos armados, bem como normas de direito penal
internacional, que protegem interesses que os Estados tem em comum,
proibindo a prática de certos crimes internacionais, como o crime de guerra, os
crimes contra a humanidade, que configurando uma “ordem pública
internacional” (DOLINGER, 1979, p.243).
O Professor da UERJ ressalta que em algumas ocasiões se usou o
termo “ordem pública internacional” para designar situações onde teria havido
mera coincidência de ordens públicas de países de culturas e ordenamentos
jurídicos similares. Trata-se de fenômeno, segundo o autor, de “ordem pública
interna de efeitos internacionais, de caráter generalizado, coincidindo em alguns
ou muitos países que adotam a mesma filosofia e/ou se caracte rizam por
idêntica sensibilidade jurídica” (DOLINGER, 1979, p.246). No entanto, ele deixa
claro que nenhuma das hipóteses anteriores se trata da ordem internacional que
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está a vislumbrar. Os crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crime de
genocídio compõem, na sua opinião, uma ordem pública de fato internacional,
na medida em que violam “valores morais e princípios humanitários universais”
(DOLINGER, 1979, p.246). Mas a tutela contra os atos mais bárbaros cometidos
contra coletividades, bem como as violações da lei dos conflitos armados, não
encerram o conceito a que se pretende chegar, muito mais amplo e não limitado
à esfera penal.
Para esclarecer o que entende por esta ordem pública de alcance
mundial, Dolinger (1986, p.211) distingue em três graus o conceito de ordem
pública: o primeiro grau seria a ordem pública de direito interno, que como já
visto, estabelece que a autonomia das partes não é irrestrita, devendo se
coadunar com as normas cogentes de caráter público do ordenamento interno; o
segundo grau seria a ordem pública internacional, regra de direito internacional
privado que obsta a aplicação de leis, atos e decisões estrangeiras, por ferirem
valores nacionais, e o terceiro grau:
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Nota-se nesta passagem as duas preocupação centrais do autor: tanto a
possibilidade de graves conflitos bélicos, originada da desordem político-militar
do sistema-mundo, quanto ao caos econômico, que poderia levar a
consequências de certa forma similares. Assim, a preocupação com a economia
política internacional ganha destaque, sendo considerada o ponto central de
equilíbrio ou caos nas relações internacionais. O almejado equilíbrio, portanto,
seria uma motivação para que haja uma regulação centrada em valores
essenciais comuns a todos os habitantes do planeta (DOLINGER, 1979, p.247).
É preciso contextualizar o momento que originou dita visão. Na década
de 1970 o mundo estava em plena Guerra Fria, com a polarização característica
entre Leste e Oeste, pregando cada qual seu modelo econômico-cultural, e
principalmente, em plena corrida armamentista entre as duas superpotências
(EUA e URSS). Se por um lado, o restante do mundo assistia atônito às duas
nações se digladiarem com ameaças veladas e a possibilidade de aniquilamento
total, de outro o ainda jovem sistema da Organização das Nações Unidas vivia
intensos debates e se buscava interpretar os diversos instrumentos de proteção
do ser humano que haviam sido criados, por aceitação expressa dos Estados,
mas em detrimento dos mesmos (PIOVESAN, 2000, p.196). Diante desse
quadro, Dolinger manifesta sua teoria de que:
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4 CONTEÚDO DE UMA ORDEM PÚBLICA “UNIVERSAL” OU “VALORES
ESSENCIAIS DA COMUNIDADE INTERNACIONAL”
1 Muitas vezes, são os próprios aparatos estatais que são utilizados para perpetrar as piores
barbaridades contra grupos de pessoas, minorias étnicas ou religiosas, em sangrentos conflitos e
guerras civis, onde governantes despóticos possuem interesses muito diversos dos almejados pela
população.
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internacional em franca expansão (SOARES, 2003, p.15). A partir da revolução
industrial e com o crescimento do comércio internacional, principalmente no
pós-segunda guerra, o planeta começou a sentir os efeitos da degradação
ambiental causada pelo homem, o que se intensificou a ponto de gerar sério
desequilíbrio dos ecossistemas, perda da biodiversidade terrestre e mais
recentemente, afetando de modo perigoso os sistemas climáticos do planeta,
com potencial futuro catastrófico. A imperatividade de uma resposta adequada
da comunidade internacional, diante dessas graves problemáticas, abre a
possibilidade para uma gradativa, cuidadosa e necessariamente bem regulado 2
afastamento pontual de certas normas nacionais, quando contrariarem
frontalmente o interesse maior da preservação das condições de habitabilidade
do planeta. Lembre-se, ademais, que o direito ao meio ambiente limpo e
saudável é por si só um direito humano reconhecido como tal por diversos
tratados, o que não afasta, no entanto, a especificidade e imprescindibilidade
desse direito que vem ganhando uma crescente proteção em âmbito
internacional. Importante exemplo seria a negociação em curso para se alcançar
um novo tratado pós Protocolo de Quioto, com o objetivo de combater o
aquecimento global decorrente da poluição atmosférica causada pelas
atividades humanas.
O terceiro componente encontraria suas fontes no direito comercial
internacional. Normas nacionais que ao serem aplicadas pudessem fazer
colapsar ou gerar sérios prejuízos à economia global, atingindo não apenas
corporações privadas, mas gerando encargos traumáticos a outros países e a
seus contribuintes, poderiam ser afastadas no momento da sua aplicação. Neste
ponto surge uma possível função da ordem pública universal: a que se refere
com a preocupação de uma nação não apenas com seus próprios interesses,
mas levando em consideração os interesses de toda a comunidade
internacional.
2 Fazem-se essas ressalvas para que não se pense que a quebra absoluta da soberania estatal
nesses casos possa ser feita de maneira absoluta ou desregrada. Fato é que o direito internacional
ambiental ainda deverá criar mecanismos para possibilitar que os interesses comuns da humanidade
sejam tutelados sem permitir o abuso de poder de algumas nações, nem o uso da justificativa
ambiental para mascarar interesses geopolíticos.
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Para Dolinger:
[...] a ordem pública interna de outros países deverá ser objeto da mais
cuidadosa atenção dos tribunais, e desde que não seja afetada a
ordem pública do foro, a ordem pública de outra comunidade será
tomada em devida consideração.
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constituir jus cogens, é feita por tribunais internacionais com base no próprio
direito internacional, e não em normas nacionais, motivo pelo qual se trata de
típica matéria de direito internacional público, diferente por óbvio dos conflitos
de leis nacionais objeto deste estudo 3.
Outra observação importante diz respeito ao conceito de obrigações
erga omnes. Essas obrigações seriam deveres que os Estados possuem
perante a comunidade internacional de respeitar certos “valores essenciais”
(CARVALHO RAMOS, 2014, p.66). Trata-se de construção jurisprudencial da
Corte Internacional de Justiça, cujo precedente foi o caso Barcelona Traction
(CARVALHO RAMOS, 2014, p.66), no qual se decidiu que certas obrigações
que não sejam aquelas bilaterais e multilaterais clássicas, mas que os Estados
possuem perante todos os demais Estados, diante da importância de seu
conteúdo “essencial”. Inclui-se nessa ideia, segundo a Corte, “principles and
rules concerning basic rights of the human person” (CORTE INTERNACIONAL
DE JUSTIÇA, 1970), ou seja, os direitos humanos. Assim, o conceito de
obrigações erga omnes do direito internacional público seria paralelo
equivalente, mas não substituto ou coincidente, com o conceito de “ordem
pública universal” no direito internacional privado, já que se baseia igualmente
em “valores essenciais” da comunidade internacional. Mas são nitidamente
diferentes, pois de efeitos distintos, já que o primeiro visa pautar o
comportamento do Estado perante os demais Estados como um todo, enquanto
o segundo possui como objetivo, servir de parâmetro para dirimir os casos
particulares que ensejam conflitos de leis entre os Estados. Embora sejam
diferentes e possuam efeitos distintos, ambos os institutos podem ter como
fontes as normas internacionais de proteção dos direitos humanos, que seriam,
a bem dizer, a sua fonte principal, tanto no âmbito interno de cada jurisdição,
como no âmbito da comunidade das nações.
Certo é que a aplicação desses direitos, aceitos não raras vezes em
declaração solenes despidas de comprometimento efetivo, não se dá de forma
fácil ou uniforme. Mas a sua existência é, por definição, a expressão de um
3Para distinção pormenorizada entre os conceitos de Jus Cogens e Ordem Pública, vide
FRIEDRICH, 2004, p. 69.
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esforço da comunidade internacional de fazer valer certos padrões mínimos de
sobrevivência e convivência. Esses valores comuns de alcance global, além de
constituir um ramo próprio do direito internacional público, incidiriam sobre o
direito internacional privado, essencialmente nacional, apesar de sua tendência
à uniformização, através do instituto da ordem pública universal.
Seria inevitável considerar, por outro lado, que a ideia dos direitos
humanos serem reconhecidos como fonte da ordem pública universal, se
relaciona com a própria ideia de universalismo desses direitos, já que foram
eles considerados, já na Declaração Universal, como os direitos indispensáveis
para um convívio harmônico entre todos os povos e nações. Lembre-se que a
Declaração Universal dos Direitos Humanos foi construída a muitas mãos
através de um intenso debate, tendo em vista o multiculturalismo e as
diferenças (MIRAGEM, 2005, p.311). Ou seja, uma ordem pública “universal”
estaria necessariamente fundada no respeito a essas garantias mínimas
acordadas nas declarações e pactos internacionais que protegem valores
comuns.
Não há dúvidas, entretanto, que a caracterização pura e simples dos
direitos humanos como universais acarreta algumas controvérsias. Não são
poucos os que questionam esse caráter universal, revelando os opositores uma
preocupação com o respeito à diversidade cultural inerente às comunidades
humanas espalhadas pelo globo, com as mais variadas tradições e costumes.
Entretanto, tudo indica que o debate universalismo versus relativismo
está superado. Para o Prof. André de Carvalho Ramos, a saída seria um diálogo
cultural à luz dos direitos humanos. O necessário diálogo se daria tanto no âmbito
interno (no seio de cada cultura) quanto externo (entre as diferentes culturas), o que
geraria uma “revaloração dos próprios padrões de direitos humanos” (CARVALHO
RAMOS, 2012, p.161-162). Ademais, “nada impede que a maioria da população, ao
efetuar o diálogo interno e a interpretação iluminista, rejeite padrões universais de
direitos humanos” (CARVALHO RAMOS, 2012, p.162). No mesmo sentido,
complementa a Professora Flavia Piovesan:
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A abertura do diálogo entre as culturas, com respeito à diversidade e com
base no reconhecimento do outro, como ser pleno de dignidade e direitos, é
condição para a celebração de uma cultura dos direitos humanos, inspirada
pela observância do “mínimo ético irredutível”, alcançado por um
universalismo de confluência. Para tanto, essencial é o potencial
emancipatório e transformador do diálogo, em que o vértice não seja mais
marcado pela ideia do choque entre civilizações (“clash of civilizations”),
mas pela ideia do diálogo entre as civilizações (“dialogue among
civilizations”) (PIOVESAN, 2011).
4Como o Relatório “In Larger Freedom: Towards Security, Development and Human Rights for All”,
publicado em 2005 pelo então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, onde propõe reformas no
Secretariado e no Conselho de Segurança da ONU; ou o Relatório final da Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (RIO+20) intitulado “O Futuro que Queremos”, onde se
defende reformas no sistema ONU para melhor atender os objetivos do desenvolvimento sustentável.
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essa tendência, contribuindo para inclusive moldar novos organismos e novas
autoridades decorrentes da necessária “nova governança global”.
Outra questão importante a ser considerada é a existência de blocos
regionais que produzem normas próprias, de caráter supranacional. É cada vez
mais claro que, pelo menos no âmbito da União Europeia, já se invocam regras
comunitárias que se sobrepõe aos ordenamentos jurídicos nacionais,
constituindo-se verdadeira ordem pública regional. Algumas das normas
comunitárias que fundamentam a autoridade das instituições europeias, como
os seus tratados constitutivos, bem como aquelas essenciais ao bom
funcionamento da união monetária, diante das mais de vinte economias
nacionais que a compõe, certamente se enquadrariam em uma noção de ordem
pública supranacional.
Ainda no caso do velho continente, e mais no que tange ao objeto deste
estudo, um importantíssimo instrumento de aglutinação do que poderia se
chamar de ordem pública regional seriam os direitos protegidos no âmbito da
Convenção Europeia de Direitos Humanos, que conteriam parte do que o
Conselho da Europa chama de “valores europeus”, juntamente com o estado de
direito e a democracia. Neste sentido, a jurisprudência da Corte Europeia de
Direitos Humanos cumpre a importantíssima tarefa de uniformizar e garantir
respeito a esses direitos no continente, atuando até mesmo, quando necessário,
de maneira contra-majoritária. No entanto, a ordem pública “universal” aqui
tratada seria mais do que um conjunto de valores comuns regionalizados, já que
a integração regional nasce através de interesses nacionais que coincidem para
certos fins, como o desenvolvimento econômico e a prevenção de conflitos,
enquanto a ordem pública global, como visto, se refere a “valores essenciais” de
toda a comunidade internacional. No caso da defesa dos direitos humanos pelos
sistemas regionais, ocorre que esses direitos coincidem, em sua quase
totalidade, aos já previstos no sistema global de proteção, havendo portanto,
justaposição protetiva, mas nada impede que futuros sistemas regionais se
baseiem em valores diferentes, não necessariamente os mesmos “valores
essenciais da comunidade internacional” de que se trata aqui.
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A necessidade de se pensar e construir uma ideia de valores essenciais
parece urgente, diante da ausência de referências que se vive com o advento
do que se chamou de pós-modernidade. Miragem reflete sobre este fenômeno,
que indica a “desconstrução de ideias modernas” em face da “sociedade da
informação”, onde “o sujeito pós-moderno busca alcançar a plena liberdade,
desregulamentada e nômade, através do reconhecimento da diferença”
(MIRAGEM, 2005, p. 313). O sentimento geral de incerteza desta condição nos
traz a uma “crise de legitimação”, gerando, através de um subjetivismo extremo,
o risco da “ausência de significação”. A pós-modernidade seria, portanto, “a
mistura de estilos, a descrença da razão e o desprestígio do Estado”
(MIRAGEM, 2005, p. 314).
Como resposta, os operadores do direito deverão estar sempre atentos
aos fundamentos axiológicos de aplicação das normas. A Constituição
desempenha um papel fundamental nos ordenamentos jurídicos internos, como
repositórios dos valores de cada povo, mas no âmbito internacional, apesar da
existência dos consagrados instrumentos de proteção dos direitos humanos,
ainda se está para construir mecanismos efetivos, inclusive de governança, para
que esses direitos sejam colocados em prática, mesmo quando os Estados
assim não o quiserem ou conseguirem.
A crise imigratória na Europa, e o número crescente de refugiados no
mundo, por exemplo, revela que não há mais como os Estados se
ensimesmarem em seus problemas domésticos, sem considerar as dificuldades
de outras nações. A resposta, no longo prazo, deverá ser um aumento
significativo da cooperação internacional, em todos os âmbitos, de modo que
um esforço coletivo seja feito para reduzir na raiz as causas dos conflitos, das
perseguições, da fome e da miséria, que geram os fluxos de grande contingente
de pessoas pelas fronteiras transnacionais.
A ordem pública se revestiria assim, para além da sua característica
exclusivista e negativa (na aplicação da lei estrangeira), de um caráter positivo
de promoção dos direitos humanos (MIRAGEM, 2005, p. 312.
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últimas décadas, bem como encontra limites cada vez maiores com a assinatura
de acordos e tratados de proteção internacional dos direitos humanos, os quais
buscam garantir um ethos mínimo de convivência harmônica entre os povos.
REFERÊNCIAS
CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva,
2014.
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