Fichamento Ranciere

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MACHADO, Frederico Viana. (2013).

Subjetivação Política e Identidade:


contribuições de Jacques Rancière para a Psicologia Política. Psicologia Política,
13(27), 261-280

CITAÇÕES LITERAIS

“A psicologia política, localizada na intersecção entre a política


e a psicologia, busca compreender de forma interdisciplinar
discursos e comportamentos políticos voltados para os
aspectos da vida coletiva que implicam em um
redimensionamento do espaço público e dos princípios que
regulam a construção de um comum compartilhado em
sociedade.” (p. 263).
“O ponto de intersecção entre essas duas áreas científicas,
Psicologia e Política, tem sido a preocupação com a
construção de um universo de debate em que nem as
condições objetivas nem as subjetivas estejam ausentes. Pelo
contrário, que ambas estejam compreendidas por diferentes
abordagens teóricas, como codeterminantes e, portanto,
constituintes dos comportamentos coletivos, dos discursos, das
ações sociais e das representações que constituem
antagonismos políticos no campo social.” (p. 263).
“A definição de política se torna fundamental por permitir a
análise da extensão e da estruturação argumentativa acerca
dos fenômenos políticos. Analisar a constituição de um campo
político e suas consequências demanda definições conceituais
precisas, não apenas sobre o político, mas também de termos
afins, tais como liberdade, igualdade, cidadania, conflitos,
democracia e outros. Afinal, são conceitos como estes que,
quando relacionados, nos permitem identificar e analisar os
vieses dos processos de mudança social e os sujeitos
políticos.” (p. 263).
“(...) o aporte deste autor mantém a radicalidade de um projeto democrático sem
simplificar os conflitos políticos reduzindo-os à sua dimensão econômica ou às
particularidades identitárias que tendem ao isolamento dos diferentes atores
políticos.” (p. 264).

“(...) a obra de Jacques Rancière revela-se como uma contribuição fundamental para
encararmos diversos impasses contemporâneos da psicologia política brasileira.” (p.
264).

“Galende (2012), em um sentido semelhante, destaca a


relevância do autor exatamente pela radicalidade de seu
pensamento frente à filosofia política, e argumenta que o que o
diferencia é a sua rejeição à duas noções de política que já
deram mostras de esgotamento no pensamento social
ocidental: “a política entendida como administração
governamental do poder; e a política entendida como um
processo de transformação no qual as estratégias dos
oprimidos são decididas por um grupo de experts.” (p. 264).
“Em seu texto intitulado o Conceito do Político, Schmitt
(1992/1972) argumenta que, enquanto o campo da moral se
define pela oposição entre bem e mal, o estético pela oposição
entre belo e feio, o conhecimento pela oposição entre
verdadeiro e falso, a política se caracteriza pela diferenciação
entre amigo e inimigo. Esta definição é importante, pois, ao
estabelecer um campo próprio da política, reconhece no
conflito sua essência e, consequentemente, a impossibilidade
de adequar questões políticas à soluções técnicas, como
tendem a fazer as matrizes de pensamento liberal.” (p. 265).
“(...) um dos aspectos importantes de ser elencado é a legitimidade do conflito como
constituinte da política, o que nos remete à impossibilidade de conceber a
democracia como um projeto plenamente realizável.” (p. 265).

“Swyngedouw (2011) traz a noção de “pós-democratização”


para mapear um determinado campo da filosofia política,
interessado em compreender os conflitos e mudanças sociais
para além da noção institucional/formal de democracia.
Segundo ele, “as últimas duas décadas foram marcadas por
processos de despolitização, pela erosão da democracia e pelo
encolhimento da esfera pública” (p. 370), o que se coloca como
contexto empírico sobre o qual se debruçam autores como
Alain Badiou, Jacques Rancière (...).” (p. 265).
“Influenciados pelo pensamento deleuziano e lacaniano (Galende, 2012; De Vries,
2007) e críticos tanto ao pós-estruturalismo (...) como ao relativismo pós-moderno,
estes autores apresentam diferenciações entre a política e o político.” (p. 265).

“Estas diferenciações, sempre postas em oposição conflituosa, marcam a ‘tensão


entre, de um lado, a política, que é sempre específica, particular e local, e, por outro
lado, os procedimentos universalizados da democracia política, que opera sob os
significantes da igualdade e liberdade’ (Swyngedouw, 2011:371).” (p. 266).

“O estatuto ontológico da realidade, sustentado neste campo conceitual, está


marcado pela negatividade, pela ausência de essências pré-discursivas. Em outras
palavras, a suposta objetividade das “essências” se define na trama do político.” (p.
266).

“O conflito como elemento definidor da política imprime nestes


autores uma forma de pensamento sempre tensionado e, a
partir do reconhecimento das contingências históricas, tomam
como fundamento do político o paradoxo engendrado pelas
relações entre liberdade e igualdade. Deste modo, as
negociações identitárias participam do campo político como
processos de diferenciação e indiferenciação, ou, como grafam
Prado & Souza (2002), processos de (in)diferenciação.” (p.
266).
“(...) sua perspectiva [de Rancière] toma ‘o partido singular de dar à potência do
heterogêneo, do um-de-mais, o nome de democracia como oposta ao consenso’
(Rancière, 2004, citado por Madrid, 2010).” (p. 266).

“Jacques Rancière se destaca neste ponto, pois trará uma


conceituação elucidativa sobre a relação entre liberdade e
igualdade, a partir da subjetivação política, propondo uma
concepção dinâmica para os processos de diferenciação e
indiferenciação social que definem as identidades.
Diferentemente de Badiou (2012), que tenta recuperar a
potencialidade do projeto moderno e iluminista,
compreendemos a obra de Rancière não como “moderna” ou
“pósmoderna”, mas amoderna (para reaproveitar uma
classificação de Latour, 1994, sobre sua própria perspectiva).
Rancière (2010; 2010c; 2006) refuta, tal como argumenta Ruby
(2011), três mistificações: a grega; a moderna e a marxista,
apontando a contingência epistêmica e a constituição
hierarquizante nestas construções acerca do comum.” (p. 266).
“(...) a radicalidade do pensamento de Rancière avança sobre o status do
conhecimento científico que ampara e critica a civilização ocidental, o que
ressignifica a discursividade contingente que envolve o próprio termo “modernidade”
e, consequentemente, suas instituições (Rancière, 2013; 2011c).” (p. 266);

“Para Ruby (2011), a originalidade do pensamento de Rancière está em duas


afirmações positivas: a igualdade, como operador lógico de verificação das relações
sociais e, como consequência desta, a possibilidade de emergência do novo, que
“reconduz a política à ação!” (p. 14).” (p. 266).

“Rancière (2006) compreende como o político o encontro de


dois processos heterogêneos: a polícia e a política. A polícia
está relacionada ao governo e ‘consiste em organizar o
encontro dos homens em comunidade e seu consentimento, e
descansa na distribuição hierárquica de lugares e funções’.” (p.
267).
“(...) a polícia é o processo social através do qual se mantêm associados uma
função e seu status, a posição social de uma função em relação às outras funções
que se organizam na vida em comunidade.” (p. 267).

“A política, por sua vez, está relacionada à igualdade e se


pauta pela possibilidade de verificar as relações entre
quaisquer pessoas ou grupos de pessoas. Para Rancière, a
igualdade é o único universal político possível, já que, na
ausência de quaisquer outros fundamentos, frente à
contingência absoluta de toda ordem social, é possível verificar
a ‘igualdade’ das relações expandindo assim o campo da
democracia.” (p. 267).
“A igualdade para Rancière é, como argumenta Galende (2012:13), ‘um ponto de
partida, um axioma, uma condição que nos habita e que utilizamos para interromper
um regime desigual que nos separa desse pressuposto. O que nos torna iguais uns
aos outros é contar com uma vontade que se serve da inteligência’.” (p. 267).

“Localizamos, deste modo, um universal político radical ao


conceituar a igualdade como uma vontade associada à
inteligência, o nos permite afirmar a arbitrariedade de
quaisquer fundamentos da hierarquização entre os humanos.
Este universal político deriva da liberdade, como expressão da
contingência, e que permite a reconfiguração das identidades.
O universal está, portanto, marcado pela negatividade, ou seja,
pela ausência de um universal, assim como na perspectiva de
Laclau & Mouffe (1985), segundo a qual qualquer universal
deve ser considerado um ‘particular que se universalizou’.” (p.
267).
“Para Rancière, em toda vida social ocorre uma distorção, um
dano produzido na distribuição hierárquica dos lugares e
funções, e que gera relações de opressão e identidades
subalternas. Ocultar parte desta distorção é indispensável para
a naturalização da distribuição das partes de uma sociedade, e
a política interrompe este processo a partir de uma nomeação
polêmica deste dano, questionando assim a naturalidade da
distribuição hierárquica das partes a partir da contingência
absoluta, que se manifesta nesta igualdade fundamental”. (pp.
267 e 268).
“Para Rancière (2010) ‘a política começa precisamente ali, onde deixam de se
equilibrar perdas e ganhos, onde a tarefa consiste em repartir as partes do comum,
em harmonizar segundo a proporção geométrica as partes da comunidade e os
títulos para obter estas partes’.” (p. 268).

“(...) apesar de serem processos opostos, compreende-se que


a política só existe em contraposição a uma ordem policial que
define os limites de um sensível compartilhado, processo que
Rancière (2009) denomina partilha do sensível. Para o autor,
partilha do sensível ‘é o sistema de evidências sensíveis que
revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos
recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma
partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um
comum partilhado e partes exclusivas’ (Rancière, 2009:15).” (p.
268).
“Como argumenta Galende (2012:25) para Rancière ‘a teoria
não muda a realidade por si mesma, nem pode ser considerada
longe do mundo da prática’, pois considera que ‘uma filosofia
materialista se radicaliza justamente quando se prescinde de
toda referência a um núcleo de verdade que a ciência ou a
teoria protegem das distorções da vida prática’. Neste ponto
está a força epistemológica do pensamento de Rancière e que
nos obriga a considerar o pensamento científico como parte da
comunidade partilhada e não superior a ela ou possuindo algum
status especial, devendo ser compreendido mais bem em seus
efeitos policialescos do que potencialmente emancipatório.” (p.
268).
“A comunidade, em sua partilha, define assim os lugares sociais associados às
funções que cada indivíduo ocupa e desempenha, ao mesmo tempo em que define
o enquadramento partilhado a partir do qual os indivíduos atribuirão sentido à cada
parte e à sua participação nesta partilha.” (p. 268).

“(...) a ordem policial tende a fixar identidades, de modo que o ordenamento social
apareça como dado, ocultando ou naturalizando os danos que produz e organizando
a heterogeneidade do demos. A divisão das partes aparecerá então como natural,
pois a percepção sensível da hierarquização não será polemizada.” (p. 268).

“A partilha do sensível valora, política e esteticamente, a existência e a qualidade


daqueles que ocupam um lugar determinado em um sistema hierárquico de posições
sociais e valores.” (p. 269).

“Por este motivo, Rancière (2010) argumenta que a política é uma raridade, que
emerge em momentos específicos, os quais dependem de complexos processos de
elaboração individual e coletiva.” (p. 269).
“A partilha do sensível nos remete à constituição das
identidades que dela fazem parte. O trabalho da política
consistirá em questionar a conta das partes desse sistema em
um processo que Rancière denomina “subjetivação política”.
Subjetivação política é um processo de desidentificação ou de
desclassificação que interpela a ordem policial em um
determinado campo sensível.” (p. 269).
“Um processo de subjetivação política compreende a possibilidade de questionar
não apenas a conta de cada parte em um sistema partilhado, mas o próprio
processo de contar as partes, separando-as hierarquicamente (...).” (p. 269).

“Subjetivação política é a elaboração coletiva que se dá pelo


reconhecimento de estar ‘entre’ identidades e não a partir da
valorização, do fortalecimento ou da cristalização de uma
identidade dada. É uma propriedade imprópria que se
caracteriza pela sua negatividade (por aquilo que ela não pode
ser) e se constitui em uma equação impossível capaz de
interpelar, de um lado, a equação aritmética, que equilibra
perdas e ganhos, e, de outro, a equação geométrica, que
justifica méritos associando uma qualidade a uma posição
social (Rancière, 2010; 2006).” (p. 269).
“Entretanto, este processo de desidentificação é sucedido por
um processo de reidentificação. (...) Porém, a subjetivação não
deve ser compreendida como dois processos distintos, mas sim
“uma só e mesma aparição que, do ponto de vista da ordem
constituída (e transcendida pela subjetivação) é
desidentificação, do ponto de vista da novidade que irrompe é
identificação”. (p. 269).
“A subjetivação política redimensiona o campo da experiência
sensível dos sujeitos, de modo que uma determinada identidade
se desidentifique com a parte que lhe é(era) atribuída. Este
processo demanda a percepção sensível de que uma
determinada experiência não implica necessariamente em uma
identidade dada, mas se encontra entre identidades que foram
cindidas por um processo de subjetivação anterior.” (pp. 269 e
270).
“Como já se deixa entrever, a política para Rancière não se
circunscreve ao espaço do Estado e da política institucional. O
Estado e as instituições sociais participam da ordem policial e
estão atravessadas pela partilha do sensível, sendo, assim, um
poderoso agente da ordem policial. A política, ao contrário, não
deve ser substantivada ou associada a um lugar específico, pois
está mais associada ao verbo, a um movimento, a uma ação
(Blanco & Martin, 2003). Em outras palavras, a política está
associada a um discurso polêmico e litigioso que não se
confunde com as técnicas de governo ou com partes da
sociedade.” (p. 270).
“(...) o Estado será importante por duas razões. Primeiramente
porque a ordem policial é o outro da política, sem o qual não
ocorreria qualquer processo de subjetivação, e as instituições
jogam um papel importante nesse processo (Deranty, 2010).
Em segundo lugar porque, como argumenta Rancière (2011),
existem ordens policiais melhores (ou piores) que outras e o
Estado representa determinadas garantias deste
ordenamento.” (p. 270).
“(...) a política interpela a ordem policial e seus agentes, entre eles o Estado, que
respondem aos processos de subjetivação dissipando e/ou institucionalizando seu
potencial de alargamento da experiência sensível.” (p. 270).

“(...) a visibilidade de um determinado grupo social e de suas


enunciações, apesar de ser um importante instrumento político,
estaria condicionada ao lugar (sensível) em que se manifesta,
à forma de sua aparição. A ordem policial estabelece as regras
daquilo que pode ser objeto de disputa e, portanto, a
visibilidade de um determinado discurso está equacionada pelo
valor que lhe é atribuído (...).” (p. 270).
“Por esta razão, a democracia para Rancière (2006b) não se identifica com o Estado
de Direito ou com uma forma de governo. Democracia é o modo de subjetivação da
política. É o nome de uma interrupção singular da ordem policial.” (pp. 270 e 271).

“Os agentes de democratização são exatamente aqueles


capazes de suspender a partilha a partir da verificação da
igualdade, questionando a própria divisão das partes através
de um litígio ‘dirigido no cenário de manifestação do povo por
um sujeito não identitário’ (Rancière, 2010:127). A política
coloca-se aqui como algo que elicia processos de interpelação
(não necessariamente do Estado) que ampliam o campo da
experiência e colocam novas possibilidades de significação, a
partir de atos que associam um sujeito a uma identidade fora
do lugar no qual uma comunidade sensível aloca esta
identidade. Assim, a política opera a partir de um processo de
desidentificação que interrompe a lógica da dominação e o
ordenamento sensível que organiza as identidades.” (p. 271).
“A democracia é algo próprio do ‘povo’, daqueles que não tem ‘parte’, dos que ‘nada
tem’ ou ‘tudo tem’, esta abstração cuja existência faz com que uma comunidade
exista como comunidade política e legitime sua partilha.” (p. 271).

“Assim, a política para Rancière só é possível porque existe


essa classe inexistente, o povo, a abstração de uma suposta
massa indiferenciada que constitui uma comunidade política.
(...). O povo enquanto uma classe que não é propriamente uma
classe, já que não possui nenhum valor associado a ela (nem
riqueza nem virtude), funciona como horizonte simbólico da
subjetivação que interpelará a partilha das partes. A igualdade,
própria do povo, é escandalosa por ser o universal capaz de
suprimir os preconceitos e estereótipos que distribuem os
lugares em uma comunidade política, revelando sua
contingência (Prado & Machado, 2008).” (p. 271).
“A noção que se apresenta como classe possui uma íntima articulação com a
identidade, pois se constitui como dispositivos de regulação da ordem policial que
ocultam a partilha do sensível, a qual atribui valor e determina as formas de
aparecer sustentando um sistema de dominação e hierarquização.” (p. 271).

“Para ele [o autor], um regime de desigualdade tenta se


naturalizar a partir da oposição entre equações que
estabelecem, por um lado, a lógica da oligarquia (oligoi),
daqueles que controlam a riqueza a partir de uma equação
aritmética, e, por outro, a lógica da virtude e da excelência
(areté) que define os eleitos pelo “mérito”, a partir de uma
equação geométrica que designa a cada função um status
social.” (pp. 271 e 272).
“Rancière (2010) não considera a política de forma substantivada, mas como um
movimento, um verbo, uma ação significante.” (p. 272).

“(...) a identidade é entendida como um operador identificante


que trabalha, simultaneamente, possibilitando os processos de
individuação e o pertencimento dos indivíduos a uma
comunidade. Estes mecanismos identificantes são operados
pela lógica policial que, ao distribuir geometricamente as partes
de um sensível compartilhado, permite a emergência da
diferença e sua classificação em partes específicas: grupos
identificáveis por uma comunidade mais ampla, no interior
desta mesma comunidade e seu conjunto de relações sociais.”
(pp. 272 e 273).
“O conceito de identidade desenvolvido pela psicologia social
crítica brasileira (Ciampa, 1984; Lane & Codo, 1984) foi uma
chave teórica importante para a superação do determinismo
marxista, devolvendo às análises de classe a dimensão do
sujeito, em suas particularidades e desejos individuais
(Ciampa, 1987; 1984). Entretanto, se o que marcava mais
enfaticamente os usos deste conceito estava voltado para a
compreensão das relações comunitárias, dos projetos de
educação popular, da vida coletiva e o enfrentamento ao
contexto de subdesenvolvimento (Sandoval, 2000) (...).” (p.
273).
“Se tomarmos a noção de identidade e seus usos na psicologia
política brasileira, veremos que a perspectiva de Jacques
Rancière nos ajuda a superar questões importantes, tais como
uma crítica ao marxismo que traz uma compreensão precisa da
igualdade como único universal da política, uma concepção de
democracia dinâmica e a articulação entre estética e política.
Do ponto de vista interacional, os conceitos discutidos nos
ajudam a superar o cognitivismo ainda muito determinante na
abordagem de Melucci. Além disto, Rancière é contundente em
denunciar a perspectiva policialesca das teorias da identidade,
que, no caso da psicologia política brasileira, ainda está às
voltas com os dilemas analíticos e reflexivos postos em suas
relações com as “minorias sociais”, as populações oprimidas e
a proliferação das diferenças em uma sociedade ainda tão
desigual como a brasileira.” (p. 274).
“A subjetivação política, nesta perspectiva, é um processo capaz de questionar os
atributos de uma identidade suspendendo, durante o ato enunciativo, o próprio
sentido da categorização social que engendra identidades.” (p. 274).

“A partir da obra de Jacques Rancière, avançamos sobre o


conceito do político e traçamos uma abordagem teórica para
analisar o lugar das identidades nos processos de subjetivação
política, e como isto engendra um ato que articula
paradoxalmente igualdade e diferença em um processo de
(des)identificação.” (p. 274).
“Para Rancière (2010; 2006), a possibilidade de verificação da igualdade entre
quaisquer seres falantes é constitutiva da política.” (p. 275).

“Além disto, a partir de Rancière (2010), a ideia de classe social pode aparecer
como construção teórica, e não como um dado da realidade, sem que isto signifique
secundarizar as desigualdades econômicas que a noção de conflito de classes já
descreveu com propriedade.” (p. 275).

“A subjetivação política deve ser analisada por uma


compreensão das lutas sociais que passe por um
reordenamento sensível das formas de ser e estar no mundo, o
que não se limita à produção de novas leis, decretos e políticas
públicas, nem se subscreve a noções revolucionárias que
neguem a partilha do sensível que constitui uma comunidade
política ou a autonomia dos sujeitos políticos em se afirmarem
como tal. Em um momento histórico no qual supõe-se que
qualquer mudança social deve remeter-se à “sociedade global”,
Rancière (2010) recupera a importância da subjetivação e dos
sujeitos políticos engendrando processos de transformação de
suas realidades. ” (pp. 275 e 276).
“Ao recolocar o local no centro da política, o conceito de
político que aqui apresentamos leva-nos também a
reposicionar o Estado e o espaço público a partir de uma
compreensão mais ampla e radical da ideia de democracia
que, associada a uma abordagem não essencialista e
contingente das identidades, oferece um alicerce
epistemológico sobre o qual edificar uma análise das
interações entre as mudanças institucionais e a constituição
dos sujeitos políticos.” (p. 276).
“Este contexto desafia a psicologia política brasileira a superar os moldes teóricos
que limitam nossa visão da sociedade e suas instituições e nos convida à um olhar
renovado para as divisões escandalosas que estão, a despeito da cegueira da
intelectualidade ilustrada, ampliando o campo da experiência sensível.” (p. 276).

“(...) não podemos reduzir a ordem policial ao Estado e suas


instituições, pois ela atravessa a partilha do sensível. Por outro
lado, tampouco podemos ignorar o âmbito institucional como
sendo resultados cristalizados de um comum compartilhado. A
subjetivação política, que emerge como a enunciação polêmica
de um dissenso, deve ser capaz de denunciar a contingência
de um dano que contrapõe partes de um comum
compartilhado, o que implica em uma rearticulação da própria
partilha, e não apenas em um reequilíbrio contábil destas
partes, como tenderíamos a pensar se associássemos a
democracia ao espaço do consenso.” (p. 277).
“(...) nos cabe coragem e criatividade, pois, como argumenta Ruby (2011:106),
buscando responder às dificuldades de se ser um pensador rancieriano, “o filósofo
‘democrata’ tem a vocação de inquietar-se pela sua desidentificação, em benefício
da reinvenção e da verificação sem fim dos ‘limites da igualdade”.” (p. 277).

“Seria possível pensar a política sem considerar seus aspectos


psicológicos? Existe uma psicologia que não esteja
condicionada pelo político? Mais que a análise de
comportamentos políticos, a interseção entre aspectos
psicológicos e políticos encontra nos processos de
(des)identificação, caracterizados pelo conceito de subjetivação
política, um contundente diapasão analítico.” (p. 277).
CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com o texto, a psicologia política é um campo de intercessão entre


a política e a psicologia que visa compreender os comportamentos políticos de um
ponto de vista coletivo. Para essa análise, os aspectos objetivos e subjetivos devem
ser compreendidos e considerados, pois fazem parte do comportamento coletivo.
Nesse sentido, a obra de Jacques Rancière é fundamental para o campo da
psicologia política no Brasil.

O conceito político pode ser entendido como a diferenciação entre amigo e


inimigo, reconhecendo sua essência no conflito. Desta forma, é impossível adequar
questões políticas a soluções puramente técnicas. Seguindo esta linha de
pensamento, a democracia seria um projeto impossível, já que o conflito é
constituinte da política. O autor, portanto, traz o conceito de Swyngedoun de “pós-
democratização” para mapear um campo da filosofia política que busca entender os
conflitos e mudanças sociais que não se limita à noção formal de democracia. A
partir disso, há uma divisão entre o que é política e o que é político. Essas
diferenciações apontam a tensão da política, que é particular e local, e os
procedimentos da democracia política, que opera a partir da igualdade e da
liberdade. O conflito é um fator chave para o pensamento destes autores.

O pensamento de Rancière está baseado em duas afirmações positivas. A


primeira é a de que a igualdade é um operador lógico para verificar as relações
sociais. Como consequência, há a possibilidade de emergência do que é novo, que
reconduz a política de volta à ação. Para o autor, o político é o encontro de dois
processos diferentes, a polícia e a política. A primeira é o processo social através do
qual estão relacionados a função e o seu status, a posição social de uma função em
relação às demais, utilizadas para organizar a vida em comunidade. A segunda está
relacionada à igualdade e é pautada pela possibilidade de verificar as relações entre
as pessoas, independente do grupo em que pertencem. A igualdade, por sua vez, é
o único fator universal político possível, é um ponto de partida que permeia a ordem
social e que usamos para interromper um regime desigual que nos separe deste
fundamento.
Para Rancière, há distorções e danos na vida social, que são derivados da
distribuição hierárquica das funções sociais, gerando relações de opressão e
desigualdade. A política interrompe esse processo ao questionar essa distribuição
hierárquica, onde há desequilíbrio de perdas e ganhos. Ela só existe em
contraposição a uma ordem policial que define os limites do que é compartilhado,
denominado pelo autor de “Partilha do Sensível”. Esse conceito é um sistema de
evidências que revelam a existência do que é comum e do que é exclusivo.

No pensamento do autor, a teoria, por si só, não muda a realidade e não deve
ser considerada distante dos aspectos práticos da sociedade. O pensamento
científico, portanto, é parte de uma comunidade compartilhada, e não deve ser
considerado superior a ela. Esta comunidade define os lugares sociais e as funções
de cada indivíduos neles, além de definir o enquadramento partilhado em que eles
atribuirão sentido à sua parte e participação na partilha. Há, portanto, um aspecto
individual e um coletivo a ser considerado, dando margem para a subjetividade de
cada indivíduo no processo de organização social. A ordem social aparece para fixar
as identidades desse ordenamento social, ocultando ou tornando os danos naturais
e organizando as diferenças. Rancière argumenta que a política é uma raridade, que
aparece em momentos específicos que carecem de processos complexos de
elaboração individual e coletiva. O trabalho da política é questionar a conta das
partes do sistema, em um processo conhecido como “subjetivação política”. Esse
processo dá a possibilidade de questionar não só a conta de cada parte do sistema
partilhado, mas a hierarquia e a divisão das partes em si. É uma ação de
desidentificação e reidentificação, em que a experiência sensível do sujeito seja
levada em consideração e que ele possa questionar a identidade que lhe foi
determinada, identificando-se ou não com parte dela. Em outras palavras, a política
questiona a distribuição hierárquica de lugares e funções na sociedade,
interrompendo a naturalização desta ordem.

O texto indica que a noção de política não é baseada apenas na


administração do poder e controle do Estado. Esta instituição é atravessada pela
partilha do sensível e participam da ordem policial, assim como os grupos sociais. A
política, portanto, não está restrita às técnicas de governo ou apenas algumas partes
da sociedade. O Estado, por sua vez, é uma importante instituição para garantir que
os processos de subjetivação ocorram, além de oferecer garantias para que haja
ordem policial. Desta forma, Rancière não relaciona a democracia ao Estado de
Direito ou a uma forma de governo, mas a um processo de subjetivação da política.
Para o autor, a política só é possível porque o povo existe, uma massa
indiferenciada que forma a comunidade política. A igualdade é própria do povo e é o
universal capaz de suprimir preconceitos e estereótipos. A política, aqui, é
considerada um movimento, uma ação.

O conceito de identidade gerado pela psicologia social crítica brasileira é uma


chave teórica importante, pois leva em consideração na análise a dimensão do
sujeito em suas características próprias e desejos individuais, além da compreensão
das relações em comunidade, dos projetos de educação popular, da vida coletiva e
do enfrentamento à situação de subdesenvolvimento. O pensando de Rancière faz
contrapontos importantes que ajudam a compreender a igualdade como conceito
universal da política, a democracia como algo dinâmico e a compreender as
diferenças e desigualdades na sociedade brasileira. É possível compreender o lugar
das identidades nos processos de subjetivação política, a organização de classes
como construção teórica, a compreensão das lutas sociais e a importância dos
sujeitos políticos no processo de transformação da realidade. Há um desafio para
que a psicologia política brasileira supere os moldes teóricos que limitam a
compreensão da sociedade e de suas instituições.

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