A História Da Tortura
A História Da Tortura
A História Da Tortura
Maria
Haye
Biazevic
promotora de Justia em Minas Gerais, ps-graduada em Direito Processual Penal pela Escola Paulista de Magistratura
A histria relata muitos momentos em que a prtica de violncias tornou-se rotina. So guerras, civis ou militares, ou simples desordens sociais decorrentes de motivos mltiplos. So instantes em que a fora prevalece sobre a razo, de forma oficializada ou no. E o nico ponto que aparece como comum em todas essas situaes a desumanizao da humanidade. A prtica dos tormentos quase sempre esteve ligada ao prprio sistema penal vigente na sociedade, qualquer que seja ela, e a legislao de um povo deve ser encarada como um reflexo dos conceitos e valores do mesmo. Sob o aspecto processual, historicamente, a tortura se apresentou como um instrumento til para obteno de (duvidosas) confisses, as quais j desfrutaram de valor superior a qualquer outra prova. O sculo XVII pode ser citado como um momento de desumanizao, em decorrncia das lutas por territrios da Idade Mdia e da prpria necessidade de manuteno do poder atravs da fora. Dalmo de Abreu Dallari, entrando na discusso em torno da pergunta proposta por Maquiavel ainda em 1513, quando procurou saber se para um prncipe era melhor ser temido ou amado pelo povo, assim conclui: Governantes sem legitimidade e sem escrpulos, preocupados apenas com a preservao de seus privilgios, sem nenhuma possibilidade de serem amados, usaram amplamente o terror para manter o povo intimado e submisso. E o prprio povo, por sua ignorncia, companheira inseparvel dos preconceitos, muitas vezes colaborou para que seus dominadores usassem da violncia" [01] (grifo nosso). A razo tambm, muitas vezes, se confundiu com a f. A doutrina de So Toms de Aquino defendia que "a f no teme a razo, mas a solicita e confia nela. Assim como a graa supe a natureza e a leva perfeio, assim tambm a f supe e aperfeioa a razo". [02] De acordo com Valdir Sznick, A tortura, em sua evoluo histrica, foi empregada, de incio, como meio de prova, j que, atravs da confisso e declaraes, se chegava descoberta da verdade; ainda que fosse um meio cruel, na Idade Meia e na Inquisio, seu papel de prova no processo, possibilitando com a confisso a descoberta da verdade. [03] Foi a tortura, posteriormente, utilizada como pena (entre os antigos e romanos), bem como prova propriamente dita. Por fim, foi utilizada como satisfao, no s do crime cometido, mas, tambm, como meio de satisfazer os instintos baixos, em atos de verdadeiro sadismo. [04] Isso porque "a tortura tem em si uma conotao muito ligada ao
sadismo; o sadismo supera o poder que leva tortura e, ainda, vingana. No fundo, o torturador um sdico". [05] Em estudo do tema, percebemos igualmente que o sculo XVIII foi um marco histrico, representando o momento em que a tortura passa a ser oficialmente restringida e abolida em praticamente todos os Estados, em decorrncia da propagao das idias iluministas. Nos tempos mais atuais, raramente a tortura empregada no combate aos criminosos e na perseguio ao delito, como antigamente, surgindo os tormentos como medidas de defesa da sociedade contra aquelas pessoas que so consideradas ameaadoras para a sociedade, como os terroristas. O que interessante notar que quanto mais as legislaes proibiram a tortura, mais era, na prtica, utilizada, com objetivos dos mais diversos.
1.Tortura no mundo 1.1) Antigidade Sabe-se que, desde a pr-histria, o homem sentiu a necessidade de viver em grupo (pequenos, inicialmente), com laos muito fortes entre os seus componentes, seja pelos temores reais, seja pelos imaginrios e sobrenaturais a que estariam sujeitos. Os entes sobrenaturais, acreditava-se, tanto podiam proteger o grupo como castig-lo, dependendo de seu comportamento. A crendice fazia parte do cotidiano, e a figura do totem apresenta-se muito presente no comeo da civilizao humana. Teria ele poderes mgicos extraordinrios, "recaindo sobre um animal, sobre qualquer fora da natureza ou mesmo sobre uma planta". [06] Tambm poderia ser representado por um prprio antepassado do grupo. Acredita-se, assim, que os primeiros castigos advieram de relaes totmicas. Nessa fase, a principal finalidade da tortura era mesmo a retribuio do mal causado pelo delito, da aplicarem-se mtodos de expiao que implicavam em dores praticamente insuportveis, nem elo estreito entre priso e tormento. De acordo com Mrio Coimbra: tambm floresceram, nessa fase histrica, os tabus, cuja palavra, de origem polinsia, expressa, ao mesmo tempo, o sagrado e o proibido. Tais proibies eram enfocadas como as leis dos deuses, que no deviam ser infringidas. Tratava-se, por conseguinte, de uma lei religiosa, que garantia o controle social [07]. Lembra ainda que as ofensas ao totem ou as condutas que se consubstanciavam em desobedincia ao tabu eram severamente punidas, geralmente com a
morte, cujos castigos eram determinados pelo chefe do grupo, que, tambm, era o chefe religioso [08]. H muitos relatos de punies coletivas, de todos os que pertenciam ao grupo. A justificativa era de que essa era a nica maneira de acalmar a ira da divindade, obstando sua vingana pelo descumprimento de determinadas "obrigaes". O prprio texto bblico traz passagem descritiva de execuo por lapidao, ou seja, atravs de pedras lanadas pelos integrantes da comunidade como punio pela prtica de crimes. A antropologia, inclusive, considera as pedras como as primeiras armas s quais teve o homem acesso. Antigas civilizaes ofereciam suas crianas em sacrifcio aos deuses ento cultuados. H textos da Bblia e at mesmo do imprio greco-romano descrevendo massacres infantis e a natural matana de crianas portadoras de deficincias fsicas. No Novo Testamento, bom lembrar, o aoite aparece como sevcia mais comum aos acusados. E se falarmos no incio dos tempos, onde se confunde o poder com a religio, havia um qu de sacralidade na pena e punio. dentro desse conceito sacral que se tem os totens, amuletos, sortilgios e orculos. Esse mesmo esprito sacral permanece at os germanos, quando ainda subsistem as ordlias e os juzos de Deus, como instrumento de provas, mas com provas cruis como o uso de gua fervendo, leo fervente e outras. Era a poca em que a confisso tinha um valor alto demais como prova, um valor tambm quase religioso, considerada a rainha das provas [09]. Nesse contexto, as infraes tinham uma natureza muito mais ligada ao conceito de pecado do que uma ofensa sociedade. Esse carter explicava a desproporo entre a conduta e a sua punio. Podemos notar, entretanto, que mesmo quando a infrao passa a ser considerada um crime poltico, deixando de ser considerada apenas pecado, no perde integralmente a pena a sua roupagem mstica. Durante muitos sculos ainda o misticismo ensejar torturas e mortes. Pode-se dizer que a tortura foi uma importante instituio na antiguidade, definida como o tormento que se aplicava ao corpo, com o fim de averiguar a verdade, sendo que sua base psicolgica sedimentava-se no fato de que, mesmo o homem mais mentiroso, tem uma tendncia natural de dizer a verdade; e, para mentir, h a necessidade de exercer um autocontrole, mediante esforo cerebral. Inflingindo-se a tortura, esse tem que canalizar suas energias, para a resistncia dor, culminando, assim, por revelar o que sabe, no momento que sua contumcia debilitada, pelos
tormentos aplicados [10]. Valdir Sznick cita Asa, para o qual os persas, na Antiguidade, colocavam o condenado amarrado em dois botes, s com a cabea e os membros de fora. Untavam-no com mel e leite o rosto, os membros e as costas. Viravam-no para o sol. No demorava muito e o corpo era invadido pelas moscas que, aos poucos, o dilaceravam [11]. De acordo com Joo Bernardino Gonzaga: Parece que, em maior ou menor grau, essa violncia foi utilizada por todos os povos da Antigidade. O texto mais velho que dela nos d notcia acha-se em fragmento egpcio relativo a um caso de profanadores de tmulos, no qual aparece consignado que se procedeu s correspondentes averiguaes, enquanto os suspeitos eram golpeados com bastes nos ps e nas mos [12]. Apesar desse relato, a doutrina majoritria prefere ensinar que os gregos foram os primeiros a usar da tortura sistematicamente na instruo criminal, como meio de prova, contra, principalmente, os escravos. A idia era a de que "a dor por eles sentida substitua o juramento que os seus senhores prestavam de dizer a verdade". [13] Assim, "somente eram supliciados aqueles que, por serem carecedores de honra, no traziam, consigo, a dignidade de pessoa". [14] Nessa poca, as principais provas eram testemunhais, documentos e o juramento. Os romanos, igualmente, tratavam seus escravos com extremada crueldade. A aplicao da tortura, nos procedimentos judiciais, somente foi regulamentada e limitada nos Cdigos Teodosiano e Justiniano; seria usada apenas nos casos de adultrio, de fraude cometida no censo e nos delitos de lesa majestade. Nos dizeres de Pietro Verri, "a corrupo do sistema romano gerou o uso da tortura, estando as principais dignidades do cnsul, do tribuno da plebe e do sumo pontfice concentradas na pessoa exclusiva dos imperadores." [15] que a aniquilao da repblica, momento em que quase foi atingida a igualdade de tratamento entre os cidados livres, e a imposio de um governo desptico, faz com que simplesmente desaparecessem liberdades pblicas logradas em perodos anteriores. Na fase do Imprio, o processo sofreu grande transformao, restringindo-se em grande parte o direito de acusao, que foi cedendo lugar acusao ex officio e ao procedimento extra ordinem, tendo sido a tortura oficialmente introduzida. Em certo momento, at mesmo as testemunhas podiam ser torturadas, embora existissem alguns privilgios em razo da classe social do indivduo. Assim,
Primeiramente Csar e depois Augusto respeitaram a memria da liberdade, ainda recente no esprito dos romanos; depois, gradualmente, ela se foi debilitando, e o natural desejo dos dspotas de ter um poder ilimitado sobre tudo se expandiu com menor comedimento. (...) medida que se consolidava a tirania, a tortura, utilizada apenas contra os servos nos tempos felizes de Roma, fosse estendida tambm aos livres [16] . Para os romanos, que desenvolveram inmeros mtodos de tortura, A confisso era prova suficiente para a condenao. Desde que sem defeitos e aceitvel, no havia a necessidade de realizar mais nenhuma prova, interrompendo-se o processo. Para tanto, a confisso era avaliada com cautela, ainda mais quando obtida mediante tortura (quaestio) [17]. A tortura em crianas era uma realidade no combatida na poca, dispondo o pai de poder disciplinar absoluto em relao ao filho, podendo, inclusive, mat-lo, vend-lo ou d-lo em doao ou penhor. Ocorre que com a evoluo da civilizao e a partir do cristianismo, tal poder que se situava na rbita do exerccio regular de direito foi se abrandando com exigncias de moderao, passando a ser punidos seus excessos quando deles resultassem leses corporais graves ou morte [18]. A chamada Lei de Talio, que to drstica hoje nos parece, na verdade representou um imenso avano com relao s penas aplicadas na poca, pois ao menos respeitava um critrio de proporcionalidade e eram impostas por juzes (ainda que muitas fossem cruis). A tortura no, pois no respeitava (e no respeita) nenhum direito de defesa, levando a situaes aberrantes. A Lei de Talio, conhecida pela frase "olho por olho, dente por dente", data de 2.000 a.C., e autorizava a interveno corporal na medida do gravame causado. Constava do Cdigo de Hamurbi, o qual admitia a fogueira, a empalao, a amputao de rgos e a quebra de ossos. A aplicao dessa Lei comeou a se tornar mais difcil, o que a acabou restringindo apenas aos crimes contra as pessoas, nos quais era possvel retribuir o mal causado com um mal idntico. Depois, adveio o que se denomina Talio imaterial, surgindo a idia de aplicar-se a penalidade de forma indireta ou simblica. Nos crimes contra os costumes a punio era a castrao, nos delitos de difamao (verbal) se recorria extirpao da lngua, nos delitos contra a propriedade, ora a perda da viso, ora do rgo que serviu de meio subtrao (mo). (COSTA, lvaro, 1998, apud GOULART, p. 21).
1.2) Idade Mdia Com a queda do Imprio Romano e a invaso da Europa pelos povos brbaros, tem incio a Idade Mdia. Os brbaros visigodos dominaram a pennsula em 622 d.C., sendo responsveis pela elaborao de vrias legislaes, como o "Cdigo Visigtico". Nesse diploma, as provas eram o juramento, as testemunhas, os juzos de Deus (sobre os quais discorreremos em seguida) e os tormentos. Segundo os relatos da poca, os medievais eram mais dados ao rigor da Lgica e s verdades metafsicas do que ternura dos sentimentos; o raciocnio abstrato e rgido neles prevalecia sobre o senso psicolgico(...). To grande era o amor f (esteio da vida espiritual) que se considerava a deturpao da f pela heresia como um dos maiores crimes que o homem pudesse cometer. [19] Para ilustrarmos o pensamento da poca, interessante a transcrio do seguinte texto de So Toms de Aquino: muito mais grave corromper a f, que a vida da alma, do que falsificar a moeda, que o meio de prover vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moeda e outros malfeitores so, a bom direito, condenados morte pelos prncipes seculares, com muito mais razo os hereges, desde que sejam comprovados tais, podem no somente ser excomungados, mas tambm em toda justia ser condenados morte. [20] Ademais, as crianas, durante a Idade Mdia, de acordo com Naura Liane de Oliveira Aded e Silvia Falco, por constiturem peso-morto e bocas a mais a serem alimentadas, em pocas de fome ou guerra, podiam ser abandonadas em florestas, ao nascer, ou ento terem sua alimentao e cuidados postos como ltima opo, pois todos os recursos eram colocados disposio dos guerreiros. Mulheres e crianas eram consideradas como pertencentes a uma classe inferior [21]. Mas os medievais no podem historicamente ser classificados como brbaros ou insensveis, pois, a seu modo, buscavam a justia e cultivavam a benevolncia. Inmeros benefcios aos presos foram registrados na poca, como possibilidade de afastamento para tratamento de sade (at mesmo de familiares), de tirar frias em casa, e at mesmo indulto total da pena. No regime feudal, no estava formada a noo de interesse pblico em punir os crimes praticados dentro de uma sociedade, pertencendo apenas s pessoas lesadas o direito de acusao.
Dava-se especial importncia aos juramentos e testemunhas. Se no existissem, restavam dois outros expedientes: o duelo (no qual confrontavam-se acusador e acusado) e os "Juzos de Deus", ou ordlios, que s desapareceram no sculo XIV. Ambos se fundamentavam na crena de um Deus onipresente a interferir nas relaes humanas. A interveno divina era provocada para a busca do "real culpado". Os "Juzos de Deus" surgiram no sculo XI, com a colonizao dos brbaros, e so considerados o incio da tortura em juzo. Mais tarde, comeam a surgir referncias aos tormentos no processo criminal. Foi nesse perodo histrico que a confisso passou a ser considerada a rainha das provas regina probarum devendo ser buscada praticamente a qualquer custo. Segundo Joo Bernardino Gonzaga, se por qualquer motivo ao conviesse o duelo, recorria-se aos ordlios. (...) Os mtodos variavam muito, mas em regra consistiram na prova do fogo ou na prova da gua. Por exemplo, o ru devia transportar com as mos nuas, por determinada distncia, uma barra de ferro incandescente. Enfaixavam depois as feridas e deixavam transcorrer certo nmero de dias. Findo o prazo, se as queimaduras houvessem desaparecido, considerava-se inocente o acusado; se se apresentassem infeccionadas, isso demonstrava a sua culpa. Equivalentemente ocorria na prova da gua, em que o ru devia por exemplo submergir, durante o tempo fixado, seu brao numa caldeira cheia de gua fervente. A expectativa dos julgadores era de que o culpado, acreditando no ordlio e por temos a suas conseqncias, preferisse desde logo confessar a prpria responsabilidade, dispensando o doloroso teste. [22] Nesse nterim, foi-se estruturando a chamada Justia da Igreja, seguindo doutrina completamente diversa. Segundo o mesmo autor, tratava-se mais propriamente de uma Justia disciplinar do que judiciria; e, vista dos seus objetivos, natural que adotasse regras com eles condizentes: a apurao dos fatos devia ser discreta, isto , secreta, para o bem do acusado e para evitar escndalo pblico. A confisso do ru passou a ter importncia capital, visto constituir indcio de arrependimento, suscitando esperana da almejada regenerao. [23] muito importante aqui lembrarmos que a idia de tripartio dos Poderes de Estado somente veio a se concretizar no sculo XVIII, por influncia de Montesquieu. A separao, sem dvida, propiciou no s a liberdade da Justia, como tambm sua imparcialidade e equilbrio. Na poca em questo no se admitia a presena de um advogado, devendo o ru defender-se sozinho. No s as acusaes eram secretas, como todos os atos processuais
em geral e, ao contrrio do que hoje ocorre, como regra todo acusado deveria permanecer detido durante o trmite do processo. O mais interessante notar que se fosse reconhecida a culpa do ru, as sanes aplicadas seriam, normalmente, apenas de natureza patrimonial. Ademais, se o acusado fosse nobre ou de alta classe social, era-lhe permitido indicar algum subordinado para que participasse dessas provas. Aos nobres, raramente era aplicada a tortura. A prpria maneira de cumprimento de pena era diferenciada de acordo com a classe social do acusado. A pena de morte, por exemplo, para os nobres, consistia na decapitao; os plebeus eram submetidos forca. 1.3) Inquisio O fenmeno da Inquisio, cujo nome completo era Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio, estendeu-se desde o sculo XII at o sculo XIX, ultrapassando as fronteiras da Idade Mdia e do Renascimento, chegando Idade Moderna. A Inquisio, como bem lembra Padre Estvo Tavares Bettencourt, Nunca foi um tribunal meramente eclesistico; sempre teve a participao (e participao de vulto crescente) do poder rgio, pois os assuntos religiosos eram, na Antigidade e na Idade Mdia, assuntos de interesse do Estado; a represso das heresias (...) era praticada tambm pelo brao secular, que muitas vezes abusou da sua autoridade. Quanto mais o tempo passava, mais o poder rgio se ingeria no tribunal da Inquisio, servindo-se da religio para fins polticos. [24] Ainda no sculo XIII, conta Valria Diez Scarance Fernandes Goulart: Inocncio III deu incio investigao de ofcio, para os casos de notoriedade, fama e clamor pblico. Com o tempo, mesmo sem esses requisitos, o sistema inquisitivo passou a ser aplicado a todos os crimes, desenvolvendo-se largamente em decorrncia das lutas contra hereges. Criou-se o Tribunal da Inquisio e, no sculo XV, os Tribunais do Santo Ofcio, principalmente na Espanha e Portugal. [25] Joo Bernardino Gonzaga, em seu livro A Inquisio em seu mundo, logrou fazer um retrato imparcial e justo do perodo, fundamentado em fatos histricos. Despiu-se do quadro estereotipado dos inquisitores que tendemos a aceitar como verdadeiro e analisou profundamente todo o contexto social, poltico, econmico, religioso e at cientfico da poca, para, enfim, concluir que as crticas atuais precisam ser repensadas luz da realidade daquele momento. A Inquisio foi produto de sua poca e a legitimidade da tortura utilizada no suscitava ento dvidas. Realmente, os costumes do povo eram to brbaros quanto as leis; ele amava os
suplcios como as festas pblicas e os sofrimentos divertiam a massa. De acordo com Pietro Verri, a natureza do homem tal que, superado o horror pelos males alheios e sufocado o benvolo germe da compaixo, se embrutece e se regozija com sua superioridade no espetculo da infelicidade alheia, do que tambm se tem um exemplo no furor dos romanos pelos gladiadores [26] . Joo Bernardino Gonzaga descreve bem o quadro estereotipado mencionado, o qual, aps infindveis repeties, acaba sendo considerado verdade absoluta por aqueles que o ouvem: Nascida oficialmente no comeo do sculo XIII e durando at o sculo XIX, a Inquisio dedicou-se, dizem eles, a semear o terror e a embrutecer os espritos. Adotando como mtodo de trabalho a pedagogia do medo, reinou, de modo implacvel, para impor aos povos uma ordem, a sua ordem, que no admitia divergncia, nem sequer hesitaes. Ao mesmo tempo, pretende-se que o que havia por detrs dela, nos bastidores, era um clero depravado, ignorante e corrupto, em busca apenas do poder poltico e da riqueza material. (...) A igreja teria conseguido entravar por longo tempo o desenvolvimento cultural da humanidade [27]. Aps minuciosa descrio das crticas feitas s condutas do perodo, o autor comea a question-las. Afinal, o que haveria de verdadeiro nisso tudo e como interpretar de maneira justa e objetiva o perodo? A anlise deve comear por considerarmos a Inquisio como retrato da justia criminal da poca, por todos encarada com naturalidade, aprovada e defendida pelos juristas especialistas de ento. Os paradoxos, para o autor, so gritantes: Parece-nos muito intrigante o seguinte: os tribunais de f, inegvel, foram violentos, usaram mtodos processuais e penais que consideramos reprovveis; levaram efetivamente a padecimentos e morte multides de pessoas, somente porque elas ousavam ter suas convices. Tudo isso nos causa a ns, hoje, forte repulsa. Como ento conciliar, eis a questo, tanta prepotncia e tanta maldade com a suave figura de Jesus de Nazar; com a virtude da caridade, que deve ser o farol mximo a iluminar o caminho da Igreja? (...) Ser crvel que, durante to largo tempo, a Igreja haja abandonado Cristo? [28] E, como bem lembra Pietro Verri: O nico julgamento pronunciado por Cristo durante sua vida foi para absolver a mulher que queriam apedrejar; e os cristos que imitam ou deveriam imitar a vida paciente, bondosa, humana e compassiva do Redentor escrevem tratados para torturar seus irmos com as mais
atrozes e refinadas invenes! [29] As respostas comeam a aparecer quando tentamos analisar o perodo dentro dos valores que ento regiam a sociedade, dentro do universo em que a Inquisio estava inserida e se modelou. A formao cultural, o estilo de vida, a relao das pessoas com a poltica, economia e, principalmente, com a religio, explicam muitas condutas. Como bem assinala Joo Bernardino Gonzaga, ao homem de hoje, forjado por intenso processo de secularizao que se iniciou com a Idade Moderna na civilizao ocidental, torna-se incompreensvel que a religio, outrora, haja assumido o papel de poderoso e efetivo ordenador da vida social. [30] A proliferao da criminalidade era catica, ao mesmo tempo em que no havia uma poltica social eficaz. Coube, assim, Justia Penal ordenar a situao, contendo os insatisfeitos, o que foi feito atravs do terror. Nesses termos, diante de tantas dificuldades para uma eficaz proteo social, dois remdios foram adotados; a Justia incentivava ao mximo as delaes secretas, de modo que qualquer pessoa do povo podia acusar outrem, conservando-se no anonimato e a salvo de represlias; depois, o juiz buscava extorquir a confisso do suspeito, mediante a tortura. (...) No se cogitava de penas com funo reeducativa, exceto no Direito da Igreja. Os castigos da Justia comum tinham mais propriamente o sentido de vingana, contra aquele que violara as ordens do rei e que era depois julgado pelos seus juzes. A par disso, a punio devia ser exemplar, escarmentando o povo, a fim de convenc-lo a respeitar as leis. Para tanto, quanto mais severa, melhor seria a pena. [31] No queremos neste trabalho defender as prticas tormentosas utilizadas nesse perodo histrico, mesmo porque entendemos que qualquer violao garantia mxima da vida no se legitima jamais (e sua gravidade no deve ser encoberta), mas pretendemos apenas mostrar que tais condutas tiveram um contexto social. Nicolau Eymerich, em 1376, sistematizou o Manual dos Inquisidores, pelo qual a tortura s poderia ser empregada se houvesse acordo entre o inquisidor e o bispo e os meios empregados deveriam ser tais que o acusado sasse saudvel para ser libertado ou executado; sempre o que se buscava era a confisso do suspeito. interessante notar que no deviam ser torturados os menores de quatorze anos, os velhos e as mulheres grvidas e os torturadores no se importavam com as marcas deixadas nos corpos, pois eram marcas de expiao do crime cometido. fcil percebermos, pois, que era inaplicado o princpio da proporcionalidade entre o crime e a pena. As leis se limitavam a ordenar ou permitir a tortura, fixando algumas regras
gerais para o seu uso, mas no especificavam no que ela poderia consistir; "a forma e os meios a serem empregados para produzir a dor seriam aqueles que os costumes indicassem, ou que fossem inventados por executores imaginosos. Facilmente, pois, ocorriam excessos". (GONZAGA, 1993, p.33) O seguinte ensinamento de So Toms de Aquino reflete bem a maneira como a tortura era encarada ento: dizia que assim como ao mdico lcito amputar o membro infeccionado para salvar o corpo humano ameaado, deve ser permitido ao prncipe eliminar o elemento nocivo ao organismo social. Era inconcebvel, em sculos passados, falar-se em liberdade religiosa, e isso se aplicava a todas as religies, no somente catlica. Cada Estado exigia da sua populao uma crena nica, oficial. Religio e nacionalidade eram crenas que se confundiam. Assim, no era possvel exigir que a Igreja Catlica respeitasse heterodoxias religiosas, quando o mundo era regido por dizimaes ora de cristos (pelos romanos, por exemplo), ora de pagos, ora de anglicanos, ora de islmicos. Ainda como ponto favorvel Igreja Catlica temos a condio de procurar esta, atravs da fora, ao menos atacar rebeldes que procuravam minar uma religio j consolidada entre o povo, ao contrrio de outras religies, que queriam impor compulsoriamente ensinamentos a pessoas de antiga f oposta. fato, ainda, que os escritores mais clebres e conhecidos da poca foram defensores desse sistema. A grande maioria das religies era absolutamente intolerante com as demais nessa poca. Assim, se assumissem os hereges o Poder seguramente dariam aos catlicos o mesmo tratamento que a eles estava sendo dispensado. Nesse contexto,a Inquisio, portanto, no foi algo artificial, que a Igreja tenha impingido ao povo, mas produto de uma necessidade natural, que todos sentiam, e o seu severo modo de atuar foi condizente com o estilo da poca. Somente muito mais tarde, presentes outras concepes e outros costumes, que ela veio a ser criticada como atentatria s liberdades individuais. [32] A Inquisio tinha um espao hoje comparvel poltica, despertando amores e dios, mas considerada legtima pela populao. O ritual de procedimento da Inquisio era bem definido, em quase todos os seus atos processuais, sendo a execuo pblica. Os motivos de o procedimento ser sigiloso so bem explicados por Nicolau Eymerich, em seu livro Manual dos Inquisidores: No devero tornar-se pblicos os nomes das testemunhas nem d-los a conhecer ao Acusado, se disso advier algum dano para os Acusadores e s muito raramente que tal dano no acontece. Efetivamente, se o Acusado no de temer por causa de suas riquezas, nobreza ou famlia, de temer muitas vezes a sua maldade ou a de seus cmplices, os quais, sendo s vezes determinadas pessoas e nada tendo a perder,
se tornam perigosos para as testemunhas. Foi isso que a experincia me ensinou. (...) A forma secreta e escrita do processo confere com o princpio de que em matria criminal o estabelecimento da verdade era o soberano e seus juzes um direito absoluto e um poder exclusivo. (apud SZNICK, 1998, p.81) A denncia, que era oral, fazia-se com as mos sobre o Evangelho, como um juramento e a obrigao de denunciar os hereges era permanente. A posio da Igreja Catlica s comeou a mudar pela meditao em torno de textos como os de Santo Agostinho, surgindo, posteriormente, a noo de carter medicinal da pena, e no apenas vindicativo. 1.4) Idade Moderna A tortura, que at o sculo XIV era enfocada como instrumento processual, sobre a qual gravitavam certas garantias legais, agravou-se a partir do sculo XV, principalmente nos governos absolutistas. que, nesse momento, a tortura torna-se indispensvel para a defesa e segurana do prprio Estado. Observa Mrio Coimbra que o processo inquisitivo, na Idade Moderna, com raras excees, se desenvolveu de forma ainda mais atentatria aos direitos do acusado, porquanto todos os atos processuais eram realizados de forma secreta, sem que este tomasse conhecimento da acusao. [33] exatamente essa a realidade retratada por Pietro Verri em seu livro Observaes sobre a tortura, que comentaremos no prximo item. imperioso notar que a insegurana vivenciada pelos cidados da poca refletia a absoluta imperfeio do procedimento criminal destinado apurao da verdade do fato delituoso, uma vez que a culpa no incidia sobre o acusado aps a reunio de todas as provas no processo. Dessa forma, um pequeno indcio de um crime grave, por exemplo, era suficiente para manchar uma pessoa com a pecha de um pouco criminoso. [34] Cada pas europeu teve suas particularidades processuais, quase todos com o uso da tortura, mas provavelmente a Alemanha foi o palco das maiores atrocidades relacionadas tortura no perodo. Eram comumente utilizadas a empolgadeira (que esmaga polegares), a chamada "virgem de Nuremberg" (um sarcfago de lminas pontiagudas), bem como torturas por meio de azeite (nas quais o acusado era obrigado a ingerir grande quantidade de azeite fortemente temperado, sendo depois levado a uma sala de temperatura elevada) e de fogo (principalmente nos ps, devidamente untados com gordura). Outra espcie de tormento
consistia em se desnudar o acusado e coloc-lo, amarrado, num banco, inserindo, sobre seu corpo, formigas, enormes ratos e insetos de toda classe, os quais, geralmente, penetravam no corpo do acusado, atravs do umbigo, por se encontrarem famintos. [35] 1.5) Iluminismo O primeiro pas a abolir a tortura foi a Sucia, no ano de 1734, mantendo-a apenas para os delitos considerados mais graves e abolindo-a completamente em 1776. Pietro Verri foi um dos grandes nomes da poca, escrevendo Observaes sobre a tortura, que ser muitas vezes por ns citado neste trabalho. Nesse livro, deixa traspassar toda sua revolta com a prtica dos tormentos atravs da reconstruo, por documentos, de um processo que tramitou em Milo no ano de 1630 e culminou com a tortura e morte de muitos "acusados". Esse processo ficou conhecido como "processo dos untores", j que os rus eram acusados de passar um leo venenoso (untar) nas paredes da cidade, para assim espalhar a peste negra. A ignorncia e as supersties no deixaram que as pessoas aferissem o completo absurdo dessas acusaes. O processo tinha como nico objetivo confirmar aquilo que j se tinha como certo e, com a tortura (que tinha apoio na lei) e com a construo arbitrria da prova pelo juiz, foram obtidos quaisquer resultados e culpados. Nmeros oficiais mostram que, apenas na dcada de 1620, foram queimadas cerca de mil feiticeiras por ano nas cidades alems de Wrzburg e Bamberg. A bruxaria consistia na venda da prpria alma ao diabo em troca da aquisio de poderes sobrenaturais. Dois poderes constantemente apontados eram o de tornar os maridos cegos a respeito da desonestidade de suas esposas e o de fazer com que as mulheres dessem luz filhos idiotas ou deformados. Historicamente falando, no mnimo interessante notar a que extremo de dio pode chegar o homem medocre dotado de fora bruta, usando a violncia como instrumento da justia. E o mais inusitado perceber o quo atual se apresenta, em pleno sculo XXI, tal discusso. Afirma-se que nas verdadeiras catstrofes que a fraqueza humana tende a dar mais razo a causas absurdas do que s prprias leis fsicas. Iluministas como Verri, entre outras sugestes, propunham a total separao entre os Poderes Legislativo e Judicirio, para afastar deste as presses de natureza poltica, os preconceitos e as supersties. Cesare Beccaria defendia que querer subverter a ordem das coisas exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusado, que a dor se torne o cadinho da verdade, como se o critrio dessa verdade residisse nos msculos ou nas fibras de um infeliz. Esse o meio seguro de absolver os celerados vigorosos e de condenar os inocentes fracos [36]. Pode-se dizer que j se apresenta a idia de presuno de inocncia do acusado,
em lugar da presuno de culpa que servia de justificativa para a tortura. De acordo com Dalmo de Breu Dallari, com muita agudeza observa Verri que nas situaes excepcionais o povo tende a acreditar facilmente nas opinies mais extravagantes. (...) O povo quer que algum seja punido por seus incmodos e por suas desgraas, mesmo que seja absolutamente ilgica essa pretenso punitiva [37] . Como bem assevera Michel Foucault acerca da tortura judiciria no sculo XVIII: (...) O corpo interrogado no suplcio constitui o ponto de aplicao do castigo e o lugar de extorso da verdade. E do mesmo modo que a presuno solidariamente um elemento de inqurito e um fragmento de culpa, o sofrimento regulado da tortura ao mesmo tempo uma medida para punir e um ato de instruo [38]. A verdade que a tortura na Toscana s foi oficialmente abolida em 1783. Na ustria, o acontecimento deu-se em 1787 e na Hungria, Boemia e Tirol, em 1776. Os autores iluministas questionavam a posio dos escritores mais antigos que defendiam a tortura, dizendo que no acreditavam realmente na eficcia dos tormentos para a obteno da "verdade". Mostravam, inclusive, um paradoxo em seu raciocnio: em muitos perodos, somente determinadas camadas sociais eram torturadas; se os doutores considerassem a tortura como um meio para descobrir a verdade nos crimes, no excluiriam suas prprias pessoas das torturas, pois tamanho o interesse da sociedade no desvendamento deles que ningum pode se subtrair dos meios de descobrilos. De qualquer forma, um erro afirmar que a repulsa da tortura uma nova inveno dos filsofos modernos, pois sempre existiram autoridades que se opuseram prtica dos tormentos. 1.6) Tortura no direito comparado na atualidade A abolio da tortura institucionalizada na Europa deu-se, primeiramente, por um decreto de Frederico II da Prssia, de 1740. O entendimento ganhou maior nfase com a Revoluo Francesa e conseqente expanso de idias abolicionistas, alcanando cada vez mais Estados. A partir do sculo XX, a tortura saiu do mbito apenas dos perodos de guerra, invadindo o mundo atravs dos regimes antidemocrticos, principalmente. Muitos governos militares, sem dvida, contriburam para esse panorama negativo, e o Brasil no ficou fora desse contexto. A barbrie passa ao domnio pblico em decorrncia da habitualidade, e faz com que tambm "apaream" as torturas sofridas por presos comuns, no ligados a crimes de
natureza poltica, em muitas partes do mundo. Esse panorama desembocou na feitura pela Assemblia da ONU da Conveno Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruis, em 1984, que ser analisada no captulo II. Os pensamentos humanistas evoluram desde o sculo XVIII; a tortura deixa de ser legalmente aceita pela maioria dos Estados, mas prossegue margem da lei, sem data previsvel para trmino. E como bem esclarece Paulo Srgio Pinheiro, "os negros, os pobres e os miserveis so as vtimas preferenciais da tortura nas delegacias, numa dupla discriminao racial e social" (2000). E uma coisa parece certa: s conseguiremos exterminar de vez a tortura do mundo civilizado quando lograrmos conscientizar todos os governantes e governados da importncia dos direitos humanos fundamentais, ou seja, quando a razo prevalecer sobre a ignorncia e a brutalidade. Sucessivos relatrios da Anistia Internacional mostram a persistncia da tortura nos pases democrticos, incluindo o Brasil. Em relatrio publicado pela entidade no ano de 1971, foram apontadas oficialmente mais de mil pessoas vtimas de tortura no Brasil. Na grande maioria dos casos, praticada por agentes pblicos policiais e a todo esse problema se une, ainda, a falta de prestao de informaes por parte, principalmente, dos Estados-membros, dificultando a feitura de qualquer relatrio que se queira srio. A Anistia Internacional confirma casos de tortura em cento e trinta pases, j que o prprio conceito de tortura dado pelas entidades de defesa dos direitos humanos abrangente. Sobre a possibilidade de uma delimitao maior do conceito de tortura, o pesquisador Tim Cahill defende que no possvel fazer essa distino, pois "se voc permitir determinados tipos de tratamento, quando a ao estiver nas mos de pessoas mal preparadas ser fcil ultrapassar a linha que definiria tortura. [39] Em 2004, o relatrio geral da Anistia Internacional revelou quatro situaes em que as denncias de tortura so especialmente preocupantes. So elas: Naes sob governos ditatoriais, pases onde a democracia sucedeu a ditadura, mas no houve reforma dos sistemas de investigao e da Justia criminal (nesse grupo est o Brasil), lugares onde a tortura aparece em casos isolados de abuso de poder e os eventos ocorridos na priso iraquiana [40]. Em pleno sculo XXI,tambm alguns Estados chegam a aceitar legalmente, sob determinadas circunstncias, a utilizao da tortura como instrumento para o interrogatrio de terroristas. Em geral, justificam a tortura em razo da situao de guerra em que se encontram, como um meio, embora grotesco, necessrio preservao
da segurana de seus cidados [41]. Podemos citar o caso de Israel, que, em novembro de 1987, legalizou a tortura com a aprovao pelo governo do relatrio da Comisso de Landau. Essa Comisso props que fossem autorizadas a "presso psicolgica e a presso fsica moderada" nos interrogatrios de "detentos de segurana" feitos por oficiais do Servio de Segurana Geral (SSG). Entre os mtodos aceitveis esto: Deter o preso em crcere incomunicvel, priv-lo de sono, sacudi-lo de forma violenta, mant-lo em posturas doloridas, espanc-lo, submet-lo continuamente a msica alta e a extremos de frio e de calor [42] . No ano de 1999, a Suprema Corte desse pas proibiu o uso da tortura de forma genrica, mas abriu exceo para os casos em que houvesse risco de morte de outras pessoas, casos em que a SSG precisa comprovar a existncia de ameaa para justificar o uso da tortura. Tais posturas sempre foram (em vo) duramente criticadas pela ONU e por entidades de defesa dos direitos humanos. Nos Estados Unidos da Amrica, at os fatdicos atentados ao World Trade Center, no ano de 2001, a prtica da tortura parecia confinada aos pores das prises. Mas, com a queda das torres gmeas, "a tortura ganhou status de doutrina de segurana, abertamente defendida em nome de sua suposta eficincia como arma de guerra contra o terrorismo". [43] Donald Rumsfeld, secretrio de Defesa dos EUA, assinou em novembro de 2002 um memorando endossando o emprego de quatorze tcnicas de interrogatrio nos suspeitos de terrorismo detidos em Guantnamo, s tendo sido tal documento revogado aps forte reao de grupos defensores dos direitos humanos. Tal revogao, obviamente, no representa mudana de opinio, j que muitas provas de tormentos em prisioneiros em tm vindo tona. Ao longo dos sculos, tambm as crianas foram muitas vezes torturadas, sob o argumento de "educ-las corretamente", apanharam e foram castigadas severamente de infindveis maneiras, sem que ningum questionasse tais comportamentos que, por vezes, foram socialmente recomendados. Na Medicina Legal, data do ano de 1868 o primeiro relato sobre crianas espancadas e queimadas at a morte. E somente a partir do sculo XX que passa a criana a ser finalmente encarada como um ser social diferente dos adultos, com peculiaridades e necessidades prprias, de acordo com a sua condio de pessoa em desenvolvimento. A partir da dcada de 1970, as diversas formas de maus-tratos infantis vm sendo estudadas sob a denominao de Sndrome da Criana Espancada (Battered
Child Syndrorne), termo criado em 1971 para designar um quadro de abuso e violncia contra ela.
2.Tortura no Brasil A sociedade brasileira na poca colonial era de cunho escravista, onde a crueldade perpetrada, principalmente, em relao aos negros, era enfocada como algo natural, porquanto estes eram considerados serem sub-humanos, destinados produo agrcola e de minrios [44]. Os ndios, como regra, sofreram menor opresso, pois receberam relativa proteo da Igreja. Ao tempo do Brasil colnia, vigoraram as Ordenaes Afonsinas (datadas de 1446), Manoelinas (de 1521) e Filipinas (de 1603), estas ltimas sendo as que realmente influram no pas, mesmo depois da Independncia. De acordo com Mrio Coimbra, mesmo no Brasil Imprio, com a elaborao da Constituio Poltica do Imprio do Brasil, de 1824, onde se aboliram os aoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruis, se continuou a supliciar os escravos. Assim, o Cdigo Criminal do imprio de 1830, esculpido sob o esprito liberal, dispunha, no seu artigo 60, que, quando se tratasse de acusado escravo e que incorresse em pena que no fosse a de morte ou gals, deveria receber a reprimenda de aoites e, aps entregue ao seu proprietrio, para que este inserisse um ferro em seu pescoo pelo tempo que o juiz determinasse [45]. Assim, a Carta de 1824 trouxe diversos princpios de direitos humanos, abolindo a tortura para os considerados cidados brasileiros, mas os negros continuam sofrendo com os tormentos at 1888, ano marco da extino oficial da escravido. O Cdigo Criminal de 1832 baniu o sistema inquisitorial e adotou o acusatrio, declarando expressamente que a confisso deveria ser livre e estar sustentada em outras provas. A proclamao da Repblica, apesar de pautar-se em idias inegavelmente relacionadas a liberdades pblicas, no alterou esse panorama. Os movimentos dissidentes ento elite governante, como o de Canudos, recebiam tratamentos muito violentos e a tortura seguiu seu caminho com igual fora tambm nesse perodo. Com o estabelecimento do Estado Novo, em 1937, e a implantao da ditadura getulista, que duraria at 1945, a tortura ganhou contornos e regulamentao institucionais. Com o fim desse perodo obscuro de nossa histria, a tortura passa a ser feita s escondidas, perdendo apenas seu carter institucional. Em 1964 chegam, via revoluo, os militares ao poder, e a tortura institucional passou a ser um poderoso instrumento a servio dos detentores do poder, a fim de que pudessem obter das vtimas
supliciadas informaes relevantes, para a total extirpao dos opositores polticos. Ademais, sob o manto da barbrie instalada pelo governo militar, que perdurou por vinte anos, um dos generais, mediante intensa propaganda veiculada em todos os meios de comunicao, conseguiu dar um toque de romantismo na total suspenso das liberdades pblicas, com o slogan Brasil: ame-o ou deixe-o [46]. E segue Mrio Coimbra explicando: Para que o trabalho desenvolvido por tais grupos de opresso atingisse o fim almejado, foram criados, aproximadamente, duzentos e quarenta e dois centros secretos de deteno, muitos deles mantidos, diretamente, pelas Foras Armadas, como o DOI-CODI (Departamento de Operaes de Informaes/Centro de Operaes de Defesa Interna) e o DOPS (Departamento de Ordem Poltica e Social), que efetuava investigaes polticas no plano estadual [47]. A tortura, ao longo dos sculos, tem sido utilizada contra os considerados "desclassificados sociais"; nessa poca, entretanto, surge o fenmeno da tortura contra opositores polticos. Nessa poca, o "mal" a ser atacado era o comunismo, cuja extirpao era o fim que justiava os meios. O papel da tortura nesse perodo diverso do que registrara a Histria em outros momentos, pois, conforme bem assinala Ceclia Maria Bouas Coimbra, (...) diferentemente da Inquisio, no ela que absolve e redime o torturado. Ela, inclusive, no garantia para a manuteno da vida; ao contrrio, muitos aps terem confessado foram e continuam sendo mortos e desaparecidos. Alm disso, tem tido como principal papel o controle social: pelo medo, cala, leva ao torpor, a conivncia e omisses [48] . No final de 1968, pressionado pela crescente oposio, o regime militar assumiu poder ditatorial total, atravs do infame Ato Institucional n 5, que inaugurou o governo Mdici (que duraria at 1974). O Congresso Nacional foi fechado e a tortura virou poltica oficial do Estado brasileiro. Elio Gaspari, via relatos pessoas e documentais do perodo, nos descreve a vergonhosa e conhecida "aula de tortura", dada em dezembro de 1969, pelo ento tenente Ailton Joaquim a oficiais do Exrcito no quartel da Vila Militar no Rio de Janeiro, momento em que, segundo o autor, a ditadura deixa de se envergonhar de si prpria. Assim, os presos foram enfileirados perto do palco, e o tenente Ailton identificou-os para os convidados. (...) Com a ajuda de slides, mostrou desenhos de diversas modalidades de tortura. Em seguida os presos
tiveram de ficar s de cuecas [49]. Um deles receberia choques eltricos: Depois de algumas descargas, o tenente-mestre ensinou que se devem dosar as voltagens de acordo com a durao dos choques. Chegou a recitar algumas relaes numricas, lembrando que o objetivo do interrogador obter informaes e no matar o preso [50]. Outro preso, segue o autor, foi submetido ao esmagamento dos dedos com barras de metal. Um terceiro apanhou de palmatria nas mos e na planta dos ps. O tenente explicava aos "alunos" que "a palmatria um instrumento com o qual se pode bater num homem horas a fio, com toda a fora". [51] Pendurando ainda um outro no pau-de-arara, o tenente explicou - enquanto os soldados demonstravam que essa modalidade de tortura ganhava eficcia quando associada de palmatria ou aplicaes de choques eltricos, cuja intensidade aumenta se a pessoa est molhada [52]. Citado pelo ilustre jornalista, finaliza o tenente-professor: "Comea a fazer efeito quando o preso j no consegue manter o pescoo firme e imvel. Quando o pescoo dobra, que o preso est sofrendo". [53] Os relatos de tortura que poderamos aqui reproduzir so infindveis, e alguns sero mencionados ao longo do trabalho. Um ex-diretor de um rgo de informaes no governo Mdici explica que (...) no segredo para ningum, que os agentes dos rgos de segurana recebiam prmios mensais muitas vezes superiores a seus salrios oficiais. E esses prmios eram ainda mais reforados quando ocorria a eliminao de algum dirigente subversivo considerado particularmente perigoso [54]. E segue dizendo que voc pode descobrir por si mesmo quem foram os grandes financiadores e beneficirios da tortura. Basta procurar identificar as grandes fortunas que se fizeram naquele perodo, de forma fcil e aparentemente inexplicvel [55]. De acordo com Antonio Carlos Fon, no apenas empresrios, nacionais ou estrangeiros, (...) participaram do esforo para a montagem e manuteno dos rgos onde se praticava a tortura. Alm deles, diversas organizaes de extremadireita, como a TFP, Sociedade Brasileira de Defesa da Tradio, Famlia e Propriedade (...) ou at mesmo religiosos e catlicos conservadores justificaram ou participaram de torturas. (...) At mesmo
alguns governos estrangeiros participaram, atravs do fornecimento de equipamento ou instrutores, das atividades dos rgos de represso poltica [56]. Tais relatos falam principalmente em norte-americanos, sul-coreanos, sulafricanos e portugueses. A tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog, chefe de jornalismo da TV Cultura de So Paulo, no dia 25 de outubro de 1975, nas dependncias do CODI-DOI do II Exrcito, aps apresentao voluntria para depoimento, teve repercusso inesperadamente grande para os inquisidores, que queriam apenas atingir escales mais altos da administrao estadual. Na poca, a polcia divulgou uma foto, tentando convencer a opinio pblica de que ele havia se suicidado. A notcia de sua morte no foi divulgada na televiso, mas apareceu nos jornais e milhares de pessoas se reuniram na praa da S para protestar contra o assassinato. De acordo com Jaques de Camargo Penteado, vencido o estgio que privilegiava o mais forte e conquistada a soluo de conflitos com a neutralidade que promove a confiana na autoridade, ficou realado que no basta um procedimento legal para pr fim s controvrsias, mas imprescindvel uma forma justa de realizao da paz social. (...) A preservao do homem exige que a cincia do Direito utilize todos os seus instrumentos para vedar a tortura. A condenao de um culpado baseada em prova obtida mediante tortura a condenao da prpria justia. (In: Justia n 5, 1997, prefcio) A realidade do nosso pas com relao ao tema segue alarmante, escondida nos pores de delegacias e outros locais de acesso a poucos, mas com o conhecimento de muitos; no se trata, portanto, apenas de omisso, conivncia e/ou tolerncia por parte das autoridades para com tais questes, mas de uma poltica silenciosa, no falada, que aceita e mesmo estimula esses perversos procedimentos [57]. Hoje, a idia de "inimigo interno" no mais dos opositores polticos, mas dos miserveis. Como no mais possvel ignor-los (porque em nmero espantoso), preciso, pensa-se, fortalecer as polticas de segurana pblica militarizada. a cultura do medo, que desgua em movimentos como o da Lei e Ordem, que defende a adoo de poltica criminal radical, o endurecimento de penas, o corte de direitos e garantias fundamentais, o agravamento da execuo, bem como a tipificao inflacionria de novas condutas desviantes. O retrocesso Lei de Talio e imposio da pena capital para muitos se apresenta como soluo.
at mesmo possvel concluir que a tortura uma prtica social solidamente incorporada nossa tradio cultural, com a nica diferena de que tolerada, muitas vezes exigida, amparada culturalmente, a depender do perfil daqueles que sero vitimados. H certos segmentos, certos grupos, sobre os quais a prtica da tortura no oferece qualquer tipo de constrangimento pblico [58]. A verdade que a tortura s um horror se atinge "um dos nossos". Isso explica um sem nmero de casos registrados (quando o so) apenas como leses corporais ou abusos de autoridade. Essa tradio cultural contamina, sem dvida, tambm nossas instituies, cujo fortalecimento comea a dar os primeiros passos. Para Elzira Vilela, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, de So Paulo, a tortura institucionalizada pela ditadura militar hoje s mudou seus alvos, pois para ela: O modo de agir dos integrantes da ditadura, o arbtrio, a violncia que se dirigia contra os opositores do regime passa a se voltar contra a populao mais pobre, negra, analfabeta, que se concentra sobretudo nas favelas, cortios e periferias das cidades. A ao dos agentes de segurana discriminatria e depende da pessoa contra qual ela dirigida". [59]
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Notas
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In: VERRI, 2000, p. VIII. Apud MOURA, 2003, p. 27. 1998, p. 14. Ibid. Ibid. p. 20. COIMBRA, 2001, p. 14. Ibid. Ibid. SZNICK, 1998, p. 21. COIMBRA, 2002, p. 16/17. 1998, p. 22. 1993, p.32. COIMBRA, 2002, p. 18. Ibid. 2000, p. 106.
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Ibid. p. 106/107. GOULART, 2002,p. 24. MACHADO; VIDAL; GOMES, 2001, p. 16. BETTENCOURT, Pe. Estevo Tavares. In: GONZAGA, 1993, pgs. 11-12. Apud ibid. In: GOMES, 2003, p. 485. GONZAGA, 1993, pg.23. Ibid., pg.24. BETTENCOURT, Pe. Estevo Tavares. In GONZAGA, 1993, pg15. 2002, pg. 26. 2000, p. 80. 1993, p.17-18. Ibid., p.19. 2000, p.102. 1993, p.20. Ibid., p.49. GONZAGA, 1993, p.114. 2002, p. 75. COIMBRA, 2002, p. 76. Ibid., p. 83. 1997, p.69. In: VERRI, 2000, p. XVII. Apud DALLARI, Dalmo de Abreu. In VERRI, 2000, p. XIX Apud CHINELLI, 2004, p.57.
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CHINELLI, 2004, p. 59. FARIAS, 2001, p. 75. CHINELLI, 2004, p.57. Ibid., p. 56. COIMBRA, 2002, p. 149-150. Ibid, p.152. COIMBRA, 2002, p. 156. Ibid. COIMBRA; ROLIM, 2001, p. 07. GASPARI, 2002, p. 361. Ibid.. Ibid., p. 362. Ibid. Ibid.. Apud FON, 1981, p. 56. Ibid., p. 59. Ibid., p. 60. COIMBRA; ROLIM, 2001, p. 06. Ibid., p. 11-12. 2004.
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