Violencia Simbólica

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Revista Crítica de Ciências Sociais

108 | 2015
Número não temático

A violência simbólica: o Estado e as práticas sociais


José Vicente Tavares do Santos

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/6169
ISSN: 2182-7435

Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa
Data de publição: 1 Dezembro 2015
Paginação: 183-190
ISSN: 0254-1106

Refêrencia eletrónica
José Vicente Tavares do Santos, « A violência simbólica: o Estado e as práticas sociais », Revista
Crítica de Ciências Sociais [Online], 108 | 2015, colocado online no dia 16 dezembro 2015, criado a 23
abril 2019. URL : http://journals.openedition.org/rccs/6169
Revista Crítica de Ciências Sociais, 108, Dezembro 2015: 183-190

Revisões críticas

A violência simbólica: o Estado e as práticas sociais

Revisão de Bourdieu, Pierre (2012), Sur l’État. Cours au Collège de France (1989-1992).
Paris: Raisons d’Agir/Seuil, 672 pp.

Pierre Bourdieu situa-se em uma região arte da invenção, localizando a sociologia


do campo intelectual da sociologia con- em uma posição meta-meta no espaço social
temporânea que poderia ser denominado (Bourdieu, 2012: 94). Inicia seu trabalho de
de pós-estruturalismo crítico, ótica que construção do objeto pela crítica às pré-
procura situar os conflitos tanto a nível -noções, as ideias recebidas e a sociologia
micro- quanto a nível macrossocial, ten- espontânea, salientando a necessidade de
tando superar tal antinomia. uma definição provisória do objeto, sem-
Concebe a sociedade como formada por pre trabalhando com hipóteses. Concebe
grandes conjuntos, os quais são modificados os métodos e técnicas como teorias em
por grupos, classes e categorias sociais; e a ato. Adiciona uma referência à análise do
sociedade, por sua vez, também modifica discurso: “A análise do discurso que estuda
a estes agentes sociais. o discurso sem estudar as condições sociais
Esta seria a sociologia dos campos, dos de produção do discurso não compreende
diferentes capitais e do habitus, de Pierre nada” (ibidem: 32).
Bourdieu. A teoria dos campos reconhece a Retoma Bachelard: O fato social é con-
pluralidade de mundos sociais, os diferentes quistado depois constatado, contra a doxa
capitais a estruturar cada campo e a com- (ibidem: 171-173). E salienta: “Uma das
preensão da dinâmica inter-relacional entre armas da crítica é confrontar um regime
as estruturas objetivas e as estruturas mentais com sua verdade oficial para mostrar
nas sociedades modernas e contemporâneas. que ele não é conforme ao que diz”
O modo de trabalhar parte de uma epis- (ibidem: 65). Concebe a sociologia como
temologia pós -cartesiana que supera o “uma maneira de construir a realidade que
ensaísmo teoricista e o empirismo rea- permite ver os fatos que, normalmente, não
lista, do racionalismo aplicado de Gaston são vistos”(ibidem: 96). E define: “Minha
Bachelard (Bourdieu et al., 1973). Trata-se estratégia constante é de abarcar os grandes
de um racionalismo realista, uma filosofia problemas por um lado acessível onde eles
do saber, da racionalidade e do conceito. mostram o essencial que se esconde sob
Critica o positivismo na Sociologia, per- as aparências do insignificante” (ibidem:
cebendo as alterações da cientificidade na 142). Vai realizar o modelo teórico de
primeira metade do século xx, e da ideia um processo: “um conjunto de propo-
reificada do social; daí utilizar o conceito sições sistematicamente ligadas e jus-
de ruptura epistemológica. tificáveis de uma verificação sistemática,
Salienta que a sociologia da sociologia deve suscetível de dar conta de um conjunto de
ser uma tarefa permanente: a sociologia do fatos históricos tão grande quanto possível”
conhecimento sociológico caminha pela (ibidem: 170).
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Bourdieu propicia o rigor dos processos lutas entre os dominantes no momento em


científicos de construção do objeto de que permitem ou necessitam de fazer apelo
investigação, fornece a demonstração ao universal façam com que esse universal
detalhada, multivariada, da realidade apareça como possibilidade histórica.
social, e, em uma postura definida como No campo simbólico, constituído por
um pós-estruturalismo genético, reorienta maneiras de ver e de pensar, dá-se a produ-
o olhar do sociólogo para uma perspectiva ção social da violência simbólica. Bourdieu
relacional. assim a define: “A violência simbólica é uma
Dispomos, por meio desta ótica que toma violência que se exerce com a cumplicidade
como primado as relações sociais, e não tácita daqueles que a sofrem e também,
as entidades sociais, uma possibilidade frequentemente, daqueles que a exercem
analítica na reconstrução dos espaços das na medida em que uns e outros são incons-
posições sociais, mediante a qual as classes, ciente de a exercer ou a sofrer” (Bourdieu,
as frações de classe e os grupos sociais e 1996: 16). Neste livro mais recente: “O que
culturais elaboram práticas de reprodução denomino de violência simbólica ou domi-
social, através das formações de habitus e de nação simbólica, ou seja, formas de coerção
trajetórias de reprodução e de reconversão. que se baseiam em acordos não conscientes
Podemos, agora, percorrer seus principais entre as estruturas objetivas e as estruturas
conceitos. mentais” (Bourdieu, 2012: 239).
Sua postura da ciência é a construção de Segundo Bourdieu, “o Estado é a posse do
um habitus científico, bem como sua disse- monopólio da violência física e simbólica”:
minação. O habitus científico baseia-se em “[...] O Estado é o que funda a integração
alguns momentos: na ruptura epistemo- lógica e a integração moral do mundo social
lógica; na vigilância epistemológica; e na e, por aí, o consenso fundamental sobre o
construção do objeto. Afirma o pluralismo sentido do mundo que é a condição mesma
de métodos de investigação que vão ser dos conflitos a propósito do mundo social”
orquestrados a partir da orientação da (ibidem: 15). Daí sua afirmação de um golpe
pesquisa. O autor situa-se em uma ética de força simbólica na gênese do Estado:
de combate à injustiça, de combate à desi- “O golpe de Estado do qual nasceu o
gualdade e às discriminações e racismos, Estado [...] testemunha um golpe de força
atitude que aparece dispersa em sua obra simbólico extraordinário que consiste em
(Bourdieu, 2002). fazer aceitar universalmente, nos limites de
No final do livro La noblesse d’État, um certo território..., a ideia de que todos
fala sobre o poder do Estado, o campo os pontos de vista não são válidos e que há
do poder, composto pela articulação de um ponto de vista que é a medida de todos
estruturas mentais e estruturas objetivas os pontos de vista, dominante e legítimo”
(Bourdieu, 1989a). Escreve ser possível (ibidem: 116).
que essas relações de força no campo Por consequência, o Estado é a base das
do poder, essas lutas entre dominantes, classificações sociais: “Uma das funções
façam necessariamente entrar no campo mais gerais do Estado é a produção e a
do poder um pouco do universal – a razão, canonização das classificações sociais”
o desinteresse, o civismo, etc. –, uma arma (ibidem: 24). Isso se verifica na produção
sempre simbolicamente eficaz nas lutas das estatísticas, sistema de ensino (ibidem:
do momento. Talvez não só os dominados 27) e do sistema linguístico (ibidem: 113),
possam tirar partido dos conflitos entre incluindo a ortografia (ibidem: 194). Trata-
os dominantes, como também talvez essas -se de “categorias legítimas, um nomos,
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um princípio de divisão universalmente a teoria dos campos: o campo é um “espaço


reconhecido nos limites de uma sociedade” estruturado segundo oposições ligadas a
(ibidem: 24). formas de capital específicos, com interesses
Dois outros exemplos da centralidade do diferentes” (ibidem: 40). As propriedades
Estado são mencionados: o mercado da do campo são: estrutura do espaço obje-
casa individual (Bourdieu, 1993; Bourdieu, tivo, divisões, forças e agentes. Porém,
2000) – “O problema público é um pro- existem situações de emergência nas quais
blema que merece ser tratado publica- se realizam saltos qualitativos (ibidem: 130),
mente, oficialmente” (Bourdieu, 2012: havendo mesmo um retorno à incerteza
30 e 47) – e o trabalho das Comissões – (ibidem: 186).
“Essas comissões públicas são encenações, Sublinha a estrutura e os agentes sociais
operações consistindo a desempenhar que o conformam: “A gênese do Estado é a
algo como um drama público, o drama gênese de um lugar de gestão do Universal,
da reflexão sobre os problemas públicos” e ao mesmo tempo, de um monopólio do
(ibidem: 48 e 62). Universal, e de um conjunto de agentes
Menciona a obra de Kafka, na construção que participam do monopólio de fato
de uma utopia na qual cada um poderia desta coisa que, por definição, é do uni-
exercer seu direito de julgar e de se julgar, versal” (ibidem: 60, 165). Salienta o papel
mas que encontra um obstáculo em um dos juristas (ibidem: 95, 97-99): “Há um
Estado que condensa o centro da vida certo número de agentes sociais – entre
social, sendo “a última instância à qual se os quais os juristas – que desempenha-
pode recorrer” (ibidem: 114, 324, 328). ram um papel eminente, em particular
O Estado seria uma comunidade ilusória, os detentores deste capital de recursos
um consenso último (ibidem; 28). Daí sua organizacionais que era o direito romano”
tese principal: o Estado é um campo, um (ibidem: 60).
campo de poder, um campo administrativo Estabelece algumas distinções: entre Estado
como setor particular deste. e sociedade civil – “a ideia de um conti-
A questão central do livro é como fazer nuum que é uma distribuição contínua dos
uma genealogia histórica ou estrutural recursos coletivos, públicos, materiais ou
(ibidem: 144). Podemos reconstruir seus simbólicos, aos quais se associa o nome do
procedimentos, desde a construção do caso, Estado” (ibidem: 66). Desta distribuição
pois é preciso “tratar um caso particular, nascem as lutas políticas.
mas o constituindo, segundo a fórmula de Realiza uma crítica a uma série de historia-
Bachelard, como um caso particular de dores e sociólogos: Perry Anderson, Theda
possíveis...” (ibidem: 143). Seu preceito Skocpol, Reinhard Bendix, Barrington
metodológico é “abarcar um caso particular Moore, Eisenstadt, Marc Bloch, Gerschen-
do qual não se conhece a particularidade kron e Michael Mann. Propõe uma abor-
mais no qual se poderia ver o modelo dagem capaz de apreender o processo de
– à condição de não esquecer a particula- criação permanente de transformação das
ridade (ibidem: 217). Partindo da Idade estruturas, presente tanto na objetividade
Média, vai analisar os exemplos inglês, do mundo social quanto na subjetivi-
francês e japonês (ibidem: 29). Em seguida, dade dos agentes sociais.
vai descobrir as lógicas práticas e a gênese No Curso proferido no dia 17 de janeiro
das estruturas individuais e das estruturas de 1991, há quatro movimentos teóricos:
sociais, recorrendo ao conceito de habitus 1. Análise genética do nascimento do
(ibidem: 153-154). Desenvolve novamente Estado (Bourdieu, 2012: 195).
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2. Menção ao fetiche do Estado: uma vez que a monopolização é uma série


“o Estado é um poderio simbólico” de disputas eliminatórias em cujo final um
(ibidem: 196); dos concorrentes desaparece, pois a domi-
3. Referência a um território do Estado: nação do Estado supõe uma forma de paz
“[...] A construção do Estado como (ibidem: 206-207). Outro processo é a cons-
campo relativamente autônomo exer- tituição de uma “rede de interdependência
cendo um poder de centralização de poderosos detentores de princípios de
da força física e da força simbólica, poderio diferentes” (ibidem: 209).
e constituindo assim um embate de A crítica feita por Bourdieu vai no sen-
lutas, é inseparavelmente acompa- tido de Elias perder a dimensão simbólica
nhado pela construção de um espaço do poder estatal (ibidem: 204): tanto
social unificado que lhe serve de base” Elias como Weber não esclarecem quem
(ibidem: 197). detém o monopólio da violência legítima
4. Menciona os critérios para identificar (ibidem: 365).
sociologicamente os Agentes Sociais: Assinala que Charles Tilly identifica três
selecionar os agentes pertinentes ao vias no processo de formação do Estado:
problema; identificar as proprieda- a trajetória capitalista, ou a lógica econô-
des pertinentes do campo; e cons- mica da acumulação de capital e as cidades;
truir a estrutura do espaço objetivo a trajetória coercitiva, ou a concentração
(ibidem: 38). dos instrumentos de coerção; e a trajetória
Bourdieu faz referência aos agentes mista (ibidem: 212-214).
sociais, formulando as seguintes pergun- Na análise da obra de Corrigan e Sayer,
tas: “Quem tem interesse no Estado? mesmo reconhecendo sua importância
Existem interesses do Estado? Há inte- ao salientar que o Estado é um conjunto
resses do público, do serviço público? de formas culturais, critica seu esqueci-
Há interesses universais e quem são seus mento das formas de violência física e do
portadores? Quem tem os monopólios capital econômico na formação do Estado
dos monopólios do Estado – violência (ibidem: 225).
física e simbólica legítimas?” (ibidem: Bourdieu desenvolve a construção de
199). Nesse sentido, vai analisar “[...] o uma sociologia reflexiva: uma sociologia
processo de construção do Estado e os reflexiva é basicamente uma explicação
responsáveis deste processo de constru- sistemática e relacional do mundo social.
ção” (ibidem). Por sistemática, implica que ela vai estar
A revisão de Norbert Elias inicia pelo sempre preocupada em discutir os seus
reconhecimento da sua teoria genética do instrumentos de conhecimento, a socio-
Estado de inspiração weberiana, salien- logia é inseparável da sociologia de uma
tando a menção de Weber do monopólio sociologia – a vigilância epistemológica
legítimo da violência física e do imposto. de Gaston Bachelard.
Trata-se da concentração progressiva dos Em Le métier de sociologue (Boudieu et al.,
instrumentos de violência, pois “O mono- 1973), o autor se referia a Gaston Bachelard,
pólio dos recursos originados pelo imposto retomando a ideia da reflexibilidade,
permitem assegurar o monopólio da força “um pensamento que está sempre se debru-
militar permitindo a manutenção da força do çando sobre si próprio, analisando suas
imposto” (ibidem: 205). condições sociais de produção e de objeti-
Em outras palavras, se trataria de uma vação; e, ao mesmo tempo, um pensamento
extorsão legítima (ou crime organizado), que é relacional” – o modo de pensamento
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que é relacional e analógico que é favo- saber o significado que tais materiais tive-
recido pelo conceito de campo permite ram, ou têm, ou podem ter”.
apreender a particularidade no interior da Se o sociólogo somente procurar a clareza
generalidade e vice-versa. Em outras pala- teoricista, jamais fará pesquisa porque
vras, “um caso particular bem construído nunca vai se permitir a ousadia do des-
deixa de ser um caso particular”. conhecido: o sociólogo realiza a travessia
Decorre daí a ideia de que qualquer meto- entre o conhecido e o desconhecido. Cabe,
dologia pode ser usada, mas exige um então, uma crítica ao “professoral”, ao que
tempo de partir de uma condição de rigor: está pronto, ao narcisismo intelectual da
a crítica reflexiva das técnicas e dos proce- reprodução do conhecimento sem ten-
dimentos, buscando em Bachelard a noção sionar o saber. Daí a opção pela angústia
de que toda a técnica é uma teoria em ato. da pesquisa.
Conclui por ser contra o fanatismo e Há uma tentativa de superar, por um lado,
a cegueira fetichista que trabalha nas o teoricismo, essa teoria que tudo quer
ciências sociais: quando ela desvela os explicar de um modo absolutamente
fundamentos históricos e os determinantes racional e conceitual, mas que nada ousa
sociais dos princípios de hierarquia e de superar; e, por outro, de superar os proce-
avaliação que devem sua eficácia simbólica dimentos rigorosos de uma pesquisa ou de
ao fato de que elas vivem e se impõem uma suposta metodologia de pesquisa que
como absolutos universais e eternos. tudo prova, mas nada ousa. A superação
A ciência social tem essa função de desve- dessa antinomia marca sua obra, uma von-
lar o absoluto, de relativizar o universal e tade de superar a antinomia entre teoria e
de desencantar o eterno. pesquisa, entre indivíduo e sociedade, entre
Neste Bourdieu, que aparece tão estrutural, estrutura e ação.
tão rigoroso e tão objetivo, no fundo tem Afirma que a pior coisa do mundo são os
uma preocupação, datando dos anos de professores, no fundo a história escolástica,
1990, quiçá mesmo antes, com o que cha- essa busca obsessiva do rigor absoluto,
mava do sofrimento de uma nova espécie a busca da perfeição, o que é sempre uma
e injustiça de uma nova ordem. O autor projeção da sua própria incapacidade.
acredita no “utopismo sociológico” que, Salienta que há um certo número de falsos
longe de ser um utopismo racional e longe debates, mortos e enterrados (externo e
de ser uma ciência sem utopia, constituiria interno, qualitativo e quantitativo, etc.),
exatamente o conjunto das condições de que podem ser superados pela exigência
possibilidades dadas por um desvelamento rigorosa de uma reflexibilidade, o que vai
rigoroso do mundo social, o que permitiria chamar de lógica da pesquisa: aprender
uma liberdade a partir do próprio conhe- a pesquisa como uma atividade racional,
cimento sociológico das condições sociais não como uma espécie de busca mística,
de produção da sociedade e de produção do mas que também tem o efeito de aumen-
conhecimento sobre a sociedade. tar a angústia. Essa postura realista está
Há uma lógica da pesquisa no Homo orientada para a maximização do rendi-
academicus (e no segundo capítulo do mento do investimento e para o melhor
Poder simbólico, 1989b) representada pela aproveitamento do recurso a começar pelo
aventura, uma navegação: “somente quem tempo que se dispõe. O que interessa é
não fez pesquisa empírica não sabe que nós ver a síntese em status nascendi, contraria-
caminhamos às vezes às cegas, mas é cami- mente a esse homo academicus que gosta
nhando às cegas que um dia nós podemos do acabado.
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Entretanto, percebo que podem ser feitas Pierre Bourdieu propicia o rigor dos pro-
algumas críticas a esta importante obra: cessos científicos de construção do objeto
1. há escassa menção ao papel da Polícia de investigação, fornece a demonstração
(Bourdieu, 2012: 22), sobre a força detalhada, multivariada, da realidade
(p. 302) ou a força pública (p. 314); social, e, em uma postura definida como
2. escassez de referência ao papel dos um pós-estruturalismo genético reorienta
Exércitos e das guerras na construção o olhar do sociólogo para uma perspectiva
do Estado; relacional.
3. não menciona os agentes econômicos Dispomos de uma ótica que toma
no processo; como primado as relações sociais, e não
4. transforma a violência simbólica em as entidades sociais; aparece uma pos-
determinação em última instância: sibilidade analítica na reconstrução dos
“Para mim, o capital simbólico é o espaços das posições sociais, mediante a
fundamento” (Bourdieu, 2012: 327); qual as classes, as frações de classe e os
5. minimiza a contribuição de Michel grupos sociais e culturais ou as categorias
Foucault (ibidem: 566); e sociais elaboram práticas de reprodução
6. apenas efetiva uma breve alusão ao social, através da formação de habitus
romance policial, no qual o comissá- e de trajetórias de reprodução e de recon-
rio e o juiz sempre seriam agentes do versão.
Estado (ibidem: 581). A teoria dos campos reconhece a plura-
Neste livro tardio reafirma: “Trata-se de lidade de mundos sociais, os diferentes
reconstruir as operações de construção que capitais a estruturar cada campo e a
os agentes sociais operam para construir compreensão da dinâmica inter-relacional
suas interações ou relações…” (ibidem: 51). entre as estruturas objetivas e as estruturas
Está buscando uma causalidade estrutural mentais nas sociedades contemporâneas,
ou uma gênese histórica dos problemas uma análise pela ótica da conflitualidade.
(ibidem: 50), marcada pela historicidade: A ciência rigorosa do social poderia
é a construção das realidades do mundo e possibilitar a sociologia dos determinan-
das categorias que explicam as realidades tes sociais da prática sociológica como
do mundo – a multidimensionalidade das o único fundamento possível de uma
práticas e dos modelos históricos. liberdade possível em relação a essas
Ao mesmo tempo, adota a postura relacio- determinações.
nal de Bachelard: a relação explica o ente, Estes seriam o utopismo sociológico, um
razão pela qual sempre criticou a noção utopismo racional, ou o uso politicamente
substancialista de classe social, seja em consciente e racional dados pelo conhe-
Marx, reificada, seja em Weber, reduzida cimento das leis sociais e especialmente
à situação de classe na órbita do mercado. de suas condições históricas de validade.
Por outro lado, assume uma orientação A tarefa política seria trabalhar e definir
construtivista, pois a noção de categoria é um utopismo racional, usando o conheci-
um “princípio coletivo de construção da mento provável para fazer vir o possível,
realidade coletiva” (Bourdieu, 1994: 137): em um uso ético da sociologia reflexiva.
as categorias existem “como instituições Encontraríamos, então, uma reconciliação
[…] e na objetividade do mundo, sob a do scholarship e do commitment. Uma lição
forma de corpos sociais” e “nos espíritos, aos jovens leitores.
sob a forma de princípios de classificação”
(ibidem: 143). José Vicente Tavares dos Santos
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Referências bibliográficas
Bourdieu, Pierre (1984), Homo academicus. Paris: Minuit.
Bourdieu, Pierre (1989a), La noblesse d’ État. Grandes écoles et esprit de corps. Paris:
Minuit.
Bourdieu, Pierre (1989b), O poder simbólico. Lisboa: Difel.
Bourdieu, Pierre (org.) (1993), La misère du monde. Paris: Seuil.
Bourdieu, Pierre (1994), Raisons pratiques. Sur la théorie de l’action. Paris: Seuil.
Bourdieu, Pierre (1996), Sur la télévision. Paris: Liber.
Bourdieu, Pierre (2000), Les structures sociales de l’économie. Paris: Seuil.
Bourdieu, Pierre (2002), Interventions, 1961-2001 – Sciences sociales et action politique.
Marseille: Agone.
Bourdieu, Pierre (2012), Sur l’État. Cours au Collège de France (1989-1992). Paris:
Raisons d’Agir/Seuil.
Bourdieu, Pierre; Chamboredon, Jean-Claude; Passeron, Jean-Claude (1973), Le métier
de sociologue. Paris: Mouton [2.ª ed.].

José Vicente Tavares do Santos


Diretor do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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