As Cicatrizes Do Amor: A Representação Da Mulher Na Sociedade Moçambicana em Paulina Chiziane

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Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v.1, n.1, 2010.

AS CICATRIZES DO AMOR: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA


SOCIEDADE MOÇAMBICANA EM PAULINA CHIZIANE

Laysa Cavalcante Costa


Joana Camila Lima Guedes

Resumo: Esse trabalho visa refletir sobre a perspectiva oferecida por Paulina Chiziane
acerca do papel que a mulher ocupa ou pode vir a ocupar na sociedade moçambicana.
Empreende-se, para tanto, uma análise do conto “As cicatrizes do amor” no qual a
autora valoriza a figura feminina através da exteriorização dos seus sentimentos.
Importa descrever o conflito vivido pela protagonista, que encontra-se dividida entre a
tradição x modernidade, embora não quebre o vínculo com a tradição, procura outro
significado para sua vida
Palavras-Chave: Mulher; sociedade moçambicana; tradição; modernidade.

Introdução

O enfoque deste trabalho firma-se nas abordagens voltadas para as tradições


moçambicanas. Discutiremos sobre os diferentes valores sociais e o universo feminino
observado no conto “As cicatrizes do amor” de Paulina Chiziane. As personagens
femininas de Chiziane se contrastam com uma grande parcela das mulheres
moçambicanas, que levam uma vida rotineira e apagada, não negando suas tradições
bem arraigadas. Diante desse contexto a mulher é sujeita ao regime patriarcal, no qual
assume uma posição delimitada impregnada de inferioridade e submissão. A autora
demonstra uma intensa preocupação com o feminino por isso faz de sua narrativa uma
representação das dores, dos desejos, das angustias e, sobretudo das crenças e
esperanças dessas mulheres. A mulher apesar ter um papel essencial na preservação da
família, ainda tem fraco reconhecimento, especialmente em áreas mais remotas e
isoladas. Umas das consequências é que nesses lugares, a preferência de estudar ainda é
do menino e as meninas têm menos oportunidades, Porém ela passa a ser muito
importante na sociedade: é quem cuida da casa, das crianças e quem garante o alimento,
e não é necessariamente reconhecida por isso.

Fundamentação Teórica

A hierarquia é a base da sociedade moçambicana e isso inclui qualquer relação


de poder: autoridade,conhecimento, dinheiro. Até a linguagem é de um dominante para
um dominado. SECCO (1999) afirma que a colonização portuguesa em Moçambique
tentou apagar as marcas culturais encontradas nestas terras situadas na costa oriental
africana, valendo-se de uma política de assimilação que anulava as diferenças dos povos
dominados, levando-os a se portarem como ‘verdadeiros portugueses’.
Por isso quando passou essa época colonial e o “calor” dos movimentos
feministas da primeira metade do séc. XX, a importância da mulher dentro da sociedade
moçambicana começou a ser compreendida e se observou o seu papel social na
economia, na política e na religiosidade. Mas mesmo assim os ecos desse passado são
retidos, quando nos deparamos com uma situação paradoxal em que por um lado a
mulher é detentora de uma relativa independência econômica, podendo ascender a um
determinado status social e político e por outro, estar submetida aos seus parentes
masculinos e a determinados ritos de passagem para ser completamente aceita na
sociedade. A questão de gêneros estar completamente entrelaçada em todos os aspectos

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da vida das comunidades africanas, compreendendo estruturas que sustentam as suas


culturas. Questões como a honra e o prestígio parecem estar nas mãos das mulheres, daí
ser necessário um controle sobre elas, seja através da autoridade masculina ou das
balizas culturais hegemônicas. Aparece assim uma nova visão da mulher africana, em
particular nas questões econômicas, podendo-se observar mesmo nos lugares onde as
mulheres mantêm rendimentos separados dos maridos ou demais familiares com uma
relativa independência, quando não totalmente independentes.
As esferas masculinas e femininas mantêm-se separadas e em muitas sociedades
o estatuto social ou político é obtido independente dos homens. Não se observa uma
igualdade “democrática” entre gêneros estando cada um consciente do seu papel na
sociedade. Aparentemente a questão da equidade é algo que o relativismo cultural
ocidental procura em algumas sociedades africanas. Para muitos o matriarcado puro
nunca existiu, apenas uma questão de status social, provavelmente numa altura emque
as sociedades dependiam quase exclusivamente da agricultura praticada pelas mulheres
em que detinham um prestígio muito maior do que aquele que se observa atualmente.
Depois do colonialismo os processos de interação dos dois sexos não se
apresentam estáticos e estão sempre a modificar-se, entretanto trouxe perda de status
com repercussões que ainda se refletem nos dias de hoje. O seu poder econômico, foi
devastado e a reação ao problema também não foi pacífico. As mulheres reagiram de
várias formas numa tentativa de restaurá-lo. Assim, ilustra-se como uma introdução de
elementos estranhos uma cultura que pode alterar por vezes de modo permanente,
descaracterizando-a. Essas alterações repercutem-se a todos os níveis da sociedade, não
só a nível econômico, mas nos rituais de iniciação, em que os valores culturais são
reafirmados e assumem um papel de integração contribuindo para a coesão social, as
dinâmicas sociais acrescentam ou subtraem valores sendo observados nas relações entre
os mais velhos e os mais jovens.
Durante a época colonial muitos rituais foram suprimidos pelas políticas
coloniais e pela igreja católica numa tentativa de aniquilar as culturas das comunidades
consideradas “atrasadas”. O afastamento das missões acabou por ser uma forma de
preservarem os seus costumes, honrarem os antepassados e elevarem a mulher
socialmente sem constrangimentos para a sua família. Através da resistência ao
cristianismo e insistência nos seus costumes tornaram os rituais num fenômeno cultural
sólido não ignorando sua continuidade
Os valores vão sendo atribuídos aos gêneros que acabam mais cedo ou mais
tarde revestindo um caráter secular. Igualmente os valores simbólicos e a religiosidade
que permitem a cada indivíduo captar a sua “porção” de cultura de forma a defender-se
da anomia que ameaça a coesão social. Cabe desconstruir e compreender os anseios de
cada cultura no sentido de preservá-la, não no sentido de obrigar a cristalizar no tempo,
mas no sentido de compreender as suas dinâmicas sociais e a forma como respondem a
elas.
A concepção de uma identidade feminina limitada contribuiu para dificultar seu
posicionamento dentro da sociedade moçambicana, entretanto serviu para consolidar os
ideais de liberdade defendidos por autoras como Paulina Chiziane, que numa visão
contemporânea emprega nos seus contos e romances a figura feminina arraigada a pátria
e aos costumes de uma terra onde se predomina o pratriarcalismo. PADILHA(1999)
retoma essa questão expondo a participação da mulher na literatura com suas produções
desde a época da colonização “Quando à produção de mulheres (...) o acesso ao texto
verbal lhes era duras vezes barrado : por serem mulheres e africanas (...). Mesmo depois
da independência, quando as nações se constituíram como comunidades políticas
imaginarias (...), o acesso das mulheres á condição de produtoras não foi facilitado.”

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A escolha de personagens femininas nas obras de Chiziane não é arbitrária, se


privilegia a mulher valorizando-a e dando ênfase a exteriorização de seus sentimentos.
No Conto As cicatrizes do amor, procura-se analisar a personagem Maria, visando o
conflito vivido por ela, tento em vista a tentativa de se manter dentro dos costumes e a
ânsia por uma vida de oportunidades. O empenho de Maria faz com que após ter
passado por duras provações consiga finalmente reencontrar o seu grande amor e ser
feliz como desejava, tais provações foram consideravelmente importantes na construção
de sua identidade, seus valores ficaram abafados diante da gama de sofrimento na qual
teve que passar e os costumes do seu povo foram preservados quando chegou a hora de
puni-la. A personagem mesmo contando com um fracasso eminente, não desiste em
momento algum da felicidade.
Simone de Beauvoir argumenta “que a história nos mostrou que os homens
sempre detiveram todos os poderes concretos, desde os primeiros tempos do
patriarcado; julgaram útil manter a mulher em estado de dependência; seus códigos
estabeleceram-se contra ela; e assim foi que ela se constituiu concretamente como
Outro.” (BEAUVOIR, 1980, p. 179).
Observando o ponto de vista da escritora a personagem se mostra como o
“outro” revelando ser uma contadora de história, Maria evoca sua memória, fazendo o
leitor ouvir seus relatos trazidos “das profundezas do tempo” (CHIZIANE, 2000, p.
363), iniciando uma fala que encena o próprio drama, “Maria entristece. Ergue os olhos
para o céu na súplica do silêncio. A mente recua na trajetória distante, mais veloz que a
estrela cadente. Baixa os olhos para a terra fértil salpicada de ervas tisnadas” (Ibidem,
p.362), fazendo de seus gestos uma prática ritualística, conforme afirma Laura Padilha.
Grávida, depois de ter tido uma noite de amor com “o homem dos seus sonhos”,
Maria é expulsa de casa no “ritual dos galos”, por seu pai, logo que a criança nasce.
Abandonada pela família, desprezada por todos os homens, ela escreve com muita garra
as linhas de seu próprio destino – “Amarrei a capulana bem firme, com o bebê bem
seguro nas costas, jurei: os empecilhos que obstam a minha estrada serão removidos
pela minha mão” (CHIZIANE, 2000, p. 363).
A habilidade que Chiziane confere à contadora, marca em suas obras uma
mistura da oralidade com a escrita, tal aspecto é responsável por conduzir seus
ouvintes/leitores a um espaço de encantamento, induzindo-os a embarcar na viagem do
narrado a ponto de “recriar felicidades”. Embora a autora afirme que suas personagens
não rompem com a tradição ao buscarem seus próprios caminhos, seus comportamentos
indicam a necessidade de repensar conceitos referentes à cultura moçambicana.
Trazendo à tona a cultura de seu povo, Paulina expõe um universo no qual habita os
costumes da sociedade africana e paralelamente, a modernidade. Retrata paradoxos, a
partir de uma abordagem a respeito da questão da tradição como um meio de se lidar
com o tempo e com o espaço; inserindo qualquer atividade ou experiência na
continuidade do passado, do presente e do futuro, os quais, por sua vez, são estruturados
por práticas sociais recorrentes. As estórias e as memórias formam uma possibilidade de
construir a identidade de um povo. Nesse sentido, a cultura tradicional faz-se e refaz-se,
é um sinônimo de atividade e não de passividade. Os símbolos e as representações
fazem parte de uma realidade para a construção das identidades. Esse processo está em
constante transformação e é formado por diversos fatores intrínsecos e extrínsecos.

Nenhum de nós pode construir o mundo das significações e sentidos, a partir do


nada: cada um ingressa num mundo “pré-fabricado”, em que certas coisas são
importantes e outras não o são; em que as conveniências estabelecidas trazem
certas coisas para a luz e deixam outras na sombra. Acima de tudo, ingressamos

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num mundo em que uma terrível quantidade de aspectos são óbvios a ponto de já
não serem conscientemente notados e não precisarem de nenhum esforço ativo,
nem mesmo o de decifrá-los, para estarem invisivelmente, mas tangivelmente,
presentes em tudo o que fazemos – dotando desse modo os nossos atos, e as
coisas sobre as quais agimos, de uma solidez de “realidade”. (BAUMAN, 1998,
p. 17)

É assim que o universo de Paulina Chiziane se apresenta repleto de significações


que de forma clara e explicita expõe as diversas identidades dentro de processos
transitórios, fluidos e fugazes. As possibilidades de construção de identidades são
múltiplas, os antigos costumes são expostos paralelamente às novas perspectivas. É a
partir dessa realidade que a narrativa acontece.

Conclusão

Na perspectiva de mostrar a posição ocupada pela mulher moçambicana e as


imposições de uma sociedade vítima do colonialismo, este trabalho se propôs a reflexão
acerca do gênero, da raça, da cidadania e da identidade, analisando as práticas sociais e
culturais do povo moçambicano, abrangido pelo vasto aspecto ficcional de Paulina
Chiziane. Vê-se que a leitura do feminino em Moçambique, a partir das obras da
escritora requer, além do estudo das idéias feministas pós-coloniais que privilegiam
uma pesquisa acerca das práticas sociais e culturais das diversas etnias que habitam o
território moçambicano, abrangido pelo vasto espectro ficcional da obra. A narrativa da
autora não está apenas voltada para a problemática feminina, mas também para um
repensar dos valores e dos costumes de uma sociedade, sendo clara quando se propõe
um repensar dos conceitos referentes à cultura moçambicana, uma tentativa de mostrar
uma mulher capaz de escrever seu próprio destino livre das imposições masculinas e
culturais. Refletir sobre os traumas da colonização, da escravidão e das guerras, em
projetos de reconstrução nacional e da vida comunitária é pensar nos espaços cidade e
aldeia, passado e presente. Espaços e tempos que se polarizam e se interpenetram,
principalmente a partir de uma instituição africana muito forte que é a família.

REFERÊNCIAS
ACHUGAR, Hugo. A escritura da historia ou a propósito da fundamentação da nação.
In: MOREIRA, Maria Eunice (Org.). Historias da Literatura: teoria, temas e autores.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003. p. 35-60.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: Difel, 1980.
CHIZIANE, Paulina. As cicatrizes do amor. In: SAÚTE, Nelson. As mãos dos pretos:
antologia do conto moçambicano. Lisboa: d. Quixote, 2000.
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção
angolana do século XX, Niterói: EdUFF, 1995.
_____. Silêncios Rompidos: A produção textual das mulheres Africanas. In: PORTO,
Maria Bernadette; REIS, Lívia de Freitas e VIANNA, Lúcia Helena (Orgs.). Mulher e
Literatura – VII Seminário Nacional. Niterói: EdUFF, 1997.
PINTO, Alberto Oliveira. “O colonialismo e a „coisificação‟ da mulher no
cancioneiro de Luanda, na tradição oral angolana e na literatura colonial portuguesa”
In: MATTA, Inocência; SECCO, Carmem Lúcia “Mãos femininas e gestos de poesia”.

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Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v.1, n.1, 2010.

In: MATTA, Inocência; PADILHA, Laura Cavalcante. A mulher em África – Vozes de


uma margem sempre presente. Lisboa: Editor Colibri, 2007, p. 391-403.

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